À espera do assassino - Portal dos Jornalistas

Transcrição

À espera do assassino - Portal dos Jornalistas
À espera do assassino
Como vivem os brasileiros ameaçados de morte na fronteira paraense, onde o futuro da Amazônia é decidido à bala
ELIANE BRUM E SOLANGE AZEVEDO (TEXTO)
MAURILO CLARETO (FOTOS)
MARCADA PARA MORRER
Maria de Fátima da Silva Nunes, a
Santa, de Castelo de Sonhos, Pará,
conta como é viver na mira de
pistoleiros
'Posso ser
assassinada a
qualquer
momento.
Quando eu abro
uma porta, já
espero receber
um tiro. Tem
gente que diz que
sabe como é viver
jurado de morte.
Mas não sabe. Estar marcada para
morrer é viver sem sonho, é só ter
momento. É não ter mais casa nem
paradeiro, é não ser mais ninguém. É
dizer para quem anda contigo que é
para não andar mais porque vai
morrer. É marcar os amigos de morte
também e depois se sentir culpada. É
uma sensação tão ruim. Parece que as
luzes vão se apagando, que o mundo
vai ficando escuro. Nem sinto mais
saudade da vida porque não acho
bonito nada. É bonito, mas eu é que
não acho bonito. Tenho pavor da noite
desde pequena. E agora, que virei
uma fugitiva, tenho de andar no
escuro, pelo meio do mato. Quando
durmo, só sonho com defunto. Decidi
uma coisa. Quando a máfia de Castelo
de Sonhos me pegar, sei que vão me
torturar. Mas eu vou fazer o possível e
o impossível para não gritar. E não vou
pedir misericórdia. Falam aqui que eu
já estou morta, só falta cair. É isso. Ser
jurada de morte é começar a ser
assassinada ainda na vida.'
Os que estão enterrados no cemitério de Castelo de Sonhos acreditaram que o nome do vilarejo era um sinal de boa sorte. Os que
ainda estão vivos continuaram no lugar porque não têm como voltar ou porque já foram longe demais. Na beira da BR-163, Castelo de
Sonhos é uma empoeirada fotografia 3X4 do Pará, o Estado campeão em conflitos de terra, assassinatos no campo e trabalhadores
escravizados. O cemitério resume a geopolítica da região, na divisão desigual entre vítimas e pistoleiros. Não há mandante sepultado.
Mortes naturais são uma raridade. Passar dos 50 anos é hora extra. Em Castelo de Sonhos assiste-se em tempo presente à repetição
da brutal colonização do Brasil, retrato de um país que vive vários tempos históricos simultâneos. Os brasileiros que acompanham o
faroeste como folclore de um mundo distante equivocam-se. É o destino da Amazônia que se decide do modo mais arcaico no Pará. A
tiros.
Santa - ou Maria de Fátima da Silva Nunes - pode ser a próxima inquilina de uma das sepulturas abertas pelo coveiro para adiantar o
serviço. Ela tornou-se a maior liderança popular de Castelo de Sonhos desde que seu irmão, Brasília - ou Bartolomeu Morais da Silva -,
foi executado a tiros por um consórcio de grileiros em 21 de julho de 2002. Brasília é dono do túmulo mais visitado do cemitério. E
Santa, a candidata mais habilitada a lhe fazer companhia, porque conseguiu botar um mandante e dois pistoleiros na cadeia por força
de sua própria investigação: o fazendeiro Manoel Alexandre Trevisan, o Maneca, e os matadores Márcio Antonio Sartor, o Márcio
Cascavel, e Juvenal Oliveira da Rocha, o Parazinho. Foi a primeira vez na história do Pará que um latifundiário foi punido por ter
ordenado a morte de um trabalhador. A inversão da lógica deu esperança a quem não tinha nenhuma.
O nome de Santa está ao lado de outros 50 líderes marcados para morrer no relatório 'Violação dos Direitos Humanos na Amazônia:
conflito e violência na fronteira paraense', preparado pelas ONGs Justiça Global, Terra de Direitos e Comissão Pastoral da Terra. O
dossiê será lançado nesta segunda-feira em Brasília e entregue à representante especial da ONU que desembarca ä no Brasil em
dezembro para investigar a situação dos ameaçados. Nele, constam 772 execuções de trabalhadores nos últimos 33 anos - e apenas
três julgamentos. O braço curto da Justiça para alcançar os poderosos, porém, revela-se longo no caso dos pobres: nos últimos dez
anos foram presos 607 camponeses.
Os números dão a dimensão da façanha de Santa. A História mostra que ela pode pagar a ousadia com a vida, como aconteceu com a
freira Dorothy Stang em fevereiro. Aos 48 anos, Santa sabe disso. Pouco vê os dois filhos, protegidos em uma cidade distante, vive na
casa de um e de outro conhecido, quando as ameaças aumentam foge da cidade no porta-malas de um carro ou a pé, disfarçada de
velha, mendiga ou aleijada. Mais de um amigo foi executado por tê-la ajudado, como o barqueiro Papamel, que a tirou de um sítio onde
pistoleiros planejavam matá-la escondendo-a debaixo da lona preta do barco. Foi morto a tiros dias depois.
Em Castelo de Sonhos, Santa vive acordada, dia após dia, seu pesadelo. O lugarejo é uma vertigem amazônica. A meia dúzia de ruas
envoltas em nuvens de poeira pertencem ao município de Altamira. Entre o distrito e a sede há 1.100 quilômetros, distância equivalente
à que separa São Paulo de Porto Alegre. Maior município do mundo, Altamira tem o tamanho da Bélgica e da Grécia juntas, seu
território é superior ao de 12 Estados brasileiros. Como acontece com toda terra jovem, quem chega a Castelo quer deixar o passado
para trás e construir outra identidade. Assim, o lugar tem poucos sobrenomes e muitos apelidos. São esses os mais numerosos no
cemitério, sem cruz, sem nome, sem família para cobrar a morte. Conhecido pelo nome completo, apenas ä quem já cercou seu
latifúndio e com ele assegurou lugar fixo no novo mundo.
O fundador de Castelo, Leo Reck, é um dos que usam nome e sobrenome. Mas quando alcançou a floresta virgem nos anos 70 era
chamado de Onça Branca. Nas terras que cercou, os garimpeiros Gaguinho e Paraibinha descobriram ouro. Batizaram o lugar com o
nome da música que não se cansavam de escutar no LP do compositor Walter Basso. 'No meu castelo de sonhos você é a rainha...'
Foram os primeiros a acreditar que Castelo de Sonhos era sinal de bom augúrio. Desapareceram sem enriquecer nem deixar rastro.
Ouro foi o primeiro ciclo de Castelo de Sonhos. Depois, a madeira e o gado. A soja se avizinha por Mato Grosso, segue a estrada
Cuiabá-Santarém, que o presidente Lula prometeu asfaltar. É a seqüência amazônica. Sob a sanha do ouro Castelo viveu seu batismo
de sangue: a guerra entre Onça Branca e Márcio Martins da Costa, o Rambo do Pará. Ele conquistou fama e apelido depois de Reck têlo arrastado algemado pela via principal do lugarejo, uma rua à qual o fundador deu o nome de Santo Antônio. Partiu como Márcio,
voltou como Rambo. Dominou a região à bala no final dos anos 80, no topo de um império de ouro e drogas com ligações na política
paraense. Em 1992 foi morto a tiros pela Polícia Militar. Castelo de Sonhos tinha sido semeada com mais de 300 cadáveres.
#Q:À espera do assassino - Continuação:#
Um consórcio de fazendeiros conhecido como 'a Máfia de Castelo'assumiu o poder depois da morte de Rambo. Brasília desafiou sua
autoridade ao reivindicar ao governo federal um assentamento para os garimpeiros quando o ouro escasseou. Toda terra em Castelo de
Sonhos é pública. Faz parte dos 30 milhões de hectares grilados no Pará, uma área equivalente a quase dez Bélgicas. A média de cada
propriedade, conforme o dossiê das organizações de Direitos Humanos, é de 88.000 hectares - o tamanho de Belo Horizonte, Fortaleza
e Recife somados. A maioria é mantida - e expandida - por milícias formadas pelos guaxebas, nome dado aos pistoleiros. Eles não
ganham por execução, mas por mês, como um funcionário assalariado: em torno de R$ 1.000 para os peões e até R$ 5 mil para o
chefe. 'Tanto faz matar ou não matar. É um valor fixo por mês. Só ganho por cabeça quando faço particular', conta um deles (leia a
entrevista na pág. 102).
Quando o consórcio de grileiros decidiu executar Brasília, enfrentou um problema: ele era popular também entre a pistolagem. O líder
tinha carisma, apartava brigas entre marido e mulher, cuidava de doentes. Sua arma era uma caneta acomodada na orelha pronta para
ser sacada diante de uma denúncia. O 'serviço' foi encomendado a pelo menos três pistoleiros - e recusado. Quando ele foi
assassinado, a população venceu o medo e impediu a polícia local de aproximar-se do corpo até a chegada do legista de Belém. Os
fazendeiros criaram o primeiro mártir de Castelo.
RETRATO DE UM FUNDADOR
Quem é o homem que construiu uma
cidade na Amazônia
Aos 70 anos,
Leo Reck (foto),
o fundador de
Castelo de
Sonhos, vive
hoje a segunda
fase da
colonização do
lugarejo aonde chegou em 1975. A
convite, como diz, do governo militar, que
o exortou a 'integrar para não entregar'.
Leo Reck precisa limpar a biografia para
que no futuro, quando o distrito virar
cidade, possa ter um busto na praça e
uma história bonita para as crianças
recitarem na escola em dias cívicos. A
guerra entre Onça Branca, como era
conhecido, e Rambo do Pará ficou para
trás. 'Cansei de recolher os corpos que
Rambo deixava para enterrar. Larguei
para os urubus', conta. 'Eu nunca matei
ninguém e posso andar de cabeça
erguida.'
Conversar com ele é como testemunhar
a construção de um herói da pátria em
tempo real. 'Quando chegou o título
provisório do Incra, descobri que me
deram 180 hectares. Terra desse
tamanho eu conseguia no Sul', explica.
'Fiquei com tanta raiva que resolvi fazer
uma cidade.' E assim o velho Leo fez um
traçado e vendeu terrenos a R$ 10 mil.
Castelo de Sonhos, portanto, é uma
cidade planejada. E só não é mais
progressista, segundo ele, por causa do
presidente Lula e da ministra Marina
Silva, 'que embargaram a Amazônia'.
Refere-se à suspensão temporária da
licença para corte de árvores na região
da BR-163. 'Não é porque morre algum
aqui que atrapalha alguém. É aquele
presidente comunista que atrapalha a
gente', destempera-se. 'Seria bom
demais se o governo não se metesse em
Castelo de Sonhos.'
Leo Reck sente-se desrespeitado pela
Polícia Federal, que passou a circular na
Amazônia depois da execução da Irmã
Dorothy Stang. Está habituado a outro
tipo de lei: 'Polícia aqui é o dinheiro. Se
compra soldado por R$ 200, tenente um
pouco mais. Uma morte aqui custa R$
500'. Não se conforma: 'Agora nos
chamam de grileiros. Mas eu sou é
desbravador. Tenho coragem agora, com
a idade que tô, de ir lá para as bandas do
Rio Negro, pegar uma motossera e
plantar uma roça'. Depois de explicar que
nos velhos tempos jornalistas viravam
comida de urubu ou eram atiradas de
aviões com as mãos amarradas, Leo
Reck irrita-se com o gravador: 'Desliga
essa porra!'.
Mirar nos líderes para eliminar a resistência gerou um fenômeno novo: o aumento de mulheres na lista dos ameaçados de morte. Elas
assumem o lugar de maridos, irmãos e filhos executados. Foi assim com Santa. Viúva, ela sobrevivia fazendo salgados para
lanchonetes. O povo de Castelo assistiu à pacata salgadeira anunciar aos grileiros na missa de sétimo dia do irmão que viveria para
botá-los atrás das grades. 'Às vezes estou arrebentada por dentro, mas rio e falo alto para não pensarem que tenho medo', diz. O último
recado foi de que lhe cortariam a língua.
Santa só conseguiu instalar os matadores atrás das grades porque teve uma colaboração insólita: a dos pistoleiros do lugar. 'Devia um
favor para o seu irmão, então vou lhe ajudar', anunciou Tim Maia, um dos mais temidos. Até ser eliminado, em dezembro de 2003, foi o
que fez. Salvou-a várias vezes da morte. Numa delas, Santa foi colocada disfarçada dentro de um ônibus, uma velha doente com sua
bengala. Tim Maia avisou que um dos pistoleiros tinha um cavalo na fivela do cinto e o outro um touro. Eles entraram na primeira
parada, com a desculpa de procurar uma parente. Passaram por Santa e não a reconheceram. 'Senti um gelo dentro do coração', conta
ela. Dias antes de ser executado, Tim Maia fez bravata: 'Matei 150. Já posso morrer feliz'.
LEI TRABALHISTA
Paraguai insistiu demais para receber
o pagamento
O atestado de óbito de Félix
Gonçalves é uma ironia que ilustra a
lei trabalhista em Castelo de Sonhos e na Amazônia. Causa mortis:
'Acidente de trabalho'. Apesar de a
árvore que o matou ter conseguido
decepar o tampo de sua cabeça com o
exato formato de um golpe de facão,
não deixa de fazer sentido. É costume
na região esse tipo de acidente
profissional. Quando o trabalhador
insiste para 'fazer acerto', ou seja,
receber o combinado, costuma morrer
por justa causa. Conforme a viúva,
Florentina Gonçalves, Paraguai exigiu
o pagamento de uma ponte que fez
para a subprefeitura de Castelo. 'O Leo
Reck botou um pistoleiro ao lado do
caixão e pressionou tanto para enterrar
rápido que não deu tempo de todas as
filhas se despedirem do pai', conta.
Um a um os pistoleiros foram tombando em Castelo de Sonhos. No fim de outubro sumiu mais um. João Moreira, o Carioca,
desapareceu com sua moto quando foi verificar uma grota de ouro. 'É, sumiu. Outro mistério', comenta Leo Reck. 'Se sumiu, outros vão
poder viver.' A polícia não tem pistas. Somente neste ano desembarcou o primeiro delegado no distrito. Dias atrás, José Conceição
Corrêa já fazia as malas. Sua passagem por lá foi quase um período de férias. Em cinco meses não fez nenhum inquérito. Ele explica:
'Castelo de Sonhos é um lugar ordeiro, calmo e tranqüilo'.
#Q:Como foi descoberto o Brasil da pistolagem:#
BEM-VINDO A CASTELO DE SONHOS
Como a família Branger descobriu o Brasil
da pistolagem
Eles não tinham
nenhuma idéia
sobre como as
coisas
funcionavam. A
chegada da
família Branger
(foto) a Castelo de Sonhos foi um encontro
entre dois mundos. 'Quando meu marido
falou o nome, Castelo de Sonhos, eu me
encantei', conta Maria Palmira Branger, a
Preta. 'Todo mundo tem um sonho. O do
meu marido era uma fazenda. Meus filhos
precisavam de espaço. Pensamos que era
um lugar que estava começando e
precisava de gente com estudo.' Deixaram
Florianópolis em agosto de 2003 seguindo
o conselho de um cunhado que vivia em
Mato Grosso. Zulmar Branger deixava lotes
de terra onde plantava cebola e alho, Preta
fechou as portas de uma confecção e os
filhos trancaram a universidade. Partiam
para a conquista tardia da Amazônia.
Quando o asfalto da Cuiabá-Santarém
acabou, na divisa de Mato Grosso com o
Pará, Preta começou a chorar. 'Era só
mato. Eu não queria nem deixar o
caminhão de mudanças descarregar',
lembra. Mas deixou. Nunca mais
esqueceria desse momento-limite. Um ano
depois, em 8 de agosto de 2004, encontrou
o filho caçula, Cledson, estudante de
Arquitetura de 22 anos, dentro de um saco
atirado na estrada que os levou a Castelo
de Sonhos. O corpo ainda estava quente.
Cledson havia sido torturado por 24 horas
antes de ser morto. O principal suspeito do
crime é Emerson Minosso, filho de um dos
maiores grileiros da região, Fiorindo
Minosso. Tinham se tornado amigos.
Cledson foi atirado dentro de uma
mangueira com um touro bravo. Quando
tentava sair era devolvido ao suplício.
Quase não tinha pele nas costas. Cada
centímetro do corpo estava roxo. Os ossos
estavam quebrados. Dentro da boca
carregava seus genitais. O tiro no ouvido
direito foi apenas uma garantia do fim do
belo menino de praia que havia se tornado
o galã do faroeste.
A mãe pedia ajuda da Polícia Militar desde
o dia anterior. 'Primeiro o tenente falou que
tinha de esperar 24 horas. Depois que
precisavam fazer a segurança do rodeio.
Na madrugada do domingo, disse que
necessitavam dormir, mais tarde que
tinham de cuidar da cavalgada. Comecei a
gritar. Só depois descobri que ele levou R$
40 mil para não fazer nada enquanto meu
filho era torturado e morto', conta Preta. 'A
polícia eliminou os vestígios. Tinha carne
debaixo das unhas dele, porque lutou. Não
sobrou nada para identificar. Encontramos
as roupas queimando no lixão.'
Emerson Minosso tentou entrar no velório,
mas foi escorraçado. Mostrou a arma.
Ainda desfilou em Castelo de Sonhos por
mais três dias. Quando teve a prisão
preventiva decretada, já estava longe. Seu
pai, Fiorindo Minosso, diz que é tudo
mentira.
Várias versões circulam em Castelo de
Sonhos para explicar o crime. Em uma
delas, Emerson teve ciúme porque sua exnamorada se interessou pela vítima. Em
outra, a morte seria uma estratégia para
que a família vendesse a terra por preço
baixo e voltasse para onde veio. Nos dias
posteriores os Brangers encontraram
pistoleiros patrulhando a divisa entre as
fazendas. 'Fui aprender o que significava
cada morte aqui', conta Preta. 'Me
explicaram que quando jogam na estrada é
para calar a boca porque estão agindo.'
Quando sepultava o filho, um matador
sussurrou no ouvido de Zulmar: 'Você quer
que eu faça o serviço?'. Outros dois
fizeram a mesma proposta. Ele recusou.
Velou o filho no Dia dos Pais. 'O corretor
falou que era um lugar calmo, seguro.
Quando chegamos, nos primeiros 60 dias
houve 40 mortes. No Brasil não tem pena
de morte, mas aqui tem', conta o pai.
'Pensava que só matavam peão rodado e
pistoleiro. Achei que não matassem gente
de bem', diz a mãe. 'Vi gente degolada
boiando no rio. Vi um pai ser morto na
frente do filho de 4 anos no bar. Vi uma
bala atravessar o corpo de uma pessoa e
atingir o de outra numa festa. Vi um corpo
entupir uma bomba de sucção. Tinha
pedras no lugar das vísceras', relata
Calebe, o irmão. 'O que nunca vi neste
lugar foi briga a socos.'
O que Cledson viu está sepultado com ele
no cemitério de Castelo de Sonhos. A
família Branger decidiu ficar. 'Consegui
uma fazenda', explica o pai. 'Ganho muito
dinheiro aqui', afirma o irmão. 'Nós éramos
patinhos. Não entendíamos nada. Agora,
aquela coisa boazinha que tinha em mim
acabou', diz a mãe. Dias atrás ela viu
Fiorindo Minosso na rua. Gritou: 'Seu
desgraçado. Como tem coragem de olhar
para mim?'. Castelo de Sonhos é um lugar
pequeno. Meia dúzia de ruas desoladas. A
família Branger aprendeu que nelas há
dois tipos de pessoas: vítimas e
assassinos.
#Q:Pará - A fronteira de crimes:#
FRONTEIRA DE CRIMES
O Pará é campeão brasileiro de assassinatos
por conflitos de terras e trabalho escravo
O relatório sobre o Pará será lançado nesta
segunda-feira, em Brasília. Depois, vai ser
encaminhado para organizações internacionais,
entre elas a OEA e a ONU.
Nos últimos 33 anos, 772 trabalhadores rurais
foram assassinados no Pará e 22 defensores
de direitos humanos executados. Mas houve o
julgamento de apenas três mandantes
Os crimes seguem o eixo do desmatamento
(em vermelho). As mortes e ameaças se
concentram nas regiões devastadas. Assim
como os mais altos índices de trabalho escravo.
Estima-se que haja 10 mil homens
escravizados no Pará
MARABÁ
Pedro Laurindo da Silva foi executado em 17 de
novembro. Era líder de assentamento. Foi a
morte mais recente registrada no Pará. Seu
nome nem estava na lista de ameaçados
RONDON DO PARÁ
O fazendeiro José Décio Barroso Nunes
reivindica uma área de 112.000 hectares, em
Rondon do Pará, que equivale a 20% do
território do município. Investigação da
Advocacia-Geral da União mostrou que apenas
4.356 hectares são legais
O Pará possui mais de 30 milhões de hectares
de terras griladas. Isso equivale ao tamanho de
dez Bélgicas
Em nome de um homem que não existe, Carlos
Medeiros, constam 13 milhões de hectares
grilados. A área é equivalente à da Grécia. O
processo judicial dura quase 30 anos
A empresa Incenxil, do Grupo C.R. Almeida,
reivindica uma área com cerca de 4,6 milhões
de hectares apenas na Terra do Meio. A área é
maior que a da Suíça
#Q:Os marcados para morrer:#
LISTA MACABRA
Relatório denuncia os 51 ameaçados de morte no Pará
TARCÍSIO
FEITOSA DA
SILVA
Altamira
IVANILDE
MARIA
PRESTES
ALVESNovo
Progresso
ANTONIA
MELO
DA SILVA
Altamira
JOSÉ
SOARES DE
BRITO
Abel
Figueiredo
ANTÔNIO
GOMES
Marabá
PADRE
ADERNEY
GEMAQUE
LEALPorto de
Moz
MARIA DO
ESPÍRITO
FREI HENRI DES
SANTO
ROZIERSXinguara
Nova Ipixuna
Fotos: Reprodução e Juciele Maia/CPJ-PX
LISTA MACABRA
Lideranças estão na mira dos pistoleiros na luta pela terra
RAIMUNDO
BELMIRO
SEBASTIÃO
EDNALVA
CARMELITA
Riozinho do
RODRIGUES RODRIGUES
FÉLIX DA
Anfrísio, Terra
DE CASTRO
ARAÚJO
SILVA
do Meio
Marabá
Parauapebas
Parauapebas
MARIA
GORETE
BARRADAS
São João do
Araguaia
FRANCISCO
DE ASSIS
Marabá
JOSÉ
CLAUDIO
RIBEIRO DA
SILVA
Nova Ipixuna
SEBASTIÃO
ALVES DE
SOUZA
Marabá
Fotos: Reprodução
#Q:Como é viver com a possibilidade de ser assassinado:#
JURADOS DE MORTE
Relatório denuncia que 51 lideranças estão
ameaçadas no Pará. Algumas delas contam
como é conviver com a possibilidade de levar
um tiro a qualquer momento
PADRE JOSÉ AMARO LOPES DE SOUSA, 38,
ANAPU
'O sangue da irmã Dorothy me deu mais energia
para lutar. Já recebi diversas ameaças de morte.
As pessoas mandam recados, começam a falar
alto para eu ouvir ou telefonam para a minha
casa. Já fui seguido. Teve gente que veio
conversar comigo e acabou indo embora. Para
tentar me resguardar, comecei a criar cachorros
de raça. À noite, eles ficam soltos no quintal.
Abaixo de Deus, são os meus filas que me
protegem. Não saio sozinho e nem sem avisar
para onde vou e quando volto. Não posso andar
a pé pela cidade. Já tive de ficar escondido
várias vezes. Foi horrível. Quando chega a
notícia de que há pistoleiros rondando, perco o
sono. Eu e 18 colonos já fomos expulsos de um
assentamento sob ameaça de espingardas.
Tenho medo de morrer, mas não posso me
calar. As serrarias continuaram trabalhando e os
fazendeiros mandando e desmandando em
Anapu.'
MARIA JOEL DIAS DA COSTA, 42, RONDON
DO PARÁ
'Sou maranhense. Cheguei aqui em 1984, com o
meu esposo, Dezinho, e dois filhos pequenos.
Assumi a presidência do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais em 2002, porque os
filiados achavam que eu era a única pessoa
capaz de dar continuidade ao trabalho de
Dezinho. Ele foi assassinado há cinco anos
porque lutava pela reforma agrária. Convivo com
ameaças há dez anos. Muitas vezes não
consigo dormir. Tenho pesadelos. Já vi gente
rondando a minha casa. Recebo bilhetes,
telefonemas. Dizem que meu dia tá chegando,
que tô caçando a morte. Mas não posso
abandonar essa luta. Os assassinos do Dezinho
não foram punidos. Outro dia, jogaram garrafas
no telhado da minha casa. Parecia barulho de
tiro. Espero que isso acabe e que o poder
público faça valer a justiça no Brasil. Não quero
morrer.'
IDALINO NUNES ASSIS, 59, PORTO DE MOZ
'Vivo no Pará há 25 anos. Sou mineiro, mas
cresci no Espírito Santo. Depois, fui metalúrgico
em São Paulo. Estou no quarto mandato como
presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Porto de Moz. Sofri muita ameaça. Já
teve pistoleiro na minha casa. Ele só não me
matou porque queria receber o dinheiro primeiro
e o mandante queria pagar depois do serviço. O
pistoleiro dormia na minha casa, jogava bola
comigo. Aprendi a conviver com ameaças. Mas
tenho medo de morrer. Já tive de me esconder
em outras cidades. Há mais de dois anos não
saio à noite. As pessoas rondam e ligam para o
sindicato. Mas peço para nunca dizerem onde
estou e quando volto. Outro dia mataram um
trabalhador em Marabá. Ser sindicalista no Pará
é ter a morte como destino. Não tem lei nesta
terra. O Estado brasileiro está muito longe do
Pará.'
#Q:Entrevista com pistoleiro que já matou 16 pessoas:#
Matador assalariado
Pistoleiro conta como, para quem e por que matou 16 pessoas em Castelo de Sonhos e em Mato
Grosso. Hoje ele é caçado por matadores de fora da região para não abrir a boca
Os fazendeiros citados pelo matador de aluguel em entrevista gravada coincidem com os denunciados
no relatório 'Violação de Direitos Humanos no Pará' como mandantes de crimes. Seus nomes também
constam em inquérito policial como membros do consórcio que ordenou a execução de Bartolomeu
Dias Morais, o Brasília. Um deles, Fiorindo Minosso, disse a ÉPOCA que 'é tudo mentira, isso não tem
pé nem cabeça'. Confira:
ÉPOCA - Como começou a matar?
Pistoleiro - Levei um tiro no garimpo. Persegui o cara. Quando viu que eu ia atirar, ele botou o filho na
frente. Acertei na cabeça do menino. Ele correu. Continuei atrás e matei aquele pai covarde. Isso foi
em 1986. Virei matador de aluguel e fui trabalhar de guaxeba nas fazendas.
ÉPOCA - O que é guaxeba?
Pistoleiro - É a polícia dos fazendeiros.
ÉPOCA - Para quais fazendeiros trabalhou?
Pistoleiro - Trabalhei na fazenda Tigre ( hoje em processo de desocupação pelo Incra). E também
para o Maneca (preso como mandante da morte de Brasília) e para o Fiorindo Minosso. O resto foi
particular.
VÍTIMAS O pistoleiro
confessou ter matado os dois
trabalhadores abaixo
ÉPOCA - Como é particular?
Pistoleiro - 50 gramas de ouro por cabeça.
ÉPOCA - Os fazendeiros pagam por morte?
Pistoleiro - Por mês. Uma humilhação. Me pagavam R$ 800.
ÉPOCA - Como é que funciona?
Pistoleiro - O fazendeiro passa a ordem pro chefe dos guaxebas e ele passa pra gente. A gente fica de olho para não invadirem as
terras. Se aparecer na picada, é pra atirar e esconder o corpo. A gente pede aumento mas eles não dão. É só aquele valor no fim do
mês, tanto faz matar como não matar.
ÉPOCA - E o que você fez com os corpos?
Pistoleiro - Eu carregava pro mato e enterrava. Quando tinha rio grande jogava dentro. Em Matupá (MT) enterrei um atrás do cemitério.
Outros joguei debaixo da ponte do Rio Peixoto. Enterrei uns pra frente da sede do Panquinha, em Castelo, mas esses a Polícia Federal
já achou. Numa estradinha que vai pra fazenda de um rapaz por nome Toninho tem mais quatro corpos no mato de umas pessoas que
queriam a terra do Maneca. Os dois do Minosso foi o chefe dos guaxebas dele, Hamilton, que consumiu. Não sei onde tão.
ÉPOCA - E os da Tigre?
Pistoleiro - Eles tavam no movimento dos sem-terra. Foi o seu Antonio e um outro que tinha apelido Rabo de Couro. Gostava de usar
aqueles chapeuzinhos porque veio do Ceará. Mas esse foi por acaso. A espingarda tava destravada e quando eu pulei da caminhonete
disparou. Era só para tirar ele de lá, mas o chumbo pegou na garganta.
VÍTIMAS Os dois trabalhadores mortos pelo pistoleiro
ÉPOCA - Quantos trabalhadores você matou porque queriam fazer acerto?
Pistoleiro - Quatro.
ÉPOCA - O que sentia quando matava?
Pistoleiro - Naquele momento era brincadeira. Não tinha remorso de nada. Tem quem nunca fez mal pra nós, mas o sangue da gente
não combina. Esse tipo não precisa nem um preço muito alto pra fazer. Mas tem gente que o sangue combina, chega na hora de
disparar a arma e dá um remorso. Mas depois passa. É só pegar o dinheiro e ir pros bar tomar cerveja e pronto. Só a criança é que eu
lembro até hoje.
ÉPOCA - Você fazia alguma marca?
Pistoleiro - Só virava de peito pra cima e pulava duas vezes o corpo antes de ir embora. Superstição da gente pra não ser pego.
ÉPOCA - Já foi pego?
Pistoleiro - Graças a Deus só uma vez. Fui condenado a 16 anos, mas vendi tudo o que eu tinha, paguei R$ 72 mil pro advogado e pro
juiz e saí. Estou na condicional.
ÉPOCA - Os pistoleiros de Castelo estão sendo eliminados. O que você vai fazer?
Pistoleiro - Vou embora, mas não posso falar nem onde nem quando. Minha história por aqui acaba. Não sei se tem continuação

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