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Transcrição

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José Nivaldo Junior nasceu no Recife, em 1951.
Passou a infância e a adolescência em Surubim, cidade do Agreste pernambucano, onde
os seus pais, médicos e escritores, se fixaram
para sempre. Estudante de Direito nos Anos
de Chumbo, combateu a ditadura. Sequestrado pelo doi/codi, teve depois sua prisão
formalizada. Passou 21 meses e 19 dias no
cárcere. Tornou-se publicitário e fez mestrado em História. Especializou-se em Marketing
Político. Prestou e presta serviços a grandes
nomes da política brasileira. É um dos profissionais com mais rico e diversificado currículo na área. É autor do best-seller Maquiavel,
o Poder, com mais de 20 edições, no Brasil e
no exterior.
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ISBN 978-85-8165-127-9
9 788581 651279
José Nivaldo Junior
O Julgamento de Deus
Foto: Wilton Marcelino
D
eus no banco dos réus? Sim.
Foi o mais atrevido e criativo desafio ao nascente regime militar do Brasil, em 1964, idealizado
por um grupo de jovens contestadores.
Este livro narra o encadeamento de fatos enigmáticos e acontecimentos políticos que envolveram
o inédito julgamento e o seu magnífico desfecho.
Um evento que, a partir de uma cidade do interior,
repercutiu, dividiu e apaixonou o mundo.
Como diz o ex-presidente da Academia Brasileira
de Letras, Marcos Vinicios Vilaça: “O autor cultiva
um estilo que associa a retórica quotidiana a uma
eloquência que vai da censura ética à ironia aberta
e ao humor sem freios”.
Um romance inovador, que diverte, polemiza e
surpreende da primeira à última página.
1964
J o s é N i va l d o J u n i o r
O Julgamento de Deus
Romance
O rei está sempre nu, sabe disso
todo súdito que se preza.
José Nivaldo Junior, ciente do
fato, usa o humor para desmitificar
a ditadura instalada com o golpe militar de primeiro de abril de 1964.
Nunca foi servo do infausto episódio,
pelo contrário, sua trajetória de militante político o levou à prisão. Isso,
no entanto, é outra história. O que
nos interessa agora é sua postura de
permanente opositor da barbárie institucionalizada.
Apossando-se de uma arma antiga, mas ainda infalível, a prosa picaresca, o escritor mostra maturidade
ao manipular elementos conflitantes, como a História e a ficção. Muitos dos fatos narrados aconteceram
sim e surgem no livro para pontear
o absurdo da época, na combinação
criativa entre o real e o imaginado.
Nesses meandros vai inserindo outros debates de conceitos políticos
e até filosóficos, sempre adornados
com a ficção, o que torna o romance
uma espécie de ensaio risível sobre
a condição política do ser humano.
Tudo dito numa linguagem mais
para Sancho que para Quixote, outra
homenagem à nossa tradição picaresca, termina por nos oferecer pontos de reflexão sobre as escravidões
políticas e religiosas que nos martirizam. E, enfim, alertar para o fato de
que, mesmo nu, o rei tem poderes
sobre vidas e mortes. Então, antes
de querer vesti-lo, o mais prudente é
não deixá-lo nascer.
Maurício Melo Júnior
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1964
J o s é N i va l d o J u n i o r
O Julgamento de Deus
Romance
Recife, 2014
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Copyright© by José Nivaldo Junior
Revisão
Alan Leal
Capa
Moema Cavalcanti
Produção Gráfica
Bagaço Design Ltda.*
Lot Estrada de Tabatinga, 336 • Tabatinga
Igarassu/PE • CEP 53605-810
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N734m Nivaldo Junior, José, 19511964 : o julgamento de Deus / José Nivaldo
Junior. – Recife : Bagaço, 2014.
302p.
1. FICÇÃO BRASILEIRA – PERNAMBUCO.
2. BRASIL – HISTÓRIA – REVOLUÇÃO, 31 DE
MARÇO, 1964 – FICÇÃO. 3. BRASIL – HISTÓRIA
– REVOLUÇÃO, 31 DE MARÇO, 1964 – HUMOR,
SÁTIRA, ETC. I. Título.
PeR – BPE 14-96
CDU 869.0(81)-3
CDD B869.3
ISBN: 978-85-8165-127-9
Impresso no Brasil – 2014
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Oferecimento
À memória de Manoel Lisboa, Amaro Luiz de Carvalho
(Capivara), Amaro Félix, Manoel Aleixo (Ventania) e
Emmanuel Bezerra, heróis e mártires do povo brasileiro,
em nome de todos os que doaram ou colocaram em risco as
suas vidas para enfrentar à ditadura militar.
Para Leta, Andréa, Marcela, Luiz e Fidel, esposa e filhos
de Evandro Cavalcanti, em nome de todas as vítimas não
contabilizadas da violência exercida contra os que lutaram
e lutam por liberdade e justiça social - parentes e amigos que
ainda hoje choram e sofrem a perda de entes queridos, além
do alto preço que pagam anonimamente em suas vidas,
dia após dia.
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AGRADECImentoS
A Sérgio, Ricardo, Murilo, João Henrique, Danilo, Breno,
Marcelo e Marcos, que contribuíram com críticas e sugestões;
A Flávia, Jemesson, Risomar, Wellington, Givanildo e Rafael,
colaboradores e amigos, que compartilharam a tarefa de fazer;
A Magnólia Cavalcanti, a parceira de sempre no artesanato das
palavras;
A Izabel, que me motivou a trilhar o difícil, sofrido e gratificante
percurso para lhe contar esta história.
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Sumário
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1
Um mocorongo no poder
2
Revolução ou piada?
29
3
O samba do crioulo doido
51
4
Terremoto pra ninguém botar defeito
67
5
Hora de juntar os cacos
91
6
Um xerife aloprado
111
7
Como diria a madre superiora
127
8
O coronel e seus dois mamulengos
147
9
Um enterro do outro mundo
159
9
10 O perigo vem do alto
173
11 Fé demais, bem, você sabe
193
12 Os Tetéus retomam à vanguarda
211
13 Cada coisa em seu lugar
227
14 Como é gostosa a liberdade
247
15 Ataque contra defesa
261
16 O voto decisivo
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Capítulo 1
Um mocorongo no poder
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
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Os matutos costumam dizer na sua linguagem
peculiar: “Mês miou, mês cabou”. Ou seja, depois de metade, o mês já
está chegando ao fim. Acostumado a acordar de madrugada ao longo
de toda a vida, o marechal chegou cedo ao Palácio do Planalto, naquele dia da segunda metade de agosto de 1964, quando o mês já tinha
embicado para o final. Aguardava para uma audiência o ministro das
Relações Exteriores.
Depois de dar uma olhada nos jornais, ficou andando de um lado para
o outro, contemplando a Esplanada dos Ministérios e o Congresso
Nacional através das paredes de vidro do gabinete presidencial, seu
local de trabalho desde abril. Estava no governo havia pouco mais de
quatro meses, ainda procurando se acostumar melhor aos meandros
do ambiente político. De repente se deu conta de que era a primeira vez que um ministro civil solicitava uma audiência a ele. Antes, só
compareciam quando convocados. A solicitação inédita o intrigava. O
que o auxiliar estava trazendo? Só podia ser problema, e dos grandes.
Escolhido pelos seus pares para ocupar o cargo máximo do País, depois do golpe militar, em circunstâncias que ao longo da narrativa vão
ficar melhor esclarecidas, o marechal usurpou o título republicano e
democrático de presidente, e como tal exigia ser tratado.
Como os historiadores nunca se deram ao trabalho de botar os pingos
nos is, e os documentos oficiais nunca foram retificados, os ditadores do período militar, e até de ditaduras anteriores, continuam sendo
chamados de presidentes. De modo que o País viveu quase 40 anos
intercalados sob ditaduras diversas, sem que conste dos livros de História um único sujeito tachado de ditador.
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
O marechal só era chamado de ditador, tirano ou outro sinônimo
equivalente em panfletos clandestinos que a muito custo a oposição
conseguia fazer circular. Ou em raras ocasiões no exterior, por partidos de esquerda que funcionavam em países democráticos
A voz do chanceler, um tratamento que era atribuído ao responsável
pelas relações internacionais do País, denotava apreensão e ansiedade.
Presidente, desculpou-se por telefone, só estou lhe tirando dos seus muitos afazeres porque trata-se de um assunto urgente e delicado. E só tomo
essa liberdade porque já esgotei todas as instâncias sem encontrar uma
orientação adequada. O único encaminhamento que me resta é recorrer
à sapiência, ao tirocínio e à autoridade iluminada de Vossa Excelência.
O marechal gostou de ouvir o elogio. Concordou no íntimo. Ele, realmente, na condição de maior autoridade do País, não era para ser perturbado por qualquer dá cá aquela palha.
O que apreciava, na verdade, era conversar sobre motes e piadas de
caserna. Conhecia os últimos modelos de armamentos, as táticas e
estratégias mais modernas, era especialista em história militar. E se esbaldava de rir com as mais tolas anedotas sobre recrutas.
Outro tema que dominava bem era literatura regional. Cultivava a amizade de escritores, inclusive tidos como esquerdistas. Nesse assunto
não fazia discriminações ideológicas. Nas férias, frequentava a fazenda
de consagrada romancista social que na juventude fora até comunista.
Detestava conversar sobre banalidades em geral, particularmente fofocas sociais, futebol e principalmente política.
Depois que assumiu o cargo supremo do País, esse último tema passou a ser parte da sua rotina. Era um dos contrapesos da função. Militar é acostumado a dar ordens e ser obedecido. Política, mesmo numa
ditadura, implica em conversas e negociações. Coisa muito chata, para
ele. Sua úlcera queimava como brasa. E política internacional, então,
era purgante em dose dupla.
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Por isso, não fazia, até aquele momento, muita questão de acompanhar
as minúcias do governo. Tudo o que subalternos pudessem pôr em
prática sem contrariar o seu comando estava de bom tamanho. Desde
que não desagradasse ao Exército e à Embaixada dos Estados Unidos
da América do Norte. Pode até parecer brincadeira, mas a doutrina
adotada depois do golpe era clara: o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil.
Apesar do esforço para aparentar uma unidade monolítica, o Exército,
a Marinha e a Aeronáutica disputavam poder entre si. Dentro de cada
uma dessas forças, correntes antagônicas se digladiavam. O governo,
na parte que coube aos militares, era uma sucessão de feudos, ocupados pelas diversas linhas conflitantes. A fim de acomodar esse saco de
gatos, cada qual mandava no seu pedaço.
Entretanto, quando surgiam problemas, complicações ou aborrecimentos que não conseguiam resolver sozinhos, todos corriam para
o marechal. Ele era o ponto de equilíbrio, o algodão entre os cristais.
Assim, era forçado a lidar com um aborrecimento atrás do outro. Raro
o dia que não lhe caía no colo algo desagradável para decidir. Governar
é resolver pepinos, filosofou certo dia para um alto executivo da ONU.
Por isso, já andava pela tampa do tabaqueiro, como se dizia no interior
do Ceará, com tantas chateações medíocres.
Enquanto esperava, olhando para o relógio a todo instante, foi várias
vezes ao banheiro arrumar o fraque diante do espelho. Durante toda
a sua extensa carreira, desde os tempos da Escola Militar, o marechal
sempre fora o que na gíria dos quartéis se chama de mocorongo. Um
caipira de almanaque, um sujeito desmantelado como uma capivara.
Do uniforme de campanha à farda de gala, nenhum traje lhe caía bem.
Destacou-se entre os seus pares pela aplicação, cultura e até mesmo inteligência, nunca pela elegância. Agora, escolhido ditador, ou melhor,
presidente da República, conforme a terminologia oficial, foi obrigado
a trocar a farda por roupas civis. A situação ficou ainda pior.
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
Era baixinho, cabeça grande e chata. Diziam que ficara assim porque
na infância distante no Ceará os adultos batiam sempre com a palma
da mão no seu quengo e falavam: Esse menino vai dar pra gente. Ninguém ostenta uma catedral desse tamanho para nada.
Foi assim, segundo as más línguas, que aplainou o alto da cabeça e
afundou o pescoço. O que restou dessa parte do corpo que a girafa
tem de sobra era tão pequenininho que a cabeçorra parecia pregada
diretamente sobre os ombros. Até para olhar para os lados era difícil,
tinha quase que virar o tronco inteiro, como se fosse o robô do popular seriado da televisão Perdidos no Espaço.
Mas esse detalhe não atrapalhou sua trajetória. Vida afora, acabou
cumprindo as profecias da infância. Galgou por mérito os mais altos
postos do Exército, casou com mulher honrada, inteligente e bonita, e
agora, viúvo, estava empoleirado no cargo mais importante da Nação.
O sucesso não impedia que vivesse mal acomodado dentro do fraque
cortado justo, na tentativa dos alfaiates para deixá-lo um pouco mais
esbelto e menos desgracioso.
Para piorar as coisas, certo publicitário gaúcho teve uma infeliz ideia
que a muitos áulicos pareceu genial. Sugeriu e foi acatado que o ditador portasse, o tempo inteiro, a faixa presidencial verde e amarela
atravessada sobre o peito. Isso para se diferenciar do antecessor, pouco
dado a essas formalidades bobas. E, de quebra, passar a ideia de ser
presidente em tempo integral.
A imagem desse mocorongo que parecia mal-assombrado foi quase
imediatamente espalhada através de uma foto oficial obrigatória nas
repartições públicas, escolas, prefeituras, sindicatos e, também, adotada por bajuladores ou partidários do regime em instituições, igrejas e
até residências.
Seu desalinhamento facilitava a vida dos chargistas e humoristas, embora estes tivessem pouco espaço para divulgar suas caricaturas. Estas
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circulavam como folhetos clandestinos, passando de mão em mão e
provocando gostosas risadas entre os frequentadores da boemia.
O desmantelo facilitava também a vida dos imitadores de todos os
quilates. Em toda conversa nos bares ou pontas de rua, onde não estivesse presente uma autoridade, um policial ou conhecido dedo-duro,
havia sempre alguém para arremedar o ditador.
Até pelo interior do País esse assunto era tratado. Dizia-se pelas bodegas: Esse aí foi escolhido a dedo. Quem fez ele felizmente quebrou a
fôrma. O homem é mais feio do que talho de foice, mais mal-amanhado
do que o boi de nanico.
Também nos ambientes mais seletos das sociedades carioca e paulistana, a estética presidencial era assunto obrigatório. As senhoras que
se reuniam todo dia para rezar um rosário pelo sucesso do que chamavam Revolução Católica, Apostólica, Romana e Redentora não conseguiam fugir ao assunto. Entre elegantes chávenas de chá importado
acompanhado pelo mais legítimo bolo inglês, perguntavam maliciosamente qual a misteriosa solução para o presidente conseguir colocar
a gravata.
Era tudo falsidade dessas matronas carolas, que posavam de bastiães
da moral e dos bons costumes. Todas sabiam a resposta, que ouviam
nas cozinhas, nas garagens, nas conversas de pé de ouvido.
A população em geral também conhecia a fórmula. Bastava circular
por oficinas, puteiros, bares, praças, ruas. Ou até ficar no sereno das
missas e casamentos, nas portas das igrejas. O método utilizado, muito
simples, por sinal, era geralmente descrito com detalhes e coreografia
da forma mais direta e escrachada possível.
Dava-se como certo, e assim se representava a cena, que o marechal só
conseguia completar o traje passeio oficial quando o ajudante de ordens aplicava-lhe uma popular dedada no centro das nádegas. E mesmo assim com bem muita força, sob pena de não fazer efeito.
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
Todo mundo sabe que o dedo maior de todos, aplicado com vigor no
eixo central da bunda, provoca em qualquer homem uma reação fisiológica natural: um gemido gutural e uma esticada do pescoço.
Nesse momento crucial, o ditador conseguia espichar um tantinho
de nada a minúscula embalagem da garganta. Aproveitando o movimento instintivo, o ajudante de ordens, agindo com destreza e rapidez,
conseguia encaixar a gravata. Em caso de fracasso, o procedimento
constrangedor tinha que ser repetido.
Essas e dezenas de outras piadas tendo o ditador como motivação se
multiplicavam País afora. Afinal, rir dos opressores é remédio com sabor de refrigerante.
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Um quengo privilegiado
Por conta das características e contradições de uma ditadura que ainda engatinhava, a agenda do déspota, que fazia força para parecer esclarecido, era um verdadeiro faz de conta. Tinha sempre um toque de
imprevisibilidade, desde que os ministros militares metiam a mão na
porta e entravam a qualquer hora, sem se fazerem anunciar. Mesmo assim, a relação de compromissos era folgada feito colarinho de palhaço.
Para preencher os espaços vagos, o ministro chefe da Casa Militar, que
ironicamente era o responsável pela comunicação do governo, assessorado por publicitários e jornalistas metidos a especialistas em gestão
de imagem, sempre tinha o cuidado de programar algum compromisso que rendesse notícia.
Inutilidades simpáticas como visitar uma escola infantil ou um hospital eram constantemente relacionadas para humanizar a sua imagem.
Receber alguma autoridade estrangeira dava ao ditador ares de importância e reconhecimento internacional. Reunir-se com lideranças religiosas, sindicais ou empresariais, passava a impressão de um homem
aberto ao diálogo. Tudo isso não ocupava mais do que uma hora do
seu dia. Entretanto, gerava fotos para as primeiras páginas dos jornais
e recheava os noticiários de rádio e da televisão. Além de preencher
espaço nas naturais, como eram chamados os noticiários que antecediam os filmes nos cinemas, exibidas entre um trailer e outro.
Nesse caso específico, com o tempo, a duração das aparições foi sendo gradativamente reduzida. É que toda vez que o ditador surgia,
aproveitando o escurinho do cinema, a moçada o saudava com uma
sonora vaia.
Mais ou menos pelo mesmo motivo, as atividades externas do ditador
eram monitoradas com muito cuidado. Vistoriar obras ou frequentar
locais com aglomeração popular, por exemplo, eram programas fora
de cogitação.
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
A primeira e única iniciativa do gênero, logo nas primeiras semanas,
resultou em verdadeiro desastre midiático e político. Primeiro, não foi
encontrado em nenhuma loja do ramo um capacete capaz de se acomodar na imensa cabeça do ditador. Foi preciso fabricar um apetrecho
com diâmetro especial. Mesmo assim, ou por isso mesmo, o resultado
não podia ter sido pior.
Os operários foram perfilados à distância regulamentar e alguns estavam, sob coação, segurando faixas laudatórias. Entretanto não escapou aos ouvidos atentos dos jornalistas presentes, inclusive e principalmente dos estrangeiros, o desmoralizante coro de vaias com que o
visitante foi saudado. No dia seguinte, o registro negativo estava feito
na imprensa do mundo inteiro.
Mas a pior repercussão aconteceu mesmo em solo pátrio. A equipe
palaciana vivia pisando em ovos, todos com medo de se tornarem suspeitos de sabotagem ou agentes da guerra psicológica adversa, que era
como se tratavam os comentários desfavoráveis ao regime.
No ambiente palaciano, quando se referiam ao general, era inimaginável qualquer restrição ou comentário que parecesse crítica. Assim,
ninguém teve coragem de tomar a iniciativa e expressar o pensamento comum sobre o ridículo da foto oficial do evento. Repetiu-se no
Planalto Central aquela fábula do rei que está nu. Como não houve
manifestação de discordância, a assessoria liberou a imagem para a
mídia impressa.
No outro dia, logo cedo, quando a foto apareceu estampada em todas
as primeiras páginas dos jornais, aconteceu um verdadeiro bafafá.
Na fotografia, o marechal, com seu capacete de inimaginável dimensão, ficou parecendo um extraterrestre de história em quadrinhos. As
pessoas passavam pelas bancas e, mesmo quando não compravam um
exemplar, faziam questão de apreciar a munganga para cair na inevitável gargalhada.
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O mais atrevido foi certo jornaleco meio comunista do Rio de Janeiro, que até então sobrevivia às perseguições da ditadura a duríssimas
penas. Sentindo que não aguentaria por muito tempo a pressão do governo, as sucessivas prisões de seus colaboradores e a fuga em massa
dos anunciantes, o editor-proprietário optou por aproveitar a oportunidade para sair de cena em grande estilo. Fez uns ajustes na foto e
enquadrou o marechal em frente a uma britadeira, de um ângulo em
que a máquina ficou parecendo uma nave espacial.
Ocupou com o retrato toda a parte de cima da primeira página. Logo
abaixo da foto, estampou uma manchete espalhafatosa anunciando
que os marcianos tinham tomado o governo no Brasil. Só lá embaixo, em tipos quase ilegíveis, se explicava que a manchete não era nada
mais nada menos que uma chamada para um artigo de ficção científica, a ser publicado na edição seguinte. Que, aliás, nunca veio à luz.
Antes que a Polícia Militar invadisse a redação e empastelasse a publicação a marretadas, o jornaleco rodou 4 edições sucessivas. Utilizou
até papel emprestado por concorrentes que, meses antes, pregavam o
golpe, mas que também não estavam satisfeitos com o andar da carruagem. Vendeu feito água no deserto. Os exemplares eram disputados a tapa na Cinelândia, no Largo da Carioca, na Avenida Rio Branco
e outros pontos de grande concentração popular.
Graças à ponte aérea, em pouco tempo a publicação chegou a São
Paulo.
No Rio, as Polícias Civil e Militar foram mobilizadas. Revistavam e
arrancavam os impressos das mãos dos leitores. Filas, elevadores, restaurantes, repartições públicas, lotações, escritórios, trens de subúrbio, tudo virou um verdadeiro pandemônio, um generalizado campo
de batalha. Quem conseguiu salvar o seu exemplar fez sucesso à noite
nos bairros. Vários desses leitores, denunciados por vizinhos alcaguetes, que naqueles dias sombrios se multiplicavam feito erva daninha,
foram parar em delegacias e quartéis.
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
Cabeças rolaram. A equipe de marketing, do publicitário ao fotógrafo,
foi toda substituída. Mas o estrago estava feito.
A partir dali, o próprio marechal estabeleceu que em matéria de obra,
só iria a inaugurações quando não se exigisse capacete em ninguém.
E como nada havia para inaugurar, ele aproveitou o episódio para se
livrar de levar sol quente no quengo e aplaudir discursos sem graça
nenhuma.
Nada disso, porém, estava em pauta ou sequer era lembrado naquela manhã. O que interessava eram as novas do ministro, que cumpriu
britanicamente o horário, fez-se anunciar, cumprimentou o chefe, esperou a ordem para sentar.
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Bate-bate coração
O marechal ajeitou-se com dificuldade na cadeira larga e alta que fora
feita para acomodar as longas pernas de Juscelino Kubitscheck, seu
primeiro ocupante. Sem se preocupar em esconder o desconforto, autorizou o ministro a expor o que o levara a solicitar às pressas aquela
audiência imprevista.
O chanceler estava ainda pior acomodado. Balançava para um lado e
para o outro, parecia pêndulo de relógio de parede. Procurava ajeitar
as nádegas na poltrona o tempo todo. Se estivesse sentado em cima
de um formigueiro, não transpareceria maior desconforto. Sabia que
dificilmente o que tinha a dizer agradaria. Era perspicaz o suficiente
para perceber, também, que o seu papo, recheado de mesuras e formalismos vazios, dava nos nervos do ditador.
Achou que precisava ganhar algum tempo, preparar o espírito do comandante supremo. Por isso, iniciou uma conversa do tipo que o povo
chama de cerca-lourenço, evitando ir direto ao assunto.
O marechal já sabia que o problema não era simples. Por isso, após
ouvir alguns longos minutos de lero-lero, girando em torno da delicadeza do tema a ser tratado, cortou a palavra do auxiliar e, bruscamente,
ordenou que fosse direto ao assunto.
Mais suado do que sugeria o clima do Cerrado naquela época do
ano, o ministro nem assim conseguiu ser esclarecedor. Estava travado, sua aclamada loquacidade de repente fora para o espaço. Ao
invés de cumprir a ordem, continuou costeando o alambrado, como
se diz no Sul.
Foi naquela altura que o marechal perdeu a calma pela primeira vez.
Levantou a voz e determinou: Ministro, por caridade, poupe os meus
neurônios. Se eu não sei do que se trata, como posso lhe dar comandos,
orientações ou sequer rezar um padre-nosso pela solução do problema?
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
Apesar de culto, o marechal tinha um senso de humor rasteiro. Além disso,
não estava acostumado e não gostava de ser desobedecido. Então apelou
para a ignorância. Ameaçou o ministro com a linguagem dos porões, onde
os prisioneiros políticos eram interrogados: Talvez uns bons choques elétricos nos culhões lhe façam desembuchar. Não teste a minha paciência.
A pressão excessiva fez efeito contrário, como aliás acontecia muitas
vezes nos calabouços onde se praticavam as torturas contra inimigos do regime. O ministro perdeu a cor, a fala e a capacidade de se
expressar.
O absurdo da situação era tão evidente que o marechal caiu em si. Estava no caminho errado. Era preciso relaxar o interlocutor. Apertou
uma campainha e pediu à solícita secretária, que surgiu aparentemente
do nada, dois copos com água gelada e dois cafezinhos bem passados.
Logo entrou Cícero, o copeiro oficial, trazendo a encomenda no
grau. Xícaras fumegantes, copos suando da água gelada. O marechal
aproveitou para desanuviar o ambiente e perguntou a Cícero pelas
novidades.
Era como um código. O copeiro sempre trazia para o presidente conversas de cocheira, relatórios da Rádio Corredor e até piadas sobre o
próprio marechal que ninguém tinha o topete de contar. Em troca,
servia de confidente para reflexões ditatoriais que nenhum outro ouvido tinha o privilégio de escutar.
Naquele momento tenso, o copeiro foi peça fundamental para resolver o impasse. Percebendo que o ambiente estava soturno, fez o seu
jogo. Disse ao ditador que conhecia uma piada nova sobre o regime,
mas era muito pesada e ele não tinha coragem de contar na presença
de um estranho.
Conte, ordenou o marechal. É até bom, porque esse ai deve pensar que
eu sou um monstro e vai ver que eu sou, além de democrata, muito bem
humorado.
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Cícero então arriscou. E narrou a piada do ônibus lotado que foi parar
numa delegacia devido a uma confusão generalizada.
A causa do fuzuê foi o espancamento sofrido por um oficial do Exército,
que estava fardado. O militar, muito irritado, disse ao delegado que foi
agredido pelos passageiros e exigia uma punição exemplar para todos.
A autoridade policial começou, então, a ouvir os acusados. A primeira
foi uma moça bonita e exaltada, que sem medo apontou para o militar.
Relatou que estava no ônibus sentada no seu canto quando inesperadamente o milico passou a mão nos seus seios sem o menor respeito.
Meti minha sombrinha nele com toda a força, confessou.
O próximo depoente falou que era noivo da moça. Confirmou a história, admitiu que também tinha dado uns sarrabulhos no atrevido.
Para azar do oficial, a família inteira da noiva estava no coletivo. Pai,
mãe, irmãos, primos, todos admitiam o espancamento em função do
desrespeito à donzela.
Lá por último vem um amarelinho, e o delegado, já de saco cheio, perguntou: E o senhor, é o quê da moça? O sujeitinho fez cara de espanto:
Eu não sou nada, seu delegado. Nem conhecia ela.
Surpreso, o delegado perguntou se ele também tinha agredido o oficial. Mais surpreso ainda ficou quando o sujeitinho confirmou. Estava
no ônibus, viu todo mundo metendo o pau no militar, pensou que a
revolução tinha acabado, desceu o cacete também.
O marechal gargalhou, o chanceler deu um risinho amarelo, o clima
desanuviou. Cícero foi convidado a se retirar, a palavra voltou ao ministro, que, bem mais tranquilo, conseguiu engrenar a conversa.
Presidente, eu preciso de comandos urgentes. Já consultei o coronel chefe do Serviço Secreto, não obtive resposta. O embaixador do país de
Lincoln não quer entrar no assunto. A Santa Sé pede informações, os
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
principais jornais querem entrevistas, as nossas embaixadas não sabem
o que dizer. Administrei até aqui, agora fugiu da minha alçada.
A fala do ministro, soltando torpedos em doses homeopáticas, era fruto da remota esperança de o marechal já estar informado de alguma
coisa que facilitasse a sua missão. Mas tudo foi inútil.
Pela expressão do chefe, o ministro percebeu que ele estava completamente por fora do assunto. É o que dá intimidar a imprensa e encher
de medo os auxiliares. Acaba-se sem saber de coisas importantes que
deveriam ser bem conhecidas, pensou com os botões da sua casaca.
O pior é que o destino o escolhera para ser o portador da má notícia.
Tentando num esforço supremo enrolar um pouco mais para preparar
melhor o espírito do chefe, assumiu o risco e tergiversou: O senhor
conhece a cidade pernambucana de Boi Pintado, antigamente denominada Boa Vista, presidente?
O marechal conhecia. Fora lá uma vez, na época de comandante do IV
Exército, cuja sede é no Recife. Fica a cerca de 130 km da capital pernambucana, na região Agreste do estado. É aclamada, até hoje, como
Capital Mundial da Vaquejada.
Foi exatamente para assistir a um desses eventos que se deslocou até
a cidade. Reclamou da estrada ruim, achou tudo feio, detestou a festa.
Vaqueiros derrubando bois pelo rabo, levantando poeira, o povo vibrando em palanques que pareciam poleiros. Um esporte no qual não
achava graça nenhuma, apesar de ser muito apreciado por seus conterrâneos nordestinos. Estar em Pernambuco e não conhecer a tradicional vaquejada de Boi Pintado, que acontece todo mês de setembro, é
como ir a Roma e não ver o papa.
Porém, nos últimos meses, a má impressão da visita desaparecera. E o
marechal fez questão de registrar: Não apenas conheço, como de lá só
tenho recebido boas notícias.
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Agora a surpresa foi do chanceler. Ocupado com as relações internacionais, não tinha tempo para se atualizar no noticiário interno. Portanto, não sabia de nada de bom acontecido em Boi Pintado, só estava
informado da parte complicada.
O marechal encarou o chanceler, a expressão mais animada trazia ao
mesmo tempo uma ordem inadiável. Agora que precisava ainda de algum tempo, o ministro não dispunha de mais nenhum.
Conformado, engatilhou frase: Não sei se o senhor está a par,
presidente...
O mandatário, não estava a par de nada ruim vindo de Boi Pintado. E
não gostou de saber que estava desinformado. Pior ainda, achou muito
constrangedor ter que passar recibo da sua ignorância para um auxiliar
com o qual não tinha qualquer intimidade. O seu desconhecimento era
prova de que ou o Serviço Secreto - o já temido SS - não funcionava ou
omitia notícias ao chefe supremo.
O ministro percebeu a situação, atrapalhou-se num gaguejado interminável. Foi preciso que o presidente perdesse a linha pela segunda
vez, desse uma tapa na mesa, para o homem cair em si, novamente se
recompor e desembuchar de uma vez por todas: Não sei se o senhor
sabe, presidente, falou rápido e nervoso, mas Deus vai ser julgado em
Boi Pintado, e o assunto já ganhou o noticiário internacional.
A mudança na expressão do mais alto mandatário do País foi tão grande
que o ministro teve a impressão de que o marechal tinha ficado verde,
amarelo, azul e branco ao mesmo tempo. Se enfiassem um cabo de vassoura no seu ouvido, naquela hora, podiam balançar que seria confundido com uma bandeira nacional. Além disso, da boca que emitia uma
baba parecida com espuma, saiu um urro quase animal: Deus o quê?
Nesse momento, o ministro tinha atingido quase os limites da covardia. Segurou-se a custo para não urinar ali mesmo. Para sua sorte,
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[ 1 ] Um mocorongo no poder
lembrou de uma expressão calhorda que muito ouvira na época de estudante, mas que excluíra completamente do seu vocabulário elegante.
Naquele instante de agonia, ele, que nunca utilizara expressão grosseira, se agarrou silenciosamente com a frase como uma tábua de salvação: Já que passou a cabecinha, o resto vai de qualquer jeito.
Recomposto, passou a se expressar com inesperado vigor e até uma
pontinha de atrevimento: É isso mesmo que o senhor ouviu, presidente.
O julgamento de Deus está marcado para se realizar em Boi Pintado,
agora, no próximo dia 7 de setembro. O núncio apostólico, representante
direto do Papa e do Espírito Santo, quer uma audiência urgente com o
senhor. E a imprensa internacional, abusada como sempre, está exigindo uma entrevista coletiva para saber a posição oficial do País sobre esse
inusitado acontecimento.
O alívio opera milagres. A cada palavra que proferia, o ministro ia recuperando a sua habitual impertinência, nunca exercitada diante dos
poderosos do regime. Percebeu que a fraqueza mudara de lado. Agora
quem tremia nas bases era o ditador. Mudava de cor como uma árvore
de Natal, parecia que ia ter uma convulsão a qualquer momento.
O chanceler sentiu-se inesperadamente tomado de tranquilidade e satisfação. Passou a saborear cada palavra como uma espécie de vingança
pela intimidação que o superior lhe infundia. Mandou falar, ia ouvir.
E prosseguiu: Além disso, presidente, existem diversos outros problemas
acontecendo por lá. Temas polêmicos e complexos, que despertam o interesse não apenas da Santa Sé, como também dos serviços de inteligência estrangeiros e da comunidade científica internacional. Questões que
desafiam a nossa gloriosa e vitoriosa Revolução Redentora, que o senhor
tem conduzido com tirocínio perfeito e generosa mão de ferro. Finalizando, repetiu, dessa vez gratuitamente, por pura maldade: Deus vai ser
levado ao banco dos réus em Boi Pintado, Excelência.
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Foi a vez do marechal quase engolir a língua. Articulou as palavras
com dificuldade, fazendo pausas entre cada uma delas, procurando ar.
Quer dizer que, no meu governo... católico, apostólico, romano, ocidental e cristão... defensor da fé, da tradição, da família e da propriedade
privada... resultado da Revolução Redentora de 31 de Março contra o
comunismo ateu...
Quando se referiu ao comunismo ateu, foi dominado pela emoção.
Perdeu o fôlego, parecia asfixiado, o multicolorido do rosto foi substituído pelo roxo monocromático. O chanceler, apavorado, gritou por
socorro.
O coronel médico de plantão, que sempre estava no gabinete contíguo, entrou às carreiras e, quando viu o quadro, diagnosticou um possível enfarto em andamento. Desconsiderou a hierarquia e, de acordo
com o manual de medicina de combate, desferiu um murro violento
no peito do marechal, para garantir o coração em funcionamento.
A autoridade desabou de costas, meio desacordada. Para sua sorte e
felicidade geral do mundo ocidental e cristão, estava diante do sofá,
caiu no fofo e não se feriu.
Na verdade quem saiu machucada foi a mão do médico, que naquela
agonia não percebeu e esmurrou diretamente a estrela de metal que
sobressaía no meio da faixa estendida sobre o peito ditatorial.
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Capítulo 2
Revolução ou piada?
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[ 2 ] Revolução ou piada?
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Pergunte a qualquer aluno do primeiro grau
em que data ocorreu o golpe militar de 1964, que ele responderá com
toda a segurança: No dia 31 de março.
Trata-se de uma impostura que vem sendo alimentada ao longo de décadas. O golpe ocorreu no dia 1º de abril. A data não poderia ser mais
adequada, pois trata-se do Dia Internacional da Mentira. E falsidades
oficiais foi o que nunca faltou sobre os acontecimentos daquele dia e
seus desdobramentos pelos próximos 21 anos.
Os responsáveis pela antecipação foram os próprios artífices do movimento. Naquela época, a comemoração era muito maior do que hoje.
No mundo inteiro, quase todas as pessoas se empenhavam em fazer
amigos ou desconhecidos caírem em alguma esparrela. E também tinham que prestar atenção para não serem apanhados em armadilhas,
pois as lorotas eram muitas e criativas.
Até órgãos sérios da imprensa internacional entravam na brincadeira,
noticiando os acontecimentos mais improváveis com ares da maior
seriedade. Muitos acreditavam e repetiam a ficção. Algumas tomavam
proporções globais.
Em Boi Pintado, antiga Boa Vista, era comum se espalharem naquele
dia as mais variadas potocas. Desde a morte súbita de alguém de quem
não se gostava até que a padaria de um adversário político estava distribuindo pão de graça.
Poucos anos atrás, tinham engabelado muita gente no mesmo pacote.
Seu Mulambinho era conhecido como o maior velhaco das redondezas. Vivia encalacrado com Deus e o mundo. Cinicamente, adotava o
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[ 2 ] Revolução ou piada?
lema “devo, não nego, pago quando puder”. Andava todo engomado
e com banha nos cabelos pelas ruas da cidade de cabeça erguida, nariz empinado, farejando a próxima vítima. Quem não te conhece que te
compre, falava o povo. Agia como se fosse a criatura mais correta do
Universo.
Um dos muitos enganados por ele espalhou a falsa notícia de que seu
Mulambinho tinha acertado na milhar do jogo do bicho. Recebera um
dinheirão e estava se preparando para arribar.
Foi um desadouro. Os credores em peso correram para receber o seu
pedaço. Comerciantes, prestadores de pequenos serviços, profissionais liberais, agiotas, amigos ludibriados de boa-fé, dirigiram-se em
bandos à sua casa para não perderem a chance. Até diversas raparigas
da Avenida, como se chamava a zona de baixo meretrício de Boi Pintado, acorreram ao evento. Não eram poucas que tinham levado o popular xexo de seu Mulambinho. Ou seja, prestaram seus peculiares serviços sem receber a remuneração acordada. Agora, engrossavam com
toda razão a malta irada que encurralou o homem na sua própria casa.
A enfurecida multidão destruiu todo o precário patrimônio do devedor. Não sobrou um pote para contar a história. Nem mesmo os avisos colocados às pressas no alto-falante da igreja matriz, alertando a
população de que se tratava de uma brincadeira de primeiro de abril,
fizeram efeito sobre a fúria do populacho. Seu Mulambinho só não
embarcou dessa para pior graças primeiramente a Deus e depois à
intervenção providencial da polícia, que dispersou a turba com tiros
para o alto, conforme a insuspeita narrativa de dona Mimosa, esposa
do caloteiro.
Por isso, não se pode dizer que, nesse caso, os ideólogos do golpe
estivessem desprovidos de razão. Caso admitissem o dia correto do
golpe, estariam dando cabimento a uma piada pronta que o mundo inteiro cuidaria de ironizar. Fecharam questão no 31 de março, quando
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comprovadamente ocorreram muitas reuniões conspiratórias, mas
não aconteceu nenhuma ação golpista.
Uma das maiores provocações que se podiam fazer na época aos militares era dizer que a Revolução Redentora deles foi uma piada de primeiro de abril. Muita gente levou trompaços e até acabou no xilindró
por falar tão cândida verdade.
Depois da redemocratização, a data equivocada continuou sendo
repetida. Talvez porque a polêmica naquele momento não valesse
a pena. Podia soar como revanchismo ou até provocação; na época
realmente existiam coisas mais importantes para tratar. Por outra, talvez realmente porque não fizesse mais nenhuma diferença o golpe ter
ocorrido no dia tal ou qual. Interessava ao País era estar livre dele.
Pelo sim, pelo não, até hoje prevalece a data errada. É no dia 31 de março que velhos milicos saudosistas se reúnem em clubes decadentes
para festejar a merda que fizeram com o País. Autoridades militares,
fazendo ouvidos de mercador à orientação dos governos civis, emitem
Ordens do Dia louvando o golpe que persistem chamando de revolução. E ainda por cima, a data é comemorada em quartéis País afora.
As crianças continuam aprendendo nas escolas o dia errado por conta do desconhecimento de muitos professores e principalmente em
decorrência do pouco caso e da falta de pulso das autoridades da área
educacional.
A data exata é incontestável. Cada dia tem 24 horas, como todo mundo sabe, e acaba à meia-noite. A partir daí, já é madrugada de um outro
dia. E até meia-noite do dia 31 de março de 1964 não havia nenhum
sinal de estripulia pelas ruas do País. Nas altas horas da madrugada
de primeiro de abril, na calada da noite, como se diz, é que algumas
tropas acenderam o estopim, saindo dos quartéis, em Minas Gerais, se
deslocando em comboio na direção do Rio de Janeiro.
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[ 2 ] Revolução ou piada?
É bom assinalar que, embora o golpe viesse sendo preparado pelo menos desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, tudo acabou acontecendo de modo bastante improvisado.
Havia muitas divergências no interior das próprias forças armadas e
principalmente na relação dessas com os norte-americanos sobre a
ocasião, a forma e a intensidade do golpe. Prevaleceram as desavenças,
o consenso não foi alcançado. Quando chegou a informação de que
uma frota ianque estava a caminho para tomar a frente da derrubada
do governo, a situação fugiu do controle.
Considerando inaceitável a presença descarada dos Estados Unidos
no comando e para não ficar a reboque dos estrangeiros, um grupo
golpista, nacionalista e anticomunista resolveu agir por conta própria.
Naquela madrugada de 1º de abril, um certo general Olímpio Mourão,
sediado em Minas Gerais, pôs as tropas que comandava em movimento, por sua conta e risco. Forçou a barra, iniciou o levante e deu o golpe
como fato consumado.
O resultado de uma manobra dessas não acontece como num passe
de mágica. Tanto que ao meio-dia o presidente João Goulart, que todo
mundo chamava de Jango, estava chegando em Brasília vindo do Rio
de Janeiro e continuava no poder. O mesmo acontecia com Miguel
Arraes em Pernambuco, Seixas Dória em Sergipe e diversos outros
governadores e prefeitos que depois seriam depostos pelos golpistas.
Até o começo da tarde do dia primeiro, em Minas, no Rio de Janeiro,
no Recife, em São Paulo, em Brasília, além de outras capitais, apenas
nos círculos mais enfronhados da política, sabia-se que um possível
golpe estava em curso. As pessoas bem informadas sentiam que algo
estranho estava se passando, embora ninguém fosse capaz de relatar
exatamente o quê.
Em Boi Pintado, por exemplo, localidade onde as pessoas eram informadas e ouviam todas as edições do repórter Esso, inclusive porque
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o noticiário era reproduzido pela Rádio Surubim, um serviço de
alto-falantes instalado nos postes da cidade, ninguém sabia absolutamente de nada. Era um dia de quarta-feira como outro qualquer.
Naquele começo de tarde, quente como uma lambida do diabo, porque o inverno teimava em não chegar, um grupo de rapazes cochilava
em plena via pública. Como de hábito, descansavam do almoço na
calçada da matriz, quase em frente à casa paroquial. Aproveitavam a
agradável sombra proporcionada pela alta torre da igreja nova. O movimento da rua era quase nenhum, já que a maioria da população também tirava um cochilo depois do almoço. Nada os incomodava.
Tratava-se de um grupo heterogêneo, conhecido pelo apelido de Pensadores Tetéus, como eles mesmos se chamavam. O povo dizia simplesmente que eram os Tetéus, nome de uma ave noturna da região,
aparentada com o quero-quero. Costumavam discutir madrugada
adentro os assuntos mais variados. Do sexo dos anjos à Guerra Fria,
das questões fundamentais da filosofia a um pênalti não marcado no
Clássico das Multidões. Por isso, durante a tarde, estavam sempre sonolentos, aproveitavam a modorra do horário para tirar um ronco.
De repente, chega todo esbaforido, suado feito tirador de espírito e
com a cara espantada de quem acabara de ver assombração, nada mais
nada menos que Továrish Lói.
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[ 2 ] Revolução ou piada?
Negro vai virar macaco, branco vai virar banana
Továrish, como se sabe, é a palavra russa para designar camarada, o
tratamento oficial que os comunistas de qualquer escalão adotavam
entre si para transmitir a ideia de que todos eram iguais.
Não que Lói fosse comunista, ninguém acreditaria em tal acusação.
Para falar a verdade, o elemento não tinha ideologia de nenhuma natureza. Não puxara ao pai, vermelho de carteirinha, comunista declarado e afamado.
Tanto que para demonstrar sua afeição à União Soviética, o velho
registrou a penca de filhos com nomes de personagens gloriosos da
história do socialismo, todos com o seu sobrenome, Almeida e Silva.
O mais velho, por exemplo, era Karl Marx, conhecido como Marquinhos. O segundo, Frederico Engels, era Fredinho para todo mundo.
O terceiro, Luiz Carlos Prestes, era Lulinha. As duas mulheres eram
Rosinha, de Rosa Luxemburgo, e Guinha, como chamavam Olga Benário de Almeida e Silva.
O caçula carregava o nome de Vladimir Uilianov Lenine. Chamado
pelo pai desde o berço de Továrish, ganhou na escola a alcunha de Lói,
o apelido pegou composto.
Továrish tinha pressa, muita pressa. Contudo sabia muito bem que
não adiantava tentar acordar a cambada de um por um, com sacudidelas ou modos educados. Como a turma era bruta e brincava pesado, ele utilizou a objetiva solução de aplicar um chute com o bico do
sapato no vão das costelas de um dos líderes do grupo, o indigitado
Cumpade Deca.
Registre-se que daqui por diante, sempre que for mencionado, Deca
vai ser tratado por Cumpade, que era como todo mundo o chamava.
Escrever compadre, conforme os padrões da última flor do Lácio, inculta e bela, seria uma adulteração imperdoável. Então, como prega
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o filósofo Zadock dos Muros Altos, inspirado na poética de Manuel
Bandeira, a bem da comunicação fuzilemos a gramática.
Despertado dessa forma eficaz, Cumpade berrou um palavrão que
acordou não apenas toda a canalha do grupo como qualquer um que
porventura estivesse dormindo nas casas das imediações. Até dona
Severina do Padre, que tomava conta da residência do monsenhor
Afonso, deu um pulo da cama, espantada como se estivesse sendo tentada pelo demônio em pessoa.
Tão logo os parceiros abriram os olhos, espantados, Lói foi anunciando, com as palavras entrecortadas pela respiração ofegante, que tinha
sete notícias estranhas, e cada uma pior do que a outra, para compartilhar com a turma. Querem ouvir?
De imediato, veio à cabeça de todos que Továrish tinha imaginado
uma mentira de sete modas, como se falava. Ou seja, um molho de
quengadas, para usar expressão da época. Na linguagem televisiva de
hoje, se diria que Lói tinha armado um pacote de pegadinhas, logo
sete, que é a conta do mentiroso. Constatado isso, todos acordados,
ninguém era besta de acreditar em mais nada do que ele afirmasse
em seguida. Só podia ser impostura do safado para tentar engabelar
o grupo.
Não era tarefa fácil. A totalidade dos presentes, se excluirmos da lista o notável professor Natércio Pai dos Burros, carregava nas costas
um histórico muito pouco recomendável de brincadeiras pesadas e de
mau gosto, em qualquer dia do ano. Eram capazes de reconhecer uma
lorota de longe.
Coisas como enfiar um pedaço de cigarro aceso na orelha de um burro
carregado de panelas de barro e ficar espiando de longe, esperando
o resultado, eram comuns. Imaginem o espetáculo do animal pulando ensandecido pela dor, as panelas voando e se espatifando no chão.
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Podia ser muito engraçado para quem assistia, mas representava um
grande prejuízo para o proprietário da carga.
Outra brincadeira da turma era afrouxar a cilha da sela do cavalo de
algum matuto parado na porta de uma bodega para tomar a bicada
saideira. Quando a vítima, geralmente já bem melada, tentava montar,
levava uma queda desajeitada e muitas vezes perigosa para a integridade de braços, costelas e até do pescoço.
Maldade maior era colocar uma mutuca, ou seja, um pedacinho de
fósforo aceso, na cara de alguém que estivesse dormindo de papo para
o ar. Na reação instintiva à dor, o sujeito levava às mãos ao rosto com
toda a força, provocando uma forte pancada.
Recentemente, Risalvo Pezão, direitista assumido e desafeto declarado do grupo, estava dormindo numa mesa do bilhar de seu Janoca,
com os braços abertos. Colocaram uma mutuca no seu rosto, enfiaram-lhe um par de tamancos nas mãos. A pancada foi tão forte que
Risalvo quebrou o nariz e passou uns dois meses de cara inchada.
No primeiro de abril, sofisticavam as patranhas. No ano anterior, aproveitando que falar em marcianos estava na moda, aquele mesmo grupo adaptou a ideia de um americano que anos atrás, através do rádio,
disseminou o pânico nos Estados Unidos.
Em plena madrugada de 1º de abril, soltaram na Chã do Marinheiro,
local mais alto da cidade, um balão em forma de disco voador. Tiveram
a astúcia de amarrar a peça a um jumento que carregava uma bateria
para alimentar luzes piscando em torno do artefato, feito uma árvore
de Natal. À medida que o animal andava, a impressão era a de que o
OVNI se deslocava lentamente.
Em seguida, eles mesmos se encarregaram de sair acordando as pessoas para mostrar o fenômeno. Em pouco tempo todo mundo estava
na rua em pânico, muitos pensando que 60 chegara com atraso.
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Essa menção a 1960 não é por acaso. 1959 coincidiu com o final de
uma das severas secas periódicas que até hoje atormentam os nordestinos. Portanto, foi ano de enorme pobreza e sofrimento.
Na cultura apocalíptica nordestina, bastava um fenômeno pouco convencional da natureza ou qualquer acontecimento fora do normal e
logo alguém desencavava a ideia de que o mundo ia acabar ou alguma
coisa estranha estava para acontecer.
Naquela época não existia o politicamente correto. Muito menos as
leis Afonso Arinos ou Maria da Penha e outros avanços da convivência
civilizada. Ninguém que tivesse uma característica de raça ou defeito
físico esperasse a condescendência de um eufemismo. Negro era negro. Aleijado era aleijado. Cego era cego. Cotó era cotó. Doido era doido. Anão era anão. Gago era gago. Fanho era fanho. Manco era manco.
Mouco era mouco. Velho era gagá. Baixinho era tampinha, rodapé de
puteiro, meio fio ou tamborete de forró. Um sujeito alto era grampão,
espanador da lua ou tira coco sem vara. Se fosse magro, o apelido era
Mói de Ferro.
Expressões amenas como afrodescendente, deficiente auditivo, portador de necessidades especiais e outras do mesmo teor sequer eram
cogitadas.
Dentro desse espírito, um bando de gaiatos espalhou que quando 60
chegasse os negros iam virar macacos. Cantavam pelas ruas: Pisa na
fulô/pisa no buraco/60 vem aí/nego vai virar macaco.
Os atingidos revidaram. Ser preto, por aquelas bandas, não era sinônimo de subserviência. A escravidão quase não existira naquelas paragens. Além disso, a maioria dos negros da região vivia ou era proveniente da localidade de Umari, antigo, duradouro e invicto quilombo
formado por escravos fugidos do litoral.
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De modo que ali sobrevivia quase intocada uma população preta retinta, altiva e desaforada. Com a história de que os negros iam virar
macacos, os umarizenses invadiam aos bandos a feira nos sábados,
provocando e fazendo algazarra. Parodiavam, cantarolando alto e bom
som: “Pega na fulô/fica bem bacana/ negro vai virar macaco/branco
vai virar banana”.
E, quando passavam perto de uma ou várias mocinhas, ameaçavam
abocanhar os pescoços virginais, dizendo: “Te prepara, branquela,
quem vai te comer sou eu”.
Troco bem aplicado. Foi preciso a polícia pedir reforço e interferir
com energia para acabar aquela libertinagem.
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As pegadinhas de Lói
Acostumados a presenciar e participar de acontecimentos dessa natureza e com enorme vivência na aplicação de pulhas as mais diversas,
nenhum Tetéu ia cair em armadilha tão óbvia como as sete conversas
da carochinha anunciadas por Továrish Lói.
Porém, para não estragar a brincadeira, todos fingiram entrar no clima
e autorizaram o pilantra a contar as tais novidades surpreendentes.
Passava pela cabeça de todos ouvir o rosário de invenções para, em
seguida, jogar o feitiço contra o feiticeiro e dar o troco, deixando Lói
com cara de rapariga.
Recuperando um pouco o fôlego, olhos esbugalhados e coração ainda
aos saltos, o mensageiro fez primeiramente a menção à fonte, que é regra básica de todo bom mentiroso para dar credibilidade às suas patranhas. Segundo Lói, ele soube das coisas porque ouviu uma conversa
de seu Marcondes Telegrafista, um dos comunistas mais conhecidos
da cidade, na oficina do seu pai, que era ferreiro conceituado, além de
comunista de carteirinha, como a gente já sabe.
Segundo ele disse, seu Marcondes reuniu os camaradas de maior confiança e contou terríveis novidades que estavam acontecendo no País.
O telegrafista fazia parte de uma rede de profissionais comunistas que
trocavam informações de interesse geral e particularmente do PCB.
Estava sempre um passo adiante na maioria das notícias.
Lói disse que ouviu escondido no quintal da oficina e por isso muitos detalhes escaparam. Mas quando todos saíram às pressas, ele encontrou no chão uma tira dos registros do telégrafo. Graças à amizade
com o seu pai, o telegrafista ensinou a ele rudimentos do Código Morse. Foi graças a esse conhecimento superficial que ele complementou
o que tinha escutado decifrando em parte, notícias pavorosas.
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[ 2 ] Revolução ou piada?
Mostrou a tira do telégrafo cheia de furinhos e, como um cego semianalfabeto lendo em braile, foi decifrando e anunciando as novidades
pela ordem. Primeiro, diz aqui que está em curso uma operação chamada Brother Sam, com o objetivo, parece, de anexar o Brasil aos Estados
Unidos.
A gargalhada geral não quebrou a seriedade de Lói. Logo Cumpade
Deca repreendeu de mentirinha a todos. Espera aí gente, o assunto é
sério mesmo, deixa Továrish continuar.
Bem, prosseguiu o mensageiro, a segunda entendi menos ainda, mas
está impresso. Com certeza o marinheiro Popeye tem alguma coisa a ver
com isso. Pelo menos faz parte do alto comando das tropas.
Aí foi danado. Deca reforçou os pedidos de silêncio. Agora ele estava mesmo curioso para saber até onde ia a safadeza de Továrish. O
marinheiro Popeye, sempre com seu cachimbo escorado no canto da
boca, eterno pretendente de Olívia Palito, era figura popular nos desenhos animados da televisão. Entre isso e participar de uma operação
militar no Brasil, vai uma distância enorme. Se ainda fosse Zé Carioca,
personagem brasileiro, vá lá, podia ter sido adotado como mascote de
algum pelotão. Mas um boneco americano, era mesmo hilariante.
Por isso mesmo, com essa ninguém se aguentou. Outra sonora gargalhada dominou o ambiente. Vai ver que teremos que comer espinafre
todo dia, comentou um gaiato.
A muito custo, a ordem foi restabelecida, porque, além das risadas, já
se multiplicavam os comentários. Finalmente, com o precário silêncio,
Lói pôde prosseguir. A terceira notícia conforme diz aqui é que tropas
do Exército marcham pela Via Dutra lideradas por uma vaca fardada.
A risadagem redobrou de tal maneira que começou a juntar gente, em
pouco tempo já parecia um pequeno comício.
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Que negócio engraçado e absurdo. Essa, nem Chico Anysio era capaz de
criar. Lói inventa cada uma! Esse 1º de abril vai ser campeão. E o pior
é que ele interpreta com uma seriedade tão grande que se a gente não
conhecesse bem a peça era capaz de acreditar. Cada mentira mais cabeluda que a outra, e o danado mantém a cara totalmente compenetrada,
nem um risinho. Grande ator que ele é. Provoca mais gargalhadas do
que Mazzaropi. Está se perdendo por aqui, era o que se falava.
Àquelas alturas, a curiosidade da plateia estava aguçada. Deca nem
precisava pedir silêncio, era a própria plateia que fazia sinal com as
mãos e repetia: Psiu, cala a boca gente, ainda tem mais, conta a próxima, Továrish.
A próxima era a seguinte: Os Estados Unidos enviaram uma frota com
um porta aviões e vários destróieres entupidos de marines para atacar
Brasília pelo meio da floresta e depor o presidente Jango.
Imagine o leitor que naquele momento tinha gente chorando de tanto
rir. Como é que é? Uma frota naval vem da América do Norte para
atacar Brasília, que fica, como todo mané buchudo sabe, a mais de 2
mil quilômetros do mar? E por uma floresta, que só pode ser a Amazônica? Que confusão dos diabos. Essa merece entrar no Livro dos Recordes como a maior mentira de todos os tempos.
A próxima! A próxima! Era a solicitação da plateia insaciável. Logo a
assistência parecia a torcida num jogo da seleção de Lagoa Nova, depois de um golaço de Cici ou Inácio Torototó. Mais uma, mais uma,
gritavam e batiam palmas. A balbúrdia se generalizou de novo. A muito custo, testando sua liderança e seu vozeirão, Cumpade Deca conseguiu impor algo parecido com silêncio.
Lói, sério feito um porco mijando, cumpria sua histórica missão com
toda a galhardia. Ainda passando os dedos pela fitinha do telégrafo,
com cara de decifrador, teve que gritar para ser ouvido, que o Rio de
Janeiro estava sendo atacado pelo general Cruel.
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[ 2 ] Revolução ou piada?
A essas alturas todos tinham perdido as contas das notícias e achavam
que a mentirada, embora hilariante, já estava passando dos limites.
Invadir o Rio de Janeiro já seria um absurdo. E botar um cara chamado Cruel para fazer isso, só se os hipotéticos conspiradores fossem
humoristas.
Tinha gente embolando no chão de tanto gargalhar. O público só fazia
crescer, cada qual que chegava querendo saber as conversas de carochinha para rir também. Os privilegiados ouviam do próprio Lói, que
repetia tudo pacientemente com a cara mais séria desse mundo. Os
que ouviram, no todo ou em parte, rememoravam tentando lembrar
uma a uma. Nem Cumpade Deca, do alto de sua liderança, que em
matéria de furdunço era reconhecida por todos, foi capaz de restaurar
o silêncio. Impossível prosseguir.
E ninguém deixava de elogiar o desempenho e a criatividade do mentiroso. Essas foram realmente muito boas, Továrish merece ganhar o
Oscar pelo desempenho. Mas nem por isso ninguém ia acreditar em
nenhuma daquelas invenções despropositadas, apesar de muito pertinentes para aquela data. Até que alguém contou nos dedos e anunciou
bem alto, reabrindo a sessão de gargalhadas: Gente, as sete mentiras de
Lói são cinco. Que cara mais gaiato.
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Morra a caterva vermelha
Depois de serenada a risadagem, só para render com o assunto, os
mais próximos procuravam argumentar, mostrando ao mensageiro as
pernas curtas das suas conversas fiadas. Não tás vendo que isso não tem
pé nem cabeça, Lói?
Argumentavam pelo caminho da razão. Primeiro, os militares não seriam tão idiotas a ponto de derrubarem um governo que, além de fraco das pernas, tinha data marcada para acabar. O presidente João Goulart, do PTB, era um rico latifundiário, não tinha nada de comunista.
Defendia reformas de base, importantes para a modernização do país,
mas, como não tinha apoio, nem isso ia conseguir fazer.
Além disso, faltava pouco mais de um ano para a eleição. Juscelino
Kubitschek, o ex-presidente que fez o Brasil andar 50 anos em cinco,
construiu Brasília, é membro antigo do Partido Social Democrata, o
PSD, portanto totalmente confiável para as elites e liderava disparado
todas as pesquisas. Estava praticamente nomeado presidente da República por antecedência, qual o sentido de um golpe militar agora?
Os norte-americanos, era sabido, estavam interessados em colocar
no Brasil um governo subalterno a eles, acabar com a independência
nacional e transformar nosso país no maior quintal do mundo. Mas
seriam por acaso idiotas a ponto de não estarem informados de que
havia quatro anos a capital do País tinha sido transferida do Rio de Janeiro para o Planalto Central? E que Brasília não tem ligação aquática
de qualidade nenhuma com o Oceano Atlântico? Como um país tão
inteligente como os Estados Unidos ia mandar uma frota para atacar a
capital se esta nem tinha como chegar lá? Através da floresta, eles iam,
quando muito, parar em Manaus.
Isso sem falar de outras invenções engraçadas, porém despropositadas. As gloriosas Forças Armadas brasileiras são muito ciosas da sua
história, das suas vitórias em campos de batalha e do seu nacionalismo.
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[ 2 ] Revolução ou piada?
Imagine se iriam se submeter e aceitar um nome-código estrangeiro e
desmoralizante como Brother Sam para seu improvável movimento.
Na remota hipótese do golpe acontecer algum dia, teria certamente
um nome genuinamente verde-amarelo, patriótico e ufanista.
Mais despropositado ainda é esse negócio de Popeye participar do comando da tropa. Logo ele, um boneco americano que só existe nos desenhos animados, que não tem nada a ver com a realidade brasileira. Aqui
a gente sabe que ele fuma cachimbo e come espinafre, que parece uma
espécie de bredo. Mas ninguém jamais viu um bregueço desses sendo
vendido em alguma feira e muito menos servido em qualquer prato.
E uma vaca fardada no comando de um movimento militar? Realmente a ideia é muito engraçada. Mas alguém já ouviu falar de vaca fardada? Nem mesmo no Carnaval de Olinda, onde se abusa da criatividade e irreverência, nunca se viu qualquer folião fantasiado de vaca, com
farda, quepe, espada e tudo o mais.
Aqueles comentários eram uma forma de valorizar a performance. Foi
sensacional, camarada. Espetacular. Muito criativo. Mas nada daquilo
podia ser verdade.
Em vez de se curvar para receber os merecidos aplausos e usufruir do
seu momento de glória, o mentiroso não se dava por vencido, tentava
prosseguir sem dar o braço a torcer. Agora, já correndo o risco de encher o saco. Todo mundo sabe que depois de rir muito a pessoa fica
meio enjoada, por isso não tem nada mais chato do que brincadeira insistente. Minha gente, eu não estou brincando, repetia. O general Cruel
está invadindo o Rio de Janeiro, juro pela alma da minha mãe.
Achando que a brincadeira já tinha dado o que tinha que dar, Cumpade Deca fez valer a sua autoridade. Tá bom, minha gente, foi muito
engraçado, mas basta por hoje. E, imitando Chacrinha, o Velho Guerreiro, um dos orgulhos de Boi Pintado, gritou o bordão: Palmas pra
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ele, que ele merece. Vocês querem bacalhau? Procurem na venda de seu
Lalau. E fez um gesto enfático de que a festa chegara ao fim.
Foi realmente divertido, o melhor primeiro de abril de todos os tempos, superou o disco voador do ano passado. Mas tava na hora de cada
qual ir tratar da sua vida.
E assim teria acontecido se não entrasse em cena o elegante vereador
Pedro Boi de Raça. Homem fidalgo, alto, forte, de grande saúde e credibilidade, campeão dos campeões de vaquejada, fazendeiro e comerciante, ele sempre tinha um bom rádio ligado no seu estabelecimento
comercial.
Até então completamente alheio ao fuzuê, chegou com uma expressão
transtornada. Abriu caminho até junto de Cumpade Deca e de Továrish Lói e perguntou com seu vozeirão inconfundível: Pessoal, alguém
aqui ouviu a edição extra do Repórter Esso, que Edson de Almeida acabou de ler na Rádio Jornal? Os militares estão tomando o poder no País
inteiro.
Claro que ninguém ali tinha ouvido, estava todo mundo na rua e a
Rádio Boi Surubim, que reproduzia o noticiário, saía do ar na hora
sagrada do descanso depois do almoço.
Antes que Pedro Boi de Raça tivesse tempo de debulhar as surpreendentes novas, entrou na rua acelerado, no seu carro esporte conversível todo empoeirado, o ricaço mais famoso da região. Tratava-se de
Raul Bondinho, filho único de um maiores fazendeiros e produtores
de algodão do lugar.
Bondinho vivia mais flanando no Recife e no Rio de Janeiro do que
em Boi Pintado. O apelido vinha do fato de ele falar muito no bondinho do Pão de Açúcar e, sinceramente, com seu corpanzil arredondado, meio que parecer com o teleférico carioca.
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[ 2 ] Revolução ou piada?
Embora não se misturasse muito com os locais, ditava moda e exercia
forte influência sobre os filhos dos latifundiários e grandes comerciantes. De vez em quando aparecia acompanhado por estrangeiros
e comandava uma sociedade meio secreta nos moldes da Ku Klux
Klan norte-americana. Só que nos Estados Unidos a KKK, como era
conhecida, caçava negros. A entidade de Raul era chamada de CCC,
que significava Comando de Caça aos Comunistas e, segundo se dizia,
estava se espalhando por todo o País.
De acordo com as más línguas, o sujeito, reconhecido como playboy
até nas publicações mundanas do Centro-Sul, estava por trás de várias
ameaças e violências que eram praticadas contra camponeses e líderes
sindicais da região. Casos de espancamento e até sumiços definitivos
não eram raros. O povo eximia o coronel Honorato dessas arbitrariedades de fundo ideológico. A linha do coronel era outra, como veremos adiante. Dizia-se que era mesmo Raul quem estimulava e financiava essas operações cavernosas, embora, naturalmente, ninguém
conseguisse provar.
Contrariando seu costume de não dar muita trela à gentalha de Boi
Pintado, Bondinho chegou buzinando e fazendo o maior alarde.
Vestido com seu traje de viagem, que muito se assemelhava ao dos
aviadores dos filmes preto e branco, tirou o gorro, levantou os óculos
e fez o primeiro e talvez único discurso público da sua vida: Pessoal,
fui para o Recife, mas não consegui entrar. Os militares tomaram conta
do País, a capital está cercada. O ônibus está voltando, os carros de praça também. Nem Dr. Hidelbrando, que ia levando um paciente, passou
pela barreira. Finalmente chegou a nossa vez. É a salvação da Pátria, da
família e da propriedade.
Ato contínuo, puxou o revólver 38 e disparou seis tiros para o alto, a
título de comemoração. Arrogante como sempre, berrou ainda mais
alto: Quem tiver fogos pra vender, eu compro. Lolô, pode trazer todo
o seu estoque. Eu quero é tudo. Torro dinheiro, mas vou comemorar a
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derrota desses comunistas filhos da puta que viviam tirando o sossego
das famílias de bem.
Avistando seu Pacífico do hotel e Doze Dedos do bar, assim chamado
por ter mesmo seis dedos em cada mão, ordenou: Podem servir bebida
para todo patriota que quiser comemorar. Hoje é tudo por minha conta.
E, em clima de apoteose, berrou a planos pulmões: Morra a caterva
vermelha. Viva a Revolução Redentora de 1º de abril de 1964...
Naquele momento, o golpe invadia a vida pacata de Boi Pintado.
Começava a história que desaguaria no julgamento de Deus.
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Capítulo 3
O samba do crioulo doido
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[ 3 ] O samba do crioulo doido
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Tão logo recuperou-se, o marechal, como bom e
altivo militar, tratou de minimizar a pilora. Não foi nada, afirmou, uma
simples indisposição provocada por uma gripe mal curada, além desse
clima horroroso do Cerrado, mais a emoção dessas notícias inesperadas. Disfarçava o desconforto e uma terrível dor de cabeça que, no seu
caso, utilizando a linguagem politicamente incorreta da época, ocupava uma grande parte da área útil do seu corpo.
O senhor, como médico, deve estar a par de tudo, principalmente do meu
estado emocional, para não fazer diagnósticos precipitados. Meu caro
coronel, médico do glorioso Exército Brasileiro, não lhe conto a malfadada notícia que acabei de receber e que me tirou do sério. Imagine que
Deus vai ser julgado numa cidadezinha do interior de Pernambuco.
Suspirou fundo e prosseguiu: Até onde sei, é a primeira vez que alguém
tem a ousadia de colocar Deus no banco dos réus. E olhe que não se trata
de uma deidade pagã e extinta, ou um deus primitivo e bárbaro. Muito
menos um animal ou um dragão, que aqui e acolá são adorados. Nem
mesmo o sincrético Xangô ou o brasileiríssimo Zé Pilintra. Muito menos
trata-se de Alá, que no Brasil não tem muitos seguidores, podia ser posto
sub judice sem problema nenhum, toda ausência é atrevida. Mas não, meu
caro coronel. Querem julgar o nosso Deus, o símbolo maior da civilização
ocidental, o mais alto inspirador da nossa Revolução Redentora de 31 de
março desse glorioso ano de 1964. Ou seja, desculpe o trocadilho, está na
cara que se trata de uma iniciativa de má-fé com o nosso governo.
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[ 3 ] O samba do crioulo doido
Excitado, o marechal mal conseguia uma trégua para respirar. E prosseguiu sem dar chance sequer para o médico tentar acalmá-lo.
Estando certo o chanceler, o réu desse caso é o Deus todo poderoso, criador do céu e da terra, o Deus de Abrão, Isaac, Moisés, Davi e Salomão, o
pai da matéria, o criador nosso que está nos céus, aquele que dispõe soberanamente sobre os nossos destinos. Pois o Senhor Deus dos Exércitos
vai ser julgado como se fosse um simples meliante, ou um mero subversivo, o que é um achincalhe muito maior.
E o pior de tudo é que fui o último a saber, como se Boi Pintado, em vez
de um próspero município brasileiro e pernambucano, fosse uma província localizada no mais remoto interior do Paquistão. Para o senhor sentir o meu drama, até o papa João XXIII, o presidente Lindon Jonhson,
a rainha Elizabeth, os líderes comunistas Mao Tsé Tung e Fidel Castro,
todos já estão a par do caso. Enquanto eu, presidente dos Estados Unidos do Brasil, estava completamente desinformado, comendo mosca. Os
que não gostam de mim podem me chamar inclusive de aluado, lunático,
abestalhado; nesse caso teriam toda a razão.
Depois de um lapso que pareceu a eternidade, retomou a palavra, balançando a enorme cabeça: Uma coisa inédita, atrevida, que nos expõe
ao ridículo no conceito das nações civilizadas. E ainda tenho que aguentar me chamarem de ditador.
O regime ainda não tinha assumido que era uma tirania, com todas as
letras, como faria em 1968. Embora o clima fosse pesadíssimo no País
inteiro, muita gente fazia trocadilhos debochados com o novo governo. Não faltava quem, tirando onda com os novos donos do poder,
chamasse a ditadura ora de democradura, ora de ditamole.
O marechal exigia um apoio moral e cívico devidamente verbalizado.
Os senhores não acham isso um absurdo completo? Embora sem entender se o marechal se referia ao julgamento ou ao fato de lhe chamarem
de ditador, o chanceler e o médico desistiram do quem cala consente
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e acabaram se manifestando: Sem dúvida, excelência, um absurdo total.
Aliás, muitas coisa naqueles dias eram um absurdo total.
Por isso, recomendava a prudência que ninguém achasse nada. O último que achou nunca mais foi achado, faziam trocadilhos por aí.
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[ 3 ] O samba do crioulo doido
As aparências não enganam
Concordar, naquele ambiente, era passaporte para continuar nas graças do poder. Apesar dos fumos democráticos que pretendia exalar, o
marechal deixou claro desde o início que o governo iria respirar o ar
impositivo e hierárquico que prevalecia nos quartéis.
Já dissemos que ele adorava piadas de caserna. Pois durante a primeira
reunião ministerial, que deveria ter sido solene e formal, replicou uma
brincadeira de muito mau gosto, repetindo o comportamento de sargentos do tipo mal encarados na recepção aos recrutas.
Escolheu para vítima o ministro da Educação, um civil conhecido
pela tolerância do seu pensamento, e que parecia o mais nervoso e
desambientado de todos. Danou-se a fazer perguntas sobre a pasta,
querendo saber detalhes que dificilmente o auxiliar teria tido tempo
para assimilar e citar de cor.
Qual verba para o ensino fundamental, ministro? Não sei, vou me informar, presidente. Quantas escolas técnicas federais estão em funcionamento, ministro? Não sei, vou me informar, presidente. E o marechal foi
repetindo indagações, cada qual dirigida de forma mais áspera, sem
o interrogado conseguir atinar com a resposta para nenhuma delas.
O ministro, apavorado, suava mais do que tampa de chaleira e tinha
perdido a condição de raciocínio. Chegara o momento da piada. O
presidente o encarou severamente, mandou prestar muita atenção e
sapecou a pergunta, dedo em riste, no tom mais agressivo possível:
Qual o seu nome, ministro?
Não deu outra. Completamente desarvorado, o interlocutor já não
ouvia mais nada. Caiu na armadilha feito um aruá: Não sei, vou me
informar, presidente.
O ministro da Guerra puxou a gargalhada, os ministros militares, mesmo os que não gostavam do marechal, riram com gosto. Ao contrário
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dos civis, que o fizeram visivelmente constrangidos, exibindo um tímido sorriso amarelo.
Só pela narrativa desse bizarro episódio é fácil compreender por que
os auxiliares civis evitavam qualquer encontro com o chefe. Divergir dele, então, nem pensar. Era um lobo com modos de cordeiro. Só
quem usava a prerrogativa de expressar opinião contrária eram os ministros militares representantes da chamada linha dura, apelidados de
gorilas ou também de hidrófobos, em alusão à doença que deixa os
cachorros literalmente loucos. Esses trabalhavam para o regime apertar cada vez mais.
Conhecendo muito bem os meandros do poder, o chanceler sentiu
que a fase mais difícil estava ultrapassada. Aproveitou, então, para a
segunda etapa, que era tirar o dele da reta. Para isso, jogou mais lenha
na fogueira de um auxiliar que o presidente detestava.
Repetiu que solicitara informações ao coronel do Serviço Secreto e
tivera o silêncio como resposta. Como a pressão que sofria era grande,
resolvera recorrer diretamente ao seu superior na cadeia de comando.
Quem cumpre ordens não erra, arrematou, usando uma expressão de
caserna para bajular o chefe.
Desde a primeira informação, o marechal já percebera o tamanho da
bronca. Assumira para um mandato tampão que deveria durar até as
eleições marcadas para o ano seguinte. A principal razão da sua escolha é que não era de linha nenhuma. Não contemplava nem ameaçava
ninguém.
Apesar do apoio dos Estados Unidos e do clima da Guerra Fria, que
dividia o mundo, os principais países da Europa, ciosos dos seus valores democráticos, olhavam com muita desconfiança a tal Revolução
Redentora do Brasil.
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[ 3 ] O samba do crioulo doido
Era difícil que engolissem como democrático um golpe militar que
desrespeitou a Constituição, cassou mandatos, suspendeu os direitos
civis, exilou democratas e abarrotou os cárceres com presos políticos
de todas as condições sociais.
A linha moderada, chamada de galinhas verdes, porque segundo os
adversários não ofendiam nem a um pinto, ainda predominava nos
discursos e notas oficiais. Seus partidários faziam um grande esforço
para manter as aparências. Sustentavam o discurso de que os militares
tinham violado a Constituição com o intuito de preservá-la, tomaram
o poder para garantir a democracia, que estava ameaçada pelo comunismo ateu. Tão logo a caterva vermelha fosse eliminada, o governo
seria devolvido aos civis. Foi essa a versão oficial para justificar o golpe.
O mundo democrático não engoliu.
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A casa da Mãe Joana
No dia a dia, a disputa entre os dois grupos era um verdadeiro cabo de
guerra, um permanente puxa-encolhe. O marechal representava um
ponto de equilíbrio, um algodão entre os cristais. Conseguia conduzir o governo aos trancos e barrancos, dando uma no cravo outra na
ferradura.
Por conta dessa situação, diante daquele impasse crucial, o ditador não
se sentiu seguro para decidir sozinho. Achou melhor ouvir opiniões
de todas as alas e compartilhar as responsabilidades, como já fizera em
outras ocasiões delicadas.
Convocou o ministro da Casa Civil, um militar intelectualizado e da
sua estrita confiança, e explicou por alto a situação. Para ter tempo de
se recuperar do faniquito que sofrera, solicitou uma audiência com o
coronel chefe do Serviço Secreto, para as 17 horas, e outra, uma hora
mais tarde, com o chamado núcleo duro do governo, acrescido do
chanceler
Diante do quadro real do País e do seu governo, aquele desafio do
julgamento de Deus era potencialmente explosivo. Internamente,
constituía uma ameaça para sua precária liderança na tropa. No plano
internacional, poderia gerar repercussões fatais para a imagem do seu
governo. Era preciso montar uma estratégia bem pensada para lidar
com aquela sinuca de bico.
Elogiou o chanceler. Fez bem em me procurar, agora volte para a sua
trincheira e aguarde a reunião.
Ficou sozinho com o médico. Este aproveitou a oportunidade para
recomendar com ênfase uma bateria de exames. O marechal relutou,
mas foi convencido pela argumentação irretocável: Neste momento o
senhor é a Pátria, esta não pode fraquejar.
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[ 3 ] O samba do crioulo doido
À época, dizia-se que o melhor hospital de Brasília era a ponte aérea
para São Paulo. A cidade era nova, poucos profissionais de renome tinham arriscado transferência para lá, mas o marechal bateu o pé: só
aceitou ser levado para os alegados exames de rotina no Hospital de
Base da capital. Lá, foi examinado e reexaminado, realmente nada havia no coração. Fora apenas um pico de pressão causado pelo estresse.
Recolheu-se na companhia da equipe médica ao Palácio da Alvorada, onde almoçou. A já descrita cabeça desproporcionalmente grande e completamente chata do presidente estava fervendo. Tomou uns
calmantes para conseguir relaxar e dormiu algumas horas. Acordou
ainda indisposto, mas fez um enorme esforço para não demonstrar.
Precisava agir à altura das exigências do momento. Tratava-se do seu
primeiro grande desafio. Era necessário corresponder ao que dele se
esperava e calar os críticos de todas as condições. Para isso, tinha que
acionar, como nunca antes, os recursos do seu quengo privilegiado.
Quando saiu do quarto, estava pronto para o combate. Incorporava o
bordão militar de que o comandante é superior ao tempo. Fez questão
desta vez de vestir sua farda de campanha para transmitir a todos que
era uma questão de vida ou morte o caso que iriam tratar.
Já no Planalto, recebeu pontualmente o comandante do Serviço Secreto. Na hora aprazada, ele chegou ao gabinete presidencial. Juntou
ruidosamente os saltos dos coturnos e só não bateu a continência regulamentar porque as mãos abraçavam um monte de pastas. Tratavase de um oficial tosco e eficiente, da arma da Cavalaria, com quem o
ditador não tinha qualquer afinidade. Ríspido, foi direto ao assunto:
Coronel, o senhor está a par dessa história do julgamento de Deus, em
Boi Pintado?
O Serviço Secreto continuava mal estruturado. A maioria dos agentes
se informava principalmente recortando notícias dos jornais que, naquele momento, abusavam da autocensura. O órgão, realmente, estava
passando batido pelo caso de Boi Pintado.
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No entanto, assim que recebeu o alerta do chanceler, o coronel caiu
em campo. Despachou imediatamente seus melhores subordinados
para Pernambuco, montou uma eficiente rede de informações.
Os agentes enviados tinham recentemente recebido treinamentos
secretos no Panamá ministrados por instrutores franceses e norte-americanos. Aplicaram os conhecimentos adquiridos, foi uma boa aula
prática. Em 48 horas elaboraram um dossiê que, apesar de incompleto, trazia informações sobre os mais variados ângulos da complexa
questão.
Seguindo o lema de não interferir em nada, mas acompanhar tudo,
mantiveram estreita vigilância na cidade, atualizando as informações
quase em tempo real.
Assim, enquanto o chanceler perdia tempo esperando por uma ideia
salvadora, o coronel preparava sua própria salvação. Por sabedoria,
manteve segredo, não se reportou aos superiores. Preferiu aguardar
ser chamado, sabia que logo isso iria acontecer. Assim, já que perdera
o tempo de se antecipar ao problema, pelo menos quando acionado
daria uma resposta imediata e precisa. Não deixava de ser uma prova
de eficiência e presteza.
Durante uma boa meia hora, expôs detalhadamente o que sabia de
todo o imbróglio. A complexidade envolvia não apenas o julgamento
em si, como já adiantara o chanceler. Outras questões intrincadas se
misturavam. Mostrou papéis, exibiu fotos, a cada dado que trazia, a
contrariedade presidencial só fazia aumentar.
Ao término da explanação, o presidente indagou: O senhor tem alguma sugestão, coronel? Ao longo de toda a sua carreira, que ainda reservava muitos sucessos no futuro, ele só teve uma proposta para resolver
qualquer problema. E tratou de enunciá-la: Sugiro que a gente prenda
e arrebente, marechal.
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[ 3 ] O samba do crioulo doido
A conversa terminou. Àquelas alturas, o heterogêneo grupo convocado para a reunião já se encontrava na antessala. Em Brasília, as notícias
correm. De um modo ou de outro, todos já sabiam do que se tratava.
O marechal ordenou que se dirigissem para a sala de reunião. Numa
deferência especial, caminhou segurando no braço do presidente da
Câmara dos Deputados.
Apesar de dezenas de congressistas terem sido cassados, muitos deles
presos e até seviciados, o presidente da Câmara Federal era figura obrigatória naquela democracia de faz de conta. Apelidado de Cereja do
Bolo, ficava de prontidão em Brasília, não apenas para participar de atos
solenes, jantares em embaixadas, recepções a autoridades estrangeiras,
como para integrar as reuniões estratégicas na condição de representante do Poder Legislativo. Apesar de nunca abrir a boca nessas ocasiões, era apresentado como o legítimo porta-voz do povo brasileiro.
Outra figura importante era o presidente do Supremo Tribunal Federal. O seu antecessor fora cassado como subversivo, e ele, indicado
pelos militares, venceu por unanimidade a eleição entre os seus pares.
Representava o Poder Judiciário.
Com mais esse jeitinho brasileiro, a divisão dos três poderes independentes e harmônicos que caracterizava a moderna democracia, segundo o modelo clássico de Montesquieu, se convertia em verdadeira
farsa tropical. O Brasil colocava suas instituições no mesmo nível das
mais inexpressivas republiquetas de bananas.
Os demais participantes eram o ministro das Relações Exteriores, que
não integrava o núcleo duro, mas neste caso específico era imprescindível; o ministro da Justiça, que todo dia rebolava mais do que baiana
no bambolê, para tentar provar ao País e ao mundo que a ditadura era,
na essência, democrática, e o governo constitucional anterior é que
era uma ditadura comunista em gestação; o coronel chefe da Casa Civil, administrava as difíceis relações do governo com líderes políticos
e movimentos sociais que apoiaram o golpe.
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Completavam o grupo o comandante da Casa Militar, também da
quota pessoal do presidente. Desempenhava um papel semelhante ao
de Goebbels na administração de Hitler na Alemanha nazista e representava a corrente anticomunista e nacionalista das forças armadas; o
ministro da Guerra, líder da linha dura, que achava o presidente fraco
e só pensava em substituí-lo; além do coronel do Serviço Secreto e do
general comandante da Polícia Federal.
Porém, o convidado mais importante, presença obrigatória em todas
as tomadas de decisões estratégicas do País, era o embaixador dos Estados Unidos da América do Norte. Ou comparecia ou se fazia representar. Nada de importante se definia sem a sua aprovação.
As trapalhadas militares dos norte-americanos na execução do golpe, quando sequer dispunham de um mapa atualizado do País, não
interferiram na condução política após a vitória. O embaixador dos
Estados Unidos era um craque nas articulações, rapidamente botou o
governo militar no bolso. Nomeou os ministros do Planejamento e da
Fazenda e o presidente da Casa da Moeda, que eram os executores da
política econômica, pautada por linhas do maior interesse das empresas estrangeiras. Em menos de 15 dias, para desconforto da ala nacionalista, ocupou a posição de indiscutível eminência parda do regime.
Pode até parecer mentira, mas essa influência era tão grande que os
nomes do ministros eram traduzidos para o inglês. E assim eram mencionados, até pela imprensa. Roberto Campos, destacado artífice da
política econômica da ditadura, era chamado por todos, inclusive nos
noticiários, de Bob Fields.
O embaixador era informadíssimo. Sabia de tudo, até das conversas
pessoais do presidente, por telefone ou rádio.
Assim que a reunião foi aberta, o ministro da Guerra, que não respeitava nem perdia oportunidade para hostilizar e desafiar a autoridade
do presidente, tomou a palavra. E foi logo vociferando no seu linguajar
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[ 3 ] O samba do crioulo doido
grosseiro e totalmente inadequado ao ambiente: A culpa desse imbróglio só pode ser desse cagão que você nomeou para comandar o IV Exército. É um molenga, um calça-frouxa, um imbecil que deveria ter sido
cassado desde a primeira hora.
O coronel da Casa Militar, por sua vez, defendia o presidente a ferro
e fogo. Nem pediu permissão e foi logo revidando, em clima de bate-boca: Permita-me discordar, Excelência. Os comandantes militares são
diretamente subordinados ao senhor. E não me consta que a demissão
do general do IV Exército tenha sido solicitada por sua pasta. Mas nem
por isso vou-lhe atribuir responsabilidades pessoais.
Fechou-se o tempo, cada qual querendo fazer prevalecer sua opinião.
O coronel do Serviço Secreto, para não ficar por baixo, vociferou que a
culpa era dos comunistas, inspirados por Che Guevara e Fidel Castro
e financiados pelo ouro de Moscou.
Foi preciso o presidente, contrariando o estilo mais ameno que procurava exibir, bater na mesa pela segunda vez naquele dia para conseguir ser
ouvido. Senhores, eu não quero saber de quem é a culpa, isso a gente apura
depois. Precisamos tomar decisões e montar nossa estratégia, o tempo urge.
E solicitou ao coronel do Serviço Secreto que fizesse uma ampla exposição, de modo a nivelar as informações para todos os presentes.
Para quê? Na conversa anterior com o presidente, apenas os dois na
sala, o coronel até que se saíra bem. Mas ali, na presença de todas
aquelas altas patentes, atrapalhou-se todo. Acostumado a dar e receber
ordens, era ainda totalmente inexperiente em exposições complexas
como aquela. Tinha preparado um roteiro às pressas, perdeu-se na leitura dos tópicos.
Bem, senhores, temos uma situação bem complicada em Boi Pintado.
O xerife, ao que tudo indica, perdeu o controle da situação. O beato que
ressuscitou é dos meus, quer acabar com o julgamento a bala. A Dama de
Ouro é a principal suspeita no desaparecimento do dinheiro arrecadado,
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embora o juiz de direito também deva ser investigado. Sabemos que os
Tetéus são os responsáveis pela ideia do julgamento, mas temos certeza
de que os Fantasmas Vermelhos também não estão inocentes no caso. Os
Marimbondos e os Embola-Bostas lavaram as mãos.
Parou um pouco, passou a vista pela plateia, todos estavam boquiabertos. O coronel interpretou mal, pensou que estava abafando
e prosseguiu: Ainda estamos investigando até que ponto o mistério
da freira virgem que está grávida está relacionado com a instalação
desse tribunal inaceitável. O caso da vaca no telhado foi devidamente
apurado e não teve qualquer conotação política. O abalo sísmico é
caso bem encaminhado, deve ficar onde já está, no círculo técnico e
científico. Não há provas do envolvimento do arcebispo comunista do
Recife, mas para mim ele está por trás de tudo. Para resolver o caso, os
senhores conhecem o meu pensamento. Até já disse ao presidente. Por
mim, a gente prende e arrebenta.
Apesar da inquestionável gravidade do assunto, todos estavam se segurando para não rir. Que conversa maluca era aquela, ninguém estava entendendo patavina. Parecia uma reunião oficial do FEBEAPÁ,
o Festival da Besteira que Assola o País, criação do imortal Stanislaw
Ponte Preta. Utilizando esse pseudônimo, o genial jornalista Sérgio
Porto ridicularizava o regime com o simples relato de situações absurdas que se multiplicavam por todo o território nacional.
Sentindo que estava perdendo a parada, só restou ao presidente recorrer ao embaixador, que, até então, ouvia tudo profundamente concentrado, com a cabeça apoiada nas mãos.
O diplomata falou direto e objetivo: O único ponto que realmente
preocupa é a questão do julgamento de Deus, o resto é café pequeno. Na
boca dele, graças ao sotaque, a expressão bem brasileira ficava muito
divertida. Antes de anunciar sua posição, entretanto, precisava consultar a Casa Branca. Em assuntos que envolviam o Vaticano não tinha
autonomia.
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[ 3 ] O samba do crioulo doido
O ministro da Justiça aproveitou para puxar o saco dos americanos:
Então vamos esperar, temos que ficar alinhados. O que é bom para os
Estados Unidos é bom para o Brasil.
Não era à toa que difamadores de plantão alimentavam o boato de que
o governo militar iria mudar o nome do nosso País, que na época era
oficialmente Estados Unidos do Brasil, para Brasil dos Estados Unidos. O presidente, mais uma vez, balançou a cabeçorra, estava preocupado; o resultado da reunião não lhe agradara em nada.
Ninguém do governo conseguiu falar a mesma língua e ainda tinham
que ficar imobilizados esperando uma ordem de Washington. Nessa
marcha, pensou cantando a pedra, não demora e algum engraçadinho
vai dizer que o nosso governo é um samba do crioulo doido.
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Capítulo 4
Terremoto pra ninguém botar defeito
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Voltando ao primeiro de abril de 1964. Em Boi
Pintado, o dia estava longe de terminar. Aliás, passou para a história do
município como o dia que nunca acabou.
Antes de ir adiante, vamos logo esclarecer uma a uma as sete supostas
pilhérias que teriam sido armadas por Továrish Lói, em relação ao golpe. Na verdade foram apenas cinco ou seis, ninguém contou ao certo.
Erroneamente entendidas no primeiro momento como criativas brincadeiras alusivas ao dia internacional da mentira, no frigir dos ovos,
eram todas rigorosamente verdadeiras. Algumas um pouco distorcidas, é verdade, devido à limitação do camarada na arte da decifração
das informações telegráficas, como ele mesmo declarou na ocasião.
Primeiro, apesar do ridículo e aparente absurdo, os norte-americanos
denominaram mesmo a operação golpista de Brother Sam. A utilização de um nome estrangeiro, chamando o famoso Tio Sam de irmão,
era uma espécie de recado apaziguador dos norte-americanos. Apesar
de iniciarem as ações sem combinação e sem um comando unificado,
qualquer divergência entre os golpistas não passava de uma arenga de
irmãos. No que era fundamental, estavam fraternalmente combinados.
Em segundo lugar, o comando da operação que deslocou as tropas
de Minas Gerais para o Rio de Janeiro foi mesmo tratado em código
como Popeye. Por que, não me perguntem. Se foi alguma gaiatice infeliz ou mesmo uma forma sutil de protesto de algum oficial superior
inconformado com o rumo dos acontecimentos, não interessa. A história do Popeye era mesmo verdadeira.
Já a questão da vaca no comando, também não surgiu da tresloucada imaginação de Továrish Lói. Nem de nenhum detrator das forças
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[ 4 ] Terremoto pra ninguém botar defeito
armadas. Pelo contrário, foi o próprio general que se saiu com essa. Na
sua primeira entrevista, quando perguntaram sobre os rumos políticos do movimento que comandava, não se fez de rogado.
Respondeu que entendia de exército, estava pronto para falar sobre
a operação militar em curso, mas que quem podia responder sobre
rumos políticos do movimento eram os próprios políticos aliados. E
em seguida cunhou a frase inacreditável, embora sincera, espetacular e
inesquecível: Em matéria de política, eu sou uma vaca fardada.
No tocante à frota, a informação também era noventa por cento correta. Os americanos mandaram mesmo uma esquadra para tomar
conta do Brasil.
Ontem, como hoje, os Estados Unidos não tinham o menor pudor em
promover intervenções militares com os mais diversos objetivos. Na
década de 1960 do século XX, a situação era ainda pior: enfrentavam
inimigos poderosos e engoliam revezes amargos. A Guerra Fria estava
no auge, o mundo já era ocupado em um terço por países socialistas.
O Vietnã, que deveria ter sido um passeio militar para os americanos,
estava se transformando num pesadelo. Cuba plantara um Estado socialista nas barbas dos Estados Unidos.
Para não sofrer outras rebordosas nos seus arredores e blindar a América Latina como área de sua quase exclusiva influência, os norte-americanos definiram como prioridade para a região a instalação de governos totalmente confiáveis. O Brasil, como o maior e mais vulnerável
país do continente, foi escolhido para servir de exemplo.
Durante anos, como foi dito, os norte-americanos prepararam a intervenção. O caso era tão prioritário que ocupou a atenção pessoal do
presidente Kennedy e depois do seu sucessor, sendo que esse acabou
levando toda a culpa.
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Kennedy, com aquela cara charmosa de bonzinho e mártir, foi quem
atolou os Estados Unidos na guerra do Vietnã, açoitou Cuba como
pôde e planejou uma política intervencionista na América Latina. Isso
já era sabido de longa data. Mas nas vésperas dos 50 anos do golpe,
tornou-se público e documentado.
Os americanos desenvolveram no Brasil, nos anos que antecederam ao
golpe, uma política com duas faces. De um lado, praticavam e financiavam espionagem, sabotagem, corrupção, atividades políticas e conspiratórias, compra da opinião de setores da imprensa e coisas afins e correlatas. Do outro, realizavam ações humanitárias, distribuindo comida,
roupa e outras benfeitorias com as populações pobres do País.
Também financiavam atividades culturais, bolsas de estudo e por aí
vai. Era a badalada Aliança para o Progresso. Os adversários, comunistas provavelmente, adulteravam o para em todas as placas disponíveis.
De modo que transformando a proposição em verbo, e escrito Aliança
pára o Progresso, o título do programa ficava com o sentido totalmente distorcido.
Entidades conspiratórias como o IPES e o IBAD eram mantidas por
grandes empresários ou financiadas abertamente pelos norte-americanos. Encarregavam-se de financiar a desestabilização do governo, a
compra de formadores de opinião, ações de sabotagem. Em síntese,
espalhavam o terror. Os jornais traziam sempre editoriais apavorantes.
Os comunistas eram tratados como verdadeiros papa-figos. Dizia-se
que comiam criancinhas, não como muitos padres da Igreja fazem até
hoje, e sim por via oral. Não havia nenhum setor da vida brasileira que
não estivesse contaminado pela atuação de agentes e espiões.
Com o apoio da Igreja conservadora e das entidades empresariais,
senhoras da sociedade organizavam Marchas da Família com Deus e
pela Propriedade que arrastavam centenas de milhares de reacionários
pelas ruas das grandes cidades.
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[ 4 ] Terremoto pra ninguém botar defeito
Apesar de todo esse conjunto de evidências, os generais fiéis ao presidente João Goulart garantiam que tudo não passava de espuma. A
situação da tropa, segundo eles, estava sob total controle. E sem a adesão dos militares nem os civis conspiradores, muito menos a imprensa
golpista e sequer os arrogantes ianques ousariam partir para um confronto direto com o governo.
Lamentavelmente para a democracia, os oficiais legalistas estavam
redondamente enganados. Entraram na onda que envolvia os partidários do governo e os defensores da ordem. As pessoas tendem a se
acostumar com tudo, a se adaptar a qualquer situação. Com o tempo, a
conspiração que se prolongava acabou por ser incorporada pelos legalistas como algo natural ao cotidiano da democracia brasileira.
Até Leonel Brizola, que quando da renúncia de Jânio Quadros garantiu a posse de João Goulart comandando a imortal Cadeia da Legalidade, a partir do Rio Grande do Sul, desta vez passou batido. Os seus
grupos dos 11, conjuntos de células nacionalistas espalhadas pelo Brasil inteiro, não estavam prontos para resistir. Tanto que Brizola, então
deputado federal pelo Rio de Janeiro, acabou indo para o Rio Grande
e, seguindo a trajetória do presidente, optou por se exilar no Uruguai.
Entretanto, embora não sirva de consolo, não foram só militares legalistas brasileiros que avaliavam mal a situação e passaram atestado de
incompetência. Os ilegalistas norte-americanos, tanto militares como
das agências conspiratórias tipo CIA e outras, também não deram nenhuma aula de eficiência. Aliás, até hoje a grande nação do norte acaba
se impondo mundo afora mais pela força do que pela inteligência.
Nem sempre a força resolve. Haja vista o caso de Cuba. Desde quando
Fidel Castro e Che Guevara proclamaram o socialismo na ilha, os americanos tentam derrubar o governo, em vão. Foram mais de 200 atentados, dezenas de tentativas de invasão, todas derrotadas. Isso contra um
país pobre e sem armamentos sofisticados. Os ianques, por mais recursos e pessoal que conseguissem mobilizar, levavam sempre na cabeça.
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Derrotados no campo de batalha, vendo fracassados seus métodos
terroristas, recorreram ao bloqueio econômico, uma coisa que teoricamente nenhum país suportaria. Pois como todo mundo sabe, Cuba
resistiu e resiste até hoje. Fidel só não vai morrer eleito e reeleito primeiro-ministro a cada legislatura, pela vontade do povo cubano, porque reconheceu que estava debilitado e passou a honraria para o seu
irmão, Raul.
Já no caso do Vietnã, onde em 1964 já estavam atolados sem retorno, demoraram quase uma década para bater em humilhante retirada,
transmitida já então ao vivo pela televisão.
Outros exemplos contemporâneos de total ineficiência do intervencionismo norte-americano são os do Iraque e Afeganistão. No primeiro, para derrubar um tirano de opereta que já não se aguentava nas
pernas, precisaram invadir o país duas vezes. Gastaram um trilhão de
dólares, quantia mais difícil de imaginar do que a distância que separa
a Terra da estrela Alfa.
Apesar disso, não conseguiram nem impor a paz nem formar um
governo eficiente. Depois de anos, bateram em retirada, deixando
o caos para trás.
No Afeganistão, o caso é ainda mais desmoralizante. À frente de uma
coalizão de países europeus cujos governos submissos enviam tropas
para tentar legitimar uma agressão injustificável, não conseguiram até
hoje ganhar a guerra e sequer têm condições de bater decentemente
em retirada. E olhe que ali seus adversários são os tais talibãs, um grupo tão atrasado que suas mulheres vivem aprisionadas da cabeça aos
pés, dentro de jaulas de pano.
Isso tudo para não falar no nebuloso episódio Bin Laden. Para detonar um terrorista das cavernas, apontado sem provas de ser o mentor
dos atentados de 11 de setembro, empreenderam uma caçada que durou mais de dez anos. Os americanos gastaram bilhões de dólares na
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[ 4 ] Terremoto pra ninguém botar defeito
operação. Enquanto isso, o alvo da implacável perseguição vivia palitando os dentes, em companhia de várias mulheres e muitos filhos
menores. Tinha endereço certo e sabido, uma residência confortável
localizada em país aliado dos Estados Unidos, na vizinhança de um
complexo militar. Recebia em domicílio até contas de telefone e de
cartões de crédito.
Portanto não espanta a quase participação da fantasmagórica frota dos
Estados Unidos no golpe de 1964. Documentos recentemente liberados para consulta nos arquivos americanos comprovam: os caras
mandaram um porta-aviões batizado de Navegador das Florestas e um
magote de cruzadores. Estes vinham entupidos de marines, aqueles
soldados invencíveis que nos filmes de Hollywood são o cão chupando manga. Tinham ordens expressas para subir o Rio da Prata e depor
o presidente João Goulart. O comandante só descobriu que Brasília
não era Buenos Aires quando, já nas costas brasileiras, recebeu informes de espiões que alertaram sobre a trapalhada.
Chegaram tarde para a festa. Sem ter a menor ideia de como levar
sua frota até o Lago Paranoá, em Brasília, o comandante preferiu ficar
aguardando os acontecimentos à altura das costas do Espírito Santo,
esperando que, talvez, o patrono do pequeno e simpático estado iluminasse o seu navegar.
E assim, sem destino, com medo de enfrentar cobras e jacarés nas ruas
das cidades brasileiras, perigo para o qual fora devidamente alertado
antes da partida, não houve sequer desembarque dessa frota das arábias. No início do ano de 2014, o tal porta-aviões foi vendido como sucata por menos de 1 dólar. Quem pensa que negócios esquisitos com
o patrimônio público são exclusividade do Brasil está muito enganado.
Além da questão geográfica e de terem chegado tarde para a festa, faltou combinar com os generais da linha dura. Esses, como foi dito, queriam o apoio americano, é claro. Mas não toleravam que militares estrangeiros aparecessem dando ordens ao Exército Brasileiro. Por baixo
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dos panos, tudo bem estarem acertados. Mas, para todo o mundo ver,
necas de pitibiribas. Constatado tudo isso e com o golpe vitorioso, a
frota deu meia volta e retornou para onde nunca deveria ter saído.
Bem, só falta agora para restaurar a credibilidade total das notícias
de Továrish Lói esclarecer a questão do general Cruel que, segundo
seu relato, atormentava naquele momento o Rio de Janeiro. Pois bem,
também aqui não tem nada de brincadeira.
Quem comandou a ocupação da Cidade Maravilhosa foi um general
batizado com o nome de Amauri e carregava o sobrenome de família
Krúel. Como é costume nas forças armadas, o sujeito acaba conhecido
por um nome de guerra, de modo que Krúel era tratado por Kruel.
Convenhamos que não era o nome mais simpático do mundo. Ao
longo da vida, foi vítima de muitas brincadeiras e pilhérias dos próprios colegas de farda. Ele não gostava mas aguentou calado. Como
quem espera sempre alcança, desde que se tornou general, exigia ser
chamado pelos subordinados de Krúel, assim mesmo, como se o ú fosse acentuado. Depois do golpe, um jornalista atribuiu-lhe um slogan:
Krúel, o Cruel. Foi preso e levou umas borrachudas para aprender a
não brincar com coisa séria.
O indiscutível toque de humor e ridículo da situação não deve servir
de pretexto para desviar a atenção das arbitrariedades e crueldades do
regime. Nesse aspecto, a ditadura já começou com a corda toda, embora, depois de dezembro de 1968, o quadro que já era ruim tenha
ficado muito pior.
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Tem cara de tomada? É porco
A ditadura não foi apenas perpetrada no dia primeiro de abril. Tinha
todo o jeitão de um primeiro de abril. Um bregueço desses, acontecido
em período de lua minguante, não pode dar certo, vai acabar em merda, sentenciou Cumpade Deca naquela mesma noite.
Ali, em Boi Pintado, todas as complexas questões que antecederam
ao golpe ganhavam inevitável tempero local. Como todo mundo
sabe, a vida no interior, nos anos 60 do século XX era muito diferente
da dinâmica vivida nos grandes centros urbanos.
A distribuição de alimentos da Aliança para o Progresso era farta,
fortalecendo o grupo político do monsenhor Afonso. A juventude
estudantil disputava palmo a palmo a direção dos grêmios escolares
do Ginásio Marista, do colégio das freiras e do Grupo Ana Faustina.
Direita e esquerda se disfarçavam para burlar as direções dos estabelecimentos, sempre vigilantes a respeito de contaminações ideológicas fora da doutrina cristã, especialmente contra o perigo comunista.
Já na Associação Boi-Pintadense de Estudantes – ABPE, o embate ficava menos obscuro, o que não quer dizer que ficasse claro. A disputa
era tão acirrada que nas últimas duas eleições tinha prevalecido o entendimento: como ninguém alcançava maioria, optaram por dividir
cargos e funções.
Os latifundiários usavam seus capangas para perseguir camponeses organizados. Pelo outro lado, existia na cidade um Grupo dos 11, as tais
células que o nacionalista Leonel Brizola espalhava pelo País; uma Associação Cultural Brasil-URSS, reduto dos velhos comunistas; o CCC
de Raul Bondinho. Os conflitos nacionais também se reproduziam na
cidade, sob o manto falacioso de uma vida mansa, pacata, tranquila.
Na noite daquele primeiro de abril, os reacionários continuavam
comemorando o golpe. Nunca se imaginou que a turma do CCC
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juntasse tantos adeptos. Embora muitos cidadãos de bem tivessem
educadamente recusado as ofertas de bebida de graça, os bares estavam cheios. De vez em quando um grupo ia para o meio da rua e
soltava rojões ou dava tiros para cima. Esse era o clima.
Para evitar problemas, os Tetéus se reuniram reservadamente desde
o fim da tarde na casa de Cumpade Deca com o objetivo de avaliar
os acontecimentos. Ouviram primeiro em possante rádio de ondas
curtas os noticiários internacionais, que ainda pouco esclareciam
sobre o golpe.
Depois de informados com as notícias disponíveis, passaram a discutir a situação. Botaram o golpe em votação e o resultado foi unânime:
primeiro, entendiam que a quartelada era irreversível, tinham que se
preparar para conviver com o que viesse dela. Depois, ninguém ali
apoiava a ação militar. Entretanto, para não criar galinha e dar pinto para os outros, comunistas, brizolistas ou o que mais fosse, resolveram que iriam esperar a marcha dos acontecimentos em cima do
muro. Decidiram manter a unidade e fazer tudo em conjunto.
E se deixaram ficar ali em segurança, se saíssem para a rua, corriam o
risco de, no mínimo, ouvir provocações. Embora não fossem comunistas, suas ideias jamais pareciam convencionais, de modo que não
tinham nenhuma simpatia do CCC. Conversa vai, conversa vem, Továrish Lói deu uma tapa na testa. Pessoal, a gente só foi surpreendido
pelo golpe porque não acreditou no que o beato Elias disse na calçada
da igreja no dia de São José. Quem se lembra?
Todos lembravam, por terem assistido ou por ouvir dizer. No dia 19
de março, exatamente quando Boi Pintado festeja o seu padroeiro
São José, aconteceu um fato cujo alcance passou desapercebido por
todos na ocasião.
O beato Elias era uma figura enigmática, dotado de carisma e ainda
meio que novidade. Data festiva, feriado municipal, fez a sua primeira
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aparição na praça central da cidade. Logo que terminou a missa solene, o beato subiu na calçada da igreja e despejou sua pregação habitual, recheada de citações que ele decorara de tanto ouvir Frei Damião citar o Antigo Testamento.
Toda profecia que se preze, quer seja feita por beatos, messias, ciganos,
pitonisas, sacerdotes ou adivinhos de qualquer qualidade, é sempre
proferida, desde tempos imemoriais, em linguagem genérica, hermética e ambígua. De modo que, não dando certo, como habitualmente não
dá, alguém pode sempre dizer que não era bem aquilo que se previa.
No reverso, qualquer acontecimento notável pode a qualquer tempo ser enquadrado como se tivesse sido profetizado. Trocando em
miúdos, geralmente os profetas não erram nada e em compensação
jamais acertam coisa nenhuma.
Com o beato Elias era igual. Desde o dia em que ressuscitou misteriosamente, descendo do céu pilotando uma carruagem de fogo, numa
localidade chamada Oratório, depois de ter sido morto na frente de
várias testemunhas e enterrado em caixão de aroeira, vivia pregando
suas ameaças, se deslocando de uma localidade para outra, seguido por
uma dúzia de fanáticos discípulos e atraindo sempre grande audiência.
Com barbas grandes, cabelo desgrenhado, vestindo um camisolão
sujo e portando um cajado na mão direita, parecia a reprodução
de uma estampa de Antônio Conselheiro ou ainda o personagem
Moisés, representado por Charleston Heston no consagrado filme
Os Dez Mandamentos, de Cecil B. de Mille, tantas vezes assistido e
aplaudido no Cine-Teatro.
A diferença dele para os outros profetas, beatos e penitentes que proliferavam pelo interior do Nordeste do Brasil é que usava um chapéu
de cangaceiro e andava sempre, segundo se dizia, com armamento
pesado e farta munição escondidos sob a túnica. Ou seja, como Trotski ou Maomé, era um profeta armado.
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Na sua vida terrestre anterior, que nem estava tão distante assim,
Elias tinha sido o perigoso pistoleiro Mané Tiro Certo, de infalível
pontaria e maldade sem limite. Fez carreira a serviço do coronel Honorato Francisco das Chagas, durante muitos anos senhor absoluto
de Boi Pintado e região.
Tiro Certo serviu ao chefe com total fidelidade. Executou dezenas
de adversários, nunca se negou a cumprir nenhuma ordem. Não tirava folga nem aos domingos. Em compensação, ia longe atrás de uma
missão, principalmente de Frei Damião. Muitos ajustes de contas tiveram que esperar porque Tiro Certo estava peregrinando atrás de
algum beato ou profeta.
A grande mudança da sua vida ocorreu exatamente quando retornou de uma dessas atividades missionárias. Chegou em sua humilde
e isolada casa, naturalmente sem aviso, e flagrou o que para ele era
inimaginável. O seu chefe e ídolo estava em chamego com ninguém
menos que sua própria esposa, uma bela cabrocha que era a razão do
seu viver. Sentiu uma decepção tão grande que nenhum ser humano
será capaz de sofrer outra igual, por mais que esse mundo dure.
Para muitos, ser corno do coronel Honorato representava verdadeira
distinção. Tinha cabra que fazia questão de ele mesmo espalhar a notícia, para se dar ares de importância. Sabe quem tá comendo minha
mulé? Né qualquer pé-rapado não, meu filho, é o coronel Honorato,
em pessoa. Era uma honra. Para o fiel Tiro Certo, porém, foi a maior
desgraça da vida.
Apontou a pistola para a cabeça do conquistador, não teve coragem
de atirar. Desviou para a cabeça da mulher amada, o resultado foi o
mesmo. Saiu para o terreiro, atirou no quengo da burra de estimação do coronel, que pacientemente esperava por ele, como de hábito
acontece com as burras de sela. Foi uma espécie de sacrifício substitutivo, parecido com o que Jeová providenciou para Abraão e Isaac.
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[ 4 ] Terremoto pra ninguém botar defeito
Só que no episódio bíblico quem pagou o pato foi um cordeiro desconhecido e agora a vítima foi uma burra de estimação.
Naquele ato tresloucado decorrido da violenta emoção, começava a
nascer o beato Elias. Mané não quis saber de conversa nem explicações. Danou-se no oco do mundo. Passou dias vagando pelos matos,
comendo o que encontrava, enchendo a cara de graça nas bodegas.
O misticismo sertanejo armazenado no seu íntimo foi aflorando aos
poucos e dominando o seu pensar. Até que chegou numa bela tarde
em Boi Pintado, totalmente embriagado e ficou fazendo discursos de
doido religioso pelas ruas.
O coronel, mesmo tendo merecido a misericórdia do pistoleiro, e providenciado o despacho da mulher adúltera para longe, não queria correr riscos. Deu ordem para prendê-lo, coisa que ele aceitou sem reação.
Na porta da cadeia, levou um tiro de rifle pelas costas vindo ninguém
sabe de onde. Foi arrastado pelo sargento Isidoro, seu parceiro de estripulias e violências de longa data, para dentro da delegacia, onde
agonizou no chão duro da cela.
O sargento em pessoa comunicou a morte de Tiro Certo ao coronel
e recebeu a missão de providenciar o enterro. Comprou um caixão de
aroeira na Funerária Caminho do Céu, por conta do chefe político,
naturalmente. E de manhã bem cedo, acompanhado do cabo e dois
soldados que ajudaram a carregar o caixão, levou o defunto na caminhonete da Prefeitura direto para o cemitério, onde o pistoleiro foi enterrado em cova rasa.
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A ressurreição do profeta
De modo misterioso e contraditório, como costuma acontecer nesses casos, Tiro Certo ressuscitou poucos dias depois. Pelo menos foi
o que disseram algumas mulheres que exerciam a profissão de lavadeiras. Tendo saído de casa antes do sol nascer com suas trouxas na
cabeça para lavar a roupa no açude de seu Elizaldo antes do sol esquentar, elas juram que vislumbraram o vulto de Mané, vestido com
um estranho camisolão, pulando o muro do cemitério.
Enxergar um vulto ao amanhecer tem o mesmo valor probatório de
receber um aviso em sonhos. Mas essas questões de religião e crendices em geral dispensam de longe os rigores de um inquérito judicial.
Quando se trata de fé, prevalece sempre a versão na qual o povo acredita e fica repetindo.
Naquele dia, o coveiro Mão de Anjo, na sua rotineira revisão matinal
do cemitério, deparou-se com a cova de Tiro Certo aberta. O túmulo
estava arrodeado de pedras brancas com velas acesas entre elas, o caixão arrebentado e vazio. No seu interior restavam apenas resquícios
de um misterioso pó branco.
Desde esse dia, Mané Tiro Certo virou um mistério. Dizem que aparecia para alguns escolhidos, mas isso nunca foi comprovado. Até
que, numa noite gloriosa, cerca de quarenta dias depois do evento das
lavadeiras, o pistoleiro ressuscitou oficialmente.
Uma ressurreição de verdade, espetacular e comprovada. Tiro Certo desceu no meio da rua da localidade de Oratório, conhecida por
sua religiosidade, pilotando uma carruagem de fogo e escoltado por
quatro anjos. Pelo menos foi o que juram ter visto dezenas de testemunhas de todas as idades. Além disso, o matador, ou ex-pistoleiro,
como queiram, passou a ter nova vida terrena. Apesar da indumentária e do novo linguajar, podia-se tocar no seu braço e ver que era
real, em carne e osso. E quem o conheceu na outra vida não tinha a
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[ 4 ] Terremoto pra ninguém botar defeito
menor dúvida: era mesmo Mané Tiro Certo, agora autoproclamado como o beato Elias.
Tiro Certo ganhou esse apelido na sua primeira vida porque nunca
errava uma moedinha de tostão atirada para cima, arrancava o fundo da garrafa sem sequer a bala triscar na boca da mesma. E atirava
sempre entre os olhos das vítimas. Acertar aquele pontinho bem em
cima do nariz era certeza de missão cumprida e funcionava como sua
assinatura artística em cada assassinato que consumava.
Agora, na sua versão de beato, por uma razão ou por outra, sempre
que pregava, atraía um grande grupo de pessoas devotas, crédulas,
tementes do desconhecido ou simplesmente curiosas. Além do proclamado arrependimento dos muitos pecados e da conversão à vida
ascética, tinha em torno de si a misteriosa aura da ressurreição. Afinal, o sujeito morrer, ir pro outro mundo e voltar para retomar a vida
terrena não é coisa que acontece todo dia.
Afora o caso dele, só se tinha notícia de dois outros: primeiro, o de
Lázaro, o fato mais famoso, registrado inclusive no Novo Testamento,
que aconteceu lá na Palestina de antigamente, por obra e graça de um
milagre atribuído a Jesus Cristo. Esse, peço perdão aos que acreditam, foi uma ressurreição meia-boca. Segundo os Evangelhos Apócrifos, Lázaro morreu de novo no dia seguinte e dessa vez não teve
milagre que desse jeito.
A segunda e última ressurreição até então, ocorreu com seu Binoca
Seleiro, ali mesmo em Boi Pintado. Esse, até onde se sabe, é o recordista universal. Imaginem que morreu três vezes no mesmo dia, por
obra e graça dele mesmo ter duas vidas extras para gastar.
Foi perto da inauguração da energia elétrica de Paulo Afonso, durante uma caçada, na zona rural do município. Seu Binoca apostou com
os amigos que conseguiria subir no poste de alta tensão e se pendurar
nos grossos fios ainda desativados. Pois quando estava justamente
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concluindo sua tarefa, a energia foi ligada por motivo de um teste não
comunicado à população. O efeito foi fulminante. Seu Binoca, atingido por violento choque, caiu estatelado, mortinho da silva.
Enquanto um amigo ficava vigiando o corpo, o outro partiu correndo para comunicar à polícia e providenciar o translado do corpo. O
sargento Isidoro veio em pessoa no jipe Toyota ampliado de Zé Parafuso, com mais dois soldados da guarnição. Constatou o estado de
morto, providenciou a colocação do cadáver na carroceria do veículo
e já perto da entrada da cidade, sem mais nem menos, dispensando
qualquer aviso prévio, o defunto ressuscitou. Abriu os olhos, bocejou, sentou e perguntou o que estava acontecendo.
O pânico foi tão grande que a guarnição e o próprio motorista pularam do veículo, que, sem condutor, caiu numa ribanceira profunda e
virou. Quando todos finalmente conseguiram se aproximar, encontraram seu Binoca debaixo do jipe virado, morto outra vez. E para
não deixar dúvidas de que aconteceu uma ressurreição e nova morte,
desta feita o cadáver estava quase sentado.
Depois de uma trabalheira dos diabos, o corpo foi içado. Com a demora, o corpo enrijeceu. Naquela posição extravagante, foi levado
para autópsia e entregue aos cuidados do Dr. Hildebrando. Atraída
por notícias tão extraordinárias, uma multidão já se aglomerava na
porta do necrotério do hospital, quando o médico saiu, pediu silêncio e anunciou que o morto estava vivo. Tivera sucessivas catalepsias,
mas respondera positivamente ao tratamento de choque e retornara
a este vale de lágrimas. Estava medicado e curado, só precisava de uns
dias de repouso no hospital.
Foi uma festa. E o mais incrível é que cerca de apenas duas horas depois, seu Binoca, impaciente como era, levantou da cama e andou. Por
conta própria, se deu, além de ressuscitado, por totalmente curado.
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Abandonou o hospital, seguido pelo povaréu em festa e marchou para
casa. Entrou correndo no lar todo agitado, gritando o nome da esposa, que ainda se encontrava recolhida à camarinha em estado de total
desconsolo. Afobado como estava, não enxergou direito na meia penumbra da sala. Pisou exatamente em cima de um sapato da esposa,
deixado ao léu no meio da casa de solado para cima. Coisa que seu
Binoca não tolerava porque dá azar.
A ironia dessa terceira causa mortis é que seu Binoca tinha mania de
explicar a origem das crendices populares e sempre defendia que fossem seguidas. Passar por baixo de escada só lhe serve pra se melar de
tinta ou coisa pior. Gato preto é um perigo porque de noite ninguém
vê e pode tropeçar no danado. Sair pela porta que entrou é mais seguro porque se anda por um caminho já conhecido. Sempre procurava se
pautar por esse tipo de saber.
Repreendia as filhas: Sapato jogado ao léu é perigoso, porque, se alguém
pisar, o tropeço é certo. Pois foi tiro e queda. Naquele momento que
deveria ser só de alegria, seu Binoca derrapou espalhafatosamente sobre o sapato e se esbandalhou de costas. Para comprovar o provérbio
que diz que, quando o dia da malvada chega, ninguém escapa, meteu
a nuca no centro de madeira de lei e morreu pela terceira, última e
definitiva vez naquela mesma data.
Ressurreição duradoura, portanto, só a do beato Elias. Não era à toa
que muita gente queria chegar perto e tocar nele. E também era grande a quantidade dos que prestavam atenção às suas palavras geralmente arrevezadas, em busca de luzes sobre a vida e o destino.
Por isso, retomando o fio da meada, à medida que os Tetéus recordavam a pregação de Elias no recente dia de São José, as correlações com
os fatos funestos daquele primeiro dia de abril apareciam claras como
água benta.
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Enquanto o monsenhor Afonso rezava a missa, o beato entrou na cidade acompanhado por uma multidão nunca vista em suas peregrinações. Viera a pé desde Oratório, onde tinha o seu reduto. Desde o
começo já arrastava muitos fiéis, e o cortejo só fez engrossar durante
o percurso. Liderando a multidão silenciosa, postou-se na calçada alta
da igreja, do lado oposto onde os Tetéus costumavam cochilar, esperando pacientemente o fim da cerimônia religiosa.
Quando a missa acabou, as pessoas saíram, começou sua inconfundível pregação. Engrenou uma preleção metafórica, ameaçadora e
incompreensível. A maioria dos católicos que saíram da missa preferiram se refugiar em suas residências, o monsenhor fez ouvidos de
mercador e recolheu-se à casa paroquial.
Como de hábito, o beato falou uns quinze minutos sem ninguém entender nada. De repente parou, aceitou um caneco de água oferecido
por uma fiel, olhou demoradamente para o céu. Quando retomou a
palavra, estava totalmente transformado.
Sem qualquer explicação plausível, tornou-se claro e didático como
o padre Jovino dando aulas de catecismo às criancinhas: Ó raça de
víboras, sepulcros caiados, o dia do Juízo Final está chegando. Prestai atenção nos sinais, proclamou. Frase curiosa, registre-se, porque
analfabeto como sempre tinha sido, Tiro Certo, depois que virou
beato, pegou misteriosamente uma grande intimidade com o infinitivo dos verbos.
Está próximo o dia do começo dos sinais. Antes do inverno pegar, todas
as minhas palavras se confirmarão. Os exércitos do mal descerão das
montanhas para espalhar a dor e o sofrimento; irmão se voltará contra
irmão; as feras de aço do talibã estarão no mar para engolir os patriotas; As bestas do apocalipse vão tomar as rédeas do poder terreno. Teremos choro e ranger de dentes. Os falsos profetas enganarão até os justos.
Mergulhareis em longo período de trevas antes do julgamento final.
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E finalizou: O aviso definitivo vai chegar aqui mesmo, na terra escolhida
de Boi Pintado. Na primeira noite da nova era do mal, a terra há de tremer para abalar os fundamentos desse templo da iniquidade e despertar
o coração de pedra dos homens de pouca fé. Disse essas palavras apontando para a igreja nova, construção monumental e grande orgulho
do monsenhor Afonso.
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Todo mal traz um bem, ou mais
Továrish Lói estava exatamente expondo essa improvável previsão
quando se ouviu um estrondo longínquo, porém de grandes proporções. Em seguida, sem mais nem menos, a terra tremeu.
No primeiríssimo instante todos pensaram que era resultado de
estarem muito impressionados e confusos com tudo o que já havia
transcorrido naquele dia. Mas logo viram que o abalo era para valer.
As louças chocalharam na cristaleira e um coração de Jesus de louça
colocado na parede pela mãe de Cumpade Deca, quando ainda era
viva, espatifou-se no chão. Para não deixar nenhum pingo de dúvida,
sem ninguém acionar a corda, o sino da igreja soltou algumas nítidas
badaladas.
A luz elétrica tremeu e apagou. Demorou horas para voltar.
Para confirmar que não se tratava de alucinação do grupo e, além disso, conferir ao episódio dramaticidade à altura da sua importância,
logo a rua se encheu de gente.
Quem estava embriagado, pareceu ficar bom de repente. Os que soltavam fogos, suspenderam a algazarra. As pessoas saíam assustadíssimas de dentro das casas, procurando confirmação e notícias sobre
a extensão do sismo. Buscavam, também, a segurança e solidariedade
que o compartilhamento dos sustos e tragédias proporciona. Cada
qual correu do jeito que estava, muitos homens de cuecas, as mulheres desprevenidas nos seus vestidos frouxos de usar em casa. Diversas
mocinhas estavam seminuas, vestindo apenas camisolinhas, ou melhor ainda, somente de calcinha e sutiã.
Se todo mal traz um bem, o terremoto serviu para suspender imediatamente as comemorações pelo golpe. E o melhor de tudo: a belíssima Ana Amarília, maravilha das maravilhas femininas, também saiu
de dentro de casa. Prova indiscutível da existência de Deus, segundo
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verso de um inspirado poeta local, Ana era a mulher mais linda e mais
gostosa da cidade. Excluindo-se os muitos eventos do calendário festivo da cidade, ela era a maior atração turística. Vinha gente de longe
apenas para contemplar a sua beleza, nas entradas ou saídas das aulas
do Colégio do Amparo.
Mas Ana Amarília não saiu de casa como sempre fazia. Dessa vez foi
totalmente especial. Estava ela, de repente, no meio da rua, nua como
veio ao mundo. O tremor a surpreendeu tomando um banho de cuia.
Correu apavorada, com as telhas do banheiro despencando. Trazia o
corpo cor de lírio inteiramente à mostra, os peitinhos maravilhosos
empinados na direção da linha do horizonte. Isso, com certeza, o beato não tinha previsto.
No meio da confusão generalizada, aquela imagem de deusa grega, envolta no manto difuso da noite sem lua, ficou para sempre na memória
dos felizardos que conseguiram se aproximar o suficiente para ver.
Em pouco tempo, Ana já tinha o seu corpo perfeito envolto num lençol; não demorou e lhe arranjaram um vestido composto. Quem viu,
viu. Quem não viu, perdeu; não enxergará a perfeição nunca mais.
Ninguém dormiu naquela noite. Nunca os Tetéus tiveram tantas
companhias. Cada homem, mulher ou criança tinha sua história para
contar. A cama que tremeu, as telhas que caíram, a cisterna que rachou, o móvel que desabou.
Os feridos foram atendidos na emergência do hospital ou no posto de
saúde. Pernas quebradas, braços machucados, pancadas na cabeça,
coisas assim. Ninguém morreu, e provavelmente ninguém morreria,
se o coração de Janjão Marceneiro, que já vinha bastante baqueado,
não tivesse aproveitado o susto e parado de vez.
Restaram nas ruas, entretanto, o temor e a perplexidade. Desde o último eclipse total do Sol, não se sentia tanto medo no ar. Por volta da
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meia-noite, começaram os relâmpagos e trovões típicos da chegada
do inverno. Assim que o galo cantou, uma chuva forte, verdadeira
tempestade, começou a cair.
A cada minuto aumentava o número dos que lembravam as profecias
do beato. Um arrepio, facilitado pelo frio da madrugada, tomava conta de todas as espinhas dorsais.
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Capítulo 5
Hora de juntar os cacos
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Quando a chuva começou a cair, as pessoas que
estavam na rua tiveram que fazer a difícil opção entre ficar ao relento,
se encharcando, ou voltar para as suas casas.
Além do medo de desabamentos ou de um novo terremoto, muitos
telhados, principalmente das residências mais humildes, estavam
comprometidos. O tremor quebrara ou simplesmente deslocara telhas de modo que goteira era o que não faltava.
Boi Pintado não era uma cidade isolada do mundo, perdida no tempo
e no espaço. Longe disso. A estrada para o Recife estava em boa parte
asfaltada, faltavam uns pedaços mais difíceis e a conclusão de algumas pontes, por isso o último trecho ainda tinha que ser feito pela
estrada antiga. Além do telégrafo e três ou quatro radioamadores, a
cidade dispunha de comunicação telefônica, através do sistema então
chamado de micro-ondas. Quando queriam uma ligação interurbana, as noventa e nove pessoas que tinham telefone em casa chamavam a operadora e esperavam que a ligação fosse completada. Logo
que o sistema foi restabelecido, aí por volta das 10 da noite, só não
choveram ligações para o Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e
outras cidades porque, devido ao golpe militar, o sistema estava lento
e congestionado. Mesmo assim, um ou outro felizardo conseguiu o
contato pretendido, de modo que a notícia do terremoto chegou aos
meios de comunicação.
O Jornal da Meia Noite, da Rádio Clube de Pernambuco, noticiou o
tremor, ressaltando que era um caso isolado, embora tenha sido timidamente constatado em outras localidades próximas e até mesmo
no Recife, mas sem causar maiores sobressaltos. Um especialista deu
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[ 5 ] Hora de juntar os cacos
uma declaração acalmando a população, tratava-se provavelmente de
uma acomodação localizada de camadas geológicas, nada que implicasse em maiores ameaças. Os ativos correspondentes locais do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco conseguiram enviar a
notícia pelo telégrafo, de modo que nas edições da manhã o pequeno
abalo sem maiores consequências estava noticiado, nestes termos:
É verdade que o Brasil parecia até então livre de terremotos e vulcões,
apesar dos famosos estrondos que ocorriam periodicamente em Caruaru, vindos do miolo do Morro do Bom Jesus. Eram barulhos assustadores, que inicialmente deixaram a população em pânico. Depois
todo mundo se acostumou. Ficou na conta de comemorações juninas
da natureza. Depois foi descoberto que os Estados do Rio Grande do
Norte e de Minas Gerais também sofriam esse tipo de pequenos abalos,
mas o de Boi Pintado ficou na história sismológica brasileira como o
primeiro registrado, documentado e posteriormente estudado.
Quando o dia amanheceu, ficou evidente que o maior estrago, além
dos telhados desarrumados e alguns poucos desabamentos, geralmente de banheiros externos ou puxadinhos mal construídos, havia
acontecido na torre da igreja nova. O monumento apresentava uma
fenda de cima a baixo na parede lateral. Exatamente aquela que dava
sombra aos Tetéus nos cochilos de depois do almoço. O mais grave
porém foi que a enorme cruz que ficava plantada no topo do monumento caiu. Tombou para dentro da igreja, esbagaçando parte do
telhado, arrombando o forro e desabando em cima da estátua que
descansava numa vitrine o ano inteiro e só era utilizada na Sexta-Feira da Paixão, na procissão do Senhor Morto.
A matriz castigada pelo sismo foi projetada visando ser a maior e mais
notável obra do monsenhor Afonso. O empreendedor vigário, licenciado do posto porque já se encontrava no exercício do mandato de
deputado estadual, era responsável por importantes obras que mudaram o perfil de Boi Pintado. Lastreado por essas realizações, inventou
de pôr abaixo a acolhedora e histórica matriz, dedicada a São José, a
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partir da qual, como normalmente acontece com todas as localidades
nordestinas, a cidade cresceu. A construção foi feita no mesmo lugar,
mas em posição diferente e ocupando uma área muitas vezes maior.
O objetivo secreto do monsenhor, ao erigir outro templo, moderníssimo e amplo, era chamar a atenção e concorrer diretamente com a
Catedral de Brasília, havia pouco inaugurada. Imagine que a igreja
ocupava uma área muitas vezes maior que a Sé de Olinda. No lugar
de janelas, ostentava coloridos vitrais, nunca vistos por aquelas bandas. De dia, brilhavam para dentro, de noite para fora, uma beleza.
Segundo se dizia, o velho sino reaproveitado deveria, em breve, ser
substituído por um carrilhão tão mavioso que só tinha parelha na
Europa.
Nordestino, como se sabe, tem mania de bravatear seus feitos. Certamente para compensar um certo ressentimento com a perda da condição de centro econômico e político do País, acontecido ainda nos
tempos de D. Pedro Cipó Pau, tudo tem que ser o melhor e o maior.
Assim, acontece no Recife o Galo da Madrugada, indiscutivelmente
o maior bloco de Carnaval do mundo, que arrasta mais gente para as
ruas estreitas do centro do que a população fixa da cidade. Caruaru
e Campina Grande disputam o título de maior e melhor São João do
Universo. Boi Pintado tem a melhor vaquejada do planeta. A mais importante corrida de jumentos é em Panelas. E por aí vai.
Recentemente, a região conquistou em anos consecutivos o inédito
galardão de maior torcida da quarta e da terceira divisões de futebol
de qualquer planeta em que se jogue bola. O responsável pelo feito é
o glorioso e centenário Santa Cruz Futebol Clube, o querido do povo,
o terror dos gramados do Nordeste, um time que na ditadura proclamou as Repúblicas Independentes do Arruda, bairro recifense onde
se encontram suas dependências e seu monumental estádio.
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[ 5 ] Hora de juntar os cacos
A nova matriz foi construída em tempo recorde. Nessa pressa talvez
esteja a origem da rachadura, que é outra confirmação de que o beato
Elias não profetizara em vão no dia de São José. A verdadeira causa
da fratura talvez jamais seja revelada. Os laudos técnicos elaborados
por uma equipe do CREA convocada pelo monsenhor foram mantidos a sete chaves. Ninguém sabe onde foram parar, talvez um dia
se descubra em alguma caixa empoeirada nos arquivos da paróquia.
Espalhou-se o inevitável boato de que a torre poderia desabar a qualquer momento. Caso uma calamidade dessas acontecesse, seria uma
tragédia devastadora, capaz de destruir praticamente todo o centro
da cidade. Se fosse num dia de feira, causaria centenas de vítimas.
Por isso, o monsenhor e os outros padres, mais as freiras do Colégio,
os maristas do ginásio, as freiras do hospital, as filhas de Maria, os
congregados marianos e até as crianças do catecismo formaram uma
corrente que nos dias seguintes tratou de tranquilizar a população.
Em todas as missas, salas de aula, atendimento hospitalar, era repetida a cantilena para acalmar o povo.
Além do medo natural, o monsenhor devia satisfação à sociedade. O
dinheiro para a obra foi arrecadado através dos mais diversos tipos de
promoção. Bingos, rifas, quermesses, prendas e principalmente doações. A maioria desses adjutórios era obtida através do que Cumpade
Deca chamou de livre e espontânea coação a que eram submetidas as
pessoas ricas ou remediadas.
Se o sujeito não queria comprar um brindezinho ou uma relíquia,
bastava um olhar do monsenhor Afonso para o fiel lembrar de segredos espontaneamente revelados no confessionário nas horas em que
a consciência apertava. Se o arrependimento pelos pecados cometidos é sempre possível, voltar atrás em inconfidências cometidas ao pé
do ouvido é totalmente inútil. Mesmo com o tal segredo de confissão,
é melhor não vacilar. Como bem diz o povão, em frenteira de padre e
trazeira de burro não se pode confiar.
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Antes mesmo da inauguração, choveram críticas ao monumento. O
padre era da União Democrática Nacional, a direitista e modernosa UDN. O povo do PSD, o partido rival, acusava o uso político da
construção para angariar votos. Estava claro para muitos que o monsenhor erigia a segunda maior igreja do Brasil, menor apenas que a de
Aparecida do Norte, para sua própria glória. É que mais do que ser
governador do estado ou presidente da República, o que ele sonhava
mesmo era em alcançar o bispado. E, ganhando o direito a usar a mitra, sua gloriosa catedral já estaria pronta.
Acusavam a insensibilidade demonstrada para com o patrimônio histórico e desfiguração urbanística da cidade. Muitas casas típicas do lugar foram derrubadas e a igreja mudou de posição, de modo que a praça
principal, que em todo canto fica em frente à matriz, em Boi Pintado
passou a ficar de lado. Especialmente, choviam impropérios relativos
à construção da torre, quadrada, desproporcional na largura e altura.
Os adversários ironizavam dizendo que a torre era uma base disfarçada para lançamento de foguetes. O padre pretenderia ingressar na
corrida espacial e remeter um artefato rumo à Lua primeiro que os
americanos e soviéticos. Outros falavam que o monsenhor construiria uma nova Torre de Babel, único meio de, ele próprio, alcançar os
jardins do Criador.
Na verdade, o despeito era grande. O monumento foi inaugurado
com a presença de políticos e autoridades, até o embaixador do papa,
o núncio apostólico quase compareceu. O quase fica por conta do
que descreveremos agora.
Nunca uma autoridade eclesiástica de tão alto escalão tinha respirado aqueles ares. O pessoal do monsenhor exagerou na propaganda
da importância do prelado, descrito como um vice-papa, também
inspirado pelo Espírito Santo e seu representante terreno na solene
inauguração. Era Deus no céu, o papa em Roma e o núncio no Brasil.
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[ 5 ] Hora de juntar os cacos
De caso pensado, espalharam o boato de que quem conseguisse tocar nele ou ser atingido pela água benta que espargiria no seu percurso pelas ruas teria os pecados perdoados. O resultado é que uma
multidão nunca vista nem nos comícios de encerramento de campanha eleitoral o esperou na entrada da cidade. Quando chegou e foi
subir no carro aberto, um jipe de praça pintado e decorado com as
insígnias papais, ninguém quis esperar. Com a volúpia de quem tinha
a certeza de que a garantia do reino eterno estava ao seu alcance, a
multidão alucinada avançou. Atropelando quem estivesse na frente,
a massa, gritando feito índios em filme de faroeste, partiu para cima
do núncio. Velhos, mulheres e principalmente crianças foram pisoteadas sem dó.
O ilustre prelado quase foi esmagado pelo populacho, escapou por
pouco. O percurso até a matriz foi cancelado. O núncio ficou tão assustado, além de amassado e escoriado que, quando conseguiu entrar
no Aero Willis que o trouxera, deu meia-volta e deixou a multidão a
ver navios. O trauma persistia. Por isso, quando surgiu a história do
julgamento, e ele teve que entrar no circuito diplomático, seu maior
pavor era receber uma ordem do papa para voltar a Boi Pintado.
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Quem já viu vaca voar?
No dia de ressaca que se seguiu àquele inesquecível primeiro de abril,
a maioria das famílias se ocupou na recomposição dos estragos, em
arrumar a casa e, principalmente, consertar seus telhados. A chuva da
madrugada era daquelas que não deixavam dúvida de que o inverno
veio para pegar de vez. Para felicidade geral, não caiu água naquele dia;
foi a primeira vez em todo o interior do Nordeste que as orações eram
para adiar a chuva.
A população metropolitana, do mundo inteiro, acha que estresse é privilégio de quem mora nas grandes cidades. É porque não sabem nem
têm a menor ideia de como sofre quem depende dos humores da natureza para sobreviver. Os moradores do campo, naquela época, sujeitavam-se quase que totalmente à regularidade das chuvas. Bastava um
pingueiro fora de época ou um atraso na continuidade do inverno para
safras inteiras se perderem, pastagens crescerem insuficientes para sustentar os rebanhos. Quem vive na cidade reclamando do trânsito e da
poluição acha a vida campestre paradisíaca. Não tem a mais leve noção
do sofrimento de um agricultor com o olhar perdido no infinito esperando um sinal de chuva. Isso sim é estresse sem remédio. Envelhece,
adoece e mata.
A capacidade daquele primeiro de abril causar impactos e repercussões parecia inesgotável. Quando o dia amanheceu, outra coisa chamou a atenção e provocou rebuliço. No telhado da modesta casa de
seu Nem, na Chã do Marinheiro, havia simplesmente uma vaca.
O que a família e os vizinhos relatavam é que, logo depois da chuva
começar, ouviu-se outro grande estrondo, dessa vez na casa de seu
Nem. Todos tinham se recolhido para dormir na parte de trás da moradia, onde as goteiras eram poucas. Acordados pelo barulho, tiveram
no primeiro momento dificuldade para entender o que tinha acontecido na sala. Alguma coisa caíra do céu, provocara um grande estrago,
mas ainda estava no telhado. Era um ente vivo e se bulia. Além disso,
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[ 5 ] Hora de juntar os cacos
berrava como uma vaca. Com a luz do sol, ficou constatado: era mesmo uma vaca holandesa, das grandes.
Como chegou até ali? Aparentemente, veio voando pelos ares e desceu no telhado da casa de seu Nem. Apesar de modesto enfermeiro
e líder comunitário, o personagem era daqueles homens prevenidos.
Sua casa tinha paredes fortes, ripas e caibros de primeira qualidade.
Desse modo, a vaca enfiou violentamente as patas nas telhas, mas parou na cumeeira.
A notícia tinha estatura para concorrer com a penca de informações
de todos os tipos que circulavam na região. Logo se espalhou. Apesar
das ocupações e preocupações do dia, não demorou a juntar gente
para assistir ao espetáculo inédito. Em pouco tempo, pessoas dos distritos, das localidades próximas e até de cidades distantes que não sofreram os efeitos do terremoto e, portanto, não tinham telhado para
consertar, também chegaram para conferir. Aproveitavam o clima de
feriado que o País inteiro vivia em decorrência do golpe.
O pior é que ninguém sabia como tirar a vaca dali. Um veterinário
atestou que o animal não sofrera danos físicos, mas precisava de água
e alimento. Desse modo, foi improvisado um cocho no telhado de seu
Nem, o que só aumentou a curiosidade geral. Onde já se viu cocho
em teto de residência nenhuma, e ainda mais sendo utilizado? Essa
era demais.
Souza Pepeu, jornalista de primeira e representante do Diário da Noite
em Caruaru soube da confusão. Com o seu faro jornalístico, percebeu
que ali estava uma matéria inédita. Convocou Pissica, um fotógrafo experiente, e mandou-se para Boi Pintado. No dia seguinte, o Diário da
Noite publicou a reportagem e o editor teve a sensibilidade de perceber
que, no meio da confusão institucional, a vaca no telhado era a grande
opção para atrair os leitores e amenizar o noticiário. Deu destaque ao
retrato, a vaca além de tudo era fotogênica. Foi um sucesso. Os jornais
do Sul também se interessaram pelo tema, virou assunto nacional.
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A cada dia, Pepeu e, àquelas alturas, outros repórteres acompanhavam
o dia a dia da vaca no telhado, concorrendo com as notícias políticas. A
cobertura das desventuras da vaca e da família de seu Nem atenuou o clima geral de desconforto e medo que o golpe provocava no País inteiro.
Até que quase uma semana depois providenciaram um guindaste vindo
do Recife. Foi uma operação complicada, que perturbou o trânsito na
parte já asfaltada da rodovia e exigiu o alargamento de vias secundárias
para que a máquina pudesse chegar ao local. Finalmente, com muita dificuldade, a vaca foi resgatada sã e salva. Pepeu e Pissica ganharam com a
série de reportagens, o maior prêmio de jornalismo do Brasil.
Ninguém se preocupou em achar uma explicação razoável para a causa do fato exótico. Em Pernambuco não era inédito boi voar. Aconteceu pela primeira vez na época do domínio holandês, quando o governante era Maurício de Nassau. Mas, nesse caso histórico, tratou-se de
uma brincadeira. O tal boi de Nassau não era um animal vivo, apenas
um couro de boi preenchido com capim e ar. Realmente, voava sobre a
ponte que o conde construiu no Recife e que até hoje, reformada, está
no mesmo local e leva o seu nome. O tal boi atravessava a ponte pelo
alto batendo as patas quando era acionada uma roldana.
O mais plausível para o que provocou o fato exótico de uma vaca caindo do céu é que o animal estivesse pastando no alto de um serrote.
Com a tempestade, a grama ficou escorregadia. A dita cuja por algum
motivo tentou correr, escorregou monte abaixo e foi projetada no ar,
como um voo de asa delta. Acabou por cair adiante, em cima da casa
de seu Nem, que ficava perto.
De qualquer modo, quando tudo serenou, o dono da casa teve que
lançar mão de suas minguadas reservas para consertar a casa, ninguém
se mexeu para ajudá-lo. Não se aborreceu. Incorporou o apelido de
Nem da Vaca. Aproveitou bem seus minutos de fama. Na eleição seguinte conseguiu o sonho de ser eleito vereador.
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[ 5 ] Hora de juntar os cacos
Coragem para reagir
Apesar do tumulto institucional instalado no País, as autoridades não
dormiram no ponto e deram prioridade à explicação das causas do
terremoto. O abalo sísmico aconteceu em data muito inoportuna. Influenciáveis como são os nordestinos e as pessoas menos esclarecidas
de outras regiões do País, podiam acabar associando o evento ao golpe, na linha de pensamento do beato Elias. Era necessário um completo esclarecimento com aval técnico inquestionável.
Dessa forma, antes do meio dia chegaram escoltados por uma patrulha do Exército diversos técnicos da SUDENE e das Universidades
Federal e Rural, além de alguns sismógrafos vindos às pressas do Sul
do País em aviões da FAB. Em entrevista a Jota França, vibrante repórter-proprietário da Rádio Surubim, aquela que era reproduzida
através das cornetas de alto-falante pregadas nos postes, os técnicos
trataram de tranquilizar a população. Garantiram que o fenômeno não
se repetiria, todos podiam ficar seguros em suas residências, seguir a
vida normalmente. O povo ouviu, mas continuou meio cabreiro, pelo
menos por alguns dias.
Na edição da noite, no rádio e na televisão, o Repórter Esso, que só divulgava notícias pela ótica do interesse do patrocinador ou, agora, do
governo, leu uma nota oficial falando em leve tremor passageiro e pontual, dando o assunto por encerrado. Foi um recado para a imprensa.
O tema, ao contrário do caso da vaca, sumiu dos noticiários.
Durante dias os técnicos continuaram por ali escavacando o chão em
busca de pistas sobre o abalo. Descobriram pelo menos que o estrondo que antecedeu o tremor não tinha nada a ver com a geologia do
lugar. Tratou-se de uma explosão mal conduzida pelo grupo empresarial que explorava calcário nas imediações. Na tentativa de remover
uma enorme pedra que atrapalhava o prosseguimento dos trabalhos,
erraram na dose da dinamite. Vários operários estouraram os ouvidos
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e foram transportados para o hospital de Limoeiro e depois para o Recife. Alguns ficaram moucos para sempre.
Os técnicos divulgaram essa informação de um jeito que ficou parecendo que a remoção da pedra causou o tremor, o que de certo modo
tranquilizava todo mundo.
O enterro do marceneiro que morreu do coração durante a noite não
teve o público que era de se esperar. Apenas a família e uns poucos
amigos compareceram, estava todo mundo ocupado com seus próprios problemas.
A noite do dia 2 de abril foi de sono para a maioria e de reuniões
para alguns.
Os comunistas, por exemplo, se juntaram na casa do telegrafista e decidiram aguardar os comandos do partido. Os mais velhos defendiam
que ficassem quietos esperando a tempestade passar. Os jovens não se
conformavam com a passividade, queriam agir, mas como? Esse era
o problema. De qualquer modo, aquela noite plantou as sementes de
uma irremediável cisão etária no Partidão de Boi Pintado.
Ainda durante a reunião, os jovens trocavam olhares significativos
entre si. Não disseram nada, cada qual saiu aparentemente para o seu
canto, mas voltaram a se reunir menos de uma hora depois nas dependências do antigo motor de luz. Um deles era o encarregado de zelar
pelo prédio e, naturalmente, tinha a chave. Combinaram que não iam
revelar nada para os companheiros mais antigos, apenas pediriam desligamento. Porém a decisão era se prepararem para a ação. Na cabeça
deles não tinha sentido cruzarem os braços e marcharem passivamente para o matadouro enquanto a direita se apossava do poder. O racha
estava consumado.
Nascia ali o grupo que ficou conhecido como os Fantasmas Vermelhos, que várias estripulias iria aprontar em Boi Pintado. Antecipe-se
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que esse nome de grande efeito de marketing não foi pensado por nenhum deles. Breve saberemos de onde veio.
O brizolista Grupo dos 11 reuniu oito dos seus membros naquela noite. Os outros desertaram para sempre. Precisavam confirmar se a fuga
de Brizola era real ou notícia falsa dos golpistas. De qualquer modo,
embora não estivessem prontos para nenhum enfrentamento imediato, mantinham a filosofia da corrente, que era criar núcleos de resistência País afora. Se foram surpreendidos no primeiro momento, teriam
que esperar o rumo dos acontecimentos se aprontando para reagir.
Esse grupo, com o passar do tempo, conseguiu se comunicar com outros brizolistas. Do exterior, Brizola viria a articular a instalação de focos guerrilheiros, financiados com dinheiro vindo de Cuba, segundo
consta. O pessoal de Boi Pintado arrecadou algumas armas e se dirigiu
para a Serra da Mata Virgem, onde constituiu um núcleo de combate
inspirado no que Fidel Castro e Che Guevara fizeram em Sierra Maestra e os próprios brizolistas implantaram na Serra de Caparaó, sem
muito futuro, em ambos os casos. Nem o Brasil era Cuba nem os militares brasileiros eram do naipe de Fulgêncio Batista, o sargento que
virou ditador e foi deposto por Fidel e Che Guevara.
Esse glorioso, embora apenas simbólico, núcleo guerrilheiro da Mata
Virgem, é apenas mais uma demonstração de que nem todo mundo
botou o rabo entre as pernas e ficou inerte diante da ditadura, dando
a cara a bofete. O grupo mais tarde se dispersou, invicto. Conseguiu
escapar de todas as batidas que seriam promovidas pelas tais milícias
que descreveremos mais adiante. Alguns desistiram, outros aderiram
a organizações armadas que enfrentavam a ditadura.
A delicada discussão acerca dos limites que deveriam ser adotados na
reação ao regime militar provoca até hoje debates, cizânias e mal-estar,
inclusive entre os que pegaram em armas.
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Algumas pessoas que tiveram comportamento heroico, arriscaram
suas vidas em ações de guerrilha urbana ou rural, vêm melancolicamente a público dizer que estavam equivocadas, e até pior, em alguns
casos mostram arrependimento pelos seus atos. Só faltaram pedir perdão aos milicos.
Isso acontece desde os anos 60 e lamentavelmente continua se repetindo. Pelo menos mais um guerrilheiro importante já fez mea-culpa
em pleno ano de 2014. O mais incrível é que isso ocorre com pessoas
sérias e respeitáveis. E num momento em que nenhum benefício pessoal podem tirar dessa penitência infeliz. Difícil entender.
Quem quebrou a legalidade foram os militares. Eles é que saíram, com
seus apoiadores e incentivadores já mencionados, prendendo, torturando, matando, exilando, demitindo, cassando, perseguindo, ameaçando pessoas que pensavam de forma diferente.
Durante a ditadura, um comício em porta de fábrica ou a distribuição de panfletos criticando o governo ou seus aliados era um ato de
resistência que tinha que ser protegido através de armas na mão. Se
alguém fosse capturado nessa situação, corria o risco de ser, além de
preso, torturado ou até morto.
Assim, a luta armada que se organizou contra o regime, principalmente depois do endurecimento do AI-5, não se limitava a ações de guerrilha urbana e rural. Qualquer ato de livre manifestação do pensamento
só teria um mínimo de segurança se tivesse proteção armada.
Para defender uma ideia no meio da rua ou porta de fábrica, era preciso pegar em armas. Tanto quanto para expropriar armamento e munição de um quartel ou sequestrar um embaixador.
Além do mais, os atos guerrilheiros da luta armada cumpriram o papel de manter sob tensão o regime militar e obrigar os gorilas a mostrar sua verdadeira face. Custaram um preço alto? Claro. Muitas vidas
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foram sacrificadas? Sim. Esse é o preço que se paga para fazer a História acontecer.
O mesmo preço que pagaram os adeptos de Spártacus, os camponeses revoltados nas guerras religiosas da Europa, os integrantes de rebeliões libertárias no mundo inteiro. Entre nós, os seguidores de Zumbi
dos Palmares, as lideranças farroupilhas, os escravos revoltados na
Bahia, os líderes da Balaiada, da Sabinada, da Conjuração Mineira, da
Revolução Pernambucana de 1817, da Confederação do Equador, da
Revolução Praieira. O que seria dos nossos livros de história sem esses
movimentos que pegaram em armas contra a tirania?
Esse preço, que serve de argumento para fundamentar um suposto
erro de quem pegou em armas contra a ditadura, foi pago por Filipe
dos Santos, Tiradentes, Frei Caneca, Manoel Lisboa e tantos outros
heróis e mártires do povo brasileiro. Sem eles, sem o seu quixotismo
posto em prática, sem a disposição de ir às últimas consequências,
nossa nacionalidade seria muito mais pobre.
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Quem jogou a primeira pedra
A luta armada nada teve a ver com a instalação e o recrudescimento
do regime. Na verdade, o que serviu de estopim para o golpe foi um
discurso do presidente Jango, na Central do Brasil, do Rio de Janeiro,
propondo reformas de base para o País. Reformas, não revolução.
E o motivo alegado para o AI-5, que escancarou abertamente o que a
ditadura já fazia por debaixo dos panos, foi simplesmente um discurso do deputado Márcio Moreira Alves criticando o regime.
O argumento de que a luta armada endureceu o regime não procede. O direito à resistência à tirania pelas armas é reconhecido até
pelos pensadores iluministas, autores dos livros clássicos sobre o
pensamento liberal. Muitas prisões, exílios e execuções não se deram por causa de armas, e sim de ideias. Pelópidas Silveira, Paulo Cavalcanti, Celso Furtado, Miguel Arraes, Fernando Henrique
Cardoso e muitos outros, até onde se sabe, nunca empunharam armas. Rubens Paiva e Vladimir Herzog, algumas das vítimas fatais
da ditadura, também não. Nem por isso tiveram destino diferente
de guerrilheiros como Ramires Maranhão, Stuart Angel, Emmanuel Bezerra, Mata Machado e centenas de outros que tombaram
no enfrentamento armado à ditadura.
Quem acha que a História também é construída a partir de princípios e atitudes lamenta o comportamento equivocado e inútil daqueles que abjuram gratuitamente a coragem que tiveram de pegar em
armas contra a tirania. Abrem mão do que certamente constituiu o
momento mais sublime de suas fugazes existências.
Naquela noite de reagrupamento e avaliações, a direção local das Ligas Camponesas fez sua reunião à luz de candeeiro na casa de Zequinha. Aparentado com o grande líder Juliano, morava na fazenda
Cova da Onça, a poucos quilômetros da cidade. Como os demais grupos, sentiam grande carência de informações confiáveis, subsídios e
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orientações. Ficou claro que já naquele momento inicial havia duas
tendências entre eles: uma pendia para aceitar o golpe como fato
consumado e aguardar para retomar a luta dentro das novas regras a
serem estabelecidas. Outra preferia o caminho da resistência direta e
sem burocracia.
Os argumentos pró e contra a resistência armada já estavam efervescendo no interior dos grupos de oposição à ditadura desde o primeiro
momento.
A única unanimidade da noite ocorreu com os Tetéus: mais uma vez
se encontraram na casa de Cumpade Deca, o único que morava sozinho. Depois da morte da mãe, seu pai vendera quase todos os bens e
se mudara com a família para as bandas de Alagoas. Deca ficou. Não
tinha meio de vida definido, sobrevivia negociando uma coisa aqui,
outra acolá.
Antes de começarem a discutir coisas sérias, colocaram Cumpade na
berlinda. É que no começo do ano o indigitado elemento sofrera um
acidente meio raro e esquisito durante uma caçada. Ele mesmo, com
a assessoria das habilidades armamentistas de Dito Carneiro, cujo
pai tinha uma das maiores madeireiras da região, construiu umas
combleias, que são um tipo de garruchas precárias para matar passarinho. As armas, feitas com cano de cabo de guarda chuva e utilizando outros materiais de terceira, não mereciam a menor confiança. No
primeiro teste não deu outra: a arma desculatrou, como se falava. Ou
seja, o tiro saiu para trás.
Como o atirador, desconfiado do seu artefato, disparou com o braço
estendido para a lateral, sofreu poucos danos, apenas ferimentos na
própria mão. Já Cumpade, que estava apreciando a experiência por
trás, recebeu muitos estilhaços na altura da coxa, na barriga, nos testículos e no próprio pênis.
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Teve que passar por uma cirurgia que durou horas. Dr. Hidelbrando
deu tudo de si para restaurar Cumpade. Passou mais de um mês no
hospital, em tratamento severo. E quando teve alta, a boataria tinha
tomado conta da cidade: o seu respeitável cacete, o único que na região fazia sombra ao de Alagoano, um comerciante que tinha o maior
já visto ou imaginado, comparável ao de um jumento pouco dotado,
teria ficado irremediavelmente comprometido.
Deca só estancou o disse me disse a esse respeito quando, numa memorável farra no cabaré de Maria Maga, fez uma exibição de virilidade para ninguém botar defeito. Apesar do membro ainda ostentar visíveis marquinhas de chumbo, comprovando que fora mesmo
atingido, comeu três raparigas na mesma noite, no meio do salão. E
terminou a noitada de pau duro: Tem vaga pra mais, quem se habilita? Naquele tempo não existia Viagra nem qualquer outro aditivo
químico para ampliar o tesão. Todo reforço possível se limitava ao
consumo de ovos de codorna ou chás de catuaba ou bigorna.
Mas de qualquer modo, Cumpade andava mesmo meio estranho depois do acidente. Duas ou três vezes na semana, com uma desculpa
ou outra, ou mesmo sem desculpa nenhuma, desaparecia aí pelas 22
horas e só reaparecia depois da meia-noite, algumas vezes até nem
voltava. Levou falta ontem, diziam então os Tetéus. Bem que tentaram segui-lo, sem sucesso. Cumpade era safo, despistava qualquer
investigador de meia-tigela. Esgueirava-se pelos becos, ganhava os
matos não iluminados e sumia. Por mais que insistisse, ninguém,
nem Továrish Lói, seu fiel companheiro para o que desse e viesse,
conseguia arrancar uma pista sequer.
Aquela foi uma dessas noites. A conversa começou cedo, lá pelas 21
horas estava Cumpade apressando a turma. Vamos logo resolver o que
tem que ser resolvido que hoje a noite é d’água. Vê se isso é argumento
que se preze.
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Reiteraram a conversa da noite anterior. Decidiram esperar o mais
discretamente possível a marcha dos acontecimentos antes de botar
as mangas de fora. E todos, menos Cumpade Deca, que ficou em casa,
mas logo pulou o muro do quintal e se escafedeu no oco da escuridão,
foram dormir cedo.
Estavam exaustos.
Até as aves noturnas precisam descansar durante o expediente, às
vezes.
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Capítulo 6
Um xerife aloprado
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Nos dias seguintes ao golpe, a situação do País
foi ficando mais definida, as pessoas começaram a perceber o que realmente se passava.
Depois de alguns dias de discussões e grandes desentendimentos, os
militares chegaram à conclusão de que o marechal era o melhor nome
para ocupar a Presidência. Fizeram uma eleição de faz de conta no
Congresso, mutilado e ameaçado. E assim o novo regime começou a
tomar cara e forma.
Governadores e políticos que defendiam a legalidade resistiram moralmente e foram cassados ou simplesmente aderiram ao novo regime.
Era um verdadeiro trem da alegria de adesismo. Muitos legalistas foram se curvando ao fato consumado. Os que insistiam em permanecer
fiéis à Constituição, em qualquer nicho de poder, eram cassados, presos, perseguidos. O que aconteceu na SUDENE é um bom exemplo:
o superintendente, Celso Furtado, o seu imediato, Chico Oliveira, e
mais um grupo de técnicos do melhor nível foram afastados, presos,
exilados. Quem tinha algum destaque e não se dobrava, na maioria
dos casos, ia parar na prisão ou no exílio.
Nesse sentido, as notícias que circulavam eram aterradoras. Milhares
de presos entulhavam as unidades militares e, por falta de espaço, improvisavam-se campos de concentração. Navios sucateados sofriam
adaptações e se transformavam em presídios. As violentas torturas
tornaram-se instrumento normal de investigação, castigo ou vingança.
Fatos brutais, como o suplício do valente líder comunista Gregório
Bezerra, escandalizavam os espíritos mais sensíveis. Amarrado em um
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[ 6 ] Um xerife aloprado
jipe do Exército, dirigido por um hidrófobo coronel direitista, foi arrastado pelas bucólicas ruas do aristocrático bairro de Casa Forte, no
Recife, até que seu corpo ficasse em carne viva.
Só para assinalar como caminha a humanidade: Gregório sobreviveu.
Ficou preso alguns anos até ser trocado por um embaixador estrangeiro sequestrado por heroicos guerrilheiros. Foi para o exílio e retornou
ao Brasil depois da Anistia. Ganhou de um poeta a denominação de
Homem feito de Ferro e Flor. É um dos grandes brasileiros; sua memória é um orgulho para o País. O nome do seu algoz, todos fazem
questão de esquecer. Faz parte do pior lixo da História. Seus descendentes sentem vergonha dele. Seria melhor nunca ter existido.
Com a fuga das principais lideranças legalistas, o País ficou entregue
aos militares golpistas e seus aliados.
Em Pernambuco, com a prisão e deposição do governador Arraes, o
vice-governador assumiu o governo e tratou de organizar a administração. Sua estratégia era imprimir um clima de normalidade à máquina pública o mais rápido possível, de modo que, além de se deparar
com o fato consumado, as pessoas sentissem um rumo seguro na administração. Desse modo, a tradicional Exposição de Animais de Boi
Pintado, programada para meados de abril, foi mantida no calendário.
Existia à época uma figura pitoresca que a maioria das pessoas que
o conhecia não conseguia entender direito o que representava. Para
alguns, não passava de um maluco. Para outros, era um agente internacional, tipo um espião que monitorava os latifundiários do Estado.
Também havia quem achasse que o homem era um agente ostensivo
do Exército para acompanhar os passos de burocratas e políticos.
Vestia-se de modo extravagante com uma espécie de farda de gala
verde-oliva. O quepe, ornamentado fora dos padrões militares, tanto
podia ser de um marechal como do comandante da Nau Catarineta.
Ostentava, pendurada no pescoço, uma vistosa comenda. Parecia até
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com a Ordem Suprema do Cruzeiro do Sul, a maior condecoração
concedida pelo governo brasileiro. A mesma outorgada pelo ex-presidente Jânio Quadros ao guerrilheiro Che Guevara, fato tão marcante e
polêmico que, segundo dizem, acionou a poderosa atuação das forças
ocultas que provocaram a renúncia de Jânio.
A personalidade também portava no peito dezenas de medalhas dos
mais diversos tipos e formatos, além de uma brilhante e vistosa estrela
que todos conheciam dos filmes de faroeste, justificando o título que
ostentava, exigia e que transformou-se na única forma da maioria se
referir a ele: xerife. Apesar de alto e forte, andava quase envergado com
o peso das medalhas e condecorações.
Vista de longe, sua casaca bem que parecia com o estandarte do famoso bloco carnavalesco O Cachorro do Homem do Miúdo. Em todas as exposições de animais ele estava presente. Diziam que também
em outros eventos governamentais chegava, hospedava-se por conta
da Secretaria de Agricultura, ficava observando. Apesar da expressão
severa que sempre carregava e de não dar prosa a ninguém, era impossível sua figura passar desapercebida. Com sua inseparável tabica
na mão direita, circulava entre as baias, acompanhava o julgamento,
fiscalizava os bares. Quando abria a boca, era para xingar os comunistas e esquerdistas em geral, os ladrões do dinheiro público e ameaçar
qualquer pessoa cuja prosa não lhe agradasse. Podia ser quem fosse.
Rico ou pobre, político ou militar, não se intimidava diante de ninguém. Tinha fixação e repetia a todo momento as palavras subversivo
e corrupto.
Naquele ano, chegou na véspera da abertura da exposição. Entrou no
novíssimo Hotel Municipal e dirigiu-se à recepção. O novato recepcionista não o conhecia, apresentou a ficha de hospedagem. Ele encarou o rapaz, rasgou a ficha e apenas disse: O que o senhor está pensando
da vida? Olhe bem para mim. O senhor acha que um legítimo representante da gloriosa Revolução Redentora que acaba de salvar o Brasil dos
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[ 6 ] Um xerife aloprado
subversivos comunistas e corruptos da sua laia vai preencher uma ficha
para fazer o favor de se hospedar nessa espelunca?
Enquanto falava, a tabica já estava ameaçadoramente topando no peito do funcionário. Em seguida, estendeu a mão esquerda aberta onde
o apavorado recepcionista depositou a chave do melhor quarto do estabelecimento, o único que dispunha de banheiro.
Compareceu à inauguração do evento, subiu no palanque, manteve-se
calado com a expressão severa. Nos dias seguintes, além de participar
das atividades da exposição, circulou pela cidade. Visitou a Prefeitura,
ficou um tempão calado observando o movimento. Na única sessão
que a Câmara Municipal realizava na semana, à noite, para não atrapalhar a vida de nenhum vereador, foi o primeiro a chegar e o último
a sair. Sem trocar uma palavra com seu ninguém. Na praça pública e
nas rodas de conversa, chegava sem ser convidado e ficava ouvindo o
papo em silêncio.
Entrou e saiu da Cooperativa Agropecuária, do Hospital Santo Afonso, das repartições públicas, principalmente os Correios e a Coletoria
Estadual, observou o movimento de entrada e saída do colégio das
freiras e do ginásio. Fez pequenas compras, sem pagar, nos estabelecimentos comerciais. No sábado à noite entrou sem passar pela bilheteria do Cine-Teatro Navona para assistir ao clássico Ladrão de Casaca e
saiu no meio da sessão. No domingo, às 9 horas, quando o licenciado
vigário monsenhor Afonso celebrava a missa mais importante, lá estava ele, sentado na primeira fila. E sentado assistiu a todo o culto, sem
se dar ao trabalho de seguir o ritual. Não rezou nem levantou, ajoelhou ou sequer baixou a cabeça na hora da consagração. Encarou o
celebrante o tempo inteiro. Mesmo com sua experiência no ramo, o
monsenhor ficou encabulado.
À tarde, na solenidade de encerramento da exposição de animais, o
personagem disse a que veio. Chegou cedo, subiu no palanque oficial e ocupou uma cadeira quase no centro da primeira fila do espaço
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reservado às autoridades. Os convidados foram chegando aos poucos,
se acomodando conforme o protocolo. Como é natural, lançavam
olhares curiosos e arrevezados na direção do impassível xerife.
Assim, chegou o prefeito com duas de suas quatro primeiras-damas e
diversos secretários. Chegaram os vereadores, o juiz de Direito, o delegado de polícia, o promotor, os gerentes dos Bancos do Brasil e do
Nordeste, o coletor estadual, o chefe do Departamento de Trânsito.
Finalmente, acompanhado dos deputados monsenhor Afonso, Francisquinho Pai Quer e Honorato Meu Doutor, subiu ao recinto o jovem
secretário de Agricultura que, naquele ato, como bem disse o locutor
oficial, representava o governador do estado.
Como o secretário precisava retornar logo ao Recife, combinou-se
que ele falaria primeiro, quebrando a ordem protocolar.
Fala mansa, educado, bem assessorado pelo locutor oficial da Prefeitura, que fazia as vezes de mestre de cerimônia, o secretário iniciou
sua fala, como de praxe, citando um por um todos os que ocupavam
o lugar de honra. Eu disse todos? Errei. O xerife não foi mencionado.
Quando o homem foi engrenando o seu discurso, apresentando as
escusas do governador pela ausência, o xerife levantou-se impetuosamente e arrancou o microfone da sua mão. Empurrou com a tabica o
secretário de volta ao seu lugar e fez com que sentasse a seu comando.
Ficou um pouco em silêncio, encarando um por um os que compunham a tribuna de honra. Fez-se um silêncio sepulcral. Apesar de um
bom público estar aglomerado diante da tribuna, era possível ouvir
uma conversa de comadres a dois quilômetros de distância.
Ao abrir a boca, dirigiu-se primeiramente ao secretário, sem meias palavras. O senhor está cego ou eu estou invisível? Por que o senhor citou
todos os cabra safados que estão aqui, com todo respeito às damas, inclusive os corruptos e subversivos, e não mencionou meu nome e meu cargo?
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[ 6 ] Um xerife aloprado
O senhor é comunista? É subversivo? Está conspirando contra nossa gloriosa Revolução Redentora de 31 de março? Como o senhor se atreve
a não mencionar minha presença, eu que represento nosso movimento
vitorioso e aqui estou com a missão de botar ordem na casa e prender os
subversivos e corruptos que ameaçam o nosso País?
Diante da perplexidade geral, prosseguiu: Responda, cabra safado.
Você é subversivo ou corrupto? Exijo ser citado, não por vaidade, que
desse mal não padeço. Mas pela relevância do movimento que tenho a
honra de representar. Volte pra cá, fale tudo direitinho como tem que ser.
E, aproveitando o ensejo, diga ao seu governador de meia-tigela que eu
estou de olho nele. Se ele está pensando que as gloriosas Forças Armadas
esqueceram que até outro dia ele estava agarrado com o subversivo e
corrupto mor Miguel Arraes e os comunistas do seu governo, está muito
enganado. Ande ele direitinho e com rédea curta. Se atreva a sair da linha e eu mesmo mando cassar esse mandato que ele arrumou com nossa
aquiescência.
Finalizou sua peroração e retornou ao seu lugar, com a maior calma
desse mundo. O secretário, coitado, gaguejou mil desculpas, citou
várias vezes o xerife, reafirmou sua autoridade, disse mais algumas
palavras sem nexo, despediu-se e picou a mula. A partir daí, todos os
oradores sempre mencionaram o xerife em posição de honra nas suas
saudações, tecendo elogios exagerados ao movimento militar, cada
qual que se sucedia subindo o tom. No final, esgotou-se o estoque de
adjetivos. Parecia mais importante que o marechal que tomara posse
havia poucos dias na Presidência.
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Manda quem pode, obedece quem é besta
À noite, como se nada tivesse acontecido, o personagem estava sentado na praça, observando o trottoir, que era como se chamava o passeio
das donzelas namoradeiras. Os brotinhos, como se dizia, de cintura
fina e saias plissadas, desfilavam de três em três, de braços dados, exibindo seus atributos para os rapazes que ficavam sentados na calçada
alta da igreja, apelidada de Bem Me Quer. Perto das 22 horas, quando
o movimento esvaziava, recolheu-se ao hotel.
No dia seguinte, quando o prefeito chegou ao prédio da Prefeitura, na
companhia de suas inseparáveis Damas de Ouro, de Paus, de Copas e de
Espadas, o encontrou instalado no seu gabinete. Melhor dizendo, sentado no seu birô, remexendo nos papéis e processos que estavam na gaveta.
Antes de responder ao cumprimento protocolar de bom dia, o personagem vistoriou pausadamente cada uma das quatro primeiras-damas. A rigor, nenhuma delas era bonita, se fosse para obedecermos
aos padrões internacionais que, à época, privilegiavam mulheres de
pernas finas, bunda e peitos batidos. Eram todas mulheres interessantes, reboculosas, como diziam os matutos. Pernas grossas, bundas
redondas, peitos fartos. As quatro se vestiam no estilo tua saia termina muito cedo, tua blusa começa muito tarde. Ou seja, tinha o que se
ver. O xerife, ostensivamente, deleitou-se.
Após a análise da cada uma, voltou a contemplar a que o povo chamava Dama de Ouro, que era a primeira esposa oficial, casada no cartório de papel passado. Com as outras, o prefeito, que se chamava Jônio,
se até aqui não foi dito, também casou. Uma no padre, outra no pastor
e a quarta na umbanda.
Moravam na mesma casa na fazenda do prefeito, que se localizava
próximo à cidade. Dividiam sem arestas a vida afetiva e administrativa do edil. Todas davam expediente na Prefeitura. Daí vinham os
apelidos relacionados aos quatro naipes do baralho. A Dama de Ouro,
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[ 6 ] Um xerife aloprado
a oficial, cuidava das finanças do município. A de paus, que melhor
ficaria com a denominação de Dama de Ferro, se por acaso esse naipe
existisse, cuidava da administração. Pulso forte, gênio irascível, bastava
um secretário vacilar em uma reposta para levar um grito. Na semana
anterior, como não gostou do teor de um ofício que mandara preparar, jogou a máquina de escrever pela janela. Por sorte nenhum contribuinte foi atingido.
Já a Dama de Espada mereceu o título porque era quem cuidava dos
embates políticos. Ia para a guerra sem medo com a oposição, dobrava os aliados, domava os vereadores. A Câmara comia na sua mão.
Foi a grande responsável pelo rompimento do prefeito com o coronel
Honorato, que o engoliu como candidato com o argumento de ampliar o grupo. Bancou a campanha para derrotar, por pouco, o candidato do padre. Melhor seria ter perdido. Segundo o raciocínio predominante da Dama de Espada, a decadência do coronel era irreversível
e os métodos administrativos que utilizava totalmente superados. Se
Jônio ficasse submisso a ele, não ganharia dinheiro, não mandaria na
Prefeitura e muito menos poderia criar seu próprio grupo político.
Daí decorreu o rompimento, que tanto contrariou o coronel. Pelo
menos uma lição ele aprendeu, embora àquelas alturas não lhe servisse mais para nada: antes de apoiar um candidato, analise detalhadamente com quem ele vai para a cama. A política está cheia de exemplos de quizilas causadas por mulheres que mandam nas autoridades.
Finalmente a Dama de Copas se dedicava, com a aquiescência das
demais, ao coração do prefeito. Este amava a todas, mas era perdidamente apaixonado por ela, que também acumulava a parte social da
gestão. Cuidava com igual dedicação da barriga do povo, era aclamada
como a mãe dos pobres, uma espécie de Evita Perón de Boi Pintado.
Depois de contemplar as beldades dando, como foi dito, maior atenção à Dama de Ouro, o xerife, sem sequer se levantar da cadeira,
solicitou um particular ao prefeito. Este já estava preparado desde
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a véspera, sabia que vinha chumbo quente, de sorte que reagiu de
modo afável, descontraído e até com uma pontinha de ironia. Pode
falar, ilustríssima autoridade, estas quatro são minhas assessoras de
confiança, entre nós não existem segredos. O que eu sei, elas sabem.
Levou a primeira de muitas desconcertantes enquadradas. Falando
baixo, porém com extrema firmeza, o outro fuzilou: Vossa Excelência
me desculpe, mas nunca discuta uma ordem minha. Eu falei conversa
particular com o senhor, isso não inclui suas raparigas. Conversa particular é entre duas pessoas, com três já vira comício. Aliás, a partir
de agora, eu não quero ver nem saber da presença de nenhuma dessas
respeitáveis damas em nenhum prédio público. Isso inclui os do município, do estado e do governo federal. Se por acaso elas ocupam cargos
de confiança, considerem-se exoneradas. Se não ocupam, são corpo
estranho à gestão pública, desempenhando papéis que não lhe dizem
respeito. Fora. E apontou a saída para as quatro.
As quatro damas e o próprio prefeito pareciam petrificados. Ninguém sequer piscou. Calmamente, o intruso complementou: A moralidade no serviço público só perde para o combate à subversão; está
acima de tudo mais. O bom exemplo, senhor prefeito, começa de casa.
Senhoras, por gentileza, queiram se retirar do prédio, podem retornar
aos seus afazeres domésticos.
Não foi fácil para o grupo sair do verdadeiro estado de choque. Era
para valer ou uma brincadeira de mau gosto? Por mais clara que tivesse sido, a ordem não era fácil de ser cumprida por quem até cinco
minutos atrás mandava e desmandava, pintava e bordava. De repente, surgido do nada, um patético mandão, de banho mal tomado, enfeitado feito lanceiro de maracatu, chegava como dono do pedaço?
Com duas palavras ia desmanchar uma engenharia de convivência e
compartilhamento do poder construída com criatividade, tolerância,
engenho e arte? Os coloridos mosaicos da Prefeitura naquele instante
pareciam feitos de areia movediça. Isso não é justo, balbuciou a Dama
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[ 6 ] Um xerife aloprado
de Ouro, que, sinceramente, imaginara pelos olhares cúpidos recebidos que estava arrebentando a boca do balão.
A Justiça não tem nada a ver com isso, minha senhora, afirmou, repetindo uma fala de filme de faroeste – não por coincidência, o seu
gênero preferido. Aqui estamos tratando da moralidade pública e não
me façam ser grosseiro, por favor. Retirem-se imediatamente.
O primeiro a cair em si foi o próprio prefeito. Tentou abraçar as quatro ao mesmo tempo enquanto as empurrava gentilmente para fora
da sala. Falava baixinho nos macios pés de ouvido: Por favor, queridas, compreendam a situação, não vamos nos expor. Chamem o motorista, peguem o meu carro e vão para casa. Mais tarde a gente conversa,
estamos numa ditadura, temos que nos adaptar, por favor, por favor...
Embora tivesse falado em tom menor, o xerife ouviu muito bem a referência ao motorista e ao carro. Que era o mesmo de representação
da Prefeitura. É muito frequente que as pessoas, logo no primeiro dia
de mandato, comecem a chamar de seu o que é propriedade do povo.
E não deixou por menos: Alto lá, o carro oficial é para uso oficial. As
senhoras não fazem parte do corpo funcional da municipalidade nem
estão em missão oficial. Portanto, aluguem um carro de praça ou vão a
pé para casa; caminhar faz bem à saúde. Sumam.
Apesar de indignado, o prefeito teve que admitir mais tarde que foi
melhor assim. Por maior que seja a intimidade, é da natureza do macho aparecer bem diante de suas fêmeas. Nenhuma humilhação faz
bem aos relacionamentos.
Tranque a porta por favor, prefeito, sente. Quando ficaram apenas os
dois, o prefeito, que àquelas alturas não estava mais preparado para
nada, levou a maior bordoada de sua vida. O outro entrou com dois
quentes e três fervendo. Foi direto a um dos pontos mais delicados da
gestão: Prefeito, o que o senhor tem a dizer para explicar ao governo
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militar revolucionário essa história de ter adquirido o mesmo terreno
várias vezes com o dinheiro da municipalidade? Procede a acusação?
Procedia. A oposição tentou investigar, as quatro damas resolveram.
Naquele tempo, o Ministério Público não tinha o poder de futricar as
contas municipais e o caso morreu. Como danado esse filho da puta
soube disso, pensou o prefeito, realmente preocupado.
Jônio desencavou todos os argumentos que apresentara na Câmara de
Vereadores e que foram suficientes para colocar uma pedra em cima
da questão. Bem, xerife, o senhor já percebeu que a topografia do nosso município é muito íngreme, a cidade é praticamente uma ladeira só.
Então é muito difícil conseguir terreno adequado no perímetro urbano
para um campo de futebol. Quando o Governo do Estado requisitou
o antigo estádio para construir casas populares, aproveitando o plano
para baratear os custos, ficamos com uma batata quente nas mãos.
Vossa Excelência sabe que o esporte é fundamental, temos uma forte
tradição futebolística. “Mens sana in corpore sano”. Assim, desapropriamos uma área para fazer o novo estádio e, por um erro da nossa assessoria jurídica, pagamos o terreno para alguém que não era o
legítimo proprietário. Errar é humano. Constatado esse lamentável
equívoco, fomos forçados a comprar o terreno novamente, desta vez dos
legítimos proprietários. Foi isso.
O xerife manuseou uns papéis, puxou um recibo e indagou ríspido:
Prefeito, não foi só isso. Aqui consta uma terceira compra. Como pode
ter acontecido? Jônio estava numa camisa de sete varas. Com cara de
tacho e sem argumentos, ensaiou um sorriso amarelo e meio em tom
de brincadeira soltou a desculpa que lhe veio cabeça: Aí eu tenho que
confessar. O erro foi totalmente meu. Vossa Excelência imagine que eu
esqueci que já tinha comprado e paguei de novo.
O interlocutor levantou, deu alguns passos pela sala; o rosto parecia talhado de pedra. Aproximou-se do interlocutor e ordenou:
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Levante-se! Quando o prefeito cumpriu a ordem, soltou a tabica e
pegou-lhe pela beca com as duas mãos. Cabra safado, subversivo, corrupto, você quer fazer a Revolução Redentora de idiota? Tenha respeito. Ninguém paga quinhentos contos duas vezes por um terreno que
vale cinquenta e esquece. Se fosse seu o dinheiro, você esqueceria?
O prefeito estava destruído. O xerife soltou a roupa do outro, ajeitou
a própria túnica, que tinha se desarrumado, e determinou: Vou ser tolerante. O senhor tem 72 – veja bem – 72 horas para voltar aqui com o
recibo do depósito do dinheiro desviado, com juros e correção monetária,
na conta de Prefeitura no Banco do Brasil. É tempo mais do que suficiente. Se voltar antes, melhor para o senhor. Se não aparecer, eu mesmo
vou lhe pendurar pelos culhões em praça pública; fique certo disso.
O restante do dia a exótica autoridade dedicou para implantar o que
chamou de modelo revolucionário de gestão.
Chamou todos os secretários, disse que, por enquanto, nenhum ia
ser demitido. Ele não ia investigar o passado de ninguém, e quem,
por acaso, tivesse cometido algum erro e quisesse se converter à nova
ordem, seria bem-vindo. Só tratassem de andar na linha. Não seriam
tolerados atos de subversão ou corrupção.
Precisamos instalar a honestidade para dar o exemplo e combater os
inimigos da Pátria a ferro e fogo. Cada qual vai ser reconhecido de
acordo com a contribuição que der à nossa luta, a revolução venceu,
mas os inimigos continuam por aí como cobras peçonhentas, preparando o bote. Nossa orientação é a mais simples possível: cada qual cuida
de suas tarefas com o máximo de empenho.
E saiu tratando de cada pasta, como se não tivesse feito outra coisa
na vida a não ser estudar a gestão de Boi Pintado. Fez cobranças pontuais e procedentes. Por que faltam remédios nos postos de saúde? Por
que a merenda escolar não passa de rapadura com farinha? Por que o
lixo fica nas ruas depois da feira do sábado até o começo da semana
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seguinte, aos domingos a cidade parecendo um lixão? E saiu por aí afora, dando tarefa a cada um, exigindo que passassem a filosofia adiante
para seus auxiliares, queria ver resultados até o final da semana.
O secretário de Obras encarregado da limpeza levantou o braço e pediu a palavra. Não obteve. Já sei o que o senhor vai dizer, o fardamento
dos garis está atrasado, falta material de trabalho e o pagamento das
carroças de boi que recolhem o lixo é todo desviado para os bolsos do
prefeito. Nada disso é desculpa. Os armazéns estão cheios de vassouras, foices e enxadecos. Compre fiado. Quanto às carroças, quero todas
circulando hoje. Pertencem ao sobrinho do prefeito, estou por dentro
de tudo. E para não perdermos tempo, cada qual adapte a orientação
à sua pasta e estamos conversados. Na próxima semana, na mesma
hora, vamos avaliar os resultados. Quem falhar, adeus.
O gesto que fez quando pronunciou a palavra adeus tanto podia significar demissão sumária como execução imediata.
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Capítulo 7
Como diria a madre superiora
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[ 7 ] Como diria a madre superiora
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O delegado, tenente nomeado por Arraes,
laureado no Curso de Formação de Oficiais, era uma águia. Procurava
se informar sobre tudo, tinha alcaguetes espalhados por todos os
setores da sociedade. Assim, quando o xerife chegou, se acercou dele
cuidadosamente. Passou informações importantes, ofereceu um plano
que faria a autoridade ser reconhecido como grande revolucionário
no estado e no País. Com uma habilidade tão grande que nem parecia
que as ideias vinham dele.
À noite, a autoridade se reuniu com o próprio delegado mais o promotor e o juiz. Excelências, temos duas prioridades, disse ele. Combater a
corrupção e a subversão. Quanto à corrupção, deixem comigo, não vou
exigir maiores sacrifícios de ninguém. Agora, para enfrentar e derrotar
o perigo vermelho, preciso da colaboração de todos os patriotas de boa
vontade, os senhores à frente.
Apesar da revolução ter sido vitoriosa, os inimigos continuavam à espreita, serpentes preparando o bote. Boi Pintado e arredores eram um
ninho de subversão.
Por exemplo, sabiam eles que as Ligas Camponesas tinham transferido o seu comando-geral para o município? Isso é informação sigilosa,
só nós e as paredes sabemos, não pode vazar de jeito nenhum. Não comentem nem com suas esposas, nem com suas raparigas, nem com seus
amigos de maior confiança. Vamos pegá-los de jeito na primeira oportunidade, que está próxima.
Discutiram a estratégia a seguir. Cada qual recebeu suas tarefas.
Quando o juiz ousou falar que tinha algumas sentenças urgentes para
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[ 7 ] Como diria a madre superiora
prolatar e talvez não pudesse fazer o que era pedido no curto prazo
estabelecido, recebeu um olhar tão fulminante que imediatamente se
desculpou e voltou atrás.
A ordem era para o juiz usar sua credibilidade junto aos comerciantes
mais abastados e aos latifundiários para arrecadar os recursos necessários para financiar as milícias que iriam formar. Precisavam de recursos, veículos, armamento, munição e toda a infraestrutura. A única justificativa a ser apresentada é que tudo se destinava a combater
a subversão. O magistrado deveria anotar o comportamento de cada
um. Qualquer gesto de má vontade deveria ser relatado. Os veículos,
com motoristas bons e de confiança.
O delegado recebeu a incumbência de providenciar imediatamente o
reforço da cadeia local. Localizado numa esquina, o prédio era velho
e dispunha apenas de uma cela e uma solitária. Ou seja, sem nenhuma segurança. Como não dava tempo de reformar adequadamente as
instalações, que convocasse os pedreiros da cidade e montasse uma
operação para, na noite do dia seguinte, duplicar todas as paredes.
Além disso, o delegado seria o encarregado de comandar pessoalmente a milícia nas ações de campo, cuja liderança hierárquica passaria
pelo cabo e pelos dois soldados que formavam o minguado destacamento local.
O promotor, nascido nas redondezas e muito querido pela comunidade, teria duas missões: a primeira, falar com o coronel Honorato e
principais latifundiários para escolher trinta homens de confiança, pistoleiros com experiência, frieza, pontaria e disciplina. Esses homens
deveriam deixar os lugares onde viviam e se concentrar em local que
o promotor escolheria junto com o juiz e o delegado, nisso teriam autonomia total. Formariam a milícia revolucionária destinada às mais
altas missões em defesa da Pátria.
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A sugestão de incorporar a esse projeto os rapazes do Comando de
Caça aos Comunistas, o CCC, foi enfaticamente descartada por sugestão do delegado. Esses são amadores, o jogo é de profissionais. Eles
terão seu papel no momento certo, mas por hora devem ficar de fora e totalmente desinformados quanto aos nosso planos. Falando nisso, interrompeu o xerife, onde se encontra o líder deles, o senhor Raul Meneses,
de alcunha Bondinho?
Alguém respondeu que o sujeito havia viajado. Deve estar, a essas alturas, no Rio de Janeiro ou Brasília, articulando alguma coisa com os generais. Isso só serviu para reforçar as convicções do intruso. Esse povo
endinheirado não merece confiança. Abandonam sem mais nem menos
seu campo de luta, só pensam nos seus próprios interesses. Deixam a
corrupção e a subversão imperar no seu próprio quintal. Não podemos
contar com eles para nada decisivo.
A outra tarefa do promotor era articular uma rede de informação
que mantivesse o grupo atualizado com os movimentos do inimigo.
Quando a autoridade argumentou que não era fácil, o mandão foi
implacável: E se por acaso fosse fácil eu estaria convocando o senhor?
As informações estão aí, vagando na sociedade; nossa tarefa é captar
e organizar, nisso consiste o serviço de inteligência. Por isso mesmo é
chamado de inteligência. O senhor identifica quem pode ter informações
valiosas e manda falar comigo na Prefeitura.
Essa atribuição dada ao promotor era na verdade uma tapia, também
sugerida pelo delegado. Assim, só ele e o xerife ficariam sabendo os verdadeiros informantes que já estavam na pista dos líderes camponeses.
A verdade é que o promotor não merecia a confiança do grupo. Democrata por convicção, tinha uma enorme resistência íntima ao golpe.
Estava fazendo das tripas coração para não transparecer. Nem queria
correr riscos nem servir ao novo regime.
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[ 7 ] Como diria a madre superiora
O xerife pediu também que espalhassem a notícia de que ele estava recebendo no gabinete e remunerando muito bem qualquer pessoa que
fizesse delação quente, capaz de levar à prisão os subversivos da região.
Essa tarefa de gerar o boato era fácil: bastava qualquer um deles procurar Lizânio da Farmácia de um modo que parecesse casual, contar o
fato e pedir rigoroso segredo. No outro dia, todo mundo estaria sabendo, era a maneira mais rápida de disseminar qualquer informação em
Boi Pintado. Como a farmácia de Lizânio estava de plantão naquela
noite, a tarefa ficou mais fácil ainda. O delegado saiu direto da reunião
para comprar um cachete para dor de cabeça.
No dia seguinte, logo cedo, todos começaram a se mexer para cumprir
suas missões. Dois dias era o prazo estabelecido, era concentração total,
não dava tempo para fazer mais nada. Todos abrigavam um pouco de
dúvida, mas tinham assistido a enquadrada do xerife no secretário de
Agricultura do estado e ao recado desaforado que mandara para o governador. Era melhor seguir suas diretrizes, ninguém tinha nada a perder. Pelo contrário, vai que o homem era forte mesmo, a colaboração poderia render bons dividendos. Todos tinham uma carreira para cultivar.
Sem querer maiores comprometimentos, o promotor resolveu se escorar no juiz. Convenceu o magistrado de que agindo juntos teriam
mais agilidade e mais poder de fogo. Resolveram que prioritariamente
tratariam da formação da milícia e por isso conversariam inicialmente
com os principais fazendeiros.
A tarefa, realmente, não era fácil, em função principalmente do prazo
curtíssimo. O primeiro procurado, o coronel Honorato, rodou a baiana. Recebeu a dupla com quatro pedras na mão. Os senhores são muito
ingênuos, pelo amor de Deus. Quem é esse mequetrefe para chegar aqui
dando ordens, dizendo o que quer e o que não quer? Quem ele pensa que
é? Enquanto eu for vivo, isso aqui não vira casa de Noca.
Aí foi a vez de o juiz engrossar a fala. Coronel, devolvemos todas as perguntas. Quem é esse xerife? Ele é o que pensa que é? Responda o senhor,
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que tem dois filhos deputados e anteontem foram esculhambados por
ele em plena exposição de animais. Além de não terem dado um pio de
reclamação, rasgaram elogios a ele nos discursos que proferiram a seguir.
E continuou: Por que o senhor mesmo não liga para o governador ou
para o comandante do IV Exército e pergunta? Por que seus filhos deputados não se informam? Se o senhor tiver qualquer notícia relevante,
estamos prontos para escutar. Se não tiver, por gentileza, mande entregar amanhã às 18 horas neste local três caminhonetes Veraneio com
motoristas qualificados e dez homens armados, prontos para a Terceira
Guerra Mundial. E visivelmente irritado entregou um papel com as
referências do sítio onde iriam reunir a milícia.
Antes de se retirar, ainda lançou um aviso desaforado na direção do
velho chefe: Coronel, conselho de amigo, não falhe. Se não fizer pela
revolução, faça por mim. Lembre-se dos processos do seu interesse que
estão esperando minhas sentenças.
Foi a maior humilhação sofrida pelo coronel Honorato Francisco das
Chagas em sua vida inteira, primeira de várias que viriam se seguida.
Apesar disso, ou por isso mesmo, sequer comentou com seus filhos.
Sabia que se ligasse para o governador ou o general, naquele momento, não seria atendido. Ainda mais para perguntar algo que poderia
fazer parte do projeto revolucionário, se arriscava a ouvir uma descompostura ainda maior. Passou o dia com a cabeça fervilhando, recolheu-se para dormir da mesma forma. Deitou na rede, chamou Rolete
de Cana, que era o contador oficial de histórias da carochinha que o
faziam dormir. Nada. Amanheceu o dia em claro. Porém na hora e no
local determinados chegaram os homens e as viaturas.
Vendo que não daria mesmo tempo de sair conversando de um por
um, o juiz chamou os três oficiais de Justiça, alugou três carros de praça e entregou a cada a relação de cinco fazendeiros com intimação para
comparecerem ao fórum às 16 horas, sem falta. Onze foram encontrados e compareceram, era o bastante. Cada qual contribuiu com dois
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[ 7 ] Como diria a madre superiora
pistoleiros, os mais abastados com algumas caminhonetes. No dia seguinte, a milícia estava formada, armada, com viaturas e aquartelada.
O xerife passou os cruciais dois dias seguintes recebendo gente na
Prefeitura, era um entra e sai infernal. Quase sempre o delegado estava ao seu lado. As pessoas chegavam, ficavam na sala de espera, eram
chamadas pela ordem, entravam. Trancavam a porta. Respondiam a
uma ou duas perguntas triviais e eram dispensadas. Não raro, em pouco tempo, recebiam novo chamado, o ritual se repetia, a conversa era
um pouco mais longa, dois ou três minutos, Obrigado, até mais ver.
Alguns vieram várias vezes, sem motivo aparente. Uma maluquice, diziam alguns.
Na verdade, tratava-se de uma estratégia montada pelo delegado. A
movimentação servia para acobertar a presença dos informantes, que
o mantinham atualizado e também de pessoas que quisessem colaborar fazendo delação espontânea. Como quase todos desconheciam o
que estavam fazendo ali, os que sabiam ficavam bem protegidos. Ninguém desconfiaria deles.
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Uma operação bem-sucedida
No princípio da noite o xerife chegou com o delegado ao QG da milícia. Agradeceu e dispensou a presença do juiz e do promotor. Os senhores voltem para a cidade, jantem, visitem amigos, fiquem em lugares
visíveis e se preparem para expedir amanhã cedo os mandados das prisões que vamos realizar.
Quando ambos saíram, reuniu os homens. Passou a palavra ao delegado, que, rapidamente, organizou a milícia. Formou três colunas de
dez pistoleiros, comandadas respectivamente pelo cabo e pelos dois
soldados. Estes obedeciam ao delegado, o delegado, da boca pra fora,
seguia a orientação do xerife. Ninguém faria nada sem ordem nem podia vacilar na execução.
A missão era prender e desbaratar a cabeça das Ligas Camponesas. O
xerife perguntou se alguém conhecia a casa de Zequinha, parente do
líder maior das Ligas, o deputado cassado Juliano, na Fazenda Barra
da Onça. Alguns conheciam, inclusive, o delegado e os soldados. Já
tinham andado por lá mesmo antes do golpe, dando batidas em busca
de armas ilegais.
O delegado abriu uma planta tosca do lugar. Determinou o roteiro das
três colunas para efetuarem o cerco e a prisão. Cada uma chegaria por
um lado. Como não havia algemas suficientes, a ordem era prender,
deitar todos de costas, amarrar as mãos para trás e revistar cada um
minuciosamente.
Tudo entendido, partiram imediatamente. O QG não era longe da cidade e a casa de Zequinha também ficava perto, embora do outro lado.
Um deslocamento de légua e meia, no máximo meia hora de percurso.
As informações procediam. As principais lideranças camponesas do
estado que escaparam da prisão no primeiro momento estavam reunidas à luz de candeeiros de querosene, já que a energia não tinha
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chegado até o local. A discussão era áspera em torno do tema que dividia a esquerda e os adversários do regime militar em geral: resistência
pacífica ou armada.
Juliano não fundou as Ligas, como muita gente pensa, nem era comunista, conforme acusavam os militares. Inicialmente atuou como advogado da entidade, depois assumiu a liderança maior. Sempre se definiu
como agitador. Até para tomar remédio é preciso agitar, costumava dizer. Chegou a pregar a reforma agrária na lei ou na marra. Mas naquelas
circunstâncias não concordava com a violência. De Minas Gerais, onde
se encontrava refugiado, enviou explicitamente sua posição.
Os seus porta-vozes defendiam mais uma vez que as Ligas Camponesas não deveriam descambar para um confronto armado com o regime. O principal argumento era que não deveriam dar motivo para
os militares os acusarem de recorrer à violência e terem pretexto para
exterminar o movimento. Se nós entrarmos nesse jogo, ficaremos iguais
a eles, à margem da lei, defendia ardorosamente Zequinha.
Naturalmente nem todos concordavam. Alguns camponeses, de formação ideológica marxista ou simplesmente de espírito mais aguerrido, defendiam uma posição oposta. Viam a outra proposta como
uma atitude covarde. Sem lutar não conseguiremos nada, perderemos o
respeito da massa e vamos ser abatidos pela ditadura como patinhos na
lagoa. Essa era a tese de Capivara, nome de guerra do líder camponês
Amaro Luiz de Carvalho.
Este fizera treinamento ideológico e militar na China, defendia o
levante armado dos camponeses e a estratégia maoista do cerco da
cidade pelo campo. Se a posição do companheiro Juliano, que todos
respeitamos como um guerreiro da causa do povo, prevalecer, vamos
jogar de vez a reforma agrária no lixo da História desse País, afirmava
emocionado.
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O impasse persistia quando estourou um rojão ao longe. Era o sinal
para avisar que a repressão se aproximava. Haviam postado vigias em
pontos chave para não serem surpreendidos. Capivara levantou, bateu
a mão ao revólver e falou dramaticamente: Chegou a hora da decisão,
companheiros. Quem ficar vai ser preso, torturado, talvez assassinado.
Quem fugir vai ter que virar guerrilheiro e viver perseguido, nunca mais
terá paz. Quem vai? Quem fica?
Imediatamente levantaram-se os camponeses Ventania e Amaro Félix,
o intelectual Clodomir Moraes, e alguns outros, inclusive Alexandra,
companheira de Juliano, mas que nesse ponto discordava do marido.
Capivara perguntou se podiam levar as armas e munições. A resposta foi afirmativa. Algum documento comprometedor levamos conosco,
pelo menos vocês ficam limpos. Feito isso, em menos de três minutos,
o grupo saiu pela porta dos fundos da casa simples de taipa, correu
abaixado sob a proteção de uma cerca de varas e chegou até uma plantação de cana no balde de um açude próximo. A partir dali, estavam
entregues à própria sorte. E foi por pouco. A coluna que cobria aquele
lado fechou o cerco alguns minutos depois.
Como diz Lenine, a prática é o critério da verdade. Nada como uma
situação real para decidir grandes impasses.
Os que permaneceram estavam muito tensos com a perspectiva de
prisão. Zequinha pediu calma. Falou que se preparassem para dias difíceis. Mas estava convencido do acerto da decisão que tomaram. Se
morrermos, disse ele, seremos mártires inocentes das ideias que defendemos. Vamos ser os novos cristãos jogados aos leões, nosso suor e nosso
sangue servirão para alimentar a nossa causa.
Quando a milícia chegou e cercou a casa, não houve resistência. Alguns peixes grandes procurados em todo o estado estavam entre eles.
A caçada valera a pena.
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[ 7 ] Como diria a madre superiora
Os prisioneiros foram amontoados na carroceria de uma caminhonete
de caçamba com capota de madeira, um tipo de apetrecho muito usado naquele tempo. Mãos atrás das cabeças, permaneciam sob a mira
das armas dos pistoleiros. Nem tudo é perfeito. Falou-se em amarrar
os prisioneiros, mas ninguém lembrou de levar as cordas. Acontece.
Enquanto isso, o delegado e o xerife faziam uma busca minuciosa na
casa usando uma poderosa lanterna. Foi o delegado quem viu primeiro
e chamou o superior. Bem disfarçado na parede de taipa, um buraco
que parecia servir de esconderijo. Depois de cutucar o vão para verificar se não continha uma cobra ou outro animal peçonhento, o delegado enfiou o braço e trouxe um envelope de correio, daqueles tradicionais com as bordas em verde e amarelo. Era uma carta de Juliano com
as orientações e, melhor de tudo, um telefone para contato. O xerife
ficou tão contente que abraçou o delegado, esse negócio de homem
trocar abraço ainda era uma raridade. Só faltou beijar na boca do outro.
Este, calmamente, foi conversando com o outro sobre um ajuste nos
planos. Em vez de transportarem os prisioneiros para a cadeia pública,
onde chamariam a atenção da cidade acabando com o sigilo da operação, por que não recolher todos, por enquanto, ao próprio QG da
milícia? Não seria difícil manter os camponeses desarmados e cercados. Enquanto isso, eles iriam até a Fazenda Esperança, no município
próximo de Bom Jardim, onde estavam abrigados os filhos menores
de Juliano.
Antes que o xerife argumentasse, ele emendou: A gente captura as
crianças; depois telefona para Juliano e negocia a rendição dele em troca da vida dos filhos. O delegado mais uma vez surpreendia. E o mais
interessante é que ele falou de uma maneira tão envolvente que ao terminar o xerife já estava convencido de que o plano era dele próprio.
Assim foi feito. As colunas do cabo e de um soldado deslocaram-se
para o QG para guardar os prisioneiros, que ao todo eram oito. A
coluna comandada pelo outro soldado mais o xerife e o delegado se
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deslocou nas três Veraneios mandadas pelo coronel para capturar os
filhos de Juliano. Em plena noite, arrombaram a porta da casa grande
da fazenda, que ficava na beira da estrada, entraram residência adentro, renderam os vigias e empregados, arrastaram as crianças e se mandaram para Bom Jardim.
Lá, foram direto para o posto telefônico, onde o operador dormia de
roncar. Acordaram o homem. Mandaram fazer a ligação. O delegado
argumentou que era melhor ele falar; o xerife ficaria como uma instância superior em caso de dificuldade nas negociações. O encaminhamento foi simples: quando o próprio Juliano atendeu, o delegado
se identificou e disse que estavam de posse das crianças. Em seguida,
passou o aparelho para um dos garotos, que, candidamente, falou: Pai,
o homem tá dizendo que vai cortar a orelha de Cletinho, tá com uma
faca na mão. Cortar o delegado não cortou, apenas fingiu, mas deu um
puxão tão violento que quase arrancou a orelha do garoto. Esse caiu
num choro desconsolado, o pai ouvindo tudo do outro lado.
Depois de tirar as crianças do recinto, o delegado retomou a ligação
com toda a frieza: Deputado, o senhor viaja agora para o Rio de Janeiro e pega o primeiro voo para o Recife. Antes de embarcar, o senhor
me avisa pelo telégrafo de Boi Pintado a companhia aérea e a hora da
chegada. Quando se entregar ao IV Exército, os seus filhos estão livres, e
mais: sob a minha proteção. Empenho minha palavra de que ninguém
tocará neles.
De manhã bem cedo, os dois entraram na agência dos Correios e foram direto à mesa do telegrafista. Mais uma vez foi o delegado quem
falou: Seu Marcondes, o senhor é comunista, todo mundo sabe, mas é
um profissional sério e correto. Temos uns telegramas absolutamente sigilosos para passar. Até tudo estar concluído e confirmado, o senhor não
se levanta dessa cadeira nem para mijar. Nem eu nem ninguém aqui
sabe mexer nessa estrovenga desse telégrafo, de modo que o senhor vai
poder fazer o que quiser. Só que, se alguma coisa der errado, eu mesmo
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[ 7 ] Como diria a madre superiora
tiro o cabaço de sua filha Glorinha e como o cu de D. Isolina, antes de lhe
capar e deixar sangrar até morrer. Estamos entendidos?
Estavam. Aí foi a vez do forasteiro ditar o telegrama urgente e confidencial dirigido ao comandante do IV Exército. Informou a prisão das
lideranças, entre as quais os temidos Zequinha, Chapéu de Couro,
Pino de Granada e Messias, esses dois últimos eram particularmente
odiados pelos usineiros reacionários da Zona da Mata. Informou também sobre a breve rendição de Juliano, ficando de informar logo mais a
hora precisa e o local. Solicitava retorno e confirmação do recebimento. Assinou. Edilberto de Abreu Menezes Lima, xerife revolucionário.
Recém-chegado, o comandante do IV Exército nunca tinha ouvido falar no xerife. Com o telegrama na mão, temendo cair em alguma esparrela, resolveu ligar para o governador. O senhor conhece Edilberto de
Abreu Menezes Lima, que se intitula xerife revolucionário em telegrama
endereçado a mim? Conhecia. Então escute aí.
E leu o comunicado sem mencionar a parte relativa a Juliano. Adiantou que a sua intenção era enviar um contingente para trazer os prisioneiros. O governador concordou. Ao cabo da conversa, o general, precavido, perguntou se o xerife era realmente um revolucionário fiel. A
resposta foi positiva. Tratava-se de um homem obstinado na luta contra a corrupção e a subversão. Tinha formação militar, era um homem
culto, pertencente a uma família tradicional. Mas... O governador a
essa altura gaguejou, procurando as palavras certas para prosseguir. O
general o interrompeu, não tinha um minuto a perder. Viva a Revolução Democrática, viva.
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Guerra é guerra
Sem pertencer à linha dura, o comandante do IV Exército era tido
como frouxo e simpatizante de Jango por muitos dos seus pares.
Quando assumiu, os principais líderes comunistas ou democratas
do Nordeste já estavam presos. Restavam uns poucos bagres miúdos,
cuja captura não causaria maior repercussão. A rendição de Juliano,
um nome conhecido internacionalmente, junto com parte do comando das Ligas, representava um indiscutível triunfo para ele. Caso tudo
saísse conforme previsto, calaria os críticos, poderia circular de cabeça
erguida nas reuniões do alto comando. Sabia cumprir com o seu dever.
O general respondeu imediatamente o telegrama e pediu confirmação
do recebimento. O sistema de telégrafo do Recife estava sob total controle dos militares desde o segundo dia do golpe. Informou o envio de
um comboio para apanhar os prisioneiros. No máximo em três horas
estaria chegando, que estivessem prontos. Discretamente, sem o xerife
perceber, o delegado ordenou o envio de uma cópia do telegrama em
seu nome ao comandante da Polícia Militar. Nada fazia sem comunicar, por esse caminho seus feitos chegariam a quem interessava, estava
cuidando da sua carreira.
Chegara a hora do xerife montar o seu circo. Fecharam a agência dos
Correios, deixaram o telegrafista sob guarda e foram direto para o QG
da milícia. Lá, enfiaram os prisioneiros de volta na caminhonete e se
dirigiram para a delegacia, a autoridade à frente de tudo num jipe sem
capota. O delegado declinou do convite para sentar ao seu lado, preferiu a cabine do carro dos prisioneiros. Sabia reconhecer o seu lugar.
Desde cedo, já chamava a atenção das pessoas a obra de reforço das
paredes da delegacia, executadas durante a noite. Quando a caravana
chegou, juntou uma multidão, que os pistoleiros armados até os dentes se encarregavam de manter à distância.
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Em poucas horas adentrou em Boi Pintado um comboio formado por
quase dez veículos do Exército, incluindo vários camburões e até ambulância. O major comandante parou em frente à igreja e perguntou
ao primeiro passante, por acaso o ainda sonolento Cumpade Deca,
onde poderia encontrar o xerife Edilberto. Cumpade pensou em tirar onda, respondendo que o lugar de xerife é em filme de faroeste.
Porém, diante da persuasiva metralhadora pendurada no pescoço do
oficial, preferiu mesmo indicar o prédio da Prefeitura.
Avisado por algum xeleléu, o intruso já se encontrava à porta quando
a comitiva estacionou. O oficial prestou-lhe continência, apresentou
suas credenciais e dali rumaram para a cadeia pública. Os presos foram algemados, encapuzados e atirados nos camburões. Tudo isso sob
a vigilância de dezenas de soldados portando fuzis e apontando em
todas as direções, como se o Exército chinês estivesse prestes a atacar
a qualquer momento.
Operação concluída, mais algumas continências prestadas, partiu o
comboio. O xerife retornou aos Correios, o telegrama de Juliano acabara de chegar confirmando o voo e o horário. Imediatamente as informações foram repassadas ao IV Exército.
Bem que o povo diz: Quando as coisas têm que dar certo, tudo acontece nos conformes. Na hora em que o comboio chegava ao Recife, o
avião trazendo Juliano taxiava no Aeroporto dos Guararapes. Antes
dos passageiros descerem, um grupo de militares subiu na aeronave,
identificou o ex-deputado. Ordenaram o desembarque e, quando todos tinham descido, foi a vez do prisioneiro.
Desceu sozinho. O general em pessoa estava perfilado ao pé da escada para receber a rendição do popular líder. Ele mesmo colocou as
algemas no prisioneiro. A imprensa, convocada sem saber do que se
tratava, deitou e rolou. Foram fotos de todos os ângulos, uma notícia
realmente espetacular. Pela excitação geral, parecia que Fidel Castro
estava se entregando a Lindon Jonhson.
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Tinha sido providenciado um verdadeiro desfile militar. Artilharia
pesada, cavalaria, tanques de guerra, motos com estridentes sirenes
se deslocaram com o prisioneiro rumo ao bairro da Madalena, onde
o comboio vindo de Boi Pintado se incorporou ao cortejo. Circularam pelo Centro com todo o estardalhaço, os presos em carro aberto, aviões da FAB dando voos rasantes, a cada quarteirão tiros de
festim. No comando de tudo, o general fazia seu marketing pessoal,
parecia o imperador Otávio Augusto entrando em Roma depois de
conquistar o Egito.
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[ 7 ] Como diria a madre superiora
A dama e o xerife
Naquela noite, o xerife já se aprontava para dormir quando ouviu um
discreto toque na soleira do quarto. Abriu a porta e qual não foi sua
surpresa quando se deparou com a Dama de Ouro em pessoa. Posso
entrar? Naturalmente, minha senhora. A própria dama se encarregou
de fechar a porta. Mais bonita, não digo, porém estava bem mais desejável e provocante do que no dia em que se conheceram. Saia curta e
justa, mostrando parte das coxas roliças e sugerindo ainda mais encantos. A blusa decotada e meio transparente, exibia o desenho de belos
seios rijos e prometia outras delícias. As possíveis falhas do rosto estavam bem disfarçadas por pesada maquiagem, a boca vermelha parecia
uma melancia pedindo degustação.
Antes de narrar o que se passou entre as quatro paredes do apartamento, vamos descrever, em linhas gerais, o que levou a esposa do prefeito até aquela situação inesperada. Depois da ríspida conversa com
o usurpador do seu cargo, Jônio tratou de levantar as possibilidades
financeiras para atender à determinação do depósito. Em princípio,
500 contos não era quantia do outro mundo. Desde que assumira já
embolsara muito mais, e, com a inflação do período, o dinheiro representava menos da metade do que valia na época da transação. Porém,
se existe uma coisa que evapora ligeiro, é grana mal adquirida, parece
cachaça derramada no terreiro. Principalmente no caso dele, que tinha
família grande e quatro mulheres gastadeiras. Além da ordem ser totalmente atrabiliária, o prazo também era absurdo. Ou o cabra safado
pensava que o cara rouba o dinheiro público e fica com ele disponível,
guardado no colchão, para devolver a qualquer momento?
Sem dispor do montante em dinheiro vivo, com as linhas de crédito
dos bancos andando a passos de cágado naqueles dias confusos, sem
tempo para vender uma boiada ou apurar o algodão que restava da
safra passada, viu que não ia conseguir a bufunfa no prazo estabelecido. O que fazer? A cada minuto o forasteiro que ousara ocupar sua
cadeira e agora mandava no município como se fosse dono parecia
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mais poderoso. Depois da demonstração daquela manhã, do prestígio
e da força que exibiu para quem quisesse ver, qualquer desafio a sua
vontade podia representar a desmoralização e, quem sabe até, a morte.
Conhecedor da malícia dos homens, Jônio percebeu o olhar comprido
e pidão que o intruso dirigiu à primeira-dama. Reuniu as quatro mulheres e expôs sem rodeios a situação. Se ele fosse preso ou até morto,
o que seria delas? Pesando os riscos, a menor desmoralização para ele
era levar um chifre tentando salvar a cabeça. E para elas, era melhor
trepar com uma autoridade revolucionária do que correr o risco de
ficar ao relento, sem amparo nem proteção. Aceita a tese, maliciosamente ele não indicou quem iria para o sacrifício; colocou em votação
e o resultado saiu por unanimidade.
Quando a porta do apartamento se fechou e o corpo da mulher passou roçando no seu, além do perfume estonteante que ela usava, o forasteiro sentiu o coração disparar e as mãos ficarem geladas. Homem
acostumado às mais intrincadas batalhas, naquele terreno do amor
sentia-se um aprendiz.
Minha senhora, o que a traz aqui? Xerife, vou ser sincera, nenhum homem nunca me atraiu como o senhor. Além disso, ofereço o meu corpo e
a minha honra pela glória da revolução que o senhor representa.
Não foi preciso mais qualquer argumento. Antes de ser patriota, o homem era macho da gota serena. Aquela constituía uma tentação muito
além de suas forças. Abraçou e beijou a dama, começou avidamente a
tirar a sua roupa, acariciando cada detalhe do corpo que, quase despido à meia-luz, era ainda mais tesudo e perturbador.
Quase estourando de desejo, mal conseguindo segurar uma ejaculação há tempos reprimida, faltava ao herói apenas retirar a calcinha
da parceira para consumar a relação. Sentiu uma certa resistência. A
mulher começou e negacear o corpo. O que está acontecendo? Já que
o senhor perguntou... Foi aparteada: Tire esse senhor! Ela aproveitou a
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[ 7 ] Como diria a madre superiora
brecha e emendou de imediato: Já que você perguntou, eu estou com
uma preocupação que não me permite uma entrega tranquila. Que preocupação é essa?
Rapidamente a mulher sentou e puxou uma coberta, para esconder o
corpo, desfazendo um pouco o clima. Choromingou: O senhor, quer
dizer, você sabe que a tesoureira da Prefeitura era eu. Tudo de dinheiro
da nossa, digamos assim, família, é comigo. E eu não tenho condições de
depositar 500 contos amanhã. Como eu posso ser sua desse jeito?
A vida é assim, todo homem tem seu preço ou seu ponto fraco. O prefeito descobriu o calcanhar de Aquiles do seu algoz. As lágrimas amoleceram o coração do xerife. E o efeito foi imediato: Ora, querida, isso não é
problema, esqueça esse prazo. Está contente agora? Deixe de ser dengosa.
Não chore, seu sorriso é lindo. Venha pra cá, minha morena, vamos chamegar gostoso para tirar o atraso. E, complementando, a poesia tirada
das músicas de Luiz Gonzaga: Vem cá que eu quero te matar de cheiro.
A partir dali mergulharam no poço do prazer, o intruso nunca tivera uma
parceira tão fogosa e insaciável. Aquela mulher nunca conhecera e sequer sabia que um homem podia ser tão viril. Quando o relógio marcou
duas horas da madrugada, ainda sem notícias, mas certo de que a demora era sinal de desfecho positivo, pelo lado financeiro, o prefeito pensou
umas caraminholas e sentiu uma pontada de ciúme lhe ferrar o peito.
A dama chegou com o dia amanhecendo. Está tudo certo, confirmou;
o cara está no papo, agora me deixa dormir que eu estou um bagaço.
Na manhã seguinte e pela primeira vez, o usurpador não foi cedo
para a Prefeitura. Indisposto, ficou no quarto até a hora do almoço
e, no início do expediente da tarde, chamou o secretário de Obras e
ordenou a construção de um banheiro e um pequeno aposento por
trás do gabinete.
A revolução não dorme; os homens é que precisam descansar, sentenciou vagamente para justificar a sua determinação.
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Capítulo 8
O coronel e seus dois mamulengos
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[ 8 ] O coronel e seus dois mamulengos
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O golpe militar pegou de surpresa também as
lideranças políticas de Boi Pintado.
Desde a redemocratização de 1945, o coronel Honorato, com o controle do PSD, deu as cartas sozinho na região. Elegia prefeitos e deputados, indicava delegados, mandava em promotores e juízes de direito.
Tomava as dores de donzelas descabaçadas, desmanchava noivados e
determinava casamentos. Metia-se em todos os aspectos da vida do
seu eleitorado. Chegava ao ponto de revogar negócios combinados no
sagrado fio do bigode ou até mesmo de papel passado, porque entre
muitas outras coisas, ele mandava e desmandava no cartório do seu
correligionário Acioli.
Impunha-se, principalmente, através dos capangas, que formavam
um miniexército privado conhecido como Os Meninos do Coronel,
comandados pelo temido pistoleiro Mané Tiro Certo. Colocava-se
muito acima do reduzido contingente da Polícia Militar, cuja atuação,
praticamente, limitava-se a dar ares de legalidade às prisões que o chefão efetuava ou mandava fazer. Ordenava surras ou promovia a desmoralização de quem lhe desobedecesse ou mesmo desagradasse. Em
casos extremos, determinava quem devia viver ou morrer.
Esse poder sem limites durou até ser desafiado pelo padre Afonso. O
jovem vigário chegou a Boi Pintado no final dos anos 40 do século XX,
cheio de novidades, como quem não quer nada, querendo. Lançou a
ideia e conseguiu verbas para construir um hospital com maternidade,
uma escola profissional, um posto de puericultura e até um ginásio,
entregue à gestão dos afamados educadores maristas. Desenvolvia
também ações sociais, como a realização de Semanas Ruralistas para
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[ 8 ] O coronel e seus dois mamulengos
organizar e educar os agricultores, e fundou um Círculo Operário, de
clara orientação direitista. Com essas práticas, arregimentava os trabalhadores longe da influência das esquerdistas Ligas Camponesas de
Juliano e dos sindicatos de trabalhadores rurais, permanentemente em
formação, cuja atividade se desenvolvia sob forte liderança comunista.
Depois de acumular enorme prestígio através dessa atuação aparentemente apolítica, o pároco entrou para a UDN, partido radicalmente
oposto ao PSD, instalou a oposição em Boi Pintado e passou a disputar a liderança política do município.
O padre Afonso contava, além do mais, com a força econômica e ideológica da Igreja Católica e o respeito imposto pela batina preta. Permanecia usando sempre a indumentária, mesmo após a liberação dessa
vestimenta soturna e inadequada aos trópicos ter sido recomendada
pelo Concílio Vaticano II. Com isso, ganhou dos desafetos o tratamento pejorativo de Capa-Preta. Também era chamado de Satanás de
Capa Preta e outras variações em torno do mesmo tema.
Bem se diz que a concorrência é a alma do negócio. A disputa pela
liderança só trouxe vantagens para a população de Boi Pintado. Os
seguidores do coronel reagiram ao hospital criando um centro social
que dava atendimento médico e dentário e distribuía remédio de graça na cidade e nos distritos. O vigário reivindicou e conseguiu a luz
elétrica de Paulo Afonso. O coronel respondeu trazendo água encanada. O padre anunciou uma rádio, o coronel construiu uma moderna
quadra de esportes. A companhia telefônica também chegou, ambos
reivindicaram a paternidade. Não ficou claro de quem foi o mérito.
Os seguidores do padre passaram a chamar os adversários de marimbondos, porque ferroam e não produzem nada de útil. O povo do coronel devolveu apelidando os adversários de embola-bostas, besouros
que não voam e vivem na lama.
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Com a radicalização do quadro, após as primeiras escaramuças eleitorais, em pouco tempo os embola-bostas impuseram uma primeira e
inesquecível quase derrota aos marimbondos, ainda no final dos anos
50. O candidato que rezava pela cartilha do padre só perdeu a Prefeitura graças a notórias fraudes na apuração dos votos dos distritos.
Passou a ser chamado de Prefeito Moral.
Para piorar a situação, o usineiro Cid Sampaio, da UDN, ganhou o
embate travado entre as elites do litoral contra os chefes do interior.
Elegeu-se folgadamente governador no pleito de 1958.
O coronel conheceu, então, todas as agruras da oposição. Perdeu os
seus privilégios, assistiu a adversários ocupando cargos que havia
anos estavam nas mãos de fiéis seguidores seus. Foram tempos de
sofrimento.
Quatro anos passam depressa, tentavam consolar os mais próximos. Só
que quando chegou 1962, o PSD, partido dos coronéis, não dispunha
sequer de um nome competitivo para enfrentar o candidato da situação, o também usineiro João Cleofas.
Os chefões do interior compreenderam que os tempos eram outros.
Cientes do seu enfraquecimento, resolveram ousar. Decidiram apoiar
o esquerdista Miguel Arraes, que se destacara como prefeito do Recife, para concorrer ao Governo do Estado. O PSD cedeu a cabeça da
chapa ao representante do Partido Socialista e se contentou em indicar o candidato a vice-governador. O escolhido foi o fazendeiro Paulo
Guerra, político tradicional, amigo de todos e reconhecido como educado e boa-praça. Assim, somando a votação urbana com os votos de
cabresto dos grotões, teriam chance de ganhar.
Não deu outra. Com a vitória apertada dessa exótica e inédita aliança
eleitoral, os coronéis recuperaram pelo menos o sagrado direito de frequentar o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo pernambucano. Melhor perder os anéis do que os dedos.
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[ 8 ] O coronel e seus dois mamulengos
Não foi uma reconquista total e absoluta, como seria ideal. Mas pelo
menos o conservador PSD assistiu a arquirrival UDN amargar a derrota, desocupar as gavetas do Palácio e se recolher à insignificância da
oposição.
Navegando nos ventos favoráveis do pleito e gastando dinheiro como
nunca, o coronel Honorato reelegeu os seus filhos Honorato Meu
Doutor e o caçula Francisquinho como deputados federal e estadual,
respectivamente. Porém às custas de um sacrifício inimaginável: teve
que descer do pedestal e pedir votos pessoalmente, visitando eleitores
de casa em casa, apertando mãos na feira, lembrando favores antigos,
bebendo cafezinho sem querer, comendo buchada de bode nos sítios
dos cabos eleitorais.
Para o coronel, isso era uma violência contra os seus métodos. O
máximo que fazia, até então, era aviar uma ou outra receita de eleitor, providenciar um enterro, distribuir chapéus e bonés enfeitados
com os nomes dos seus candidatos. Também fazia parte do seu ritual
fornecer ponche e cachaça nos comícios. E, no dia da eleição, providenciar transporte, além de pirão e churrasco para encher a pança dos
eleitores.
Dessa vez, sem poder mais confiar no seu taco, viu-se forçado a recorrer a práticas que sempre criticara nos adversários. Providenciou a distribuição de sapatos em massa para famílias carentes dos sítios onde
não tinha controle completo dos votos. Claro que espertamente só
entregou o pé direito; o outro somente após os votos saírem nas urnas.
Essa iniciativa pitoresca gerou o fenômeno da turma de um sapato só.
Depois da eleição, não era raro aparecerem pessoas, e às vezes famílias
inteiras, calçadas com o sapato do pé direito e um chinelinho de couro no pé esquerdo. Alguns, tentando disfarçar, simulavam um curativo no dedão do pé para justificar a munganga, porém isso não colou.
Todo mundo sabia que se tratava de eleitor que não cumpriu o trato
com o coronel.
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A procedente preocupação do coronel o levou a também comprar
apoios de chefetes políticos em currais eleitorais do Sertão. Logo
ele que, dono absoluto dos seus votos, sempre criticara esse método
quando usado pelos adversários. E que, a bem da verdade, também
contrariava a sua visão de política e a sua autoestima.
Os dois filhos eram tidos como ruins de campanha, tinham pouco
traquejo na rua. Eram motivo de zombaria até de correligionários.
Honorato não abre a mão nem para dar adeus, diziam. Francisquinho,
quando a verdade termina, ele prossegue com a maior tranquilidade e,
se ninguém parar, vai longe, comentavam sobre o caçula. Ambos eram
chamados de mamulengos do coronel.
A eleição dessas duas peças e uma vitória difícil de Arraes nos seus
domínios custou todo o lucro de duas boas safras de algodão. Doeu
no bolso que, como todo mundo sabe, é a parte mais sensível do corpo
humano.
A verdade é que os votos de Boi Pintado e cidades vizinhas foram tão
divididos que o padre Afonso também conquistou um mandato na
Assembleia Estadual e seu candidato a deputado federal, um almofadinha importado que nunca antes tinha sequer posto os sapatos de
couro de crocodilo na região, teve quase tantos votos quanto Honorato Meu Doutor.
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[ 8 ] O coronel e seus dois mamulengos
Pra baixo, todo santo ajuda
O filho mais velho do coronel carregava seu apelido desde a infância.
A formatura em medicina sempre foi um sonho do pai. Nas suas andanças ou quando recebia visitas, apresentava o menino a todos dizendo: Este vai ser o meu doutor, para mostrar a esses bestas daqui como
se cura de verdade. O destino traçado acabou se cumprindo, embora
por linhas um pouco tortas. Honorato fracassou nas primeiras tentativas de entrar na “falcudade”, como dizia seu pai, que tinha certas “difilcudades” com a língua. Por exemplo, nunca conseguia pronunciar
corretamente a palavra ódio. Depois que rompeu com o vigário, não
perdia a oportunidade de mostrar seu “óidio” pelo padre, que classificava como safado, mulherengo e ladrão.
Honorato levou pau em vários vestibulares para Medicina. Tentou
inicialmente as instituições mais conceituadas, como as do Recife e
Salvador, depois apelou para uma entidade particular do interior de
Goiás, sem o menor sucesso. Fazia os melhores cursos preparatórios,
gastava noites e noites queimando as pestanas e, na hora H, derrapava.
Parecia uma ziquizira.
Acabou recorrendo a um curso quase por correspondência na Bolívia, onde conseguiu o título como aluno laureado. Apesar de toda a
solidez da sua formação técnica e da influência política da família e
dele próprio, jamais conseguiu ter o diploma reconhecido no Brasil.
Mexeu os pauzinhos como pode, esgotou a argumentação, sem sucesso. Certas barreiras da burocracia são intransponíveis. Apesar desse
pequeno detalhe, usava anel de esmeralda do tamanho de um limão,
motivo de mangação dos adversários, que afirmavam ter melhor destino o ornamento caso enfeitasse o rabo de um cachorro.
Já Francisquinho, que até então não tinha apelido, ganhou o seu logo
no dia da estreia como deputado estadual. Estrela de uma entrevista coletiva, motivada pelo fato de ser ele o mais jovem integrante da
Assembleia Legislativa em todos os tempos, o repórter perguntou
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por que decidiu abraçar a carreira política. Órfão de mãe desde muito
cedo, educado por uma tia que pregava falar a verdade como um bem
supremo do caráter dos cidadãos e ainda meio verde no traquejo da
política, Francisquinho respondeu encabulado: Porque pai mandou.
Para aprender que uma coisa é conversa de tia velha pelos quartos da
casa e outra muito diferente é a vida real aqui fora, e também tomar
ciência de que a sinceridade dificilmente é recompensada na vida pública, foi ridicularizado de forma absolutamente desproporcional.
Na época, existia no Recife um programa de rádio de grande audiência, que repercutia em todo o estado, chamado A Hora da Carrocinha.
Quando um político ou pessoa famosa dizia ou fazia bobagem, o apresentador contava e recontava o caso, exagerando nos detalhes para ficar ainda mais engraçado. Além disso, fazia uma falsa enquete, com ele
mesmo perguntando se jogava ou não jogava o fulano na carroça do
lixo. Cada vez que perguntava, a resposta era engrossada em crescente
por várias vozes: Joga! Joga! Joga! Em pouco tempo, graças aos efeitos
de sonoplastia, a impressão era de que a emissora tinha sido invadida
por uma irada multidão. Quase nenhum escapava da condenação e
geralmente a pilhéria culminava com a vítima sendo impiedosamente
atirada na carrocinha. Tudo isso acompanhado do som de ferraduras
batendo no calçamento, além de relinchos de cavalos.
O jovem parlamentar, não só foi passear na carrocinha por vários dias
seguidos, como, por pura maldade da produção, a emissora ficava repetindo, inclusive nas chamadas, o trecho fatal da entrevista, de modo
que até hoje, aposentado e com a saúde precária, carrega o apelido de
Francisquinho Pai Mandou.
O declínio do coronelismo, na verdade, era um processo irreversível.
Faça tudo na vida menos tropeçar descendo uma escada. Depois do
passo em falso, é muito difícil o vivente se aprumar outra vez. Foi o
que aconteceu, no sentido figurado, é claro, com o coronel Honorato
Francisco das Chagas.
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[ 8 ] O coronel e seus dois mamulengos
Ele nunca teve motivo para se queixar de Arraes. O governador bem
que retribuiu o apoio recebido. O coronel recolocou em todos os
cargos estaduais de Boi Pintado e adjacências os seus protegidos que
tinham sido defenestrados no governo anterior. Saboreou os seguidores do monsenhor Afonso voltarem para a planície com o rabo entre
as pernas.
Francisquinho foi indicado líder da bancada na Assembleia. Ele próprio jamais esperou na antessala de nenhum secretário. Mesmo sem
marcar audiência, era imediatamente recebido. Isso é prova de prestígio. Na política, vale muito.
Entretanto não estava totalmente feliz. O seu poder sofria evidentes
limitações. Já não controlava mais a polícia e muito menos a Justiça.
Perante as novas práticas republicanas, todos os eleitores passaram a
ser iguais, independente do partido. Onde já se viu?
O coronel não tinha mais cobertura para ordenar sequer uma boa pisa
de cipó de boi em adversário desrespeitoso, como era do seu agrado.
Ou seja, o seu tempo de arbitrariedades chegara ao fim. Isso lhe contrariava. Poder que não pode, que tem que respeitar direito de adversários, não é poder.
Por isso, pesando os prós e os contras, não se alterou quando parte
do Exército Brasileiro quebrou a hierarquia, rasgou a Constituição e
implantou uma nova ditadura no País. O presidente Jango foi deposto
e exilado? Já foi tarde. Os comunistas estavam levando pau no lombo?
Bem feito, deviam era fuzilar todos eles. Políticos foram cassados? Fizeram por onde. Artistas, estudantes, camponeses, operários, jornalistas e intelectuais estavam sendo presos e seviciados? Rezando é que
não estavam. Eram esses conceitos que o coronel emitia para os seus
interlocutores.
Lamentou que a avalancha tenha atingido o governador de Pernambuco, Miguel Arraes e o prefeito do Recife, Pelópidas da Silveira.
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Ambos o tratavam muito bem. Mas foi pura teimosia dos dois. Como
se explica que tenham se recusado a entregar os seus mandatos aos
militares vitoriosos?
Não adianta ir contra rio cheio, pica dura e faca de ponta. Para ele, era
contra o bom senso um homem como Arraes, com pouco mais de 40
anos, viúvo, pai de 8 filhos menores, recém-casado de novo, desafiar o
golpe vitorioso. Com o Palácio cercado, devia ter renunciado e ir para
casa. Ao invés disso ficou no posto, com a conversa de que seu mandato fora dado pelo povo e só o povo podia tomá-lo de volta. Resultado:
acabou deposto, preso e remetido para Fernando de Noronha. Registre-se que, na época, a atual paradisíaca ilha turística não passava de
um remoto presídio isolado no meio do Atlântico.
Esse povo não quer botar na cabeça que política é um negócio, a gente
entra para se dar bem na vida. Política com P maiúsculo, para defender
ideias e programas é coisa de gente lesa. O sujeito se arriscar e ameaçar
até a segurança dos filhos para defender princípios só pode ser idiota.
Era isso que ele pensava e dizia.
Acompanhando a marcha dos acontecimentos da rede na casa grande
de sua fazenda predileta, o coronel ordenou aos filhos, por telefone, a
adesão imediata e irrestrita ao novo regime. Apesar do apoio que dera
a Arraes, o coronel se iludiu achando que sua hora tinha chegado novamente. O movimento militar tinha como objetivo conjurar o perigo
vermelho do Brasil. Ele, anticomunista e adesista de primeira hora, deveria ter sua atitude reconhecida e sua importância valorizada.
Se o velho líder tinha perdido o faro, não sei. A dinâmica do processo social deixa para trás pessoas que em algum momento foram tidas
como sábias ou imbatíveis. A vida não prospera pelo caminho da lógica. São as contradições que constroem a História.
No lugar de restaurar o antigo poderio dos coronéis conservadores, o
novo regime militar acelerou a sua trajetória descendente. Disposta a
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[ 8 ] O coronel e seus dois mamulengos
acabar de vez com as arcaicas e inconfiáveis estruturas de mando do
interior do Nordeste do Brasil, a ditadura recém-instalada golpeou e
enfraqueceu de morte o coronelismo em geral.
O que sucedeu nos meses seguintes em Boi Pintado, embora totalmente atípico, acabou sendo indicativo do destino que estava reservado para todos os coronéis.
Para Honorato Francisco das Chagas, antigo senhor de baraço e cutelo
de Boi Pintado e região, o golpe trouxe como consequência uma via
crucis particular, exclusiva. Com um encaminhamento que nenhum
outro coronel sofreu. E, por mais paradoxal que pareça, ainda bem que
o seu desfecho foi rápido, certeiro e mortal.
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Capítulo 9
Um enterro do outro mundo
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[ 9 ] Um enterro do outro mundo
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Já foi dito que o estilo define o homem. Jota
França tinha a sua marca registrada: transmitia qualquer acontecimento como se estivesse descrevendo uma acirrada peleja esportiva.
Missa solene, batizado, casamento, sessão do grêmio escolar, comício,
entrega de título de cidadão, enfim, todo e qualquer evento, das mais
diversificadas naturezas, era sempre narrado com a paixão, a sinceridade, a volúpia com que descrevia as imortais pelejas futebolísticas
da localidade. Não faltava quem alertasse para ele diminuir a dose da
emoção. Cuidado, Jota, diziam os amigos, qualquer dia desses um gol
de placa te mata.
Entrou para a posteridade a cobertura realizada pelo locutor do gogó
de aço do enterro que depositou na cidade dos pés juntos o coronel
Honorato Francisco das Chagas.
Logo que chegou a Boi Pintado, de cara, sem qualquer motivo aparente, o xerife tomou assinatura com ele. Não deu o menor cabimento. A
um emissário que veio sondar o terreno disse que oportunamente iria
conhecer pessoalmente o chefão.
Agora, fortalecido, partiu para decidir a parada, estimulado pelo relato
do juiz sobre a resistência do velho líder em colaborar para a formação
da milícia. Fez a ele sua prometida visita, que deveria ter sido de cortesia. No entanto, o clima foi o mais azedo possível.
Cara a cara, sustentando sem piscar o duro olhar do líder, exigiu a dispersão dos pistoleiros e a entrega das armas privativas das forças armadas ao delegado de polícia. Deu um prazo de 48 horas, levantou-se, e
saiu sem sequer dizer até logo.
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[ 9 ] Um enterro do outro mundo
Porém o golpe mais doloroso, a maior humilhação possível e imaginável, foi ter baixado, a seguir, o Ato Municipal nº1, para atingir o
chefe político. Pregado nos postes, afixado nas repartições públicas,
distribuído na feira e lido nos atos religiosos, o documento proibia,
sob pena de prisão inafiançável, o uso de títulos militares para se referir a qualquer indivíduo que não fosse integrante efetivo das Forças
Armadas.
Tendo amargado nos últimos anos a perda do seu poder ilimitado de
mandar e desmandar, com mais essa, o coronel ficou em um estado
de espírito indescritível. Estava furioso, sim. Frustrado, também. Abatido, com certeza. Triste. Irritado. Desconfiado. Nunca imaginou que
a alma humana pudesse acomodar tantos sentimentos negativos ao
mesmo tempo.
À noite, reunido com a sua equipe de confiança, os amigos leais e mais
chegados, desabafou: Essa tal Revolução Redentora que os militares fizeram é uma boa porcaria. Um desastre. Uma esculhambação. O País
estava à beira do precipício, precisava mesmo de uma intervenção. Só
que esses gorilas filhos da puta deram um passo à frente. Caímos direto
no abismo. Enquanto falava, ia se exaltando. Querem saber de uma coisa? Dirigindo-se ao portão da casa gritou a plenos pulmões: Revolução
Redentora é o caralho de asa. Essa porra é um golpe militar de merda.
Vindo da boca de um comunista ou adversário ferrenho do regime, a
frase já soaria forte. Emitida pelo maior latifundiário do Agreste pernambucano, direitista por convicção, torcedor declarado dos Estados
Unidos na Guerra do Vietnã, comprovava, mais uma vez, que a vida
não segue um roteiro baseado na lógica.
A resposta da rua foi o silêncio. A seleta plateia não encontrava palavras para argumentar. Apesar de assustada, balançava a cabeça com
sinal de aprovação, em apoio moral ao chefe. Vou romper com essa
merda, declarar guerra a esse governo safado, dar uma surra de cipó de
boi nesse xerife farsante, decretar a independência de Boi Pintado como
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Pereira fez em Princesa na Revolução de 30. Compadre Aurélio, junte os
Meninos que a brincadeira vai começar.
Se os revezes dos anos anteriores tinham calejado seu espírito, ainda
não passara pela desdita de dar uma ordem ao seu grupo de confiança e não ser imediatamente obedecido. O correligionário olhou para
os outros, coçou a cabeça e, pela primeira vez na vida, ousou ponderar uma ordem do chefe. Coronel, disse ele, não seria melhor ouvir as
opiniões dos demais? Deputado Honorato Meu Doutor, o que o senhor
acha dessa proposta?
Antes que o coronel conseguisse se recuperar do impacto de ter de
imediato percebido que seu tempo passara de vez, o filho assumiu a
palavra: Papai, com o reconhecimento e obediência que todos lhe devemos, eu respeitosamente lhe peço que reconsidere essa decisão. Isso vai
nos expor a um conflito sem futuro. No mínimo, vamos começar perdendo nossos mandatos, Francisquinho e eu...
O velho leão despertou da letargia. E vociferou: Por acaso vocês nasceram deputados, seus dois filhos de rapariga? Mandato a gente perde
e recupera; agora, vergonha na cara, quando se derrete, é para sempre.
Ninguém é líder por acaso. Se a gente comanda um povo e não toma
posição clara e firme, anoitece mandando e amanhece sem ter quem lhe
obedeça.
O velho líder estava, como diz o povo, com a moléstia dos cachorros.
Aproveitou uma brisa que soprava para tomar um fôlego e prosseguiu:
Que falta me faz Mané Tiro Certo! Aquele sim, era bamba no uso do
Colt 45, do rifle papo-amarelo, da espingarda doze, no punhal, na gota
serena, na febre tifo do rato. Com ele aqui, esse intrometido ia dormir
hoje para todo o sempre sem fim com um buraco bem no meio dos olhos.
Lamentou: A vida é assim mesmo. Falhei com ele, estou pagando caro.
E depois de alguns segundos de reflexão: Querem saber de uma coisa?
Fiquem vocês aí, bando de maricas. Eu mesmo vou acertar as contas
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[ 9 ] Um enterro do outro mundo
com esse papangu, mequetrefe, mangangá, ordinário, pustema, rato de
esgoto, monturo de estrume, falsário, canalha e degenerado desse xerife
filho de uma égua manca.
Vou dar uma boa pisa de urtiga nesse porra, arrancar os culhões dele
e mandar entregar na sede do IV Exército. Só assim essa revolução de
meia-tigela vai respeitar a gente. Estou contra essa ditadura mofina e
não abro nem para um trem carregado de pólvora com o maquinista
bêbado e fumando charuto.
Levantou, verificou as condições do 38 na cintura e se dispôs a ir para
a rua. Tentaram contê-lo. Estrebuchou. Honorato Meu Doutor foi firme: Não deixem ele sair, está sob violenta emoção, não sabe o que está
fazendo. Se ele atirar no xerife, vai ser uma tragédia para ele e para todos nós. Podem segurar o homem, por minha conta.
Contido, ainda mais contrariado, teve que tomar remédio à força e
pela primeira vez na vida dormiu sob efeito de medicamentos.
Para ele, foi o fim da linha.
Com a cassação do seu título, Honorato nem mais de coronel podia
ser chamado. O povo, com medo dos longos e onipresentes braços da
repressão, não sabia mais como se dirigir a ele ou sequer fazer menção
do seu nome a terceiros. Doutor ele não era, podia até parecer uma
forma irônica de tratar, naquelas circunstâncias. Chamá-lo de seu Honorato era quase humilhante, até o vendedor de farinha no mercado
tinha direito a esse tratamento. Honorato simplesmente era excesso
de avacalhação, nem em campanha eleitoral, quando todo mundo vira
íntimo de todo mundo, ele era chamado dessa forma. Assim, de uma
tacada só, perdeu a patente, a identidade, a vaidade, o amor próprio e
o orgulho. Tornou-se uma sombra do que era. Um verdadeiro zumbi.
Quase uma assombração.
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Tamanha humilhação tirou de vez sua vontade de viver. Dizem que a
maior dor que um ser humano pode sofrer não é a do parto, do cálculo
renal, nem mesmo de um chute nos testículos. É a dor da alma. Acometido irremediavelmente por várias nuanças desse sofrimento sem
fim, Honorato Francisco das Chagas faleceu melancolicamente pouco
tempo depois.
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[ 9 ] Um enterro do outro mundo
Gol de placa
O que não se consegue nesta vida, pode se alcançar na outra.
Com o velho Honorato funcionou mais ou menos assim. Paradoxalmente, a morte funcionou como uma instantânea redenção. Reacendeu como que por encanto a magia antiga da liderança meio mística
que exercera sobre os agricultores pobres e mesmo entre o povo mais
esclarecido das áreas urbanas.
Uma multidão nunca vista se aglomerou para prestar-lhe a última homenagem. Eleitores que tinham se bandeado para as hostes do padre
Afonso choravam convulsivamente com as cabeças cobertas de cinzas. Até gente que tinha levado pisa, facada ou mesmo escapado de
tiro dos seus capangas, cabras que foram obrigados a casar a contragosto, fazendeiros que sofreram confisco de bens, maloqueiros que
tiveram as cabeças raspadas, todos se aglomeravam engrossando as
honras póstumas.
Dona Cecinha, anos antes, foi pivô de um dos crimes mais comentados de Boi Pintado. Frequentadora da igreja, integrante da corporação das Filhas de Maria, que reunia as mulheres mais devotas, acabou
fazendo a cabeça do marido. Antes defensor ferrenho do coronel, o
correligionário Tobias terminou virando a casaca, bandeando-se para
as hostes do padre Afonso. Um dia, ambos estavam no restaurante Panela de Ouro, na Rua Sete de Setembro, que lhes garantia o digno sustento, quando apareceu um elemento provocador enviado pelo chefe
político que acusou o golpe da traição e decidiu desmoralizar o casal
para servir de exemplo.
Dia de feira, o restaurante cheio de matutos tirando a barriga da miséria, chega o capanga, arrogante, autossuficiente e certo de ter imunidade conferida pela fama de arruaceiro. Bebeu uma lapada de cachaça
com tripa assada e na primeira oportunidade passou a mão na bunda
da mulher. Não satisfeito, largou o chiste em alto e bom para todos os
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presentes ouvirem: Dona Cecinha, além da senhora, o que tem de bom
para comer aqui?
Nem teve tempo de piscar. Tobias veio por trás e plantou-lhe na caixa
dos peitos a faca peixeira de 30 polegadas com que cortava uma talhada de charque. O cabra caiu estrebuchando e morreu ali mesmo. O assassino aproveitou o tumulto, fugiu pela porta de trás, ganhou o mato,
escafedeu-se no oco do mundo. Nunca foi preso, dizem que refez a
vida para as bandas de São Paulo, jamais voltou a viver com a esposa.
O episódio arruinou a existência de dona Cecinha, a partir de então
viúva de marido vivo. Pois bem; até ela chorava copiosamente no velório, de mantilha na cabeça e terço na mão. Bem que se diz que a memória do povo é curta.
Apesar da ausência das autoridades civis, militares e eclesiásticas do
estado, o enterro do coronel foi, sem dúvida, o mais concorrido e tumultuado do Agreste. Depois de narrar a partir de um carro de som os
principais lances do deslocamento da massa humana que se espremia
pelas ruas estreitas para acompanhar o cortejo, o aplicado locutor Jota
França trepou no portão do cemitério, mal se equilibrando na ponta
dos pés, para não perder qualquer detalhe da etapa final do ex-coronel
neste lado da terra.
Descreveu cada lance da jornada: Lá vem a multidão se deslocando pela
direita, pela esquerda, pelo centro. Deliram os aficionados, os homens soluçam, as mulheres em prantos. Antigos companheiros fazem força para
tocar no féretro. Os filhos carregam o caixão nos ombros, avançam com
dificuldade, ajudados por ex-auxiliares e pelos mais importantes cabos
eleitorais. O relógio não para, são 17 horas e 15 minutos, vivemos os últimos instantes da fase complementar da existência deste grande homem.
Podemos dizer que já estamos nos descontos. O cortejo vai invadindo o
cemitério, passa com dificuldade sob meus pés, entrou na área santa, as
pessoas driblam as sepulturas. Bate e rebate das coroas de flores, os filhos e amigos próximos já não conseguem manter o caixão sob controle,
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[ 9 ] Um enterro do outro mundo
é pimba no envelope. O povo rouba o ataúde que agora evolui de mão
em mão, um verdadeiro olé nos minutos finais, chega até a marca fatal
da cova, vai baixando à sepultura, vai baixando, vai baixando... Baixooooooooooooooooooou!!! O imortal ex-coronel Honorato Francisco
das Chagas beija o véu da noiva e adentra à sua última morada.
E finalizando em grande estilo, no tom epopeico que aprendera ouvindo as transmissões em ondas curtas das jornadas esportivas do Rio
de Janeiro e de São Paulo: Retira-se o público, o cenário da peleja está
deserto, cerram-se as cortinas do fúnebre espetáculo.
A cidade estava triste, até os embola-bostas mais ferrenhos manifestavam o seu sincero pesar. Percebendo esse clima, o monsenhor se
inspirou para a jogada de mestre que daria ainda nessa mesma noite.
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A ameaça do anticristo
O certo é que a existência humana, como diz o povo, é assim mesmo. O ciclo se fecha para alguns, mas logo vai se abrindo para outros.
Como o futebol na linguagem dos locutores de antigamente, a vida
também é uma caixinha de surpresas.
No dia seguinte, na missa matinal que o padre Jovino rezava na capelinha do Hospital Santo Afonso para confortar os doentes e apoiar
o trabalho da dedicada Ordem das Freiras Beneficentes, ocorreu um
fato ligado à natividade e que daria muito o que falar.
A protagonista foi a jovem e bela irmã Maria do Espírito Santo. Em
plena hora da comunhão, quando abriu a boca para receber a hóstia,
que naquele tempo ainda era colocada ali pelo celebrante, desmaiou.
Ficou totalmente desacordada. Parecia que estava morta.
Por sorte dela, o Dr. Hidelbrando vinha chegando para assumir suas
atividades e fez imediatamente os primeiros atendimentos.
A freira foi levada para uma sala de exames e, depois de certo tempo,
Dr. Hidelbrando saiu, puxou pelo braço para um canto a madre superiora, que aguardava disciplinadamente do lado de fora, como os
demais, e cochichou no seu ouvido: Temos uma questão delicada. A
irmã Maria está grávida. E ainda por cima, o seu hímen está inviolado.
Ou seja, grávida e virgem.
A madre superiora caiu das nuvens e repetiu em tom mais alto do que
o conveniente: Grávida e virgem? Como pode ser isso, doutor? O senhor
tem certeza?
Certeza absoluta, irmã. Gravidez de aproximadamente 4 meses. Hímen
inviolado. Claro que faremos exames complementares para confirmar,
mas não espere outro resultado.
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[ 9 ] Um enterro do outro mundo
A madre estava completamente perdida: Meu Deus do céu, e agora?
Agora, sugeriu o médico, ela deveria comunicar imediatamente aos
escalões mais altos da ordem e aguardar orientação. Da parte do Dr.
Hidelbrando, podia contar com discrição total. Mas não esperasse
qualquer concessão quanto ao laudo. O atendimento ficaria registrado e o resultado anotado com as devidas prescrições, de acordo com
o protocolo hospitalar. O que podia fazer era deixar a irmã Maria internada, aos cuidados da enfermeira que acompanhara o atendimento,
de modo que o segredo se mantivesse preservado até a chegada de
orientações.
Tudo estaria muito bem encaminhado se as paredes não tivessem ouvidos. A fala da madre foi escutada por pessoa bisbilhoteira, curiosa e
fofoqueira. Em menos de meia hora começou a chegar gente na porta
do hospital. Em pouco tempo estava organizada uma novena, com as
pessoas cantando, rezando o rosário, com velas acesas na mão.
Foram logo contar ao xerife, mas este teve a feliz iniciativa de não interferir. Sequer entrou em cena quando o beato Elias chegou arrastando seu séquito e se postou no pátio do hospital sem dizer nada. Horas
depois levantou a voz e bradou uma frase aterradora para aqueles fiéis:
Mais um sinal de que o fim dos tempos está chegando. O anticristo, concebido pelo Satanás, está no ventre dessa falsa Virgem Maria.
Fez outra longa pausa. Quando uma beata puxou a reza novamente,
interrompeu e voltou a falar com sua voz de trovão: Não louvem, irmãos. Eis que está concebido o Príncipe das Trevas, o filho do Belzebu.
A Besta Fera Calibã vai vir ao mundo em forma de gente para perseguir
os justos, reforçar os ímpios, destruir o céu e trazer o reino da injustiça
para a face da Terra.
Deu meia-volta e retirou-se, deixando as pessoas ali aglomeradas sem
saber como reagir. Passaram-se umas duas horas quando, finalmente, uma voz de beata puxou uma ladainha e aos poucos todos foram
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engrossando novamente o coro de orações. Mas as palavras de Elias
permaneceram pairando sobre a cabeça de todos.
Na cidade, embora por pouco tempo, pois coisas diferentes não paravam de ocorrer, não havia mais outro assunto.
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Capítulo 10
O perigo vem do alto
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[ 10 ] O perigo vem do alto
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A partir do primeiro ato municipal, inspirado no
Ato Institucional nº 1 da ditadura, o usurpador não parou mais. Estava
solto na buraqueira, como se falava. Tornou-se o mais prolífico e detalhista legislador. No seu ímpeto, desagradou muita gente e comprou
briga com diversos segmentos. A vida é assim mesmo. Bem diz o povo
que, quanto mais alto o sujeito sobe no coqueiro, mais perto está da
queda. Boi Pintado é conhecida nacionalmente como a Capital da Vaquejada, esporte nordestino de cabra macho que apaixona e arrasta
multidões. Pois o sujeito resolveu proibir, alegando, imagine, maus-tratos aos animais.
Isso na cidade pioneira da formatação moderna e profissionalização
do esporte, onde o invicto e marrento boi Carrapeta desafiava a perícia
de gente que vinha de longe para tentar sua derrubada. O prêmio acumulado para quem conseguisse o feito parecia o da extração de Natal
da Loteria da Caixa.
O alto valor oferecido pela derrubada de Carrapeta se devia ao fato de
que quem se inscrevia para correr atrás dele pagava uma taxa extra. O
proprietário do animal embolsava metade, a outra parte ia aumentar
a premiação acumulada. Como provavelmente Carrapeta não voltará a ser mencionado neste relato, fique dito que, após tudo voltar ao
normal, o barbatão continuou desafiando a perícia dos corredores e
morreu de velho, sempre competindo e sem nunca ter sentido o gosto
de beijar a poeira.
Outra iniciativa polêmica foi proibir homem de se vestir e requebrar
como mulher, sem sequer abrandar o ato com um parágrafo liberatório, referente ao Carnaval. Tentando restringir a atividade de dois
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[ 10 ] O perigo vem do alto
ou três travestis, que eventualmente, nas caladas da noite, ousavam
desfilar pelas ruas do Centro, acabou irritando muita gente. É o que
acontece com quem dita regras para um lugar sem conhecer suas particularidades culturais.
O bloco das Meninas Virgens ainda hoje é a maior atração carnavalesca fora de época do estado. Antigamente o Carnaval durava somente três dias e acabava na quarta-feira ingrata. Em Boi Pintado,
inventaram de fazer a festa no fim de semana seguinte, para fugir da
concorrência. Foi um sucesso. Quase todos os rapazes do lugar e das
redondezas aderiram à brincadeira. Capricham nas vestes femininas
e saem pelas ruas em folia, tradição que não tem nada a ver com preferência sexual, tanto que quase todos penduram entre as pernas uma
taluda macaxeira; alguns até um pequeno cacho de bananas. Verdade
que uns poucos se aproveitam para dar vazão a certas tendências reprimidas, mas isso é totalmente residual. Caso tivesse prevalecido a
preconceituosa determinação, o bloco teria fechado as portas e não
seria o sucesso que é até hoje.
De invenção em invenção, a autoridade, que, na prática, administrava o município como se tivesse nas mãos os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, foi angariando antipatia em todos os setores da
sociedade. Ao proibir qualquer reunião de mais de cinco pessoas sem
prévia autorização, quer fosse de noite ou de dia, atingiu diretamente
os Tetéus, que foram impedidos de prosseguir com suas tertúlias. Até
o beato Elias, que sempre andava acompanhado por seus doze discípulos e mais uma pequena multidão, virou novamente fora da lei. Os
padres e pastores protestantes, por via das dúvidas, enviavam ofícios
comunicando os horários de missas e cultos.
Uma comprovação de que estava sem sintonia ou não dava mesmo
bolas para o sentimento da população está na sua atitude no dia do velório do coronel, vítima fatal de suas arbitrariedades. Por todos os cantos, os marimbondos destilavam rancor acusando-o de ter provocado
o passamento do líder. Uma verdadeira comoção tomava conta das
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ruas, como foi descrito. Pois, indiferente a tudo, como se não bastasse
o que estava acontecendo, o ingriziento foi comprar briga com o monsenhor Afonso, chefe dos embola-bostas, sem sequer marcar hora.
Quando assumiu o mandato de deputado estadual, o monsenhor foi
afastado da posição de vigário. O bispo, intransigente e de olho num
potencial concorrente, não permitiu o acúmulo dos cargos político e
eclesiástico. O padre, entretanto, não abdicou dos confortos da casa
paroquial que ele mesmo construiu com dinheiro da paróquia, com
todos os requintes da modernidade.
O visitante inesperado bateu na porta, D. Severina veio atender. Trocaram cumprimentos em pé, a fiel criada do lado de dentro, o visitante
do lado de fora. Travou-se lacônico e ríspido diálogo. Boa tarde. Boa
tarde; O deputado, por favor? Desculpe, sua excelência reverendíssima
está repousando. Então, faça a gentileza de chamá-lo.
Sem cerimônia, de acordo com o seu feitio, empurrou a porta, entrou
sem ser convidado e se aboletou na cadeira de balanço mais confortável, exatamente a preferida pelo monsenhor.
Preocupada com a presença incômoda, D. Severina preferiu acordar o
sacerdote, mesmo sabendo que ele detestava ser incomodado durante
as suas sonecas. O monsenhor desceu as escadas visivelmente irritado.
Dirigiu-se à autoridade, de cara fechada, estendeu a mão esperando o
beijo respeitoso com que o brindavam os fiéis. O indivíduo fez que
nem viu, sequer apertou-lhe a mão, respondeu com um gesto ambíguo, que tanto podia significar somos iguais como conheça o seu lugar.
Embora não fizesse maior esforço para isso, o visitante estava muito
bem informado sobre a vida e as mutretas passadas, presentes e até articuladas para o futuro envolvendo os dois principais grupos políticos
do lugar. Todo santo dia, partidários dos marimbondos e dos embola-bostas pediam um particular com ele para futricar acerca do grupo
adversário. Denúncias de todo tipo se acumulavam dos dois lados. O
monsenhor não estava acima das leis e das regras estabelecidas. Sua
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[ 10 ] O perigo vem do alto
presença não era visita de cortesia. Estava em missão revolucionária e,
como não era de perder tempo com rapapés, entrou direto no assunto.
Deputado, o senhor sabe que a moralidade é uma preocupação primordial do nosso governo. Como a mulher de César, nós, revolucionários,
temos que ser honestos e parecer honestos. Por isso, como o senhor é um
dos mais importantes símbolos da nova era que vamos construir neste
País, nenhuma dúvida pode pairar sobre as suas importantes atividades
sociais. Então eu gostaria que o senhor me apresentasse a planilha dos
custos da construção da sua nova igreja, futura catedral, para que eu
possa calar os maledicentes que insistem em dizer que houve superfaturamento e desvio para sua campanha das doações dos fiéis.
O padre ficou lívido, o corpanzil tremia dos pés à cabeça, o rosto suava
em bicas. Dona Severina, que ia chegando com água gelada e cafezinho recém-passado, viu a hora de presenciar um infarto ou um acidente vascular. A autoridade, impassível, parecia não notar a situação do
interlocutor, tanto que dispensou água e café. E, sem dar uma trégua
para que o reverendo pudesse se recuperar, foi logo engatilhando outras questões tão ou mais desconfortáveis.
Preciso também - disse ele - de uma prestação de contas circunstanciada da organização não governamental de propriedade da paróquia
intitulada Círculo Operário. Segundo documentação em meu poder, a
entidade recebeu recursos federais, estaduais e municipais, emendas parlamentares mais doações de governos estrangeiros e entidades internacionais suficientes para qualificar pelo menos dois milhões de camponeses. Consta dos registros que foram realizadas duas Semanas do Campo,
com três agrônomos orientadores e cerca de trezentos e doze agricultores
da primeira vez, e duzentos e oitenta e sete da segunda. Falta o senhor
comprovar a qualificação de exatamente um milhão, novecentos e noventa e nove mil, quatrocentos e um agricultores, afirmava, com segurança, lendo uma anotação que puxara do bolso da enfeitada túnica.
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O vigário sentou, apoiou a cabeça entre as mãos, e até cogitava um desmaio na esperança de encerrar a conversa. Como a decisão demorou,
foi forçado a ouvir a continuação do discurso. Embora o monsenhor
estivesse se sentindo atirado em queda livre num poço escuro, o orador prosseguia imperturbável, como se tudo estivesse absolutamente
normal. Essa era uma das suas marcas registradas: tocava fogo no circo
e persistia em estado de absoluta tranquilidade.
Assim, prosseguiu, metralhando o ilustre líder dos embola-bostas: Um
caso delicado, eminência, é o destino dos alimentos doados à paróquia
pela Aliança para o Progresso visando a minorar a fome dos pobres. Fui
informado de que o senhor requisitou e obteve desse vigário de fachada
que lhe substitui para inglês ver que a distribuição dos gêneros americanos fosse feita sob seu comando pessoal e direto. Está correto?
O silêncio do prelado foi entendido, de acordo com o secular provérbio, como consentimento. O visitante, então, retomou a artilharia. Indagou em tom mais agressivo: Então, como o senhor explica que grande
parte dos queijos e manteigas foi parar nas despensas e geladeiras mais
abastadas da região? E quedou-se, esperando a resposta.
O monsenhor até pensou em dizer que os grandes proprietários de
terra recebiam os víveres para distribuir com os trabalhadores rurais
e moradores de suas propriedades. Desistiu. Se explicasse uma coisa,
teria que explicar tudo. Era melhor manter o silêncio. Aquele intrujão
de opereta não tinha autoridade de coisa nenhuma. E, embora a imunidade parlamentar não estivesse valendo um vintém furado naqueles
dias, tinha sobre os ombros o manto protetor da Igreja conservadora;
nada poderia lhe acontecer.
Não obtendo resposta, o abelhudo continuou: Além desse desvio injustificável, dessa ação corrupta e anticristã de tirar dos pobres para dar
aos ricos, os demais enlatados viraram objeto de comércio em toda a
região. Abastecem padarias, mercearias e bodegas daqui e de outros municípios. Não adianta contestar. Isso eu já verifiquei pessoalmente. Fui a
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Santa Maria, Vertentes, João Alfredo e Bom Jardim, além dos distritos
de Casinhas e Vertentes do Lério, Chéus, Oratório, Lagoa da Vaga e
Gangungo.
Em todos os lugares o quadro se repete. Os receptadores confirmam que
os produtos vieram daqui. Isso no seu dicionário pode ter outra palavra,
monsenhor, mas de onde eu venho chama-se simplesmente roubo.
O reverendo estava a par da conversa do interlocutor com o coronel.
Na ocasião, até achara bom. Porém, por muito menos do que estava
ouvindo, o homem não resistiu e bateu as botas. Mas ele, apesar do impacto e da taquicardia, não estava pretendendo morrer nem tão cedo;
tinha um bispado para alcançar.
O outro prosseguia falando como se ele sequer estivesse ali, em vias
de ter um troço. Se o senhor não estiver convencido, terei prazer em lhe
acompanhar para juntos confirmarmos os desvios. Aliás, neste momento, todos os delegados de polícia e autoridades judiciárias com fé de ofício estão dando batidas nos estabelecimentos, autuando os proprietários
e confiscando as mercadorias irregulares. Também mandei avisar que
quem foi enganado pode entregar espontaneamente o produto do roubo
nas prefeituras e será imediatamente anistiado. Devido ao velório do coronel, aqui essa operação vai começar amanhã. Espero o apoio da Igreja
na divulgação das mensagens.
E ainda, para encerrar o assunto, fez questão de dizer: As más línguas
falam que a parte efetivamente distribuída foi direcionada exclusivamente para o seu eleitorado. Falam que os pobres só tiveram acesso à
comida através dos vereadores e cabos eleitorais integrantes do seu grupo
político, ou seja, os chamados embola-bostas. Caso tudo isso tenha acontecido sem o seu conhecimento, gostaria da sua colaboração para que
possamos preservar os inocentes, determinar responsabilidades e punir
exemplarmente os culpados.
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O monsenhor nunca imaginou enfrentar uma, digamos, batina justa
como aquela. Que os inimigos murmurassem, inventassem, caluniassem, exagerassem, tudo bem, fazia parte do jogo. Vindos de uma autoridade democrática e revolucionária, os questionamentos eram inaceitáveis. Procurou forças para dizer isso, mas teve que engolir seco como
farinha com bolacha o restante da diatribe. Por incrível que pareça, o
pior estava por vir.
Há um detalhe mais desagradável, excelência reverendíssima - disse pegando carona no tratamento solene e meio ridículo adotado pela fiel
caseira. Isto porque pode ser facilmente comprovado através de documentação cartorial. Circulam rumores de que o senhor colocou a propriedade do hospital, da escola profissional e de outras obras realizadas
com dinheiro público e da comunidade em nome de seus sobrinhos. Tal
prática caracterizaria tecnicamente o que se chama de nepotismo. Caso
esta acusação também seja verdadeira – sublinhou o também no tom
de voz -, esse caso, além de imoral também seria ilegal. Representaria a
apropriação pelos seus parentes do patrimônio público. E permitiu-se
ensinar padre-nosso a vigário: Embora tenha sido largamente praticado pela Igreja Católica ao longo dos séculos, o nepotismo é totalmente
inaceitável em nossos dias.
E arrematou: Como sois vós quem sois, não vou dar, por enquanto, publicidade à nossa conversa. Nem vou estabelecer um prazo para o cumprimento das solicitações e o cabal esclarecimento das denúncias. Entretanto, não julgo demais recomendar uma certa presteza; os rumores
danificam, não apenas o seu conceito de sacerdote e reserva moral deste
estado, como o da própria Igreja Católica, que deve ser sempre imaculada. Creio que o senhor concorda com minha argumentação, aliás o seu
silêncio comprova isso. E à guisa de despedida: Ande rápido, monsenhor, o tempo agora é outro. A Pátria não pode esperar, nossa revolução
tem pressa.
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Ninguém oferece a outra face
Assim que se recuperou da surpresa e da raiva, o padre não perdeu tempo. Sentindo o tamanho da trolha, percebeu que precisava reagir. E, sozinho, não iria muito longe. Resolveu que era hora da jogada que surpreenderia a todos. Em política não existem as palavras nunca e jamais.
Na mesma noite, deixando de lado o orgulho e as raivas do passado,
fez uma visita de solidariedade cristã aos familiares do recém-sepultado e momentaneamente sem título Honorato Francisco das Chagas.
Chamou para uma conversa reservada Honorato Meu Doutor, que,
com a morte do pai, herdava a liderança dos marimbondos. Demonstrou indignação com o tratamento recebido pelo coronel, disse que
contasse com ele para o que desse e viesse. Certas questões como esta
estão acima da nossa rivalidade paroquial, o trocadilho involuntário
caía como uma luva na situação dos dois grupos.
Agora que a revolução nos colocou no mesmo lado, já que ambos fazemos parte da base aliada do governo, precisamos nos unir para manter
nosso prestígio e nosso poder. Caso contrário, daremos vez a aventureiros
como este, cuja presença tanto nos infelicita. Hoje foi com vocês, amanhã
pode ser comigo. Espertamente o monsenhor antecipava, com essa frase
bem colocada, uma provável quebra do segredo de que se encontrava sob
severa investigação.
Ofereceu-se para expressar o espírito cristão celebrando a missa de
sétimo dia. Seria um gesto simbólico assinalando a pacificação. E combinaram de marcar uma data para uma peregrinação de lamúrias junto
às autoridades constituídas. Juntos representavam uma expressiva força moral e política. Por mais autoritária que fosse, a revolução devia
favores e respeito à ala conservadora da Igreja, como também, um dia,
haveria de precisar dos votos de Boi Pintado e região.
A partir daquele dia, o monsenhor Afonso reassumiu, de fato, a paróquia. Aproveitando que ninguém cobrava a presença de ninguém
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na Assembleia, voltou a celebrar missas diariamente. Não perdia uma
oportunidade para fazer demoradas homilias, que começavam sempre com o bordão “Meus amados irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo” e, na sequência, tome cacete velado no inimigo do momento. Na
verdade, estava era se antecipando. A qualquer momento a autoridade
poderia tornar públicas as acusações. Como ele abriu guerra primeiro,
teria a desculpa de que se tratava de retaliação do atrevido pelas críticas recebidas na igreja.
Todo mundo sabe que as escrituras condenam quem deseja a mulher
do próximo, e ainda por cima prevarica com ela. Os cobradores de
impostos, os ricos, os poderosos, os sepulcros caiados, os filisteus, os
falsos profetas também são personagens bem pouco populares.
Porém, ninguém tinha ainda percebido como o livro sagrado é implacável com quem se mete no que não lhe diz respeito, adultera fardamentos, usa falsas comendas, inventa leis, utiliza título sem direito
legal, age sem mandato em nome de uma causa nobre. Mais surpreendente parecia as condenações bíblicas aos que se enfeitam, àqueles
que sentam na cadeira dos outros, dão cabimento a futricas, são cascas-grossas, chegam sem ser anunciados, invadem as casas alheias, se
hospedam sem pagar a conta, proíbem títulos consagrados pelo uso
e por aí vai. Os que acreditam em fuxico sobre a vida de sacerdotes,
então, cometiam pecado sem perdão, punido com o fogo eterno do
sétimo círculo do inferno.
Bem se diz que cada qual interpreta a Bíblia como quer. Naqueles dias
o padre achava um jeito de enfiar a figura do xerife em todas as alusões
a Satanás, aos espíritos das trevas, aos falsos profetas, aos cavaleiros do
apocalipse. Chegou a afirmar, no limite da explicitação, que o pior tipo
de sepulcro é o caiado na cor de azeitona. Para bom entendedor, meio
sermão já era suficiente.
Faltava ao usurpador coragem suficiente para interferir na igreja, mas
nem por isso ficou inerte. Alegando que o Estado revolucionário
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brasileiro era laico, proibiu o funcionamento dos alto-falantes da
igreja. Alegou que perturbavam o sossego público com pregações religiosas, o que era contrário à Constituição desde a Proclamação da
República. O que não produziu muito efeito. O povo, como se sabe,
gosta de uma baixaria. Como a popularidade do forasteiro andava um
tanto abalada, até maribondos tradicionais deram para frequentar as
homilias do monsenhor.
Os atos religiosos na matriz ganharam frequência extra e cada fiel que
comparecia se encarregava de espalhar as críticas, o que não descumpria
as proibições, desde que se tratava de assunto religioso e não político.
O clima da cidade, quase irrespirável, piorou mais ainda com os preparativos e a execução da Marcha da Família com Deus e pela Revolução, e
com o início da campanha Ouro para o Bem do Brasil. É certo que esses
dois movimentos tinham inspiração nacional, o exemplo vinha de cima.
As Marchas da Família com Deus e pela Liberdade, reunindo beatas,
damas da sociedade, pilantras de todo tipo e reacionários em geral,
compuseram parte importante da estratégia visando a criação de um
ambiente favorável para o golpe militar. Vitorioso o movimento, os
municípios que não tinham feito antes, correram para realizar suas
marchas, agora demonstrando apoio ao fato consumado. O que não
deixava de ser útil ao golpe. Ajudava a convencer o Brasil e, principalmente, os demais países do mundo que os militares tomaram o poder
atendendo ao apelo e com amplo apoio da sociedade.
Da mesma forma, em todo canto prosperava a pilantragem intitulada
Ouro para o Bem do Brasil. Na verdade era um bando de sabidos arrecadando dinheiro dos trouxas.
O xerife marcou a terça-feira seguinte como data da marcha. Evitava,
assim, o sábado, quando se realizava a principal feira da semana, e o
domingo, dedicado ao descanso, aos cultos religiosos e ao futebol.
Além do mais, era dia de expediente público e de atividades escolares.
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Ficava mais fácil mobilizar funcionários e estudantes. Concedeu feriado cívico e cobrou chamada tanto dos funcionários quanto dos
alunos. Quem faltasse sem justificação convincente estava ferrado.
Avisou logo que atestados de saúde não serviriam de álibi; ele não
confiava na isenção dos médicos locais.
Determinou também para a mesma data o início do recolhimento
das doações. Logo na abertura do ato, um fazendeiro entregaria um
enorme cheque simbólico, desses que os atletas recebem nas premiações esportivas. Como esta promoção prosseguiria até o próximo final de semana, todos teriam oportunidade para registrar sua generosa
contribuição.
Surpresas acontecem. Na dia do grandioso ato, quase todas as casas da
cidade amanheceram com panfletos enfiados debaixo das portas. Fora
o xerife opressor, Morte ao imperialismo ianque, Abaixo à ditadura,
eram as palavras de ordem que entrecortavam um texto radical, embora de difícil leitura em virtude da falta de qualidade do mimeógrafo
em que foi impresso. Nada se descobriu sobre os autores da façanha.
Foram em vão as ameaças ou mesmo algumas porradas bem distribuídas pelo destacamento policial. Como, na prática, vigorava um toque
de recolher, ninguém estava na rua de madrugada, Desse modo os
subversivos agiram sem ser perturbados nem identificados.
Os três guardas-noturnos nada viram. Passaram parte da noite tentando
soltar meia dúzia de famintos cachorros de rua que foram trancados com
grossos cadeados e correntes numa espécie de nicho gradeado. A construção, na praça principal, servia exclusivamente para colocar a gigantesca estátua de São José na semana dedicada ao padroeiro. Os cachorros
presos não estavam deixando ninguém dormir com seus ganidos.
Isso só pode ser obra dos Tetéus. Foi a primeira ideia que acorreu ao
usurpador, ao juiz, ao promotor, a quase todo mundo, menos ao delegado. Assim que apanhou o panfleto, atrevidamente enfiado por baixo
da porta do seu quarto na pensão onde morava, viu que a linguagem
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não era dos Tetéus. Onde Cumpade Deca, Továrish Lói, o professor
Natércio iriam falar em luta de classes, mais-valia, ditadura do proletariado e imperialismo americano? Isso era linguagem marxista. Tivera
aula sobre o assunto no curso de formação de oficiais.
Além disso, todos eles menos o professor Natércio Pai dos Burros estavam inscritos e efetivamente participando de um seminário de formação política de cunho direitista, realizado em Maceió. Católico e legalista, o professor estava, por natureza, acima de qualquer suspeita em
participar de um ato daqueles. Como se não bastasse, passou a noite no
hospital aos cuidados do enfermeiro plantonista. Alegava que não conseguia falar. Sua oportuna rouquidão, não identificada pelos médicos, o
levou a declinar da honra de ser um dos oradores da marcha.
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Nem todo dia é dia santo
Conforme programado, assim transcorreu o evento. Foi inquestionável sucesso de público. A convocação obrigatória já garantia o quorum
necessário. Mas que foi desanimado, lá isso foi. O abre-alas com uma
caminhonete de som trazia na caçamba, apertados feito sardinhas
dentro da lata, o xerife, o prefeito, a Dama de Ouro, mais o promotor,
o juiz de direito, o presidente da Câmara de Vereadores, os deputados
Honorato Meu Doutor e Francisquinho Pai Mandou e o gerente do
Banco do Brasil. Monsenhor Afonso, acometido por uma indisposição repentina, mandou o sacristão como representante, mas este, não
tendo direito a subir no carro de honra, seguiu a pé mesmo, como os
mortais comuns.
As pessoas saíam das casas ou postavam-se nas janelas, fazendo cara
de paisagem, mais interessadas na dança das nuvens no firmamento.
Inácio Palma de Trovão, o maior animador de comícios, parecia mais
que estava caçando moscas, olhando para um lado e para o outro antes
de bater as mãos totalmente fora do ritmo. Mestre Evaristo comandava
a banda regendo em tom triste dobrados patrióticos. O repertório era
mais adequado para a Semana Santa. Os estudantes mais velhos estavam preocupadíssimos em preservar os bicos dos sapatos das pedras
irregulares do calçamento; tanto que não tiravam os olhos do chão. Os
funcionários públicos traziam no rosto expressões que tanto podiam
representar profunda concentração cívica, como enorme contrariedade. Alguns chegavam a fazer muxoxos o tempo inteiro, certamente
espantando mosquitos.
Chamou a atenção o cavalheirismo do intruso que, a todo momento,
segurava no braço ou protegia com seu corpo a Dama de Ouro, evitando que tombasse com os saculejos do percurso.
Dias antes ele fora obrigado a convocar a distinta senhora para uma
audiência privada no fim do expediente, para esclarecer as muitas dúvidas acerca da contabilidade municipal. Por coincidência, naquele
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dia ficara pronto o apartamento na Prefeitura e fora colocada uma
cama, mais larga que as de solteiro, mais estreita que as de casal, do
tipo que o povo chamava solteirão. Acomodava bem o movimento
de duas pessoas, desde que abraçadas ou superpostas. O próprio intrometido adquiriu, sem pagar, roupa de cama e banho na loja de Zé
Paulino, bem como os sabonetes mais cheirosos disponíveis na loja
chamada O Depósito, campeã em perfumarias de qualidade.
A dama chegou pontualmente no horário estabelecido, mais exuberante do que de costume. Estava de fechar o comércio, conforme comentou um maloqueiro à distância. Como faltava cerca de uma hora
para o fim do expediente e o desejo era inadiável, a autoridade passou
a chave na porta e partiu para a mulher como um esfomeado encara
um prato de comida. Após praticamente arrancar as roupas, colocou-a
no colo e adentrou ao novo apartamento que apresentou como o nosso ninho de amor.
Amaram-se voluptuosamente, uma transa intensa e barulhenta, quente feito boca de caieira. Nenhum dos dois foi econômico nos gritinhos
e gemidos, bem como naquelas palavras apimentadas que os amantes
costumam utilizar. Podia-se até pensar que a Dama de Ouro arrulhava
em tom acima do razoável, como se estivesse interessada em dar ciência ao mundo da sua nova paixão.
O zelador, que todo dia varria o quintal recolhendo as folhas que
caíam dos pés de castanhola e ouvia tudo pela claraboia que ventilava
o ambiente, não resistiu à tentação. Avisou a alguns funcionários homens, amigos e de confiança. Mesmo correndo o risco de demissão a
bem do serviço público, cerca de dez pessoas formaram uma silenciosa e emocionada audiência, sendo que de vez em quando um corria na
ponta dos pés para se aliviar no banheiro.
A partir de então até seu o último momento na cidade, o forasteiro
passou a ter um terceiro expediente dedicado aos complexos meandros financeiros. A Dama de Ouro, nomeada como assessora especial
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para assuntos financeiros, chegava perto das 18 e geralmente só saía
depois das 22 horas. Bem que se diz: a economia é a alma da administração pública...
Não com tanta clareza de detalhes como no quintal da Prefeitura, porém com qualidade suficiente para incendiar as imaginações nas áreas
externas, nos alpendres e até mesmo outros ambientes das casas próximas, era possível ouvir os arrulhos dos dois pombinhos, principalmente quando a cidade fazia silêncio.
Dessa forma, após o sino da matriz tocar a Hora do Ângelus, até os
rádios eram desligados, as televisões ficavam com imagem, mas sem
som. No máximo, ouvia-se o grito de uma mãe mandando um pirralha
para a cama. As famílias que moravam nas imediações foram atingidas
por um surto de popularidade. Toda noite recebiam visitas, amizades
antigas se revigoravam, parentes descuidados de repente tornaram-se
assíduos; até intrigas bestas foram superadas. Os funcionários das lojas próximas à Prefeitura ganhavam gorjeta dos clientes retardatários
para espichar o horário de atendimento. Trocando discretos olhares
apaixonados no veículo, os dois tentavam esconder um segredo de
polichinelo.
Ao chegar à Prefeitura, onde se daria a apoteose da manifestação, a
autoridade declinou de usar da palavra e sequer subiu no palanque. Ficou no meio do povo para melhor saborear os louvores que certamente seriam feitos para enaltecer a Revolução Redentora e a ele próprio.
Os discursos, entretanto, foram mornos, desprovidos de criatividade
e entusiasmo. Todos elogiavam sem alma, faltava alguma coisa, não se
sabia o quê.
O representante dos maristas, cometendo indesculpável ato falho,
disse que o nome do marechal ditador indicava a sua predestinação.
Forte como um castelo e branco como a paz. Só depois se apercebeu
de que falara o título proibido: ditador. Em seguida, perdeu um tempo
enorme tentando remendar. Explicou, sem convencer ninguém, que
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na Roma Antiga o título de ditador era atribuído ao comandante supremo dos exércitos. Mas o pior de tudo foi a emenda no final. Tentando se recuperar da merda que dissera, atacou aqueles que aproveitam a
tranquilidade da madrugada para semear ideias contrárias à ordem e à
cristandade. E pediu uma moção de repúdio a esses fantasmas vermelhos que eram um perigo para a sociedade.
Pronto. A juventude comunista que agia na clandestinidade ganhou,
de graça e do adversário, o rótulo perfeito. Fantasmas Vermelhos. Essa
nem Lenin nem Trótski tinham pensado.
O prefeito, por sua vez, falou que lugar de comunista era em Cuba e
se prontificou a financiar a passagem de ida sem volta para quantos
quisessem se mudar para a ilha caribenha. E por aí foi.
Furioso mesmo o xerife ficou com o discurso de Hebron, escolhido
para falar em nome dos estudantes. O rapaz era um tanto idoso para
ainda estar cursando o ginasial. Mas isso era comum por ali. Antes da
chegada do Ginásio Pio XII, muitos rapazes concluíam o primário e
as famílias não podiam custear os estudos em Limoeiro ou na capital.
Quando o ginásio chegou, aproveitaram para tentar recuperar o atraso. Muitos eram autodidatas, alguns tinham cultura acima do padrão
dos professores.
Hebron era um desses, pelo menos parecia. Chegara à cidade no ano
anterior, matriculou-se no terceiro ginasial. Já na primeira reunião do
grêmio escolar foi o único voluntário inscrito. Subiu ao palco e anunciou que falaria sobre as sete artes. Começou pela música, terminou
pela literatura, discorrendo com profundidade e segurança acerca de
cada uma delas. Impressionou. Foi eleito orador por unanimidade.
Daí para a frente, em qualquer evento cultural, aparecia a sugestão para
Hebron discorrer sobre as artes. Sempre havia alguém importante que
ainda não presenciara a performance, ele não se fazia de rogado. Era
simplesmente brilhante.
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Pois naquele acontecimento de nuanças exclusivamente políticas,
anunciado com todo o alarido pelo locutor como porta-voz da juventude revolucionária, Hebron se danou a falar sobre as sete artes. Lá
para as tantas, como alguém lhe puxou pela camisa e soprou no ouvido que o tema era outro, atrapalhou-se, não lembrou onde estava e
começou tudo de novo. Quando o usurpador impaciente levantou as
mãos sinalizando para ele encerrar de qualquer jeito, entendeu errado
e concedeu um aparte à autoridade.
Era hora de prevalecer a experiência. Honorato Meu Doutor pegou o
microfone. Puxou um Viva à Revolução Redentora! Em seguida, exclamou Temos dito e sinalizou para Mané Fogueteiro acionar a girândola.
O próprio Meu Doutor providenciara para o foguetório ter o dobro
do tamanho padrão, a fim de valorizar o evento.
Ninguém ficou sabendo quem danado mexeu na posição dos fogos. A
culpa ou mérito, dependendo do ponto de vista, terminou atribuído
aos recém-batizados Fantasmas Vermelhos. Mané alegou que deixou
tudo em ordem. O cabo até podia provar, porque foi até lá em busca
do pagamento de um empréstimo ao fogueteiro, a ocasião para receber era aquela. Depois de armar tudo e vistoriar novamente no início
das falações, deslocou-se para um ponto de onde pudesse visualizar a
ordem para dar início à pirotecnia.
Nesse meio tempo, ardilosamente, a posição das tabocas foi invertida.
Assim, depois de disparados, ao invés dos foguetões se dirigirem para
cair no descampado, como sempre acontecia, subiram quase levemente inclinados na direção da Prefeitura. E começaram a cair exatamente
onde a plateia estava concentrada.
Foi o maior ataque aéreo acontecido em Boi Pintado até hoje. A rua
virou um furdunço sem limites. Parecia uma cena da Segunda Guerra Mundial, conforme um filme havia pouco exibido no Cine-Teatro
Navona. Foi um corre-corre dos diabos. Quando finalmente acabou o bombardeio, a praça estava deserta, muitos se protegeram nas
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[ 10 ] O perigo vem do alto
marquises da lojas ou invadiram casas até de intrigados. A igreja estava
entupida de refugiados, as crianças choravam, muitos exibiam escoriações, galos na cabeça e pequenas queimaduras. Só restavam na rua
poucos moleques que corriam para todo lado atrás de pegar as tabocas
dos fogos e o xerife.
Este permaneceu imóvel no seu lugar; foi o único que estava ao relento
e não correu. Por sorte dele nenhum foguete queimado caíra na sua
cabeça, o seu fardamento de estimação sequer ficou tisnado.
Tendo sua atenção despertada pela algazarra que acompanhava o estrondo dos fogos, o monsenhor Afonso levantou da cama e espiou
cuidadosamente pela janela. Do seu ponto de observação, entendeu
claramente o angu de caroço no qual o adversário estava metido.
Apesar dos ensinamentos do catecismo, valorizando o perdão aos inimigos, que sempre repassava aos fiéis, e do Pai-Nosso que rezava várias vezes ao dia, não pode evitar a comemoração e o xingamento. Bem
feito para esse filho de uma cadela aprender, gritou a plenos pulmões.
Apesar do fuzuê reinante, foi ouvido à distância, mas não foi visto.
Com uma agilidade inesperada, jogou-se sobre o tapete, de modo que
quando os olhares se dirigiram à janela, encontraram o vazio.
Fora das vistas, ajoelhou-se, dirigiu às mãos aos céus e agradeceu:
Obrigado, Senhor, por teres quebrado o orgulho desse filho do Leviatã.
Confesso humildemente, meu Lord, que nem sei se isto está na Bíblia
Sagrada, mas é uma verdade divina: quem aqui faz, aqui paga.
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Capítulo 11
Fé demais, bem, você sabe
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[ 11 ] Fé demais, bem, você sabe
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O usurpador não perdeu um minuto. Se querem
guerra, vão ter guerra. Com os Tetéus fora da cidade, a panfletagem e o
atentado aéreo só podiam ser obra ou dos comunistas ou dos brizolistas. Estes, antes barulhentos e mobilizadores, pareciam ter se evaporado. Depois que a polícia local deteve, maltratou e tentou desmoralizar
o líder deles, o ex-deputado Laércio Travassos, era mais fácil encontrar
um jabuti penteando o cabelo do que alguém usando um lenço vermelho no pescoço. A absurda prisão de Travassos, aliás, expressava o
grau de arbitrariedade a que estava submetida a sociedade brasileira
naqueles tempos sombrios. E que muitas vezes ia além dos limites do
ridículo.
Transcorreu durante uma festa no Sport Club de Boi Pintado, agremiação que reunia a elite da cidade. O deputado recém-cassado, influente integrante do PTB, que privava da amizade de Leonel Brizola e
do próprio presidente Jango, seria um dos homenageados no Baile das
Personalidades. Anualmente, o clube distribuía diplomas e troféus a
pessoas que se destacavam nos seus respectivos campos de atividade.
Como a escolha dos premiados já estava feita e anunciada antes do
golpe, a diretoria achou por bem não alterar a lista, esperando que as
figuras não gratas ao novo regime favorecessem com a sua ausência
por vontade própria.
Apesar de suas principais bases eleitorais serem em outras áreas do
estado, Laércio Travassos era bem votado no município, pois recebia
em peso o apoio dos trabalhistas locais. Circulava bem, era uma figura
amena, cordial, estimada por pobres e ricos. Provavelmente por conta
desse perfil, apesar do seu mandato ter sido cassado logo na primeira
leva, escapara até então de ser preso.
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[ 11 ] Fé demais, bem, você sabe
A ameaça que pesava sobre sua cabeça não o intimidava. Achava que
cabia ao líder dar o exemplo. Para mostrar que não tinha razão para se
esconder ou demonstrar medo e também levantar o moral de quem
sempre confiou nas propostas brizolistas, confirmou que iria buscar
sua condecoração. Devidamente informados, o xerife e o delegado
combinaram um plano maquiavélico. Organizaram os detalhes e determinaram que, no primeiro deslize, o político deveria ser preso, algemado e arrastado do recinto direto para a cadeia.
O ex-deputado chegou com sua elegância de sempre, paletó branco, gravata vermelha. Atravessou o vestíbulo sob os olhares de todos que ali
se encontravam e caminhou direto para o salão de festas. Acenou com
a cabeça cumprimentando as pessoas à distância, apertou duas ou três
mãos que se estenderam no seu percurso e sentou sozinho em cadeira
de mesa de pista. Chamou o garçom, pediu refrigerante e tira gosto.
Quando a entrega dos prêmios que antecedia ao baile estava prestes
a se iniciar, o garçom chegou com o pedido e, meio nervoso ou de
propósito, ninguém sabe, pisou em falso no pequeno degrau que demarcava a pista de danças. Refrigerante, gelo e salgadinhos rolaram sobre a mesa. Para não ser atingido, Travassos teve que se levantar bruscamente e, naquele movimento de surpresa, abriu os braços e soltou
um “epa”. Em seguida, pegou o guardanapo vermelho para enxugar os
respingos que caíram sobre seu paletó. Foi então que recebeu ríspida
voz de prisão, seguida do procedimento preestabelecido, totalmente
inadequado ao ambiente. A partir do episódio, a festa ficou morgada.
O auto lavrado para justificar a prisão registrou que o respeitado homem público se levantou, xingou o regime militar e desfraldou uma
bandeira vermelha tentando sublevar a plateia. Agora, os militares
tinham um fato concreto, apesar de forjado, para fundamentar uma
punição mais severa ao ex-deputado.
Foi mais um ponto para o forasteiro e o delegado. Recambiado no dia
seguinte para o Recife devido àquela acusação específica, Travassos
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teve que escolher entre a prisão e o exílio. Escolheu o exílio. Como se
encontrava a caminho do estrangeiro, não podia ser apontado como
mentor dos panfletos subversivos e muito menos pelo bombardeio
das tabocas de fogos que transformaram a Marcha da Família Boipintadense com Deus e pela Revolução no mais completo, total e absoluto fiasco.
Como era preciso encontrar culpados rapidamente e dar uma satisfação à sociedade, o xerife apelou para a surrada receita de responsabilizar os velhos comunistas do lugar. Até então, os antigos militantes ou
notórios simpatizantes do velho PCB tinham sido deixados em paz.
Considerava, totalmente coberto de razão, que eles não representavam qualquer perigo imediato para o movimento golpista ou para o
governo militar que se instalou. Eram lobos desdentados, conforme
costumava se referir a eles.
Naquele caso, entretanto, à falta de outros bodes expiatórios, acusar
os comunistas era o único jeito. Convocou a milícia dos pistoleiros e
daquela vez os integrantes do CCC, já que a ação era eminentemente
urbana. Sequiosos por dar porrada nos subversivos, esses acorreram
em festa. Realizou-se um verdadeiro arrastão ao longo da noite, arrancando da cama e prendendo todos os partidários da União Soviética
que foram encontrados. Os jovens comunistas, como sempre mantiveram o anonimato, não foram incomodados.
A dor, o medo e a apreensão tomaram conta de mulheres, jovens e
crianças em muitos lares da cidade. O choro e os gritos de desespero quebravam o silêncio da noite e despertaram quase que a cidade
inteira. A operação, batizada como a Noite de São Bartolomeu da Caterva Vermelha, durou até quase duas horas da madrugada, quando,
cansados e exultantes, os bravos defensores da ordem e do progresso
se recolheram às suas casas para o merecido repouso. O mandão, que
geralmente estava nos braços de Morfeu antes da meia-noite, caiu na
cama ferrado no sono, de túnica e tudo. Dormiu de alma lavada, sem
sequer tirar as botas.
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[ 11 ] Fé demais, bem, você sabe
Um jumento puxando o outro
É ruim cantar vitória antes do tempo.
Ainda bem cedinho, quando estava no terceiro sono, sonhando justamente com os belos seios da Dama de Ouro, o intruso foi bruscamente interrompido por batidas na porta. Levantou meio atarantado; era
o cabo Patrício, pálido como se tivesse visto assombração. Excelência,
me desculpe, mas o senhor tem que ver uma coisa antes que a cidade
acorde. Saíram às pressas, foi a vez da autoridade perder a cor: no muro
do hotel, pintada com tinta vermelha, a frase subversiva e desafiadora:
Abaixo à ditadura. Fora o xerife.
Se fosse só isso seria fácil resolver. O problema era que a palavra de
ordem estava espalhada por todo canto da cidade. Escritas com tinta, spray ou riscadas a carvão com várias caligrafias, atestavam que a
ação subversiva contara com diversos participantes. O estranho personagem mandou acordar seu Ribeiro, do armazém, e confiscou latas
e mais latas de piche. Os funcionários da Prefeitura passaram a manhã
inteira cobrindo as inscrições com tarjas pretas.
Duas ou três pessoas que foram flagradas mangando da situação acabaram em cana, de modo que, embora nenhuma proibição tivesse
sido formalizada neste sentido, para evitar interpretações equivocadas, todo mundo naquele dia evitou dar risada em via pública.
A ideia de cobrir as inscrições não foi exatamente a mais feliz. Como
todo mundo sabia o que estava escrito por baixo, as tarjas pretas só
faziam reforçar a contestação e funcionavam como um lembrete, uma
propaganda subliminar contra a Revolução Redentora e seus representantes locais. Os matutos ou visitantes queriam saber o porquê daquilo, de maneira que o assunto ficou rendendo um tempão, até ser
determinado que os proprietários deveriam pintar seus muros para
esconder as tarjas. Não foi simples; uma mão de cal era insuficiente
para a desejada ocultação. Para ser eficaz, tinha que ser utilizada tinta a
óleo, o que era muito pesado para o bolso da maioria.
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Com o seu plano de culpar os velhos comunistas desmoralizado, tendo passado recibo de que os inimigos estavam mais fortes e organizados do que qualquer um poderia supor, o mandão, pela primeira vez,
parecia totalmente perdido.
Toda a estratégia planejada estava fazendo água. A marcha deveria ser
o ponto de partida para alavancar a campanha de doações. Com o clima de euforia cívica que, segundo imaginava, estaria instalado na cidade, ficaria mais fácil despertar a generosidade das pessoas. Deu tudo
ao contrário. Também naquele dia não apareceu ninguém para fazer
doações, o prazo estava ficando exíguo. O livro de ouro permanecia
com a maioria das folhas imaculadas, a campanha caminhava para render bem menos que o esperado. Além de não resolver nada, a prisão
dos comunistas criou novos problemas.
Decidiu manter os prisioneiros encarcerados mais alguns dias, sabendo que teria que soltá-los em pouco tempo. Todos eram benquistos
na comunidade. Um alfaiate, dois ferreiros, dois marceneiros, um tipógrafo, três mecânicos, alguns pequenos comerciantes, gente tida e
havida como inofensiva.
A cadeia local não oferecia condições para uma detenção mais prolongada de um grupo tão grande. Além do mais, não havia acusação
específica para justificar a remessa para o Recife. Por lá, os quartéis e
presídios também já estavam botando gente pelo ladrão.
Outra consideração importante feita pelo delegado e assimilada pelo
intruso: Depois de ganhar fama e prestígio remetendo ao IV Exército
prisioneiros importantes, que geraram repercussão até internacional,
não iam agora baixar de padrão enviando uma carrada de cafuçus, piabas de barreiro, gente sem nenhuma expressão nem culpa formada. Era
andar para trás, o conceito deles cresceria feito rabo de cavalo. Melhor
parar por ali.
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[ 11 ] Fé demais, bem, você sabe
Diz-se que quando urubu está de azar, o que voa em baixo suja a cabeça do de cima. Pois assim, na madrugada daquele dia, o ônibus que
se deslocava para o Recife, totalmente lotado, quebrou na ladeira de
Biu Preá. E apenas a equipe de Cabeçote, ou seja, os 3 mecânicos comunistas que estavam presos, dominava os segredos para o coletivo já
cansado de guerra voltar a andar.
A bem da utilidade pública, a prisão do trio teve que ser relaxada. Escoltados por milicianos, recolocaram horas depois o ônibus em movimento. Retornaram ao cárcere saudados como verdadeiros heróis.
Para dificultar ainda mais as coisas, uma pequena multidão de familiares decidiu fazer uma vigília na frente da cadeia em busca de notícias
dos presos, sem falar nos muitos curiosos que se agregavam espontaneamente. De vez em quando, um dos prisioneiros escalava a grade de
ferro no alto da parede da cela e acenava, recebia aplausos, havia choro,
a repressão sofria revezes um atrás do outro.
O monsenhor Afonso pronunciou um sermão duríssimo contra um
certo xerife do faraó do Egito, que obrigava as pessoas a marcharem
ao redor das pirâmides apagando inscrições e instituiu trabalhos forçados sob vigilância armada. O degenerado tinha a mania de prender
quem não pensava como ele, sem se preocupar se eram culpados ou
inocentes. Mais direto, impossível. De acordo com o sacerdote, o tal
puxa-saco do faraó despertou a ira de Deus, que primeiro, à guisa de
aviso, despejou uma chuva de setas sobre a sua cabeça e, como o fariseu teimou em não entender o recado, o condenou a vagar pelo deserto onde ladrões lhe roubaram as medalhas e o sol quente derreteu
seus miolos.
O usurpador, apesar de imprudente, não tinha nada de burro. Percebeu que estava ficando isolado. Nem a Dama de Ouro apareceu para
minorar suas mágoas. Passou parte do tempo disponível conversando
com o único amigo que fizera na cidade e que se mostrava inteiramente fiel, uma figura folclórica que atendia pelo apelido de Garapa. Até aí,
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normal, apelido é coisa muito comum no interior. Também é frequente a pessoa ter o nome relacionado a um familiar ou a uma atividade
profissional ou ainda uma habilidade pessoal. Júnior de Zé Bodega,
Antônio de Tromba Fina, Maria do Xaxado, Pedro de Vela Branca, Zé
Gravatinha, Leto Cuscuz, quase todo mundo tinha apelido. Uns gostavam dos seus, outros não.
No caso de Garapa, ele não fazia questão, atendia educadamente, só
não gostava de ouvir o seu apelido tratado como deboche. Numa conversa trivial, caso os interlocutores mencionassem sua alcunha com
a naturalidade com que se referiam a Honorato Meu Doutor, Lambe
Cu, Moço de Coco, Biu Zanoio, Buchecha de Alumínio, Bico de Pato,
Maria Frouxa, Bode Rouco, Burra Cega, Buchinho, Índio Tabajara e
tantos outros, não havia problema. O que o doido não aguentava era
ouvir seu nome achincalhado.
Sabe-se lá por que, um grito do nome Garapa, principalmente se acompanhado de um palavrão, tirava o cidadão do sério. Se espalhava todo,
saía na porrada, não respeitava qualquer ambiente. Como ele gostava
de andar pelo meio da rua, a maloqueirada adorava provocá-lo. Água,
gritava um de lá; açúcar, respondia outro de cá. Garapa ameaçando a
todos com um cacete que sempre conduzia, babava de raiva repetindo
para todos os lados: Mistura, fela da puta, mistura, filho de rapariga... E
quando alguém misturava, de longe, naturalmente, era certeza de, pelo
menos, uma correria.
Gostava do xerife, que sempre o tratava respeitosamente de senhor
Garapa, desde o dia em que bateu na Prefeitura em busca de uma audiência denunciatória. Já estava sendo enxotado quando a autoridade,
tendo ouvido o fuzuê, interveio, abriu as portas do gabinete, escutou
suas denúncias que não poupavam ninguém. A partir dali, sempre que
convocado, Garapa ouvia as reflexões do outro com os olhos arregalados. Embora não entendesse o seu linguajar frequentemente complexo, prestava muita atenção e concordava com tudo, parecia a coruja da
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piada. Naquele dia, ouviu durante horas as mágoas, preocupações e
planos da autoridade.
O demorado monólogo serviu para o forasteiro clarear as ideias. Decidiu soltar os prisioneiros no domingo. Os matutos e comerciantes que
encheriam a cidade na feira do sábado saberiam que ali havia autoridade: escreveu, não leu, o pau comeu. Primeiro, ostentaria a plenitude
do seu poder. No dia seguinte exercitaria a magnanimidade. Mandou
avisar às famílias que, se não houvesse mais manifestações na frente da
prisão, podiam preparar as galinhas; o almoço do domingo seria com
todos em casa.
Só que as coisas nem sempre transcorrem conforme o planejado, e
aquele sábado, que deveria servir para a poeira baixar, reservaria novas
emoções e principalmente contrariedades. Ainda cedo uma confusão
inusitada se espalhou pelas ruas. De repente, quando a feira começou
a se animar, uma manada de não sei quantos jumentos partiu das bandas dos currais onde se comercializavam animais dirigindo-se, em galope ensandecido, rumo ao coração da cidade.
Alguns traziam busca-pés e rojões amarrados nos rabos que se acendiam à medida que os estopins iam chegando ao final. Muitos estavam
devidamente pintados com as inscrições fatais de Abaixo à ditadura
e Fora o xerife. Escoiceando, os irracionais invadiram a feira, atropelando as pessoas, derrubando bancas, pisoteando mercadorias. Foi a
maior desordem jamais perpetrada em Boi Pintado. E uma claríssima
demonstração de que a cidade estava ao deus-dará.
Como se sabe, o humor é sempre uma arma usada contra o arbítrio.
Fazia sucesso naqueles tempos a piada do sujeito acorrentado em calabouço da ditadura, com uma faca enfiada na barriga. Profundamente
consternado, um prisioneiro recém-chegado pergunta se estava doendo. Só quando eu dou uma risada, era a resposta. Pois naquele dia a
cidade perdeu o medo de rir. Os integrantes do CCC, mobilizados às
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pressas, executaram a ridícula tarefa de retirar os asininos das ruas, paralelamente à nobre ação de socorrer os matutos feridos.
A primeira missão deu um trabalho danado. Imagine os babaus empancados no meio da rua, os bravos agentes revolucionários arrastando cada animal. Em alguns casos, a força humana foi insuficiente.
Tiveram que recorrer ao trator recém adquirido para modernizar a
limpeza urbana. O hospital, por sua vez, estava com a emergência entupida; alguns feirantes apresentavam traumatismos por quedas e coices, outros sangravam com dentadas de jegue. Felizmente na maioria
dos casos tratava-se de escoriações relativamente leves.
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[ 11 ] Fé demais, bem, você sabe
Bola murcha? Nada disso, muito cheia
A pergunta era recorrente, feirantes e donos dos jumentos queriam
saber quem pagaria o prejuízo. Ninguém respondeu.
Desta vez, fosse para prender cada um dos debochados que mangaram da situação, era mais fácil passar uma cerca de arame farpado em
torno da cidade. Apesar do lado trágico da coisa, a turma ria às bandeiras despregadas, como se falava antigamente. Não demorou muito
e já se dizia, à boca miúda, que o CCC tinha se transformado em CCJ,
Comando de Caça aos Jumentos. Ou que a perseguição do xerife aos
animais era a prova de que, como os veados, os jubaios também constituíam uma classe desunida. Era como se falava naquele tempo, a Lei
Afonso Arinos, como foi dito, ainda estava longe de fazer efeito.
O usurpador tirou do ar por 48 horas a Rádio Surubim, pois entendeu
que a narração entusiasmada que Jota França fez do episódio foi claramente favorável aos jumentos. Erro de avaliação. Na verdade houve imparcialidade total. O locutor não exagerou um pingo e até alertou muitos feirantes e comerciantes, o que evitou mais escoriações e prejuízos.
Jota apenas exercitou seu consagrado estilo e cobriu o acontecimento
como se estivesse sendo disputado um Grande Prêmio Brasil de Turfe.
A clara injustiça foi percebida por todos. Na missa do dia seguinte, o
monsenhor Afonso disse que quem não é capaz de distinguir o certo do errado será condenado a sentar eternamente do lado esquerdo
de Satanás. Não fosse pelo lado escolhido, todos pensariam que ele
se referia ao mandão. Contou aos fiéis que quando o xerife Herodes
decretou a matança das criancinhas, um magote de jumentos invadiu
Jerusalém. Um deles, na verdade um anjo disfarçado de jegue, serviu
de montaria para a fuga do Menino Jesus para o Egito.
Mal terminou a missa, o intruso deu início à sua agenda positiva. Autorizou a soltura dos prisioneiros, todos saíram a pé da cadeia para
suas casas. Atrás de cada qual se formou um pequeno cortejo. Logo
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apareceram galhos de árvore nas mãos, parecia procissão de Domingo
de Ramos. Alguns gritavam: Viva a liberdade! Outros: Salve a democracia! Houve até um discurso curto, emocionado e recheado de frases ambíguas.
Naquela noite o Cine-Teatro Navona exibiu uma comédia na qual os
Três Patetas representavam delegados de uma cidade do velho oeste
americano. Nas trapalhadas habituais ao trio, acabaram se prendendo
a si mesmos e perdendo a chave da cadeia. Ninguém sabe quem puxou
um coro bem adequado à fita. Logo a plateia inteira repetia o refrão:
Xerife pateta, teu destino é a prisão.
Diante daquilo tudo, o monsenhor Afonso e Honorato Meu Doutor
resolveram antecipar a entrega às autoridades constituídas do estado
da sua pauta de reivindicações, cujo primeiro e único item era o afastamento imediato do intruso. Resolveram que iriam só os dois. Eram os
maiores líderes, representavam todos os grupos. A terceira via ensaiada pelo prefeito, que tinha ganho o novo apelido de Cabeça de Touro, sucumbira ante a desmoralização e o peso dos chifres. Além disso,
quanto mais gente numa reunião, pior. Basta uma opinião desafinada
para tirar a conversa do prumo. Sem falar que, quanto maior a plateia,
menor a sinceridade.
Procuraram primeiro o governador, que era amigo dos dois, tendo
sido recebidos assim que houve uma folga na agenda. Pensavam
que seria fácil fazer a cama do intrometido. Mas bem que se diz: não
adianta ensaiar conversa. Adivinhando o assunto e querendo evitar
o tema, a autoridade manteve na sala o chefe de gabinete e o secretário da Casa Civil. Em vez de se prontificar a ouvir, falou e fez muitas perguntas. Parecia até que a convocação partira dele. Analisou o
quadro político nacional, elogiou a união dos marimbondos e embola-bostas; afinal eram os dois grupos políticos mais tradicionais e
representativos do Agreste setentrional O gesto foi muito bem recebido pelos militares.
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[ 11 ] Fé demais, bem, você sabe
Adiantou, pedindo reserva, que a tendência era a criação de um único partido para abrigar todos as correntes que apoiavam a revolução.
Já está tudo desenhado, só esperando o momento oportuno. Vão ser
criados dois partidos, um grande, do governo, e outro de faz de contas,
da oposição. O do governo vai se chamar Aliança Renovadora Nacional, com a sigla ARENA. Para acomodar PSD, UDN e a parte adesista
do PTB. Nas disputas locais haverá uma ARENA 1 uma ARENA 2
e uma ARENA 3, uma solução genial para todos se acomodarem no
partido da situação.
Sem demonstrar pressa para que os visitantes não alegassem que não
receberam a devida atenção, manifestava interesse em assuntos os
mais diversos, querendo minúcias sobre temas que aparentemente em
nada diziam respeito à atuação governamental. Pediu detalhes sobre
o caso do beato Elias. Dizem, Honoratinho, que é o mesmo Mané Tiro
Certo que chefiava a guarda privada do seu pai. É verdade, governador,
dizem, o povo fala demais.
Falam também que ele desafiou o coronel e foi morto em praça pública;
depois ressuscitou. Como se explica, monsenhor? É uma história complicada, governador, o homem foi enterrado sob as ordens do próprio
coronel, o deputado Meu Doutor pode falar melhor sobre isso. O certo é
que após três ou quatro dias o túmulo apareceu violado, o corpo sumiu.
Depois surgiu esse boato sem nexo de ressurreição.
Será boato, monsenhor? Ouvi do compadre Anésio, de Boca de Dois
Rios, que Mané desceu do céu na Vila do Oratório pilotando uma carruagem de fogo. Ele não presenciou, mas escutou o relato da boca de
várias testemunhas que assistiram ao fato, gente de prumo no juízo. Os
visitantes não escondiam o desconforto. É o que dizem, governador,
é o que dizem. O homem não estava satisfeito e insistia no assunto:
Afinal o beato é ou não é Mané Tiro Certo? Difícil dizer, governador, os
cabelos assanhados, a barba grande e a indumentária esquisita deixam
margem para dúvidas. Tem muita gente parecida no mundo, falou Honorato Meu Doutor.
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Aproveitando que chegou uma ligação de Brasília e o governador foi
atender na outra sala, os dois combinaram acabar com a conversa fiada. Pediram para falar a sós e tentaram ir direto ao ponto. Governador,
a razão da nossa vinda... o outro cortou a conversa, abruptamente. Se
for para falar sobre o xerife, perdem o seu tempo. Meus correligionários,
vivemos um período muito difícil, minha gestão é cercada de desconfiança por todos os lados. Nos dias de hoje, uma palavra mal colocada pode
custar o meu mandato. Se são meus amigos, me deixem fora disso.
E completou: Eu conheço Edilberto desde rapaz, muito antes dele virar
o xerife. Sei tudo sobre a sua vida, seu jeito, não me contariam nenhuma
novidade. Querem saber? Vocês são pessoas da minha confiança, vou
confidenciar uma parte da história, façam bom uso dela, desde que não
citem a fonte. E firmou um pacto com a dupla, na verdade um aviso rigoroso: se envolvessem seu nome, não apenas negaria, como não teria
contemplação, os dois seriam tratados como traidores e entregues à
polícia política. Querem ouvir mesmo assim?
Queriam, claro. O governador, baixando a voz até um tom quase inaudível, foi narrando a trajetória e as peripécias do adversário comum
aos dois visitantes. A cada frase, a surpresa dos dois parlamentares só
fazia aumentar.
Depois de algum tempo, o governador deu por encerrada a conversa.
Bateu amistosamente no ombro dos interlocutores e, já em pé, finalizou: Eu tentei puxar o assunto com o general comandante do IV Exército, recebi um verdadeiro cala a boca. O xerife prendeu Juliano, desbaratou o comando das Ligas Camponesas, prendeu indivíduos perigosos e
ainda fundamentou um inquérito contra Laércio Travassos, um sujeito
tão escorregadio que ninguém conseguira flagrá-lo em ato conspiratório
até então. Vocês estavam lá, o que fizeram pela revolução? É melhor baixarem a bola, conselho de amigo
O homem é o xodó do general, que o considera um exemplo a ser seguido. Na última conversa comigo ele disse que a revolução precisa de um,
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[ 11 ] Fé demais, bem, você sabe
dois, mil xerifes. Porém, se quiserem procurá-lo, fiquem à vontade, vocês
são adultos e vacinados, só não botem meu nome no meio.
Saíram caminhando, foram tomar um sorvete no Gemba para esfriar a
cabeça. Estava claro que as pisadas de bola do intrometido não repercutiram na capital. Até agora só estavam sendo contabilizados os seus
feitos. Era o bola cheia do momento. Como proceder?
Honorato Meu Doutor propôs a estratégia a ser seguida: Vamos manter a audiência que solicitamos ao comandante do IV Exército. Em vez
de levar queixas, vamos conhecer o general e manifestar nossa irrestrita
solidariedade à revolução. O simples fato de estarmos juntos é significativo. Registraremos que, como a atividade legislativa no País anda de fogo
brando, estamos praticamente de férias, aguardando instruções.
Se Mané Tiro Certo ressuscitou e desceu do céu, se os Fantasmas Vermelhos pintam o sete na cidade, se os comunistas aumentam a popularidade a cada dia, é problema de quem usurpou o poder. Eles eram
vítimas, a prova maior foi a morte do coronel. Veja como são as coisas,
monsenhor. O governador enviou um telegrama formal e hoje sequer
lembrou de me dar os pêsames. A vida é assim, quem nunca comeu mel,
além de se lambuzar, pensa que o danado nunca acaba.
E prosseguiu: Com as informações sigilosas que o governador nos passou, no momento oportuno daremos conta desse farsante. Mas não
podemos ser nós a fazer a caveira dele com o general. Isso vai acabar
acontecendo, de um jeito ou de outro, talvez a gente não tenha que fazer
nada, só esperar. Uma maluquice dessas não pode durar para sempre.
Isso só acontece num momento histórico como esse que estamos vivendo.
Um golpe que gera uma mudança radical de parâmetros e hierarquias
deixa a gente sem saber quem manda e abre espaço para uma aventura
dessa natureza.
O monsenhor concordou e dessa vez o planejamento deu certo. No
outro dia, após a apresentação formal, o general tomou a iniciativa e
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foi logo perguntando: Como vai o nosso xerife? Honorato Meu Doutor
encaixou a conversa ensaiada. Político experiente como era, não elogiou nem criticou, não disse que sim nem que não.Falou um bocado,
esgotou seu limitado estoque de elogios, mas não afirmou rigorosamente nada.
O monsenhor, por sua vez, na base do improviso, fez sua pregação de
genéricos lugares comuns e finalizou a conversa com chave de ouro: A
lealdade ao movimento revolucionário, general, está em se cumprir fielmente os seus desígnios, mesmo quando não compreendemos as razões.
A revolução expressa a vontade de Deus, não é uma questão de razão,
e sim de fé.
Mesmo sendo fé demais, ou até por causa disso, o general gostou da
conversa.
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Capítulo 12
Os Tetéus retomam à vanguarda
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Livres de qualquer acusação ou suspeita de
vínculo com os atos contrarrevolucionários, os Tetéus retornaram
à cidade. Um investigador menos emocional desconfiaria da providencial ausência deles e do álibi perfeito que dispunham exatamente
quando a coisa esquentou. Como se sabe, coincidência é uma coisa
que acontece, porém a gente deve desconfiar sempre que se depara
com uma.
Na verdade sabiam que algo estava sendo tramado à revelia deles. Saíram mesmo para não levarem a culpa. Contudo, ninguém se deu ao
trabalho de atentar para isso. As autoridades constituídas já tinham
muitos problemas para resolver. Além dos Fantasmas Vermelhos, os
guerrilheiros brizolistas da Mata Virgem de vez em quando botavam
as unhas de fora. Algumas grandes fazendas das proximidades já tinham sido assaltadas. Barracões foram arrombados e assim a turma
estava conseguindo alimentos para se manter. Não dormiam duas noites no mesmo local. Como estavam sempre em movimento, era difícil
planejar um cerco.
Por isso, as milícias não conseguiram êxito. O delegado estava preparado para investigações convencionais, e os pistoleiros tinham experiência em tocaias e surras. Os guerrilheiros só se dispersaram quando,
após o julgamento, tropas do Exército fizeram uma varredura da mata
palmo a palmo. Uma operação de esmagamento que o Exército chama
de martelo e bigorna. Diante desse embate desproporcional, fugiram
sem baixas e sem derrotas, como foi dito.
Entretanto, naquele momento, eram os próprios Tetéus que se sentiam muito incomodados. Eles, que sempre estiveram na vanguarda
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de todas as presepadas que aconteceram na região, agora tinham ficado definitivamente para trás. A hora e a vez eram dos Fantasmas Vermelhos, estes tinham conquistado um lugar no imaginário de todos e
no coração de muitos.
A vaidade é um sentimento sem limite que se apodera das pessoas
como se fosse um porre de cachaça. Naqueles dias, no Recife, consta que um renomado intelectual, rico e metido a progressista, ficou
incomodado pelo fato de todos os seus amigos já terem sido presos
ou pelo menos chamados para depor. Ele, eloquente esquerdista, não
tinha sido sequer incomodado pela polícia política. Tomou então a
iniciativa de telefonar anonimamente para o secretário de Segurança.
Disfarçando a voz, se autodenunciou como perigoso comunista. Após
ouvir a conversa, o secretário respondeu ao suposto dedo-duro: Meu
amigo, fique tranquilo, nós conhecemos bem esse cara, ele não é comunista e muito menos perigoso. Na verdade, não passa de um grande idiota.
Em Vertentes, cidade perto de Boi Pintado, um forasteiro foi preso durante uma arruaça e levado à delegacia. Cheio de afazeres, o delegado
tratou de se livrar do caso dizendo que ia liberar o preso porque se
tratava de réu primário, com bons antecedentes. Para quê? Sentindose diminuído, o cabra foi logo contestando: Primário uma pinoia. Eu
passei no exame de admissão em Garanhuns. Não fiz o ginasial porque
fui expulso pelos padres. E meus antecedentes são os piores possíveis;
só de condenações tenho três nas costas na Comarca de Bom Conselho.
Na mesma linha, agora combinado com um toque de ignorância, um
sujeito tentava um empréstimo vultoso no Banco do Brasil. O gerente, cumprindo o protocolo para preenchimento da ficha, perguntou
se ele era inadimplente. O candidato encheu o peito: Doutor gerente,
pode perguntar por aí, pode até ter igual, mas ninguém nesse estado é
mais “inadimprente” do que eu.
Pois os Tetéus também foram contaminados pela vaidade. Davam
por encerrado seu período de recolhimento. Queriam a todo custo
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retornar ao centro das atenções. Só não tinham encontrado ainda a
fórmula. Precisava ser algo com a cara deles: impactante, anárquico e
contra a ordem estabelecida.
Como estavam proibidas reuniões na rua, passaram a procurar um
lugar seguro para os seus encontros na noite alta. Primeiro tentaram a
capela do colégio das freiras, que ficava mais perto das casas da maioria
deles. A zeladora era, como se diz, arriada os quatro pneus por Cumpade Deca, deixava uma porta lateral aberta, eles iam chegando aos
poucos, geralmente pulando o muro do vizinho posto de puericultura.
Conversavam baixinho, sem incomodar ninguém, era um bom lugar.
A partir das 8 da noite as freiras já estavam recolhidas à clausura e as
alunas internas aos dormitórios. O que não impedia que uma ou outra
desse uma fugidinha de vez em quando para namorar. Numa dessas
noites, a superiora estava com insônia, sentindo uns estranhos calores.
Saiu andando pelos corredores desertos, ouviu rumores suspeitos e se
dirigiu pé ante pé na direção da capela.
Naquela ocasião comemoravam aniversário de Továrish Lói, que estava mais liso do que muçum ensaboado. A turma toda andava meio
dura, de modo que ninguém lembrou de trazer nem um bolo para soprar as velinhas. Aí o próprio Továrish deu a ideia de comemorarem
bebendo vinho armazenado para as celebrações e tirando gosto com
o estoque de hóstias, que, aliás, eram deliciosas. Tinha gente que vinha comungar na capela do Colégio do Amparo apenas para saborear
as guloseimas sagradas, preparadas pelas mãos de fadas das próprias
freiras.
A madre flagrou a turma em plena libação. Passou um sermão, mandou que limpassem tudo e acabou com a boquinha. Sorte deles que os
princípios da ordem religiosa não autorizavam a delação.
A partir de então mudaram os encontros para um local absolutamente
seguro. Em qualquer lugar do mundo o cemitério é um lugar que impõe
respeito e temor. A maioria das pessoas evita passar nas imediações a
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partir de certa hora da noite. Até quem não acredita ou não tem medo
de alma do outro mundo prefere, por prudência, manter a distância
regulamentar. E depois da ressureição do beato Elias, o campo-santo
de Boi Pintado ganhou uma prolongada fama de mal-assombrado.
Inspirados pelo exemplo dos primeiros cristãos, que, para escapar da
implacável perseguição dos imperadores romanos, se reuniam nas catacumbas, os Tetéus passaram a se encontrar toda noite no cemitério
local. Quando chovia, reuniam-se apertados na capelinha que ficava
no centro do campo-santo. Para as noites de lua ou estreladas, escolheram, como base, o túmulo retangular do capitão Zé Albino, um herói
local morto precocemente. Ficava localizado bem na área central da
necrópole. Portanto, mais resguardado de olhares e ouvidos curiosos.
O capitão foi uma das figuras mais respeitadas de Boi Pintado. Um
legendário combatente que, depois de perseguir Antônio Silvino, dedicou-se à caça de Lampião e deu uma grande contribuição para o fim
do cangaço. Quando veio a Segunda Guerra Mundial, sentou praça na
FEB e teve participação decisiva no destino do conflito. Foi até condecorado por bravura na batalha do Monte Castelo, na Itália, durante
a qual as tropas brasileiras a bem dizer decidiram o conflito ao impor
uma derrota decisiva às tropas do nazi-fascismo. De acordo com alguns historiadores locais, foi o bravo capitão quem deu o tiro de misericórdia em Mussoline e na rapariga dele, uma tal de Clara Pettace.
O monumento que acobertava o repouso eterno desse renomado herói passou a ser a plataforma literal das discussões dos Tetéus. Diferentemente das grandes escolas filosóficas, como a dos peripatéticos de
Platão, dos atomistas, dos pitagóricos e tantas outras na Grécia Antiga,
eles não tinham uma orientação clara, uma linha ortodoxa e definida.
Cada qual pensava como quisesse, isso até animava os debates.
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O sexo dos anjos
A sabedoria popular diz que não se deve discutir religião, política e
futebol. Esses eram exatamente os temas preferidos pelos Tetéus, além
de filosofia. Quando o debate enveredava por esse caminho, praticamente só dois falavam: o professor Natércio Pai dos Burros, que tinha
esse apelido por ser um verdadeiro dicionário ambulante, e o ávido leitor Cabaceira, que se considerava ele mesmo um pré-filósofo da linha
atomista e heraclitiana. Filosofia e religião eram temas que proporcionavam sempre os embates mais ásperos e animados.
O Universo, na sua essência, é ideia ou matéria? É permanência ou
mudança? A lógica permite alcançar a verdade, ou fica apenas nas aparências? Quem tem razão, Heráclito, que diz que tudo muda o tempo
inteiro, ou Parmênides, quando afirma que nada muda na essência,
toda mudança é apenas na aparência? Nada há de novo sob o sol ou há
um novo sol a cada dia?
A questão de Deus também às vezes aparecia. Existe um ser ideal eterno, que num dado momento criou o mundo físico ou a matéria é que é
eterna e vive em movimento permanente? Cabaceira dizia que é mais
fácil entender que o Universo não teve início nem terá fim do que pensar que uma entidade não material existe eternamente e, de repente,
resolve criar do nada o Universo e o tempo. Ele argumentava que é
impossível que um ser puramente espiritual tenha criado o mundo.
Como uma ideia pode ter criado a existência objetiva?
Quem está certo? Os atomistas, defensores da ideia de que tudo o que
existe pode ser reduzido a um elemento material, que denominam
átomo, ou Sócrates, que afirma que a ideia do bem é o fundamento
da existência? A Escola de Mileto, que defende ser o ar, o fogo ou a
água os elementos essenciais e eternos do qual se derivaram todos os
demais, ou os subjetivistas seguidores de Pitágoras? Estes diziam que
a essência do Universo são os números imateriais.
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Quanto mais o tema se aproximava da origem de tudo, mais a discussão esquentava. Deus criou o ser humano ou foi criado por ele?
Se criou, foi de acordo com o que a Bíblia judaico-cristã narra ou foi
conforme a mitologia de outros povos? Se foi criado pelos homens,
qual a versão verdadeira ou pelo menos mais razoável para se crer: a
dos persas, dos babilônios, dos gregos, dos egípcios, dos judeus, dos
cristãos, dos árabes? Por que a Bíblia merece mais fé do que o Alcorão?
Eram assuntos sobre os quais, tinham consciência, nunca chegariam
ao consenso. Isso sem falar que, de vez em quando, a discussão envolvia temas ainda mais polêmicos. Por exemplo: Cristo existiu historicamente ou não passa de um mito? A Igreja romana está de acordo com
o Novo Testamento ou é uma invenção completamente oposta aos ensinamentos dos Evangelhos? O uso de imagens nos templos é ou não
manifestação de idolatria? Cristo, sendo humano, também pecava? A
graça de tudo estava no respeito à diversidade de opiniões.
Temas como esses provocaram, ao longo da História, excomunhões,
polêmicos debates, alimentaram guerras, cisões, e condenações à fogueira e outros tormentos. Foram discutidos por filósofos, acadêmicos, concílios. E jamais, sobre qualquer um deles, chegou-se a uma
conclusão consensual. Portanto, não eram eles que iriam conseguir.
Os Tetéus discutiam pelo prazer da polêmica, sem acrescentar nada
de novo ao debate secular. Eram discussões de pouca profundidade,
já que lastreadas em informações extraídas, na sua maioria, dos livros
de História Geral de Armando Souto Maior e História da Civilização
Ocidental, do americano Edward Burns. No máximo, baseavam-se
na Enciclopédia Britânica, cujo único exemplar completo estava na
Biblioteca Municipal de Limoeiro. Era preciso se deslocar até lá para
fazer a consulta.
Naqueles dias as discussões se arrastavam sem muita energia, repetitivas e meio sem graça. É que, no fundo, cada um deles estava acabrunhado por ter saído do centro das atenções na cidade. Agora, só
se falava nos Fantasmas Vermelhos, os subversivos que, partindo do
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nada, realizavam atentados que estavam deixando louco o status quo
local. Desafiavam a capacidade da Prefeitura, da polícia, da Justiça, da
milícia e do CCC.
Jamais os Tetéus tinham pensado em coisas práticas significativas,
marcantes e de grande repercussão, como trancafiar os cachorros no
oratório ou promover uma invasão da feira pelos jumentos. Muito menos em desencadear um ataque aéreo como o das tabocas.
Esses feitos, objeto de comentários e da admiração geral, estavam
atravessados na garganta do grupo. Sem ninguém ter explicitado
claramente, a única preocupação real deles era encontrar uma maneira de recuperar o seu conceito e retomar o papel de destaque que
sempre tiveram. Necessitavam encontrar uma solução politizada,
algo de grande impacto. Uma ação contestatória, subversiva, sem se
confundir com estereótipos de direita ou esquerda, fugindo aos tradicionais com chavões políticos. Com o cuidado de evitar o deboche
pelo deboche. Isso tinha virado coisa da direita, dos filhinhos de papai, dos alienados políticos.
À época, falava-se muito em problemática, era um vício de linguagem
que estava na moda. Ajudou até a fazer a fama do jogador de futebol
Dario, chamado Peito de Aço, por sua coragem de se meter entre qualquer zaga. Certa vez, o atleta respondeu para um repórter que veio
de lá com o chavão: Não me venha com problemática que eu tenho a
solucionática.
Exatamente naquela noite, os Tetéus encontraram a solucionática
para a problemática que os afligia.
Debatiam modorrentamente a responsabilidade de Deus pelas tragédias da natureza, quando Cumpade Deca, até ali demonstrando
pouco interesse, com a cabeça distante, deu um tapa na cachola. É
isso, pessoal. Deus é culpado ou inocente? Por que a gente não resolve isso em um júri?
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Inicialmente, a proposta foi recebida com o deboche habitual. Mas
aos poucos foram vendo que a ideia era boa. Cumpade entusiasmou-se. Fazemos um júri simulado. Acusamos Deus e concedemos a ele o
mais amplo direito de defesa. Criamos um caso local e nacional. Aqui,
é um desafio para esse porra desse xerife que parece aquele do filme de
Chaplin, que além de tudo já está caindo pelas tabelas. Derrubamos
ele de vez.
Fazemos também uma grande afronta ao monsenhor Afonso, que vive
usando o nome de Deus em vão. Ao mesmo tempo é uma provocação à
ditadura e um achincalhe à Igreja reacionária que apoiou o golpe. Também vamos incomodar aos marimbondos, aos crentes, e até a esses filhos
da puta desses Fantasmas Vermelhos. Vamos dar uma rasteira em todos
eles de uma vez.
Cada vez mais animado com sua ideia, Cumpade Deca complementou: Como o xerife bem disse e está na Constituição, o estado é laico.
Ninguém pode nos chamar de comunistas por isso.Fazemos uma subversão bem feita, por cima dos panos, sem precisar ninguém ficar se escondendo pelos cantos. E damos a nossa contribuição histórica para contestar o regime sem fugir do nosso perfil, que é grear com tudo e com todos.
Tomou fôlego e alertou: Agora ninguém se iluda e cada um se prepare. Os militares, os reacionários e a Igreja conservadora vão ficar muito
putos com a gente. Em compensação, se tudo correr bem, vamos para o
centro dos comentários não apenas aqui, em Boi Pintado, como em todo
o Brasil e talvez até no exterior. O mundo dá muito valor a qualquer
coisa que nunca foi feita antes.
A realização de júris simulados estava muito em moda naquele tempo.
Mesmo antes do golpe, estudantes de todos os níveis e até entidades da
sociedade civil organizavam esse tipo de evento para debater as questões mais polêmicas. Julgava-se de tudo. Tiradentes, que na vida real
foi condenado, enforcado e esquartejado, era sempre absolvido. Calabar, que se passou para o lado holandês quando os batavos invadiram
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Pernambuco, no século XVII, e morreu executado, invariavelmente tinha a condenação referendada. O divórcio, que naquele tempo ainda
não existia no Brasil, ou o controle da natalidade, temas polêmicos e
que desagradavam a Igreja, também sempre levavam couro.
Depois do golpe militar, a quantidade dos júris simulados cresceu
muito, incluindo temas como a democracia grega, a liberdade, o nazismo e outros que davam margem para uma argumentação de duplo
sentido, de modo a embutir críticas veladas ao regime. Era uma boa
válvula de escape para a juventude amordaçada.
De todos os temas já abordados naquele tipo de evento, em qualquer
lugar do mundo, nenhum se comparava ao julgamento de Deus. Em
um contexto de ditadura militar, era uma ousadia sem limites. O potencial era incomparavelmente mais polêmico e desafiador do que
tudo o que se fizera até então no gênero. Por isso e antes de mais nada,
discutiram os perigos da iniciativa.
A ideia acabou aprovada por unanimidade. O argumento de Továrish
Lói foi decisivo e convincente: A gente nunca vai pegar em armas, fazer guerrilha ou escrever panfleto contra os militares. Ninguém aqui é
comunista. Essa porra dessa ditadura vai demorar. Ou a gente faz alguma coisa contra ela, agora, que não temos filhos para criar, ou não
vamos fazer nunca mais. Porém eu só entro com a cambada toda, é um
por todos e todos por um, como no filme dos Três Mosqueteiros.
Fizeram também um pacto de sangue para que nada fosse comentado
com ninguém fora do grupo até estarem com tudo organizado. E resolveram logo marcar a data de sete de setembro para a realização do
polêmico evento.
No final do encontro, uma zelação, como se chamavam as estrelas cadentes, triscou a noite. Era um sinal. De quê? A natureza apoia a nossa
iniciativa, antecipou-se o professor Natércio.
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[ 12 ] Os Tetéus retomam à vanguarda
Boi Pintado falando para o mundo
As noites seguintes foram dedicadas a discutir e planejar todos os detalhes do empreendimento. Agosto estava caminhando para o fim, o
feriado nacional de Sete de Setembro se aproximava apressado. De
tempo em tempo, o tempo dá um salto, como diz o poeta.
Optaram pela seguinte estratégia: organizariam debaixo de sete capas
toda a formatação do evento e depois dariam a notícia no exterior. Silvio T 4 estudou com Carlos Guerra no Recife e ficou amigo dele. Veio
passar umas férias na cidade, enturmou-se. Virou amigo da cambada,
conversava sobre jornalismo com Flávio Guerra, Antônio Heliodoro,
Geraldo Guerra, que mais tarde fundariam um jornal intitulado A Região. Noticioso e independente, circulava quando conseguiam recursos. Teve vida breve e marcante. Nunca se submeteu à censura prévia.
Sucumbiu à repressão logo após o AI-5, depois de estampar uma manchete com Dom Helder Câmara e denunciar o sistema financeiro do
País, isso numa só edição.
Antes do golpe, Silvio T 4 já engatara uma brilhante carreira de jornalista em Londres. Fazia parte do Departamento de Língua Portuguesa
da BBC.
O jornalista veio passar o São João com os amigos e ficou horrorizado
com o que acontecia em Boi Pintado e no País. Ficou ainda mais irritado porque sua diversão predileta àquela época do ano era soltar buscapé nas ruas e essa tradição estava proibida pelo usurpador. Conversou
bastante com os Tetéus, com quem sempre se deu muito bem, a ponto
de ser considerado sócio honorário do grupo. Nas conversas sugeriu
que, se tivessem alguma notícia importante, podiam estar certos: ele
botaria a boca no mundo.
No retorno à Europa, deu umas boas tacadas na ditadura e principalmente no forasteiro. Nos comentários cunhou a frase: Na ditadura o
perigo maior não está nos generais, mas nos xerifes que aparecem do
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nada como donos ilimitados do poder. Mais tarde, um alto prócer do regime adaptou a sentença, despejando a culpa nos guardas da esquina.
De um jeito ou de outro, ambos estavam equivocados. O perfil das
ditaduras nasce da sua essência totalitária. As arbitrariedades mudam
de forma e intensidade, mas têm a mesma fonte. Tanto as praticadas
pelos generais, pelos xerifes ou até pelos irmãos das raparigas dos cabos de polícia.
Antes de soltar a notícia que Silvio, através da BBC de Londres, espalhou com repercussão estrepitosa mundo afora, os Tetéus organizaram tudo muito criteriosamente. Primeiro, quem deveria ser o juiz?
Era imprescindível alguém com conhecimento técnico capaz de manter a imparcialidade e aguentar pressões de todos os tipos.
Escolheram o jovem advogado e ex-seminarista Amarildo Fernando.
Apesar de católico fervoroso, ou por causa disso, aceitou a missão. Não
sem antes ir ao Recife e consultar o novo arcebispo, que o recebeu sem
dificuldade. Os desígnios de Deus não são percebidos pelo ser humano.
Se ele o escolheu para esta missão, aceite. Melhor nas mãos de um justo
do que de um ímpio, falou o pastor. Amarildo aproveitou, fez o convite,
o prelado disse que faria o possível para comparecer. Se acontecesse,
representaria de certo modo uma imunidade para o evento.
Definiram quem seriam os advogados de acusação e defesa. Não era
qualquer um que teria coragem de ser o promotor contra Deus. Evaldo Cavalcanti, que vivia se preparando para ser advogado, embora
sem se aplicar muito nos estudos, foi o escolhido e aceitou. Inteligente,
tinha coragem para mamar em onça parida. Não ia aliviar no cumprimento do seu papel.
Para a defesa foi escolhido o professor Natércio Pai dos Burros. Católico fervoroso, tolerante a ponto de fazer parte do grupo e gozar da irrestrita confiança dos Tetéus, conhecia a Bíblia como poucos pastores
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[ 12 ] Os Tetéus retomam à vanguarda
protestantes. Sua coragem e sua coerência eram reconhecidas pela cidade inteira.
Apesar de não ter se formado, pois com a morte do pai precisou trabalhar para ajudar no sustento dos irmãos menores, Natércio cursou
alguns anos na Faculdade de Direito do Recife, assistiu a muitos julgamentos e palestras na área penal, a sua paixão. Estava apto para a missão.
Através de Kirk e Douglas, filhos do dono do Cine-Teatro Navona,
conseguiram a cessão do lugar. Dispunha de um bom palco, sistema
de som, espaço para acomodar jornalistas, convidados, e ainda sobrariam cadeiras para o público em geral. Mesmo assim, era certo que
muita gente não ia conseguir entrar. Combinaram que a Rádio Surubim retransmitiria todo o evento para que a população pudesse acompanhar da rua, dos bares ou de suas próprias casas. Jota França topou e
organizou a estrutura necessária.
O Cine-Teatro Navona merece um registro à parte. Como em toda cidade do interior, até o surgimento da televisão, o cinema era a alma da
vida coletiva e cultural. Além das notícias do País e do mundo veiculadas no informativo, que, como vimos, era chamado de natural, havia o
futebol através da magia do Canal 100. Só isso bastaria para justificar a
ida aos filmes pelos fervorosos amantes do velho esporte bretão, como
se dizia. E eram muitos.
Antes dele, funcionara desde os anos 30 o cinema pioneiro de Antônio Justo, que também era dono do motor de luz. Esse era bem precário, exibindo filmes mudos que chegavam quando as primitivas sopas,
como eram chamados os ônibus da época, conseguiam vencer os riachos cheios no inverno ou a buraqueira da estrada no verão. Contam
os mais antigos que o proprietário guardava duas ou três fitas para essas emergências.
No inverno, quando as chuvas impediam a chegada dos ônibus por
vários dias, Justo era obrigado a repetir as fitas muitas vezes para os
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aficionados. Uma delas era de faroeste. De vez em quando, já cansados
de ver as mesmas cenas, a pessoas pediam e a fita era invertida. Todos
morriam de rir com os índios perseguindo os búfalos pelas pradarias
de cabeça para baixo.
O Navona representou outro momento. Era o tempo do cinema falado, em preto e branco. Verdade que as fitas se partiam muito. Cada
quebra que interrompia a projeção recebia uma boa vaia. Na Semana
Santa, além da matinê, eram duas sessões à noite para atender a todos
os que faziam questão de ver a Paixão de Cristo. Uma bela noite, um
matuto, irritado com a injustiça, deu um tiro em Pôncio Pilatos. Foi a
única vez, fora dos júris simulados, que o procurador romano recebeu
merecido castigo.
Nos domingos havia a matinê para a criançada com os seriados que
sempre terminavam cada capítulo com uma cena de suspense, que seria resolvida na semana seguinte. Daí a expressão o perigo da série, que
classificava o mais alto grau de risco possível e imaginário.
Outro detalhe interessante é que a tela do cinema ficava colocada à
frente do palco. Portanto, restava um espaço atrás. Algumas pessoas,
geralmente as que prestavam serviços ao proprietário, conseguiam
autorização para assistir as fitas ali. O danado é que como a maioria
dos filmes era em língua estrangeira, por trás as legendas ficavam ao
contrário, feito a escrita inventada por Leonardo da Vinci. Ninguém
conseguia ler.
Ninguém, virgula. Virabrequim, aprendiz de mecânico, meio comunista e semianalfabeto, aprendeu a decifrar as legendas de trás para
a frente vai-se lá saber como. De modo que sempre ganhava alguns
trocados extras fazendo a tradução simultânea dos diálogos. Com o
tempo, o dono do cinema percebeu que havia ali um nicho de mercado e passou a cobrar o valor de 30% do ingresso normal para quem
quisesse assistir aos filmes nas costas da tela e em pé. Com direito de
levar seus tamboretes de casa.
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[ 12 ] Os Tetéus retomam à vanguarda
Em ocasiões especiais, como na Semana Santa ou no lançamento de
grandes sucessos do cinema, o palco por trás da tela se transformava
em verdadeiro camarote, com ingresso cinco vezes mais caros. Fazendeiros analfabetos vinham com suas famílias e sentavam em confortáveis poltronas para assistir e entender o que era dito graças à arte de
Virabrequim.
A atuação do mecânico deixaria no chinelo qualquer narrador atual
da entrega do Oscar na televisão. Falava rápido e claro, como se tivesse
aprendido tradução com Rui Barbosa e oratória com o próprio Demóstenes, aquele que brilhava na Grécia Antiga.
Já o modelo do espaço exclusivo, copiado e reproduzido Brasil afora, serviu de inspiração para os grandes camarotes que hoje existem
em todos os tipos de evento. Podem pesquisar à vontade. Enquanto
não chegarem ao Cine-Teatro Navona, as investigações sobre a origem
desse negócio que movimenta milhões estará incompleta.
Quando ficou tudo organizado, Továrish Lói e Cumpade Deca falaram com Silvio T4 através do radioamador de Luiz Augusto. Passaram todas as informações, combinaram um cronograma. No dia seguinte a BBC entrou no assunto que, como a gente já sabe desde os
primeiros capítulos, ganhou o mundo. E despertou paixões intensas e
incondicionais.
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Capítulo 13
Cada coisa em seu lugar
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[ 13 ] Cada coisa em seu lugar
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Depois daquela desastrosa reunião no Palácio
do Planalto em que ninguém se entendeu, o ditador decidiu mudar o
rumo da condução do problema.
Considerou que a balbúrdia entre os integrantes do núcleo central
do governo fora o suficiente para atestar que não haveria convergência de opiniões. Sentiu-se, pois, liberado do compromisso de ouvir
o grupo. E totalmente autorizado a decidir. E assim fez. Afinal era o
seu governo e o seu próprio nome que estavam em jogo perante a
opinião pública mundial.
Formou um núcleo de comando da crise com os chefes das Casas Civil e Militar, o coronel do Serviço Secreto e o chanceler. Ponto. Outros só participavam para receber ordens ou esclarecer algum aspecto
específico.
O próprio embaixador americano nem foi mais recebido pelo presidente, naqueles dias. Teve que ir ao Itamaraty passar ao chanceler a posição
do seu governo. O ditador sequer quis ouvir. Argumentou: Ele teve a palavra e não falou, quando sua opinião poderia ter importância. Agora já
traçamos nossa linha e definimos o nosso caminho. Não quero mais ouvir
raciocínios de terceiros. Qualquer posição do governo norte-americano só
tem duas possibilidades: ou concorda com a que já decidimos e, portanto,
é inútil, ou discorda, e nesse caso só pode ou lançar dúvidas ou atrapalhar.
O episódio, aparentemente de pouca relevância, pode ser considerado
um marco no governo do marechal. Antes ele não mandava de verdade. Era uma espécie de biruta de aeroporto, girando ao sabor dos
embates dos grupos rivais e imobilizado pela embaixada americana.
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[ 13 ] Cada coisa em seu lugar
Agora, pelo menos no assunto do julgamento, quem dava as ordens
era ele. Tomou gosto pela parada. Dali para a frente foi deixando de ser
um papangu no poder.
A vida, já comentamos, é paradoxal. Ao mesmo tempo em que representou o início de sua autonomia, este processo significou o começo
do seu fim. Conseguiu, no ano seguinte, ter o seu mandato prorrogado. Mas não comandou a sua sucessão. Acabou substituído pelo seu
mais ferrenho adversário, o ministro da Guerra, líder da ala dos gorilas.
A partir da sucessão, a ditadura envergonhada tomou novo rumo até
tirar a máscara de vez. Findou por se tornar a ditadura escancarada,
para usar títulos de livros de Elio Gaspari no seu excelente estudo sobre o período de governos militares.
O marechal acumulou muitos inimigos internos e passou a despertar
ódio mortal entre os integrantes da linha-dura. Quando saiu do governo, foi literalmente abatido durante um pacato voo de teco-teco
no Ceará. Um avião da FAB derrubou a aeronave onde se deslocava
o ex-presidente em companhia do piloto, rumo à tal fazenda que ele
frequentava no interior do estado. Ambos morreram.
A explicação oficial foi de que aconteceu um choque acidental das aeronaves e o teco-teco presidencial levou a pior. O avião de combate conseguiu pousar em absoluta segurança, sem ter aparentemente sofrido
nenhum arranhão. Desconheço alguém que, na época, tenha acreditado
na versão oficial. A crédula Velhinha de Taubaté, personagem do genial
Luis Fernando Veríssimo, jamais acreditaria tratar-se de acidente. A dúvida é se foi um atentado envergonhado ou um assassinato escancarado.
Mas essa morte lamentável aconteceu tempos depois, como uma consequência remota dos episódios envolvendo o julgamento. Nas imediações do primeiro Sete de Setembro do seu governo, o marechal estava com a corda toda, descobrindo os encantos inebriantes do poder.
Fora picado pela famosa mosca azul.
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O núcleo para administrar a crise do julgamento se reunia todos os
dias, algumas vezes pela manhã, à tarde e à noite. Foram aprofundando as informações e aprimorando as decisões para que o governo saísse o menos arranhado possível do episódio.
O marechal ficou muito tranquilo quando recebeu o núncio apostólico. O representante do papa mostrou preocupações sobre o julgamento, mas sem exageros. Primeiro, tranquilizou sobre o caso da freira
grávida. Estava sob o controle e a alçada da Igreja; podia tirar o assunto
das suas preocupações.
Em seguida, gentilmente submeteu à sua apreciação a nota que o Vaticano estava pensando em emitir sobre o julgamento. No documento,
a Igreja minimizava inteiramente o episódio. Dizia que nada havia de
teológico em pauta; eximia-se, portanto, de opinar.
A nota abordava o julgamento como um mero ato de expressão política, uma iniciativa secular de um grupo de jovens. Um julgamento
simulado como tantos outros, impactante porque tinha como objeto
a imaterial e sagrada figura de Deus. Rebeldia própria da juventude,
sempre insatisfeita com os governos. Portanto, o papa não era contra
nem a favor. O assunto não dizia respeito à Igreja e esta não iria mais
se manifestar.
Habilmente, o marechal convenceu o núncio a retirar da nota a menção ao governo e ficou tudo acertado. Só que o documento foi publicado no jornal oficial do Vaticano no dia seguinte, sem a alteração
combinada. Não faz mal, comentou o supremo mandatário. Quem
tem com que me pague não me deve nada.
De certo modo, a posição do Vaticano inspirou a pauta do governo.
O ministro-chefe da Casa Militar, que desempenhava o papel de um
Goebbels tupiniquim foi o primeiro a comprar a ideia. Argumentou:
Tem uma parte do estrago que já está feita. Mas no começo a encrenca
parecia mais complicada do que realmente é. A gente viu a sombra do
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bicho e pensou que ele tinha aquele tamanho todo. Se agirmos com inteligência, podemos reverter vários pontos a nosso favor. Vamos fazer do
limão uma limonada.
Em lugar de prender e arrebentar, falou encarando o chefe do Serviço
Secreto, cercaremos o julgamento de todas as garantias. Ao contrário
de proibir ou dificultar o acesso de jornalistas brasileiros e estrangeiros,
vamos abrir as portas do País, do estado e da cidade e facilitar a vida
de todos. E nada de esconder o presidente da imprensa nem mais um
dia. Marcamos para amanhã mesmo uma entrevista coletiva para falar
sobre um grandioso projeto de integração nacional e defesa da soberania
da Amazônia.
Planejaram tudo em minúcias. Como de hábito nas coletivas, no final
os jornalistas vão querer perguntar sobre o tema do momento. Aí, no
meio daquele tumulto de perguntas simultâneas que transformam toda
entrevista coletiva numa grande algazarra, o presidente pediria calma e
se prontificaria a responder a todas as perguntas de uma só vez.
Aguarda que se faça silêncio o tempo que for necessário. Quando todos calarem, chega a vez dele falar, com a voz tranquila e segura. Declara que o governo não tem nada contra o julgamento, não se sente
atingido de nenhuma forma. Vai tomar todas as medidas para garantir
a realização do ato. Registra que, no seu entendimento, o objetivo dos
jovens era comemorar, à maneira deles, o Dia da Pátria.
Para que nada de anormal acontecesse, anunciaria o envio de tropas
federais para assegurar a realização pacífica do evento e evitar tumultos, como se fazia em dia de eleição. A medida tinha sua razão de ser. É
que alguns grupos religiosos mais ortodoxos não gostaram da brincadeira e estavam ameaçando perturbar o acontecimento.
Esses, prosseguiria o marechal, também terão resguardado o sagrado
direito de manifestação, mas em outro local, de modo que cada um
expresse livremente suas convicções sem perturbações ou conflitos.
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A entrevista transcorreu conforme programado. O marechal deu o
depoimento decorado sobre o Projeto Amazônia Brasileira e, na sequência, após a aguardada balbúrdia dos repórteres ávidos por uma
manchete bombástica, repetiu quase sem alterações a resposta combinada. Falou que o governo era democrático e laico, cada qual podendo
se manifestar livremente sobre assuntos religiosos. No seu governo, só
não tinham vez a subversão comunista e a corrupção. Agradeceu e se
retirou. A imprensa internacional ficou no ora-veja.
É que praticamente todo dia os principais jornais do mundo davam
notícias sobre o julgamento interpretando que o ato colocaria o governo contra a parede. Com essa tacada de mestre, o marechal jogou a
batata quente para cima. Ficou no ar um recado tipo “Esse negócio de
Deus é com a Igreja.” Quem pariu Mateus que o embale. Foi um bom
troco na nota do Vaticano.
O assunto continuou rendendo na imprensa internacional. Mesmo registrando a nova posição oficial do governo brasileiro, àquela altura, o
mundo inteiro já estava envolvido no assunto. Ninguém sabe como esses
fenômenos sociais aconteciam e se espalhavam como rastilho de pólvora
mundo afora antes das invenções da telefonia celular e da internet.
Em pouco tempo, de Boi Pintado a Paris, de Nova York a Londres, os
que torciam para Deus ser condenado trajavam roupas ou portavam
adereços cor de laranja. Os partidários de Deus, preferiam o branco.
A coisa esquentou de um jeito que parecia véspera de decisão da Copa
do Mundo de Futebol. O tema envolvia também governos. Os Estados Unidos e seus aliados mais ligados torciam naturalmente pela absolvição do réu. Já os países comunistas, como Cuba, URSS, China e
seus aliados, mal escondiam o desejo da condenação.
Boi Pintado começou a respirar o julgamento 24 horas por dia.
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[ 13 ] Cada coisa em seu lugar
Um jeito mais suave de impor
O ditador, apesar das piadas que corriam acerca de sua limitada inteligência, de besta só tinha a peia. Como besta é fêmea e não tem peia, o
povo usa essa expressão para dizer que de otário o cara não tem nada.
Com eficiência, o governo federal foi resolvendo um a um os casos
periféricos que transformavam inicialmente o julgamento em uma
verdadeira teia de conexões. A primeira e mais delicada foi a do xerife.
Depois do Serviço Secreto levantar toda a sua ficha, os integrantes do
governo ficaram perplexos. Quer dizer que o homem é...é... Gaguejou o
marechal. Isso mesmo, senhor. Doido. Completamente maluco. Pirado
de carteirinha, em espécie de liberdade condicional do manicômio. Isso
era o chefe do Serviço Secreto mostrando que finalmente o serviço
que comandava estava com as engrenagens azeitadas.
O marechal ficou impressionado. Como explicar tantas ações acertadas, tantas coisas positivas que ele fez?
Quem explicou foi o Goebbels caboclo. Presidente, entre a loucura e a
genialidade a distância é muito pequena. Veja os grandes personagens
da história. A rigor eram quase todos doidos de pedra. Por exemplo, Alexandre da Macedônia. O cara era filho do rei de um país do tamanho
de Sergipe. Inventou de conquistar o mundo. Formou o maior império
de todos os tempos, fundou dezenas de cidades, construiu bibliotecas,
integrou culturas. Um gênio. Mas se formos olhar o comportamento dele
no dia a dia, a conclusão é muito diferente. Matou o pai, transou com
a mãe, assassinou friamente os melhores amigos, tomava cachaças homéricas. Quando estava bêbado, se vestia e se comportava sexualmente
como mulher. Ou seja, era um louco completo. Se fosse hoje estaria internado em manicômio.
O xerife não passou nem perto de Alexandre ou outro grande nome
da História. Praticou maluquices completas intercaladas com coisas
inteligentes. Aliás, é marca de todo doido que se preze ter ideias brilhantes. Biu, que naquele tempo andava pelas ruas de Boi Pintado com
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um vistoso relógio sem ponteiros no braço esquerdo, teve certo dia
uma tirada genial. A um gaiato que lhe disse que relógio sem ponteiros
não adianta, ele respondeu de bate pronto: Nem atrasa.
Naquele tempo, qualquer sonho servia de inspiração para o se jogar
no bicho. Atividade que em Pernambuco nunca foi perseguida, nem
antes nem durante nem depois do golpe. Resultado dessa liberdade
consentida: jamais virou antro de marginalidade, nem fachada para
tráfico de drogas e prostituição. Era e é um negócio honrado e responsável, apesar de informal. Mais uma prova de que proibir as coisas,
além de ser uma grande burrice, favorece a marginalidade e alimenta o
ciclo perverso que abarrota as cadeias. Não aumenta em um milímetro
sequer a segurança dos cidadãos.
Mas voltando ao doido: alguém perguntou a Biu como devia proceder, desde que sonhara com sua casa pegando fogo. Jogo o quê, Biu? E
ele, prontamente: Água.
Esse mesmo Biu quando arranjava alguns trocados, antes de se recolher à sua miserável morada, parava numa bodega e dizia num chiste:
Seu Felôzinho, me bote meio metro de cana. O dono do bar entendia;
colocava meio copo da branquinha, Biu bebia, pagava, ia embora.
Um dia, seu Felôzinho estava de folga e deixou o ajudante no seu lugar.
Este era amigo dos maloqueiros que frequentavam a bodega. Combinados, resolveram tirar onda com a cara de Biu. Quando o doido
chegou e disse o tradicional bordão, o sujeito, ante a risadagem geral,
pegou uma fita métrica, mediu meio metro no balcão e derramou a
cachaça de um canto a outro. Como Biu nada disse, ele perguntou: E
agora, faço o quê? O doido não vacilou: Agora, cabra safado, tu embrulha que eu vou beber em casa.
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[ 13 ] Cada coisa em seu lugar
O forasteiro reencontra o seu destino
Enquanto em Brasília a fina flor do poder discutia o seu destino, o xerife continuava aboletado na cadeira do prefeito de Boi Pintado, dando
ordens que àquelas alturas ninguém mais cumpria. Trocando ideias
sobre a melhor forma de se livrar dele antes da invasão da imprensa
estrangeira, chegaram a duas opções: a primeira, capturá-lo à noite no
hotel e embarcá-lo secretamente para o Recife. A outra, a que prevaleceu, foi proceder tudo à luz do dia.
A argumentação vencedora levou em conta que caso o sujeito simplesmente desaparecesse, nunca se esclareceria se ele agiu a mando do
regime ou por conta própria. Depois, ficaria o mistério sobre o seu
destino pairando no ar. E interrogação sem resposta é danado para gerar lenda ou mito na cabeça do povo.
Do jeito que o misticismo campeava por ali, era capaz dele logo reencarnar em alguém ou alguém reencarnar nele, o que dava no mesmo. E
lá estaria o problema de volta. E vai que a moda pega e começassem a
aparecer xerifes em todo lugar, como chegou a querer o general do IV
Exército. Aí eles estariam fritos para administrar a confusão.
Melhor fazer tudo às claras. Atestando que o cara era louco, o governo
não assumia nenhuma responsabilidade pelos seus atos e arbitrariedades. E também pelos desvios de recursos públicos e privados que
ele tinha promovido. Que já não eram poucos, a exemplo do que se
generalizava rapidamente pelo governo como um todo.
A maioria dos militares que participaram do golpe realmente tinha
uma vida austera e honesta. Imaginavam completar a obra que Jânio
Quadros anunciou e não fez: varrer a corrupção do País. Mas os bons
propósitos não duraram muito. Corrupção faz parte do sistema. Se
não for combatida e vigiada pela sociedade, se multiplica feito erva daninha. Quando é praticada pelos outros, dói como pimenta no nosso
rabo. Quando é da lavra da gente, no próprio rabo é refresco.
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A escalada da patifaria começava pelo que os empresários chamavam
de dar um banho de uísque nos milicos. Convidavam aqueles que ocupavam postos estratégicos na burocracia para festas onde, além da bebida farta, circulavam belas e solícitas mulheres. Prosseguia pelo oferecimento de pequenos favores, uma joia para a esposa, a conta paga do
internamento da sogra, um emprego para o genro. Daí para a propina
clara e aberta era um passo.
Ficou famoso o caso de um coronel que assumiu um posto importante na área de financiamento habitacional. Ao tratar de pareceres que
dependiam da sua assinatura, para financiamento de grandes projetos,
certo empresário interessado chegava e reclamava da burocracia. O
coronel defendia a instituição. Aí vinha a patifaria. O pilantra apostava
um carro dele contra um litro de uísque do coronel como os burocratas mandavam mais do que ele. Desafiavam que em 15 dias tal documento não seria liberado de jeito nenhum.
O general impunha sua autoridade, vencia as dificuldades no prazo,
entregava o parecer, ganhava a aposta. Levava um carro zero para a filha, para a amante ou vendia para pagar dívidas de jogo.
Utilizando métodos como esse, o sacripanta aplicou um trambique
tão monumental que escafedeu-se e virou banqueiro na Suíça. E não
foi o único, pelo contrário. Com o passar dos anos os escândalos foram se multiplicando, a diferença para os dias de hoje é que a imprensa
não dava um pio.
Em pouco tempo, o governo estava contaminado. Fatos como esse se
repetiam nos mais variados setores. A economia popular, desprotegida, sofria golpe em cima de golpe. Os empresários desonestos comemoravam: Os milicos não têm noção do dinheiro envolvido em grandes
obras. Arrancar um parecer de um órgão dirigido por um coronel na
ditadura sai mais barato do que do que corromper qualquer burocrata
civil de terceiro escalão.
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[ 13 ] Cada coisa em seu lugar
Sem falar na patifaria miúda generalizada. Como o caso da arrecadação beneficente de recursos que, ao invés de salvar o País, iam parar no
bolso dos organizadores. Cinicamente, os picaretas diziam ao roubar:
Essa grana vai para ajudar as criancinhas. As lá de casa, é claro.
Esse mal acometeu o xerife. Dinheiro fácil, sobrando sem controle no
cofre. Tanto o da Prefeitura como os das doações. A Dama de Ouro
merecia belas joias, por que não? Em pouco tempo, estavam sentindose asfixiados na reclusão dos seus atos de amor. Precisavam respirar
outros ares, passar de mãos dadas, trocar carícias em frente ao mar.
Viajou com ela, inicialmente para Salvador. Gostaram. Logo depois,
a dama foi levada para realizar o sonho de conhecer o Rio de Janeiro.
Uma lua de mel e tanto.
Ele, trajando paletó e gravata de primeira linha, ela, usando roupas
de grifes internacionais. Hospedaram-se no Copacabana Palace, pareciam um casal de magnatas. Restaurantes de luxo, joias caras, carro
alugado, lá se foi o Ouro para o Bem do Brasil. Nada disso passava batido, o povo sabia dos desvios; os secretas do Serviço Secreto reportaram tudo aos superiores.
Uma bela manhã de segunda-feira, o xerife estava contando o apurado
do dinheiro arrecadado pelos fiscais na feira do sábado, quando chegaram logo três ambulâncias cheias de falsos médicos e enfermeiros.
Existiam no meio deles um médico e dois enfermeiros de verdade,
para aplicar os sedativos. Os demais eram soldados da Polícia do Exército vestidos de branco para disfarçar. Nas ambulâncias estava escrito
em enormes letras vermelhas: Hospital da Tamarineira.
Qualquer pessoa em Pernambuco, à época, sabia que o Hospital da
Tamarineira era o maior recolhimento de loucos do Nordeste. De
modo que todo mundo entendeu imediatamente o que muitos já desconfiavam. A equipe invadiu a Prefeitura, arrombou a porta do gabinete, que estava trancado, imobilizou e dopou o forasteiro.
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O movimento atraiu muita gente. A personagem, olhos trocados, metido numa camisa de força, foi arrastado pelo meio da Prefeitura. Na
porta, demoraram mais tempo do que o necessário com o homem
imobilizado naquela situação para dar tempo de ser visto pela maior
quantidade de pessoas possível. A ambulância na qual foi transportado ficou estacionada um pouco distante para dar oportunidade a um
pequeno deslocamento, ampliando a exposição.
O prisioneiro gritava que estava sendo sequestrado por subversivos
cubanos, pedia socorro, as pessoas balançavam negativamente a cabeça. Um verdadeiro elogio da loucura. Quanta coisa a gente vê nesse
mundo, quem podia adivinhar um desfecho desses?
Jônio é que ficou feliz. Reassumiu imediatamente a Prefeitura. Antes
do meio-dia, desinfetou o birô e a cadeira, mandou fazer uma faxina
no gabinete e à tarde já estava aboletado no lugar. Tomou a precaução
de manter o afastamento das quatro damas para não afrontar a moralidade do regime nem chamar a atenção naqueles dias em que a cidade
recebia cada vez mais visitantes.
Antecipo que não adiantou. Seu destino já estava traçado. Os milicos
só deixaram passar o julgamento. Na semana seguinte Jônio foi inapelavelmente cassado a bem da moralidade pública e seus bens confiscados. Teve que se exilar para as bandas de Mato Grosso, sem o direito
de levar as quatro Damas.
Duas delas, as de Copas e Espadas, não demoraram a casar com fazendeiros das redondezas. As duas outras, as de Ouro e Paus abriram uma
empresa de consultoria para assessorar prefeitos. Como o negócio não
prosperou, caíram na prostituição em boates de luxo na capital. Fizeram relativo sucesso.
O grupo de monitoramento presidencial seguiu à risca a estratégia
militar já desenhada pelo ditador na primeira reunião para tratar do
assunto. Foi limpando a área, removendo um por um os problemas.
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[ 13 ] Cada coisa em seu lugar
Realmente, como dissera o embaixador americano, todos eram
cafés-pequenos.
A irmã Maria do Espírito Santo, grávida sabe-se lá por quais mistérios,
desde que permanecia virgem como a mãe de Jesus, tornou-se objeto
de veneração. Isso, apesar da oposição constante do beato, que todo
dia vinha repetir sua diatribe sobre a origem maligna da concepção.
Como sempre acontece nesses casos, começou a aparecer gente vinda
de longe e não demoraram a acontecer os primeiros milagres. O que
os médicos não resolviam, a irmã curava, pela força da fé que remove
montanhas, ali mesmo no ambiente do hospital. O mais significativo
é que de vez em quando a multidão começava a gritar por ela. A irmã
era forçada a aparecer para confortar a turba e abençoar a todos. A vida
no hospital ficou impossível.
Dessa forma, a própria ordem, seguindo ditames vindos diretamente
do Vaticano, tratou de remover a freira para o Recife. Não demorou e
o seu local de internamento foi descoberto. Em menos de 72 horas as
cenas de romaria se repetiam, ampliadas em número de participantes.
A solução foi encaminhá-la imediatamente para a sede da instituição,
na Alemanha, sem dar satisfação a ninguém.
Ali foi, ao que consta, submetida a severos interrogatórios, coisa de
alemão do tempo da guerra combinada com a Inquisição. Meses mais
tarde deu à luz em parto normal, deixou de ser virgem. O bebê foi
dado para adoção anonimamente. A irmã Maria do Espírito Santo foi
transferida pela Santa Sé para outra ordem religiosa, que fazia opção
pelo ascetismo. Faleceu recentemente, respeitando o compromisso do
silêncio perpétuo.
Até hoje é muito reverenciada na região, continua operando feitos
prodigiosos nas áreas de saúde, amor e dinheiro. Corre um abaixo assinado pedindo a sua beatificação. Muitos se dispõem a atestar milagres
e graças que receberam. A Igreja oficial desconhece o assunto.
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Resolvido o caso da freira, o próximo, menos emocionante, foi esclarecer o desaparecimento das doações da campanha Ouro para o Bem
do Brasil. O coronel do Serviço Secreto continuou trabalhando positivamente apesar da, digamos assim, cavalice do seu comportamento
social. Levantou todas as informações sobre o suposto sumiço. No começo, a Dama de Ouro, que tinha irrestrito acesso aos cofres da Prefeitura, ficou encabeçando a lista de suspeitos. Logo a seguir, o juiz
de Direito, desde que realmente andou arrecadando recursos para a
formação das milícias.
Quando foi procurado sobre o assunto por agentes federais, como homem prevenido que era, estava munido de todas as anotações, notas
fiscais e recibos, dando conta da entrada e saída do dinheiro. O saldo
entregou ao xerife mediante recibo. E foi ele quem esclareceu a questão. Não havia dúvida de que a campanha rendera algum cacau.
O valor exato, jamais será identificado. É que à medida que os dias
passavam e o montante arrecadado estava aquém da expectativa, para
estimular adesões, o próprio xerife passou a anunciar falsas doações
misturadas às verdadeiras.
Todo dia dava longas entrevistas à Rádio Surubim, o que logo se
transformou em um dos seus passatempos prediletos. Ali dizia que D.
Fulana tinha doado joias seculares de família, e seu Beltrano doara as
alianças de ouro 24 quilates dele e da esposa. E no outro dia mandava
receber. Ninguém desmentiu, mas poucos doaram o valor anunciado.
No final do prazo, o resultado ficou impreciso.
Antes de viajar para o Rio em lua de mel, o xerife trocou o segredo
do cofre e assim somente ele continuou tendo acesso. O resultado da
campanha supostamente estava lá. Quando ficou impossível adiar a
hora da prestação de contas, o indivíduo fez uma armação grosseira.
Para não passar por mentiroso ou ladrão, simulou um roubo.
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Assim, certo dia, quando os funcionários chegaram para fazer a limpeza, encontraram o cofre estranhamente arrombado. As travas estavam
acionadas, mas não se encontravam encaixadas nos ferrolhos. Ou seja,
a caixa-forte estava fechada, porém aberta. Para criar um cenário de
invasão, a própria autoridade, na calada da noite, vestido com roupas
civis e uma máscara de bandido de faroeste, simulou o arrombamento
da janela da Prefeitura. Não houve testemunhas.
O delegado procedeu a uma revista rápida no local, abriu rigoroso
inquérito que nunca saiu do fundo da gaveta e tudo ficou por isso
mesmo. Como o povo não esqueceu facilmente o assunto, desde que
alguns tinham contribuído com quantias expressivas, surgiram as procedentes suspeitas.
Após o afastamento do xerife, um delegado da Polícia Federal desvendou toda a trama também em entrevista à Rádio Surubim e ao jornal
Correio do Agreste. O assunto rendeu mais alguns dias e se esgotou,
soterrado pelas notícias mais bombásticas do julgamento.
O núcleo da crise tirou ou pelo menos tentou tirar de evidência os
secretas do Serviço Secreto. Esta questão foi engraçada. Tão logo as
notícias sobre o inusitado julgamento começaram a ser veiculadas
através da BBC britânica, cujos boletins em língua portuguesa tinham
boa audiência, começaram a aparecer na cidade uns caras esquisitos.
Eram os agentes enviados inicialmente pelo coronel que se trajavam
de forma muito parecida com os protagonistas do conhecido filme Os
Homens de Preto.
No lugar, todos se vestiam de modo simples. Simplicidade não quer
dizer desarrumação. A maioria dos homens, mesmo pobres, usava paletós brancos pelo menos para ir à feira e à missa. Às vezes feitos até
de pano de saco, mas o que valia era seguir o costume. De repente,
aqueles caras trajando estranhos paletós pretos, óculos escuros, que
se postavam em pontos estratégicos ou puxavam conversa com as pessoas a troco de nada, chamaram grande atenção.
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Além disso, fotografavam tudo, estavam sempre anotando alguma coisa. Tinham toda a pinta e eram mesmo os secretas. Comportavam-se,
nesse primeiro momento, como agentes secretos de anedota de português. Parecem gatos, miam como gatos, têm bigodes de gatos, rabos
de gatos e são gatos, sentenciou Cumpade Deca. O povo dizia que eles
estavam “urubuservando” todo mundo.
Pois bem, o gabinete da crise detectou até isso. Ordenou a retirada dos
paletós escuros, mas não adiantou muito, desde que agente secreto,
pelo menos naquele tempo, parece que só conseguia enxergar usando
enormes óculos escuros. Mas pelo menos diminuiu o calor que sentiam durante o dia. Podia-se dizer que o entorno do marechal estava
aprendendo rapidamente.
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A competência está de volta
À medida que o dia do julgamento se aproximava, o reboliço na cidade só fazia aumentar. O Hotel Municipal, a pensão de seu Pacífico,
a hospedaria de dona Cora não dispunham mais de nenhuma vaga.
Foi a vez do governador entrar no circuito. Acionado pelo ministro
chefe da Casa Civil, em nome do marechal, fez questão de mostrar a
sua eficiência.
Para que nada saísse errado do seu lado, convocou Marco Antônio, um
jovem executivo e intelectual, que conhecia muito bem a região, vez
que sua família morava em Nazaré da Mata, cidade próxima. Com carta branca na mão, Marco, que já era um nome respeitado e conhecido
no estado inclusive como escritor, se saiu muito bem. Executou com
perfeição a primeira de muitas missões que receberia na vida. Anúncio da brilhante carreira que seguiria, galgando os mais altos postos de
burocracia governamental e da intelectualidade.
Inicialmente, o rapaz usou um critério infalível para selecionar as melhores residências da cidade. Requisitou a lista e mandou ligar para as
noventa e nove residências que dispunham do privilegiado serviço telefônico. Identificou-se e solicitou que cada uma dessas famílias disponibilizasse pelo menos um cômodo para acolher jornalistas, prelados,
visitantes ilustres. Todos fizeram questão de atender e se esmeraram
na acolhida.
Foi montado um receptivo no Aeroporto dos Guararapes para dar
boas vindas aos jornalistas e representantes de entidades internacionais que não paravam de chegar para transmitir ou acompanhar o
evento. Devidamente identificados, estes eram acomodados em hotéis de luxo da capital. Pernoitavam e, a partir do dia seguinte, eram
levados em veículos confortáveis para Boi Pintado.
Ou seja, tudo caminhava da melhor forma possível para o governo,
depois do susto inicial. Além do mais, cidade pequena é chegada a
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criar rápidas intimidades. A coisa foi ficando tão embaralhada que, na
véspera do julgamento, ocorreu um surpreendente evento esportivo.
Com o objetivo de mostrar ao mundo a hospitalidade boipintadense,
foi organizado o Primeiro Torneio Internacional de Futebol de Salão
do Interior de Pernambuco.
O caráter internacional da competição foi assegurado pela presença
do time dos jornalistas estrangeiros. Participaram ainda as duas principais equipes da cidade, o Sport e o Independência, a equipe dos
jornalistas nacionais, o Colombo, de Limoeiro e, pasmem, a seleção
dos secretas do Serviço Secreto. Se no Rio de Janeiro tudo acaba em
samba e em Brasília tudo acaba em pizza, em Boi Pintado tudo virava
pelada ou pega de boi.
Naquela noite, brilhou a estrela de Luizinho, que acumulava as funções de alfaiate, sacristão, zelador da igreja, músico, técnico da seleção
local e respeitado árbitro de futebol.
Por sua identificação com a Igreja e intimidade com todos os santos,
jamais ninguém questionou a capacidade ou a imparcialidade de Luizinho. Constitui-se ele no único juiz de futebol do mundo que atuou
em dezenas de partidas decisivas e nunca, em campo algum, foi chamado de filho da puta ou sequer ladrão. Registre-se em seu favor que
era ótimo juiz, conhecia as regras, que já achava claras muito antes da
frase virar bordão nacional.
E mais: como responsável pela afinação das serafinas de todas as igrejas
da região, tinha ouvido apuradíssimo, sabia distinguir com perfeição
os sons dos jogos. O ruído de uma canelada é diferente de um tropeço,
o barulho da bola batendo no braço é muito diverso da carimbada na
barriga ou nas partes baixas; um tranco legal sequer parece com o som
de um empurrão. Muito menos uma cabeçada pode ser confundida
com um soco na pelota.
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[ 13 ] Cada coisa em seu lugar
Até a discussão sobre se a bola entrou ou não entrou, nos lances mais
confusos de gol, Luizinho resolveu com a ajuda criativa de Belo Prancha. Não tendo conseguido, por mais que tentasse, identificar de ouvido se a esfera bateu aquém ou além da linha de gol, providenciou um
praticável de compensado, que colocava cuidadosamente um pouco
além da linha final. Se a bola fazia ruído na madeira, não havia dúvida:
era gol.
Vejam que uma invenção genialmente simples e eficaz como essa nunca foi adotada pela FIFA, que ainda hoje perde tempo e gasta rios de
dinheiro discutindo como solucionar um problema que é mais resolvido do que o Teorema de Pitágoras.
Lamentável é que tenha se perdido na história a magistral invenção
daquela noite, sugerida pelo gênio dispersivo de Vanildo Ôião: Um
minuto de barulho!
Se no mundo inteiro se usa um minuto de silêncio para expressar tristeza, nada mais lógico do que a grande alegria de Boi Pintado estar no
noticiário internacional e recebendo tanta gente ilustre ser demonstrada pelo caminho contrário. E assim se fez. Antes da partida começar, os primeiros competidores perfilados na quadra, os demais em
forma na lateral, Luizinho decretou o minuto de barulho.
A algazarra foi tão grande e tão espontânea que ninguém ouviu o apito
anunciando o começo do jogo. Se ele não tivesse providencialmente
erguido o braço até terminar a homenagem e abaixado vigorosamente
talvez todos estivessem berrando até hoje, sem começar a partida...
Com jogos curtos, emocionantes decisões por pênaltis, acabou vitorioso, lá pela meia-noite, o esquadrão de aço do Independência, liderado pela habilidade de Sostinho.
A comemoração, em clima de espíritos desarmados, varou a noite na
sede do clube vencedor. Até os secretas apareceram para confraternizar.
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Capítulo 14
Como é gostosa a liberdade
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[ 14 ] Como é gostosa a liberdade
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Em decorrência da decisão da ditadura de
flexibilizar as relações políticas e cercar o julgamento de uma aura de
liberdade, o País, imediatamente, passou a respirar outro clima.
Bem se diz que basta você dar um dedo do pé para o povo querer a
mão. Em matéria de liberdade, o valor maior que a civilização conquistou em todos os tempos, ninguém perdia um minuto.
Assim, não só em Boi Pintado, mas no País inteiro, aquele momento se
converteu em uma ilha de democracia no mar de tirania em que havia
se travestido o Brasil.
Palavras que nunca mais tinham sido pronunciadas voltaram ao vocabulário da maioria. Assuntos que só eram tratados debaixo de sete
capas agora tomavam conta das conversas dos bares, alto e bom som.
Pessoas que tinham saído de circulação, voltaram a aparecer. Artistas
que ficaram recolhidos, pois não encontravam pauta em nenhum lugar, de repente começaram a organizar apresentações em salas teatrais,
em ambientes fechados, em circos e até em praça pública.
Desde o golpe a imprensa brasileira vivia uma situação peculiar. Embora ainda não tivessem sido instalados censores dentro das redações
para ler antes tudo o que seria publicado, como aconteceria no futuro
próximo, havia uma pauta de assuntos a evitar. Em alguns momentos
a autocensura é pior do que a censura ostensiva. As pessoas ficam sem
saber se podem ou devem abordar um assunto, até que ponto sem
pode ir a fundo, qual a forma mais adequada para não correr riscos.
Trabalhar assim não é impossível, mas fica muito sem graça. E os jornais perdem quase totalmente o molho e o charme.
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[ 14 ] Como é gostosa a liberdade
Os noticiários políticos vinham ficando cada vez mais lúgubres, menos irreverentes, pareciam a edição do dia do Diário Oficial. Os noticiários radiofônicos tinham poucas diferenças para ao padrão oficial
da Voz do Brasil. As publicações andavam cheias de NOTAS DE ARREPENDIMENTO e outras de teor semelhante.
É que qualquer pessoa que tivesse feito parte de entidades ou movimentos simpáticos ao comunismo, a Cuba ou a União Soviética estava
na lista negra do regime. Estes, para conseguir um emprego, uma declaração de qualquer natureza, tirar um passaporte ou título de eleitor,
ingressar em escola pública ou até conseguir uma folha corrida da polícia, tinham que vir a público se retratar.
Eram declarações humilhantes onde o sujeito se dizia arrependido,
ou pior, que tinha sido enganado e que seu interesse ao se filiar a tais
entidades era meramente cultural. E só valiam se publicadas em órgãos reconhecidos como de grande circulação. Em Pernambuco, não
adiantava o sujeito tentar esconder seu arrependimento no Diário da
Madrugada, um jornal que era e ainda é impresso todo dia. Naquela
época ainda amanhecia pregado em tabuletas nos postes do Recife.
Como trazia manchetes espetaculosas e cheias de sangue, muita gente parava para dar uma olhada. Por isso, intitulava-se garbosamente o
mais lido. Nos postes. Hoje esse lado pitoresco acabou.
A tal publicação imprime um número restrito de exemplares. Era e é
usado por quem quer cumprir determinações legais, sem gastar muito
e sem ser lido. É o destino de balanços de empresas em dificuldades,
notificações de abandono de emprego, avisos de sequestro de bens ou
leilões de inadimplentes e outras do mesmo teor. Quem, logo após a
decretação da ditadura, pensou em se livrar escondendo seu arrependimento nessa publicação, se ferrou. Os milicos não aceitaram. A exigência era publicação no Jornal do Commercio, no Diario da Noite ou
no Diario de Pernambuco, órgãos que realmente tinham grande circulação. O objetivo era todo mundo ficar sabendo do arrependimento.
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Só quem burlou a proibição que eu saiba foi o conhecido e respeitado
jornalista Aldo Paes Barreto. Fazia parte da Associação dos Amigos da
União Soviética. Ou demonstrava arrependimento através do jornal
ou perdia o emprego.
Na época, era mero foca, que é como se denominam os aprendizes
de jornalistas. Naquele tempo, a impressão definitiva do jornal era
antecedida de uma prova para revisão. O responsável providenciou
o anúncio de Aldo na página da prova e excluiu da edição definitiva.
Conforme ele mesmo confessa, levou à autoridade encarregada, que
estranhou não lembrar de ter lido. Ele, que sempre estava atento a
tudo, essa lhe escapara. Mas diante da apresentação da página provando a publicação, não foi atrás e liberou a ficha de Aldo.
De repente, naquela brecha que apareceu em decorrência do julgamento, as grandes novidades eram as notas de PROCURA-SE DESESPERADAMENTE. As famílias de presos e sequestrados políticos
aproveitaram o momento para colocar apelos emocionais dirigidos a
qualquer pessoa que soubesse do paradeiro de fulano de tal, acompanhado de características físicas e das circunstâncias do desaparecimento. Era uma denúncia e, ao mesmo tempo, uma esperança de preservar, se não a integridade, pelo menos a vida do desaparecido. Todos
sabiam que, se um sequestrado tivesse sobrevivido, estaria jogado nas
masmorras de alguma unidade militar.
Ficou muito claro também o recuo de grande parte dos jornais no
apoio ao regime. Como já foi dito, a imprensa muito contribuiu para
criar o clima propício para o golpe. O jornal O Globo, inclusive, já fez
um mea-culpa público e histórico sobre esse apoio.
Pois bem, naqueles dias o jornal voltou a assumir ares de livre e independente. O mesmo aconteceu com o alegre Jornal do Brasil, o
moderno Correio Brasiliense e toda a cadeia dos Diários Associados
de Assis Chateubriand. Este, não apenas liberou geral, como a maioria. Aproveitou para descer o cacete no regime sem dó nem piedade.
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No futuro, pagaria um preço muito alto. Em São Paulo, tanto o Estadão como a Folha, pela simples modificação da forma de abordar as
questões, demonstraram que também não estavam à vontade com
os golpistas. No mínimo esperavam outra coisa do movimento que
estimularam.
Também nos estados, as famílias que controlavam os meios de comunicação já demonstravam impaciência com o regime e trataram
de demonstrar isso. Os Sirotski no Rio Grande do Sul, os Alves no
Rio Grande do Norte, os Maiorana em Belém do Pará, os Queiroz
em Fortaleza, em entre tantos outros, logo colocaram seus veículos
em outro tom.
Os departamentos comerciais dos órgãos de imprensa são muitas vezes acusados de se preocupar excessivamente com o vil metal. É até
engraçado. Tem gente que pensava que salários de jornalistas e funcionários, papel, distribuição, tinta, máquinas, manutenção, veículos e
até fitas de máquinas de escrever e papel ofício caíssem do céu. Talvez
as redações e oficinas fossem sustentadas, nas cabeças deles, por obra
e graça do Espírito Santo. Pois apesar das permanentes dificuldades
de caixa, também os departamentos comerciais deram sua mãozinha.
Atribuíram às notas de PROCURA-SE DESESPERADAMENTE um
preço simbólico, de modo que até as famílias mais humildes podiam
registrar o desaparecimento de seus entes queridos.
Isso sem falar que no dia seguinte, no País inteiro, as notas eram reproduzidas mais ou menos no estilo da divulgação do resultado do
jogo do bicho, na época proibido e perseguido, pelo menos no Rio
de Janeiro. Pregaram no poste, diziam os jornais, e em seguida vinha
a relação das milhares do primeiro ao quinto prêmio. Nem a ditadura
conseguiu argumento para censurar esse singelo respeito ao fato.
Falando em fato, a imprensa redescobriu o velho princípio de que este
é sagrado, mas a interpretação é livre. Além disso, políticos de certo
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renome que não tinham sido cassados, mas estavam na moita, tiveram
novamente espaços generosos para manifestar seu pensamento.
Ali mesmo em Boi Pintado as repercussões não tardaram. Além da
Rádio Surubim que, como a gente já sabe, não era uma emissora de
verdade, desde que funcionava exclusivamente através de alto-falantes
nos postes da cidade, havia o jornal Correio do Agreste, cujo repórter, redator-chefe, colunista, revisor e proprietário dançava na chapa
quente para conseguir fazer uma tiragem mensal. Com a movimentação da cidade e o interesse em torno do julgamento, o jornal virou
temporariamente diário. Vendia no Recife e até no Sul do País.
Aproveitando o clima favorável, uma jovem que sonhava em ser jornalista conseguiu apoios inesperados e lançou o jornal Terra da Gente,
intitulado o primeiro diário do interior do Nordeste. Existe até hoje,
circulando mensalmente, com sua proprietária lutando para conseguir patrocínios. Mas, à época, ela não precisou correr atrás. As verbas
generosas apareciam do nada, provavelmente pelo fato da publicação
ter assumido a defesa intransigente dos partidários de Deus.
A Câmara de Vereadores de Boi Pintado também aproveitou a janela.
Num gesto de autonomia, revogou de uma penada só todos os atos
arbitrários do xerife. O vereador Pantera, maribondo roxo, aproveitou
para dizer que, simbolicamente, Boi Pintado estava varrendo o lixo da
legislação autoritária daquele ditador farsante. Colocou o dedo na ferida da questão das leis emanadas do autoritarismo. Esse tema voltaria
à baila no País, décadas depois, com Fernando Lyra no Ministério da
Justiça do que deveria ter sido o governo de Tancredo Neves.
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Leis que não valem nada
A dura verdade é que até hoje ainda se discute, sem chegar a uma solução satisfatória, o alcance e o valor, a aplicabilidade de tal ou qual item
das leis da ditadura. O caso mais notório, mas longe de ser único, é o
da Lei da Anistia.
Em 1979, quando não se aguentava mais nas pernas, a ditadura fez
aprovar uma lei de anistia. O Congresso Nacional, eleito sob regras de
exceção, estava também contaminado pela participação de senadores
nomeados pelo governo que o povo logo apelidou de biônicos. Era
uma referência a personagem artificial de um popular enlatado da televisão. No meio da lei, a ditadura agonizante enfiou um trecho que
pode ser interpretado como autoanistia.
Pois bem, com base nessa arrumação, que não menciona sequer a palavra torturador, nenhum desses criminosos foi punido, sequer preso
ou processado. Não sofreram um carão oficial do governo ou sequer
um padre-nosso de penitência.
Muitos juristas se enrolam feito bobinas quando vão discutir o tema.
Prendem-se a aspectos tecnicistas irrelevantes e inconclusivos. A
Constituinte Cidadã, que veio em seguida, trouxe, sem dúvida, muitos avanços institucionais para o País. No entanto, omitiu-se de tratar
de temas polêmicos como a anistia, e a coisa veio embolando até hoje.
A discussão nunca deveria ser jurídica, e sim política. Quando os militares e seus apoiadores rasgaram a Constituição e submeteram o Poder Judiciário ao seu jugo, assumiram a responsabilidade de produzir
um amontoado de leis sem alicerce jurídico e portanto sem legitimidade. Toda a legislação política da ditadura só deveria ser acatada na
democracia depois de submetida à chancela das instituições democráticas. Como isso não aconteceu, essas leis da ditadura, que na essência
são letra morta, continuam como fantasmas a assombrar os vivos.
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Na realidade, toda legislação autoritária tem o mesmo valor das disposições amalucadas do xerife: só valiam porque impostas pela força.
Fora disso, são nulas de pleno direito.
O certo é que naqueles dias de liberdade, em Boi Pintado, os dois ou
três travestis da cidade voltaram a circular nas madrugadas com seus
arremedos de feminismo; as brigas de galo recomeçaram; Cleto Filho
começou imediatamente a preparar as fantasias e adereços do Bloco
das Meninas Virgens; pena que não deu tempo para fazer a vaquejada
no tradicional mês de setembro, mas os responsáveis anunciaram logo
o evento para o feriado de 15 de Novembro.
Perdeu-se assim uma oportunidade de ouro. Com a cobertura milionária e gratuita em todos os principais jornais do mundo, que certamente ocorreria se a vaquejada tivesse sido feita no tempo certo, hoje
seria um esporte muito mais importante que os rodeios. Por conta
desse pequeno lapso, a vaquejada continua um evento expressivo, porém provinciano.
O certo é que além de respirar outros ares, Boi Pintado parecia um
formigueiro. Jornalistas de todo o mundo estavam ali. Depois do noticiário da BBC, os famosos tabloides londrinos tomaram gosto pela
parada. Cada dia era uma manchete espetacular, nem parecia que o
júri era simulado. E após a publicação da nota papal no Observatore
Romano, a imprensa italiana mergulhou de cabeça no assunto. A mídia conservadora desceu o pau no julgamento e exigia do governo brasileiro o fim da palhaçada ou, pelo menos, a garantia da absolvição do
réu por unanimidade.
A mídia progressista, por sua vez, defendia o direito à livre manifestação. Os jornais mais à esquerda chegavam a pregar que deveria se
aproveitar a oportunidade para uma desmoralização cabal e definitiva dessa divindade fictícia que é utilizada há milênio pelas elites para
manter o povo alienado e oprimido.
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Esse quadro de diversidade de opiniões se repetia em todos os países
democráticos. Já nos países socialistas, a posição era monolítica: não
só torciam como argumentavam, mobilizavam e estimulavam os ataques ao Deus dos judeus e dos cristãos. Nos lugares onde prevalecia
um ranço antissemítico, a torcida pela condenação do réu era clara e
sem disfarces.
Desse modo o assunto incendiou o mundo. A BBC mantinha a neutralidade, paradoxalmente a mesma posição da Rádio Vaticano. As rádios dos países socialistas torciam abertamente pela condenação do
acusado. A combativa Rádio Tirana, da Albânia, chegava a pregar a
execução do réu, o extermínio total e definitivo de Deus, denominado
de ópio do povo a serviço do imperialismo.
Em Boi Pintado, a Rádio Surubim e o Correio do Agreste eram neutros.
O jornal Terra da Gente nasceu torcendo abertamente e até fazendo
força pela absolvição. Estava com Deus para o que desse e viesse.
Os Tetéus, ciosos da paternidade e até propriedade do projeto, não davam muito cabimento a ninguém. Só eles vazavam os furos sempre via
BBC. Nem Marco Antônio conseguiu furar esse bloqueio. Foi sempre
bem recebido, dialogou com amenidade, mas não conseguiu brecha
para interferir nos procedimentos do júri simulado. De modo que até
o fim prevaleceu um certo suspense sobre o que os cabras poderiam
estar aprontando.
O governo não ficou nervoso porque as fichas, ligações, situações familiares de cada um, analisadas e reavaliadas com pente-fino não sugeriam maiores preocupações. Todos eram aquilo mesmo que se sabia,
não havia nenhum comunista infiltrado. O rapaz que fará o papel de
promotor é esquerdista, mas estava longe de ser o que no jargão da
época se chamava porra-louca. Deveria bater forte, isso já estava na
conta.
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Chegou tanta gente que a ideia do Governo do Estado de colocar as
melhores residências à disposição dos visitantes ilustres tornou-se insuficiente. Logo, a criatividade popular entrou em cena. Na maioria
das casas podia-se ver cartazes, alguns em inglês, colocando cômodos
para alugar. Não deu para quem quis.
Quando o grande dia raiou, dentro do contexto, a cidade estava tranquila. O julgamento tinha sido marcado para 14h e 30 minutos, a fim
de não concorrer com as transmissões pelo rádio dos grandes desfiles
militares programados para assinalar o Sete de Setembro País afora.
Assim, de manhã, o povo ficou em calma, curtindo o feriado. Na rua,
o vaivém dos jornalistas, repórteres, radialistas, principalmente os que
chegavam de última hora.
No cinema, assim que as portas abriram, às 11 da manhã, todos os
lugares já estavam ocupados e reservados. A primeira fila era dos jurados; outras para os verdadeiros convidados, os parentes e amigos
dos protagonistas. Como organizadores, usaram o privilégio de convidar gente conhecida, que não ia causar bagunça. Umas tantas outras
para não convidados, porém personalidades ditas importantes, os tais
VIPs, que foram prestigiar o evento.
Abelardo da Hora, Francisco Brennand, Déborah Brennand, Ângelo
Monteiro, José Mário, Armando Monteiro, Pinto Ferreira foram algumas personalidades estaduais que deram o ar da graça.
A surpresa mesmo ficou por conta da presença de personalidades
do primeiro time da política nacional. Chegaram sem se anunciar o
ex-presidente Juscelino Kubitscheck, o ex-primeiro ministro do breve regime parlamentarista, Tancredo Neves, além de Teotônio Vilela, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. Esses últimos estavam entre os
principais líderes civis do golpe. Anos depois tentariam formar a Frente Ampla Civil para enfrentar os militares. Segundo se diz, as articulações para a constituição da Frente começaram já naquela ocasião, em
Boi Pintado. Não deu certo. Terminou mal para alguns.
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[ 14 ] Como é gostosa a liberdade
O arcebispo de Olinda e Recife, apesar de anunciar que pretendia ir,
não apareceu. Dizem que recebeu uma ligação afetuosa do próprio
papa sugerindo que sua presença seria inoportuna. Como ele sempre
buscava na mídia internacional os espaços que lhe eram sonegados
aqui dentro, é verossímil essa hipótese.
Já outros representantes menos notáveis da Igreja não receberam comando nenhum. Compareceram e brilharam por sua livre iniciativa.
O bispo paraibano Dom Coutinho, o prelado mato-grossense Pedro,
o frade franciscano Roberto deram tantas entrevistas à imprensa internacional, criticando o regime, que ficaram conhecidos no mundo inteiro. Viraram referências e iriam dar muita dor de cabeça aos milicos.
O resto do espaço era para a imprensa. As emissoras de rádio, sem a
certeza de que a cobertura seria autorizada e naturalmente sem patrocinadores, não mandaram equipes técnicas nem equipamentos. A solução foi se entenderem com Jota França, o dono da Rádio Surubim, o
locutor do gogó de aço, o comunicador de todos e mais alguns, como
se intitulava.
Já conhecemos o estilo de Jota da descrição da sua performance espetacular na transmissão do enterro do coronel Honorato e da invasão
dos jumentos na feira. Nada, porém, se compara a esse dia, nem na
vida de Jota nem de qualquer outro radialista do planeta em todos os
tempos.
Quando algumas emissoras o procuraram para retransmitir em cadeia
o seu trabalho, não se fez de rogado. Graças à combinação dos talentos eletrotécnicos de Batata e João do Rádio, montaram uma estrutura
para o som chegar perfeito a qualquer lugar do Brasil e do mundo.
Copiando uma famosa cadeia de transmissão esportiva, criou em cima
da perna sua poderosa Rede Verde, Amarela, Azul e Branca, do Oiapoque ao Chuí. À medida que as emissoras sentiam que as transmissões
estavam mesmo liberadas e que naquela tarde de feriado sem futebol o
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povo não queria saber de outra coisa, uma a uma as emissoras de rádio
foram se integrando à cadeia radiofônica de Jota.
As emissoras internacionais também entraram no circuito, transmitindo via BBC. Silvio T 4 foi escolhido para fazer a tradução simultânea.
O resultado é que nunca, em tempo algum, uma transmissão radiofônica tinha alcançado tamanha audiência. Nem a cobertura da farsa da
chegada do homem à Lua atingiu os mesmos índices, porque teve que
dividir espaço com a televisão. E provavelmente o feito de Jota jamais
será alcançado. Segundo auditoria independente, mais da metade da
população do planeta ouviu o emotivo locutor acompanhar passo a
passo o julgamento. A transmissão dos votos dos jurados alcançou picos superiores a 60% da população. Jota é o único cidadão boipintadense a fazer parte oficialmente do aclamado Livro dos Recordes. Essa
conquista gloriosa, provavelmente, estará preservada para sempre.
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Capítulo 15
Ataque contra defesa
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[ 15 ] Ataque contra defesa
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Os Tetéus fizeram questão de mostrar ao
mundo como se organiza um evento. Na hora exata, estava todo mundo devidamente paramentado no seu lugar. A surpresa ficou por conta
de uma performance não anunciada: um ator local, que trabalhava em
circo e entendia bem dessas coisas de maquiagem, barbas e cabelos
postiços atendeu ao convite para representar o acusado. Caracterizou-se muito bem copiando a imagem de Deus na cena do Juízo Final da
Capela Sistina. Se estava na sala de escolha dos papas, então era a imagem oficial do Criador, ninguém podia contestar. Ficou muito parecido. Foi um deleite para os fotógrafos.
Para não haver perda de tempo em coisas que não interessavam, a
escolha dos jurados foi realizada antes da entrada em cena pela organização, conforme o ritual. Numa lista de vinte foram sorteados seis
dos sete jurados, porque um, Cumpade Deca, já estava escolhido por
antecipação e unanimidade. Acusação e defesa tiveram direito a três
vetos cada, tudo transcorreu sem atritos na presença do representante
do governador.
Quando todos tomaram seus lugares, Amarildo Fernandes, no papel
de juiz, bateu com o martelo na mesa e explicou à plateia e ao mundo
as regras do julgamento. Mais ou menos como os apresentadores de
debates eleitorais na televisão fazem antes de cada porfia.
As determinações eram simples e claras: o réu em pauta era o Deus
judaico do Antigo Testamento. Qualquer menção a Jesus Cristo ou
a outro personagem do Novo Testamento deveria ser desconsiderada. O acusado deveria ser mencionado respeitosamente. Poderia ser
tratado pelas formas bíblicas de Senhor, Deus, Adonai, Elohim ou
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[ 15 ] Ataque contra defesa
Iavé. Jeová, nome que não faz parte das antigas tradições bíblicas,
também seria acatado.
O Antigo Testamento, com versões oferecidas pelo padre Jovino e
pelo pastor Bernardo, estavam à disposição da acusação e defesa para
consultas.
Cada lado teria uma hora para suas exposições com direito a apartes.
Depois, réplica de meia hora nos mesmos moldes e considerações
finais de quinze minutos. Ao contrário dos julgamentos oficiais no
Tribunal, os jurados não fariam reunião em sala secreta para anunciar
a sentença. Como era costume nos júris simulados, cada jurado se levantaria e daria seu voto aberto, com direito a uma breve justificativa,
se quisesse.
Fez-se também uma rápida, porém oportuna, explicação sobre os papéis dos integrantes do júri. Ao juiz cabe conduzir o processo com isenção e aplicar a sentença. O advogado de defesa não precisa acreditar no
seu constituinte, mas tem a obrigação de dar tudo de si para defendê-lo.
O promotor, independentemente de suas crenças, tem o dever de acusar
o réu sem contemplação. E os jurados devem votar não de acordo com
o que já pensavam antes, e sim estritamente de acordo com a argumentação que for apresentada durante o julgamento pela acusação e pela
defesa. Só vale para fundamentar a sentença o que for apresentado ali.
Nada que não for mencionado no júri deve influir na decisão de cada
um. Nenhuma dúvida? Vamos ao contraditório.
Evaldo Cavalcanti, alto e forte, buscou inspiração para o seu desempenho assistindo a meia-dúzia de sessões no Tribunal do Júri do Recife.
Ficou particularmente impressionado com o estilo de um jovem advogado, Bóris Trindade, que teatralizava suas atuações. Assim tentou
fazer Evaldo, depois de ter ensaiado horas diante do espelho. Subia e
descia o tom, se descabelava, se jogava, gesticulando. Aparentemente
indignado, fazia pausas bem planejadas para pontuar as perorações ou
sublinhava as frases de maior impacto. Mal comparando, parecia um
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desses pastores da madrugada na televisão querendo convencer que o
Diabo está fungando no cangote dos fiéis que não pagam suas contribuições à Igreja.
Deus. Deus. O Senhor Deus, criador do céu e da terra, de tudo o que
existe é o maior criminoso da História, o ser mais cruel de que se tem
notícia, começou ele. Capa preta nos ombros, figura impressionante,
conseguiu seu objetivo de começar impactando a plateia e também a
audiência radiofônica.
Se ele é fonte de tudo o que existe, é responsável por todo mal, todo sofrimento, todas as guerras, golpes militares, sequestros, torturas, prisões
políticas, ameaças, espancamentos e até xerifes, disse, arrancando risadas pela primeira vez.
De onde tirei esta conclusão? Perguntarão as senhoras e os senhores. De
onde? Da minha cabeça? Da minha imaginação? Das críticas dos que
não creem? Dos ateus? Dos comunistas? ... Não... tirei das próprias confissões do acusado. Aí subiu o tom: Tirei, senhoras e senhores, da própria
Bíblia Sagrada. Neste livro onde ele se revela aos homens, vejam bem, senhoras e senhores jurados, poucas páginas não contêm cabais confissões
dos mais perversos comportamentos e de crimes contra a humanidade,
hediondos e inafiançáveis.
A reação da plateia não se fez esperar. Foi preciso o juiz pedir ordem
pela primeira vez. Jota França, que, instalado na cabine de projeção,
não perdia um lance, se esmerava na transmissão. Com a ajuda da sua
enxuta equipe técnica, botava som nos microfones dos diversos protagonistas na hora certa, a cobertura estava à altura do evento. Nenhum
ouvinte perdia uma palavra sequer.
Vamos começar pela gênese de tudo, prosseguiu o promotor. Esse Deus,
me permitam dizer que estou usando letra maiúscula ao me referir a
ele, resolveu criar o homem a partir do barro. Para que criar o homem?
Já não lhe bastavam as loas que recebia dos anjos, arcanjos, querubins
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e serafins, seres que ele inventou para lhe servirem com a docilidade de
áulicos na sua corte eterna?
Esses seres celestiais não sofrem, não morrem, não adoecem, não sentem dor. Então, até aí, não se pode acusar Deus de nada, a não ser de
vaidade. Mas quando o seu preferido, Lúcifer, o traiu, e tentou tomar o
seu lugar, já estava então provado que esse ser supremo não é perfeito,
inclusive nas suas escolhas e preferências.
Em segundo lugar, fica atestado que ele criou os seres humanos de forma
premeditada pelo prazer de assistir a sua perdição e a sua desgraça. Se o
anjo da luz pecou, se rebelou, o que esperar de criaturas feitas de barro?
Estava na cara que os homens iriam se desviar para o pecado e a dor. O
Senhor os criou por crueldade, uma espécie de diversão mórbida para
seus dias de tédio celestial.
Nunca os fiéis presentes e ouvintes haviam escutado tantas acusações
ao seu Deus. Embora, pensando bem, o promotor não estivesse dizendo nada de novo, apenas interpretando de um jeito diferente do
habitual.
Evaldo prosseguia implacável: O reino celestial não era suficiente para
satisfazer a desmedida vaidade desse Deus que se diz Senhor do Universo. Resolveu criar os seres humanos aumentando o seu séquito de bajuladores; com o destino de virarem pecadores e como tais subservientes ao
seu poder e à sua glória. E assim lhe fizessem adorações através de preces
e oferecessem sacrifícios de animais e até de seres humanos.
Àquelas alturas a indignação era geral. Esperava-se do advogado de
defesa pelo menos um aparte. Este, entretanto, aparentava estar absorto, alheio a tudo. Parecia que nem estava ali nem nada daquilo lhe dizia
respeito. O núcleo da crise instalado em Brasília acompanhava tudo
pelo rádio e recebia informações a todo instante. Estava em contato
com o governador e o comando do IV Exército.
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Naquele momento de surpresa inicial, o impacto era tão grande que
foi cogitado interromper a transmissão ou até mesmo adotar a linha
do coronel do Serviço Secreto. Ou seja, acabar a festa e arrebentar
tudo na porrada. Prevaleceu a prudência. O jogo está apenas começando e, além disso, só nos resta aguentar o tranco, falou o ministro chefe
da Casa Militar. Qualquer emenda pode sair pior do que o soneto. Até
agora a questão é com a Igreja que adotou esse Deus dos judeus. Eu
sempre achei que essa raça não merece confiança, falou transparecendo
seu antissemitismo.
Aproveitamos para registrar que, após a parada da manhã daquele dia,
tropas do exército tinham se deslocado em direção à cidade, utilizando comboios que ficariam nas proximidades aguardando ordens. Esquadrilha da Aeronáutica permanecia de prontidão na Base Aérea do
Recife. O contingente do Quartel da Polícia Militar de Limoeiro tinha
sido triplicado; se necessário alcançariam a cidade em menos de uma
hora. Esse aparato estava pronto até para varrer Boi Pintado do mapa.
O juiz pediu ordem pela segunda vez e ameaçou que qualquer manifestante seria imediatamente retirado do recinto, fosse quem fosse.
Era um evento privado, tinham que respeitar as regras. E a regra para a
plateia era o silêncio absoluto. Já bastava o barulho natural da imprensa, esse não podia ser evitado. Nos bares do mundo ocidental, com
falta de adversários para brigar, os partidários de Deus começavam a
se espancar mutuamente, como ocorre frequentemente com as ditas
torcidas organizadas dos times de futebol.
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Deus na berlinda
Ordem garantida, Evaldo prosseguiu: O réu é responsável pelo primeiro adultério da espécie humana. E pelo primeiro assassinato. E por muitas desgraças que vieram depois. Por quê? Porque ele é onipotente, ou
seja, pode tudo; onisciente, ou seja, sabe tudo; onipresente, ou seja, está
em todo o lugar, no passado, no presente e no futuro.
Ora, ele já sabia que Eva iria trair Adão quando os colocou no Paraíso e,
apesar disso, colocou lá a serpente e a árvore da sabedoria. Providenciou
todas as circunstâncias para a traição ocorrer. Até aí não há crime. Este
começa a ocorrer quando Iavé expulsou o primeiro casal do Éden. Fez
isso sabendo que eles iriam ter dois filhos, e um deles, Caim, mataria
Abel.
A culpa é de Caim? Sem dúvida. É o executor. Porém a culpa maior desse cruel fratricídio é do seu mentor. Quem plantou a inveja no coração
de Caim? Deus. Quem lhe proporcionou os meios para perpetrar seu
crime? Deus. Quem poderia ter impedido e não o fez? Deus. Depois de
filosofar ironicamente que ninguém sabe o que vai acontecer, desde
que o futuro a Deus pertence, lançou um temeroso alerta: Quem é que
garante que esse julgamento chegará ao fim? Em seguida, pode-se dizer
que fez um desafio direto ao réu: Também, se o Senhor Deus de Israel
ficar irado comigo a exemplo da raiva que teve da mulher de Lot, talvez
eu termine esse júri transformado numa estátua de sal. Se isso ocorrer,
podem me aproveitar para salgar carne de sol, mais uma vez a turma
riu.
E se antecipou, precavidamente: Se alguma coisa me acontecer, fique
registrado que estou pedindo às senhoras e senhores jurados a condenação do réu à pena máxima, como autor intelectual do assassinato de
Abel, com os agravantes de premeditação, inibição da capacidade de defesa e estímulo ao uso de meio cruel.
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Fez uns dez segundos de pausa de olhos fechados, de costas para a
plateia, mas com a cabeça virada para ela, como se estivesse esperando
se transformar em estátua de sal. Como isso não ocorreu, voltou à carga com gosto de gás: Pensam que ficou só nisso? Foi apenas o começo.
Como nosso tempo é restrito, vou direto ao ponto. Requeiro a condenação, não por um, mas por...deixe ver... Consultou suas anotações e
soltou o número bombástico. Peço a condenação do Senhor Deus de
Israel por 2.270.371 assassinatos identificados por minha assistente
no Antigo Testamento. Crimes indiscutíveis e confessados. Perpetrados,
quer sejam diretamente pelo próprio Deus ou por ordem dele ou com o
seu consentimento.
E prosseguiu: Vejam bem, senhoras e senhores. Não se tratou de um,
dois, três, trinta assassinatos, como os cometidos impunemente aqui nas
redondezas por um certo pistoleiro Mané Tiro Certo. Curiosamente, este
antes servia ao coronel e hoje, travestido de beato, é pistoleiro a serviço
do Deus de Israel, como se esse fosse o coronel do Universo.
Soletrou repetindo: Foram dois mi-lhões, du-zen-tos e se-ten-ta mil,
tre-zen-tos e se-ten-ta e um assassinatos, incluído aí o de Abel. Todos
com agravantes de utilização de meios cruéis e inibição do direito de
defesa para as vítimas. Na totalidade cometidos por ele ou com sua autorização e devidamente constatados e identificados na Bíblia.
Como é impossível citar caso a caso, vou escolher alguns mais conhecidos, e também outros menos comentados.
A indefesa mulher de Ló foi transformada em estátua de sal pelo crime
de ser curiosa. Quantas senhoras aqui já não cometeram esse crime? Já
pensaram no risco que correram? As pessoas riam, o promotor era engraçado mesmo.
Muitos foram assassinados por motivo fútil. Um por blasfemar. Outro
por ser perverso. Outros sem motivo algum, como os dois filhos de Arão.
Já Onan, segundo a Bíblia, foi morto por se masturbar. Felizmente esse
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critério não virou regra, senão poucos homens estariam vivos nesta sala,
disse, arrancando gargalhadas mais uma vez.
Vejam, senhores jurados, como era malvado esse Deus dos judeus. Um
homem foi morto por ele pelo simples fato de recolher lenha no sábado.
Outro, o senhor Jezebel, foi simplesmente atirado aos cães. Usava assim
dos meios mais cruéis para executar suas sentenças que, com o devido
respeito, parecem as determinações do xerife que até há pouco atormentou a nossa cidade. Devido respeito ao xerife, quero esclarecer. Com tiradas como essa, Evaldo fazia rir até os mais ferrenhos torcedores de
Deus.
Com a Bíblia na mão, para impressionar, ia abrindo nas páginas previamente marcadas: Sete filhos de Saul foram enforcados pelo Senhor
de Israel. Cento e dois outros sujeitos foram queimados vivos por ele.
Três pessoas mortas pelo simples crime de serem estrangeiros. Está aqui
no Livro dos Reis.
Os casos são os mais inacreditáveis, porém constam da Bíblia Sagrada.
Esse Deus cruel, impiedoso, covarde, vingativo e arrogante matou uma
pessoa pelo simples fato de a vítima acreditar na mentira de um profeta.
Para quem duvida, está aqui no Livro de Reis.
Devidamente autorizado pelo juiz, fez uma pausa enquanto a bela assistente mostrava o exemplar da Bíblia, com cada versículo marcado
para facilitar a leitura dos jurados.
A situação estava neste pé quando, para felicidade geral da torcida divina, o juiz avisou que o tempo da acusação tinha se encerrado: Mais
2 minutos para concluir.
Concluo, excelência: Falei de crimes no varejo, mas muitos foram no
atacado. Para finalizar esta primeira intervenção, recorro ao Livro dos
Reis para dizer que o Senhor Deus matou 185.000 soldados enquanto dormiam e ajudou Sansão a exterminar, contado nos dedos, 4.030
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inimigos. Recorro ao Livro de Números para denunciá-lo pelo massacre
de 90.000 Midianitas. E está no Livro de Samuel que 70.000 pessoas foram massacradas porque Davi resolveu fazer um censo. Reitero o pedido
de condenação e, por hora, tenho dito.
Sinceramente, fora um ataque arrasador. Embora Jota França mantivesse seu entusiasmo habitual, a enorme torcida divina estava cabisbaixa. Já em Havana, fogos espocavam nas ruas, e na Praça Vermelha,
em Moscou, aproveitando o clima de verão, uma multidão incalculável vibrava com a atuação do promotor. Com essa, Deus tá fodido e mal
pago, sentenciou Oito dos Grudes.
Toda a expectativa agora era voltada para a atuação do professor Natércio Pai dos Burros. Desalentados depois da primeira lapada, muitos
comentavam mundo afora que só um milagre reverteria tão demolidora acusação.
Passada a palavra, o professor mal se deu ao trabalho de levantar. Disse
uma única e decepcionante frase: Nada a declarar por enquanto, Excelência. A defesa se reserva ao direito de só se manifestar no momento
que julgar oportuno.
Assim também era demais. O alarido foi tão grande que dessa vez o
juiz nem fez esforço para acalmar a multidão. O professor corria o risco de ser agredido ou até linchado. A plateia gritava coisas como traidor, covarde, safado, filho da puta, marmelada. Enfim, uma barafunda
total.
Továrish Lói, encarregado da segurança do evento, achou por bem,
discretamente, solicitar ao comandante dos soldados da Polícia do
Exército, que faziam a segurança externa do prédio, o envio de alguns
homens armados para dentro, a fim de conter possíveis excessos e garantir que o julgamento pudesse prosseguir em ordem.
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O juiz decretou um intervalo de 10 minutos e chamou o promotor e
o advogado para uma conversa reservada. Ouviu as razões do professor e recomendou que usasse pelo menos 2 minutos do seu tempo
para explicar sua linha de defesa, senão poderiam sair todos mortos
dali. E o pior é que não seria pela ditadura, mas pelo próprio povo.
E assim foi feito.
Reabertos os trabalhos, o professor Natércio Pai dos Burros, que em
nenhum momento perdeu a calma, usou da palavra. Senhoras e senhores, vou me dirigir ao público em geral desde que aos jurados falarei na
hora que julgar oportuna. A mim foi confiada uma delicada tarefa e só
aceitei porque me sinto preparado para tal.
Bebeu um gole d’água e prosseguiu no seu tom persuasivo, contrastando com o estilo espetaculoso do acusador: Tenho uma estratégia de
defesa montada e fundamentada, que não depende nem vai ser pautada
pelas vociferações diabólicas da acusação. Por mim, quanto mais a promotoria investir contra o réu, melhor. São palavras que não valem de absolutamente nada. No momento certo, apresentarei meus argumentos e
tenho certeza de que o acusado será absolvido. Obrigado pela confiança.
Convenhamos que se não foi uma fala convincente, pelo menos acalmou a maioria. Bem, se ele tem uma estratégia, vamos aguardar o andamento. Jota França, que naquele momento já não escondia que tinha abandonado a neutralidade e torcia abertamente por Deus, emitia
sua opinião para o mundo, puxando a brasa para a sardinha dos assustados partidários do Senhor. Fiquem calmos, meus amigos, o professor
Natércio é craque, sabe jogar no contra-ataque; vai ganhar o jogo nas
costas do adversário.
O núcleo da crise, com a ajuda de juristas e especialistas em estratégias,
constatou que a acusação, inteligentemente, estava deixando claro que
o réu era o Deus de Israel, a divindade do Antigo Testamento. Ou seja,
dava carga aos judeus sem jogar a Igreja Católica contra a parede. Até
porque, disse um deles, Jesus afirmou que não veio cumprir a lei, mas
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revogá-la. O promotor estava acusando o Deus Pai judaico original e
não a Santíssima Trindade do Novo Testamento.
Outro analista afirmou que ficassem tranquilos, ele já tinha sacado a
estratégia da defesa. Aposto um mês do meu salário contra um café pequeno que o cara sabe o que está fazendo. Vou escrever o que ele vai dizer
nas considerações finais e colocar nesse envelope. Quando terminar, a
gente abre para conferir. Registre-se que acertou. Bem, só por esse diálogo se vê que a tensão tinha se dissipado bastante.
Veio a réplica. O promotor deu vez à assistente. Esta manteve a linha
de ataque, mas focou nos excluídos e nas minorias. Com sua voz doce,
porém firme, lamentou que o Senhor Deus de Israel praticasse abertamente o crime de racismo, inclusive executando gratuitamente estrangeiros. 100.000 homens foram mortos por ele em um só dia pelo fato
de serem sírios. Chocante.
Acusou a prática de crueldade contra crianças, citando o exemplo do
filho de Abraão, amarrado a uma fogueira prestes a ser acesa. Desencavou que 42 crianças foram mortas pelo Senhor pelo simples fato de
terem, na sua inocência, caçoado de um profeta. Àquelas alturas, fez
uma pausa para o promotor exibir aos jurados o local exato da citação.
A assistente de acusação mostrou, explicitando a localização de cada
caso na Bíblia, que milhares de mulheres foram mortas por praticarem
a prostituição, e outro tanto de homens, por se deitarem com outros
homens como se estes fossem mulheres. Apesar da suavidade, o estrago que estava fazendo era tão grande ou ainda maior que o operado
pelo titular.
Pela primeira vez elevou o tom de voz transbordando indignação e impressionando fortemente todos. O Deus de Israel, que aqui está sendo
julgado, não só permite a escravidão como autoriza que os pais vendam
suas próprias filhas menores para fins de exploração sexual. Está aqui,
no Livro do Êxodo, capítulo 21.
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E o que dizer do abuso de crianças autorizado em Juízes, 11, 24, 40?
E da autorização para executar bebês jogando-os contra pedras, como
está em Oseias e em Salmos? Esse Deus hebraico era tão preconceituoso
que autorizava o apedrejamento das mulheres adúlteras. E, dirigindo
o olhar para as duas mulheres que faziam parte do corpo de jurados:
Uma mulher que mantivesse relação sexual estando menstruada era
condenada à morte. Peço especificamente a condenação, também, pela
violação dos direitos das minorias e desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Agora, prosseguiu ela, vem o capítulo dos genocídios não quantificados.
Ainda não falamos da destruição e morte de inocentes em Sodoma e
Gomorra, na Torre de Babel e no mais absurdo genocídio jamais registrado na face da Terra, o dilúvio universal. Milhões de inocentes foram
exterminados por esses absurdos atos de vontade e tirania.
Ainda bem que o tempo acabou. O juiz não deu um minuto de tolerância. A assistente voltou ao seu lugar. A defesa, mais uma vez, reservou sua manifestação para as considerações finais, que eram o próximo passo do roteiro.
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Acabou a zorra
A língua portuguesa é muito dinâmica e rica. As palavras, com o tempo, vão tomando novas conotações. Para um apreciador, é um deleite
acompanhar essa evolução.
A palavra zorra, por exemplo. Ali, em Boi Pintado, naquele tempo, expressava uma pelada de futebol onde não se conseguia formar sequer
um time. Funcionava assim: formava-se um pedaço de time que jogava contra um único adversário, o goleiro. Se houvesse gol, era gol
mesmo dos atacantes. Se a bola fosse por fora, na trave ou o goleiro
defendesse, o gol era dele.
Até então, o julgamento tinha sido uma zorra, que continuaria enquanto a palavra estivesse com a acusação. Quantos gols esta havia feito, só se saberia depois. Mas o goleiro iria mostrar as defesas e as bolas
fora. Nem tudo está perdido, animavam-se os partidários de Deus.
Nas considerações finais, a acusação arrebentou a boca do balão mais
uma vez. Evaldo começou lendo o seguinte trecho da Bíblia: Eu sou o
Senhor, que faço todas as coisas, o que sozinho estendi os céus e sozinho
espraiei a terra.
E prosseguiu: Está claro, minhas senhoras e meus senhores, que o Senhor Deus de Israel assumiu sozinho toda a responsabilidade, não apenas pelos seus atos diretos, como também por tudo o que decorresse da
sua criação e todo o mal que viesse a existir no mundo.
Citei milhões de assassinatos perpetrados diretamente e assumidos por
ele no livro onde se revelou aos homens. Mas ainda não disse, como digo
agora, e peço que seja considerado na pena a ser aplicada, que o Deus
Criador é responsável pelo sofrimento, dor, pecado, crime de cada um.
Bem como é responsável por cada guerra, golpe militar, tortura, maldade praticada pelo mais vil ser humano a serviço de qualquer ditadura.
Quando criou a humanidade, ele já sabia de tudo o que aconteceria, em
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qualquer época. De modo que no momento em que qualquer ser humano é gerado, os seus passos já são completamente conhecidos pelo criador. O alegado livre arbítrio não passa de uma ilusão.
Finalizou resumindo tudo o que dissera e pedindo a condenação do réu
por homicídio triplamente qualificado e assassinatos dos mais variados
tipos, além de crimes hediondos contra a vida, a infância, as minorias, a
honra. E mais: por latrocínio, extorsão, provocação de epidemia com reflexo em mortes, terrorismo e genocídio. Tudo devidamente amparado
por constatações que estão na Bíblia. Agradeceu e sentou.
Finalmente chegou a vez da defesa se pronunciar. O professor Natércio levou a sério a história de desempenhar o papel visando absolver
o acusado sem se preocupar com o que os outros iriam dizer. Como
já foi afirmado e repetido, ele era indiscutivelmente um católico fervoroso. Mas sua linha de defesa surpreendeu todos os que pensaram em
algum momento que ele enveredaria por essa rota.
Meus amigos, como o Dr. Amarildo, nosso juiz, explicou muito bem, não
estou aqui para defender o que acredito. O objetivo do advogado de defesa é livrar o réu da condenação, como aprendi em conferência magistral,
proferida pelo notável penalista Roque de Brito Alves.
E é isso o que vou tentar fazer em poucas palavras. A verdade não precisa de longos palavreados para se expressar.
Deixei, de propósito, a acusação enfeitiçar-se consigo própria, deslumbrar-se com o impacto de suas colocações. Mas as juradas e jurados não
vão decidir baseados em meras palavras proferidas pela acusação. Nesse ponto foi elevando o tom de voz. O mundo, pode-se dizer, mergulhou no mais profundo silêncio para ouvir. Nem os cachorros latiam.
A decisão deve e tem que ser baseada no fundamento da Justiça, que são
as provas. É princípio universal do direito: cabe à acusação o ônus da
prova. E qual prova foi apresentada para pelo menos um dos crimes
alegados? Nenhuma.
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Nascido de sete meses como era, o promotor já estava pedindo aparte.
Natércio concedeu: Que seja o único e breve.
Evaldo partiu para reforçar sua argumentação. Como não apresentei
provas? Citei e mostrei dezenas de passagens do Livro Sagrado...
O advogado cortou-lhe a palavra e deu por encerrado o aparte. Afinal,
o escasso tempo era dele.
Vossa Excelência disse muito bem. Livro Sagrado. Livro Sagrado não é
prova de nada na justiça terrena, é uma questão exclusivamente de fé.
E não podemos condenar nenhuma pessoa ou entidade com base em
crenças. Temos que nos apoiar na verdade dos fatos. Só a verdade devidamente comprovada pode servir de fundamento para uma sentença
condenatória de qualquer natureza.
A Bíblia, senhoras e senhores jurados, apesar de conter registros religiosos, históricos, legais e até profanos, é um conjunto de textos sagrados,
com o fim único e exclusivo de servir de guia para os fiéis, para os que
acreditam nos mistérios da fé. Nenhuma outra finalidade se espere dela.
Qualquer outro uso é distorcido e inválido. Principalmente, como se fez
aqui, deslocando tudo do seu contexto, querendo transformar alegorias
didáticas e simbolismos catequéticos em autos de um processo judicial.
Jamais, senhor promotor simulado, senhora nobre e bela assistente, se
pode fundamentar uma decisão racional amparada em princípios de fé.
Principalmente quando utilizados como chicana por quem não acredita
neles, como assistimos aqui.
Arrasou com sua estratégia. Apesar do pouco tempo, os adversários
não podiam contestar nada, a última impressão é a que fica. Os torcedores de Deus, inclusive os que já tinham entregue os pontos, ressurgiram das cinzas. O enterro voltou da porta do cemitério, como se diz. A
euforia era consagradora. Nos tradicionais pontos de aglomeração das
cidades ocidentais, a torcida ia ao delírio. Nos domínios adversários,
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[ 15 ] Ataque contra defesa
onde a plateia continuou firme apesar do avançado da hora, como em
Moscou, Pequim, Seul e Tirana, instalou-se um certo desânimo.
Breve, direto e objetivo, o professor Natércio repetiu sua argumentação para que os jurados entendessem bem. Pediu, inicialmente, a
absolvição do réu de todas as falsas e infundadas imputações que lhe
foram levianamente atribuídas. A absolvição é uma questão moral dos
senhores jurados diante da absoluta falta de provas da acusação. Mas
tem uma segunda questão que eu gostaria de levantar.
E prosseguiu: Não existe crime sem vítima e muito menos sem autor. A
promotoria não foi capaz de provar neste processo a existência de uma
vítima sequer. E faço questão de chamar também a atenção para este
ponto: nada foi demonstrado sobre o réu, sequer a sua existência. Ora,
se a acusação não provou que o réu existe, como quer que lhe imputemos
uma condenação, mesmo que simbólica?
E mais um golpe de mestre: Eles sabiam dessa falha na sua peça acusatória. Tanto que tentaram suprir esta lacuna fundamental impressionando os jurados e o público através dessa triste figura fantasiada. E
dirigindo-se ao juiz: Meritíssimo, posso fazer duas perguntas ao artista
aí sentado?
Júri simulado tinha dessas liberalidades, não seguia à risca o protocolo
do processo penal. Autorizado, dirigiu-se ao ator: O senhor, pode declinar aos jurados o papel que o senhor desempenha nos circos?
Foi a vez de o professor fazer o mundo rir. O ator deu a resposta fora
do microfone, quase ninguém ouviu. Ele então se deslocou, repetiu a
pergunta dessa vez com o microfone bem perto da boca do depoente.
E veio o retorno: Sou palhaço.
Depois que as risadas diminuíram, Natércio voltou à carga: O senhor pode
declinar ao distinto público o seu nome artístico? A resposta, alto e bom
tom, não deixou dúvidas: O meu nome artístico é Palhaço Bunda Mole.
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Quando o silêncio finalmente se fez no recinto, o professor solicitou
- e foi atendido - que o tempo perdido na balbúrdia fosse acrescido ao
que dispunha.
Finalizou em grande estilo: Senhoras juradas, senhores jurados, repito
o meu pedido de absolvição do acusado mais injustiçado de todos os
tempos. Quantas foram mesmo? Dois milhões, duzentas e setenta mil
trezentos e setenta e uma acusações, sem nenhuma prova. E imitou a
performance do promotor, soletrando e repetindo: ne-nhu-ma pro-va.
E caso os senhores não entendam assim, deixo já solicitada ao meritíssimo senhor juiz a extinção do processo por imaterialidade do réu.
E diante da impactada plateia, complementou: Eu acredito firmemente
em Deus, Pai todo poderoso, criador do céu e da terra, e em suas mãos
coloco o meu destino todos os dias. Porém, minha fé não está em julgamento nem serve como argumento de defesa. Bem como o que acredita
a promotoria de nada vale como prova de acusação. O promotor e sua
bela assistente tiveram todo o tempo do mundo. Em nenhum momento
foram sequer aparteados. E não tiveram condições de apresentar uma
única prova válida, em qualquer tribunal do mundo, demonstrando a
culpa do acusado.
Lembro para refrescar as memórias que, como disse o excelentíssimo
senhor juiz, só vale para a condenação o que foi demonstrado aqui. E,
como já disse, aqui nada foi provado. Ouvimos muitas palavras insensatas, injustas e fora do seu contexto. Mas não se preocupem com as blasfêmias que declamaram. Palavras são palavras, nada mais que palavras.
Deus perdoa os que não sabem o que dizem.
Agradeceu, sentou, saboreou os aplausos do recinto e a gritaria que
vinha das ruas.
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Capítulo 16
O voto decisivo
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[ 16 ] O voto decisivo
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Somente após cerca de 15 minutos a algazarra
acalmou e foi possível o prosseguimento dos trabalhos. É verdade que
nem o juiz, Amarildo, nem o encarregado da segurança, Továrish Lói,
fizeram muita questão de restabelecer logo a ordem. Deixaram que a
tensão acumulada ao longo da tarde fosse extravasada, tanto no recinto do Cine-Teatro Navona como no resto do mundo.
Assim, quando a relativa paz voltou a reinar, Amarildo começou a recolher os votos.
O jurado Cecéu Barros, como vota? Absolvo, excelência. Ninguém pode
ser condenado sem provas. Muito menos o Criador do Universo.
A jurada Luciana Lima, como vota? Absolvo, excelência. Acompanho a
tese da defesa. Além do quê, Deus é só bondade, generosidade e grandeza.
O jurado Alarico Barbosa, como vota? Condeno, excelência. A defesa
não defendeu, saiu pela tangente. Acolho os argumentos da acusação.
A jurada Marinalda Silva, como vota? Condeno, senhor juiz. Sou católica, apostólica, romana, uma moça de fé, mas minha consciência manda julgar o que presenciei aqui. A defesa foi omissa, a acusação se saiu
melhor.
É repetitivo dizer que cada voto favorável a Deus era seguido por uma
comemoração digna da final da Copa do Mundo de 1958. No recinto
e em muitos lugares a declaração condenatória era acompanhada por
um silêncio parecido com o do Maracanã depois do fracasso de 1950.
Nos locais em que o público estava dividido, o comportamento era
naturalmente diversificado.
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[ 16 ] O voto decisivo
O mundo de respiração presa acompanhava o andamento do placar.
O jurado Joselito Travassos, como vota? Condeno. A Bíblia vem sendo
usada há séculos como prova da existência e dos atos de Deus, merece
crédito irrestrito. A acusação foi convincente.
Se o próximo voto fosse novamente pela condenação, seria o fim
e Deus estaria irremediavelmente derrotado. Fez-se um silêncio
sepulcral.
A jurada Marta Cecília, como vota? Absolvo. O Senhor é meu pastor e
nada me faltará.
Jota França naquele instante alcançava o seu recorde como a maior
audiência radiofônica de todos os tempos. Ciente da responsabilidade
que pesava sobre os seus ombros, vinha dando o melhor de si desde o
começo da tarde. Além disso, estava dominado pela emoção, de modo
que exigiu o máximo de sua aclamada capacidade pulmonar e do vozeirão que a natureza lhe deu. Quando saiu o empate, berrou do mais
profundo do seu ser:
Empatoooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooouuu...
Enquanto o seu brado retumbante ainda ecoava mundo afora, teve um
passamento e caiu apagado em cima da acanhada mesa de transmissão.
A cobertura prosseguiu com o som de todos os microfones abertos,
resultado do desmaio de Jota sobre os botões de controle, de modo
que o mundo inteiro pode ouvir o juiz se dirigir e solicitar ao último
jurado o voto absolutamente decisivo:
O jurado Adeclínio Vieira, conhecido como Cumpade Deca, como vota?
Cumpade pegou o microfone e, antes de justificar o voto, aproveitou
que falava para o mundo e deu, vindo dele, um surpreendente recado
político. Como todos sabem, o País vive sob uma ditadura militar. A
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ideia inicial do julgamento era realmente contestar o regime e o sistema
e desafiar a Igreja conservadora que apoiou o golpe militar. Porém nossa
iniciativa ganhou uma dimensão inesperada que surpreendeu a todos e
deu ao País uma oportunidade de respirar democracia de novo. Só por
isso, tudo teria valido a pena. Agradeceu à imprensa mundial, a todos
os que ajudaram na realização do evento, inclusive ao governo. Puxou
um Viva a Liberdade! E se preparou para votar.
O meu voto é ... e fez aquele suspense característico dos apresentadores
dos prêmios de cinema. Na verdade, o vacilo foi decorrente de uma
dúvida inesperada que o acometeu. O coração disparou, as mãos suaram frio.
Exatamente nesse momento alguém da plateia soltou o grito fatal: Garapa, filho da puta!
Ninguém tinha prestado atenção. Aproveitando o relaxamento da segurança naqueles momentos emocionantes e decisivos, o doido tinha
entrado no recinto e se posicionado no primeiro degrau da pequena
escada que dava acesso ao palco. Ouvir seu nome gritado debochadamente era a senha para ele se espalhar. Não deu outra.
Alucinado, brandindo o cacete de jucá ferrado que sempre conduzia,
partiu para cima da plateia. Cumpade teve que correr para tentar contê-lo, instalou-se a confusão. Nisso, a luz apagou.
Sentindo que era o fim da linha, o juiz aproveitou que o seu som ainda funcionava, anunciou aos gritos que a sessão estava suspensa e
que os trabalhos seriam reiniciados ali mesmo, às 14:30 do dia 11 de
setembro.
É que o próprio Amarildo tinha compromissos profissionais nos dias
seguintes e raciocinou rápido: Se marcar para antes, vão ter que me
substituir, o que não é bom. O dia 11 é feriado municipal, o cinema estará disponível. O País ganha alguns dias extras de liberdade e a cidade
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[ 16 ] O voto decisivo
continua faturando um pouco mais com a presença de tantos visitantes.
Decidiu, anunciou e se escafedeu pela saída do quintal, por onde Továrish Lói já providenciava a retirada em segurança de todos os participantes do espetáculo.
A confusão nas ruas era tamanha que nem foi possível reunir todos os
Tetéus naquela noite. Mais uma vez na privacidade da casa de Cumpade, avaliaram tudo o que se passou. Estavam eufóricos. Conseguiram
até ali todos os objetivos. Voltaram a ser o centro das atenções, não
apenas de Boi Pintado como do mundo. A palavra Tetéu só perdia, naquele momento em termos de reconhecimento no exterior, para Pelé
e Garrincha. Apagaram temporariamente os Fantasmas Vermelhos,
esses jamais conseguiriam tanta notoriedade como eles. Só se sequestrassem o embaixador norte-americano. E olhe lá.
Evaldo, o promotor, não estava presente, até porque não fazia parte
do grupo. A atuação do professor Natércio Pai dos Burros justificou
seu nome e sua fama. Não faltavam abraços e cumprimentos: Cara,
que ideia genial, de onde tirasse isso? Modesto como era, revelou que
apenas adaptara um livro de bolso de autor norte-americano sobre um
julgamento polêmico que tinha lido há tempos.
Cumpade Deca ocupava, como não podia deixar de ser, o centro das
atenções. Todos sabiam que era inútil, mas ninguém deixava de tentar
pescar antecipadamente o seu voto ou a tendência dele. Deca, assim
que se refez da emoção, botou ordem no grupo e anunciou seus planos.
O tumulto causado por um provocador infiltrado, o corte da energia
e logo mais dos microfones era prova de que o anúncio do resultado
estava preocupando demais certos setores poderosos. Assim, se ele
ficasse por ali nos dias seguintes, sofreria pressões. Correria, quem
sabe, até perigo de vida. A ditadura já fez seu papel de boazinha, daqui
pra frente está liberada. A Igreja aparentemente lavou as mãos, mas
a gente sabe que não é assim. Tanto tem milico quanto muito capa
preta disfarçado por aí. Sem falar de grupos religiosos radicais, como
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os iluminati que estão infiltrados, tentando passar despercebidos. Eles
não se conformam com o julgamento e são capazes de tudo.
Combinaram o plano: Pessoal, eu vou sumir para um lugar secreto, não
vou dar nem pista para nenhum de vocês. Assim, é mais fácil escapar das
pressões. No dia 11, começo da tarde, vocês reúnem a imprensa e anunciam uma coletiva minha no auditório do colégio das freiras. Eu chego
à cidade disfarçado. Conheço os corredores do colégio como a palma da
mão. Quando estiver tudo pronto, chego ao auditório. Dou uma rápida
entrevista e de lá vamos todos para o cinema. Eu, cercado pela imprensa
internacional, estarei seguro. E quando Amarildo abrir a sessão, pego o
microfone e leio imediatamente o meu voto.
E complementou: Para evitar qualquer erro, vou aproveitar esses dias
para pensar e justificar bem o meu voto. Ainda não decidi, juro. Escrevo
e leio na hora, aí não tem atrapalho. Se me acontecer alguma coisa, o
voto já fica nas mãos da imprensa. Daí para a frente nem eu sei o que
fazer. Se for pela absolvição, não tem problema, fico por aqui. Se for contra, minha cabeça estará a prêmio. Até lá, traço meu plano B.
Todos avaliaram que quem corria risco real era Evaldo. O promotor
simulado bateu muito mais duro em Deus do que alguém jamais tinha
ouvido falar. E, se o voto de Deca fosse pela condenação, ele também
certamente sofreria represálias.
Fiquem aqui mais um tempo, vou pular o muro pelo juazeiro, sei como
sair sem ser visto mesmo que a casa esteja cercada. Quando a ambulância passar dando um toque de sirene, é sinal de que consegui. Me
deem mais 15 minutos e saiam normalmente. Deixem uma luz acesa,
não precisa trancar a porta, quando saírem, basta encostá-la.
Abraçou um por um, pegou um matulão que já estava pronto com mantimentos, saiu pela porta dos fundos e desapareceu. Uns 10 minutos depois a ambulância passou pela frente da casa e deu um breve toque de
sirene. No tempo combinado, cada qual seguiu o seu destino.
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[ 16 ] O voto decisivo
O mistério revelado
Depois que pulou o muro de casa por dentro dos galhos do juazeiro,
trajetória onde não deixava espinhos crescerem exatamente para utilizar daquela forma, Cumpade Deca rastejou um pouco, esgueirou-se
entre cocheiras e cercas do descampado onde criavam bode. A partir
dali atravessou pelas sombras e entrou no terreno do hospital por uma
passagem secreta que ele mesmo providenciara. Procurou o motorista
da ambulância que ficava de plantão, seu amigo, e pediu que fizesse o
procedimento do sinal combinado.
Em seguida, caminhou pelos matos sombrios até a saída antiga da cidade, onde se deixou ser visto pedindo bigú a alguns caminhoneiros.
Naquele tempo Boi Pintado não conhecia a palavra carona.
Esses deslocamentos eram só tapeação, para confundir. Na primeira
oportunidade, ganhou os matos de novo e caminhou para uma granja
que ficava na área conhecida como Manduri, a poucas léguas da cidade. No percurso, teve o cuidado de trocar de sapatos, andou sobre pedras e colocou alpercatas novas calçadas ao contrário, para parecer que
o caminhante ia na direção inversa. Não seria fácil seguir o seu rastro.
A granja era de uma pessoa de relacionamento distante com o seu pai,
um velho esquisito que não gostava de gente na sua propriedade, de
modo que o lugar era pouco frequentado. Até os moleques que aproveitavam a safra para roubar caju, umbu ou jabuticaba preferiam outras paragens. Poucos dias antes o proprietário viajou para a Bahia e
deixou a chave da casa com Deca para alguma eventualidade. Se resolvesse que a mudança era definitiva, Deca venderia o lote e mandaria o
dinheiro para ele.
Assim, Cumpade pôde se instalar com tranquilidade, embora tivesse
que passar o dia trancado em casa e sem cozinhar, para a fumaça não
chamar a atenção. Ele abria umas brechas nas janelas, de modo que
o vento corria, a área era bem arborizada, o calor não incomodava.
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Aproveitou para dar um balanço na sua vida e relembrar algumas
coisas que tinham acontecido e o desconcertavam. Recordava especificamente o acidente a que nos referimos, quando uma das armas
artesanais que fizera disparara pela culatra. Atingido pela pólvora, pelo
chumbo e mais os resíduos de metal e madeira, escapou por pouco.
Lembrou os longos dias em que ficou no hospital e recebia os curativos
através das mãos gentis da irmã Maria do Espírito Santo. A freira colocava um biombo e delicadamente tratava os ferimentos de Deca, inclusive
nos testículos e no pênis. Era uma agonia. Cumpade, tão logo melhorou
um pouquinho, não conseguia evitar a ereção. A irmã se comportava
profissionalmente; fazia de conta que não estava vendo, até que um dia
Deca puxou sua cabeça e deu um prolongado beijo na boca.
O namoro engatou. Apaixonado e irresistível. Os curativos passaram
a ser feitos duas vezes por dia, mas o tempo disponível era curto, e o
perigo de flagra, enorme.
Quando a alta foi anunciada, combinaram um encontro na mesma
noite, no lugar mais seguro que conseguiram imaginar: o necrotério
do hospital. Foi por isso que Cumpade preparou sua rota de fuga pelos
fundos de casa e seu acesso secreto ao terreno do Santo Afonso.
O necrotério, por razões óbvias, era evitado por todos, naturalmente
quando não estava ocupado. Era nessas noites que Deca e a irmã Maria do Espírito Santo se encontravam ali. Cumpade providenciou um
colchonete de plástico que deixava guardado na ambulância e diminuía o desconforto de deitar na pedra fria que acolhia os mortos.
Isso, quando passaram a deitar. O progresso das intimidades foi lento.
Levantar as saias mais leves e mais curtas do hábito de ficar em casa e
apreciar as lindas coxas da freira à luz do luar pareceu levar uma eternidade. Uma bela noite conseguiu chegar ao local perseguido. Freira
não usa calcinha, felizmente. Pelo menos, a irmã não estava usando
naquela noite. Sussurrando as palavras suaves e envolventes que os
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apaixonados utilizam nessas ocasiões, conseguiu ajeitar o pênis na entrada do aquilo-bom da freira.
Enquanto ela apelava para o tradicional para por aí, meu bem, não
entra de jeito nenhum, Deca prometia o que todos asseguram: É só a
cabecinha, meu amor.
Sabe-se que pênis não tem ombros, passou a cabeça, passa o resto. Mas
não foi o que aconteceu naquela noite. Cumpade, com a cabecinha
enfiada, ainda hesitava se prosseguia ou voltava atrás quando o tesão
prevaleceu e decidiu por ele. Ejaculou toda a gala acumulada há mais
de uma semana. Quando puxou a estrovenga, foi tarde.
O leitor que vem acompanhando o desenrolar da narrativa desde o
início já juntou os pontos do novelo e sabe o resultado dessa aventura.
Está mais bem informado sobre o andamento do caso do que Cumpade Deca naqueles dias de reflexão e lembranças.
Quando constatou a gravidez, a irmã suspendeu de vez os encontros.
Deca queria que fugissem para casar. A freira preferia permanecer e
enfrentar as consequências sem dizer nada a ninguém. Ele insistia: Vamos embora, meu amor, a gente desaparece daqui, esse Brasil é grande,
vamos viver como marido e mulher em algum lugar e criar nossos filhos,
seremos felizes. Tudo inútil.
A freira também amava Deca, porém amava mais a Deus e queria estar
sempre a seu serviço. Se erramos, Ele nos punirá; se acertamos em viver nosso amor, Ele nos recompensará. Contava com o hímen inviolado
como uma proteção. Ingênua ou meio louca, não deu para saber, disse
que sonhou que o Espírito Santo tinha tomado a forma de Deca para
concebê-la. Ficou difícil o diálogo. Além do mais, ela passou a viver
dos plantões para a clausura, da clausura para a igrejinha do próprio
hospital, circulando internamente pelos corredores, sob forte vigilância. Só saía por poucos instantes para abençoar a multidão.
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A única forma de avistá-la, mesmo assim só de passagem, era assistir
à missa no local. Passou a fazer isso diariamente Todos o conheciam
como não religioso e devasso, a súbita conversão era atribuída a um
agradecimento pelo milagre de ter sobrevivido ao acidente com a
combleia desculatrada.
Era a saudade da irmã que fazia o apaixonado ficar macambúzio naqueles dias que antecederam ao julgamento. Fora levada para onde?
As notícias chegavam confusas e o estrangeiro era inacessível para ele.
Estava abalado. Mas só perdia a calma e ficava totalmente puto da vida
quando ouvia, sem poder reagir nem esclarecer, o beato Elias dizer
que o pai do garoto era o próprio Satanás. Engraçado, lembrou Deca
no seu retiro, ninguém ainda cogitou em nenhum momento que pudesse nascer uma menina.
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[ 16 ] O voto decisivo
Voto secreto
O último jurado estava realmente embaralhado quanto ao conteúdo
do seu voto. A irmã Maria era um dos fatores dessa confusão. Ela ficaria
sabendo? O que pensaria? Se fosse seguir os ditames da sua vontade,
votava pela condenação e pronto. Se usasse a razão, o voto era para absolver, o que, além disso, lhe causaria com certeza menos problemas.
Porém sua escolha como jurado por unanimidade e sem entrar na lista do sorteio decorria da irrestrita confiança que todos depositavam
nele. Confiavam na sua capacidade de ser justo, separar como ninguém o joio do trigo. Nem era para dar sua opinião pessoal e muito
menos para agradar sua namorada secreta, a freira aprisionada em
algum convento remoto em outro continente. A rigor, repensou, ela
não queria que ele votasse por Deus ou contra Deus. Se estivesse ao
seu lado opinaria para que decidisse de acordo com a sua consciência.
Esse voto independente, sem querer agradar a A ou a B, a faria ficar
orgulhosa dele.
Durante a noite saía para olhar as estrelas, ouvir os grilos e sapos, sentir a brisa fria beijar seu rosto. Assim passou os dias, alheio a tudo que
estava acontecendo no mundo. Nem queria saber de nada, repercussões, expectativas, mobilizações, nenhum assunto lhe dizia respeito
naqueles dias. O desinteresse era tanto que sequer verificou se a bateria do rádio da casa estava em ordem. Não ligou o aparelho.
A suspensão do julgamento funcionou para ele como uma interrupção
do tempo. Retomaria a normalidade só depois de dar o seu voto. Até lá
o mundo permaneceria parado, qualquer novidade podia contaminar
o que observara no júri. Era isso que embasaria a sua decisão. Tinha
uma linha de raciocínio esboçada, sentia que era muito boa, mas ainda
não conseguira expressar com clareza.
Assim passou parte da noite da véspera do ato final escrevendo e
reescrevendo o seu voto. Sabia que iria falar para o mundo todo. Seu
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parecer seria analisado por juristas, teólogos, governantes, jornalistas
os mais credenciados do mundo. Não podia fazer feio, decepcionar
sua cidade, seus amigos e parentes. A mãe, onde quer que estivesse,
aproveitaria a oportunidade para, pela primeira vez, ficar orgulhosa
dele - sempre fora um filho relapso e problemático para os pais.
Quando o documento ficou pronto, leu, releu, passou a limpo em
letra de forma. Seu perfil intelectual estava longe de ser analfabeto.
Em matéria de literatura, sabia mais ou menos onde tinha as ventas.
Gostou do resultado. Surpreenderia pela argumentação; interpretava
com pertinência pontos que certamente passaram desapercebidos
nos raciocínios da acusação e da defesa. Podiam até não gostar porque
torciam contra. Mas ninguém teria coragem de dizer que seu voto definidor não fora justíssimo. Botaria o peso que faltava no prato certo
da balança.
Destruiu cuidadosamente todos os rascunhos. Rasgou em mil pedacinhos e depois saiu caminhando devagar, soltando aos pouquinhos ao
vento, como invisíveis confetes na noite.
Recolheu-se e dormiu. De manhã tomou banho, colocou roupas de
caminhante, pegou um chapéu de palha de abas largas para esconder
o seu rosto. Naquele dia acendeu o fogo e tomou um café quentinho
que bem sabia preparar.
Seu percurso estava definido. Concebeu um roteiro digno de filmes
de espionagem. Enquanto todas as atenções da imprensa e a vigilância
dos prováveis inimigos estivessem voltadas para o local onde deveria
ser a coletiva, ele entraria disfarçado na casa da família do dono do
cinema. Trocaria de roupa lá mesmo. Mandaria um recado para Továrish mudando o local da entrevista para o próprio cinema e, quando
os jornalistas estivessem entrando pela frente, ele já estaria na coxia,
debaixo do palco.
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[ 16 ] O voto decisivo
Sairia de lá surpreendendo a todos, ficaria no meio dos jornalistas até
chegar sua hora de falar. Não anteciparia seu voto a ninguém. Voto é
secreto, só revelaria na hora da apuração.
Assim, deixou tudo organizado, abriu a porta, saiu para o terreiro.
Como é agradável o sol da manhã. Se espreguiçou lentamente e, quando se preparava para fechar a porta e partir, percebeu um movimento
numa touceira de capim nas proximidades. Seria um animal? Enquanto apurava a vista, ouviu o pipoco do rifle papo-amarelo e sentiu o impacto no ombro. Caiu, o papel com o voto que estava na sua mão saiu
voando. Não foi longe, enganchou num arbusto no final do terreiro.
Com os olhos embaçados, notou duas pessoas caminhando em sua
direção. Quando chegaram mais perto, percebeu que ambas usavam
vestes eclesiásticas. Um era o beato Elias, com seu inconfundível camisolão de profeta. O outro era um jesuíta, de batina negra, que chegara
entre os muitos estranhos que vieram acompanhar o julgamento. Esse,
Deca conseguiu logo identificar, porque, além do monsenhor Afonso,
ninguém mais usava batina preta por ali. Na semana anterior avistou
o sujeito entrando na casa paroquial. Perguntou quem era. Responderam. Ele gravou a fisionomia.
Elias atirou para abater, não para matar. O padre apanhou o papel, leu
vagarosamente o voto. Chegou perto de Deca, levantou sua cabeça
com o pé e falou com discreto sotaque estrangeiro: Pois muito bem, o
senhor tem vocação para teólogo. Percebeu sutilezas no julgamento que,
para a maioria, foram inacessíveis. Considerando a sua ignorância geral
e específica no assunto trata-se de um milagre comparável à conversão
de Saulo de Tarso. É uma pena que esse voto não vá ser divulgado, entraria para a história da Igreja.
Se isso lhe traz alguma paz nos seus últimos momentos, ser contra ou a
favor, não faria diferença. A Santa Madre Igreja se alimenta de mistérios, não da ciência ou da lógica. Esse julgamento que os senhores inventaram para tentar nos atingir fortaleceu como nunca a nossa sagrada
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instituição. Não quero fazer troça com o seu acidente, porém foi mais um
tiro pela culatra a lhe atingir.
Nesse tempo de Guerra Fria, o mundo só queria saber de Marx. Todos
ou eram contra ou a favor. Praticamente não havia espaço para o crescimento de outro tipo de fé.
Com a iniciativa dos senhores, o nosso Deus, que andava meio esquecido, voltou a ocupar o centro das atenções no mundo inteiro. Dividiu
opiniões, fortaleceu a corrente dos que creem. Time que não joga não tem
torcida, não é assim que os senhores dizem? Pois bem, o Senhor Deus
Todo Poderoso entrou no jogo novamente. E vai ganhar.
Nosso inimigo no século XX não é o Demônio, como foi ao longo de
milênios. É Marx com o seu séquito de apóstolos cegos pela ideologia
pagã. Hoje, começamos a reverter o quadro, vamos vencer essa guerra,
pode anotar.
Riu com o que ele mesmo dissera. Claro que o senhor não pode anotar, foi só uma expressão. Mas vai poder conferir no inferno quando os
grandes e arrogantes impérios vermelhos desmoronarem. Posso garantir: diferente das previsões do Apocalipse de São João, isso vai acontecer
ainda nessa geração.
Portanto esse seu voto não poderia ser dado de jeito nenhum. Nem para
condenar, nem para absolver.
Devo lhe dizer uma coisa, se isso lhe serve de consolo: o senhor estava
marcado para morrer, se não hoje, outro dia próximo. Por outro motivo.
Fez uma pausa e voltou à conversa. O senhor pensou que poderia ser
o novo São José do século XX e isso ia ficar barato? Sua amante, arrependida, fez uma confissão completa e minuciosa. Sabemos todos os
detalhes, mesmo os mais íntimos e sórdidos. A vida é assim. Uns choram
porque não têm, outros porque não lhe dão, outros porque querem mais.
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[ 16 ] O voto decisivo
Cumpade Deca, não é como lhe chamam? Com tanta mulher no mundo,
o senhor tinha que se meter logo com a irmã Maria do Espírito Santo?
Mas já que se envolveu com ela, o senhor podia ter se contentado em
manter relações simuladas ou mesmo anais. E porque não consumar a
penetração? Não haveria problemas maiores. Quando fossem descobertos, nada de grave lhes aconteceria. Seria apenas mais uma freira que
quebrou os votos de castidade com um cabra safado qualquer. Seria expulsa da ordem e pronto.
O grave, o imperdoável, senhor Cumpade Deca, foi a tentativa de forjar
uma nova concepção mariana.
O seu maior pecado foi, através do silêncio cúmplice, contribuir na tentativa de ridicularizar um dos mistérios mais importantes da Santa Madre Igreja.
Olhou mais uma vez para o manuscrito que tinha nas mãos. Belo voto.
Quer se confessar? Não? De qualquer modo, vou perdoar seus pecados,
pode morrer em paz.
Aplicou solenemente a bênção e fez sinal com a cabeça autorizando o atirador a liquidar a fatura. Elias, como Tiro Certo sempre fazia, acertou a bala no meio dos olhos. O jesuíta caiu para trás, morto
instantaneamente.
O beato tirou o papel da sua mão, olhou para ele, seu analfabetismo
crônico fazia qualquer escrita ser igual. Acendeu um fósforo, queimou
o voto. Cuspiu de lado, falou alto para Deca ouvir. Esse aí se dizia soldado de Deus, mas nem atirar sabia. Que soldado mais mucufa é esse.
É danado a gente ter matado esse padre, Cumpade. Mas eu sabia que
isso ia acontecer.
O beato conhecia Deca de outras jornadas. A rigor, devia um importante favor a ele. Iria pagar? Afinal, favor se concede pelo prazer de
fazer; o que se oferece visando a retorno é investimento. Quando o
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cabra tem consciência, paga o favor, se tiver oportunidade. Como o
sargento Firmino, quitou a Mané Tiro Certo o bem que este lhe fez ao
salvar-lhe a vida, episódio ocorrido numa parada antiga.
Quando o pistoleiro foi baleado na porta da delegacia e dado como
morto, o sargento arriscou tudo para retribuir o enorme favor que recebera. Simulou a morte, acobertou a convalescença, fez um enterro
falso com pedras de cal dentro do caixão. Combinou que Tiro Certo
partiria para longe. Mas o safado, já com a cabeça perturbada, inventou de voltar para ver o que tinha dentro do seu túmulo. Abriu o ataúde, espalhou as pedras, acendeu velas, pulou o muro do cemitério. E
foi desse jeito que aconteceu a ressureição.
A sorte do sargento é que o coronel não mandava mais na polícia. Acabou punido com mera transferência para uma cidade do Sertão.
O favor de Cumpade Deca ao beato está ligado ao episódio da carruagem de fogo. Por mais fantasiosa que seja uma versão, quase sempre
tem um fundo de verdade, embora interpretado equivocadamente. O
que aconteceu foi que um grupo de fora passeava num balão partindo
de Vicência, onde até hoje se pratica este tipo de esporte, os ares são
favoráveis.
Só que a turma era novata, perdeu-se e terminou por aterrissar violentamente no leito seco de um riacho, entre Bom Jardim e Boi Pintado.
Deixaram lá o balão amarrado e foram em busca de ajuda, dando prioridade aos curativos dos ferimentos que sofreram. Deca soube do caso
e foi atrás de tentar resgatar o balão para ver se ganhava algum trocado.
Localizou o artefato, conseguiu ligar o maçarico e estava tentando
transportar para um local mais perto da estrada. Durante a operação,
Tiro Certo apareceu. Deixa eu andar nisso, Cumpade. Deca perdia
dinheiro, mas não deixava passar a chance de uma presepada. Acomodou o pistoleiro na caçamba, aumentou fogo e lá se foi Tiro Certo
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[ 16 ] O voto decisivo
pelos ares. Era tardezinha, saiu voando ao sabor do vento. Ao anoitecer, o balão pegou fogo e caiu no meio da rua de Oratório.
O favor foi ficar de bico calado, deixando prosperar a lenda do beato
que desceu do céu numa carruagem de fogo. No íntimo, morria de rir.
Esperava uma oportunidade para contar quando o beato começou a
esculhambar a gravidez da freira. Aí engavetou o segredo para narrar
mais adiante, quando o caso estivesse esquecido.
Naquela hora, Tiro Certo ou Elias, tanto faz, nem lembrava de nada
disso. Só queria cumprir sua missão com a precisão de sempre. Continuava falando sozinho: A gente recebeu ordens direto das autoridades
da Igreja, a verdadeira, a que fala com Deus e o Espírito Santo.
Resmungava: As ordens eram pra nós lhe caçar, tomar esse papel e não
deixar ninguém ler. Quem lesse morria também, feito você. Bem se diz
que a curiosidade matou o gato. O padre leu, morreu. Deu um muxoxo.
Soldado de Cristo uma porra. Soldado de Cristo sou eu.
Deca então percebeu que, enquanto falava, o pistoleiro arrumava dois
grandes caçuás de um formato bem diferente no lombo de um burro.
Com habilidade, usando sua força descomunal, quebrou o corpo do
padre ao meio e meteu dentro de uma espécie de pote de barro. Com
certa dificuldade, colocou o pote no caçuá, a cangalha pendeu para a
direita. Era assim que ele carregava suas vítimas até o ponto de desova,
para usar uma linguagem de hoje.
Olhou para o animal, fez o comentário óbvio: Ficou penso, concorda?
Vamos equilibrar essa carga. Deu meia-volta, olhou para Deca, comentou debochado: O senhor não queria julgar Deus? Pois dê lembrança a
ele. Ato continuo, disparou também no meio dos olhos de Cumpade
Deca. Repetiu o procedimento com o corpo, acomodou a carga no
lombo forte do burro.
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Tirou um galão de gasolina do lombo de outro burro, espalhou pela
casa, não sem antes vistoriar tudo. Fez uma pilha com todo papel que
encontrou, tocou fogo. E saiu na direção da Cova do Urubu, um buraco de profundidade ignorada, encravado na rocha, onde Tiro Certo
e os demais pistoleiros da região costumavam jogar as suas vítimas.
Naquele dia o beato pistoleiro não queria urubus sobrevoando por ali
para não chamar a atenção. A ordem era o último jurado sumir sem
deixar rastros. Com isso o seu voto viraria um mistério eterno.
Para a Igreja, o caso estava resolvido, o empate era o resultado ideal.
Assim, ficaria bem para todos.
O objetivo do beato era não possibilitar a identidade de ninguém mesmo que alguém descesse ao fundo do poço para revolver os cadáveres
que existiam lá. Eram muitos. Só ele já arremessara quase trinta, sem
contar aqueles dois.
Quando chegou no pé da Cova, pegou cada um dos potes, acabou de
encher com querosene, reforçou com algodão, tocou fogo e jogou os
dois no poço de uma vez. O resultado foi quase uma bomba atômica.
Subiu uma coluna de fogo assemelhada a um gigantesco vulcão junino. Elias foi atirado à distância, ficou um tempo apagado. Quando
acordou, tinha virado Mané Tiro Certo de novo.
Despiu suas roupas de beato e também as jogou na cova, onde ainda
crepitavam algumas labaredas.
Nasci pra isso não. Deus quer que eu volte a ser pistoleiro, ele mesmo me
encomendou essas mortes.
Era uma volta às raízes, uma retomada de crenças ambíguas, que o fizeram trafegar do crime ao ascetismo e retornar sem tropeços. Afinal,
todo pistoleiro que se preza acredita que é parceiro do Criador: Eu só
puxo o gatilho, quem mata é Deus, costumam afirmar, jogando a culpa
para o alto.
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[ 16 ] O voto decisivo
O destino de cada um
Muita gente acredita que cada pessoa nasce com o destino traçado
por Deus. Certos ateus dizem que as coisas acontecem como têm que
acontecer. Os marxistas falam que os homens fazem sua própria história, mas não do jeito que querem, e sim da maneira que conseguem.
Só existe uma verdade inquestionável: todos vamos morrer, mais dia,
menos dia. Desse socialismo, ninguém escapa.
Naquela tarde, instalada a sessão sem a presença do principal personagem, o mundo inteiro perguntava o que fora feito de Cumpade Deca.
Ele não era de farrapar, muito menos a um compromisso como aquele.
Coisa grave acontecera, com toda a certeza. O governador mobilizou
as polícias Civil e política para procurar qualquer pista. O ditador botou a Polícia Federal imediatamente no caso. Interrogados separadamente, os Tetéus contaram a mesmíssima versão. Nem uma acareação
era necessária. Dispensava-se o uso da violência. Estava claro que todos falavam a verdade.
Esgotado o prazo regulamentar, Továrish Lói, representando os Tetéus, reuniu-se com o juiz simulado, o representante do governador, o
juiz de Direito e o promotor. Chegaram ao consenso, quem tem umbigo tem medo. Lavraram a ata oficial do julgamento simulado: Resultado inconclusivo.
Em poucos dias, a imprensa retornou aos seus pagos, a exemplo dos
demais visitantes. O assunto foi gradativamente sumindo do noticiário. Percebendo que não ficaria seguro no Brasil, o promotor simulado
seguiu para o exílio voluntário acompanhado por dezenas de jornalistas. Ganhou mais alguns anos de vida.
Um major interventor foi nomeado para Boi Pintado, a existência voltou ao normal. Melhor dizendo, à medida que o assunto esmaecia, a
ditadura retomava seu curso com tintas cada vez mais fortes.
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Para alguns participantes do Julgamento do Século, como a imprensa
europeia batizou o evento, a morte chegou mais cedo. Pensando bem,
para os principais.
Espalhou-se até a ideia da maldição do julgamento de Deus. O povo
não pode ver meia dúzia de mortes relacionadas que não invente uma
lenda.
Cumpade Deca, foi o primeiro. O segredo do desaparecimento não
durou nem quinze dias. Tiro Certo, de volta à condição de pistoleiro,
não aprumou mais o juízo. Atormentado, tomou certa noite uma cana
monumental, como fazia antigamente. Desacostumado do batente,
logo ficou embriagado. Contou toda a história ao bar inteiro, confessou o assassinato de Deca, a cumplicidade da Igreja, um salseiro. No
final, deu um tiro na cabeça e morreu de vez. Oficialmente, ficou na
conta de delírios de um louco suicida. Mas todos sabiam que o Cumpade partira desta para a pior.
O juiz simulado faleceu em um acidente automobilístico muito mal
explicado. Ele era precavido com a manutenção do seu carro de estimação e sempre dirigia com cuidado. Chamou a atenção o estado dos
pneus após o desastre, todos esburacados, e o pior: qualquer borracheiro ou mecânico atestaria que foram trocados após o acidente. A
conta, dessa vez, foi para os ladrões de estrada.
Dos três jurados que votaram contra Deus, nenhum teve vida longa.
Marinada e Alarico também faleceram em estranhos acidentes de
trânsito. Joselito Travassos foi visto pela última vez caminhando em direção a uma praia deserta, usando apenas calção de banho. Se chegou
a mergulhar, ninguém sabe, ninguém viu. Desapareceu para sempre.
O brilhante promotor, concluiu o curso de Direito no exterior e voltou para exercer a profissão em Boi Pintado. A rigor, nada pesava contra ele. Apesar disso, não obteve sequer o benefício do disfarce. Armado com um Código Civil e conduzindo pela mão uma criança, foi
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[ 16 ] O voto decisivo
assassinado a tiros por pistoleiros na mais perfeita luz de um dia de
verão em Boi Pintado. E mais: em pleno sábado, no meio da feira.
Tratou-se de uma vingança impiedosa, cruenta e sobretudo covarde. Os verdadeiros mandantes, naturalmente, nunca foram punidos,
embora todo mundo desconfiasse de quem eram. Mais uma demonstração de que as instituições democráticas às vezes também deixam a
desejar.
O professor Natércio Pai dos Burros morreu de precoce e inesperada
morte morrida. O mesmo aconteceu com Továrish Lói e, por incrível
coincidência, com Jota França. O comum entre os três casos é que, por
mais que examinassem, os legistas não detectaram nada de anormal.
Sequer as doenças de que porventura padecessem foram identificadas.
O Palhaço Bunda Mole, que representou Deus, sempre fazia bicos nos
circos que passavam por ali. Tinha um número gaiato no trapézio, andava meio enferrujado. Logo no primeiro treino, alguém desarmou a
rede de proteção e ele se esbandalhou. Morreu na hora.
Pensando bem, é muita gente morta. Dos que subiram ao palco ou
estiveram à frente do julgamento só sobrou a assistente da promotoria.
Esta escapou de duas ou três armadilhas do destino logo depois do
julgamento. Batida de carro, tentativa de atropelamento, até queda de
elevador. Acho que desistiram. Desenvolveu sua vocação para o Direito, é advogada brilhante, defensora dos direitos humanos, bem casada,
avó e continua bonita.
Os três jurados que votaram pela absolvição continuam todos vivos.
Ninguém parece gostar do assunto. Dizem que não lembram bem, há
quem ponha em dúvida a própria realização do julgamento.
No Brasil os registros da imprensa ou qualquer outro documento
relativo ao evento sumiram durante os anos de chumbo. Restam os
registros da imprensa internacional, além do testemunho de muita
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gente ainda viva. Alguns lembram detalhes ou sabem até mais do que
foi narrado aqui.
Waldemir Rabo de Arraia é um desses. Fez parte da lista de jurados,
mas não foi sequer sorteado. Por via das dúvidas, quando todo mundo
começou a morrer, arrumou as malas e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se deu bem, constituiu família e mora até hoje no subúrbio.
Recentemente, reuniu amigos para cerveja e churrasco. Estava presente outra figura boipintadense, Fernando Arroz Doce, que também
arribou mais ou menos nessa época. Começaram a recordar tempos
antigos, a conversa escorreu para o julgamento, os dois relembraram
várias circunstâncias.
A neta de Waldemir, Deyse, uma adolescente adepta dos rolezinhos
nos shoppings da zona sul, estava por ali e achou a história muito
massa, embora tenha perdido alguns detalhes. Curiosa como as jovens costumam ser, aproveitou a ocasião e perguntou a essa importante testemunha ocular: Afinal, vovô, o réu desse júri foi condenado
ou absolvido?
Waldemir refletiu, coçou a cabeça e pronunciou a enigmática e definitiva sentença: Só Deus sabe, minha filha. Só Deus.
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