LEXMAX - rEvistA do AdvogAdo 1

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LEXMAX - rEvistA do AdvogAdo 1
LEXMAX - revista do advogado
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EXPEDIENTE
1 - Editor-Chefe
Yulgan Tenno de Farias Lira
2 - Conselho Editorial
Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos
Adriana de Medeiros Gabínio
Aline Alves Lopes
Ana Isabella Bezerra Lau
Anne Caroline Rodrigues de Barros
Giannina Lucas Ferreira da Silva
Igor de Lucena Mascarenhas
Jefferson Alves Teodosio
José Humberto Pereira Muniz Filho
Laryssa Mayara Alves de Almeida
Mariana Torres López
Miguel Felipe Almeida da Câmara
Priscila Vidal Costa de Freitas
Rodrigo Clemente de Brito Pereira
Victor Luiz de Freitas Souza Barreto
Vinicius Leão de Castro
Vinicius Salomão de Aquino
Yulgan Tenno de Farias Lira
3 - Conselho Científico
Adriano Marteleto Godinho
Anne Augusta Alencar Leite
Arthur Heinstein Apolinario Souto
Ana Clara Montenegro Fonseca
Érica Simone Barbosa Dantas
Flavianne Fernanda Bitencourt Nóbrega
Francisco José Garcia Figueiredo
Gustavo Rabay Guerra
Jan Marcel de Almeida Freitas Lacerda
José Gomes de Lima Neto
Lorena Melo Freitas
Luciano Nascimento Silva
Marcílio Toscano Franca Filho
Odon Bezerra Cavalcanti
Talden Queiroz Farias
Vicente de Paula Ataíde Junior
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LEXMAX - revista do advogado
Apresentação
Constitui desafio para esta revista científica permanecer na vanguarda do saber, tendo como missão primordial a de informar
e inovar. Com precisão e clareza, busca dialogar sobre os institutos jurídicos e temas mais caros ao exercício da prática
advocatícia, em que a doutrina, alicerçada pela jurisprudência, exerce papel determinante. Como cediço, o jurista, no mundo
atual, é constantemente requisitado pela sociedade para demonstrar o seu posicionamento, as suas teses, perante os pontos
mais dissonantes da vida em sociedade, e, diante de seu juízo de valor qualificado, torna-se uma fecunda nascente de opiniões
fundamentadas na ética e no Direito. Frente a isso, a LEXMAX, mais que uma revista científica, propõe-se a ser fonte de
conhecimento e espaço de diálogo para a comunidade jurídica, incentivando estudantes e profissionais a construírem as
bases doutrinárias para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária, mediante a interação entre as lições da
academia e as diretrizes da prática do profissional. Dessarte, com muita satisfação, apresento-lhes a 3º edição da revista
LEXMAX, com artigos e comentários atuais e relevantes para a práxis. A revista está segmentada em três grandes seções,
quais sejam: Seção Editorial (artigos do Conselho Editorial e Consultivo), Seção de Artigos (os textos de maior qualidade
técnica, submetidos a processo rígido de avaliação e escolhidos em ampla concorrência e publicidade), Seção Internacional
(artigo de advogado do exterior, dissertando sobre o direito comparado) e Anexo – Comentários a Inovações Legislativas
e Jurisprudências (em que profissionais discutem sobre precedente jurisprudencial, súmula e projeto de lei úteis para a
elaboração de peças processuais).
Diante de tal conjuntura, oferecemos ao leitor o melhor de nossa equipe, com a confiança de que o solitário tempo destinado
à leitura dos textos dispostos a seguir se reverterá em calorosas contendas forenses para a solução de casos vivos.
João Pessoa, 28 de agosto de 2015.
YULGAN TENNO DE FARIAS LIRA
Editor-Chefe da LEXMAX – Revista do Advogado
LEXMAX - revista do advogado
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SUMÁRIO
Seção editorial
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E A TUTELA COLETIVA
DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL _________________________ 05
Yulgan Tenno de Farias Lira
DIREITO HUMANO AO DESENVOLVIMENTO:
A POLÍTICA PÚBLICA ASSISTENCIAL COMO DIREITO ANTIPOBREZA NA ERA GLOBALIZADA________ 17
Anne Augusta Alencar Leite Reinaldo
Seção de Artigos
RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE EMPREGADOS DOMÉSTICOS _______________________
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O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO _________________________________________________
33
O PAPEL DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE
DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE _______________________________________________________
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Luiz Filipe Fernandes Carneiro da Cunha
DA NECESSIDADE DA ADOÇÃO DA TESE DO DOLO EVENTUAL
NOS CRIMES DE TRÂNSITO PRATICADOS POR CONDUTOR ALCOOLIZADO_________________________ 55
José Afonso Oliveira e Magnolia dos Anjos
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO INSTRUMENTO DE PRESERVAÇÃO EMPRESARIAL:
IMPORTÂNCIA DA RECUPERAÇÃO (EXTRA)JUDICIAL ___________________________________________ 64
Juliana Pires Martins
INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA
DE BENS EM RAZÃO DA IDADE AVANÇADA DOS NUBENTES __________________________________ 75
Silvana Palitot e Patrícia Tavares
PATRIMÔNIO MÍNIMO E BEM DE FAMÍLIA: O PAPEL DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA NA AMPLIAÇÃO DA PROTEÇÃO À ENTIDADE FAMILIAR ___________________________ 85
Ana Caroline Gouveia Valadares
OS DIREITOS HUMANOS, A HIERARQUIZAÇÃO
DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS
NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO E O CASO DO DEPOSITÁRIO INFIEL______________________ 93
Gabriela Pinto Brito de Figueiredo
ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS EM UMA VISÃO CRÍTICO-JURÍDICA E SOCIAL____________ 101
Edmilson Nunes de Oliveira Nunes Oliveira
SEÇÃO INTERNACIONAL
LA REPARACIÓN DEL DAÑO AL PROYECTO DE VIDA EN EL SISTEMA INTERAMERICANO
DE PROTECCIÓN A DERECHOS HUMANOS__________________________________________________ 108
Mariana Torres López
Anexo – Comentários a Inovações Legislativas e Jurisprudências
CABIMENTO DE RECURSO ADESIVO PARA MAJORAR QUANTIA INDENIZATÓRIA
DECORRENTE DE DANO MORAL E OUTRAS IMPORTANTES QUESTÕES CORRELATAS____________ 114
Adrielly Fernandes Braga de Morais e Rodrigo Clemente de Brito Pereira
A PUBLICIDADE PROFISSIONAL NO NOVO CÓDIGO DE ÉTICA E DISCIPLINA:
PROTECIONISMO OU RETROCESSO?_______________________________________________________115
Patrícia Gomes Sampaio
ALUGUEL DE IMÓVEIS DE AGENTES IMUNES E A COBRANÇA DE IPTU __________________________117
Yure Tenno de Farias Lira
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seção editorial
AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E A TUTELA COLETIVA
DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL
Yulgan Tenno de Farias Lira ¹
RESUMO
O presente artigo tem o escopo de explanar a fundamentação de existência da audiência de custódia, do ponto de vista interno e
internacional, além de demonstrar como a garantia de obediência de uma norma internacional pode ser ampliada mediante a utilização
de ações coletivas para o exercício do controle de convencionalidade. Avança-se com a demonstração de que a audiência de custódia
foi fomentada, no Brasil, mediante a utilização do controle de convencionalidade na ação civil pública, com o consequente aumento da
eficácia da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Conclui-se que o uso de
ações coletivos pode aumentar o grau de enforcement da norma internacional de direitos humanos.
Palavras-chave: audiência de custódia. tutela coletiva. tratado internacional de direitos humanos. enforcement reduzido.
ABSTRACT
This article has the scope to explain the existence of grounds for the custody hearing, the domestic and international perspective, and
how to demonstrate that the obedience assurance of an international standard can be expanded through the use of collective action for
the exercise of control of conventionality. Forward with the demonstration that the custody hearing was fostered in Brazil by using the
conventionality control in the public civil action, with a consequent increase of the effectiveness of the American Convention on Human
Rights and the International Covenant on Civil and Political Rights. We conclude that the use of collective action may increase the degree
of enforcement of the international standard of human rights.
Keywords: custody hearing. collective protection. international human rights treaty. reduced enforcement.
¹Editor-chefe da LEXMAX – Revista do Advogado. Extensionista da Academy on Human Rights and Humanitarian Law da Washington College of Law – American
University em Washington-DC. Membro do Internacional Law Association (ILA) – Ramo brasileiro. Membro do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em
Educação e Direito – CIPED. Pós-graduando em Direito Público pelo Instituto Cândido Mendes no Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela Universidade
Federal da Paraíba. Advogado.
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1. INTRODUÇÃO
Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos (TIDH), no Brasil, são dotados de natureza jurídica de supralegalidade, estando
acima de todas as normas, salvo a Constituição, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), veiculada no RE 466.343/
SP, em 2008.
Dessarte, possui atributo de supralegalidade a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Convenção ADH) e o Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) que, entre outros preceitos, estabelecem o dever dos Estados em garantir a apresentação
imediata do preso ao juiz em caso de prisão em flagrante.
Constitui consequência da adoção da teoria da supralegalidade das normas internacionais de direitos humanos a utilização de
instrumentos processuais tendentes a conformar a norma de hierarquia inferior (leis e atos infralegais) com as de hierarquia superior
(TIDH).
Tal mecanismo é conhecido como controle de convencionalidade, instrumento de que se vale o órgão jurisdicional para declarar
uma norma incompatível frente às convenções internacionais de direitos humanos.
Contudo, mesmo adquirindo status privilegiado no ordenamento jurídico pátrio, os TIDH são constantemente desconsiderados na solução de contendas jurídicas internas, pois não possuem o que se convenciona chamar de alto grau de enforcement, ou seja,
garantias de observância e aplicação da norma internacional nos processos domésticos do Estado.
Neste passo, a pesquisa aponta que as ações coletivas, quando desempenham o controle de convencionalidade, ampliam as
chances de que a norma internacional seja obedecida por todos, pois a coisa julgada advinda da decretação de inconvencionalidade de
uma lei frente o TIDH, possui eficácia erga omnes, invalidando a referida lei em toda a jurisdição interna.
Noutro giro, desde que foram incorporadas ao ordenamento brasileiro, em 1992, pelo rito especifico de internalização de
tratados, o PIDCP e a Convenção ADH (Decreto no 592 e Decreto no 678, respectivamente) permaneceram despidas de eficácia no que
tange a alguns de seus dispositivos, sendo exemplo deles a audiência de custódia.
Entretanto, a conjuntura muda quando os legitimados para a propositura da ação civil pública (ACP), lastreados pela normativa
internacional, passam a se valer desta ação coletiva para implementar a audiência de custódia no Brasil, no interesse de parcela da
sociedade prejudicada pela não regulamentação de tal instituto processual penal no País, que já fora previsto por pactos internacionais
desde 1992, porém ignorados.
A discussão levou o CNJ a dar início ao projeto audiência de custódia, com o objetivo de, paulatinamente, implementar a referida
audiência em todo o território nacional, com a ajuda dos tribunais de justiça dos Estados.
Dessa forma, o presente artigo tem o escopo de explanar a fundamentação de existência da audiência de custódia, do ponto de
vista interno e internacional, além de demonstrar como a eficácia de uma norma internacional pode ser ampliada mediante a utilização
de ações coletivas para o exercício do controle de convencionalidade.
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2. A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
A audiência de custódia, também conhecida como audiência de apresentação, é o instrumento processual penal que tem o
escopo de defender a liberdade pessoal e a dignidade do acusado, servindo a propósitos processuais, humanitários e de defesa de direitos
fundamentais inerentes ao devido processo legal.
Em definição, consiste na apresentação imediata ou sem demora ao juiz de pessoa presa em flagrante ou sem mandado judicial
pela polícia.
Nessa esteira, diversos países ocidentais positivaram em seus ordenamentos internos a audiência de custódia, com a finalidade
de fazer cessar “eventuais atos de maus tratos ou de tortura e, também, para que se promova um espaço democrático de discussão acerca
da legalidade e da necessidade da prisão” (LOPES JR; PAIVA, 2014).
O regramento encontra lastro normativo no artigo 9º, 3 do PIDCP e no artigo 7ª, 5, da Convenção ADH, tendo este a seguinte
redação:
Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de
um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem
direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade,
sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a
garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (grifo nosso).
No excerto, identifica-se a expressão “sem demora”, interpretada pela Corte IDH no caso Cabrera Garcia e Montiel Flores v. México
(2010), oportunidade em que não considerou compatível com a Convenção (artigo 7º, 5) o prazo de 5 (cinco) dias, contados da data da
prisão, para apresentar o preso ao juiz competente, determinado pela legislação mexicana.
Dessa forma, parte da doutrina acena que a citada expressão deve ser entendida como 24 (vinte e quatro) horas contadas a
partir da prisão em flagrante.
Na CRFB/88, a audiência de custódia se manifesta na norma que determina o imediato relaxamento da prisão ilícita (artigo 5ºLXV), o rápido desfecho da investigação e do processo (artigo 5º- LXXVIII) e pelo princípio do juiz natural, conforme o qual o investigado
tem o direito de ter um julgamento justo, com parâmetros previamente estabelecidos (artigo 5º- LIII), e não por tribunal de exceção (artigo
5º- XXXVII). Tais garantias são inerentes ao devido processo legal instituído pela atual Constituição.
Com isso, o instituto tende a coibir maus tratos aos presos no momento da prisão, além de exercer papel relevante no que tange
à diminuição da população carcerária, na medida em que a apresentação imediata do preso ao juiz possibilitará a apreciação da legalidade
da prisão em flagrante e da necessidade da prisão preventiva de forma célere, minimizando a possibilidade de manter prisões abusivas e
desnecessárias.
Registre-se também a possibilidade de o juiz decretar a prisão preventiva na própria audiência, desde que presentes os requisitos
do artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP) – Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
Conquanto não exista previsão legal no Brasil sobre a audiência judicial de custódia, o CNJ, em parceria com os tribunais de
justiça dos Estados federados, vem instaurando a audiência de apresentação em todo o Brasil, com regulamento estabelecido por cada
Tribunal, diante da lacuna na legislação.
Todavia, tramita no Senado Federal o projeto de lei nº 554/2011, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares, propondo a
alteração do §1º do artigo 306 do CPP para instituir a audiência de custódia em 24 horas após a prisão em flagrante.
O texto original do projeto tem a seguinte redação:
Art. 306. [...]
§1º. No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser
conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado
o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o
autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria
Pública.
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Dessarte, com o trâmite na Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH), o PL foi contemplado por uma
emenda substitutiva apresentada pelo Senador João Capiberibe – aprovada por unanimidade na CDH, conferindo a seguinte redação ao
projeto originário:
Art. 306. [...]
§ 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o
preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas
previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus
direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis
para preservá-los e para apurar eventual violação.
§ 2.º A oitiva a que se refere o § 1.º não poderá ser utilizada como meio de prova
contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade
da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos
assegurados ao preso e ao acusado.
§ 3.º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão
em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada
pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes
das testemunhas.
§ 4.º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado,
ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do
Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no § 2.º,
bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310
deste Código.
Em 25/06/2014, o texto recebeu nova emenda substitutiva, de autoria do Senador Francisco Dornelles, estabelecendo que a
audiência de custódia também poderá ser feita mediante o sistema de videoconferência. O substitutivo traz a seguinte redação:
Art. 306. [...]
§ 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá
ser conduzido à presença do juiz competente, pessoalmente ou pelo sistema de
videoconferência, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em
flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe
o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.
Pondera-se que o texto é de duvidosa convencionalidade, pois a videoconferência retiraria a possibilidade de contato direto
pessoal entre o juiz e o preso, dificultando a aferição das circunstâncias corpóreas, além de facilitar a coação e o abuso da autoridade
policial, de forma a induzir o acusado a faltar com a verdade no depoimento transmitido online.
Ademais, reforçando tal entendimento, a Corte IDH (2005), interpretando o artigo 7ª, 5 da Convenção ADH, decidiu que, para
os fins previsto nos TIDH, o detido deve comparecer em pessoa e render sua declaração exclusivamente perante um juiz ou autoridade
judicial competente.
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3. PRINCIPAIS DISCUSSÕES SOBRE O INSTITUTO
Consoante aponta Weis (2013), a audiência de custódia “aumenta o poder e a responsabilidade dos juízes, promotores e
defensores de exigir que os demais elos do sistema de justiça criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência”.
Na visão da Diretora do Human Rights Watch – Brasil, Maria Laura Canineu (2014), o risco de maus-tratos é frequentemente
maior durante os primeiros momentos que seguem a detenção, quando a polícia questiona o suspeito, pois “Esse atraso torna os detentos
mais vulneráveis à tortura e outras formas graves de maus-tratos cometidos por policiais abusivos”.
Contudo, apesar da expressa previsão convencional (dotada de natureza jurídica de supralegalidade), a audiência de custódia
não foi efetivamente implementada em todo o País².
Com efeito, o CPP exige apenas que os documentos policiais do caso, mas não o preso, sejam apresentados a um juiz no prazo
de 24 horas (artigo 306, § 1º), momento em que a autoridade judicial terá a incumbência de avaliar a legalidade da prisão e decidir sobre
sua prisão preventiva ou liberdade provisória, com base exclusivamente nos documentos escritos fornecidos pela polícia.
A única circunstância em que a polícia precisa levar imediatamente o preso perante o juiz, de acordo com o CPP, ocorre no
caso da prática de crime inafiançável, não tendo o policial exibido o respectivo mandado judicial no momento da prisão (art. 287). Caso
contrário, o detento também pode chegar a não ver um juiz por vários meses (CANINEU, 2014).
Dessa forma, constata-se que o encontro entre o investigado e o juiz acaba sendo postergado por meses ou anos, tendo em
vista que o interrogatório é o último ato da instrução (art. 400, caput, do CPP), somente ao final do processo.
É nesse sentido que Lopes Jr. e Paiva (2014) afirmam que “o juiz não tem contato com o cidadão preso e, se decretar a prisão
preventiva, somente irá ouvi-lo no interrogatório muitos meses (às vezes anos) depois, pois agora o interrogatório é o último ato do
procedimento.”
Enfaticamente, prevê o artigo 306 do CPP que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados
imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”.
Entretanto, a disposição não passa pelo crivo de convencionalidade, uma vez que a mera comunicação através de correspondência por escrito inviabiliza a análise judicial sobre o corpus, impossibilitando qualquer aferição de maus tratos e o contato direto do juiz
com o acusado.
Nessa esteira, posiciona-se reiteradamente a Corte IDH que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa
está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade
competente” (2005) e ainda que “o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para
decidir se procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade”, concluindo que “o contrário equivaleria a despojar de toda
efetividade o controle judicial disposto no art. 7.5 da Convenção” (2008).
São muitas as vantagens da efetiva implementação da audiência de custódia; para elencá-las, foi-se necessário a reunião dos
motivos no Informativo Rede de Justiça Criminal, produzido por organizações de defesa de direitos humanos, tal qual a Associação pela
Reforma Prisional (ARP), Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto de Defensores de
Direitos Humanos (DDH), Instituto Sou da Paz, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Justiça Global e Pastoral Carcerária Nacional.
Entre tais vantagens, o citado Informativo considera as dez seguintes (2013, p. 2):
1. A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ratificada
pelo Brasil em 1992, dispõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora,
à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais” (art. 7º);
2. A apresentação da pessoa presa em juízo no prazo de 24 horas é a maneira mais célere de
garantir que a prisão ilegal será imediatamente relaxada e que ninguém será levado à prisão ou
nela mantido se a lei admitir a liberdade (garantias constitucionais previstas no art. 5º, LXV e LXVI,
respectivamente);
3. A audiência de custódia servirá para que o juiz i) analise a legalidade e necessidade da prisão
e ii) verifique eventuais maus tratos ao preso havidos até ali, podendo determinar a imediata
apuração de qualquer abuso que venha a tomar conhecimento. No que diz respeito ao controle
da legalidade da prisão, poderá o juiz no momento da audiência de custódia: i) relaxar a prisão
em flagrante ilegal; ii) decretar a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão;
iii) manter solta a pessoa suspeita da prática de determinado delito, se verificar ausentes os
pressupostos de cautelaridade previstos no artigo 312 do CPP;
4. A previsão da ordem dos atos nesta audiência (Ministério Público requer a medida cautelar que
entender adequada e necessária, a Defesa contra-argumenta e o Juiz decide) é a expressão do
princípio constitucional do contraditório (art. 5º, LV, CF), com a garantia inerente de que a defesa
deve sempre manifestar-se depois da acusação;
5. O depoimento prestado nessa audiência deve ser autuado em apartado para que não seja
manuseado no curso da instrução criminal e com isso não contamine a prova a ser produzida e
discutida no futuro, garantindo, portanto, que seu conteúdo não seja utilizado em prejuízo do
acusado em futura ação penal;
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6. A autuação em apartado do depoimento e a proibição de que se inquira o preso sobre pontos atinentes ao mérito da imputação evitam
que os avanços da Lei nº 11.719/2008 – que alterou a ordem dos atos no processo penal, garantindo que o interrogatório do acusado
seja o último ato da instrução criminal, em conformidade com o princípio do contraditório (art. 5º, LV, CF) –, se esvaiam com a adoção da
audiência de custódia;
7. A obrigatoriedade para que dessa audiência participe o representante do Ministério Público e o advogado/defensor público é a garantia
de que a lei não contrarie a garantia constitucional de assistência de um advogado (art. 5º, LXIII), bem como o contraditório e a ampla
defesa (art. 5º, LV);
8. A audiência de custódia representa para o Estado um instrumento eficiente e ágil para a obtenção e verificação de informações precisas
sobre os procedimentos policiais, evitando que maus tratos e práticas de extorsões continuem a ocorrer impunemente;
9. O controle imediato da legalidade, necessidade e adequação de medida extrema que é a prisão cautelar será uma forma eficiente de
combater a superlotação carcerária, sempre tendo em conta que a excessiva política de encarceramento em massa atinge com muito mais
força a camada mais pobre e marginalizada da população brasileira;
10. A apresentação imediata da pessoa presa ao juiz é o meio de garantir que um cidadão passe o menor tempo possível preso desnecessariamente, ainda que não possua advogado constituído, circunstância que caracteriza a maior parcela da população prisional. (2013, p. 2)
O Ministro Gilmar Mendes, em voto no HC 119095 (MENDES, 2014), caso emblemático de abuso da prisão cautelar, também
ponderou as vantagens da audiência de custódia, refletindo se, no Brasil, já não seria o momento de “começar a exigir, talvez, aquilo que
está já na Convenção Interamericana de Direitos Humanos: a observância da apresentação do preso ao juiz ”.
No mesmo sentido, pondera Paiva (2014):
São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela
mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em
massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se,
desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que se satisfaz com o
mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado (PAIVA, 2014).
No que tange ao direito comparado, a experiência demonstra o êxito da audiência de custódia, inclusive quanto aos fins
propostos, apesar de a simples previsão normativa não ser suficiente para eliminar por completo a prática de abusos nas detenções
(CANINEU, 2014).
Na Argentina, por exemplo, o Código de Processo Penal federal exige que, em casos de prisão sem ordem judicial, o detento
compareça perante uma autoridade judicial competente no prazo de seis horas após a prisão. No Chile, o Código de Processo Penal
determina que, em casos de flagrante, o suspeito seja apresentado dentro de 12 horas a um promotor, que poderá soltá-lo, ou apresentá-lo
a um juiz no prazo de 24 horas da prisão. Na Colômbia, o Código de Processo Penal prevê que, em casos de flagrante, o detento precisa
ser apresentado ao juiz no prazo de 36 horas. No México, para a maioria dos tipos penais, pessoas detidas em flagrante precisam ser
entregues imediatamente aos promotores, que, por sua vez, devem apresentar os suspeitos a um juiz no prazo de 48 horas ou liberá-los
(CANINEU, 2014).
² O Estado de São Paulo e do Maranhão são exemplos pontuais de Estados brasileiros que expressamente implementaram a audiência de custódia, mas isso
ainda continua sendo uma realidade remota. Em São Paulo, anota a publicação do Provimento Conjunto nº 03/2015, da Presidência do Tribunal de Justiça
e Corregedoria Geral de Justiça, em 27 de janeiro - conforme publicação do MP paulista (http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/corregedoria_geral/
Publicacoes/Minist%C3%A9rio%20P%C3%BAblico%20e%20Audi%C3%AAncia%20de%20Cust%C3%B3dia.pdf) - que “Uma vez realizada uma prisão em
flagrante, a pessoa detida deverá ser apresentada ao Juiz de Direito, em ‘audiência de custódia’, no prazo máximo de 24 horas, oportunidade em que a
autoridade judicial decidirá, após ouvido o representante do Ministério Público, sobre a legalidade da prisão e deverá converter a custódia por força do
flagrante em prisão preventiva ou conceder ao preso a liberdade provisória com ou sem imposição de medidas cautelares ou, ainda, determinar a prisão
domiciliar. Também nessa ocasião o advogado do preso ou a Defensoria Pública serão ouvidos e poderão postular medidas liberatórias ou outras em favor
da pessoa detida, bem como o preso poderá denunciar eventual excesso ou tortura a que tenha sido submetido e tais ocorrências deverão ser apuradas
de imediato. A pessoa custodiada, ainda, será entrevistada pelo Magistrado tão somente acerca de sua qualificação, condições pessoais e circunstâncias
objetivas da sua prisão, sendo vedadas perguntas que possam antecipar eventual instrução criminal de processo de conhecimento, bem como deverá se
submeter a exame de corpo de delito, havendo médicos legistas no local”.
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4. O BAIXO GRAU DE ENFORCEMENT DA NORMA INTERNACIONAL DE
DIREITOS HUMANOS E O CORRELATO DANO COLETIVO
O termo enforcement pressupõe o fazer valer da norma, a garantia de sua observância e obediência. Uma norma possui alto grau
de enforcement quando conta com instrumentos que garantem sua aplicação no caso concreto.
Na acepção de Tams (2005, p. 8), o conceito de enforcement, no direito internacional, compreende formas de induzir outro
Estado a cessar sua conduta ilícita e sanar as consequências. Para o direito interno, são as providências tomadas pelo Estado para limitar
sua própria força e induzir a obediência aos diplomas internacionais que se compromete observar.
No Brasil, diversos TIDH possuem a executoriedade comprometida pelos juízes internos, que não se valem dessas normas para
resolver a demanda judicial.
Ao passo que o direito processual civil não oferece uma resposta efetiva para sua tutela, como uma ação direta que proteja essas
normas supralegais, devendo o aplicador do direito se utilizar de métodos subsidiários, como as ações coletivas, para aumentar o grau de
enforcement dos direitos humanos consagrados nos diplomas internacionais.
Na mesma esteira, a não obediência de normas previstas em TIDH, tal qual o dever de apresentação imediata ou sem demora ao
juiz de pessoa presa em flagrante ou sem mandado judicial pela polícia, pode gerar dano de ordem coletivo, autorizando tanto o manejo
de ação coletiva para sua efetiva tutela quanto o uso do controle de convencionalidade.
Os interesses³ coletivos lato sensu e os interesses individuais indisponíveis são caracterizados pela Constituição como interesse
de ordem social e pública.
Nesse sentido, não possuem titularidade determinada, pois são comuns aos grupos, classes ou categorias de pessoas que estão
ligadas por uma mesma relação jurídica ou fática.
Sua relevância jurídico-processual, no mesmo norte, reside no reconhecimento da necessidade de que o acesso coletivo é
preferível frente ao acesso individual do lesado à Justiça, de modo que “a solução obtida no processo coletivo não apenas deve ser apta
a evitar decisões contraditórias como, ainda, deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido
em proveito de todo o grupo lesado” (MAZZILLI, 2013, p. 51).
Diante disso, a CRFB/88 prescreve, no artigo 5º, o rol de direitos individuais e, destaque-se, coletivos, estabelecendo ainda, no
inciso XXXV, o acesso à Justiça não só do indivíduo, mas também de toda coletividade.
Assim, o efeito gerado por crises de direito pode ter influência tanto na ordem individual da pessoa quanto para toda a
coletividade, situação que, em tese, autoriza a parte lesada a requerer resposta judicial.
Mais ainda, qualquer ação (condenatórias, mandamentais, executivas, declaratórias e constitutivas), conforme artigo 83 do CDC,
pode se tornar coletiva, diante do caráter volátil desses direitos, pois “inexiste taxatividade de objeto para a defesa judicial de interesses
transindividuais” (MAZZILLI, 2013, p. 797-805).
Vale ressaltar, por outra via, que, no Brasil, os interesses ou direitos coletivos lato sensu (ou transindividuais) são gênero das
espécies: direito difuso, coletivo stricto sensu e direito individuais homogêneos (DIDIER JR.; ZANETI JR., 2013, p. 75).
Refletindo sobre o tema, Didier Jr. e Zaneti Jr. (2013, p. 85) apontam que tais categorias de direito foram conceituadas para
facilitar a prestação jurisdicional, sendo, portanto, “conceitos interativos de direito material e processual, voltados para a instrumentalidade, para a adequação ao direito material da realidade hodierna e, dessa forma, para sua proteção pelo Pode Judiciário”.
Tais espécies se encontram previstas no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) – Lei Federal nº. 8.078, de 11 de
setembro de 1990 – que dispõe:
Art. 81 - A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida
em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único - A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias
de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas
entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem
comum.
³Apesar das críticas doutrinárias com relação à palavra “interesse” (e.g Didier Jr. e Zaneti Jr. [2012, p.88-94]), utiliza-se o termo indistintamente como
sinônimo de “direito” por razões didáticas. Entretanto, faz-se necessário apresentar a visão de Mazzilli (2013, p. 55), para quem a terminologia “interesse”
é utilizada como sinônimo de pretensão de direito. O direito coletivo, por sua vez, é o interesse corroborado em juízo mediante ações coletivas.
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Reforçando a definição das categorias de direitos coletivos já trazidas pelo CDC, Mazzilli (2013, p. 809) conceitua os interesses
transindividuais da forma que se segue. Há os i) interesses difusos – são aqueles “cujos titulares não são determináveis e estão ligados
por uma circunstância de fato. São indivisíveis porque, embora comuns a uma categoria de pessoas, não se pode quantificar o que cabe
a cada um lesado”. Pode-se exemplificar como interesse difuso o meio ambiente. Por outro lado, tem-se os ii) direitos coletivos strictu
sensu – ou seja, são “aqueles em torno dos quais está reunido um conjunto determinável de pessoas (grupo, categoria ou classe), ligadas
de forma indivisível pela mesma relação jurídica básica” – e.g, os membros de um sindicato. Por fim, tem-se os iii) interesses individuais
homogêneos – de origem comum e que “são compartilhados por pessoas que se encontram unidas pela mesma situação de fato. São
divisíveis, ou seja, quantificáveis em face dos titulares, como os consumidores que compram produto fabricado em série com o mesmo
defeito”.
Sendo assim, a práxis enseja a formação de novas categorias de direitos coletivos que merecem tutela do Poder Judiciário. Não
é diferente, portanto, com os direitos humanos, sobretudo os advindos de tratados internacionais que, da mesma forma que os direitos
fundamentais presentes no artigo 5º da CRFB/88, podem ser individuais ou coletivos.
Como se pode constatar, o ordenamento jurídico não especifica um rol exaustivo de interesses difusos e coletivos passíveis
de proteção pela via da ACP. Nem poderia fazê-lo, pois os direitos e interesses difusos e coletivos são a expressão jurídica de valores
historicamente situados, em permanente evolução conforme novos anseios da sociedade (STF, 2009).
Na mesma linha, pondera o Supremo no Recurso Extraordinário nº 163.231/SP (1999):
Os interesses metaindividuais, ou de caráter transindividual, constituem valores cuja titularidade
transcende a esfera meramente subjetiva, vale dizer, a dimensão puramente individual das pessoas
e das instituições. São direitos que pertencem a todos, considerados em perspectiva global. Deles,
ninguém, isoladamente, é o titular exclusivo. Não se concentram num titular único, simplesmente
porque concernem a todos, e a cada um de nós, enquanto membros integrante da coletividade.
Na real verdade, a complexidade desses múltiplos interesses não permite sejam discriminados
e identificados na lei. Os interesses difusos e coletivos não comportam rol exaustivo. A cada
momento, e em função de novas exigências impostas pela sociedade moderna e pós-industrial,
evidenciam-se novos valores, pertencentes a todo o grupo social, cuja tutela se revela necessária
e inafastável. Os interesses transindividuais, por isso mesmo, são inominados, embora haja alguns,
mas evidentes, como os relacionados aos direitos do consumidor ou concernentes ao patrimônio
ambiental, histórico, artístico, estético e cultural.” (grifo nosso)
Dessarte, como assinala Mazzilli (2013, p. 804), qualquer interesse coletivo lato sensu pode, em tese, ser defendido em juízo por
meio da tutela coletiva, tanto pelo Ministério Público como pelos demais colegitimados do artigo 5º da Lei da Ação Civil Pública (LACP)
– Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 – e pelo art. 82 do CDC.
As teses aventadas pelos autores citados servem de lastro para o entendimento de que a negativa da aplicação dos TIDH de
natureza supralegal, no caso concreto, pode gerar danos de ordem coletiva.
Contextualizando a problemática, considera-se que a lei é um ato normativo abstrato e genérico por definição. A não observação
de seus preceitos de forma sistemática pelos Tribunais gera impedimento do gozo do direito atribuído por ela à toda coletividade.
Com outras palavras, seria o mesmo que dizer que, sempre que o juiz interno (ou alguma autoridade pública) se nega a aplicar
o direito previsto em uma fonte, a conjuntura implica o nascimento de uma pretensão coletiva de que são titulares todas os sujeitos
potencialmente contemplados pelo mesmo direito, mas impedidos de gozá-los pela falta de eficácia da fonte.
Assim como a lei, os TIDH, em regra, possuem as características de serem gerais e abstratos, além de que assumem posição
privilegiada no ordenamento jurídico pátrio e podem revogar a própria lei pela natureza de supralegalidade.
Como destaca Rezek (2011, p. 38), “a matéria versada num tratado pode ela própria interessar de modo mais ou menos extenso
ao direto das gentes [...]”, assim como ao direito interno.
Dessa forma, pode-se expor que o interesse coletivo surge no momento em que a norma internacional de direitos humanos
atributiva de direitos não é aplicada pelas instituições do Estado no caso concreto.
Nesse diapasão, o reduzido grau de enforcement do TIDH – que se traduz na falta de obediência ou aplicação ao caso concreto
dos dispositivos do TIDH e da jurisprudência correlata – gera a pretensão coletiva de requerer em juízo tutela jurisdicional frente à
ineficácia sistemática de suas disposições, acarretando em flagrante dano transindividual.
Para exemplificar, um tratado que versa sobre os direitos da pessoa com deficiência, com obviedade ululante, interessa à
categoria coletiva dos deficientes físicos e também a toda sociedade. Seria uma anomalia achar que seu simples desprezo no caso
concreto poderia passar despercebido pela ordem jurídica, sem qualquer forma instrumental de tutela processual.
Dessa forma, o reduzido grau de aplicação do TIDH causa prejuízo generalizado a todos os titulares de direitos subjetivos
fundados nas convenções, sejam eles direitos individuais ou coletivos, pois a não observância de normas obrigatórias resultará em
conduta ilegal das autoridade públicas e em danos transindividuais multitudinários para os destinatários da norma, que atingem não uma
só categoria de direitos coletivos, mas duas ou três.
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Com efeito, é induvidoso afirmar que “A natural proximidade entre os direitos de natureza coletiva pode levar a situações (não
raras) em que uma mesma conduta [...] viole direitos (afirmados) difusos, coletivos e individuais homogêneos” (DIDIER JR.; ZANETI JR.,
2013, p. 85).
O que se defende não é qualquer tipo de eficácia, mas de uma situação especial relacionada aos TIDH de hierarquia supralegal,
visto que a sua eficácia advém não da simples inobservância da lei, mas da preferência por leis internas de hierarquia inferior que são
aplicadas em detrimento dos TIDH com atributo de supralegalidade.
Nesse sentido, a não implementação da audiência de custódia, direito previsto na Convenção ADH e no PIDCP, pode gerar dano
de ordem coletivo, autorizando tanto o manejo de ação coletiva para sua efetiva tutela quanto o uso do controle de convencionalidade.
Ressalta-se que o exercício do controle de convencionalidade pelo juiz interno, em tal caso, poderia evitar denúncia internacional
por descumprimento de preceitos dos TIDH e qualificar a tutela jurisdicional.
5. ESFORÇOS DE CONSOLIDAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL
Diante do baixo grau de enforcement, no Brasil, do dispositivo convencional que prevê a audiência de custódia, os legitimados
para tutela coletiva de direitos passaram a propor ações civis públicas questionando a não implementação do direito subjetivo do preso
de ser apresentado, sem demora, a um juiz, presente na Convenção ADH e no PIDCP.
Nesse deambular, o Ministério Público Federal (MPF) do Ceará, em dezembro de 2010, ajuizou a ACP n.º
00.14512.10.2010.4.05.8100, objetivando, liminarmente, compelir o Diretor Geral da Polícia Federal a instauração, em prazo razoável,
dos Procedimentos Administrativos necessários para fins de cumprimento das disposições do artigo 9º, §3º, do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos (1966), primeira parte, no que diz respeito ao direito de apresentação, sem demora, dos presos ou custodiados
aos respectivos juízos competentes.
Em decorrência desta ação, a Advocacia Geral da União (AGU) encaminhou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) uma proposta
de Resolução para implantar as audiências.
O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, autuou esta proposta de resolução no processo n. 0001731-41.2012.2.00.0000,
com o escopo de disciplinar a apresentação em juízo de toda pessoa presa, internada ou de qualquer forma mantida sob custódia do
Estado. A medida garante que a autoridade judicial possa ouvir a pessoa sobre as circunstâncias em que se realizou o ato de custódia e
decidir, imediatamente, nos termos da legislação em vigor, sobre a sua legalidade e a apuração de eventuais excessos.
Diante da conjuntura, o Ministro Ricardo Lewandowski, propôs ao CNJ o Projeto “Audiência de Custódia”, elaborado pelo Juiz
Luís Geraldo Sant’Anna Lanfredi, e dirigido pelo próprio CNJ, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e pelo Ministério da Justiça, com
o desígnio de prevenção e combate à tortura e de estabelecer um modelo de audiência de custódia a ser implantado no Fórum Criminal
da Barra Funda em São Paulo para os fins do artigo 310 do CPP.
Conforme enunciado pelo mesmo Ministro, mais de 12 (doze) Estados da federação já aderiram ao projeto de audiência de
custódia, e a previsão é que, até o final de 2015, ela seja realizada em todo o território nacional .
Cabe ressaltar que a implementação do referido instituto traz benefícios de ordem política, social e econômica, pois evita prisões
desnecessárias, contribui para a ressocialização de autores de crimes leves e representa economia de mais de R$ 4,3 bilhões por ano aos
cofres públicos, vez que a manutenção do preso custa média de R$ 3 mil mensais.
Noutro giro, com o advento da ADIN 5.240, a questão parece ter se estabilizado, haja vista o plenário do STF ter declarado
constitucional a audiência de custódia (ou audiência de apresentação), como será melhor visto posteriormente.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298112.
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6. O PAPEL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA CONCRETIZAÇÃO
DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Como mencionado acima, o MPF ajuizou ação civil pública – que ainda não transitou em julgado – com o propósito de ver
implementada a garantia convencional de apresentação, sem demora, do preso ao juiz, estimulando o debate pátrio tangente à garantia
da Convenção ADH e do PIDCP.
Na mesma ação, o parquet federal também requer a declaração de invalidade da Lei de Prisão Temporária (Lei 7.960, de 21 de
dezembro de 1989), por reportar incompatível com o artigo 7º da Convenção ADH, que veda a possibilidade de detenções arbitrárias.
Posteriormente, a Defensoria Pública da União (DPU), ajuizou nova ação civil pública, no Amazonas, em junho de 2014,
“cobrando do Poder Judiciário apenas a concretização de um direito previsto em Tratados Internacionais de Direitos Humanos que o
Brasil – voluntariamente – aderiu” .
No pedido principal, a DPU requer ao juiz o cumprimento da Convenção ADH (art.7º, 5) e do PIDCP (9º, 3), obrigando a União
a viabilizar a realização da audiência de custódia para todos os presos em flagrante, com a condução, no prazo máximo de 24 (vinte e
quatro) horas, do preso à presença do juiz, com prévia intimação para o Ministério Público e para a defesa.
De uma forma ou de outra, a decisão pelo provimento de qualquer das ações (em outras palavras, o exercício do controle de
convencionalidade pelo juiz) tem o condão de concretizar o dispositivo convencional violado em todo o território nacional, nacionalizando
a invalidade e concedendo enforcement a uma norma de baixa aplicabilidade no ordenamento pátrio.
Nem seria preciso, cumpre ressaltar, que o mandamento convencional estivesse regulamentado por norma legal, pois o disposto
no artigo 7º, 5 da Convenção ADH, e 9º, 3 do PIDCP, possui aplicação imediata e eficácia plena no território brasileiro.
Dessarte, nos exatos termos da ACP, anuncia o advocatus pauperum: “A Justiça Federal do Estado do Amazonas tem, aqui, uma
chance singular de nacionalizar um provimento que fará cessar mais de vinte anos de descumprimento da CADH e do PIDCP [...]”.
Frente a conjuntura referenciada, pode-se afirmar que vem se multiplicando o número de ações civis públicas veiculando pedido
de inconvencionalidade por omissão ou por incompatibilidade da norma interna em face do TIDH, ainda que com outra nomenclatura.
É de se expor que o objetivo dessas novas ações será sempre o de tutelar uma categoria vulnerável de pessoas, que têm seus
direitos coletivos violados em face da omissão do Estado ou de uma norma incompatível com o TIDH.
Com o provimento da ação civil pública, no sentido de tutelar o direito internacional violado, grande número de pessoas, em
injusto cárcere, serão beneficiadas pela coisa julgada coletiva inerente a este tipo de ação, já que exercerá efeitos em todo o País.
A referenciada ação civil pública proposta pela DPU está disponível em: https://www.scribd.com/doc/228594540/ACP-audiencia-de-custodia.
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7. ADIN 5.240
Em agosto de 2015, o plenário do STF julgou improcedente a ADIN 5.240, proposta pela Associação de Delegados de Polícia do
Brasil (Adepol/Brasil), que questionava a Portaria conjunta do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e da Corregedoria Geral da Justiça,
pela implementação da audiência de custódia em São Paulo.
Neste interim, a Associação alega que a deliberação de tais órgãos públicos viola normas de competência presente na
Constituição, já que a competência para legislar sobre Direito Penal e Processo Penal é da União (artigo 22, inciso I da CRFB/88), assim
a implementação do procedimento apenas poderia ocorrer através de lei federal dispondo expressamente sobre a matéria, e jamais por
intermédio de tal provimento autônomo.
No mesmo passo, aduzem que a norma repercutiu diretamente nos interesses institucionais dos delegados de polícia, cujas
atribuições são determinadas pela Constituição (artigo 144, parágrafos 4º e 6º).
Para o STF, o procedimento da audiência de apresentação, que consiste no direito fundamental do preso de ser levado sem
demora à presença do juiz, não inovou no ordenamento jurídico, apenas disciplinou a Convenção Americana de Direitos Humanos
(Convenção ADH), norma vigente no País desde 1992, bem como de dispositivos do CPP.
Na óptica do Supremo, trata-se, na verdade, de comandos de mera organização administrativa interna, ou seja, ato de mera
gestão do Tribunal, sem que interferisse na competência de outros Poderes.
Com isso, o STF julgou improcedente a ADIN 5.240 para declarar constitucional a audiência de custódia e a possibilidade de
sua implementação em todo o território nacional, preenchendo o comando normativo – até então desprovido de eficácia – do PIDCP e
da Convenção ADH.
Nesse sentido, o dispositivo do artigo 9º, 3 do PIDCP e do artigo 7ª, 5, da Convenção ADH passam a ter concretude no
ordenamento jurídico brasileiro, gerando benefícios de ordem econômica, política e social para o País.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A audiência de custódia é importante meio para se evitar prisões arbitrárias e o tratamento degradante de presos. Tem previsão
em TIDH internalizados pelo Brasil, inclusive com natureza jurídica de supralegalidade, sendo hierarquicamente superior a qualquer lei.
Contudo, tais atributos excepcionais não foram suficientes para que a audiência de custódia fosse realidade no Brasil,
permanecendo ignorada por mais de 20 anos, ou seja, desde da vigência da Convenção ADH e do PIDCP, em 1992.
A circunstância acarretou em dano transindividual aos presos, gerando ações civis públicas com o escopo de ver assegurado o
direito de ser apresentado em prazo razoável a juiz diante de prisão.
Nesse sentido, pode-se dizer que o controle judicial de convencionalidade das normas domésticas realizado pelos juízes internos
representa, no Direito Processual, o principal mecanismo de tutela dos direitos humanos consagrados em tratados internacionais.
Por vezes, a teoria do controle de convencionalidade auxilia as cortes internacionais e os órgãos de proteção internacional de
direitos humanos a aumentar o grau de eficácia do TIDH no direito interno, por meio do diálogo constante entre o direito internacional e
o direito do Estado.
Contudo, alguns países, como o Brasil, não dispõem de uma ferramenta processual prevista na legislação pátria com a finalidade
única de proteger efetivamente a supralegalidade do tratado frente à legislação interna, dificultando a instrumentalização do controle de
convencionalidade e levando a não aplicação das disposições dos TIDH, quando colidentes com a lei interna.
Com efeito, a violação aos direitos humanos, constantes em instrumentos internacionais, representa dano à dignidade humana
e requer resposta efetiva do Direito para sua tutela qualificada.
Nessa senda, o dano coletivo evidente gera a possibilidade de tutela interna do direito consagrado no TIDH mediante litígio
coletivo, que se convalida como litígio de interesse público e se apresenta como a principal forma de efetivar as normas internacionais de
direitos humanos no direito doméstico, com arrimo no controle de convencionalidade.
Dessa forma, assim como a audiência de custódia pôde ser fomentada no Brasil mediante controle de convencionalidade na
ação civil pública, o qual estimulou seu processo de implementação e o consequente aumento da eficácia da Convenção ADH e do
PIDCP, conclui-se que o enforcement de uma norma internacional pode ser também ampliada quando, em situações concretas, as ações
coletivas são utilizadas para o exercício do controle de convencionalidade.
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DIREITO HUMANO AO DESENVOLVIMENTO: A POLÍTICA PÚBLICA
ASSISTENCIAL COMO DIREITO ANTIPOBREZA NA ERA GLOBALIZADA
Anne Augusta Alencar Leite Reinaldo¹
RESUMO
Este artigo tem por objeto o estudo do direito humano ao desenvolvimento, a despeito de toda a carga positiva de asserção humana que
o reveste, ressaltando que, a política pública assistencial tutela a cidadania do ser humano em sua plenitude, configurando assim a mesma,
como um direito antipobreza e instrumento ratificador do direito humano ao desenvolvimento na era globalizada.
Palavras-Chave: Direito Humano ao Desenvolvimento. Política Pública Assistencial. Cidadania. Direito Antipobreza.
ABSTRACT
This article studies the human right to development, despite all the positive charge of human assertion that involves it, pointing out that
the healthcare public policy protects the citizenship of the human being in its fullness, thus setting the same as one anti-poverty law and
ratifying instrument of the human right to development in the globalized era.
Keywords: Human Right to Development. Public Assistance policy. Citizenship. Anti-poverty law.
1. INTRODUÇÃO
No cenário do mundo globalizado os direitos humanos configuram o elo entre retórica e prática, discurso e ação, humanidade e
desenvolvimento. Nesse contexto, cumpre ressaltar que os direitos humanos configuram vertente jurídica, política, filosófica, econômica
e social no mundo globalizado.
Não há que se falar em direitos humanos como um discurso elástico, há que se conceber esse ramo como instrumento hábil na
busca da concretização dos direitos fundamentais e, mais do que isso, na esteira da ação, fugindo da retórica por si só, agregando aos
direitos humanos a praticidade que lhe é pertinente e que dele reflete para os instrumentos jurídicos e políticos no mundo atual.
Nesse diapasão, encontra-se o Direito Humano ao Desenvolvimento e as conseqüentes políticas públicas voltadas para a
concretização deste desenvolvimento. É nesse viés que os direitos humanos permitem conceber a multidisciplinariedade de sua plataforma
de construção, a partir do momento que adere um conjunto de direitos humanos como a base de seu discurso e a justificativa de sua
ação.
O direito humano ao desenvolvimento configura direitos de solidariedade, tendo em vista que desenvolvimento é política e
difere de crescimento por si só; o direito humano ao desenvolvimento reforça outros direitos humanos previamente formulados, tendo
em vista que a observância de determinados direitos humanos não pode em nenhuma hipótese justificar a denegação de outros.
O direito humano ao desenvolvimento engloba várias ações de instrumentalização e tutela de vários outros direitos, dentre os
quais, destaca-se o direito da assistência social como política pública de combate à pobreza e fomento ao desenvolvimento como direito
do ser humano.
A política pública assistencial é arma poderosa na confirmação e busca da efetivação dos direitos humanos, visto que não se
pode falar em direitos humanos sem buscar a plenitude dos mesmos, de modo que, na ausência de um dos direitos humanos positivados,
não há que se falar em sua plenitude.
Nesse contexto, cumpre ressaltar que a política pública assistencial é responsável pela concretização da cidadania humana, que por sua
vez, é reflexo do nível de desenvolvimento em que se encontra o ser humano. Assim, pode-se afirmar que, em dias globalizados, a política
pública assistencial apresenta-se como direito antipobreza e configura um dos viés do direito humano ao desenvolvimento.
2. O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO NA ERA GLOBALIZADA: A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E O PAPEL DA
POLÍTICA PÚBLICA ASSISTENCIAL
A tríade democracia/desenvolvimento/direitos humanos marcou presença na evolução dos Direitos Humanos na era globalizada e
configurou o reconhecimento do direito ao desenvolvimento como um direito humano, perfazendo assim, a conceituação do direito ao
desenvolvimento como um direito humano.
É certo que o cenário globalizado contribui para a configuração do Direito ao Desenvolvimento como um dos Direitos Humanos, visto
¹Anne Augusta Alencar Leite Reinaldo
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que, nos dias atuais, “[...] jamais o conceito de Direitos Humanos foi tão bem cotado” (VILLEY, p. 2, 2007).
Nesse diapasão, importante é a visão do papel central que ciência e tecnologia desempenham no processo de desenvolvimento
tendo em vista que um sexto da humanidade – 1 bilhão de pessoas – vivem sem conseguir pôr um pé no primeiro degrau da escada do
desenvolvimento. (SACHYS,2005)
Nesse contexto, Feitosa, (2013) assegura que o papel da ciência é multidisciplinar e necessariamente unificador das várias
searas do Mungo globalizado, não aderindo somente a constatações econômicas, mas aos vários elementos da superestrutura – formas
políticas, jurídicas – na busca de transformações sociais:
Acentue-se também que a convergência entre aparência e essência tornaria a ciência, enquanto
atividade explicativa/ compreensiva do mundo, desprovida de qualquer papel e desnecessário
qualquer esforço na busca de transformações sociais visto que, se inevitáveis, dispensariam
qualquer ação humana.
[...] a situação econômica é a base, mas os vários elementos da superestrutura – forma políticas
da luta de classes, formas jurídicas e até os reflexos de todas essas lutas na consciência
dos participantes exercem influência sobre o curso das lutas históricas e em muitos casos,
preponderam, determinando-lhes a forma (FEITOSA, 2013).
Em um mundo globalizado abrem-se as fronteiras aos capitais, bens e serviços, mas lamentavelmente não às pessoas, aos seres
humanos, a estes, se fecham às conquistas sociais das últimas décadas. Concentram-se as riquezas nas mãos de poucos, aumentam
os marginalizados e excluídos e a isto se soma a idolatria do mercado livre e a redução do ser humano a mero agente de produção
econômica.
Neste cenário globalizado e como consequência desta nova tragédia contemporânea, perfeitamente evitável se a solidariedade humana
primasse sobre o egoísmo individual, surge a exclusão social e a pobreza extrema, tornando imperativo o conceito de direito ao desenvolvimento como direito humano.
Os sujeitos ativos ou beneficiários do direito ao desenvolvimento são os seres humanos e os povos, e os sujeitos passivos são
os responsáveis pela realização daquele direito, com ênfase especial nas obrigações atribuídas aos Estados, individual e coletivamente. A significação maior dessa evolução reside no reconhecimento ou asserção do direito ao desenvolvimento como um direito
humano inalienável (FEITOSA, 2013).
Nesse diapasão, percebe-se que o direito ao desenvolvimento é reconhecido e se mantém no patamar de direito humano
universal e inalienável, agregador de direitos de ordem social, econômica, cultural e política, reforçando outros direitos humanos
previamente formulados, tendo em vista que a observância de determinados direitos humanos não pode em nenhuma hipótese justificar
a denegação de outros (TRINDADE, 2009).
A fim de promover o desenvolvimento, deve-se dar atenção igual e urgente à implementação dos direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais e a observância de determinados direitos humanos não pode assim justificar a denegação de outros;
do mesmo modo, todos os aspectos do direito ao desenvolvimento são indivisíveis e interdependentes e cada um deles há de ser
considerado no contexto daquele direito como um todo. (SEN; KLIKSBERG, 2010)
O reconhecimento do Direito ao desenvolvimento como um direito humano só pode vir a reforçar outros direitos humanos
previamente formulados e tem contribuído para concentrar atenção na promoção e proteção dos direitos atinentes a um tempo a
indivíduos e coletividades humanas assim como na busca prioritária de soluções a violações graves, flagrantes e generalizadas de direitos
humanos.
A cristalização do direito ao desenvolvimento como um direito humano deve-se em grande parte à perspectiva globalista
avançada pelas Nações Unidas, acarretada pelas mudanças fundamentais experimentadas pela sociedade internacional contemporânea;
o direito ao desenvolvimento reforça os direitos pré-existentes, e prescreve a invocação dos chamados requisitos do desenvolvimento
material para tentar justificar restrições ao exercício dos direitos humanos garantidos. Nesse sentido discorre Trindade (2009):
O direito ao desenvolvimento emerge com o propósito de fortalecer, jamais restringir, os
direitos pré-existentes. Assim ocorre em razão da natureza complementar de todos os direitos
humanos. Todos os aspectos do direito ao desenvolvimento, por sua vez, são do mesmo modo
interdependentes e hão de ser levados em conta como um todo. Dessa forma, uma denegação
do direito ao desenvolvimento há de acarretar consequências adversas para o exercício dos
direitos civis e políticos assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais. (TRINDADE,
2009, p. 74)
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O reconhecimento e cristalização do direito ao desenvolvimento só puderam ter ocorrido à luz da unidade de concepção e indivisibilidade dos direitos humanos; é o fenômeno da expansão e fortalecimento dos direitos humanos reconhecidos (DOUZINAS, 2009).
O desenvolvimento econômico não é um fim em si mesmo, mas antes um meio de realizar objetivos sociais mais amplos como
imperativos da justiça social. O direito ao desenvolvimento como um direito humano tem emergido e se cristalizado para servir a este
propósito; as políticas públicas assistenciais, fundadas na ordem social, são instrumentos eficazes da ratificação da tutela do direito
humano ao desenvolvimento e importante meio de combate à pobreza que devasta a condição humana do ser humano.
Importa nesse momento, ressaltar a diferença lecionada por Maria Luiza Alencar Feitosa quanto ao Direito AO desenvolvimento, chamados
de forma abreviada de “DaD” e do Direito DO desenvolvimento, os”DdD”, tendo em vista que desenvolvimento é política e difere de
crescimento econômico, que configura desempenho de mercado; cumpre ressaltar que a expressão “desenvolvimentismo” é o conjunto
de ações econômicas, mais próximas às políticas nacionalistas, desembocando no crescimento econômico.
Direito humano ao desenvolvimento configura direitos de solidariedade, encarando o desenvolvimento para além de sua mera
dimensão econômica ou de política econômica. Direito econômico do desenvolvimento situa-se no âmbito das políticas públicas, internas
ou internacionais, nos campos fiscal, trabalhista, de regulação econômica, dentre outros (FEITOSA, 2013).
Nesse diapasão, importa ressaltar a cristalização do direito ao desenvolvimento como um direito humano no Direito Internacional positivo
dos Direitos Humanos e a construção conceitual do próprio desenvolvimento humano.
Urge por um fim à tendência de separar o desenvolvimento econômico do social, as políticas macroeconômicas dos objetivos sociais do
desenvolvimento; os modelos prevalecentes de desenvolvimento que, ao serem dominados por considerações financeiras ao invés de
humanas, ignoram amplamente os aspectos sociais, culturais e políticos dos direitos humanos e do desenvolvimento humano (ALEXY,
2008).
Tomou-se assim, o desenvolvimento humano originalmente como um processo de ampliação das escolhas das pessoas; dada a
grave ameaça constituída pela pobreza, o desenvolvimento sustentável, sendo muito mais amplo do que a proteção dos recursos naturais
e do meio ambiente físico, também deve incluir o desenvolvimento humano futuro – a solidariedade intergeracional (TRINDADE, 2009).
O desenvolvimento humano corresponde a um processo de ampliação das escolhas das pessoas, visando uma vida longa e
sadia, com acesso aos conhecimentos e os recursos necessários a um padrão digno de vida; objetiva ampliar a gama de escolha das
pessoas oferece uma medida de desenvolvimento não limitada à busca do crescimento econômico apenas; singularizou a desigualdade
agravada das condições de competição entre os países ricos e pobres no mercado internacional (SACHYS, 2005).
Conclamou assim ao estabelecimento de uma rede de previdência ou seguridade social para os necessitados e de consultas
globais contundentes a um novo pacto internacional sobre desenvolvimento humano que situasse as pessoas no centro das politicas
nacionais e da cooperação internacional para o desenvolvimento (MESTRINER, 2001).
O desenvolvimento humano encontra-se diretamente relacionado à questão da observância dos direitos humanos. O desenvolvimento humano, além de não se limitar a determinados setores sociais, realça a necessidade de desenvolver as capacidades humanas;
a própria liberdade constitui um componente vital do desenvolvimento humano. Nessa visão ampla, há que igualmente considerar a
situação dos direitos econômicos e sociais.
O agravamento da pobreza repercute direta e negativamente nos direitos humanos, representa um estado de necessidade em
que não há liberdade alguma e que corresponde em última análise a uma denegação da totalidade dos direitos humanos (TRINDADE,
2009).
O fortalecimento da democracia/desenvolvimento/direitos humanos conclama a erradicação da pobreza extrema e da exclusão
social como uma alta prioridade, emergindo a real necessidade do papel da política pública assistencial como direito anitpobreza e
instrumento eficaz na busca do direito humano ao desenvolvimento.
Nesse contexto, percebe-se que o direito humano ao desenvolvimento é resguardado na medida em que políticas públicas tutelam a
cidadania do ser humano em sua plenitude, configurando-se assim, a cidadania, como um dos direitos que instrumentaliza a efetivação
do direito humano ao desenvolvimento.
3. DIREITOS HUMANOS E DESENVOLVIMENTO: A CIDADANIA COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO
HUMANO AO DESENVOLVIMENTO
Os países pobres necessitam de assistência quanto ao desenvolvimento socieoeconomico há muito tempo já evidenciado nos países
considerados desenvolvidos, ou simplesmente, ricos.
Não há, entretanto, como desassociar o desenvolvimento de um Estado da plenitude da cidadania nele vivenciado, posto que, conforme
Hannah Arendt, a cidadania configura o direito a ter direitos, direitos estes que, sem dúvida, integram o rol dos direitos ao desenvolvimento, posto que, sem concretização da cidadania, a pobreza e a exclusão social não conseguem ser efetivamente combatidas e os países
pobres não alavancam o salto que tanto necessitam para sair da pobreza e emergirem no desenvolvimento humano, social, econômico
e político.
A cidadania é uma condição da pessoa humana que se encontra no gozo do conjunto de direitos civis, políticos e sociais. Cumpre ressaltar
que nesse contexto, os de ordem política consistem na “parte medular desses direitos, porque são os direitos que estabelecem o vínculo
entre o particular e a sociedade estatalmente organizada” (SORTO; MAIA, 2009, p. 97).
A pluralidade da ação, como condição humana de inserção no mundo político e, por conseguinte, da efetivação e plenitude da cidadania,
necessita da preservação da liberdade e da manutenção do regime democrático. O pensamento Ariendtiano de que a liberdade só existe
na democracia e a cidadania é pautada naquela é confirmado pelos pensadores modernos:
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Deve-se dar por assentado então que à cidadania é imprescindível a liberdade, que abunda nos
Estados governados pelo Direito e que falta nos autoritários. A cidadania é, por este motivo,
uma categoria político-jurídica de atribuição à pessoa humana de determinados direitos (civis,
políticos e sociais) e também de deveres em face da comunidade à qual pertence. (LAFER,
p.64, 1988)
Nesse contexto, cumpre ressaltar que o conceito de cidadania no Mundo Moderno e na Era globalizada é intrinsicamente
relacionado aos Direitos Humanos, assumindo a roupagem de direito inato do ser humano.
Na óptica Kantiana, (KANT, 2005) toda pessoa humana já nasce com direitos inatos, por esta razão, a cidadania assume laços
estreitos com os direitos humanos no Mundo Moderno, passando a ter efetivação internacional.
Os Direitos Humanos configuram herança maior da transição do Estado Liberal para o Estado Social; surgiram na tentativa de
resolver uma profunda crise de desigualdade social que se instalou no mundo no período pós-guerra. A cidadania, como direito originador
de outros direitos, reflete a real tentativa de tutela dos Direitos Humanos no Mundo Moderno, suscitando o pensamento jusnaturalista
de Ernest Bloch (2011), onde todos os direitos possuem sua origem na dignidade e no valor da pessoa humana.
É nesse sentido que a cidadania é concebida pautada na liberdade e na democracia, configurando-se como “o direito a ter
direitos”, visto que a cidadania abarca conjuntos de direitos que se apresentam como direitos de liberdade, quais sejam, os civis, políticos
e sociais.
“A cidadania só é possível nos regimes que favoreçam a liberdade, tais como os democráticos. Visto que a liberdade é pressuposto para
o exercício dos direitos que ela compreende.” (SORTO; MAIA 2009, p. 61) Nas palavras de Sem (2010):
No campo da política, Rawls afirmou que a objetividade exige “uma estrutura pública de
pensamento” que proporcione uma visão de concordância de julgamento entre agentes
racionais. A racionalidade requer que os indivíduos tenham a vontade política de ir além dos
limites de seus próprios interesses específicos. Mas ela também impõe exigências sociais para
ajudar um discernimento justo, inclusive o acesso a informação relevante, a oportunidade
de ouvir pontos de vista variados e exposição a discussões e debates públicos abertos. Em
sua busca de objetividade política, a democracia tem de tomar a forma de uma racionalidade
pública construtiva e eficaz. (2010, p.54)
A cidadania, na concepção Arendtiana, requer a inserção do ser humano na comunidade política, essa inserção passa, sem
dúvida, pela manifestação do discurso e da palavra. A ação política é realizada por palavras e no espaço público.
É por meio da ação, fundada na acepção de natalidade, que nasce o conceito de cidadania relacionada aos Direitos Humanos, que
converge no “direito a ter direitos”; a partir do momento que o ser humano nasce para a vida política e, através desse segundo nascimento,
o nascimento original, inato e tutelado pelos Direitos Humanos, é confirmado e ele passa a exercer direitos e contrair obrigações na
comunidade política, sendo um humano sujeito de direitos, nascendo um cidadão.
Nesse contexto e em países como o Brasil, a exploração, a pobreza e a desigualdade geram o caldo da exclusão social e a
consequente ineficácia do direito à cidadania.
Necessário é, para a concretização do Direito Humano ao desenvolvimento da conseqüente plenitude da cidadania e, consequentemente do combate à pobreza que macula a efetivação da cidadania, a execução de planos de ação para a redução da desigualdade
e da pobreza, nas esferas econômica, social e política.
Nesse contexto, percebe-se que a cidadania é instrumento de concretização do direito humano ao desenvolvimento, na medida
em que, sendo tutelada e efetivada a cidadania do ser humano por via não só do discurso, mas da ação, o direito humano ao desenvolvimento é observado e concretizado, posto que o conjunto de direitos que compõe a cidadania são direitos natos do ser humano,
evidenciados como direitos humanos, dentre os quais, o direito ao desenvolvimento.
Nas palavras de Trindade (2009):
A fim de promover o desenvolvimento, deve-se dar atenção igual e urgente à implementação
dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais e a observância de determinados
direitos humanos não pode assim justificar a denegação de outros; do mesmo modo, todos os
aspectos do direito ao desenvolvimento são indivisíveis e interdependentes e cada um deles
há de ser considerado no contexto daquele direito como um todo. (TRINDADE, 2009)
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A relação íntima entre direitos humanos – direitos econômicos e sociais – e o desenvolvimento não parece requerer maior esforço
de demonstração; a razão de ser desta crescente remete à deterioração das condições de vida afetando em nossos dias dramaticamente
segmentos cada vez mais vastos da população em distintas partes do mundo. (TRINDADE, 2009)
No âmbito dos direitos humanos, Douzinas estabelece a nova roupagem conferida a esses direitos que, no mundo globalizado,
emergem em todas as áreas da ordem jurídica, política, social e econômica, e que por sua vez, necessitam desvincular-se de um discurso
elástico e aderirem à concretude da efetivação de sua razão de ser:
Um novo ideal foi alardeado no cenário do mundo globalizado: os direitos humanos. Ele une
a Esquerda e a Direita, o púlpito e o Estado, o ministro e o rebelde, os países em desenvolvimento e os liberais de Hampstead e Manhattan. [...] Os direitos Humanos são o fado da pósmodernidade, a energia das nossas sociedades, o cumprimento da promessa do Iluminismo de
emancipação e autorrealização. [...] Os direitos Humanos são alardeados como a mais nobre
criação de nossa filosofia e jurisprudência e como a melhor prova das aspirações universais da
nossa modernidade, que teve de esperar por nossa cultura global pós-moderna para ter seu
justo e merecido reconhecimento (2009, p. 3)
Os chamados Direitos ao Desenvolvimento (DaD) propósitos mais protetivos do que promocionais, inerentes à concepção
descrita por Douzinas, dialogam com os agentes sociais, se realizam materialmente não exatamente pela emissão de leis, mas pelo
aprimoramento de políticas públicas e diretrizes programadas para a realização do desenvolvimento.
Nesse contexto, cumpre ressaltar que as Metas de Desenvolvimento do Milênio sumarizam a conjugação desses direitos, com a necessária
compreensão de desenvolvimento como processo plural, além da roupagem humana e econômica do termo.
As MDMs configuram catálogo básico de orientação para adoção de medidas políticas e jurídicas que, amparadas quase sempre
em medidas socioeconômicas, podem servir de guia para a efetivação dos dois direitos – Dad e DdD.
A titularidade dos DdD abrange pessoas físicas, jurídicas e coletividades determinadas ou difusas, já nos DaD, direitos humanos
por natureza, a titularidade abrange os seres humanos, povos e coletividades humanas. Nesse sentido, os sujeitos passivos de ambos se
apresentam como sendo os Estados e as organizações internacionais de variada natureza. (FEITOSA, 2013)
Nesse contexto, percebe-se que o direito humano ao desenvolvimento é instrumento concretizador da cidadania humana e
representa uma das armas de maior intensidade na busca de assistência e de combate à pobreza.
Essas pessoas são as mais pobres dos pobres, os miseráveis do planeta, vivem todos em países em desenvolvimento - tendo em vista que,
nos países ricos existe pobreza, não miséria.
É nesse contexto que a assistência ao desenvolvimento dos países pobres emerge em uma conjuntura integrada de ações
coordenadas dos países ricos, bem como da colaboração dos pobres; passa, necessariamente, pela efetivação e concretização do direito
humano ao desenvolvimento.
4. A POLÍTICA ASSISTENCIAL COMO DIREITO ANTIPOBREZA E INSTRUMENTO RATIFICADOR DO DIREITO HUMANO AO DESENVOLVIMENTO NA ERA GLOBALIZADA: ANÁLISE DO COMBATE À POBREZA MUNDIAL E NACIONAL NA ESTERIA DOS
DIREITOS HUMANOS
Na seara da consolidação do Direito Humano ao Desenvolvimento, o crescimento econômico moderno também trouxe abismos
fenomenais entre os mais ricos e os mais pobres. Os países ricos conseguiram dois séculos de crescimento econômico moderno. Os mais
pobres só começaram seu crescimento décadas depois, com obstáculos (SACHYS, 2005).
A questão fundamental para esses países é que existem soluções práticas para quase todos os seus problemas. As políticas
ruins do passado podem ser corrigidas, tendo em vista que a era colonial acabou. Até os obstáculos geográficos podem ser superados por
tecnologias novas.
A realidade mundial e nacional de combate à pobreza reflete a consagração do direito ao desenvolvimento como um direito
humano, visto que, não há que se falar em plenitude dos direitos humanos se os mesmos não forem vivenciados em sua completude. As
políticas públicas assistências emergem nesse contexto, como um verdadeiro direito antipobreza.
Nesse sentido, na seara da ordem jurídica interna, as políticas públicas assistenciais brasileiras configuram instrumentos de
efetivação dos direitos sociais como categorias jurídicas concretizadoras dos postulados do desenvolvimento e da justiça social, por meio
da observância do princípio da solidariedade, implícito nas três áreas da Seguridade Social Brasileira.
Asssim sendo, a Assistência Social Brasileira se apresenta como um verdadeiro direito antipobreza, objetivando a melhoria das condições
de vida dos hipossuficientes, possuindo como objetivos a serem alcançados - por meio das políticas públicas assistenciais - os previstos no
artigo 203 da Constituição Federal, configurando-se como instrumento de efetivação dos direitos humanos, bem como da concretização
do direito ao desenvolvimento.
As políticas públicas assistenciais brasileiras devem se apresentar como instrumentos garantidores da efetivação dos direitos
humanos em conjunto com o pleno desenvolvimento econômico do país, passando a constituir instrumentos de efetivação e concretização
desses direitos e na busca do pleno desenvolvimento.
Nesse sentido, a Assistência Social Brasileira se constitui como um verdadeiro direito antipobreza e se apresenta como meio
jurídico legítimo da busca pelo direito ao desenvolvimento; o desenvolvimento econômico permeia a atuação estatal, assim sendo, a
assistência social se apresenta como uma das mais variadas formas de intervenção do Estado no direito ao desenvolvimento e na busca
do combate à pobreza.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento na era globalizada permeia de forma multidisciplinar as searas da ciência jurídica, configurando um conjunto
de direitos fundamentias, civis, políticos, econômicos e sociais.
Nesse contexto, a doutrina atual configura o direito ao desenvolvimento como um direito humano, capaz de englobar várias
acepções jurídicas, políticas e filosóficas. É conjunto de direitos de solidariedade que, possuem como titulares a coletividade dos seres
humanos e instrumentaliza uma gama de direitos fundamentais, políticos, civis e sociais do ser humano.
O direito ao desenvolvimento é confirmado através da positivação ao patamar de direito humano fundamental da assistencial
social, ao passo que, efetivando a cidadania do ser humano por meio do combate à pobreza, em sua acepção financeira, moral, intelectual,
dentre outras pobrezas inerentes ao mundo globalizado, o desenvolvimento é percebido, ou pelo menos, de maneira incipiente lhe
visualiza, quando da aplicação de várias políticas públicas de assistência social no Brasil e no mundo.
Não há que se falar em direito humano ao desenvolvimento se não houver a preservação do conjunto de direitos humanos
dos quais o DAD se insere, visto que, o direito ao desenvolvimento é reconhecido e se mantém no patamar de direito humano universal
e inalienável, agregador de direitos de ordem social, econômica, cultural e política, reforçando outros direitos humanos previamente
formulados, tendo em vista que a observância de determinados direitos humanos não pode em nenhuma hipótese justificar a denegação
de outros.
Resta concluir que, o fortalecimento da democracia/desenvolvimento/direitos humanos conclama a erradicação da pobreza
extrema e da exclusão social como uma alta prioridade, emergindo a real necessidade do papel da política pública assistencial como direito
anitpobreza e instrumento eficaz na busca do direito humano ao desenvolvimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos; 2009.
FEITOSA. Enoque. De como o Marxismo lida com a relação entre prescrição e descrição do mundo e as demandas por sua transformação,
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FEITOSA, Maria Luiza A. M; FRANCO, Fernanda; PETERKE, Sven; VENTURA, Victor A. M. F. Direitos humanos de solidariedade. Curitiba:
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______. Exclusão social e pobreza nas interfaces entre o direito econômico do desenvolvimento e o direito humano ao desenvolvimento.
In: Direito e desenvolvimento no Brasil do Século XXI. Brasília: ipea, 2013.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das
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MESTRINER, Maria Luiza. O estado entre a filantropia e a assistência social. São Paulo: Cortez, 2001.
NOBRE, Edna Luiza. Previdência Social e Assistência Social aos desamparados. In: O direito e as políticas públicas no Brasil. São Paulo:
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SACHS, Jeffrey D. O fim da pobreza: como acabar com a miséria mundial nos próximos vinte anos. São Paulo: Companhia das letra, 2005.
SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SORTO, Fredys Orlando; MAIA, Mário Sérgio Falcão. Cidadania, direitos sociais e indivisibilidade dos direitos humanos. In: LEAL, Mônica
Clarissa Henning (org.) Trabalho, constituição e cidadania: reflexões acerca do papel do constitucionalismo na ordem democrática. Porto
Alegre: Verbo Jurídico, 2009, p. 97-108.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 2009.
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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artigos
RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE EMPREGADOS DOMÉSTICOS
Marina Morais de Carvalho¹
RESUMO
O artigo analisa a Responsabilidade Civil das agências de empregados domésticos perante a lei nº 7.195/1984. São explanados
de forma clara os institutos da terceirização e da Responsabilidade Civil perante análise jurisprudencial e julgados dos Tribunais Superiores.
Com a promulgação da PEC nº 72, a busca por empresas que terceirizam o serviço doméstico aumentou, entretanto, hodiernamente
ainda não se atentou para a necessidade de criação de legislação específica para regular tais agências. Esse trabalho aprofunda o debate
acerca a Responsabilidade Civil das agências de empregados domésticos e também das tomadoras de serviço, quando são inadimplidas
as obrigações trabalhistas do prestador de serviços. A pesquisa avança ao propor a formação de legislação específica e atual, como um
caminho exequível a ser explorado para a proteção efetiva dos direitos dos empregados domésticos e o fortalecimento do instituto da
terceirização.
Palavras-chave: responsabilidade civil. terceirização. empregados domésticos.
ABSTRACT
The article analyzes the Civil Liability of housework employment agencies before the law nº 7195/1984. It is explained clearly
the institutes of outsourcing and Civil Liability before jurisprudential analysis and Courts decisions. By the enactment of PEC nº 72,
the search for companies that outsource housework increased, however, nowadays have not yet looked on the need to create specific
legislation to regulate such agencies. This research deepens the debate on the Civil Liability of housework employments agencies and
also the service takers when they are defaulting labor obligations of the service provider. The research advances to propose the formation
of specific and current legislation, as a effective way to be explored for a better protection of the rights of domestic workers and the
strengthening of the outsourcing institute.
Keywords: civil liability. outsourcing. housework employment.
1. INTRODUÇÃO
O trabalho terceirizado corresponde hoje a um dos principais ramos de atividades no cenário socioeconômico do Brasil,
absorvendo uma parte considerável da mão de obra nacional. Apesar da forte resistência levantada por aqueles que combatem a
precarização laboral que frequentemente a acompanham, as relações trilaterais de trabalho desenvolvidas por meio da terceirização de
serviços têm florescido com grande intensidade no cenário socioeconômico brasileiro, desde a década de 1980 do século passado.
Importa notar, ainda, que a implementação da terceirização de serviços decorreu inicialmente da tentativa de promoção de descentralização do trabalho, objetivando melhor qualidade e produtividade das empresas, através da parceria empresarial. Entretanto, em um
segundo momento, mudou-se o objetivo da terceirização, que passou a ser utilizada com o objetivo de redução dos custos empresariais.
Com o advento da Emenda Constitucional (EC) nº 72, uma série de direitos trabalhistas foram implementados à categoria dos empregados
domésticos, aumentando, portanto, os encargos e obrigações dos empregadores. Consequentemente, a busca pelo serviço terceirizado
de diaristas aumentou em 25%, consoante dados do Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação do Rio de Janeiro (Seac-RJ),
evidenciando a promessa de crescimento promovida por este serviço. No entanto, 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses após a promulgação
da EC, não houve significativa modificação legislativa que propusesse maior proteção ao empregado doméstico que busca terceirizar
seus serviços.
No bojo da pesquisa, propõe-se uma análise específica acerca do instituto da Responsabilidade Civil das agências de empregados
domésticos. Posteriormente, analisa-se a situação das tomadoras de serviços que arcam com as consequências da irresponsabilidade e
inadimplência das prestadoras de serviços, bem como a consequência jurídica quando são formados contratos de terceirização ilícitos.
Por conseguinte, quanto à possibilidade de ação de regresso, propõe-se uma análise da legislação somada à perspectiva de decisões
judiciais, que evidenciam o posicionamento adotado na pesquisa. Dessarte, observa-se o instituto da terceirização sob a perspectiva de
um viés atual, buscando a possibilidade de se efetivar os direitos dos empregados domésticos, sem ampla modificação na estrutura do
instituto em evidência, o que corresponde à tentativa de torná-lo justo e legítimo.
¹Graduanda de Direito pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB.
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2. TERCEIRIZAÇÃO
Vários nomes são utilizados para denominar a contratação de terceiros pela empresa para prestação de serviços ligados à
sua atividade-meio. Fala-se em terceirização, subcontratação, terceirização, filialização, reconcentração, parceria, etc., no entanto,
argumenta-se que o mais correto seria terceirização, em razão de que o setor terciário na atividade produtiva seria o setor de serviços,
pois o primário corresponderia à agricultura e o secundário, à indústria (MARTINS, 2009).
Consiste a terceirização na possibilidade de contratar terceiro, para que este realize atividades que não constituem o objeto principal
da empresa. Em outras palavras, consiste na contratação de agências para a prestação de serviços ligados à atividade-meio da empresa
tomadora de serviços.
A terceirização é caracterizada pela volatilidade, fragilidade e descartabilidade dos trabalhadores. Visando apenas uma forma de
flexibilização produtiva com menor investimento em capital fixo, a terceirização no plano ideológico, político e cultural é um incentivo
a individualização, no qual, cada indivíduo é responsável por se adaptar a novas situações, uma vez que seus empregos têm pequenas
durações, seus contratos são precários e sem as garantias e direitos que um trabalhador efetivo (contratado pela tomadora do serviço)
tem em seus contratos de trabalho. A terceirização passa, então, a ser uma ferramenta de flexibilização do trabalho, bastante difundida
atualmente.
Em consonância com os entendimentos supracitados, o jurista Jorge Luiz Souto Maior (2011, p. 650) escreveu:
A terceirização é, assim, apresentada como técnica moderna de produção, fruto da reengenharia
administrativa das empresas, inseridas num contexto de concorrência global, que lhes exige
uma postura de encurtamento de custos e eficiência produtiva. A partir desses postulados,
explica-se que uma empresa, para ser eficiente e global, deve preocupar-se com suas finalidades
próprias, deixando, para ‘parceiras’, outras que sejam periféricas ou menos importantes. E, assim,
justifica-se, juridicamente, que uma empresa contrate (denominada, então, tomadora de serviços)
outra para lhe prestar serviços (a prestadora de serviços), mesmo no interior do estabelecimento
da primeira, em se tratando de serviços desvinculados da atividade primordial desta.
No mesmo sentido, Delgado (2009, p. 407) expõe que a terceirização:
É o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista
que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo
do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam
fixados com uma entidade interveniente.
Desse fenômeno o autor conclui que surge uma relação trilateral, entre o obreiro, a empresa terceirizante e a empresa tomadora
de serviço, que acaba por causar prejuízos aos obreiros, uma vez que apresenta fatores que divergem dos objetivos tutelares do Direito
do Trabalho.
Além disto, a terceirização no âmbito trabalhista não possuía legislação específica. Assim sendo, o Tribunal Superior do Trabalho
(TST), para suprir tal carência legislativa, construiu seu entendimento através de súmulas e jurisprudências – que surgiram de acordo com
as necessidades sociais de regulação da terceirização nas relações trabalhistas – e que foram solidificadas na Súmula 331, conforme será
explanado em tópico próprio.
Consoante assinalado, embora a terceirização seja um assunto bastante difundido e com grande aplicabilidade atualmente,
sua carência legislativa descredibiliza o instituto. Entretanto, observa-se que existe, atualmente aguardando parecer na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados, o projeto de Lei nº 4330/2004, o qual, se aprovado, regulamentará o serviço
terceirizado no país.
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3. RESPONSABILIDADE CIVIL
A palavra “responsabilidade” tem sua origem do verbo latino respondere, significando a obrigação que alguém tem de assumir
as consequências jurídicas de suas atividades (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 45). Como pondera Rodrigues (1981, p. 4),
responsabilidade civil é “a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de
pessoas ou coisas que dela dependem”.
O Direito brasileiro possui leis que têm como objetivo fazer com que a convivência social seja mais leve e organizada. A Responsabilidade Civil visa minimizar a dor e o sofrimento daqueles que, por algum motivo, tiveram seu direito lesado, possibilitando à vítima
do dano voltar ao status quo anterior, ou algo que dele se aproxime, regressando àquilo que seria ideal. Logo, podemos afirmar que este
instituto volta-se para a defesa da dignidade da pessoa humana, expressamente protegida pela CF/88 em seu art. 1º, III.
Conforme Gonçalves (2011, p. 2): “o instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal
consequência da prática de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para seu autor, de reparar o dano, obrigação esta de natureza
pessoal, que se resolve em perdas e danos”. Dessa forma, verifica-se que no Direito Civil brasileiro, ao causar o dano, fica o autor obrigado
a repará-lo pecuniariamente. As promessas, obrigações contratuais ou qualquer outro acordo que possa ser feito na vida social, caso não
cumpridas, devem ser reparadas, mesmo que sejam de cunho meramente moral.
O Código Civil, no art. 186 confirma os apontamentos anteriores ao alegar que: “aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Neste mesmo
sentido, o referido diploma legal vem proteger, no art. 187, aqueles que tiveram seu direito violado, alegando que: “também comete ato
ilícito o titular de um direito que, o exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
ou pelos bons costumes”.
Há muita discussão doutrinária no que se refere à conceituação da responsabilidade civil, porém, é possível aduzir que a causa
geradora é o interesse em restabelecer o equilíbrio moral ou econômico entre as partes, alterado pelo dano ocorrido. Daí decorre a
obrigação de o causador do dano indenizar aquele que sofreu.
Minimizar a dor de alguém, mesmo que de cunho moral, social ou emocional, faz parte das atribuições do mundo jurídico. O Direito não
pode omitir-se diante de fatos causadores de danos desta relevância, os quais são, muitas vezes, essencialmente irreparáveis. Estar atento
aos sentimentos da vida social é estar atento aos sujeitos em si e toda a sua existência vital. Nesse sentido, escreveu Bôas (2009):
Os operadores do direito vêm se valendo, constantemente, da aplicação do instituto da responsabilidade jurídica, controlando condutas sociais por meio de instrumentos que propiciam o
prevenir, o ajustar, o corrigir e/ou o punir (etc.) comportamentos do homem, além de prescreverem
e regularem sobre o indenizar, o remunerar, o compensar valores (etc.), a título de danos sofridos
por terceiros. Tudo isso a propiciar coexistência pacífica, harmoniosa e equilibrada da sociedade
na busca do bem comum de todos.
3.1 Natureza jurídica
Segundo Gagliano; Pamplona Filho (2010, p. 63), é necessário tecer algumas considerações antes de apontar a natureza jurídica
da responsabilidade civil. Tanto a responsabilidade civil, quanto a responsabilidade penal decorrem da prática de um ato ilícito, ou seja,
de uma violação da ordem jurídica, gerando desequilibro social. A consequência lógico-normativa de qualquer ato ilícito é uma sanção,
podendo esta ser definida, portanto, como “a consequência jurídica que o não cumprimento de um dever produz em relação ao obrigado”,
segundo Maynez (1951, p. 284).
Em conformidade com os apontamentos supracitados, Diniz (2002, p.7) acrescenta:
A sanção é, nas palavras de Goffreso Telles Jr., uma medida legal que poderá vir a ser importa
por quem foi lesado pela violação da norma jurídica, a fim de fazer cumprir a norma violada, de
fazer reparar o dano causado ou de infundir respeito à ordem jurídica. A sanção é a consequência
jurídica que o não cumprimento de um dever produz em relação ao obrigado. A responsabilidade civil constitui uma sanção civil, por decorrer de infração de norma de direito privado, cujo
objetivo é o interesse particular, e, em sua natureza, é compensatória, por abranger indenizações
ou reparação de dano causado por ato ilícito, contratual ou extracontratual e por ato lícito.
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Partindo do preceito de que sanção é a consequência lógico-jurídica da prática de um ato ilícito, podemos afirmar com veemência
que a natureza jurídica da responsabilidade, seja ela civil, penal, administrativa, somente pode ser sancionadora, independentemente de
ela se materializar como pena, indenização ou compensação pecuniária.
4. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS DE EMPREGADOS DOMÉSTICOS
Com o advento da EC nº 72, popularmente conhecida por “A PEC das domésticas”, uma nova forma de contratação vem
ganhando forças e ocupando um espaço significativo na atual sociedade brasileira, sendo ela a terceirização dos serviços de empregados
domésticos.
É válido ressaltar as mudanças implementadas pela EC nº 72, de modo que agora, com aplicação imediata, tem-se a limitação
da carga horária semanal para 44 horas, além do o adicional para jornada extraordinária e o adicional noturno. Estas novas modificações
fizeram com que aumentassem as obrigações dos empregadores, o que consequentemente aumentou os números de demissões de
empregados domésticos. Segundo os dados do Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação do Rio de Janeiro (Seac-RJ), a procura
pelo serviço aumentou em 25%, e a tendência é que o mercado siga o mesmo modelo do europeu e americano, que fornece este tipo de
mão de obra por meio de empresa (CARVALHO, 2013).
Antes de dar continuidade, todavia, é oportuno destacar que o empregado doméstico contratado por estas agências tem alguns
direitos trabalhistas garantidos, no entanto, todas as burocracias e encargos trabalhistas necessários para contratação e demissão do
empregado doméstico ficam a cargo da agência especializada. Desta forma, não se faz necessário que o tomador de serviços se preocupe
com detalhes que são incumbências da empresa, como o pagamento das férias do funcionário ou questões referentes ao pagamento do
13º.
Ante o exposto, cabe analisar a Responsabilidade Civil das Agências de Empregados domésticos, que se encontra balizada pela
Lei nº 7.195/1984, regulamentando casos específicos advindos da relação de natureza civil: agência X empregador doméstico. Embora
seja uma lei dispõe de poucos artigos, estabelece procedimentos peculiares que são complementados quando associados à legislação civil
e trabalhista, somados à análise de Orientações Jurisprudenciais, conforme será detalhado adiante.
A primeira consideração a se fazer é sobre a responsabilidade objetiva a que se sujeitam as agências de empregados domésticos,
justificado pela própria determinação legal contida no art. 1º da Lei nº 7.195/84, que assim dispõe: “As agências especializadas na
indicação de empregados domésticos são civilmente responsáveis pelos atos ilícitos cometidos por estes no desempenho de suas
atividades”. Desta forma, podemos afirmar que esse dispositivo está em conformidade com o que preceitua os arts. 932 e 933 do CC/02,
que tratam da responsabilidade por ato de terceiros, também denominada responsabilidade indireta.
O art. 932, III, reconhece que são também responsáveis pela reparação civil o empregador ou comitente, por seus empregados,
serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele. Pode-se afirmar, portanto, que o Código Civil de
2002 adotou a responsabilidade objetiva, baseando-se na teoria do risco criado (GODOY, 2010, p. 932).
O artigo seguinte, por sua vez, estabelece que as pessoas indicadas no art. 932, ainda que não haja culpa de sua parte,
responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos. Assim, o CC/02 finalmente impôs uma responsabilidade sem culpa por ato
de terceiro, o que afasta a possibilidade de qualquer dos responsáveis procurar se eximir de seu dever ressarcitório alegando que escolheu
bem, ou que vigiou bem².
Ademais, temos o art. 942 do CC/02 que aduz:
Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos
à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão
solidariamente pela reparação.
Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas
designadas no art. 932. (Grifo nosso).
Assim, ocorre a solidariedade entre as pessoas designadas no art. 932 do Código Civil: pais e filhos, empregadores e empregados
etc., ainda que posteriormente haja ação regressiva daquele que pagou a indenização contra o causador do dano, conforme será analisado
em tópico próprio. Em consequência à solidariedade, a vítima pode mover a ação contra qualquer um ou contra todos os devedores
solidários, conforme RJTJSP, 86/174; RT, 613/70.
Na jurisprudência, já é matéria pacífica:
²A norma atual foi além da simples presunção de culpa da Súmula 341 do STF, visto que consagrou a responsabilidade patronal pelo dano pelo menos
culposo causado por seus empregados ou prepostos.
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REPARAÇÃO DE DANOS. RESPONSABILIDADE DA AGÊNCIA INDICADORA DE EMPREGADOS
DOMÉSTICOS PELOS DANOS CAUSADOS POR ESTES. APLICAÇÃO DA LEI 7.195/84. DANO
MATERIAL E MORAL CONFIGURADO. QUANTUM REDUZIDO. 1 - No caso em comento a
autora foi vítima de furto praticado por empregada doméstica, indicada pela demandada, agência
que presta serviços de seleção de tais profissionais. 2 - Responsabilidade objetiva da empresa
quando seus indicados causam danos, conforme determina a Lei nº 7.195/84. Incabível qualquer
hipótese de excludente de responsabilidade. 3 - Dever de ressarcir os danos materiais e morais,
porquanto configurados ao caso concreto. 4 – Quantum indenizatório fixado em R$ 4.000,00
que comporta redução no caso concreto. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-RS, Relator:
Leandro Raul Klippel, Data de Julgamento: 22/02/2011, Primeira Turma Recursal Cível, Data de
Publicação: Diário da Justiça do dia 25/02/2011).
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. RELAÇÃO DE CONSUMO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. ARTIGO 1º DA LEI Nº 7.195/84. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS AGÊNCIAS QUE PROMOVEM A CONTRATAÇÃO DE TRABALHADORES
DOMÉSTICOS. DEVER DE CAUTELA NA INDICAÇÃO DE EMPREGADA DOMÉSTICA. DANOS
MORAIS E MATERIAIS DEVIDOS. 1. O regime jurídico das agências que promovem a contratação
de trabalhadores domésticos encontra ambiência específica na Lei nº 7.195/84, cujo disciplinamento insculpido no seu artigo 1º, prevê a Responsabilidade Civil pelas contratações por elas
intermediadas. 2. O dano material não está condicionado simplesmente ao cumprimento do
contrato quando de seu fechamento, mas, desbordando de suas balizas materiais, estende-se
aos resultados buscados pelos contratantes e ao cumprimento dos demais deveres contratuais
anexos. 3. Nas hipóteses de responsabilidade objetiva é necessário apenas a prova do nexo de
causalidade entre o fato e o seu resultado danoso, a fim de que se instale o dever de reparar o
dano moral sofrido pela vítima. 4. Valor da indenização por dano moral deve atender aos seus
dois objetivos específicos, quais sejam, reparar o dano sofrido, e impor medida educativa a fim de
evitar a repetição de atos que não condizem com a vida em sociedade. 5. Recurso de apelação
desprovido. (TJ-DF - APL: 912710920098070001 DF 0091271-09.2009.807.0001, Relator:
MARIO-ZAM BELMIRO, Data de Julgamento: 03/05/2012, 3ª Turma Cível, Data de Publicação:
01/06/2012, DJ-e Pág. 115)
CIVIL. DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. FRAUDE. A responsabilidade objetiva
do fornecedor do serviço existe em razão do risco da atividade prestada. Considerando que o
fornecedor é o único que obtém lucros e controla o ciclo produtivo, a lei impõe-lhe o dever de
introduzir produtos e prestar serviços no mercado sem ameaçar ou violar os direitos da parte
vulnerável. Por esse motivo, não lhe exclui a responsabilidade o fato de a fraude ter sido provocada
por terceiros. Para a fixação do quantum devido, deve-se utilizar critérios gerais, como o prudente
arbítrio, o bom senso, a equidade e a proporcionalidade ou razoabilidade, bem como específicos,
sendo estes o grau de culpa da parte ofensora e o seu potencial econômico, a repercussão social
do ato lesivo, as condições pessoais da parte ofendida e a natureza do direito violado. (Acórdão nº
527.207. 6ª Turma Cível. Relator Desembargadora Ana Maria Duarte Amarante Brito. Julgamento
em 10 de agosto de 2011).
Dessarte, conforme leciona a doutrina amparada pelas Orientações Jurisprudenciais, o fornecedor, ao dispor dos produtos ou
serviços no mercado, passa a garantir esses produtos e serviços e a responder pela qualidade e segurança dos mesmos, não lhe sendo
lícito transferir ao consumidor os riscos nas relações de consumo, tendo, portanto, responsabilidade objetiva perante os mesmos.
Além da sujeição de responsabilização de caráter objetivo decorrente de atos ilícitos praticados por empregados domésticos
indicados pelas agências, estas empresas ainda respondem pelos danos advindos de atos lícitos dos empregados no período de um
ano, conforme determina o art. 2º da Lei nº 7.195/84 que preleciona: “No ato da contratação, a agência firmará compromissos com o
empregador, obrigando-se a reparar qualquer dano que venha a ser praticado pelo empregado contratado, no período de 1 (um) ano”.
Antes, todavia, é importante aclarar que a compreensão dada neste artigo refere-se à responsabilidade civil da agência pelo
dano, e não pelo ato. Por empregar o termo “qualquer”, acredita-se que o legislador quis abranger todos os danos possíveis que fossem
causados pelos atos (lícito ou ilícito) dos empregados domésticos, quer fossem eles com culpa ou não, durante o período do primeiro ano.
Entretanto, apesar de as agências de empregados domésticos estarem submetidas à reparação dos danos ocorridos durante o
primeiro ano de vigência do contrato firmado com os empregados por ela indicados, o empregador doméstico possui o prazo prescricional
de 03 (três) anos, contados da data do evento danoso, para pleitear judicialmente o ressarcimento dessas empresas de colocação,
conforme estabelece o art. 206, §3º, V do CC/02 (ADAD, 2013, p. 260).
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Nesse contexto, pode-se facilmente atrelar a ideia concebida neste artigo à Teoria do Risco do Empreendimento. Segundo
Cavalieri (2009, p. 475), todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder
pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa. Portanto, qualquer pessoa que fornece
serviços ao mercado, com habitualidade, deve ter consciência de que assume a superioridade técnica em relação àqueles que desfrutam
de seus serviços e, consequentemente, responderá pelos possíveis defeitos que ocorrerem no serviço, assim como o artigo em comento.
Por fim, o último critério que deve ser analisado refere-se à competência para dirimir quaisquer conflitos advindos desta relação:
agência de empregados domésticos X empregador. Não há divergência quanto à competência da Justiça Comum para elucidar os referidos
casos, uma vez que essa discussão não se deriva da relação de emprego ou de trabalho que desguardaria na competência da Justiça
Trabalhista, mas sim de uma relação consumerista, pois se trata da prestação de serviços de uma Pessoa Jurídica (Agência) a uma Pessoa
Física (Empregador).
4.1 Responsabilização do tomador de serviços
O trabalho terceirizado envolve uma relação trilateral entre empregador, empregador e tomador do serviço. Na terceirização,
ao contrário do que acontece na relação empregatícia convencional, a figura do empregador é diversa da do tomador do trabalho,
rompendo-se, portanto, com a dicotomia clássica empregado-empregador, existente na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Para
compensar a menor proteção que, em tese, é dispensada ao empregado terceirizado, criou-se um mecanismo de responsabilização da
empresa tomadora de serviços, acerca dos direitos do obreiro, o que nos remete à Súmula 331 do TST.
A Súmula 331 do TST é hoje um dos principais elementos normativos do instituto da terceirização trabalhista, sendo
imprescindível a análise mais profunda de seus dispositivos, com exclusiva atenção a um inciso em específico:
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE. I - A contratação de trabalhadores
por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços,
salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular
de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da
administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma
vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de
20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à
atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O
inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos
órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas
e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e
constem também do título executivo judicial. (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993) (Grifo
nosso)
Segundo uma pesquisa feita pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) que revelava as principais preocupações das
empresas com relação ao instituto da terceirização, 90% das grandes indústrias procurava verificar se a empresa contratada cumpria com
os encargos trabalhistas. Essa alta porcentagem reflete a apreensão das empresas tomadoras de serviços quanto ao adimplemento dos
encargos trabalhistas por parte das prestadoras de serviços, visto que, caso ocorra inadimplemento, a empresa tomadora será subsidiariamente responsável e terá, então, que assumir o pagamento das referidas obrigações.
Consoante com este entendimento está o acórdão 00514/1999 da 15ª região:
EMENTA - TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS NO MEIO RURAL - PLANTIO E CORTE DE
CANA-DE-AÇÚCAR DESTINADA À USINA DE FABRICAÇÃO DE AÇÚCAR E DE ÁLCOOL.
Ilegitimidade de parte da tomadora. Não são consideradas empresas “interpostas” - e, portanto,
são legais -, aquelas que prestam serviços especializados a terceiros, com o objetivo de liberar
a tomadora para atividades consideradas essenciais a seu processo produtivo. Por serviços
especializados, entenda-se toda e qualquer atividade organizada colocada à disposição do
mercado, em troca de uma contraprestação pecuniária, podendo ser o fornecimento de serviços
de limpeza, de vigilância, de corte e plantio de cana-de-açúcar, etc., desde que, para tanto, haja
necessidade de um conhecimento específico, que não precisa ser, necessariamente, altamente
complexo. O artigo 15, § 2º, da Lei 8.036/90 - Lei do FGTS - autoriza a criação dessas empresas.
Assim, inexiste norma proibitiva à contratação desses serviços; muito menos no sentido de que
o vínculo de emprego do trabalhador envolvido nesse contrato, se estabeleça com a tomadora
dos serviços. É perfeitamente lícita a contratação de terceiros, em qualquer fase do sistema
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produtivo, pouco importando se os serviços são realizados no estabelecimento da fornecedora,
de terceiros, ou da tomadora de serviços, ou se se trate de atividade primordial ou atividade
secundária da empresa, desde que não se infrinja a lei, a Constituição Federal e as convenções
coletivas próprias (artigo 444 da CLT). Acolhe-se a ilegitimidade de parte da tomadora, ante a
inteligência do inciso III do Enunciado n.º 331 do C. TST, que revogou o de n.º 256. Estabelece-se
a responsabilidade subsidiária - e não solidária - da tomadora, apenas quando a fornecedora
desses serviços tenha inadimplido suas obrigações trabalhistas, ou seja: tenha inidoneidade
financeira e demonstre estar fugindo às suas obrigações, a teor do inciso IV do Enunciado n.º
331, do TST. (Grifo nosso).
Dessarte, conforme observa o especialista em Direito do Trabalho, Lunardi, nossos tribunais já adotam a responsabilidade
subsidiária como premissa de garantia aos trabalhadores do cumprimento das decisões emanadas das reclamatórias trabalhistas que
versam sobre terceirização de mão de obra, garantindo ao obreiro o direito de haver deste ou daquele, seus respectivos haveres legais.
Em contrapartida, nos casos em que a terceirização é ilícita, há uma polêmica quanto ao entendimento das instâncias ordinárias.
Nesses moldes, entende-se que o vínculo será formado com a empresa tomadora do serviço, e, assim, a empresa prestadora será
interposta, o que recairia no inciso I da Súmula supracitada. Entretanto, não faz sentido condenar apenas o tomador do serviço, que se
configurou empregador, deixando a responsabilidade da empresa prestadora do serviço de fora, se, quando lícita, a terceirização possui
responsabilidade subsidiária. Nada mais lógico, portanto, que sendo ilícita a terceirização, com maior razão deva responder também pelas
verbas inadimplidas, no mínimo, no mesmo grau de responsabilidade.
Embora nada diga a Súmula sob o caso de responsabilidade mútua na terceirização ilegal, a Jurisprudência das instâncias
ordinárias vem condenando as prestadoras de serviços, imputando-lhes responsabilidade solidária, com respalde no art. 942 do CC/02.
No entanto, questiona-se a aplicabilidade do art. 942 do Código no caso em específico, visto que este dispositivo aplica-se à responsabilidade civil extracontratual, não servindo para a aplicação supletiva às relações de emprego que possuem natureza contratual.
O TST discorda deste entendimento afirmando que o inciso IV da Súmula 331 suplanta toda e qualquer previsão legal. Na citação abaixo,
segue julgado em que o Tribunal Regional, diante de caso de terceirização ilícita, aplicou a responsabilidade solidária, nos termos do art.
942 civil, e o Tribunal Superior, provendo a revista, modificou a decisão para decretar a responsabilidade subsidiária, nos termos de sua
Súmula 331:
RECURSO DE REVISTA. TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA. EMPRESA PÚBLICA. RESPONSABILIDADE
SOLIDÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. No tocante à responsabilidade solidária, aplica-se a orientação
contida na Súmula nº 331, IV, desta Corte, que consagra a tese da responsabilidade subsidiária do
tomador dos serviços. Recurso de revista conhecido e provido. [...] Consta no acórdão regional a
fls. [tais]: ‘[...] é flagrante a tentativa de burlar a incidência da legislação trabalhista, em violação ao
art. 9º da CLT, o que também atrai a incidência do art. 942 do CC [...]. Por esse intuito evidenciado,
confirma-se a sentença que reconhece a responsabilidade solidária da ora recorrente (quarta
reclamada) juntamente com as demais reclamadas, empregadoras da reclamante, com relação aos
créditos reconhecidos na presente ação, sem qualquer limitação’. [...] Constata-se que o Tribunal
Regional, partindo da premissa de que a relação entre as partes caracterizava terceirização
fraudulenta, condenou a primeira reclamada (tomadora dos serviços) a responder solidariamente
pelas parcelas deferidas à reclamante. Ocorre que, nos termos do item IV da Súmula nº 331 desta
Corte, a responsabilidade, neste caso, é apenas subsidiária. Dessa forma, conheço do recurso de
revista contrariedade à Súmula nº 331, IV, desta Corte. (TST RR 18719-48.2010.5.04.0000. 1ª T.
Relator Min. VIEIRA DE MELLO FILHO. DJ 30/09/2011).
Concluindo, pode-se resumir a questão da responsabilização da empresa prestadora e tomadora de serviços em duas situações:
sendo lícita a terceirização, caso haja inadimplemento da empresa prestadora de serviços, a empresa tomadora será subsidiariamente
responsável pelos encargos trabalhistas; em contrapartida, sendo ilícita a terceirização, entende-se que seria o caso de decretar o vínculo
direto entre o empregado e o tomador do serviço. No entanto, há quem aplique, por subsidiariedade, a norma do art. 942 do CC/02
para responsabilizar solidariamente o prestador de serviços, contudo, o TST já entendeu que haverá sempre responsabilidade subsidiária,
conforme a Súmula 331.
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5. DIREITO À AÇÃO DE REGRESSO
Nos casos de responsabilidade da empresa prestadora do serviço por fato do empregado doméstico, aquele que paga a
indenização solidariamente tem um direito regressivo contra o causador do dano (GONÇALVES, 2012, p. 142), devendo-se atentar à
observância do emprego de dolo ou culpa por parte do empregado . É o que dispõe o art. 934 do Código Civil: “Aquele que ressarcir o
dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu,
absoluta ou relativamente incapaz”. Esse direito regressivo é de justiça manifesta, sendo uma consequência natural da responsabilidade
indireta.
Entretanto, uma ressalva deve ser proposta em relação ao direito à ação de regresso do empregador sob o empregado. Com
observância aos preceitos celetistas, temos o art. 462 da CLT, segundo o qual:
Art. 462 - Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo
quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.
§ 1º - Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde que esta
possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.
Conforme o exposto, é correto afirmar que, havendo dolo na conduta do empregado, não há dúvidas quanto à possibilidade
de haver descontos salariais. No entanto, em caso de culpa do empregado, é necessário que haja previsão contratual para que se possa
proceder ao desconto, sob pena de ferir o princípio da intangibilidade salarial.
Em aquiescência, estão os julgados:
DESCONTO SALARIAL. DANO. AUSÊNCIA DE CULPA DO EMPREGADO. Os descontos relativos
a danos causados pelo empregado somente são lícitos quando houver previsão contratual ou
quando comprovada a conduta dolosa, a teor do disposto no art. 462, da CLT. Assim, ferem o
princípio da intangibilidade salarial, consagrado no Direito do Trabalho, os descontos efetuados a
título de reparos no veículo, quando a culpa pelo acidente não pode ser atribuída ao reclamante.
(TRT 3ª R; RO 00282-2007-059-03-00-7; Quinta Turma; Rel. Juiz Conv. Rogério Valle Ferreira;
Julg. 11/09/2007; DJMG 22/09/2007)
DESCONTOS SALARIAIS. DANOS CAUSADOS PELO EMPREGADO EM ACIDENTE DE
TRÂNSITO. Havendo previsão contratual autorizando o desconto salarial decorrente de danos
causados por culpa do empregado e estando caracterizada a sua culpa por acidente de trânsito,
é lícito o desconto salarial levado a efeito pelo empregador para a reparação dos prejuízos
decorrentes (art.462, § 1º, da CLT). (TRT 12ª R; RO 00383-2008-003-12-00-5; Segunda Turma;
Rel. Juiz Marcos Vinicio Zanchetta; Julg. 14/01/2009; DOESC 23/01/2009)
Dessa forma, desde que o contrato individual de trabalho, a convenção ou o acordo coletivo possibilitem o desconto indenizatório,
poderá o empregador efetuá-lo no limite do valor do dano que lhe for causado por culpa do empregado, no exercício de suas funções.
Ademais, imperioso reforçar que este desconto não poderá ultrapassar 30% da remuneração líquida do empregado, conforme previsto
na Lei nº 10.820/2003.
Por fim, há que se ressaltar que, a fim de viabilizar a ação de regresso do empregador contra o empregado causador do dano,
faz-se mister sua comprovação, bem como a demonstração de aplicação de punição ao empregado, para que não se configure perdão
tácito (ARBEX, 2014).
Enunciado nº 44 da I Jornada de Direito Civil do CCJ – Art. 934: na hipótese do art. 934, o empregador e o comitente somente poderão agir regressivamente contra o empregado ou preposto se estes tiverem causado dano com dolo ou culpa.
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adoção do processo de terceirização no Brasil foi intensificada e disseminada no âmbito da reestruturação produtiva que
marcou os anos 80, conquanto a terceirização não tenha sido recente no Brasil. Ressalta-se que o tema ganhou destaque na agenda de
trabalhadores e empresários e tornou-se objeto de inúmeras análises. Passado este período, a terceirização foi sendo utilizada como um
dos principais instrumentos para a precarização das relações de trabalho, apesar de ter assumido dimensões significativas. Não obstante,
a presença do tema no debate nacional diminuiu de forma gradativa, resultando em efeitos negativos sobre as reflexões com relação a
melhoria das condições de trabalho.
Diante do exposto, através da perspectiva de responsabilização civil das pessoas jurídicas, a presente pesquisa em tela aborda a
Responsabilidade Civil das agências de empregados domésticos, as quais foram amplamente difundidas após a implementação da EC nº
72. Nesta senda, balizada pela Lei nº 7.195/84, que versa acerca da regulamentação das relações entre agência e tomador de serviços,
este estudo trouxe a análise dos dois únicos artigos que tratam sobre o direito material propriamente dito.
No que tange ao artigo 1º da supracitada lei, conclui-se que a empresa prestadora de serviços domésticos possui responsabilidade objetiva ou indireta pelo empregado, à luz do Código Civil, arts. 932 e 933, regulamentação esta que superou a Súmula 341 do STF,
que determinava a culpa presumida do empregador.
O artigo 2º, por sua vez, trata da responsabilidade da agência pelo dano cometido por resultado de ato lícito ou ilícito do
empregado, prescrevendo ainda o período de 1 (um) ano para responsabilidade objetiva do empregador, já que posteriormente, seria o
próprio empregado quem responderia pelos danos que causassem a outrem.
Ademais, a responsabilização do tomador de serviços pode ser aferida em duas situações distintas: a) a primeira delas relaciona-se
com a ocorrência de inadimplência das obrigações trabalhistas do prestador de serviços. Com efeito, perante a análise da Súmula 331
do TST, conclui-se que a responsabilidade do empregador doméstico seria subsidiária, o que garante uma maior proteção ao trabalhador,
assegurando a este o direito de haver seus respectivos haveres legais; b) a segunda situação trata dos casos em que a terceirização é
considerada ilícita. Nestes moldes, vislumbra-se que embora a jurisprudência das instâncias ordinárias admita que a responsabilidade do
tomador de serviços seja solidária, o STF tem entendimento consolidado de que a responsabilidade é, de fato, subsidiária, nos termos da
Súmula 331 do TST.
Por outro lado, a propositura de ação de regresso da agência em face do empregado é um ato de justiça manifesta e consequência
natural da responsabilidade indireta, consoante o art. 934 do Código Civil. Outrossim, com a análise do art. 462 da CLT, conclui-se que,
em existindo dolo na conduta do empregado ou estando previsto no contrato individual de trabalho, convenção ou acordo coletivo, não
haveria dúvidas quanto à possibilidade de cabimento ação de regresso através de descontos salariais.
Isto posto, verifica-se a importância do estudo da responsabilização civil das agências de empregados domésticos, sobretudo com
relação à falta de legislação específica e atual para tutela de direitos trabalhistas precários. É necessário, portanto, que o instituto da
terceirização volte a ser observado com o devido destaque que a demanda requer, sempre no sentido da proteção qualificada do direito
dos empregados, nomeadamente os empregados domésticos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BÔAS, Regina Vera Villas. Marcos históricos relevantes da história da responsabilidade civil. In: NERY, Rosa Maria de Andrade; DONNINI,
Rogério; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus ... [et al.]. (coordenadores). Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao
professor Rui Geraldo Camargo Viana, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 428-447.
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LEXMAX - revista do advogado
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO DIREITO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
José Welhinjton Cavalcante Rodrigues¹
RESUMO
A dignidade da pessoa humana é um conceito constantemente utilizado para fundamentar decisões judiciais no Brasil. Devido
a seu caráter polissêmico, serve, por muitas vezes, como mero argumento de retórica para justificar decisões das mais díspares e é
nesse sentido que esta pesquisa objetiva estabelecer contornos mínimos do conceito de dignidade, de modo a torná-lo mais fiel aos
valores que lhe são correlatos, a partir do estudo da sua natureza jurídica e do seu tratamento no âmbito do Supremo Tribunal Federal
(STF). Para tanto, o método utilizado foi o dedutivo, com uso do procedimento monográfico e a técnica de documentação indireta. Em
suma, atingiu-se a conclusão de que, apesar da quase impossibilidade de se desenvolver um conceito fechado de dignidade, vez que
esta se altera no tempo e no espaço, foi o paradigma dimensional proposto por Sarlet o que melhor deu conta de uma definição aberta
de dignidade humana com algum grau de segurança e estabilidade jurídica. No tocante à natureza jurídica da dignidade humana, esta é
considerada sob a perspectiva principiológica, impondo sua proteção e promoção.
Palavras-chave: dignidade da pessoa humana. conceito. natureza jurídica.
ABSTRACT
The human’s dignity is a concept constantly used to substantiate judicial decisions in Brazil. Due to its polysemic character serves, for
many times, like a mere rhetorical argument to justify decisions of the most disparate and it’s accordingly this search establish minimum
contours of dignity concept, so making it more faithful true to the values that are related to you from the study of its legal nature and
its treatment in scope of the ________________ (STF). Therefore the method used was deductive with use of monographic procedure and
the technique of indirect documentation. In short, reached the conclusion that despite the impossibility of developing a closed concept
of dignity, since this it changes over time and space, this was the dimensional paradigm proposed by Sarlet, what better realized an
open definition of human dignity with some degree of security and legal stability. Concerning the legal nature of human dignity, this is
considered about the principled approach, imposing their protection and promotion.
Keywords: human dignity. concept. legal nature.
1. INTRODUÇÃO
A dignidade da pessoa humana mostrou-se, nas últimas décadas, como um valor hegemônico no Ocidente, através de sua
positivação em documentos nacionais e transnacionais, no entanto precisá-la tornou-se um desafio, e quanto a algumas tentativas, não
se manifesta consenso a esse respeito.
O presente estudo parte da condição de princípio fundamental que a dignidade alcançou em diversos ordenamentos jurídicos,
a exemplo do Brasil, quando foi expressamente disposta no título dos princípios fundamentais, no artigo 1°, inciso III, da Constituição
da República Federativa de 1988. Este marco legal é o ponto de partida dogmático para o reconhecimento, realização e promoção da
dignidade da pessoa humana no país.
Busca-se, a partir do ponto de partida abordado, realizar considerações a respeito do conceito e da natureza jurídica do
princípio da dignidade da pessoa humana. Para atingir a referida meta, tratou-se, primeiramente, sobre a evolução histórica da dignidade,
demonstrando sua tendência atual à universalização; para tal também pretendeu-se situar a dignidade em face da dicotomia entre o
Direito e a moral, destacando a influência da Filosofia na sua construção. Após essa abordagem geral, o estudo focou-se no tratamento
que o Supremo Tribunal Federal (STF) imprime à dignidade humana e como os expoentes doutrinários sobre o tema no Brasil, capitaneados
por Sarlet e Barroso, também encaram tal conceito.
Dessa forma, a importância deste estudo reside em tornar a dignidade da pessoa humana um conceito mais operacional, capaz
de ser um argumento relevante na atuação de profissionais da área jurídica, e não apenas um mero elemento de retórica, mas sem
descuidar dos perigos que tal operalização abarca, que é o de suplantar a pluralidade de valores de uma sociedade justa e democrática.
Em suma, esta pesquisa, de cunho acadêmico, pretende contribuir para uma melhor interpretação e realização do princípio da dignidade
da pessoa humana por intermédio da reflexão de um possível conceito mais claro, objetivo e, ainda assim, plural.
.
¹Graduando do décimo período em Ciências Jurídicas e Sociais. Mediador pelo Núcleo de Prática Jurídica da FAFIC e aprovado na seleção
do XVI Exame de Ordem Unificado.
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2. DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A noção de dignidade da pessoa humana conforme se conhece na atualidade remonta à origem religiosa, visto o disposto na
Bíblia que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus². Nesse sentido, Sarlet (2006) anuncia que há:
[...] para a religião cristã a exclusividade e originalidade quanto à elaboração de uma concepção de dignidade da
pessoa, o fato é que tanto no Antigo quanto no Novo Testamento podemos encontrar referências no sentido
de que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, premissa da qual o cristianismo extraiu a
conseqüência [...] de que o ser humano – e não apenas os cristãos - é dotado de um valor próprio e que lhe é
intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento. (SARLET, 2006, p. 30).
Apesar da grande difusão da ideia pelo cristianismo, a mesma aparece em épocas mais remotas, quando, na Tragédia Grega
Antígona, de Sófocles, “o Homem é apresentado como maior milagre na terra e como senhor de todos os seres vivos”, acentua Sarlet
(2011, p. 34). Não obstante, o pensamento grego estóico manifesta ainda uma noção de dignidade na concepção cosmológica de responsabilidade ética, alude Bittar (2006, p. 41).
Mesmo havendo remissões à dignidade antes do cristianismo, tal conceito não se vinculava, como hoje, ao simples fato de ser
humano, como apresentou o cristianismo com a ideia de que todo ser humano é digno pelo simples fato de ser imagem e semelhança
divina. O processo histórico para o reconhecimento de uma dignidade intrínseca ao ser humano foi longo e inicia-se no pensamento
romano, quando o jurisconsulto Marco Túlio Cícero, com ineditismo, desvencilhou a ideia de dignidade da posição hierárquica ocupada,
reconhecendo a existência de uma acepção moral e intrínseca ao sujeito, conforme corrobora Comparato (1999, p. 11 e ss.). Até então,
a dignidade estava diretamente relacionada à classe social do indivíduo ou o cargo que exercia, porém essa situação foi sendo alterada
paulatinamente, principalmente, a partir do século XIII.
A partir do século XIII estabeleceu-se progressivamente a distinção entre officium (cargo ou função) e dignitas,
para dela se extraírem importantes conseqüências jurídicas. Uma pessoa pode ter o atributo pessoal da dignidade,
sem no entanto exercer cargo algum. (COMPARATO, 2006, p. 480).
Essa percepção da dignidade como elemento extrínseco à pessoa, ligada ao cargo de maior ou menor reconhecimento social
ou a classe social ocupada, foi sendo substituída. Com São Tomás de Aquino e sua formulação de pessoa para a época, houve incidência
desse novo conceito no âmbito da dignidade, o que influenciou a ideia contemporânea de dignidade ao tratar da pessoa como substância
individual de natureza racional, aduz Virgínia Santos (2007, p. 16-17).
Com o transcorrer do tempo, valiosas contribuições foram acrescidas à ideia de dignidade da pessoa humana, a saber: a do
espanhol Francisco de Vitória, que, durante a expansão colonial espanhola (século XVI), defendeu pela primeira vez a ideia da liberdade e
da igualdade dos índios com base no fato deles serem sujeitos de direitos, rememora Salert (2011, p. 38), bem como Samuel Pufendorf,
que tratou da liberdade moral como característica diferenciadora do ser humano, servindo como fundamento da dignidade, acentua
Becch (2008, p. 194 e ss.).
Empreendida com Pufendorf, a secularização da dignidade torna-se cabal com Immanuel Kant, que integraliza esse processo.
Isso porque foi Kant quem revelou a dignidade como componente da autonomia ética do ser humano, dispõe Sarlet (2011, p. 39-40).
Posteriormente à Revolução Francesa, especificamente no século XVIII, foi votada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
que apoiava a promoção da dignidade humana e consolidava o ideal de liberdade relacionado ao direito natural, consigna Altavila (2001,
p. 291-292).
Após a Segunda Guerra Mundial, houve o reconhecimento expresso da dignidade da pessoa humana em diversas Constituições
durante o século XX, sendo que a referida positivação deu-se, primordialmente, com a acolhida da dignidade da pessoa pela Declaração
Universal da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948, relembra Denninger (1989, p. 275-276), porém, apesar de não estar
presente em todas as Constituições, há uma tendência concreta de expansão da dignidade.
Ainda sobre as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, observa-se que, após a Guerra, a dignidade passou a ocupar maior espaço
nos documentos constitucionais modernos, devido ao reconhecimento massificado do real valor dos direitos do homem e da própria
dignidade, escreve Fernandes (2008, p. 1332). Parte dessa sensibilização decorre da banalização da vida durante o período da Guerra,
conforme Melo (2007), a seguir.
²Ver: Genesis, 1:26.
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Foi necessário que fossem amplamente vividos e divulgados os horrores da Segunda Guerra Mundial e dos
regimes nazistas e fascistas, já no século XX, para que documentos internos e internacionais viessem a consagrar
a dignidade da pessoa humana como valor e/ou princípio fundamental. (MELO, 2007, p. 109).
Na verdade, a Declaração Universal de 1948 representa a reconstrução dos direitos humanos que foram violentamente
irrompidos com a Segunda Guerra, assim como significa uma profunda promoção da dignidade humana, o que proporcionou a elevação
da dignidade ao valor de diretriz ética e jurídica dos direitos humanos. Nas palavras de Piovesan (2006):
O valor da dignidade humana, incorporada pela Declaração Universal de 1948, constitui o norte e o lastro ético
dos demais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Todos eles introjetam, no marco do
positivismo internacional dos direitos humanos, a dignidade humana como valor fundante. (PIOVESAN, 2006,
p. 18).
Nota-se, porém, que alguns Estados ainda não aderiram a nenhum princípio da Declaração, e deram continuidade aos conflitos.
Essa não adesão deu-se, principalmente, em Estados do Oriente. Segundo Barcellos (2008):
As inúmeras Declarações e Pactos subscritos, bem como as Conferências promovidas nas décadas que se
seguiram, não foram capazes de erradicar a violação comissiva (por vezes mesmo sistemática e institucional) ou
omissiva (pelo desatendimento generalizado) dos direitos humanos em seus mais diversos aspectos [...]. Exemplo,
Biafra, na Nigéria dos anos 60. (BARCELLOS, 2008, p. 129).
Mesmo diante dos entraves e da negativa de positivação por parte de alguns Estados Orientais, a dignidade foi recepcionada
como princípio norteador de tantos outros Estados, tendo sido a Declaração Universal um marco internacional para o avanço dos
direitos humanos. Justamente a partir daí, ocorreu à expansão da dignidade humana rumo à universalização, e atualmente o Estado
Constitucional Democrático é de abertura constitucional radicado na dignidade da pessoa humana, destaca Castro (2003, p. 19).
Nesse espaço, merece ênfase ainda a lição de Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 18 apud SARLET, 2007, p. 384), ao
vocalizar o conceito de direitos humanos e a ideia de dignidade com fundamento em uma reunião de pressupostos comuns ao Ocidente,
quando, efetivamente, cada cultura tem lapidado, em seu bojo, uma concepção de dignidade da pessoa, conquanto nem toda cultura
lastreia ela nos direitos humanos, impondo-se, por isso, um diálogo intercultural que permita a troca constante entre diferentes culturas
e saberes, concretizada pela aplicação de uma “hermenêutica distópica”, que busca expandir a consciência da incompletude mútua entre
variadas culturas através do diálogo.
Destarte, percebe-se que a ideia de dignidade está em constante processo de construção e desenvolvimento, segundo Rocha
(1999, p. 24). Logo, cada cultura, em determinado período histórico, tende a expressar uma noção de dignidade que apesar de possuir
caracteres próprios, exprime também uma carga anterior.
3. DO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E MORAL SEGUNDO KANT
A dignidade mantém um forte viés axiológico, uma vez que suas primeiras manifestações estavam associadas à ideia de bondade,
justiça, segurança e solidariedade, aduz Torres (2008, p. 41). Por isso, em uma variedade de obras, a dignidade é tida como uma qualidade
intrínseca à pessoa humana.
Diante disso, fixou-se a existência do Estado a serviço da pessoa humana, sendo esta um fim em si mesmo , conforme o
imperativo categórico de Kant (2004). Nesse sentido, é a lição de Barroso; Martel (2010):
A vida de qualquer ser humano tem uma valia intrínseca, objetiva. Ninguém existe no mundo para atender os
propósitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade. O valor ou princípio da dignidade
humana veda, precisamente, essa instrumentalização ou funcionalização de qualquer indivíduo. Outra expressão
da dignidade humana é a responsabilidade de cada um por sua própria vida, pela determinação de seus valores
e objetivos. (BARROSO; MARTEL, 2010, p. 250).
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O exposto acima se manifesta de um todo qualificador da autonomia individual como fundamento da dignidade. De tal sorte, a
referida autonomia expõe a harmonia entre a vontade livre do indivíduo e a lei. Nesse diapasão, reside o impulso kantiano, pois essa lei
é uma imposição própria da pessoa. Sendo que esta é entendida enquanto um ser moral.
Assim, elucidativo é Barroso; Martel (2010, p. 250) ao dizer que “a moralidade, a conduta ética consiste em não se afastar do
imperativo categórico, isto é, não praticar ações senão de acordo com uma máxima que possa desejar seja uma lei universal”. Portanto, no
“reino dos fins” todas as coisas têm um preço ou uma dignidade. Quando se trata de coisas, estas poderão ser substituídas, mas o mesmo
não se aplica a dignidade. De tal maneira, as coisas são quantificadas (preço) e as pessoas têm dignidade, rememora Barroso (2010).
É relevante apontar ainda, conforme Silva (1998); Rocha (1999), que a dignidade vai além de qualquer contorno estabelecido
pelo Direito, sendo algo preexistente a qualquer experiência especulativa. Trata-se de um conceito a priori.
Ademais, da analise da Declaração Universal da ONU, além da doutrina nacional, fica evidenciado que a compreensão da dignidade da
pessoa possui como elemento nuclear a matriz kantiana. Isso porque há uma maior atenção na autonomia e na possibilidade de autodeterminação do indivíduo, conforme Sarlet (2007).
Por fim, compreendido a relação existente entre o Direito e a moral no contexto da dignidade da pessoa humana, segue-se
tratando a respeito da necessidade de precisar em contornos mínimos (ao menos) à ideia de dignidade, de modo a aplicá-la juridicamente.
4. DO CONCEITO DE DIGNIDADE NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS
Na ordem jurídica brasileira, há uma grande dificuldade de estabelecer um conceito preciso de dignidade humana, devido a
sua ideia polissêmica, sendo que cada um constrói um discurso em torno da ideia de dignidade humana que lhe convém. Isso não se
deve somente por sua plasticidade e ambiguidade, de acordo com Farias (1996, p. 50), mas sobretudo por sua circunstância de categoria
axiológica aberta, “ainda mais quando se verifica que uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de
valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas [...]”.
O STF tem buscado delimitar uma compreensão em torno do conceito de dignidade, apesar de não se aprofundar nesta
questão. Isso se torna evidente na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3510-0, que teve como relator o Ministro Carlos Ayres
Britto e onde foi suscitada a inconstitucionalidade do art. 5º e todos os seus dispositivos, da Lei Federal nº 11.105/05, conhecida pelo
senso comum como Lei de Biossegurança, que trata da utilização em pesquisas de células-tronco embrionárias.
Durante seu voto, o Ministro Gilmar Mendes destacou o marco que a decisão em torno da questão representa para o cenário
jurídico nacional, vez que permitiria um melhor entendimento sobre o conteúdo do princípio da dignidade.
[...] Delimitar o âmbito de proteção do direito fundamental à vida e à dignidade humana e decidir
questões relacionadas ao aborto, à eutanásia e à utilização de embriões humanos para fins de pesquisa
e terapia são, de fato, tarefas que transcendem os limites do jurídico e envolvem argumentos de moral,
política e religião que vêm sendo debatidos há séculos sem que se chegue a um consenso mínimo sobre
uma resposta supostamente correta para todos (MENDES, 2008).
Por meio do fragmento destacado acima, ratifica-se a percepção de que a dignidade da pessoa humana não é um conceito
estritamente jurídico, absorvendo afluentes de outras áreas, assim como temáticas como aborto, eutanásia e utilização de embriões
humanos
para fins de pesquisa e terapia compõem o rol do que Dworkin chamou de Hard Cases .
Quanto à impossibilidade de a dignidade humana emergir unicamente enquanto conceito jurídico, assevera Sarlet que “[...] a
dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, não pode ser ela própria concedida pelo ordenamento jurídico” (2011, p. 84),
porém há grande esforço no sentido de precisar contornos mínimos acerca da dignidade humana.
A noção de dignidade humana apresentado por Silva (1998, p. 91) é aplicável ao exposto anteriormente, quando diz que a
dignidade é “[...] atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende um valor intrínseco superior a qualquer
preço, que não admite substituição equivalente. Assim a dignidade entranha e se confunde na própria natureza do ser humano.” Dessa
forma, a dignidade é inerente e indissociável à condição da pessoa humana, inclusive daquelas pessoas que praticaram os atos mais
infames e que, mesmo assim, não podem ser objeto de desconsideração, segundo Sarlet (2007, p. 367).
Ainda a respeito da ADI nº 3510-0, a Ministra Cármen Lúcia, em seu voto, dispôs o seguinte: “A utilização de células-tronco embrionárias
para pesquisa e, após o seu resultado consolidado, o seu aproveitamento em tratamentos voltados à recuperação da saúde não agridem
a dignidade da pessoa humana, constitucionalmente assegurada [...]” (ROCHA, 2008).
O imperativo kantiano estabelece que a ação humana deve obedecer a uma máxima que pudesse ser considerada como lei universal. Para aprofundamento a respeito, confira:
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
Hard Cases ou “casos difíceis” é uma expressão utilizada por Ronald Dworkin em algumas de suas obras, como “Levando os Direitos a Sério”, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, para designar o caso concreto que não possui regra que lhe seja aplicado no ordenamento jurídico, ou quando há mais de uma regra passível de ser aplicada para
solucioná-lo, ou ainda quando a solução encontrada para o caso provoca excessiva estranheza a comunidade e aos seus costumes.
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Percebe-se que mesmo com a menção constante a dignidade da pessoa nesse julgado, não existiu uma análise profunda e
contunde capaz de delimitar contornos mínimos em seu conteúdo. Em detrimento, deu-se continuidade à utilização costumeira da
dignidade humana como “mero argumento retórico” por Juízos e Tribunais, o que é típico no Brasil, alhures observou Barroso (2010, p.
3-4).
Restou evidente no voto da Ministra Cármen Lúcia que, mesmo diante dos óbices existentes, não deixa de ser efetiva a ideia da realização
fática da dignidade, sendo claramente viável a observação de situações em que ela é violada. Assim, dispõe Sarlet (2011, p. 52-53) que “a
dignidade pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo [...] ser criada, concedida ou retirada
(embora possa ser violada)”.
4.1 CONCEPÇÃO KANTIANA DE DIGNIDADE E SUA REPERCUSSÃO NO BRASIL
Tornou-se habitual, na doutrina e na jurisprudência contemporânea, estabelecer como elemento nuclear da noção de dignidade
da pessoa humana a matriz kantiana. Para Barroso (2010) e Sarlet (2007), a citada matriz centra-se, abstratamente, na liberdade
(autonomia) e no direito de autodeterminação de cada pessoa. Assim, um indivíduo com discernimento reduzido, temporariamente ou
permanentemente, tem a mesma dignidade de outro ser em pleno exercício de sua capacidade mental ou física, vez que a dignidade é
intrínseca a condição humana.
Nesse sentido, contribui Balera (2009) ao afirmar:
[…] que, para Kant, o homem é um fim em si mesmo - e não uma função do Estado, da sociedade ou
da nação - dispondo, portanto, de uma dignidade ontológica. O direito e o Estado, ao contrário, é que
deverão estar organizados em benefício dos indivíduos. Assim é que Kant sustenta a necessidade da
separação dos poderes e da generalização do princípio da legalidade como forma de assegurar aos
homens a liberdade de perseguirem seus projetos individuais. Além de fundar a dignidade no homem,
o conceito kantiano é universal, estendendo a dignidade a todos os seres racionais. (BALERA, 2009, p.
124).
De tal sorte, o Estado deve fornecer condições para que cada pessoa possa se autodeterminar, e assim tomar suas próprias
decisões. Em detrimento disso, quando uma pessoa serve de meio para que o Estado alcance suas metas, experimenta-se a indignidade
que surge com a “coisificação do homem”. Assim, “a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa
concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, (...).” (SARLET, 2007, p. 380).
A Ministra Cármen Lúcia, no seu voto, da ADI nº 3510-0, resumiu a ideia kantiana da seguinte forma:
Para Kant, o grande filósofo da dignidade, a pessoa (o homem) é um fim, nunca um meio; como tal,
sujeito de fins e que é um fim em si, deve tratar a si mesmo e ao outro. Aquele filósofo distinguiu
no mundo o que tem um preço e o que tem uma dignidade. O preço é conferido àquilo que se pode
aquilatar, avaliar até mesmo para a sua substituição ou troca por outra de igual valor e cuidado; daí
porque há uma relatividade deste elemento ou bem, uma vez que ele é um meio de que se há valer
para se obter uma finalidade definida. Sendo meio, pode ser rendido por outro de igual valor e forma,
suprindo-se de idêntico modo a precisão a realizar o fim almejado (ROCHA, 2008).
Conforme já comentado alhures, a dignidade humana, segundo a proposta de Kant, obsta que cada pessoa seja funcionalizada
a servir a projetos de outrem. De tal forma, a percepção contemporânea da dignidade contempla a ideia de que “a conduta ética consiste
em agir inspirado por uma máxima que possa ser convertida em lei universal; (...).” (BARROSO, 2010, p. 18). Nesse sentido, Dworkin
(1998, p. 307-310), ao tratar da noção de dignidade, remete-se também à fórmula kantiana e defende que o indivíduo jamais deve ser
considerado instrumento para atender aos fins de outros.
Outro julgado do STF merece destaque nesse momento. Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) n° 54, que teve como relator o Ministro Marco Aurélio e onde a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)
suscitou a violação de direito fundamental na aplicação da lei penal em detrimento da norma constitucional nos casos que versam sobre
antecipação do parto de feto anencéfalo.
Nesse sentido, a CNTS alegou a violação, entre outros princípios, da dignidade humana da mulher, compreensão adotada pelos
Ministros Carlos Ayres Britto, Marco Aurélio, Rosa Weber, entre outros. Pelo lado oposto, a dignidade também foi citada como argumento
para a preservação da vida do feto, entendimento acatado, por exemplo, pelos Ministros Eros Grau e Cezar Peluso.
Contudo, percebe-se no voto do Relator uma tendência típica no STF. Trata-se de acatar a ideia kantiana de dignidade, impedindo a
“coisificação da mulher”, o que poderia acontecer caso a gravidez fosse levada a cabo para posterior doação dos órgãos do nascituro.
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[...] não é dado invocar, em prol da proteção dos fetos anencéfalos, a possibilidade de doação de seus
órgãos. E não se pode fazê-lo por [...] ser vedado obrigar a manutenção de uma gravidez tão somente
para viabilizar a doação de órgãos, sob pena de coisificar a mulher e ferir, a mais não poder, a sua
dignidade. [...] é inumano e impensável tratar a mulher como mero instrumento para atender a certa
finalidade, avulta-se ainda mais grave se a chance de êxito for praticamente nula (MELLO, 2012).
A mulher deve ser tratada como um fim em si mesma, dotada de autonomia, sendo assim, livre de qualquer previsão utilitarista
que a reduza a mero objeto. Logo, conforme o voto do Relator, a mulher deve ter sua dignidade respeitada enquanto sujeito de direito
que é. O que revela uma nítida percepção kantiana em torno da ideia de dignidade humana.
O voto da Ministra Rosa Weber também se apropriou da concepção kantiana de dignidade da pessoa humana. A supra Ministra
evocou Kant, através da interpretação de Rabenhorst, para quem “[...] a liberdade é mais do que a simples ausência de impedimentos
externos. Livres são aqueles que fazem suas próprias escolhas, embasados em determinados princípios. Dessa forma, apenas os seres
racionais gozam da liberdade” (RABENHORST, 2001 apud WEBER, 2012). Assim, a liberdade (autonomia) encontra-se consubstanciada
na ideia de dignidade.
No julgado em tela, observa-se que novamente a dignidade da pessoa é utilizada para fundamentar posições diametralmente
opostas, e apesar das tentativas rasas por parte do STF de traçar um conteúdo mínimo, a dignidade ainda é usada, no mais das vezes,
como mero ornamento ao longo do texto, apesar de se perceber certo consenso em torno da matriz kantiana.
Em suma, toda busca do STF em torno de traçar contornos mínimos da dignidade deve ser pautada pela cautela, a fim de que seja a noção
plástica o suficiente para permitir um pluralismo e democracia de valores, mas igualmente firme para que o conceito aberto de dignidade
não sirva para legitimar injustiças e a precarização da condição humana.
4.2 MÍNIMO EXISTENCIAL E DIGNIDADE
A dignidade estrutura e fundamenta os direitos sociais materialmente fundamentais e, dessa seara, emerge a valiosa noção
do mínimo existencial. De todo modo, para que cada pessoa possa exercer sua cidadania, requer-se a satisfação de necessidades
indispensáveis à sua existência física e psíquica, afirma Barroso (2010, p. 25-28). Do mínimo existencial resulta certo consenso doutrinário
a respeitado da sua integração ao conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana.
Assim, as condições materiais mínimas são de um todo importantes para uma vida digna. A garantia de direito à educação básica,
à saúde, à assistência aos desamparados e ao acesso à justiça, em âmbito constitucional, caracterizam o mínimo existencial, e o faz ter
eficácia direta e imediata, conforme Barroso (2010, p. 26-27). Resta destacar que a abordagem acima abarca a feição prestacional do
mínimo existencial, sendo assim, denota-se seu caráter de direito social que pode ser exigível frente ao Estado.
Há uma verdadeira impossibilidade de elencar exaustivamente o conteúdo do mínimo existencial, porque este se altera no
espaço e no tempo. Ademais, em regra, o mínimo existencial não existe consagrado expressamente em documentos constitucionais
nacionais e internacionais, mas possui status de norma constitucional largamente reconhecida, diz Barroso (2010, p. 26).
Sendo assim, observe-se o trecho da decisão monocrática produzida pelo Relator Ministro Celso de Mello na ADPF nº 45, a seguir.
A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, (...),
na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua
própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de
existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão
estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos (MELLO FILHO, 2004).
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegurou uma gama de direitos sociais fundamentais que tem por
componente essencial o mínimo existencial. De tal sorte, os direitos fundamentais em geral, consubstanciados no mínimo existencial,
operam semelhante a uma regra, não exigindo o prévio desenvolvimento pelo legislador, consoante Barroso (2010, p. 27). Assim, o Estado
democrático de Direito tem por fundamento basilar o bem-estar social através de uma existência digna que, por sua vez, está ligada à
prestação de recursos materiais essenciais, como o salário mínimo, o direito à previdência entre outros, aponta Sarlet (2001, p. 322-323).
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5. POR UM CONCEITO OPERACIONAL E PLURAL DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
A ordem jurídico-constitucional estabelece que, quando provocado para intervir em determinado conflito que trate da dignidade
humana, deve o juiz ou Tribunal proferir uma decisão fundamentada para o caso concreto. Assim, não se pode dispensar uma compreensão
jurídica sobre dignidade que seja capaz de irradiar efeitos sobre a jurisdição nacional. Caso não haja esforço nesse sentido, a ideia de
dignidade da pessoa mantém-se de tal maneira apropriável que pode ser sujeita a manipulações variadas e sua perdição pode vir a legitimar
as posições mais diversas. Para tanto, Barroso (2010, p. 19-21) sugere que, para a determinação dos conteúdos mínimos da dignidade,
deve-se optar pela laicidade, uma vez que a dignidade como categoria jurídica não pode servir a concepções estritamente religiosas,
podendo, contudo, compartilhar valores comuns pela neutralidade política, ressalvado os elementos comuns, por conteúdos universalizáveis, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) aprovada pela ONU em 1948, entre outros documentos. Somente
assim se pode atingir um conceito operacional, capaz de abarcar os contornos e significados da dignidade, como vetor fundamentador de
decisões justas em uma sociedade plural.
5.1 AS DIMENSÕES DA DIGNIDADE SEGUNDO SARLET
Para contribuir com a proposta adotada por esta pesquisa, pertinente se manifesta a proposta conceitual de Sarlet (2011), que
como ele assevera está em “processo de construção”. Destarte, a dignidade da pessoa humana é:
a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo
de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degrandante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existências mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria
existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos
demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2011, p. 73).
Tomando por base o conceito acima, faz-se mister dissecá-lo, tarefa que será realizada a seguir.
A primeira dimensão que se nota na tentativa conceitual acima diz respeito à dignidade na sua dimensão ontológica. A despeito
de já ter sido tratada nesta pesquisa, é possível subtrair dessa dimensão que a dignidade, enquanto qualidade inerente a toda e qualquer
pessoa, não pode ser renunciada e alienada. Sendo assim, não é possível ir a juízo para ter reconhecida a titularidade de uma pretensão
que lhe conceda a dignidade, pois esta constitui dado prévio, sustenta Sarlet (2007, p. 366-369).
A próxima dimensão é a comunicativa e relacional da dignidade humana como reconhecimento pelos outros (ou comunitária),
a qual defende Sarlet ser a tese de que “a noção da dignidade como produto do reconhecimento da essencial unicidade de cada pessoa
humana e do fato de esta ser credora de um dever de igual respeito e proteção no âmbito da comunidade humana” (SARLET, 2007, p.
372-373). Assim, o ordenamento jurídico deve cuidar para que todas as pessoas recebam igual respeito e proteção pela comunidade e
pelo Estado.
A terceira dimensão da dignidade é a histórico-cultural, vez que a dignidade é uma categoria axiológica aberta e, em virtude disso,
sempre será um conceito em constante processo de construção, certifica Rocha (1999, p. 24). Nesse sentido, o Tribunal Constitucional de
Portugal, através do acórdão nº 90-105-2/90, consignou que “a ideia de dignidade da pessoa humana, no seu conteúdo concreto – nas
exigências ou corolários em que se desmultiplica – não é algo puramente apriorístico, mas que necessariamente tem de concretizar-se histórico-culturalmente” (PORTUGAL apud SARLET, 2007, p. 374). Logo, a dimensão cultural da dignidade adere a uma condição alcançada
pela efetiva ação de cada pessoa.
A dimensão seguinte e última é que se refere à dignidade como limite e como tarefa dos poderes estatais e da comunidade. Ao
se apresentar como limite, a dignidade significa que ninguém pode se ver reduzido a mero objeto, ou instrumento, perante si mesmo ou
outros, assim como implica que, a partir de atos que a violem ou a exponham a graves ameaças, gera-se contra direitos fundamentais
negativos, registra Sarlet (2007, p. 378). Enquanto tarefa, a dignidade representa deveres concretos de proteção estatal. Com isso, todos
devem ter sua dignidade protegida e promovida, inclusive por intermédio de prestações (medidas positivas), conforme Sarlet (2007, p.
378).
Portanto, estabelecido uma compreensão básica (e mutável) acerca da dignidade da pessoa humana, torna-se necessária (ainda
que difícil) a determinação da sua natureza jurídica.
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6. DA NATUREZA JURÍDICA
A partir da adesão da dignidade da pessoa humana em documentos constitucionais e internacionais houve sua inserção no
âmbito jurídico. Com isso, a dignidade adquiriu caráter deontológico e serve-se, além do status de valor moral fundamental, do status
constitucional de princípio jurídico, de acordo com Barroso (2010, p. 10). Devido a seu caráter normativo, a dignidade tornou-se tarefa
também do Poder Judiciário.
Pois bem. Urge a necessidade de compreender a natureza jurídica da dignidade humana no contexto da ordem constitucional
brasileira, desbravando sua força jurídica enquanto norma fundamental, conforme leciona Sarlet (2011, p. 82). Assim, na ordem jurídicoconstitucional pátria, a dignidade é um princípio jurídico e fundamental de direitos e deveres fundamentais.
O dispositivo constitucional (leia-se texto) que contém a dignidade da pessoa humana (art. 1, III, CR/88) abrange não apenas
uma norma (enquadrada na condição de princípio e regra fundamental), mas também embasamento de posições jurídico-subjetivas e
deveres fundamentais, de acordo com Sarlet (2011, p. 83).
Qualificada enquanto princípio fundamental, adverte Sarlet que a dignidade da pessoa humana implica a convicção de que tal
positivação não abarca apenas uma “declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positiva dotada, em sua
plenitude, de status constitucional formal e material [...]” (SARLET, 2011, p. 84-85).
Através da abordagem principiológica, dispõe Sarlet, que a dignidade da pessoa humana impõe sua proteção e promoção, sendo, portanto,
um mandado de otimização. Por outro lado, sob uma perspectiva de regra, ela “contém prescrições imperativas de conduta, [...]” (SARLET,
2011, p. 87).
Destarte, a dignidade tem dupla estrutura que se manifesta por meio de regra e de princípio. Aqui, aduz Sarlet com base nas
idéias de Alexy:
[...]verifica-se que, para Alexy, o conteúdo da regra da dignidade da pessoa decorre apenas a partir
do processo de ponderação que se opera no nível do princípio da dignidade, quando cotejado com
outros princípios, de tal sorte que absoluta é a regra (à qual, nesta dimensão, se poderá aplicar, com
as necessárias ressalvas, a lógica do “tudo ou nada”), mas jamais o princípio (ALEXY, 1997, p. 108-109
apud SARLET, 2011, p. 87).
A dignidade da pessoa, na ordem jurídico-constitucional pátria, é considerada, essencialmente, em sua perspectiva principiológica. Conquanto, alguns cientistas jurídicos já buscaram tratar da dignidade como o valor absoluto de todo ser humano .
De todo modo, o reconhecimento da dignidade da pessoa enquanto princípio absoluto vai de encontro a qualquer noção
básica de princípios, segundo Alexy evocado por Sarlet (ALEXY, 1997, p. 106 e ss. apud SARLET, 2011). Assim, tal raciocínio se deve a
circunstância de residir no princípio da dignidade da pessoa humana uma estrutura de regra e princípio.
Ademais, a condição jurídico-normativa da dignidade da pessoa se revela enquanto princípio, pois assim é cabalmente reconhecível
sua eficácia, sendo seus efeitos irradiados sobre a comunidade, de tal sorte, que há uma tendência do princípio da dignidade da pessoa
humana predominar, quando se estiver em discussão a instrumentalização do homem ou suas condições mínimas de sobrevivência.
Dentre todos, confira: LOUREIRO, João Carlos Gonçalves. Direito à Identidade Genética do Ser Humano, in: Portugal-Brasil Ano 2000, Boletim da Faculdade de Direito,
Universidade de Coimbra, 1999, p. 263-389.
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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em face do exposto, torna-se possível traçar algumas ideias conclusivas, tomando como parâmetro a influência da dignidade da
pessoa humana no atual Estado Constitucional Democrático, sua natureza jurídica e a dificuldade de lhe estabelecer conteúdo mínimo.
A dignidade da pessoa humana tem se expandido gradualmente, a partir da Segunda Guerra Mundial, através da sua positivação
em documentos nacionais e internacionais, motivada, principalmente, nas atrocidades, injustiças e precarização da pessoa que podem
suceder com sua ausência ou perdição, uma vez que serve de lastro para os direitos humanos e fundamentais. Atualmente, percebe-se
certa tendência a universalização da dignidade, por ser considerada como valor ético e fundamental compartilhado por uma diversidade
de países do mundo ocidental.
A ordem jurídico-constitucional brasileira dispõe sobre a dignidade da pessoa humana expressamente no título dos princípios
fundamentais, atribuindo-a natureza de princípio jurídico e fundamental de direitos e deveres fundamentais, abrangendo uma norma e o
embasamento de posições jurídico-subjetivas e deveres fundamentais. O que representa um marco para o seu reconhecimento, realização
e promoção. Assim sendo, é de um todo útil e necessário desenvolver o alcance e significado da dignidade para não só se atingir uma
solução justa aos casos submetidos ao crivo dos juízes e Tribunais no Brasil, mas que também dê conta de garantir o pluralismo de valores
de uma comunidade democrática.
A jurisprudência produzida pelo STF, nos julgados colecionados, tenta, em alguns momentos, precisar uma compreensão
simplificada da dignidade humana. Assim, o que se observa é que, no Supremo Tribunal, há certo consenso em torno da matriz kantiana
como elemento nuclear da dignidade, visto que é típica sua menção ao indicar que toda pessoa é um fim em si mesma e que, por isso,
não pode servir como objeto para atender aos anseios de outro, sendo vedada a “coisificação do homem”.
A doutrina nacional também é assente quanto à matriz kantiana, porém vai além e, apesar de reconhecer a impossibilidade
de um conceito estritamente jurídico, tem buscado desenvolver uma compreensão aberta e em construção da dignidade da pessoa
humana. Com isso, também tem surgido algum consenso doutrinário em torno do mínimo existencial, pois, através deste, deve-se
assegurar condições materiais mínimas para uma vida física e psíquica digna, o que encontra suporte nos direitos sociais materialmente
fundamentais.
A proposta conceitual adotada nesta pesquisa foi a de Sarlet, porque, ainda que em construção, permite uma operacionalização da ideia aberta de dignidade no contexto histórico-cultural brasileiro, sem descuidar da compreensão da dignidade como qualidade
inerente a toda e qualquer pessoa; como sendo cada pessoa merecedora de igual reconhecimento, respeito e proteção pela comunidade;
e como limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade.
Em suma, cabe ainda destacar que, através da referida compreensão apresentada por Sarlet, pode-se fazer uso da dignidade
da pessoa como um argumento relevante na atuação de profissionais da área jurídica, sem negligenciar a pluralidade de valores de uma
sociedade justa e democrática, assim como obedecendo ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, pelo qual o Judiciário deve analisar
matéria submetida a sua apreciação.
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O PAPEL DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE DIFUSO
DE CONSTITUCIONALIDADE
Luiz Filipe Fernandes Carneiro da Cunha¹
RESUMO
A Constituição Federal define, no bojo do art. 52, X, a competência privativa do Senado Federal para suspender a execução,
no todo ou em parte, de lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em sede de
controle difuso de constitucionalidade. Parcela importante dos juristas pátrios tem sustentado uma nova perspectiva para a atribuição
senatorial, entendendo que a inserção dos institutos da súmula vinculante, da repercussão geral e da súmula impeditiva de recursos
no ordenamento jurídico brasileiro (resultado da tendência de jurisprudencialização do direito e do respeito ao precedente judicial), a
necessidade de salvaguarda dos princípios da força normativa e supremacia da Constituição e a inércia da Casa da Federação, quando
instada a desempenhar referido mandamento constitucional, ensejam a mutação do artigo 52, X, da Carta Magna, de forma a desencadear
a abstrativização dos efeitos do controle difuso de constitucionalidade. O presente artigo científico pretende analisar a citada mudança de
interpretação no âmbito do controle concreto, cuja finalidade é tornar o Senado Federal órgão apto tão somente a conferir publicidade
às decisões definitivas do Pretório Excelso, que, por sua vez, desde seus pronunciamentos, já possuiriam eficácia geral.
Palavras-chave: Senado Federal. controle difuso. mutação constitucional.
ABSTRACT
The Federal Constitution defines, in the midst of art. 52, X, the exclusive authority of the Federal Senate to suspend in whole or in
part the execution of any law or normative act declared unconstitutional by a final decision of the Supreme Court, when doing a
diffuse control of constitutionality. A significant portion of the national legal experts has sustained a new perspective to the senatorial
assignment, understanding that the inclusion of the institutes of the binding precedent, the general repercussion, the appeal-barring
summulas in the Brazilian legal system (as a result of the tendency to respect judicial precedent and the increased use of the jurisprudence
in our law system), the need to safeguard the principles of normative strength and supremacy of the Constitution and the inertia of
the House of Federation, when asked to play such constitutional law, causes the receivership mutation of the Article 52, X, of the
Constitution, in a manner that renders abstract the effects of diffuse control of constitutionality. This scientific article intend to analyze
the aforementioned change of interpretation regarding the concrete control of constitutionality, whose purpose is to make the Senate an
institutional body designed only to give publicity to the final decisions of the Supreme Court, which would possess overall effectiveness
since their pronouncements.
Keywords: Federal Senate. diffuse control. constitutional mutation.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo científico, intitulado “O papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade”, está inserido na
área do Direito Constitucional, surgindo com o desígnio de discutir os efeitos da declaração definitiva de inconstitucionalidade de lei ou
ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando instado a se pronunciar pela via concreta ou difusa.
Com efeito, na Constituição Federal de 1988, o art. 52, X, define a competência do Senado para suspender a execução, no todo ou em
parte, de lei declarada inconstitucional, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, quando em exercício do controle concreto
de constitucionalidade.
No que concerne à natureza constitucional da atribuição do Senado Federal de conferir eficácia geral às decisões em sede de
controle incidental, existe divergência doutrinária e jurisprudencial, notadamente se tal competência seria discricionária ou juridicamente
vinculada.
Os defensores da discricionariedade da capacidade suspensiva do Senado Federal afirmam que nem o art. 52, X da Lei
Fundamental nem muito menos o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal fazem alusão a qualquer prazo para o pronunciamento
da Casa da Federação.
¹Advogado. Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Pós-graduando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais - PUC/MG.
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Argumenta-se, ainda, que a intervenção do Senado Federal consiste em um mecanismo jurídico-político de atender à teoria
da separação dos poderes², posto que, na prática, suspender a execução de determinada norma consiste em revogá-la, competência tal
direcionada apenas a outra lei emanada do mesmo órgão legiferante, em privilégio ao princípio da simetria das formas jurídicas.
Contudo, restará demonstrado, na esteira do enunciado por respeitável parcela da doutrina pátria e em recentes entendimentos
de alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal e de outros Tribunais superiores, a plausibilidade da mutação constitucional do art. 52,
X, da Lex Mater, como forma de tornar a competência do Senado juridicamente vinculada, necessária apenas para conferir publicidade ao
decisum do Pretório Excelso, que já possuiria, desde seu gênesis, eficácia erga omnes.
2. O PAPEL DO SENADO FEDERAL, CONFORME A LITERALIDADE DO ART. 52, X, DA CONSTITUIÇAÕ FEDERAL
No escopo precípuo de sanar a incongruência existente na aplicação da doutrina norte-americana do judicial review em sistemas
carentes de stare decisis, as Constituições brasileiras, a partir da Carta de 1934, positivaram a competência do Senado Federal para
suspender a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, como forma de atribuir efeito
erga omnes às decisões prolatadas no controle de constitucionalidade.
Com efeito, a Constituição Federal proclama, no inciso X do art. 52 que, afora as funções típicas , compete privativamente ao
Senado:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
[...]
X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva
do Supremo Tribunal Federal;
Com isso, o constituinte de 1988 considerou que o Senado Federal, por ser o representante dos interesses dos Estados
da federação e histórico mediador da estabilização constitucional, seria o legítimo órgão congressual para exercer a competência de
suspensão de execução de lei ou ato normativo no controle difuso de constitucionalidade.
Embora a Constituição Federal tenha se referido apenas à lei, o melhor entendimento é aquele que advoga no sentido de que a
expressão legislativa sintoniza com o ato normativo de qualquer categoria (lei formal ou material) declarado inconstitucional por decisão
definitiva do Supremo Tribunal Federal.
Aliás, esse entendimento vem desde a Constituição de 1934, que previa a competência do Senado Federal para suspender a
execução de lei, ato, deliberação ou regulamento declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário .
A referida competência senatorial restringe-se às decisões proferidas pelo Pretório Excelso no âmbito do controle difuso de
constitucionalidade, não se aplicando, dessa forma, na sistemática de atribuição de efeitos do controle concentrado, conforme tese
inicialmente encampada pelo Ministro Thompson Flores.
Por outro lado, no que tange à natureza da atribuição senatorial de conferir eficácia geral às decisões em sede de controle
concreto, existe divergência doutrinária e jurisprudencial, notadamente se discricionária ou juridicamente vinculada.
Para a vertente da discricionariedade, cabe ao Senado Federal não apenas examinar o aspecto formal da decisão declaratória,
atestando se ela foi tomada por quorum suficiente e de forma definitiva, mas também analisar a conveniência da suspensão, em atinência
ao princípio republicano do checks and balances in government, insculpido no art. 2º da Constituição Federal.
Oportuno asseverar que o próprio Senado Federal já se recusou a conferir efeito erga omnes à decisão do Supremo Tribunal
Federal proferida no RE 150.764-1/PE, que declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da contribuição para o Finsocial.
Entretanto, respeitável parcela da doutrina pátria, além de recentes entendimentos de alguns Ministros do Supremo Tribunal
Federal e Tribunais superiores, vêm admitindo uma nova interpretação da competência senatorial expressa no art. 52, X, da Constituição
Federal.
Pelo relevante lastro argumentativo, cogente a análise pontual da proposição de mutação constitucional do art. 52, X, da
Constituição Federal, cujo objeto incide na tendência de abstrativização dos efeitos do controle difuso de constitucionalidade.
²A terminologia “separação dos poderes”, usada, historicamente, pela doutrina, é equivocada, porque, em verdade, o poder que resvala da soberania é uno e indivisível. O que
se reparte são as funções realizadas por esses poderes, de acordo com o que fora estipulado pela Constituição de cada país.
A rigor, o Poder Legislativo é o único ao qual a Constituição Federal atribuiu duas funções típicas, de igual relevância, a saber: a função de elaborar atos normativos primários
e a função de fiscalizar o Poder Executivo, sobretudo quando em exercício da atividade administrativa.
As Constituições de 1946 e 1967, inclusive com a Emenda n. 01/69, referiam-se à “lei ou decreto”.
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2 . MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ART. 52, X, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A cláusula que atribui ao Senado Federal a competência para suspender a execução de qualquer lei ou ato normativo declarado
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal faz parte da tradição constitucional brasileira, tendo sido consagrada desde a Constituição
de 1934.
Naquela oportunidade, o dispositivo que subordinava a eficácia geral das decisões do Supremo Tribunal Federal acerca da inconstitucionalidade das normas à resolução do Senado Federal foi alvo de diversas críticas.
Na Assembleia Constituinte que culminou com a promulgação da Constituição de 1934, o então Deputado Federal Godofredo Vianna
apresentou proposta de Emenda, no sentido de abstratizar os efeitos do controle difuso de constitucionalidade, quando o Supremo
Tribunal Federal se pronunciasse pela inconstitucionalidade de um mesmo dispositivo por duas vezes.
Não obstante a plausibilidade jurídica da tese exposta, a referida Emenda não foi acatada pela maioria dos parlamentares
constituintes, de modo que permanece até os dias atuais a competência senatorial de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Variados são os fundamentos que ensejam a guinada interpretativa da natureza da competência da Casa da Federação insculpida
no art. 52, X, da Lex Mater, dividindo-se em três perspectivas, a saber: legislativa, doutrinária e jurisprudencial.
O primeiro ensejo para a mutação constitucional proposta encontra-se na repercussão jurídica representada pela criação do
instituto da súmula vinculante e consequente inserção de mecanismos de respeito ao precedente judicial na Constituição Federal e no
Código de Processo Civil, resultado da tendência de jurisprudencialização do direito brasileiro (case-law method).
O art. 103-A, caput, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004 , assim dispõe:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois
terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que,
a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do
Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal,
bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
O instituto da súmula vinculante surgiu com o desiderato de reforçar a necessidade de unificação da interpretação do texto
constitucional ou legal, de maneira a garantir a aplicabilidade prática dos princípios da segurança jurídica, unidade da Constituição e
igualdade das decisões.
Por meio da edição de verbete de súmula, o Supremo Tribunal Federal pode conferir eficácia vinculante ao entendimento
sedimentado nas reiteradas decisões proferidas ao longo da atividade jurisdicional, sem afetar, diretamente, a vigência de leis declaradas
inconstitucionais no controle incidental.
O que se observa atualmente, em virtude da inserção de diversos dispositivos constitucionais e legais que conferem importância
ao precedente judicial, é que a súmula vinculante passa a deter, também, eficácia erga omnes, o que acaba por esvaziar o significado da
Resolução suspensiva do Senado Federal no controle concreto de constitucionalidade.
O efeito erga omnes gera consequências genuinamente processuais, impossibilitando que a questão decidida pelo Supremo
Tribunal Federal seja rediscutida por outro interessado em nova demanda, sendo consequência imanente das decisões em sede de
controle abstrato (v.g., ADI e ADC).
Enquanto isso, o efeito vinculante impõe obediência, por parte dos demais órgãos do Poder Judiciário e da administração
pública (direta ou indireta), nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal), para além da parte dispositiva do julgado do
Pretório Excelso, isto é, transcendendo seus motivos ou fundamentos determinantes.
Martins (2009, p. 337) assevera que o efeito vinculante circunscreve-se, igualmente, à ratio decidendi (fundamentos jurídicos
que embasam a decisão), projetando-se, por via de consequência, para além da parte dispositiva do julgamento, ante a possibilidade de
ser aplicada em outras situações análogas. Por isso, o entendimento de que o efeito vinculante seria um complemento à eficácia erga
omnes.
A eficácia erga omnes da súmula vinculante não advém de mandamento legal, mas sim da atual tendência de jurisprudencialização do direito e consequente consagração do precedente judicial como princípio, o que, de certa forma, aproxima o ordenamento jurídico
brasileiro, de índole eminentemente romano-germânica (civil law), ao sistema do common law anglo-saxão.
Importante destacar, todavia, que a mesma ratio que resultou na criação do instituto da súmula vinculante pela EC nº 45/04 é visualizada no art. 2º do Decreto n. 6.142/1876,
a partir do qual o Superior Tribunal de Justiça passou a deter a competência de editar assentos com força de lei, como forma de dirimir divergências sobre o alcance das normas
no âmbito do Poder Judiciário, ainda sob a vigência da vetusta Constituição de 1824.
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O método do case-law se encaixa perfeitamente no sistema do stare decisis, na medida em que, neste último, identificandose casos análogos já decididos no passado, torna-se possível extrair a regra de direito (ratio decidendi) que deverá ser utilizada como
parâmetro vinculante para a solução da situação em litígio (binding precedent).
É imanente ao case-law, e não haveria porque imaginar algo diverso com relação à valorização do precedente judicial, a
possibilidade de não aplicação da tese firmada na decisão anterior, com base na diversidade dos fatos no caso concreto (distinguising), ou
mesmo a superação do precedente diante de uma nova realidade jurídica ou fática (overruling).
Exemplo disso são as previsões para revisão e cancelamento das súmulas vinculantes, conforme o disposto no § 2.º do art.
103-A da Constituição Federal.
Aguilar (1998, p. 60), fulminando qualquer arguição de possível engessamento do Poder Judiciário, observa que, hodiernamente,
o Direito Constitucional já não é apenas o que prescreve o texto da Lei Maior, mas também, sobretudo, a bagagem de padrões
hermenêuticos desse bloco normativo, incorporado na jurisprudência da corte constitucional.
Portanto, não há que se falar em engessamento do Poder Judiciário, ou mesmo diminuição da liberdade do Magistrado para
proferir uma decisão judicial, uma vez que o próprio sistema de valorização do precedente prevê a possibilidade de superação, desde que
fundamentada, dos parâmetros da decisão paradigmática.
A comprovação prática de que a súmula vinculante define entendimento a ser seguido em diversos casos (espécie de eficácia
erga omnes), norteando a aplicação do texto constitucional ao sistema jurídico como um todo (treat like cases alike), é a previsão da súmula
impeditiva de recursos, cuja base teórica se encontra na transcendência dos motivos determinantes.
O art. 518, caput e § 1.º, e o art. 557, caput e § 1.º-A, ambos do Código de Processo Civil, assim prescrevem:
Art. 518. Interposta a apelação, o juiz, declarando os efeitos em que a recebe, mandará dar vista ao
apelado para responder.
§ 1. o O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com
súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado
ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo
Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.
§ 1.o-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência
dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao
recurso.
A aplicação do art. 518, § 1.º e do art. 557, § 1.º-A, dispositivos do Código de Processo Civil, mesmo que de forma tímida, denota
que o sistema jurídico está estruturado para conferir eficácia geral ao verbete de súmula vinculante, uma vez que prevê, como requisito
intrínseco de admissibilidade recursal (cabimento), a compatibilidade com o entendimento sumulado do Supremo Tribunal Federal, sob
pena de não conhecimento do recurso manejado.
Igualmente, vislumbra-se a valorização do precedente judicial na possibilidade de o relator do agravo contra decisão denegatória
de recurso especial ou extraordinário conhecer do agravo, para dar provimento diretamente ao recurso cujo seguimento foi negado, se
a decisão recorrida conflitar com súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça,
conforme o disposto no caput do art. 544, § 4.º, alíneas “b” e “c”, do Código de Processo Civil:
Art. 518. Interposta a apelação, o juiz, declarando os efeitos em que a recebe, mandará dar vista ao
apelado para responder.
§ 1. o O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com
súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado
ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo
Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.
§ 1.o-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência
dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao
recurso.
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Em outra oportunidade, o legislador infraconstitucional prevê, no caput do art. 285-A do Código de Processo Civil, a possibilidade
de prolação de decisão inaudita altera par em casos onde a petição inicial dispuser sobre matéria unicamente de direito e no Juízo já
houver sido proferida sentença de total improcedência em outras demandas idênticas, evidenciando, mais uma vez, a consagração do
princípio do precedente judicial e do método case-law de resolução de lides.
O caput do art. 285-A do Código de Processo Civil assim preleciona:
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida
sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida
sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
Ainda, o legislador infraconstitucional, ao positivar a inaplicabilidade do Reexame Necessário quando a sentença combatida
estiver em consonância com jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou em súmula do Pretório Excelso ou mesmo de qualquer
Tribunal Superior, proclama, novamente, a importância do respeito ao precedente judicial no ordenamento jurídico brasileiro.
O art. 475, caput, § 3.º, do Código de Processo Civil, prevê:
Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada
pelo tribunal, a sentença:
[...]
§ 3.º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência
do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior
competente.
Os exemplos de jurisprudencialização do direito pátrio definem a obrigatoriedade de respeito ao enunciado de súmula
vinculante ou jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de maneira a suprimir a necessidade de pronunciamento do Senado Federal
para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Pretório Excelso, no controle difuso de constitucionalidade.
Por oportuno, salutar a lição de Leonel (2001, p. 95):
O fortalecimento da jurisprudência sumulada tem trazido expansão da eficácia dos precedentes dos
tribunais superiores. São exemplos disso: (a) a possibilidade de o relator do agravo de instrumento negar
provimento a recurso que conflite com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal,
do STF, ou de tribunal superior; ou então dar provimento ao recurso se a decisão recorrida conflitar
com súmula ou jurisprudência dominante do STF, ou de tribunal superior (art. 557, caput, e respectivos
§1.º-A do CPC, redação dada pela Lei 9.756, de 17.12.1998); (b) a possibilidade de o relator do agravo
contra decisão denegatória de recurso especial ou extraordinário, no STF ou STJ, conhecer do agravo
para dar provimento diretamente ao recurso cujo seguimento foi negado, se a decisão recorrida conflitar
com súmula ou jurisprudência dominante do STF e do STJ (art. 544, § 4.º, II, “b” e “c”, do CPC, redação
dada pela Lei 12.322, de 09.09.2010); (c) dispensa do reexame necessário nos casos em que, mesmo
vencido o Poder Público, a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do STF ou em
súmula deste tribunal ou do tribunal superior competente (art. 475, § 3.º do CPC, acrescentado pela Lei
10.352, de 26.12.2011); (d) a possibilidade de o juiz negar seguimento a recurso de apelação quando
a sentença impugnada estiver amparada em súmula do STJ ou do STF (art. 518, § 1.º do CPC, redação
da Lei 11.276, de 07.02.2006.
Não só as decisões judiciais, mas também os atos emanados da administração pública, direta e indireta, das três esferas de
governo, devem se vincular ao mandamento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, tanto em virtude do caput do art. 103-A da
Constituição Federal, como pela possibilidade de interposição de Reclamação Constitucional ao Pretório Excelso.
Consoante o art. 7.º, § 1.º, da Lei n. 11.417/06, o ato administrativo, ou a omissão da administração pública, que contrarie súmula vinculante, só podem
ser alvo de Reclamação ao Supremo Tribunal Federal depois de esgotados os requerimento nas vias administrativas.
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O art. 103, caput e § 3.º, da Constituição Federal, assim disciplina:
Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
[...]
§ 3.º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente
a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato
administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou
sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
Como se vê, eventual entendimento acerca da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, se considerado reiteradas vezes
em sede de controle difuso no Supremo Tribunal Federal, pode vir a ser sumulado, o que teria o condão de conferir eficácia vinculante e
geral à inconstitucionalidade atinada, mesmo antes da publicação de qualquer Resolução suspensiva do Senado Federal, o que denota a
obsolescência da atribuição da Casa da Federação, disposta no art. 52, X, da Lex Mater.
Entendendo que a súmula vinculante possui, também, eficácia geral, expõe Mendes (2010, p. 1252):
Desde já, afigura-se inequívoco que a referida súmula conferirá eficácia geral e vinculante às decisões
proferidas pelo Supremo Tribunal Federal sem afetar diretamente a vigência de leis declaradas inconstitucionais no processo de controle incidental. E isso em função de não ter sido alterada a cláusula
clássica, constante do art. 52, X, da Constituição, que outorga ao Senado a atribuição para suspender a
execução de lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
E conclui:
Não resta dúvida de que a adoção de súmula vinculante em situação que envolva a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo enfraquecerá ainda mais o já debilitado instituto da suspensão
de execução pelo Senado. É que essa súmula conferirá interpretação vinculante à decisão que declara
a inconstitucionalidade sem que a lei declarada inconstitucional tenha sido eliminada formalmente do
ordenamento jurídico (falta de eficácia geral da decisão declaratória de inconstitucionalidade). Tem-se
efeito vinculante da súmula, que obrigará a Administração a não mais aplicar a lei objeto da declaração
de inconstitucionalidade (nem a orientação que dela se dessume), sem eficácia erga omnes da declaração
de inconstitucionalidade.
Moraes (2002, p. 715), defensor da discricionariedade, arremata, admitindo que o exercício da competência extraída do art. 52,
X, da Constituição Federal não será mais necessária, tendo em vista a inserção da súmula vinculante pela EC nº 45/04 e a consequente
formalização da sistemática de respeito ao precedente judicial:
Não será mais necessária a aplicação do art. 52, X, da Constituição Federal – cuja efetividade, até
hoje, sempre foi reduzidíssima –, pois, declarando incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo do Poder Público, o próprio Supremo Tribunal Federal poderá editar Súmula sobre a validade,
a interpretação e a eficácia dessas normas, evitando que a questão controvertida continue a acarretar
insegurança jurídica e multiplicidade de processos sobre questão idêntica.
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Assim, os verbetes com efeito vinculante e eficácia geral não podem ser considerados meras fontes secundárias do direito,
mas, sobretudo, devem ser visualizadas como fontes principais, uma vez que alteram diretamente nosso ordenamento jurídico positivo,
estabelecendo condutas de observância obrigatória para toda a administração pública e para o próprio Poder Judiciário.
A Emenda Constitucional n. 45/04 originou outro azo legislativo que, conjuntamente com a súmula vinculante, tenciona
modificar a interpretação ortodoxa atribuída ao art. 52, X, da Constituição Federal, qual seja: o instituto da repercussão geral.
O art. 102, § 3.º da Lei Fundamental positiva um dos requisitos intrínsecos de admissibilidade recursal , tornando obrigatória a
demonstração da repercussão geral das questões constitucionalmente discutidas no recurso extraordinário.
Embora tenha sido introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Emenda Constitucional n. 45/04, foi apenas a Lei n.
11.418/06 que a regulamentou, inserindo os artigos 543-A e 543-B no Código de Processo Civil.
No próprio Supremo Tribunal Federal, a repercussão geral é prevista no art. 322 do Regimento Interno, com redação dada pela
Emenda Regimental n. 21, de 30.04.2007.
A repercussão geral possui significado amplo, consubstanciando-se na exigência de que o recorrente demonstre a relevância
da questão constitucional veiculada no recurso extraordinário, sob o prisma econômico, político, social ou jurídico, a fim de ensejar o
conhecimento do recurso pelo Supremo Tribunal Federal, em razão do superior interesse da preservação do direito objetivo.
Nesse sentido, assim prescreve o art. 543-A, caput e § 3.º do Código de Processo Civil:
Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário,
quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
[...]
§ 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou
jurisprudência dominante do Tribunal.
Por sua vez, o caput do art. 543-B do Código de Processo Civil define a forma de resolução de idênticas controvérsias:
Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário,
quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.
[...]
§ 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou
jurisprudência dominante do Tribunal.
A exegese de tal dispositivo consiste em permitir que os recursos extraordinários selecionados pelo juízo de origem sirvam de
paradigma a respeito da existência, ou não, de repercussão geral acerca da questão constitucional discutida nos recursos repetitivos,
devidamente sobrestados.
Com efeito, apregoa o § 2.º do art. 543-B:
§ 2.º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
Por outro lado, reputada existente a repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal poderá negar provimento ao recurso
extraordinário ou dar-lhe provimento.
No primeiro cenário, o § 3.º do art. 543-B dispõe:
§ 3.º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos
Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou
retratar-se.
Os outros requisitos intrínsecos para a interposição do recurso extraordinário são: cabimento, legitimidade recursal, interesse recursal e inexistência de
fato extintivo ou impeditivo do direito.
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Assim, os recursos extraordinários que se encontram sobrestados no Juízo de origem poderão ser considerados prejudicados,
uma vez que, em se tratando de recursos similares e havendo pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, não se
justifica a remessa dos autos àquela Corte, para que seja proferida decisão de idêntico teor.
Na segunda hipótese, pode o órgão de origem retratar-se da decisão proferida em sentido contrário a do Supremo Tribunal
Federal (art. 543-B, § 3.º). Não o fazendo, os recursos extraordinários sobrestados deverão ser remetidos ao Pretório Excelso, que poderá
cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada nos recursos extraordinários paradigmas.
Nessa toada, percebe-se que o recurso extraordinário passou de uma via recursal de ponderação de interesses subjetivos para
assumir um papel de defesa da ordem constitucional objetiva, podendo repercutir na esfera jurídica de diversos jurisdicionados.
A objetivação do recurso extraordinário condiz com o papel constitucionalmente atribuído ao Supremo Tribunal Federal, qual
seja: preservar e interpretar as normas da Constituição Federal, uniformizando os entendimentos contrários.
Com efeito, as decisões do Supremo Tribunal Federal, mesmo no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, despontam
como paradigmáticas, devendo ser seguidas pelos demais tribunais da federação.
Cabe ao Pretório Excelso, assim, a última palavra sobre a controvérsia constitucional, sendo incoerente e desnecessária a espera
da manifestação política do Senado Federal para que, só então, a decisão, no controle concreto de constitucionalidade, possua eficácia
erga omnes.
Portanto, o Supremo Tribunal Federal possui, além da já aclamada súmula vinculante, o mecanismo da repercussão geral para
definir as balizas de determinada questão constitucional relevante, independentemente de qualquer manifestação do Senado Federal, o
que torna obsoleta a ratio da competência estampada no art. 52, X, da Constituição Federal.
Outro argumento para a mutação constitucional encontra-se no controle de constitucionalidade das ações coletivas (v.g.
mandado de segurança coletivo, ação coletiva ou ação civil pública), em que a decisão do Supremo Tribunal Federal, mesmo proferida
incidentalmente, repercute na esfera jurídica de vários indivíduos, sendo difícil justificar a necessidade de comunicação ao Senado Federal
da decisão proferida, a não ser para apenas dar-se publicidade à mesma.
Desse modo, certo que o Supremo Tribunal Federal vem se firmando, paulatinamente, como o legítimo guardião da Constituição,
cabendo a ele, e tão somente a ele, decidir o sentido e a interpretação das questões constitucionais, por razões que tendem a modificar
a interpretação do art. 52, X, da Constituição Federal.
A polêmica acerca do papel do Senado Federal na atual configuração do controle de constitucionalidade no Brasil vem sendo
travada, também, pelo Supremo Tribunal Federal, principalmente a partir da Reclamação Constitucional 4335-5/AC, cujo relator é o
Ministro Gilmar Ferreira Mendes.
No julgamento do Habeas Corpus 82.959/SP, conhecido como “Caso Oséas”, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Melo, o
Supremo Tribunal Federal, aparentemente, conferiu efeito erga omnes à decisão proferida em um processo constitucional subjetivo,
deixando consolidada a inconstitucionalidade, com eficácia geral, do § 1.º, do art. 2.º, da Lei n. 8.072/90, que proibia a progressão de
regime aos condenados por crime hediondo, por estar em dissonância com o art. 5.º, XLVI, da Constituição Federal.
Na verdade, o Pretório Excelso não estava decidindo o caso concreto, mas a constitucionalidade do dispositivo que impunha o
cumprimento da pena, no caso da prática de crimes hediondos, em regime integralmente fechado.
Todavia, ainda vigora no Brasil o ortodoxo e incongruente entendimento de que a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal
Federal, em sede de controle difuso de constitucionalidade, possui apenas eficácia inter partes, carecendo de pronunciamento discricionário
do Senado Federal para alcançar a eficácia erga omnes.
3 . MANUTENÇÃO DO EQUILÍBRIO DO SISTEMA DE CHECKS AND BALANCES
A mutação constitucional nada mais é do que a alteração semântica de determinado preceito da Constituição sem operar-se a
adulteração do corpo do dispositivo, em decorrência de modificações no prisma hitórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza
a aplicação.
Em lição preciosa, Hesse (2009, p. 151) assim define o fenômeno da mutação constitucional:
Tanto o Tribunal Constitucional Federal como a doutrina atual entendem que uma mutação constitucional
modifica, de que maneira for, o conteúdo das normas constitucionais de modo que a norma, conservando
o mesmo texto, recebe um significado diferente.
Portanto, em alguns casos, os vocábulos da norma conservam-se imutáveis ao longo dos tempos, mas a sua acepção sofre um
processo de corrosão, ou, melhor dizendo, enriquecimento, através da interferência de fatores diversos que vêm amoldar a letra da lei a
um novo espírito, inovando a direção dos enunciados jurídicos.
Os princípios da certeza e segurança jurídica estariam comprometidos se os aplicadores do direito, em nome da abertura e da
riqueza semântica dos enunciados normativos, pudessem atribuir-lhes qualquer significado, à revelia dos cânones hermenêuticos e do
comum sentimento de justiça.
Nesse ínterim, sob pena de instauração de espécie de “ditadura do Poder Judiciário”, é imprescindível o estabelecimento de
parâmetros objetivos de controle e racionalização da interpretação constitucional.
Entrementes, uma teoria jurídica sobre os limites da mutação constitucional só é possível com o sacrifício dos pressupostos
metódicos básicos do positivismo, sustentado na estrita separação entre Direito e realidade, assim como na rejeição de qualquer
consideração histórica e filosófica do processo de argumentação jurídica.
Destarte, quando a guinada interpretativa impossibilitar a compreensão lógica do texto constitucional ou quando aparecer em
LEXMAX - revista do advogado
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clara contradição com a literalidade do dispositivo, impossível e ilegítima a mutação constitucional intencionada.
Nesse sentido, Hesse (2009, p. 151) afirma que o limite da mutação constitucional é a própria força normativa da Constituição.
Qualquer coisa além disso representará quebra da ordem constitucional ao invés de modificar a interpretação do texto:
Tudo o que se situe mais além dessas possibilidades já não será mutação constitucional, e sim quebra
constitucional ou anulação da Constituição. Pode ser que de fato se imponham ‘os acontecimentos
históricos que transformaram os fundamentos do Estado fora do Direito’, as usurpações, e as revoluções.
Isto nenhuma teoria dos limites da reforma constitucional ou da mutação constitucional poderá impedir.
Porém, dentro do estrito âmbito aqui demarcado, assegura-se melhor a defesa da Constituição diante
de perigos de ‘mutações constitucionais’ ilimitadas do que pela renúncia prévia, explícita ou implícita à
elaboração de limites que possam ser respeitados na prática. Disso é que se trata, e não de uma – talvez
não intencional – legitimação dos fatos consumados.
Diante dessas premissas, certo é que a mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal não impede sua compreensão
lógica, em razão de permanecer a atribuição do Senado Federal de suspender a execução de lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
O que há, de concreto, é apenas e tão somente a mudança da natureza da competência do Senado Federal, que passará de
essencialmente política e discricionária para juridicamente vinculada, necessária para conferir publicidade à decisão do Supremo Tribunal
Federal no controle difuso de constitucionalidade.
De outro lado, a mutação constitucional indicada não representa contradição ao texto da norma objeto da guinada interpretativa,
uma vez que o art. 52, X, da Constituição Federal não nos remete, em nenhum momento, à discricionariedade da competência do Senado,
se omitindo em relação a tal questionamento.
Em verdade, os defensores do caráter discricionário da competência do Senado Federal se baseiam em uma leitura histórica da
Constituição, embasada no respeito à teoria da separação dos Poderes (em sua conotação rígida) e consequente preservação do equilíbrio
do sistema de checks and balances, positivado como cláusula pétrea no art. 60, § 4.º, III, da Constituição Federal.
Lastreiam-se, ainda, na infiel percepção sobre o real significado do ativismo judicial, vislumbrando-o, erroneamente, como
mecanismo de usurpação da competência do Senado Federal, em virtude da suposta hipertrofia do Supremo Tribunal Federal e
consequente atrofia do Poder Legislativo.
O ativismo judicial, no entanto, é fenômeno amplo, inserido dentro da perspectiva do neoconstitucionalismo e do pós-positivismo por encontrar vínculo com a força normativa da Constituição, com a expansão da jurisdição constitucional e com o desenvolvimento
de uma nova dogmática da interpretação constitucional.
Decerto que o ativismo judicial encontra respaldo na flexibilização da teoria da separação dos Poderes, ao passo que permite
que o Supremo Tribunal Federal exerça a guarda da Constituição, sem, com isso, deturpar as competências constitucionais direcionados
ao Poder Legislativo.
Não se está consagrando, com isso, a desnecessidade de existência do Senado Federal, órgão que, ao longo de quase duzentos
anos, posicionou-se como mediador da estabilização constitucional brasileira, representando a voz dos Estados da federação nas questões
de relevo nacional. O que ocorre, de fato, é que a competência haurida do art. 52, X, da Constituição Federal precisa ser reinterpretada,
face às modificações legislativas e jurisprudenciais ocorridas recentemente no Brasil.
Aliás, insta ressaltar que o art. 60, § 4.º, III, da Constituição Federal proíbe qualquer mudança “tendente a abolir” a separação
dos poderes, o que não impede a variação de interpretação sobre a natureza de dada competência do Senado Federal.
Assim, não se pode falar que a mutação constitucional do art. 52, X, da Lei Fundamental tende a abolir a cláusula pétrea
estampada no art. 60, § 4.º, III, da Constituição Federal, em razão de apenas alterar a natureza da competência do Senado Federal, o que,
obviamente, não viola, de forma alguma, a independência entre os Poderes Judiciário e Legislativo.
Apesar da legalidade e possibilidade jurídica da mutação constitucional do art. 52, X, da Constituição Federal, não se sabe, ao
certo, se o Senado Federal entenderá tal mudança como uma intromissão do Supremo Tribunal Federal, o que poderia desaguar em uma
crise institucional entre os Poderes da República, ou se a Casa da Federação aceitará a modificação da natureza de sua competência no
âmbito do controle difuso de constitucionalidade.
A análise da possível reação do Senado Federal à mutação do art. 52, X, da Carta Magna não pode ser realizada ao arrepio do
contexto em que se inseriu o Supremo Tribunal Federal hodiernamente, qual seja, ator secundário do processo legislativo, ante a ausência
de produção legiferante do Congresso Nacional como um todo.
O que se observa, há de se ressaltar, é que o Supremo Tribunal Federal vem assumindo posições originariamente conferidas pelo
legislador constituinte ao Senado Federal, seja pela desídia do órgão legislativo em exercer suas competências legais, seja pelas mudanças
fáticas e jurídicas ligadas a mutações constitucionais.
Além da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, observa-se a atuação positiva do Supremo Tribunal
Federal no julgamento do Mandado de Injunção n. 670, onde restou consolidado o direito de greve dos servidores públicos civis, em que
pese a inexistência de lei regulamentadora.
Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que o direito fundamental de greve, constitucionalmente
garantido no art. 9º, §1.º, da Constituição Federal, não poderia deixar de ser respeitado em virtude, unicamente, da mora legislativa em
regulamentar o dispositivo de eficácia contida, cabendo ao Supremo Tribunal Federal “legislar” sobre o tema, o que seria, teoricamente,
função típica do omisso e inerte Poder Legislativo.
Não obstante a ausência de debate, entre os senadores, sobre a abstrativização dos efeitos do controle difuso de constitu52
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cionalidade, a reação do Senado Federal à mutação constitucional do art. 52. X, da Lex Mater poderá desencadear uma crise entre os
Poderes Judiciário e Legislativo, diante da recente tendência de atuação positiva do Supremo Tribunal Federal em matérias de cunho
eminentemente congressual (v.g., APDF n. 54 e MI n. 670), como também pode, ao revés, significar a ratificação e consolidação dessa
tendência.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No desiderato primevo de sanar a incongruência existente na aplicação da doutrina norte-americana do judicial review of
legislation em ordenamentos carentes de stare decisis, as Constituições brasileiras, a partir da Carta de 1934, positivaram a competência
do Senado Federal para suspender a execução da lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, como
forma de atribuir eficácia geral às decisões prolatadas no controle difuso de constitucionalidade, o que está previsto no inciso X do art.
52 da ordem constitucional atual.
Como visto, no que tange à natureza da atribuição senatorial de conferir eficácia geral às decisões em sede de controle concreto,
existe divergência doutrinária e jurisprudencial, notadamente se tal atribuição deve ser exercida de forma discricionária ou vinculada.
Os defensores da discricionariedade da competência suspensiva da Casa da Federação asseveram que nem o art. 52, X, da Lei
Fundamental, nem muito menos o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal fazem alusão a qualquer prazo para o pronunciamento
senatorial.
Tal vertente sustenta que a intervenção do Senado Federal consiste em um mecanismo jurídico-político de atender à teoria
da separação dos poderes, posto que, na prática, suspender a execução de determinada norma consiste em revogá-la, competência tal
direcionada apenas a outra lei emanada do mesmo órgão legiferante, em privilégio ao princípio da simetria das formas jurídicas.
Contudo, respeitável parcela da doutrina pátria, além de recentes julgados do Supremo Tribunal Federal e Tribunais superiores
vêm admitindo uma nova interpretação da competência senatorial expressa no art. 52, X, da Lex Mater.
Pela mutação constitucional proposta, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão
definitiva de que a lei ou ato normativo é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal,
para que, tão somente, haja a publicação do teor do decisum no Diário do Congresso.
O que se observa atualmente, em virtude da inserção de diversos dispositivos constitucionais (arts. 103-A e 103, caput, § 3.º,
da Constituição Federal) e legais (arts. 285-A, 475, caput, § 3.º, 518, caput, § 1.º, 544, § 4.º, “a” e “b” e 557, caput, § 1.º-A, do Código de
Processo Civil) que conferem importância ao precedente judicial (processo de jurisprudencialização do direito nacional), é que a súmula
vinculante passa a deter, também, eficácia erga omnes, o que acaba por esvaziar o significado da Resolução suspensiva do Senado Federal
no controle concreto de constitucionalidade.
Isso porque eventual entendimento acerca da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, se considerado reiteradas vezes
em sede de controle difuso no Supremo Tribunal Federal, pode vir a ser sumulado, o que teria o condão de conferir eficácia vinculante e
geral à inconstitucionalidade atinada, mesmo antes da publicação de qualquer Resolução suspensiva do Senado Federal, o que denota a
obsolescência da atribuição da Casa da Federação, disposta no art. 52, X, da Carta Magna.
Ainda, percebe-se que o recurso extraordinário passou de uma via recursal de ponderação de interesses subjetivos para assumir
um papel de defesa da ordem constitucional objetiva (objetivação do recurso extraordinário), podendo repercutir na esfera jurídica de
diversos jurisdicionados (arts. 543-A e; 543-B, do Código de Processo Civil), fato que contribui para o firmamento da posição do Supremo
Tribunal Federal como legítimo guardião e intérprete da Constituição Federal.
Ademais, no caso do art. 52, X, da Constituição Federal, plausível a atuação positiva do Supremo Tribunal Federal no afã de
garantir a aplicabilidade dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados (força normativa da Constituição), que
não podem esperar eternamente pela publicação de Resolução suspensiva no Diário do Congresso.
Com efeito, a mutação constitucional indicada não representa contradição ao texto da norma objeto da guinada interpretativa,
uma vez que o art. 52, X, da Constituição Federal não nos remete, em nenhum momento, à discricionariedade da competência do Senado,
omitindo-se em relação a tal ponto.
O que há, de fato, é apenas a mudança da natureza da competência do Senado Federal, que passará de essencialmente política
e discricionária para juridicamente vinculada, necessária para conferir publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal no controle
difuso de constitucionalidade.
Não se está consagrando, com a mutação constitucional e consequente abstrativização dos efeitos do controle difuso de constitucionalidade, a desnecessidade de existência do Senado Federal, órgão que, ao longo de quase duzentos anos, posicionou-se como
mediador da estabilização constitucional brasileira, representando a voz dos Estados da federação nas questões de relevo nacional. O que
ocorre, em verdade, é que a competência insculpida do art. 52, X, da Constituição Federal precisa ser reinterpretada, face às modificações
legislativas e jurisprudenciais ocorridas recentemente no Brasil.
Por outro lado, a possível reação do Senado Federal à mutação do art. 52, X, da Carta Magna deve ser vislumbrada no contexto
em que o Supremo Tribunal Federal está inserido hodiernamente, qual seja, ator secundário do processo legislativo, ante a ausência de
produção legiferante do Congresso Nacional como um todo.
Os entendimentos apontados e os ensejos da mutação constitucional estudada permitem concluir que o art. 52, X, da
Constituição Federal merece ser reinterpretado, de maneira a tornar a competência do Senado Federal vinculada, necessária para conferir
publicidade à decisão do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade, o que, de maneira alguma, apequena a
valiosa contribuição da Casa da Federação na sistemática de estabilização e mediação constitucional brasileira.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DA NECESSIDADE DA ADOÇÃO DA TESE DO DOLO EVENTUAL NOS CRIMES DE
TRÂNSITO PRATICADOS POR CONDUTOR ALCOOLIZADO
José Afonso Oliveira¹
Magnolia dos Anjos²
RESUMO
Este trabalho visa analisar a necessidade de adoção de posturas mais enérgicas em relação aos crimes de trânsito praticados
por condutores alcoolizados, tendo como principal meio para tal, a adoção da teoria do dolo eventual nos sinistros ocorridos nestas
circunstancias. Para tanto, no desenvolvimento deste artigo há de se usar o método de abordagem dedutivo, método este que considera
que a conclusão está implícita nas premissas: se o raciocínio dedutivo for válido e as premissas forem verdadeiras, a conclusão não pode ser
mais nada senão verdadeira; como técnica de pesquisa, utilizou-se a documentação indireta através de pesquisa bibliográfica de doutrina,
revistas especializadas e de notícias em geral, artigos científicos, jurisprudência e sites da Internet. O estudo em epígrafe constitui-se
de investigação bibliográfica, mesclando caracteres teóricos como conceituação dos tipos definidos como crime pelo CTB, bem como a
diferenciação pela doutrina das teorias do dolo eventual e da culpa consciente, e práticos trazendo análise jurisprudencial com um maior
enfoque em julgados recentes que demonstram a necessidade atual real de se criarem mecanismos que inibam a ocorrência de tantos
acidentes como se observa na prática dia após dia país afora. Como resultado prático, observou-se que, em virtude do crescimento
vertiginoso de ocorrências envolvendo motoristas alcoolizados, indispensável se faz a criação de uma legislação mais rígida no que tange
a crimes de trânsito praticados por condutor alcoolizado e que visem a resguardar os direitos dos cidadãos, protegendo-os da constante
ameaça de dano que existe, quando se enfrenta o trânsito no Brasil.
Palavras-chave: crimes de trânsito. condutores alcoolizados. dolo eventual. legislação mais rígida.
ABSTRACT
This paper aims to examine the need to adopt stronger positions in relation to traffic offenses committed by drunk drivers, the
main means to this, the adoption of eventual intention theory in claims occurred in these circumstances. Therefore, the development of
this article is to use the deductive method of approach, method that it believes that the conclusion is implicit in the assumptions: the
deductive reasoning is valid and the premises are true, the conclusion can’t be anything but true; as research technique, used the indirect
documentation through literature doctrine, journals and news in general, scientific articles, case law and websites. The study referred to
above consists of bibliographic research, combining theoretical conceptualization of characters as types defined as a crime by the CTB,
as well as differentiation by the doctrine of theories of possible fraud and conscious guilt, and practical bringing jurisprudential analysis
with a greater focus on Recent judged that demonstrate the real current need to create mechanisms that inhibit the occurrence of many
accidents as observed in practice day after day across the country. As a practical result, it was observed that, given the rapid growth of
occurrences involving drunk drivers, essential to make the creation of a more strict legislation in regard to traffic offenses committed by
drunk driver and aimed to protect the rights of citizens protecting them from the constant threat of damage exists when facing traffic in.
Keywords: traffic crimes. drunk drivers. eventual intention. tougher legislation.
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por escopo analisar a possibilidade de aplicarem-se, com maior rigidez, as leis de trânsito, em especial, nos
crimes cometidos por motorista que guia seu veículo após fazer uso de bebida alcoólica, apresentando entendimentos que os façam ser
imputados nas tenazes da lei referentes aos criminosos que hajam com o chamado dolo eventual.
Com toda a mídia alertando sobre os perigos relacionados à direção após a ingestão de álcool, não faz mais sentido se alegar
que não houve intenção no ocorrido, ou que simplesmente não era possível se preverem os resultados gravosos; hodiernamente virou
até jargão popular os dizeres: “se for beber, não dirija e, se for dirigir, não beba”.
Comumente ocorrem tragédias no trânsito, por todo o país, sendo que a quase totalidade desses acontecimentos se dá por
conta deste binômio: bebida + direção, no entanto a Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, o chamado Código de Trânsito Brasileiro
(CTB), que regula o trânsito no país e que deveria criar mecanismos para controlá-lo, inibindo o enorme número de vítimas fatais,
mostra-se bastante paternalista em relação aos agentes causadores dos sinistros.
É de se destacar o art. 302 do citado Código, que tipifica o “homicídio culposo na direção de veículo”, sendo esse o único artigo
do Código inteiro que versa sobre a prática de homicídio no trânsito.
Face aos acontecimentos cotidianos, não se pode deixar passar despercebido o crescimento vertiginoso das tragédias ocasionadas
por acidentes de trânsito, mais especificamente aqueles em que o autor do fato guiava seu veículo sob o efeito de álcool, mesmo sabendo
não ter condições para tal e mesmo sendo alertado por todos os meios de comunicação possíveis: televisão, rádio, outdoor’s, adesivos
em locais estratégicos, todos alertam com aquele jargão citado anteriormente, mas, ainda assim, as pessoas continuam seu intento e
mantém-se na direção ocasionando, cada vez mais, barbáries país afora.
Diante de tal situação, o presente trabalho visa a demonstrar razões fáticas e de Direito, com o fim de propor um novo
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entendimento acerca do processo e julgamento de crimes de homicídio no trânsito, cometido por motoristas embriagados, que, em tese,
assumiram o risco por sua conduta em detrimento da vida de cidadãos inocentes.
Tendo em vista o caráter preventivo das normais penais brasileiras e, consoante a ampla campanha de conscientização, por que
ainda considerar como culposo um incidente de trânsito envolvendo um agente embriagado?
Utilizar-se-á a como metodologia de abordagem a dedutiva, que é compreendido como aquele que tem como ponto de partida
uma verdade geral, para chegar a uma conclusão particular. Essas premissas são princípios que devem ser compreendidos como verdades,
para que venham a possibilitar a formalização de conclusões, que se fundamentam apenas na lógica particular desse método; como
método de procedimento, será utilizado o método monográfico, e como técnica de pesquisa, será utilizada a documentação indireta
através de pesquisa bibliográfica de doutrina, revistas especializadas e de notícias em geral, artigos científicos, jurisprudência e sites da
Internet.
Este trabalho analisará, de forma detida, a possibilidade, bem como as consequências de uma mudança na forma de se encarar
os crimes de trânsito e a forma de julgá-los, tornando mais rígidas suas penas, com o fito de fazer cessar o aumento do número dos casos
assim enquadrados.
2. DA APLICAÇÃO DA TEORIA DO DOLO EVENTUAL NOS CRIMES DE TRÂNSITO PRATICADOS POR CONDUTOR ALCOOLIZADO
A revista Veja, edição de 07 de agosto de 2013, estampou em sua capa a matéria denominada: “Assassinos ao volante: as mortes
no trânsito no Brasil já superam os crimes de homicídio”, em que divulgou os dados de uma pesquisa exclusiva onde ficou constatado que
o Brasil tem a quinta maior taxa de mortes no trânsito do Planeta, no entanto, se fossem considerados as estatísticas do DPVAT (Danos
Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre - o seguro obrigatório de veículos) no mesmo período, o país saltaria para
a primeira posição.
Essa pesquisa trouxe à tona uma realidade que já podia ser observada nas pequenas cidades, sem muito esforço: hoje, os
motoristas brasileiros matam mais que os assassinos. Foram 60.752 mortos só em 2012.
Para ilustrar quão assombrosos são esses dados, a revista fez uma comparação entre esse número de vítimas e as vítimas de
outros eventos e observou-se que o trânsito no Brasil matou, em um ano, tanto quanto a guerra civil na Síria nos últimos 20 meses, ou
que a Guerra do Iraque em 3 anos, ou ainda que a Guerra do Vietnã em 16 anos.
O ato de dirigir embriagado é fator preponderante para que esse número de cresça cada vez mais e gere tantas vítimas fatais,
no entanto o Código Penal (CP), em seu art. 28, §§ 1º e 2º, preceitua ser isento de pena, ou pelo menos tem sua pena reduzida o agente
que vem a se embriagar por um caso fortuito, ou por força maior, porém há sempre que se verificar o quantum dessa embriaguez, bem
como o nível de culpabilidade do agente no fato, conforme se depreende de entendimento do STJ:
[…] Sabe-se que a embriaguez – seja voluntária, culposa, completa ou incompleta – não afasta a
imputabilidade, pois no momento em que ingerida a substância, o agente era livre para decidir se devia
ou não fazê-lo, ou seja, a conduta de beber resultou de um ato livre (teoria da actio ). Desse modo, ainda
que o paciente tenha praticado o crime após a ingestão de álcool, deve ser responsabilizado na medida
de sua culpabilidade. […] (STJ, 6ª Turma, HC 180.978/MT, Rel. Min. Celso Limongi, 09 fev. 2011.)
Imputável é quem tem a capacidade de entender e de querer o que faz assim responde por seus atos, enquanto que inimputável
é a pessoa inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito de seu fato sendo, portanto, isenta de pena.
Entretanto existem casos em que o agente, pretendendo um resultado delituoso, vem, por exemplo, a embriagar-se para adquirir
a coragem necessária ao cometimento do crime. Nessa hipótese, o agente é livre na causa antecedente ao fato, assim, ainda que durante
a prática do delito fosse considerado inimputável, ele será responsabilizado integralmente por sua conduta, pois a constatação de sua
imputabilidade será transferida para o momento anterior, essa é a chamada teoria da actio libera in causa.
O exemplo clássico de aplicação da teoria da actio libera in causa é o da embriaguez preordenada, em que o agente, com o
fim precípuo de cometer crime, embriaga-se para buscar coragem suficiente para a execução do ato, ou ainda para eximir-se da pena,
colocando-se em estado de inimputabilidade. Nesse caso, é expresso o dolo do agente em relação ao ato criminoso, configurando a
embriaguez o primeiro elo na cadeia de eventos que conduz ao resultado antijurídico, ainda que meramente preparatório.
É senso comum que as frágeis leis que regem o trânsito são responsáveis diretas por esses números. Os condutores, mesmo
sabendo estarem agindo ao arrepio da lei, não se sentem inibidos em suas práticas criminosas, por terem a certeza da impunidade, ou de
que mesmo que sejam pegos em flagrante, não sofrerão consequências mais graves em virtude das mirradas penas cominadas.
A necessidade de uma legislação mais incisiva com os agentes que “coisificam” a vida humana é premente hoje e, diante da realidade aqui
apresentada, faz-se necessária e de extrema pertinência.
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2.1 Das consequências da direção sob efeito de álcool
A conduta de quem dirige seu veículo automotor sob efeito de álcool ou outra substância de efeito análogo é tipificada no artigo
306 do Código de Trânsito Brasileiro como crime de embriaguez ao volante, que tem pena de detenção de 06 meses a 03 anos, multa e
suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
De acordo com a matéria veiculada pela Veja (2013), em 21% dos acidentes, pelo menos um dos condutores havia bebido,
representando o ato de dirigir alcoolizado a segunda maior causa de acidentes de trânsito no país.
Ainda de acordo com o CTB, constatar-se-á que o condutor dirigia seu veículo sem as condições ideais se ele apresentar
concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar
alveolar, ou ainda se apresentar sinais que indiquem alteração psicomotora.
Geralmente essa quantidade de álcool no organismo é aferida mediante o uso do chamado bafômetro, ou etilômetro, que
é um aparelho que permite determinar a concentração de bebida alcoólica em uma pessoa, analisando o ar exalado dos pulmões,
entretanto, lançando mão do princípio constitucional de que ninguém será obrigado a produzir provas contra si, muitos dos que trafegam
embriagados se recusam a fazer o teste do bafômetro, dificultando as investigações e evitando sua punição.
Na já citada matéria de Veja (2013) a ineficiência do poder público na aplicação das leis, aliada à inclinação natural de todo
brasileiro de burlar as regras, é apresentada como primeiro problema o qual resulta num número tão alto de mortes no trânsito.
Sem o uso do bafômetro ou de outros meios que venham a provar se o suposto condutor estava ou não embriagado, o
julgamento de casos desse tipo transforma-se em mero bate-boca, sem nunca se chegar a resultados satisfatórios.
Na Paraíba, pelo menos dois casos famosos de acidentes de trânsito envolvendo motoristas embriagados e que terminaram com
vítimas fatais tiveram desfecho no Tribunal do Júri, onde os causadores dos sinistros saíram condenados por homicídio doloso.
O psicólogo Eduardo Paredes foi julgado culpado pela morte da defensora pública Fátima Lopes e,
por isso, condenado a 12 anos de prisão em regime fechado por homicídio doloso e lesão corporal. O
julgamento começou às 9h e se estendeu por todo o dia tendo seu desfecho por volta das 20h. O juiz
Marcial Henrique Ferraz da Cruz leu a sentença por volta das 20h.
[...]
Fátima Lopes morreu em janeiro de 2010, quando teve seu carro atingido pelo veículo dirigido por
Eduardo Paredes, que avançou um sinal vermelho em alta velocidade no cruzamento da Avenida Epitácio
Pessoa com a João Domingos, no bairro de Miramar, em João Pessoa. No depoimento, o réu negou que
tivesse embriagado, disse que estava apenas distraído e também rebateu a informação de que teria
passado em sinal vermelho. Ele alega que o semáforo estava em sinal intermitente, ou seja, piscando
em amarelo para os dois sentidos. Porém, seus argumentos não foram suficientes para convencer os
jurados, que o julgaram culpado (NOGUEIRA, 2013).
E ainda:
Em 16 de julho de 2011, Ronaldo Soares (19) e Raíza Guedes (17) perderam suas vidas na Avenida
Epitácio Pessoa em Paraíba – João Pessoa. Segundo o Ministério Público, Rodrigo Artur da Fonseca
dirigia em alta velocidade, quando cruzou o sinal vermelho colidindo com o veículo em que estavam os
estudantes. O motorista apresentava sinais de embriaguez.
O empresário Rodrigo foi condenado a 17 anos e dois meses em regime fechado por homicídio doloso
no julgamento aconteceu no 2º Tribunal do Júri de João Pessoa em 19 de agosto de 2013.
Nina Ramalho que perdeu o pai, tio e primo em um crime de trânsito e que, conseguiu ver a justiça
acontecer com a condenação do culpado pelo crime da família Ramalho disse: “Um dia quem sabe,
poderemos sair de casa sem o medo de encontrar pelo caminho assassinos do asfalto…”
Segundo o site do G1, “De acordo com informações passadas pela polícia, Rodrigo da Fonseca já foi
flagrado com sintomas de embriaguez em duas fiscalizações em 2010, uma do Detran na avenida Rui
Carneiro, na capital, e outra da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na BR-230. Nas duas ocasiões ele foi
detido por dirigir sob efeito de bebida alcoólica.” (MARIANO, 2013).
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Uma ONG chamada “Não foi acidente” foi criada por familiares de vítimas do trânsito e tem sua atuação baseada na batalha por
leis de trânsito mais severas para os casos envolvendo motoristas embriagados. O site dessa campanha conta com um mural que contem
fotos de 265 pessoas, todas assassinadas por motoristas que estavam alcoolizados no momento do crime.
Em um tom dramático, o mural é apresentado da seguinte forma:
Eles não são números, são rostos. São pessoas felizes, amadas e que tinham uma vida inteira pela frente.
A luta é por justiça, pelo fim da impunidade, pelo respeito que temos aos que se foram e por amor aos
que ainda estão conosco. A homenagem é para cada um deles, que descansam ao lado do Pai celestial.
Mas se você quiser conhecer números, as 265 pessoas abaixo representam apenas 0.00665% das
40.000 pessoas que morrem todos os anos no Brasil, vítimas de irresponsáveis ao volante.
[...]
As pessoas abaixo foram mortas por motoristas que beberam e dirigiram. Se não mudar seu
comportamento, você pode ser o responsável pela foto ao lado.
Ainda no site, existe uma petição pública pedindo mudanças no CTB com a finalidade de torná-lo mais rígido em relação a
crimes desta natureza, a qual, até este momento, conta com a assinatura de 949.012 cidadãos brasileiros que concordam com esta
mudança.
Como se pode observar, a sociedade urge por mudanças que venham a tornar o CTB mais rigoroso neste quesito, por entender
que essa mudança seria de alguma valia para a diminuição do grande número de acidentes envolvendo condutores em estado de
embriaguez.
No entanto, o Código Penal prevê ser isento de pena o agente que, no momento da conduta, estava embriagado de forma
completa por caso fortuito ou força maior, então, é salutar que sejam aqui abordados os diferentes tipos de embriaguez previstos no
Código e na doutrina, para que não sejam praticadas injustiças, quando da tirada de conclusões referentes ao objeto deste trabalho
agindo à margem do que preceitua as normas de direito penal brasileiras.
2.2 Das espécies de embriaguez
Como visto no item anterior, para que haja uma condenação, é necessário que o réu possua capacidade de pagar pelo seu
delito, isto é, que ele seja imputável penalmente; também remetendo ao tópico anterior, fica esclarecido que a embriaguez não torna o
delinquente isento de culpa, no entanto essa última premissa não é absoluta e, para que seja empregada, faz-se necessário identificar o
tipo de embriaguez à que estava submetido o agente.
A doutrina é pacífica quanto às espécies de embriaguez existentes, sendo elas: a embriaguez acidental, a não-acidental,
a patológica e a preordenada. Essa classificação é dada levando-se em consideração a forma como o agente entrou no estado de
embriaguez, à causa que o fez ficar naquela situação.
Greco (2011, p. 393) define a embriaguez não acidental da seguinte forma:
É aquela prevista no inciso II do mencionado art. 28, e, mesmo sendo completa, permite a punição do
agente, em face da adoção da teoria da actio libera in causa. Na precisa definição de Narcélio de Queiroz,
devemos entender por actio libera in causa “os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é
causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto
a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando a podia ou devia prever”.
A embriaguez não acidental subdivide-se em voluntária e culposa. A embriaguez voluntária é aquela em que o agente faz uso
de bebida alcoólica com a finalidade de se embriagar, enquanto que a embriaguez culposa existirá quando a pessoa, sem a intenção
de colocar-se em estado de embriaguez, deixando de observar o seu dever de cuidado, ingere uma quantidade que desencadeie essa
situação, seja por não ter o costume de beber, seja por ter o organismo sensível à ingestão de bebidas alcoólicas.
Nos casos de não-acidental, jamais será excluído o dolo, isso porque o agente, no momento em que ingeria a substância, era
livre pra decidir se podia ou não fazê-lo, isso tudo em conformidade com o que reza a teoria da actio libera in causa.
Já a embriaguez acidental pode decorrer de duas formas: em virtude de um caso fortuito ou por uma força maior.
Capez (2011, p. 341) as diferencia da seguinte forma:
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Caso fortuito: é toda ocorrência episódica, ocasional, rara, de difícil verificação, como o clássico exemplo
fornecido pela doutrina, de alguém que tropeça e cai de cabeça em um tonel de vinho, embriagandose. É também o caso de alguém que ingere bebida na ignorância de que tem conteúdo alcoólico ou
dos efeitos psicotrópicos que provoca. É ainda o caso do agente que, após tomar antibiótico para
tratamento de uma gripe, consome álcool sem saber que isso o fará perder completamente o poder de
compreensão. Nessas hipóteses, o sujeito não se embriagou porque quis, nem porque agiu com culpa.
Força maior: deriva de uma força externa ao agente, que o obriga a consumir a droga. É o caso do sujeito
obrigado a ingerir álcool por coação física ou moral irresistível, perdendo, em seguida, o controle sobre
suas ações.
O agente embriagado acidentalmente em um caso fortuito ou força maior poderá ter sua pena reduzida, ou mesmo ser isento
dela dependendo da intensidade de seu estado de embriaguez. Em sendo sua embriaguez incompleta, conforme preceitua o art. 28, §2º
do CP, o agente responderá pelo seu crime com atenuação da pena, desde que haja redução de sua capacidade intelectual ou volitiva. Já
se a embriaguez for completa, o que torna o agente inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito de seu fato no momento, será ele
isento de pena, nos termos do art. 28, §1º.
A embriaguez patológica, conforme explica Jesus (2010, p. 559), “é a que se verifica nos predispostos, nos tarados, nos filhos de
alcoólatras” e se desencadeia por serem esses indivíduos “extremamente suscetíveis às bebidas alcoólicas”, podendo mesmo pequenas
doses desencadearem “acessos furiosos, atos de incrível violência, ataques convulsivos.” Dependendo da intensidade dessa embriaguez
patológica, também poderá o agente ter sua pena reduzida ou até ser isento de punição, nesse caso, em consonância com o que oriente
o art. 26 do CP.
Por fim, existe também a embriaguez preordenada, que se dá quando o agente vem a se embriagar propositadamente para
adquirir a coragem suficiente para o cometimento de um determinado delito, o qual não seria capaz de realizar em seu perfeito estado
psicológico. Capez (2011, p. 342) assim o explica:
Na preordenada, a conduta de ingerir a bebida alcoólica já constitui ato inicial do comportamento
típico, já se vislumbrando desenhado o objetivo delituoso que almeja atingir, ou que assume o risco de
conseguir. É o caso de pessoas que ingerem álcool para liberar instintos baixos e cometer crimes de
violência sexual ou de assaltantes que consomem substâncias estimulantes para operações ousadas.
Essa espécie de embriaguez, diferente das demais, não tem o condão de gerar benefício algum ao agente, ao contrário, ela
constitui causa agravante genérica, prevista no art. 61, II, l do CP.
2.3 O alerta da mídia e o apelo da sociedade como contrapontos à teoria da culpa consciente nos crimes de trânsito praticados por
condutor alcoolizado
Com frequência, nos últimos tempos, a mídia vem alertando sobre os perigos de se dirigir embriagado. O jargão popular “se for
beber, não dirija e for dirigir não beba” é de amplo conhecimento; nos quatro cantos do país, ele é se faz ouvir, virando inclusive tema de
campanhas de conscientização no trânsito organizada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), que é órgão responsável pela fiscalização do
trânsito das rodovias federais.
Como já foi citado neste trabalho, a revista Veja (2013) recentemente publicou como matéria de capa a divulgação de uma
pesquisa que mostrava a real face dos acidentes de trânsito no Brasil, sendo alavancado esse fator ao patamar de segundo maior causador
de mortes no país.
A referida pesquisa mostrou que os sinistros de trânsito têm como seu segundo maior fator de origem, a embriaguez ao volante,
pois os motoristas perdem seus reflexos, indispensáveis à condução de um veículo automotor devido à dinâmica do trânsito onde o
condutor tem que estar à todo o tempo prestando atenção no que acontece á sua volta.
Para que se impute a alguém uma conduta dolosa, necessário se faz que seja provado que essa pessoa assim agiu com a
intenção de provocar o resultado lesivo, entretanto, usando-se a teoria do dolo eventual, que é o que se pretende utilizar em casos como
os aqui estudados, o agente assume o risco por sua conduta, não se importando com o que venha porventura a acontecer.
Com inúmeras campanhas de conscientização versando sobre os riscos da embriaguez ao volante, não se pode compreender
como é que alguém que assim aja o faça sem a consciência de sua atitude e caso venha a cometer algum crime desta espécie seja
condenado por uma conduta culposa, tornam-se absurdos tais julgamentos.
Tem-se aqui o fito de se demonstrar que, com as incessantes campanhas pela conscientização no trânsito, campanhas estas
que mostram dados da violência no trânsito, bem como relatos de pessoas que passaram por, ou que perderam conhecidos e até mesmo
familiares em acidentes assim, não há mais o que se falar em culpa consciente, quando o delinquente o provocar em estado embriaguez.
Como já dito, a grande celeuma que ronda as discussões sobre processo e julgamento dos crimes de trânsito reside nas teorias
antagônicas do dolo eventual e na culpa consciente, entretanto, como já incessantemente demonstrado nas campanhas veiculadas nas
mais diversas espécies de mídia, independente das habilidades pessoais do condutor, direção não combina, de forma nenhuma, com
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substâncias que provocam embriaguez.
Por já se ter certeza absoluta dessas conclusões, a sociedade vem ficando mais alerta sobre essa questão e tem lutado
ferrenhamente para a mudança deste quadro, passando-se aplicar com maior rigidez as leis a quem, em estado de embriaguez comete
crimes de trânsito.
Muitos conhecedores do Direito, entre eles, doutrinadores e julgadores, veem os apelos da sociedade como uma forma de
vingança sem nenhuma razão de existir e, por isso, batalham arduamente para que ela venha a ter a mínima influência possível, quando da
aplicação da interpretação de uma norma legal, no entanto esquecem que as leis foram criadas para, refletindo a realidade local, organizar
a vida em sociedade, guiando as condutas dos homens de forma que cada um possa desfrutar de seus direitos, bem como respeitar os
dos demais, buscando sempre um fim precípuo que é a harmonia entre os seres.
Assim sendo, não se pode pensar no apelo da sociedade como uma arma de vingança, e sim como uma maneira prática de
buscar a evolução das leis, adequando-as aos reais anseios da localidade onde ela será utilizada.
2.4 Da necessidade de rigidez na legislação de trânsito: Análise da jurisprudência
No item anterior, foi explanado sobre o receio que alguns têm de evitar uma maior rigidez nas penas cominadas aos crimes de
trânsito, por não desejarem que as mesmas configurem forma de vingança pelo ato cometido, entretanto há que se destacar que, devido
à mentalidade dos brasileiros, as leis só são obedecidas quando impostas de forma mais gravosa e com maior fiscalização.
É o que revela a já incessantemente citada pesquisa revelada por Veja (2013) senão veja-se:
Um estudo recente do Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas revelou que
82% dos brasileiros acham fácil desobedecer às leis no país. E o fazem mesmo quando os maiores
prejudicados são eles próprios. Uma fiscalização eficiente e constante teria o poder de fazer os cidadãos
abandonar as condutas de risco até que a postura responsável se tornasse automática. Foi o que
ocorreu, em certa medida, com o uso do cinto de segurança. E é o se tem tentado, até agora com
pouco sucesso, com a embriaguez ao volante. Em 2008, quando entrou em vigor a Lei Seca, o impacto
positivo foi imediato. Com medo de serem pegos no bafômetro, muitos motoristas deixaram de conduzir
depois de beber. Como consequência, no ano seguinte, houve uma redução de quase 4.000 pedidos de
indenização por morte ao DPVAT. Bastou os motoristas descobrirem que não eram obrigados a soprar
o bafômetro e que as blitzen eram previsíveis para a curva de mortes retomar a trajetória ascendente.
Para se buscar uma maior rigidez de penas e uma mais efetiva fiscalização por parte das autoridades, será necessária uma
legislação que permita essas mudanças, subsidiando a ação dos que promoverão essa mudança.
A princípio, essa mudança passa pela pacificação da adoção da teoria do dolo eventual e, quando se inicia um estudo sobre a
discussão acerca das teorias do dolo eventual e culpa consciente, vez ou outra, depara-se com as máximas “In dubio pro reo” e “in dubio
pro societate”. Tais expressões, princípios gerais do Direito Penal, são sempre invocadas a fim de se buscar uma condenação ou absolvição
do acusado e quase sempre são vinculadas às teorias abordadas neste capítulo.
No “In dubio pro reo”, tem-se que, quando existir dúvida, em matéria de interpretação de lei penal, deve a norma ser entendida
em benefício do agente que supostamente praticou a infração penal, contrario sensu, no “In dubio pro societate”, deve-se levar em
consideração que, estando no início da ação penal, a dúvida deve pender em benefício da sociedade, não se pode extirpar-lhe o condão
de se ver processar uma conduta contrária à legalidade.
Os Tribunais estaduais, bem como os superiores, divergem bastante, quando da aplicação de um princípio, ou de outro, quando
deparados com questões relativas a incidentes de trânsito. Para que se descortinem as ideias apresentadas, é de se trazer à baila alguns
entendimentos jurisprudenciais, como os colacionados a seguir:
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Um estudo recente do Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas revelou que
82% dos brasileiros acham fácil desobedecer às leis no país. E o fazem mesmo quando os maiores
prejudicados são eles próprios. Uma fiscalização eficiente e constante teria o poder de fazer os cidadãos
abandonar as condutas de risco até que a postura responsável se tornasse automática. Foi o que
ocorreu, em certa medida, com o uso do cinto de segurança. E é o se tem tentado, até agora com
pouco sucesso, com a embriaguez ao volante. Em 2008, quando entrou em vigor a Lei Seca, o impacto
positivo foi imediato. Com medo de serem pegos no bafômetro, muitos motoristas deixaram de conduzir
depois de beber. Como consequência, no ano seguinte, houve uma redução de quase 4.000 pedidos de
indenização por morte ao DPVAT. Bastou os motoristas descobrirem que não eram obrigados a soprar
o bafômetro e que as blitzen eram previsíveis para a curva de mortes retomar a trajetória ascendente.
Ainda:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. LESÃO
CORPORAL. OMISSÃO DE SOCORRO. DECISÃO DE PRONÚNCIA. PROVA DA MATERIALIDADE
E INDÍCIOS DA AUTORIA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO NA
DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 302 DO CTB). IMPOSSIBILIDADE. IN DUBIO PRO
SOCIETATE. RECURSO IMPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME.
1. O recorrente não questiona a materialidade e tampouco a autoria no caso presente, as quais,
entrementes, encontram-se devidamente demonstradas. A prova da materialidade, pelo laudo de fls.
09/15; pelas perícias traumatológicas de fls. 66 e 156; pela certidão de óbito de fls. 35; e pela perícia
tanatoscópica de fls. 90. E os indícios da autoria pela confissão parcial do acusado (que não negou ter
colidido seu veículo com as motocicletas das vítimas, mas defende a tese de que praticou o crime de
homicídio culposo e não doloso) e pelo depoimento das testemunhas da acusação, que confirmaram
os fatos narrados na denúncia. 2. Pretende a defesa, no recurso sob análise, a desclassificação para o
crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, previsto no art. 302 do Código de Trânsito
Brasileiro, sob o argumento de que não houve dolo eventual na hipótese. 3. Em casos como o presente,
como bem chamou a atenção o promotor de justiça em suas contrarrazões, a jurisprudência admite a
pronúncia pela prática do crime de homicídio doloso, quando, pelas circunstâncias do caso concreto,
seja possível vislumbrar na conduta do acusado que ele assumiu o risco de produzir o resultado. 4.
Conforme dito alhures, há indícios de que o réu, que não tinha habilitação, dirigiu após ingerir grande
quantidade de bebida alcoólica e, pegando a contramão, atingiu as duas motocicletas descritas na
exordial. 5. É bem verdade que não há prova técnica da embriaguez, porém há o depoimento da
testemunha presencial, Ivanildo Machado, que bebeu com o acusado no dia dos fatos, e afirmou que
ambos ingeriram bastante bebida alcoólica. 6. Ora, certamente é possível enxergar o dolo eventual na
conduta do réu. Em casos similares ao presente, assim já decidiram outras Cortes do país, conforme
se verifica dos julgados referidos pelo promotor de justiça em suas contrarrazões (fls.464/465). 7. Por
isso é que, em meu entender, é o conselho de sentença que deve avaliar se o réu agiu ou não com dolo
eventual e se ele estava ou não embriagado no dia dos fatos, a partir da análise das circunstâncias do
caso concreto aliadas ao depoimento das testemunhas, para fins de condená-lo pela prática do crime
de homicídio previsto no art. 121 do CP ou para desclassificar sua conduta para o crime de homicídio
culposo. 9. Não se pode olvidar que, nessa fase processual, vigora o princípio do in dubio pro societate,
no sentido de que eventuais incertezas propiciadas pela prova se resolvem em favor da sociedade, as
quais somente serão afastadas quando do julgamento do feito pelo Tribunal do Júri. 10. A sentença de
pronúncia, portanto, não merece qualquer reforma, porquanto preencheu os requisitos exigidos pela lei,
além de se encontrar devidamente fundamentada. 11. À unanimidade, negou-se provimento ao recurso.
(TJ-PE - RSE: 2471620088171080 PE 0015731-71.2012.8.17.0000, Relator: Mauro Alencar De
Barros, Data de Julgamento: 12/12/2012, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 236)
Ambos os julgados apresentados acima são do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco e, através de sua análise, fica claro
quão complicado é o julgamento de casos dessa espécie: tratam de acidentes de trânsito com vítima fatal, ocasionados por condutor que
havia ingerido bebida alcoólica.
No primeiro exemplo, o agente (condutor alcoolizado) fora absolvido em primeira instância, sob o argumento de haverem
dúvidas quanto à sua culpabilidade, sendo então aplicado o in dubio pro reo, no entanto, inconformado com a decisão, o Ministério Público
apelou da sentença, vindo o Tribunal a reformar a decisão.
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No segundo caso apresentado, o acusado fora pronunciado ao Tribunal do Júri, por haver, em tese, atentado dolosamente
contra a vida de uma pessoa; sua defesa interpôs Recurso em Sentido Estrito com a alegação que o fato típico descrito na inicial era o
homicídio culposo na direção de veículo automotor. O juízo a quo, entendeu por bem submeter o julgamento do caso ao Tribunal do Júri
com o fito de, assim, deixar com que os representantes da sociedade exerçam seu juízo de valor sobre se o delito foi cometido com culpa
consciente ou dolo eventual; com essa decisão o Tribunal ad quem concordou, mantendo a sentença.
Na mesma linha de raciocínio do Tribunal de Pernambuco, o da Paraíba também entende que, na fase inicial do processo, é
imperativo legal que as dúvidas sejam dirimidas pelo conselho de sentença, face o brocardo in dubio pro societate, conforme deflui-se do
julgamento apresentado a seguir:
RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. HOMICÍDIOS CONSUMADOS E
LESÕES CORPORAIS CAUSADAS NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PROVA EFICIENTE
DA MATERIALIDADE DO FATO DELITUOSO. INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA. INDÍCIOS DE
QUE O RÉU DIRIGIA SOB EFEITO DE ÁLCOOL, TRANSITAVA EM VELOCIDADE EXCESSIVA E TERIA
ULTRAPASSADO O SINAL VERMELHO. PROVA TESTEMUNHAL. COMPETENCIA DO JÚRI POPULAR
PARA ACOLHER, EM SUA PLENITUDE, AS TESES DEFENSIVAS. IN DUBIO PRO SOCIETATE. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CRIMES CULPOSOS. IMPOSSIBILIDADE. PRETENSA INCOMPATIBILIDADE ENTRE A FIGURA DO DOLO EVENTUAL (DOLO INDIRETO) E LESÕES A BENS JURÍDICOS
DIVERSOS. NÃO ACOLHIMENTO. CONCURSO FORMAL HETEROGÊNEO. POSSIBILIDADE. INCOMPATIBILIDADE DO DOLO EVENTUAL COM A QUALIFICADORA DA “SURPRESA” (RECURSO
QUE DIFICULTE OU IMPOSSIBILITE A DEFESA DO OFENDIDO PREVISTA NO INCISO IV DO § 2º
DO ART. 121 DO CP. QUALIFICADORA QUE, NO ENTENDER DO RELATOR, NÃO SE AFIGURA
MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE. PRECEDENTES DO STJ. ANÁLISE OBJETIVA ACERCA DA
QUALIFICADORA. CONCLUSÃO DIVERSA DESTA CÂMARA CRIMINAL. ENTENDIMENTO DA 2º
TURMA DO STF. INCOMPATIBILIDADE ACOLHIDA. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO PARA
EXCLUIR A QUALIFICADORA PREVISTA NO INCISO IV DO 2º DO ART. 121 DO CP.
- Para a pronúncia do réu, basta a comprovação da materialidade do fato, bem como indícios suficientes
da autoria, possibilitando a submissão do réu ao julgamento popular perante o Tribunal do Júri. - A
decisão de pronúncia é de mero Juízo de admissibilidade, prevalecendo o princípio do “in dubio pro
societate”, ou seja, na dúvida, esta deve ser dirimida pelo Conselho de Sentença, juízo natural da causa.
(RT 729/545).
- É perfeitamente possível que no dolo eventual, subespécie de dolo indireto, exsurjam vários resultados
naturalísticos a bens jurídicos diversos, como sói ser no concurso formal heterogêneo.
- Na fase de pronúncia, as qualificadoras só podem ser afastadas se se afigurarem manifestamente
improcedentes. Precedentes do STJ.
- Inobstante o entendimento pessoal deste relator, forte em precedentes firmes do STJ, esta colenda
Câmara Criminal entendeu serem incompatíveis o dolo eventual e a qualificadora (surpresa) prevista no
inciso IV do §2° do art. 121 do CP, de sorte que foram excluídas da pronúncia.
(TJPB - Acórdão do processo nº 20020110311640005 – Órgão: CAMARA CRIMINAL - Relator DES.
JOÃO BENEDITO DA SILVA – Data do julgamento: 07/02/2013)
Denota-se, através dos presentes julgados apresentados, que, na fase inicial do processo, necessário se faz que seja ouvida a
voz da sociedade, defensora da lei e vítima secundária em todo e qualquer delito, principalmente, nos crimes que resultam em morte.
Ao ingerir bebida alcoólica, um motorista sabe muito bem o que está fazendo e sabe dos riscos em que está se metendo. Nos últimos
anos, a mídia tem exaustivamente enfatizado a questão da direção sob efeito de álcool e seus riscos tanto para o próprio motorista
quanto para a sociedade, sabendo disso incompreensível se torna a alegação de que não se teria assumido o risco pela conduta praticada
que gerou o sinistro.
Com esses argumentos, qualquer intenção de se afirmar que o condutor alcoolizado agiu culposamente é, no mínimo, duvidosa
e, por ser duvidosa, merece ser levada ao crivo da sociedade, vide in dubio pro societate, haja vista o interesse da coletividade se sobrepor
aos interesses individuais bem como ser o bem da sociedade, o fim precípuo que busca a Constituição Federal e a legislação em geral.
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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fato que a maior parte das jurisprudências e a grande maioria dos Tribunais encaram os acidentes de trânsito ocasionados por
motorista embriagado como sendo culposos, no entanto há de se destacar que vem crescendo a parcela dos que consideram que quem
dirige seu veículo sob o efeito de álcool tem plena consciência que pode vir a dar origem a uma tragédia, não se importando com essa
hipótese.
Este trabalho buscou esmiuçar os caracteres defendidos por cada uma das correntes atinentes à discussão sobre as teorias
empregadas aos casos de acidentes de trânsito, quais sejam: dolo eventual e culpa consciente, explanando o que cada uma dessas
correntes busca se apoiar para defender-se e ser entendida como a mais correta.
Ficou compreendido que uma evolução da legislação de trânsito se faz necessária, haja vista o crescimento vertiginoso e
constante dos casos de acidente em todo o país, causados, acima de tudo, pela falta de respeito dos motoristas pelas normas que
preveem penas leves e que não servem para inibir a pratica de condutas criminosas.
Essa celeuma se configura como algo real no ordenamento jurídico pátrio, devendo ser debatida e entendida em todas as suas
nuances, buscando-se, com isso, um entendimento pacífico e evitando-se que casos semelhantes sejam julgados de formas diferentes e,
acima de tudo, procurando meios que façam com que o número assombroso de acidentes com vítimas fatais ocasionados por motoristas
alcoolizados seja reduzido através da prevenção gerada por uma legislação mais adequada e eficaz.
No transcorrer da elaboração deste trabalho, pôde ser constatado que a sociedade brasileira urge em favor da criação de normas
que se apliquem mais fielmente à realidade do cotidiano do trânsito e, assim, possam ser seriamente levados em consideração, buscando
proteger os direitos da coletividade que se encontram sob constante ameaça devido à violência do trânsito.
Por tudo que foi estudado e apresentado, ficou compreendido que o fator “fragilidade da legislação de trânsito” representa
realmente grande parcela de culpa na questão do número alarmante de acidentes envolvendo condutores alcoolizados e com vítimas
fatais, pois, conforme citado, o brasileiro não tem o costume de respeitar as normas, acima de tudo, com a frágil fiscalização por parte das
autoridades.
A alegação de culpa consciente em casos como os citados aqui, já há muito deveria ter sido abolida, visto que não satisfaz a
finalidade precípua da lei que é manter a coletividade unida e em harmoniosa convivência, devendo, pois, ser adotada a teoria do dolo
eventual no processo e julgamento dos atos envolvendo automotores e agentes alcoolizados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Presidência da República Subchefia para assuntos
Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 07 jul. 2015.
_______. Decreto-Lei nº 2.994, de 28 de janeiro de 1941. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/
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_______. Lei n° 5.108, de 21 de setembro de 1966. Instituiu o Código Nacional de Trânsito. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/
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_______. Lei nº 9.503, de 27 de setembro de 1997. Institui o Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
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CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral, vol. 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
_______. Curso de processo penal. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
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JESUS, Damásio E. de. Direito penal, volume I: parte geral. 31. ed.. São Paulo: Saraiva, 2010.
MARIANO, Rosmary . Prisão para mais um caso de crime de trânsito em João Pessoa – PB. Não foi acidente!, 20 ago. 2013. Disponível
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NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
NOGUEIRA, Valter. Eduardo Paredes é julgado culpado pela morte de Fátima Lopes e condenado a 12 anos de prisão. Tribunal de Justiça
da Paraíba. João Pessoa, 27 ago. 2013.Disponível em: <http://www.tjpb.jus.br/eduardo-paredes-e-julgado-culpado-pela-morte-de-fatima-lopes-e-condenado-a-12-anos-de-prisao/>. Acesso em: 27 ago. 2013.
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63
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO INSTRUMENTO DE PRESERVAÇÃO
EMPRESARIAL: IMPORTÂNCIA DA RECUPERAÇÃO (EXTRA)JUDICIAL
Juliana Pires Martins¹
RESUMO
O presente artigo discorre acerca da função social da empresa como instrumento de preservação empresarial, com enfoque na
sua recuperação (extra)judicial. Para tanto, é feita uma análise dos princípios constitucionais integrados ao Direito Empresarial, mormente
a função social da propriedade, reconhecida jurisprudencialmente, da qual deriva o princípio da preservação da empresa. É feito um
estudo sobre a evolução histórica do direito falimentar e dos reflexos sociais na Lei nº 11.101/2005 – Lei de Falência e Recuperação
de Empresas, bem como sobre a mudança de paradigmas, ao analisar-se a responsabilidade e a função social decorrentes da atividade
empresarial. O objetivo deste estudo é demonstrar a possibilidade de recuperação com base na função social desempenhada pela
empresa, fator que incentiva sua preservação, com o comprometimento de todos que nela se encontram envolvidos.
Palavras-chave: direito falimentar. função social da empresa. preservação da empresa. recuperação empresarial.
ABSTRACT
This article is about the role of company’s social function as a tool for business preservation, focusing on corporate (extra)judicial
recovery. To this end, an analysis is performed of the constitutional principles integrated into Corporate Law, especially the social function
of property, which has jurisprudential recognition, from which derives the principle of conservation of the company. It is made a study on
the historical evolution of the bankruptcy law and the social reflections on Law 11,101/2005 – Bankruptcy and Recovery of Companies
Law, as well as on the paradigms shift to analyze the social function and responsibility arising from business activity. The aim of this
research is to demonstrate the possibility of recovery based on the social function exerted by the company, factor that encourages its
preservation, with the commitment of all those who are involved in it.
Keywords: bankruptcy law. social function of the company. company preservation. corporate recovery.
1. INTRODUÇÃO
A vigente Lei de Falência e Recuperação de Empresas – Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 – percorreu uma longa
evolução histórica até constituir-se um eficiente e célere guia para a preservação e liquidação de empresas. Esse instrumento legislativo
apresenta diversas inovações ao direito empresarial, culminando em uma nova sistemática de procedimentos destinados a concessão da
recuperação a empresas em estado de crise econômico-financeira.
O instituto da recuperação judicial é consagrado pelos princípios da função social e da preservação da empresa, que são
considerados os fundamentos principais e basilares da Lei n. 11.101/05. Esta, por sua vez, reflete um cunho social antes omisso na
legislação falimentar - Lei de Falência e Concordata, o Decreto-Lei n. 7.661/1945 -, que já não se coadunava com os novos paradigmas
jurídicos e com a realidade social e econômica do país.
O Decreto-Lei n. 7.661/45 compreendia os institutos da falência e da concordata, que era o conhecido favor judicial concedido
pelo juiz, sem a necessidade de aprovação prévia dos credores, ao devedor de boa-fé que se encontrava em estado de insolvência e
preenchia os requisitos previstos legalmente. Não obstante representasse um avanço no direito de empresa, o referido Decreto reconhecia
imediatamente a falência diante de qualquer tentativa de negociação de dívidas do empresário ou da sociedade empresária, com os
seus credores, em meio a uma situação de crise econômica, de modo que vedava o processo conhecido atualmente como recuperação
extrajudicial, entretanto é válido destacar que os institutos, tanto da falência quanto da concordata, não correspondiam aos interesses
das partes envolvidas, tendo como consequência a possibilidade de fraudes, além de não contribuir efetivamente para a recuperação da
empresa em crise e de ocasionar a convolação da recuperação em falência.
Em meio às inúmeras problemáticas ocorridas durante vigência do Decreto-Lei n. 7.661/45, foram revogados os institutos da
concordata preventiva, a qual era requerida preventivamente, como forma de evitar a declaração de falência, e da suspensiva, que, por
sua vez, era concedida no decorrer do processo falimentar, por não ser possível a continuação da concessão da recuperação conforme
estava prevista na legislação. Além disso, não correspondia às necessidades econômicas e sociais e não viabilizava as condições para
que a empresa continuasse a exercer sua atividade e, consequentemente, pudesse se recuperar. Com essas considerações, o legislador
pautou como núcleo do direito falimentar a manutenção da empresa, surgindo assim, com a Lei n. 11.101/05, o instituto da recuperação
de empresas, que extinguiu a figura da concordata e subdividiu-se em duas novas possibilidades de recuperação: a judicial, que,
essencialmente, assemelha-se à concordata preventiva, e a extrajudicial.
¹ Bacharelanda
64
em Direito no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.
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As inovações no direito falimentar ocasionaram significativas transformações jurídicas, pois foram incorporados princípios
constitucionais ao direito de empresa. A nova perspectiva sob a qual a atividade empresarial passou a ser analisada – reflexo do
fenômeno da constitucionalização do Direito – prioriza a continuidade dessa atividade como consequência da valorização dos benefícios
proporcionados pela empresa à coletividade. Além dos princípios nos quais se baseia a recuperação empresarial, dispostos no artigo 47
da lei supracitada, que motivam a preservação da unidade produtiva e a prevenção contra falência, alguns princípios constitucionais,
conforme pontuado, alcançaram a ordem jurídica empresarial e passaram a exercer grande influência nesse âmbito do direito. Como
exemplos desses princípios, podem ser citados: a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, a função social da propriedade
e a livre iniciativa. Dessa forma, percebe-se que a recuperação judicial tem o intuito de assegurar meios viáveis para que a empresa
continue a exercer sua atividade, prezando pela sua permanência, continuidade e preservação, de modo a corresponder os interesses da
coletividade.
O presente artigo analisa a evolução da legislação falimentar até a vigente Lei n. 11.101/05, com destaque aos princípios que
regem a atividade empresarial e que foram incorporados com o passar do tempo e a evolução da sociedade. Assim, busca-se enfatizar
o reconhecimento jurisprudencial e a importância da função social da empresa. Ademais, a pesquisa apreciará as influências da função
social e da responsabilidade social no direito pátrio e a consagração da teoria da empresa pelo Código Civil de 2002. Por fim, será feita
uma análise acerca da importância social da atividade empresarial e dos inúmeros benefícios à coletividade que são proporcionados por
ela, o que, graças à evolução da legislação e à consequente incorporação das necessidades sociais ao Direito, contribui para a preservação
da empresa.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS INTEGRADOS AO DIREITO EMPRESARIAL E FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
A constitucionalização do direito privado iniciou-se no direito romano-germânico, ocupando o locus normativo direcionado a
concepção de indivíduo como singularidade. Nesse contexto, Lôbo (1999) esclarece que:
O direito civil, ao longo de sua história no mundo romano-germânico, sempre foi identificado como o
locus normativo privilegiado do indivíduo, enquanto tal. Em contraposição à constituição política, era
cogitado como constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação liberal.
Esse fenômeno surge pela inserção constitucional dos fundamentos de validade jurídica das relações civis, ocasionando mudanças de paradigmas no processo de transformação do Estado liberal para o Estado social. A transmutação de padrão no conteúdo,
natureza e finalidades dos institutos básicos do Direito civil desconsiderou as regras típicas do individualismo jurídico e da ideologia liberal. A função do código no cenário do Direito civil atual e de seu real destinatário omite a atuação do indivíduo proprietário para revelar
a pessoa humana.
Diante desse contexto, surge o reconhecimento da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, com a acepção na ressistematização do Direito, isto é, uma nova perspectiva na interpretação dos códigos à luz da axiologia da constituição, de modo a restaurar a
unidade do sistema jurídico. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais é o signo dessa mudança, ao apontar pelo “reconhecimento
da existência e aplicação dos direitos que protegem a pessoa nas relações entre particulares”, de forma que “as normas constitucionais
que protegem tais direitos têm aplicação imediata” (TARTUCE, 2012, p. 57), a partir da aplicação do art. 5º, § 1º da Constituição Federal.
Destarte, o Direito passa a ser reinterpretado à luz dos princípios da Constituição, conjugado pela força normativa, a partir de
uma nova ordem constitucional. Assim, os valores procedentes da mudança da realidade social, transformados em princípios e regras constitucionais, devem orientar a atuação e interpretação do direito privado em seus diferentes planos. A legislação contrária aos princípios
e regras constitucionais deve ser revogada, se anterior à constituição, ou considerada inconstitucional, se posterior a ela.
A imposição de cumprimento da função social em face ao Direito privado passa a ser relativizado pelos institutos vigentes, com
enfoque na proteção das múltiplas relações jurídicas. Bonavides (2011, p. 65-66) aponta que:
[...] o sentido peculiar em que envolveu o constitucionalismo moderno, que não segue a rota do
individualismo tradicional, favorecido e amparado pela separação clássica, mas envereda pelos caminhos
do social, visando não apenas a afiançar ao Homem os seus direitos fundamentais perante o Estado
(princípio liberal), mas, sobretudo, a resguardar a participação daquele na formação da vontade deste
(princípio democrático), de modo a conduzir o aparelho estatal para uma democracia efetiva, onde os
poderes públicos estejam capacitados a proporcionar ao indivíduo soma cada vez mais ampla de favores
concretos.cogitado como constituição do homem comum, máxime após o processo de codificação
liberal.
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A concepção de Estado social, no âmbito do direito, pode ser considerada como toda incorporação das relações de ordem
econômica e social na constituição. Como consequência, além da limitação na atuação do poder político, delimita-se o poder econômico
e projeta-se para além dos indivíduos a tutela dos direitos, incluindo o trabalho, a educação, a cultura, a saúde, a seguridade social e o
meio ambiente, todos com inegáveis reflexos nas dimensões materiais do Direito privado.
A Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor desde 5 de outubro de 1988, consolida uma democracia política,
econômica e social, firmando a maior estabilidade institucional da história republicana do país. Respaldada em uma economia de mercado
democrática, a Constituição Cidadã tutela a empresa pelo reconhecimento da sua liberdade de empreendedorismo. O Direito empresarial
tende a buscar, dos dispositivos elencados na Carta Magna, uma série de princípios para disciplinar, garantir e proteger o regime de uma
empresa, desde o início das atividades à sua extinção, quais sejam: livre iniciativa (art. 1º, IV e art. 170), liberdade de associação (art. 5º,
XVIII e XX), liberdade de trabalho, ofício e profissão (art. 5º, XIII e art. 170, parágrafo único), propriedade privada dos meios de produção
(art. 5º, XXII e art. 170), função social da propriedade (art. 5, XXIII e art. 170, III), livre concorrência (art. 173, parágrafo 4º), defesa do
consumidor (art. 5º XXXII e art. 170, V), defesa do meio ambiente (art. 170, VI e art. 225), redução das desigualdades regionais e sociais
(art. 3º e art. 170, inciso VII) e busca do pleno emprego (art. 170, VIII).
Enfática e complementarmente aos princípios expressos na Constituição Federal norteadores da atividade empresarial, também
são considerados os elementos postulares do Código Civil de 2002, que, consequentemente, são amplamente observados nos artigos
concernentes ao direito de empresa: a eticidade, a operabilidade e a sociabilidade. Deste último, deriva a função social, conceito amplo
que pode ser compreendido, no direito, tanto relacionado à propriedade quando relacionado à empresa. “Função social da propriedade é
a destinação economicamente útil da propriedade, em nome do interesse público. Seu objetivo é otimizar o uso da propriedade, de sorte
que não possa ser utilizada em detrimento do progresso e da satisfação da comunidade”, conforme entendimento de Bulos (2011, p. 597,
grifos no original). Já o conceito de função social da empresa (isto é, função social da propriedade dos meios de produção) compreende
os diversos benefícios que a atividade empresarial desempenha a favor da coletividade, além de albergar e dar sentido aos deveres
constitucionais empresariais, como um “instituto heurístico” (TAVARES, 2013, p. 92-93). A geração de riquezas econômicas, a criação de
empregos e a produção de bens e serviços que viabilizam a qualidade de vida dos indivíduos são contribuições para o desenvolvimento
socioeconômico da comunidade e do Estado que correspondem ao cumprimento, por parte da empresa, dos deveres constitucionais que
lhes são impostos.
2.1. Reconhecimento jurisprudencial da função social da propriedade dos meios de produção
A análise de posicionamentos de Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) possibilita a identificação de uma moderna
tendência jurisprudencial favorável a um entendimento amplo da função social da empresa. Nas palavras de Tavares (2013, p. 94):
Nota-se, com efeito, que o STF caminha para um entendimento de reconhecer a ‘função social’ –
positiva, reitera-se – que a empresa desempenha para o bom funcionamento da economia e do pleno
emprego. Diversos fundamentos constitucionais, como a livre-iniciativa, princípios da ordem econômica,
a busca do pleno emprego, além de princípios ‘implícitos’ de efetividade da ordem econômica, são a ela
atrelados.
O STF julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.934-2-DF, proposta pelo Partido Democrático
dos Trabalhadores (PDT), na qual impugna os arts. 60, parágrafo único, 83, I e IV, c, e 141, II da Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005,
que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, por entender incompatíveis
com o disposto nos arts. 1.o, III e IV, 6.o, 7.o, I e 170, VIII, da CF/88. O requerente alegava inconstitucionalidade formal, à medida
que a disciplina de matéria relativa à “despedida arbitrária e sem justa causa” deveria ser regulada por lei complementar e não por lei
ordinária. Além disso, alegava também inconstitucionalidade material, (i) ao liberar os arrematadores da empresa alienada judicialmente
das obrigações trabalhistas; (ii) da disposição que prevê a transformação de créditos trabalhistas superiores a 150 salários mínimos em
quirografários. Analisaremos a alegação de inconstitucionalidade material e os argumentos que a consideraram improcedente.
Em seu voto, o Min. Ricardo Lewandowski não detecta inconstitucionalidade formal nem material, mas relata que as mudanças
ocorridas na sociedade demandam maior dinamismo das empresas e, como consequência disso, a lei falimentar teria sido prevista para
dar sobrevida às empresas:
Assim, é possível constatar que a Lei 11.101/2005 não apenas resultou de amplo debate com os
setores sociais direta mente afetados por ela, como também surgiu da necessidade de preservar-se o
sistema produtivo nacional inserido em uma ordem econômica mundial caracterizada, de um lado, pela
concorrência predatória entre seus principais agentes e, de outro, pela eclosão de crises globais cíclicas
altamente desagregadoras (LEWANDOWSKI, 2009).
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O Ministro Eros Grau, apesar de concordar com o relator, apresenta, com argumentos diversos, uma interessante reflexão
relacionada à vinculação entre as forças produtivas e o capital:
[s]e eu trabalhar com a totalidade que a Constituição é, considerar o princípio da função social da
propriedade, considerar que, no combate entre as classes sociais, efetivamente não haverá trabalho se
não houver capital. No modo de produção social dominante entre nós tenho de admitir que o texto é
plenamente adequado à Constituição. (GRAU, 2009)
Ao contrapor as duas perspectivas sob as quais a situação pode ser analisada e ao considerar o que traria mais benefícios para
a coletividade – diretamente – e para o trabalhador – a maior prazo –, o Ministro Cezar Peluso postula, acertadamente:
gostaria de acentuar – isto me parece também importantíssimo – que o que está por trás da interpretação
dessa norma é, na verdade, um conflito entre duas visões. De um lado, uma visão macroeconômica, que
tem o foco no dinamismo da economia e que, por isso mesmo, visa ao benefício de toda a coletividade,
e, de outro, uma visão que eu diria um pouco mais microscópica e um pouco mais rente a aparentes
interesses subjetivos individualizados, mas que, no fundo, reverte em dano geral, porque não permite a
recuperação das empresas, nem que a lei atinja os seus objetivos. Isso tudo, com base na experiência,
que nos mostrou que, durante a vigência da lei velha, ninguém costumava adquirir bens, muito menos
toda a massa. Em muitos e muitos casos, a demora nos processo de falência levava à deterioração
desses bens e, portanto, à perda de seu valor econômico. Os créditos não eram satisfeitos – e a minha
memória não é tão boa quanto o era, mas não me recordo de ter pago crédito trabalhista em falências
há muitos anos, não me lembro de ter feito isso. E as empresas eram extintas, e o desemprego era
acelerado (PELUSO, 2009).
Os argumentos supracitados revelam uma nova perspectiva, distinta da antiga visão civilista da falência de empresas, a respeito
do funcionamento destas e da função social por elas desempenhada. Os Ministros do STF invocaram diversos princípios constitucionais, a
fim de justificar a importância socioeconômica do funcionamento das empresas, que, portanto, está além de prover lucro e corresponder
exclusivamente a interesses individuais do empresário. Ainda, como pontua Tavares (2013, p.105), os benefícios decorrentes da atividade
empresarial não se resumem a oferta de empregos, mas devem ser consideradas também: a arrecadação de tributos para o Estado, a
prestação de serviços para a comunidade, a mobilização da economia de mercado e a contribuição, ampla ou sutil, para o desenvolvimento nacional.
A decisão, por maioria, pela improcedência do pedido de impugnação de partes da Lei nº 11.101/05 refletem a valorização da
preservação empresarial, em decorrência da imprescindibilidade das contribuições positivas dessa atividade para a coletividade.
2.2. Responsabilidade social da empresa x função social
A essa maior integração das questões sociais ao direito empresarial, estão atrelados o desenvolvimento da sociedade e as
modernas correntes que impulsionam a progressiva humanização do direito. A ideia de responsabilidade social da empresa está vinculada
ao bem-estar do individuo, que passa a tomar a centralidade da esfera empresarial, dividindo a responsabilidade social em duas espécies:
interna e externa. Nas palavras do professor Tomasevicius Filho (2003, p.47),
[a] responsabilidade social das empresas costuma ser dividida em dois tipos: responsabilidade
social interna, que consiste na preocupação com as condições de trabalho, qualidade de emprego,
remunerações, higiene e saúde de seus funcionários; e responsabilidade social externa, que consiste na
preocupação da empresa com a comunidade em que está inserida bem como seus clientes fornecedores
e entidades públicas.
A fundamentação da responsabilidade da empresa está atrelada ao poder que esta exerce sobre a sociedade, seja ele econômico,
político ou social, devendo, assim, ponderar os seus objetivos com os reais interesses da comunidade. Assim,
[d]iante principalmente de sua importância econômica, as empresas não podem utilizar seu poder de
maneira a atender unicamente os interesses de seus titulares. Ao exercer suas atividades, a empresa
deve conjugar seus objetivos – especialmente a busca do lucro – com os interesses e as necessidades
da comunidade onde atua, pois muitas de suas decisões têm consequências que influenciam a vida da
sociedade em geral (TOMASEVICIUS FILHO, 2003, p. 47).
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A empresa, sob a ótica da responsabilidade social, é mais que uma mera atividade empresarial, tendo por finalidades a promoção
do bem-estar social e o avanço nas relações entre si e a comunidade.
Dessa forma, percebe-se que os princípios basilares que norteiam a prática da responsabilidade social são o padrão ético
adotado pela empresa e as construções de uma imagem positiva perante a sociedade. A responsabilidade social vem ganhando espaço
e se tornando um fator de sucesso na seara empresarial, abrindo novas perspectivas para atender as transformações e necessidades da
sociedade.
A função social da empresa e a responsabilidade social são, portanto, conceitos distintos e possuem diferentes graus de
incidência. Uma das diferenças apontadas está vinculada ao modo de atuação do empresário, que se refere, quando se trata de responsabilidade social, a atos voluntários ou espontâneos, sem que haja alguma uma imposição legal, ao passo que a função social da
empresa recai sobre a atividade empresarial de modo impositivo. Em resumo, “[n]a responsabilidade social, não há vinculação da atividade
empresarial ao objeto social da empresa; em contrapartida, na função social, a atividade coincide com o objeto social da empresa,
constituindo a sua finalidade” (GAMA, 2007, p. 20-21).
Por fim, percebe-se que ambos os institutos são fundamentais para o exercício da atividade econômica empresarial, além de
serem semelhantes, por estarem associados à relação entre a empresa e a coletividade. Tanto a responsabilidade social quanto a função
social refletem uma preocupação com os efeitos que a atividade empresarial provoca em todos que nela estão envolvidos, mormente
se as demandas sociais presentes na comunidade estão sendo correspondidas ou se a atividade é predatória e exploradora. A finalidade,
tanto da responsabilidade social quanto da função social da empresa, é a transformação social, a promoção de melhorias na qualidade de
vida e a luta pelo bem comum.
3. A TEORIA DA EMPRESA CONSAGRADA PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E A LEI DE FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
A consagração da teoria da empresa no novo Código Civil Brasileiro unificou os temas concernentes ao Direito civil e comercial,
além de tornar a empresa o alicerce fundamental do Direito empresarial. O Direito de empresa é tutelado pelos artigos 966 até 1.195 do
referido Código, em que estão dispostas as matérias relativas aos empresários, às sociedades simples e empresárias, ao estabelecimento
empresarial e institutos complementares.
A teoria da empresa inova, ao adotar como critério para a aferição do empresário o exercício da atividade econômica organizada,
que tem por finalidade a produção ou circulação de bens ou serviços. Atualmente, além de atender aos aspectos somente jurídicos,
o Direito empresarial também norteia as empresas para que haja preocupação com o âmbito social e a coletividade, de forma que se
configure e exerça efetivamente a função social.
O Código Civil vigente não estabelece explicitamente a definição de empresa, a qual pode, no entanto, ser extraída do conceito
atribuído a empresário. De acordo com o art. 966, caput, do CC/2002, é considerado empresário aquele que exerce profissionalmente
atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Dessa forma, de acordo com entendimento
de Campinho (2011, p. 11), a empresa “manifesta-se como uma organização técnico-econômica, ordenando o emprego de capital e
trabalho para a exploração, com fins lucrativos, de uma atividade produtiva”. Da mesma forma, Coelho (2011, p. 33) também conceitua
empresa como atividade econômica organizada de produção ou circulação de bens ou serviços e, sendo uma atividade, a empresa não
tem natureza jurídica de sujeito de direito nem de coisa.
Portanto, a moderna concepção de empresa pode ser sintetizada como atividade exercida por um sujeito de direitos e obrigações
(o empresário) que organiza, profissionalmente, os fatores de produção com a finalidade de produzir ou circular bens ou serviços, sendo
esta atividade de caráter econômico junto ao mercado consumidor, com o intuito de obter lucros.
3.1 Precedentes históricos da lei de falências
O direito falimentar passou por diversas transformações, traçando uma linha evolutiva ao longo do tempo. Na Antiguidade, em
caso de insolvência, a dívida contraída pelo devedor tinha, como pagamento, seu corpo ou até mesmo sua vida, que poderia ser executada
pelo credor.
O direito romano, inicialmente, baseava-se na ideia de que a insolvência deveria ser satisfeita através dos mesmos métodos
executórios operados na Antiguidade, considerando o princípio de que o corpo do devedor respondia pela dividas contraídas (REQUIÃO,
1998, p. 8). Posteriormente, aboliu-se a ideia da responsabilização pessoal em caso de insolvência e passou a adotar-se, como método
liquidante, a responsabilização patrimonial do devedor, através dos institutos das chamadas bonorum venditio, missio in bona e bonorum
cessio.
A bonorum venditio é tida como a primeira forma de expressão da execução patrimonial. Através desse instituto, o pretor –
funcionário da Justiça na Roma Antiga - tinha autonomia para confiscar os bens do devedor, com o intuito de pressionar o pagamento
da dívida. Caso o estado de insolvência prevalecesse, um curador era determinado para o desapossamento e administração dos bens
(ALMEIDA, 2007, p. 5). Devido às inúmeras fraudes ocorridas na vigência da bonorum venditio, foi instaurado a cessio bonurum. Nas
palavras de Requião (1998, p. 8-9):
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Essa prática [a da bonorum venditio], todavia, se prestou a muitas fraudes, surgindo, então, a missio
in bona, sob a supervisão e controle do pretor, permitia-se, então, ao credor imitir-se na posse do
patrimônio do devedor, mediante petição ao pretor, podendo tal pedido ser apresentado por um ou
mais credores. Mas a decisão do magistrado, concedendo a missio in bona, dependia da confissão da
divida, da fuga ou ausência do devedor. Afinal ocorria a venda dos bens para proporcionar o pagamento,
através da bonorum venditio [realizada pela magister]. Como se pressente, a cessio in bona [ou a missio
in bona] era o procedimento preliminar, objetivando a venda dos bens do devedor, tornada pela lei a
garantia dos credores. E desse mecanismo jurídico primitivo que se delineia, o instituto da falência.
Desaparecendo o devedor, pela fuga ou banimento, ocorria o desapossamento de seus bens (missio
in bona), que eram custodiado pelo credor, para posterior venda (bonorum venditio), sob as ordens e
controle do magistrado.
A missio in bona e a bonorum cessio contribuíram para o surgimento do concursum creditorum, baseado na iniciativa dos
credores. O concurso creditório, assim conhecido no Direito brasileiro, foi instaurado na Idade Média e era disciplinado pelo Estado.
Os credores eram obrigados a habilitarem-se, com a finalidade de obter os bens do devedor através da atuação do juiz incumbido de
repartir, entre eles, os créditos reunidos. Nesse contexto histórico, substitui-se a prática do concurso de credores pela falência, que era
considerada delituosa, e, consequentemente, a ela estavam associadas penalidades, que variavam da prisão à mutilação, sendo o falido
considerado fraudador.
O Direito falimentar, após a Idade Média, começa a ganhar maior expressividade e a se difundir para outros países, como
consequência da crescente atuação da atividade comercial na Itália. As Ordenações Afonsinas - uma coleção de leis destinadas a regular a
vida doméstica dos súditos do Reino de Portugal, durante o reinado de D. Afonso V, e que foram posteriormente revistas por D. Manuel
e publicadas com a denominação de Ordenações Manuelinas -, foram uma inspiração para a elaboração do Código Comercial Francês de
1807, que instituiu maiores exigências e imposições ao falido. Como consequência das transformações do Código Comercial, a falência
revelou-se de caráter econômico e social, modificando o conceito de empresa, que passou a ser considerada uma instituição social
(ALMEIDA, 2007, p. 6-7).
O direito falimentar brasileiro, durante o período colonial, encontrou sua fundamentação jurídica nas Ordenações Afonsinas
e Filipinas. A disciplina de tais institutos era fundamentada no concurso de credores, que priorizava aquele que tinha a iniciativa da
execução. Em seguida, o Código Comercial de 1850 inovou ao inserir, no direito pátrio, os institutos da falência, da concordata suspensiva
e da moratória. A falência estava associada à ideia de criminalidade, ao passo que a concordata suspensiva tinha a sua aplicação limitada
à concordância dos credores, e, por fim, a moratória, que foi instituída com a finalidade de que fosse evitada a concessão da falência,
prorrogando o prazo para o pagamento da dívida.
Dessa forma, após analisadas as transformações sofridas pelo Direito falimentar desde a antiguidade até a vigência do Código
Comercial de 1850, delimitaremos a nossa abordagem às transformações trazidas pelo Decreto-Lei nº 7.661/45 e às inovação da vigente
Lei de Falência e Recuperação de Empresas, que serão abordados nos tópicos seguintes.
3.2 O Direito falimentar após a vigência do Decreto-lei n. 7661/45
A concessão de falência, após a vigência do Decreto-lei nº 7.661/45, baseava-se em três elementos principais: o devedor
comerciante, a insolvência e a sentença declaratória de falência. A Lei de Falências, como também é chamada a Lei de Falência e
Recuperação de Empresas, tem por finalidade a proposição da falência, culminando na liquidação do patrimônio do devedor. A declaração
da falência tem o intuito de atender aos interesses dos credores, deixando a possibilidade de uma recuperação empresarial em segundo
plano.
A lei falimentar era composta pelo instituto da concordata, que se subdividia em duas espécies: a concordata preventiva e a
concordata suspensiva. A preventiva pode ser definida como aquela postulada para se prevenir a declaração de falência, ao passo que
a suspensiva restitui ao falido a livre administração de seus bens. No antigo Código Comercial, atualmente revogado, a legitimação para
a concordata suspensiva era determinada pela maioria dos credores com dois terços no valor de todos os créditos (ALMEIDA, 2007, p.
301).
Dessa forma, durante a vigência do antigo Código Comercial, percebia-se uma insuficiência dos institutos da falência e da
concordata para a preservação ou recuperação da empresa. O Decreto-lei nº 7.661/45 modificou a legislação falimentar, resultando na
extinção da concordata suspensiva e alterando a preventiva para a chamada recuperação judicial. De acordo com Requião (1998, p.12):
Na verdade, os institutos da falência e da concordata se revelaram estreitos para atender aos vultosos
interesses, privados e públicos, envolvidos nas grandes empresas, que manipulam valores econômicos
e sociais. O conceito moderno de empresa, como atividade do empresário destinada à produção ou
circulação de bens ou serviços, fatalmente acarretaria a tomada de outras posições do direito falimentar.
Vivemos, assim, em pleno terceiro estagio, no qual a falência passa a se preocupar com a permanência
da empresa e não apenas com sua liquidação judicial.
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Não obstante o Decreto-Lei nº 7.661/45 ocasionou significativas alterações no direito falimentar, tornou-se, cada vez mais,
obsoleto, em virtude da sua ineficácia na preservação e recuperação de empresas. Dessa forma, o direito de empresa precisava de
inovações, que vieram incorporadas na Lei de Falência e Recuperação de Empresas, vigente desde 2005, a qual prioriza a recuperação
empresarial, em grande parte dos casos, por levar em consideração os princípios da função social da empresa e da preservação da
atividade empresarial.
A análise da condição em que se encontra a empresa é de suma importância para que se faça uma ponderação e se encontre
uma forma mais viável de atender às reais necessidades, haja vista que, embora a recuperação seja uma alternativa que propicie melhores
consequências para a empresa, em certos casos, a proposição falimentar é a solução mais adequada.
O direito falimentar, após superar o instituto da concordata e dar ênfase à preservação da empresa, cedeu espaço para a Lei
11.101/05. Embora feitas as alterações na legislação, a recuperação judicial atende às mesmas finalidades da concordata, trazendo
consigo a função de recuperar economicamente o devedor, proporcionando a continuidade das atividades empresariais. Nesse sentido,
art. 47 da referida lei dispõe que:
A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira
do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos
interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo
à atividade econômica.
A recuperação judicial traz, em seu contexto, a ideia de preservação da atividade empresarial, tendo como finalidade proporcionar
a possibilidade de superação da situação de crise do devedor, salvaguardar e garantir a manutenção da empresa e atender aos interesses
de todos os que a compõe: aos trabalhadores, interessam o emprego e o salário, ao passo que os credores visam à execução de seus
créditos. Esse instituto é voltado à continuidade da empresa, a sua função social e ao estímulo à atividade econômica (PACHECO, 2007,
p. 06).
O legislador atentou para listar possíveis alternativas para a recuperação da empresa, propondo medidas que estão elencadas
no art. 50 da supradita lei. Sobre as alternativas listadas, Coelho (2011, p. 385) faz as seguintes considerações:
A lei contempla lista exemplificativa dos meios de recuperação da atividade econômica. Nela, encontram-se
instrumentos financeiros, administrativos e jurídicos que normalmente são empregados na superação
de crises em empresas. Os administradores da sociedade empresária interessada em pleitear o benefício
em juízo devem analisar, junto com o advogado e demais profissionais que os assessoram no caso, se
entre os meios indicados há um ou mais que possam mostrar-se eficazes no reerguimento da atividade
econômica. Como se trata de lista exemplificativa, outros meios de recuperação da empresa em crise
podem ser examinados e considerados no plano de recuperação. Normalmente, aliás, os planos deverão
combinar dois ou mais meios, tendo em vista a complexidade que cerca as recuperações empresariais.
Entre as inovações trazidas pela Lei n. 11.101/2005, está a recuperação extrajudicial, que era considerada um ato de falência,
na vigência do Decreto-lei 7.661/1945. Atualmente, ao revés, incentiva-se a negociação entre devedor-credor, como expresso no artigo
161, segundo o qual “o devedor que preencher os requisitos do art. 48 desta Lei poderá propor e negociar com credores o plano de
recuperação extrajudicial”. Outra novidade é a possibilidade de concessão da recuperação da empresa, pelo juiz, mesmo que haja rejeição
do plano de recuperação pela assembleia geral de credores. Para tanto, contudo, são necessários, de acordo com os incisos I ao III,
expressos no § 1º do artigo 58:
I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes
à assembleia, independentemente de classes;
II – a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja
somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;
III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores,
computados na forma dos §§ 1o e 2o do art. 45 desta Lei.
Para que se usufrua da concessão da recuperação judicial sem o pleno consentimento dos credores, os requisitos acima
elencados devem ser obedecidos de forma cumulativa.
Finalmente, verifica-se que as inovações criadas pela Lei de Falência e Recuperação de Empresas revelaram características
econômicas e culturais que convergem para um mesmo caminho: a preservação da empresa. Da viabilização, por parte do Estado, de
condições que assegurem a possibilidade de recuperação, bem como a valorização da permanência da atividade empresarial, depreende-se
que o ordenamento brasileiro aprecia o direito da empresa em crise ao consagrar a preservação desta em consonância com os princípios
constitucionais.
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4. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA COMO INSTRUMENTO EFETIVO PARA RECUPERAÇÃO E PRESERVAÇÃO EMPRESARIAL
A existência de empresas é um fator imprescindível para que haja desenvolvimento socioeconômico da comunidade e, portanto,
é necessário que exista uma dinâmica favorável entre todos os subsistemas que, combinados, compõem a atividade empresarial. Apesar
de possuir viés essencialmente capitalista e de basear-se na busca pelo próprio lucro e crescimento, a empresa transcende esses valores
e, guardadas as devidas proporções, gera inúmeros benefícios aos cidadãos. Como consequências positivas da atividade empresarial,
é importante destacar a produção de serviços, a geração de empregos, a contribuição tributária e a fomentação da economia local
e nacional, em menor e maior escala. É destacável, no entanto, que algumas empresas baseiam-se em possíveis benesses que sua
existência proporcionaria à sociedade e que, como será exposto mais adiante, contribuem para sua preservação, para continuarem
a exercer atividades predatórias. Ressalvados esses casos, é interessante pontuar que, para as empresas que realmente contribuem
positivamente para o desenvolvimento social através de suas atividades, é necessário que haja aparato legal e políticas públicas, nos quais
estas possam encontrar refúgio, para que continuem desenvolvendo-se e contribuindo para o bem da coletividade.
Conforme exposto previamente, a Lei de Falência e Recuperação de Empresas de 2005 inovou ao incorporar determinados
princípios ao Direito de empresa. O princípio da preservação da empresa tem sua origem nos princípios da busca pelo pleno emprego e
da função social da propriedade e, apesar de não estar expresso no texto da Constituição, nota-se o seu reconhecimento material. Essa
“metanorma que orienta o Direito empresarial”, nas palavras de Mamede (2010, p. 118), tem seus alicerces fincados no reconhecimento
das contribuições positivas prestadas, pela empresa, para a sociedade. De acordo com o mesmo autor:
Por isso, a crise econômico-financeira da empresa é tratada juridicamente como um desafio passível
de recuperação, ainda que cuide de atividade privada, regida por regime jurídico privado. Como se
não bastasse, a previsão de um regime jurídico para a preservação da empresa decorre, igualmente, da
percepção dos amplos riscos a que estão submetidas as atividades econômicas e seu amplo número de
relações negociais para além de sua exposição ao mercado e seus revezes constantes.
A adoção deste princípio é mais um incentivo à busca pelo processo de recuperação em detrimento do encerramento das
atividades por meio da abertura do processo falimentar. Este último pode ser prejudicial e, em alguns casos, representa maior desvantagem
até para os credores, cujos créditos podem nem ser liquidados, em virtude do esgotamento de recursos da empresa falida. A recuperação
de empresas, por sua vez, possibilita que se mantenham a estrutura organizacional e societária, além dos serviços realizados, ainda que
com modificações do Estado, e que, apesar de ter sofrido devido a uma crise ou má gestão, a empresa não seja comprometida em sua
totalidade. O estímulo à atividade empresarial é inclusive uma das funções do Estado, que deve dar instrumentos e condições para que
a empresa se recupere.
Mormente em casos nos quais a dívida possui valor ínfimo, é preferível que se inicie o processo de recuperação, em vez
de decretar-se a falência da empresa, uma vez que as causas motivadoras da permanência empresarial são mais significativas, para a
sociedade, do que a falência em decorrência do débito existente. Ademais, no Direito brasileiro, o instituto da falência não pode ser
utilizado como um instrumento de coação para pagamento de dívidas. Corroborando para essa preposição, decidiu a 4ª Turma do STJ:
PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE FALÊNCIA AJUIZADA SOB AÉGIDE DO
DECRETO-LEI 7.661/1945.
IMPONTUALIDADE. DÉBITO DE VALORÍNFIMO. PRINCÍPIO DA
PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. 7.6611. O princípio da preservação da empresa cumpre preceito da
norma maior, refletindo, por conseguinte, a vontade do poder constituinte originário, de modo que
refoge à noção de razoabilidade a possibilidade de valores inexpressivos provocarem a quebra da
sociedade comercial, em detrimento da satisfação de dívida que não ostenta valor compatível com a
repercussão socioeconômica da decretação da quebra. 2. A decretação da falência, ainda que o pedido
tenha sido formulado sob a sistemática do Decreto-Lei 7.661/45, deve observar o valor mínimo exigido
pelo art. 94 da Lei 11.101/2005, privilegiando-se o princípio da preservação da empresa. Precedentes.
7.6619411.1013. Recurso especial não provido (BRASIL, 2012a).
Caso o decreto falimentar seja imediatamente proferido, sem a possibilidade de recuperação, todos os benefícios proporcionados
pela empresa cessarão. Ao revés, é mais indicado que seja dada, ao empresário, a chance de manter sua atividade econômica através de
um plano de recuperação judicial eficaz. É importante destacar que solicitar a recuperação é um direito do empresário, mas esta não pode
ser confundida com um favor judicial, ao passo que sua concessão depende da aceitação do plano de recuperação pela assembleia geral
de credores, conforme art. 56, § 4º, da Lei n. 11.101/2005. Caso o plano seja rejeitado, o juiz decretará falência.
A consideração de que as benesses promovidas à coletividade devem ser consideradas em detrimento da quitação da dívida
individual dá margem a diversas polêmicas. Entre elas, destaca-se – e não entraremos no mérito de discorrer profundamente sobre
ela, mas somente de pontuá-la – a decretação de falência para quitação de créditos trabalhistas, julgados em foro especializado. Nesse
contexto, é razoável que se considere, além dos princípios do direito, as consequências práticas do encerramento da atividade econômica
em números, isto é, o contingente de indivíduos que serão prejudicados pelo fim de seus empregos, de onde tiram o sustento familiar,
em decorrência do pagamento de créditos trabalhistas reconhecidos perante a Justiça laboral. LEXMAX - revista do advogado
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O juízo axiológico não pode ser facilmente atribuído, pois há diversas perspectivas a serem analisadas antes de decretar-se o que é, de
fato, justo ou injusto. Nosso entendimento, no entanto, coaduna-se com o do relator Ministro Luís Felipe Salomão ao julgar que
o valor que prepondera é o da preservação da empresa, até mesmo para, depois, se levantar recursos
para o pagamento dos empregados. Permitir que “cada um defenda o seu crédito” implica em [sic] colocar
abaixo o princípio nuclear da recuperação, que é o do soerguimento da empresa, a par de colocar em
risco o princípio da “par conditio creditorum”. (BRASIL, 2008b, p. 9)7.6619411.1013. Recurso especial
não provido (BRASIL, 2012a).
Diante disso, observa-se que a função social da empresa, bem como os demais princípios dela derivados, tange diversas áreas
do Direito e gera uma série de polêmicas quando casos práticos são analisados com mais precisão.
A jurisprudência dominante tem rejeitado pedidos de busca e apreensão de instrumentos que sejam imprescindíveis para
a atividade empresarial, como veículos ou maquinários, porque se reconhece que o processo falimentar só poderá ser evitado se o
empresário tiver, de fato, uma chance para recuperar-se. Para tanto, a empresa deve continuar funcionando e operando duas atividades.
Nesse sentindo, observa-se a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP):
AGRAVO DE INSTRUMENTO. ARRENDAMENTO MERCANTIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. LEI DE
FALÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL, Se o objetivo da recuperação judicial é justamente superar a
crise econômica-financeira pela qual passa o devedor, primordial a manutenção do veículo alienado em
sua posse, por ser essencial para o exercício de suas atividades. Decisão mantida. Recurso improvido.’
Ante o exposto, CONHEÇO e NEGO PROVIMENTO ao agravo de instrumento interposto pelo Autor,
mantendo a r. decisão agravada (SÃO PAULO, 2009c).
Além do reconhecimento da necessidade de preservação da atividade empresarial em decorrência da função social exercida
pela empresa, reconhece-se também que são plurais os motivos que podem levar ao mau funcionamento desta e que, muitas vezes, essas
causas estão além da corrupção ou da falta de sorte no mercado. Em algumas ocasiões, a empresa adquire dívidas por causa da má gestão
de um sócio, o qual poderá ser afastado e, consequentemente, a gestão empresarial passará a funcionar corretamente, ou por causa do
mau funcionamento de um dos setores de produção, o que também pode ser reparado com a execução de um plano de recuperação,
dentro de um prazo. Dessa forma, seria precipitado decidir pelo fim da empresa antes de prover condições para que se recupere e não
sucumba a um problema inicialmente superável. Destaca-se, contudo, que relação obrigacional que, na ocasião, é positiva de dar (uma
vez que acarreta na necessidade de pagamento de créditos, quando houver a liquidação da empresa), existente entre o empresário e o
credor, é mantida em todos os casos.
A consideração dos princípios da função social e da preservação da empresa são consequências de uma perspectiva vanguardista
sob a qual o Direito passa a ser analisado atualmente. Essa nova abordagem tem como objetivo reduzir as atividades socialmente
predatórias – como a exploração da classe trabalhadora pela classe detentora dos meios de produção, objetivando somente o lucro e o
prestígio individual – e valorizar os benefícios sociais proporcionados pela atividade empresarial. Além de representar mero incentivo à
preservação da empresa e à produção de bens ou serviços e lucros, a recuperação, seja judicial ou extrajudicial, possibilita maiores chances
de continuidade dessa atividade com base nas benesses, para a coletividade, consequentes dela, quais sejam: a manutenção de empregos,
o pagamento de tributos ao Estado, a movimentação da economia local e o desenvolvimento da região em que se instala a empresa,
conforme exposto anteriormente. A incorporação desses fundamentos pelo Direito é refletida por leis como a Lei de Recuperação e
Falência, a qual, quando contrastada com institutos mais antigos, como a concordata, revela que o direito empresarial evolui juntamente
com a sociedade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A evolução do Direito falimentar brasileiro é refletida pela atual Lei de Falência e Recuperação de Empresas – Lei n. 11.101/2005.
Uma das grandes diferenças entre essa Lei e a legislação anterior é que os institutos da recuperação judicial e extrajudicial assumiram
o centro do direito empresarial, outrora ocupado pela falência. Os objetivos dos dois institutos diferem entre sim, pois, à medida que a
falência visa à liquidação da empresa para execução dos créditos, a recuperação, tanto judicial quando extrajudicial, tem como objetivos a
reorganização da empresa em crise econômico-financeira, com a finalidade de retomar a atividade empresarial e preservar a função social
da empresa, que é fonte geradora de renda, tributos e empregos.
A função social da propriedade é um princípio constitucional do qual deriva a função social da empresa - um meio de produção.
Consiste no papel que o empresário deve desempenhar perante a coletividade, pois as consequências da atividade empresarial estão
muito além da geração de lucros e do enriquecimento individual. Podemos apontar, como benefícios sociais proporcionados por essa
atividade, a geração de empregos e, consequentemente, a melhora das condições de vida da região, a produção de bens e serviços, a
movimentação da econômica local e a geração de tributos para o Estado, que devem ser investidos na sociedade. Infelizmente, a atividade
desempenhada pelas empresas também pode ser predatória e exploratória, o que só proporciona malefícios à sociedade, no entanto,
quando a função social e a responsabilidade social são devidamente desempenhadas, a comunidade é ricamente beneficiada.
Dessa forma, é imprescindível que se reconheça a importância que a empresa desempenha para o desenvolvimento social e que,
em vez de decretar a falência, o que extinguiria essa atividade, o Estado proporcione meios que viabilizem a recuperação e permanência
de uma empresa que se encontra em estado de crise.
Diante do exposto supra, conclui-se, portanto, que a função social da empresa deve ser considerada e valorizada e que a
recuperação judicial, em grande parte dos casos, é o instituto adequado, em detrimento da falência, pois garante a continuidade do
exercício da empresa. Naturalmente, não é possível que se generalize, porque cada caso apresenta suas peculiaridades e, em certas
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ocasiões, a liquidação é a saída mais viável, contudo, mormente quando o mau funcionamento está relacionado à má gestão de um sócio
isoladamente ou a um só setor da empresa, a possibilidade de recuperar-se através de um plano de recuperação representa a solução
mais adequada, pois os problemas econômico-financeiros são contornáveis e a atividade da empresa poderá continuar sendo exercida.
Por fim, devemos enfatizar que a incorporação desses valores ao Direito de empresa representa um rompimento de paradigmas.
A falência, instituto que era anteriormente encarado como uma punição ao fracasso no exercício empresarial, atualmente dá margem
à recuperação e à preservação da empresa, que valoriza os benefícios sociais por ela proporcionados. A jurisprudência pátria também
reconhece isso e tende a se posicionar favoravelmente à continuidade dessa atividade, quando há alguma polêmica relacionada à matéria.
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LEXMAX - revista do advogado
INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE
BENS EM RAZÃO DA IDADE AVANÇADA DOS NUBENTES
Silvana Palitot Patrícia Tavares
RESUMO
A presente pesquisa, elaborada pelo método categórico-dedutivo e abordagem hermenêutica, versa sobre a inconstitucionalidade da imposição do regime da separação obrigatória de bens em razão da idade avançada dos nubentes. O Direito Civil passou por
profundas modificações no último século, com a constitucionalização do Direito Civil, que impõe a compatibilidade entre os institutos
civis e os valores consagrados na Constituição; e a personalização do Direito Civil, que, inspirada na dignidade da pessoa humana, toma
o indivíduo como centro da disciplina, em detrimento do patrimônio, no entanto o legislador pátrio não acompanhou essa evolução,
ao estabelecer a separação obrigatória de bens ao maior de setenta anos, no inciso II do art. 1.641 do Código Civil. O dispositivo
institui uma indevida intromissão do Estado na família, que contraria os princípios constitucionais e infraconstitucionais. A relevância da
pesquisa repousa na incongruência entre a legislação e a realidade social marcada pelo aumento na expectativa de vida da população
e no crescente convívio social e nível de orientação do idoso. O objetivo do presente trabalho consiste na demonstração de que a
norma não visa à proteção do idoso, pois tem caráter preconceituoso e patrimonialista, sendo, por isso, contrária à ordem constitucional
vigente. Desse modo, conclui-se pela necessidade de reforma legislativa, para o fim de revogar o art. 1.641, inciso II do Código Civil, com
fundamento na sua inconstitucionalidade.
Palavras-chave: regime de bens. separação obrigatória de bens. setenta anos. inconstitucionalidade. dignidade da pessoa humana.
ABSTRACT
This study, sponsored by the categorical-deductive method and hermeneutic approach, concerns about the unconstitutionality of the
imposition of the mandatory regime of separation of property due to the advanced age of the intending spouses. The civil law has
undergone profound changes over the last century, with the constitutional civil law, which imposes compatibility between civil institutions
and the values enshrined in the Constitution, and customization of civil law, which, inspired by the dignity of the human person, takes
individual as the center of the discipline at the expense of shareholders. However, the national legislature has not followed this trend by
establishing the mandatory segregation of assets to the greater of seventy, in item II of art. 1641 of the Civil Code. The device establishes
an unwarranted state intrusion in the family, which contradicts the constitutional and infra-constitutional principles. The relevance of
the research lies in the discrepancy between the legislation and social reality, marked by the increase in life expectancy of the population
and the increasing level of social interaction and orientation of the elderly. The aim of this work is to demonstrate that the standard is
not intended to protect the elderly, it has prejudiced and patrimonial character, and therefore it is contrary to the current constitutional
order. Thus, it is concluded by the need for legislative reform to revoke the art. 1641, section II of the Civil Code, on the grounds of
unconstitutionality.
Keywords: marital agreement. mandatory separate property. seventy years. unconstitutional. human dignity.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo a análise da inconstitucionalidade da imposição do regime da separação obrigatória de
bens ao maior de setenta anos, prevista no art. 1.641, inciso II do Código Civil.
O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, ocorrido na segunda metade do século XX e, no Brasil, com a promulgação da
Constituição Federal de 1988, determinou uma mudança no modo de pensar o Direito Civil, com a sujeição de suas normas e institutos
clássicos aos valores traçados na Constituição, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a isonomia.
A dignidade da pessoa humana, consagrada pela Constituição Federal como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art.
1º, III), deve orientar e, se necessário, redefinir os conceitos e institutos do Direito Civil. Nesse sentido, também a família e o casamento
devem ser compreendidos à luz dos valores adotados pela Constituição Federal.
A Carta Política preocupou-se em tratar da família em capítulo próprio (Capítulo VII – Da família, do adolescente, do jovem e
do idoso), delimitando seus princípios fundamentais: proteção à dignidade da pessoa humana, solidariedade familiar, igualdade entre os
filhos, não intervenção estatal, afetividade, função social da família, entre outros.
A tutela jurídica do casamento deve estar alinhada aos valores adotados pela Constituição Federal, entretanto o art. 1.641,
inciso II do Código Civil, contraria os ditames constitucionais ao consignar uma indevida e preconceituosa intervenção estatal na família,
por meio da restrição à liberdade de escolha quanto ao regime de bens do casamento aos maiores de setenta anos.
Essa intervenção representa um retrocesso: não busca a tutela do idoso, de modo inverso, trata-o com desrespeito, ao
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considerá-lo como um incapaz. Em verdade, o referido dispositivo tem caráter exclusivamente patrimonialista, contrariando as ideias
no novo Direito Civil, pautado no movimento da personalização do Direito Civil, fundado na dignidade da pessoa humana, por meio da
valorização do homem, em detrimento do patrimônio.
A doutrina e a jurisprudência vêm reconhecendo a inconstitucionalidade do art. 1.641, inciso II do Código Civil, que viola a
dignidade da pessoa humana, por conferir ao idoso tratamento discriminatório.
O presente trabalho está dividido em dois capítulos. No primeiro capítulo, foi feita uma breve explanação sobre o regime de
separação obrigatória de bens, através da apresentação da sua definição e hipóteses. Além disso, expôs-se a evolução histórica do
regime de separação de bens em razão da idade avançada dos nubentes, restringindo-se ao Direito brasileiro. Esse regime sofreu grandes
alterações com o passar do tempo, mas ainda precisa adaptar-se à realidade atual da sociedade.
O segundo capítulo buscou comprovar a inconstitucionalidade da imposição do regime da separação obrigatória de bens ao
maior de setenta anos, através da abordagem específica de cada um dos princípios constitucionais violados pela norma, bem como da
exposição de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais nesse sentido. Por fim, apontou-se a necessidade de revogação da norma,
como única alternativa possível para adequar o tema aos valores constitucionais, diante da demonstração da impossibilidade de aplicação
da interpretação conforme a Constituição ao caso em questão.
O procedimento metodológico adotado foi o da análise documental, por meio de levantamento bibliográfico sobre o tema
em estudo. A pesquisa utilizou fontes diversas, como a legislação, a jurisprudência, livros e artigos relacionados ao tema, abordando a
doutrina do Direito Civil, que se dedica ao estudo do casamento, dos regimes de bens admitidos no ordenamento pátrio e da doutrina do
Direito Constitucional, que fornece os conceitos necessários sobre a dignidade da pessoa humana, liberdade e isonomia.
2. REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS: ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
2.1 Regime da separação obrigatória de bens: conceito e hipóteses
O regime de bens do casamento pode ser conceituado como o “conjunto de regras de ordem privada relacionadas com
interesses patrimoniais ou econômicos resultantes da entidade familiar” (TARTUCE, 2011, p. 1032). O Código Civil prevê quatro espécies
de regimes de bens: comunhão parcial de bens, comunhão universal de bens, participação final nos aquestos e separação de bens, que
pode ser convencional ou obrigatório.
Segundo leciona Rodrigues (1999, p. 190 e 191), o regime da separação de bens é “aquele em que os cônjuges conservam
não apenas o domínio e a administração de seus bens presentes e futuros, como também a responsabilidade pelas dívidas anteriores
e posteriores ao casamento”. Na separação de bens, não há comunicação entre os patrimônios dos cônjuges, podendo cada um deles
administrar livremente seus bens, também sendo possível a sua livre alienação e oneração, sem o consentimento do outro.
O regime da separação de bens será convencional, quando os cônjuges assim dispuserem no pacto antenupcial; será obrigatório
quando imposto pela lei. O regime da separação obrigatória de bens ocorre em três hipóteses, previstas nos incisos do art. 1.641 do
Código Civil.
O inciso I impõe o regime da separação obrigatória de bens às pessoas que contraírem casamento com inobservância das suas
causas suspensivas, previstas no art. 1.523. São certas situações em que o Código Civil desaconselha o casamento entre determinadas
pessoas, por questões privadas, de caráter patrimonial. Caso a recomendação legal seja ignorada, determina-se a separação de bens,
como uma espécie de sanção.
O inciso III, por seu turno, impõe a separação de bens aos que dependem de suprimento judicial para o casamento, que ocorre
em duas situações: 1) discordância dos pais em relação ao casamento do filho relativamente incapaz (art. 1.519, CC); e 2) casamento do
menor que ainda não atingiu a idade núbil – alcançada aos dezesseis anos (art. 1.517, CC) –, para evitar a imposição de pena criminal
ou em caso de gravidez (art. 1.520, CC). Neste caso, a obrigatoriedade da separação de bens tem a finalidade de proteger os nubentes,
considerados relativamente incapazes pela lei civil, em razão da sua tenra idade.
A doutrina entende que, nesses casos, é possível a posterior alteração do regime de bens, quando cessada a causa suspensiva
(inciso I) ou quando os cônjuges atingirem a maioridade (inciso III). Neste sentido é o Enunciado n.º 262 da III Jornada de Direito Civil:
“Arts. 1.641 e 1.639: A obrigatoriedade da separação de bens, nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil, não
impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs”.
O inciso II, propositalmente abordado ao final desse rol, impõe a separação obrigatória de bens em razão da idade avançada dos
nubentes. A imposição mostra-se injustificada, porque tem caráter patrimonialista e preconceituoso, pois confere ao idoso o tratamento
de incapaz. O dispositivo já sofreu algumas alterações, na tentativa de acompanhar a evolução social, no entanto, ainda mostra-se
inadequado. Além disso, a separação legal de bens, neste caso, é absoluta, não há possibilidade de alteração do regime em momento
posterior, como ocorre nas duas hipóteses citadas anteriormente.
3. CÓDIGO CIVIL DE 2002
A evolução cultural e social tornou o Código Civil de 1916 ultrapassado e deu origem à necessidade de uma nova regulamentação
das relações privadas. As primeiras propostas de alteração do diploma de 1916 surgiram em meados das décadas de 1960 e 1970, no
entanto somente em 2002 foi aprovado o novo Código Civil (Projeto de Lei n.º 634, de 1975).
Alguns doutrinadores criticam o Código Civil de 2002, porque entendem que o referido diploma já nasceu ultrapassado, a
exemplo de Gonçalves (2011, p. 40): “A demorada tramitação fez com que fosse atropelado por leis especiais e pela própria Constituição
[...], especialmente no âmbito do direito de família, já estando a merecer, por isso, uma reestruturação”.
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A Constituição Federal de 1988 é um marco no direito brasileiro. Pôs fim a um regime ditatorial, implantando um
Estado Democrático de Direito. Consagrou a dignidade da pessoa humana e a cidadania como fundamentos da República; assegurou
diversos direitos individuais e coletivos, sociais e políticos, sendo, por isso, chamada de “constituição cidadã”. Com o advento da nova
Constituição, a igualdade foi erigida à categoria de direito fundamental, com previsão no art. 5º, inciso I.
Influenciado pela nova Constituição, o Código Civil de 2002 estabeleceu a igualdade entre os cônjuges, extinguindo as
discriminações existentes no sistema anterior. Dentre outros exemplos, não mais existe o pátrio poder, que foi substituído pelo poder
familiar, a cargo de ambos os cônjuges.
Seguindo o mesmo sentido, a separação obrigatória de bens em razão da idade avançada dos cônjuges foi fixada em sessenta
anos, para ambos os nubentes, com previsão no art. 1.641, inciso II: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: [...]
II – da pessoa maior de sessenta anos”.
A alteração representou um progresso, sob a ótica da igualdade entre os gêneros, entretanto a norma viola outros valores
consagrados pela Constituição Federal de 1988, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade.
Por esse motivo, a imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de sessenta anos, prevista no art. 1.641,
inciso II do Código Civil foi criticado pela doutrina, a exemplo de Fiuza (2010):
A constitucionalidade do regime de separação legal imposto aos maiores de 60 anos vem sendo
discutida, desde a entrada em vigor do Código Civil. De fato, não parece de bom senso a exigência, que
representa uma capitis deminutio aos maiores de 60 anos. A norma os infantiliza, os idiotiza, o que não
condiz com a realidade. Hoje, uma pessoa de 60 anos é ainda um jovem, pelo menos para efeito de
casamento (FIUZA, 2010, p. 981).
Pela importância dos argumentos, merece destaque o entendimento de Dias (2010) que expõe severas críticas ao dispositivo
em comento:
Porém, das hipóteses em que a lei determina o regime da separação obrigatória de bens, a mais
desarrazoada é a que impõe tal sanção aos nubentes maiores de 60 anos [...].
Para todas as outras previsões legais que impõem a mesma sanção, ao menos existem justificativas de
ordem patrimonial. Consegue-se identificar a tentativa de proteger o interesse de alguém. Mas, com
relação aos idosos, há presunção juris et de jure de total incapacidade mental. De forma aleatória e sem
buscar sequer algum subsídio probatório, o legislador limita a capacidade de alguém exclusivamente
para um único fim: subtrair a liberdade de escolher o regime de bens quando do casamento. A imposição
da incomunicabilidade é absoluta, não estando prevista nenhuma possibilidade de ser afastada a
condenação legal (DIAS, 2010, p. 242).
A Constituição Federal, no art. 226, promoveu um grande avanço no Direito de Família, ao reconhecer a pluralidade da família,
que não mais se restringe ao casamento. Desta forma, também a união estável e a família monoparental são consideradas entidades
familiares (art. 226, §§ 3º e 4º), gozando, portanto, da proteção estatal. O art. 1.621, inciso II, também viola a isonomia constitucional
entre o casamento e a união estável, como alerta Dias (2010):
Outro fundamento não deixa margem a qualquer resposta: a escancarada afronta ao princípio da
isonomia que a regra legal encerra. É que essa restrição não existe na união estável. Assim, injustificável
o desigualitário tratamento dispensado ao casamento. As limitações impostas à vontade dos noivos
acabam tornando mais vantajosa a união informal (DIAS, 2010, p. 242).
O Código Civil, no art. 1.725, disciplina o regime de bens na união estável, atribuindo aos companheiros a possibilidade de
regulamentarem suas relações patrimoniais em contrato escrito e, caso não exerçam essa faculdade, aplica-se, no que couber, o regime da
comunhão parcial de bens. Dessa forma, se o idoso viver em união estável, sem contrato escrito que regulamente as relações patrimoniais,
aplicar-se-á o regime da comunhão parcial; mas, se o idoso casar-se, será aplicado o regime da separação obrigatória. Diante da realidade
constitucional vigente, a situação retratada mostra-se inaceitável.
Os doutrinadores civilistas estabeleceram uma hipótese de atenuação da separação obrigatória de bens da pessoa maior de
sessenta anos, com a aprovação do Enunciado n.º 261 da III Jornada de Direito Civil, nos seguintes termos: “A obrigatoriedade do
regime da separação obrigatória de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união
estável iniciada antes dessa idade”. Essa hipótese de flexibilização assemelha-se à previsão do art. 45 da Lei do Divórcio, no entanto não
estabelece prazo de duração para a união estável; dessa vez, a exigência recai sobre a idade do nubente, pois a convivência deve ter tido
início antes do limite de sessenta anos previsto no art. 1.641, inciso II.
Desde a promulgação do Código Civil de 2002, a doutrina identificou a inconstitucionalidade do inciso II do art. 1.641. Reunidos
na I Jornada de Direito Civil, realizada em setembro de 2002, os estudiosos do Direito Civil aprovaram o Enunciado n.º 125, propondo,
desde logo, a revogação do dispositivo, nos seguintes termos:
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125 – Proposição sobre o art. 1.641, inc. II: Redação atual: “da pessoa maior de sessenta anos”. Proposta:
revogar o dispositivo. Justificativa: “A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de
bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida
com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito
quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam
a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime
de bens que melhor consultar seus interesses”.
A jurisprudência também reconhece a inconstitucionalidade da imposição da separação obrigatória ao idoso estabelecida pelo
Código Civil, a exemplo da decisão proferida pela Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da
Apelação Cível nº 70017318940, julgado em 20/12/2006, com relatoria da então Desembargadora Maria Berenice Dias.
Diante da relevância da fundamentação do voto da Relatora, convém abordar os seus principais argumentos. Primeiramente, a
eminente civilista discorda da imposição do regime da separação obrigatória de bens em razão da idade. Para ela, o Código Civil contraria
a evolução social e jurídica, a regra é preconceituosa e destituída de qualquer cientificidade, pois não observou o aumento da expectativa
de vida no Brasil.
Além disso, Dias entende que o art. 1.641, inciso II, viola a dignidade da pessoa humana, que é qualidade inerente e indissociável
de todo e qualquer ser humano, relacionada com a autonomia, razão e autodeterminação do indivíduo.
Nesse ponto do trabalho, convém abordar a intrincada questão acerca da aplicabilidade da Súmula n.º 377 do Supremo Tribunal
Federal ao Código Civil de 2002. Conforme citado, a Súmula em comento enuncia que, no regime da separação legal, comunicam-se os
bens adquiridos na constância do casamento.
Esse tema é objeto de forte divergência doutrinária, sendo possível elencar duas correntes contrárias. A primeira corrente
entende que a Súmula está cancelada, pois seu fundamento decorria do art. 259 do Código Civil de 1916 (“Art. 259. Embora o regime
não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na
constância do casamento”), que não foi reproduzido no diploma de 2002. A segunda corrente, por seu turno, defende que a Súmula é
plenamente aplicável, porque está fundada na vedação do enriquecimento sem causa, prevista nos arts. 884 a 886 do Código Civil. Esse
último entendimento tem prevalecido entre os doutrinadores (TARTUCE, 2011).
4. ESTATUTO DO IDOSO (LEI N.º 10.741/2003)
Antes da análise da Lei n.º 10.741/2003, é importante ressaltar que a Constituição Federal foi bastante tímida, ao tratar especificamente da pessoa idosa, no “Capítulo VII – Da família, da criança, do adolescente, do jovem e do idoso”, integrante do “Título VIII – Da
ordem social”.
Em seu art. 230, a CF atribuiu à família, à sociedade e ao Estado o dever de amparar os idosos, assegurando a sua participação
na comunidade e defendendo sua dignidade e bem-estar, bem como garantindo-lhes o direito à vida. Além disso, os §§ 1º e 2º do
referido artigo, preveem, respectivamente que os programas de amparo aos idosos preferencialmente serão executados em seus lares e
a gratuidade dos transportes públicos coletivos aos maiores de sessenta e cinco anos.
Historicamente, o Estatuto do Idoso foi elaborado diante do fenômeno da descentralização ou descodificação do Direito Civil,
seguindo a tendência dos microssistemas jurídicos. Sobre os microssistemas, lecionam Gagliano e Pamplona Filho (2010, p. 90): “são
compostos de uma legislação setorial dotada de lógica e principiologia própria, destinada a regular institutos isolados ou uma classe de
relações, o que afasta a incidência da regra geral do Código Civil, que se torna inaplicável, na espécie”.
Os microssistemas jurídicos destinam-se a proteger alguns grupos considerados hipossuficientes, conferindo-lhes a igualdade
material prevista na Constituição Federal. Os microssistemas estabelecem os princípios que irão reger as relações travadas por esses grupos
e buscam tutelar de forma completa as situações que envolvem essas minorias, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
n.º 8.069/1990), do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990) e do Estatuto do Torcedor (Lei n.º 10.671/2003).
O Estatuto do Idoso foi promulgado em 1º de outubro de 2003, com a finalidade de garantir ao idoso os direitos fundamentais que lhe
são inerentes, bem como evitar e punir qualquer violência ou preconceito praticados contra o idoso. Dessa forma, o Estatuto do Idoso
passou a considerá-lo, finalmente, como um sujeito de direitos. Conforme estabelece o art. 1º, considera-se idosa a pessoa com idade
igual ou superior a sessenta anos, logo, o nubente tratado no inciso II do art. 1.641 do Código Civil é idoso.
O Estatuto do Idoso tem o objetivo de conferir proteção integral ao idoso e dar maior concretude a direitos que já foram constitucionalmente previstos a todos, como decorrência da dignidade da pessoa humana, inerente a qualquer ser humano, não sendo razoável
qualquer limitação fundada exclusivamente na sua idade.
O art. 2º explicita que o idoso é merecedor de todos os direitos assegurados à pessoa humana. Qualquer restrição que diminua
a incidência da norma é inconstitucional. Os direitos fundamentais devem ser interpretados extensivamente, se o constituinte não
estabeleceu ressalvas, não caberá ao legislador ordinário esta tarefa, dessa forma, a diminuição da liberdade do idoso instituída no inciso II
do art. 1.641 do Código Civil é inconstitucional. Além disso, o art. 2º assegura ao idoso as oportunidades e facilidades para a preservação
de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
O art. 3º, por seu turno, é enfático ao tratar dos direitos do idoso, impõe à família, à comunidade, à sociedade e ao Poder Público
a obrigação de efetivar os direitos assegurados ao idoso, entre eles, a liberdade, a dignidade e o respeito. O Poder Público, no papel
de legislador ordinário, descumpriu este dever ao limitar a liberdade do idoso no que tange ao direito à escolha do regime de bens no
casamento.
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Outra importante passagem do Estatuto do Idoso, que interessa a este trabalho, é o Capítulo II, intitulado “Do direito à liberdade,
ao respeito e à dignidade”, que no caput e parágrafos do art. 10 assegura vários direitos ao idoso.
O art. 10, caput, impõe ao Estado e à sociedade a obrigação de assegurar ao idosos a liberdade, o respeito e a dignidade,
explicitando que o idoso deve ser tratado como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais garantidos no
âmbito constitucional e legal. A previsão parece óbvia, no entanto, a literalidade da declaração é necessária. A pessoa idosa, durante muito
tempo, sofreu violações a seus direitos mais básicos, sem poder contar com uma proteção específica e efetiva, que somente passou a
existir com a edição do Estatuto do Idoso.
O § 1º trata especificamente da liberdade do idoso, estabelecendo um rol exemplificativo de aspectos ligados a esse direito,
como a liberdade de locomoção, de expressão, de crença e de culto religioso, dentre outros. A liberdade do idoso deve ser interpretada
de forma extensiva, assim, a limitação na escolha de regime de bens do casamento, com a imposição da separação obrigatória viola o
Estatuto do Idoso.
O § 2º, por seu turno, define o direito ao respeito, merecendo destaque a inviolabilidade da integridade psíquica e moral, bem
como a preservação da sua autonomia. Esses aspectos são desrespeitados pelo Código Civil, que no inciso II do art. 1.641 trata o idoso
como um absolutamente incapaz, impondo indevidamente a separação obrigatória de bens em razão da idade avançada.
Por fim, o § 3º atribui a todos o dever de zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. A dignidade da pessoa humana é direito fundamental garantido a todos pela
Constituição Federal. Ainda assim, o legislador resolveu enfatizar a dignidade do idoso, consagrando-a também neste trecho do Estatuto
do Idoso.
5. CÓDIGO CIVIL DE 2002, COM ALTERAÇÃO DADA PELA LEI N.º 12.344/2010
A Lei nº 12.344, de 9 de dezembro de 2010, alterou a redação do inciso II do art. 1.641 do Código Civil, com a finalidade de
aumentar para setenta anos a idade a partir da qual se torna obrigatório o regime da separação de bens no casamento.
O legislador mostrou-se bastante tímido com esta alteração. Deveria ter revogado o dispositivo e não apenas aumentado o
limite da idade. A reforma do Código foi bastante criticada pela doutrina. A título de exemplo, reproduz-se o entendimento de Dias
(2010?), em artigo intitulado “Mais 10!”:
O Estado acaba de conceder aos idosos mais 10 anos de lucidez. Dos 60 aos 70 anos.
Esta é a mudança trazida pela Lei 12.344, de 10/12/2010, ao impor o regime da separação legal de
bens a quem casar a partir dos 70 anos de idade.
[...]
Agora – sabe-se lá baseado em que estudos, teorias ou descobertas – acaba de ser decretado que até
os 70 anos homem e mulheres tem plena capacidade. Depois desta idade, os “velhinhos” podem tudo.
Ou quase. Continuam com o direito de fazer o que quiserem: votar e serem eleitos; seguir trabalhando;
sustentar a família; tirar empréstimos consignados. Também podem fazer o que desejaram de seus bens.
Só não são livres para casar. Até podem fazê-lo, mas a lei presume que ninguém ama alguém com mais
de 70 anos e tenta protegê-lo deste ingênuo sentimento.
[...]
O alcance da imposição é flagrantemente inconstitucional, pois afronta um punhado de princípios: o
da liberdade, da igualdade e o da dignidade. Isto para citar apenas alguns. Há decisões afastando dita
heresia, mas são poucas. Com a lei, tendem a desaparecer, já que devem os juízes se curvar diante da
mudança.
Apesar de ter sido festejada, este é o real alcance da nova lei que tem um conteúdo dos mais retrógrados.
Chancela um absurdo. Quem sabe para não frustrar a expectativa de eventuais herdeiros, que avizinham
a possibilidade de receber os bens do parente que, afinal, já está velho e não tem o direito de ser feliz.
Venceu a ganância dos parentes, que tem mais valor do que o amor.
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Agiu mal o legislador, ao alterar a redação do inciso II do art. 1.641 do CC. Deveria ter revogado o dispositivo, para o fim de
adequar a legislação à realidade social, especialmente no que diz respeito ao aumento da expectativa de vida do brasileiro e da crescente
integração social e cultural do idoso. Segundo análise do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicada no ano de 2008,
a vida média no Brasil passou de 45 para 70 anos entre os anos de 1940 e 2000.
Nada justifica que alguém, pelo fato de ter atingido a idade de setenta anos, perca a liberdade de escolher o regime de bens do
seu próprio casamento. A norma é preconceituosa, porque presume a incapacidade de discernimento do idoso para a escolha do regime
de bens do casamento, no entanto, este mesmo idoso é plenamente capaz para realizar todos os demais atos da vida civil.
A opção do legislador não visa à proteção do idoso, mas dos seus herdeiros, apresentando um caráter patrimonialista, que viola
a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade.
6. INCONSTITUCIONALIDADE DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS AO MAIOR DE SETENTA ANOS
6.1 Princípios aplicáveis aos regimes de bens
6.1.1 Princípio da intervenção mínima
Primeiramente, é importante ressalvar que este não se trata de um princípio exclusivo dos regimes de bens. É um princípio do
Direito de Família, sendo também aplicável à questão específica dos regimes de bens do casamento.
O princípio da intervenção mínima ou da liberdade está previsto no art. 1.513 do Código Civil e proíbe qualquer interferência,
pública ou privada, na comunhão de vida instituída pela família. Acerca deste princípio, leciona Lôbo (2011):
125 – Proposição sobre o art. 1.641, inc. II: Redação atual: “da pessoa maior de sessenta anos”. Proposta:
revogar o dispositivo. Justificativa: “A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de
bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida
com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito
quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam
a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime
de bens que melhor consultar seus interesses”.
Ao estabelecer o regime de separação obrigatória ao maior de setenta anos, o legislador interfere diretamente na família,
reduzindo a liberdade dos cônjuges quanto à escolha do regime de bens que melhor aprouver aos seus interesses.
6.1.2 Princípio da liberdade de escolha do regime de bens
O princípio da liberdade está previsto no art. 1.639, caput do Código Civil, é concretização da autonomia privada no âmbito
familiar. Segundo este princípio, podem os nubentes, por meio de pacto antenupcial, estipular o que quiserem em relação aos seus bens.
Caso optem por não exercer esta faculdade, será aplicado o regime legal.
O pacto antenupcial é um contrato solene, que exige escritura pública. É um documento facultativo: sua inexistência ou nulidade
não interferem na validade do casamento, apenas induzem a aplicação do regime legal – o da comunhão parcial de bens (art. 1.640).
O princípio da liberdade não é absoluto, pois, como visto, o regime da separação obrigatória de bens é imposto nas hipóteses
previstas nos incisos do art. 1.641.
6.1.3 Princípio da variedade dos regimes de bens
O Direito brasileiro não impõe aos nubentes uma determinada espécie de regime de bens. Pelo contrário, o Código Civil
disciplina quatro regimes diferentes, quais sejam: o da comunhão parcial (arts. 1.658 a 1.666), que é o regime legal; o da comunhão
universal (arts. 1.667 a 1.671); o da participação final nos aquestos, criado pelo Código Civil de 2002 em substituição ao antigo regime
dotal (arts. 1.672 a 1.686); o da separação de bens, que pode ser convencional ou obrigatória (1.687 e 1.688).
De acordo com este entendimento, podem os cônjuges estabelecer, por exemplo, um regime misto, combinando dois ou mais
dos regimes previstos no Código: comunhão parcial em relação aos bens imóveis e separação quanto aos bens móveis (TARTUCE, 2011).
6.2 Princípios constitucionais violados
6.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (Constituição Federal, art. 1º,
III) e, segundo Sarlet (2001),
é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos
e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante
e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência
e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2001, p. 60).
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O fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, ocorrido na segunda metade do século XX, ocasionou uma mudança no modo de
pensar a disciplina, determinando a sujeição de suas normas e institutos clássicos aos valores traçados na Constituição, entre eles, a
dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, também a família e o casamento devem ser compreendidos à luz dos valores adotados pela Constituição Federal,
entretanto esse novo panorama do Direito Civil não foi observado pelo legislador quando estabeleceu a separação obrigatória de bens
em relação ao idoso.
A regra prevista no inciso II do art. 1.641 do Código Civil vulnera o princípio da dignidade da pessoa humana, porque representa
um tratamento desumano, à medida que presume a incapacidade do cônjuge com base exclusivamente na sua idade. A título de exemplo,
reproduz-se trecho de julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo o qual aborda a inconstitucionalidade da norma por violação ao
princípio em comento:
A eficácia restritiva da norma estaria, ainda, a legitimar e perpetuar verdadeira degradação, a qual,
retirando-lhe o poder de dispor do patrimônio nos limites do casamento, atinge o cerne mesmo da
dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República (art. 1º, III, da Constituição
Federal), não só porque a decepa e castra no seu núcleo constitutivo de razão e vontade, na sua
capacidade de entender e querer, a qual, numa perspectiva transcendente, é vista como expressão
substantiva do próprio Ser, como porque não disfarça, sob as vestes grosseiras de paternalismo
insultuoso, todo o peso de uma intromissão estatal indevida em matéria que respeita, fundamentalmente, à consciência, intimidade e autonomia do cônjuge.
(Apelação Cível 007512-4/2-00, TJSP, julgamento 18/08/98, São José do Rio Preto, Relator: Cezar
Peluso).
Segundo o julgado acima, a imposição da separação obrigatória de bens ao idoso atinge a dignidade da pessoa humana em
dois aspectos: primeiramente, porque tolhe a capacidade da pessoa, retirando-lhe a razão e vontade; e porque constitui uma descabida
ingerência do Estado na vida privada da pessoa, no âmbito matrimonial e familiar, a mais íntima das relações humanas.
6.2.2 Princípio da liberdade
A Constituição Federal, já na abertura do Título II, referente aos direitos e garantias fundamentais, assegura a todos a inviolabilidade do direito à liberdade (art. 5º, caput).
Segundo a lição de Cunha Júnior (2011, p. 682), o direito à liberdade “consiste na prerrogativa fundamental que investe o ser
humano do poder de autodeterminação ou de determinar-se conforme a sua própria consciência. Isto é, consiste num poder de atuação
em busca de sua realização pessoal e de sua felicidade”.
É sabido que os direitos fundamentais são dotados da característica da relatividade ou limitabilidade, isto é, os direitos
fundamentais não são absolutos, podem sofrer limitações, justificadas pela necessária compatibilização em relação a outros direitos. O
disposto no inciso II do art. 1.641 do Código Civil representa uma limitação à liberdade, no entanto essa limitação está fundada numa
visão preconceituosa, que presume a total incapacidade da pessoa, baseada exclusivamente na sua idade avançada.
Considerando que a limitação à liberdade de escolha do regime de bens pelo maior de setenta anos tem caráter preconceituoso,
percebe-se que há uma violação à dignidade humana, como salienta Novelino (2011, p. 442), relacionando a liberdade à autonomia da
vontade e à dignidade: “Dentro do núcleo do valor liberdade encontra-se a autonomia da vontade, caracterizada como o direito de autodeterminação que deve ser assegurado a cada pessoa. A autonomia é incindível da dignidade”.
Dessa forma, a imposição do regime da separação obrigatória de bens ao maior de setenta anos viola a liberdade, sobretudo no
que tange à autonomia da vontade e, por consequência, atinge a dignidade humana.
6.2.3 Princípio da isonomia
DO princípio da isonomia ou igualdade determina que “todos merecem as mesmas oportunidades, sendo defeso qualquer tipo
de privilégio e perseguição. O princípio em tela interdita tratamento desigual às pessoas iguais e tratamento igual às pessoas desiguais”,
como leciona Cunha Júnior (2011, p. 676).
A Constituição Federal preocupou-se em garantir a igualdade entre as pessoas e, em seu art. 3º, elencou como um objetivo
fundamental do Estado a promoção do bem de todos, repudiando preconceito de qualquer natureza, inclusive aquele em razão da idade.
O princípio da igualdade é direcionado ao Estado, de modo que este se abstenha de qualquer atuação discriminatória, inclusive
na sua atividade legislativa, conforme ensina Mello (2002):
A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que
necessita tratar eqüitativamente todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo
princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado
pelos sistemas normativos vigentes (MELLO, 2002, p. 10)
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No entanto, o legislador civilista vulnerou a isonomia, ao estabelecer a imposição do regime da separação obrigatória de bens
à pessoa maior de setenta anos. Essa violação ocorre sob dois aspectos: estabelece um preconceito em relação à idade e confere
tratamento diferenciado entre o casamento e a união estável.
6.3 Necessária revogação do inciso II do art. 1.641 do Código Civil
Conforme leciona Novelino (2011, p. 249), a “inconstitucionalidade em sentido estrito decorre do antagonismo entre uma
determinada conduta comissiva ou omissiva do Poder Público e um comando constitucional”. Até aqui, buscou-se demonstrar a inconstitucionalidade do inciso II do art. 1.641 do Código Civil, por violar os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da
isonomia.
A Constituição Federal, “além de imperativa como toda norma jurídica, é particularmente suprema, ostentando posição de
proeminência em relação às demais normas, que a ela deverão se conformar (...)” (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 107).
Em decorrência da supremacia constitucional, qualquer norma contrária à Constituição deve ser expulsa do ordenamento
jurídico. No caso do inciso II do art. 1.649 do Código Civil, esta expulsão deverá ser feita por meio da revogação. Segundo o § 1º do
art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n.º 4.675/1942), “A lei posterior revoga a anterior quando
expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.
A revogação do dispositivo em comento depende, portanto, da atividade do Poder Legislativo, para que edite Lei Ordinária
reformando o Código Civil. Ressalta-se que a doutrina recomenda a revogação, conforme o Enunciado n.º 125 da I Jornada de Direito
Civil, transcrito anteriormente.
A título de esclarecimento, registre-se que não é possível a aplicação da interpretação conforme a Constituição ao inciso II do
art. 1.641 do Código Civil; portanto, a revogação é a única solução capaz de sanar a inconstitucionalidade do dispositivo, conforme será
demonstrado adiante.
Sobre a interpretação conforme a Constituição leciona o Eminente Ministro Gilmar Mendes (2010):
Não se deve pressupor que o legislador haja querido dispor em sentido contrário à Constituição; ao
contrário, as normas infraconstitucionais surgem com a presunção de constitucionalidade. Daí que,
se uma norma infraconstitucional, pelas peculiaridades da sua textura semântica, admite mais de um
significado, sendo um deles harmônico com a Constituição e os demais com ela incompatíveis, deve-se
entender que aquele é o sentido próprio da regra em exame – leitura também ordenada pelo princípio
da economia legislativa (ou da conservação das normas). (MENDES, 2010, p. 110 e 111).
A interpretação conforme a Constituição pode consistir num princípio instrumental de interpretação constitucional ou numa
técnica de decisão judicial, de acordo com a lição de Novelino (2011):
Como princípio instrumental, a interpretação conforme impõe que as normas infraconstituicionais
sejam interpretadas à luz dos valores consagrados na Constituição, documento do qual retiram seu
fundamento de validade.
[...]
Como técnica de decisão judicial, a interpretação conforme atua com o escopo de preservação da
autoridade do comando normativo, impedindo a anulação de normas dúbias. Neste caso, para conservar
a validade do dispositivo, confere-se um sentido compatível com o texto constitucional, é dizer, fixa-se
uma determinada interpretação, afastando-se aqueloutra analisada na fundamentação da decisão.
(NOVELINO, 2011, p. 189).
Há um pressuposto para a aplicação da interpretação conforme a Constituição: que a norma seja plurissêmica, isto é, dotada
de mais de um sentido. Segundo Cunha Júnior (2011, p. 230), a interpretação conforme a Constituição “só é legítima quando existir a
possibilidade de várias interpretações, umas em conformidade com a Constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela e que devem ser excluídas”. Logo, diante da literalidade do inciso II do art. 1.641 do Código Civil, não é possível a incidência
da interpretação conforme.
A aplicação da interpretação conforme a Constituição deve atender a certos limites: o sentido literal da norma e a finalidade
almejada pelo legislador. Segundo Novelino (2011, p. 190), “Não é permitido ao intérprete contrariar o sentido literal da lei (interpretação
contra legem), nem o objetivo inequivocamente pretendido pelo legislador com a regulamentação, pois a finalidade da lei não deve ser
desprezada”. A aplicação da interpretação conforme ao dispositivo que impõe o regime da separação obrigatória de bens ao maior de
setenta anos violaria estes limites, à medida que contraria o sentido da lei, bem como o objetivo do legislador.
Dessa forma, resta claro que somente por meio da revogação do inciso II do art. 1.641 do Código Civil será possível a adequação
da norma à ordem constitucional vigente.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exame da evolução histórica do regime da separação obrigatória de bens, percebeu-se que o Código Civil de 1916
estabelecia a separação obrigatória em razão da idade, diferenciando homens e mulheres: para eles, a partir dos sessenta anos e, para
elas, desde os cinquenta. O tratamento era duplamente preconceituoso, pois instituía diferenciações em relação à idade e ao gênero. A
situação foi atenuada de duas maneiras: no âmbito jurisprudencial, com a aprovação da Súmula n.º 377 pelo Supremo Tribunal Federal, e
no âmbito legislativo, com a edição da Lei do Divórcio.
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A promulgação da Constituição Federal de 1988 instituiu uma nova ordem constitucional, que realça os valores da dignidade da
pessoa humana, liberdade, igualdade material, cidadania, dentre outros. A Carta Magna também inovou no tratamento conferido à família,
sobretudo pelo reconhecimento da igualdade entre os cônjuges e da pluralidade da família, sendo consideradas entidades familiares a
união estável e a família monoparental. Diante dessa nova realidade, o Código Civil de 1916 tornou-se ultrapassado, evidenciando a
necessidade de uma nova regulamentação da vida privada.
Eis que, em 2002, foi aprovado o novo Código Civil. O novo diploma alterou o regime da separação obrigatória de bens em
razão da idade avançada dos nubentes, estabelecendo-o para aqueles maiores de sessenta anos, homens ou mulheres (art. 1.641, inciso
II). A alteração representou um avanço quanto à igualdade de gêneros, mas viola outros preceitos constitucionais, a exemplo da dignidade
da pessoa humana, liberdade e igualdade. O dispositivo em comento sofreu profundas críticas da doutrina e da jurisprudência, com
fundamento na sua inconstitucionalidade.
No ano de 2010, o legislador, percebendo as críticas ao inciso II do art. 1.641 do Código Civil, resolveu reformá-lo: aumentou
a idade de separação obrigatória de sessenta para setenta anos. Percebe-se que o legislador ignorou a crescente expectativa de vida do
brasileiro, bem como a inclusão social e cultural do idoso. A iniciativa do legislador ao aprovar a Lei n.º 12.344 foi muito contida. Deveria,
neste momento, ter reconhecido a inconstitucionalidade do dispositivo, promovendo a sua revogação.
O Estatuto do Idoso reconhece-o como sujeito de direitos, garantindo-lhe grande proteção. Este diploma deve ser invocado
como norma complementar à Constituição Federal, porque enfatiza os direitos constitucionais assegurados a todos, com a finalidade de
concretizá-los em relação ao idoso, que se encontra em situação de hipossuficiência, e, portanto, merece proteção especial. O Estatuto
prevê que o idoso deve ser livre, atribui a todos o dever de zelar pela sua dignidade e veda o preconceito em razão da idade. Assim,
também o Estatuto do Idoso é violado pela norma do inciso II do art. 1.641 do Código Civil.
A imposição do regime da separação obrigatória de bens em razão da idade avançada dos nubentes viola três princípios constitucionais:
a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade.
A dignidade da pessoa humana garante a todos o direito de serem tratados com respeito pelo Estado e pela comunidade, assegurando-lhes diversos direitos fundamentais. A dignidade é violada porque a norma do art. 1.641, II do Código Civil confere ao idoso
tratamento preconceituoso, reduzindo a sua capacidade e autonomia na condução dos interesses patrimoniais do casamento.
O direito à liberdade veda a interferência estatal na vida do cidadão, que goza de autonomia para gerir os seus interesses, desde
que observados os direitos dos demais e certos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico. A imposição do regime da separação
obrigatória de bens ao idoso acarreta uma violação à liberdade porque é uma restrição preconceituosa.
A Constituição Federal garante a todos a igualdade material. Esta igualdade é vulnerada pelo inciso II do art. 1.641 do Código
Civil em dois aspectos: primeiro porque confere tratamento preconceituoso ao idoso, por meio de uma presunção de incapacidade;
depois porque viola a equiparação entre o casamento e a união estável.
Diante da demonstração da inconstitucionalidade da imposição do regime da separação obrigatória de bens em razão da idade,
conclui-se que é necessária a revogação do inciso II do art. 1.641 do Código Civil, para que haja a adequação da legislação cível à ordem
constitucional vigente e à realidade social contemporânea.
É importante salientar que, no caso em tela, é incabível a aplicação da interpretação conforme a Constituição, porque tem
como pressuposto a pluralidade de significados da norma; além disso, devem ser observados dois limites: o sentido literal da norma e a
finalidade almejada pelo legislador. Esses requisitos impedem a utilização da interpretação conforme ao caso concreto, porque a norma
tem apenas um sentido, não havendo mais de uma interpretação possível; e a interpretação conforme violaria o sentido literal da lei, bem
como o fim pretendido pelo legislado. Dessa forma, ressalta-se que a revogação do inciso II do art. 1.641 da Lei Civil é a única medida
juridicamente possível para a adequação do Código Civil ao ordenamento jurídico brasileiro.
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PATRIMÔNIO MÍNIMO E BEM DE FAMÍLIA: O PAPEL DA JURISPRUDÊNCIA DO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NA AMPLIAÇÃO DA PROTEÇÃO
À ENTIDADE FAMILIAR
Ana Caroline Gouveia Valadares¹
RESUMO
O presente artigo é pautado na análise contemporânea do direito civil, com base na releitura civil-constitucional que estabelece
uma visão principiológica dos instrumentos civilistas, sobretudo, no que diz respeito ao direito das obrigações. Neste contexto, a dignidade
da pessoa humana passa a ser o norte interpretador das relações jurídicas, com a estrita observância aos princípios da boa-fé objetiva
e da função social do contrato. No estudo, foi dado enfoque ao instituto do bem de família e a sua impenhorabilidade prevista em lei, a
qual possui profunda relevância na seara jurídica obrigacional, uma vez que é um artifício que visa à proteção da dignidade da família do
devedor, em caso de ocorrer a sua insolvência. Nesse sentido, foi analisada a doutrina de Luiz Edson Fachin a respeito do estatuto jurídico
do patrimônio mínimo, corroborando com a necessidade de existência do bem de família. O instituto em questão foi observado a partir de
sua gênese de seu tratamento no ordenamento jurídico brasileiro, indo-se da legislação à aplicação do direito, passando a estudar a figura
do Superior Tribunal de Justiça (STJ) como responsável pela uniformização da legislação infraconstitucional, com enfoque na ampliação
interpretativa que foi dada a esse dispositivo, conferindo maior efetividade na proteção à entidade familiar. A metodologia utilizada foi a
análise doutrinaria e, sobretudo, jurisprudencial.
Palavras-chave: patrimônio mínimo. constitucionalização. bem de família. direito das obrigações. Superior Tribunal de Justiça.
ABSTRACT
The present article is ruled by the contemporary analisys of the civil law, based on the civil and constitutional reinterpretation,
which estabilishes a principiological vision of civil instruments, specially on the subject of contract law. In this context, the dignity of the
human being turns out to be the interpretative north of juridical relations, under the strict observance of the principles of objective good
faith and social function of the contract. The focus of this survey is the homestead and its immunity from seizure, stipulated by law, which
possesses deep relevance in juridical contract ambit, once it is a device that aims protection to the debtor’s family dignity, in case of
insolvency. In this regard, the analysis of Luiz Edson Fachin’s doctrine concerning the juridical statute of minimum patrimony corroborate
with the necessity of homestead existence. The institute in question have been observed since the genesis of its treatment into brazilian
legal system, from the legislation to the law enforcement, proceeding to study the figure of the Superior Court as responsible for the standardization of the infraconstitutional legislation, with interpretative expansion approach that was given to this device, providing greater
effectiveness in protecting the family unit. The methodology used was the doctrinal and, mainly, jurisprudencial analysis.
Keywords: minimum patrimony. constitutionalization. homestead. law of obligations. Supreme Court of Justice.
1. INTRODUÇÃO
Com a Constituição da República de 1988, consolidou-se, efetivamente, o fenômeno da constitucionalização do direito civil.
Nessa esteira, são observadas alterações de paradigmas muito relevantes, ao passo que a introdução de princípios no ordenamento
jurídico positivado fez com que a interpretação e a aplicação do direito sofressem mudanças substanciais, passando o princípio da
dignidade da pessoa humana a ser o vetor do sistema jurídico como um todo.
Neste contexto, figura o direito das obrigações, que passa a ser norteado pelos princípios da boa-fé objetiva e da função
social do contrato. Há uma releitura da relação obrigacional, chegando a ser substituída na doutrina pela ideia de processo obrigacional,
evitando a polarização entre credor e devedor.
Sobre a figura do instituto do bem de família, repousa a tese de Fachin, intitulada teoria do estatuto jurídico do patrimônio
mínimo, que versa sobre a necessidade de o ordenamento jurídico assegurar um patrimônio mínimo, garantindo, em respeito à dignidade
da pessoa humana, o mínimo existencial. Com esse embasamento, o estudo em apreço visa, então, estudar a figura do instituto jurídico
da impenhorabilidade do bem de família, uma vez que ele constitui uma limitação relevante ao direito do credor de ter o seu crédito
executado. O que se confronta é a dignidade da pessoa humana, refletida no direito à moradia constitucionalmente estabelecido, em
detrimento do direito do particular em ter o que lhe é devido.
Destarte, o que se pretende é trazer o fenômeno de valoração das relações jurídicas ao debate na aplicação do direito, que
ensejou a ampliação da força normativa do instituto do bem de família. Em meio à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ),
formaram-se entendimentos com esse propósito, os quais constituem o objetivo deste trabalho, ao serem efetivamente analisados.
¹Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista do Programa de Monitoria da disciplina Direito Civil I vinculada ao
Departamento de Direito Privado do CCJ/UFPB.
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2. RELEITURA DO DIREITO PRIVADO: ENFOQUE CIVIL-CONSTITUCIONAL DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Nos primórdios do fenômeno da positivação do direito, com o Código de Napoleão de 1804, muito se preocupou em estabelecer
a separação evidente entre o direito público e o direito privado. Paulatinamente, essa dicotomia veio sendo superada, ao passo que foram
sendo evidenciadas, em um primeiro momento, interferências de normas de ordem pública no âmbito privado, acarretando a chamada
publicização do direito privado.
No século XX, os estudos e a interpretação do direito, influenciados pelo contexto histórico e pelos acontecimentos e avanços
tecnológicos da época, pautaram-se no que se convencionou chamar de pós-positivismo jurídico, ocasionando a guinada interpretativa,
à medida que se passou a observar a dogmática jurídica a partir de valores e de princípios.
Desse modo, surge uma nova concepção do direito, desta vez, pautado em pilares principiológicos, os quais conduzem a
sistematização jurídica a uma preocupação, cada vez mais, constante com o ser humano.
Neste momento, o que se evidenciou foi a positivação, nas constituições, de princípios oriundos do direito civil, os quais
passaram a nortear a atividade interpretativa do aplicador do direito no que diz respeito à seara infraconstitucional, garantindo os direitos
e garantias fundamentais, tendo em vista também a sua eficácia horizontal, também são oponíveis no campo privado, ocasionando o
inevitável equilíbrio entre eles e a autonomia privada.
O princípio da dignidade da pessoa humana passou a ser o norte orientador de todo o ordenamento jurídico. Por ser um
conceito jurídico classificado como indeterminado, o legislador e o aplicador do direito receberam o encargo de alcançar o seu conteúdo,
para proporcionar a sua concretização.
Para Barroso (2010. p.60), o princípio da dignidade da pessoa humana assumiu dimensão transcendental e normativa, sendo
a Constituição não apenas “o documento maior do direito público, mas o centro de todo o sistema jurídico, irradiando seus valores e
conferindo-lhe unidade”.
Dessa forma, no que diz respeito especificamente ao campo do Direito das Obrigações, nota-se uma mudança de paradigma
interpretativo, visto que a releitura da relação obrigacional conforme os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados é hoje
uma realidade para os aplicadores do direito.
As obrigações passaram a serem vistas como um processo obrigacional, dinâmico e de deveres recíprocos, sem a existência da
polarização entre devedor e credor, à luz do princípio da boa-fé objetiva. Dessa forma, não deve ser vista mais a submissão de uma parte
a outra, uma vez que a relação deve ser vista como bilateral, em que não há apenas uma parte detentora de direitos.
Dessa forma, pode-se observar que, dentro da relação entre credor e devedor, estão presentes obrigações recíprocas e
interligadas, ocasionando, em determinado momento, a oscilação do polo em que cada parte irá figurar. Assim, é observado o seu caráter
dinâmico. Nessa esteira, caracteriza-se a obrigação como um processo composto de atividades necessárias à satisfação do crédito,
afastando a estaticidade fundada na polarização entre as partes.
No contexto da existência dos direitos recíprocos, há de se ressaltar que deve haver a observância efetiva do princípio da
cooperação por ambas as partes. Observa-se uma crise de cooperação entre credor e devedor, especialmente, ao longo do século XX. As
partes, na relação obrigacional, ainda que com interesses divergentes, devem atuar sempre na perspectiva da eticidade. Assim, à luz da
boa-fé objetiva, avulta-se a importância do instituto do duty to mitigate the loss² , com o propósito de coibir abusos.
O duty to mitigate the loss se trata de um importante instituto por meio de que impõe-se, ao próprio credor, a obrigação de,
sempre que possível, atuar para mitigar a situação de prejuízo experimentada pelo devedor. No Brasil, já existe, inclusive, ocorrência da
aplicação desse princípio pelo Superior Tribunal de Justiça:
DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO. OBSERVÂNCIA PELAS
PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O
PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR. AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL.
RECURSO IMPROVIDO. 1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico. Observância pelos contratantes em todas as
fases. Condutas pautadas pela probidade, cooperação e lealdade. 2. Relações obrigacionais. Atuação das partes.
Preservação dos direitos dos contratantes na consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos
insertos no ordenamento jurídico. 3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever
de mitigar o próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para que o dano
não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano.
Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor. Infringência aos deveres de cooperação e lealdade. 4.
Lição da doutrinadora Véra Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o prejuízo sofrido. O fato
de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever
contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidencia a ausência de zelo com
o patrimônio do credor, com o consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais
célere dos atos de defesa possessória diminuiriam a extensão do dano.5. Violação ao princípio da boa-fé objetiva.
Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta pela Corte originária, (exclusão de
um ano de ressarcimento).6. Recurso improvido. (STJ - RECURSO ESPECIAL : REsp 758518 PR 2005/0096775-4
Relator: Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), Data de Julgamento:
17/06/2010, T3 - TERCEIRA TURMA)
²Do inglês: dever de mitigar o prejuízo
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Tem-se, pois, caracterizada a dinâmica obrigacional, que se afasta da polarização entre credor e devedor, decorrendo,
diretamente, da boa-fé objetiva, responsável por estabelecer deveres anexos aos polos contrários. Dessa forma, devido à incidência dos
deveres recíprocos, o que se tem é a necessária cooperação entre credor e devedor.
3. A TEORIA DO ESTATUTO JURÍDICO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO E O INSTITUTO DO BEM DE FAMÍLIA
Sendo assim, tendo em vista o processo de personalização ou de despatrimonialização do direito civil, em que o ser humano
passou a ser alvo central das preocupações do ordenamento jurídico, Fachin elaborou sua tese, intitulada teoria do estatuto jurídico do
patrimônio mínimo, que versa sobre a necessidade de o ordenamento jurídico assegurar um patrimônio mínimo, garantindo, em respeito
à dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial.
O estudo de Fachin possui grande relevância na disciplina do bem de família, sendo este uma explicitação do patrimônio mínimo,
estando previsto no Código Civil e na Lei 8.009/90, em suas vertentes convencional e legal. A fim de proteger os direitos inerentes à
personalidade, bem como os patrimoniais, Fachin, por meio da concepção do estatuto jurídico do patrimônio mínimo, busca a valorização
da pessoa humana no tocante ao Direito Privado, dando a devida relevância à dignidade da pessoa humana em detrimento dos institutos
da propriedade privada, que engloba a noção de defesa dos bens inerentes à subsistência pessoal e do direito creditício.
A proposta de repersonalização e despatrimonialização do Direito Civil possui consequências substancias no direito de família.
As disposições da lei nº 8.009/90, legislação específica acerca da impenhorabilidade do bem de família, bem como os parágrafos
referentes aos objetivos da República Federativa do Brasil, elencados no artigo 3º da Constituição Federal, quais sejam a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, no inciso I, e a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais,
no inciso III, demonstram essa preocupação de natureza econômica em relação à estrutura familiar, a qual justifica as disposições legais
em sua proteção.
Entende a doutrina que o caráter de valor econômico do patrimônio é responsável pela compreensão tanto dos seus elementos
ativos quanto passivos, sendo direito patrimonialista, em sua consequência, intrínseco a todos os indivíduos. Isso posto, há a ressalva de
que a exceção de que trata a ausência de patrimônio não desqualifica ninguém de sua condição de sujeito.
O Estado, com o objetivo maior de concretizar a dignidade humana, mitiga o princípio da autonomia privada. É preciso ressaltar
que não há o favorecimento de uma das partes, pois se trata da aplicação do princípio da igualdade. O objetivo não é, pois, preservar um
determinado padrão de vida do indivíduo, mas sim proteger parte do patrimônio, caracterizada como o mínimo existencial, com o intuito
de concretizar a proteção à dignidade da pessoa humana.
O estatuto jurídico do patrimônio mínimo demanda a garantia do mínimo existencial, de forma que os seus conceitos não se
misturam. Segundo Fachin (2001):
A pessoa natural, ao lado de atributos inerentes à condição humana, inalienáveis e insuscetíveis de apropriação,
pode ser também, à luz do Direito Civil brasileiro contemporâneo, dotada de uma garantia patrimonial
que integra na sua esfera jurídica. Trata-se de um patrimônio mínimo mensurado consoante parâmetros
elementares de uma vida digna e do qual não pode ser expropriada ou desapossada. Por força desse princípio,
independente de previsão legislativa específica instituidora dessa figura jurídica, e, para além de mera impenhorabilidade como abonação, ou inalienabilidade como gravame, sustenta-se existir essa imunidade
juridicamente inata ao ser humano, superior aos interesses dos credores.
Em caso de inadimplemento, a responsabilidade patrimonial recai sobre o próprio devedor, a título de reparação do que se deve
ao credor, como é o entendimento que se tem sobre o assunto. O texto do art. 341 do Código Civil, sob a luz desta teoria, não deve ser
considerado completamente, em razão de, em caso de inadimplemento das obrigações, responderem todos os bens do devedor, o que
contraria a tutela do patrimônio mínimo do devedor. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 38)
Em conclusão, o estatuto jurídico do patrimônio mínimo, se devidamente satisfeito e utilizado, promove o princípio da dignidade
humana, evitando decisões que, porventura, venham a ceifar o indivíduo do essencial, uma vez que de nada adianta a sobrevivência, se
não houver condições que viabilizem o exercício do livre arbítrio e o pleno desenvolvimento da personalidade.
4. A DISCIPLINA DO BEM DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O instituto do bem de família possui raízes no direito americano, na República do Texas, notadamente com o Homestead
Exemption Act, para a proteção da pequena propriedade, em virtude da grande crise em que se encontravam os Estados Unidos, resultando
na procedência comum de penhoras realizadas pelos credores. Destarte, a influência logo chegou à França, que editou a lei instituidora
do bien de famille. (AZEVEDO, 2002, p. 28-37)
Em um breve histórico, o advento da legislação específica no Brasil se deu no contexto dos insucessos dos planos governamentais
da época, os quais ensejaram uma maior proteção do devedor. Sobre o assunto, vale transcrever as palavras do prestigiado ex-Ministro
de Justiça Saulo Ramos (GONÇALVES, 1998. p. 28-30):
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Nos últimos meses do governo Sarney, o processo inflacionário disparou, sob o impacto das declarações do
Presidente eleito em 1989 e sua futura Ministra da Fazenda, que ameaçavam deixar a esquerda aturdida
e a direita estarrecida. Juntou-se a nós o saudoso advogado FERRO COSTA, [...] entusiasta do homestead
norte-americano [...] era preciso adotar em defesa da família brasileira, sacrificada pelos planos econômicos
e, sobretudo, diante do desastre que se antevia no Governo Collor. Informei que já havia tratado do da
matéria em projeto enviado ao Congresso. Estávamos na última semana de mandato do Presidente SARNEY,
que considerou a matéria urgente e relevante. Concordamos que para inovar em profundidade somente
poderíamos adotar o modelo texano, o resto seria paliativo, como nos ensinara VICENTE RÁO há mais de
trinta anos. [...] quando foi decretado o confisco dos ativos financeiros do povo pensei que o Governo Collor
iria retirar a mensagem, mas o novo Ministro de Justiça ignorava sua existência. Felizmente, o Congresso
aprovou-a sem alterações e promulgada foi pelo Senador NELSON CARNEIRO, grande batalhador pelo direito
de família em nosso mais, que, emocionado, me transmitiu a notícia por telefone, pedindo que comunicasse a
SARNEY. Assim, a Lei nº. 8.009, de 29 de março de 1990, nasceu limpa.
Segundo a lição de Azevedo (2003, p. 11), “o bem de família é um meio de garantir um asilo à família, tomando-se o imóvel onde
ela se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade”.
Como bem analisado em tópico anterior, quando do estudo do estatuto jurídico do patrimônio mínimo, o bem de família é,
além de uma forma de efetivar o direito constitucionalmente estabelecido à moradia, um meio de proteger a entidade familiar, vez que
concretiza aquilo estabelecido por Fachin como patrimônio mínimo necessário para garantir a dignidade da pessoa humana.
Historicamente, o bem familiar surgiu no Código Civil de 1916, em sua Parte Geral, em que havia o tratamento dos bens, vindo
a possuir posteriormente previsões em outras leis ordinárias. Apenas em 1990, foi promulgada a Lei nº 8.009/90, destinada a tratar o
instituto em minúcias, trazendo consigo a figura do bem de família obrigatório, também conhecido como legal ou involuntário. A novel
legislação, à época, imputou ao Estado a proteção do bem de família, não mais dependendo de seus integrantes. No atual Código de
2002, agora na Parte Especial, encontra-se apenas a disciplina do bem de família voluntário, a qual se encontra na parte referente ao
direito patrimonial.
A Constituição Federal de 1988 introduziu, em seu artigo 5º, XXVI, o bem de família rural, objetivando proteger a pequena
propriedade.
Dessa forma, temos, no atual patamar do ordenamento jurídico brasileiro, dois regimes para o instituto em pauta, isto é, o bem
de família voluntário, também conhecido como convencional, e o bem de família involuntário, legal ou obrigatório. Partir-se-á, então, para
análise de ambos os regimentos.
O bem de família convencional, cuja disciplina advém do Código Civil, consiste na proteção voluntária e espontânea da parte
interessada, que se utiliza do registro público no cartório de imóveis, para conferir publicidade que justifique a impenhorabilidade e a
inalienabilidade do bem. A legislação de 2002, à luz da Carta Cidadã de 1988, autoriza a instituição do bem também por ato da esposa,
cristalizando a igualdade entre o homem e a mulher, preconizada pela Lei Maior. (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 913)
A legislação também autoriza que o bem de família seja instituído, além de pelo casal, por terceiro, através do testamento, e pela
entidade familiar, que compreende, em seu conceito, a união estável, a família monoparental, o solteiro.
As principais consequências da instituição do bem de família são a impenhorabilidade e a inalienabilidade, ambas relativas. O
bem familiar se torna impenhorável com efeitos relativos às dívidas posteriores à sua instituição e, se anteriores, apenas das que dizem
respeito a tributos e a despesas de condomínio referentes ao mesmo prédio. Já a inalienabilidade advém da destinação do bem ao
domicílio e ao sustento familiar, sendo sua alienação excepcional e possível mediante o consentimento dos interessados, com a oitiva do
Ministério Público. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012. p. 411)
A vertente voluntária possui, ainda, expressa limitação conferida pelo Código Civil. Em seu artigo 1.711, é estabelecido o
limite máximo de um terço do patrimônio líquido do instituidor à época da instituição, objetivando-se que não fiquem todos os recursos
inatingíveis, em caso de insolvência.
O diploma civil também cuidou em estabelecer as formas para a extinção da proteção, desde que necessária à manutenção da
família, entre seus artigos 1.719 e 1.722. Como bem observou Rodrigues (2004, p. 154), o bem de família voluntário não alcançou grande
sucesso, e pode-se atribuir a isso o fato de o Estado ter transferido tamanha responsabilidade ao particular.
Partindo-se para a análise do bem de família legal, toma-se, como base, a Lei n° 8.009/90, que ampliou a compreensão do instituto,
passando a resultar, de forma direta, da lei, e não mais de ato volitivo do instituidor. De acordo com a redação de seu artigo 1º:
Art. 1º. O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por
qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges
ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.
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O parágrafo único do artigo em questão ainda aduz que “a impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a
construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que
guarnecem a casa, desde que quitados”.
Vale ressaltar, ainda, que essa proteção não é absoluta. Até pouco tempo, assim dispunha a lei³:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal,
previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições
previdenciárias;
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do
imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III - pelo credor de pensão alimentícia;
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do
imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela
entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória
a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Na esteira do alargamento da proteção ao bem familiar, neste ano, foram publicadas duas novas leis que modificaram a
tradicional disciplina do art. 3º da Lei do Bem de Família. A Lei Complementar 105/2015, que dispõe sobre os direitos dos empregados
domésticos, revogou o inciso I do art. 3º, ao passo que a Lei 13.144 traz nova redação ao inciso III do mesmo dispositivo, o qual passa a
dispor que “pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre
união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida”.
Em oposição ao que dispõe a forma voluntária decorrente do Código, a proteção conferida pela Lei nº. 8.009/90 é imediata, ao
derivar diretamente da lei. Dessa forma, não há a necessidade de sua constituição no Cartório de Registros Públicos.
O novo regime de proteção propiciou uma maior concretização da regra oriunda da Lei Maior de garantia do domicílio como um
direito social (CF, art. 6º), sendo uma constatação do patrimônio mínimo da pessoa humana.
Sob a égide da Lei nº. 8.009/90, observa-se que há uma ampliação no objeto da proteção, com a jurisprudência vindo a
considerar impenhoráveis bens, como máquina de lavar, computador, videocassete, ar condicionado, televisão, entre outros, os quais
são necessários para manutenção de uma vida digna. Expressamente, em seu artigo 2°, a lei exclui apenas os veículos de transporte e os
adornos suntuosos.
Ademais, é inegável a estrita relação entre a proteção do bem de família e a relação obrigacional, uma vez que a impenhorabilidade é um empecilho à satisfação do interesse do credor. Nesse sentido, sucintas são as palavras de Lôbo (2011, p. 398):
A Constituição incluiu a moradia entre os direitos sociais, imprescindíveis à pessoa humana, no
art. 6º. A moradia é, portanto, direito mais amplo que o de propriedade ou domínio do bem,
oponível ao Estado, à sociedade e às pessoas. O direito ao crédito não lhe pode sobrepujar. Este
é o fundamento constitucional geral da imunização da moradia à penhora. Mas a Constituição
destacou situação que atribuiu especial atenção, ao determinar que “a pequena propriedade
rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para
pagamentos de débitos decorrentes de sua atividade produtiva” (art. 5º, XXVI), supondo que, além
de unidade produtiva, seja a moradia da família.
Como se vê, há, no que tange à relação obrigacional, um notável conflito de interesses entre o credor, detentor do crédito, e
o devedor insolvente. Observadas as circunstâncias, impenhorabilidade é, então, vista no direito das obrigações como uma limitação à
pretensão do credor de ter o cumprimento do seu crédito.
³Lei 8.009 de 29 de março de 1990.
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5. A PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: AMPLIAÇÃO INTERPRETATIVA DO
INSTITUTO DO BEM DE FAMÍLIA
Depois da construção de um raciocínio lógico-sistemático a respeito da doutrina civil-constitucional, que norteia uma nova
interpretação do direito das obrigações, pautando uma ampla observância à dignidade da pessoa humana, foi possível, a partir da teoria
do estatuto jurídico do patrimônio mínimo, construir a ideia do instituto do bem de família como seu resultado.
Observa-se que, na relação obrigacional, à medida que o devedor se torna insolvente, mesmo tendo o credor o direito à
execução, ela não poderá atingir, ressalvadas as restritas hipóteses legais, o patrimônio mínimo necessário à vida digna do devedor, isto
é, o seu bem de família revestido pela capa a impenhorabilidade garantida em lei.
Partindo dos diplomas legais, cabe, então, aos tribunais, diante de casos concretos, moldar a norma prevista, de acordo com
as situações fáticas. Ao passo em que determinadas situações vão-se tornando recorrentes, as cortes têm a possibilidade de firmar um
entendimento, que poderá se transformar em um norte interpretador para os demais inferiores, a depender da instância, ou consolidar
jurisprudência.
Neste sentido, no estudo em apreço, a figura do Superior Tribunal de Justiça possui um papel decisivo, uma vez que é responsável
pelas matérias de natureza infraconstitucional, em que se inclui o direito civil. Criada pela Constituição de 1988, a Corte é responsável
por ser a guardiã do direito federal, como também por uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional.
É notório que o Tribunal da Cidadania - STJ, desde a sua instituição, reinterpreta o direito privado, fazendo uma releitura a partir
de princípios constitucionalmente estabelecidos, como o da boa-fé objetiva e o da função social do contrato. Dessa forma, a Corte se
direciona de forma a garantir a proteção da dignidade da pessoa humana, principalmente, em lides que há conflitos estabelecidos no
âmbito axiológico.
O STJ coleciona, ao logo dos anos, julgados que lhe dão o patamar de vanguardista em variadas questões. Como bem salientou
o Ministro Luis Felipe Salomão (2013, p. 5), “recentes precedentes desta Corte Superior demonstram forte tendência jurisprudencial de
alargamento da proteção a bens jurídicos relevantes e direitos fundamentais, gerando maior eficácia aos textos legais”.
No que diz respeito ao estudo em questão, direcionado à problemática do bem de família, encontram-se, na jurisprudência da
Corte, diversos julgados e entendimentos consolidados que ampliam o conceito do instituto, ensejando o aperfeiçoamento também da
sua doutrina. A relevância da construção jurisprudencial se torna necessária, principalmente, no que diz respeito às situações que não são,
especificamente, tratadas pelo dispositivo legal, mas que estão presentes na realidade fática.
O objetivo desse Tribunal, sem dúvidas, é promover a aplicação da lei visando aos seus fins sociais, dando maior efetividade ao
art. 6º da Constituição Federal, que impõe o direito à moradia no rol dos direitos fundamentais.
Nessa esteira, é possível analisar o posicionamento do STJ no que diz respeito à temática tanto no conteúdo dos julgados
quanto nas suas súmulas formuladas, que são verbetes editados para exprimir o entendimento da Corte, seja ele pacífico, ou, ao
menos, majoritário. No caso das súmulas do STJ, ao contrário da Súmula Vinculante privativa do Supremo Tribunal Federal, sua eficácia
não condiciona os tribunais inferiores ao seu seguimento, uma vez que apenas tem o condão de ser um norteador, na tentativa de
uniformização da aplicação da matéria.
A respeito do bem de família, destacam-se os verbetes de números 205, 364 e 486, os quais, em seu texto, definem situações
jurídicas que vislumbram uma efetiva ampliação da entidade familiar.
A Súmula 205 dispõe que a Lei do Bem de Família, mesmo datando de 29 de março de 1990, é aplicada também à penhora
realizada antes de sua vigência. Com efeito, anteriormente à sanção da lei, já existia, no ordenamento jurídico brasileiro, a figura do bem
de família voluntário, em que o Estado não interferia, para protegê-lo. O que entendeu o STJ foi que a proteção estatal, que caracteriza o
bem de família legal, poderia retroagir, para efetiva proteção. No mais, o entendimento foi, em parte, criticado por quem vislumbrou uma
proteção ao devedor insolvente.
O verbete de número 364 , certamente, foi um dos que causou maior impacto à realidade jurídica obrigacional, ao passo que
garantiu às pessoas solteiras, separadas e viúvas o direito de usufruir a impenhorabilidade do bem familiar. Como bem salientou o Min.
Humberto Gomes de Barros, a Lei nº. 8.009/90 não visa apenas à proteção da entidade familiar, e sim do direito à moradia destinado à
pessoa humana. (SÚMULA...)
Já a Súmula 486, a mais recente a ser editada pelo Pretório, estabelece que “é impenhorável o único imóvel residencial do
devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua
família”. O entendimento em questão vai além do art. 1º da Lei n°. 8.009/90, o qual caracteriza como bem de família aquele em que ela
reside.
A letra da lei leva à interpretação de que apenas o imóvel utilizado para fins de moradia do devedor ou de sua família estaria
protegido pela impenhorabilidade. Partindo para uma visão da finalidade a que se destina a intenção da lei, dispensa-se a necessidade
de efetiva moradia da família, desde que o imóvel sirva para o seu sustento. Assim, se a locação do bem consista na fonte de renda
substancial para a sobrevivência do devedor, ela está protegida pela incidência da Lei n°. 8.009/90.
Súmula 205 do STJ: A Lei 8.009/90 aplica-se a penhora realizada antes de sua vigência.
Súmula 364 do STJ: O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras,
separadas e viúvas.
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Desse modo, é observável que a intenção proferida pelo verbete do Tribunal da Cidadania foi de efetivamente assegurar a
dignidade dos membros da família, ao passo que não é exigida a habitação, pois uma vez que o aluguel propicia o sustento familiar, o bem
se torna protegido pelo instituto da impenhorabilidade.
Apesar de não sumulados, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de recursos especiais, também vem proferindo decisões de
extrema relevância para o debate suscitado. Nessa esteira, em 2005, no REsp 621.399 – RS, a Corte se posicionou à respeito da impenhorabilidade de imóvel sede de pequena empresa familiar, onde residem os proprietários:
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. EXECUÇÃO FISCAL MOVIDA EM FACE
DE BEM SERVIL À RESIDÊNCIA DA FAMÍLIA. PRETENSÃO DA ENTIDADE FAMILIAR DE
EXCLUSÃO DO BEM DA EXECUÇÃO FISCAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA E LEGITIMIDADE
PARA O OFERECIMENTO DE EMBARGOS DE TERCEIRO. É BEM DE FAMÍLIA O IMÓVEL
PERTENCENTE À SOCIEDADE, DÊS QUE O ÚNICO SERVIL À RESIDÊNCIA DA MESMA.
RATIO ESSENDI DA LEI Nº 8.009/90. 1. A lei deve ser aplicada tendo em vista os fins sociais a
que ela se destina. Sob esse enfoque a impenhorabilidade do bem de família visa a preservar o
devedor do constrangimento do despejo que o relegue ao desabrigo. 2. Empresas que revelam
diminutos empreendimentos familiares, onde seus integrantes são os próprios partícipes da
atividade negocial, mitigam o princípio societas distat singulis, peculiaridade a ser aferida cum
granu salis pelas instâncias locais. 3. Aferida à saciedade que a família reside no imóvel sede
de pequena empresa familiar, impõe-se exegese humanizada, à luz do fundamento da república
voltado à proteção da dignidade da pessoa humana, por isso que, expropriar em execução por
quantia certa esse imóvel, significa o mesmo que alienar bem de família, posto que, muitas
vezes, lex dixit minus quam voluit. 4. In casu, a família foi residir no único imóvel pertencente à
família e à empresa, a qual, aliás, com a mesma se confunde, quer pela sua estrutura quer pela
conotação familiar que assumem determinadas pessoas jurídicas com patrimônio mínimo. 5. É
assente em vertical sede doutrinária que “A impenhorabilidade da Lei nº 8.009/90, ainda que
tenha como destinatários as pessoas físicas, merece ser aplicada a certas pessoas jurídicas,
às firmas individuais, às pequenas empresas com conotação familiar, por exemplo, por haver
identidade de patrimônios.” (FACHIN, Luiz Edson. “Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo”,
Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 154). 6. Em conseqüência “(...) Pequenos empreendimentos nitidamente familiares, onde os sócios são integrantes da família e, muitas vezes, o local de
funcionamento confunde-se com a própria moradia, DEVEM BENEFICIAR-SE DA IMPENHORABILIDADE LEGAL.” [grifo nosso] 7. Aplicação principiológica do direito infraconstitucional à luz
dos valores eleitos como superiores pela constituição federal que autoriza excluir da execução
da sociedade bem a ela pertencente mas que é servil à residência como único da família, sendo
a empresa multifamiliar. 8. Nessas hipóteses, pela causa petendi eleita, os familiares são terceiros
aptos a manusear os embargos de terceiro pelo título que pretendem desvincular, o bem da
execução movida pela pessoa jurídica. 9. Recurso especial provido. (grifos nossos)
A partir de uma concepção doutrinária e teórica, com fulcro na teoria de Fachin sobre o patrimônio mínimo, emitiu-se uma
decisão que garantiu à proteção inclusive a uma pessoa jurídica, tendo em vista a realidade fática de que se tratava de uma empresa
nitidamente familiar. Neste ponto, corrobora-se o alinhamento da Corte Cidadã – STJ, a fazer o diploma legislativo cumprir as suas
finalidades sociais.
Em linhas, pode-se dizer que, com base nos seguintes entendimentos pretorianos analisados, considerados os mais relevantes
no que diz respeito à problemática em questão, o que se observou, com a atuação do Superior Tribunal de Justiça, foi a maximização do
alcance conferido pela Lei nº. 8009. Ressalta-se, portanto, o imprescindível trabalho da Corte no que tange à garantia de direitos básicos
à cidadania. Dessa forma, o STJ assume, condizendo com a sua qualidade de Tribunal da Cidadania, o papel de real efetivador de direitos
fundamentais do cidadão, especialmente, no âmbito da presente temática, o direito à moradia, estabelecido pela Lei Maior de acordo com
as suas implicâncias de ordem infraconstitucional.
A minuciosa análise doutrinária levantada pelo Ministro Luiz Fux impõe a transcrição da ementa em minúcias. STJ Relator: Ministro LUIZ
FUX, Data de Julgamento: 19/04/2005, T1 - PRIMEIRA TURMA.
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante a problemática abordada, o que se pode depreender é que, como foi visto, o fenômeno da constitucionalização do direito
civil culminou em uma mudança na forma como deve ser feita a interpretação jurídica, pautada primordialmente pela dignidade da pessoa
humana.
Assim, com a releitura do direito das obrigações, teve-se a incidência determinante da boa-fé objetiva e da função social
do contrato na relação obrigacional, passando a torná-la condizente com os princípios norteadores, à medida que há a extinção da
polarização entre credor e devedor.
Nessa esteira, o que se notou foi que o instituto do bem de família, bem observado por Fachin, em sua teoria sobre o patrimônio
mínimo, busca garantir ao devedor insolvente os meios de possuir uma vida digna. Objetivou-se, pois, salvaguardar a família brasileira,
conferindo-a a segurança do mínimo existencial, condizente com o que preconiza a Constituição da República.
Destarte, o bem de família constitui uma proteção estatal ao devedor, com interferência importante no direito do credor, mas,
ao ser confrontado o direito à moradia e à satisfação do crédito, aquele se mostra de maior relevância, uma vez que possui natureza
fundamental.
Como foi possível observar, o Supremo Tribunal de Justiça, ao conferir ampliação interpretativa ao instituto, buscou, assim, a
finalidade precípua da lei de proteger a família. Sendo assim, como visto na jurisprudência da Corte, houve um relevante processo de
extensão protetora do bem de família, a partir da interpretação teleológica da lei, firmando a sua posição como Tribunal da Cidadania.
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OS DIREITOS HUMANOS, A HIERARQUIZAÇÃO DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
PÁTRIO E O CASO DO DEPOSITÁRIO INFIEL
Gabriela Pinto Brito de Figueiredo
RESUMO
Examinam-se, neste artigo, o destaque e a relevância que os direitos humanos estão alcançando, principalmente, com o
aprimoramento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Através de uma análise sobre seu conceito, suas características, suas
classificações e posições adotadas, ao serem recepcionados pelo ordenamento jurídico interno, esclarecida fica a importância que esses
direitos estão adquirindo. Além disso, o artigo aborda um tópico acerca da prisão civil do depositário infiel, que trará à luz a importância
da Emenda Constitucional nº 45 e uma reflexão acerca das teorias de hierarquização dos tratados internacionais de direitos humanos.
Palavras-chave: direitos humanos. hierarquia. direito internacional. constituição federal. depositário infiel. emenda constitucional nº 45.
ABSTRACT
This article examines the focus and the relevance that human rights are reaching, especially with the improvement of international
human rights law. Through an analysis of its concept, its features, its classifications and positions adopted by the doctrine of the time it
is introduced into domestic law, clarifying the importance that these rights are acquiring. In addition, the article ends with a discussion
about the civil prison of the unfaithful trustee, which will bring to light the importance of Constitutional Amendment number 45 and a
reflection about the hierarchy theories of international human rights treaties.
Keywords: human rights. hierarchy. international law. constitution. unfaithful trustee. constitutional amendment no 45.
1. INTRODUÇÃO
Neste presente artigo, discorrer-se-á acerca dos Direitos Humanos como um todo, através de uma análise de seus vários
aspectos, de suas dimensões e de sua recepção por nosso ordenamento jurídico, assim como será apresentado o caso da prisão civil do
depositário infiel, com sua jurisprudência, seus precedentes e suas consequências.
Inicialmente serão esclarecidas a três possíveis definições que os Direitos Humanos podem assumir na doutrina: a conceituação
tautológica, a formal e a finalística, que adota o objetivo que se pretende alcançar com tais direitos como ponto de partida.
Em seguida, serão apresentadas as características dos direitos fundamentais, as quais, depois de descritas e esgotadas, levarão ao preciso
entendimento da relevância que atualmente esses direitos alcançaram para a humanidade.
Não obstante, é feito um estudo sobre as dimensões desses direitos, que se dividem em quatro, as quais estão em constante
interação, apresentando complementariedade uma em relação à outra, surgindo em épocas diferentes, de acordo com seus contextos
históricos respectivos.
Apresentar-se-á um embate que é comum no Direito Internacional, o qual diz respeito à soberania dos Estados em relação
às normas contraídas nos tratados internacionais, explicando a caducidade do argumento do princípio da soberania e afirmando a
necessidade de se ter um sistema universal de proteção dos direitos fundamentais.
Serão abordadas as teorias de hierarquização dos tratados internacionais, quando recepcionados pelo Direito interno, tendo,
como enfoque, os tratados de direitos humanos. São quatro ao todo: a tese da supraconstitucionalidade, isto é, hierarquia superior à
própria Constituição; a da constitucionalidade material; a da hierarquia supralegal, que é o status inferior à Constituição e superior à
legislação ordinária; a da hierarquia infraconstitucional, ou status de norma ordinária.
Por fim, analisar-se-á a questão da prisão civil do depositário infiel, como se chegou à sua ilicitude, os argumentos que firmaram
a tese da supralegalidade e o destaque da Emenda Constitucional (EC) nº 45 em todo esse processo.
2 CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS
No senso comum, a definição do que seriam direitos humanos é variável e subjetiva, algumas possuindo uma ideia de variedade
de direitos básicos, outras apenas acreditando que seja supérflua tal questão, pois é bem lógico que cada ser humano possui direitos.
Na doutrina especializada, incorre-se na mesma situação de não se encontrar um conceito uniforme, uma vez que basta um simples
exame das definições existentes para se certificar de que a descrição desses direitos não é tarefa fácil (RAMOS, 2005). A conceituação
de Direitos Humanos é, ao mesmo tempo, óbvia e duvidosa, dependendo do ponto de vista que se adota, ao analisar tais termos.
Há três tipos de definições existentes para explicar o que viriam a ser os direitos humanos (PERES LUÑO, 1995). O primeiro
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tipo tem, como característica principal, a tautologia, isto é, a afirmação lógica e racional que irrompe no subjetivo humano, logo de início,
a qual não aporta elemento novo algum para a sua caracterização. Dessa forma, tem-se, como exemplo, a conceituação de que direitos
humanos seriam aqueles que correspondem ao homem pelo fato de ser homem, entretanto é bem sabido que todos os direitos têm,
como titulares, o homem ou suas emanações, tornando tal conceito incompleto.
O segundo tipo de definição é aquela reconhecida como formal, que não visa à especificação do conteúdo dos direitos humanos,
isto é, de sua materialidade, mas prende-se a alguma indicação sobre o seu regime jurídico especial. Assim, essa conceituação estabelece
que tais direitos são os que pertencem, ou devem pertencer a todos os homens e que não podem deles se privar, uma vez que possuem
regime indisponível e sui generis.
Finalmente, existe a definição que adota, como ponto de partida, o objetivo ou o fim para se atingir a uma descrição dos direitos
humanos. Dessa forma, esse rol de direitos seria
uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos
são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é
capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida (DALLARI, 1998).
No mesmo sentido, os direitos humanos são
faculdades que o Direito atribui a pessoas e aos grupos sociais, expressão de suas necessidades
relativas à vida, liberdade, igualdade, participação política, ou social ou a qualquer outro aspecto
fundamental que afete o desenvolvimento integral das pessoas em uma comunidade de homens
livres, exigindo respeito ou a atuação dos demais homens dos grupos sociais e do Estado, e com
garantia dos poderes públicos para restabelecer seu exercício em caso de violação ou para realizar
sua prestação (PECES-BARBA, 1987).
Ainda mais preciso foi o conceito de Peres Luño, para o qual direitos humanos
é o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as
exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas
positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional (PERES LUÑO,
1995).
Nesse diapasão, os direitos humanos são todas faculdades deixadas ao alcance dos seres humanos para que estes tenham uma
vida digna plena, na medida de suas necessidades.
3 CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS HUMANOS
Para ter uma melhor compreensão da importância alcançada pelos direitos humanos no âmbito internacional, é de muita valia o
estudo das características desses direitos, que permitirá o entendimento da consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos,
com seus muitos tratados, cortes e órgãos assemelhados. Não obstante, servirá de base para conhecimento e aplicação por parte dos
atuantes na área de Direito no Brasil, uma vez que este é signatário de dezenas de tratados de direitos humanos, já reconhecendo a
jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Em sede preliminar, será examinada a superioridade normativa, que é possível de ser compreendida tanto no Direito interno,
quanto no Direito Internacional. No primeiro, as normas de direitos humanos gozam, em geral, de status constitucional, sendo, assim,
superiores às demais normas do ordenamento jurídico, justamente o que se constata no Brasil. Esses direitos estão protegidos e tutelados
na Constituição, e ainda considerados cláusulas pétreas, possuindo, portanto, imutabilidade.
No segundo, por sua vez, essa ideia de superioridade normativa é nova, pois, nessa instância, é comum criar-se normas que
sejam frutos de acordos mútuos, ou seja, provindas da vontade dos Estados e apenas dependentes desta, todavia,
apesar de recente, é certo que hoje se discute a existência de normas imperativas internacionais
(ou normas cogentes), que, por conter valores fundamentais da sociedade internacional, só podem
ser derrogadas por normas de igual dignidade (RAMOS, 2005).
O jus cogen é o grupo de normas que possuem conteúdo essencial para a humanidade, possuindo força frente a outras normas
do Direito Internacional. Esse direito imperativo, que assim se pode chamar, surgiu na doutrina através de debates contra o voluntarismo
existente na esfera internacional, que inicialmente foi criticado por ideias fundadas no Direito Natural, que defende a existência de
normas estranhas à vontade humana, as quais existem independentemente, pois surgem concomitante à humanidade e impõem limites à
liberdade dos Estados em criar tratados. Verdross, jurista alemão, foi um dos primeiros a defender a presença de normas cogentes, com
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argumentos diversos do jusnaturalismo. A sobrevivência da comunidade internacional começava a ser transformada no fundamento para
aceitação universal das normas imperativas.
Pela primeira vez em toda história, a humanidade da Era Nuclear enfrentava o risco do desaparecimento, não de um Estado ou outro, mas sim da própria espécie. Além disso, iniciavam-se as
preocupações ambientais, também capazes de ameaçar a sobrevivência da espécie, uma vez que,
como fruto paradoxal da corrida espacial, o homem descobre-se, em plena década de 70, preso
à Terra (RAMOS, 2005).
Como, então, saber que uma norma faz parte do jus cogens, e quem define que tal norma é cogente ou não? Uma característica
dos direitos humanos é a sua abertura, também reconhecida como principio da não tipicidade, isto é, sempre de acordo com as necessidades humanas de cada período histórico, o rol desses direitos se modifica, com a inclusão de mais alguns.
Outra característica é a indivisibilidade, que corresponde ao entendimento de que os direitos humanos consistem em um único
bloco não passível de repartição, pois todos esses direitos devem ter a mesma proteção jurídica, uma vez que são essenciais para uma
vida com dignidade. Portanto, todos os direitos ditos humanos são jus cogen, já que não podem ser divididos, assim como sua lista não
está esgotada, visto que possuem a característica da abertura, e como é a comunidade internacional que estabelece, em conjunto, quais
são os direitos essenciais à humanidade, por via de consequência lógica, quem define as normas cogentes também é a comunidade internacional.
A quarta característica diz repeito à universalidade, que se pode referir a três distintos planos: o da titularidade, que remete
os direitos humanos serem universais, devido aos seus titulares, que são todos os seres humanos, sem distinção de religião, gênero,
convicção política, raça ou nacionalidade; o da temporalidade, que afirma que os direitos humanos são universais, porque os homens
os possuem em qualquer momento histórico; o da cultura, em que os direitos humanos são universais, porque fazem parte de todas as
culturas humanas (PECES-BARBA, 1999).
O artigo 1.o da Declaração de Viena diz que “a natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas”, e, em seu
parágrafo 5.o, reconhece a universalidade como característica marcante do regime jurídico internacional dos direitos humanos. Importante notar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não mencionou a característica da universalidade em sua redação, porque, ao
momento de sua concepção, a Assembleia Geral da ONU contava apenas com a participação de 58 Estados, e boa parte da humanidade
vivia sob o jugo colonial.
A Declaração de Viena admitiu, sim, que particularidades locais de cada Estado, de cada cultura e religião devem ser sopesadas
diante de algum conflito com os direitos fundamentais, mas afirmou que é obrigação do Estado proteger os direitos humanos, que são
universais, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais.
Outra característica dos direitos humanos é a interdependência, que se alia ao conceito de indivisibilidade.
A ampliação acelerada do número de direitos protegidos fez nascer, por outro lado, a necessidade
da sistematização dos mesmos em uma concepção lógica capaz de dar coerência ao conjunto de
direitos humanos protegidos, em especial nos casos de colisão aparente e concorrência entre eles
(RAMOS, 2005).
Nesse deambular, para se evitar qualquer forma de conflito, é necessário interpretar os tratados de direitos humanos em conjunto, e não separadamente.
Tem-se também a indisponibilidade, como atributo dos direitos humanos, a qual implica entender que esses direitos são irrenunciáveis. Essa indisponibilidade pode ser relacionada a três fatores: a qualidade especial de seu titular, como incapazes, crianças e adolescentes; o seu objeto, como bens fora de comercialização e direitos fundamentais da pessoa humana; as relações jurídico-institucionais,
como o casamento e a família.
Tradicionalmente, a indisponibilidade de um direito fundamental se ancorava no respeito pela ordem pública, mas foi ultrapassada com a consagração da dignidade da pessoa humana no Direito Internacional dos Direitos Humanos e, até mesmo, no Direito interno.
O fundamento da dignidade da pessoa humana traduz a impossibilidade do ser humano se transformar em mero objeto, mesmo que seja
por sua vontade. Dessa forma, torna os direitos humanos indisponíveis, uma vez que estes prezam pela dignidade de todos os indivíduos.
O caráter erga omnes dos direitos humanos é, da mesma forma, necessário de se conhecer. Essa qualidade possui duas facetas:
o reconhecimento do interesse de todos os Estados da comunidade internacional em ter os direitos humanos amplamente protegidos; a
aplicação geral e indiscriminada das normas protetivas a todos os seres humanos, o que implica que todos sob a jurisdição de um Estado
podem invocar tais direitos, sem que a nacionalidade ou seu estatuto jurídico importem, obtendo, assim, acesso às instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos (RAMOS, 2005).
Em 1993, a Declaração da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, por meio de sua redação, consagrou a crescente
preocupação com a implementação dos Direitos Humanos, tendo em vista que a fase legislativa de proteção já estava sendo ultrapassada.
Dessa forma, essa Declaração invocou outro atributo dos direitos humanos: a sua exigibilidade.
A implementação dos direitos fundamentais é o desafio atual que se apresenta a toda comunidade internacional. A Convenção
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Americana exerceu um grande papel nessa área, pois estabeleceu um verdadeiro processo judicial internacional para aqueles Estados que
violassem suas normas, com a integração da Comissão e da Corte Interamericana. As sentenças proferidas pela Corte possuem efeitos
vinculantes, com o propósito de reestabelecer a legalidade internacional.
A Constituição Brasileira de 1988 expressamente estabelece a aplicação imediata – outro atributo – dos direitos humanos, em
seu artigo quinto, parágrafo primeiro, isto é, que as normas de direitos e garantias fundamentais não necessitam de outras normas jurídicas para regularem seus conteúdos.
Já no Direito Internacional, essa particularidade depende da própria redação das normas, que permitirá, ou não, sua aplicação
imediata pelo Direito interno de cada país. Isso gera uma distinção entre as normas de direitos humanos em self-executing e not-self
executing rules.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em importante parecer consultivo, estabeleceu que é admissível a consulta que
tenha, como fundamento, dúvidas acerca da auto-aplicabilidade das normas pertencentes à Convenção Americana de Direitos Humanos,
afirmando a sua competência para decidir sobre cada questão apresentada.
Dessa forma, esse tema não pode ser simplesmente debatido na esfera interna dos Estados. A autoaplicabilidade de uma norma
se sustenta no entendimento de cada órgão internacional responsável por suas respectivas convenções e tratados.
Outro ponto a ser analisado sobre os Direitos Humanos é o que se refere à dimensão objetiva dos mesmos. É necessário entender que esses direitos, além de conferir posições jurídicas aos indivíduos (dimensão subjetiva), geram também regras impositivas de
comportamento para que se tenha proteção plena deles (dimensão objetiva), que, em geral, são direcionadas ao Estado.
Esses deveres geram a criação de procedimentos e também de entes ou organizações capazes
de assegurar, na vida prática, os direitos fundamentais da pessoa humana. À dimensão subjetiva
dos direitos humanos, soma-se essa dimensão objetiva, assim denominada pela sua característica
organizacional e procedimental, independente de proteções individuais (RAMOS, 2005).
Como penúltimo atributo, tem-se a proibição do retrocesso, que traduz a ideia de que não é permitido regredir na seara dos
direitos humanos. É vedado aos Estados que diminuam ou amesquinhem a proteção já alcançada por esses direitos, assim como não é
autorizado que novos tratados os imponham restrições e diminuições.
Finalmente, a última característica dos direitos humanos é a sua eficácia horizontal, que é a aplicação dos direitos fundamentais
nas relações entre particulares, sem a necessária mediação de uma lei.
Existem duas modalidades de eficácia horizontal de normas de tratados internacionais de direitos humanos: a primeira diz
respeito ao reconhecimento no próprio tratado da possível aplicação desses direitos às relações entre particulares; e a segunda consiste
em haver fiscalização continua sobre o cumprimento das obrigações dos Estados em prevenir e sanar as possíveis violações dos direitos
humanos em seu território.
Essa ideia de aplicação horizontal dos direitos humanos se confronta com a tese liberal, que afirma serem esses direitos apenas de defesa contra o Estado, somente possibilitando sua inserção nas relações verticais (indivíduo-Estado). Consequentemente, esse
posicionamento liberal não permite uma eficácia plena dos direitos fundamentais, ignorando a importância de cada individuo poder, sem
qualquer necessidade de mediação, invocar os direitos e garantias individuais nas suas relações privadas.
4 AS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS
Inicialmente, é bastante adequado esclarecer o embate que há sobre os termos “dimensão” e “geração” de direitos humanos.
Aquele vem substituindo este na doutrina, devido a várias críticas pelo fato da palavra “geração” acarretar uma ideia temporal, fomentando, no raciocínio humano, ao estudar mencionado tema, o entendimento de que a segunda geração de direitos ultrapassou a primeira,
assim como a terceira fez sucumbir a segunda. O que realmente não acontece. No lugar de sucessão de direitos, há uma acumulação
(BONAVIDES, 1993). Uma geração não sucede a outra, mas com ela interage, estando em constante e dinâmica relação (PIOVESAN,
1998).
Assim, toma-se o devido cuidado para que se enfatize a questão da complementariedade, interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos, princípios que têm sido enfatizados nas
conferencias internacionais relativas a esses direitos (BORGES, 2014).
É importante compreender também que os direitos humanos, na modernidade ocidental, são frutos históricos de lutas associadas a movimentos burgueses na Europa e nos Estados Unidos, e não, como os jusnaturalistas defendiam, direitos provindos da própria
natureza, pré-existindo ao direito positivo.
A primeira dimensão de direitos humanos engloba os chamados direitos de liberdade, que são aqueles que invocam, majoritariamente, as prestações negativas do Estado, com o intuito de proteger a esfera da autonomia do individuo. Necessário é prestar atenção ao
“majoritariamente”, pois, em certas situações, exige-se uma posição ativa do Estado, para que se garanta a proteção desses direitos. Fazem
parte desse grupo os direitos civis e políticos. São produtos das revoluções liberais do século XVIII na Europa e nos Estados Unidos.
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Os direitos fundamentais que compõem a segunda dimensão são resultados dos impactos provocados pelo avanço da industrialização, guiada pelo capitalismo, no século XIX. Criou-se uma enorme necessidade de ações positivas do Estado para que os indivíduos
viessem a possuir dignidade frente a todas as situações que estavam acontecendo. O socialismo teve bastante influência na luta por esses
direitos de cunho positivo estatal, participando da cobrança e realização dos mesmos (SARLET, 2007). Estão inclusos, nesse grupo, os
direitos sociais e econômicos. Eles possuem como marcos históricos a Constituição Mexicana de 1917 (que regulou o direito ao trabalho
e à previdência social), a Constituição alemã de Weimar de 1919 (que estabeleceu os deveres do Estado perante a proteção dos direitos
sociais) e, no Direito Internacional, o Tratado de Versailles, que criou a Organização Internacional do Trabalho, reconhecendo os direitos
dos trabalhadores (RAMOS, 2005).
Já os direitos da terceira dimensão são aqueles que possuem como titulares a comunidade em geral, assim como grupos menos
determinados de pessoas que não detêm vínculo jurídico ou fático preciso. São os chamados direitos difusos ou transindividuais. Entre
eles, encontram-se o direito à paz, o direito a autodeterminação e o direito ao meio ambiente equilibrado.
Esses direitos
são frutos da descoberta do homem vinculado ao planeta Terra, com recursos finitos, divisão
absolutamente desigual de riquezas em verdadeiros círculos viciosos de miséria e ameaças cada
vez mais concretas à sobrevivência da espécie humana (RAMOS, 2005).
A maioria dos autores ainda defende uma quarta dimensão, que é resultado da globalização dos direitos humanos, tendo como
integrantes os direitos de participação democrática (democracia direta), de informação e direito ao pluralismo (BONAVIDES, 1997).
5 SOBERANIA NACIONAL E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
A proteção dos direitos humanos integra o contemporâneo espaço do Direito Internacional, pois, quando se positiva os direitos
fundamentais em convenções e declarações universais, eles passam a ser reconhecidos simultaneamente para toda a humanidade. Hoje,
temos no Direito Internacional um estabelecido rol de direitos humanos que são protegidos através de mecanismos, também consolidados, de supervisão e controle das ações preventivas ou corretivas de violações a esses direitos por parte dos Estados (RAMOS, 2005).
Isto posto, não é mais aceitável as alegações estatais afirmando que a proteção desses direitos é de exclusivo domínio seu, e que
possíveis averiguações internacionais da sua situação interna ofenderiam ao principio da soberania dos Estados. “Com efeito, a crescente
aceitação de obrigações internacionais no campo de direitos humanos consagrou a impossibilidade de se alegar competência nacional
exclusiva em tais matérias” (RAMOS, 2005).
O desenvolvimento histórico da proteção internacional dos direitos humanos gradualmente
superou barreiras do passado: compreendeu-se, pouco a pouco, que proteção dos direitos
básicos da pessoa humana não se esgota, como não poderia se esgotar, na atuação do Estado,
na pretensa e indemonstrável ‘competência nacional exclusiva’ (CANÇADO TRINDADE, 1991).
Em uma forma ainda mais esclarecedora:
ainda que por sede argumentativa se queira recorrer aos padrões clássicos de soberania, é
necessário ser destacado que mesmo a atuação nacional na celebração de tais tratados é
manifestação da atividade soberana do Estado (CHOUKR, 2001).
Portanto, a proteção alcançada pelos direitos fundamentais no campo internacional é fruto do exercício pleno da soberania dos
Estados, que, através de experiências históricas, perceberam sua impotência na absoluta tutela desses direitos com apenas seus próprios
mecanismos.
6 TEORIAS ACERCA DA HIERARQUIZAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO DIREITO INTERNO
A escolha sobre qual teoria de hierarquia dos tratados de direitos humanos seja a mais adequada dentro de cada ordenamento
interno é uma questão de difícil solução diante dos fortes argumentos em defesa de cada uma delas. Há, na doutrina nacional, quatro
posicionamentos sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos: a tese da supraconstitucionalidade, isto é, hierarquia superior à
própria Constituição; a da constitucionalidade material; a da hierarquia supralegal, que é o status inferior à Constituição e superior à
legislação ordinária; a da hierarquia infraconstitucional, ou status de norma ordinária.
A teoria da supraconstitucionalidade atribui aos tratados de direitos humanos posição superior à Constituição. A doutrina que a
defende atenta, especialmente, para o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o qual dispõe sobre a impossibilidade de o Estado invocar regras do Direito interno para deixar de cumprir um tratado internacional. Além disso, o princípio da boa-fé, que
é, no Direito Internacional, acolhido de forma majoritária pelos Estados, orienta o não descumprimento das normas previstas em tratados
internacionais.
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“Um Estado pode incorrer em responsabilidade internacional mesmo quando a violação do Direito Internacional é cometida por
sua lei básica, ou seja, a Constituição” (MELLO, 2004). Mello foi o maior expoente nacional dessa corrente que defende a superioridade
dos tratados de direitos humanos em relação a todas as normas de do Direito interno. O citado mestre entende que nem mesmo as
emendas constitucionais poderiam revogar os tratados e convenções sobre direitos fundamentais ratificados pelo Estado.
Outro status das normas internacionais que versam sobre direitos humanos é o constitucional. Entre os doutrinadores que
defendem essa tese estão Flávia Piovesan, Valério de Oliveira Mazzuoli, e Antônio Augusto Cançado Trindade. Em sua redação, a Constituição, no artigo quinto, parágrafo segundo, aceita que normas internacionais ampliem o rol de direitos e garantias fundamentais, demonstrando que a lista de direitos humanos e garantias não é taxativo, nem imutável, assim como diz o artigo sessenta, paragrafo quarto,
inciso quarto, da Constituição Federal, mas essa compreensão também encontra grandes debates na doutrina e jurisprudência.
Com o surgimento da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, foram incluídos os últimos parágrafos do artigo quinto. O parágrafo terceiro estabelece que as normas internacionais, relativas a direitos humanos, para que assumam status equivalente à Constituição Federal, deveriam ter quórum qualificado de Emenda Constitucional, ou seja, possuir três quintos dos votos, das duas casas do
Congresso, em dois turnos. Tal modificação legislativa no artigo 5º da Carta Magna prejudicou o entendimento de status constitucional
quanto a algumas normas internacionais, a exemplo da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, que não recebeu esse quórum
de qualificação.
A terceira teoria e, diga-se de início, a mais aceita atualmente no Brasil, é a da supralegalidade. Essa corrente afirma que os
tratados internacionais de Direitos Humanos possuem posição hierárquica inferior à Constituição, mas superior às normas ordinárias.
O Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343, por votação unânime, atribuir aos
tratados que versassem sobre direitos e garantias fundamentais a condição de norma supralegal. Dessa forma, o Brasil adota essa tese
no momento. O referido julgamento teve uma importância de grande tamanho para o Direito brasileiro, pois ao discutir o Tratado de San
Jose da Costa Rica em face da lei ordinária que permitia a prisão civil do depositário infiel, findou por conceder uma posição superior ao
primeiro dentro da hierarquia das normas, possuindo, como consequência, a extinção da prisão civil por divida no caso de depositário
infiel no Brasil. E é justamente por essa importância, que há o próximo e ultimo tópico para um aprofundamento dessa questão.
A última teoria, chamada de teoria da legalidade, defende o posicionamento das suso mencionadas normas internacionais lado
a lado às normas ordinárias, ou seja, na mesma hierarquia que as normas infraconstitucionais. Embora, como visto, a corrente adotada
para os tratados de direitos humanos seja a da supralegalidade, em relação às outras categorias de tratados, adota-se aquela.
Essa concepção hierárquica acarreta problemas para o Brasil, vez que, em caso de lei ordinária posterior ao tratado, aquela poderá retirar deste todos os efeitos, fazendo com que o país descumpra o pacta sunt servanda, que significa que o que for pactuado deve
ser cumprido.
7 A PRISÃO CIVIL DECORRENTE DA CONDIÇÃO DE DEPOSITÁRIO INFIEL
Apesar de ser uma situação já pacificada, é de muita importância sua análise, para compreender a adoção da teoria da supralegalidade para os tratados internacionais de direitos humanos, assim como para questionar se o aludido posicionamento realmente foi o
mais adequado. Afinal, o direito é uma área de conhecimento extremamente mutável, pois seu curso se move paralelamente ao momento
histórico de cada país.
O depositário infiel é aquele que recebe a incumbência judicial ou contratual de zelar por um
bem, mas não cumpre sua obrigação e deixa de entrega-lo em juízo, de devolvê-lo ao proprietário
quando requisitado, ou não apresenta o seu equivalente em dinheiro na impossibilidade de
cumprir as referidas determinações (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014).
Pois bem, a prisão civil do depositário infiel era permitida pelo artigo 5.o, em seu inciso LXVII, da Constituição Federal, assim
como a prisão civil por inadimplemento inescusável do débito alimentar, esta, porém, permanece lícita.
Não obstante o Brasil ser signatário do Pacto de San José da Costa Rica, e este permitir apenas a prisão civil por débito alimentar, o Supremo Tribunal Brasileiro adotou a postura de permissividade para a prisão do depositário infiel, como estabeleceu o Ministro
Mauricio Correa no julgamento do HC 75.512-7/SP:
Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte (paragrafo
2.o, do artigo 5.o, da Constituição) não minimizam o conceito de soberania do Estado-Povo na
elaboração de sua Constituição: Por esta razão, o Pacto de San José da Costa Rica (ninguém deve
ser detido por divida: este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente
expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar) deve ser interpretado com as
limitações impostas pelo artigo 5.o, inciso LXVII, da Constituição.
Entretanto a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, veio a mudar o posicionamento do STF em relação à matéria. Como já
apontado no tópico passado, a partir dessa emenda, adotou-se no Brasil a teoria da supralegalidade dos tratados de direitos humanos e
a do status constitucional para aqueles que fossem aprovados no Congresso como emendas.
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Dessa forma, a Convenção Americana de Direitos Humanos ficou no patamar supralegal, pois não atingiu os votos necessários
para alcançar a posição de uma emenda constitucional. E tal configuração hierárquica revelou uma nova ideia, um novo entendimento
entre os ministros, que reconheceram a superioridade desse tratado em relação à norma ordinária que regulava a prisão civil do depositário infiel.
Assim, a prisão do depositário infiel não foi especificamente considerada inconstitucional, pois
sua previsão segue na Constituição (que é considerada, pelo STF, superior aos tratados), mas foi
considerada ilícita, pela ausência de norma legal valida a lhe respaldar (GAGLIANO; PAMPLONA
FILHO, 2014).
Dúvidas são levantas acerca da existência ou não, então, de uma sanção para o depositário infiel, visto que sua prisão foi considerada ilícita.
Mas a solução é bem simples: a conduta deve ser rechaçada com a exigência judicial da obrigação correspondente, através da
tutela especifica da obrigação de fazer.
Isso tudo sem prejuízo do enquadramento da conduta em tipo penal próprio, seja de apropriação
indébita, seja de disposição alheia como própria (nos termos do artigo 55 da Lei nº 10.931, de
2 de agosto de 2004, c/c o artigo 171, paragrafo 2.o, inciso I, Código Penal), cabendo a devida
notitia criminis a autoridade competente (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014).
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através deste artigo é possível compreender a relevância dos direitos humanos no plano nacional e internacional, a partir de
uma detalhada explicação sobre: seu conceito, que são vários, dependendo do objeto que enfoca; suas características, que totalizam
doze; suas dimensões, em que foi possível discernir a diferença entre dimensão e geração de direitos humanos, tendo em vista que a
última criava uma ideia de ultrapassagem, de superação de um grupo de direitos em relação aos outros, assim como foi importante para a
compreensão do contexto histórico no processo de aquisição desses direitos; sua problemática, que envolve o princípio da soberania dos
Estados; sua hierarquização (quando inscritos em tratados internacionais) ao serem recepcionados no Direito interno, que possui quatro
correntes ideológicas com fortes argumentos cada uma.
Ao final, encontra-se um resumo da história jurisprudencial da prisão civil do depositário infiel, que tem o intuito de expor posicionamento que o STF vem adotando em relação aos tratados internacionais de direitos humanos, com destaque para o julgamento do
HC 75.512-7/SP, assim como demonstrar o prestígio que os mesmos estão adquirindo com o constante crescimento do Direito Internacional.
Importante foi perceber o que a Emenda Constitucional nº 45 acarretou na jurisprudência do nosso país, consolidando a tese
da supralegalidade, que antes sofria uma forte concorrência com a corrente da constitucionalidade material.
Ainda mais relevante é saber que nada é para sempre, muito menos no campo do Direito, que posições novas poderão ser
adotadas de acordo com as necessidades humanas, que novas teorias surgirão, assim como novos casos serão postos à prova, e novos
direitos serão originados. Cumpre, porém, ressaltar o princípio da proibição ao retrocesso, que é a única exceção a essa característica
costumeira do Direito, de estar modificando-se a todo tempo.
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ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS
EM UMA VISÃO CRÍTICO-JURÍDICA E SOCIAL
Edmilson Nunes de Oliveira Nunes Oliveira ¹
RESUMO
Argumenta-se, acerca das distintas formas de inserção de crianças em famílias adotivas, explicitando as dificuldades e conquistas
jurídicas e sociais da homoparentalidade. Da verificação do aparecimento de um conceito hodierno de família, considerado e embasado
na igualdade de direitos, na relevância dos bens jurídicos tutelados, como também na ausência de normatização por lei que regularizem
situações desta natureza, além dos aspectos e embasamentos que estabeleçam uma orientação de tão notável e moderno direito.
Verificamos que o real norte em que se alicerça o direito à adoção por homoafetivos é, sem muitas delongas, o respeito a inúmeros valores
fundamentais, diversos princípios gerais que norteiam o direito no Brasil, concomitante a recomendação e obediência aos princípios
contidos no texto da Constituição Federal de 1988, tais como a dignidade da pessoa humana e da isonomia.
Palavras-chave: família. criança. homoafetividade. isonomia. homoparentalidade. dignidade da pessoa humana.
ABSTRACT
We argue about the different forms of insertion of children in foster families, explaining the difficulties and legal and social
achievements of homoparenthood. About the appearance of a concept for family nowadays, considered and grounded in the rights
equality, in the relevance of the protected legal assets, as well as in the absence of a regulation by the law, to normatize such situations,
besides the aspects and fundaments that establish a policy of a so remarkable and modern law. We verified that the real north in which is
the bases of the right of adoption by homosexual couples, is without no more ado, the respect to numerous fundamental values, several
general principles that guide the Law in Brazil, concomitant to the recommendation and obedience to the principles containing in the text
of the 1988 Constitution, such as the Human Being Dignity And the Isonomy.
Keywords: family. children. homo-affectivity. isonomy. homoparenthood. human being dignity.
1. INTRODUÇÃO
O reconhecimento das mais diversas relações afetivas inseridas no amplo conceito de família abarcado pelas inovações trazidas
no texto da Constituição Federal de 1988 consente à união estável, que, embora não tenha surgido na égide de um casamento, seja
observada com equanimidade a este. Acarretando a extensão da concepção de família, colocando-se diante de moldes familiares que
não sejam apenas aqueles ordenados segundo critérios categóricos que estipulavam características inflexíveis dos aspectos e modelos de
formação de laços que poderia ser aproveitado pelo conceito de família.
O conceito tradicional de família exclui as relações homoafetivas, tratando-o de forma taxativa, que é limitado aos relacionamentos que envolvam homem e mulher, condicionando, de igual maneira, a adoção. Tal fixação incoerente originou diversas discussões
que ponderam parâmetros nos campos éticos e jurídicos, objetivando interpretar o conteúdo da lei de forma menos distintiva e desigual,
adequando as normas às constantes alterações sociais que englobam as diversas vertentes que compõem a sociedade, bem como aos
valores que norteiam os princípios do direito e as relações de cidadania, possibilitando uma nova definição legal de família, que tutele os
mais diversos arranjos familiares.
Deve-se percorrer os caminhos da dignidade e do respeito, da impossibilidade de distinção do tratamento legal aos cidadãos,
da coerência da aplicabilidade das normas jurídicas e do enquadramento desta recente análise de nova definição de família na letra da lei,
o que obviamente sanaria decisões judiciais infundadas e eivadas de preconceito e intolerância, que obscurecem as transformações que
ocorrem no campo social em vez de adequar-se a essas.
O que se pretende é o posicionamento determinante que deve ter o Estado para a observância dos princípios constitucionais
que oferecem agasalho a todos sem diferenciação de raça, cor, sexo entre outros. Há de se depreender a importância da dignidade da
pessoa humana no que se refere ao adotando e adotante. Necessita-se de exploração da sensibilidade do legislador quanto à edição
de norma reguladora, no que concerne à homoparentalidade e ao reconhecimento das relações homoafetivas, pondo em prática, dessa
forma, a sua sensatez às mudanças que ocorrem na modernidade em nossa sociedade e, acima de qualquer outro ponto, validar o que já
é preceituado nos princípios informados pela Carta Magna de 1988.
¹Graduando do décimo período de Direito. Professor da Rede Pública. Pesquisador na área de Direitos Humanos e Direitos Homoafetivos.
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2. O CONCEITO DE FAMÍLIA ABRANGE A HOMOPARENTALIDADE?
É habitual, no meio social, considerar-se como família apenas a nuclear, composta por casais heterossexuais, com capacidade de
procriar, no entanto, atualmente, pode-se averiguar, de forma perceptível, que não se pode restringir o conceito de família a uma visão
singular, mas, ao contrário, deve-se ter uma abrangência plural, pois, são, cada vez mais, presentes outros tipos de arranjos familiares, os
quais não podem ser ignorados nem socialmente nem legalmente.
A definição de filiação, pelo fato da valorização jurídica que detém a afetividade, não se resume ao vínculo estabelecido entre
uma pessoa e os seus genitores biológicos. Devido à extensão trazida pelo artigo 227, §6º da Constituição Federal de 1988 de que os
filhos havidos na constância do casamento ou não e os adotivos seriam equiparados no que se refere aos direitos, vislumbra-se que se
essa nova realidade constitucional patrocina o resguardo das mais distintas formas de se constituir laços familiares, norteando a fixação
de um tratamento isonômico, sem distinção para com os filhos, sendo eles biológicos ou não.
Desta forma, não é mais novidade a existência de famílias compostas por pessoas do mesmo sexo, assim, o não reconhecimento
deste novo formato de composição familiar é o mesmo que é o mesmo que engessar a noção de família e, por consequência, negar as
transformações sociais que ocorrem no mundo contemporâneo e sustentar uma formalidade que insiste em permanecer estanque e
contrária ao desenvolvimento de normas que disciplinem matérias de interesse social. Procedendo-se desta maneira, nega-se, de forma
banal e incoerente, as diversas mutações sociais, inviabilizando-se a adequação da legislação a temas relevantes e contribui-se para o
endurecimento e perpetuação de um conceito de família tradicional e imutável, que fere os preceitos constitucionais de igualdade e
encontra-se longe do princípio da afetividade, fortalecendo a cultura do preconceito, o que acarreta repercussões sociais, conforme
analisa Zambrano (2006):
Cabe ressaltar que as famílias homoparentais já existem há muito tempo na realidade social, como demonstra
a quantidade de pesquisas feitas sobre elas há trinta anos, faltando apenas o seu reconhecimento legal.
Recusar chamar de “família” esses arranjos e negar a existência de um vínculo intrafamiliar entre os seus
membros (ainda que esses vínculos possam ter um aspecto extremamente polimorfo e variado) significa
“fixar” a família dentro de um formato único, que não corresponde à diversidade de expressões que ela
adotou nas sociedades contemporâneas (ZAMBRANO, 2006, p. 14).
Percebe-se que ainda há certa resistência para que a homoparentalidade seja abarcada e depreendida na ideia de entidade
familiar. Embora já se possam visualizar algumas decisões do Poder Judiciário que interpretam e certificam ser as relações homoafetivas
compreendidas como entidade familiar, faz-se necessário que haja uma atitude por parte do legislador em regulamentar por força de lei
o assunto sub examen.
3. BREVE CONCEITUAÇÃO DAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS
Inicialmente, faz-se indispensável à conceituação do que seria a homossexualidade à apreciação do que seria a homossexualidade. Segundo a definição dos dicionários mais tradicionais, seria a estipulação de relação de afinidade com indivíduo do mesmo sexo. Nos
estudos do médico Benkert, da Hungria, a palavra advém da junção do grego homo (semelhante) com o vocábulo latino sexus (sexualidade
semelhante).
A prática homoafetiva não é tão recente, pois, na história mais longínqua, já se o vislumbrava, mesmo que de forma implícita, nos
mais diversos contextos históricos vivenciados pela humanidade. Há os mais variados e diferentes entendimentos, explicações e esclarecimentos acerca das relações homoafetivas. Estudiosos de diversas áreas da ciência ponderam, das maneiras mais distintas, tal matéria,
porém o que se deve salientar é que a sociedade percebe, ver o aumento de tais relações, mas, por inúmeras vezes, adstringem-se de
aceitar, o que não é diferente para muitos juristas.
Na atualidade, deparamo-nos com diversos escritores e pensadores que imputam as mais diferentes relações, personificações e
características, muitas delas, inviáveis e indutoras de atos preconceituosos, por assimilarem por imorais e antissociais, vendo as relações
homoafetivas como deturpadora dos valores adquiridos pela humanidade. De alinhamento contrário, existem aqueles que conceituam
tais relações afetuosas como ensejadoras de tolerância e respeito às diferenças, como uma questão que envolve todos os cidadãos e
que direcionam a observância dos direitos humanos e sociais englobados nas mais diferentes disposições legais existentes. O primeiro
posicionamento exposto nos afasta do caráter moderno que tem a sexualidade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
4. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONALIZADOS COMO REFERÊNCIA DE INCLUSÃO E RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA
A mais precisa e elogiosa regra noticiada pela Constituição Federal de 1988 é a observância à dignidade da pessoa humana, que
orienta e norteia todo o sistema jurídico brasileiro. Essa regra se reveste de valor axiológico, que deve ser obedecido e resguardado.
O artigo 1º, inciso III do texto constitucional pressupõe ser o respeito à dignidade da pessoa humana a conjectura do Estado
Democrático de Direito. Ao vedar atos discriminatórios e de preconceito, uniformizam a compreensão de efetividade dos Direitos
Fundamentais ensejados pela liberdade e isonomia dos inclusos em sociedade, conjunto este legitimado pela fraternidade e pluralismo.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 merecidamente preceitua a igualdade de todos perante a lei sem aceitação de
distinção de qualquer natureza.
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O artigo 3º do texto constitucional, em seu inciso IV, prega que o Estado deve promover o bem de todos vedando qualquer
discriminação.
Diante do exposto, nota-se que, repetidas vezes, a letra da lei não se ausenta em garantir que não é legítimo atitudes de cunho
distintivo entre as pessoas em seus mais diferentes aspectos, inclusive no que diz respeito à orientação sexual. Destarte, a composição
de famílias de caráter homoafetivo é matéria inclusa nestes preceitos, devendo ser respeitado de forma ampla quanto aos seus direitos,
a ela garantindo a possibilidade de segurança jurídica e reconhecimento.
Conforme leciona o ilustre Lôbo, na Constituição, não há qualquer alusão à demarcação ou fixação de tipo de composição
familiar. Pelo contrário, a lição “constituída pelo casamento” põe fim a qualquer exclusão, constitucionalizando-se a tutela da família,
qualquer que seja seu formato.
5. A FAMÍLIA HOMOAFETIVA E OS PRINCÍPIOS DA NÃO-INTERVENÇÃO E AFETIVIDADE
Faz-se mister a lembrança de que a igualização das uniões entre pessoa do mesmo sexo e de sexos opostos na atualidade,
por meio de inúmeras decisões judiciais e a possibilidade inclusive de se formalizar a união por meio do casamento é prova da efetiva
aplicação dos princípios da não-intervenção estatal na formação de entidades familiares, bem como o princípio da afetividade que
inaugura no Direito de Família brasileiro a amplitude das relações familiares, estipulando ir além de uma mera composição patrimonial ou
afim.
O princípio da não-intervenção previsto no artigo 1.513 do Código Civil que vigora, autua a impossibilidade de intervenção, seja
de pessoa de direito público, ou privado, na comunhão de vida consagrada pela família. Por assim dizer, afasta, salvo, em aplicabilidade de
políticas públicas, a imperiosidade de quaisquer entes que sejam no planejamento familiar.
O norte das relações no âmbito familiar é fundamentado por vias afetuosas, e assim deve ser, pois o afeto, como esclarece
Tartuce, deriva-se da valorização da dignidade humana, dever a ser prezado e respeitado. Apresenta-se a afetividade em seus sentidos
estreitos e amplos em inúmeras decisões judiciais que consideram a parentalidade sociofetiva, prevalente sobre o vínculo biológico.
Dessa forma, os novos parâmetros familiares traçam novas definições às famílias, trazendo conceituação de acordo com o
meio social no qual se insere. Continuamente a essa aplicabilidade, o princípio da afetividade nas relações de cunho familiar traz a
concepção de que a composição de lares por homoafetivos torna real e conciso e os paradigmas de caráter afetivo, ao se justificar que,
com a pluralização do perfil das estruturas familiares, não mais se pode impor uma composição matrimonializada, arcaica, inservível as
demonstrações de relacionamentos extramatrimoniais que devem ter sua legitimidade aferida.
A visibilidade de tantos vínculos merece proteção jurídica, pois, ao contrário, teríamos uma postura eminentemente discriminatória. De fato, o afeto nutre vínculos, soluciona conflitos, ameniza diferenças e dignifica a convivência. Não há justificativa ao silêncio do
legislador. Passando duas pessoas a conviver harmoniosamente de forma duradoura, pública e contínua, compondo um núcleo familiar,
deve este ser juridicamente revestido de efeitos legais. A postura de algumas normas é obviamente rígida e inflexível, pois o afeto que une
pessoas merece amplitude e quebra de paradigmas morais, sociais e jurídicos, caso contrário, estar-se-á fadado à inércia e a prepotência
onde os preconceitos e injustiças logram êxito em detrimento do surgimento de evoluções e do inquestionável princípio da afetividade,
que rege as relações modernas.
6. A HOMOPARENTALIDADE E SEUS EFEITOS EM UMA VISÃO PSICOSSOCIAL
Os posicionamentos de profissionais da Psicologia e afins são um pouco divergentes e não se consegue ter uma ou outra como
adequada ou inadequada. Os posicionamentos de profissionais da Psicologia e afins são divergentes, não possibilitando ter um ou outro
entendimento como adequado ou inadequado diante de tema completamente envolvedor de debates.
Uma primeira corrente se contrapõe à permissão e à admissão do reconhecimento por parte da sociedade e do legislador, no
que se trata da união de casal homoafetivo e do exercício da parentalidade pelos mesmos. Anatrela, adepto dessa corrente, vê a questão
da prática homossexual como um tema particular e privativo, compreendendo-a como sinônimo de devassidão, ao mesclar suas visões
religiosas e psicanalistas.
O jurista e psicanalista Pierre Legendre tem a mesma concepção de caracterizar como uma imoralidade a homossexualidade,
concebendo-a como indigna de aceitação legal.
Mesmo utilizando-se de vocábulos envolvidos do linguajar de suas áreas profissionais, os argumentos desses críticos são
reacionários, pois essa preleção é completamente protetora do estilo de família clássica, e se baseiam em hábitos e costumes meramente
fundamentados em lições religiosas.
Há outra corrente que não se posiciona a respeito das relações homoafetivas, ou mesmo a respeito da homossexualidade, porém
se contrapõem à ideia de homoparentalidade, embasando sua oratória no sentido de que a dessemelhança dos sexos está no centro das
representações identitárias, sendo assim, as crianças adotadas por homoafetivos teriam objeção de se idealizar e de imaginar-se geradas
exteriormente a esta distinção. Em decorrência deste discurso, pode-se dizer que para esta corrente a convivência da criança com
pessoas de sexos idênticos extinguiriam os princípios antropológicos da composição da afinidade que se deriva parentesco, da família e
da imaginação de procriar. Tal corrente se apoia na abstração de que os pais homossexuais refutam da criança a distinção entre os sexos
e impede a relação com pessoas do sexo contrário, o que é uma confirmação sem nenhum rudimento teórico.
Por fim, a psicanalista e historiadora da Psicanálise Elizabeth Roudinesco e a psicanalista e antropóloga Geneviève Delaisi de
Parseval oferecem um pensamento inverso à aplicação de uma postura psicológica e psicanalítica para se opor as mais inovadoras formas
de composição familiar. Prezam não ser conveniente e de competência dos psicanalistas formarem e deliberarem juízos valorativos de
moralidade, ao apreciarem diversas categorias de famílias implantadas no convívio da sociedade, mostrando ser valioso aceitar os novos
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A sustentação teórica empregada por essa corrente para contestar a monta da distinção dos sexos dos pais para o saudável
progresso da criança pronuncia que a identidade não se limita unicamente à identidade sexual e que a compreensão do outro e a visão
de alteridade, não está assentada somente na diferença do sexo, mas em outros vários aspectos. Ensinam, outrossim, que as regras
se modificam, têm uma história, e seu teor se altera conforme o tempo e o lugar, sendo ineficaz serem estabelecidas por meio de
entendimentos ideológicos de determinado momento, em evidente e inflamada desobediência aos preceitos da democracia e dos direitos
humanos.
Trata-se de uma questão, acima de tudo, social, não apenas de ordem jurídica e psicológica. Não se pode generalizar as famílias
homoafetivas como um ambiente desprovido de regras e de respeito. Oportunamente se expressa a respeito da temática a terapeuta e
escritora Anna Sharp, Ibid, p.1, asseverando que, “Perversão existe tanto em homo como heterossexuais. Tanto um como o outro tem que
ser investigados se pretende ser pai adotivo”. E conclui: “Atendo crianças filhas de homossexuais que são absolutamente centradas. São
jovens que vão crescendo com a mente aberta, sem preconceito”.
Igualmente, é muito precoce afirmar que haverá algum distúrbio psicológico nas crianças ou que serão tratadas de forma discriminatória e
intempestiva no meio social. Os conceitos devem se alargar e os valores sociais precisam também se elastecer para que não se sucumba
um direito em detrimento de outro, sendo ambos de proteção à dignidade e a igualdade.
7. AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS E A POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A legislação brasileira não tutela, de forma explícita, as famílias compostas por pessoas do mesmo sexo, omitindo, então, uma
questão social hodierna, o que agrava ainda mais a realidade dos que compõem as relações homoparentais. Desse modo, reconhecendo
apenas a existência de vínculo familiar nas figuras de um pai e uma mãe, exclui esta nova organização, excluindo destes a proteção estatal,
o que acarreta a privação de vários direitos e deveres. Sobre tal realidade social, Dias (2000) aduz o seguinte:
Como sempre, na ordem comum dos acontecimentos, em uma perspectiva histórica, o fato social
antecipa-se ao jurídico, e a jurisprudência antecede a lei. Mesmo que não se aceite a existência de uma
família homossexual, mesmo que não se queira ver uma entidade familiar para aplicar-lhe a legislação infraconstitucional a ela referente, existe um interesse merecedor de proteção. A omissão do legislador não
deve servir de obstáculo à outorga de direitos e imposição de obrigações às relações homoeróticas (DIAS,
2000, p. 45).
Porém, não se lobriga nenhum obstáculo tão invencível assim para a efetiva adoção por parte de pessoas do mesmo sexo.
Ao interpretar o texto da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e o Adolescente (ECA), quanto às possibilidades
e orientações para a adoção, não se visualiza nenhum estorvo ou óbice para a concretização de adoção por casais do mesmo sexo
que componham uma estrutura familiar, por não ser apresentado pelo texto da lei supracitada qualquer impedimento expresso ao
homossexual, não exigindo, assim, de forma clara uma orientação sexual específica como requisito para candidatar-se ao processo de
adoção. O art. 42 da lei anteriormente citada dispõe apenas o seguinte: “podem adotar os maiores de 21 anos, independentemente de
seu estado civil”.
O requerimento de interesse em adotar deve ser examinado com esmero, levando em consideração o interesse exclusivo da
criança pelo que esclarece o art. 43 do ECA, “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em
motivos legítimos”. Dessa feita, pelo que se pode depreender do texto legal, percebe-se que, se a adoção for postulada por uma pessoa
homossexual de forma individual, isto é, sem ser conjuntamente com seu companheiro (a), não há obstáculo algum, mesmo que nesse tipo
de situação as apreciações feitas pelos psicólogos e assistentes sociais que acompanham o processo de adoção sejam mais rigorosas.
No que se refere à adoção pelo casal homoafetivo, o desfecho pode ser bem diferente, haja vista que a comprovação de união
estável e os óbices que são enfrentados são vários, principalmente o levantamento de prejuízos comportamentais, afetivos e sociais,
de forma geral, que podem ser causados ao adotado. Consequentemente, tal proposição de vontade de adotar por parte dos casais
homoparentais é bem mais dificultosa, no entanto o ECA, em seu art. 42, § 2º, preconiza o seguinte: “A adoção por ambos os cônjuges
ou concubinos poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado vinte e um anos de idade, comprovada a estabilidade
da família.”. Diante de tal disposição legal, Lorea (2005, p. 37-44) analisa que a solicitação de adoção não necessariamente deve ser de
parceiros que tenham formalizado o casamento.
O maior embaraço legal encarado pelos que formam famílias homoparentais é justamente o que está disposto no art. 1.622,
do Código Civil Brasileiro, ou seja, a previsão de que aqueles que comprovem união estável po podem adotar, haja vista o art. 226, § 3º,
CF/88 reconhecer como entidade familiar a união estável entre homem e mulher. Ao final do parágrafo poderia ser acrescido o seguinte:
tais dispositivo legais criam obstáculos para a dupla realização de um sonho: de um lado, o das crianças que desejam ter um lar; de outro,
o dos casais homoafetivos que desejam ter um filho.
Expostas estas informações legais, é importante analisar o que reza o texto da própria Constituição Federal em seu art. 3º, inciso
4º, que explicita ser o objetivo da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Ora, estar-se-ia diante de uma contradição legal. No momento prefere-se sem plantar
dúvidas, esclarecer que devemos zelar pela aplicação do previsto pela Carta Magna.
A Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul estipulou um provimento administrativo sob nº 06/2004,
que torna possível que uniões estáveis comprovadas, que envolvam pessoas do mesmo sexo sejam objeto de registro civil, dessa forma,
inferimos ser incontestável a adoção pelos companheiros que comprovem a união estável, sem distinguir sua preferência sexual, em
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respeito ao art. 3º, inciso 4º da CF/88, que preceitua ser defesa a discriminação por quaisquer motivos, o que garante não ser a
orientação sexual um óbice para adotar.
Plausivelmente, o mesmo estado federativo de nossa nação anteriormente citado editou a lei Estadual nº 11.872, de 19 de
dezembro de 2002, pela qual o Rio Grande do Sul assume o compromisso com a defesa e proteção da liberdade de orientação sexual.
Há algumas decisões de tribunais que, levando em consideração o princípio do interesse da criança, não encontram óbice para adoção por
homoafetivo. Na oportunidade, (GONÇALVES, 2005, p. 225 e p. 335) expõe em sua obra o leciona o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
A afirmação de homossexualidade do adotante, preferência individual constitucionalmente garantida, não
pode servir de empecilho a adoção de menor, se não demonstrada ou provada qualquer manifestação
ofensiva ao decoro e capaz de deformar o caráter do adotado, por mestre a cuja atuação é também entregue
a formação cultural de muitos jovens (GONÇALVES, 2005, p.225 e 335).
Portanto, seria desconexo concluir que a adoção por uma família homoafetiva traz prejuízo ao adotado, pois essas entidades
familiares também podem ser instituídas com pressupostos referenciais de respeito e de decoro mútuos.
As decisões jurisprudenciais têm firmado a capacidade de adotar por casais do mesmo sexo e fortalecido o parecer de que o bem-estar
do adotando deve ser visto como primordial, fundamentando-se no princípio da dignidade da pessoa humana. O Ministro do Supremo
Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão no seu posicionamento do REsp 889852 explicita o seguinte:
Os diversos e respeitados estudos especializados sobre o tema, fundados em fortes bases científicas
(realizados na Universidade de Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia Americana de Pediatria),
‘não indicam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais
importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as
liga a seus cuidadores. (STJ - REsp: 889852 RS 2006/0209137-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
Data de Julgamento: 27/04/2010, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/08/2010).
Salomão ainda expõe: “A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, desprendimento. Quando efetivada com o
objetivo de atender aos interesses do menor, é um gesto de humanidade [...]”.
8. ANÁLISE DE DADOS DE TABELA SOBRE HOMOSSEXUALIDADE E HOMOPARENTALIDADE
Importante apresentar tabela que trata do tema homossexualidade, da união estável entre esses e homoparentalidade. Tais dados
nos orientam para a compreensão da realidade sobre os temas anteriormente elencados. A cada dia, o número de casais homessexuais
que buscam o processo de adoção aumenta, e isso, por ser algo concreto, precisa de atenção cuidadosa.
Tabela 1 - Número de ocorrências sobre homossexualidade e homoparentalidade, por ano 1997-2005*.
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Em conformidade com que se observa na tabela acima, há certa estabilidade entre 1997 e 2003, nos índices de ocorrências de
homossexualidade. Chama atenção o número significativo de ocorrência de homoparentalidade no ano de 2002; já em 2004, verifica-se
um crescimento expressivo em comparação ao ano de 2003 em relação à homossexualidade. No ano de 2005 até o mês de agosto do
corrente, se abstrai a concepção de que os números se aproximam da margem do ano anterior, o que nos leva a crer que tais ocorrências
aumentem, ao o término de 2005. Chama-se a atenção para o aumento significativo da homoparentalidade. Embora a união estável
seja matéria superada no direito de família, a adoção ainda encontra obstáculo principalmente pela condição sexual, o que é tentativa de
omissão e de obscuridade das mudanças sociais.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adoção é vista como o instituto jurídico que com entendimentos jurisprudenciais da atualidade mais se flexibiliza, pois, de
forma a garantir os direitos inerentes à criança e ao adolescente que não estão no aconchego de um lar, por muitas vezes, têm de ser
afastados os fundamentos mais preciosos para um ser humano, que são inclusive tratados por lei, tendo sido matéria relevante nos
processos de adoção, ao levar em consideração o princípio da afetividade, que é bastante presente nas relações familiares na atualidade,
e o princípio do melhor interesse da criança. Entendimentos modernos de juristas e operadores do direito tem se fortalecido no sentido
de oferecer afeto, lar, educação e acima de tudo o benefício de uma família aos adotandos.
A adoção inicia o surgimento de novos debates e entendimentos mais diferenciados possíveis, no que se refere aos assuntos
concernentes às crianças e adolescentes. Centrando-se nos sentidos expressivos dos fundamentos disponibilizados pelas convicções e
elementos reunidos nas disposições legais, em especial o constitucional, a temática, embora muito discutida ainda, não proporcionou uma
modificação ou adequação de normas que a regularize.
O mais autêntico norte, no tocante às relações homossexuais, assim como dos laços filiais que se derivem destas, é a reverência
ao que disciplina a igualdade e a deferência ao princípio da dignidade da pessoa humana, revestidos de inúmeros outros valores e
fundamentos principiológicos que orientam o direito.
Nessa conjuntura, com a intenção de deferir as mais recentes modificações sofridas pela sociedade, concomitante ao respeito
que exige a dignidade, direito inerente a todo ser humano, surge a necessidade de democratização do que se entende por entidade
familiar, oferecendo a flexibilidade de que se precisa para tratar as relações que se construam com afetividade ao que se pode denominar
“família”, enquadrado, dessa forma, aos mais modernos surgimentos de relações afetivas e estáveis.
Assegurados pela igualdade diante da lei sem distinções, faz-se necessário, para que tal preceito se desdobre efetivamente entre as
pessoas, que as relações homoafetivas sejam analisadas como a liberdade que cada cidadão detém de realizar suas próprias escolhas,
harmonizando a convivência dos que tendem a se relacionar com pessoas do mesmo sexo à humanização de ser tratado como igual, e não
um distinto. Por consequência, proporcionando aos homoafetivos a possibilidade de oferecer de forma conjunta um lar, afeto e respeito
aos filhos que possam vir a adotar, compondo, então, sua família, baseada nos valores inerentes a cada ser humano, objetivando a não
diferenciação de tratamentos por orientação sexual e estipulando o devido respeito e a quebra do preconceito.
O que se estranha é justamente o vácuo legal que se nota na hodiernidade, a não apropriação de regras que normatizem tal
temática, deixando, assim, tais seres humanos distantes de uma sociedade que se abstém de aceitar o que já não é tão incomum.
A compreensão de problemas sociais, comportamentais e psicológicos que possam ser sofridos pelos adotados por casais homoafetivos
é a mais estúpida explicação que se possa ter e a maior visualização do preconceito impregnado nos conceitos valorativos de uma
civilização.
O que se pretende é a perseguição do direito de os homossexuais serem equanimente tratados e não colocados à margem
social. A ausência de empenho por parte do legislador é facilmente perceptível, só restando amargar uma provável sensibilização quanto
ao tema e esperar uma alteração que emende a Constituição e que modifique a depreensão da união estável.
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Seção Internacional
LA REPARACIÓN DEL DAÑO AL PROYECTO DE VIDA EN EL SISTEMA
INTERAMERICANO DE PROTECCIÓN A DERECHOS HUMANOS
Mariana Torres López¹
RESUMEN
La introducción del concepto “daño al proyecto de vida” dentro de las sentencias de reparaciones de la Corte Interamericana
de Derechos Humanos, pretendía abrir las puertas a mecanismos de reparación más complejos que abonaran a lograr un nivel máximo
de restitutio in integrum; sin embargo, los constantes cambios y contrastes dentro la línea jurisprudencial en la materia al día de hoy,
implican un reto al dilucidar de qué forma debe abordarse la valoración y reparación del daño al proyecto de vida, llegando incluso a ser
cuestionado si este concepto de reparación realmente responde a una necesidad jurídica imperiosa.
Palabras clave: Corte Interamericana de Derechos Humanos. Reparaciones. Daño al proyecto de vida. Daños inmateriales.
ABSTRACT
The introduction of the concept of “damage to the life project” into the repair judgments of the Inter-American Court of Human Rights,
intended to open the door to mechanisms of repair of a higher complexity in order to reach the maximum level of restitutio in integrum.
However, the constant changes and contrasts in the precedents in the matter, represent a challenge to stablish how the damage to the
project of life should be evaluated and repair, or even if this concept really responds to any identifiable legal need.
Keywords: Inter-American Court of Human Rights. Reparations. Damage to life project. Immaterial damages.
1. INTRODUCCIÓN
Uno de los imperativos categóricos que rige al Derecho Internacional, es que la trasgresión de alguna de las normas u obligaciones
que conforma el corpus iuris de la materia, es decir, un acto ilícito internacional, genera responsabilidad para el sujeto de derecho que,
mediante una acción o una omisión, haya incumplido las obligaciones pactadas, lo que conlleva la inexcusable obligación de reparar el
daño.
Al hablar de los Sistemas Internacionales de Protección a Derechos Humanos, este imperativo implica un tratamiento particular,
pues la obligación de reparar no se exige entre los sujetos obligados, entiéndase Estados Parte, sino que la trasgresión de la obligación
internacional contraída, afecta la esfera jurídica de un individuo o grupo de individuos en particular, respecto de quien o quienes, el E
stado trasgresor, tiene la obligación de indemnizar por los daños ocasionados.
Para que dicha obligación pueda ser efectiva, es necesario acreditar la responsabilidad internacional del Estado, la cual se
compone de 3 elementos:
a) Una acción u omisión que viole una norma internacional de derechos humanos.
b) Que dicha acción y omisión sea atribuible al Estado, de manera directa o indirecta, es decir, que se tenga por acreditado que fue
cometida, ordenada o tolerada por agentes estatales.
c) Que ésta, cause un daño físico, material o moral a un sujeto o grupo de sujetos particularizado.
En el Sistema Interamericano de Protección a Derechos Humanos, la obligación de reparación se encuentra recogida en el
artículo 63.1 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos (CADH), cuya literalidad dispone:
“Cuando decida que hubo violación de un derecho o libertad protegidos en esta Convención, la Corte
dispondrá que se garantice al lesionado en el goce de su derecho o libertad conculcados. Dispondrá
asimismo, si ello fuera procedente, que se reparen las consecuencias de la medida o situación que ha
configurado la vulneración de esos derechos y el pago de una justa indemnización a la parte lesionada”.
¹Licenciada en Derecho por la Universidad Veracruzana, Asistente Legal en el Programa de Derechos Humanos de la Universidad
Veracruzana, Diplomada en Derechos Humanos y Neoconstitucionalismo Mexicano por el Instituto de Investigaciones Jurídicas de la
Universidad Veracruzana, Proyectista de la Comisión Estatal para la Atención y Protección de los Periodistas en Veracruz.
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La Comisión Interamericana de Derechos Humanos ha interpretado esta disposición en el sentido de que instituye como regla la
obligación de restablecer el statu quo ante (Corte IDH, 10 septiembre 1993 £47), sin embargo, la Corte Interamericana ha reconocido que
esto no es factible en la mayoría de los casos de violaciones a derechos humanos, por ello, el Tribunal ha desarrollado una serie de rubros
dentro de las reparaciones, entre los que destacan las compensaciones pecuniarias, las medidas de restitución, rehabilitación, satisfacción
y garantías de no repetición, todas ellas tendientes a resarcir los daños de la manera más integral posible (Corte IDH, 17 abril 2015 £452).
Dentro de estos rubros de reparación, se ha insertado el denominado “Daño al Proyecto de Vida”. El desarrollo de este término
y su alcance dentro de la jurisprudencia de la Corte Interamericana, ha sido fluctuante y constantemente controvertido, incluso por
los propios juzgadores del Tribunal, quienes a través de votos concurrentes o parcialmente disidentes, han dejado constancia de sus
reflexiones acerca del tema, pues mientras que unos aplauden la introducción de este nuevo precepto, otros consideran que es ambiguo
y bien podría quedar subsumido dentro del rubro de reparaciones inmateriales ya existentes. El presente artículo, pretende exponer
brevemente los casos contenciosos en los cuales se han dictaminado medidas de reparación por un “daño al proyecto de vida” y la forma
en que ha sido abordado por la Corte, para verificar los contrastes y retos que representa.
2. EL DAÑO AL PROYECTO DE VIDA
Desde su primera sentencia de reparaciones, el Tribunal Interamericano ha reconocido que la reparación del daño ocasionado
por la infracción de una obligación internacional consiste en la plena restitución (restitutio in integrum), lo que incluye el restablecimiento
de la situación anterior y la reparación de las consecuencias que la infracción produjo y el pago de una indemnización como compensación
por los daños patrimoniales y extrapatrimoniales incluyendo el daño moral (Corte IDH 21 julio 1989 £26).
En lo que se refiere al daño moral, la Corte Interamericana ha reconocido que éste comprende un sinnúmero de afectaciones
que no son susceptibles de medición pecuniaria, tales como: los sufrimientos y las angustias causadas a las víctimas; el menoscabo de
valores muy significativos para el individuo y las alteraciones a las condiciones de vida de la víctima y/o su familia (Corte IDH 03 diciembre
2001 £53). Bajo esta lógica, al no poder asignar un valor monetario para resarcir el citado daño, su reparación se ha hecho, generalmente,
a través de medidas de compensación. En primer lugar, mediante el pago de una cantidad de dinero o la entrega de bienes o servicios
apreciables en valor monetario; y, mediante la realización de actos u obras de alcance o repercusión públicos que tengan efectos como
la recuperación de la memoria de las víctimas, el restablecimiento de su dignidad, la consolación de sus deudos o la transmisión de un
mensaje de reprobación oficial a las violaciones de los derechos humanos de que se trata y de compromiso con los esfuerzos tendientes
a que no vuelvan a ocurrir(Corte IDH 03 diciembre 2001 £53).
Dentro de este rubro de reparaciones por daños inmateriales, se inserta el concepto de “daño al proyecto de vida”, el cual,
según la jurisprudencia del Tribunal Interamericano, atiende a una noción distinta del “daño emergente” y el “lucro cesante”, en virtud
de que no se corresponde con una afectación material consecuencia de los hechos, como lo es el “daño emergente”; y tampoco hace
referencia a la pérdida de ingresos potenciales, tales como salarios o ganancias, englobados en las reparaciones por “lucro cesante”; sino
que el concepto “proyecto de vida”, hace referencia a la realización integral de la persona afectada, considerando su vocación, aptitudes,
circunstancias, potencialidades y aspiraciones, que le permiten fijarse razonablemente determinadas expectativas y acceder a ellas (Corte
IDH 27 noviembre 1998 £147).
3. ANÁLISIS DE LA JURISPRUDENCIA DE LA CORTE INTERAMERICANA EN MATERIA DEL DAÑO AL PROYECTO DE VIDA
La primera vez que la Corte Interamericana introdujo el término “daño al proyecto de vida”, fue en la sentencia de Reparaciones y
Costas en el caso Loayza Tamayo vs. Perú, en el año de 1998. En dicho expediente, fue sometido a consideración de la Corte, la responsabilidad internacional del Estado peruano por la detención arbitraria, juicio y encarcelamiento de la maestra María Elena Loayza Tamayo
por presuntos nexos con el grupo terrorista denominado “Sendero Luminoso”.
En dicha resolución, el Tribunal Interamericano estableció que el proyecto de vida
se asocia al concepto de realización personal, que a su vez se sustenta en las opciones que el sujeto puede
tener para conducir su vida y alcanzar el destino que se propone. En rigor, las opciones son la expresión
y garantía de la libertad. Difícilmente se podría decir que una persona es verdaderamente libre si carece
de opciones para encaminar su existencia y llevarla a su natural culminación. Esas opciones poseen, en sí
mismas, un alto valor existencial. Por lo tanto, su cancelación o menoscabo implican la reducción objetiva
de la libertad y la pérdida de un valor que no puede ser ajeno a la observación de esta Corte (Corte IDH
27 noviembre 1998 £148),
destacando que un daño a dicho proyecto implica la pérdida o el grave menoscabo de oportunidades de desarrollo personal, en forma irreparable o muy
difícilmente reparable (Corte IDH 27 noviembre 1998 £147).
Dentro de esta primera sentencia, la Corte determinó que los actos violatorios cometidos por el Estado de Perú
impidieron la realización de sus expectativas de desarrollo personal y profesional, factibles en condiciones
normales, y causaron daños irreparables a su vida, obligándola a interrumpir sus estudios y trasladarse al
extranjero, lejos del medio en el que se había desenvuelto, en condiciones de soledad, penuria económica
y severo quebranto físico y psicológico (Corte IDH 27 noviembre 1998 £152),
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ocasionando un daño al proyecto de vida de la señora Loayza Tamayo, sin embargo, aunque éste se encontraba debidamente acreditado,
el Tribunal puntualizó que esta afectación no podía ser cuantificada en términos monetarios, por lo que acordó, al igual que en todas sus
sentencias emitidas a la fecha, que el acceso de la víctima a la justicia interamericana y la sentencia emitida por la Corte, constituyen per
se una medida de satisfacción.
Asimismo, destacó que las reparaciones relativas a daños morales y materiales contribuyen a compensar a la víctima, en cierta
medida, por las afectaciones sufridas a causa de los hechos violatorios, aunque difícilmente podría devolverle o proporcionarle las
opciones de realización personal de las que se vio injustamente privada, es decir, subsumió la reparación del daño al proyecto de vida,
dentro de los rubros de reparación por daño moral e indemnizaciones económicas.
El hecho de que en esta primera sentencia, la Corte no haya establecido medidas específicas de reparación por concepto del
daño al proyecto de vida, se encuentra justificado dado que se trataba de un concepto de reparación de nueva inclusión, sin precedente
dentro de la jurisprudencia interamericana y de reciente estudio a través de la doctrina.
Tres años después, la Corte Interamericana tuvo una segunda oportunidad de abonar en el tema a través de la sentencia de
reparaciones del caso Cantoral Benavides vs. Perú. En ésta, el Tribunal analizó el daño ocasionado al proyecto de vida del Sr. Luis Alberto
Cantoral, quien era un estudiante universitario con todas las potencialidades de ser un reconocido profesionista, y fue víctima de una
detención arbitraria, enjuiciamiento y encarcelamiento por presuntas actividades terroristas y traición a la patria.
Es preciso destacar que ambos casos, tanto el de María Elena como el de Luis Alberto, ocurrieron en las mismas circunstancias,
siendo detenidos el mismo día y coprocesados por los mismos delitos, esto en el marco de un práctica sistemática de detenciones
arbitrarias y tratos crueles inhumanos y degradantes con motivo de las investigaciones criminales por delitos de traición a la patria y
terrorismo en el Estado de Perú. No obstante, la determinación emitida en relación con la reparación del daño al proyecto de vida en el
caso Cantoral Benavides, dista de lo que el Tribunal Interamericano ya había establecido en el caso Loayza Tamayo.
La diferencia sustancial existente entre estas dos sentencias, es que en el caso Cantoral Benavides, la Corte Interamericana
determinó una reparación específica por concepto del daño ocasionado al proyecto de vida de la víctima, es decir, ya no se incorporó
dentro de las establecidas para el daño no material, sino que el Tribunal condenó al Estado de Perú a implementar una serie de medidas
positivas tendientes a lograr el restablecimiento de la situación anterior a la afección, lo que en el caso específico implicaba que
el Estado le proporcione una beca de estudios superiores o universitarios, con el fin de cubrir los costos
de la carrera profesional que la víctima elija, así como los gastos de manutención de esta última durante el
período de tales estudios en un centro de reconocida calidad académica escogido de común acuerdo entre
la víctima y el Estado (Corte IDH 03 diciembre 2001 £80).
El tercer caso en el que le fue solicitado al Tribunal Interamericano reparar el daño al proyecto de vida de las víctimas, fue en
de Villagrán Morales (Niños de la calle) vs. Guatemala, el cual versa sobre la detención arbitraria de 5 jóvenes en situación de calle, su
posterior tortura y ejecución extrajudicial. Dentro de los alegatos presentados por la Comisión y los representantes de las víctimas para
la determinación de las reparaciones, se exigía a la Corte Interamericana que al momento de establecer el resarcimiento de los daños,
tuviera en consideración que el Estado había truncado de forma arbitraria y definitiva el proyecto de vida de los jóvenes ultimados.
Ante este planteamiento, la defensa del Estado de Guatemala hizo referencia a que los cinco jóvenes torturados y ejecutados
vivían en condición de calle y puntualizó que “la precaria situación de las víctimas hace altamente previsible que no tuvieran un proyecto
de vida por consumar” (Corte IDH 26 mayo 2001 £87), razón por la cual solicitaba al Tribunal que desestimara los argumentos y peticiones
relacionadas con la reparación al daño al proyecto de vida de las víctimas.
Por su parte, la Corte Interamericana, dentro de sus consideraciones, manifestó que tendría en cuenta las distintas clases de
daño moral a que hicieron referencia tanto los representantes de las víctimas como la Comisión, específicamente:
los sufrimientos físicos y psíquicos padecidos por las víctimas directas y sus familiares; la pérdida de la vida,
considerada ésta como un valor en sí mismo, o como un valor autónomo; la destrucción del proyecto de
vida de los jóvenes asesinados y de sus allegados, y los daños padecidos por tres de las víctimas directas en
razón de su condición de menores de edad (Corte IDH 26 mayo 2001 £89).
Este caso es un hito dentro de jurisprudencia interamericana en materia de reparaciones al proyecto de vida, en virtud de que
es la primera sentencia en la que se somete a consideración del Tribunal, la reparación del proyecto de una persona ejecutada. La lógica
nos llevaría a pensar que no es posible determinar dicha reparación toda vez que hablamos de una trasgresión de carácter irreparable
como lo es la pérdida de la vida, prerrequisito para el goce de otros derechos; y que el concepto de “proyecto de vida” es intrínseco a la
individualidad de la víctima, por lo que no puede ser transferido a otro individuo; no obstante, para el análisis del caso específico, la Corte
Interamericana sí determinó una reparación para este concepto de violación. Si bien, no abordó de forma individualizada las distintas
categorías de daño inmaterial planteadas por las víctimas, podemos suponer, razonablemente, que tomó en consideración todas ellas, en
virtud de que para el estudio y establecimiento de las reparaciones, constituyó un bloque de reparación por concepto de daño moral,
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dentro del cual incluyó el argüido daño al proyecto de vida, y precisó que al determinar estas reparaciones, tomó en consideración las
“condiciones generales adversas de abandono padecidas por los cinco jóvenes en las calles, quienes quedaron en situación de alto riesgo
y sin amparo alguno en cuanto a su futuro” (Corte IDH 26 mayo 2001 £90), fijando así uno de los montos indemnizatorios más altos por
concepto de daño inmaterial (Roux, V. 2001), hasta la fecha de su emisión.
Otra de las sentencias que constituye referencia obligada en la materia, es la emitida en el caso Wilson Gutiérrez Soler vs
Colombia, dentro del cual, la Corte Interamericana estableció la responsabilidad internacional del Estado colombiano por la detención
ilegal y la práctica de tortura en contra de la víctima. En este caso, la Comisión Interamericana solicitó al Tribunal la reparación del daño al
proyecto de vida del Sr. Wilson Gutiérrez, toda vez que la forma específica de tortura que le fue practicada, consistente en quemaduras
en sus órganos genitales y violación sexual, más allá de las secuelas físicas, afectó su integridad psíquica, disminuyó su autoestima y
lo imposibilita de practicar y disfrutar de relaciones afectivas íntimas. Como consecuencia de los daños físicos y psicológicos, el señor
Gutiérrez Soler, vio truncado radicalmente su proyecto de vida, puesto que lo llevó a perder el vínculo familiar existente entre su esposa,
su hijo y sus padres.
En la determinación de este caso, la Corte abandonó los avances jurisprudenciales en los que dictó medidas específicas para la
reparación del daño al proyecto de vida, y retomó el primer criterio establecido en el caso Loayza Tamayo, por lo que pese a que reconoció
que existía un vínculo entre los actos vulneradores del Estado y la trasgresión al proyecto de vida de la víctima, decidió no cuantificar el
daño ni establecer medidas específicas para repararlo, ya que consideraba que las indemnizaciones establecidas por los daños morales y
materiales contribuían a compensar al señor Wilson Gutiérrez Soler (Corte IDH 12 septiembre 2005 £89).
Para los efectos del análisis que este artículo pretende realizar, es necesario destacar y contrastar, específicamente, dos
sentencias del Tribunal Interamericano, las cuales, si bien obedecieron a circunstancias diferentes, las pretensiones de la Comisión y
los representantes de las víctimas en materia de indemnización del daño al proyecto de vida eran muy similares y fueron abordadas de
manera distinta por la Corte Interamericana.
El primero de ellos es el caso Maritza Urrutia vs. Guatemala, cuya base fáctica versa sobre la detención arbitraria de la Sra.
Maritza Ninette Urrutia García, miembro de la organización revolucionaria Ejército Guerrillero de los Pobres (EGP), quien estuvo retenida
por un lapso de 8 días en un centro de detención clandestina y fue víctima de intimidaciones y torturas para obligarla a grabar un mensaje
a la opinión pública, en el cual manifestaba su deseo de abandonar la organización EGP e incitaba a sus compañeros a hacer lo mismo. Tras
su liberación, la víctima fue obligada a ratificar el contenido del vídeo mediante conferencia de prensa, y por temor a represalias, decidió
exiliarse en México, durante 6 años, en compañía de su menor hijo.
En este caso, los representantes de las víctimas argumentaron que con motivo del autoexilio, la Sra. Maritza Urrutia “se vio
obligada a cambiar radicalmente de vida, se separó de su familia y desempeñó trabajos menos calificados, por lo que se deterioraron
su calidad de vida y la de su hijo. En consecuencia, solicitaron como reparación del daño al proyecto de vida de la víctima una beca
de estudios a favor de su hijo” (Corte IDH 27 noviembre 2003 £163). Por su parte, la Corte Interamericana consideró que si bien, se
encontraba acreditado que actos violatorios cometidos por el estado causaron un cambio en las condiciones de la existencia de la víctima,
estas serían reparadas a través del pago de una compensación por concepto de daños inmateriales, por lo que no accedió a la pretensión
de los representantes de la víctima de otorgar una beca de estudios al hijo de la Sra. Urrutia García (Corte IDH 27 noviembre 2003 £166).
En contraste con esta resolución, en el año 2007, cuando la Corte analizó el caso Escué Zapata vs Colombia, relativo a la
ejecución extrajudicial del señor Germán Escué Zapata a manos de efectivos del Ejército Colombiano, el Tribunal abordó el daño al
proyecto de vida de la hija de la víctima, de forma distinta al caso Urritia. En el caso contra Colombia, los representantes de las víctimas,
puntualizaron que con motivo de la muerte del Sr. Escue Zapata, su menor hija Myriam Zapata, vio truncadas radicalmente muchas
oportunidades que pudo plantearse en su futuro, por lo que solicitaron como concepto de reparación del daño ocasionado a su proyecto
de vida, el otorgamiento de una beca de estudios superiores.
A diferencia del caso Urrutía, en esta oportunidad, el Tribunal Interamericano accedió a las pretensiones de los representantes de la
víctima y reconoció que el sufrimiento de la hija del Sr. Escué Zapata y las dificultades a las que se enfrentó con motivo de la ejecución
extrajudicial de su padre, habían representado un obstáculo para completar sus estudios, por ello, como medida de reparación del daño
ocasionado al proyecto de vida de la hija de la víctima, la Corte condenó al Estado de Colombia a adoptar medidas positivas similares a
las que determinó en el caso Cantoral Benavides, es decir, otorgar a “Myriam Zapata Escué una beca para realizar estudios universitarios
en una universidad pública colombiana escogida entre ella y el Estado. La beca deberá cubrir todos los gastos para la completa finalización
de sus estudios universitarios, tanto material académico como manutención y alojamiento” (Corte IDH 04 julio 2007 £170).
Otro de los cambios en la línea jurisprudencial de la Corte Interamericana en materia de daño al proyecto de vida, se vio
reflejado en el caso Campo Algodonero vs México, relativo a la desaparición y ulterior muerte de tres jóvenes mexicanas, en un contexto
sistemático de violencia de género, que era del conocimiento del Estado mexicano. En dicha sentencia, el Tribunal Interamericano declaró
la responsabilidad internacional de México por no haber implementado una política pública de prevención pese a tener conocimiento
de un patrón de violencia contra la mujer en Ciudad Juárez; por no haber tomado las debidas diligencias para la localización de las tres
víctimas dentro de las primeras horas posteriores a su desaparición, máxime cuando conocía la situación de riesgo real e inminente a la
que se enfrentaban; y, finalmente, declaró que el Estado mexicano había vulnerado el derecho de acceso a la justicia de los familiares de
las víctimas, toda vez que existían diversas irregularidades y dilaciones en la investigación y sanción de los feminicidios.
Dentro de la determinación de las reparaciones de esta sentencia, los representantes de las víctimas arguyeron ante la Corte
que
la desaparición, la tortura, el asesinato, la destrucción de sus restos y la falta de respuestas apropiadas, oportunas y eficaces por
parte de las autoridades para esclarecer las circunstancias de la muerte de las víctimas, han provocado en los familiares daños
considerables a su salud física y mental, a su calidad y proyecto de vida, a su sensación de bienestar y han vulnerado de manera
importante sus sentimientos de dignidad, de seguridad y de pertenencia a una comunidad donde los derechos de las víctimas
son reconocidos y respetados, marcando un límite a sus expectativas de vida (Corte IDH 16 noviembre 2009 £414).
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Ante esta solicitud, muy similar a la planteada por la Comisión Interamericana en el caso Villagrán Morales, la Corte consideró
que independientemente de que los representantes de las víctimas no hubieran esgrimido argumentos suficientes para establecer un
nexo causal entre los actos del Estado y la afectación al proyecto de vida de las víctimas, este tipo de reparación “no procede cuando
la víctima falleció, al ser imposible reponer las expectativas de realización que razonablemente toda persona tiene” (Corte IDH 16
noviembre 2009 £589).
Esta fluctuante línea jurisprudencial, ha prevalecido en los casos más recientes de la Corte Interamericana, entre los que
podemos citar: Argüelles vs Argentina, Rochac Vera vs Colombia, Norín Catriman vs Chile y Veliz Franco vs Guatemala, por mencionar
algunos, en los cuales los representantes de las víctimas han argumentado un daño al proyecto de vida de las víctimas, exigiendo una
justa reparación, y en cuales, de manera reiterada, la Corte ha omitido emitir un pronunciamiento específico respecto al referido daño,
subsumiendo su reparación dentro de las medidas de compensación establecidas para los daños inmateriales.
4. CONCLUSIONES
Los contrastes entre las múltiples sentencias analizadas, permiten evidenciar claramente los matices tan diversos que se le han
dado a la reparación del daño al proyecto de vida a lo largo de la jurisprudencia de la Corte Interamericana. En este sentido, aunque
es cierto que su introducción dentro de las resoluciones es un esfuerzo plausible y apuntalaba para ser un gran progreso en materia de
reparaciones por violaciones a derechos humanos, la realidad es que con el paso del tiempo ha devenido en un tema abstracto y difícil de
delimitar, el cual en algunos casos ha merecido la determinación de una reparación específica; en otros ha sido tomada en consideración,
aun tratándose de personas que perdieron la vida, pero subsumida dentro de los rubros de daños inmateriales; o bien, ni siquiera ha sido
objeto de pronunciamiento por la Corte Interamericana, aun cuando los representantes de las víctimas o la Comisión Interamericana,
hubiera solicitado la reparación correspondiente.
Esto, nos lleva a compartir la postura del ex juez del Tribunal Interamericano, Oliver Jackman (1998), en el sentido de que el
concepto de daño al proyecto de vida adolece de falta de claridad y fundamento jurídico, y se instaura en una forma artificial para castigar
aun más a los Estados demandados, siendo una creación que no responde a una necesidad jurídica identificable (Jackman O. 2005).
Si bien, reconocemos que el concepto de “proyecto de vida” deviene del derecho del ser humano a autodeterminarse, y que la
materialización de dicho proyecto depende, en su mayoría de que el Estado, en cumplimiento con sus obligaciones internacionales en
materia de derechos humanos, respete la esfera jurídica de los individuos sujetos a su jurisdicción y les brinde todas las garantías para su
libre y plena realización, lo cierto es que como rubro de reparación, éste puede ser subsumido dentro de las indemnizaciones por daño
inmaterial, y así homologar los criterios de la Corte Interamericana, pues de otra manera pareciera que se trata de una cuestión a capricho,
sin certeza jurídica alguna, máxime cuando por simple concepto, determinar un daño al proyecto de vida, implica el análisis de cuestiones
meramente probabilísticas de difícil, por no decir imposible, comprobación.
En este mismo sentido, se debe tener en consideración que aunque es innegable que toda víctima de una violación a derechos
humanos sufre una modificación abrupta y arbitraria a su proyecto de vida, no toda modificación de esas proyecciones y condiciones
impacta en el mismo grado en la realización del individuo, por lo que podría justificarse que, en algunos casos, el Tribunal considerara
que no amerita una reparación específica, sino únicamente en aquellos en los que implique verdaderamente una repercusión en los ejes
medulares de la existencia del ser, como por ejemplo un detrimento grave a su estabilidad emocional, la disminución de su capacidad
física o intelectual, la destrucción de su entorno familiar o el truncamiento del desarrollo personal y profesional que el individuo, bajo
circunstancias normales, pudo razonablemente alcanzar.
Sin embargo, tal como se analizó previamente, la jurisprudencia de la Corte, no se apega a esta premisa, pues es indubitable que
una víctima de tortura, como lo es el Sr. Wilson Gutiérrez Soler; el menor hijo de una perseguida política, quien tuvo que desarrollar su
vida en el exilio o, los familiares de una joven asesinada en el marco de un contexto sistemático de feminicidio y la consecuente negación
de acceso a la justicia; sufren una afección grave en las proyecciones y condiciones de su existencia, sin que para alguno de ellos, el
Tribunal Interamericano haya emitido un pronunciamiento específico respecto del daño conculcado a su proyecto de vida.
Con esto, no pretendemos adoptar una postura “antiproteccion a derechos humanos”, sino por el contrario, al proponer que
la Corte Interamericana establezca límites claros y específicos, así como estándares homogeneizados en materia de reparación al daño
al proyecto de vida, pretendemos abonar a la legitimidad del Tribunal y a la aceptación de este nuevo concepto de reparación, para que
tenga un verdadero impacto, ya no sólo en la jurisprudencia interamericana, sino que permee las determinaciones de los tribunales
domésticos de los Estados Partes, pues debemos recordar que el nuevo Estado de Derecho Convencional, propende a que, a través del
control de convencionalidad se logre la universalización, inalienabilidad, intangibilidad e inviolabilidad de los derechos humanos y sus
estándares de protección y reparación, para lo cual es necesario que exista una base mínima de la cual se pueda partir para el desarrollo
de este concepto.
REFERENCIAS
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de septiembre de 1993. Disponible en: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_15_esp.pdf>. Consultado el: 03 agosto
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______. Caso Cruz Sánchez y Otros vs. Perú, Excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas, sentencia de 17 de abril de 2015.
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ROUX, Vicente. Voto razonado en la sentencia de Reparaciones y costas del caso Villagrán Morales y otros vs. Guatemala, sentencia
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2015.
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Anexo – Comentários a Inovações Legislativas e Juriprudências
CABIMENTO DE RECURSO ADESIVO PARA MAJORAR QUANTIA
INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE DANO MORAL E OUTRAS IMPORTANTES
QUESTÕES CORRELATAS
Adrielly Fernandes Braga de Morais¹
Rodrigo Clemente de Brito Pereira²
Nesta seção da revista destinada a comentários sobre alterações legislativas e decisões judiciais importantes, escolhemos
tratar do recente acórdão proferido pela Corte Especial do STJ no julgamento do REsp 1.102.479-RJ, de relatoria do Ministro Marco
Buzzi, julgado em 04/03/2015 e publicado no DJe de 25/05/2015, abordando o cabimento de recurso adesivo para majorar quantia
indenizatória decorrente de dano moral.
Havia multiplicidade de recursos com fundamento nessa matéria, motivo por que o STJ a elegeu como um dos temas de
recursos repetitivos (tema 459), processando o referido REsp 1.102.479-RJ na condição de recurso representativo da controvérsia, na
forma do art. 543-C do Código de Processo Civil.
Para entender a questão, tomemos, a título de ilustração, o seguinte caso. Túlio propõe ação de indenização por danos morais
em face de João, pleiteando o pagamento de R$ 20.000,00 (vinte mil reais). O pedido é julgado procedente, mas o juiz condena o réu
em apenas R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Túlio pensa consigo: “Eu queria mais, porém prefiro acabar logo com esse processo e receber
imediatamente R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a ficar tentando receber R$ 20.000,00 (vinte mil reais), o que poderia demorar anos; não vou
recorrer”. Ocorre que, no último dia do prazo, João interpõe apelação. Intimado para apresentar contrarrazões, Túlio pensa: “Já que ele
recorreu, eu também vou fazê-lo, para aumentar o valor da indenização; como vou esperar mesmo, quero tentar uma quantia maior”.
Nesse caso, é possível ao advogado de Túlio interpor recurso adesivo pedindo a majoração do valor da indenização por danos
morais? Essa foi a questão respondida pelo STJ no julgamento do REsp 1.102.479-RJ.
Os que entendiam não ser cabível o recurso adesivo argumentavam que, no caso descrito, não teria havido sucumbência
recíproca (que é requisito essencial para a interposição do recurso adesivo). Para amparar esse entendimento, invocavam a súmula 326
do STJ, segundo a qual: “Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica
sucumbência recíproca”.
Ocorre que, ao julgar o REsp 1.102.479-RJ, a Corte Especial do STJ fez a distinção entre sucumbência formal e material,
firmando o entendimento de que: “O recurso adesivo pode ser interposto pelo autor da demanda indenizatória julgada procedente,
quando arbitrado, a título de danos morais, valor inferior ao que era almejado, uma vez configurado o interesse recursal do demandante
em ver majorada a condenação, hipótese caracterizadora de sucumbência material”.
No caso ilustrado, o autor venceu a demanda sob a perspectiva formal, já que a providência processual requerida foi atendida
(o réu foi obrigado a pagar). Apesar disso, do ponto de vista material, teve sim uma sucumbência parcial, na medida em que não obteve
o valor total da indenização pretendida – pleiteou R$ 20.000,00 (vinte mil reais), mas o juiz fixou a indenização em apenas R$ 5.000,00
(cinco mil reais). Havendo irresignação em relação à decisão, caracterizados estão a sucumbência material, o interesse recursal e o
cabimento do recurso adesivo.
Esse entendimento não se contrapõe ao que dispõe a súmula 326 do STJ, pois ela se adstringe à sucumbência ensejadora da
responsabilidade pelo pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios, não tendo relação alguma com interesse recursal.
Sua correta leitura, assim, seria a seguinte: para fins de definir quem pagará as despesas processuais e os honorários advocatícios, “na
ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca”.
Logo, se o autor pediu uma quantia a título de danos morais e obteve valor inferior ao desejado, podemos concluir que: sob o
ponto de vista formal, ele foi o vencedor da demanda e não terá que pagar as despesas processuais e os honorários do advogado do réu
(súmula 326 do STJ); sob o ponto de vista material, ele foi sucumbente e terá direito de interpor recurso (principal ou adesivo), já que não
obteve o exato bem da vida pretendido (REsp 1.102.479-RJ).
Aproveitamos, ainda, para lembrar alguns aspectos acerca dos termos iniciais de incidência de juros moratórios e de correção
monetária sobre o valor da indenização por dano moral.
Caso o dano decorra de responsabilidade extracontratual, os juros moratórios incidem desde a data do evento danoso, conforme
a súmula 54 do STJ, a qual enuncia: “os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual”
.
Deveras, é pacífico no STJ o entendimento de que “o fato de, no caso de dano moral puro, a quantificação do valor da indenização,
objeto da condenação judicial, só se dar após o pronunciamento judicial, em nada altera a existência da mora do devedor, configurada
desde o evento danoso” (REsp 1.132.866/SP).
¹Bacharela em Ciências Jurídicas pela UFPB. Advogada.
²Aluno laureado do Curso de Ciências Jurídicas da UFPB. Mestrando em Direitos Humanos no Programa de Pós-graduação do Centro de
Ciências Jurídicas da UFPB. Advogado. Consultor legislativo concursado da Assembleia Legislativa da Paraíba.
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Por outro lado, caso o dano moral decorra de responsabilidade contratual, os juros de mora devem fluir a partir da citação. Esse
é o entendimento que tem o STJ (AgRg no REsp 1.362.073/DF) com base no artigo 405 do Código Civil, o qual estabelece: “Contam-se
os juros de mora desde a citação inicial”.
Por fim, quanto à correção monetária do valor da indenização do dano moral, incide somente a partir do arbitramento pela
sentença judicial, a teor da súmula 362 do STJ, a qual dispõe: “a correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a
data do arbitramento”. Tal entendimento sumulado é aplicável, segundo o STJ (AgRg nos EDcl no REsp 1.415.381/SP), ainda que o dano
moral tenha decorrido de ato ilícito, isto é, no âmbito da responsabilidade extracontratual.
Esperamos, com esses comentários, ter contribuído com a atuação dos jovens advogados, principalmente aqueles que atuam
nas áreas do Direito Civil e do Direito do Consumidor, em que as ações pleiteando indenização por dano moral são bastante corriqueiras.
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PROTECIONISMO OU RETROCESSO?
Patrícia Gomes Sampaio¹
Sabe-se que a publicidade profissional é hoje regulamentada pela Lei n. 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB) e pelo Provimento
n. 94/2000 do Conselho Federal da OAB (Código de Ética e Disciplina da OAB), entretanto está em discussão o Novo CED/OAB, com
previsão de ser apresentado em outubro, quando será realizada a XXII Conferência Nacional dos Advogados.
Nos debates do projeto, o tema mais suscitado é o referente à publicidade profissional (artigos 38 a 46). Embora tenha sido
este o termo adotado, correto seria falar em “marketing jurídico”, uma vez que não se trata apenas de divulgação, mas sobretudo de
investimento e estratégia. Há quem fale que, na advocacia, a propaganda (publicidade paga) não é a alma do negócio e quem rebata que
o marketing não é exclusivo para produtos, mas também para serviços.
A publicidade pode ser feita individual ou coletivamente, de modo discreto e moderado, sobretudo com finalidade informativa.
Divulga-se o nome do advogado e/ou escritório, seu número de inscrição na OAB, suas qualificações. Geralmente se faz através dos
anuários profissionais, das revistas especializadas (nunca pelas comuns), das listas telefônicas, entre outros meios. Quando é pela mídia,
não poderá ser frequente e deverá sempre instruir quem está do outro lado da tela ou do rádio.
Os materiais de escritório mais usados são os cartões de visita, os papéis timbrados e os sites da internet. A correspondência por mala-direta pode ser feita apenas para comunicar a instalação ou a mudança de endereço do advogado a seus clientes e
colegas. A comunicação entre eles ocorrerá também via fax, e-mail ou outros canais de internet. A grande remessa de correspondência, a
panfletagem e o envio de sms são proibidos. Facebook e redes sociais são permitidos, desde que respeitem os limites éticos postos nas
normas supramencionadas. Cada secção pode se posicionar sobre o tema, como fez a OAB/SP no Proc. E-4.176/2012, ao possibilitar a
publicidade via Facebook, desde que fossem observados os parâmetros éticos.
Podem ser instaladas placas no escritório ou em casa, desde que sóbrios e proporcionais. É vedado o outdoor, os anúncios
luminosos e outros meios em vias públicas, como clubes e uniformes. Não podem ser utilizados os desenhos que não sejam adequados,
os de uso exclusivo da OAB e as fotos dos tribunais. Uma vez que a advocacia é incompatível com a mercantilização, é proibido o nome
fantasia por escritórios, bem como sua cumulação com outra atividade (como a contábil, a exemplo). Não podem ser feitos anúncios em
rádio e televisão, e, caso algum advogado participe de programas como entrevistado, não poderá ser sensacionalista, mencionar cargo ou
função ocupe ou ocupou, falar sobre valores ou gratuidades, captar clientes, nem, por outro lado, usar de expressões que confundam o
público.
O advogado deve ser íntegro e em suas atividades não pode violar o sigilo profissional, nem mencionar clientes ou casos
concretos em sua publicidade. É obvio que não se pode oferecer serviços indiscriminadamente, menos ainda se utilizar de intermediários
(conhecidos como “laçadores”) para angariar causas. Exemplo do que não pode ser feito é o anúncio em saco de pão ou sacolas de
supermercado, como decidido em São Paulo, no Proc. E- 4.474/2015.
Tudo isso porque nossas normas balizadoras se espelharam na orientação francesa, onde há maior restrição à publicidade
profissional, enquanto a americana é livre, e inclusive a advocacia é vista como uma atividade empresarial. No Brasil, é intelectual, porém
é tratada como um negócio, uma vez que prescinde de uma boa gestão, de finanças e comunicação organizadas. Sem um planejamento
eficiente o escritório não prospera.
¹ Advogada inscrita na OAB – CE n. 24.972.
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Saliente-se que os princípios e as regras pátrias foram postas quando a Internet não era popularizada. Agora o computador é
um item essencial de trabalho, os processos judiciais são (em sua maioria) eletrônicos e os avanços tecnológicos não podem ser ignorados
sob pena de fracasso. A nova realidade é promissora, sobretudo aos jovens advogados.
A proposta do Novo CED/OAB tem como fito minar as redes sociais. Quanto à estas, pode-se dizer que facilitam a comunicação
do advogado/escritório com o cliente, ávido por informações. Nelas o causídico pode manifestar o seu conhecimento e esclarecer
dúvidas. Seu uso é mais corriqueiro do que o do e-mail e o do telefone. Se as páginas de uma rede social são organizadas por assunto, é
mais fácil para o cliente encontrar o profissional que deseja contratar. Aqui também o advogado deve zelar por sua reputação e imagem,
se abstendo de usar as redes sociais como canal de provocação de demandas e mostrando postura, competência jurídica e inteligência
emocional.
A quem interessa a restrição das redes sociais? Advogados conservadores defendem o Novo CED/OAB afirmando que o
aumento número de advogados só permite que o texto endureça, sendo possível apenas o uso de sites profissionais na internet e
barrando as redes sociais que, na visão do jovem advogado, o torna tão visível quanto aquele que milita há anos.
É favorável ao Novo CED/OAB o conselheiro Paulo Roberto de Gouvêa Medina, segundo o qual “o momento atual não
favoreceu a mudança. Com o crescimento da classe advocatícia a partir da proliferação dos cursos de Direito seria perigoso ampliar-se
mais a possibilidade de propaganda profissional”. Discorda o advogado Maurício Gieseler, para quem “esta proposta restringe, e muito, a
realidade da internet para os advogados. É extremamente conservadora e vai afetar, em especial, os jovens advogados”.
É visível que o modelo atual e o proposto são ruins para quem está começando e vão de encontro ao que é vivido pela
sociedade. As redes sociais são ótimos meios para se viabilizar a publicidade profissional, que pode ser bem feita com criatividade e baixo
custo. Quando o advogado publica um artigo de sua autoria, por exemplo, já faz marketing de conteúdo e a partir daí se realiza.
Tudo é uma questão de bom senso: As plataformas digitais não podem ser outdoors digitais. A internet não induz só à publicidade,
mas aos relacionamentos, especialmente. Para Ricardo Orsini, a mídia de massa que imperou nos anos 80 e 90 praticamente de modo
unilateral não mais prevalece. Abre-se o espaço à interação entre quem posta e quem lê, ouve, assiste, curte, compartilha.
Caso seja aprovada tal como está a proposta do Novo CED/OAB, haverá uma evidente reserva de mercado. As regras de amanhã
devem ser mais maleáveis, para que os grandes escritórios não esmaguem os pequenos. A publicidade profissional exercida através
das redes sociais os aproximam e reacendem o conceito aristotélico de igualdade. Assim, esta deve ser rediscutida e, posteriormente,
aprovada. Afinal, como diz um clichê de internet, “a ganância não pode travar a evolução”.
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ALUGUEL DE IMÓVEIS DE AGENTES IMUNES E A COBRANÇA DE IPTU
Yure Tenno de Farias Lira¹
Súmula vinculante 52-STF: Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das
entidades referidas pelo art. 150, VI, c, da CF, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades para as quais tais entidades
foram constituídas. STF. Plenário. Aprovada em 17/06/2015.
O conteúdo desse enunciado já era previsto na súmula 724 do STF, agora convertido em súmula vinculante. Como bem
sabemos, o Plenário do STF tem convertido em súmulas vinculantes algumas entendimento já consagrados em súmula comuns, para
atribuir os efeitos constitucionais do art. 103-A da CRFB a antigas proposições, com a finalidade de arrefecer a multiplicação de processos
sobre questão idêntica.
Com a conversão, o verbete terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública
direta e indireta de todos os entes federativos.
Além do mais, abrir-se-á a possiblidade para que os advogados ajuízem reclamação constitucional diretamente ao STF, dos atos administrativos ou decisões judiciais que contrariarem a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicarem.
Por outro viés, no tocante ao conteúdo da súmula vinculante em comento, ela tem por destinatário as entidades imunes
previstas no art. 150, VI, c, da CRFB, são eles: os partidos políticos, inclusive suas fundações, entidades sindicais de trabalhadores e
instituições educacionais e de assistência social, sem fins lucrativos.
Nessa linha, importa observar que a Constituição torna imune, vale dizer, define hipótese de não incidência constitucionalmente
qualificada, sobre o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades elencadas no art. 150, VI,
c, da CRFB, como previsto no art. 150, § 4º, da Carta Magna.
Com efeito, por aplicação direta dos dispositivos constitucionais acima elencados, que institui garantia fundamental dotada de eficácia
plena, é possível afirmar que não incide o IPTU sobre o prédio utilizado como sede de partidos políticos ou entidades sindicais de
trabalhadores, por exemplo.
A controvérsia, por sua vez, reside nas hipóteses em que tais entidades imunes alugam imóveis a terceiros. Apesar de não existir
resposta literal na Constituição, o Supremo Tribunal Federal ofereceu solução de lege lata ao caso, e atribuiu interpretação teleológica ao
art. 150, VI, c, e seu § 4º, afirmando que o fator relevante para a solução justa do caso é preservar os valores que o constituinte visou
incentivar e proteger, de modo que importa saber se os recursos serão utilizados para as finalidades incentivadas pela Constituição.
E sendo assim, guiado pela ratio teleológica de busca da máxima efetivação dos valores constitucionais, consagrou-se entendimento,
agora expresso na súmula vinculante 52, segundo o qual persistirá a imunidade tributária caso o valor dos aluguéis seja aplicado nas
atividades para as quais tais entidades foram constituídas.
¹Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Pós-graduando em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes
- Rio de Janeiro/RJ. Advogado
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Revista do advogado.
Coordenação: Lira, Yulgan Tenno de Farias
Lexmax: Revista do advogado, João Pessoa - OAB/PB,
ano 1, volume 3, 2015. p-120
Periódico Semestral
ISSN: 2446-4988
Publicação Oficial da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Paraíba
http://oabpb.org.br
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