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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Por
Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis
A HOMOSSEXUALIDADE DESCONSTRUÍDA EM
LEVÍTICO 18,22 e 20,13
São Bernardo do Campo, Maio de 2006
2
Dallmer Palmeira Rodrigues de Assis
A HOMOSSEXUALIDADE DESCONSTRUÍDA EM
LEVÍTICO 18,22 e 20,13
Dissertação apresentada em cumprimento
parcial às exigências do programa de PósGraduação em Ciências da Religião, sob a
orientação do Prof. Dr. Tércio Machado
Siqueira para a obtenção do grau de Mestre
da Universidade Metodista de São Paulo.
São Bernardo do Campo, Maio de 2006
3
AGRADEÇO
Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São José do Rio Preto, seu conselho,
sua equipe pastoral, seus mais estimados membros,
Larissa L. G. de Assis,
Hudson e Maria Lúcia,
Thomas Hanks, José Adriano Filho, Tércio Machado Siqueira,
Fábio Augusto dos Santos e Juliana Lobo dos Santos,
Mário Sérgio de Góis,
Fundação Mary H. Speers,
Instituto Ecumênico de Pós Graduação.
Sem estes nada seria possível! Obrigado!
4
DEDICO
LARISSA (eterna paixão)
THEO (melhor dos sonhos)
5
DALLMER PALMEIRA RODRIGUES DE ASSIS. A HOMOSSEXUALIDADE
DESCONSTRUÍDA EM LEVÍTICO 18,22 e 20,13. UNIVERSIDADE
METODISTA DE SÃO PAULO, FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO, PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO. ORIENTADOR: PROF. DR. TÉRCIO MACHADO SIQUEIRA.
Resumo
Esta pesquisa apresenta uma leitura desconstruída do
conceito de homossexualidade, presumidamente, presente em Levítico 18,22 e 20,13.
A busca por indícios históricos de relacionamentos homossexuais encontrou
evidências claras desse tipo de prática em épocas como o século X a.C. Também, a
pesquisa serviu para mostrar até onde e como se encontram temas, títulos e autores
que trabalham com a questão da homossexualidade. Os versos analisados são parte
de um código de leis chamado “Código de Santidade” (Levítico 17-26). O lugar
histórico da composição do código se encontra, inicialmente, no evento do retorno
dos exilados da Babilônia e vai até meados do exercício da influência grega, séculos
seguintes. Evidentemente, o período imperial persa ganha destaque na composição
do “Código de Santidade”. Esse momento mostra como foi relevante a idealização
deste “Código” para que a comunidade em Judá não perdesse sua identidade
existencial. A análise exegética dos dois versos mostra como o autor(es) de Levítico
não se preocupou, nem ao menos mencionou, o relacionamento unissexual em sua
totalidade, mas sim proibiu o sexo anal entre dois homens que fosse misturar
categorias de gêneros, fosse violentar a autoridade masculina patriarcal e também
fosse assemelhar a comunidade, sua cultura e religião com outras culturas e povos
vizinhos. O trabalho chega à conclusão hermenêutica que Levítico 18,22 e 20,13 não
sabiam nada sobre o relacionamento homossexual moderno e eram completamente
silenciosos quanto ao conceito de homossexualidade em Judá no pós-exílio. Assim, a
presente pesquisa deseja ser provocação para a discussão da questão na academia e
6
nas comunidades religiosas, pois, conforme exposto não há nada na bíblia hebraica
que se possa utilizar para reprimir a livre expressão da relação unissexual moderna.
7
DALLMER PALMEIRA RODRIGUES DE ASSIS. A HOMOSSEXUALIDADE
DESCONSTRUÍDA EM LEVÍTICO 18,22 e 20,13. UNIVERSIDADE
METODISTA DE SÃO PAULO, FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO, PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO. ORIENTADOR: PROF. DR. TÉRCIO MACHADO SIQUEIRA.
Resumen
Esta pesquisa presenta una lectura desconstruida del
concepto de homosexualidad presupuesto del libro de Levítico 18,22 y 20,13. La
busca por indicios históricos de relaciones homosexuales encontró evidencias claras
de este tipo de práctica en épocas como el siglo X a.C. También, la pesquisa sirvió
para demostrar hasta donde y como encontrar temas, títulos y autores que trabajan
con la cuestión de la homosexualidad. Los versos analizados son parte de un código
de reglas llamado “Código de Santidad” (Levítico 17-26). La localización histórica
de la formación del código se encuentra desde el acontecimiento del regreso de los
exilados de Babilonia hasta mediados del ejercicio de la influencia greca, siglos
siguientes. Verdaderamente, el período imperial persa gana realce en la formación
del “Código de Santidad”. Este momento evidencia como fue esencial a la formación
de este “Código” para que la comunidad en Judá no perdiera su identidad existencial.
El análisis exegética de los dos versos demostra como el autor(es) de Levítico no se
preocupó, ni siquiera aludió a la relación unisexual en su plenitud, pero sí prohibió el
sexo anal entre dos hombres que fuera mezclar categorías de géneros, fuera violentar
la autoridad masculina patriarcal y también fuera asemejar la comunidad, su cultura y
religión a otras culturas y pueblos
linderos. El trabajo llega a la conclusión
hermenéutica que Levítico 18,22 y 20,13 no sabía nada sobre la relación homosexual
moderna y era completamente silencioso cuanto al concepto de homosexualidad en
Judá después del exilio. De esta manera, la presente pesquisa desea ser provocación
para la discusión de la cuestión en la academia y en las comunidades religiosas, pues
8
no hay nada en la biblia hebraica que se pueda utilizar para reprimir la libre
expresión unisexual moderna.
9
DALLMER PALMEIRA RODRIGUES DE ASSIS. A HOMOSSEXUALIDADE
DESCONSTRUÍDA EM LEVÍTICO 18,22 e 20,13. UNIVERSIDADE
METODISTA DE SÃO PAULO, FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO, PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA
RELIGIÃO. ORIENTADOR: PROF. DR. TÉRCIO MACHADO SIQUEIRA.
Abstract
This research presents a deconstruct reading of
homosexualism presumable presented in Leviticus 18,22 and 20,13. The research
found clear historical evidences of homosexual relations in many historical periods,
even back to the X century. Also, the present study shows where and how this theme,
books and authors related to homosexualism are found nowadays. These verses
studied are part of a legal code called “Holiness Code” (Leviticus 17-26). The
historical place for the composition of the code is initially found in the event of the
returned Israel from exile in Babylon and goes until the beginning of Greek
influence, centuries latter. Surely, Persia imperial period gains special relevance in
the final composition of the “Holiness Code”. This period shows how relevant the
idealization of the “Code” was to the community of faith in Judah and how important
was to the community so it could not loose its existential identity. The exegetical
analyses of the two verses attests how the author of Leviticus was not concerned and
did not even mentioned homosexual relations in its fullness, but the texts did prohibit
anal intercourse between males, in special occasions, gender mixture, violence to the
male authority and every idea that would relate Israel to others communities and
neighbors. The present research gets to the hermeneutic conclusion that Leviticus
18,22 e 20,13 knew nothing about modern homoerotic relations and were completely
silent to the concept of homosexualism in the post exilic Judah. So this research
wants to be the motivation to the discussion on the issue of homosexualism in the
Academy and in the religious communities. As studied in this paper, there is nothing
10
that the hebrew bible can say to oppress men and women that want to live their life in
the free expression of a unisexual relation today.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................
14
1 RELAÇÕES HOMOSSEXUAIS NA HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES..........
20
1.1 A origem conhecida das relações homossexuais...............................................
20
1. 2 Relações homossexuais em relatos de mitologia..............................................
23
1. 3 Grécia e Roma Antiga.......................................................................................
28
1. 4 A discussão da questão em momentos atuais....................................................
36
1. 4. 1 Nos Estados Unidos.......................................................................
36
1. 4. 2 Na sociedade brasileira..................................................................
39
1. 5 Questões, autores e obras contemporâneas.......................................................
42
2 SOBRE O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO....................................................
47
2. 1 O Império Persa................................................................................................
48
2. 2 A política de dominação persa..........................................................................
54
2. 3 O campo e a cidade...........................................................................................
57
2. 4 A religião no Império........................................................................................
59
2. 5 Simbologia aplicada ao texto............................................................................
64
2. 5. 1 O símbolo por trás do templo.........................................................
64
2. 6 O templo como ideal de “exclusão”..................................................................
68
3 ANÁLISE CRÍTICA DE LEVÍTICO 18,22 E 20,13...........................................
71
3.1 O “Código de Santidade”...................................................................................
72
3. 2 O capítulo 19 no “Código de Santidade”..........................................................
80
3. 3 Os capítulos 18 e 20 em Levítico......................................................................
86
3. 3. 1 O capítulo 18..................................................................................
86
12
3. 3. 2 O capítulo 20..................................................................................
95
3. 4 Estudo do texto proposto: Levítico 18,22 e 20,13............................................
100
3. 4. 1 Levítico 18,22................................................................................
100
3. 4. 2 Levítico 20,13................................................................................
110
3. 5 Análise comparativa dos textos de Levítico 18,22 e 20,13...............................
112
3. 6 Considerações finais.........................................................................................
115
4
A
DESCONSTRUÇÃO
DA
HOMOSSEXUALIDADE
EM
LEVÍTICO...............................................................................................................
118
4. 1 Levítico 18,22 e 20,13 na moldura sócio-religiosa do “Código de
Santidade”................................................................................................................
121
4. 2 A preservação da família no “Código de Santidade”........................................
124
4. 3 A violência sexual como “abominação”...........................................................
126
4. 4 A relação unissexual não é proibida.................................................................
128
CONCLUSÃO.........................................................................................................
133
BIBLIOGRAFIA BÁSICA......................................................................................
138
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR...................................................................
151
13
INTRODUÇÃO
Um trabalho que abertamente trate do assunto da
homossexualidade requer atenção especial. Muito possivelmente qualquer autor diria
o mesmo de seu objeto de estudo, porém o assunto que fora a causa de grandes
divergências sociais, de inúmeras problematizações teológicas e de várias
atrocidades históricas, tem que ser trabalhado com atenção e cuidado diferenciado
em relação aos demais temas. Este talvez seja o ponto chave do presente, uma
dissertação exaustivamente preocupada com a atenção que requer o assunto da
homossexualidade. Principalmente por estar diretamente ligado a assuntos bíblicoreligiosos como é o caso aqui.
O que segue é fruto de pesquisas bibliográficas, bem
como pesquisas à internet, e até mesmo viagens de participação em congressos,
nacionais e internacionais, com o desejo de um melhor, se não o mais apropriado,
desenvolvimento do trabalho. Livros, artigos, dicionários, revistas, palestras,
sermões, entrevistas e grande parte dos artigos disponíveis foram usados no presente.
O presente é resultado da pesquisa teórica e de campo de seu idealizador, que em
todos os momentos desejou manter firme seu desejo de trabalhar para encontrar no
texto bíblico sua mensagem mais real.
O trabalho a seguir é uma pesquisa exegética dos dois
versos de Levítico: 18,22 e 20,13. Os versos analisados foram os dois versos
causadores de revolucionários posicionamentos bíblico-sociais da questão da
homossexualidade na história, motivando perseguições e delimitando um conceito
anti-homoerotismo em escala universal. Por esse mesmo motivo é que se propõe uma
análise dos versos em Levítico, pois os versos em questão foram, por vários séculos,
14
aplicados, usados e interpretados aleatoriamente em relação a um grupo de pessoas
com práticas divergentes das consideradas normais, e que em nada correspondiam às
abominações do texto bíblico.
Por essa razão, há no trabalho a tentativa de
desconstrução de sentido, sentido esse que indica não apenas a presença, das relações
homoeróticas, como também sua severa condenação, a pena de morte, nos textos de
Levítico 18,22 e 20,13. Esse tipo de leitura é, ainda em dias atuais, comumente aceita
em círculos religiosos mais conservadores.
O próprio título do trabalho apresenta em sua
composição essa tentativa de desconstrução de sentido. O que se propõe com o
presente é uma leitura alternativa dos versos e também de seu contexto literário mais
próximo, ou seja, ler-se-á Levítico 18,22 e o 20,13 juntamente com seus capítulos e
também o capítulo 19. O presente está dividido em introdução, quatro capítulos e
conclusão.
O capítulo primeiro (Relações homossexuais na
história) contém uma vasta pesquisa bibliográfica histórica dos eventos mais
importantes que marcaram a questão da relação unissexual na história da vida
humana. Neste momento, voltar-se-á a tempos além narrativa bíblica, épocas que
denunciam a existência dos relacionamentos homossexuais e seus desdobramentos
no meio da sociedade local.
Para melhor compreensão da questão neste capítulo,
usou-se de textos de relatos de mitologia de povos próximos aos povos na Palestina.
A pesquisa histórica tem por objetivo apresentar ao leitor não apenas o
desenvolvimento da questão na vida da sociedade, fosse ela qual fosse, mas também
revelar como se apresenta toda a discussão da matéria hoje. Para isso, autores
contemporâneos são citados na parte final do capítulo, bem como suas obras e
argumentação. Todo o trabalho do primeiro capítulo está focalizado no
desenvolvimento
homossexualidade.
histórico-social
e
também
religioso
do
assunto
da
15
É interessante mencionar que a leitura histórica da
questão faz revelar não apenas a importância do presente trabalho, mas também o
situa em relação aos demais trabalhos científicos contemporâneos.
O capítulo segundo (Sobre o contexto sócio-histórico)
é parte fundamental na compreensão dos textos. É justamente o capítulo que dará
base histórica para o posicionamento dos textos em seu contexto vivencial. Ou seja,
os textos de Levítico são textos que foram escritos a partir de uma data e um local
específico. Este capítulo abordará a que momento histórico ambos os textos
remetem.
Saber a localização histórica dos textos é parte
essencial na metodologia do trabalho para compreender os mesmos em sua
mensagem mais inicial. Este capítulo é instrumento de grande auxílio para que
justamente se evite uma leitura textual desfocada da que o próprio texto pretende
apresentar. A localização histórica do texto revela a mensagem em seu contexto de
origem, seus destinatários, bem como todo o pano de fundo que motivou e
influenciou a redação dos textos. O momento sócio-político internacional, bem como
nacional, as relações com demais grupos na Palestina e fora dela marcam a
relevância do capítulo.
O terceiro capítulo (Análise crítica em Levítico 18,22 e
20,13) contém a análise exegética dos textos. Para reler o texto bíblico em dias atuais
não se pode prescindir de uma cuidadosa exegese do texto antigo. Entende-se que o
capítulo anterior fora parte integrante na análise exegética do texto, mas é com o
complemento de outras abordagens científicas que se obterá resultados esperados.
Para tanto, o capítulo conta com uma análise literária
de todo o capítulo 18 e o capítulo 20. Nesta mesma análise percebeu-se que o
capítulo 19 era importante para compreender a mensagem maior dos capítulos
anterior e posterior. Após este momento tem-se a tradução e conceituação dos termos
e palavras mais importantes nos versos.
16
Não se tem no trabalho uma abordagem de perícope,
mas sim dos textos 18,22 e 20,13. Evidentemente que se apresenta o resultado da
pesquisa dos capítulos 18-20, pois para a compreensão dos versos não se poderia
omitir seus contextos mais próximos.
O
capítulo
quarto
(A
desconstrução
da
homossexualidade em Levítico) leva o nome do título do trabalho. Este capítulo
tende a ser o momento definitivo de toda a pesquisa, momento em que serão
apresentadas, não apenas os resultados da pesquisa, mas também o ponto chave e
central de todo o trabalho, o significado dos textos de Levítico 18,22 e 20,13 em seu
contexto original e em dias atuais. Essa parte central e final da pesquisa apresentará
assim, conclusões alcançadas, em decorrência dos passos estudados anteriormente,
bem como intentará na argumentação da desconstrução do conceito de
homossexualidade para a realidade contemporânea. Assim, o momento final do
trabalho será ocupado com o desenvolvimento do título do mesmo.
Os dois textos de Levítico foram escolhidos por
apresentar a única suposta fórmula de condenação para pessoas homossexuais: e com
homem não deitará ‘como se deita com mulher’ abominável é isto (18,22), e homem
que deitar com homem ‘como se deita com mulher’ abominação fazem, os dois
devem morrer, são mortos com seu sangue sobre eles (20,13). É evidente que alguma
fórmula de condenação é apresentada nos versos, no entanto, essa mesma fórmula
apresentada não esclarece com propriedade, não apenas quem são condenados à
morte, como também quais práticas são condenáveis e em quais lugares e situações.
Durante vários séculos homens e mulheres morreram
debaixo dessa condenação, homens e mulheres que não correspondiam realmente aos
condenados dos versos. Os próprios versos não esclarecem se apenas um ou ambos
são condenados na relação, que tipo de relação é esta prevista no texto, qual o
significado das proibições anteriores e posteriores aos versos, o que faz o texto
dentro do “Código de Santidade”, se o texto faz qualquer referência a qualquer tipo
de relação unissexual moderna, e por fim, evidenciar que nenhum tipo de relação
homossexual feminina é mencionada no texto. Estas e outras questões serão
abordadas no presente.
17
É importante destacar que o que se pretende com o
presente não é ler os textos de Levítico 18,22 e 20,13 através de um viés queer, nem
tão pouco repetir erros do passado e ler os mesmos textos bíblicos como justificação
da condenação de homossexuais. Todavia, pretende-se fazer aqui, conforme escreveu
Theodore W. Jennings Jr., uma leitura um tanto incomum do texto bíblico chamada:
“leitura defensiva”1. Assim, os textos de Sodoma e do próprio Levítico foram lidos
no passado mais recente e serviram para ser melhores compreendidos nas
comunidades de fé hoje. É interessante observar como os textos do Novo Testamento
foram também melhores compreendidos depois de leituras defensivas dos demais
textos bíblicos.
São usados, no presente trabalho, termos diferenciados
para os diferentes tipos de relacionamento sexual. A terminologia: homossexualidade
e homossexual, já não corresponde mais a diversos anseios para outros tipos de
relação. Com afeito, quando aparecer termos como homoafetivo e homofilia
pretende-se referir ao relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo que não
necessariamente use de contato físico. Quando se usar termos como homoerótico
pretende-se mencionar o relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo que
tenha contato físico. Termos como homossexual e unissexual fazem menção ao
relacionamento entre duas pessoas do mesmo sexo de forma mais abrangente, ou
seja, todo tipo de atividade sexual, de contato ou não, que exista.
Chegara, então, o momento destes textos serem usados
de forma apropriada em círculos religiosos e acadêmicos, bem como em
comunidades cristãs. É por esta razão que se apresenta o trabalho, para que sirva de
instrumento na desconstrução de um conceito erroneamente construído, para que
sirva de instrumento na libertação de pessoas, homens e mulheres, e comunidades
inteiras que outrora perseguidos, mas que agora gozam de liberdade religiosa.
A
bibliografia
do
trabalho
apresenta
em
sua
composição o que se chama de bibliografia complementar. Objetivou-se nesta área
1
Theodore W. Jennings Jr. Queer commentary and the Hebrew Bible. 2001, p.36.
18
apresentar uma ferramenta de auxílio à pesquisa que tratasse do tema da
homossexualidade, bem como de obras atuais e de expressão para a pesquisa bíblica
do mesmo.
19
1
RELAÇÕES
HOMOSSEXUAIS
NA
HISTÓRIA
DAS
CIVILIZAÇÕES
Apesar do número de homossexuais mortos no
holocausto nazista ser pequeno em relação ao número
de judeus mortos, provavelmente porque eram mais
facilmente reconhecidos, recentes estudos contém clara
evidência que a quantidade de representantes de
minorias sexuais mortos nos últimos mil anos pode
exceder aos seis milhões de judeus assassinados na
segunda grande guerra. Se pudéssemos desenhar uma
linha de casualidades históricas de Levítico a Hitler,
poucos considerariam a bíblia um manual de ajuda
para a vida moderna e muito menos um livro
divinamente inspirado.2
- Thomas Hanks
1. 1 A origem conhecida das relações homossexuais
Não é conhecida a origem das relações homossexuais
na história. No entanto, afirma Wanda Deifelt que durante todos os períodos da
história constata-se a existência de práticas homossexuais.3 Pode-se assim dizer que
o homoerotismo e a homoafetividade, masculina e feminina, são existentes desde os
primórdios da raça humana. Porém, escassas são as evidências históricas desse tipo
de relação entre pessoas do mesmo sexo. Se o que se encontra hoje evidencia, de
2
Thomas Hanks. “Violence to the bible or inspired by the bible?” http://www.othersheep.com
20/02/2005.
3
Wanda Deifelt. “Os tortuosos caminhos de Deus: Igreja e homossexualidade.” Em: Estudos
Teológicos. Nº. 1. 1999, p.37.
20
forma pouco substanciada, a homoerotização masculina, quanto mais escassos ainda
são textos que esclarecem sobre a relação homossexual entre mulheres.
Sabe-se que a sexualidade estava amplamente presente
nos templos religiosos antigos, fossem estes sumérios, assírios, cananitas,
babilônicos ou até egípcios. Algum tipo de relação unissexual havia e era comum
entre os sacerdotes ou mestres de cerimônia religiosa. Sabe-se que nos templos
sumérios os mesmos vestiam roupas de mulheres para serem revestidos de poderes
pela deusa Ishtar, se prostituíam com homens freqüentadores dos templos para
simbolicamente recolherem fértil sêmen da entidade, mas na prática, visavam manter
financeiramente os
templos.
Acredita-se que garotos
e homens,
usados
exclusivamente para tais práticas, passaram a ser explorados nos templos. Estes eram
chamados no hebraico de qědōšîm, mais comumente traduzido por santos, veja
alguns textos bíblicos para a ocorrência da palavra: I Reis 14,22-24, Deuteronômio
23,17-18.
As evidências mais conhecidas da prática homoerótica
nos períodos antigos estão, em sua maioria, relacionadas com o culto às divindades.
Rituais religiosos relacionados à fertilidade4 envolviam em suas cerimônias atos
sexuais. Se se acreditava que relações sexuais trariam fertilidade, depositar sêmen em
outro homem, traria fertilidade duplicada.5 Como Baal era símbolo de fertilização
dos deuses, este era sexualmente venerado. Observa-se, também, que um dos rituais
religiosos mais predominantes nas culturas vizinhas a Israel era o “ritual de nudez”
nos templos e os “rituais de masturbação” diante dos ídolos.6
Também é comum associar o culto de algumas
divindades ao “falo” ou ao “pênis” com circunstâncias homoeróticas. Tammuz, na
4
Em cultos relacionados a fertilidade, ejaculava-se no chão acreditando que assim a semente jogada,
penetrando a terra, entendida como fêmea, fazia com que os deuses perpetuassem uma terra fértil.
Robert J. Buchanan. “Homosexuality in History.”
http://hometown.aol.com/GraceEACA/chapter2.html 19/09/2003. Para mitologia relacionada ao culto
da fertilidade ver: G. Del Olmo Lete. Mitos y Leyendas de Canaan. Segun la Tradicion de Ugarit.
1981.
5
Robert J. Buchanan. “Homosexuality in History.”
http://hometown.aol.com/GraceEACA/chapter2.html 19/09/2003.
6
Rictor Norton. “Essays by Rictor Norton on the historical roots of homophobia from ancient Israel to
the end of the middle Ages. 1 The Ancient Hebrews.” http://www.infopt.demon.co.uk/homopho1.htm.
21
Fenícia (Dumuzi na Suméria) era uma divindade consorte de Ishtar, também
conhecida com Asherah. Adoradores de Tammuz acreditavam que ele era um bonito
pastor e que também fora morto por uma besta selvagem. O culto a essa divindade
envolvia símbolos fálicos ou réplica de pênis e se desenvolveu basicamente com
rituais sexuais. Muitas vezes o culto a Baal também incluía símbolos fálicos. As
torres de Ziggurat, na Babilônia, eram lugares associados a cultos religiosos com
ampla divulgação de atividades sexuais relacionadas à masculinidade. Por fim, o
deus grego Dionísio era venerado e seguido por homens conhecidos como Sátiros,
que eram sempre representados com pênis ereto.7
Sabendo da existência de práticas sexuais diversas, os
exilados que voltam da Babilônia procuram observar para que sua cultura não fosse
absorvida pela cultura de povos vizinhos, que como visto, tinham a prática
homossexual em rituais religiosos. Para que não houvesse essa absorção foram
criadas leis, as quais mais tarde se constituíram no Levítico, que trouxera uma nova
identidade ao povo em Judá.
Uma das descobertas mais relevantes para a pesquisa
da sexualidade ou homossexualidade na história aconteceu em 1964. Naquele ano,
fora descoberta, pelo arqueólogo egípcio Ahmed Moussa, na antiga necrópolis de
Saqqara, Egito, uma tumba um tanto quanto diferente das demais. Nela uma cena
singular: dois homens num abraço eterno. Foi revelado que essa tumba fora
construída para dois homens que viveram por volta de 2400 a.C. e que dividiam o
título, “Os vigias dos(as) manicuras no palácio do rei”. Muitos dizem que eram
gêmeos (homens), uns que eram irmão e irmã, outros amigos, porém é importante
que se diga que sua representação é semelhante com demais representações de
tumbas para casais heterossexuais, marido e mulher. Portanto, seria essa uma
representação do primeiro casal masculino, unissexual, da história?8
Não se sabe muito sobre o retrato abaixo, mas fica
como evidência que a tumba onde se encontrou o retrato fora construída para que
7
Robert J. Buchanan. “Homosexuality in History.”
http://hometown.aol.com/GraceEACA/chapter2.html 19/09/2003.
8
http://www.egyptology.com/niankhkhnum_khnumhotep/. 28/09/2005. Ver também:
http://en.wikipedia.org/wiki/khnumhotep_%26_niankhkhnum. 28/09/2005.
22
estes dois homens vivessem juntos e ali, agissem da forma que agissem, viveriam um
relacionamento homossexual.
Ilustração 1
1. 2 Relações homossexuais em relatos de mitologia
Gilgamesh
Na metade do século XIX, arqueólogos em escavação
na cidade assírica de Nínive encontram e traduzem cartas cuneiformes escritas e
conservadas em pequenas tábuas. Considera-se o achado como a mais antiga obra
literária viva. O assim conhecido “Épico de Gilgamesh” relata a história de um semideus, dois-terços divino e um-terço humano. O relato toma lugar possivelmente no
final do terceiro milênio a.C. Sabe-se de um Gilgamesh histórico que tenha
governado Uruk, cidade da Mesopotâmia antiga, por volta de 2700 a.C.9
9
Raymond –Jean Frontain. “Gilgamesh.” http://glbtq.com/literatura/gilgamesh.html.
23
“Gilgamesh, filho do guerreiro rei Lugalbanda e da
sábia deusa Ninsun.” Assim narra a primeira tábua do épico sumério.10 Essa narrativa
chama a atenção para a relação homoerótica entre seu personagem principal e
Enkidu. O qual teria sido criado para conter o desejo heterossexual opressor de
Gilgamesh, o rei, por mulheres na comunidade. Dessa forma, o relato é estruturado
no amor do heróico casal masculino Gilgamesh e Enkidu.11
O épico se inicia com a frase: “Eu proclamarei ao
mundo as proezas de Gilgamesh”. As proezas deste semi-deus, listadas abaixo,
oprimem e maltratam os moradores de Uruk:
É Gilgamesh o pastor de Uruk,
Ele é o pastor?...
Gilgamesh não deixa uma filha pra sua mãe,
A filha do guerreiro, a noiva do jovem homem,
Os deuses continuam a ouvir suas reclamações,
Os deuses imploram ao senhor de Uruk (Anu),
Você trouxe a existência um poderoso touro selvagem,
cabeça erguida,
Não há rival que levante arma contra ele...
Anu, escute essa reclamação,
Então os deuses chamaram por Aruru: Foi você, Aruru,
quem criou a humanidade? Agora crie um zikru para
ele/isto. Permita que ele encontre um parceiro e deixe
Uruk em paz.12
Observa-se no próprio texto que o plano para a criação
de Enkidu funciona de diversas formas, primeiro ele impede Gilgamesh de entrar na
casa dos noivos e atrapalhar a cerimônia religiosa, existe luta e depois eles se
abraçam como amigos. Após, fazem uma jornada juntos pela floresta para se
confrontarem com o terrível Humbaba, ali encorajam-se mutuamente para
enfrentarem a morte triunfantemente.13
10
Siren, Christopher B. “Myths and Legends. The Assyro-Babylonian Mythology.”
http://members.bellatlantic.net/~vze33gpz/assyrbaby1-faq.html 19/09/2003.
11
Para essa interpretação ver também artigo disponível on-line:
http://pages.zoom.co.uk/lgs/gwint.html “The Gay history of planet earth. From Gilgamesh to
Gertrude.” 27/09/2005.
12
Wolf Carnahan. “The Epic of Gilgamesh.” Edição eletrônica. 1998,
http://www.ancienttexts.org/library/mesopotamian/gilgamesh/tab1.htm 28/09/2005.
13
Arthur A. Brown. “Storytelling, the meaning of life, and the epic of Gilgamesh.” 29/09/2005.
24
Uma das passagens do épico que mais revela o
relacionamento entre Gilgamesh e Enkidu é esta:
A mãe de Gilgamesh, o sábio, conhecedor de todas as
coisas disse para seu filho: O machado que você viu
(em sonho) é um homem,
Que você o amará e o abraçará como esposa...
Depois de Gilgamesh contar a Enkidu o sonho, os dois
tiveram relações sexuais.14
Quando a presença de Enkidu, ao lado de Gilgamesh, e
o relacionamento de ambos se torna ofensa aos deuses, a situação muda. Gilgamesh
se recusa a casar com Ashtar, deusa do amor e da guerra. Para punir essa atitude, os
deuses fazem adoecer a Enkidu e o matam. Então, Enkidu lamenta por não poder
nunca mais olhar para seu “querido irmão” a quem ele chama de “água da vida”. A
resposta de Gilgamesh à morte de Enkidu chama a atenção. Depois de observar o
corpo por sete dias e sete noites ele veste o corpo sem vida com véu de noiva e
ordena que uma estátua seja erguida em homenagem a Enkidu. O rei confessa:
“depois que Enkidu se foi, minha vida é nada”.15 É evidente que o texto revela uma
prática já existente e divulgada na sociedade, mas se tornará um dos mais antigos
relatos de mitologia do gênero.
O épico de Gilgamesh se tornou um arquétipo para os
grandes casais heróicos da antiguidade. As palavras de Gilgamesh no funeral de
Enkidu lembram outros textos antigos como a passagem bíblica de Davi e Jônatas, I
Samuel 18-20.16
A sexualidade presente na cultura e no culto de povos
antigos faz crer em uma ampla divulgação de práticas homoeróticas, principalmente
14
“The Epic of Gilgamesh.” http://www.ancienttexts.org/library/mesopotamian/gilgamesh/tab1.htm
28/09/2005. Uma outra tradução para a mesma passagem do épico é esta: “Mãe, tive um sonho. Nas
ruas de Uruk, estava no chão um machado. Viu e fiquei contente. Inclinei-me, profundamente atraído
para ele, e amei-o como a uma mulher. Esse machado que viste, que te atraiu tão poderosamente como
o amor de uma mulher, é o companheiro que te dou”. Mais ao final, narra-se, após a luta e o primeiro
encontro dos dois: “E então Enkidu e Gilgamesh abraçaram-se, e foi selada sua amizade.”
“Gilgamesh, Rei de Uruk: Uma lenda bíblica.” 1992, p. 25ss.
15
Raymond – Jean Frontain. “Gilgamesh.” http://glbtq.com/literatura/gilgamesh.html 28/09/2005.
16
Raymond – Jean Frontain. “Gilgamesh.” http://glbtq.com/literatura/gilgamesh.html 28/09/2005.
25
masculina. Essas práticas estavam diretamente relacionadas a rituais de fertilidade,
veneração a divindades, cultos funestos e demais rituais religiosos.
Aquiles e Patroclus
Os relatos de mitologia grega apresentam um amor
diferente do usual, digno de análise no presente. Um dos maiores clássicos da
literatura grega é Ilíada. Nesta obra dois personagens, Aquiles e Patroclus expressam,
de alguma forma, o amor unissexual. Contudo, algumas considerações são
pertinentes: a primeira se dá pela controvérsia existente no relacionamento desses
dois personagens, pois não há nenhuma evidência de relacionamento sexual entre os
dois, a segunda é que a narrativa não pertence ao padrão erastes-eromenos, (vide
Grécia e Roma Antiga), pois Aquiles é o mais novo, mais bonito e o personagem
dominante. Por fim, outra característica da narrativa está no fato que ambos têm
relações com mulheres.
Apesar do exposto, menciona-se que apesar de não
haver existido o relacionamento sexual anal entre ambos, a homoafetividade estava
presente. Uma passagem da narrativa explicita que Aquiles desejava que todos os
outros guerreiros estivessem mortos menos ele e Patroclus para que fossem
glorificados na vitória contra os Troianos. Sabe-se pela narrativa que a vitória grega
fora apenas possível pelo desejo de vingança de Aquiles em relação à morte de seu
amante, mostrando que seu amor pelo mesmo fora determinante para o desfecho final
da narrativa. Apesar de em momento nenhum o autor deixar claro essa opção para o
enredo.
Fosse qual fosse a intenção de Homero, se ele é autor
do texto, Aquiles ficara popular em tempos mais tarde, não apenas por sua habilidade
bélica, mas também por ser um herói e companheiro de guerra perfeito, quando se
sacrifica para salvar Patroclus. Quando Patroclus morre no campo de guerra Aquiles
não permite que seu amante seja enterrado, mas permanece chorando e lamentando
sua morte. Sua mãe intervém e diz: “Meu filho, até quando permanecerás a chorar
26
lágrimas de lamento e pranto, esquecendo a comida e o sono? Dormir com mulheres
também é algo muito bom”.17 Quando Aquiles chora a morte de seu companheiro ele
menciona “muitos beijos” e a “santa união de nossas coxas”.18 A figura abaixo ilustra
Aquiles tratando os curativos de Patroclus.
Ilustração 2
Apolo e Hyacintus
Outra história de mitologia grega é a vivida pelos dois
personagens mencionados acima. Hyacintus o filho mais novo do rei de Esparta, tão
bonito quanto os deuses do Olimpo, era amado pelo deus Apolo19, considerado deus
do arco de prata, senhor das horas claras, pai do entusiasmo, da música, da poesia, da
saúde e da fecundidade.20
Narra a história que o deus Apolo geralmente descia às
margens do rio Eurota para passar tempo com seu garoto de companhia e desfrutar
17
http://www.androphile.org/preview/Library/Mythology/Greek/GreekMythology.htm. 16/02/2006.
http://www.glbtq.com/. 19/02/2006
19
Apolo, para os gregos, era o deus brilhante da claridade do dia, revelava-se no sol. Zeus, seu pai, era
o céu de onde nos vem a luz, e sua mão, Latona, personificava a noite de onde vem a aurora,
anunciadora do soberano senhor das horas douradas do dia. Mário Meunier. A Legenda Dourada:
Nova Mitologia Clássica. 1961, p.31.
20
Mário Meunier. A Legenda Dourada: Nova Mitologia Clássica. 1961, p.38.
18
27
dos prazeres dessa relação. Apolo levava o garoto para caçar e praticar ginástica, a
propósito, os moradores de Esparta são conhecidos pela habilidade de praticar
ginástica, em virtude dessa amizade entre Apolo e o garoto. A vida simples de
Hyacintus provocou em Apolo um aumento de seu apetite sexual. Apolo deu ao
menino todo seu amor, esquecendo que o mesmo era um simples mortal.
Não obstante, em uma tarde de verão quando ambos
andavam nus pelo bosque, Apolo resolveu mostrar ao garoto sua força. Lançando um
disco no céu que fora alto e cada vez mais alto. Hyacintus resolveu então, mostrar a
Apolo que apesar de mortal não era fraco e correu em sua direção, porém o disco que
Apolo lançara fora tão alto que quando tocou o solo o fez com violência e
inesperadamente atingiu Hyacintus na cabeça, o qual morreu instantaneamente.
Apolo segurou seu amigo ensangüentado no peito, foi então que Apolo disse: “Em
meu coração você viverá para sempre, lindo Hyacintus. Que sua memória viva para
sempre entre os mortais também.”21 Abaixo uma foto desse momento homoafetivo
entre os dois.
Ilustração 3
1. 3 Grécia e Roma Antiga
21
http://www.androphile.org/preview/Library/Mythology/Greek/GreekMythology.htm. 16/02/2006.
28
O que se vê na Grécia Antiga é um costume bem
diferente dos demais lugares já observados. Apesar do termo homossexual ser de
recente criação, 1869, por Karoly Maria Benkert na Hungria, sua prática era bastante
comum. Anteriormente não havia uma palavra que descrevesse a relação
homossexual, ela era parte da expressão do amor afrodisíaco. O qual incluía homens
e mulheres. A homossexualidade na Grécia era praticada em escala universal e quase
universalmente aceita como expressão sexual comum da vida cotidiana. Não existia,
na época, no sentido em que se entende hoje, grupos de pessoas que se classificavam
ou classificavam os outros como homossexuais ou heterossexuais. Em decorrência
dessa não classificação, não existia a mesma incompreensão, nem a desaprovação
existente hoje.
Pensar em práticas homossexuais na Grécia é também
pensar no deus Dionísio22, filho do deus Zeus com a personificação da terra Sêmele.
Antes de tornar-se inventor do purpúreo licor que escorre da uva Dionísio foi
considerado, segundo se acredita, no deus da seiva que floresce nas árvores e nos
vegetais.23 Tanto o deus Dionísio quanto seus seguidores, chamados “Sátiros”, são
ilustrados em grandes festas e facilmente associados às práticas homossexuais como
mostrado nas figuras24 abaixo:
22
O deus Dionísio era conhecido como o deus do vinho. Mário Meunier escreve: “Aconteceu,
entretanto, que um dia Dionísio colheu, na vinha que decorava com parra as paredes da gruta, pesados
cachos maduros. Espremeu-lhes o suco numa taça de ouro e fez, assim, escorrer, pela primeira vez, a
majestade líquida do púrpuro vinho. Desde que experimentou o divino néctar que espanta a fadiga,
convidou as ninfas, as amas e todos os Gênios das florestas, das fontes e das montanhas a
compartilharem de sua alegria (...) O vinho acabara de nascer (...) Glória ao deus que acabara de
descobrir a única beberagem capaz de dissipar os aborrecimentos e as penas dos mortais aflitos.” A
Legenda Dourada: Nova Mitologia Clássica. 1961, p.105.
23
Mário Meunier. A Legenda Dourada: Nova Mitologia Clássica. 1961, p.103.
24
A revelação de um homem bêbado entre os “Sátiros”, homem de aspectos bestiais. Todos os
“Sátiros” estão com o pênis ereto e o homem do lado esquerdo penetra o jarro de vinho, sugerindo
uma interrelação entre bebida e ereção do membro sexual masculino. A datação aproximada para a
pintura é 510 a.C. Esta figura mostra homens engajados em sexo anal e orgias. A datação provável
para a pintura é 560 a.C. http://www.utexas.edu/courses/cc348hubbard/
29
Ilustração 4
Ilustração 5
Também, como cita Michael Grant, o deus Dionísio
tinha como elemento de seu culto práticas de orgias sexuais que não eram apenas
amplamente divulgadas na Grécia Antiga como também violentas. Essas práticas
cultuais tinham naturais afinidades com elementos orgiásticos de cultos de fertilidade
na região do Oriente Antigo.25
25
Michael Grant. Myths of the Greeks and Romans. 1995, p.247-248.
30
O que chama a atenção, nos relatos de mitologia grega,
é quanto ao possível início das relações homossexuais. Apesar de não haver consenso
sobre o assunto, sugere-se que a pederastia tenha sido de fundamental importância na
divulgação da prática sexual entre pessoas do mesmo sexo.
Alguns autores sugerem que a pederastia tenha surgido
em Dorian, última tribo a imigrar para Grécia, os que apóiam a teoria dizem que os
homens mais velhos seqüestravam adolescentes. Com a divulgação dessa prática na
cidade de Esparta e Tebes, os soldados começaram a cuidar de recrutas novatos,
assim, enquanto em campo de batalha estivessem um ao lado do outro,
definitivamente permaneceriam fiéis até a morte. Não apenas isso, mas o amor entre
os homens era honrado e visto como garantia da eficiência militar e liberdade civil.
Em várias inscrições, vasos, figuras, observa-se dois homens em atividade carinhosa,
neles o mais velho, erastes, com barba, é quem guia o mais novo, eromenos, na
relação. Como mostram as figuras26 abaixo:
Ilustração 4
26
A primeira figura mostra duas imagens masculinas com pênis ereto segurando as mãos. Os dois
usam capacetes, sugerindo situação militar. Mas um é significamente menor que o outro significando
mentoriamento do parceiro menor pelo maior. Poderia esta imagem representar uma cena de
pederastia? A datação mais provável para a figura é o 7º século a.C. A segunda figura mostra um
jovem, segurando uma lança, um pouco mais alto e mais velho em comparação ao que está próximo.
Poderia, também, está imagem ilustrar um tipo de pederastia? Citado em:
http://www.utexas.edu/courses/cc348hubbard/
31
Ilustração 5
Esse tipo de relação se tornou fonte de inspiração na
Grécia antiga. A poesia temática e a arte eram aplaudidas nas assembléias e nos
teatros. Os filósofos encorajavam a procura por um mentor-amante. Nas escolas
também havia esse tipo de relacionamento professor-aluno que indicasse
homoafetividade. A figura27 abaixo é testemunho desse tipo de prática nas escolas.
27
Na figura, dois garotos estão em sala de aula, um lendo um livro e o outro segurando a lira. Note a
nudez do tocador de lira, sugerindo alguma erotisação na cena. De autoria de Shuvalov Painter do ano
de 440 a.C. Citado em: http://www.utexas.edu/courses/cc348hubbard/
32
Ilustração 6
Em Roma, a idealização do homossexualismo é
diferente do que fora previamente observado na Grécia. A homossexualidade no
passado, em Roma, não era a mesma homossexualidade pensada como hoje. O
homoerotismo masculino não era condenado, desde que o relacionamento fosse com
escravos, o que era socialmente aceitável. Assim, essa associação criou o papel do
passivo na relação, ou seja, era inaceitável que qualquer cidadão romano abrisse mão
de sua posição de dominante e se subjugasse a um escravo. Era comum homens
romanos terem relações sexuais anais com demais homens, desde que esses fossem
os penetradores e os penetrados fossem inferiores ou escravos.
A relação homossexual no Império Romano estava à
disposição dos prazeres masculinos dos homens livres. Esses poderiam abusar de,
preferencialmente um garoto escravo, no momento que desejassem, desde que fosse
escravo. Parece haver grande diferença no conceito de homossexualidade da época
romana em relação ao modo de se entregar ao sexo anal. Assim, se qualquer tipo de
relação sexual anal fugisse do convencional: o homem livre por cima e o escravo
como o parceiro receptivo, o momento seria constrangedor para o homem livre se o
33
mesmo fosse pego como passivo na relação. Assim como aconteceu com Julio César,
citado por Seutonius, quando se entregou ao rei Necomedes da Bitinia. O mesmo
passou a ser chamado entre outras coisas de: a rainha da Bitinia.28 É relevante notar
que ninguém fez piadas por Julio César ter-se dormido com Necomedes, mas de
como tudo aquilo havia acontecido.
Lourdes M. G. Conde Feitosa, no artigo “Gênero e o
‘erótico’ em Pompéia” escreve:
A questão da masculinidade romana tem sido muito
discutida, e uma idéia que se firmou nos últimos anos
em relação ao comportamento sexual no mundo grecoromano, durante o final da República e o início do
Império, é que as categorias homo e heterossexuais são
instrumentos
analíticos
inadequados,
sendo
substituídos por funções de passivo e ativo. Baseados
em fontes literárias, aristocráticas, diversos estudos
apresentam o “homem romano” como aquele que não
deveria ser objeto de prazer de outros, seja de outro
homem ou de outra mulher, e tanto felação como
cunilíngua aparecem como atos degradantes (...) A
pederastia constituía pecado menor, desde que fosse a
relação ativa de um homem livre com um escravo ou
um homem de baixa condição.29
Ainda que não mencione homossexualidade, Pedro
Paulo Funari escreve que o membro masculino em ereção era associado, na
antiguidade clássica, à vida, à fecundidade e à sorte. A própria palavra falo,
emprestada pelos romanos aos gregos, designava, primordialmente, objetos
religiosos em forma de pênis usados no culto ao deus Baco. O mesmo autor escreve
que o falo não apenas tinha esse poder simbólico-religioso, como também servia de
objetos de decoração nas casas, em áreas públicas, nos tijolos e paredes.30 Vê-se que
a importância do membro masculino na sociedade romana era, pelo menos, diferente
de demais sociedades antigas.
28
http://personal.monm.edu/RBAY/homosexuality_in_rome.htm 17/01/2006.
Lourdes M. G. Conde Feitosa. “Gênero e o ‘erótico’ em Pompéia.” Em: Amor, desejo e poder na
antiguidade. Relações de gênero e representações do feminino. 2003, p.303.
30
Pedro Paulo A. Funari. “Falos e relações sexuais: representações romanas para além da ‘natureza’.
Em: Amor, desejo e poder na antiguidade. Relações de gênero e representações do feminino. 2003,
p.319.
29
34
Ainda na época do Império Romano, sabe-se de
práticas que envolvessem a homossexualidade feminina, como escreve Theodore
Jennings: “o culto ao deus Dionísio envolveu práticas homossexuais entre as
mulheres na Grécia e essa prática pode ter continuado, na Roma Antiga, quando esse
culto foi importado sob o nome do deus Baco. A evidência dessa transição pode ser
encontrada nos escritos de Livy sobre a descoberta e a supressão do plano chamado
Bacchanalian em Roma durante o ano de 186 a.C.”.31
A partir do advento do cristianismo, inicia-se uma era
incomum. Com o cristianismo não apenas a prática unissexual como também seus
praticantes são condenados. Constantino, primeiro imperador romano cristão,
exerceu sua autoridade exterminando sacerdotes efeminados, por investigação de
Filo. Assim, especialmente com Filo de Alexandria a perseguição por homossexuais
ganha expressão, o mesmo escreve: “Homens efeminados não devem viver nem mais
um dia, nem mais uma hora”.32 Em 14 de Maio de 390 a.C. um decreto imperial fora
colocado na parede romana de Minerva, lugar de confraternização de atores,
escritores e artistas. Este decreto condenava aqueles que eram identificados como
homossexuais, o que jamais havia acontecido na história do direito. A pena prevista
era a morte e morte na fogueira.33 A igreja cristã desenvolvendo seu regime ganha
vasto poder na educação, na moral, na família e na política social. Uma conseqüência
disso fora a imposição da ética sexual judaica-cristã no Império no lugar da moral
helênica-pagã. Evidentemente isso era má notícia para os homossexuais.34
Seguindo Filo aparecem Tertuliano, Eusébio e alguns
autores da Constituição Apostólica. Por volta de 390 Teodósio, imperador romano,
se sente incumbido de livrar Roma do “veneno da vergonha efeminada”.35
Na Idade Média a homossexualidade é chamada de a
“heresia do espírito” e “heresia da carne”. Como resultado, muitas fraternidades
31
Theodore W. Jennings Jr.. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient
Israel. 2005, p.223. Citando: Livy. The history of Rome 38-39. Cambridge: Harvard University Press,
1936, p.240-275.
32
Louis Crompton. “Homosexuality and Civilization.” 2003, p.537.
33
“The Historic Origins of Church Condemnation of Homosexuality.” Em:
http://www.well.com/user/aquarius/rome.htm 17/01/2006.
34
http://www.edam-carr.net/014.html / 17/01/2006.
35
Louis Crompton. “Homosexuality and Civilization.” 2003, p.537.
35
religiosas e cidades inteiras se envolvem na busca pela ordem do recém inaugurado
projeto papal, a Inquisição. Neste período sansões contra a homossexualidade
encontram base nos ensinos cristãos. Nenhuma outra razão é dada à força da
perseguição, senão chamar abominação o deitar com homem como se fosse mulher,
Levítico 18,22 e 20,13.36 Os textos de Levítico são amplamente usados para não
apenas condenar de morte seus praticantes como também para culpá-los de
catástrofes, terremotos e eventos epidêmicos.
Em período mais recente, já com reformadores em
destaque, percebe-se opressões e execuções. Uma delas é sob o comando de João
Calvino e seus sucessores em Genebra. Historicamente, cruzadas contra hereges,
bruxas, muçulmanos, judeus, mataram muitos mais que a caçada a homossexuais,
lembrando que todas elas tinham sustentação bíblico-cristã.37
1. 4 A discussão da questão em momentos atuais
1. 4. 1 Nos Estados Unidos
O que mais chama a atenção nos Estados Unidos da
América do Norte, entre todos os movimentos surgidos no início do século XX, todas
as descobertas científicas e todos os posicionamentos político-sociais, fora a
divulgação em 1948 do “relatório Kinsey”, feito por Alfred Kinsey, sob o título:
Sexual Behavior in the Human Male surpreendendo quase todos os norte americanos
pela constatação que 4% de todos os homens pesquisados consideravam-se
exclusivamente homossexuais e que 37% dos mesmos já haviam tido qualquer tipo
de experiência sexual com outro homem.38
36
Escreve o mesmo autor que em nenhum outro lugar mais homossexuais morreram do que na
Espanha, durante os anos de severa atividade da inquisição espanhola. Em Aragon, Catalunha e
Valência mais de 1000 homens foram acusados de “sodomia” e em algumas décadas mais morreram
por heresia sexual do que doutrinária. Louis Crompton. “Homosexuality and civilization.” 2003,
p.538.
37
Louis Crompton. “Homosexuality and civilization.” 2003, p.540.
38
http://edweb.sdsu.edu/people/cmathison/gay_les/ev5064.html
36
Outro sim, que há um grupo de 46% que mostra uma
grande
variação
na
orientação
sexual
entre
a
heterossexualidade
e
a
homossexualidade. 25% dos homens entre 16 e 25 anos tiveram mais do que apenas
experiências unissexuais isoladas, sendo que durante três anos reagiram com
sentimentos
homossexuais.
Segundo
o
“relatório
Kinsey”,
mais
homens
heterossexuais do que homossexuais relatam que a sua primeira experiência sexual
foi com um homem ou rapaz, (62% contra 39%).39 Essa constatação chamava a
atenção para uma realidade diferente da imaginada até o momento. Havia mais gays
homens e mulheres do que se imaginava e se esperava no país. Mais tarde o mesmo
autor divulgou outro livro sob o título: Sexual Behavior in the Human Female. O
chamado “relatório Kinsey” continua a ser o maior estudo já conduzido sobre a
sexualidade humana.
Com essa realidade um pouco diferente, foram
surgindo movimentos gays alternativos no seio da sociedade. Movimentos que
principalmente deram força e vitalidade a um novo tipo de expressão sexual na
sociedade: a de “sair do armário”. Porém, pode-se dizer que paralelamente surgiram
também os movimentos anti-homossexualidade que agiram e mataram nos Estados
Unidos. Lá o número de suicídios entre os jovens gays foi maior que em qualquer
outro lugar.
O comportamento social norte americano, pode-se
dizer, evoluiu para um status de liberdade de expressão sexual. Algumas datas e
eventos marcaram essa evolução. Em 1947 surge a primeira revista lésbica nos
Estados Unidos: Vice-versa. Em 1969 começou a se formar um movimento político
para defender os direitos humanos de homens e mulheres gays. No mesmo ano, em
Nova York, ocorre a primeira organização política, a partir da rebelião de Stone
Wall, um protesto em massa da comunidade gay confrontando a violência exercida
39
Christoph Scheneider-Harpprecht. “Homossexualidade na perspectiva da teologia prática.” Em:
Estudos Teológicos. Ano 39. N°1. 1999, p.67-68.
37
pela polícia contra os mesmos. Em 14 de outubro de 1979 ocorre a primeira marcha
nacional em Washington D.C., mais de 100 mil pessoas participam.40
Não se pode dirimir a importância desses movimentos
no seio da comunidade norte americana, pois foram essas expressões sociais que
motivaram a legitimação da comunidade gay nacional e internacional. Até que
houvesse essa maciça manifestação do movimento de “sair do armário”
homossexuais, homens e mulheres, sofreram violências, discriminação, maus tratos e
opressão.41 Pode-se ainda dizer que há lugares em todo o mundo que pessoas
homossexuais são discriminados hoje.
Com
todos
esses
movimentos
e
protestos
do
movimento gay, houve consideráveis avanços para o desenvolvimento de uma
sociedade livre de preconceitos. Assim, conseguiu-se que a Associação Psicológica
Americana retirasse a homossexualidade masculina e feminina do Manual de
Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais, do seu código oficial de doenças
mentais. Outra medida considerada de grande sucesso para o movimento tem a ver
com o casamento homossexual. Um grande desejo das pessoas do mesmo sexo que
vivem juntas era o de ter sua união oficialmente aceita pelo Estado. Essa luta
começou na década de 1970, teve avanços consideráveis nos anos 1980, mas fora no
final do século passado e no início deste que algo realmente mudou em favor
daqueles que buscavam reconhecimento de sua união. Em 12 de fevereiro de 2004 o
prefeito de São Francisco, cidade da Califórnia, ordenou que fossem emitidas
licenças matrimoniais para casais do mesmo sexo. Desde então inúmeros outros
estados seguiram seus passos. Inclusive o Estado de Massachusetts que atualmente
reconhece o casamento civil homossexual.42
É interessante também saber do envolvimento das
igrejas protestantes e católicas com o movimento homossexual. Mais de 40 estados
americanos possuem igrejas que apóiam o movimento gay. Apenas na Califórnia são
40
Christoph Scheneider-Harpprecht. “Homossexualidade na perspectiva da teologia prática.” Em:
Estudos Teológicos. Ano 39. N°1. 1999, p.63.
41
Christoph Scheneider-Harpprecht. “Homossexualidade na perspectiva da teologia prática.” Em:
Estudos Teológicos. Ano 39. N°1. 1999, p.63.
42
http://www.nolo.com/article.cfm/objectID 21/02/2006.
38
567 igrejas oficialmente abertas à pessoas que vivem em relações unissexuais. No
Estado de Massachusetts são 111 igrejas.43 Entre as confissões que dão apoio estão:
Igreja Metodista, Igreja Episcopal, Igreja Mórmons, Igreja Anglicana, Igreja
Presbiteriana, Igreja Menonita, Igreja Batista, Igreja Luterana, Igreja Católica
Romana, Igreja Adventista do Sétimo dia, Igreja Metropolitana da Comunidade,
Igreja da Aliança Pentecostal e outras.44 É importante mencionar que nem todas as
igrejas locais pertencentes a essas confissões dão total apoio a pessoas homossexuais
e que em algumas dessas confissões apenas as igrejas locais apóiam ou dão suporte
ao movimento.
Em 1970 discutiu-se o primeiro documento no plenário
da Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos sobre a matéria
referente a questões sexuais e homossexuais, o documento tinha o seguinte título:
Sexuality and the human community, em 1976 o segundo documento, com o seguinte
título: The church and homosexuality.45 Desde então a Igreja se vê imbuída na
discussão da matéria. Atualmente a Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos não
discrimina qualquer tipo de “categoria” baseada em diferentes opções sexuais,
incluindo gays homens e mulheres, bissexuais e transexuais para ordenação de
presbíteros e diáconos. Quanto aos casamentos homossexuais a Igreja Presbiteriana
permite e reconhece a celebração do que se chama: same-gender holy union,
celebração matrimonial que confere ao casal a benção da igreja. No entanto, ainda
não permite e nem reconhece a: same-gender marriage cerimony,46 celebração
matrimonial que envolve questões civis.
1. 4. 2 Na sociedade brasileira
Na sociedade brasileira tem-se algo um pouco diferente
do que se vira nos Estados Unidos. Pode-se afirmar que a diferença principal é o
atraso no processo de diálogo e de livre expressão da sexualidade em uma sociedade
43
http://www.gaychurch.org/Find_a_church/united_states 21/02/2006.
http://www.angelfire.com/az/christiangaynet/USA.html 21/02/2006.
45
http://www.gaychurch.org/Find_a_church/united_states 21/02/2006.
46
http://www.mlp.org/resources/mlp-faq.htm 21/02/2006.
44
39
que possui membros considerados ou tidos como homossexuais na mesma proporção
que em qualquer outro lugar no mundo.
A perseguição nessa porção sul do hemisfério fora
sustentada até as primeiras décadas do século XX, momento que a homossexualidade
ainda era considerada crime, doença física e mental. Os Estados Unidos, juntamente
com alguns países na Europa é que serão precursores de uma voz libertadora, porém
dissonante a favor da minoria sexual oprimida. No entanto, apenas no final da década
de 1970 e início da década de 1980 é que se assiste, principalmente no Brasil, um
fortalecimento da luta pelos direitos humanos de gays, lésbicas, travestis,
transgêneros e bissexuais (GLTB).
O ano de 1977 pode ser considerado como a data
inicial do movimento homossexual brasileiro. Neste ano fora convidado para
palestrar em alguns lugares no Brasil o editor do Gay Sunshine, Winston Leyland.
Motivados por esse evento alguns intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo
fundam em Abril de 1978 o primeiro jornal homossexual brasileiro: “O Lampião”, o
qual serviu de veículo e esforço para no ano seguinte ser fundado o primeiro grupo
brasileiro de militância gay o: “Somos”, que contou com a participação de diversos
autores de renome no circuito nacional, entre eles Glauco Matoso.
Atualmente, há cerca de 140 desses grupos espalhados
por todo o território nacional. Atuando em áreas como a saúde, a educação e a
justiça, sem mencionar a religião. Os homossexuais brasileiros organizados têm
enfrentado uma trágica, porém, histórica situação de discriminação e marginalização
em que foram colocados no seio da sociedade, bem como em toda América Latina.
Entretanto, quase nada mudou no conceito da
homossexualidade entre os períodos da Idade Média e hoje. Muitas formas de
violência tem sido evidenciadas entre pessoas homoeróticas. Algumas envolvem
familiares, vizinhos, colegas de trabalho, de escola, forças armadas ou polícia.
Pesquisas recentes sobre a violência que envolve essas pessoas dão uma idéia mais
precisa sobre as dinâmicas mais silenciosas da homofobia, que englobam a
humilhação, a ofensa e a extorsão. Mulheres homoeróticas são as mais vulneráveis à
40
violência doméstica. Ainda, mostrou uma pesquisa feita pela UNESCO que, na
escola, professores tendem a não apenas se silenciarem frente a homofobia, como
também a incentivá-la.47
A sociedade brasileira, como observado acima, vê-se
em desenvolvimento no que diz respeito à discussão da homoeroticidade, masculina
e feminina. No entanto, a igreja cristã, no Brasil e na América Latina, de forma geral,
nem se quer iniciou essa discussão, com poucas exceções. Wanda Deifelt escreve
que dentro das igrejas carecemos de uma discussão séria sobre a relação unissexual e
para compreender a questão ela propõe questionamentos sexuais no tratamento da
sexualidade como um todo, ela escreve: “veja: se deixarmos de ver a
heterossexualidade como norma absoluta e encararmos a homossexualidade como
expressão legítima da sexualidade humana, vamos ter a oportunidade de dialogar
sobre os valores que guiam nossas atitudes em relação ao sexo, e assim ao
relacionamento humano”.48 Ainda, quando se trata das igrejas brasileiras nota-se,
segundo Luiz Mott, que: “em questões político-sociais as igrejas brasileiras cristãs
são jovens e arrojadas, mas em questões de moral sexual continuam dominadas pelas
trevas da intolerância”.49
Com efeito, há a necessidade de usar a leitura da bíblia
nas comunidades como instrumento na libertação de pessoas eroticamente
escravizadas por sua opção sexual. A leitura de textos bíblicos tem mostrado o sexo e
a sexualidade como algo perigoso, caótico e demoníaco. David Carr, professor de
Antigo Testamento no Union Theological Seminary, Nova York, escreve que essa
leitura anti-sexual sofreu influência de elementos da tradição grega que pregava a
pureza sexual, talvez influenciados pelo trabalho de Platão: “A República”, que
mencionava: “a única maneira da alma alcançar a liberdade do caos de prazeres
temporários como o sexo, era direcionar os desejos aos deuses, beleza e verdade”. O
47
Em: “Brasil Sem Homofobia. Programa de combate à violência e a discriminação contra GLTB e de
promoção da cidadania homossexual. Normalização; Maria Amélia Elisabeth Carneiro Veríssimo.
Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Combate à Discriminação, Secretaria Especial dos direitos
Humanos.” 2004, p.15-18.
48
Wanda Deifelt. “Os tortuosos caminhos de Deus: Igreja e Homossexualidade.” Em: Estudos
Teológicos. Ano 39. N°1. 1999, p.46.
49
Luiz Mott. “A igreja e a questão homossexual no Brasil.” Em: Mandrágora. Religião e
Homossexualidade. 1999, p.37-41. Citando Jacobo Schifer & P. J. Madrigal. Psiquiatria y homofobia.
1997.
41
movimento Estóico, continua David Carr, também encorajava a cultivação do
aphateia, a liberdade de ser movido por qualquer paixão.50
Apesar de toda a influência sofrida é bom saber que,
segundo Scheneider-Harpprecht: “a bíblia desconhece a prática homoerótica e a
prática homoafetiva entre parceiros iguais que tenham os mesmos direitos e
consintam quanto a sua ação. Assim, não se pode aplicar a rejeição bíblica da prática
homoerótica sem restrições à realidade contemporânea”.51
1. 5 Questões, autores e obras contemporâneas
Usar
os
textos
bíblicos
para
rejeitar
práticas
unissexuais é algo que carece de atualização, pois diversos autores têm encontrado na
bíblia, Antigo e Novo Testamento, textos que permitem leituras homoafetivas como,
por exemplo: Mona West, uma das pastoras de uma das maiores igrejas para
homossexuais no mundo Spiritual Life at the Cathedral of Hope que no artigo:
Outsiders, Aliens, and Boudary Crossers. A queer reading of the Hebrew Exodus,
escreve que assim como a história dos hebreus no deserto tem sido contada e
recontada como fonte de inspiração para povos escravizados, assim também servirá
para nós: “é recontando histórias de nossas saídas, fugas, transformações que
iniciaremos um movimento de passagem da escravidão para a liberdade, morte para a
vida.”52
Outro exemplo de uma leitura queer da bíblia hebraica
é proposta por Theodore W. Jennings Jr., em seu artigo: YHWH as erastes. Nesse
artigo o autor propõe uma leitura queer do relacionamento de YHWH com Davi, o
rei. A argumentação de Theodore Jennings é baseada na relação de amante erastes e
amado eromenos em culturas que sugerem um paralelo de situação militar. Ou seja,
50
David M. Carr. The erotic word. Sexuality, spirituality, and the bible. 2003, p.5.
Christoph Scheneider-Harpprecht. “Homossexualidade na perspectiva da teologia prática.” Em:
Estudos Teológicos. Ano 39. N°1. 1999, p.70.
52
Mona West. “Outsiders, aliens, and boundary crossers: a queer reading of the Hebrew exodus.” Em:
Take back the word. 2000, p.71.
51
42
Davi é o guerreiro aprendiz dentro da estrutura social bélica (I Samuel), e YHWH é o
chefe, guerreiro, que tem em Davi a companhia do jovem aprendiz.53
Também, Michael S. Pizza faz uma leitura queer do
livro de Neemias para sua comunidade, The Cathedral of Hope. Ele é o pastor
principal da maior e mais antiga igreja para homossexuais nos Estados Unidos, igreja
fundada em Dallas em 1970. A leitura que o autor faz no artigo: Nehemiah as queer
model for the servant leadership é análoga à vida de milhares de homossexuais que
não possuem morada para si. São incontáveis homens e mulheres vulneráveis às
implacáveis críticas de religiosos fundamentalistas. A situação destes hoje é, de
acordo com o autor, semelhante ao povo que retorna do exílio e não possui lugar de
paz e segurança. Assim como Neemias, o eunuco, que fora chamado para reconstruir
a cidade de Jerusalém, sem muros e sem proteção, o autor revela que fora chamado
para construir uma comunidade de abrigo e proteção aos gays de hoje, sua
comunidade de fé.54
A conceituação do termo queer é de fundamental
importância para o presente estudo. A palavra fora primeiramente usada pelo
historiador George Chauncey. Em momentos entre o final do século XIX e a
Segunda Grande Guerra, existe a necessidade de se denominar um grupo de homens
que apreciavam se relacionar sexualmente com demais homens e também mulheres,
estes não eram chamados heterossexuais e nem homossexuais, passam assim a serem
chamados de queers.55
Quando se faz uso do termo em relação aos escritos
bíblicos quer-se tentar um tipo de leitura diferenciada, da bíblia, das demais leituras
existentes hoje. Por exemplo, como escreve Theodore Jennings Jr., esse tipo de
leitura procura mostrar como um texto aparece, ou é lido, quando visto de um outro
angulo ou perspectiva. Essa não é uma questão do que todos devem ver no texto, mas
de o que pode-se ver em relação aos demais tantos outros pontos de vista. Essa não é
53
Theodore W. Jennings Jr. “YHWH as Erastes.” Em: Queer commentary and the Hebrew Bible.
2001, p. 39-42.
54
Michael S. Pizza. “Nehemiah as queer model for the servant leadership”. Em: Take back the word.
2000, p.115.
55
Ken Stone. “Lovers and raisin cakes: food, sex and divine insecurity in Hosea.” Em: Queer
commentary and the Hebrew Bible. 2001, p.14.
43
uma situação de questionar ou legitimar a homossexualidade, porém de apenas
reconhecer a possibilidade da existência de uma leitura queeriana ou diferente da
bíblia.56 Laurel C. Schneider escreve que a leitura queer da bíblia é uma leitura
daqueles que estão de fora57, ou seja, de um grupo, certamente a minoria que deseja
ler textos bíblicos em seu próprio ponto de vista.
Também, uma leitura estritamente homoerótica do
texto bíblico não responderia a questionamentos vigentes, como por exemplo, quanto
à situação dos transexuais e bissexuais. Marcella M. Althaus-Reid propõe, também, o
uso do termo queer, como definição um pouco diferente da anterior. Queer, para
Marcella Althaus-Reid, é um movimento marginal que deseja permanecer de alguma
forma marginal para contestar o discurso heterossexual sem assimilar-se a ele. A
palavra queer, significa “estranho” e se refere a uma pessoa “estranha”. Portanto,
poder-se-ia fazer uma releitura teológica-sexual do movimento queer em associação
com a teologia da libertação? Marcella Althaus-Reid diz que sim, e propõe uma
leitura da “Teologia Indecente”58, que seria a união das duas, como opção para a
questão na América Latina.59
A Igreja Católica Apostólica Romana recentemente
viveu no centro de suas atenções, principalmente com o antigo papa João Paulo II, a
experiência da intransigência sexual. Luiz Mott escreve que as pessoas homossexuais
viveram tempos sombrios sob o pontificado de João Paulo II. Este, mais do que
qualquer outro papa, foi quem estigmatizou de forma cruel o amor entre pessoas do
mesmo sexo ao oficializar a intolerância do antigo Cardeal alemão Joseph Ratzinger.
Este último, quando ainda era cardeal, escreveu o que se constituiu mais tarde no
56
Theodore W. Jennings Jr. “YHWH as Erastes” Em: Queer commentary and the Hebrew Bible.
2001, p.37.
57
Laurel C. Schneider. “Yahwist desires: imagining divinity queerly”. 2001, p.211.
58
A teologia indecente é uma teologia ‘queer’ porém da libertação. É uma teologia sexual
transgressiva, mas que usa a epistemologia corrompida em relação a crise produzida pela
globalização, a exclusão social e o capitalismo selvagem. Então, uma teologia indecente é uma
teologia feminista da libertação que usa a suspeita sexual para desmontar as ideologias sexuais que
estruturam doutrinas e organizam as igrejas... Disto se trata: tirar Deus do armário, ou reconhecer que
em Jesus temos um Deus já fora do armário. Que armário? O armário que não o permitia caminhar
como Deus entre os seres humanos, de sofrer a fragilidade humana, a dúvida, a fome, o desejo, a
amizade, o carinho, o medo, a morte. Um Deus promíscuo, cujo amor circula sem limites e sem leis
que o contenham. Um Deus que sai de sua centralidade divina para unir-se com o marginalizado.
Marcella M. Althaus-Reid. “Marx en un bar gay.” Em: Revista Eletrônica ‘Margens’. Nº1. 2005.
59
Marcella M. Althaus-Reid. “Marx en un bar gay.” Em: Revista Eletrônica ‘Margens’. Nº1. 2005.
44
manual “anti-gay” da Igreja Católica Romana, nele Joseph Ratsinger declarava que
“a homossexualidade era intrinsecamente má.” Luiz Mott continua: “nem mesmo Pio
IV, Gregório XIII e Paulo V, os sumos pontífices que delegaram poderes à
Inquisição portuguesa para perseguir os sodomitas chegaram a uma conceitualização
tão malévola contra os praticantes do amor unissexual.”60
Mais adiante, no mesmo artigo, Luiz Mott acredita que
tão logo seja sepultado o pontífice polaco, Roma retomaria a tolerância de mil anos
atrás. Todavia, mal ele sabia, em 1999, que o próximo pontífice seria o maior
opositor do movimento gay, agora chamado Bento XVI, mas o mesmo cardeal de
outrora Joseph Ratzinger.
Assim, a homossexualidade chega ao século XXI em
situação não muito diferente de como vinha através dos séculos: oprimida,
negligenciada e amordaçada. Apenas nas últimas décadas é que a sociedade e a
academia bíblica vão abrir oportunidade para a reflexão sobre a vida sexual, seja ela
qual for como opção.
Alguns dos maiores autores contemporâneos e
comprometidos com os desafios do tema são apresentados agora com algumas de
suas obras. Thomas Hanks, Ph.D., diretor executivo e fundador do ministério Other
Sheep (www.othersheep.com) trabalho com ênfase no auxílio às minorias. Rebecca
T. Alpert, Ph.D., diretora do programa de estudos feministas e professora assistente
de religião da Temple University. Robert E. Goss, Th.D., presidente do departamento
de estudos de religião na Webster University, autor de Jesus acted up: a gay and
lesbian manifesto (HarperSanFrancisco, 1993). Ken Stone, Ph.D., professor
assistente de bíblia hebraica no Chicago Theological Seminary. Também, Theodore
W. Jennings Jr., professor de bíblia no Chicago Theological Seminary e autor do The
man Jesus Loved: homoerotic narratives from the New Testament. Esses e tantos
outros, como por exemplo: Jerome T. Walsh, Daniel Boyarin, Wanda Deifelt, Saul
M. Olyan, Luiz Mott, compõem, no cenário internacional, grandes nomes do estudo
da sexualidade e homossexualidade em dias atuais.
60
Luiz Mott. “A igreja e a questão homossexual no Brasil.” Em: Mandrágora. Religião e
Homossexualidade. 1999, p.37-41.
45
O capítulo primeiro da presente pesquisa apurou com
tranqüilidade a existência das relações homoeróticas bem como homoafetivas na
história da humanidade. Constatou-se a presença desse tipo de relacionamento em
quase todos os momentos, pelo menos os mais importantes da história. Apesar das
evidências da homossexualidade entre mulheres ser também fato histórico, não se
pode encontrar com tanta facilidade, nos textos, para as mulheres, o que se pode
encontrar para os homens.
Não apenas isso, o presente capítulo serviu de ponto de
origem para as futuras discussões que se darão em níveis bíblicos. Pois por toda
história se evidenciou a existência de relações unissexuais, tanto relações
homoeróticas que envolvessem práticas cultuais como não. Tanto relacionamentos
unissexuais que envolvessem deuses e humanos como humanos e humanos.
Também, mostra o capítulo em questão, que toda a
discussão envolvendo a homossexualidade teve, no decorrer da história, seus
apogeus e declínios. Observa-se, assim, um apogeu sobremodo atual para a discussão
da questão que não se faz presente na América Latina.
Nada do que se pretende a partir de agora, deve ser
analisado sem levar em consideração toda a história da questão, por isso este capítulo
fora demasiadamente necessário para o desenvolvimento dos demais capítulos da
dissertação. Mesmo porque o próximo capítulo é também histórico, mas seu ponto de
origem, bem como seu destino, abrangem tão somente a história da narrativa bíblica
em momento específico.
46
2 SOBRE O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO
Encontrar o lugar histórico dos textos de Levítico
18,22 e 20,13 é essencial para a relevância de sua mensagem, bem como para
compreender a influência sofrida no evento de sua redação. O momento encontrado
para a construção do texto de Levítico, ou pelo menos o assim chamado “Código de
Santidade” (17-26), é o cenário internacional de dominação persa e de reconstrução
para a comunidade recém chegada da golá em Judá.
Ciro funda o primeiro Império com pretensões
realmente universais, afirma François Castel.61 De fato, a imensidão do que fora
construído pelo Império Persa é também admirada por Yohanan Aharoni, o qual
escreve ser o Império Persa o maior e mais extenso Império do Oriente Médio. Com
dimensões universais o novo Império toma automaticamente o que outrora pertencia
ao Império Babilônico, inclusive a Palestina. Não existe nenhum dado histórico de
lutas travadas entre os que habitavam na Palestina e os persas, afirma Yohanan
Aharoni.62
Assim, passa a Palestina a pertencer a outro Império. A
sociedade, geográfica e politicamente, não mudara em relação à dominação Imperial
exercida, como por exemplo: pela Assíria e Babilônia. No entanto, é evidente a mão
persa na estruturação das subdivisões que se apresentam. Hebert Donner escreve,
fora Dario quem se ocupara dessa estruturação interna. Todo o Império estava
dividido entre satrapias (do persa xshatrapavan: protetor do domínio), cada uma
delas governada por um comissário persa. As maiores satrapias eram subdivididas
61
62
François Castel. Historia de Israel y Judá. 1998, p.142.
Yohanan Aharoni. The Land of the Bible. 1979, p.411.
47
em províncias, mais uma vez cada uma delas supervisionada por um governador. É
sabido da liberdade que cada satrapia desfrutava de possuir seu governador local. A
Palestina pertencia a satrapia chamada “Além do Rio”, um termo generalizado que
reunia em si a Síria, a Fenícia e a Palestina. A região local de Judá, que tem interesse
maior ao estudo, pertencia à província da Samaria.63
Quando Ciro toma a Babilônia ele não penas liberta
aqueles que estavam em cativeiro como também os orienta e financia a reconstrução
de sua estrutura religiosa na volta para casa. É interessante mencionar que os grupos
que vão para o exílio são, em sua maioria, compostos de autoridades de Judá.
Euclides Balancin escreve que quando os exilados saem, a terra não fica vazia, mas é
ocupada por camponeses. A situação que permanece na terra é precária e de
tristeza.64
Assim, tem-se o recém chegado grupo de ex-exilados
em Judá. Estes quando iniciam uma nova vida na antiga pátria enfrentam diversas
complicações sociais, mas principalmente religiosas, no que diz respeito aos usos e
costumes daqueles que permaneceram na terra, fossem israelitas, judaitas ou não o
livro do Levítico aparece como regulamentação legal para uma nova construção da
sociedade com bases religiosas e extensas listas de orientações divinas, como
observado nos capítulos seguintes. O que segue ajuda a compreender um pouco mais
desse momento vivencial.
2. 1 O Império Persa
O cenário político internacional, para o período que
corresponde à construção do texto de Levítico, segundo escrevem Erhard
63
Hebert Donner cita como referência as inscrições reais persas de Beshistun, Naqsh-i-rustan,
Persépolis, Susa e Heródoto III, 89ss. Também escreve que o território total fora dividido em 23
satrapias. Para o Oriente Próximo são importantes quarto satrapias: 1. Babairu:
Babilônia/Mesopotâmia; 2. Atura: Síria (em aramaico imperial significa “trans-eufrates” Além do Rio;
3. Arabaya: Arábia do Norte e 4. Mudraya: Egito. Cada satrapia tinha que pagar tributos regulares e
cuidar do sistema de correios. Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 1997, p.444.
64
Euclides Martins Balancin. História do povo de Deus. 1989, p.100.
48
Gerstenberger, Julius Wellhausenn e também Marcos P. M. da Cruz Bailão em sua
tese de doutorado em 200165, é de dominação persa. Período que corresponde a 539 a
332 a.C., segundo Jorge Pixley, Marcos Bailão e também Yohanan Aharoni.66
Com a expansão do Império Persa, a queda da
Babilônia já estava prevista. John Bright narra os pormenores da situação de
conquista: “de um lado os persas em marcha triunfante, e de outro os moradores da
Babilônia festejando sua libertação, em relação ao seu próprio soberano
Nabônides.”67 Este havia retirado os deuses dos templos das cidades circunvizinhas e
levado os mesmos para a capital, na Babilônia. Decisão que evidentemente não
agradara os moradores locais que passam, por esse motivo e outros, a desgostar de
Nabônides. O livro, Judá e Israel, textos do Antigo Oriente Médio narra os meandros
da conquista persa, liderada por Ciro à Babilônia:
No décimo quarto dia, Sippar foi tomada sem combate.
Nabônides fugiu. No décimo sexto dia, Gubaru,
governador do país de Gutium e as tropas de Ciro
entraram na Babilônia, sem combate (...) Nenhuma
interrupção do que quer que seja teve lugar em Esagil e
nos outros templos (...) No mês de arahsamu, no
terceiro dia Ciro entrou na Babilônia. O estado de paz
foi assinado na cidade, Ciro decretou o estado de paz
para a Babilônia inteira (...) Os deuses no país de
Babilônia que Nabônides havia feito descer para
Babilônia retornaram aos seus santuários.68
65
Erhard Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.7, Julius
Wellhausenn. Prolegomena to the history of Ancient Israel. The classic and original statement of the
theory of “Higher Criticism” of the Old Testament. 1957, p.497, Marcos P. M. da Cruz Bailão.
“Doença Impura como Limite da Identidade Comunitária.” Tese de Doutorado: 2001, p.208ss.
66
Jorge Pixley. A História de Israel a partir dos pobres. 7ª Edição. 2001, p.91. E Marcos P. M. da
Cruz Bailão. “Doença Impura como Limite da Identidade Comunitária.” Tese de Doutorado: 2001,
p.208. Yohanan Aharoni. The Land of the Bible. 1979, p.411.
67
Nabônides (556-539), escreve John Bright, contava naturalmente com o apoio dos elementos
dissidentes da Babilônia, talvez, sobretudo daqueles que sentiam o peso da terrível força econômica e
espiritual dos sacerdotes de Marduk. Mas seu reinado trouxe grandes discórdias à Babilônia, citando
Pritchard, em ANET, p. 305; Albright, em Basor, 120 (1950), p. 22-25, 1978, p.477. Acompanhando
Tadmor H. A history of the Jewish people. 1976, p.165 que também escreve o mesmo.
68
VV.AA. Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio. 1985, p.90. Também, cilindros de argila
encontrados na Babilônia celebram a entrada de Ciro na capital quando restabelece o culto a Marduk
como deus supremo, pois Nabônides havia preferido a Sin. “Marduk, o grande senhor, o que cuida das
gentes, viu com alegria suas boas ações e seu reto coração. Lhe ordenou ir a Babilônia, lhe fez tomar o
caminho da Babilônia, caminhou a seu lado como amigo e companheiro. Suas numerosas tropas,
incontáveis como gotas de um rio, avançavam a seu lado com armas erguidas. Lhe fez entrar na
Babilônia sem combate nem luta. Salvou da dificuldade a sua cidade Babilônia. Entregou em sua mão
a Nabônides, rei que não o temia. Todas as gentes da Babilônia, a totalidade do país, da Suméria a
49
Semelhantemente narra-se, na língua acádica e em
cilindro de cerâmica, o seguinte a respeito da entrada triunfal de Ciro na cidade
Babilônia:
Eu, Ciro, o rei do império mundial, o grande e
poderoso rei, o rei de Babel, o rei da Suméria e o rei de
Acade (...), por cujo governo Bel e Nabu se afeiçoaram
e cujo reinado desejavam para alegrar seu coração –
depois de entrar pacificamente em Babel, sob júbilo e
alegria, estabeleci a sede régia no palácio do soberano
(...) Marduk, o grande senhor, alegrou-se com minhas
boas ações. Ele abençoou graciosamente a mim, Ciro,
o rei que o venera, e Cambises, meu filho biológico,
assim como todas as minhas tropas. Em bem-estar nós
vivemos alegremente diante dele (...) Sob a ordem de
Marduk, o grande senhor, mandei que os deuses da
Suméria e de Acade, os quais Nabônides tinhas trazido
para Betel, causando a ira do senhor dos deuses,
ocupassem de bem-estar uma morada agradável em
seus santuários.69
Com toda a fragilidade do antigo Império Babilônico, é
sob o comando do rei medo Ciro II, (559-530 a.C.) que os exércitos persas entram na
capital Babilônia já sem forças para reagir em 539. O texto acima mostra as
condições precárias de resistência babilônica, bem como o restabelecimento dos
cultos nas cidades locais. Também, o texto de Isaías 45,1-4 narra o soberano Ciro
entrando na Babilônia como libertador do antigo Judá exilado, outrora sob
dominação babilônica.
A partir deste momento, tem-se, principalmente, no
livro de Esdras, relatos da preocupação do rei Ciro em relação à reconstrução do
templo em Jerusalém e, com isso, a devolução dos utensílios do templo, levados por
Nabucodonozor, quando da investida babilônica à Judá. Não que essa preocupação se
constituísse de grande importância para o imperador, mas sim que fazia parte de seu
plano de governo observado a seguir. Esdras 1,2-4 constitui o decreto de Ciro para a
construção do templo em Jerusalém. Semelhante acontece em 3,6-5 quando é
Acádia, os príncipes e governadores se inclinaram a seus pés, beijaram seus pés e se alegraram por sua
realeza.” François Castel. Historia de Israel y Judá. 1998, p.142.
69
Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 1997, p.444.
50
mencionada a permissão do rei Ciro para a reconstrução do templo. Em 6,3-5 há,
novamente, menção à reconstrução do templo, como também a devolução dos
utensílios da “casa de Deus”.
O que se vê agora é uma sucessão de missões para a
reconstrução do templo. O primeiro a ser enviado com uma delegação para Judá é
Sasabassar 538 a.C., Esdras 1,5-11 e 5,13-15. Depois dessa campanha, Zorobabel e
Josué são enviados em 250 a.C. a pedido de Dario, sucessor de Cambises, para serem
acompanhados de uma maior delegação a fim de definitivamente povoar Judá - local
geográfico de relevância estratégica em relação ao Egito. Depois disso, tem-se a
missão de Neemias 445-430 a.C. e a missão de Esdras 458 a.C.
O regresso dos exilados para Jerusalém e Judá não
ocorreu imediatamente em 538 a.C., mas apenas nos anos 20 do século VI, sob o
comando do Imperador Dario I. Isto é inteiramente compreensível. Os exilados não
podiam partir da noite para o dia e atropeladamente. O desligamento da Babilônia,
onde entrementes já se criava a terceira geração, tinha de ser feito com cautela. Havia
negócios a realizar, vínculos a desfazer, dificuldades a resolver. Euclides Balancin
escreve que a vida não era fácil no exílio, mas que certamente os exilados de
Jerusalém não foram jogados em masmorras ou prisões. Uns se tornaram
comerciantes, até banqueiros, outros assumiram postos administrativos, e inclusive
altos cargos.70
Também, Gerhard Von Rad escreve que fora um
engano a associação do edito de Ciro com a volta dos exilados para Judá e que o
Cronista já estava distante dos acontecimentos que marcaram o evento. Apesar das
dificuldades de datação os dois autores se aproximam consideravelmente em suas
propostas, Von Rad afirma que a datação da volta dos mesmos é muito difícil de
situar, mas que possivelmente efetivou-se apenas em 529-522 com Cambises.71
Seguramente, o entusiasmo com o regresso manteve-se
dentro de certos limites por parte de muitas pessoas que haviam se acostumado a
70
71
Euclides M. Balancin. História do povo de Deus. 1989, p.101-102.
Gerhard Von Rad. Teologia do Antigo Testamento. Vol.2. 1973, p.96.
51
viver ali. Por outro lado, às famílias que regressavam tinham de ser conferidas
propriedades de terra na Palestina, se possível de acordo com a situação pré-exílica.
Isso não era tão simples, pois durante o tempo do exílio, de modo algum fora uma
terra baldia e desabitada, que se pudesse retomar como propriedade. Para tanto, o
Imperador nomeia Zorobabel para supervisionar todo tipo de acerto a se realizar na
terra.72
Essa dificuldade no retorno e na ocupação da terra
teve, para a construção de Levítico, fundamental importância. As ordenações que se
apresenta em Levítico, quanto as observações religiosas, nada mais sustentam do que
a legitimação dos que chegam na terra, como sendo eles os possuidores da terra e não
os que ficaram. Muito possivelmente tem-se, até mesmo que divina, a legitimação da
herança dos exilados em relação à posse da terra.
As dificuldades de relacionamento entre os pequenos
grupos na região era evidente. Geo Widen Gren escreve que a hostilidade entre
Jerusalém e Samaria era sem dúvida um fator de conflito no período persa. Isso se
dava mais por fatores políticos do que por religiosos, apesar de haver severas
dificuldades religiosas entre ambos. Porém, observa-se o pensamento de Meyer que
escreve: “houve grande ressentimento de Samaria por Judá ter sido tratada com
especial atenção pelo governo persa quando da tomada do poder”.73 É bem verdade
que textos bíblicos evidenciam o tratamento especial que Judá teve em relação a
Samaria, o que mais chama a atenção, no entanto, é a disputa de poder dos dois
grupos sociais que vivem em conflito em Judá.
Euclides Balancin, mais uma vez, apresenta essas
dificuldades e escreve que a comunidade judaica reunida em torno de Jerusalém,
depois do exílio, teve de enfrentar diversas dificuldades para sobreviver e se
organizar. Os conflitos podem ser percebidos em três instâncias: 1) Com o poder
central persa; enquanto demais povos conquistadores oprimiam seus subjugados, o
Império Persa não agia assim, no entanto, vigiava com extrema cautela Judá. Sabe-se
72
Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 1997, p.465. Também, Euclides Balancin.
História do povo de Deus. 1989, p.100-103.
73
Geo Widen Gren. Israelite and Judaean History. 1990, p.512.
52
que Judá não se envolveu em rebeliões. 2) Com a província de Samaria; o
governador instalado na Samaria era a mão estendida do rei para preservar o controle
da região. Juntamente com um grupo de comerciantes ricos e influentes, o
governador acusava constantemente a comunidade de Jerusalém de ultrapassar seus
direitos dentro do Império. Os interesses eram de ordem econômica, evitar uma
concorrência no território que pudesse impedir a exploração do comércio e da
intermediação dos tributos da região. 3) Os conflitos surgidos dentro da própria
comunidade; com a chegada dos exilados, há motivos de esperança, mas as coisas se
complicam, pois o território não estava desabitado. Cria-se grandes disputas entre os
que chegam, os camponeses da terra que ficaram e outros que ainda brigam pela
terra.74
Todavia,
sabe-se
da
dificuldade
teológica,
especialmente da reconstrução do templo, que envolvia Judá e Samaria. Gerhard Von
Rad escreve que a desconfiança dos samaritanos fundava-se na ambigüidade da
renovação cultual. O templo de Salomão era o santuário oficial da dinastia davídica,
no entanto, Judá não era mais uma província autônoma, mas estava sujeita ao
governador de Samaria. Ainda mais, os samaritanos não poderiam aceitar a
reconstrução com tranqüilidade, pois, ao que parece, consideravam-se também
adoradores de YHWH (Esdras 4,1 e ss). Por isso, a oposição dos samaritanos aos
jerusalemitas tornou-se mais aguçada como a de um “direito contra outro direito”.75
Assim funcionavam as listas de prescrições sexuais dos
capítulos 18 e 20 de Levítico, apresentavam a maior das diferenças entre os variados
grupos étnicos na região, evidentemente a diferença está nos que observavam as
listas de ordenações sexuais e os que não. Demais listas como as dos capítulos 18 e
20 perpassam todo o texto de Levítico.
Observa-se que todo Levítico é construído nesse
ambiente, já não mais em uma identidade nacional israelita, mas sim, em um
74
75
Euclides M. Balancin. História do povo de Deus. 1989, p.107-108.
Gerhard Von Rad. Teologia do Antigo Testamento. Vol.2. 1973, p.97.
53
colonialismo judaico, dentro de diversos grupos étnicos, mas todos pertencentes à
província de Samaria.76
2. 2 A política de dominação persa
É sabido da falta de consenso quando o assunto referese à vida social, política e religiosa de Judá no pós-exílio. No entanto, parece não
haver dificuldades quando se menciona a política de dominação persa, especialmente
com Ciro, mas também com seus sucessores, quando da conquista dos povos. Dentre
suas atitudes parecia haver tolerância. Os soldados persas haviam sido orientados
para respeitar a sensibilidade religiosa das pessoas e evitar aterrorizar as mesmas. Os
deuses tirados dos templos nas províncias e levados para a capital por Nabônides,
foram devolvidos por Ciro, como lido acima.77 Herbert Donner, acompanhando John
Bright, escreve de uma das marcas mais estridentes da dominação persa, no desejo de
não cometer erros do passado, como fizeram os assírios e babilônios, a dominação
persa é marcada pela simpatia com as culturas dominadas. Ele ainda escreve que, em
contraposição com o Império Assírio que eliminava tanto quanto possível os povos
subjugados, através de saques e destruição, deportações implacáveis, altos tributos,
regime duro e tentativa de pacificar o Império por meio da violência, estava o
Império Persa.78
Assim,
como
mencionado
anteriormente,
Ciro
governava com política de dominação branda. Ou seja, era permitido aos povos
conquistados, continuar observando seu culto, sua religião, sua cultura. Tanto Milton
Schwantes como John Bright79 destacam com propriedade essa característica peculiar
de dominação tão diferente dos demais impérios anteriores como assírio e babilônico
que destruíam os povos conquistados e deportavam prisioneiros. Ciro, o grande
76
Norman K. Gottwald. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica. 1988, p. 401.
John Bright. História de Israel. 1978, p.488.
78
Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 1997, p.445.
79
Milton Schwantes. Sofrimento e esperança no exílio. História e teologia do povo de Deus no século
VI a.C. 1987, p.117 e John Bright. História de Israel. 1978, p.489.
77
54
libertador dos exilados, é por essa e outras razões aclamado pelo profeta Isaías em
45,1 e ss.
No entanto, esse estilo de dominação jamais deixou de
ser atenciosa e vigilante com as províncias jurisdicionadas. Tanto é assim, que recebe
grande destaque a habilidade e competência de administração do Império. Bem como
a instauração de um complexo esquema de comunicações e correios. É importante
dizer que, toda liberdade garantida pela presença e autoridade persa nas províncias,
cessava quando essa liberdade contestava a vontade do Império mundial.80 Também
escreve John Bright que através de uma complexa burocracia, a maior parte dos altos
oficiais de seu exército eram persas ou medos, mas quando possível dava
responsabilidades a príncipes nativos.81
Contudo, nem sempre era como o Império desejava ou
esperava. Há relatos de diversos focos de conflitos entre os repatriados, recém
chegados da Babilônia e os atuais moradores. Se por um lado existia a mão do
Império na vida diária do povo em Judá, bem como no estabelecimento sócioreligioso já definido pelos moradores da capital da província de Samaria, de outro
lado havia o antigo sentimento de posse da terra daqueles que acabavam de chegar.
Apesar desta informação não ser consenso entre estudiosos, ainda assim, Norman
Gottwald escreve:
É evidente que a restauração da colônia de Judá
prosseguia de maneira vagarosa. Em parte porque o
Império estava envolvido em projetos de todo Império
e em parte porque confiavam na liderança de Judá para
a restauração da comunidade (...) A restauração judaica
exigia harmonia dos interesses dos judeus
palestinenses e dos judeus repatriados de Babilônia (...)
Além disso, entre os judeus palestinenses existiam os
que prestavam fidelidade à forma samaritana de
religião judaica, que se desenvolvera entre os
descendentes do anterior reino do norte de Israel.82
80
Milton Schwantes. Sofrimento e esperança no exílio. História e teologia do povo de Deus no século
VI a.C. 1987, p.117.
81
John Bright. História de Israel. 1978, p.490.
82
Norman Gottwald. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica. 1988, p.403.
55
Vê-se no texto toda a fragilidade do momento sóciopolítico e religioso, o que faz ressaltar a habilidade do novo Império ao lidar com
pequenas províncias, entretanto, províncias de grande interesse. Judá, apesar de
pequena, figurava entre as de maior importância para o Império.
A posição geográfica de Judá lhe concedeu grande
prioridade de atenção dos imperadores persas. Marcos Bailão menciona a existência
de um certo remanejamento populacional. Instrumento usado pelos poderosos,
inclusive os antigos, para que suas terras fossem defendidas por seus moradores,
sempre em nome da ordem imperial. Nesse deslocamento, eram usadas pessoas de
origens diferentes: presos de guerra, camponeses endividados e trabalhadores
assalariados. Apesar de não haver contundentes provas de que Judá fosse objeto
desse remanejamento populacional, quando os exilados são autorizados a sair da
Babilônia, muito permanece sem resposta.83
A maior dúvida existente está na importância
geográfica que Judá, província de Samaria, teria para o Império Persa. Apesar de não
haver consenso, o que chama a atenção é a relevância de Judá frente às decisões do
Imperador Ciro nos primeiros anos de seu reinado, questão levantada, entre outros,
por Siegfried Herrmann.84 Apesar de toda controvérsia existente sobre o tema da
reconstrução do Judá colonial, não restava dúvidas que Judá era importante. Yohanan
Aharoni em The Land of the Bible cita que se sabe muito pouco sobre qualquer
evento histórico nas satrapias, “Além do Rio” ou seja, trans-Eufrates, durante o
período persa. Das várias campanhas contra o Egito sabe-se, ainda que
indiretamente, da passagem do exército persa pela Palestina em direção ao Egito.
Cambises passou pela Palestina a caminho do Egito em 525 a.C.85
Judá estava localizada, de novo, nessa região chamada
satrapia. Esta fazia fronteira com o Egito, país que, segundo narra a história, estava
dentro dos planos do imperador. O Egito fora anexado ao Império pelo filho de Ciro,
83
Marcos P. M. da Cruz Bailão. “Doença impura como limite da identidade comunitária.” p.219
citando Kenneth Hoglund. The Achaemenid Context. p.65-67, quem sustenta essa hipótese de que
Judá fosse, não em sua totalidade, um grupo remanejado intencionalmente.
84
Siegfried Herrmann. Historia de Israel. En la epoca del Antigo Testamento. 1985, p.385.
85
Yohanan Aharoni. The land of the Bible. 1979, p.412.
56
Cambises, em 525 a.C. Norman Gottwald esclarece que o Império Persa subitamente
passou a dominar um território mais de duas vezes o tamanho de qualquer Império
anterior. Suas possessões estendiam-se desde a Índia até o mar Egeu em frente à
Grécia e para o sul através do Egito. Sendo assim, era vital que, prontamente, Ciro
não apenas enviasse de volta os exilados para sua terra natal, como também os
apoiasse na reconstrução do templo em Jerusalém, devolvendo utensílios e ainda
requisitando ajuda aos mesmos, Esdras 1,1 e ss. Seja como for, a hipótese de
Kenneth Hoglund não é de toda descartada.86
Assim estava composta a comunidade de Judá no pósexílio. Uma comunidade que respondia imediatamente à província de Samaria. É
possível dizer que o maior interesse do Imperador persa, fosse ele qual fosse, na
região de Judá, era a posição estrategicamente localizada no caminho do norte, com o
sul no Egito. Se não fosse esta peculiaridade, pouco significaria a comunidade de
Judá para o Império. Portanto, para o Império Persa, a comunidade de Judá fora de
grande relevância histórica.
2. 3 O campo e a cidade
Como já mencionado anteriormente, existiu o conflito
entre os que chegavam do exílio e os que haviam permanecido na terra. A razão da
existência do conflito figura entre os pontos centrais para a compreensão histórica do
período em questão. Portanto, o deslocamento social no início do Império Persa é,
também, extremamente relevante.
Com a chegada dos da gola dá-se início a um
movimento de ruralização na província. Os que chegam se ajuntam com os que já
trabalham no campo ou com aqueles que mudariam da cidade para o campo. Marcos
Bailão cita, mais uma vez, Kenneth Hoglund quando esse apresenta o resultado de
um levantamento arqueológico, mostrando grande aumento de pequenas vilas em
86
Norman K. Gottwald. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica. 1988, p.402.
57
locais que não apresentavam sinais de ocupação anterior. Nessas pequenas vilas
agrícolas foram assentados juntos grupos que retornavam do exílio e grupos que
tinham permanecido na Palestina.87 Fica, mais uma vez, evidente a mão do Império
na importância da reconstrução social de Judá.
A influência deste mesmo Império na vida do povo no
campo, entretanto, foi grandemente sentida na imposição de taxas e impostos aos
camponeses recém assentados. Os novos tributos concediam ao Império condições de
se manter financeiramente em regiões mais remotas. É bem verdade que essas taxas
acabaram se tornando pesadas demais para pagar. Neemias 5,1 e ss. conta como vivia
a comunidade de Judá nesse período.88 Ainda que a política de dominação persa
tenha sido branda, o Império não poderia deixar de, de certa forma, oprimir a
comunidade com elevadas taxas tributárias.
A vida nas regiões centrais estava, de alguma maneira,
reservada para a corte e sua elite. No modelo de dominação persa existia grande
diferença entre o centro e a periferia. Marcos Bailão ainda postula que em 450 a.C.,
com a reconstrução do muro de Jerusalém e a cidade repovoada, é que essa
diferenciação fica mais evidente. Seja como for, as altas taxas e pesados tributos
fazem das regiões agrícolas lugares cada vez mais empobrecidos e das regiões
centrais lugares mais enriquecidos. Contudo, assim como narra Ageu 1,10-11, a
chuva, a falta da colheita, a falta dos frutos da terra geram grandes dificuldades em
ambos os lados.
Tanto no campo como na cidade, os altos tributos
ajudavam na manutenção da forte presença militar nas ruas. Essa presença garantia a
segurança das mercadorias, bem como a segurança comum na região.
87
Marcos P. M. da Cruz Bailão. “Doença impura como limite da identidade comunitária.” Tese de
doutorado, 2001, p.213.
88
Levantou-se uma grande queixa entre os homens do povo e suas mulheres contra seus irmãos, os
judeus. Uns diziam: “Somos obrigados a penhorar nossos filhos e nossas filhas, para recebermos trigo,
para podermos comer e sobreviver.” Outros diziam: “Temos que empenhar nossos campos vinhas e
casas para recebermos trigo durante a penúria.” Outros ainda diziam: “Tivemos que tomar dinheiro
emprestado penhorando nossos campos e vinhas para pagarmos o tributo do rei; ora, temos a mesma
carne que nossos irmãos e nossos filhos, somos como os dele (...) Não podemos fazer nada, porque
nossos campos e nossas vinhas já pertencem a outros” Neemias 5,1-5. A Bíblia de Jerusalém. 1973.
58
Por fim, Judá e a vida do dia-dia no campo, também na
cidade, da madrugada até o entardecer, estava, por assim dizer, embrulhada com o
tecido divino da santidade, conforme se verá a seguir. O trabalho, as refeições, a vida
sexual, o comércio e qualquer tipo de relacionamento tinha que obedecer a direção
de YHWH. A ordem humana, depois de responder ao Império, tinha que responder à
ordem sagrada divina, porque esse Deus estava “habitando no meu do povo”.89
2. 4 A religião no Império
No cenário religioso, existe, da parte do Império,
especialmente na época de Ciro, grande incentivo e liberdade de culto. Como
afirmado anteriormente, essa liberdade era parte fundamental no estilo de dominação
persa. Não apenas a relativa liberdade fora restaurada, como também a reconstrução
do templo fora autorizada.90
Não se poderia omitir, dentre as ênfases na política de
dominação persa, a tolerância especial em relação ao culto e aos templos dos povos
vizinhos, visto ser essa característica específica do Império Persa extremamente
relevante para a presente pesquisa. Herbert Donner menciona, no estilo de
dominação persa, o tratamento das religiões e dos cultos nos povos sujeitados. O que
acontece em Judá não é diferente em relação à reconstrução do templo, ou seja, fica
evidente a intenção do imperador na reconstrução templar da comunidade de Judá.91
Roland de Vaux apresenta um pequeno histórico a
respeito da reconstrução do templo na Palestina, contra-tempos, dificuldades e
problemas que envolveram esta idealização tão significativa para a religião de Judá.
89
http://www.staff.uni-marburg.de/~gersterh/leviticus-portugues.htm. 20/10/2003, p.10.
De acordo com Roland De Vaux, Ezequiel, na terra do exílio, teve uma visão do templo na
restaurada e idealizada Jerusalém. Sua longa descrição da construção/prédio (Ez. 40,1-44,9) não é de
grande interesse para o estudo, pois esse templo não fora construído. No entanto, a maior importância
deste templo visionário fora a mentalidade que deu origem a seguinte visão: um reformador estava lá
planejando como expressar concretamente àquelas idéias de santidade, pureza e espiritualidade, as
quais eram a alma de sua pregação. Ancient Israel, Its life and institutions. 1997, p.322-323.
91
Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 1997, p.445.
90
59
Em 538 a.C. Ciro autoriza, então, a volta dos judeus
exilados e a reconstrução do templo em Jerusalém. Ele
também devolve aos judeus o ouro e a prata levados do
templo por Nabucodonozor no passado. Esse decreto
de Ciro está preservado de duas formas: uma está em
aramaico, como citado no decreto de Dario em Esdras
6,3-5 e outra em hebraico Esdras 1,2-4. Os primeiros
exilados a chegar na Palestina levantaram um altar no
local do antigo templo Esdras 3,2-6 e sob o comando
de Sesbasar, começaram a trabalhar no templo Esdras
5,16. Aparentemente o trabalho estava apenas no
começo quando tiveram que interrompê-lo, devido a
obstrução samaritana, Esdras 4,1-5 pela falta de
interesse dos judeus de acordo com Ageu 1,2. No
segundo ano de Dario, 520 a.C. a tarefa fora retomada,
agora sob os cuidados de Zorobabel e Josué e com o
encorajamento de dois profetas; Ageu e Zacarias
(Esdras 4,24-5,2; Ageu 1,1-2,9; Zacarias 4,7-10).
Tatenai estava preocupado com essa atividade e
consultou a Dario por instruções: o imperador, quando
leu o memorando deixado por Ciro, ordenou que ele
honrasse seus termos e permitisse aos judeus continuar
seu trabalho. Que terminou em 515 a.C. Sabe-se muito
pouco sobre esse templo (...) No entanto, Esdras 3,1213 e Ageu 2,3 falam que os antigos que haviam visto o
templo anterior, choraram diante do reconstruído,
dizendo que este não é em nada comparado com o
anterior (...) É possível que o pagamento autorizado
por Ciro, dos cofres do Império, e por Dario das taxas e
tributos das províncias trans-eufrates Esdras 6,4 e 8,
não foram pagas integralmente e que os judeus tiveram
que desembolsar de seus próprios recursos.92
O que prevalece na comunidade Judaíta e que toma por
completo o conceito de religião na comunidade de Judá é a ênfase na reconstrução do
templo. Ainda que o templo reconstruído no período persa não chegava nem perto do
que era o templo em tempos passados e que fora objeto de diversas objeções e
obstruções, principalmente por parte de Samaria.
Gerhard Von Rad apresenta o mesmo que Roland De
Vaux quando escreve que a morte de Cambises provocou uma enorme crise no
Império, pelo fato de ter morrido sem deixar filhos como sucessores. A notícia teve
ampla repercussão, chegando até Jerusalém. Surgiram então dois profetas, Ageu e
92
Roland De Vaux. Ancient Israel, Its life and institutions. 1997, p.323-324.
60
Zacarias, que interpretaram esse abalo como perspectiva messiânica e procuraram
despertar no povo a preocupação com o templo. A grande obra de reconstrução foi
efetivamente recomeçada por um descendente de Davi, Zorobabel, neto de Joaquim,
que conseguiu concluí-la apesar dos obstáculos criados pela classe dirigente de
Samaria.93 (vide o subtítulo “Império Persa” para melhor compreensão da crise entre
Judá e Samaria.).
Evidentemente que a crise templar entre Judá e
Samaria toma lugar no momento histórico da comunidade do pós-exílio, entretanto,
isso apenas acontece pela demasiada atenção atribuída ao templo pela mesma
comunidade ali em reconstrução. Apesar das medidas do novo templo não
corresponderem ao tamanho esperado, o que chama a atenção para Judá é a
importância da presença templar no meio do povo, o que se verá mais adiante.
Milton Schwantes escreve que após 539 o projeto que prevalece é o que faz do
templo o símbolo maior do povo de Deus. Pelo visto o pós-exílio transforma o
templo no projeto central e mais relevante da comunidade de Judá.94 Igualmente,
Marcos Bailão apresenta como núcleo de governo, o templo: centro administrativo,
centro religioso, foco de poder regional.
A sociedade na província fora reduzida à comunidade
de fé, a vida diante de YHWH estava focada na família, na pequena vila ou campo
militar. Apenas assim podia a comunidade judaica, debaixo do Império Persa,
preservar sua identidade como povo e apenas por essa razão seu horizonte de fé era a
família e o templo local.
Naquele momento, pode-se observar a ênfase na
preservação da tradição judaica e nos costumes ético-morais da família à luz da
vontade de Deus na tradição bíblica. Erhard Gerstenberger descreve a preocupação
do fiel na comunidade de fé: Quais comidas posso comer? Quando estou impuro e
assim impossibilitado de participar do culto? Qual a melhor maneira de oferecer
93
Gerhard Von Rad. Teologia do Antigo Testamento. Vol.2. 1973, p.96-97.
Milton Schwantes. Sofrimento e Esperança no Exílio. História e teologia do povo de Deus no
século VI a.C. 1987, p.116.
94
61
sacrifícios? Quais as expectativas acerca de meu testemunho YHWH tem?95 O que
se mostra evidente é a importância da presença do templo na vida social e religiosa
do povo.
Uma
das
maiores
dificuldades
encontradas
na
reconstrução do templo em Jerusalém foi justamente a oposição a reconstrução. John
Bright comenta a hostilidade dos povos vizinhos em relação à Judá. Ele escreve que
especialmente a aristocracia de Samaria, que considerava Judá como parte de seu
território, lhes era abertamente hostil. Não apenas a oposição aberta representava
grande dificuldade para a execução do projeto de reconstrução, como a própria
existência de demais templos fora de Jerusalém constituíam-se empecilhos. Nesta
época, continua John Bright, os que voltavam do exílio haviam preservado a religião
de seus pais, no entanto os que ficaram já haviam sido influenciados pelas religiões
vizinhas. 96
Roland De Vaux escreve que os exilados jamais
construíram um templo na Babilônia, seus pensamentos e sua esperança estava
voltada para Jerusalém. Mas, mesmo assim, concorda com John Bright sobre a
existência de templos fora de Jerusalém. O templo de Elefantine é um deles, estava
localizado na fronteira com o Egito. Lá se localizava o templo à Yaho (YHWH), o
qual existia antes da invasão de Cambises em 525 a.C. O que chama a atenção para
aquele templo está no seguinte acontecimento, em 410 a.C. um sacerdote egípcio,
aproveitando da ausência do governador da satrapia, convenceu a autoridade local
persa a destruir o templo de Yaho. Quando os judeus pediram ajuda ao governador da
Judéia, não receberam nenhuma resposta.
Outro templo estava localizado em Garizin. Os
samaritanos afirmavam que o local do templo havia sido escolhido por YHWH, na
Palestina, no monte Garizin. Ninguém sabe exatamente a data para a construção
desse templo, afirma De Vaux.97
95
Erhard S Gertenberger. Leviticus. A commentary. The Old Testament Library. 1996, p.8-9.
John Bright. História de Israel. 1978, p.495.
97
Roland De Vaux. Ancient Israel, Its life and institutions. 1997, p.342.
96
62
Seja como for, Julius Wellhausen escreve que até no
tempo de Jesus, judeus e samaritanos, não tinham ainda acordo sobre o local
escolhido para adoração de YHWH.98 Quando no período do pós-exílio o templo
ganha relevância especial, na reconstrução da comunidade, fica evidente o ponto
central do conflito existente entre aqueles que chegavam e os que já habitavam a
terra: o local de adoração, pois para os judeus, Jerusalém era o local escolhido.
Tem-se assim, o templo como local central na
comunidade judaíta. A importância do templo levanta para a pesquisa uma questão
central, questão essa que perpassará pelo contexto sócio-religioso da prática
homossexual na sociedade pós-exílica.
Apesar do templo ganhar toda evidência na discussão
sobre a reconstrução ideal da nova religião em Judá, não se pode esquecer que essa
relevância é apenas simbólica daquilo constituído ideal para a comunidade. Tem-se
que, também, se atentar para a presença do Império na região e sua influência na
religião local. Mary Douglas escreve: “quando rituais expressam inquietação sobre
os orifícios do corpo, tem-se o cuidado com a proteção política e cultural da unidade
do grupo menor como seu correspondente sociológico”.99
A afirmação de Mary Douglas contribui para mostrar a
preocupação de Levítico na composição do “Código de Santidade” no período persa.
É evidente que o autor(es) de Levítico tenha sido influenciado pelas preocupações
culturais e religiosas que porventura pudessem comprometer a integridade sócioreligiosa de Judá. Theodore Jennings escreve: “Levítico teve o final de sua
composição literária no período que se estendeu de 520-170 a.C.” Também, o mesmo
Jennings apresenta a maior preocupação de Levítico com o perigo iminente da
influência imperial Grega. Se o Império Grego oferecia perigo para a religião de
Judá, tornara-se muito conveniente adotar a mesma metodologia que os persas
adotaram. O autor escreve que o zoroastrismo fora, entre outras coisas, a filosofia
98
Julius Wellhausen. Prolegomena to the history of Ancient Israel. The classic and original statement
of the theory of “Higher Criticism” of the Old Testament. 1957, p.17.
99
Theodore Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel.
2005, p.213. Citando: Margaret Mary Douglas. Purity and Danger. London: Routledge & Kegan Paul,
1966, p.124.
63
empenhada na refutação das idéias gregas concernentes a sexualidade. Também:
“entre as mais importantes idéias do zoroastrismo estava a ênfase na rígida noção de
pureza com foco no corpo como o lugar de maior dificuldade para a aplicação dessa
mesma pureza. Em Levítico, muitas idéias preocupadas com pureza e poluição
parecem refletir influências persas do zoroastrismo. Nesse contexto, o zoroastrismo
desenvolve absoluta proibição da atividade homossexual masculina.”100
O que marca no momento da composição final de
Levítico é justamente a intenção defensiva do autor contra as idéias previamente
divulgadas pelo Império Grego. Na verdade, pode-se presumir que se o autor(es) está
preocupado com a divulgação dessas idéias defensivas no meio da comunidade, é
porque práticas homossexuais já estavam presentes nos mais diversos âmbitos da
sociedade judaica. Theodore Jennings escreve: “as leis proíbem o que a tradição
incita, as leis proíbem o que as narrativas promovem”.101
2. 5 Simbologia aplicada ao texto
2. 5. 1 O símbolo por trás do templo
Como apresentado no título anterior, o templo, do
período da reconstrução, figurou tema central na vida social e religiosa da
comunidade judaica. Social, pois se via toda a sociedade engajada num projeto de
construção que, obrigatoriamente, passava pelo mais novo, assim como pelo mais
velho, pelo homem e pela mulher. O projeto da reconstrução templar foi de fato o
mais importante movimento social do período persa. George Fohrer escreve das
diferenças existentes entre a participação do povo no ideal templar salomônico e o de
agora.
100
Theodore Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel.
2005, p.215.
101
Theodore Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel.
2005, p.218.
64
O templo salomônico tinha sido propriedade real,
construído pelo rei e pertencente à dinastia. O povo
pagava taxas para sua manutenção, mas o rei, mais
uma vez, controlava o seu uso. Agora que a monarquia
judaíta tinha sido abolida, o sustento do novo templo
devia ser financiado pelo povo e o templo pertencia ao
povo, de modo que aquilo que tinha sido um templo
real e oficial foi substituído por um templo nacional
que pertencia ao povo como um todo. O sumo
sacerdote substituía o chefe dos sacerdotes no ápice da
hierarquia.102
E
importância
religiosa
porque
o
templo
da
reconstrução ainda representava a presença de YHWH no meio da comunidade. De
Vaux escreve que o templo era a “casa de Deus”, citando 1Reis 8,13, quando
Salomão diz que construiria uma morada para YHWH, na qual ele moraria para
sempre. Depois da volta, os profetas encorajam a reconstrução do templo: e a razão é
que YHWH deveria voltar a morar em Jerusalém (Ageu 1,9; Zacarias 2,14 e 8,3). O
templo, a santa morada, ainda era o centro da piedade judaica.103
Não se pode pensar nas proibições de Levítico 18,22 e
20,13 sem ter em mente o contexto maior de conceito de vida social e religiosa da
comunidade judaica. O contexto social foi abordado anteriormente e o que se
constatou fora a decisão comunitária da reconstrução templar. No âmbito religioso,
observar-se-á o ideal da reconstrução como ideal religioso no meio da comunidade.
Parece haver grande relação entre as proibições de Levítico e a vida religiosa judaica.
Ainda assim, o estudo do templo como símbolo da
comunidade judaica apresenta grande controvérsia. Roland De Vaux escreve que o
pensamento judaico tardio, o pensamento helenístico, bem como os pais da Igreja
cooperaram para a sustentação da idéia do templo como um símbolo cósmico, o
centro do universo. Deus, o mestre do universo, moraria no templo, o qual era a
imagem do universo. Mas o pensamento israelita não seguia esses padrões. Logo
após a monarquia, eles se confrontaram com o paradoxo de ser o templo uma morada
construída por mãos humanas, “se os céus dos céus não o contiveram, muito menos
esta casa que construí para ti”, (1Reis 8,27). Se, continua De Vaux, o templo não
102
103
Georg Fohrer. História da religião de Israel. 1982, p.412.
Roland De Vaux. Ancient Israel, Its life and institutions. 1997, p.326.
65
possuía um valor simbólico, deve-se então, olhar para a chave de leitura que de fato
estará na cosmologia da compreensão histórica de Israel. 104
Seja como for, a oposição de Roland De Vaux é clara
quanto ao templo ser considerado o centro cosmológico da religião judaica. Vê-se
não haver problemas com essa afirmação, pois o que mais interessa para o presente
estudo não está no templo ser o centro do universo, mas sim, ser o maior símbolo do
ideal de reconstrução da comunidade pós-exílica, como afirma Milton Schwantes.105
Ainda antes do retorno dos exilados o templo exercia importante relevância, pois
mesmo destruídos continuavam como lugares sagrados.106
O templo figurava como o centro do povo, o centro da
purificação, o centro da diferença principal entre judeus, a golá e samaritanos,
principalmente. O símbolo existia e serviu por vários anos como o marco central
entre os de lá e os de cá, sejam eles quais fossem. Portanto, observa-se que o símbolo
pertence à substância da vida espiritual e social, mas principalmente familiar, podese camuflá-lo, mutilá-lo, mas jamais poder-se-á extirpá-lo.107
O ideal de reconstrução do templo na capital de Judá
passa pela reconstrução de todo um sentimento e toda uma comunidade social.
Reconstruir o templo, parte central social e religiosa de Jerusalém é também
reconstruir usos e costumes, é também remodelar conceitos e ideais. Seguindo Jacob
Milgrom quando afirma que o capítulo 18 está, em resumo, preocupado com a defesa
do clã, no sistema social pater-families. E Erhard Gertemberger, quando diz que
especialmente o capítulo 18 sai da comunidade familiar e vai para a comunidade
mais ampla,108 amplia-se esse mesmo conceito de estrutura social, visualizando de
dentro para fora a preocupação central da comunidade sob o domínio persa.
104
Roland De Vaux. Ancient Israel, Its life and institutions. 1997, p.329.
Milton Schwantes. Sofrimento e esperança no exílio. História e teologia do povo de Deus no
século VI a.C. 1987, p.119.
106
Euclides Balancin. História do povo de Deus. 1989, p.101.
107
Mircea Eliade. Imagens e Símbolos. Ensaio sobre o simbolismo mágico religioso. 1991, p.7.
108
Jacob Milgrom. Leviticus. A book of rituals and ethics. 2004, p.196. Erhard Gerstenberger.
Leviticus. A Commentary. 1996, p.258.
105
66
Olha-se para a preocupação central do grupo social em
Judá e apresenta-se a família, ou o âmbito familiar que envolve também o clã.109
Antes mesmo do ideal, a reconstrução templar existe, permeando o cenário social e o
conceito de preservação da família judaica em Jerusalém. Sua preservação passava
por sua continuidade, passava por sua pureza, passava assim por sua atenção ao
templo. O templo, por sua vez, remetia ao ideal de reconstrução de toda uma nação,
agora diminuída em pequena comunidade, como ideal central da fé e religião de
Judá, sob domínio da província de Samaria, mas em plena reconstrução.
Portanto, da família à comunidade de fé, o templo está
como centro de um ideal que, na maioria das vezes, não é evidenciado, mas existe e
está presente naquilo que a comunidade faz do templo - seu ponto central. Pois se
não há o templo, não há diferença entre os diferentes grupos em Judá.
Essa
diferença
de
grupos
rivais
passava,
necessariamente, pela razão para a qual o templo estava sendo usado. Theodore
Jennings Jr. escreve:
Pode-se imaginar que faria sentido se os homens
devotos a YHWH fossem erótica ou até mesmo
sexualmente possuídos pelos santos, sagrados –
qědōšîm que representavam o poder fálico de YHWH.
Essa interpretação serviria para fazer sentido a
atribuição que é dada aos qědōšîm como funcionários
do templo. Também indicaria o local de trabalho
desses funcionários como o templo de YHWH em
Jerusalém. Indicaria outro sim, como essas práticas
cultuais estariam relacionadas com outras práticas
cultuais de templos samaritanos e israelitas.110
Sendo assim, o templo da reconstrução da comunidade
de Judá deveria ser construído rápido e urgentemente pelos que chegavam da golá.
Também, deveria ser, evidentemente diferente em relação aos outros templos locais.
109
É interessante observar o conceito de família do povo no passado. De Vaux escreve que a família
consiste de todos que são unidos por sangue e por local de habitação. A família é a casa, encontrar
uma família é construir uma casa, (Neemias 7,4). Ancient Israel, Its life and institutions. 1997, p.20.
110
Theodore W. Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient
Israel. 2005, p.125.
67
2. 6 O templo como ideal de “exclusão”
Com a volta de uma pequena, todavia, organizada
parcela da golá, está estabelecido o conflito entre dois ou mais grupos, os que
permaneceram na terra e os que chegaram. Observando a mistura do povo local, os
que chegam, tentam implantar uma conduta de pureza racial, sua arma principal são
as genealogias. Não apenas essas, mas, como escreve Gerard Von Rad, foi por volta
de 445 a.C. que Neemias, e os que chegaram do exílio, movimentaram novamente as
coisas em Jerusalém. Todas as medidas que tomou Neemias, o mostram, na
reorganização da comunidade de culto, como um purista. Pronunciou-se a favor, por
exemplo, da excomunhão de todos os que eram estrangeiros e pela dissolução dos
casamentos mistos (Neemias 13,1-3; 23-28).
Contudo, o trabalho de restauração interna da
comunidade cultual foi empreendido um pouco mais tarde por um homem
incomparavelmente mais indicado que Neemias, Esdras, que pertencia à antiga
família sacerdotal e também chegara entre os exilados da Babilônia.111 É nesse
momento, que a reconstrução do antigo templo a YHWH, aparece como afronta aos
diversos templos locais que permaneceram, principalmente aos samaritanos, pois
Esdras é revestido de toda autoridade persa, é sacerdote e chega para a restauração do
culto a YHWH em Jerusalém.
Havia exagerada disputa entre os grupos que voltavam
da Babilônia e aqueles que estavam em Judá e vizinhanças. Georg Fohrer escreve
sobre o desejo de certos grupos, na Palestina, de participar da reconstrução do templo
e do culto, esses grupos eram questionados pelos que retornavam, visto que a sua
forma de javismo estava permeada de influências alienígenas. Assim, Ageu oferece o
ritual de pureza em 2,10-14, escrevendo que a impureza cultual é contagiosa, sendo
que o mesmo é verdadeiro a respeito “desse povo”, cujo local onde ofereciam
sacrifícios se tornaria impuro.112
111
112
Gerhard Von Rad. Teologia do Antigo Testamento. Vol.2. 1973, p.97-98.
Georg Fohrer. História da religião de Israel. 1982, p.413.
68
Assim, não a reconstrução do templo em si, mas o
símbolo da presença do templo, é definitiva para a atestação das relações sexuais
como proibitivas. Os versos em questão, 18,22 e 20,13 são parte de uma macro
proibição sexual no contexto de Levítico. O que chama a atenção para as proibições é
a possível forma como os autores bíblicos respondem à realidade sexual “perversa”
local, como a não vontade de YHWH para Judá.
Gerhard Von Rad, contundentemente, escreve que
Israel, depois do exílio, já não era mais um povo definido pela história e pela
natureza, mas pela lei, a partir da qual foi possível saber quem pertencia e quem não
pertencia a Israel. A lei podia pressionar, excluindo os estrangeiros para preservar a
pureza da raça santa, mas podia também, sob certas condições, tornar-se mais
branda. O que era ou não era Israel tornava-se matéria de interpretação da lei. O
Israel do pós-exílio não teve mais história com YHWH. Deixou de solidarizar-se
com todos os outros povos. Assim, começaram a encará-lo com certa inquietação e
até odiá-lo. Por isso, não se pode compreender essa transformação sócio-religiosa,
senão a partir dessa nova maneira de interpretar a lei.113
Logo, Levítico, como livro de legislação cultual, ritual
e sacrificial de exclusão, tem evidente importância para a construção da nova
comunidade judaica, conforme escreveu Gerhard Von Rad acima.
Com efeito, o projeto da reconstrução do templo, na
época em questão, é parte integrante do símbolo da presença de YHWH no meio do
povo. Este mesmo projeto é chamado à existência para que haja evidente diferença
entre os diversos grupos e suas diversas formas de javismo. A abominação de
homem dormir com homem como se fosse mulher, soa muito mais como desejo de
apresentar um projeto das relações sexuais da nova comunidade purificante /
purificadora, do que realmente algo horrendo, como descreve o texto bíblico.
113
Gerhard Von Rad. Teologia do Antigo Testamento. Vol.2. 1973, p.100-101.
69
Antes da análise de Levítico 18,22 e 20,13, convém
lembrar o que o capítulo presente apresentou a pouco. De toda a análise acima,
destaca-se o desejo da nova comunidade recém chegada da golá e seu desejo de
purificação sócio-religiosa no seio da comunidade instalada. Lembrar que os versos
em questão fazem parte desse projeto é por demais relevante. Lembrar ainda que a
mensagem proibitiva tem fundamentação no desejo de purificação, o que é
importantíssimo, pois traz à baila, se é possível assim dizer, a motivação primeira do
autor: não se associar com os demais, independente de qual atividade proibir.
Também, o templo nesse momento histórico da
sociedade judaica, desfruta de privilégio interessante, pois se o mesmo se constituísse
da presença de YHWH no meio do povo, naquele lugar jamais poderia haver
qualquer tipo de associação com atividades que não condissessem com as previstas
na lei. Se práticas homossexuais envolviam atividades no templo, quanto mais
deveriam ser proibidas.
Por fim, parte-se para a análise textual dos capítulos 18
a 20 sabendo dessa real intenção do autor, de usar o texto bíblico para purificar a
comunidade, preservando sua unicidade e pureza racial em relação aos povos rivais a
Judá.
70
3 ANÁLISE CRÍTICA DE LEVÍTICO 18,22 E 20,13
Aqueles que usam a história de Sodoma para condenar,
o que dois milênios depois seria chamado de
“sodomia”, deveriam refletir sobre a curiosa história da
submissão de Dagom em relação a YHWH. Seria,
também, o Senhor, YHWH um “sodomita”?114
- Theodore W. Jennings Jr.
Com efeito, observou-se no capítulo anterior a grande
dificuldade da comunidade de Judá no estabelecimento da ordem no retorno dos
exilados (golá). O templo, como instrumento da religião na reconstrução da nova
comunidade, é usado como o ideal de purificação no seio da comunidade judaica em
relação aos demais povos e a religião é reconstruída por princípios de separação
como mostrará o presente capítulo.
Assim como afirma Gwen Sayler, “os tempos eram de
tumulto e muitos exilados temiam que se não houvesse altas ‘paredes’ de distinção e
separação entre os que retornaram do exílio e os que permaneceram, a comunidade
114
Sobre a história do ataque de YHWH à Dagom (1Samuel 5) o mesmo autor esclarece: “O tema da
agressão fálica sobre estrangeiros poderia continuar na narrativa da presença da arca de YHWH no
meio dos Filisteus. Sobre a agressão de Dagom na cidade de Asdode ouve-se: ‘A mão do senhor
castigou duramente os de Asdode, e os assolou e os feriu de tumores, tanto em Asdode como no seu
território’. (1Samuel 5,6) Os tumores os quais o texto se refere eram, possivelmente, hemorróidas,
citando entre outros biblistas: Peter Ackroyd. The first book of Samuel. Cambridge: Cambridge
University Press, 1971, o que significa no contexto que o povo é atacado por YHWH com a marca do
abuso sexual anal. O mesmo acontece com as outras duas cidades atacadas pela pesada mão de
YHWH.” Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel. 2005, p.48-50. A
narrativa de Sodoma (Gênesis 19) é correntemente interpretada como a narrativa do castigo sobre
aqueles que tentaram abusar sexualmente de estrangeiros. Essa agressão sexual, masculina (fálica)
também acontece na narrativa de Dagom quando YHWH manifesta seu poder fálico, ainda que
interpretativamente, “abusando” dos filisteus causando-lhes hemorróidas – sinal de penetração anal.
71
de Judá poderia desaparecer. Por essa razão, os autores sacerdotais encorajaram a
comunidade a perseverar no projeto de separação em relação aos povos vizinhos”.115
O “Código de Santidade” (Levítico 17-26) é apresentado, como se verá adiante,
como projeto de regulamentações a serem seguidas para a preservação da identidade
existencial da comunidade de Judá, fortemente ameaçada.
3. 1 O “Código de Santidade”
O assim chamado “Código de Santidade” (Levítico 1726) é apresentado à comunidade em um momento em que a estrutura sócio-religiosa
de Judá entra em colapso,116 ou seja, para que o povo não perca sua identidade ele é
apresentado como alternativa para sua própria subsistência. O ideal de reconstrução
da vida sócio-religiosa de Judá passava necessariamente pela reconstrução templar
com ênfase na reconstrução de sentido ético-moral bem como religioso através das
regulamentações divulgadas no “Código de Santidade”. Ivo Storniolo escreve que os
capítulos 17-26 de Levítico compõem a parte mais antiga de todo Levítico.117
Aceita-se com certa naturalidade que esse material seja
fruto do período do exílio e do pós-exílico. Assim, os séculos VI e V, como
observado no capítulo anterior, são o momento para a construção final de todo o
texto. Essa datação é fortemente sugerida pela relação de aproximação que tem o
“Código de Santidade” com Ezequiel e com a mensagem do capítulo 26 de Levítico
que evidencia situação de exílio. No entanto, Jacob Milgrom deixa claro que: “sobre
o texto de Levítico há tantas teorias, concernentes às regulamentações e às
prescrições, quanto há também teoristas”,118 o que impõe ao presente, limites
contextuais a serem trabalhados. Seja como for o “Código de Santidade” é uma obra
final do período em que o Império Persa governava a região.
115
Gwen B. Sayler. “Beyond the biblical Impasse: Homosexuality through the lens of theological
anthropology”. Em: Diolog: A journal of theology. Vol.44. Nº1. 2005, p.82.
116
Peter R. Ackroyd. Exile and Restoration: A Study of Hebrew Thought of the Sixth Century B.C.
The Old Testament Library. 1968, p.84.
117
Ivo Storniolo. Como ler o livro do Levítico. Formação de um povo santo. 1995, p.48.
118
Jacob Milgrom. Leviticus 1-16. A new translation with introduction and commentary. 1991, p.718.
72
O reconhecimento de que os capítulos 17-26 de
Levítico formam um único bloco temático corresponde ao antigo trabalho de A.
Klostermann em 1877.119 O nome “Código de Santidade” foi dado por A.
Klostermann, todavia Levítico 17-26 já havia sido isolada como unidade separada
por Graf (1866), e quase um século mais tarde por Julius Wellhausen (1963). Apesar
de haver grande controvérsia sobre a questão, a data mais provável para a unidade
17-26 é a do exílio na Babilônia e os anos seguintes,120 como afirmado acima. O
nome “Código de Santidade” deriva do reconhecimento e da ênfase na fórmula:
santos sereis, pois santo eu sou, YHWH vosso deus (Levítico 19,2; 20,7 e 26).
Evidentemente que toda a porção textual dos capítulos que compõem o “Código de
Santidade” trabalha dentro do sentido de santidade cultual, ética e sexual do povo
diante de seu Deus e dos povos vizinhos.
Ivo Storniolo escreve a respeito da situação dos
exilados no evento do retorno a Judá:
Exilados no estrangeiro o grande desafio para os
judaítas era a conservação da própria identidade
cultural e religiosa, já que a independência políticoeconômica se tornara impossível. Os exilados tinham
que se manter articulados de forma que lhes
possibilitasse uma prática simbólica - feita de usos e
costumes - que os distinguisse e os separasse, ou seja,
os tornasse santos, separados e distintos das outras
nações. O código de santidade é, portanto, um esquema
de sobrevivência de identidade (...)
(...) No início e no fim do cap 18, tem-se orientações
para que Israel não se comporte como as nações,
conforme os costumes sexuais dos estrangeiros. Numa
retrospectiva citam-se explicitamente Egito e Canaã.
Ora tanto num como no outro lugar havia o costume
das famílias dos reis de prolongar a descendência no
poder graças as relações endógamas, dentro da família,
119
Citado por Peter R. Ackroyd. Exile and Restoration: A Study of Hebrew Thought of the Sixth
Century B.C. The Old Testament Library. 1968, p.87. A. Klostermann. Beitrage zur
Entstehungsgeschichte des Pentateuchs. ZLThK 38 (1877), pp.401-445 = Der Pentatuech (Leipzig,
1893), p. 368-418: “Ezechiel und das Heiligkeitsgesetz”. David Noel Freedman sugere outra data para
o trabalho de Klostermann: 1893. The Anchor Bible Dictionary. Vol 3, 1992.
120
David Noel Freedman. The Anchor Bible Dictionary. Vol 3, 1992.
73
o que não podia acontecer senão por incesto. Israel é
proibido de fazer o mesmo.121
Nota-se, com o que fora apresentado acima, que o
“Código de Santidade” deixou sua marcante presença na comunidade para que essa
mesma comunidade se comportasse de forma distinta das outras nações. É valioso
mencionar que Levítico 18,22 e 20,13 estando presentes nesse “Código” presumem
uma distinção necessária das práticas vizinhas, as quais não eram proibidas em si
mesmas, mas sim por constituírem um comportamento praticado alhures.
Novamente, o que dá propriedade ao “Código de
Santidade” para assim ser chamado é a presença da fórmula de santidade em Levítico
19,2; 20,26: santos sereis, pois santo eu sou, YHWH vosso deus. O que segue é a
análise de conteúdo dessa fórmula de santidade que tem em sua raiz a palavra qdš.
qdš e qědōšîm
vAdêq' e ~yviädqo .
A palavra qdš singular, significa separado, sagrado,
santo, em outros contextos a mesma raiz da palavra qdš pode ter significados
semelhantes a santidade de Deus, santidade do templo ou santidade do povo. Seja do
povo, de deus ou do templo a palavra indica o que é separado por YHWH. Também,
os qědōšîm plural, podem ser homens associados com alguma forma de prática
sexual cúltica.122
Jacob Milgrom, em artigo publicado em 1996,
apresenta o conceito de “santidade” com base na raiz da palavra e em demais línguas
semitas, traduzida como: santo: qdš. Em acádico, quddušu, significa purificar ou
consagrar. É importante saber que derivações encontradas de qdš, são, quase sem
exceção, encontradas em contexto de culto e religião contendo pessoas que foram
purificadas ou consagradas, ou seja, pessoas trazidas para perto da divindade. Ainda,
121
Ivo Storniolo. Como ler o livro do Levítico. Formação de um povo santo. 1995, p.48-51.
Theodore W. Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient
Israel. 2005, p.117.
122
74
quando o autor(es) de Levítico propõe a “santidade” para Judá, ele apresenta uma
nova forma de compreender as relações humano-divinas na Palestina.
Theodore W. Jennings escreve que o fenômeno do
êxtase unissexual masculino estava relacionado àqueles que ofereciam culto a
YHWH. Ele continua dizendo que: “se se pode identificar um grupo de homens
relacionados à devoção ao culto a YHWH, na região sul do antigo reino, que
estivessem relacionados com a sucessão de Davi, eles eram os qědōšîm”.123 Esta
palavra fora associada a prostitutos homossexuais, “sodomitas” e sacerdotes cultuais.
Com a apresentação da fórmula de santidade, santos
sereis, pois santo eu sou, YHWH vosso deus (Levítico 19,2; 20,26), pretende-se uma
melhor explicação dos termos relacionados a qědōšîm. Com esta fórmula, há uma
quebra de toda barreira existente entre o sacerdócio e o povo, carregando com toda
responsabilidade o indivíduo por seus próprios erros.124 Diferente de como acontecia
no passado quando o povo era punido pelos erros do próprio povo. A pena para erros
cometidos faz lembrar o passado de outras nações, quando foram lançados para fora
de suas terras (Levítico 20,22-23). O que não poderia acontecer com a comunidade
judaica que vive o novo projeto de reconstrução depois do exílio.
A lógica que permeia essa individualização das pessoas
está na forma antropológica de entender cada indivíduo. Gwen Sayler escreve que o
corpo humano é compreendido como o microcosmo do cosmos e que a “santidade”
depende de cada judaíta que se preserva longe de indivíduos estrangeiros. Nenhuma
mistura de categoria é permitida. A lógica, logo, é a mesma para relações sexuais.125
O “Código de Santidade” apresenta uma nova maneira
de ser da comunidade de fé. Jacob Milgrom escreve a respeito de um novo e
revolucionário objetivo: a criação da sociedade igualitária. Igualdade no acesso ao
123
Theodore W. Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient
Israel. 2005, p.115.
124
Jacob Milgrom. “The Changing Concept of Holiness in the Pentateuchal Codes With Emphasis on
Leviticus 19”. Em: SAWYER, John F.A. (editor) Reading Leviticus. A conversation with Mary
Douglas. Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series 227. 1996, p.67.
125
Gwen B. Sayler. “Beyond the biblical Impasse: Homosexuality through the lens of theological
anthropology”. Em: Diolog: A journal of theology. Vol.44. Nº1. 2005, p.82.
75
sagrado, no entanto, com este novo projeto de vida, o indivíduo teria maior
responsabilidade, viver a vida de acordo com a “santidade”. Pois este, sem dúvida, é
o denominador do material de Levítico 17-26.
Essa nova atitude passa por um novo ideal de vida
religiosa. Nos capítulos que compõem o “Código de Santidade”, escreve Jacob
Milgrom que YHWH não está preocupado com a devoção a outros deuses, porém se
apresenta como um Deus essencialmente preocupado com a terra habitada, para que
o povo não a perca novamente. Em o “Código de Santidade” o pecado não é apenas
pessoal, mas também territorial: “se pecadores podem se sujar, eles também podem
poluir a terra e através da terra o nome YHWH, (18,24-30)”.126 Por isso, a
responsabilidade de cada cidadão da nova comunidade pós-exílica é aumentada.
Cada indivíduo tem responsabilidade particular quanto à maneira de ser no projeto da
nova comunidade, sob pena de poluir a terra e conseqüentemente o nome de YHWH.
O sentido do termo qdš, pode explicar a preocupação
com a “santidade” do povo mas, principalmente, do indivíduo na terra da conquista.
A designação de “santo”, qdš é apresentada por Jacob Milgrom como colocado à
parte, separado das outras nações em relação à Judá. Você deve ser ‘santo’,
qědōšîm, assim como eu sou ‘santo’, qdš e eu o tenho separado das outras pessoas
para ser meu, (20,24b-26). O que está claro é a conceituação de “santidade” na
comunidade de Judá como ação dependente de se separar das outras nações em
relação a comunidade social, por exemplo: animais impuros, comidas e práticas
sexuais. Todas as regulamentações, são, então, a evidência da auto proclamação de
escolha de YHWH em relação a Judá. Pois, enquanto outras pessoas e povos
desrespeitaram e desobedeceram YHWH, naquilo previamente ordenado pelo
mesmo, a comunidade não o faria, mas sim se colocaria à parte de todas essas
coisas.127
Logo, os considerados qědōšîm ganham especial
relevância para o trabalho. Por séculos a palavra qědōšîm fora traduzida como
126
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.176.
Jacob Milgrom. Leviticus 1-16. A new translation with introduction and commentary. 1991, p.725726.
127
76
sodomitas, em alusão à possibilidade de o texto de Gêneses 19 fazer menção ao
relacionamento homossexual, algo que, sabe-se hoje, não aconteceu. A menção da
palavra qědōšîm se encontra em IReis.
A palavra qědōšîm deixou de ser traduzida como
sodomitas e passou a ser traduzida como prostitutos cultuais, homens associados com
possíveis práticas sexuais nos templos. Para Theodore W. Jennings Jr. essa tradução
ainda não é de toda satisfatória, pois as práticas sexuais relacionadas à prostituição
cultual referem-se exclusivamente ao templo, mas, na verdade, essas práticas não
eram exclusivas do templo.128
Seguindo Theodore Jennings, David Noel Freedman
escreve que:
Comentários e outros livros apresentam a prostituição
sexual, no Antigo Israel, como fato histórico. Alguns
textos: I Samuel 2,22; 2 Reis 23,7; 2 Crônicas 15,16;
Ezequiel 8,14, supõem que esses cultos aconteciam
para promover fecundidade e fertilidade. Todavia,
apesar de não se poder negar que os qědōšîm
trabalharam no templo, também não se pode
diretamente associá-los a prostituição, podem sim ser
considerados homens envolvidos em práticas sexuais,
mas não com prostituição.129
Sobre a questão, Theodore Jennings Jr. apresenta duas
recentes pesquisas, a primeira é uma citação de D. S. Bailey que supõe que os
qědōšîm eram homossexuais prostitutos, porém o mesmo afirma que não há razão
para compreender que estes tinham envolvimento homossexual nos templos, ao
contrário, ele supõe que os qědōšîm estavam envolvidos com circunstâncias
heterossexuais. A segunda pesquisa é de David Greenberg, ele escreve que os cultos
de fertilidade envolviam práticas sexuais anais, afirmando que as sacerdotisas
evitavam gravidez com sexo anal.130 De qualquer forma, a idéia principal da palavra,
128
Theodore W. Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient
Israel. 2005, p.116.
129
David Noel Freedman. The Anchor Bible Dictionary. Vol 5, 1992.
130
D. S. Bailey. “Homosexuality and the Western Christian Tradition”. London: Longmans, Green,
1955; repro. Hamden, CT: Archon Books, 1975, p.48-53. David F. Greenberg. “The Construction of
77
em sua raiz singular ou plural, faz menção às práticas sexuais de fertilidade ou não, e
às práticas homossexuais, ou não, que claramente feriam a unicidade divina de
YHWH em sua própria terra. Ou seja, os vocábulos qdš e qědōšîm no “Código de
Santidade” intentam para preservação da identidade da comunidade, para que esta
não se envolvesse em práticas cúlticas estrangeiras.
Não apenas isso, as proibições apresentadas no
“Código de Santidade”, especialmente no capítulo 18 depois repetido no capítulo 20,
fazem referência à obediência e desobediência em relação às ordens de YHWH. O
capítulo 18 enfatiza evitar as práticas corruptíveis de Canaã e Egito. Parece haver
grande semelhança entre os consagrados e as práticas cultuais sexuais atribuídas aos
cananeus, práticas essas que supostamente se associavam ao culto de fertilidade.
Essas ordenações culminam no capítulo 26,3-46. Para que Judá fosse uma
comunidade que não profanasse o nome de YHWH, e não se assemelhasse com
outras nações, cananeus e egípcios, ela tinha que cumprir e obedecer as ordenanças
do “Código de Santidade” ou da regra de separação.
Assim, a “santidade”, ou melhor, a distinção de Judá
em relação às outras nações é o centro das prescrições sexuais no “Código de
Santidade”. A obediência às orientações de YHWH, será para a comunidade o
diferencial de separação das nações, por isso Judá deve ser qdš, santo. Os qědōšîm,
eram homens que se associavam ao culto e tinham práticas sexuais nos mesmos.
Eram também funcionários de rituais de fertilidade. Evidentemente sua raiz vem de
seus trabalhos no templo, originalmente chamados de os consagrados, os separados.
Por esse motivo, o capítulo 19 é também abordado no
estudo, mesmo porque esse capítulo enfatiza a “santidade” da comunidade de fé no
pós-exílio, dando especial atenção para a família, segundo Erhard Gerstenberger.131
Não apenas este, mas também Jacob Milgrom vê como ponto chave e central a
preocupação com a família. Seguindo também Rudolf Kilian, quando diz: “o texto
Homosexuality”. 1988, p.94-106. Todos citados por Jennings W. Theodore Jr. Jacob’s Wound:
Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel. 2005, p.116-122.
131
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.245.
78
procura defender a família patriarcal da promiscuidade sexual e que é do tempo das
peregrinações no deserto ou da vida nomádica da estirpe de Israel”.132
O chamado “Código de Santidade”, mencionado
acima, é de fundamental importância por seu caráter de cunho religioso e não
jurídico. Rudolf Kilian diz que estas proibições e regulamentações não querem ser
um código jurídico, o seu escopo é antes uma ordem fundada na religião,
manifestando-se no correto comportamento para com o próximo e para com Deus. O
sentido moral supera o caráter jurídico.133
A terra pertence à esfera de “santidade” em Judá. O
templo é central na teologia de Judá, no pós-exílio. O mesmo comprovava a
“santidade” da terra e deveria ser usado como modelo dessa representação física de
YHWH, o que não acontecia. A escola sacerdotal está preocupada com a separação
da terra pela presença de Deus. Ainda, essa mesma escola de pensamento antigo
estipulava que pecados poluíam a terra, dentre eles está o pecado sexual (Levítico 18
e 20). As pessoas deveriam evitar tal pecado para a terra não vomitá-la da mesma.134
A fórmula de santidade: santos sereis, pois santo eu
sou, YHWH vosso deus (Levítico 19,2; 20,7 e 26), é apresentada ao povo na
perspectiva da nova maneira de viver da comunidade no pós-exílio. Não apenas isso,
mas também trás à baila, por características literárias e de semântica, todo o
significado da palavra qdš, santo. Que é para a comunidade de fé um ideal de vida
sócio-religiosa, o que fazem os povos não poderá ser feito pela comunidade sagrada.
Por isso a fórmula de santidade é relevante para o
presente estudo, pois todas as proibições apresentadas nos capítulos 18-20, sejam
sexuais ou não, são aquilo que não deveria ser praticado pelo povo, em primeiro
lugar, não por seu teor contraditório com a vontade divina, mas pela semelhança que
132
Rudolf Kilian. “O Documento Sacerdotal. Esperança de retorno”. Em: Josef Schreiner (editor).
Palavra e Mensagem. Introdução teológica e crítica aos problemas do Antigo Testamento. 1978,
p.337.
133
Rudolf Kilian. “O Documento Sacerdotal. Esperança de retorno”. Em: Josef Schreiner (editor).
Palavra e Mensagem. Introdução teológica e crítica aos problemas do Antigo Testamento. 1978,
p.339.
134
David P. Wright. “Holiness in Leviticus and Beyond. Differing Perspectives”. Em: Interpretation,
[2000?], p.357.
79
passaria a existir entre Judá e outros grupos sociais, uns que foram lançados para fora
da terra, (Levítico 18,24-25) e outros que ainda permaneciam na terra no período
persa.
3. 2 O capítulo 19 no “Código de Santidade”
O capítulo 19 de Levítico forma, por si só, um recorte
textual único em todo Antigo Testamento. A fórmula eu sou YHWH aparece dezoito
vezes neste capítulo e é dividida entre os capítulos 18-26. Também, essa mesma
fórmula é usada aqui com mais freqüência do que em qualquer outro lugar na bíblia
hebraica. A expressão santos sereis, pois santo eu sou, YHWH vosso deus (Levítico
19,2; 20,7 e 26), tem no texto importância fundamental para compreensão de todo
capítulo. Estar o capítulo 19 no centro, separando os dois capítulo 18 e 20, é que
desperta a atenção para a relevância desta estrutura literária que passará a ser
analisada a seguir.
Tanto Ivo Storniolo como Jacob Milgrom escrevem
que o capítulo 19 ocupa lugar central no “Código de Santidade”. Jacob Milgrom
também afirma que capítulos 18 a 20 são comumente aceitos como o centro de todo
o livro. Ivo Storniolo ainda afirma ser o tema central do capítulo, o comportamento
ético e a relação com o próximo.135
O capítulo 19 começa com a expressão: santos sereis,
pois santo eu sou, YHWH vosso deus (Levítico 19,2). Esta fórmula está presente
apenas nos capítulos 19 e 20, (19,2; 20,7 e 26). O desejo do autor é moldar seus
leitores, baseando-os nos padrões de YHWH, fazendo-os viver a “santidade”. Por
isso, o restante do capítulo tenta apontar o caminho dessa “santidade”. O caminho,
que chama o indivíduo e a comunidade, não poderia ser outro, senão, a observação
de miscelâneas leis (éticas, rituais, sexuais e de pureza).
135
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.175. Também, Ivo Storniolo.
Como ler o livro do Levítico. Formação de um povo santo. 1995, p.51.
80
As
proibições
apresentadas
no
capítulo
são
literariamente estruturadas no plural e singular. Como regra as proibições são
divididas tematicamente pela composição literária da fórmula: eu sou YHWH, e
organizadas em seqüência, proposta de Erhard Gerstenberger. Como exemplo do que
acabara de ser dito tem-se: 1-2, introdução e a fórmula de santidade. Nos versos 3-4,
tem-se a orientação em relação aos pais, aos ídolos e a idolatria e depois a fórmula eu
sou YHWH. 5-8, orientação a respeito dos sacrifícios alimentícios. 9-10, a colheita
(quatro proibições, um mandamento, singular). 11-12, comportamento relacionado
ao vizinho e também a YHWH (quatro proibições, plural). 13-14, comportamento
social (cinco proibições e um mandamento para temer a YHWH, singular). 15-16,
orientações relacionadas a procedimentos legais (cinco proibições, um mandamento,
singular). 17-18, comportamento na comunidade (quatro proibições, dois
mandamentos, singular). 19, depois da orientação em plural guardarás os meus
estatutos, tem-se proibição contra misturas (três proibições, singular). 20-25,
orientações e proibições variadas. 26-28, regras para comportamento religioso (sete
proibições, plural). 29, prostituição (uma proibição, singular). 30, fórmula de
orientação em relação ao sábado (uma orientação, plural). 31, regras para
comportamento religioso (duas proibições, plural). 32, respeito (três mandamentos,
singular). 33-34, comportamento ao estrangeiro na terra (uma proibição, um
mandamento, plural e singular). 35-36, honestidade no comércio (uma proibição, um
mandamento, plural). 37, inicia com a sentença guardarás os meus estatutos e
termina com a fórmula eu sou YHWH.136
A estrutura literária recém apresentada mostra sua
peculiaridade na formação dos singulares e plurais às pessoas endereçadas no texto.
Assim como observado no capítulo 18, abaixo, as proibições apresentadas no
singular representam sua própria categoria. Por exemplo, referem-se ao indivíduo
masculino dentro do clã ou comunidade. Essas proibições são meios nas quais o
grupo pode apresentar coesão e segurança interna no relacionamento do pequeno
grupo.
136
Estrutura de organização literária proposta por Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary.
The Old Testament Library. 1996, p.261.
81
Apesar das proibições no plural concordarem com as
no singular, formando uma estrutura temática uníssona, elas provêm de uma situação
de vida um pouco diferente. O discurso no plural endereça-se à comunidade como
um todo e não ao indivíduo na comunidade familiar. Assim, devido essas
circunstâncias, a comunidade alvo do autor do capítulo 19 é o grupo religioso judaico
do período persa no pós-exílio. Quando observado com maior proximidade, ter-se-á
como motivação do autor, corrigir dificuldades rituais dos membros da congregação,
fazendo do capítulo 19 e das orientações no plural, um verdadeiro catecismo
congregacional.137
Contudo, não se pode subestimar a composição das
fórmulas apresentadas no texto, ou seja, há mais nos versos, plural ou singular, que
se pode imaginar. Para melhor compreensão do texto, apresenta-se agora uma
tentativa de explicação das partes subdivididas anteriormente pela fórmula: eu sou
YHWH.
A primeira estrutura principal é composta dos versos 318. Depois, tem-se uma segunda parte principal formada pelos versos 19-37. Os
versos 3-4 são formados por um discurso direto, no plural, com interesse em toda a
congregação. Os versos apresentam o aspecto inviolável da autoridade divina e dos
pais. Quando se tem um duplo mandamento em relação aos pais e a YHWH, tem-se
também a estrutura congregacional no texto: a comunidade é baseada na família e na
fé em YHWH. Observa-se que a autoridade política não é mencionada.
A próxima sessão 5-8 é quase uma repetição de 7,1618, fazendo referência a ofertas sacrificiais baseadas em alimentos. Com a diferença
de que agora todos os tipos de alimentos são incluídos na orientação sacrificial. Com
destaque para a orientação de que sejam observados todos os alimentos oferecidos a
YHWH.
O próximo bloco formado dos versos 9-10 lembra um
antigo costume em Israel. Quando se colhia nas plantações deixava-se para trás o que
137
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.262-263.
82
sobrava, acreditava-se que o que ficava era oferecido às divindades. No entanto, este
princípio é reinterpretado aqui. Ainda não se pode voltar e pegar o que fica para trás,
porém, agora, o que resta deve ser apanhado pelo pobre ou estrangeiro na terra. De
acordo com a compreensão deste catecismo, as pessoas menos privilegiadas são
ajudadas não pela bondade alheia, mas principalmente pela vontade de YHWH, pois:
eu sou YHWH, seu senhor está presente na parte final do texto. No Antigo Israel, a
obrigação a Deus e a ajuda ao próximo eram unidades inseparáveis.138
A próxima unidade textual é 11-12. Roubar, mentir e
enganar são maldades básicas na comunidade, que destroem a confiança e a mútua
solidariedade de dentro para fora. Todos esses crimes implicam na diminuição da
força da comunidade, inclusive quando se usa erroneamente ou com falsidade o
nome de YHWH.
Os versos 13-14 constituem um pedaço de cinco
proibições e uma orientação para se temer a YHWH. Todas as proibições são
endereçadas ao indivíduo na comunidade de fé, para que o mesmo respeite e saiba
conviver com o companheiro na comunidade. Muitos desses companheiros
necessitam da ajuda do próximo, como é o caso do cego e do surdo. A orientação
final do texto revela que a maior preocupação de YHWH é com o bem estar do
indivíduo na comunidade, aquele que teme a YHWH, obedece a YHWH e assim
respeita o próximo.
A parte do texto que compõe 15-16 é formada por uma
unidade que recapitula fortemente Êxodo 23,1-8. Todas as coisas devem ser feitas
honestamente, com justiça e de acordo com as leis, fazendo com que em todo o
julgamento na comunidade fosse imparcial em relação ao desfavorecido, o que
geralmente acontecia. Já o verso 16 é apresentado num contexto de competição e
julgamento entre os habitantes da comunidade. Quando um competia com o outro no
julgamento se intentava na desvalorização verbal do oponente, o que é agora
proibido.
138
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.267.
83
As relações sociais da comunidade são evidenciadas
nas leis apresentadas neste capítulo. Essas leis ganham maior força com os versos
17-18, nos quais se apresenta um tema bastante conhecido, o amor ao próximo.
Apesar da fórmula do amor aparecer apenas no verso 18, ambos tratam do
relacionamento de membros mais próximos. Erhard Gerstenberger afirma que a
fórmula do amor seria a expressão maior nos relacionamentos, não mais familiares,
mas de responsabilidade individual, que exigem as leis da comunidade de fé.139
Com o verso 19 se inicia a segunda principal sessão do
texto. O verso começa com a expressão guarde meus estatutos, expressão que separa
unidades menores. Depois apresenta a dificuldade existente na mistura de partes,
pressupondo que quando uma se mistura à outra, ambas perdem sua especificidade.
Este tipo de proibição parece estar relacionada com antigos conceitos que foram
trazidos em relação à fé da comunidade em YHWH.
O que segue no texto é uma série de sete proibições
apresentadas no plural. Parece haver grande preocupação do autor em apresentar
perigosos rituais relacionados à morte. Mais uma vez, observa-se que a maior
preocupação existente estava na mistura daquilo que Israel fazia em relação aos seus
mortos, daquilo que era puro ou aceitável para YHWH, com aquilo que outras
nações, consideradas “pagãs”, também faziam.
A próxima sub-unidade, 29-31 é na verdade formada
por um primeiro verso no singular e pelos segundo e terceiro no plural. Marcando
mais de dois temas que não podem ser avaliados conjuntamente. Pois o primeiro
destaca a proibição do pai em relação à desgraça da filha, quando este a faz
prostituir-se. Lembra-se que toda a terra se prostitui na prática de uma só mulher.
Grande perigo existia também na possibilidade de Judá se assemelhar, naquilo que
fazia, em relação às práticas cananitas de rituais que envolviam sexo e prostituição
nos templos. O segundo verso, 30, faz lembrar a convocação à “santificação” e à
obediência aos estatutos de YHWH. E o terceiro, já mencionado no verso 26, proíbe
a consulta a adivinhos e necromantes.
139
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.273.
84
Possivelmente a consulta a esse tipo de gente marcava
o desrespeito aos mais idosos no círculo familiar, que mereciam respeito por sua
sabedoria. Não apenas isso, a fórmula eu sou YWHW no final, relembra a fé da
comunidade apenas em YHWH e em mais nenhum outro tipo de autoridade divina
ou humana. O respeito ao ancião é o tema do verso seguinte, 32.
Os versos 33-34 marcam o tema do estrangeiro na
terra. Aqui eles são tratados como iguais, ou seja, semelhantes aos judaítas. Cabe
saber que tipo de posição eles ocupavam na comunidade de fé. Mais admirável ainda
é a presença da obrigação do amor em relação ao estrangeiro. Lembrando mais uma
vez o verso 18.
O que conclui esta sessão, versos 35-37, relembram
verso 15 de início, quando a justiça social era para ser observa na preservação dos
relacionamentos sociais e individuais da comunidade. A fórmula final do verso 37
marca enfaticamente o fim deste catecismo judaico: guardareis meus estatutos e eu
sou YHWH.
O capítulo 19 é formulado por um conceito que
perpassa a ideologia central da comunidade de fé judaica no período persa. Essa
formulação está na expressão: santos sereis, pois santo eu sou, YHWH vosso deus
(Levítico 19,2). A orientação de toda a congregação em direção a seu Deus é o ponto
central de todo o texto. Evidentemente todas as proibições e orientações postuladas
no capítulo são o caminho para a maior aproximação de YHWH. Possivelmente a
maior evidência para tal “santificação” está na apresentação do nome de YHWH
depois das orientações apresentadas no texto.
“Santidade” é a esfera que resume o poder, a pureza e a
essência única da fé javista. O tema da “santidade” resume a idéia de separação de
Judá das outras nações. Mais importante ainda, Jacob Milgrom escreve, que o
conceito de separação em relação às outras nações passa necessariamente pela prática
85
idolátrica dos países vizinhos.140 A palavra hebraica qdš é usada como tradução para
santo, que também pode significar, afastar-se do uso profano. Santo, aqui significa
separado daquilo que é odiado, como visto anteriormente.
Ainda, quando se lê códigos de leis no Pentateuco e em
todos os outros lugares em que Israel está ligado ao conceito de “santidade”,
observa-se a presença de regulamentações dietéticas e apenas em dois outros
exemplos conceitos ligados a sacerdotes e idolatria. Assim, se Israel deseja se mover
a uma esfera mais sagrada do que a anterior, ele deve observar com maior rigidez
códigos comportamentais. Aqui, mais uma vez, “santidade” significa separação.
Especialmente para idolatria, pois os maiores níveis de imoralidade estavam
envolvidos com cultos às outras divindades.
Portanto, para melhor compreensão dos versos 18,22 e
20,13 não se poderia deixar de analisar o capítulo 19. Talvez, mais importante ainda
tenha sido a análise da fórmula de santidade santos sereis, pois santo eu sou, YHWH
vosso deus. Esta fórmula, assim como o “Código de Santidade”, são para os versos
18,22 e 20,13 de extremo valor, pois serão para os mesmos o fio condutor de toda a
sua compreensão.
3. 3 Os capítulos 18 e 20 em Levítico
3. 3. 1 O capítulo 18
Tratar-se-ão os dois capítulos e os dois versos
separadamente. Observando assim, com detalhes, sua estrutura, estilo literário bem
como as diferenças e semelhanças entre ambos. Como mencionado acima, o capítulo
19 de Levítico é parte integrante do contexto temático dos capítulos, anterior e
posterior. O capítulo 18 é objeto de análise a seguir.
140
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.109.
86
A estrutura do capítulo 18 tem sido analisada por
diferentes padrões e por diferentes autores. Jacob Milgrom divide este capítulo em
apenas 3 partes: 1) exortação (2b-5); 2) proibições (6-23) e 3) exortação (24-30). Já
Erhard Gerstenberger propõe uma divisão diferente. Os versos 1-6 formam um
primeiro recorte temático. Os versos 7-17 formam o próximo recorte de texto,
pedaço no qual inclui-se a expressão que aparece repetidas vezes nudez não
descobrirás
hLe_g:t. al{å tw:ïr>[, , depois, 18-23 é a porção na qual está inserido o
verso 22. E, por fim, os versos 24-30 que constituem a parte final do capítulo.141
As estruturas acima apresentadas não mostram grandes
divergências entre si. Quando Jacob Milgrom diz ser a primeira parte do texto
composta dos versos 2b-5, divergirá de Erhard Gerstenberger ao não mencionar o
verso 1º e a primeira parte do verso 2. Ainda, Jacob Milgrom apresenta uma segunda
parte que se inicia no verso 6 e vai até 23. Já Erhard Gerstenberger inicia esta parte
do texto no verso 7 e subdivide em duas partes os versos seguintes, a primeira de 717 e a segunda de 18-23. Jacob Milgrom chama a atenção para a fórmula eu sou
YHWH seu deus ou eu YHWH sou seu deus, por isso inicia a primeira parte em 2b e a
conclui em 6. O mesmo ainda escreve que a inclusão dessa fórmula nos versos 2, 4 e
5 dá expressão literária à divina fonte de leis. Leis que apresentam o porquê Israel
deveria seguir esse tipo de comando específico. Assim, quando duas fórmulas são
encontradas no final da perícope, elas devem ser compreendidas como elipses, no
final de 4b e 5b.142
Contudo, esta mesma fórmula aparece mais duas vezes,
na parte b do verso 6 e também compõe a última expressão do capítulo, parte final do
verso 30. Propõe-se, então a seguinte divisão:
a) 1-5 com a repetição da fórmula no final do verso 4 e 5, repetição que se apresenta
com o objetivo de enfatizar o verso 5 no final da introdução.
141
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.193. Erhard S. Gerstenberger.
Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.247.
142
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.200.
87
Depois, ter-se-ia uma perícope, parte b) subdividida em dois blocos de proibições
diversas, 6-18 e 19-23. O verso 6, que se apresenta como introdução, faz uso da
fórmula eu sou YHWH, parte do bloco nudez não descobrirás que termina no verso
18. Do verso 19 ao 23 uma série de proibições diversas marcadas por serem
abominação 22 e perversão 23.
Por fim, c) uma conclusão, 24-30 com orientações que terminam com a fórmula eu
sou YHWH seu deus. (Ver tabela abaixo)
Erhard Gerstenberger afirma que o capítulo é formado
principalmente pelos dois blocos de proibições na parte central do capítulo, que vão
dos versos 6-23. As duas partes estão preocupadas com as proibições sexuais que são
endereçadas ao adulto masculino, pessoalmente. Diferente das orientações na
introdução e conclusão (1-5 e 24-30) que orientam um grupo maior de pessoas e não
o indivíduo em si.143
A segunda parte na divisão e talvez a mais importante
para o capítulo, 6-17 é, como mencionado acima, composta da fórmula nudez não
descobrirás
hLe_g:t. al{å tw:ïr>[,.
É importante mencionar que essa expressão faz
menção ao ato de descobrir a região púbica, mas aqui refere-se à atividade sexual.144
Os versos 6-17 podem ser estruturados da seguinte
forma: 1) O verso 6 abre como introdução o que segue: nudez não descobrirás eu sou
YHWH; 2) 7-11 relação familiar mais próxima: pai/mãe (7), madrasta (8), meia irmã,
isto é, filha do seu pai ou filha da sua mãe (9), neta (10), irmã / meia irmã (11); 3)
12-14 os parentes mais próximos de sangue ou não: tia, irmão do seu pai (12), tia
irmã da sua mãe (13), tia, esposa do irmão de seu pai (14); 4) 15-16 parentes por
ocasião do casamento: nora (15), cunhada (16); 17-18 parentes mais próximos de sua
esposa: a filha e a neta de sua esposa (17), irmã de sua esposa (18); 19-23 sem
relação de parentela: sexo com menstruantes (19), mulher de alguém (20), com
143
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.247.
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.245. Essa
mesma expressão é citada por Jacob Milgrom que a traduz como eufemismo de copular. Leviticus. A
Book of Rituals and Ethics. 2004, p.203.
144
88
homem (22), com animal (23), a adoração a Molek está colocada entre essas
proibições (21).
Todas as proibições mencionadas pela fórmula nudez
não descobrirás, versos 7-17, fazem alusão a relação sexual. Essas mesmas
proibições referem-se a um grupo de pessoas consideradas residentes do mesmo
âmbito familiar. O que chama a atenção nesse caso é a vontade protetora do redator
pela “casa do pai”, Erhard Gerstenberger ainda escreve que uma das razões para as
proibições era a preocupação com a honra masculina.145 Jacob Milgrom concorda
com Erhard Gerstenberger ainda que, em relação ao verso 9, especificamente, a
preocupação da proibição reside nos relacionamentos fora do Clã, pois mesmo que
sua meia irmã pertença a outro clã ela ainda é a filha de sua mãe, ou seja, sangue do
seu sangue.146
As proibições deste mesmo capítulo (7-17) se
apresentam como um contra-senso para as regulamentações israelitas mais antigas.
Pois o casamento de Abraão com sua meia irmã Sara (Gênesis 20,12), é proibido
(Levítico 18,11). O casamento de Tamar com seu meio irmão Amom não encontrou
objeção nenhuma para o rei Davi (2Samuel 13,13), mas também é proibido pelo
presente texto bíblico. O casamento de Jacó com Raquel e Lia é também condenado
(Levítico 18,18). A resposta para tal contradição da tradição legal das relações de
sexualidade e casamento de Judá repousa na intenção do redator de apresentar as
reformas necessárias para a preservação da estrutura familiar patriarcal. Para isso era
preciso preservar também a mulher e sua condição dentro da estrutura familiar.147
Observa-se como o redator sacerdotal está preocupado com a revitalização da família
no pós-exílio. Esta preocupação tem relevância essencial para o presente estudo.
145
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.247.
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.204.
147
O Código de Hamurabi considera a filha, a nora, a mãe e a madrasta de um homem adulto como
sendo pessoas tabu, ou seja, não se pode tocá-las, sexualmente falando. As punições estipuladas para
os casos de transgressões são as mais variadas existentes. O pai que abusa de sua filha é expulsado da
cidade. Se um pai tiver relação com sua nora ele é afogado. Se o mesmo pai tiver relações com a nora
antes do filho se casa com ela, ele é multado. Se o filho dorme com sua mão viúva, ambos são
queimados. Se a parceira é sua madrasta, ambos são levados para fora da casa parental. Code of
Hammurabi, sections 154-48; cf. Theophile J. Meek, em Ancient Near Eastern Texts Relating to the
Old Testament, 163-80; e Rykle Borger em Texte aus der Umwelt des Alten Testaments, 1.61f. Citado
por Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.250.
146
89
As proibições que seguem (18-23) não são tão
facilmente definidas como são as do bloco anterior. Apesar de ainda serem
constituídas de proibições sexuais, essas mesmas não seguem um padrão de
definição tão claro assim. A mensagem das proibições é endereçada, mais uma vez,
ao adulto masculino como indivíduo, no entanto, a última constitui exceção, ali a
mensagem tem na mulher seu endereço final, único verso que aparece na terceira
pessoa.
Os versos 18 e 20 apresentam proibições sexuais
relacionadas com as proibições da sessão anterior. O verso 18 proíbe o casamento
com duas irmãs. Erhard Gerstenberger sugere a adição proposital do conceito causar
vexame em relação as intrigas que surgiram nas relações familiares. O verso 20
apresenta uma situação de adultério, anteriormente proibido no decálogo, (Êxodo
20,14). Esta proibição expõe seus culpados com punições severas em todas as
coleções de códigos legais do Antigo Oriente. A passagem paralela, em Levítico
20,10, usa vocabulário diferente e impõe rigorosa punição de pena de morte a ambos,
homem e mulher que tiveram relações sexuais ilegítimas.148
Já os versos 19, 21, 22 e 23 se constituem de variadas
proibições, sexuais ou não, que não se relacionam por estilo nem por vocabulário às
proibições anteriores. O verso 19 proíbe relação sexual com mulher menstruada. Essa
proibição é compreensível nas maiorias das culturas do Antigo Oriente. Todavia, a
proibição de Levítico 18,19 não esclarece a duração nem a conseqüência da
abstinência. Quando o verso é lido em relação ao capítulo 15, o mesmo pode trazer
luz sobre regras de impureza e pureza no meio da comunidade, muito especialmente
cultual. Pois, por mais que o verso 19 não mencione detalhes desta regra o mesmo
faz menção sobre os fluxos do corpo, especialmente da mulher (Levítico 15), e de
todo o ritual que envolve o processo de pureza / impureza da comunidade. Como
sugerido por Erhard Gerstenberger o verso 19 tem valor de regra de pureza cultual,
assim, também pode-se sugerir dos demais versos 21 e 22.
148
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.252.
90
O verso 21 apresenta a fórmula de proibição do
sacrifício infantil, especialmente este oferecido a Molek.149 O que mais chama a
atenção para o trabalho é a possibilidade, segundo Jacob Milgrom, do culto a Molek
ter nuances que marcam também o culto aos ancestrais, tornando-se assim, outra
ameaça à família. A identificação do culto a Molek com o culto a YHWH é o que faz
deste singular em relação aos outros cultos. Também, a presença do culto a Molek
em Canaã, fazendo com que por isso os cananitas fossem expulsos da terra, algo que
poderia acontecer com Judá se fizesse o mesmo. Por fim, é sabido que o culto a
Molek tinha em seus rituais práticas sexuais que poderiam envolver crianças. Por
motivos assim que o redator achou melhor colocar Molek neste capítulo, pois o
mesmo continha proibições que levariam a comunidade novamente ao exílio e à
destruição.150
No capítulo 20 a proibição ganha maior destaque, pois
ocupa os primeiros cinco versos. O culto a Molek constitui-se de dois crimes capitais:
idolatria e assassinato. Ainda, o culto a Molek tinha por prática contaminar o
santuário de YHWH e profanar seu nome, (20,3). Portanto, o culto a Molek (21) se
apresenta imediatamente antes da proibição principal para o presente (22). A
profanação do templo, no culto a Molek, se apresenta como indicação temática para o
que o acompanha, a profanação também templar da relação sexual anal entre
homens. O texto indica a importância da reforma templar na comunidade judaica. O
verso 22 será omitido aqui para sua melhor análise em lugar oportuno.
O verso 23 apresenta proibições sexuais que concluem
o bloco temático. O sexo com animais é proibido neste capítulo em uma única
fórmula, quando o faz para o homem e também para a mulher. Erhard Gerstenberger
escreve que não se sabe nada mais no mundo oriental antigo que faça referência a
149
Não há dúvidas que o sacrifício de crianças era praticado no mundo antigo. Impressionantes são
escavações arqueológicas em colônias fenícias, especialmente Cartago, que quando desenterrados
alguns cemitérios foram encontradas centenas de urnas, datando de antes do século VIII a.C. que
continham ossos de crianças e animais, sem ossos de adultos. Muitos desses ossos foram enterrados
debaixo de estelas com inscrições de dedicação a deuses. Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals
and Ethics. 2004, p.206; citando Stager, L.E., e S.R. Wolff, Child sacrifice at Carthage – Religious
Rite or Population Control? BAR 101:30-51, 1984.
150
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.198.
91
prática sexual com animais. Em 20,15 a prática é condenada com morte, por alguns
considerado ainda mais detestável do que sexo anal entre homens.151
A exortação final (24-30) toma lugar no trabalho. Esta
porção final do texto lida especialmente com o comando de YHWH em relação as
outras nações. Apesar delas não serem mencionadas no texto, pode-se contá-las entre
os Amorreus, Cananeus, Heteus, Ferezeus, Heveus e Jebuseus (Êxodo 34,11; Josué
11,3; Juízes 3,5), mencionadas no verso 27 como os povos da terra, e no 28 como as
nações que estavam lá antes de vós.
Poder-se-ia aceitar como verdadeira a idéia presente no
texto que deseja fazer distinção entre a comunidade de fé judaica e os outros povos,
sendo sua introdução: Canaã e Egito, e conclusão, povos antes de vocês como a
estrutura que molda o princípio fundamental das proibições e regulamentações dos
versos centrais 6-23. Proibições que servem para ilustrar os costumes estrangeiros
proibidos a Judá. Erhard Gerstenberger postula que a incondicional exclusão de
costumes egípcios e cananitas, e a expulsão dos habitantes originais da terra é
baseada, sem dúvida, no ideal do conceito judaico do período persa. A terra “santa”
escolhida por YHWH deve estar completamente pura de estrangeiros, a não ser que
os mesmos estrangeiros se dedicassem no cumprimento das leis judaicas. Apenas as
leis apresentadas por ele devem ser obedecidas. YHWH não permitiria que sua terra
fosse cultualmente contaminada.152
A idéia de separação das nações, da diferenciação de
costumes e leis é que também permeia todo o capítulo 18. É relevante observar que,
segundo Doug Mohrmann, a família real egípcia permitia relação incestuosa entre
seus membros. Ele ainda escreve: “a moldura literária do capítulo 18 é formada para
estabelecer diferença entre a comunidade de Judá e demais povos vizinhos. Essas
fronteiras seriam constituídas de leis que delimitariam a identidade de Judá em
151
152
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.254.
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.256.
92
relação aos de fora”.153 Aqueles que quisessem fazer parte da comunidade não
podiam violar essas fronteiras (18,24-26).
Nota-se então que a fórmula: disse YHWH a Moisés no
verso 1º e eu sou YHWH seu deus no verso 2 enfatizam a singularidade de uma
comunidade específica. Esta fórmula aparece entre os capítulos 18-26 21 vezes, e 22
vezes em todo o livro. Doug Mohrmann escreve que essa moldura, reforça por
repetição a relação entre YHWH e Judá em relação às outras nações.154 De fato a
tabela abaixo mostra com detalhes um pouco mais do exposto.
É o que acontece neste texto. Depois da perda da
independência política, conseqüência da ocupação babilônica, e da deportação de
importantes
grupos
populacionais,
a
comunidade
de
YHWH
passou
a
necessariamente oferecer maior atenção à sua identidade religiosa e política, usando
da tendência universal humana de considerar seu modelo de vida como o único
correto entre todos, avaliando outros comparativamente com o seu. O que poderia
levar a um exagerado muro protetor de regulamentações, costumes e mandamentos,
todos servindo ao propósito duplo de estabilizar a comunidade judaíta enquanto
excluindo e desvalorizando comunidades vizinhas. Esta distinção comparativa em
relação a outros se dá, geralmente, na esfera da moral sexual com insinuações que
outros são pervertidos.155
Por fim, observa-se no capítulo 18, uma estrutura
dividida em três partes principais, introdução (1-5), proibições (6-23) e conclusão
(24-30). A proposta central de todo capítulo é fazer com que haja distinção concreta
entre Judá e outras nações (grupos étnicos rivais). Por isso, tanto na introdução
quanto na conclusão faz-se menção dos erros das outras nações para que Judá não se
misture com elas, mas sim cumpra os mandamentos do núcleo central do capítulo,
especialmente o verso 24: com nenhuma dessas coisas vos contaminareis, porque
com todas essas coisas se contaminaram as nações que eu lanço de diante de vós.
153
Doug C. Mohrmann. “Making Sense of Sex: A Study of Leviticus 18”. Em: Journal for the Study
of the Old Testament. Nº29.1. 2004, p.63.
154
Doug C. Mohrmann. “Making Sense of Sex: A Study of Leviticus 18”. Em: Journal for the Study
of the Old Testament. Nº29.1. 2004, p.63.
155
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.256.
93
Para melhor compreensão do capítulo 18, apresenta-se
a tabela abaixo:
a) Introdução (1-5)
Inicia com a fórmula:
b) Proibições diversas (6- c) Conclusão (24-30)
23)
hv,îmo-
YHWH b1) 6-18: Apresentação da
fórmula: hLe_g:t. al{å tw:ïr>[,
falou a Moisés verso 1º.
nudez não descobrirás.
Depois, no início do verso 2
19-23:
Proibições
e no final do verso 4 aparece b2)
diversas.
a fórmula: `~k,(yhela
{ / hw"ïhy>
ynIaß ] eu sou YHWH, seu Parte central do capítulo.
la, hw"ßhy> rBEïd:y>w:
Inicia com a citação das
nações que habitavam a terra
antes de Judá. Termina com
a fórmula: `~k,(yhela
{ / hw"ïhy>
ynIaß ] eu sou YHWH, seu
deus.
deus. Enfatizando o verso Apresenta as proibições
3: não fareis segundo as entre as duas fórmulas
apresentadas nos versos 3 e
24: não fareis segundo as
Também, no final do verso obras das outras nações.
5 com a fórmula: eu sou
YHWH, enfatizando o
conteúdo do verso 5 os meus
estatutos e os meus juízos
guardareis; cumprindo-os, o
homem viverá por eles.
Também, apresentando o
conteúdo a seguir.
obras das outras nações.
As orientações endereçam o
grupo, de forma
generalizada.
As orientações endereçam o
indivíduo.
As orientações endereçam o
grupo, de forma
generalizada.
O capítulo 18 evidencia a divisão literária do autor e
suas estruturas textuais. Apesar de já mencionadas acima, note como são endereçadas
as orientações: primeiro ao grupo, plural (1-5), depois ao indivíduo, marcando assim
a importância e a responsabilidade de cada um na comunidade de fé, singular (6-23),
e por fim ao grupo, plural (24-30). Também, com a apresentação da fórmula: Eu sou
YHWH, seu deus (2 e 30) o autor marca a delimitação do recorte textual. Observe
também como as proibições são posicionadas na parte central do capítulo que contêm
94
a fórmula, nos versos 3 e 24: não fareis segundo as obras das outras nações. O que é
o conteúdo chave para todo o “Código de Santidade”, e também conteúdo central
para o presente.
3. 3. 2 O capítulo 20
O capítulo 20 é apresentado à comunidade de Judá com
diversas semelhanças em relação ao capítulo 18. Na verdade os dois capítulos
parecem ser cópias um do outro, pois apresentam o mesmo conteúdo temático e
várias vezes a linguagem é semelhante. Então, o que faz do capítulo 20 um capítulo
único?
As diferenças podem ser poucas mas são importantes.
A primeira delas está na fórmula da pena de morte como punição, que no capítulo 18
não aparece nenhuma vez: eles devem morrer, seu sangue sobre eles. Também, a
apresentação da estrutura literária é composta de forma diferente. A proibição do
sacrifício a Molek aparece primeiro no início do texto (20,2-5), depois tem-se outra
proibição (6), e a fórmula de santificação: santos sereis, pois santo eu sou, YHWH
vosso deus como ponte de ligação para a próxima parte (7-8). Depois disso, vê-se
punições e variadas violações sexuais (9-21), que também, como no capítulo 18,
podem ser subdivididas em duas partes (9-16 e 17-21). Exortações diversas
compõem a parte final do capítulo, (22-27). Esta mesma divisão é também
apresentada por Ivo Storniolo com duas diferenças, ele não subdivide os versos 9-21
e começa esse bloco no verso 8.156
Outra diferença muito importante está na apresentação
da fórmula de santidade: santos sereis, pois santo eu sou, YHWH vosso deus nos
versos 7 e 26, expressões ausentes no capítulo 18. Também, a ordem das proibições
neste capítulo, como visto acima, claramente difere das do capítulo 18 porque o
princípio organizador é diferente. O capítulo 18 está organizado por princípio de
156
Ivo Storniolo. Como ler o livro do Levítico. Formação de um povo santo. 1995, p.55.
95
parentesco familiar, enquanto que o capítulo 20 pela severidade da punição: morte:
(9-12; 13; 14) extinção: (17-19), e por fim ausência de filhos: (20-21).157
Ainda, o capítulo 20 também faz referência a outros
temas que se apresentam em demais capítulos, como por exemplo: 20,6 e 27 com
19,26; 20,9 com 19,2; 20,25 com 11,4, 13 e 41; 20,3 com 17,10. Ou seja, parece
haver intencional vontade do autor em recordar ou apresentar novamente o que o
mesmo considera fundamental para a fé e a vida da comunidade em restauração. O
autor do capítulo 20 usa de textos anteriores para apresentar à congregação tópicos
que serão tratados agora, capítulo 20, sob uma nova perspectiva.158
Como outras estruturas em Levítico, o capítulo 20
começa com a fórmula: YHWH falou a Moisés. Isso se dá para que a comunidade
tenha certeza de que quem fala na verdade é o Deus de Israel, Deus dos pais antigos,
fazendo assim alusão à Torá, sem a mediação do sacerdote, pois fala diretamente a
Moisés, ou seja, diretamente ao povo. Juntamente com esta fórmula, é a primeira vez
que aparece a punição por morte, considerada por alguns como sendo um exemplo da
chamada lei “capital” do Antigo Israel. Muito possivelmente essa fórmula está
presente no texto como uma das novas adaptações feitas pelo autor do texto.
O capítulo 20, endereça-se à população masculina
adulta de forma geral. O culto a Molek toma destaque no início do capítulo, para que
toda a nação judaica não polua o santuário de YHWH, sacrificando a Molek, e
manchando o nome de YHWH. Como conseqüência desse ato o pecador deve ser
morto imediatamente, para que em seu atraso a nação não seja prejudicada. Ter uma
punição tão severa para o sacrifício infantil, na terra de Judá, pode aludir para uma
prática freqüentemente usada na época, algo que confundia a especificidade da fé no
único Deus YHWH, em relação ao único povo escolhido, Judá, que acabara de
chegar do exílio, qualquer outro tipo de deus, ou culto, ou adorador é morto por obra
do próprio Deus, 3-5.
157
158
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.255.
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.289.
96
Os versos 7-8 são considerados por muitos como sendo
uma ponte de ligação para a próxima sessão do texto. Estes versos compõem-se da
fórmula de santificação santos sereis, pois santo eu sou, YHWH vosso deus e da
estrutura guardai os meus estatutos.
A fórmula de santidade jamais poderia ser considerada
apenas como estrutura de ligação no texto, pois é, muito possivelmente, a parte mais
importante no contexto maior dos capítulos 18-20. Como observado no capítulo 19,
também o verso 8, marca concretamente sua posição de destaque no texto. É este
verso, bem como o 22, que marcam o início de um novo tema dentro do capítulo,
confirmando ainda mais a importância dessas duas fórmulas mencionadas acima.
Na seqüência têm-se os versos 9-21, divididos em duas
partes: 9-16 e 17-21. Parte do texto é marcada pela pena de morte aos infratores. O
verso 9 diz da intenção do autor de preservar a família, preservando assim as relações
de afinidades entre a mãe e o pai, que eram, no sistema patriarcal, os chefes de
família como afirma Jacob Milgrom. Erhard Gerstenberger ainda escreve que a
temática da maldição do pai ou da mãe já havia sido objeto de reflexão de textos
legais e de sabedoria: Êxodo 21,15 e 17, também Provérbios 30,17; 20,20 e 30,11.
Ambos os pais são revestidos da áurea de proteção e possuem status de autoridade
divina. Em tempos mais antigos esta perseverança pelo respeito aos pais era
provavelmente endereçada à sociedade, mas especificamente à unidade familiar.159
Ambos os autores, mais uma vez evidenciam a relevância da família no contexto de
Levítico, especialmente na comunidade de fé, pois a família se tornou o núcleo da
comunidade.
Na seqüência, o verso 10 aparece como proibição de
adultério, o verso assim, endereça-se apenas à congregação de forma mais ampla,
pois o indivíduo na comunidade, clã ou família não poderia ter relações com
nenhuma mulher, que não fosse a sua própria. Os demais versos que seguem 11-16
acompanham a mesma intenção de proteger a família em sentido mais abrangente
159
Jacob Milgrom. Leviticus. A Book of Rituals and Ethics. 2004, p.255. Erhard S. Gerstenberger.
Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.294-295.
97
com proibições diversas: a mulher do pai (11), a nora (12), um homem (13), a mulher
e sua mãe (14), um homem e uma mulher com animais (15-16).
A segunda parte desta sessão (17-21), é formada por
punições mais brandas, ou seja, a exclusão do grupo ou da família e a maldição de
morrerem sem filhos.
Por fim, a sessão 22-26. Esta parte inicia com a
fórmula que aparece no final do verso 8: guardai, pois, todos os meus estatutos e
todos os meus juízos e cumpri-os, na parte de transição para a segunda parte. Apenas
com o acréscimo da expressão para que vos não vomite a terra para a qual vos levo
para habitardes nela, no final do verso.
A tabela abaixo marca ilustrativamente o capítulo 20 e
como o mesmo fora apresentado há pouco.
1) Introdução (1-8)
Inicia com a fórmula:
hv,îmo-
la, hw"ßhy> rBEïd:y>w:
YHWH
falou a Moisés verso 1º.
a) culto a Molek, (2-5)
b) necromantes e feiticeiros,
(6)
c) fórmula de santificação:
sedes santos e guardai os
meus estatutos.
2) Proibições variadas (9- 3) Conclusão (22-27)
21)
Início com a fórmula:
a) 9-14: morte
guardai os meus estatutos
b) 17-19: extinção
c) 20-21: esterilidade
O verso 26 é o resumo
conclusivo de toda intenção
do autor, principalmente no
“Código de Santidade”: serme-eis santos, porque eu,
YHWH, sou santo e separeivos dos povos, para serdes
meus.
É interessante observar a proibição do culto a Molek no
início do capítulo 20 como tema de destaque no conteúdo do texto. Também a
proibição à consulta a necromantes e feiticeiros em seguida. Mas, é apenas após a
fórmula de santidade que se apresentam as variadas proibições: 9-21. Terminando
com o verso 22 que é perfeitamente semelhante ao verso 8: guardai os meus
98
estatutos. Todavia, o verso 26 é apresentado como resumo conclusivo da intenção do
autor na aplicação do “Código de Santidade”. Ou seja, o autor faz do verso 26 o
ponto central, ainda que o mesmo seja o verso conclusivo do capítulo.
O que chama bastante atenção no texto do capítulo 20
é a semelhança que o mesmo apresenta em relação ao capítulo 18. É possível que o
autor do capítulo 20 tenha usado material conhecido para formá-lo, muito
possivelmente com desejo de reformulá-lo aos interesses da comunidade local. As
penas capitais ganham maior evidência em seu conteúdo proibitivo, chegando a ser
drásticas e apelativas. Elas têm maior caráter cúltico do que legal. Esse tipo de
fórmula, segundo alguns autores, é formada por redatores mais recentes, apesar de
serem formulações adotadas de antigas tradições orientais.160 A família é mais uma
vez evidenciada. A separação de Judá das outras nações, pela fórmula de santidade e
pela composição literária da estrutura do texto, forma o centro do capítulo 20.
Tanta importância à comunidade de fé, baseada na
família ou clã, tem como objetivo sua consolidação e segurança na confissão de fé. A
estrutura literária usada no texto marca, ainda que não visível, uma delimitação
externa, outros povos e comunidades faziam aquilo que era proibido e abominável
(20,23 e 18,24). Os que estavam dentro da comunidade eram o alvo das penas
capitais e esses não podiam se contaminar ou se assemelhar com os de outras nações.
Dos dois capítulos estudados a pouco, pode-se ter que
definitivamente o capítulo 20 é uma releitura do capítulo 18. O autor do vigésimo
capítulo usou o material do capítulo 18 para sua composição. Sendo assim,
evidentemente o capítulo 20 é mais recente que o capítulo 18. Isso se dá pelo mesmo
conteúdo apresentado em ambos os textos com a diferença singular de todas as
adições apresentadas no capítulo 20. Adições essas que vão marcar com precisão a
maior preocupação do autor em relação à comunidade judaica no período persa, a
distinção da comunidade em relação aos demais grupos populacionais que habitavam
a terra. Sob pena de morte a comunidade deveria observar essas regulamentações. O
160
Erhard S. Gerstenberger. Leviticus. A Commentary. The Old Testament Library. 1996, p.304.
99
que segue é um estudo lingüístico-exegético dos versos para melhor averiguação do
sentido do texto.
3. 4 Estudo do texto proposto: Levítico 18,22 e 20,13
Os capítulos 18 e 20 foram abordados no título
anterior. Nuances das semelhanças e diferenças dos dois capítulos foram observados,
porém é da análise exegética crítica dos versos que se extrairá seu conteúdo mais
importante. Serão os dois versos, separadamente analisados a seguir, primeiro o do
capítulo 18 e depois o do capítulo 20.
3. 4. 1 Levítico 18,22
`awhi( hb'Þ[eAT hV'_ai ybeäK.v.mi bK;Þv.ti al{ï rk'êz"-ta,’w>
O primeiro texto é Levítico 18,22, uma proposta de
tradução para o mesmo é: e com homem não deitará ‘como se deita com mulher’
abominável é isto.
O verso apresenta controvérsias que já perduram mais
de dois milênios. As maiores dificuldades na interpretação segundo Saul Olyan
podem ser, quais atos ou ato são proibidos.161 Para uma melhor compreensão do
texto observar-se-á as composições literárias mais importantes que aparecem no
texto.
161
Como o faz Thomas Hanks citando o trabalho de Saul Olyan e mais tarde a crítica de Jacob
Milgrom sobre o mesmo trabalho. Thomas Hanks escreve: “Jacob Milgrom confirma a conclusão de
Saul Olyan que apenas o ato proibido no texto de Levítico 18 e 20 é o ato sexual anal entre dois
homens”. Book Review. Jacob Milgrom. Leviticus 17-22. The Anchor Bible. 2000,
http://www.othersheep.com
100
hV'êai ybeäKv. .mi
A primeira expressão a ser estudada é
hV'êai ybeäKv. m. i
que constituí a primeira grande dificuldade encontrada nos versos. A expressão
aparece apenas duas vezes em toda bíblia hebraica, quais sejam em: 18,22 e 20,13.162
Traduz-se,
comumente,
o
substantivo
comum
masculino plural construto ybeäKv
. m. i por deitar em relação ao ato sexual. No entanto,
a tradução literária do termo é leito, cama, colchão ou até mesmo o ato de deitar-se
podendo ser para descansar ou por motivo de doença.163 Quando o substantivo
feminino comum singular absoluto
hV'êa é adicionado, na seqüência, levanta-se a
possibilidade de tradução do texto por deitar-se de uma mulher ou ter relações
sexuais como uma mulher.164 É relevante mencionar que todos os dicionários
consultados apresentam a tradução dessa expressão com algum tipo de conotação
sexual.
Tem-se até aqui a tradução da expressão por deitar
como uma mulher. Entretanto, o uso do plural
ybeäKv. m. i
se apresenta inexplicável na
passagem, pois não se compreende o deitar como se fosse mulher no plural. Saul
Olyan apresenta a proposta de que dois tipos de sexo estariam presentes no termo,
possivelmente anal e vaginal, sem nenhuma conclusão definida. Ainda, a tradução
encontrada para o termo é interpretativa, como mencionado acima, como se deita
162
Jerome T. Walsh. “Leviticus 18:22 an 20:13: Who is Doing What to Whom?”. Em: Journal of
Biblical Literature. Nº120/2. 2001, p.201.
163
H.W.F. Gesenius. Gesenius’ Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament. 1984, p.517.
Também, Ludwig Koehler, Walter Baumgartner, e Johann Stamm. The Hebrew and Aramaic Lexicon
of the Old Testament. p.446.
164
O Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. 2001. Gesenius, H.W.F. Gesenius’
Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament. 1984, p.517. Também, Ludwig Koehler, Walter
Baumgartner, e Johann Stamm. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. p.446. Luis
Alonso Schökel. Dicionário bíblico hebraico-português. 1997.
101
com mulher ou como uma mulher permanecendo a dúvida sobre a qual tipo de deitar
está proibido no texto de 18,22 e 20,13.165
Para auxiliar na compreensão dos termos, usa-se o
emprego da mesma palavra, agora no singular e em relação ao homem,
rk"ßz" bK;îvm. i
deitar com um homem. Saul M. Olyan escreve:
Essa mesma expressão aparece em Nm. 31,17-18 e 35,
também em Jz. 21,11-12. Em Juízes 21,12, uma garota
virgem é definida como alguém que “não conhece um
homem pelo deitar-se de um homem”. O oposto, uma
garota não virgem, mencionada no verso 11, é uma
mulher que “conhece o deitar-se de um homem. A
mesma expressão aparece em Nm. 31, texto que
evidencia a distinção de uma mulher virgem e outra
não virgem. A mulher não virgem é “qualquer mulher
que conhece um homem em relação ao deitar-se de um
homem”. A mulher virgem é qualquer mulher que “não
conhece o deitar-se de um homem”. O idioma miškab
zakar, literalmente, “o deitar-se com um homem”, deve
significar especificamente penetração vaginal nesses
contextos.166
No entanto, não se pode, tão facilmente, afirmar que as
duas expressões sejam semelhantes ou tenham qualquer relação entre si. Mas, se a
expressão deitar com um homem expressa apenas penetração vaginal em
relacionamento homem-mulher, muito possível e interpretativamente, deitar como se
fosse mulher signifique apenas penetração anal no intercurso sexual de dois homens.
Ou seja, qualquer tipo de relação que em haja penetração física.
Para o presente é importante saber que a proibição dos
versos de Levítico faz referência apenas à relação sexual anal entre dois homens.
Saul Olyan apresenta essa possibilidade de interpretação, também apoiada por Jacob
Milgrom, e ainda escreve que o idioma deitar com significa copular. Por essa razão é
165
Saul M. Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a woman’: On the meaning
and significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History of Sexuality. Nº5, 1994,
p.183-184.
166
Saul M. Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a woman’: On the meaning
and significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History of Sexuality. Nº5, 1994,
p.184.
102
que o sexo anal é proibido em qualquer tipo de relação sexual entre dois homens.167
Veja que todo tipo de relação sexual entre homens, que não seja sexo anal, não é
mencionado nem condenado no texto da bíblia hebraica, nem tão pouco em Levítico.
Sabe-se das diferentes formas de expressão unissexual.
Não se pode falar de homoeroticidade e condená-la por supostamente crer que todos
os homens vivam a prática do sexo anal. Portanto, é importante para a pesquisa
distinguir entre as variadas formas de expressão sexual do corpo humano, seja
masculino ou feminino. Mesmo porque o texto, repete-se, não menciona as práticas
homoeróticas mais modernas, como masturbação, sexo oral, e até mesmo relações
homoafetivas desprovidas de qualquer tipo de contato físico.
Ainda, a expressão deitar como se fosse mulher, usada
em relação a deitar com um homem, faz menção à relação sexual vaginal. Saul Olyan
sugere, nesse caso, que a punição seja endereçada a apenas uma pessoa na relação.168
Não se pode omitir que em 20,13 se apresenta algum tipo de condenação a ambas as
partes na relação, no entanto essa mudança lingüística ocorre apenas na parte final do
verso, pois seu início ainda faz referência à segunda pessoa no singular.
Jacob Milgrom escreve que o uso do plural é sempre
encontrado no contexto de ilícita relação carnal (Gênesis 49,4; Levítico 18,22;
20,13), em contraste com o singular (Números 31,18), para relações lícitas.169 Assim
sendo, o substantivo masculino plural construto dos textos de Levítico faria
referência a relações sexuais ilícitas, punidas pela lei na comunidade judaica. Por
essa razão, todas as relações fora do contexto apresentado no próprio texto não
seriam punidas ou condenadas, como apresentado acima.
Logo, mais uma vez se esclarece, conforme Jacob
Milgrom escreve: “se o deitar como se fosse mulher proíbe relações ilícitas, pode-se
167
Saul M. Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a woman’: On the meaning
and significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History of Sexuality. Nº5, 1994,
p.186.
168
Saul M. Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a woman’: On the meaning
and significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History of Sexuality. Nº5, 1994,
p.186.
169
Jacob Milgrom. Leviticus 17-22. A new translation with introduction and commentary. 2000,
p.1569.
103
sugerir que relações homoeróticas, ou melhor, sexo anal entre homens, é proibido em
mesmo grau que em outras relações heterossexuais na lista dos versos acima, 19 e
ss”. Continua Milgrom: “proibições sexuais estão diretamente relacionadas com a
parentela, pois se a condenação de 20,13 está relacionada com a lista de relações que
a precede, e está, então qualquer outra relação fora do controle pater-families não
seria condenável nem tão pouco punível”.170
É
importante
observar
outra
possibilidade
de
abordagem do termo em estudo. Observe que a expressão deitar como mulher, faz
referência à relação sexual de penetração, ou seja, anal entre dois homens e é
condenada no texto. Assim, o tipo de relação sexual proibida é a anal, o objeto da
condenação então é o penetrado. Pois, abominação apenas o é para o homem,
substantivo masculino singular, que se deitar como se deita uma mulher.
Daniel Boyarin, escrevendo a respeito do conceito de
sexualidade
nas
culturas
clássicas,
propõe
que
desejo
e
prazer
foram
inseparavelmente construídos com conceitos de poder e dominação que estruturavam
toda a sociedade. Comportamento sexual permitido e proibido, ou considerado taboo,
funcionava como questão de status social para o papel masculino.171 De fato, antes
de qualquer preocupação com o conceito de homossexualidade, era a sociedade
preocupada com a posição social masculina na mesma.
O posicionamento de Daniel Boyarin sobre o conceito
de poder e dominação da estrutura social da época faz lembrar da possibilidade de
interpretação do verso com a apresentação do termo imediatamente seguinte ao verso
22. O verso 23 do capítulo 18 chama de confusão (tebbel) a junção sexual entre
homem / mulher e animal. O mesmo autor cita um trabalho antropológico de Mary
Douglas para esclarecer que a mistura de categorias no Antigo Israel era considerada
abominação ou confusão, por isso no capítulo 18 os dois versos aparecem juntos.
Também, Deuteronômio 22,5 apresenta a proibição de uma mulher não usar o que
pertence ao homem e nem o homem o que é de uma mulher, isso é abominação.
170
Jacob Milgrom. Leviticus 17-22. A new translation with introduction and commentary. 2000,
p.1569.
171
Daniel Boyarin. “Are there any Jews in ‘The history of sexuality’?” Em: Journal of the History of
Sexuality. Vol. 5, Nº3. 1995, p.333.
104
Assim, o que está proibido no relacionamento sexual anal homem-homem é a
mistura das categorias sexuais, o homem jamais deveria se submeter à categoria
rebaixada feminizante, degradante,172 o que se verá a seguir. Poderia ser uma
condenação à apenas o parceiro penetrado?
A composição literária traduzida por: deitar-se como
uma mulher, é em primeiro lugar, interpretativa, ou seja, existe a necessidade de se
buscar outro termo semelhante para compreender o atual, que aparece apenas duas
vezes na bíblia hebraica. Depois, se realmente essa expressão for compreendida
como composição literária que faça menção à relação sexual, o faz apenas em
sentido sexual anal, entre dois homens, não mencionando qualquer outro tipo de
relação sexual contemporânea. Ou ainda, qualquer tipo de relação sexual que envolva
camisinha, por preservar ambos os parceiros do contato físico no caso de relação
sexual anal. Mesmo porquê não havia no Israel Antigo qualquer palavra que
descrevesse o relacionamento unissexual.
O que Thomas Hanks propõe, é a condenação ao
penetrador, que violenta o penetrado e que o degrada à condição feminina. Ou seja,
dois erros inconcebíveis para a comunidade que necessitava viver na preservação dos
relacionamentos familiares. Assim, o que o termo oferece é que, sem violência não
há condenação.173 No entanto, Theodore Jennings apresenta outra possibilidade de
leitura quando escreve que o parceiro sexual penetrado é o culpado da punição do
verso 22. Ele diz: “acredito no caráter do desejo erótico que a religião de Israel, pelo
menos em algumas expressões, incita ou solicita. Este é precisamente o desejo do
homem de ser eroticamente o objeto de outro homem. Em outras palavras, esse é o
desejo do passivo pelo ativo”.174 Assim, o verso 22 pode ser endereçado ao homem
que se deita como mulher e não o possuidor.
A mesma expressão deitar como se fosse mulher
traduzida na versão Septuaginta está assim: koi,thn gunaiko,j. A expressão grega
172
Daniel Boyarin. “Are there any Jews in ‘The history of sexuality’?” Em: Journal of the History of
Sexuality. Vol. 5, Nº3. 1995, p.342.
173
Thomas Hanks. “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously – Are there
clobber texts in the bible?” 20/02/2005 http://www.othersheep.com
174
Theodore Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel.
2005, p.211.
105
pode ser comum e literalmente traduzida por lugar de dormir, ou cama ou ainda
cama de um casal ou como lugar de coabitação. No entanto, a tradução que mais se
aproxima do termo é a própria proposta de Joseph Thayer apresentada a seguir: coito
nupcial. Observa-se na expressão traduzida a ausência de qualquer idéia que seja
condenativa ao ato. Mais uma vez o termo faz associação da ação presente no texto
com sexo vaginal, não restando dúvidas que a idéia presente no termo de deitar como
se fosse mulher também faz relação ao sexo de penetração, mas agora, anal.
De acordo com Joseph Thayer,175 koi,thn é a tradução
própria da palavra deitar. Essa mesma palavra não aparece no Novo Testamento o
que torna ainda mais difícil sua correta averiguação de sentido. Porém, parece não
haver dúvidas de que o termo faça qualquer referência ao ato sexual em semelhança
ao de mulher, ou seja, penetrativo. Existe ainda a possibilidade de koi,thn fazer
referência ao ato sexual promíscuo, o que não é certo e não goza de bases literárias.
hb'Þ[eAT
Outra palavra também requer atenção especial: hb'Þ[eAT
(tô´ēbâ). Essa palavra é traduzida por abominação, coisa horrenda. A mesma idéia é
apresentada por Gesenius, H.W.F., quando escreve sobre algo que descreve o ilícito
ou impuro pelo decreto religioso.176 Royce Buehler escreve que existe mais na
palavra do que apenas algo horrendo. O termo carrega uma vívida sugestão de
práticas religiosas detestáveis, como idolatria e rituais de orgias. Também, tem o
sentido daquilo que seja extremamente perigoso, algo ou alguma prática que devesse
permanecer o mais distante possível.177
175
Joseph H. Thayer. Greek-English Lexicon of the New Testament. 1977, p.352.
Ludwig Koehler, Walter Baumgartner, e Johann Stamm. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the
Old Testament. Também o faz o dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. 2001,
acrescentando: “algo detestável”. Gesenius, H.W.F. Gesenius’ Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old
Testament. 1984.
177
Royce Buelher. “A defense Theory: An analysis of the six critical texts used to condemn
homosexuality”. www.whosoever.com.
176
106
Escreve Saul Olyan que a palavra não é clara, e não necessariamente significa a
mesma coisa em todo seu círculo de apresentação. Ela aparece mais em textos de
sabedoria, como Provérbios (21 vezes), também em Deuteronômio (17 vezes) e
Ezequiel (43 vezes). A tradução convencional indica para o que é apenas horrendo
do que fora estabelecido pela entidade espiritual e não para o sentido daquilo que
viola o que é convencionado pela sociedade.178 Portanto, observa-se até aqui, que a
palavra
hb'Þ[eAT
é de característica, ou de princípio religioso. Quando algo ou
qualquer prática é proibida por ser abominação, prevê-se algo em nível
aparentemente religioso.
Observe que fora de Levítico a expressão aparece por
diversas vezes: apenas em Ezequiel ela aparece 43 vezes e em 35 aparições ela faz
referência a idolatria ou ofensas rituais. Está também presente no culto a outras
divindades (Deuteronômio 7,25), assim como sacrifício de crianças a deuses pagãos
(Deuteronômio 12,31), bem como a prática de bruxaria, necromancia e adivinhações
(Deuteronômio 18,9-12). Também, o termo é bastante usado em condenações
sexuais, veja: adultério (Ezequiel 18,6), incesto (Ezequiel 22,10-11) relações com
mulher durante o período menstrual (Ezequiel 18,6 e 22,10).
O termo, que é propriamente religioso, é aqui escrito
por John Boswell, citado por Robert A. J. Gagnon:
A palavra hebraica tô´ēbâ, não necessariamente
significa algo mal, como roubo, mas algo que seja
ritualmente impuro para os judeus, como comer carne
de porco e ter relações com mulheres menstruadas. A
palavra é usada no Antigo Testamento para designar
pecados judaicos que envolvem contaminação ética e
idolátrica. Assim, a condenação levítica contra
comportamento homossexual seria muito mais de
impureza cerimonial do que propriamente obra má.179
178
Saul M. Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a woman’: On the meaning
and significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History of Sexuality. Nº5, 1994,
p.180.
179
Robert A. J. Gagnon. The bible and homosexual practice. Texts and hermeneutics. 2001, p. 117.
107
Se assim o for, o conceito de homossexualidade e sua
proibição ou aceitação está demasiadamente próximo do contexto de religião, culto e
templo. Jacob Milgrom escreve que o termo tem muito mais sentido religioso-moral
do que jurídico-legal, seguido por Rudolf Kilian, e serve para caracterizar o
indesejado e o inaceitável.180 Começam a ficar evidentes as restrições para as
possíveis proibições sexuais de Levítico 18,22 e 20,13.
Se se observa que a abominação está diretamente
ligada ao sentido religioso da palavra, então pode-se compreender que o que aflige a
lei da comunidade judaica do pós-exílio não é a prática do desejo sexual em si, seja
ela homossexual ou não, mas sim as práticas realizadas em semelhança às práticas
sexuais dos povos vizinhos. Como afirma Royce Buehler: “a preocupação central
aqui não é em relação aquilo que os israelitas podem fazer por vontade própria, mas
sim o que podem fazer imitando culturas adjacentes”.181
Começa-se a compreender o contexto no qual se
apresenta a proibição da relação sexual anal entre homens. Pois, se
hb'Þ[eAT proíbe
aquilo que seja impuro em qualquer ritual apresentado à divindade, possivelmente
divindades estrangeiras, torna-se evidente o sentido da proibição em relação a
orientação de todo o “Código de Santidade” pela separação da comunidade judaica
em relação aos demais povos, pois deveriam se apresentar como qdš santos,
colocados à parte, sem misturas.
Thomas Hanks faz relação com a palavra abominação
que aparece em Ezequiel, e com a idéia de sodomia que aparece em textos do Novo
Testamento, para melhor compreender a palavra que aparece em Levítico. Seu
argumento principal é o de que os dois textos são de época comum, assim ler
Ezequiel em contato com a abominação da relação sexual anal entre dois homens de
Levítico, é o mesmo que ler os textos de abominação de Ezequiel que dizem respeito
a opressão e arrogância e os relacionar com a abominação sexual de Levítico como
180
Jacob Milgrom. Leviticus 17-22. A new translation with introduction and commentary. 2000,
p.1570.
181
Royce Buelher. “A defense Theory: An analysis of the six critical texts used to condemn
homosexuality”. www.whosoever.com.
108
opressão de violência sexual. Para melhor explicar seu ponto de argumentação,
Thomas Hanks apresenta a dificuldade de interpretação do conceito de Sodoma, ele
escreve que todas as referências a Sodoma na bíblia hebraica são referências ao
julgamento divino e no Novo Testamento a situação é semelhante, o autor deixa
claro que o pecado de Sodoma é o pecado da violência sexual dos homens da cidade
contra os dois visitantes.
Além de qdš, pode-se, também usar
hb'Þ[eAT
para
enfatizar ao povo e a comunidade sua obrigação de separação em relação aos povos
vizinhos, mesmo se não houvesse, nos povos vizinhos, práticas religiosas e sexuais
que envolvessem algum tipo de violência sexual.
Ainda que não houvesse esse tipo de prática, de abuso
sexual, na sociedade judaica, a própria penetração anal já constituía um ato de
degradação do indivíduo masculino no círculo pater-families. Ou seja, qualquer
homem que se submetesse a esse tipo de prática, o mesmo se submetia à voluntária
degradação da glória masculina, à humilhação e à opressão. Por esta e outras razões,
Thomas Hanks defende a proibição da opressão sexual, da violência sexual nos
textos de Levítico. Argumento amplamente aceito que toma lugar de destaque no
presente estudo.182
No entanto, pode-se ler o sentido de abominação em
relação ao conceito de não-mistura ao que é religioso. Assim, Theodore Jennings
escreve que abominação pode também ser compreendida no sentido de abominação
da mistura de categorias estabelecidas pelo papel sexual atribuído ao homem e à
mulher. Quando um homem se deita como se fosse mulher ele confunde essa
categoria causando confusão e estabelecendo a abominação para YHWH. Por essa
razão que o mesmo autor acredita ser a proibição de Levítico 18,22 dirigida ao
companheiro penetrado na relação. O estudo de Levítico 20,13 vai mostrar que
ambos são condenados, evidentemente atestando um toque redacional na composição
textual, mas também indicando para o crime do abuso sexual do penetrador: “A
proibição é direcionada ao homem que deseja ser penetrado por outro homem, e
182
Thomas Hanks. “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously – Are there
clobber texts in the bible?” 20/02/2005 http://www.othersheep.com
109
somente então o homem ativo na relação se torna culpado por colaborar nesse
desejo”.183 No entanto, o mesmo autor, páginas anteriores, escreve que o que a bíblia
proíbe é simplesmente o uso do sexo para fazer violência à outra pessoa.
Assim, a violência existe e está relacionada com o
ritual religioso e a degradação masculina. A homossexualidade abominável para a
comunidade judaica tem sentido quando é colocada diante de um ato religiosamente
horrendo diante do povo e de seu Deus. Como, por exemplo, o abuso sexual, mas
também, de alguma forma com a mistura das categorias sexuais no papel masculino e
feminino.
3. 4. 2 Levítico 20,13
ybeäK.v.mi ‘rk'z"-ta, bK;Ûv.yI rv,’a] vyaiªw>
`~B'( ~h,îymeD> Wtm'ÞWy tAmï ~h,_ynEv. Wfß[' hb'î[eAT hV'êai
Levítico 20,13 é, em sua essência, repetição de 18,22.
A tradução apresentada para o verso é essa que segue: e homem que deitar com
homem ‘como se deita com mulher’ abominação fazem, os dois devem morrer, são
mortos com seu sangue sobre eles.
As expressões que montam o verso em sua parte
principal são as mesmas já observadas no item anterior, que são
hV'êai ybeäKv. m. i
e
hb'Þ[eAT. No verso 13, porém aparece outra expressão ainda não avaliada, mas de
relevância fundamental, a expressão
Wtm'ÞWy tAmï formada por duas palavras de raiz
semelhante que significam: morrer, apresentando assim, a fórmula de pena de morte
que faz grande diferença para a compreensão do texto.
183
Theodore Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient Israel.
2005, p.208-210.
110
No texto 18,22, diferente de 20,13 a expressão
Wtm'ÞWy
tAmïi nem ao menos é mencionada. No entanto, é uma expressão de penalidade que se
apresenta em lugar de abominação. Ambos os termos mostram grande dificuldade de
compreensão, pois
hV'êai ybeäKv. m. i
não esclarece que tipo de deitar ou de
relacionamento sexual o termo envolve, mas evidentemente ambos são punidos de
morte.
Como exemplo do que acabara de ser escrito, tem-se
Jacob Milgrom que afirma ser a pena de morte apenas punição para moradores da
terra, assim chamada prometida, e que tivessem envolvimento com membros da
família, caracterizando assim um relacionamento incestuoso proibido.184 Já Thomas
Hanks, citando Saul Olyan e Daniel Boyarin, fala da proibição com pena de morte
apenas para o relacionamento sexual violento quando um homem submetia outro
homem ao sexo anal como se fosse mulher. Também, continua Thomas Hanks,
provavelmente a abominação e a pena de morte sejam palavras que tramitam em
contexto de relação sexual desprotegida, abusiva e em rituais religiosos. O que faz da
pena de morte uma punição para qualquer tipo de relação sexual que não a
homossexual moderna.
Outro detalhe pertinente no texto é a forma como se
muda de pessoa no verso, singular homem para plural homem e mulher. O verso
inicia endereçando-se ao homem, mas o mesmo termina endereçado a ambas as
partes. Isto pode sugerir uma releitura do verso 22 na comunidade judaica. Saul
Olyan escreve: “a mudança de número no início do verso para seu final é sem
sentido, isso sugere atividade redacional intencional para incluir ambas as partes no
escopo da lei.”185
184
Jacob Milgrom. Leviticus 17-22. A new translation with introduction and commentary. 2000,
p.1786-1790.
185
Saul M. Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a woman’: On the meaning
and significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History of Sexuality. Nº5. 1994,
p.187.
111
Pode-se sugerir, assim, que o capítulo 20 tenha lido o
capítulo 18 e o moldado para a realidade contextual da comunidade no pós-exílio.
Isso faria sentido se compreendêssemos o capítulo 18 como texto do exílio e não do
pós-exílio como tem sido sugerido por alguns estudiosos. Seja de que forma for, esta
afirmação ainda não ganhou aceitação suficiente.
A palavra grega traduzida na Septuaginta da fórmula
de morte é qanatou,sqwsan de raiz qanato,w. A palavra traduzida parece fazer
referência a também algo detestável para o povo de Israel em relação às outras
comunidades étnicas. As referências a ídolos, cultos pagãos, profanação do santuário
/ templo, desolação causada por guerra, destruição e poluição de lugares sagrados são
pertinentes ao uso da palavra citada acima. Parece que o termo está diretamente
relacionado a algo que seja também no grego relacionado ao religioso.186 Poderia o
termo, também envolver práticas sexuais relacionadas ao templo? Se assim o for,
hb'Þ[eAT seria muito semelhante à aplicação da pena de morte de 20,13 e ambos os
versos condenariam as práticas religiosas, nos templos, de confusão e mistura de
categorias e não mencionariam o homossexualismo de forma alguma.
3. 5 Análise comparativa dos textos de Levítico 18,22 e 20,13
Para uma análise comparativa dos dois capítulos é
importante apresentar as semelhanças e diferenças de ambos os capítulos estudados.
A tabela abaixo auxiliará na compreensão do material literário que forma a moldura
para as proibições dos capítulos 18 e 20, veja:
18, 1-5
18, 24-30
20, 1-8
Falou YHWH a
Falou YHWH
Moisés (1-2)
Moisés (1-2)
Eu sou YHWH seu Eu sou YHWH seu
deus (2,4,5)
deus (30)
186
20, 22-27
a
Eu sou YHWH seu
deus (24) Eu YHWH
Joseph H. Thayer. Greek-English Lexicon of the New Testament. 1977, p.99.
112
Canaã (3)
sou santo (26)
Nações (23)
Nações (24,28)
Habitantes da terra
antes de vocês (25,
27,30)
Egito (3)
Terra (Canaã) para
qual eu vos levo (3)
Não fareis o que eles
fazem. Não siga seus
estatutos (3)
Meus estatutos e
meus
juízos
guardareis (4-5)
Eu vos separo dos
povos (24,26)
Terra para qual eu
vos levo (22)
Não
siga
seus
estatutos (23)
Cf. (28)
Meus estatutos e
meus
juízos
guardareis (26)
Contaminação
(24,25,27,28 e 30);
abominações
(26,27,29 e 30)
Que eu lanço diante
de vós (24)
A terra possa vos
vomitar (25,28)
Habitantes
ou
estrangeiros
que
moram com vocês
(26)
Meus estatutos e
meus
juízos
guardareis (22)
Contaminação (25) e
abominação (25)
Que eu lanço diante
de vós (23)
A terra possa vos
vomitar (22)
Habitantes
ou
estrangeiros
que
moram com vocês
(2)
A tabela acima mostra com detalhes como estavam
formadas as proibições de ambos os capítulos. Na tabela percebe-se que as
proibições estavam dentro de uma moldura que se apresenta semelhante nos dois
capítulos. Mostrando, assim, o destaque das proibições sexuais: no capítulo 18 as
proibições que aparecem do verso 6 ao 23 formam a parte mais central do texto.
Também, se apresenta na tabela a clara diferença de Judá em relação às outras
nações. Como Doug Mohrmann escreve: “como parte do ‘Código de Santidade’, as
leis sexuais são apresentadas no capítulo 18 para definir a vida da comunidade de
Judá em relação aos de fora”.187 No capítulo 20 do verso 1º ao verso de número 8 não
se tem apenas a construção da moldura, mas também proibições que aparecem no
texto, e essas são de grande importância, entre as quais o culto a Molek. Mas,
realmente, do verso 9 ao 21 é que se tem as demais proibições. De novo, a
187
Doug C. Mohrmann. “Making Sense of Sex: A Study of Leviticus 18”. Em: Journal for the Study
of the Old Testament. Nº29.1. 2004, p.57.
113
construção literária dos capítulos 18 e 20 passam por uma moldura similar na forma
de apresentação das proibições sexuais.
Para concluir a análise exegética de Levítico 18,22 e
20,13 pode-se dizer não há nenhuma evidência literária, em ambos os textos, que
proíba a relação unissexual em uma sociedade moderna. Isto se dá porque a tradução
textual aponta para uma expressão apenas interpretativamente traduzida, que aparece
apenas duas vezes em toda a bíblia hebraica. Ou seja, o que se tem hoje como
tradução dos textos é interpretação dos versos 22 e 13 de seus respectivos capítulos.
Assim, hV'êai
anal entre dois homens, e
ybeäKv. m. i
remete apenas para o ato sexual
hb'Þ[eAT para aquilo que seja religioso ou de rito cultual.
Ainda que exista a proibição, ela não se dá em todos os níveis, pois o que se sabe é
que o texto proíbe apenas o sexo anal entre dois homens e nada mais, muito menos a
relação sexual entre mulheres. É evidente, novamente, que a mistura / confusão de
gênero está em destaque quando o autor proíbe o deitar-se como mulher. Porém, a
relação sexual anal condenada no texto remete também a algo violento, de
degradação, de diminuição social de um homem em relação a outro. Essa é a
proposta de Thomas Hanks, já mencionado, sobre a violência desse tipo de atitude.
Também, na análise literária dos capítulos 18-20 que
formam o “Código de Santidade”, observou-se a preocupação do autor na
preservação da identidade da comunidade de fé do pós-exílio. Por isso, todas as
proibições devem ser analisadas e compreendidas dessa forma, qual seja: oferecer
sacrifícios a Molek, descobrir a nudez de membros da família, manter relações
homossexuais são apenas punitivas a partir do momento que outras nações também
as praticam, se assim não o fosse não haveria o menor sentido constituir-se
abominação ou confusão para Judá.
Ainda, qualquer que seja a condenação no texto, ela
deveria passar prioritariamente pelo templo ou pelo ideal religioso. Como se
observou no capítulo anterior o templo era a iniciativa principal de toda a
reconstrução da comunidade de Judá, o mesmo deveria ser reconstruído e altamente
114
preservado, mantendo-o afastado de qualquer contágio ou relação com outros
templos vizinhos. Dito isso, volta-se para a proposta de Thomas Hanks que vê nos
templos locais uma alternativa para a afirmação da violência sexual contra crianças,
garotos e mulheres que seriam explorados pelos sacerdotes. Sabe-se dessa prática
violenta até mesmo nos templos a YHWH, algo que a nova comunidade deveria
evitar.
3. 6 Considerações finais
A proibição de Levítico 18,22 e 20,13 visa a proteção
da família na reconstrução social da nova comunidade de fé do pós-exílio. Qualquer
tipo de mistura que fosse tolerada não poderia corresponder ao ideal de reconstrução
necessário. Qualquer tipo de violência dentro do relacionamento pater-families
também comprometeria o status de restauração exigido. Thomas Hanks tem razão
quando propõe que as proibições homossexuais de Levítico são válidas quando existe
algum tipo de violência em seu ato. Assim, dentro do relacionamento pater-families
e dentro de proibições da parentela, a homossexualidade seria proibida apenas entre
homens consangüíneos que usassem de violência.188 Ou, assim como mencionado
acima, a própria confusão / mistura de gêneros já caracterizava algum tipo de
violência, ou seja, não necessariamente forçá-va-se o parceiro ao sexo anal, mas em
praticá-lo já se ofendia da condição masculina do penetrado.
O culto a Molek, no capítulo 20, tem maior destaque no
conjunto das proibições do que as demais proibições do texto. Isto se dá porque
apenas esse sacrifício proibido é mencionado em cinco versículos. Com isso, tem-se
que se levar em consideração o nível de importância das proibições apresentadas no
texto, por certo que a relação unissexual não seria a mais importante mas não seria
também a menos importante. Contudo, o que se destaca é a nivelação em que o autor
constrói o texto em relação às proibições, ganhando maior destaque o sacrifício a
Molek.
188
Thomas Hanks. “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously – Are there
clobber texts in the bible?” 20/02/2005 http://www.othersheep.com
115
Portanto, tem-se que levar em consideração que os
textos de Levítico 18,22 e 20,13 não se aplicam às proibições do relacionamento
sexual entre duas pessoas do mesmo sexo, nem tem qualquer coisa a dizer do
homoerotismo moderno, protegido, carinhoso e afetivo entre duas mulheres ou dois
homens que porventura não vivem a realidade do “Código de Santidade” em seu
relacionamento.
A figura abaixo ilustra conclusivamente o que se
observou no capítulo terceiro, como resultado da análise exegética dos textos 18,22 e
20,13.
Sexo anal
Proibição religiosa
Proteção da Família
Separação (qdš)
“Código de Santidade”
Auto preservação
Proibição do sexo anal
(Violento)
Homoafetividade
(não mencionada)
Observe na figura acima como todos os conceitos
encontrados no texto: sexo anal violento, proibição religiosa, proteção da família e
ausência da menção da homossexualidade, estão em relação com o “Código de
Santidade” também presente no texto. Veja que não existe a possibilidade de
desvincular os conceitos apresentados do “Código de Santidade”, portanto, se poderá
ler a idéia de homossexualidade no texto se essa não afrontar nenhum dos conceitos
acima. Ou seja, o relacionamento que não afronte a família, que não seja violento e
que não esteja em âmbito religioso, não é proibido nem tão pouco mencionado no
116
texto. Evidentemente sem dizer do contexto sócio-religioso em que se encontra o
“Código de Santidade”, contexto de reconstrução da comunidade de Judá.
O capítulo que segue mostrará, com argumentação
conclusiva, como ler os textos estudados a pouco em relação à nova situação social
de milhões de homossexuais que não necessariamente devem se preocupar com a
distinção de serem ou não serem membros da nova comunidade de Judá, também, do
que fazem ou deixam de fazer em relação a outros grupos sociais.
117
4 A DESCONSTRUÇÃO DA HOMOSSEXUALIDADE EM
LEVÍTICO
Levítico 18,22 e 20,13 não sabiam nada sobre
homossexualidade moderna em relacionamentos
amorosos que permitiam sexo oral, masturbação
mútua, bem como sexo anal com camisinhas. Usar
esses dois versos, ignorando o contexto imediato do
livro em que ocorrem e forçá-los a responder
simplisticamente a perguntas modernas e complexas, é
violar ambos os versos bem como o “Código de
Santidade” onde estão alocados.189
- Thomas Hanks
Antes de qualquer conclusão sobre a desconstrução da
homossexualidade na bíblia hebraica, mais precisamente em Levítico, há que se
mencionar a imensa dificuldade de trabalhar o assunto da sexualidade em textos
bíblicos. Deve-se reconhecer a complexidade da pesquisa por conceitos como
homossexualidade, como já mencionado anteriormente, conceito criado apenas no
século XIX. Essa palavra nunca aparece na bíblia nas línguas originais. Mesmo o
termo sexualidade é um conceito criado no século XVIII, de novo, o hebraico e o
grego bíblico não tem palavras como sexo, sexualidade e muito menos
homossexualidade.190 Assim, a bíblia é silenciosa quanto ao conceito de
homossexualidade como tida hoje, seja como ou com quem for.
189
Thomas Hanks. “Violence to the bible or inspired by the bible?” http://www.othersheep.com
20/02/2005.
190
Thomas Hanks. “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously – Are there
clobber texts in the bible?” Part I: From Sodom the place (Genesis 19) to Sodomy the sin (1000 a.D.).
http://www.othersheep.com 20/02/2005.
118
Por essa razão, o que segue no presente e último
capítulo da dissertação é uma proposta de desconstrução de um conceito formulado a
partir da bíblia hebraica, pressuposições éticas e morais de valores que foram
colocados na bíblia e não extraídos dela. O que se desconstroi é aquilo que fora
criado pelo pensamento de sociedades que não admitiam práticas diferentes das
convencionadas normais. O que se desconstroi é a má interpretação do texto bíblico
que jamais disse qualquer coisa a respeito do relacionamento unissexual, como por
exemplo: Levítico 18,22 e 20,13, mas que fora usado como argumentação na
execução de milhares de pessoas homossexuais.
Esse tipo de má leitura da bíblia não é exclusiva de
poucos textos, pelo contrário, está presente em toda história de interpretação bíblica.
Thomas Hanks, escrevendo sobre esse tipo de leitura da bíblia, acrescenta a idéia que
muitos textos se tornaram textos de opressão à pessoas que não são reconhecidas
como heterossexuais. Em seu artigo: Violence to the Bible? Or inspired by the bible?
Thomas Hanks apresenta o texto da história de Sodoma e Gomorra como exemplo
dessa má interpretação bíblica, (Gênesis 19,1-25).
Historicamente, Gênesis 19,1-25 é o texto mais citado
para justificar a caça e a punição aos homossexuais, porém Thomas Hanks escreve:
Se essa é a melhor justificativa apresentada contra
homossexuais, nenhum deles seria jamais condenado, a
não ser se intentassem na violência sexual contra anjos.
O mal imposto pelo povo da cidade não tinha nada a
ver com relacionamento sexual masculino, mas sim,
com sérias ofensas sexuais da ‘gangue’ de Sodoma
contra os visitantes. Esse seria o pecado do povo: a
falta de hospitalidade de seus moradores. Tanto é que
quando Jesus, no Novo Testamento, cita o evento de
Gênesis, ele cita no contexto de hospitalidade, (Mateus
10,14-15).191
Levítico 18,22 e 20,13 estão na lista dos textos mais
citados contra homossexuais e também um dos mais mal interpretados textos da
bíblia.
191
Thomas Hanks. “Violence to the bible or inspired by the bible?” http://www.othersheep.com
20/02/2005.
119
Vale a pena mencionar, mais uma vez, que a proposta
de leitura de desconstrução do conceito de homossexualidade dos dois versos de
Levítico é uma alternativa de leitura do texto bíblico chamada: leitura defensiva.
Segundo Theodore Jennings Jr., esse tipo de leitura ajuda a tirar textos como o de
Sodoma e Levítico do arsenal de textos usados como proibição homofóbica do
desejo homossexual.192 Assim, comprovar-se-á que Levítico 18,22 e 20,13 não fazem
parte deste arsenal de textos proibitivos da relação homossexual desejada hoje.
Para auxiliar a compreensão do que se acaba de dizer e
da proposta de desconstrução da homossexualidade, apresenta-se o gráfico
juntamente com os subtítulos abaixo:
CódigodeSantidade
PreservaçãoFamiliar
ViolênciaSexual
Homoerotismo
Amor aopróximo
192
Theodore Jennings Jr. Queer commentary and the Hebrew Bible. 2001, p.36.
120
4. 1 Levítico 18,22 e 20,13 na moldura sócio-religiosa do “Código de Santidade”
Os dois versos apresentados, bem como seus dois
capítulos 18 e 20, inclusive o capítulo 19, fazem parte de um bloco temático
chamado “Código de Santidade” (Levítico 17-26). Toda a legislação e todo conceito
formado a partir dos versos analisados aqui não podem ser desvinculados desse bloco
temático. A “santidade” de toda essa legislação religiosa faz referência à proposital
distinção em que a comunidade judaica deveria viver. A palavra qdš bem como a
fórmula de santidade: santos sereis, pois santo eu sou, YHWH vosso deus (Levítico
19,2; 20,7 e 26) guiam o sentido sócio-religioso de todo “Código de Santidade”. Os
versos lembram as ordenanças e orientações do texto sem misturas de práticas
religiosas, sexuais, dietéticas e outras. A comunidade deveria se posicionar à parte
dos demais grupos sociais do pós-exílio, como observado no capítulo anterior.
Estando os textos 18,22 e 20,13 no “Código de
Santidade” não se pode fechar os olhos para duas realidades. A primeira faz
referência ao conceito de separação da comunidade de outros grupos étnicos. Essa
referência gera na compreensão do texto uma grande dificuldade, pois menciona
todas as práticas que não deviam ser observadas, não por serem propriamente
detestáveis a YHWH mas, por serem praticadas por demais povos. O que restaura a
identidade de Judá no pós-exílio é a sua distinção de outros grupos rivais.
Evidentemente essas práticas não eram, como dito acima, detestáveis a YHWH,
foram apenas proibidas por serem, em primeiro lugar, práticas de outros povos.
Portanto, o conceito de mistura ou de impureza em
relação aos outros está presente no texto. Não havendo mistura entre os povos, não
havendo mistura religiosa de forma alguma, não havendo confusão entre YHWH e
outros deuses “pagãos”, teria-se uma outra visão de proibição / possibilidade dentro
do mesmo “Código de Santidade”. No entanto, há outros conceitos, apresentados
neste trabalho, que não poderiam se misturar. Por exemplo, jamais poderia haver
mistura das identidades e categorias masculina e feminina no relacionamento sexual.
Ou seja, o homem não podia ser penetrado, como se faz com mulher, pois seria
abominação. Thomas Hanks afirma, citando Tikva Frymer-Kensky, que o texto
121
condena, em Levítico 18,22 e 20,13, a mistura de fluídos humanos, masculino e
feminino.193
Neste mesmo sentido Saul Olyan vai além, ele escreve
que o verso 22 do capítulo 18 está no bojo das demais proibições que apresentam os
versos 19-23 do mesmo capítulo, pois apresentam a mesma idéia de proibição de
fluídos corporais. Sêmen com sangue de menstruação (18,19); o sêmen de dois
homens diferentes em uma mulher que comete adultério (18,20); sêmen humano e
sêmen animal em uma mulher ou animal fêmea em casos de relação sexual (18,23); e
sêmen humano com fezes humanas em (18,22 e 20,13). Assim, pergunta Saul Olyan
se esses versos poderiam ser mais um caso de condenação de mistura de fluídos
humanos com fezes humanas?194 Vê-se que o conceito de homossexualidade não está
presente no texto.
Seja como for, para a maior parte dos autores do
movimento gay a suposta condenação homossexual dos textos de Levítico não tem
nada a dizer aos homossexuais modernos ou aos homens e mulheres que vivem
relacionamentos homoafetivos, pois todo o problema de mistura ou impureza sexual
seria dirimido com o uso de preservativos no momento do ato sexual anal entre dois
homens. E ainda assim, mesmo sem o uso de preservativos, toda proibição seria nula
se o contexto cultural em que vivem os que praticam sexo anal não observasse como
abominação a mistura desses elementos. A antropóloga Mary Douglas escreve que:
“a idéia de poluição apenas faz sentido em relação a estrutura total dos pensamentos
de limites, margens e linhas internas com relação aos rituais de separação”.195 Ou
seja, sem a existência desses rituais de separação, é inexistente também o confronto
com a abominação em relação a “santidade”. Essa idéia de limites e margens de
separação da comunidade, faz lembrar a idéia de Jacob Milgrom, ele escreve que:
193
Thomas Hanks. “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously – Are there
clobber texts in the bible?” Part II: Safer sex before condoms: Leviticus 18,22 e 20,13.
http://www.othersheep.com 20/02/2005.
194
Saul M. Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a woman:’ On the meaning
and significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History of Sexuality. Nº5. 1997,
p.202.
195
Mary Douglas. “The abominations of Leviticus.” Em: Community, Identity, and Ideology. Social
Science Approaches to the Hebrew Bible. 1996, p.119.
122
“apenas os homens que ainda vivem na terra são responsáveis pela observância das
leis de Levítico. Ou seja, a proibição não é universal”.196
Em segundo lugar, todo o “Código de Santidade”
remete àquilo que seja propriamente religioso. A própria palavra que expressa aquilo
que define a prática sexual anal, entre dois homens, como abominação, é uma
palavra que claramente expressa algo detestável naquilo que seja religiosamente
impuro. Theodore Jennings Jr. escreve que o termo está preocupado com o culto e
suas práticas cultuais, essa palavra ajudaria a compreender a preocupação, com as
práticas cultuais cananitas, pois envolvem em suas práticas questões sexuais. Não se
sabe das práticas cultuais cananitas, mas sabe-se que sexo e culto cananeu estavam
associados.197 De qualquer maneira, também, abominação é uma palavra que faz
referência à confusão na ação da mistura de categorias previamente definidas, sejam
elas religiosas ou não. Sendo assim, tem-se que a mesma apalavra aponta para a
proibição da mistura dos gêneros masculino com feminino e nenhuma proibição que
mencione a homossexualidade.
Com efeito, os dois versos de Levítico, presentes no
“Código de Santidade”, anulam o conceito de homossexualidade e apresentam um
conceito de distinção para aquilo que os separa de outras nações, para aquilo que faz
misturar categorias de gêneros sexuais e para aquilo que pertence ao chamado círculo
moral-religioso da comunidade judaica no pós-exílio. Em absolutamente nada
mencionam os homens que praticam sexo anal com camisinhas ou sem, e muito
menos as mulheres que não praticam penetração entre si, e que também não estão
envolvidas nos círculos religiosos do “Código de Santidade”. Pode-se concluir com
uma citação de Mary Douglas quando escreve que: “‘santidade’ requer que
indivíduos se conformem com a classe à qual eles pertencem. ‘Santidade’ exige que
classes de coisas diferentes não sejam confundidas”.198
196
Jacob Milgrom citado por Thomas Hanks em: “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the
bible seriously – Are there clobber texts in the bible?” http://www.othersheep.com 20/02/2005.
197
Theodore W. Jennings Jr. Jacob’s Wound: Homoerotic Narrative in the Literature of Ancient
Israel. 2005, p.203.
198
Mary Douglas. “The abominations of Leviticus.” Em: Community, Identity, and Ideology. Social
Science Approaches to the Hebrew Bible. 1996, p.130.
123
O gráfico apresentado acima ilustra que todo conceito
de homossexualidade lido em Levítico, deve também ser lido, em primeiro lugar, na
perspectiva do “Código de Santidade” como estrutura fundamental para a leitura dos
versos. Deve-se saber que o texto é silencioso quanto à idéia de homoafetividade e
igualmente silencioso quanto à homossexualidade em categorias modernas. Logo, a
idéia de proibição da relação unissexual não deve ultrapassar essas fronteiras
impostas pelo próprio “Código de Santidade”.
À medida que os círculos vão diminuindo, os mesmos
vão mostrando a dificuldade textual da proibição dos relacionamentos sexuais entre
pessoas do mesmo sexo. Toda e qualquer proibição apenas pode ser lida dentro
desses círculos.
4. 2 A preservação da família no “Código de Santidade”
Outra característica fundamental da comunidade
judaica do pós-exílio é a necessidade de preservação dos princípios morais, legais e
religiosos da família. Tendo em vista a reconstrução da sociedade e a necessidade de
repovoação, a comunidade clamava pela preservação da mesma. É nesse contexto
que aparecem os textos de Levítico.
Uma possibilidade de compreensão dos versos,
favorável à proibição do relacionamento sexual anal entre dois homens, era pelo
controle de natalidade decorrente da prática sexual anal masculina. Ou seja, o que a
comunidade não precisava naquele momento era justamente da falta de herdeiros e
de preferência homens guerreiros. O trabalho de Jacob Milgrom de estudo dos versos
22 e 13 de Levítico conclui que o autor de Levítico tinha uma grande preocupação
com a estagnação de produção de filhos. Citado por Thomas Hanks, Jacob Milgrom
escreve: “particularmente agora, que a preocupação não é a estagnação da natalidade,
124
mas seu crescimento, é que os versos não poderiam ser aceitos em escala
universal”.199
Outra possibilidade de leitura dos textos, que aponta
para a defesa da família, é justamente a preservação da figura masculina. O homem
que se deita com outro homem como se fosse mulher é rebaixado em sua condição
social. Por isso, a figura do homem tinha de permanecer constantemente imaculada
em sua glória masculina.
Saul Olyan faz essa leitura dos versos em seu trabalho:
With a male you shall not lie the lying down of a woman, seguido por Jerome T.
Walsh que escreve o mesmo.200 Ele, Olyan, escreve que ambos os versos se
preocupam com o intercurso sexual entre dois homens e acrescenta dizendo que os
dois versos, primeiramente, endereçam-se àquele que penetra seu companheiro e que
apenas a forma final do verso 13 do capítulo 20 endereça-se a ambos os parceiros.
Nisto reside a idéia da culpa cair sobre aquele que comprometa a masculinidade de
outro homem, rebaixando-o à condição de receptor ou feminina. No final do seu
artigo, Saul Olyan escreve que possivelmente o penetrador era culpado por não se
conformar com sua masculinidade e intentar em uma sexualidade diferente,
misturando as fronteiras, confundindo as ordens estabelecidas.201
Não se pode perder de vista a idéia de Theodore
Jennings, que apresenta o sujeito condenado em 18,22 como sendo o receptivo e
apenas em 20,13 ambos serem condenados. Apesar de dissonância na proposta de
argumentação fica evidente, pelo menos, que ambos concordam em um aspecto, qual
era: de todas as formas não se poderia confundir as ordens de gênero estabelecidas
previamente entre homem e mulher. Portanto, é certo que o “pecado” no texto de
Levítico era a mistura (confusão) de categorias e não a homossexualidade.
199
Thomas Hanks. “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously – Are there
clobber texts in the bible? Part II: Safer sex before condoms: Leviticus 18,22 e 20,13.” Em:
http://www.othersheep.com. 20/02/2005.
200
Jerome T. Walsh. “Leviticus 18,22 e 20,13: Who is doing what to whom?” Em: Journal of Biblical
Literature. 120/2. 2001, p.204. Saul Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a
woman:’ On the meaning and significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History
of Sexuality. Nº5. 1997.
201
Saul Olyan. “‘And with a male you shall not lie the lying down of a woman:’ On the meaning and
significance of Leviticus 18:22 and 20:13”. Em: Journal of the History of Sexuality. Nº5. 1997, p.204.
125
Outro sim, estava estabelecido pela comunidade o
papel masculino e feminino na relação. Escreve Gwen Sayler, que: “um homem não
poderia tomar o lugar da mulher na relação, em outras palavras, ele deveria ficar em
cima e ela em baixo”.202 Portanto, algo ainda bastante comum em dias atuais.
Na leitura que se faz do texto, observando a
preservação da família, não se poderia jamais permitir que a figura masculina nos
círculos familiares fosse degradada à figura feminina. Não apenas lembrando as
“misturas” de gêneros, algo horrendo, mas também sabendo da feminização do
parceiro receptivo é que o sexo anal, para o texto, se torna algo condenativo. Se é
abominação rebaixar o homem em seu status de poder masculino, fica indiferente a
condenação em uma sociedade em que não existe esse tipo de status de poder. A
idéia de força imposta pelo penetrador será abordada adiante.
Por fim, Jacob Milgrom escreve que a proibição é
apenas válida se houver algum tipo de relação familiar entre os que se envolvem na
prática sexual, assim como são proibidas as relações incestuosas nos capítulos que
compõem o “Código de Santidade”.203 Veja que o maior problema está concentrado
de fato na subsistência das relações familiares. Mesmo porque as intrigas internas,
fossem nos clãs ou nas famílias, criavam fissuras entre os mesmos e os prejudicava
depois na procriação, na alimentação e nos negócios. Mais uma vez, se a
preocupação do autor é com a preservação da família, em nada menciona o desejo
homoerótico em sentido contemporâneo.
4. 3 A violência sexual como “abominação”
Uma possibilidade de leitura bastante aceita nos
círculos de interpretação do movimento gay é a idéia que Levítico 18,22 e 20,13
202
Gwen B. Sayler. “Beyond the biblical Impasse: Homosexuality through the lens of theological
anthropology”. Em: Diolog: A journal of theology. Vol.44. Nº1. 2005, p.83.
203
Jacob Milgrom. Leviticus 17-22. A new translation with introduction and commentary. The Anchor
Bible. 2000, p.1786.
126
carregam a proibição da violência sexual entre dois homens. Esse tipo de leitura tem
como maior articulador Thomas Hanks. Também, ganha maior força de
argumentação quando lida juntamente com algumas das pressuposições que foram
apresentadas acima, por exemplo: 1) Os versos fazem parte de um contexto de
proteção familiar, quando a violência abusiva é crime, ou abominação. 2) A
degradação masculina como conseqüência das situações apresentadas pelos versos.
3) Por fim, a possibilidade de leitura de textos em relação com o texto de Sodoma,
violência sexual dos moradores aos visitantes, e os versos de Levítico também como
violência sexual de um homem a outro homem.
Ainda, a palavra abominação como maior indicadora
da relação que o termo faz com níveis cultuais, apresenta uma outra possibilidade de
leitura de violência sexual dos textos de Levítico. Com a ordenação de separação das
práticas religiosas dos povos vizinhos, os judaitas condenavam nos textos, o que não
entendiam corresponder com a vontade de YHWH. Assim, pode-se supor que nos
lugares cananitas ou mesmo nos templos em Judá se praticava violência sexual.
Thomas Hanks, defensor da idéia da violência sexual, escreve: “era degradante,
humilhante e opressivo para um homem se submeter à penetração anal. Para alguém
se voluntariar à penetração anal o mesmo deveria transformar a si mesmo em
lixo”.204 Ora se a prática era tão humilhante assim a evidência de sua existência nos
templos vizinhos a Judá comprovam certo uso de força em sua prática.
Também, a tradução da palavra
hV'êai ybeäK.vm. i
sugere
algum tipo de violência sexual. Como se deita como mulher indica a clara diferença
dos gêneros sexuais a permanecerem distintos. Submeter um homem à condição
feminina, como já exposto acima, era sem dúvida um tipo de violência, muitas vezes,
possivelmente, não optada pelo penetrado. Quando o texto condena apenas o
penetrador no capítulo 18 pode-se sugerir ação violenta da parte de pelo menos um
dos parceiros, o que tira qualquer possibilidade de leitura unissexual homoerótica ou
mesmo homoafetiva dos textos de Levítico 18,22 e 20,13. Esse é o posicionamento
de Thomas Hanks quando defende a idéia da violência sexual em Levítico.
204
Thomas Hanks. “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously – Are there
clobber texts in the bible?” Part II: Safer sex before condoms: Leviticus 18,22 e 20,13.
http://www.othersheep.com 20/02/2005.
127
O mesmo autor ainda escreve:
Recentes investigações mostram que as proibições de
Levítico 18,22 e 20,13 referem-se à penetração anal
masculina desprotegida, citando Saul Olyan e Daniel
Boyarin. No Antigo Oriente Médio penetrar um
homem sexualmente “como se fosse mulher” era uma
forma comum de violentamente humilhar prisioneiros
de guerra e estrangeiros. Entretanto, essa prática pode
ter se tornado comum entre prostitutos que serviam em
cultos pagãos. Provavelmente a palavra tô´ēbâ em cada
um dos versos de Levítico aponte para o sexo
“desprotegido” e ao ato sexual abusivo no contexto de
veneração de ídolos.205
Sendo assim, qualquer prática sexual anal entre dois
homens que seja violenta e abusiva é condenada pelos dois versos de Levítico.
Todavia, apesar de haver grande discussão na matéria da violência, repete-se:
Levítico 18,22 e 20,13 podem ou não falar de violência sexual, mas claramente não
falam de relacionamento unissexual.
Entende-se que a possibilidade de haver violência na
leitura dos textos 18,22 e 20,13, não necessariamente passa pela idéia de força física,
apesar dessa leitura ser possível. O que chama a atenção para a leitura violenta dos
versos é a possibilidade de afronta à condição gloriosa masculina e a degradação
dessa condição ser ofensiva nos círculos religiosos judaicos. Assim, a mistura dos
gêneros, por si só, seria ofensiva à família, à sociedade.
4. 4 A relação unissexual não é proibida
Com a parte final do título anterior pode-se dizer que
Levítico 18,22 e 20,13 não mencionam, em absolutamente nada, relacionamentos
homoeróticos modernos ou homoafetivos. Pois sabe-se que a proibição, em primeiro
205
Thomas Hanks. “Violence to the bible or inspired by the bible?” http://www.othersheep.com
20/02/2005.
128
lugar, sugere apenas sexo anal, em situações específicas, e não se preocupa com
qualquer tipo de relacionamento homoafetivo. Ou seja, não se proíbe masturbação
mútua, não se proíbe o sentimento homossexual sem contatos sexuais, não se proíbe
sexo oral. Assim, fala-se contra a violência sexual, fala-se contra o abuso sexual,
contra a mistura das categorias sexuais bem como sociais, contra a assimilação de
práticas semelhantes aos povos vizinhos, contra a destruição da família, mas nada se
fala contra o relacionamento unissexual masculino ou feminino.
Uma prova de apoio à argumentação de Jacob Milgrom
sobre a proibição ser ou não em escala universal é a total ausência de qualquer
menção do relacionamento homossexual de mulheres. Ou seja, não mencionando o
outro tipo de relacionamento unissexual declaradamente possível, não se menciona
também a proibição do conceito de homossexualidade em maior escala. O texto
proíbe algo que não é, evidentemente, homossexualidade.206
O que fora citado no início por Thomas Hanks faz-se
relevante. Levítico sabia nada sobre gays modernos, não sabia nada sobre
relacionamentos que mostrassem afetividade e amor que pudessem envolver
masturbação mútua, carícias unissexuais, sexo oral e ainda sexo anal com camisinha.
A forma como ele termina faz lembrar de algo interessante, a violência aferida a
pessoas homossexuais agora é direcionada ao texto, por aquelas pessoas que não
levam em consideração o contexto imediato de Levítico. Usar ambos os versos para
condenar homossexuais hoje é violentá-los forçando-os a apresentar respostas
simples a questões complexas de dias atuais.207
Todavia, um autor que se posiciona em oposição à
argumentação de Thomas Hanks e outros biblistas é Robert Gagnon, autor de The
Bible and Homossexual Practice: Texts and Hermeneutics. Robert Gagnon apresenta
como ponto central argumentativo a idéia de complementariedade dos gêneros no
evento da criação em Gênesis. Evidentemente que não apenas Gagnon compartilha
do tipo de pensamento que sugere haver sido criados homem e mulher, um para o
206
Entre outros, Thomas Hanks é um autor que menciona esse tipo de argumentação. “Violence to the
bible or inspired by the bible?” http://www.othersheep.com 20/02/2005.
207
Thomas Hanks. “Violence to the bible or inspired by the bible?” http://www.othersheep.com
20/02/2005.
129
outro. Pensamento que tem marcado os círculos religiosos cristãos contra a
divulgação da liberdade homoafetiva. Os textos estudados no presente (Levítico
18,22 e 20,13) não mencionam essa perspectiva complementativa, porém Robert
Gagnon os cita por isso se torna interessante observar a argumentação de Thomas
Hanks contra o posicionamento de Robert Gangon.
Em primeiro lugar é importante notar, escreve Thomas
Hanks, que até mesmo Robert Gagnon aceita a proposta de Saul Olyan, quando este
último escreve que os textos de Levítico mencionam apenas sexo anal entre dois
homens. Proposta também aceita por Marti Nissinem, Jacob Milgrom e Daniel
Boyarin. Depois uma grande dificuldade encontrada no trabalho de Robert Gagnon é
sua incansável menção à homossexualidade em relação aos textos. Como se os textos
também citassem o relacionamento homossexual feminino.208
Como mencionado acima, a maior crítica de Robert
Gagnon aos textos que supostamente proíbem o relacionamento homoerótico é a
argumentação da discomplementariedade que apresentam os textos de Levítico, algo
que fere a ordem da criação. Robert Gagnon escreve: “o que os homens quiseram
fazer em Sodoma fora justamente romper com o mandato da complementariedade
dos dois sexos”. Em relação aos textos de Levítico, Robert Gagnon escreve: “a
proibição é a confirmação da vontade de Deus contra a junção homem-homem, que
não permitiria a procriação que é devida a complementação dos dois sexos”.209
Para desarticular a argumentação de Robert Gagnon,
Thomas Hanks escreve que se todos levassem a sério, ou seja literalmente, a idéia da
complementariedade de Gênesis 1 e 2, devia-se ainda observar: comida vegetariana,
comportamento de total nudez sem vergonha, ter muitos filhos, falar uma só língua e,
por fim, observar o sábado como dia de descanso. Thomas Hanks continua dizendo
que Robert Gagnon transporta ao texto uma ideologia que não é mencionada, com
nenhuma palavra, no texto. Ainda, que em culturas patriarcais e bélicas mais antigas,
o que de mais comum poderia acontecer era o desejo sexual por homens mais velhos
208
Revisão à obra de Robert A. J. Gagnon. The Bible and Homosexual Practice. Texts and
Hermeneutics. 2001, por Thomas Hanks.
209
Revisão à obra de Robert A. J. Gagnon. The Bible and Homosexual Practice. Texts and
Hermeneutics. 2001, por Thomas Hanks.
130
de classe social mais nobre. Assim, Robert Gagnon não cita nenhuma dessas idéias
patriarcais.210
Algo interessante de se notar a respeito dos textos de
Gênesis 1-3, sobre a criação, é quanto ao seu conteúdo temático. Observa-se,
segundo Gwen Sayler, que os capítulos 1-3 de Gênesis, sobre a criação do homem e
da mulher, aparecem como bênçãos e não como mandamentos, citando o biblista
judeu David Daube. Ele ainda escreve: “usar esses textos para limitar a criatividade
do criador em dar forma à diversidade da criação, é correr o risco de transformar a
maravilha da benção em mandamento que excluí e condena uma parte da diversidade
criada por Deus”.211 Robert Gagnon não faz nenhuma menção a essa diferenciação
de conceitos no livro de Gênesis.
Para terminar a desconstrução do conceito de
homossexualidade implantado erroneamente no texto hebraico, diversos autores
favoráveis ao movimento homossexual criticam a histórica leitura dos textos, mas
chamam a atenção para um detalhe pouco observado em Levítico. Muita ênfase se dá
às proibições, porém pouco se fala de belas mensagens apresentadas no mesmo,
como por exemplo a do amor ao próximo: Levítico 19,18 e 34.
Apesar de Graeme Auld supor que o Pentateuco tenha
um coração ou centro, ele não chega a essa conclusão, porém Thomas Hanks citando
Jacob Milgrom escreve ser o capítulo 19, de Levítico, o centro do Pentateuco.212
Assim, a argumentação de Thomas Hanks é que nem Jesus e nem Paulo usaram ou
citaram os textos de Levítico 18,22 e 20,13 no Novo Testamento, ambos preferiram a
idéia e os textos que falavam do amor ao próximo.
210
Revisão à obra de Robert A. J. Gagnon. The Bible and Homosexual Practice. Texts and
Hermeneutics. 2001, por Thomas Hanks.
211
Gwen B. Sayler. “Beyond the biblical Impasse: Homosexuality through the lens of theological
anthropology”. Em: Diolog: A journal of theology. Vol.44. Nº1. 2005, p.86. Citando também: David
Daube. The duty of procreation. Edinburgh: University Press, 1968, p.84.
212
Graeme Auld. “Leviticus at the heart of the Pentateuch?” Em: Reading Leviticus. p.51. Thomas
Hanks cita Jacob Milgrom em: “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously –
Are there clobber texts in the bible?” Part II: Safer sex before condoms: Leviticus 18,22 e 20,13.
http://www.othersheep.com 20/02/2005.
131
Mais uma vez, a argumentação apresentada é apenas
interpretativa, porém serve como ilustração do mesmo que se fez contra os
homossexuais em Levítico 18,22 e 20,13. Se o objetivo do trabalho era desconstruir a
idéia de homossexualidade imposta no texto através dos séculos, deve-se construir
outra sobreposta ao mesmo, e essa nova construção deverá passar pelo “Código de
Santidade” e assim pelo capítulo 19. Thomas Hanks apresenta um vocabulário que
pertence ao amor ao próximo e ao imigrante, deseja evitar toda opressão e manifestar
o amor solidário aos débeis e pobres oprimidos. Ele escreve ainda, segundo o
“Código de Santidade”, que o amor ao próximo é uma dimensão e manifestação da
“santidade”, essa mesma “santidade” que existe em Levítico como tema central.213
Mesmo que não se apresente nenhuma leitura de amor
ao próximo nos textos de Levítico, fica evidente que também se se apresenta
qualquer leitura de caça ou proibição a pessoas homossexuais de qualquer gênero, ela
está equivocada. O texto claramente não menciona, nem mostra qualquer tipo de
relação sexual que se possa associá-la com homossexualidade. Por isso, repete-se,
Levítico 18,22 e 20,13 não diz nada sobre o relacionamento unissexual, nada sobre
homoeroticidade e nada sobre homoafetividade. Para que qualquer leitura do texto
fosse associada a homossexualidade ela teria que passar de dentro para fora de todos
os conceitos apresentados na ilustração acima, algo que não pode acontecer em
Levítico 18,22 e 20,13.
Portanto, apenas se não fosse evidente o “Código de
Santidade” presente no livro, a preservação da família como necessária pela
comunidade pós-exílica, a violência sexual apresentada como abominação cúltica e a
leitura do amor ao próximo como tema de todo o livro, especialmente nos capítulos
18 a 20, poderia se ler qualquer tipo de relacionamento homossexual proibitivo no
texto. Fica, assim, evidente e concluído, hermeneuticamente, que não há nenhuma
possibilidade de associação de Levítico 18,22 e 20,13 com o conceito de
homossexualidade e usá-los para incriminar religiosamente pessoas que vivem
relacionamentos unissexuais é um erro gravíssimo.
213
Thomas Hanks. “Clobbering back with the Clobber texts: Taking the bible seriously – Are there
clobber texts in the bible?” Part II: Safer sex before condoms: Leviticus 18,22 e 20,13.
http://www.othersheep.com 20/02/2005.
132
CONCLUSÃO
O que se tem como conclusão desse trabalho é o
resultado de minuciosa pesquisa histórica da questão da sexualidade em tempos que
remontam até, aproximadamente, o século X a.C. Pesquisa histórica que evolveu os
povos vizinhos a Israel e Judá e outros não tão próximos assim. O que mais chamou
a atenção no trabalho de conhecimento histórico da questão foi a forma de lidar com
a homossexualidade até o presente momento. Ou seja, apresentou-se os meandros da
questão no passado, seu desenvolvimento sócio-cultural e suas descobertas e
perspectivas para o presente.
A
pesquisa
histórica
revelou
sua
importância,
especialmente, quando mostrou o mau uso de textos bíblicos na interpretação da
questão da homossexualidade bem como suas inescrupulosas conseqüências. Desse
momento no trabalho, conclui-se, em primeiro lugar, que definitivamente houve uso
de textos bíblicos para justificar a opressão de pessoas consideradas homossexuais e
queers em sua época e ainda hoje.
Em segundo lugar, fora de especial relevância a
pesquisa no primeiro capítulo para mostrar o momento em que se encontram as
pesquisas da questão em lugares geograficamente importantes como a América
Latina e os Estados Unidos da América do Norte. Ainda existe a opressão, ainda
existe a violência de séculos atrás. Porém, são nesses lugares que insiste em aparecer
uma voz no deserto, principalmente na América Latina, talvez não tão solitária
assim, mas de minoria com certeza, para esclarecer a falta de compreensão e
tolerância devido a consensual leitura de textos como Gênesis 19, Levítico 18 e 20,
133
Romanos 1 e etc. O trabalho é resposta ao clamor dessa minoria por justiça, pelo
menos textual.
Para que o presente trabalho se constituísse de uma
pesquisa genuinamente provocante para a discussão da questão da homoafetividade
hoje, tem-se o primeiro capítulo como uma introdução, geral, indispensável para que
se compreenda por quais caminhos passaram, não apenas pessoas homossexuais, mas
também, a discussão da presente questão.
O segundo capítulo do trabalho enfocou a localização
histórica dos textos estudados de Levítico 18,22 e 20,13. Para compreensão do texto
era de fundamental importância que se esclarecesse o momento e o lugar em que os
textos foram lidos. Era importante esclarecer os destinatários da mensagem de
Levítico.
A pesquisa mostrou, não tão surpreendentemente
assim, que os textos são parte integrante da comunidade pós-exílica daqueles no sul
que foram levados cativos à Babilônia. Em seu retorno, algumas décadas depois,
desejaram reconstruir Judá com bases sócio-teológicas de separação em relação às
outras nações, por isso o “Código de Santidade” é apresentado à comunidade para
que o mesmo regule a vida social e religiosa dos que retornam do exílio.
Assim, tem-se como conclusão do capítulo segundo
que a mensagem, antes de tudo, passa primeiro pela comunidade em reconstrução, e
o conceito de templo como centro teológico dessa manifestação da comunidade
ganha destaque especial. Como o templo era a clara visualização da presença de
YHWH no meio do povo, o mesmo deveria representar a expressão máxima de
“santidade” e pureza. O que não acontecia, tendo em vista a mensagem de Levítico.
Os templos dos deuses rivais a YHWH, haviam se tornado locais de rituais sexuais
que envolviam a prática unissexual. Possivelmente os templos dedicados a YHWH
também começaram a desenvolver esse tipo de prática cultual, por isso é que as
proibições aparecem no texto de Levítico. Tudo indica que essas práticas envolviam
situações de violência também. Todo um capítulo fora destacado no processo
134
exegético de leitura do texto para que esclarecesse com propriedade o momento
vivencial de Levítico 18,22 e 20,13.
O terceiro capítulo da dissertação, pesquisa exegética
dos textos de Levítico, é o centro do trabalho. O capítulo marca a parte estrutural da
dissertação por apresentar em seu resultado o que dizem os versos. Levítico 18,22,
aparentemente, condena o homem penetrado na relação sexual anal entre dois
homens, apesar de haver a possibilidade de leitura da violência sexual acusando o
penetrador, seguindo Thomas Hanks. Levítico 20,13, de redação posterior, condena,
em sua parte final ambos na relação, com pena de morte. Lembrando que apenas o
ato sexual anal, ainda que interpretativo e restrito, é condenado no texto.
Contudo, a condenação dos versos é apresentada
apenas aos atos sexuais que apresentem em sua prática algum tipo de violência,
como já mencionado. Por isso, toda expressão, traduzida por: como se deita como
mulher, é compreendido como o status masculino rebaixado ao de mulher. A
violência sexual não está apenas na vontade imposta por quem realiza a ação, mas
também na violência do status masculino rebaixado.
Algumas possibilidades de leitura dos textos foram
levantadas, apesar de serem apenas interpretativas trazem luz à compreensão textual.
Porém, de tudo que se pode observar é importante destacar que em nenhum momento
os textos proíbem qualquer tipo de relacionamento homossexual. Os versos proíbem
sim a violência da degradação masculina no ato unissexual mas, não o
relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo. Cita-se, mais uma vez, que
nenhuma menção ao relacionamento lésbico é feita nos textos.
A pesquisa exegética dos versos mostrou que
definitivamente Levítico é silencioso quanto a questão da homossexualidade hoje,
pois não havia nem mesmo uma só palavra em Israel que traduzisse hoje o que se
entende por relacionamento unissexual. O que seguiu no trabalho foi, então, uma
minuciosa pesquisa hermenêutica dos versos para se entender a homossexualidade
hoje.
135
Por fim, o último capítulo tratou de analisar a devida
releitura que se pretende do texto, definitivamente abrindo mão de qualquer tentativa
de se oprimir o relacionamento homossexual, pois nem de longe os textos narram
esse tipo de prática sexual, pretendidamente condenada nos textos.
No trabalho da desconstrução do conceito de
homossexualidade de Levítico 18,22 e 20,13, pode-se concluir que os versos proíbem
algo que não é o relacionamento homoafetivo e nem tão pouco o relacionamento
homoerótico moderno. A ilustração apresentada no último capítulo revela o nível de
proibição a que os versos referem-se. Portanto, está proibido o relacionamento
homossexual apenas com sexo anal, qualquer tipo de relação que não contenha sexo
anal, como a homoafetividade, não é mencionada nos versos. Também, está proibido
qualquer tipo de relacionamento que seja violento. No Antigo Oriente era violento o
sexo anal por si só, independente da força aplicada ao ato, como em tempos atuais
esse tipo de violência não se aplica, então, até mesmo o sexo anal, sem essa
violência, ou protegido com camisinha, é permitido. Levando em consideração a
preservação da família pela preservação do status masculino, isso também não se
aplica hoje, pois não existe nenhum tipo de degradação masculina no ato sexual anal
entre homens. Também, não existe a necessidade de procriação como existia
anteriormente, muito pelo contrário.
Por fim, o “Código de Santidade”. Essa série de leis
faz parte de um momento específico na história de Judá. Momento de necessária
distinção em relação às outras nações, assim qualquer tipo de relacionamento
homossexual que não viva a mesma necessidade de distinção em relação às outras
nações, é permitida. Uma leitura de condenação dos homossexuais, usando esses
versos, marca um dos maiores enganos da igreja, dos círculos religiosos e da
academia bíblica na história.
Evidentemente que o trabalho deixa para futuras
análises questões de especial importância como a questão da crítica textual de
comparação entre os capítulos 18 e 20. Também, sobre os versos, necessita-se de
melhor averiguar o significado da expressão como se deita como mulher, se é que a
expressão apresenta outro significado além do exposto. Por último, é importante
136
saber quem é condenado em Levítico 18,22 se o penetrador ou o penetrado, pois em
20,13 ambos são punidos com morte.
Se esses textos bíblicos não proíbem o relacionamento
homoerótico e nem ao menos dizem uma palavra de condenação ao mesmo, há que
se pesquisar se outros textos bíblicos não apresentam qualquer tipo desse
relacionamento em suas narrativas. Ou seja, se não há proibição, muito
possivelmente haja aprovação ao mesmo. Esse tipo de leitura poderia ser uma leitura
modelo dos movimentos homossexuais atuais: leitura queer do texto bíblico.
137
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