ensaios arturianos - Histórias Interativas

Transcrição

ensaios arturianos - Histórias Interativas
ENSAIOS ARTURIANOS
Apresentados como parte do curso LET 2383, Formação e Transformação da Narrativa,
tendo como tópico: A Matéria da Bretanha nos Séculos XII e XIII
Coordenadora: Eliana Lúcia M. Yunes Garcia
Docente: Antonio L. Furtado
Período: 2003.1
Capa de Eliane Bettocchi
Departamento de Letras
Pontifícia Universidade Católica do R. J.
2
Sumário
_
O Enigma da Mulher - 3
Eliana Yunes
_
Idade Mística: A matéria da Bretanha no contexto do RPG - 5
Carlos E. Klimick Pereira e Eliane Bettocchi
_
Amor e Erotismo na Idade Média: Uma perspectiva literária a partir das obras
Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal - 17
Cleide Maria de Oliveira
_
As Vozes Femininas em Perceval - 30
Cristina Almeida
_
Adaptações Cinematográficas Arturianas: Excalibur, Lancelot e As Brumas de
Avalon - 45
Irene Bosisio Quental
_
Da Cavalaria à Ficção Científica: O rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda
em quadrinhos - 54
Mario Feijó Borges Monteiro
_
Leir e Rei Lear - 67
Renata Christovão Bottino
_
Ritmo e Descrição: A marca anônima do estilo nas crônicas arturianas - 76
Roberto Dutra Junior
_
Do Motivo da Falsa Noiva ao Tema da Inveja: Um percurso de leitura comparada
de três contos de Grimm ao episódio de “A Falsa Genevra” - 83
Sylvia Maria Trusen
_
O Eterno Retorno do Cavaleiro ao Reino do Caos: Apontamentos quanto à leitura
das intertextualidades nas ficções arturianas - 106
Alex Jesus de Souza
_
Caradoc do Braço Inchado e o Desafio do Auto-conhecimento - 112
Terezinha de Fátima Sanches Bussad
_
A Última Nau para Avalon æ D. Sebastião: A história, o mito, a lenda - 120
Claudio de Sá Capuano
3
O Enigma da Mulher
Eliana Yunes
Tradução e adaptação livre elaborada em julho de 1995.1
Voltando de uma das disputas em que estava envolvido com seus cavaleiros da Távola
Redonda, Arthur penetrou um bosque junto ao acampamento, distante ainda do reino de
Camelot. Vagava pensativo, com o coração em tumulto, recordando a rainha Guenevire,
quando foi surpreendido por um guerreiro, de armadura e cavalo negros.
Ali desamparado, ã mercê da morte, Arthur propôs-lhe um desafio em campo aberto,
pois seria indigno para qualquer cavaleiro tirar a vida ao rei desarmado. Conhecendo as
lendas em torno da espada de Escalibur, o inimigo vacilou por um instante para em seguida
decidir por outra arena de luta: ao final de um ano, Arthur deveria voltar ao bosque, neste
mesmo lugar, com a resposta para o seguinte enigma: O que mais deseja uma mulher de um
homem? Caso não tivesse a solução correta, Arthur morreria.
A caminhada para Camelot não aliviou o rei, que afinal se viu obrigado a partilhar suas
angústias, com seu cavaleiro de armas e companheiro de lutas Gawen. Acertaram então
percorrer o reino consultando homens de todas as classes e origens, guerreiros, aldeões,
lordes e príncipes que especulavam com as carências e fragilidades femininas. Mas Arthur
intuía, do fundo de seu coração, que não havia encontrado a resposta justa.
Uma tarde, voltando ao mesmo sítio em que o enigma lhe fora proposto, surpreendeu-se
ao encontrar uma mulher disforme como uma bruxa que lhe disse conhecer o motivo de seu
desassossego. Comprometia-se a ajudá-lo contanto que Arthur lhe desse sua palavra de rei
que a faria casar-se com seu sobrinho amado. Retornando desalentado ao palácio ouviu de
Gawen que mil vezes arriscara sua vida por Arthur e agora, de bom grado, se casaria com
uma bruxa, se isto pusesse a salvo o Senhor da Távola Redonda. Arthur voltou ao bosque e
selou o pacto com a velha mulher que, exigindo-lhe segredo absoluto, entregou-lhe a chave
do enigma.
Poucos meses mais tarde foi a vez de o cavaleiro negro alcançar Arthur nas sombras do
bosque e cobrar-lhe a resposta. O rei desfiou-lhe uma após a outra as que colhera pelo
reino, na esperança de livrar o sobrinho de tão cruel destino. Percebendo que o tempo se
escoava, ofereceu-lhe a solução que a bruxa lhe segredara: viu-se, então, liberto e vitorioso
naquele combate estranho. Agora restava-lhe cumprir com sua palavra e realizar as bodas
de Gawen com a mulher desfigurada.
As paredes de pedra do castelo engalanaram-se com guirlandas de flores do campo
suspensas em cordões, os veludos foram escovados, as tochas e arandelas acenderam-se.
Javalis e faisões foram caçados para o banquete e os tapetes desenrolados para aquecer os
frios corredores. Já se fazia ouvir das torres aos calabouços a música dos alaúdes e flautas.
Quando o príncipe adentrou os salões trazendo pela mão a mulher em rugas e andrajos,
recobertos apenas por uma capa de seda esplendorosa, presente do noivo, toda a corte de
Camelot recuou. O quadro era patético e ninguém atinaria com a razão pela qual Gawen
fizera tal escolha abjeta. A alegria da festa esvaiu-se e silenciou-se o brinde nas taças de
1
Reproduzida sem permissão da autora. A narrativa está no poema The Weddynge of Sir Gawen and Dame Ragnell . Ainda
mais conhecida é a versão em prosa do "relato da comadre de Bath", que figura em The Canterbury Tales de Chaucer.
4
estanho. Um clima fúnebre desceu sobre o castelo e a mulher, constrangida pelos olhares,
procurava arrastar o esposo para os aposentos de núpcias.
Recolhidos sozinhos a sua câmara, o príncipe se viu intimado por sua honra a cumprir
seus deveres de esposo. De costas para a mulher, entre resoluto e perplexo, despojou-se das
roupas e voltou-se: diante dele estava a mais linda jovem que seus olhos jamais tinham
visto.
Revelou ela com voz doce e ares de cisne que era uma princesa enfeitiçada cujo encanto
se quebrara – em parte – no momento em que ele decidira, de fato, fazê-la sua mulher
apesar da repugnância. Mas o poderoso feitiço ainda o obrigaria a uma dura escolha:
poderia tê-la à noite como uma princesa e bruxa durante o dia, ou ao contrário, vê-la no
quarto como velha e exibi-la à luz como uma jovem mulher.
Gawen, tomado pela surpresa, mal conseguia pensar; os sentimentos em turbilhão não
lhe permitiam optar entre o prazer de tê-la à noite entre os braços com sua pela perfumada
ou livrá-la do repúdio de toda Camelot que durante o dia lhe perseguiria. Caindo de joelhos
aos pés da mulher, com o coração aturdido e os lábios trêmulos, lhe suplicou que decidisse
por ele.
A jovem sorrindo, cobriu-o de beijos, pois ele acabara de desvendar todo o enigma,
rompendo o feitiço por completo. E como ele não parecia entender, sussurrou-lhe:
- O que mais pode uma mulher desejar de um homem, senão ser a senhora dos seuas
desejos?
5
Idade Mística: A Matéria da Bretanha no Contexto do RPG
Carlos E. Klimick Pereira
Eliane Bettocchi
Introdução
Este trabalho apresenta o projeto da estrutura textual da ambientação Idade Mística
(cronologicamente situado entre a 1a. Cruzada, 1095 e a Cruzada Albigense, 1209) para o
jogo Incorporais. Este jogo é um projeto de pesquisa cujo objetivo geral é desenvolver
(projetar e testar) um RPG (role-playing game) para experimentar suas características
socializante, interativa, narrativa e hipermidiática e sua conseqüente conceituação como
obra aberta (Eco, 2001), estimulando os participantes a vivenciarem uma situação e
produzirem material sobre esta situação em qualquer linguagem (escrita, verbal, visual,
musical, corporal etc.) e qualquer suporte (gráfico, eletrônico, tridimensional etc.).
1. RPG1
Role Playing Game é uma forma de narrativa que se diferencia das narrativas lineares
tradicionais, tendo surgido nos EUA em 1974 a partir dos jogos de guerra que simulavam
batalhas em tabuleiros. David Arneson e Gary Gygax, fãs do universo fantástico concebido
por J.R.R. Tolkien em O Senhor dos Anéis, criaram um cenário similar para as primeiras
aventuras. Inicialmente, as histórias eram muito simples: invadir as catacumbas, matar os
monstros e pegar o tesouro. 2 A terminologia dessa primeira fase do RPG contaminou-se
com termos oriundos dos Jogos de Guerra: "Mestre do Jogo", "Aventura", "Campanha".
Quase todos os cenários criados eram de "fantasia medieval".3 Em sua fase atual, há uma
grande diversidade de cenários (fantasia, terror, histórico, aventura etc), e o RPG passou a
ser aplicado para outros fins além do entretenimento. 4 Surgiram outros termos como
"Narrador", "História" e "Crônica". Mas, como funciona o RPG?
No RPG, os praticantes criam suas personagens que participam de histórias parcialmente
contadas por um Narrador (também chamado de Mestre). No livro de RPG se encontra
parcialmente descrita uma ambientação, na qual se passarão as histórias.5 As personagens
criadas pelos “jogadores” e pelo Narrador serão coerentes com o cenário: brasileiros e
índios num cenário de Brasil colonial; cavaleiros e alquimistas num cenário de Europa
1
Descrição extraída de meu artigo "RPG & Educação: metodologia para uso paradidático dos role playing games". A ser
publicado.
2
TOLKIEN, J.R.R. The Lord of the Rings . Trilogia de livros ( The Fellowship of the Ring; The Two Towers; The Return of the
King). Os dois primeiros foram publicados em 1954 e o terceiro em 1955 na Inglaterra. O livro descreve uma história épica
em um cenário de inspiração medieval européia em que heróis de diferentes raças (humanos, elfos, anões e hobbits) se
unem para enfrentar o maligno Sauron. A trilogia foi adaptada para o cinema em três filmes nos anos de 2001, 2002 e 2003.
3
"Fantasia medieval" é um jargão do meio do RPG. Refere-se a um cenário em que existem povos de diferentes raças
(normalmente humanos, elfos, anões e hobbits/halflings/pequeninos) em que heróis como cavaleiros, magos, sacerdotes,
bardos e ladinos, enfrentam monstros e outros seres malignos. A magia e os seres sobrenaturais estão presentes. O
ambiente costuma ser inspirado no imaginário da Idade Média européia, com castelos, tavernas, vilarejos, nobres, dragões
etc. Foi o primeiro tipo de cenário dos RPGs e até hoje é um dos mais populares.
4
Similares aos ditos gêneros literários e cinematográficos
5
"Ambientação" é um jargão do RPG. Refere-se à uma combinação do cenário com os tipos de histórias. Por exemplo:
aventuras num cenário medieval ou suspense num cenário moderno. É o "ambiente" no qual transcorrem as histórias das
personagens do grupo.
6
Medieval, etc. A história começa a ser contada pelo Narrador, mas os “jogadores” são
livres para decidir o que suas personagens falam e fazem na história. Assim, os rumos da
história são freqüentemente alterados pelas ações das personagens, sendo na verdade uma
história contada em conjunto pelo Narrador e “jogadores”.
Um livro de RPG contém, basicamente, a descrição mais ou menos detalhada de uma
ambientação (maiores detalhes costumam vir separadamente em outros livros menores, os
chamados complementos) e um sistema de regras. O sistema de regras serve para organizar
a ação dos personagens durante o jogo, determinando os limites do que ele pode ou não
pode fazer. Por exemplo: não basta uma personagem saber atirar para acertar um alvo. Vai
depender do alvo e das condições em que a personagem se encontra, além do quão bom
atirador ela é. O sistema de regras tem como finalidade fazer uma simulação da realidade (a
realidade do jogo), influenciando a ação das personagens nas ações mais complexas.
Como não há apenas um sistema de regras (cada jogo de RPG costuma ter o seu), as
possibilidades de jogos de RPG se multiplicam ainda mais, pois cada ambientação pode ser
desenvolvida por diferentes sistemas de regras. Ou seja, cada combinação ambientaçãosistema dá origem a um jogo diferente.
Acredita-se ser possível entender o RPG como um meio de comunicação dotado de um
repertório partilhado com outras formas de narrativa (literatura, cinema, teatro, videogame),
porém com um código próprio que utiliza tal repertório de modo interativo e
hipermidiático, tanto na sua veiculação (suporte) quanto na sua fruição (processo de jogo).
Deste modo, para facilitar este entendimento, propõe-se uma breve descrição do que é este
repertório, os componentes do RPG, e de seus códigos de produção e utilização, suas
características.
1.1. Características do RPG
Vemos no RPG quatro características sobre as quais vamos discorrer um pouco para que
sua prática fique mais clara. São elas: socialização, interatividade, narrativa e hipermídia.1
Socialização: a capacidade de integração do RPG começa na sua própria estrutura, pois é
jogado em grupo, demandando não a competição, mas sim a cooperação entre seus
participantes. Além disso, é calcado no diálogo e troca de idéias. Neste aspecto, o RPG é
um importante elemento de comunicação, pois o ato de jogar leva, naturalmente, a uma
maior facilidade de se comunicar, expressar um pensamento.
Interatividade: se traçarmos um paralelo com o teatro, um RPG oferece uma ambientação,
uma plataforma a partir da qual os jogadores constróem, coletivamente, suas próprias
histórias e personagens. Isto quer dizer que um suporte de RPG, seja ele impresso,
eletrônico ou oral, não tem por objetivo oferecer histórias completas e fechadas - ainda que
possam existir exemplos de histórias e personagens -, mas sim possibilidades, autônomas e
imprevisíveis, que se realizam em cada momento de jogo, termos utilizados por Arlindo
Machado (1997) para definir interatividade:
1
Mais detalhes estão disponíveis em http://www.historias.interativas.nom.br
7
Na mesma época, Raymond Williams (1979:139) dizia que a maioria das tecnologias
vendidas e difundidas como "interativas" eram na verdade simplesmente "reativas", pois
diante delas o usuário não fazia senão escolher uma alternativa dentro de um leque de
opções definido (verdade que continua sendo válida para a maioria dos videogames e
aplicativos multimídia hoje consumidos em quantidade). Interatividade, entretanto,
implicava para ele a possibilidade de resposta autônoma, criativa e não prevista da
audiência, ou mesmo, no limite, a substituição dos pólos emissor e receptor pela idéia mais
estimulante dos agentes intercomunicadores. (Machado, 1997:250)
Assim, o RPG se diferencia dos livros-jogos e videogames, onde só é possível escolher
dentre uma série de opções pré-definidas. Essas seriam narrativas reativas, enquanto o RPG
é interativo.
Narrativa: conforme já foi dito, o RPG difere das narrativas tradicionais por ser uma
plataforma a partir da qual diferentes histórias podem ser criadas em grupo. Se pensarmos
com base na teoria de Pierre Lévy (1997) sobre virtualidade, podemos dizer que o RPG é
um campo virtual que se atualiza a cada momento de construção de uma personagem e de
uma história. As narrativas no RPG são, neste contexto, escolhas feitas pelos jogadores, o
que reservaria aos autores do jogo o papel de facilitadores destas escolhas, muito mais do
que de autoria.
Além das suas características virtual e hipermidiática, que enfatizam a multiplicidade de
estímulos e respostas e a diluição de fronteiras entre autor e receptor, o RPG também se
caracteriza pela mistura e apropriação de diferentes linguagens como teatro, cinema,
televisão, literatura, quadrinhos ocidentais e orientais e computador sem, no entanto, perder
a consciência de sua própria forma. A representação visual expressa-se como uma colcha
de retalhos através da mistura de estilos dentro de uma mesma publicação, fato marcante,
sobretudo, nos jogos da terceira fase (Bettocchi, 2002).
A linguagem verbal do RPG é muito próxima das narrativas orais, e a relação entre texto
e imagem nos suportes é fundamental para a interatividade. No livro de RPG, texto e
imagem existem não para serem consumidos acriticamente, mas para serem, como diria
Sonia Mota (Apud: Pavão, 1999), "pilhados" pelo sujeito a fim de serem reconstruídos de
acordo com suas experiências cotidianas, permitindo a concepção de novas imagens e
novos textos e a recriação da realidade.
Hipermídia: como forma de comunicação hipermidiática, o RPG se constitui de texto
verbo-audiovisual (texto escrito, imagens e a narração do Mestre e interpretação das
personagens pelos jogadores), onde a disponibilidade instantânea de possibilidades
articulatórias permite a concepção não de uma obra acabada, mas de estruturas que podem
ser recombinadas diferentemente por cada usuário. Estes elementos (ilustrações, textos,
linguagem corporal e verbal) são "janelas" ou "links" de informação para o jogador sobre o
cenário onde serão construídas suas próprias histórias, e, conseqüentemente, suas próprias
imagens, textos etc.
8
1.2. Componentes do RPG
Regras: no RPG, as regras compõem um sistema de simulação de realidade. Quando se
utiliza o termo simulação de realidade no jogo de interpretação, está-se referindo não ao
sentido de engano ou falsidade, mas ao sentido de modelo. Segundo o dicionário, define-se
simulação como a reprodução análoga de algo ("simulação analógica: experiência ou ensaio
em que os modelos se comportam de maneira análoga à realidade"). Deve-se ressaltar,
ainda, que as regras no RPG favorecem e pressupõem a cooperação entre os participantes,
não a competição, diferentemente da maioria dos jogos.
Cenário: um cenário apresenta um mundo, um período histórico, uma situação ou grupo
social. Algumas vezes o cenário pode ser bastante familiar aos jogadores, mas visto sob um
enfoque inusitado (por exemplo, o Mundo das Trevas, da editora norte-americana White
Wolf, que apresenta o mundo ocidental contemporâneo sob o enfoque de vampiros,
lobisomens, magos etc.):
O Cenário é o palco de sua história.. Ele inclui não somente uma descrição do local (bairro,
cidade, condado, país, planeta, etc.) e da época na qual a história vai-se desenrolar como
também uma visão da situação "política" dos personagens envolvidos (o relacionamento que
existe entre eles e entre cada um deles e os personagens secundários da história). (MiniGurps, 1999:22)
É interessante que um cenário contenha descrições tanto mais detalhadas quanto mais
bizarro for o objeto descrito. Um conjunto de referências visuais, sonoras, textuais também
amplia as possibilidades de criação dos jogadores.
Personagens: a personagem no RPG é a interface entre o jogador e o jogo; através dela,
vive-se (mais do que se acompanha), a história. Pode-se dizer que, sem a atuação das
personagens, a prática do RPG não acontece. Estas personagens são essencialmente figuras
heróicas.1
As personagens são definidas para jogo em termos de suas características inatas, como
força e inteligência, habilidades aprendidas, personalidade e histórico. Como no RPG há
continuidade, as personagens podem viver várias histórias, as personagens evoluem a cada
aventura, aumentando suas capacidades de atuação.
Cabe observar que numa sessão de RPG também há as personagens do Mestre que
interagem com as personagens dos jogadores.
Enredo: para melhor compreender a questão do enredo, sugere-se duas definições de
origem diferente para o termo, a primeira oriunda de estudos sobre o romance e a segunda
de um RPG:
Definiremos a história como uma narrativa de acontecimentos dispostos em sua seqüência
no tempo. Um enredo é também uma narrativa de acontecimentos, cuja ênfase recai sobre a
causalidade. "O rei morreu e depois a rainha"- isto é uma história. "Morreu o rei, e depois a
rainha morreu de pesar" é um enredo. [...] Consideremos a morte da rainha: numa história
diríamos - "E depois?"; num enredo - "Por quê?" (Forster, 1927; 1998:83-84)
1
A este respeito, ver KLIMICK, Carlos. Onde está o herói? In: Simpósio O Outro, LaRS, Depto de Artes e Design, PUC-Rio,
2002.
9
O enredo é a seqüência de coisas que devem acontecer durante a aventura. Numa aventura
simples, o mestre guia os personagens de uma cena para outra. Numa aventura mais
sofisticada, existem coisas acontecendo sem que os personagens saibam. Nesse caso, o
mestre cria muitas situações e os personagens vão passando de uma cena para outra à
medida que vão descobrindo pistas. (Mini-Gurps, 1999:22)
No romance, o leitor é atraído pelas perguntas "por quê? O que causou tal fato? Qual foi
a motivação da personagem?" No RPG, este aspecto está presente nas ações das
personagens controladas pelo Mestre. Contudo, também está presente nas conseqüências
das ações das personagens dos jogadores, as quais, muitas vezes imprevistas, fazem com
que o Mestre tenha que alterar constantemente o enredo. A causalidade é então de mão
dupla, do Mestre para os jogadores e vice-versa. O enredo é então a seqüência de eventos
na narrativa amarrada pela causalidade de mestres e jogadores.
Clima: este seria uma maneira de jogar tanto o cenário quanto os enredos. Pode-se, por
exemplo, jogar um enredo de fantasia com clima dramático (Ladyhawk: O Feitiço de
Áquila), ou um cenário de terror com clima de ação (Blade), ou um cenário de ficçãocientífica com clima noir (Blade Runner, Gattaca) etc. Por se tratarem de personagens
heróicas, o clima predominante nos enredos e cenários de RPG é o de aventura. Por se
tratar de um modo de jogar, pode-se dizer que o clima seria uma ponte entre código e
repertório, talvez se aproximando do que a literatura, o cinema e o teatro entendem por
gênero narrativo.
1.3. Ambientação
A ambientação é uma combinação de cenário, personagem, enredo e clima, compondo a
plataforma para as histórias daquela proposta de RPG. Tomando como exemplo o RPG
Vampiro: a Máscara, vemos que a ambientação deste RPG se compõe de: o mundo atual,
com a presença do sobrenatural, onde vampiros existem e se organizam em clãs e facções
políticas, com possíveis focos em determinadas cidades, como Chicago (cenário); vampiros
de diferentes clãs, com seus poderes, históricos e personalidades (personagem); aventurasprontas, idéias para aventuras, dicas para o Narrador (enredo); histórias de horror, vampiros
atormentados com a progressiva perda de sua humanidade, conspiração e suspense (clima).
Podem ser observadas similaridades entre a ambientação do RPG e os ambientes da arte
participativa, conforme propostos por Plaza – “O ambiente (no sentido mais amplo do
termo) é considerado como o lugar de encontro privilegiado dos fatos físicos e psicológicos
que animam nosso universo.” (Plaza, 2003:14)
2. A ambientação Idade Mística
Uma vez esclarecidos estes conceitos, passar-se-á ao foco deste trabalho: a apresentação
textual (forma) de uma ambientação de RPG. A ambientação proposta, Idade Mística, será
disponibilizada em suporte impresso, um livro de RPG em que conste, além dos textos e
composições visuais, o levantamento documental e iconográfico como narrativas paralelas.
10
Deste modo, pretende-se focalizar a discussão nas características de narrativa
hipermidiática deste suporte.
2.1. A forma hipermidiática do texto medieval
Sugere-se que a hipermídia ou multimídia hipertextual (texto + imagem + som etc) seria
uma evolução do hipertexto (Crenzel, 2002:31):
Ted Nelson (1992), considerado o inventor do termo "hipertexto", o conceitua como conjunto de
escritas associadas, não-seqüenciais com conexões possíveis de seguir e oportunidades de leitura
em diferentes direções. A hipermídia é, pois, uma forma combinatória e interativa de multimídia
[...] (Plaza, 2003:25).
Isto quer dizer que, num hipertexto, as informações não são absorvidas de forma linear,
umas após as outras, mas de forma simultânea e fragmentada, de modo similar ao
funcionamento do cérebro humano.
O signo de pontuação mais característico do hipertexto é o link (elo, em português), o
ponto de interseção entre os "nós" textuais, a janela de acesso entre as diferentes camadas
textuais e visuais. O link transforma a imagem fixa em seqüencial e cria um espaço
informativo tridimensional (Crenzel, 2002:37-38).
É interessante notarmos que, apesar desta nomenclatura remeter diretamente à
informática, este tipo de hiper-estrutura interativa existe desde que existe linguagem
(ANEXO I); as novas tecnologias nos permitiram, sim, tomar consciência deste processo e
utilizá-lo de forma mais direta e simplificada.
Como mostra o exemplo do ANEXO I, o texto medieval incorpora digressões, anotações
e glosas de forma simultânea e não-linear, sem preocupações com pureza de gênero,
freqüentemente misturando trágico e cômico, histórico e fictício. A literatura medieval se
vale bastante das referências clássicas, misturando os estilos grego e latino com o temário e
o folclore do período, além de inserir temas religiosos da mitologia cristã, justificando uma
produção pagã sofisticada.
Esta estrutura reflete o pensamento filosófico da época de uma unidade teológica que
mantém o mundo; o Homem, a Natureza e a Escritura são mais pelo que significam do que
por si – o U m que se manifesta no Trino. A lógica de Aristóteles aparece
descontextualizada, misturada ao pensamento agostiniano, de fato mais próximo do
platônico do que do aristotélico. As "figuras de linguagem" são simbólicas e alegóricas: as
coisas significam a si mesmas e estão por outra coisa (Agostinho: Res et signum; in: Boni
et all, 1988).
O quadro a seguir mostra um resumo esquemático de alguns dos principais conceitos
filosóficos que se pretende utilizar na concepção da estrutura do texto de apresentação do
cenário:
11
Díade/quadríade
Tríade
Quatro Elementos
Pessoa e Natureza, Humano e Divino, Sagrado e
Profano, Teologia e Dialética
Razão e Mística (entender a palavra do filósofo para
crer, crer na palavra de Deus para entender)
Quadrívio (Aritmética,Geometria,Música,Astronomia)
Mundo exterior (macrocosmo) e mundo humano
(microcosmo)
Sentido literal-sensível superado pelo simbólicoespiritual
Santíssima trindade
Lógica Aristotélica (logica Vetus, tradução de Boécio):
bondade, verdade e beleza ou bondade, verdade e fé cristã
Verdade, conhecimento e poder (crer para entender,
entender para dominar)
Trívio (Gramática, Dialética, Retórica)
Supraceleste, celeste e infraceleste (harmonia pela escala
planetária)
Alegórico (refere a outro fato) > tropológico ou moral
(ideológico) > anagógico (aponta para a salvação)
Na análise comparativa Artur e Alexandre - Crônica de dois reis, Furtado (1995)
comenta que, assim como Plutarco (séc. I), Geoffrey de Monmouth (séc. XII), autor da
Historia Regum Britanniae (1135) constrói uma narrativa por analogias.
Na passagem da Historia sobre o Rei Leir, a situação sucessória pode referir-se à própria
situação da Inglaterra na primeira metade do século XII, quando se discutiu a sucessão do
trono por uma mulher, Matilda. Note-se que o livro de Monmouth foi dedicado a Robert de
Gloucester (Furtado, 2003). A situação de três filhas que disputam uma herança, em que
uma delas é rejeitada por supostamente ser sincera, ficando o rei na companhia das outras,
as quais no final tentam usurpar-lhe o poder, encontra eco no folclore de diferentes culturas,
conforme classificado por Aarne & Thompson (1961; in: Furtado, 2003). Finalmente,
referências clássicas de situações sucessórias conflituosas e usurpação de trono aparecem
tanto nas biografias de Artaxerxes quanto de Pompeu (Plutarco, séc. I;1986; in: Furtado,
2003).
De acordo com o quadro de conceitos anterior, pode-se sugerir uma estrutura triádica de
significados inferíveis além do perceptível (sentido literal): um sentido alegórico, referindose à identificação com uma situação histórica; um sentido moral ou tropológico, de
legitimação de valores e ideologias, por vezes fundamentado no modelo clássico; e um
sentido anagógico, de pretensão universal, que pode tanto buscar suas raízes no folclore
pagão quanto na mitologia judaico-cristã.
Encontra-se neste modelo uma díade (sentido literal versus sentido simbólico-espiritual)
que encerra uma tríade (o sentido simbólico-espiritual composto dos níveis alegórico, moral
e anagógico). Este modelo servirá de base para a estruturação do texto de apresentação do
cenário medieval em questão.
2.2. O hipertexto de Idade Mística
O conteúdo da ambientação será apresentado, conforme mencionado, de forma
hipermidiática, constando de texto verbal e texto visual. Neste trabalho serão discutidos
apenas os textos verbais, dispostos em três níveis, tomando-se como exemplo o ANEXO I:
texto literário (principal), glosas e anotações.
É importante esclarecer que o termo principal entre parênteses não se refere a uma
hierarquia de subordinação: o conteúdo do texto literário não é mais ou menos importante
que o das glosas e anotações, como costuma acontecer com notas de rodapé ou de fim de
página nos textos acadêmicos. Daí se preferir utilizar o termo literário, ficando o termo
principal apenas como referência de posicionamento na mancha gráfica.
12
O texto literário (sentido literal), consistirá de uma narrativa linear em prosa ou verso, a
partir do qual se abrirão os links para os elementos explicativos do cenário (sentidos
simbólicos): as glosas, que farão referência a uma situação histórica similar à situação
descrita no texto literário (sentido alegórico); e as anotações, que citarão o modelo clássico
e a referência mitológica ou folclórica (sentidos moral e anagógico). Tanto as glosas quanto
as anotações poderão conter ainda referências a questões específicas de jogo (características
e competências de personagens, resolução de ações, feitiçaria etc.).
2.1.1. Os textos literários
O RPG se caracteriza pelas colagens, apropriações e reinterpretações (Bettocchi, 2001).
Parece muito pertinente o termo “pilhagem narrativa”, cunhado por Sônia Mota (Apud:
Pavão, 1999:24) para descrever o processo de construção e utilização desta linguagem,
cujas histórias e imagens são tecidas a partir de elementos de outras histórias e de outras
imagens, apropriadas de autores que não são citados, aproximando essa narrativa da
narrativa oral “sem dono”.
Por narrativa, tradicionalmente, entenda-se:
[...] formas textuais, utilizando ou não imagens, como é o caso da literatura, cinema,
televisão, RPG ou videogame, embora os elementos constitutivos de ambos, como não
poderia deixar de ser, sejam recorrentes. Estes se caracterizam como narrativos por
possuírem os elementos levantados por Cardoso [2001] (tema, personagens, ação, tempo,
espaço, ponto de vista, conflito), possuindo unidade de ação, tempo e lugar, e
desenvolvendo-se através da relação de causa e efeito, etc. (Coelho, 2002).
Se narrativa permite uma aproximação com papel e personagem, pode-se sugerir que
narrativa oral permite uma aproximação com tradição oral, folclore, conto de fadas, mito.
Segundo Japiassú e Marcondes (2001:183), a palavra mito, do grego mythos, inclui o
sentido de: "1. Narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de um povo, que explica
através do apelo ao sobrenatural, ao divino e ao misterioso, a origem do universo, o
funcionamento da natureza e a origem e os valores básicos do próprio povo. [...]"
Temos aí uma representação teatral do papel de uma personagem de uma narrativa oral
que se aproxima do folclore e do mito, portanto de cunho aventuresco: uma personagem
heróica. Herói combina com aventura, aventura com desafio, desafio com jogo. Deste
modo, optou-se por tomar como textos literários, entre outros que não serão comentados
neste trabalho, trechos de algumas narrativas arturianas datadas do século XII e início do
XIII, período que também abrange o cenário do jogo.
Segundo Furtado (2003), as narrativas arturianas deste período compõem uma tradição
literária conhecida como Matéria da Bretanha, inaugurada pelo já citado bretão Geoffrey de
Monmouth, dividida em três fases distintas: as crônicas pseudo-históricas, os romances de
cavalaria e as estórias exemplares. Devido à delimitação cronológica do cenário (10951204), trataremos aqui apenas das duas primeiras fases.
Nas ditas crônicas pseudo-históricas, ainda que os textos aparentem verossimilhança,
não se pode deixar de notar a forte presença do sobrenatural, seja em figuras como Merlim,
seja na descrição do mistério envolvendo a morte de Artur e sua ida para a fantástica ilha de
Avalon. Como já foi mencionado (Furtado, 1995), a narrativa parece ser construída por
13
analogias com situações históricas e com narrativas clássicas e folclóricas. Os trechos que
se pretende utilizar encontram-se nas seguintes obras:1
•
•
Historia Regum Britanniae, 1135 e Vita Merlini (1148), Geoffrey de Monmouth:
o primeiro texto se propõe a ser um registro "histórico" dos reis da Bretanha,
incluindo a primeira biografia detalhada de Artur, a partir das fontes fornecidas nos
escritos de Gildas (séc. VI) e Nennius (séc. IX); o segundo texto dedica-se à figura
de Merlim, sábio de origem mágica, associado a e/ou inspirado em Santo Ambrósio
(séc. IV), e que também fora mencionado por Nennius como o "menino sem pai"
com dons proféticos.
Roman de Brut, 1155, Wace: tradução do latim para o francês, dando maior
divulgação à obra de Monmouth; sua grande contribuição foi a invenção da Távola
Redonda, mesa sem cabeceira, logo com todos os lugares igualmente importantes,
de modo a evitar disputas entre os barões de Artur.
A fase seguinte, dos romances de cavalaria, é protagonizada pelos cavaleiros, ficando o
rei Artur em segundo plano. Nesta fase já é possível perceber o reflexo de uma sociedade
feudal e suas instituições de cavalaria cada vez mais estabelecidas, onde o "valor" de um
cavaleiro é medido pela sua bravura em combate e torneios e pela sua generosidade em
gastos materiais. Diferentemente da fase anterior de batalhas campais, estes cavaleiros
protagonizam aventuras de cunho mais pessoal, inspiradas nas regras do fino amor (ou
amor cortês, segundo nomenclatura cunhada no século XIX) proclamadas por André, o
Capelão (séc. XII), cantadas nas trovas, e recheadas de acontecimentos fantásticos e
motivos folclóricos. Os trechos a serem utilizados estão nas seguintes obras:
•
•
•
•
Érec et Énide, Cligès (ou A Falsa Morta), Lancelot (ou O Cavaleiro da
Carreta), Yvain (ou O Cavaleiro do Leão) e Perceval (ou O Conto do Graal),
1170-1185, Chrétien de Troyes: o autor, que é o principal poeta francês desta
fase, incorpora a Távola Redonda criada por Wace e cria a personagem
Lancelote, colocado como terceiro cavaleiro de Artur (o primeiro é Galvão, o
segundo Erec). Menciona o graal (citado no Roman d'Alexandre, poema
narrativo de autoria coletiva, ca. 1160) ainda como escudela, mas já lhe
atribuindo um significado místico que não foi esclarecido devido à interrupção
de sua obra quando de sua morte.
Tristan et Iseut, ca. 1180, Béroul: preservada de forma incompleta, esta é uma
das mais antigas versões do amor entre Tristão (também citado como cavaleiro
de Artur por Chrétien) e a rainha Isolda, esposa do rei Marcos.
A mula sem freio e O Cavaleiro da Espada, final do século XII ou início do
XIII, anônimos: possivelmente sátiras à obra de Chrétien, atribuindo-se a
primeira a um pretenso Païen de Maisières ("Pagão" em oposição a Chrétien,
"Cristão", e sendo Maisière, como Troyes, uma cidade da Champagne).
Primeira Continuação do Persival, final do século XII, anônimo: de autor
desconhecido designado por alguns como Pseudo-Wauchier, pretende ser uma
continuação do último texto de Chrétien.
1
À exceção dos Lais de Maria de França, todos os textos citados encontram-se em FURTADO, Antonio L.
Artur e
Alexandre - Crônica de Dois Reis. São Paulo: Ática, 1995 e Aventuras da Távola Redonda - Estórias Medievais do Rei
Artur e seus Cavaleiros. Petrópolis: Editora Vozes: 2003.
14
•
Lais, 1160-1178, Maria de França: apesar de não tratar somente de matéria
arturiana, os contos desta autora lidam com temas similares e com as mesmas
referências: aventuras fantásticas e fino amor. Os lais ambientados na corte do
Rei Artur são Lanval e Madressilva, este último sobre Tristão e Isolda.
2.2. Anotações e glosas
Estes textos complementares servirão, assim como nas obras medievais, como breves
interpretações dos textos literários (textos "principais") fornecendo explicações sobre o
cenário do jogo, fazendo o contraponto diádico entre sentido literal e sentido simbólico.
Estes textos terão um teor descritivo e consistirão em resumos de diferentes fontes sobre
história, filosofia e cultura medieval, mesclados com informações específicas para os
jogadores sobre concepção de personagens e enredos de jogo.1
A título de exemplo, sugere-se uma relação diádica entre os textos das crônicas pseudohistóricas e, desdobrando-se a relação triádica:
•
•
•
sentido alegórico de uma situação de fortalecimento do sistema feudal
característico do primeiro quartel do século XII (Le Goff, 1989; Loyn, 1991;
Duby, 1989);
sentido moral de afirmação da emergente classe cavaleiresca (a Távola
Redonda) com base no modelo clássico fornecido pelas crônicas de Plutarco
sobre Alexandre, o Grande (Furtado, 1995);
sentido anagógico de divinização ou heroicização do rei (Beatie, 2001), seja na
sua origem sobrenatural, seja na participação de um auxiliar místico (Propp,
1984), como Merlim, seja no mistério que envolve sua morte, com referências
na mitologia grega (as nove irmãs de Avalon e as nove musas) e judaico-cristã
(a ilha paradisíaca e o jardim do Éden), entre outras.
Para os textos dos romances de cavalaria, pode-se sugerir, como exemplo, o seguinte
desdobramento triádico:
•
•
•
sentido alegórico de uma situação feudal implantada, tendendo para a
descentralização do poder real (Artur já não é mais protagonista) (Le Goff,
1989; Duby, 1989; Loyn, 1991; MacDonald, 1995) e os jogos de sedução das
elites, como uma espécie de amenização das situações matrimoniais políticas,
organizados nas regras do fino amor de André, o Capelão sob os cuidados da
Condessa Maria de Champagne (Furtado, 2003);
sentido moral de valorização dos códigos guerreiros (militas), da herança
patrilinear e da honra da ancestralidade (nobilitas) – como sugere Duby
(1989:16), utilizando como exemplo a desconhecida condição nobre de Persival
– ainda buscando seus modelos na literatura clássica de Plutarco e, para o
comportamento amoroso, em Ovídio;
sentido anagógico de fidelidade carnal/espiritual, abordando o pecado e a
1
Lembrando que este trabalho refere-se à ambientação de um RPG, a qual deverá ser acompanhada de um livro contendo
as regras básicas.
15
traição femininos, temas presentes em passagens bíblicas e no folclore tanto
europeu quanto oriental (Aarne-Thompson, 1961; Furtado e Veloso, 1996;
Furtado, 2003) ao mesmo tempo promovendo uma valorização de cultos
marianos e da virgindade; a questão do graal como objeto simbólico de busca
místico-espiritual já começa a surgir nas obras do final do século XII.
Para finalizar, apresenta-se no ANEXO II um exemplo de mancha gráfica segundo os
critérios estabelecidos neste trabalho. O texto literário é um trecho do Lanval, lai arturiano
de Maria de França, acompanahdo de glosa descrevendo resumidamente as relações feudais
e o lugar do cavaleiro nesta relação e de anotações sobre o sentido moral dos códigos
guerreiros contrapondo-se às regras do fino amor; e sobre o sentido anagógico da busca
espiritual. Para efeito de compreensão, todas as referências específicas às regras do RPG
estão entre colchetes.
Bibliografia
BEATIE, Bruce A. ([email protected]) Re:[Arthurian Tragic Ritual, Hero]. E-mail
para ArthurNet Mailing List ([email protected]) [mensagem capturada em 2
fev. 2001].
BETTOCCHI, Eliane. A Sintaxe Visual no Role-playing Game. In: Estudos em Design, v.
8, n. 3. Rio de Janeiro: Associação de Ensino de Design do Brasil, mai. 2001.
________. Role-playing Game: um jogo de representação visual de gênero. Dissertação
de Mestrado em Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2002.
________ & KLIMICK, Carlos. Histórias Interativas.
http://www.historias.interativas.nom.br
BONI, Luiz Alberto de et all. Razão e Mística na Idade Média. Rio de Janeiro:
UNIVERTA, UFRJ/IFICS, 1988.
CARDOSO, João Batista. Teoria e Prática de leitura, apreensão e produção de texto: por
um tempo de "PÁS" (Programa de Avaliação Seriada). Brasília: Universidade de Brasília,
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.
COELHO, Luiz Antonio. Imagem Narrativa. Palestra para o Curso Básico de Design de
RPG, Coordenação Central de Extensão, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, out.-dez. 2002. Disponível em
http://www.historias.interativas.nom.br/historias/textos/coelho.htm.
CRENZEL, Silvina Ruth. Semiótica e Design: como as imagens representam as coisas
na internet. Dissertação de Mestrado em Design, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, 2002.
DUBY, Georges. A Sociedade Cavaleiresca. Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 2001, 8a. ed.
FURTADO, Antonio L. Artur e Alexandre - Crônica de Dois Reis. São Paulo: Ática,
1995.
________ & VELOSO, Paulo A. S. Folklore and Myth in The Knight of the Cart. In:
Arturiana, v. 6. n. 2, 1996, pp. 28-43.
________. (org.). Aventuras da Távola Redonda - Estórias Medievais do Rei Artur e
seus Cavaleiros. Prefácio de Gilberto Mendonça Teles. Petrópolis: Editora Vozes: 2003.
16
LAIS de Maria de França. Tradução e introdução de Antonio L. Furtado; Prefácio de
Marina Colasanti. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do Romance. São Paulo: Editora Globo, 1927;
1998.
JACKSON, Steve et REIS, Douglas Quinta. Mini-Gurps. São Paulo: Devir Editora, 1999.
JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES. Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Joge Zahar Editor, 2001, 3a. ed.
LE GOFF, Jacques (org.). O Homem Medieval. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo.
Lisboa: Editorial Presença, 1989.
LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? São Paulo: Editora 34, 1997.
LOYN, H. R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991,
2a. ed.
MACDONALD, Fiona. O Cotidiano Europeu na Idade Média. Trad. Aulyde Soares
Rodrigues. São Paulo: Melhoramentos, 1995.
MACHADO, Arlindo. Formas Expressivas da Contemporaneidade. In: Pré-cinemas &
Pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
PAVÃO, Andréa. A Aventura da Leitura e da Escrita entre Mestres de Role Playing
Games (RPG). Rio de Janeiro: EntreLugar, 1999.
PLAZA, Julio. Arte e Interatividade: Autor-Obra-Recepção. In: Concinnitas, no. 4. Rio de
Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Editora 7Letras, 2003, pp. 7-34.
17
Amor e Erotismo na Idade Média:
Uma perspectiva literária a partir da análise das obras
Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal
Cleide Maria de Oliveira
Introdução
O presente ensaio tem por objetivo estudar o amor e o erotismo no período
medievo, em especial na Baixa Idade Média, a partir da perspectiva oferecida pelas
obras Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal, a segunda vinculada ao
assim chamado Ciclo Arturiano.
A escolha do tema se deu pela possibilidade de analisar o amor e o erotismo
enquanto fenômenos sócio-culturais que se inscrevem na história e no espaço, e
que, como toda realização humana, influenciam as manifestações artísticas e
literárias, sendo essas, portanto, narrativas prenhes de signos a serem
decodificados no intuito de uma maior compreensão dos comportamentos sociais.
Conforme assinala André Lázaro em seu livro "O amor: do mito ao mercado",
... o amor tem sido "bom" para pensar pois coloca em jogo fichas valiosas. É o próprio sujeito
que se pensa, a ameaça constante da morte e do abandono, a possibilidade de romper, por um
momento que seja, a barreira invisível que o separa do outro e das forças estranhamente
similares que parecem atuar na aparente desordem do universo. (1996: 11)
O interesse por esse período histórico se deve ao fato de essa época encerrar o
"nascimento" daquilo que modernamente chamamos de amor romântico 1, O amor
cortês, ou amor delicado, extrato da lírica provençal que surge ao sul da França
(Provença) ainda no século XI, assume particular importância em nosso estudo
pois, como afirma o historiador Jacques Le Goff, "a descoberta do amor humano
(....) é um dos grandes acontecimentos do século XII" (1987: 56).
A poesia provençal, ou trovadoresca, pode ser entendida como uma codificação
de comportamentos sociais, uma elaboração da erótica provençal sistematizada
pelos trovadores que marca indelevelmente a concepção do Ocidente moderno
sobre o amor. Nesse sentido, a lírica trovadoresca exerceu grande influência sobre
a matéria ficcional na Demanda e no Amadis de Gaula, posto que um movimento
cultural e literário de tal âmbito não poderia deixar ilesas formas narrativas como
os populares romances de cavalaria. O que se pretende observar, neste estudo, não
é tanto o desenvolvimento do amor cortês, e sim sua popularização, efetuada ao
longo dos séculos XIII, XIV e XV. Dado que é extremamente problemático apontar
a permanência de uma erótica cortês no decorrer dos séculos, talvez seja mais
pertinente falar em influências; ou seja, como um fenômeno literário e cultural
1
Con forme aponta Rou gemont (1988 ), em referê ncia à trági ca his tória de Abe lardo e Helo isa,
amb ientad a no i nício do séc ulo XI I, cuj os des dobramentos podem ser en tendid os como "mar cas
de um combate e ntre o pensa mento escolá stico e a re tórica do amor cor tês" ( Lázaro , 1996 : 92).
18
pode contribuir para a disseminação de uma erótica baseada no controle (o controle
de si, ou pedagogia do eu) e na singularização do indivíduo que irá evoluir
progressivamente para o que chamaremos modernamente de amor-romântico.
Parecerá talvez impróprio falar em controle quando se fala em amor-paixão, ou
amor-romântico, mas esta característica do amor delicado não está tão distante das
nossas modernas experiências passionais1; o controle se relaciona intimamente com
a noção de individualidade, tão cara ao amor: o amor é um movimento de dentro
para fora, ou seja, parte de um núcleo duro e coeso – o cogito cartesiano – para
alcançar o “outro” do outro.
O périplo do herói enamorado inclui provas e combates que possuem caráter
pedagógico: é preciso descobrir-se na mesma medida em que é preciso revelar-se,
e descobrir-se é, antes de mais nada, civilizar-se, isto é, opor à natureza a cultura.
De tudo isto restou-nos, modernamente, o mito de que o amor revela-nos a nós
mesmos: na medida em que nos põe à prova somos mais fortes e capazes de ser
aquilo que devemos ser, de amar – não obstante infelicidades, dores, traições e
abandono – com amor imortal, pois o amor nos dá porção recobrada de “Eu”...
Desenvolvimento
Conforme aponta André Lázaro (1996), tanto a lírica provençal quanto os
romances de cavalaria, inclusive os pertencentes ao ciclo arturiano, se utilizam da
mística amorosa para fomentar um combate contra o desejo, um jogo requintado de
auto controle com objetivos civilizatórios. A força do desejo dotava o corpo do
amante-guerreiro de virtudes mágicas, o domínio de si investia-o de poderes
místicos. Um episódio exemplar é a queda de Erec próximo à "Fonte da Virgem"
(A Demanda do Santo Graal), onde tombariam todos os cavaleiros "tocados pela
luxúria" (p.101). Neste relato, o poder sobre si, a força e o vigor, estão em
proporção à pureza do corpo, cujo paradigma é Galaaz, o cavaleiro perfeito.
O ciclo arturiano permite que reconheçam traços de antigas crenças nos poderes mágicos e
iniciáticos do amor. Algumas provas a que são submetidos os cavaleiros consistem em
atravessar o vale da morte, enfrentar seres do outro mundo e resistir às terríveis tentações do
desejo quando belas donzelas lhes oferecem o leito após dias de duras lutas e caminhadas.
Castelos habitados por mulheres encantadas aguardam o herói que, em suas aventuras, deve
dar prova de sua capacidade de conter-se. Esta contenção significa domar em si mesmo a
força da natureza rebelada: a alegoria do combate com o leão costuma pontuar os momentos
desta vitória integradora dos diferentes níveis da alma humana, tal como o compreendia a
tradição céltica da qual o ciclo arturiano é tributário. (Lázaro, 1996:81)
No século XIII alguns historiadores apontam um renascimento, dada a
relevância das realizações artísticas nesse período. A riqueza produzida devido à
ampliação da atividade produtiva, do uso da moeda, da expansão das fronteiras
agrícolas e do significativo aumento demográfico se traduz no crescimento e
desenvolvimento dos burgos (cidades), na formação das primeiras universidades,
no maior cosmopolistismo dos intelectuais, e na ascensão da burguesia, que
1
Para comprovar isto basta lembrar da presença recorrente da idealização feminina e da vassalagem amorosa em
compostitores da música popular brasileira, como por exemplo a canção "Amor delicado", de Caetano Velozo.
19
adotava as formas culturais da aristocracia como um método de confundir-se com a
gente bem-nascida (Lázaro, 1996:82). Lênia Mongelli (1992: 63) ainda
mencionará, como influentes para o contexto histórico dos séculos XII e XIII, os
seguintes fatores sócio-culturais:
- a influência do folclore céltico-bretão, possibilitado pela conquista normanda de
Guilherme, o Conquistador (1066);
- o intenso movimento das Cruzadas, divulgando o ideal de Cavaleiro de Cristo, ou
seja, unindo os valores guerreiros a uma mística cristã;
- a ascensão da Cavalaria, que se transformou, a partir de Carlos Magno (século
IX), em uma confraria religiosa, exigindo de seus membros a obediência a ritos
sagrados; cite-se como exemplo a confraria dos Cavaleiros Templários, instituída
em 1118 e extinta em 1314;
- o surgimento da lírica trovadoresca que "inventa" uma nova forma de lirismo; o
primeiro trovador de que se tem conhecimento é Guilherme IX, duque da
Aquitânia (século XI).
A novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal portuguesa filia-se ao que se
convencionou denominar "Matéria da Bretanha", que é composta por obras
ficcionais em torno da figura do lendário rei Artur. O texto existente é a tradução
de um original francês desaparecido, situado aproximadamente nas últimas décadas
do século XIII, fazendo parte da segunda prosificação do ciclo arturiano,
conhecida por Post-Vulgata ou ciclo do pseudo Boron. Da tradução portuguesa
chegou-nos um manuscrito do século XV, entre 1400-1438. (Mongelli, 1992: 55) O
exemplar analisado no presente estudo é uma tradução em português moderno, por
Heitor Megale, de alguns episódios extraídos da versão portuguesa medieval,
iniciando-se no fragmento de número 107.
Já a obra Amadis de Gaula, é de origem controversa, existindo uma querela
acirrada entre portugueses e espanhóis, cada grupo reivindicando para seu país a
origem da obra, não existindo até o momento certeza sobre a língua e a autoria do
Amadis primitivo. Não é de nosso interesse, no presente estudo, entrar nessas
extensas discussões; o que se tem como certo é que a edição mais antiga existente
é de língua espanhola e de autoria de Garci Rodriguez de Montalvo, no século XVI
(1508). Não obstante, é de se lembrar que existem testemunhos nos séculos XIV e
XV de edições mais antigas do Amadis, o que permite situar essa obra, em sentido
amplo, nos fins do período medieval e início da Idade Moderna.
Em resumo, a versão analisada de A Demanda do Santo Graal foi elaborada nas
últimas décadas do século XIII; o Amadis de Gaula que se tem em mãos é uma
suposta restauração de um texto português encoberto em um texto castelhano, e a
ele anterior, realizada por Afonso Lopes Vieira na década de vinte do século
passado. Entretanto, esta restauração é realizada em cima do texto castelhano do
início do século XVI, que já era a versão de textos mais antigos. É possível então,
simplificando um pouco essas questões de data que são por demais complexas para
o âmbito do trabalho que nos propomos a realizar, entender que a primeira obra (a
Demanda portuguesa) se insere no século XIII e que a segunda (o Amadis de que
temos conhecimento) já no início do século XVI, havendo então entre ambas a
diferença significativa de quase três séculos.
20
As duas obras a serem analisadas se situam num período crítico entre o fim da
sociedade medieval e o nascimento da modernidade, podendo ser lidas como
documentos das relações complexas e paradoxais entre indivíduo e sociedade; em
ambas as obras, o amor assume progressivamente um valor afirmativo para a
singularização e o desenho de uma geografia interior que instaura um novo lugar
(ou não lugar) para a experiência amorosa na ordem social. Conforme tese de
André Lázaro, a idéia moderna do amor romântico aparece como fundamento da
organização familiar e, mesmo, como "uma ampliação de nossos limites até sua
dissolução numa ordem onde o tempo e o espaço adquirem novo valor " (Lázaro,
1996: 23). Essa idéia, que instaura um espaço dissociado do social, isto é, uma utopia onde amante e amado afirmam-se como singularidades absolutas na mística
amorosa, estaria indelevelmente associada ao Renascimento e à elaboração da
subjetividade do Eu em contraponto ao social:
O mito do amor como um movimento da ordem do sagrado, que transcende a vida social para
criar um espaço próprio e íntimo ao sujeito, este mito está formulado claramente no
imaginário do Renascimento, embora não encontre aí sua plena legitimidade. (1996: 129)
No período medieval, o amor que deveria existir entre os membros do casal,
segundo a Igreja, era o amor ao próximo, a caridade, sem o desejo carnal. No
século XII São Jerônimo dizia que "aquele que ama a sua mulher com um amor
demasiado ardente é um adúltero" (apud Casey, 1992: 121). A união para
satisfação do dever conjugal era considerada pecaminosa, pois visava apenas ao
carnal, ao desejo. O ideal seria a união numa intenção procriadora (superior), que
multiplicaria os filhos de Deus. Clérigos como Huguccio condenavam o prazer
sentido até mesmo nas relações que visavam a procriação. Relações sexuais
inadequadas eram julgadas antinaturais, considerando-se como "inadequadas"
aquelas feitas em posições sexuais que não favorecem a chegada do esperma até o
óvulo, como por exemplo a mulher em posição vertical. A sodomia também era
terminantemente proibida pela Igreja. (Casey, 1992: 121)
O casamento, portanto, não deveria ser o lugar para o amor carnal ou a paixão.
Na realidade, o casamento era uma instituição que visava a estabilidade da
sociedade, servindo apenas para a reprodução e união de riquezas, dando
continuidade à estrutura feudal. A partir do momento em que o amor aparece no
casamento, esses pilares (reprodução e união de riquezas) passam a um segundo
plano, ameaçando toda essa estrutura. Quando um casamento acontece
simplesmente por amor, não há mais interesse a priori em reprodução ou união de
riquezas.
O século XII é marcado por uma grande mudança em vários aspectos da Idade
Média; a partir daí observa-se um movimento intrincado e complexo de
aproximação entre casamento e amor, que se desenvolverá através do período
medieval até sua plena ascensão na Idade Moderna. Já se pode observar mudanças
nas concepções sobre o amor no casamento com o monge Bernardo de Clairvaux:
"o amor não requer nenhum outro motivo, além de si mesmo, e não busca frutos.
Seu fruto é o gozo de si próprio" (apud Casey, 1992: 121). Este movimento de
legitimação do amor, elevando-o a uma "terceira margem, onde é possível viver
um 'eu' humano, puramente humano" (Lázaro, 1996:139), ou seja, de um ou-topos
21
de autenticidade, longe da máscara e da obrigação social, possui no fenômeno do
amor cortês a chave para seu pleno entendimento. Falando sobre a significância do
amor cortês para a inserção social da mulher neste período, George Duby afirma
que esse
Era um jogo de homens e, entre todos os textos que convidam a ele, há poucos que não sejam
marcados por traços misóginos. A mulher é um engodo, análogo a esses manequins contra os
quais o novo cavaleiro se lançava, nas demonstrações esportivas que se seguiam às
cerimônias de sagração. Não era a dama convidada a enfeitar-se, a disfarçar e a revelar os
seus atrativos, a recusar-se por longo tempo, a só se dar parcimoniosamente, por concessões
progressivas, a fim de que, nos prolongamentos da tentação e do perigo, o jovem aprendesse a
dominar-se, a controlar seu próprio corpo? (1989:61)
Não se deve entender, conforme Duby nos alerta, que a lírica cortês tenha
realmente alçado a mulher a uma posição social mais elevada. Ela era, na verdade,
um chamariz nesse jogo civilizatório que era a cortesia. As relações são mais
complexas do que as de causa-e-efeito: o movimento de elevação do amor a
elemento essencial à instituição do casamento, realizado pelo pensamento burguês
romântico e presente ainda no imaginário moderno, que busca conciliar, pelo
menos nos romances hollywoodianos e nas telenovelas brasileiras, a paixão
arrebatada à rotina do casamento, foi obra de longos e intrincados eventos sócioculturais. Duby, por exemplo, vai relacionar a invenção do "amor delicado" a uma
forma de organização social da nobreza, dos séculos X, XI e XII, que limitava o
número de casamentos dos rapazes, sendo esta uma estratégia de concentração e
conservação de riqueza; assim, apenas o primogênito possuía direitos de
propriedade, as mulheres eram excluídas da partilha e recebiam dotes quando
casadas, donde a regra era casar todas as filhas e reforçar os obstáculos ao
casamento dos filhos, exceto do mais velho. Isto provocava um crescimento da
população de jovens celibatários
... expulsos da casa paterna, correndo atrás das prostitutas, sonhando nas diversas etapas de
sua aventura errante em encontrar donzelas que, como dizem eles, os apalpem, mas primeiro
em busca, ansiosa e quase sempre vã, de um estabelecimento que os transforme finalmente em
seniores (proprietários), em busca de uma boa herdeira, de uma casa que os acolha e onde,
como se diz ainda em certos locais no interior francês, eles possam "ser genros". (Duby,
1989: 23)
As severas restrições ao casamento dos rapazes multiplicavam, no meio
aristocrático, os homens não casados sedentos de uma esposa e do que ela
significava: a possibilidade de ter sua própria casa e bens – tornando-os invejosos
dos “seniores”. È de se recordar que os acordos de casamento eram realizados sem
a consideração dos sentimentos dos esposos, ou mesmo seu consentimento, o que
fazia com que essas uniões não passassem de uma ligação fria, quase comercial. O
amor cortês funcionava, segundo Duby, como um código que complementava o
direito matrimonial, sendo privilégio exclusivo das pessoas da corte, portanto do
cavaleiro; o vilão estava excluído deste jogo de homens:
No próprio seio da cavalaria, o ritual cooperava de outro modo, complementar, para a
manutenção da ordem: ele ajudava a controlar parte do tumulto, a domesticar a "juventude".
22
O jogo do amor, em primeiro lugar, foi educação da medida. Medida é uma das palavras
chaves de seu vocabulário específico. Convidando a reprimir os impulsos, ela era em si um
fator de calma, de apaziguamento. Mas esse jogo, que era uma escola, trazia consigo também
o concurso. Tratava-se, superando o concorrente, de ganhar o prêmio do jogo, a dama. E o
senior, o chefe da fortaleza, aceitava colocar sua esposa no centro da competição, em situação
ilusória, lúdica, de preeminência e de poder. Até certo ponto: o código projetava a esperança
de conquista como uma miragem nos limites imprecisos de um horizonte artificial. (1989: 64)
Após esta análise inicial, estaremos concentrando nossa reflexão sobre o amor e
o erotismo medieval no estudo das obras literárias anteriormente mencionadas.
Inicialmente faremos uma abordagem geral da temática e do estilo de cada uma
delas, como se segue abaixo.
A Demanda do Santo Graal
Em linhas amplas, o enredo da Demanda portuguesa é o seguinte: o Rei Artur e
seus 150 cavaleiros estão reunidos à volta da Távola Redonda para festejar o
Pentecostes – festa cristã que celebra a descida do Espírito Santo aos cristãos – e à
espera de algum acontecimento maravilhoso, extraordinário. Nesse ínterim, chega
uma donzela à procura de Lancelot, para que este a acompanhe até a floresta onde
será armado Galaaz, seu filho bastardo. Ao retornarem para Camaalot, inúmeros
sinais demonstram que Galaaz é o cavaleiro esperado e eleito para dar cabo às
aventuras do reino de Logres: ele retira a espada fincada no mármore que boiava
descendo o riacho – dela se dizia que só seria retirada pelo melhor cavaleiro do
mundo, façanha que havia sido tentada sem sucesso por Lancelot, Galvão e outros
cavaleiros; a ocupação, por Galaaz, do acento perigoso na Távola Redonda, no
qual apenas poderia se sentar o cavaleiro perfeito; as palavras do ermitão que
acompanhava Galaaz: "Rei Artur, eu trago o cavaleiro desejado, aquele que vem da
alta linhagem de Davi e de José de Arimatéia, pelo qual as maravilhas desta terra e
das outras terão fim."
A seguir, chega o Graal, satisfazendo a todos com iguarias especiais e
enchendo-os da graça do Espírito Santo. Quando o Graal vai embora, os cavaleiros
sentem o desejo de trazê-lo de volta a Logres, jurando a demanda. As aventuras se
iniciam, e a maior parte dos cavaleiros ficará pelo caminho, sem conseguir
encontrar o Graal, dizimados pela Besta Ladradora ou pela fúria de Galvam;
apenas Boorz, Persival e Galaaz chegarão a Corberic, onde se encontra o Graal.
Entretanto, Galaaz é o único que contemplará o santo Vaso; Persival morre e é
enterrado numa ermida e Boorz retorna a Logres para dar as notícias ao Rei Artur,
fazendo-se depois um ermitão, bem como Lancelot e Heitor. Sem o Graal, o reino
de Logres é destruído por seus inimigos, e o Rei Artur é traído pelo Rei Mars, seu
sobrinho. Ferido, Artur faz com que seja atirada a um lago Excalibur, a espada
sagrada dos druidas, e desaparece levado pela fada Morgana em uma barca. Em
seguida, o escudeiro do Rei, Gilfrete, irá a uma ermida próxima onde um ermitão
lhe diz que Artur foi enterrado, mas o túmulo está vazio, contendo apenas o elmo
do Rei. O mistério se aprofunda, então, pela impossibilidade de se saber do
verdadeiro destino de Artur.
23
A seleção feita por Heitor Megale não contém todos esses episódios; e é de se
mencionar também a fragmentação deste texto, com personagens que entram e
saem sem conexão com a linearidade da narrativa, como por exemplo o
protagonista Galaaz, que desaparecerá no fragmento 676 sem reaparecer e sem que
sejam dadas explicações de seu destino. Este é um elemento complicante para a
leitura, em especial por quem não tenha prévio conhecimento do enredo.
Amadis de Gaula
O Amadis de Gaula apresenta inúmeras semelhanças com a Demanda do Santo
Graal, cabendo ressaltar: a geografia em que se passam as aventuras, de vez que,
conforme observa Carolina Michaelis de Vasconcellos, "Gaula" corresponde a
Gales, não a Gália, localizando-se portanto na Grã-Bretanha; o elogio ao melhor
cavaleiro do mundo (na Demanda este é Galaaz e no Amadis é ele próprio); os
sinais inegáveis da eleição do cavaleiro perfeito; a valorização das virtudes da
coragem, força, beleza e lealdade; a determinação dos heróis, decididos que estão a
se fazerem heróis; a valorização da aventura pela própria aventura; o misticismo
fantástico que mistura elementos cristãos à presença de monstros, gigantes, fadas,
magos, referências à cultura grega, etc; o enredo fragmentado, formado pelo
entrelaçamento de aventuras concomitantes; o estilo oral, conveniente à prática de
leitura em voz alta; a recorrência de sinais sobrenaturais (sonhos, visões, vozes
misteriosas, objetos mágicos que revelam enigmas aos eleitos ou que então
revelam verdades sobre eles – veja-se a esse propósito a espada do pai, que serve
para que este reconheça em Amadis o filho cuja existência havia sido anunciada
em sonho enigmático, lembrando a espada fincada no mármore e retirada por
Galaaz, como prova de que era o cavaleiro eleito. (Maleval,1992)
O enredo de Amadis se assemelha às narrativas de personagens bíblicos: i)temos
primeiro as provas de sua eleição, isto é, de que ele era o cavaleiro escolhido – O
Perfeito Amador –, muito semelhante à narrativa de Moisés1; ii) a singularidade de
Amadis é confirmada, também, pelo fato de ter como pais um nobre casal que
havia dado provas de que um verdadeiro sentimento os unia, tendo enfrentado
diversas provas até a institucionalização da relação pelo casamento; iii) em seguida
Amadis passa um tempo na corte de Gandales e depois na corte de el-rei
Languines, onde cresce e espanta a todos com sua formusura, força e coragem;
iv)Amadis, ao chegar à puberdade, conhece Oriana, a Sem Par, por ela se apaixona,
e, sentindo-se indigno dela por não saber quem são seus pais e nem que é de
sangue nobre, decide ser cavaleiro, “para ganhar honra e preço como aquele que
não sabe de onde vem” (AG: 61); v) o restante da obra se divide na narrativa de
aventuras que vão confirmando a superioridade de Amadis em todos os aspectos
(força, beleza, lealdade, honra, fé e devoção amorosa), na descoberta de sua
1
Amadis é, como o patriarca bíblico, atirado às águas dentro de uma arca que continha um pergaminho com as seguintes
palavras: "Este é Amadis sem tempo, filho de Rei"; além do pergaminho a arca continha um anel dado, por D. Perion, a
Elisena, além de sua espada. Isto ocorre por que Elisena, sua mãe, escondia sua gravidez por medo do que poderia lhe
acontecer e a seu filho, caso se descobrisse seus amores secretos com D. Perion, que, pelo tempo do nascimento de
Amadis, estava ausente.
24
descendência nobre e na superação, depois de inúmeras peripécias, dos empecilhos
a sua união com Oriana.
Quanto a esse último núcleo temático, é digno de nota como esta novela de
cavalaria valoriza os encontros e desencontros amorosos de Amadis e Oriana: em
todos os episódios, mesmo nas lutas mais cruentas, Amadis encontra sua
“inspiração” no amor que sente por Oriana; veja-se o exemplo abaixo, em que
Amadis luta contra um poderoso adversário num combate assistido pela corte, mas,
ao avistar Oriana, após muitos anos sem se encontrarem, ele titubeia no duelo:
Mas, ah! Senhores, assim como Oriana o ia perdendo, Oriana o salvou: porque Amadis
lembrou-se que a fraqueza poderia ser julgada covardia. Então, como acordando de um sonho,
sentiu que lhe afluía ao sangue uma força invencível. E, crescendo para Dardan, arrancou-lhe
o elmo de um golpe e o Soberbo rolou ao chão! (AG, 1983: 77)
Não obstante as semelhanças, salta aos olhos que Amadis é um herói diverso dos
cavaleiros da Demanda, e sua singularidade reside exatamente na “modernidade”
daquilo que o move: Amadis é movido pela paixão, um cavaleiro-poeta exemplar,
cuja epítome primeira é Amadis, o bom amador. Michaelis, em prefácio da versão
portuguesa de Afonso Lopes Vieira, afirma que
... foi o idealismo amoroso de Amadis que impressionou os Quinhentistas. Foi a admirável
combinação que há nele de uma audácia e heroicidade a toda prova, em perigos e guerras, e,
na paz, de mesura discreta, suave melancolia e sentimentalidade meiga, qualidades que
estavam em contraste abençoado com a bárbara rudeza dos costumes, documentada em
numerosas façanhas registradas nos Livros de Linhagem. (AG, 1983: 14)
O próprio narrador confirmará que as aventuras e maravilhas vividas por
Amadis são motivadas pelo amor de uma mulher, Oriana:
... é que toda história que se vos conta, só por amor dela se pode contar. E entre todas as
Bem-Amadas nenhuma foi mais bem-amada. Nem Genevra, a quem tanto amou Lançarote do
Lago; nem Brancaflor, a quem tanto quis Flores, nem mesmo a loira Iseu, por quem morreu
Tristan de Leonis, foram mais adoradas que Oriana. (AG, 1983: 59)
Análise comparativa de A Demanda do Santo Graal e Amadis de Gaula
A modernidade da novela de cavalaria Amadis encontra-se justamente em ser uma
glorificação do amor romântico que, ainda que ilegítimo perante as leis dos
homens, é protegido pelas bênçãos divinas, conforme se vê na assertiva de
Darioleta, acerca do romance de Elisena e D. Perion, futuros pais de Amadis:
“Ficai senhora, que ainda que vos defendestes de muitos, e ele de muitas também
se defendeu, mandou Deus que vós não defendêsseis um dos outro.” (AG, 1983:
40)
A nossa hipótese é que as duas obras analisadas podem oferecer uma leitura do
percurso que o amor romântico efetuou entre a sua exclusão completa do
25
casamento medieval, com conseqüente afastamento das relações legítimas 1, até sua
eleição como princípio fundamentador das relações entre homem-mulher e base
para a instituição familiar. Parece que a obra Amadis já apresenta uma mudança
significativa na percepção ideológica do amor e do erotismo, e é interessante notar,
também, como essa novela de cavalaria foi popular no Renascimento: recebeu mais
de vinte impressões antes de 1588; as aventuras de Amadis foram continuadas por
outros autores, chegando a constar de doze livros, cada qual com um título e herói
específico, e o livro original foi traduzido para as principais línguas vivas
(inclusive para o hebraico, em 1540). Assim, “esse Amadis ficou sendo um dos
livros prediletos de fantasia, tanto em cortes, palácios e solares como em casas
burguesas, hospedarias e celas de frades e freiras, lido e relido pelos reis, fidalgos,
letrados, artistas e santos.” (Carolina de Michaelis, In: AG, 1983: 12).
Portanto, a popularidade deste herói, atestada pelo depoimento de Dom Quixote,
a afirmar que esta era a única obra a merecer ser salva da fogueira (Michaelis, AG,
1983: 12), parece indicar que os ideais do amor delicado já haviam saído do
círculo restrito das cortes, alcançando paulatinamente os vilões, e tornando-se,
como se vê hoje, a grande força motriz das artes, populares e elitistas: o amor
romântico tornou-se, segundo André Lázaro (1996), o fundamento da moderna
sociedade de consumo (o amor “vende” qualquer coisa, veja-se os anúncios de
propaganda), ele próprio um objeto de consumo que promete conferir a seu dono
uma experiência singular, em oposição à massificação que caracteriza suas outras
vivências sociais, comercializando signos utilizados nas “formas” de amar
aprendidas com as estrelas da TV.
Um elemento importante da Demanda que pode nos auxiliar a traçar um paralelo
entre as duas obras, quanto à forma em que ambas tratam das relações amorosas, é
oferecido pela condição de ingresso na busca do Graal: o cavaleiro não poderia
levar consigo mulher, sob pena de cometer pecado mortal. Conforme aponta
Mongelli (1992), nesta época conturbada e cindida pelos igualmente sedutores
apelos da Igreja/Cavalaria e da Prevaricação, “o erotismo dos trovadores é
combatido pela multiplicação das hagiografias sobre a vida dos santos e mártires,
exemplos ascéticos contra a tentação do pecado. Divididos entre rezar e
prevaricar...” aos cavaleiros não era permitida a vivência da sexualidade, mesmo
aquela legitimada pela Igreja, isto é, dentro do casamento (Mongelli, 1992: 76). Ao
contrário de Amadis, cuja maior virtude é ser o Bom Amador, Galaaz, é o
cavaleiro perfeito da Demanda, “o puro dos puros porque nunca pecou contra a
castidade, a única falha que parece verdadeiramente impedir o acesso ao Graal, a
menos que a purgação seja longa e sincera, como a de Boorz.” (ibidem:72)
Amadis possui todas as virtudes necessárias ao cavaleiro, além daquelas
virtudes que em francês arcaico são designadas com os termos “largesse”
(generosidade) e “courtoisie” (cortesia), mas não encontram uma correspondência
exata e satisfatória no francês moderno.
O primeiro, largesse, significa ao mesmo tempo a liberalidade, a generosidade e
a prodigalidade, supondo a riqueza. Seu oposto é a avareza e a busca do lucro, que
qualificam os mercadores e burgueses das comunas, constantemente
1
Conforme anotado por Duby (1989: 58), a sentença da Igreja definia a relação conjugal em termos de cordialidade e
amizade: “O amor do marido por sua mulher se chama estima, o da mulher por seu marido chama-se reverência” .
26
ridicularizados por Chrétien de Troyes e seus imitadores. Numa sociedade em que
a maior parte dos cavaleiros vive mesquinhamente do que lhes dão ou concedem
seus protetores, é normal que a literatura exalte as oferendas, as despesas, o
desperdício e a manifestação do luxo.
(http://www.terravista.pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria.htm)
Já o termo cortesia, courtoisie, é ainda mais difícil de definir, pois compreende
todas as qualidades acima, além da beleza física, e ainda: a elegância e o desejo de
agradar; a doçura, o frescor da alma, a delicadeza de coração e de maneiras; o
humor, a inteligência, uma polidez requintada, e, para dizer claramente, um certo
esnobismo. Pressupõe também a juventude, a liberdade de todo apego para com a
vida, a disponibilidade para a guerra e os prazeres, a aventura e a ociosidade. Seu
oposto é a “vilania”, defeito próprio dos vilões, dos rústicos, das pessoas
malnascidas e sobretudo mal-educadas. Para ser cortês, a nobreza de berço não
basta; os dons naturais devem ser refinados por uma educação especial e
alimentada por práticas cotidianas no palácio de um grande senhor. O modelo é a
corte de Artur. É lá que encontramos as damas mais belas, os cavaleiros mais
valentes, as maneiras mais delicadas.
(http://www.terravista.pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria.htm)
Alguns episódios são extremamente importantes para entender essa misoginia
que perpassa toda a Demanda. A primeira maravilha 1 da Demanda analisada
chama-se Como Galaaz e Boorz chegaram ao castelo de Brut e a filha do rei
enamorou-se de Galaaz por louco amor. Como o título do episódio já antecipa, a
filha do rei Brut se apaixona perdidamente por Galaaz. Resta saber se a loucura
deste amor se deve aos acontecimentos subsequentes, isto é, ao suicídio da donzela
após ser recusada por Galaaz, comprometendo a sua inocência diante da morte
dela, ou, então, ao próprio amor por aquele que, não obstante toda sua formosura,
havia jurado permanecer casto até a morte.
A própria Besta Ladradora, que os cavaleiros irão perseguir tenazmente durante
toda a demanda, é um exemplum doutrinador dos perigos da sensualidade, arma
demoníaca a tentar os mais frágeis, em especial as mulheres. Conforme Furtado
(2000: 66) “a imagem híbrida da Besta Ladradora tem a função de um emblema,
objeto que comumente acompanha e serve de insígnia a locuções proverbiais.” A
Besta é fruto da união entre uma nobre donzela e o próprio Diabo, sendo prova
cabal da traição que a donzela praticou contra o próprio irmão, levando-o à morte
injusta. Nesse episódio o prazer sexual aparecerá intrinsecamente ligado à luxúria
e à infâmia:
Deste modo entregou seu amor ao demo, e ele deitou-se com ela, como o pai de Merlim com
sua mãe. E quando deitou com ela teve tão grande prazer que esqueceu o amor de seu irmão
tão mortalmente que mais não poderia. Um dia estava diante de uma fonte com seu amigo, o
demo, e começou a pensar muito. E ele lhe disse: –Que pensais? Pensais como podereis matar
vosso irmão? – Por Deus – disse ela – isso. E ora bem vejo que sois o homem mais sisudo do
1
Termo freqüentemente usado na Demanda para designar algum evento que causasse espanto, admiração ou pasmo.
Segundo Jacques Le Goff: "Com o termo mirabilia estamos perante uma raiz mir (miror, mirari) que comporta algo de visivo.
Trata-se de um olhar. Os mirabilia não são naturalmente apenas coisas que o homem pode admirar com os olhos, coisas
perante as quais se arregalem os olhos; originalmente há, porém, esta referência ao olho que me parece importante, porque
todo um imaginário pode organizar-se à volta desta ligação a um sentido, o da vista, e em torno de uma série de imagens e
metáforas que são metáforas visivas.” (1985:20) As maravilhas são, portanto, exemplos para serem vistos.
27
mundo, e rogo-vos por aquele amor que tendes por mim, que me ensineis como o possa matar,
porque não há nada no mundo com que tanto me agradasse. (DSG, 1996: 126)
Os exemplos se multiplicam: a mulher da tenda, que, apesar de inocente,
provoca a morte do marido e de parentes dele (pai e dois irmãos); a bela grega na
tenda, que na verdade era o demônio disfarçado para tentar Persival; o episódio da
Fonte da Virgem, lugar onde todo aquele que não fosse casto cairia sem forças até
a morte, cujas origens remontam também a um amor incestuoso entre irmão e irmã;
a mulher da capela, que novamente retoma o topos do amor infeliz aliado ao
assassinato... Cada fragmento narrativo contém algum evento onde se misturam
misoginia e educação pelo terror, conforme Mongelli (1992):
Embora na Besta Ladradora se concentre a grande metáfora das transgressões a que conduz o
gosto pecaminoso da “fornicacion”, a maioria quase dos episódios vividos pelos demais
cavaleiros acaba desembocando, de maneia mais ou menos nítida, nos perigos a que se expõe
o homem apaixonado. Tanto que o conflito central da Demanda culmina por ser entre o
juramento feito e a incapacidade de cumpri-lo, principalmente no que tange à mulher. Vítimas
de sua humanidade imperfeita e ansiosos por um Graal mirífico que lhes dará a redenção, os
vassalos de Artur empreenderam “agonicamente” a Santa Busca como se corressem atrás de
um objeto sabidamente impossível de alcançar. (1992: 72)
Um episódio a meu ver altamente significativo é a morte da rainha Genevra,
cuja história de amor com Lancelot, ainda que adulterina e ferindo os ideais de
honra e lealdade da cavalaria – afinal, Lancelot devia lealdade 1 a Artur – poderia
ser citada como um exemplo único da menção de uma relação amorosa, na
Demanda. Ainda assim, é interessante notar que no episódio mencionado, o de sua
morte, os signos amorosos não se cumprem corretamente e o exemplum que se tem
é de um desencontro implícito na paixão amorosa. Genevra adoece gravemente por
pensar que Lancelot está morto, e, estando em seus últimos instantes, pede à criada
que após sua morte retire seu coração e leve-o para Lancelot, um souvenir macabro
a lembrar a grandeza desse amor. Entretanto, é curioso observar que a criada não
cumprirá sua missão porque, como conta o conto, “a donzela cumpriu sua ordem,
mas não achou Lancelot e por isso não deu cabo a tudo que a rainha mandara.”
(DSG, 1996: 152)
Considerações finais
A paixão amorosa, como se percebe pelos episódios explicitados, é fonte de
violência, traição, desilusão, desencontro e apostasia. Na Demanda do Santo
Graal, o amor-romântico ainda não terá encontrado o seu espaço utópico e
individual em oposição à conveniência social e às relações públicas estereotipadas
dos casamentos arranjados. Tal movimento parece se adiantar no Amadis de Gaula,
1
Os dez mandamentos do cavaleiro são os seguintes: I- Acreditarás em tudo o que a Igreja ensina e observarás todos os
seus mandamentos; II- Protegerás a Igreja; III- Defenderás todos os fracos; IV- Amarás o país onde nasceste; V- Jamais
retrocederás ante o inimigo;VI- Farás guerra aos infiéis até exterminá-los;VII- Cumprirás com teus deveres feudais, se estes
não forem contrários à lei de Deus;VIII- Nunca mentirás e serás fiel à palavra empenhada; IX- Serás liberal e generoso
com todos; X- Serás o defensor do direito e do bem, contra a injustiça e contra o mal.
http://www.terravista.pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria.htm .
28
onde teremos a apologia do Bom Amador, como fica explícito na profecia sobre
ele:
Digo-te que aquele que achaste no mar será a flor da cavalaria: fará tremer os fortes,
humilhará os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará com honra. E será também o
cavaleiro que com mais bela lealdade há de manter seu amor. (AG, 1983: 51)
Assim, Amadis é glorificado por diferentes aspectos que já tínhamos observado
nos cavaleiros da Demanda; contudo a característica que o distingue dos outros é
justamente a capacidade de unir força e fraqueza: é absolutamente notável o
número de vezes em que Amadis chora pelo amor de Oriana, causando espanto até
mesmo em seus companheiros:
Vendo desfalecido o mais forte cavaleiro, a quem apenas derrubava o cuidado da bem-amada,
considerava o escudeiro com pranto enternecido aquele maravilhoso amor do seu senhor e
amigo. – Este que vai desacordado – pensava Dardalin – aquele é que venceu Dardan o
Soberbo, desbaratou Abies de Irlanda, converteu Madarque o gigante, matou o demônio
Endriago. (AG, 1983: 151)
Tal como já havia dito o apóstolo Paulo, sobre o sofrimento por amor a Cristo,
Amadis poderia responder a possíveis interlocutores: “Pois, quando sou fraco é que
sou forte” (II Carta aos Coríntios, 12:10). O amor torna-se, no Amadis de Gaula,
um método de subjetivação e aperfeiçoamento; a fraqueza torna-se força em uma
significativa inversão de significantes culturais. Ao contrário do que aconteceu
com Erec, à beira da Fonte da Virgem, a realização do amor e do erotismo não
torna Amadis mais frágil, pois sua aparente fraqueza é transformada em força
combativa e guerreira; a fraqueza reside em não viver a paixão, em estar longe do
amado, e não na vivência do amor. O amor é, no Perfeito Amador, plenamente
legitimado.
Referências bibliográficas
CASEY, James. A história da família. São Paulo : Ática, 1992.
DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
FURTADO, Antonio L. Formação de uma alegoria na Demanda do Santo Graal.
Revista Palavra, nº7, Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2001.
GOFF, Jacques Le. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa:
Edições 70, 1985.
LÁZARO, André. Amor: do mito ao mercado. Petrópolis: Vozes, 1996.
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. A prosa de ficção: Amadis de Gaula. In: A
literatura portuguesa em perspectiva. Vol. I , São Paulo: Atlas, 1992.
MEGALE, Hector (apresentação e tradução). A Demanda do Santo Graal. São Paulo:
Ateliê Editorial, 1996.
MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. A novela de cavalaria: 'A Demanda do
Santo Graal'. In: A literatura portuguesa em perspectiva. Vol. I , São Paulo:
Atlas, 1992.
29
ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
VIEIRA, Afonso Lopes. Amadis de Gaula. Lisboa: Ulmeiro Livraria e Distribuidora. 1983
FERNANDES, Raul César Gouveia. Reflexões sobre o estudo da Idade Média.
http://www.terravista.pt/Enseada/2674/Medieval_cavalaria.htm Acessado em 23
de junho de 2003.
30
As Vozes Femininas em Perceval
Cristina Almeida
“Plus profond est le coeur des femmes que
la plus profonde mer du monde”
Resumo: Este estudo visa abordar a identidade feminina no romance arturiano Perceval,
do século XII. Para o desenvolvimento do trabalho foram escolhidas quatro figuras
femininas que fizeram parte da vida do cavaleiro, visando demonstrar como elas foram
importantes para preencher por completo a sua armadura. Baseada numa leitura feminista,
esta avaliação terá como ilustração as críticas literárias, a questão do gênero, a posição da
mulher na literatura e na sociedade medieval.
1- Introdução
Deve-se ao poeta francês Chrétien de Troyes um dos trabalhos literários mais antigos e
conhecidos até hoje sobre a lenda do Graal. O cavaleiro em questão é Perceval, um jovem
imaturo que se joga de corpo e alma nas aventuras cavaleirescas que permeavam as
histórias do ciclo arturiano.
Como o objetivo deste estudo é sublinhar as influências femininas na vida deste
cavaleiro, resolvi considerar a teoria dos arquétipos femininos de Jung por entender que a
moderna psicologia reconhece o quanto este estudo também é fundamentalmente
importante na atualidade, apesar de reconhecer que a mulher na sociedade medieval
desempenhava um papel estritamente social, não sendo levado em consideração nenhum
traço psicológico capaz de alterar sua estrutura de comportamento. Achei interessante
analisar por este viés já que numerosos paralelos mitológicos e histórico-religiosos
mostram que não se trata apenas de algo individualmente condicionado, mas de situações e
atitudes arquetípicas universalmente existentes.
O que se passa aqui nesta esfera é que, em se tratando de personagem feminino, o papel
desempenhado pela mulher na literatura arturiana orienta a nossa reflexão sobre a
encruzilhada de influências de uma sociedade celta, as tendências ideológicas e uma linha
de cristianização que vinha se instalando a partir do século XII. A importância do
personagem feminino neste romance está intimamente relacionada com a busca do Graal e,
conseqüentemente, com os ideais cavaleirescos de honra, serviço e linhagem.
Por mais que seja sabido que damas e donzelas desempenhavam papéis de tentação,
mistério e premonição, muitos personagens femininos aparecem aqui em Perceval como a
verdadeira manifestação do bem e do amor apesar de não terem nenhuma “vantagem” do
ponto de vista feminino, pois invariavelmente eram abandonadas em função de uma missão
mais importante dos cavaleiros. É exatamente sobre este “estado” das mulheres na literatura
que nos fala todo o movimento feminista que se instalou no mundo no meio do século XX
e que vou neste trabalho tratar em particular.
31
2- Tempo e história: a mulher na literatura
Enquanto o homem criava e recriava o mundo, descobria novos territórios e marcava com
sua atuação todo o processo de construção cultural, por onde andava a mulher?
A mulher não foi considerada personagem, senão à margem da história, em todas as
dimensões contidas nesse processo. Em geral, sua presença tem-se definido como corolário
do protagonismo masculino. Na maior parte dos casos em que a mulher surge na cena, ela
tem como ponto de referência o desempenho masculino, seja como exemplo ou modelo de
solidariedade e dedicação ao homem, seja como objeto de paixão ou outras expressões
derivadas das ações masculinas, estas sim entendidas como originais, renovadoras e
revolucionárias. Na interação homem-mulher, o que mais chama a atenção é o uso
sistemático do poder do primeiro sobre a segunda, bem como o abuso da autoridade que
decorre desse poder .
As razões de permanência, pelos séculos afora, da velha fórmula imobilista “homem é
homem, mulher é mulher” apontam para aspectos importantes dessa saga e trazem para o
debate a tentativa de reconstrução desse modelo. Sempre a figura feminina é tecida nos
enredos de forma a não perdoar jamais a pecadora, a infiel, a devassa ou a adúltera. “Desde
as civilizações mais antigas até as primeiras conquistas da chamada revolução industrial, a
história da humanidade tem sido a história de personagens masculinos, sejam eles
guerreiros, sacerdotes, heróis ou artistas: os faraós do Egito, os deuses gregos, os profetas
islâmicos, os evangelistas que disseminaram a fé cristã, os imperadores da China, os
samurais do Japão, sem exclusão, foram todos personagens homens”, (como avalia Moema
Toscano em seu ensaio “Um espaço para a mulher” in Feminino/Masculino, Jacobina, E.).
Como se vê, em todo o mundo, as mulheres através da história da humanidade têm sofrido,
sob o jugo do patriarcado, um discurso que as diferencia, separa, humilha e subjuga. Esse
discurso, partindo de uma diferença biológica, constrói diferenças sociais marcantes que se
encontram, ainda hoje, presentes nas mais avançadas culturas do mundo.
3- Crítica feminista
Simone de Beauvoir assim se expressa em O Segundo Sexo (1940).
Esta humanidade é masculina e o homem não define a mulher per se, mas com relação a ele; ela não é
tida como ser autônomo...Define-se e diferencia-se a mesma em relação aos homens e não em relação a
ela; ela é o não essencial, em oposição ao essencial. Ele é o sujeito, ele é o Absoluto – Ela é a outra.
Isto está mais que evidente na linguagem, tanto literária como não literária. Segundo
Heloísa Buarque de Holanda em Vozes Femininas “... As teorias críticas feministas estão
experimentando um momento bastante interessante. Nos países de formação saxônica,
especialmente nos Estados Unidos, conseguiram certa legitimidade acadêmica e
constituem-se como uma inegável tendência dentro do mercado editorial. Muitos centros de
women´s studies se formaram dentro das universidades, desde a segunda metade dos anos
70, e seu projeto é claramente intervencionista e político-acadêmico. Na França, já o quadro
é relativamente diverso. Os estudos feministas, cuja facção mais representativa e
internacionalmente reconhecida é ligada à psicanálise, recusam a filiação institucional
dentro das universidades e preferem formas de organização independentes ou, pelo menos
32
desvinculadas da produção acadêmica oficial. De um modo geral, a formação desta área de
conhecimento está intimamente ligada aos movimentos políticos dos anos 60, mas vai
ganhar estatuto acadêmico um pouco mais tarde, no contexto da consolidação das teorias
pós-estruturalistas e desconstrutivistas, cuja desconfiança sistemática em relação aos
discursos totalizantes passa a ter uma posição central no debate teórico conhecido como
pós-modernista...”
A crítica literária é o outro campo questionado pela teoria feminista, no sentido de que
grande parte da crítica adotou valores e critérios que de igual forma centralizavam a visão e
a experiência masculinas, marginalizando aquelas da mulher. A crítica feminista norteamericana Annete Kolodny demonstrou como a educação e o processo crítico posicionam e
condicionam o leitor a enxergar e apreciar os textos de certa forma permissíveis. Ela afirma
que a leitura é uma forma de compromisso não com os textos, mas com paradigmas: ou
seja, “apropriamos o sentido de um texto de acordo com nossas necessidades (ou desejos),
ou, em outras palavras, de acordo com as presunções críticas ou predisposições (sejam
conscientes ou não) que trazemos a ele”.(Webster, R in Studying Literary Theory).
O livro de Virgínia Woolf, Seu Próprio Quarto (1928), embora não seja uma obra
teórica no sentido convencional do termo, funciona como ponto de partida para o estudo da
literatura feminina e como início de uma crítica feminista. Neste ponto, vale observar que
alguns críticos feministas têm evitado o discurso da teoria literária como uma extensão
maior do discurso masculino e, portanto, da dominação nos estudos literários, e certamente
a força e talvez as propriedades lingüísticas de muitas obras teóricas realmente tornam esta
uma posição válida. Avançando a partir daí, seria perigoso caracterizar a teoria feminista
como um discurso unificado: por sua natureza, a maioria das obras feministas tenta evitar
uma visão singular e centralizada em favor do âmbito mais plural, mantendo-se
descentralizada nas abordagens. Seria mais apropriado neste contexto, falar em feminismos.
Virgínia Woolf fazia parte de um movimento mais amplo de mulheres escritoras que
haviam adotado um ponto de vista especificamente feminino no início do século vinte,
entre elas Katherine Mansfield, Rebecca West e Dorothy Richardson.. Assim como no
Marxismo, é perigoso caracterizar a literatura feminista em termos de personalidades
individuais, e é útil ver a literatura de Virgínia Woolf como parte de um movimento maior
ou de um novo discurso que começou a desafiar os discursos do gênero dominante; é
também uma tentativa de recuperar e explorar pontos ressaltados por outras escritoras, até o
momento amplamente ignoradas. O argumento principal de Woolf com relação à ausência
de mulheres escritoras está relacionado às condições materiais sob as quais vivem as
mulheres, com pouca ou nenhuma independência financeira e geralmente destinadas a
servir às necessidades dos homens.
No que tange especificamente às identidades femininas a história mostra que elas têm
sido formadas em oposição às identidades masculinas e, na maioria do tempo, em uma
evidente relação de subordinação e controle. Millet, em seu texto Sexual Politics (1993),
observa como o sexo tem sido utilizado para degradar a mulher e engrandecer o homem e
tem sido negligenciado em seu aspecto político. A estrutura do patriarcado foi gerando, ao
longo do tempo, vários mecanismos para moldar a identidade da mulher de forma a torná-la
subordinada. Esses mecanismos vão desde a fossilização e criação de estereótipos do que
seja e de como deve se comportar a mulher, até a ênfase nas diferenças biológicas,
limitando os espaços de atuação da mulher dentro da sociedade, diferenciando as mulheres
em classes e modelos antagônicos, evitando seu acesso à educação e atividades
econômicas, usando a força e até mesmo mecanismos psicológicos, através dos quais a
33
mulher é levada a interiorizar a ideologia do patriarcado. Com a entrada das ditas
sociedades modernas, que se convencionou chamar de pós-modernidade, observa-se que
em alguns contextos sociais essas práticas de dominação passam a atuar de forma cada vez
mais indireta depois que as mulheres vieram a conquistar direitos em seus casamentos e
através de seu voto. O poder do patriarcado pode não estar tão presente nas ditas sociedades
democráticas, mas ainda se evidencia como analisa Michel Foucault (Machado,1982), ...”o
poder não se localiza num lugar específico; antes, ele é uma estrutura, uma rede sem limites
e que é exercido, ao invés de ser possuído por alguém ou alguma entidade dentro da
sociedade”.
Diversas questões sobre a representação da mulher na literatura foram suscitadas no
século XX, especialmente por Virgínia Woolf, e logo por críticas literárias feministas. Isto
não significa que não houve tentativas anteriores de questionar a posição da mulher através
de um meio literário: A Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792) de Mary
Wollstonecraft defendia a necessidade de apurar a educação das mulheres, e romancistas do
século XIX, tais como George Elliot na Inglaterra e George Sand na França, atacavam as
atitudes sociais vigentes em relação à mulher, embora não de maneira tão radical como suas
sucessoras do século XX. A questão principal que se tornou cada vez mais significativa é:
até que ponto estão representadas na literatura as experiências e a voz da mulher? Resgatar
esta trajetória silenciosa tem sido objeto de estudo de inúmeras teorias feministas.
4 - Construção da identidade: um estudo sobre gênero
Quando comecei a fazer esta pesquisa, deparei-me com diversas formas de abordar o tema
do feminino, mas, em todas as leituras que fiz, o gênero era parte intrínseca do assunto æ
como se eu não pudesse falar de feminino ou masculino sem falar dos estudos de gênero e
da construção da identidade no discurso literário. Sendo assim, tendo em vista a
importância do discurso na formação da identidade, é importante esclarecer que discurso
aqui é entendido de forma que abranja qualquer enunciação onde haja um emissor e um
receptor (falante/ouvinte, escritor/leitor), e a intenção de influenciar o outro. Como observa
Sara Mills:
“O discurso não é um conjunto vazio de declarações, mas grupos de orações ou sentenças, declarações
que são estabelecidas dentro de um contexto social, que são determinadas por esse contexto e que
contribuem para o modo pelo qual o contexto social dá prosseguimento à sua existência”.(1997).
A identidade é um fenômeno relacional, uma vez que é construída a partir da negação do
que não se quer e da afirmação do que se pretende ser. Assim, as identidades não são
estáticas, já que estão sempre se modificando com menor ou maior grau de intensidade,
absorvendo alguns traços e repelindo outros, quase sempre, em termos de oposição. É dessa
maneira que marcas naturais (homem/mulher, branco/negro) são transformadas em
construtos sociais que classificam o sujeito em relações de subordinação: um homem que
nasce negro não nasce com uma identidade social da raça negra; esta lhe é imposta dentro
da sociedade, da mesma forma que o bebê ao nascer, embora possuindo a marca biológica
que o distingue entre masculino ou feminino, só aprende a se comportar como homem ou
mulher dentro dos construtos da sociedade.
34
O conceito de gênero com o qual estarei trabalhando aqui compreende o conjunto de
características que compõem homens e mulheres dentro de convenções socialmente
estabelecidas, o que implica em afirmar que gênero não é algo fixo, mas construído dentro
da interação social (Connell, 1995), diferente, portanto, da concepção que considera
masculino ou feminino como algo relacionado ao aspecto biológico. Existem dois modelos
identitários: o essencialista que entende que o homem herda características e idéias sobre o
mundo que orientarão suas práticas ao longo da vida, e o não essencialista que compreende
que a identidade é múltipla e, portanto, sujeita a modificações através do tempo. Uma visão
como a essencialista não é capaz de oferecer uma perspectiva ampla sobre a questão dos
gêneros, uma vez que, dentro desta forma de pensamento, tudo é compreendido como
estando “inscrito por antecipação, sem possibilidade de mudança ou de criação.
Prisioneiros de um esquema predeterminado, homem e mulher estão condenados a
desempenhar para sempre os mesmos papéis”. (Badinter, 1993).
Uma vez colocada a posição crítica-literária feminista em seus estudos bastante
avançados, cabe agora retornar ao universo feminino medieval e observar que, nos textos
sobre a demanda do Santo Graal, a tendência feminina surgirá freqüentemente aliada à idéia
de pecado. Da mesma forma que um homem se perdeu por causa de uma mulher, sendo
por isso expulso do paraíso, também os cavaleiros que se aventuram na corte arturiana
podem ser expulsos da possibilidade de contemplarem as maravilhas do vaso sagrado caso
se deixem cair em tentação.
Assim sendo, numa leitura atenta dessas obras, verifica-se o aparecimento de damas e
donzelas que permitem atestar a honra e a cortesia dos cavaleiros. Entendendo-se cortesia
æ ideal ético e social da cavalaria æ como uma noção que engloba tudo, todas as
qualidades morais do perfeito cavaleiro (generosidade, humildade, lealdade, bravura. etc.),
facilmente também se entende como os cavaleiros atendiam, sem questionar, aos pedidos
desses seres que se rodeavam de uma aura de mistério e maravilha, as damas e donzelas. É
assim que, por exemplo, Perceval atende à aflição de Blanchefleur quando esta solicita ao
cavaleiro libertar o seu castelo. Ele assim o faz com sucesso! Intervir a favor de uma
mulher e ampará-la fazia parte das virtudes de um cavaleiro.
O papel da mulher na sociedade medieval é bastante ambíguo, pois, se era exigido dos
cavaleiros em busca do Graal que não fossem seguidos por damas ou donzelas, eles, sempre
que solicitados, dispunham-se a servi-las para desta forma atestarem sua cortesia e sua
honra.
Em traços muito gerais, coexistem nas páginas dos contos arturianos, não
especificamente em Perceval, traços bem marcantes do aparecimento em cena das
mulheres. Por um lado elas são o amor e a fonte de toda a coragem dos cavaleiros e, por
outro, são vistas como simples encarnações do mal que usam suas belas e frágeis figuras
para tentar e seduzir o homem, desviando-o assim de suas missões.
O caráter misterioso que rodeia as personagens femininas emerge também daquelas que
prevêem o futuro, intimidando os cavaleiros com suas falas ameaçadoras, como foi o caso
da prima de Perceval e da mulher feia que o amaldiçoaram por não ter feito a pergunta
sobre a cerimônia do Graal que ele havia presenciado no palácio do Rei Pescador.
Neste trabalho, as mulheres que serão objeto de estudo, a mãe, a mulher da tenda, a
Blanchefleur e a mulher feia, têm em comum os diversos fios de influências, quer do ponto
de vista ideológico-moral, quer do ponto de vista do encontro de épocas e sociedades
diversas como a celta e medieval. Não raro, o aspecto mágico permeava o ciclo arturiano
em se tratando de personagem feminino, a maior de todas as fadas sendo sem dúvida a
35
Morgana. Preferi deixar para trás seu caráter maligno e exaltar seus fios mágicos que serão
tecidos por outras mãos, que por sua vez bordarão outras tramas sobre a busca do Graal.
5 - A mãe
A relação de Perceval com a mãe desde cedo foi bastante inusitada, uma vez que ela, já
viúva, resolveu poupar o filho das amarguras da cavalaria. Seu marido havia sido ferido em
combate, bem como seus outros dois filhos que não sobreviveram. O luto por essas perdas
o levou à morte e agora ela sozinha havia de cuidar da criação deste filho. Decidiu que,
escondendo Perceval na floresta, este jamais tomaria conhecimento das artes cavaleirescas.
Ele cresceu jogando dardos e ouvindo de sua mãe conselhos religiosos. Num desses dias de
brincadeiras encontrou-se com um grupo de cavaleiros e naturalmente não os reconheceu.
Sua ingenuidade era absoluta e sua inabilidade quanto ao comportamento social era infinita.
Perceval era até este momento um rapaz tolo e frágil:
“... O rapaz ouve mas não vê os que chegam a bom passo. Espanta-se dizendo consigo: por minh`alma,
minha mãe e senhora diz a verdade quando afirma que os diabos são as mais feias cousas do mundo, e
ensina que eu faça o sinal da cruz para me proteger deles.
...
- Garoto, não tenhas medo!
- Pelo Salvador em que creio, não tenho medo! Diz o rapaz – Sois Deus?
- Claro que não!
- Então quem sois?
- Um cavaleiro.
- Cavaleiro? Não conheço ninguém assim chamado! Nunca vi um. Porém sois mais belo que Deus.
Gostaria de parecer convosco, assim todo brilhante e afeitado! ...”(in Perceval, Chrétien de Troyes,
pág.27).
A partir deste instante, muda a vida de Perceval. Diz à mãe que quer ser cavaleiro, e esta
desfalece!
“-... Caro filho, meu coração muito sofreu com vossa ausência. Tive tanta tristeza que por pouco não
morri. Onde estivestes tão longe?
- Onde? Mãe, vou contar.Em nada vos mentirei, pois mui grande júbilo senti de uma cousa que vi.
Mãe, não dizíeis que os anjos e Deus Nosso Senhor são tão belos que jamais Natureza fez tão belas
criaturas?
- Sim, caro filho, e digo ainda. Digo e repito.
- Mãe, calai-vos! Pois vi hoje as mais belas cousas que existem, indo pela Gasta Floresta. Creio que
são mais belos do que o próprio Deus e todos os Seus anjos.
A mãe toma-o nos braços:
- Caro filho, entrego-te a Deus porque tenho mui grande medo por ti. Segundo creio, viste os anjos dos
quais a gente se queixa pois matam tudo que atingem.
- Verdadeiramente, não! Mãe! Oh, isso não! Não! Eles dizem chamar-se cavaleiros.
A esta palavra a mãe desfalece. Quando volta si, diz em grande cólera:
- Ah, infeliz que sou! Caro filho, eu acreditava vos manter tão bem afastado da cavalaria que jamais
ouvíreis falar dela! Nunca vos deixávamos ver um cavaleiro.”(in Perceval pg, 31).
Segundo Emma Jung em seu livro “A Lenda do Graal, a posição adotada pela mãe de
escolher um domicílio tão afastado deve-se a seu desejo de proteger o filho dos perigos do
mundo, especialmente dos da cavalaria. A mãe quer manter o filho sob suas asas longe das
36
influências do mundo a fim de protegê-lo dos perigos e dificuldades. Esta atitude
corresponde a um instinto fundamental que existe também nos animais e é chamado de
instinto protetor da ninhada. Isto, se levado adiante em idade avançada do filho, pode
acarretar estados neuróticos que Freud chamou de Complexo de Édipo, ao qual confere
importância fundamental. Já Jung demonstrou em sua obra Symbole der Wandlung, que a
"saudade da mãe" pode ser entendida como a ocultação do anseio de crescimento e
transformação, chegando assim ao significado transpessoal da mãe. Encarada deste ponto
de vista, ela não é mais uma determinada pessoa, porém, a doadora e conservadora da vida,
e, no mais amplo sentido, comparável ao inconsciente, fonte e raiz de toda a vida psíquica.
O desejo de não largar o filho muitas vezes é representado nos mitos e contos pelo ato de
devorá-lo ou matá-lo. Jung fala da mãe medonha ou devoradora que é representada na
mitologia como uma deusa cruel e destruidora, como a Kali indiana e, nos contos de fadas,
como madrasta ou bruxa.
A decisão de Perceval de ir ao encontro ao Rei Artur e assim se fazer cavaleiro rompe
definitivamente a sua relação com a mãe que, de tanta dor, falece. Antes, porém, ao
entender que a separação era inevitável, ela ainda o ajuda a vestir-se, à moda galesa por
certo, mas talvez numa última tentativa de servi-lo.
Este aspecto, sim, gostaria de salientar. Em algum momento da vida das mães elas
vivem como “ senhoras do servir”, são elas que alimentam os filhos, os educam, os
orientam, os protegem, os ajudam e fazem dessas tarefas seus objetivos de vida.
Apesar de as críticas insistirem em posicionar esta mulher como protetora-devoradora,
há que se reconhecer que todo o esforço dela foi no sentido de poupar Perceval de um golpe
de espada fatal. Este movimento é de amor, assim como seus ensinamentos religiosos e
suas considerações em relação ao tratamento com as donzelas.
-“...Se encontrardes, perto ou longe, dama que tenha precisão de ajuda ou damizela em desgraça, sede
pronto a socorrê-las assim que vos solicitarem. Quem às damas não presta honra é porque não tem
honra no coração...” ( in Perceval-pág-32).
6- A mulher da tenda
Perceval está na sua busca. Andando pela floresta passa por toda a sorte de aventuras. Um
dia encontra uma tenda e, como em toda a sua vida apenas conhecera uma simples cabana,
deixa-se levar pela curiosidade e, lá entrando, depara-se com uma donzela que lhe implora
que vá embora, que suma dali antes que seu companheiro volte e pegue Perceval com ela.
Nosso herói nem liga para seus pedidos e a toma nos braços, beijando-a de uma forma
bastante instintiva, sem muito se importar com os comprometimentos sociais implicados
neste ato.
...”Quando o rapaz penetrou sob a tenda, seu cavalo fez tal barulho de cascos que a donzela ouviu.
Despertou. Estremeceu. Muito inocente, o rapaz diz:
- Damizela, eu vos saúdo, pois minha mãe recomendou-me saudar todas as damizelas, em todo o lugar
onde as encontrar.
A donzela treme de medo, pois esse rapaz parece louco, e ela pensa que também é louca de deixar que
a achem sozinha nesse lugar.
- Vai embora, rapaz! Segue teu caminho, que meu amigo não te veja!
- No entanto vos beijarei, juro! Tanto pior para quem se agastar!
37
- Nunca vos beijarei, se puder me defender – diz a donzela. – Foge! Que meu amigo não te encontre
aqui, ou estás morto!
Mas o moço tem braços fortes e a abraça avidamente, pois não sabe fazer de outra forma.
Segura-a deitada sob seu corpo, malgrado a defesa que ela tenta para se desvencilhar. Mas em vão.
Queira ou não, o rapaz beija-a sem parar sete vezes a fio, diz o conto. Ao fazer assim, vê que a donzela
traz no dedo um anel de ouro onde brilha uma esmeralda.
- Minha mãe disse também para eu tomar vosso anel, sem nada mais vos fazer. Eia o anel! Quero tê-lo!
- Juro que não o terás se não o arrancares à força!
O moço segura-a pelo pulso, estica-lhe o dedo, pega o anel, passa-o para seu próprio dedo e diz:
-Damizela, desejo-vos todos os bens! Agora vou embora, bem pago. Sabeis dar beijos bem melhores
que as camareiras da casa de minha mãe, pois não tendes boca amarga.
Porém, a damizela chora e diz:
-Não leves embora meu anelzinho! Serei maltratada por isso e, quanto a ti, perderás a vida a qualquer
momento, tenho certeza.
Ele parece nada compreender dessas palavras. É verdade que jejuou tempo demais! Está morrendo de
fome. Avista um barrilete de vinho. Ao lado, uma taça de prata. Depois, sobre um feixe de junco, um
guardanapo branco e novo. Ergue-o. Encontra embaixo três belas tortas de carne de cabrito, que não o
podem desagradar. Por grande fome, eis que começa a comer uma torta, que acha gostosa. Enche
grandes copadas e as engole em largos sorvos. O vinho não é dos piores!
O rapaz continua a comer o quanto lhe apraz. Bebe tanto quanto tem vontade. Depois torna a cobrir o
restante, despedindo-se, recomendando a Deus aquela que não lhe está nem um pouco reconhecida:
- Deus vos salve, cara amiga! Não fiqueis tão agastada comigo por levar seu anelzinho. Antes que eu
morra tereis recompensa por isso.
A donzela chora e diz que não o recomendará a Deus, pois por causa dele sofrerá desventura e desonra,
mais do que qualquer cativa. Bem sabe que ele nunca lhe prestará ajuda nem socorro”.(in Perceval-pg,
34-35).
Se o papel desempenhado pelas donzelas permite, em alguns casos, pôr à prova,
comprovando ou não o espírito do cavaleiro de defesa e proteção dos seres femininos, bem
como da satisfação dos desejos por eles expressos; outras ocasiões há em que estas
personagens servem magnificamente para atestar a vilania dos cavaleiros e, desta forma, os
excluir de imediato do grupo daqueles que contemplarão as maravilhas do Graal. Como
Perceval de nada ainda sabia sobre os deveres de um cavaleiro, agiu de forma errada
atropelando as leis da cavalaria. Deste encontro fortuito Perceval realizou seus desejos,
alimentou-se, saboreou o vinho e ainda levou um anel. A postura da mulher da tenda foi
retratada aqui nesse romance como a mulher usada, aquela que se descarta depois, sem
maiores dores ou culpas. Nenhum sentimento esteve envolvido neste encontro a não ser o
de humilhação dela perante seu ciumento companheiro.
...”E fica lá chorando. Seu amigo não tarda a retornar do bosque. Vê que a amiga chora e, curioso,
pergunta:
- Damizela, por estes vestígios que vejo, creio bem que veio aqui um cavaleiro.
- Não senhor, asseguro. Mas veio um campônio galês maldoso, feio e louco, que bebeu de vosso vinho
o quanto quis. Comeu três de vossos empadões.
- É por isso que chorais, bela?
- Há mais senhor – diz ela. – Tem a ver com meu anel: ele o tomou e levou embora. Eu queria estar
morta!
- Palavra – torna o amigo – houve ultraje! Já que mais. Dizei-me sem nada ocultar.
- Sire – diz ela – ele me beijou.
- Beijou?
- Verdadeiramente, asseguro, foi mau grado meu.
- Ao contrário! Isso vos agradou e não opusestes defesa – diz o cavaleiro ciumento. – Pensais que não
vos conheço? Não sou tão cego ou vesgo para não ver vossa falsidade. Tomastes caminho mau. Duro
38
penar vos aguarda. Nunca mais vosso cavalo comerá aveia nem será cuidado, até que do feito esteja
vingado! Se perder a ferradura, não será mais ferrado! Se morrer, tereis de seguir-me a pé! Nunca mais
trocareis de roupa e caminhareis a pé e nua, enquanto eu não cortar a cabeça desse que aqui veio. Não
desejo outra justiça.”(in Perceval, pg, 34-36)”.
As mulheres medievais sofriam com a vergonha que lhes era imposta mas ao que parece
nada muito diferente acontece ainda nos dias de hoje, quando podemos verificar o exercício
dessa prática talvez numa tentativa de provar a resistência masculina. Nota-se, porém, que
esta mulher foi apresentada aqui sem nome, conhecida apenas como “mulher da tenda” que
de alguma forma serviu ao cavaleiro. No processo de amadurecimento de Perceval, pode-se
constatar ao longo da narrativa que ela teve importância fundamental já que o herói mais
tarde aprendeu que nada do que ele havia feito com ela é mérito de um verdadeiro
cavaleiro. Ela serviu como um degrau para o seu aprimoramento. Também através dela e
deste encontro fortuito, Perceval aprenderia que o cavaleiro cortês será, em suma, não um
modelo apenas de valentia, inteligência, elegância e formosura, mas, acima de tudo, um
modelo de dedicação às donas e donzelas.
7- A Blanchefleur
Perceval a esta altura já havia encontrado com Gornemant de Gort, homem que lhe ensinou
as artes da cavalaria.
- “... Caro amigo, aprendei agora as armas e observai como homem deve segurar a lança, como faz o
cavalo andar e como o detém”.
Desfraldada então sua insígnia, mostra ao rapaz como se deve segurar o escudo...”(in Perceval, pg,
41)”.
Continuando então suas aventuras, Perceval chega a uma cidade quase morta – “Em
nenhum lugar homem encontra pão nem bolo, nem cousa à venda, inútil procurar vinho ou
cerveja”. Porém, chega ao castelo onde valetes o guiam por uma escada até uma grande
sala onde o aguarda a damizela:
“... a damizela que se aproximava era mais graciosa, vivaz e elegante que falcão ou arara. O manto e a
túnica eram púrpura escuro estrelado de veiros, com guarnição de arminho, e bela gola de marta
zibelina branca e preta. Se já descrevi a beleza que Deus pode colocar em corpo ou rosto de mulher,
desejo fazê-lo mais uma vez, sem mentir uma palavra. Os cabelos que flutuavam sobre as espáduas
pareciam fino ouro, tanto eram luzentes e louros. A fronte era alta, branca e lisa, como talhada por mão
humana em mármore, marfim ou madeira preciosa; supercílios castanhos, olhos cinza-claros, bem
separados, oblíquos e risonhos. Nariz reto. O branco sobre o rubro, iluminava seu rosto melhor que
sinople sobre prata. Para arrebatar o coração das pessoas, Deus a fizera a Mais-que-Maravilha. ( in
Perceval-pg,49).
Perceval, portanto não encontra a mãe neste ponto do caminho e sim, a mulher e, ainda
por cima, uma pessoa super atraente e irresistível ao sentimento masculino: a da beldade
aflita e que necessita de proteção. De modo encantadoramente ingênuo, ela vem à noite
para a cama de Perceval contar-lhe sua aflição.
39
...”Avista a damizela ajoelhada à beira do leito, abraçando-lhe estreitamente o peito. Por cortesia,
abraça-a da mesma forma e, estreitando-a firmemente, pergunta:
- Bela, o que desejais? Por que viestes?
- Piedade, sire cavaleiro! Por Deus e por Seu Filho, suplico que não me julgueis mais vil porque vim
tão pouco vestida, como vedes...”(in Perceval, pg-50)”.
Assim ela pede ajuda ao cavaleiro, diz que não agüenta mais tanto sofrimento e que seu
reino está em ruínas. Perceval a
”...coloca em seu leito e ela aceita seus beijos sem muito sacrifício! Assim ficaram toda a noite, bem
juntos e boca a boca, até chegar a manhã. Nesta noite a anfitriã encontrou consolo: boca a boca e corpo
a corpo eles repousaram até o alvorecer”( in Perceval, pg-52).
Segundo Emma Jung (in A Lenda do Graal-pg, 49) analisa, “deve ter-se tratado, antes de
tudo, de demonstrar à mulher uma verdadeira consideração e de estabelecer com ela um
relacionamento que não fosse apenas de natureza instintivo-erótica; de mãos dadas com
isso ia também a consideração da feminilidade em geral, sobretudo da feminilidade própria
do homem, isto é, da Anima. Sob a designação de Anima Jung entendia a personificação do
inconsciente do homem, que surge, nos seus sonhos, visões e fantasias criativas, como
mulher ou deusa. A sua imagem parece derivar da mãe e nela como que se incorpora a
porção de feminilidade que vive o homem e também a experiência que o homem tem com a
mulher. Mas ela é também, ao mesmo tempo, o a priori de todas as experiências do homem
com a mulher, porque, surgindo como deusa, a Anima é um arquétipo e possui por isso,
uma existência real invisível anterior a toda a experiência. Na literatura do Graal,
encontram-se muitas figuras femininas que têm o caráter de Anima e devem ser
consideradas menos como mulheres reais do que como figuras de Anima que possuem
caráter sobre-humano e traços arquetípicos. Parece-me, contudo, que na figura de
Blanchefleur, a mulher real é mais acentuada do que o caráter da Anima porque este ainda é
totalmente projetado. Corresponde também à marcha de desenvolvimento de Perceval que
agora – depois de ter deixado a mãe e de enfrentar o mundo como cavaleiro – encontra
também a mulher objetiva com a qual, neste nível, o problema da Anima ainda está
indistintamente mesclado.”
Perceval luta, retoma o castelo, recompõe a harmonia e, juntos, ele e Blanchefleur
podem folgar à vontade e se abraçar, e beijar, felizes do júbilo partilhado, até que ele sabe
de um novo desafio:
- “... Por que ir a esta batalha? Mais valeria permanecer em paz no castelo. O que temer ainda de
Clamadeu e sua gente?
Mas tão pouco ela é ouvida. Isso é maravilha, pois fala com tanta meiguice, beijando o amigo a cada
palavra, com beijo tão afetuoso e delicioso que lhe põe a chave do amor na fechadura do coração.
Porém nada adianta. Ele irá combater.”(in Perceval, -pg, 59)”.
Apesar de sua posição no castelo de Blanchefleur, ele se rende à virilidade de se
satisfazer unicamente com o amor de sua dama e com a vida agradável de senhor do
castelo. Muito embora ela desejasse que permanecessem juntos para que desta forma seu
reino ficasse a salvo, ele parte para novas aventuras, abandonando sua amada. Este
abandono também significou um caminho para o seu processo de individuação. Também a
Blanchefleur o ajudou a preencher um pouco mais a sua armadura, tornando-o agora um
homem que conhece o amor.
40
8- A mulher feia
O fato de algumas donzelas deste universo arturiano se relacionarem diretamente com
poderes maléficos que atormentam os cavaleiros envolvidos na demanda do santo vaso
pode levar o leitor a pensar que todas as aventuras têm por função pôr à prova o cavaleiro, a
fim de avaliar seu mérito e sua boa conduta. O labirinto que permeia o ciclo arturiano é
uma construção com muitos caminhos sinuosos e entrecruzados e às vezes inexplicáveis,
sugerindo o tom mágico dos contos de cavalaria. Estas donzelas, que revelam ultrapassar os
limites temporais dominando o tempo futuro pelo conhecimento que dele têm, surgiram
como mensageiras de uma entidade divina que preside aos destinos dos cavaleiros. O
universo interior dessas várias donzelas permanece misterioso; eis o que nos conta a
passagem da mulher feia, que tanto amaldiçoou a vida de Perceval:
“-... Nessa mesma noite, o rei, a rainha e os barões fazem grande festa a Perceval, que conduzem a
Carlion. Festejam toda a noite, mais o dia seguinte. Depois, no terceiro dia, vêem chegar uma donzela
sobre uma mula amarela, que guia com a mão direita, duas tranças negras às costas. Homem jamais viu
ser tão feio, mesmo no inferno! Homem jamais viu metal tão baço como a cor de seu colo e das mãos.
Outra cousa, porém era bem pior: os dois olhos, dois buracos não maiores que olhos de ratos. O nariz
era um nariz de gato, os lábios de burro ou boi, os dentes amarelos como gema de ovo. A barba era de
um bode. Peito corcunda, espinha torcida. Ancas e ombro mui bons para o baile. Outra corcunda nas
costas, pernas tortas como vara de vime, também próprias para a dança.
A donzela impele a mula até diante do rei Artur. Haveria homem jamais visto na corte uma jovem
assim? Ela saúda o rei e a todos os barões, exceto Perceval e sem descer da mula diz a ele:
- Ah, Perceval, fortuna tem cabelos na frente, mas por trás é calva! Maldito seja quem te saudar ou te
desejar algum bem! Não soubestes agarrar a fortuna quando passou perto de ti! Estiveste em casa de
rei Pescador e viste a lança que sangra. Seria tão custoso abrires a boca, emitires um som, tanto que
não, não pudeste perguntar a razão da gota de sangue que corre da ponta da lança? Viste o Graal, mas a
ninguém perguntaste quem era o rico homem servido por ele. É digno de pena quem vê tempo tão belo,
tão claro, tão favorável e espera céu inda mais belo! É de ti que falo. Foi esse teu caso. Era tempo e
lugar de falar. Quedaste mudo. Não te faltou azo. Teu silêncio nos foi nefasto. Era mister fazer a
pergunta.”(in Perceval-pg, 85-86)”.
A prestação de um serviço a mando de uma donzela reveste, por vezes, características
diferentes, visto que o pedido é inicialmente envolvido por um caráter misterioso, pois não
explicita o objeto e o objetivo do pretendido. Isto faz com que o cavaleiro fique ligado à
promessa de reparar o suposto dano, quer dizer, se entrega à nova missão até que tenha a
solução do caso. Especificamente nesta passagem da mulher feia há que se entender que a
bruxaria se tornara uma prática, justamente por ocasião do florescimento do cristianismo
medieval. Segundo Emma Jung, “... a espiritualização demasiado unilateral por um lado, e
o fato de, no culto à Maria, apenas o aspecto coletivo e luminoso do elemento feminino
encontrar manifestação, vivificaram os lados sombrios da feminilidade, conferindo-lhe um
caráter demoníaco ameaçador”. A mulher feia aparece com esta conotação: é uma figura
horrorosa que ofende, ameaça e ainda vem envolvida de mistério e magia.
Nos contos de cavalaria do ciclo arturiano, os fios não vão sendo tecidos de forma
homogênea, uns se desprendem exigindo que os transformemos de outros novelos para
aqueles que vínhamos tecendo para o caminho do Graal, símbolo que, ao longo de todo o
percurso de análise, nos transforma em identificadores de sentidos e, por que não, em
sonhadores de significados. O universo interno da mágica mulher feia permanece de tal
41
forma misterioso que pode de imediato trazer à memória o provérbio que abre este trabalho:
“Plus profond est le coeur des femmes que la plus profonde mer du monde”.
9- Breve resumo do romance Perceval
Perceval não cruzou apenas com essas quatro mulheres em sua busca pessoal, mas estudálas mais cautelosamente pode ajudar a entender melhor a saga do herói. Desde que
abandonou a mãe, em busca de pertencer à cavalaria, suas aventuras foram no sentido de
voltar um dia para ver a mãe. Encontrou a mulher da tenda fortuitamente, vai à corte de
Artur e ingenuamente pede para ser cavaleiro, luta com o Cavaleiro Vermelho e o mata
com um dardo. Na tentativa de ver a mãe, se encontra com Gornemanz de Goort que lhe
ensina as artes da cavalaria. Parte outra vez para casa e se depara com o castelo de
Blanchefleur e lá conhece o amor. Sai em batalha e, sempre na tentativa de voltar para ver a
mãe, descobre o castelo do rei Pescador e lá, além de receber a espada, testemunha a
cerimônia do Graal e comete seu maior erro – não pergunta o significado daquilo. No dia
seguinte, está sozinho no castelo e, quando parte pela ponte, esta é levantada sem que ele
veja por quem. Seu encontro com a prima dizendo-lhe que a mãe havia morrido e a culpa
jogada sobre ele quanto à omissão da pergunta do cortejo do Graal, faz com que o cavaleiro
atormentado, siga em frente. Se tivesse perguntado sobre o ritual que viu, o rei Pescador
voltaria a andar, pois o encanto teria sido desfeito.
Perceval volta a encontrar a mulher da tenda, ela em lamentável estado, toda maltrapilha
e machucada, pois seu ciumento companheiro não havia acreditado em sua história. O herói
promete-lhe reparar a injustiça que sofrera. Pernoitando numa clareira da floresta, percebeu
que havia nevado e presencia a luta de um falcão com patos selvagens; um deles cai ferido
e, quando Perceval vai salvá-lo, lança vôo deixando gotas de sangue na neve. Esta cena o
faz lembrar de Blanchefleur e ele se põe a refletir. Revê sua trajetória: o surgimento da
triste mulher de quem ele havia roubado o beijo e o anel, tornando-a desgraçada; depois, a
morte da mãe, o erro em não fazer a pergunta do Graal e a infeliz lembrança da abandonada
Blanchefleur. Paralisado em seus pensamentos, é socorrido e levado à corte de Artur onde é
acolhido como membro da cavalaria do rei. O encontro com a mulher feia é doloroso, pois
esta, além de não o cumprimentar com efusiva saudação, o acusa de não ter feito a pergunta
do Graal e lhe roga pragas horríveis. O cavaleiro faz disso a sua missão e sai em busca do
objeto sagrado. Ao encontrar com o eremita que era seu tio, inicia seu caminho espiritual.
Chrétien de Troyes faleceu antes de terminar o conto, mas deixou muitos seguidores que
escreveram várias versões diferentes para encaminhar a saga do herói.
Do ponto de vista psicológico, Perceval encontra outra coisa: “... a sua tarefa, agora
reconhecida claramente, e o seu objetivo, que apesar de todas as reviravoltas, ele nunca
mais perderá de vista. A capacidade de se impor um objetivo e de persegui-lo com
constância é outra conquista no decorrer do desenvolvimento humano...”. ( in A Lenda do
Graal-pg,138).
Essas mulheres sem dúvida fizeram parte do crescimento do cavaleiro; com cada uma
delas aprendeu a se tornar um homem melhor!
42
10- Conclusão
A experiência do Graal para Perceval está estreitamente ligada ao desenvolvimento de sua
consciência. A espada que o cavaleiro recebe anuncia simbolicamente esta conquista, bem
como suas experiências com as figuras femininas que, de toda forma, o ajudaram neste
processo. Se analisarmos o crescimento do nosso herói, em muitos outros simples quesitos
poderemos verificar a sua melhora, e um bom exemplo disso seria através das roupas. Num
primeiro momento ele é apresentado como um galês usando roupas rústicas, simples como
ele. Ao ganhar sua primeira armadura torna-se cavaleiro, mas só por fora, precisa ainda se
fortalecer tanto intelectualmente como psicologicamente e espiritualmente. Sua experiência
com seu instrutor Gornemanz de Goort não só lhe dá a chance de vivenciar a presença
masculina, a figura do pai, como também o torna sabedor das artes cavaleirescas. Mais
tarde, seu encontro com o ermitão lhe proporciona a vivência religiosa fortalecendo ainda
mais seu espírito, aprendendo afinal que é preciso se desarmar para o encontro com Deus!
Como este estudo está concentrado nas questões do gênero feminino, há que ressaltar
aqui que os personagens femininos foram criados e representados por homens, o que
contribuiu para a predominância do discurso hegemônico do patriarcado, direcionando as
vozes femininas e, conseqüentemente, moldando o espaço da mulher no mundo medieval.
Saber como se origina o patriarcado é irrelevante para os desafios que a mulher tem de
enfrentar dentro das sociedades assim constituídas, ainda nos nossos dias. Basta considerar
a diferença de oportunidades no mercado de trabalho e a efetivação de sua capacidade de
atuação no desenvolvimento humano, quer seja este político, científico ou tecnológico. Por
outro lado, conhecer a história que mantém a mulher afastada da esfera de atuação dentro
da sociedade, cria uma ferramenta útil para todos que se propõem a refletir sobre essas
práticas e que possam quebrar esses moldes opressores daqui para frente.
Talvez a maior virtude do texto medieval resida no fato de que, além de fixar nosso
olhar no passado, ele nos leva a refletir a respeito de nosso próprio mundo social e dos
desafios que temos de superar para a construção de uma política de gênero mais igualitária
nos diversos campos do desempenho humano.
No desenrolar desta pesquisa, constatei que a mulher tem uma natureza própria, e esta é
acolhedora, doadora, paciente e intuitiva, independentemente da época em que vive. Sua
aptidão geradora dá esse tom de misturar suas diversas facetas como filha, mãe, esposa,
amante, amiga, avó, profissional; seja lá em que área atuar, a mulher vai estar presente
tecendo seus fios para melhorar o bordado do mundo, assim como as figuras femininas
estudadas neste artigo ajudaram e melhoraram o crescimento do herói Perceval.
Notas
Todas as cotações deste artigo estão citadas nas páginas e identificadas entre parênteses.
As traduções para o Português são minhas com exceção dos diálogos transcritos in Perceval, editado pela
Martins Fontes.
A passagem sobre a discussão da teoria de Jung para os quatro lados da psiquê feminina foi resultado da
leitura dos seguintes livros: The Moon and The Virgin (New York: Harper and Row, 1980) e The Feminine in
Jungian Psychology (Evanston: Northwestern. UP, 1971).
43
A cotação inicial que inaugura o trabalho é um provérbio bretão da ilha de Batz in La Femme Celte, Jean
Markale, achado na Internet.
Para a realização desta pesquisa foi estudado também o ensaio feminista da autora GUEDES, P: Between the
Cauldron of Ceridwen and the Christian Cross: Feminist Revisions of The Arthurian Legend.
Este estudo foi baseado também em toda a bibliografia oferecida durante o curso LET 2383.
Referências bibliográficas
JACOBINA, Eloá e KUHNER, Maria Helena. (1998). Feminino Masculino no Imaginário
de Diferentes Épocas : Bertrand Brasil, Rio de Janeiro.
SUSSEKIND, Flora e DIAS, Tânia e AZEVEDO, Carlito. ( 2003 ). Vozes Femininas:
Fundação Casa Rui Barbosa, Rio de Janeiro, Brasil.
WEBSTER, Roger (1996). Studying Literary Theory : London: Arnold. De onde foram
tiradas passagens referents ao Segundo Sexo (1940) , BEAUVOIR, Simone e Seu
Próprio Quarto ( 1928) : WOOLF, Virginia.
MILLET, Kate (1993). Sexual Politics. London: Viragoto.
MACHADO, Roberto (1982). Por Uma Genealogia do Poder : In: FOUCAULT, M.
Microfísica do Poder: Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal,VII-XXIII.
MILLS, Sara (1997). Discourse. London & New York: Routledge.
BADINTER, Elizabeth (1993). XY Sobre a Identidade Masculina. Tradução: Maria Ignez
Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
CONNEL, R.W (1995). Masculinities. Cambridge. Polity Press.
STONE, Lawrence (1979). The Family Sex and Mariage in England: Harmondsworth.:
Penguin Books.
JUNG, Emma (1980). A Lenda Do Graal. Tradução: Margit Martincic. Editora Cultrix. São
Paulo. Brasil.
TROYES, Chretien de (2002). Perceval. Tradução: Rosemary C. Abílio: Martins Fontes.
São Paulo. Brasil.
TROYES, Chretien de (1998). Romances da Távola Redonda. Tradução: Rosemary C.
Abílio: Martins Fontes. São Paulo. Brasil.
MEGALE, Heitor (1999). A Demanda do Santo Graal: Tradução: Heitor Megale. Ateliê
Editorial. São Paulo, Brasil.
44
FURTADO, Antônio . Aventuras da Távola Redonda : Editora Vozes. Petrópolis. Brasil.
FURTADO, Antônio (2001). Lais de Maria de França. Editora Vozes. Petrópolis. Brasil.
Especialmente o prefácio de Marina Colasanti.
45
Adaptações Cinematográficas Arturianas:
Excalibur, Lancelot e As Brumas de Avalon
Irene Bosisio Quental
“Then it was, that the magnanimous Arthur, with all the kings and military force of Britain,
fought against the Saxons. And though there were many more noble than himself, yet he was
twelve times chosen their commander, and was as often conqueror” ( Gildas)
1 - Introdução
A tradição literária criada em torno do rei Artur, conhecida como Matéria da Bretanha, nos
traz uma série de escritos que relatam as fantásticas aventuras deste rei, que teria sido
aquele que, ao lado de seus cavaleiros, lutou bravamente pela Bretanha diante da terrível
ameça de dominação dos bárbaros. Teria Artur realmente existido ou trata-se de uma lenda?
A resposta para tal pergunta permanence um mistério, mas suas histórias recheadas de
aventuras, batalhas, magia e bravura vêm encantando leitores já há algum tempo.
Encantando não apenas autores e leitores como também diretores de cinema, que viram nas
tramas arturianas elementos que poderiam encaixar-se adequadamente na linguagem
cinematográfica. Ação, aventura, amor, traição…aos olhos do cinema, o que mais poderia
faltar nas lendárias histórias do rei Artur para que se fizesse uma grande produção? Foi o
que diretores da indústria cinematográfica perceberam e executaram: filmes que, a partir da
literatura referente ao lendário rei da Bretanha, retratassem as aventuras e conflitos que
envolveram personagens como o próprio Artur, a rainha Guinevere, o cavaleiro Lancelot,
Merlin, Morgana, Uther, Gawaine e muitos outros. Ao observarmos a lista de filmes
arturianos, encontraremos obras como Excalibur, Lancelot (First Knight), As Brumas de
Avalon, Camelot, Lovespell, Lancelot do Lago, O Graal, Knightriders e vários mais.
Observando alguns desses filmes, veremos como ocorreram os processos de adaptação das
obras literárias para a grande tela, suas diferenças, personagens, estrutura. A partir dos
filmes Excalibur, Lancelot (First Knight) e As Brumas de Avalon analisaremos como a
história do rei Artur foi conduzida nesta outra linguagem que em muitos momentos
costuma privilegiar a ação, o duelo entre o herói e o vilão, a fantasia e, como não poderia
faltar, os conflitos amorosos.
Para que possamos analisar adequadamente estas adaptações é fundamental que também
observemos as obras literárias que serviram de fonte para sua construção. É importante
lembrar que a figura do rei Artur foi mencionada pelos autores Gildas e Nennius e que
outros, como Geoffrey de Monmouth e Chrétien de Troyes, produziram obras consideradas
como grandes marcos dentro do ciclo arturiano. Também encontramos, como autor de
obras relacionadas a Artur, o poeta Wace, que traduziu em versos a obra de Geoffrey. Será
a partir destas obras que analisaremos os filmes arturianos, sendo que, no caso de Excalibur
e de As Brumas de Avalon, teremos também como fonte de comparação as narrativas A
morte de Artur, de Thomas Malory e As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley.
Como estaremos falando da questão da adaptação, não podemos deixar de lado estes dois
últimos livros citados, já que dois filmes foram feitos baseados diretamente em seus textos.
46
Mas acredito que o mais interessante seria observarmos as obras cinematográficas
principalmente a partir das obras de Geoffrey, Chrétien e Wace, uma vez que estas foram as
fontes iniciais de onde A morte de Artur e As Brumas de Avalon foram provavelmente
escritas, e também por estarem elas entre as mais reputadas da Matéria da Bretanha.
Para que possamos realizar uma análise comparativa entre as obras literárias e
cinematográficas, é interessante também que observemos algumas questões referentes às
diferenças entre a linguagem escrita e a do cinema. Dessa forma será possivel que se
entenda de maneira mais clara algumas das diferenças no processo de adaptação. Através
de autores como Marcos Rey, de artigos de Constança Hertz e André Klotzel, teremos uma
idéia de como funciona esta linguagem e como se dá a questão da adaptação. Neste ponto,
podemos comentar também a conveniência de elaborar uma adaptação para que se possa
contar uma história através de imagens, e da importância do roteiro neste processo. Gabriel
Garcia Marquez, em “Como contar um conto”, fala um pouco sobre esta questão do roteiro
e sua linguagem.
Por outro lado, será igualmente interessante perceber que, apesar das diferenças entre
essas duas linguagens, ambas estabelecem um diálogo que vem desde meados dos anos 20,
como nos mostra Flora Sussekind em seu livro Cinematógrafo de letras. Não é à toa que
adaptações são possíveis de serem feitas neste trabalho de transição entre o literário e o
cinematográfico. Ao fim, o objetivo será sempre contar uma história, seja ela através desta
ou daquela linguagem.
2 – Adaptação
Ao procurarmos pela definição do que é uma adaptação, vemos que se trata de “modificar o
texto de (obra literária), ou tornando-o mais acessível ao público a que se destina, ou
transformando-o em peça teatral, script cinematográfico, etc”. Esta definição contida no
Dicionário Aurélio nos dá inicialmente uma noção do que vamos observar a respeito dos
textos arturianos que foram adaptados para uma outra linguagem: a cinematográfica. O
cinema de todo o mundo se utiliza da literatura como fonte para a criação de projetos
destinados a um grande público. Mas esta questão da adaptação costuma ser considerada
por alguns um tema controvertido pois, na grande maioria das vezes, tais adptações não são
bem recebidas por aqueles que já tiveram um contato anterior com a obra literária. A
fidelidade à obra original é, na maioria das vezes, cobrada pelos leitores que não vêem com
bons olhos as possíveis modificações realizadas pelos diretores cinematográficos. É
importante que se discuta até que ponto o adaptador é obrigado a se prender aos elementos
da obra original e, portanto, até que ponto pode ir sua liberdade criadora.
Esta utilização de uma concepção de adaptação fílmica postulada em termos de
fidelidade faz com que obras cinematográficas que sejam adaptadas fiquem subordinadas
aos critérios literários. Trata-se de questão delicada, pois é preciso que se analise também a
linguagem para o qual determinada adaptação foi feita. No caso do cinema, este percebeu
que uma série de elementos presentes na literatura serviam adequadamente aos seus
propósitos. Cineastas viram desde cedo que o universo literário abriga temas e estruturas
narrativas que poderiam constituir uma verdadeira fonte de inspiração e de trabalho. Como
exemplo temos o caso de Griffith, que reconheceu nas narrativas de Charles Dickens
modelos, técnicas, concepção de ritmo e de suspense e articulação de duas ações
simultâneas e paralelas que se encaixariam muito bem no formato cinematográfico. Já em
47
1867, Mélies adaptava da literatura Fausto e Margarida, em 1868, A Gata Borralheira e,
em 1902, iniciava seu percurso de versões de obras de Júlio Verne, com Viagem à Lua.
Vemos por aí que esta aproximação do cinema com a literatura no que diz respeito a
adaptações não é recente. Mesmo assim, as críticas referentes às adaptações são muitas,
como afirma Marcos Rey, em seu livro O Roteirista Profissional: “…a daptação, mesmo
excelente, sempre desagrada os que dela esperam uma fidelidade maior. O público que leu
o livro deseja vê-lo todo na tela. Notando a falta de uma cena ou dum personagem sem
importância, fica contra. Uns arrogan-se defensores da obra deste ou daquele escritor, e
diante de uma adaptação reagem agressivamente se algo na obra foi esquecido ou
modificado” e, acrescenta logo depois, “no geral existe um juizo preconcebido contra
adaptações”.
Este desagrado com relação às adaptações é o que vemos também nos filmes que
retratam a história de Artur. Kevin J. Hartly comenta sobre esta questão ao se questionar
sobre quais os critérios utilizados para a classificação de uma filme arturiano como bom ou
ruim. Hartly diz que, ao se julgar um filme arturiano, é necessário que antes se estabeleça
quais serão os termos deste julgamento, sejam eles baseados na estética cinematográfica ou
baseados nas histórias arturianas escritas, ou até mesmo em ambos os critérios. Mas, como
não poderia deixar de ser, as críticas com relação a alguns filmes arturianos como Lancelot
e As Brumas de Avalon não foram muito animadoras. Quando estivermos analisando cada
filme, veremos algumas destas críticas e, claro, veremos também como estas adaptações se
deram. Mas antes é importante que ainda nos detenhamos um pouco mais sobre a discussão
da adaptação em geral, para que tenhamos uma base maior para nossa futura análise
arturiana.
Voltando portanto à questão dos critérios de escolha de julgamento citado por Kevin J.
Hartly, também podemos observar alguns depoimentos de profissionais da área do cinema,
como é o caso do roteirista norte-americano Syd Field. Ele diz que o produto final adaptado
não deve ser analisado segundo critérios de fidelidade, mas de funcionalidade dramática.
Quer dizer, Field afirma que o roteirista do filme deve ter liberdade de criação, uma vez que
se está utilizando de uma linguagem diferente. “Adaptar é a mesma coisa que escrever um
roteiro original, pois o processo de adaptação de uma narrativa implica a construção de um
outro texto, o dramático (…) são formas diferentes”. Outra opinião a respeito do tema é de
Gérard-Denis Farcy, que ao falar de adaptação diz que que o mínimo inerente à adaptação
está na história e não nos personagens, que podem ser mudados. No entanto, a partir desta
opinião é interessante pensarmos que, no caso dos filmes sobre o rei Artur, a história
central que em princípio deveria ser seguida está intimamente ligada a um personagem: o
rei. Ele é o centro da história, é a figura legendária que nas aventuras relatadas é aquele que
conduz as tramas com coragem e bravura. Estes aspectos do personagem, portanto, não
poderiam ser modificados ou alterados em nome de um novo e original roteiro. Dessa
forma, a verdadeira essência que foi, desde o princípio, a fonte para as aventuras dos
cavaleiros da Távola Redonda, não poderia ser transformada. E, como veremos mais
adiante, a figura de Artur e sua bravura e bondade não são alteradas nos filmes em questão.
Para que então entremos nos filmes analisados, seria interessante acrescentar que, se
para a linguagem cinematográfica parece ser apenas na história que está a parte central do
trabalho de transposição ou adaptação, não devemos nos esquecer das considerações de
alguns profissionais do cinema que dizem respeito às condições necessarias para que uma
adaptação seja realizada da forma o mais fiel possível. A primeira destas considerações é
que o texto original seja condizente com a duração pretendida pelo cinema, para que não
48
seja necessário acrescentar ou suprimar muitas cenas. Na grande maioria dos casos, as
obras literarias, ao passarem para as telas, sofrem cortes para que a duração
cinematográfica seja adequada. Veremos que, no caso de As Brumas de Avalon, o diretor
pereceu querer transpor quase que integralmente a obra original, o que resultou em um
filme extremamente longo e por vezes cansativo.
Outra consideração importante se refere à importância de as ações do original serem
“filmáveis”, não apenas de acordo com as possibilidades de orçamento e produção, mas que
sejam ações próprias para a tela do cinema. Dessa forma, alguns autores afirmam que
existem textos propriamente adaptáveis e outros que constituem um desafio. Sobre isto
Umberto Eco diz que “(…) a história e enredo não são funções da linguagem, mas
estruturas quase sempre passíveis de tradução para outro sistema semiótico”. Estas
traduções ocorrem em conformidade com o texto original e o essencial parece residir na
maior ou menor capacidade de a obra fílmica gerar um produto estético de boa qualidade.
Este é o critério discutido em artigo sobre cinema, literatura e adaptação cinematográfica,
de Sérgio Paulo Guimarães de Souza. Ele diz também que, sempre que se discute ou
questiona a adaptação ao cinema de um objeto literário, abala-se a centralidade concedida à
fidelidade como critério de avaliação, e aposta-se na tônica de que uma apropriação fílmica
da obra literária corresponde a uma leitura desta. Como se dará esta leitura é o que
podemos observar. A partir daí, poderíamos começar a pensar: e os textos arturianos? São
adaptáveis? Constituem um desafio?
3 – Adaptações arturianas
Apesar da defesa de alguns profissionias cinematográficos com relação às adaptações
fílmicas de obras literárias, percebemos que na maioria das vezes existe um juízo
preconcebido contra estas adaptações. Mesmo assim, elas continuam sendo feitas, e cada
uma apresenta resultados tão diversos que podemos pensar que realmente não existe um
modelo pré-estabelecido para todos os casos. Trata-se de um processo que exige esforço e
criatividade dos roteiristas para que consigam transformar em imagens as mais diversas
narrativas. Como vimos também, algumas obras parecem possuir caracterísitcas que são
mais facilmente adaptáveis para o cinema. No caso das obras literárias arturianas,
percebemos que existem ingredintes que, antes de mais nada, estão de acordo com as
intenções que envolvem as produções de cinema. Elementos que compõem uma história
dramática, capaz de prender a atenção do espectador, estão todos presentes na história do
rei Artur, como grandes batalhas envolvendo heróis e bárbaros inimigos, aventuras
recheadas de magia e coragem que envolvem a figura de um típico herói de cinema: um rei
bom, justo, corajoso, carismático. Ao levar para as telas um personagem com tais
características, o diretor e o roteirista tem a possibilidade de trabalhar com um tipo que
agrada tradicionalmente o grande público. Não podemos no entanto deixar de lembrar que
as produções cinematográficas ao estilo Hollywood costumam levar ao extremos esta
dinâmica entre o herói e o bandido. Por ser uma estrutura altamente explorada, vemos nos
filmes arturianos a figura do personagem mau bem marcada, constrastando com as
qualidades do herói e seus fiéis companheiros, sempre bravos e prontos para a luta. Mas, se
observarmos bem, é exatamente isto o que vemos nas obras literárias arturianas: o rei bom,
quase que sem defeitos, junto a seus cavaleiros e contra os inimigos saxões bárbaros e
maus. Talvez seja por isto mesmo que as narrativas arturianas tenham inspirados tantos
49
diretores que viram nas aventuras emocionantes dos cavaleiros uma estrutura que se
adequaria às regras de uma bom filme de ação e aventura.
Nas adaptações Excalibur, Lancelot e As Brumas de Avalon vemos algumas
características citadas por roteiristas e diretores sobre os tipos de transposições que podem
ser feitas para o cinema. Uma delas é a chamada “adaptação baseada em…” onde se
mantém a história na íntegra, mas se permite algumas modificações que podem ser de
nomes de personagens e de algumas situações. Este seria o caso do filme de John Boorman,
de 1981, Excalibur. O filme se inicia com o conflito que estará prestes a acontecer quando
Uther Pendragon, escolhido rei da Bretanha, se sente atraído por Igraine, esposa de seu
rival Gorlois. Com a ajuda de Merlin, Uther adquire a aparência de Gorlois e entra em seu
castelo conseguindo então se juntar a Igraine. Deste enlace nasce Artur que é levado por
Merlin e é criado por outra família. Uther morre em emboscada e enterra a espada
Excalibur em uma pedra da qual será arrancada pelo futuro rei da Bretanha. Tempos se
passam e o jovem Artur, sem saber de sua linhagem real, consegue arrancar Excalibur da
pedra e se torna rei. Com o tempo, Artur estabelece a paz, cercado por seus cavaleiros da
Távola Redonda. Casa-se com Guinevere, mas seu cavaleiro Lancelot se apaixona por ela e
ela por ele e ambos são acusados de adultério. Nesse mesmo tempo, a irmã de Artur,
Morgana, planeja trair Artur e Merlin e, depois de ter com o irmão um filho, Mordred, ela o
usa para tomar posse do reino. Artur, enraivecido, quebra a espada Excalibur e o reino entra
num período de caos e devastação, enquanto seus cavaleiros partem em busca do Graal para
redimir e salvar a Inglaterra. Percival é quem encontra o Graal e o traz a Camelot para
reabilitar Artur. O rei recupera a força e enfrenta Morgana e Mordred, que é morto em
batalha final por Artur. Este por sua vez é mortalmente ferido e levado em barco guiado por
mulheres misteriosas, e Percival devolve Excalibur para a Senhora do Lago. A partir deste
resumo do enredo do filme, percebemos que, na maior parte, o diretor procurou se manter
fiel à história literária de Malory. De acordo com opiniões de alguns fãs da história de
Artur, as quatro áreas em que o filme se manteve fiel à narrativa foram: a conexão da
espada Excalibur a forças mágicas, a ida de Artur mortalmente ferido em barco para
Avalon, a ênfase em Lancelot como cavaleiro preeminente e a ida de Guinevere para o
convento ao final. Entre os filmes arturianos este parece ser o que conseguiu agradar um
pouco mais aos leitores da história de Artur, mas mesmo assim não seguiu inteiramente a
narrativa de Malory como, por exemplo, no momento em que Guinevere e Lancelot são
acusados de adultério. No filme o acusador é apenas Gawain enquanto que no livro os
acusadores são quatorze cavaleiros. De qualquer forma, este não parece ser um “erro” tão
fatal a ponto de não se considerar a adaptação como boa. Outra opinião com relação a ela
foi do estudioso de Artur, Kevin J. Hartly, que afirmou ser o filme livremente baseado no
livro de Malory, o que, como veremos mais adiante, significa uma adaptação que é
trabalhada sob um novo ponto de vista. Kevin também declarou que o filme “não
envelheceu bem”; que analisando-o agora parece-lhe ser um produto específico da época
em que foi feito, dominado por uma marcação musical pesada. Também vemos algumas
cenas no filme que caracterizam aspectos tipicamente recorrentes no entretenimento visual,
como é o caso das cenas iniciais entre Guinevere e Uther, que são talvez mais recheadas de
erotismo do que as narrativas escritas. Mas, como estamos falando da linguagem
cinematográfica norte-americana, este é um ingredinte que não poderia faltar. Também
pode ser interessante compararmos o filme com as narrativas arturianas anteriores à de
Thomas Malory. Neste caso, encontramos mais diferenças, tais como a personagem de
Morgana que, em Geoffrey de Monmouth aparece apenas ao final quando Artur é levado
50
para Avalon. Já no filme ela aparece em todo o decorrer da trama como a irmã má e
traiçoeira que através da magia engana a todos. Também não vemos em Geoffrey o
personagem Lancelot, que viria a ser criado por Chrétien de Troyes, assim como a Távola
Redonda, inventada por Wace. Outro aspecto interessante que diverge entre a narrativa de
Geoffrey e o filme é a presença de Merlin, que no filme está o tempo todo presente ao lado
de Artur, como uma espécie de conselheiro. Em Geoffrey, Merlin não se encontra com
Artur pessoalmente em nenhum momento. E ainda um outro ponto é a cena da espada
enterrada na pedra que viria a aparecer na narrativa de Robert de Boron e não em Geoffrey.
Mas, como estamos falando de adaptações e Excalibur se apresenta como uma adaptação da
Morte de Arthur de Thomas Malory, estas diferenças com relação a Geoffrey de Monmouth
nos servem apenas como uma ilustração à parte. No que se refere a Malory, vimos uma
diferença relacionada ao filme e podemos ver uma outra ainda que é a ênfase no filme em
Percival, que parece ser para alguns uma modernização realizada por Boorman. Igualmente
o personagem de Bedivere não é mencionado no filme, enquanto que Malory em seu livro
lhe dá a função crucial de devolver Excalibur para a Senhora do Lago.
Como é possível perceber, as modificações estabelecidas pelo diretor John Boorman não
foram tão grandes e não mudaram o sentido básico da história de Artur. Vimos que existem
vários tipos de adaptação e uma delas é a “baseada em…”, como foi o caso de Excalibur.
Nela, a história se mantém na íntegra, mas nomes de personagens ou situações podem ser
modificados. Foi o que aconteceu com os personagens de Percival e Bedivere e a
eliminação dos outros acusadores na cena do adultério, por exemplo.
Outra espécie de adaptação é aquela chamada de “inspirada em…” onde se desenvolve
uma nova estrutura para a história tomando como referência um personagem e uma
situação dramática. Há também a “recriação”, onde o grau de fidelidade é mínimo, limita-se
à trama central, e a “adaptação livre”, na qual história, tempo, espaço e personagens são
mantidos mas a estrutura é montada sobre um dos aspectos dramáticos da obra. Talvez seja
esta última o caso do filme Lancelot, de 1995, do diretor Jerry Zucker. O que vemos neste
filme é a utilização de um determinado ponto de vista, de uma determinada situação
dramática como trama central. No caso, estamos falando do amor entre Lancelot e
Guinevere e do próprio personagem Lancelot. O filme não diz em que obra literária foi
inspirado e, portanto, podemos analisá-lo a partir das primeiras narrativas arturianas e
também naquelas em que aparece Lancelot.
O filme, como o próprio nome diz, tem como inspiração central o cavaleiro Lancelot.
Ele aparece como o vemos nas narrativas literárias; é um cavaleiro corajoso, destemido e
bem apessoado. Mais uma vez os ingredintes de um verdadeiro herói ao estilo Hollywood
estão presentes, sendo que desta vez eles estão concentrados principalmente em Lancelot,
enquanto que Artur, mesmo aparecendo como um rei justo e corajoso, não possui as
qualidades de um “galã” como é o caso de Lancelot. Neste filme vemos o herói charmoso,
bonito, que encanta a mulheres, como a rainha Guinevere. Na verdade isto também é o que
acontece nas narrativas arturianas, onde Lancelot é aquele que conquista as mulheres
enquanto que o encanto de Artur não parece ser exatamente na área amorosa. Além de o
filme se concentrar na figura de Lancelot, vemos de novo a figura do vilão bem delimitada,
como aquele que assume a postura de extremamente perverso. Malagant, o vilão e excavaleiro de Artur, o trai e faz de tudo para tomar o reino. Suas maldades e atos de traição
nos lembram o personagem Mordred que aparece em Excalibur e na narrativa de Geoffrey.
Embora o sequestrador da rainha se chame Meleagant em Chrétien de Troyes,
provavelmente o personagem Malagant do filme se refere sobretudo a Mordred, o que nos
51
leva a perceber uma das modificações realizadas durante a adaptação. Outro aspecto que
evidencia modificação no texto arturiano se refere às cenas no filme em que Lancelot é
convidado por Artur para ser um cavaleiro da Távola Redonda e ele só aceita para ficar
perto de sua amada Guinevere. Ao lermos as histórias de Artur, isto não se dá desta
maneira, uma vez que Artur, ao se casar com a futura rainha, já tinha Lancelot como bravo
cavaleiro entre seus companheiros. Portanto o motivo pelo qual Lancelot aceita se tornar
um cavaleiro não parece ser por causa de Guinevere e sim por sua amizade, lealdade e
confiança em Artur.
Ainda no filme Lancelot, podemos observar a cena em que Guinevere e Lancelot são
julgados em praça pública por adultério, e o vilão Malagant interrompe o julgamento e
ataca Artur e seus cavaleiros. Nesta cena temos um dos momentos em que a bravura e
coragem de Artur aparecem mais explicitamente: quando ele se nega a ajoelhar-se perante
Malagant, recusando a oferecer-se como seu servo. Malagant e seus homens se encontram
estrategicamente situados para matarem Artur que, diante da ameaça de morte, não se
ajoelha e conclama o povo a lutar até o fim. Neste momento o rei é então mortalmente
ferido por Malagant, o que nos leva às narrativas literárias onde Artur é também
mortalmente ferido por seu rival e filho Mordred em batalha. No filme vemos a questão
central, ou seja, a morte de Artur por seu traidor. O nome do personagem está trocado, ele
não aparece como o filho do rei e a batalha se dá durante o julgamento de adultério. Como
vemos, algumas modificações foram feitas pelo diretor e roteirista que se preocuparam em
manter apenas os acontecimentos centrais. Este filme, portanto, seria o que assinalamos
anteriormente como adaptação livre a partir da história literária do rei Artur. Diretor e
roteirista escolheram o viés do amor entre Guinevere e Lancelot para contarem a história. A
partir deste ponto de vista do romance é que o filme foi construído.
Já no filme As Brumas de Avalon encontraremos um outro ponto de vista, o ponto de
vista das mulheres presentes na história do rei Artur. Temos aí portanto um viés
completamente diverso daquele apresentado em Excalibur e Lancelot, mas esta adaptação
fílmica está de acordo com a obra da qual foi adaptada: o romance As Brumas de Avalon,
de Marion Zimmer Bradley. A estrutura do filme segue o mais fielmente possível a
estrutura literária da autora, excetuando-se as cenas em que a irmã de Igraine, Morgause,
lança um feitiço sobre a rainha para que esta não possa engravidar. Isto não é o que
acontece no livro que, apesar de, como no filme, colocar a figura de Morgause como um
personagem não bondoso, não atribui a ela a razão da infertilidade de Guinevere. Também
a “maldade” de Morgause é profundamente acentuada no filme pois, como já vimos, toda
obra cinematográfica norte-americana parece necessitar de um vilão bem delineado que
sirva como a função do inimigo que que se contrapõe ao herói bom e justo. No filme, os
heróis são Artur e Lancelot, mas a personagem de Morgana ganha grande importância
como se desempenhasse o papel de uma heroína que sofre e luta. Este aspecto, é
interessante observarmos, é o oposto do que vemos em algumas narrativas arturianas que
retratam a irmã de Artur como uma feiticeira má. Em algumas outras, por outro lado, mal
se fala em Morgana, como no caso de Geoffrey onde a personagem só aparece ao final,
quando Artur é levado para Avalon. Temos estes dois exemplos também nos filmes
analisados. Enquanto em Excalibur Morgana adquire o papel da feiticeira má e traidora do
irmão, em Lancelot ela simplesmente não existe. Mas em As Brumas de Avalon não apenas
Morgana, mas outros personagens femininos, como a Senhora do Lago, ganham grande
importância pois é através delas que a história de Artur é contada. A perspectiva feminina
e, mais ainda, a perspectiva das mulheres mágicas de Avalon é o fio condutor da narrativa
52
do romance e do filme. A autora Marion Zimmer Bradley constrói uma história onde as
ações de Artur, os acontecimentos do reino, da Bretanha, as vinganças, aventuras e relações
amorosas são todos guiados por estas mulheres de Avalon. Com isso percebemos que, se
compararmos esta narrativa com outras sobre Artur, encontramos uma série de diferenças
estabelecidas a partir de um novo e diferente ângulo. No entanto, não podemos esquecer
que, mais uma vez, os fatos e acontecimentos principais foram mantidos. A história básica
é a mesma, o que é diferente é a maneira como esta estrutura básica é contada. Enquanto a
própria Marion Bradley realizou uma adaptação das narrativas arturianas, o filme As
Brumas de Avalon segue o livro da autora na maior parte das cenas.
4 - Conclusões sobre a linguagem cinematográfica e as adaptações arturianas
Por mais complicado que seja para os que se desagradam da pouca fidelidade que as
adaptações dos filmes arturianos estabelecem, é preciso lembrar mais uma vez que não se
trata de processo fácil. E que, além disso, a obra fílmica possui um olhar; o olhar de um
autor de cinema que reflete o seu ponto de vista, o seu modo de transmitir através de
imagens uma história já conhecida via outros meios, como o literário. Mas é exatamente
disto que trata uma adaptação. É a transformação de algo de um determinado meio, de uma
determinada linguagem, para outro meio, outra linguagem. Por se tratar de uma outra
linguagem, o resultado não poderia ser o mesmo. A “tomada” é outra – é a tomada
cinematográfica. É evidente que, por outro lado, a adaptação não deve ser uma total traição
contra a obra literária; do contrário, para que se utilizar de um original? Nos filmes que
observamos não ocorre uma traição total das primeiras narrativas arturianas e nem das
obras de onde foram tiradas, como é o caso de Excalibur e As Brumas de Avalon. O que
ocorreu foram ênfases em determinadas situações ou personagens, e, para alguns talvez
mais grave, novos pontos de vista utilizados. Mas é na maioria das vezes a questão da
linguagem que faz com que modificações sejam adotadas e que a impressão de um
determinado diretor seja passada para o público. Esta relação acontece desde a criação das
primeiras veiculações cinematográficas. Quando o cinematógrafo foi inventado, por
exemplo, a nova linguagem que surgia era vista não apenas como algo que dependia de
reprodução, mas também de criação, invenção. Flora Sussekind em seu livro
Cinematógrafo de Letras nos fala sobre os passos iniciais desta nova linguagem, e diz que a
fita cinematográfica se tornou em determinado momento uma “espécie de diário em
movimento de impressões pessoais variadas (…) assume os contornos da ‘personalidade’
do operador”.
As duas linguagens, a literária e a cinematográfica, sempre estabeleceram uma conexão
entre si e, apesar de suas diferenças, conseguem manter um diálogo como pode ser visto
através das adaptações cinematográficas. Se em alguns momentos a fidelidade às histórias
do rei Artur não foi mantida, ou se não agradaram a alguns, estas adaptações procuraram
seguir a estrutura central, inserindo alterações que se encaixassem ao espírito do cinema e
ao espírito do diretor. Pois isto não podemos evitar: todo autor, por mais que esteja somente
adaptando, inclui elementos de seu próprio repertório. Espera-se apenas que isto seja feito
com responsabilidade e respeito.
E cabe mais uma vez lembrar que adaptar não é tarefa fácil. Como afirma o jornalista e
crítico de cinema e literatura, Ubiratã Brasil: “Adaptar uma obra literária para a linguagem
do cinema pede uma série de qualificações do roteirista, que deve ter a firme disposição de
53
selecionar trechos compatíveis com a narrativa cinematográfica. Mesmo que isso exija o
sacrifício de momentos essenciais. A tarefa é árdua e exige, além de criatividade, um
punhado de coragem”.
Referências Bibliográficas
1 - Malory, Thomas. A morte de Arthur. Brasília, Thot Livraria e Editora, 1987
2 – Zimmer Bradley, Marion. As Brumas de Avalon. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1982
3 – Furtado, Antonio. Artur e Alexandre. São Paulo, Ática, 1995.
4 – Metz, Christian. A significação no cinema. São Paulo, Perspectiva, 1968
5 – Sussekind, Flora. Cinematógrafo de letras. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1987
6 – Carrière, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1995
7 – Garcia Marquez, Gabriel. Como contar um conto. Rio de Janeiro, Casa Jorge Editorial,
2001
8 – Avellar, José Carlos. Cinema e Literatura no Brasil. São Paulo, Câmara Brasileira do
Livro, 1994
54
Da Cavalaria à Ficção-Científica:
O rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda em quadrinhos
Mário Feijó Borges Monteiro
No final da Idade Média, Thomas Malory veio reunir com êxito todas essas abordagens: o Artur
heróico defendendo o país, seus cavaleiros obcecados em aumentar a própria fama, a cruzada
simbólica da busca do Graal. Dessa época aos nossos tempos, vêm ocorrendo inumeráveis
tentativas, com grau variado de sucesso, para atualizar o conceito heróico arturiano adaptando-o
aos novos contextos.
1
A. L. Furtado
Antes de Gildas, Nennius, Geoffrey of Monmouth, Wace, Chrétien de Troyes, Robert de
Boron ou mesmo Thomas Malory havia o canadense Harold (Hal) Foster, grande mestre
dos quadrinhos. Para mim, foi assim que a lenda começou, lá pelos meus oito anos.
Gostava muito de ouvir meu pai contar histórias baseadas em filmes, livros e gibis. Ele
costumava narrar de memória, recordando suas aventuras favoritas, fazendo uma ou outra
adaptação para agradar ao público (que, no caso, era apenas eu). Foi assim que me tornei fã
por antecipação de filmes como King Kong, romances como O último dos moicanos e das
séries em quadrinhos Tarzan e Príncipe Valente nos tempos do rei Arthur.
Passariam-se ainda alguns anos até que eu pudesse ler os gibis escritos e desenhados por
Foster (em edições comemorativas publicadas pela antiga EBAL); entretanto o importante
já estava garantido: o conhecimento de que havia um grande rei em cuja corte se reuniam
os mais bravos cavaleiros do mundo, todos guerreiros extraordinários, verdadeiros heróis.
É curioso observar que os quadrinhos como os conhecemos não existiam antes de Hal
Foster começar a desenhar as tiras de Tarzan para jornais norte-americanos. Até 1929, a
fórmula usada para fazer sucesso era inventar coisas absurdas e engraçadas, sempre a partir
de situações típicas do cotidiano das famílias. A história começava e acabava na mesma
tirinha de jornal (ou página dominical). Prevalecia o desenho caricatural, não havia nenhum
realismo estético – os personagens nunca pareciam seres humanos ou animais reais, na
melhor das hipóteses eram apenas desproporcionais. As séries eram sempre cômicas: Os
Sobrinhos do Capitão de Rudolph Dirks, Sonhos de um Comilão e Little Nemo de Winsor
McCay, Mutt & Jeff de Bud Fisher, Krazy Kat de George Herriman, Pafúncio & Marocas
de Geo McManus, Gato Félix de Pat Sullivan, a pequena orfã Annie de Harold Gray, e
tantos outros. Daí o fato de que, até hoje, os gibis serem chamados de comics nos países de
língua inglesa.
As narrativas visuais feitas de aventura e romance, com tramas de longa duração e uma
mocinha sempre em perigo, surgiram apenas quando o popular escritor norte-americano
Edgar Rice Burroughs autorizou a adaptação de seus livros sobre o famoso rei das selvas
para o formato quadrinhos. As novas histórias de Tarzan estrearam em tiras diárias em
1929 e, em 1931, Hal Foster já estava escrevendo e desenhando para as páginas coloridas
dominicais.
1
FURTADO, 1985, pág. 211.
55
Com Tarzan, cada tira ou página dominical passava a ser um breve capítulo de uma
longa história. A emoção e o suspense continuavam sempre no mesmo jornal no dia
seguinte, no caso das tiras, ou na semana seguinte, no caso das páginas. Dessa maneira, o
leitor deixava de rir da piada em forma de situações ligeiras (onde cada personagem já tinha
suas situações típicas) para acompanhar verdadeiro folhetim. Ou seria um romance de
cavalaria ambientada no coração da África?
Em 1937, cansado de trabalhar para os outros, Foster resolveu deixar o personagem de
Burroughs para ficar razoavelmente rico com sua própria criação: as páginas dominicais do
Príncipe Valente, herói dos tempos gloriosos da Távola Redonda.
Naquela nova série, Arthur, Lancelot e Merlin eram meros coadjuvantes. Sir Gawain (ou
Galvão na tradição portuguesa) era o único cavaleiro que realmente tinha alguma
importância, pois atuava como um mentor do jovem Valente. A rigor, Foster não precisava
ambientar seu herói “nos tempos do rei Arthur”, visto que o rapaz viajava bastante, corria
mundo, aventurava-se no Oriente, lutava com piratas, derrotava gigantes, derrubava tiranos,
fazia de tudo um pouco. Valente podia ser um herói medieval, um príncipe corajoso e um
cavaleiro excepcional sem precisar viver “nos tempos do rei Arthur”. Acontece que Hal
Foster não deixara Tarzan para correr riscos...
Não sei se ele percebia claramente que a estrutura dramática e o apelo heróico dos
quadrinhos de Tarzan e de outros personagens recém-chegados (como Flash Gordon)
remetia diretamente aos romances de cavalaria. Entretanto, com certeza, o artista sabia do
poderoso fascínio exercido pelos mitos arturianos no imaginário popular. Inserir Valente
entre os cavaleiros da Távola Redonda era sua estratégia para ficar rico (e disso nunca fez
segredo).
É necessário registrar que, apesar de ter sido um importante divulgador da lenda do rei
Arthur, o criador do Príncipe Valente nunca se propôs a fazer uma adaptação da Matéria da
Bretanha. Sua obra se inspirava na mitologia arturiana e só. Não havia nenhuma intenção
de atualizar Arthur, Merlin, Lancelot ou Gawain como heróis para uma nova geração de
leitores.
À exceção da saga Camelot 3000, de Mike Barr e Brian Bolland, publicada pela
primeira vez em 1982, e que comentarei em breve, todas as demais séries em quadrinhos
usaram elementos da lenda para enriquecer suas tramas ou promover suas vendas, sem,
contudo, restabelecer a Arthur seu lugar de direito como poderoso e invencível reiguerreiro, senhor da temida espada Excalibur, aquele que retornaria quando a Inglaterra
mais precisasse.
Mesmo em séries britânicas como Capitão Britânia (1977) e Union Jack (1999), que a
rigor são dois super-heróis ingleses publicados pela editora norte-americana Marvel
Comics, lá estão os elementos lendários tão-somente como coadjuvantes a enriquecer a
trama.
Na primeira, o futuro líder de uma super-equipe de mutantes europeus (que seria
batizada como EXCALIBUR) ainda é apenas o estudante Brian Bradock. Em Stonehenge,
diante de Merlin e Morgana, ele tem de escolher, entre uma espada encravada na rocha e
um amuleto misterioso, qual será o seu símbolo de poder. Bradock escolhe o amuleto e se
torna o Capitão Britânia em sua primeira encarnação (na década de 1980 o personagem
seria reformulado).
Na segunda, o herói mascarado Union Jack (o terceiro da linhagem) tem de impedir que
a temível rainha de uma horda de vampiros encontre e se apodere do Santo Graal. Ele
56
fracassa na missão, mas tudo acaba bem, porque a visão do Graal extermina a horda como
se fosse o sol do meio-dia. Mais uma vez, nada de Arthur, Lancelot ou Guinevere...
Outro interessante ponto de ligação entre os quadrinhos de aventura e ação editados para
jovens e certos elementos da tradição arturiana é um ocultista que mora em Gotham City
chamado Jason Blood, um tipo muito estranho e misterioso.
Gotham, como o mundo inteiro sabe, é a cidade do Batman. Sempre que o homemmorcego tem de investigar algum caso macabro envolvendo forças sobrenaturais bem
sinistras, ele costuma recorrer à orientação especializada de Blood. E Batman não é o único
a fazer isso, outros super-heróis da mesma editora, a DC Comics, já pediram socorro ao
perito em ocultismo, pois o "cara" entende como ninguém sobre criaturas infernais,
maldições e afins. Pudera. O homem (?) na verdade é um demônio! Não um qualquer, mas
o meio-irmão de Merlin por parte de pai.
Segundo a lenda, o mago era filho de um ser das trevas com uma mulher mortal,
portanto meio-humano. Blood, porém, é totalmente demoníaco, nasceu no inferno, foi
gerado para ser um escravo de Merlin; seu nome verdadeiro é Etrigan, um ser horrendo,
fedorento e amarelo que só fala em rima. Ah, ele também cospe fogo e adora matar. Sua
missão, no passado, era dar combate a Morgana. Em nossa era, ganhou independência, não
quis mais saber da luta eterna entre o mago e a feiticeira e agora cuida é da sua vida. Seus
objetivos e motivações não são claros; com certeza, sabe-se somente que ele odeia o irmão
Merlin (a quem já teve a oportunidade de aprisionar e torturar) e todos os outros demônios.
É um personagem extremamente carismático, porém cada vez mais distante de sua origem
arturiana.
Origem? Ah, sim. A “verdadeira” origem de Etrigan, o demônio, é, no mínimo, um tanto
curiosa. Décadas antes de começar a fazer sucesso em Gotham City, disfarçado na figura
humana do ocultista Jason Blood (um simulacro de carne e sangue), o terrível Etrigan era o
próprio Príncipe Valente. Como é possível? Ora, é a intertextualidade...
Houve uma aventura de Valente, na década de 30, em que o rapaz se disfarçou de diabo
amarelo para enganar e assustar os vilões que dominavam um castelo. Usando de tal ardil, o
jovem príncipe libertou o castelo sozinho, sem precisar pegar em armas para lutar com um
monte de inimigos. Essa história e o desenho que Hal Foster criou para o disfarce de
“demônio amarelo” devem ter influenciado Jack Kirby, o primeiro a desenhar Etrigan, lá
pelos anos 60. O visual de Etrigan é absolutamente idêntico ao disfarce do Príncipe
Valente.
Também na editora DC Comics, temos o caso de Aquaman, o herói submarino, rei dos
mares, cujas semelhanças com a lenda de Arthur têm sido acentuadas progressivamente por
diferentes artistas. Rick Veitch, o atual roteirista titular da revista, porém, resolveu
radicalizar e mergulhar de cabeça no charme dos velhos mitos da Bretanha. Reproduzo suas
palavras em entrevista disponível no site oficial da editora em maio de 2003:
RICK VEITCH: There have long been hints of a connection with Arthurian legend in the Aquaman
mythos, and while I can categorically say we're not going to make him the long lost reincarnation of King
Arthur, we are going to resonate with some of that stuff in devilishly cool ways.
Mas, afinal de contas, que conexão pode existir entre um rei da Atlântida, um homem do
fundo do mar, e o lendário rei dos bretões? De início, nada. Acontece que o nome
verdadeiro de Aquaman é Arthur Curry Jr... A Atlântida, portanto, tem o seu rei Arthur.
57
Quando surgiu, em 1940, o personagem Aquaman tentava faturar uma fatia do mercado
de gibis dominada por Namor, o Príncipe Submarino, da Timely Comics (antecessora da
Marvel). Na sua versão original, Aquaman era um rapaz da superfície, filho de um cientista
dedicado a explorar as profundezas dos oceanos em busca das ruínas submersas da cidade
perdida de Atlântida. Ao encontrá-las, o cientista passava a viver numa espécie de
laboratório submarino, sozinho com o filho. Usando os segredos da ciência atlante,
conseguia o milagre de fazer o rapaz respirar debaixo d´água, comandar os peixes por
telepatia etc. etc. etc. O resto era o de praxe na década de 40: o cientista morria, o filho
jurava defender a justiça, a verdade e o modo americano de viver e passava a proteger os
navios aliados dos ataques traiçoeiros dos submarinos nazistas.
Foi na década de 50, quando a publicação das aventuras de Namor tinha sido cancelada,
que os editores de Aquaman resolveram se apropriar daquele conceito de príncipe
submarino, apresentando uma nova origem para o personagem, quase idêntica à de Namor.
Em resumo: (1) a filha do monarca da Atlântida, como a pequena sereia de Hans Christian
Andersen, subia à superfície e se apaixonava por um homem, (2) casava com ele e gerava
um filho; (3) os soldados atlantes finalmente acabavam por encontrá-la e a levavam de
volta para o fundo do mar à força. As diferenças eram mínimas: (4) o destino do pai e (5) o
local de nascimento do bebê híbrido. Em Namor, o pai era o comandante de um navio
mercante, o capitão McKenzie. No novo Aquaman, o pai era o solitário encarregado de um
farol, chamado Arthur Curry. O capitão MacKenzie era assassinado pelos soldados e a
princesa dava à luz depois de retornar à corte imperial. O faroleiro Arthur era poupado
pelos soldados, mas assistia impotente ao seqüestro da esposa e do filho pequeno (a
princesa dera à luz na ilha do farol). Assim, na nova versão, muito mais do que um herói
submarino, Aquaman era um rei dos mares.
Quando Stan Lee trouxe o velho Namor de volta aos gibis da Marvel (primeiro como
coadjuvante do Quarteto Fantástico, depois dos Vingadores), Aquaman entrou em
constrangedora crise de identidade, a qual foi superada aos poucos. Entretanto, se o nome
civil do personagem não fosse Arthur, não sei como a história teria continuado...
Hoje, a biografia oficial do rei Arthur da Atlântida, em resumo bem resumido, é a
seguinte: (1) um feiticeiro banido do reino de Poseidonis, o mais importante da
confederação atlante, assumiu a forma do monarca e se deitou com a rainha, gerando um
filho. O bebê nasceu louro, algo inusitado no mundo submarino, uma espécie de marca
maldita, indicativo de desgraça ou adultério. (2) O monarca, sabendo que o filho não era
seu, ordenou que ele fosse levado para longe, para morrer em águas distantes. À rainha,
disse que o bebê morrera logo após nascer. (3) Milagrosamente, a criança sobreviveu,
protegida por golfinhos, e depois foi encontrada numa das praias da ilha do farol onde
trabalhava Arthur Curry. (4) Adotado pelo faroleiro, o menino mágico, capaz de respirar
água e ar, ganhou o nome de Arthur Curry Jr. e aprendeu como é a vida na superfície.
(5) Ao se tornar rapaz, retornou ao mar em busca de sua origem. (6) Após muitas aventuras
e façanhas, chega ao reino de Poseidonis, que está mergulhado no caos e na vilania desde
que o rei (o marido de sua mãe) morreu sem deixar herdeiros. (7) Arthur Jr., agora chamado
Aquaman, expulsa os invasores, restabelece a ordem e restaura a glória de Poseidonis.
(8) O trono é oferecido ao antigo Primeiro-Ministro, um homem sábio e justo,
indiscutivelmente apto a governar, mas este recusa. Então, dá-se a revelação: Aquaman é o
filho bastardo da rainha que voltou justo quando o povo mais precisava de um rei... O
cabelo louro do herói é a marca de nascença que permite o reconhecimento. E como a linha
sucessória da Atlântida passa pelas mulheres, não havendo outros pretendentes, também
58
não há nenhum empecilho jurídico para que Aquaman seja proclamado rei, mesmo sendo
um bastardo.
Pronto, Aquaman liberta-se do fantasma de Namor!
Na nova fase a que se refere Rick Veitch, há muito mais magia do que ciência no fundo
do mar. Uma nova personagem está sendo introduzida na série, fazendo a ponte definitiva
entre os dois reis de nome Arthur: é a Dama do Lago.
Na tradição medieval, Lancelot, ainda bebê, foi levado para o reino encantado da Dama
do Lago, onde cresceu com as honras de príncipe, sendo devidamente educado e treinado
para se tornar um nobre e destemido cavaleiro. O lago, porém, era uma ilusão mágica
criada pela Dama para manter seus domínios a salvo de estranhos. Isto é, os forasteiros
enxergavam um lago, mas abaixo do espelho d´água havia terra seca, um reino com castelo,
cavalos, florestas, caça etc. etc. etc. Provavelmente, o tal lago deve ter sido inventado a
posteriori para justificar o porquê de o herói criado por Chrétien de Troyes em O Cavaleiro
da Carroça se chamar Lancelot du Lac. Enfim, Ninienne, conhecida como a Dama do
Lago, e que aprendera as artes da magia com seu amante Merlin, não respirava debaixo
d´água!
Como os nomes têm poder, é aceitável que o imaginário popular, depois de tanto tempo,
tenha transformado a Dama em uma espécie de boa fada das águas. E como foi o nome
Arthur que atraiu a mística arturiana para a história de Aquaman, não chega a ser
surpreendente que a lendária Dama do Lago seja agora uma força do Bem a habitar águas
doces e salgadas, uma presença invisível que sempre protegeu o rei da Atlântida em
segredo. A novidade é que finalmente Ninienne se revela ao seu protegido para explicar
qual é a verdadeira missão do rei na ordem do mundo (aquático, naturalmente).
Apesar dessa aproximação cada vez maior com os mitos da Bretanha, como o próprio
autor Rick Veitch enfatizou, Aquaman não é “a reencarnação do rei Arthur”.
Assim sendo, acho que já podemos conversar sobre a volta do rei. Sobre o Arthur, superherói de quadrinhos e última esperança da Terra no século XXX. Antes, contudo, peço o
direito de fazer uma rápida pausa para breves reflexões teóricas.
Pausa: A adaptação como discurso que se atualiza.
Gostaria de afirmar que o processo de formação e transformação da narrativa literária ao
longo do tempo ocorre como processo de adaptação de histórias, personagens e linguagens
para novos públicos, em novas eras, às vezes em gêneros narrativos que não existiam antes.
Gostaria também de argumentar, com base no pensamento de Michel Foucault, autor de A
ordem do discurso, que a adaptação é um discurso que se atualiza. No caso, um tipo
especial de tradução que envolve seleção de conteúdo e adequação de linguagem para
apresentar a obra a uma nova geração de jovens leitores.
Embora jamais tenha escrito especificamente sobre o tema “adaptações”, Foucault
considerava os textos jurídicos, religiosos e literários como narrativas especiais, construídas
para propagar discursos, visto que carregam em si sistemas de valores, significados e
procedimentos de controle e delimitação dos jogos de poder e desejo. As coisas ditas, ou
escritas, e constantemente repetidas, servem para ordenar o mundo, as sociedades, as
crenças e comportamentos.
Refletindo sobre as questões envolvidas na idéia de autoria, e sobre textos escritos
diretamente inspirados por outros que os precederam, Foucault nos apresentou os conceitos
59
de texto primeiro e texto segundo, ou comentário, fundamentais para se pensar as obras
clássicas e suas adaptações.
Se aceitarmos que os grandes clássicos da literatura podem ser classificados como textos
primeiros, e que, portanto, podem dar origem, indefinidamente, a novos textos, sempre
atualizados ao contexto histórico em que são produzidos e ao público a que se destinam,
então poderemos pensar a adaptação como um procedimento inerente à renovação da
tradição literária; como perpetuação e divulgação dos cânones; como atualização de um
discurso. Sem esquecer que qualquer tipo de análise de discurso remete inevitavelmente a
disputas sobre critérios de legitimação e hierarquias de valores.
Deixo que as palavras do próprio Foucault expliquem como um clássico da literatura
pode ser um tipo de discurso sempre reatualizável e capaz de gerar, constantemente, novos
discursos:
Suponho, mas sem ter muita certeza, que não há sociedade onde não existam narrativas maiores que se
contam, se repetem e se fazem variar; fórmulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos que se narram,
conforme circunstâncias bem determinadas; coisas ditas uma vez e que se conservam, porque nelas se
imagina haver algo como um segredo ou uma riqueza. Em suma, pode-se supor que há, muito
regularmente, nas sociedades uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que “se
dizem” no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos
que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam
deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem
ditos e estão ainda por dizer. Nós os conhecemos em nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou
jurídicos, são também esses textos curiosos, quando se considera o seu estatuto, e que chamamos de
“literários”; em certa medida textos científicos.
É certo que esse deslocamento não é estável, nem constante, nem absoluto. Não há, de um lado, a
categoria dada uma vez por todas, dos discursos fundamentais ou criadores e, de outro, a massa daqueles
que repetem, glosam e comentam. Muitos textos maiores se confundem e desaparecem, e, por vezes,
comentários vêm tomar o primeiro lugar. Mas embora seus pontos de aplicação possam mudar, a função
permanece; e o princípio de um deslocamento encontra-se sem cessar reposto em jogo. O
desaparecimento radical desse desnivelamento não pode nunca ser senão um jogo, utopia ou angústia.
Jogo, à moda de Borges, de um comentário que não será outra coisa senão a reaparição, palavra por
palavra (mas desta vez solene e esperada), daquilo que ele comenta; jogo, ainda, de uma obra que não
existe. (...).
Por ora, gostaria de me limitar a indicar que, no que se chama globalmente um comentário, o
desnível entre texto primeiro e texto segundo desempenha dois papéis que são solidários. Por um
lado permite construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro pairar
acima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto
de que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso
funda uma possibilidade aberta de falar (grifo meu). Mas, por outro lado, o comentário não tem outro
papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado
silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao qual
não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir
1
incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito.
As possibilidades de atualização de um discurso (seja ele literário ou não) são vastas e
não se limitam a textos. No cinema e na televisão, os roteiros podem ser originais ou
adaptados. Em teatro, cada montagem é uma adaptação/interpretação de uma peça
anteriormente escrita. Na música, um novo arranjo corresponde a uma adaptação da obra
original, tanto que, pela legislação brasileira em vigor, os direitos de adaptadores e
arranjadores são iguais e estão protegidos pela mesma cláusula legal (ver lei 9.640, de 19
1
FOUCAULT, pág. 21 a 25.
60
de fevereiro de 1998, sobre a regulamentação dos direitos autorais). Grandes editoras de
histórias em quadrinhos já investiram em coleções dedicadas a adaptações de clássicos da
literatura, publicando obras escritas e desenhadas por artistas consagrados.
A adaptação ideal parece ser aquela que consegue atualizar a linguagem da narrativa e
preservar ao máximo o enredo. Mas até que ponto é possível atualizar um discurso para que
ele permaneça entre nós sem inserir alterações/mutações na trama original? Pergunto
lembrando que, como dizia o tradutor Paulo Rónai, em A tradução vivida, o “setor especial
da adaptação é a literatura para adolescentes”. E acrescentando que, nesse “setor especial”,
são plenamente aceitas aquelas obras que se destacam pela força do enredo, pelo apelo à
imaginação.
Por falar em força de enredo e apelo à imaginação que encantam gerações e gerações de
leitores, é hora de encerrar a pausa e retomar a narrativa interrompida. De volta a Camelot!
Fim da pausa.
Na minha compreensão de menino, o rei Arthur, pelo menos em sua juventude, quando
deveria estar no auge do vigor físico e mental, tinha de ser muito mais fabuloso e destemido
do que qualquer um de seus cavaleiros. Se ele, e somente ele, tinha sido o escolhido por
forças superiores para receber a espada mágica Excalibur, então o grande herói daqueles
tempos não podia ser outro.
Meu pai adorava o Príncipe Valente e também o mito de Arthur. Entretanto, o rei que
aparecia no gibi já estava um tanto ou quanto velho e cansado de guerra. Era um
governante bom, sábio e justo; só isso. Infelizmente, não lembrava em nada aquele mito
bretão que atualizava outro mito da antiguidade: Alexandre, o Grande. Já o Arthur de Hal
Foster, que aparecia quase sempre sentado, no fundo, remetia o imaginário do público
norte-americano ao presidente da época, Frank Delano Roosevelt.
A evolução da lenda arturiana, de fato, rebaixou a importância guerreira ou heróica do
rei. Da crônica pseudo-histórica de Geoffrey of Monmouth, passando pelos contos do amor
cortês de Chrétien de Troyes e chegando às histórias exemplares (de orientação religiosa)
escritas por Robert de Boron, o nosso grande Arthur foi encolhendo...
Recapitulando as palavras de Furtado:
Ao passar da austera prosa latina de Geoffrey para os versos franceses de Chrétien, a literatura arturiana
não mudou apenas quanto à forma. Com a crescente voga dos ideais, ritos e costumes da cavalaria, a
ênfase em guerras entre povos, marcada pelas batalhas campais e ocasionais combates singulares, foi
substituída por conflitos individuais, decididos em duelos, justas e torneios. A figura do rei Artur passou
a segundo plano, valendo mais como um ponto de confluência de tudo o que é nobre – fala-se mais na
corte do rei do que nele próprio –, e a ação se deslocou para seus cavaleiros, reunidos à volta da Távola
Redonda. Os objetivos de um cavaleiro, nesses poemas, não tinham senão ligações remotas com os
1
destinos de sua pátria (...) .
Em 1982, os artistas Mike Barr e Brian Bolland lançaram uma série em 12 capítulos
mensais que se tornou um dos grandes clássicos das histórias em quadrinhos modernas.
Desde então, Camelot 3000 já foi reeditada inúmeras vezes, em vários países. No Brasil, foi
1
FURTADO, 1985, pág. 32.
61
lançada em agosto de 1984, publicada a princípio na revista Batman (Ed. Abril, 1ª série),
depois em Superamigos (Ed. Abril).
No dia em que chegou às bancas o último capítulo brasileiro, houve tumulto no colégio
Santo Inácio, no Rio de Janeiro, porque dois exemplares da revista foram contrabandeados
logo de manhã cedo para dentro do terceiro ano colegial, um circulou na turma 32, outro na
34; vários alunos queriam ler ao mesmo tempo, aquela confusão... Houve um rapaz, com
fama de palhaço, que começou a gritar “Ele morre! Ele morreu!” em sala de aula e, por
isso, levou um soco do colega que ainda não tinha lido o desfecho. Briga em sala de aula
sempre acaba na coordenação, aquele vexame. O mais difícil foi os rapazes conseguirem
explicar o motivo da briga. Na outra turma, a revista em circulação foi despedaçada por três
leitores em conflito, mas o acerto de contas ficou para a hora do recreio.
A série foi republicada no Brasil, em quatro volumes, em 1988.
Mas o que Camelot 3000 tem de especial afinal? Trata-se de uma obra-prima, tanto em
arte como em enredo. Apóia-se firmemente na tradição arturiana, mas inova com a
ambientação futurística. Das histórias de cavalaria, chegamos às aventuras de ficçãocientífica.
Mike Barr, antes de se consagrar com Camelot 3000, estava escrevendo os roteiros para
a versão em quadrinhos de Guerra nas Estrelas. Como Hal Foster, quase cinqüenta anos
antes, resolveu deixar a adaptação de uma saga de sucesso garantido para se arriscar numa
produção própria. Mas, diferente de Foster, ele estava determinado a recolocar Arthur
Pendragon no seu trono.
Diz a lenda que Arthur, gravemente ferido, foi levado para a ilha de Avalon e de lá só
voltaria quando a Inglaterra mais precisasse dele. Pois, no fatídico ano 3000, não só a
Inglaterra, mas todo o planeta precisará do rei. Dessa vez, os invasores não são os saxões;
são os alienígenas que vieram para conquistar a Terra.
No futuro imaginado por Mike Barr, a humanidade chegou ao último ano do século
XXX bem no limite dos recursos naturais do mundo, às voltas com problemas de
superpopulação, falta de liberdades democráticas, corrupção em todos os governos,
descrédito da sociedade quanto às classes dirigentes etc. A pesquisa espacial fora cancelada
séculos antes, porque se acreditava que era dinheiro jogado fora. Portanto, não há colônias
espaciais, astronaves capazes de ir além de Marte, tubos de teleporte ou coisas do gênero.
Há asteróides em órbita habitados por milionários excêntricos e nada além disso. A espécie
humana, portanto, está presa ao planeta Terra, tecnologicamente despreparada para
combater no espaço ou rechaçar uma invasão.
Há quatro superpotências globais: Estados Unidos, União Soviética, China e República
Africana. Seus líderes são absolutamente ridículos e facilmente manipuláveis pelo ardiloso
diretor de segurança da ONU. A União Soviética está lá, é claro, porque a história foi
escrita em 1982. Aliás, para constar: é um futuro sem nada que seja parecido com a
Internet.
Mas vamos ao que interessa: a ação! E as transformações na narrativa.
A guerra entre mundos começou, as criaturas estão vindo do, até então desconhecido,
décimo planeta do sistema solar, que o leitor ficará sabendo que se chama Chiron. A
Inglaterra é o foco principal da invasão, porém os ataques castigam toda a Europa. A
resistência francesa é a mais bem organizada e eficiente, graças à liderança de Jules Futrele,
o último multibilionário idealista, e aos extraordinários recursos em termos de tecnologia e
logística de sua megacorporação. Nos Estados Unidos, a comandante Joan Acton,
coordenadora da defesa global, assiste impotente ao aniquilamento da força aérea norte62
americana. O equilíbrio político mundial está por um fio. As populações civis estão
desesperadas. É um momento de trevas. E os aliens continuam a desembarcar suas tropas
em solo inglês...
Thomas Prentice, ou apenas Tom, é um rapaz de seus dezoito anos, acaba de perder os
pais no massacre de Londres e está fugindo, tentando sobreviver. Sua esperança é despistar
os perseguidores no labirinto formado pelo sistema de cavernas do parque arqueológico do
Monte Glastonbury. Na mais profunda das cavernas, Tom descobre uma cripta. Ao abri-la,
descobre um homem, aparentemente um guerreiro medieval, que acaba de despertar de um
sono milenar. Quando os invasores alcançam a galeria da cripta, em instantes, o misterioso
guerreiro recupera seus reflexos fenomenais, parte para a luta corpo-a-corpo com os
alienígenas e vai matando, um por um, todos os inimigos que encontra em seu caminho.
Impressionado com aquele humano diferente, Tom passa a acompanhá-lo e depois a
conduzi-lo aonde ele ordena. O sujeito diz ser o rei Arthur, Tom não acredita, mas, em
tempo de guerra, é melhor seguir um maluco bom de briga do que morrer. Assim, os dois
chegam a Stonehenge, enfrentam alguns fantasmas e libertam o mago Merlin, prisioneiro
de um encanto. Vendo os dois juntos, Arthur e Merlin, Tom começa a acreditar que eles
sejam de fato quem dizem ser. A missão de Arthur é clara: unificar todos os povos do
mundo sob seu comando e expulsar os invasores.
Juntos, os três partem para recuperar Excalibur. À beira de um lago, a espada é invocada
e uma mão feminina se ergue da água atendendo ao chamado, devolvendo Excalibur ao rei.
Subitamente, porém, a arma desaparece. A magia de Merlin a transportou para o edifício
das Nações Unidas, onde diante das câmeras de televisão e dos olhares atentos da
população de diversos países, ela reaparece encravada numa bigorna e numa rocha (a
bigorna está sobre a rocha que surgiu do nada em plena assembléia-geral da ONU; a espada
atravessa os dois objetos). Máquinas, robôs e soldados tentam retirar a espada, sem sucesso.
Finalmente, chega Arthur, abre caminho até o local à força e, com um puxão, retira
Excalibur da rocha e da bigorna. Os populares entram em êxtase, as autoridades começam a
tremer. Arthur se apresenta como rei da Bretanha e soberano do Império Romano, promete
a vitória contra os alienígenas e um mundo livre, unificado sob uma única bandeira.
O rei Arthur voltou. Os cavaleiros da Távola Redonda idem.
Jules Futrele é a reencarnação de Sir Lancelot. A comandante Acton, da rainha
Guinevere. Outros cinco cavaleiros também reencarnaram: Kay, Gawain, Percival, Galahad
e Tristão. A magia de Merlin faz com que recuperem as lembranças da Távola Redonda e
estejam novamente prontos para combater a serviço do rei. Uma nova corte é estabelecida
na Fortaleza de Futrele, o maior dos asteróides em órbita, agora rebatizada como Nova
Camelot. As autoridades constituídas não gostam dessa história, mas decidem aceitar o rei
até que ele cumpra sua promessa de expulsar os invasores, depois pretendem se livrar dele e
dos cavaleiros. Várias batalhas ocorrem antes que todos os segredos sejam revelados e se
reinicie a demanda do Santo Graal.
Os dramas entre os cavaleiros e as intrigas do diretor de segurança da ONU dão o tom da
narrativa enquanto a batalha final não chega. Lancelot e Guinevere não resistem à paixão e
voltam a ser amantes, para sofrimento de Arthur. Galahad, agora um samurai japonês, está
esperando a hora certa para se matar e pagar uma dívida de honra. Gawain, um negro
africano, não consegue parar de pensar na família e no filho pequeno que deixou para trás.
Kay, um americano vigarista, só pensa em trapaças. Merlin sabe que a vilã por trás da
invasão é Morgana Le Fey, mas não sabe onde ela está. Percival é um neo-humano, um ser
geneticamente modificado para ser um monstruoso soldado do regime; pouco inteligente e
63
fortíssimo. Tristão vive atormentado, pois reencarnou no (belo) corpo de uma mulher e,
agora que recuperou a identidade da vida passada, não consegue aceitar a situação,
principalmente depois de descobrir que sua amada Isolda reencarnou também. O jovem
Tom, por azar, apaixona-se por Tristã/Tristão e está armado outro triângulo amoroso, outra
confusão. E quem estava faltando, não está mais: o diabólico diretor de segurança da ONU
que conspira contra o novo reinado de Arthur não podia ser outro que não o traiçoeiro
Mordred reencarnado.
Depois de muitas peripécias, Arthur ordena uma nova demanda do Graal para curar o
amigo Tom, gravemente ferido na mesma batalha em que Kay morreu. É a primeira baixa
na equipe.
Percival, por fim, encontra o Graal e cura Tom, sendo transfigurado, libertado de sua
forma mortal e partindo como um anjo de fogo para a eternidade. É a segunda baixa na
equipe. Lancelot, então, recebe a missão de ser o guardião do Graal. Mas Morgana e
Mordred querem o objeto sagrado, cada um tem seus motivos, e conseguem obtê-lo numa
falha de Lancelot; em determinado momento o cavaleiro tem de escolher entre proteger sua
dama ou o cálice; ele salva a rainha, porém perde o Graal para os vilões.
O clímax da história acontece quando os cavaleiros chegam a Chiron, de onde estão
partindo as naves alienígenas. Lá está o castelo de Morgana, onde Merlin foi aprisionado e
onde, inevitavelmente, se dará o combate final. Os heróis conseguem chegar ao décimo
planeta do sistema solar graças ao único foguete para viagens interplanetárias existente na
Terra, guardado como segredo de Estado pela ONU. A nave, porém, não podia voar por
falta de uma fonte de energia adequada. Arthur Pendragon logo resolve esse problema,
usando o poder mágico de Excalibur para energizar o foguete.
Durante a tomada do castelo, Galahad morre. Sir Lancelot enfrenta Mordred em
combate singular, mas, pela primeira vez em sua vida, é derrotado. Não por falta de
habilidade, mas porque o vilão fundiu o Graal numa armadura e, por meio deste
estratagema, tornou-se imune a qualquer ferimento. O cavaleiro só escapa da morte graças
à chegada providencial de Arthur. O rei consegue matar o usurpador e libertar Merlin,
depois manda o mago teleportar os cavaleiros sobreviventes para a Terra e fica sozinho no
planeta hostil para terminar de uma vez por todas com Morgana e suas tropas. Usando a
mágica de Excalibur, provoca uma fissão nuclear e explode com a feiticeira, o castelo e as
tropas.
No desfecho, na Terra livre dos invasores, Lancelot e Guinevere ficam finalmente
juntos. Tristão e Isolda também, mesmo sendo do mesmo sexo. Gawain retorna para sua
família, é recebido como herói pelo filho. Tom Prentice aparece lendo Le Morte d`Arthur,
de Thomas Malory, depois se torna o líder da reconstrução da Inglaterra. E Merlin
desaparece, desfaz-se no ar, prometendo voltar um dia, quando o ciclo se reiniciar.
Em outra galáxia, um alien encontra uma espada encravada numa rocha, é a mágica
Excalibur. Ao retirá-la, ele se lembra de que, em outra era, foi o rei Arthur. Um novo ciclo
arturiano está começando.
Mike Barr aproveitou bastante da Matéria da Bretanha, mas, é claro, criou sua própria
versão para certos eventos ou personagens daquela tradição, tomando sempre cuidado para
construir uma narrativa coerente, sem pontas soltas ou contradições internas. Como, desde
que Geoffrey of Monmouth escreveu a primeira “biografia” de Arthur em Historia regum
Britanniae (História dos reis da Bretanha), concluída em 1135 d.C., incontáveis autores
foram acrescentando novos elementos à lenda, fazendo aqui e ali pequenas modificações,
temos hoje uma razoável quantidade de variações sobre os mesmos temas.
64
É realmente impossível criar uma narrativa nova sobre o rei Arthur e seus cavaleiros da
Távola Redonda, que seja uma história bem contada, com início, meio e fim, sem fazer
certas escolhas... A Matéria da Bretanha é um tipo de mitologia e, assim sendo, qualquer
adaptação ou versão atualizada, seja na forma de cinema, teatro, literatura ou quadrinhos,
implicará necessariamente em interpretação, seleção, corte e edição de elementos
preexistentes.
A Dama do Lago, o Graal, o amor impossível de Tristão e Isolda e a origem de Mordred
são os principais elementos que envolvem variações em relação à tradição e algumas
liberdades autorais.
Em Camelot 3000, o autor Mike Barr não menciona nenhuma vez o Rico Rei Pescador.
Percival (na primeira encarnação) teve sua visão do Graal, mas não há detalhes sobre como
isso se deu. Os cavaleiros medievais procuraram, sem encontrar, o cálice sagrado. Galahad,
filho de Sir Lancelot e Elaine, portanto, nunca foi seu guardião. Na versão reencarnada
como samurai japonês, ele continua exemplar, obediente e casto, digno do título de
Cavaleiro Sem Mancha. Entretanto, será Lancelot o escolhido para guardar o Santo Graal (e
falhará...). O Graal, fundido à armadura de Mordred, explodirá ao entrar em contato com o
corpo de Merlin, pois a santidade de um é incompatível com a natureza demoníaca do
outro. Após a grande reação nuclear que destruirá o castelo de Morgana, o Graal será
desintegrado, para, logo em seguida, suas moléculas se juntarem novamente e o santificado
objeto reaparecer restaurado. De novo, ele desaparece, por mágica. No dia em que o ciclo
recomeçar, Lancelot terá de encontrá-lo, onde quer que esteja.
Outro elemento importante da tradição a sofrer transformações é a Dama do Lago. Em
Camelot 3000, esse nome não é citado nenhuma vez, mas há duas personagens diretamente
relacionadas ao mito. A primeira é a fada do lago que guardou Excalibur durante séculos,
esperando o retorno do rei. A cena em que ela devolve a espada lembra de imediato o filme
Excalibur, de John Boorman, produção inglesa de 1980. Saberemos, perto do final da saga
de Mike Barr, que ela é Elaine, a mãe de Galahad, transformada em fada das águas por
Merlin, depois de muito chorar após ser abandonada por Lancelot. A segunda é a feiticeira
Nyneve, aprendiz e amante de Merlin, que o aprisionou em Stonehenge no passado e agora
se aliou a Morgana para aprisioná-lo em Chiron.
Em Lancelot do Lac, romance francês do século XIII, podemos ler a origem da famosa
Dama do Lago, a fada que criou Lancelot em seu reino encantado. Ela era Ninienne,
aprendiz e amante de Merlin, que, por meio de artimanhas femininas, aprendia com o
próprio mago as palavras mágicas e os passes para aprisioná-lo para sempre em local
secreto. A Nyneve, de Barr, é a Ninienne medieval que se tornou uma feiticeira poderosa,
mas não a Dama do Lago. Na série em quadrinhos, quem mais se aproxima do mito da
Dama é a triste Elaine, inclusive porque atua como protetora de Lancelot, seu ex-amado.
Outra variação em Camelot 3000 em relação a alguns textos arturianos é a condição de
Tristão como cavaleiro da Távola Redonda. Em vários desses textos, ele servia apenas
como cavaleiro favorito do rei Marcos da Cornualha, seu tio e marido de Isolda, sua amada.
Marcos era vassalo do rei Arthur e era por meio desse laço de vassalagem que o amor
impossível de Tristão e Isolda se inseria nas lendas arturianas. Entretanto Chrétien, em Érec
et Énide, já associara Tristão à Távola Redonda, o que seria repetido na Post-Vulgata e na
obra de Malory.
Creio que as maiores mudanças em relação ao que Geoffrey de Monmouth escreveu em
História dos reis da Bretanha e em Vida de Merlin estão nos personagens de Morgana e
65
Mordred, embora sejam mudanças ocorridas ao longo dos séculos, que Barr apenas
aproveitou e soube explorar muito bem.
O Mordred de Geoffrey de Monmouth era sobrinho do rei, filho de uma de suas irmãs,
assim como Gawain. Ele se tornava o terrível usurpador ao se aproveitar da condição de
regente, enquanto Arthur estava fora desafiando o Império Romano, para se apoderar do
trono e da rainha. Morgana aparecia na Vida de Merlin como uma das nove irmãs que
governam em Avalon, aquela “sábia nas artes de curar” e primeira em formosura. Morgana
teria levado o nobre monarca para seu quarto, “em áureo leito, com mão prudente lhe
descobre a chaga, a contempla e por fim diz ao rei que, se quiser os filtros seus provar, e
muito tempo lá ficar com ela, salvo haverá de ser”.1 Lembra um pouco o caso de Hércules;
ao morrer, foi levado ao Olimpo e ganhou a deusa da juventude como esposa, uma justa
recompensa por sua vida de aventuras e batalhas. A bela fada Morgana, nessa primeira
versão, era a amante-recompensa de Arthur, que ficaria usufruindo dos seus favores até o
dia de retornar à Inglaterra.
Em Camelot 3000, como em outras versões anteriores, inclusive o já citado filme
Excalibur, Morgana é uma feiticeira, irmã de Arthur por parte de mãe, e odeia o meioirmão a ponto de ter com ele um filho, Mordred, para que esse filho maldito seja o causador
da ruína do pai. Sendo assim, quem cuidou do rei durante sua estada em Avalon? E como
Arthur saiu de Avalon para a cripta na mais profunda das cavernas é um mistério, nem ele
sabe.
Ah, Mike Barr nada diz sobre Mordred ter tomado a rainha Guinevere para si durante a
ausência do rei. Os dois personagens, reencarnados, e com as memórias da vida anterior já
restauradas, só se encontram uma única vez, na cena em que Arthur chega para salvar
Lancelot e matar o filho pela segunda vez; Guinevere está acompanhando o marido e
assiste à luta sem ter chance de trocar uma palavra sequer com o vilão. O ódio insano com
que Lancelot enfrenta Mordred, porém, talvez não fosse só por causa do roubo do Graal...
A mais interessante das invenções de Barr, com certeza, em meio a tantas reencarnações,
é a idéia de que os heróis e vilões da saga estão presos a um destino comum; eles morrem,
mas não se extinguem, porque, de um jeito ou de outro, eles sempre voltam. Eles e o Santo
Graal. Então, um novo ciclo se inicia, e a lenda recomeça, era após era.
E, de fato, tem sido assim desde Geoffrey of Monmouth, Chrétien de Troyes, Robert de
Boron, Sir Thomas Malory e tantos autores anônimos. Das crônicas em latim aos romances
em francês, as muitas e variadas narrativas sobre Arthur começaram e recomeçaram, foram
copiadas, adaptadas, transformadas, evoluíram. Elementos como Excalibur, a Távola
Redonda e o Graal foram acrescentados aos poucos e hoje são partes indissolúveis da lenda
do rei.
Enfim, poderia ter escolhido cinema, música, teatro ou literatura para comentar a
permanência e as transformações da Matéria da Bretanha nas narrativas contemporâneas,
pois a força da mística arturiana se espalha em múltiplas atividades culturais. Se Arthur
nunca voltou é porque, na verdade, ele jamais deixou de estar conosco. E não pertence mais
aos bretões, nem aos ingleses, pois sua lenda tornou-se universal. Mas, de qualquer
maneira, com ou sem loucas aventuras de ficção-científica, aquele que foi rei na Idade
Média continuou rei nos tempos futuros. Cumpriu-se a profecia:
Rex quondam rexque futurus!
1
FURTADO, 1985, págs. 90 e 91.
66
Obs: Optei por grafar os nomes dos personagens arturianos tal como eles aparecem nas páginas de Camelot
3000, por se tratar da principal narrativa (adaptação para quadrinhos) comentada neste trabalho.
Bibliografia:
FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em ação: um século de história. São Paulo, Moderna, 1997.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 1996.
FURTADO, Antonio. Artur e Alexandre: crônica de dois reis. São Paulo, Ática, 1995.
FURTADO, Antonio. Aventuras da Távola Redonda. Petrópolis, Vozes, 2003.
RÓNAI, Paulo. A tradução vivida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.
Z INK, Michel (org.). Lancelot du Lac. Paris, Collection Lettres Gothiques, Le Livre de
Poche, 1991.
67
Leir e Rei Lear
Renata Christovão Bottino
1. Introdução
O objetivo deste trabalho é comparar “Leir”, crônica que faz parte da Historia Regum
Britanniae de Geoffrey of Monmouth (século XII) e Rei Lear, tragédia de William
Shakespeare (século XVII). Estima-se que a história do rei Leir (da qual existem muitas
versões, sendo a primeira delas a de Geoffrey) tenha sido uma das fontes de Shakespeare ao
elaborar Rei Lear (Fraser, 1963, p.191). É mais provável, porém, segundo Fraser, que
Shakespeare tenha tido acesso à versão do livro The chronicles of England, Scotland and
Ireland, de Raphael Holinshed – mais resumida que a de Geoffrey, acabando, por exemplo,
quando Leir reassume o trono com a ajuda da filha mais nova e do genro, um dos reis dos
francos – transformando-a em tragédia com um final bem mais dramático e estrutura mais
complexa que as versões da crônica sobre o rei bretão Leir.
O presente trabalho será organizado da seguinte forma: na seção 2, será analisada a
crônica de Geoffrey; levando em conta a definição de crônica no seu sentido medieval e a
relação entre o texto do bispo e o momento histórico da Inglaterra; na seção 3, será feita
uma análise de Rei Lear, levando-se em conta o tema da ingratidão dos filhos com os pais;
na seção 4, serão resumidas as diferenças e semelhanças entre as narrativas dos dois autores
e, na seção 5, serão apresentadas as conclusões.
Passemos então a estudar a crônica de Geoffrey of Monmouth.
2. Leir, a crônica de Geoffrey of Monmouth
2.1 O conceito de crônica na Idade Média
Antes de analisarmos a crônica de Geoffrey sobre Leir, convém esclarecer qual era o
sentido de crônica antes do século XIX. Segue abaixo a definição de Massaud Moisés, no
livro A criação literária: Prosa II (p 101):
O vocábulo crônica designava, no início da era cristã, uma lista de acontecimentos ordenados
segundo a marcha do tempo, isto é, em seqüência cronológica. Situada entre os anais e a história,
limitava-se a registrar os eventos sem aprofundar-lhes as causas ou tentar interpretá-los. Em tal
acepção, atingiu seu ápice depois do século XII quando (...) se aproximou estritamente da
historiografia, não sem ostentar traços de ficção literária.
Vale notar que, apesar de situar esse conceito de crônica um pouquinho depois da época
de Geoffrey, essa definição parece se aplicar à estória de Leir, já que Geoffrey escreveu sua
história dos reis da Bretanha de forma linear (se bem que ele não situe muito as datas) e não
se sabe o que ele inventou e o que realmente ocorreu.
68
2.2 A crônica de Geoffrey of Monmouth sobre Leir propriamente dita
Na crônica de Geoffrey, que se passa antes da era cristã, o rei Leir, ao envelhecer, não
tendo descendência masculina, decide dividir o reino entre suas três filhas – Gonorilla,
Regau, Cordeilla – e casá-las com homens que ele considerasse aptos a governar seus
domínios. Para saber qual delas deve ficar com a maior parte do reino decide submetê-las a
uma prova: perguntar qual mais o ama. Gonorilla responde: mais que a própria alma e
Regau diz: mais que qualquer outro. Leir fica feliz e promete casá-las com quem quiserem,
com toda a pompa, e dá um terço do reino a cada uma. (No entanto, após a partilha final é
ele quem escolhe os maridos das filhas, casando a mais velha com o Duque de Albânia e a
do meio com o Duque da Cornualha). Cordeilla, a filha mais nova e a mais amada pelo pai,
decide questionar as irmãs, afirmando que ninguém pode dizer que ama um pai tanto assim
a não ser que esteja mentindo e que ela sempre o amou como pai na justa medida do que ele
vale. Leir fica furioso com a resposta da filha, a considera ingrata e não percebe sua
sinceridade, excluindo-a da partilha, e declara: “Não digo porém, já que és minha filha, que
não te daria a algum estrangeiro que a sorte te oferecesse” (Tradução de Antonio Furtado).
Vale notar a ambigüidade dessa frase, dada pela dupla negativa, e que parece ser um indício
de que o pai não queria que a filha casasse (Furtado, 1999, p.11). Cordeilla acaba se
casando com Aganippus, que possui um terço da Gália e a aceita mesmo sem dote porque a
ama.O rei Leir muda a divisão do reino, ficando com metade das terras e repartindo a outra
metade entre Gonorilla e Regau e seus maridos. Vale notar que essa prova de amor a que
Leir submete as filhas e a resposta de Cordeilla, que destoa da das irmãs por ser mais
prosaica, são recorrentes em estórias folclóricas como no conto do Punjabi de nome O rei e
suas filhas em que a filha mais nova diz que ama o pai tanto quanto o sal, enquanto as
outras dizem ama-lo “como mel” ou “como sorvete” (Furtado, 1999, p.10) – daí Thompson
classificar esse motivo como o do“ amor como sal”. Isso enriquece a crônica em termos de
conteúdo. Depois dessa observação vejamos como a crônica prossegue.
Depois de um tempo, os duques tomam do rei a parte do reino que lhe cabia e o Duque
de Albânia passa a sustentá-lo. No entanto, dois anos depois ocorrem brigas entre os
quarenta soldados do rei – cuja companhia lhe confere dignidade – e os empregados da
filha, e esta decide que o pai deve-se contentar em reduzi-los à metade. Leir se enfurece e
vai para a casa de Regau; só que lá também ocorrem brigas entre os criados, e a filha do
meio ordena que Leir fique com cinco soldados, o que o entristece e o faz procurar
novamente a filha mais velha. Gonorilla o trata com crueldade e ingratidão, dizendo que ele
só pode ficar na casa dela com um soldado e que não vê razão para que ele, velho e sem
poder, queira muitos cavaleiros acompanhando-o.
O rei Leir se entristece e, ao lembrar as glórias do passado, pensa se não é melhor
procurar a filha mais nova na Gália, embora tema que ela não o ajude por ele não tê-la
tratado dignamente. Durante a viagem, o rei Leir cai em pranto ao perceber que é apenas o
terceiro em importância entre os príncipes a bordo. Lamenta seu destino e numa lindo
trecho relembra o tempo glorioso em que destroçava os inimigos acompanhado de milhares
de homens, e reconhece a sinceridade de Cordeilla e a falsidade das filhas mais velhas, que,
só estando interessadas na riqueza do pai, o deixam na miséria depois que ele lhes dá seu
reino.
Leir chega à Karitia (onde está Cordeilla) e manda um mensageiro contar à filha sobre
sua situação, ficando fora da cidade. Cordeilla chora e manda que o mensageiro alimente e
arrume o pai com roupas dignas de um rei em outra cidade e providencia quarenta
69
cavaleiros, que devem acompanhar o pai à presença do rei Aganippus. Essa atitude de
Cordeilla é oposta à das irmãs, pois demonstra o respeito que ela tem por Leir, devolvendolhe a dignidade. Ao saber que o sogro foi expulso da Bretanha, o rei dos francos arma um
exército para ajudá-lo a reconquistar seu reino. Leir leva a filha mais nova à Bretanha e
vence os genros traidores, reinando por mais três anos até falecer, quando Cordeilla o
enterra num local subterrâneo consagrado a Janus bifronte e assume o trono bretão – bem
como o franco, já que seu marido morre.
Cordeilla governa por cinco anos até que seus sobrinhos Marganus e Cunedagius –
filhos dos duques de Albânia e da Cornualha, respectivamente – , indignados com o fato de
a Bretanha ser governada por uma mulher, guerreiam contra a tia e a capturam, levando-a
ao suicídio. A princípio os dois passam a dividir a ilha, mas Marganus se rebela e luta
contra o primo sendo derrotado e morto. Cunedagius reina por trinta e cinco anos.
É interessante notar que a trama da crônica de Geoffrey – simples em termos formais –
pode ter sido motivada pelo contexto histórico inglês. O século em que o bispo viveu foi
marcado por uma guerra civil na Inglaterra, causada pelo problema da sucessão de
Henrique I. Morto o herdeiro do trono num naufrágio em 1120, havia possibilidade de
Matilda, casada com o conde de Anjou e filha de Henrique I, assumir o trono, já que o
outro filho do rei, Roberto de Gloucester, era ilegítimo. Henrique I faleceu em 1135, após
reconhecer a filha como sucessora. Só que dois fatores complicaram a situação: o
casamento de Matilda com o conde não era muito bem visto pelos nobres, pois temiam que
um estrangeiro assumisse o trono; Estevão, um sobrinho de Henrique I, correu para ser
coroado rei em 1136, abrindo guerra contra a arrogante Matilda. Foi justamente nessa
época que o livro de Geoffrey foi escrito, sendo dedicado a Estevão numa primeira versão e
também a Roberto (Furtado,1999, p.3).
É possível perceber algumas semelhanças entre Leir e Henrique I, bem como entre os
casais Matilda e conde de Anjou e Cordeilla e Aganippus. Assim como Leir, Henrique I
tem três filhos. A sucessão dos dois reis também se complica com a intervenção de outras
pessoas da família (a de Estevão no caso de Henrique I; e a dos genros – e depois dos filhos
destes no reinado de Cordeilla – no caso de Leir). A ligação entre o marido de Matilda e o
de Cordeilla é óbvia: os dois possuem terras na Bretanha francesa e de alguma forma se
envolvem na sucessão dos reis – Aganippus ajuda Leir a conquistar o trono e o conde de
Anjou ajuda Matilda a invadir a Inglaterra para tentar combater Estevão (só que não obtém
sucesso, devido à prepotência da mulher), além de ser o pai daquele que sucederá Estevão e
porá fim ao conflito sucessório em 1153: Henrique II. A associação entre Matilda e
Cordeilla também parece nítida, embora a caçula de Leir não seja prepotente como Matilda.
Ambas foram casadas com nobres da Bretanha francesa e impedidas de governar
plenamente por alguém da família.Vale ressaltar que Geoffrey, apesar de afirmar as
qualidades do caráter de Cordeilla, não faz com que ela tenha um final feliz, como se talvez
quisesse deixar em aberto a seguinte questão: será que, mesmo que Matilda fosse como
Cordeilla, não a deixariam governar? Deixar essa questão em aberto pode ter sido uma
estratégia de Geoffrey para manter-se neutro, construindo uma personagem feminina capaz
de governar e ao mesmo tempo fazendo com que as forças conservadoras a impeçam de
reinar em paz.
Vale ressaltar que a estória do rei Leir não chega a ser tão trágica – mesmo com o
suicídio de Cordeilla – porque Leir de certa forma triunfa sobre a ingratidão de Gonorilla,
Regau e seus maridos.
70
3. Rei Lear, a tragédia de William Shakespeare
Rei Lear, escrita por Shakespeare, por volta de 1606-1607, é uma tragédia com duas
tramas: uma principal, que gira em torno do Rei Lear e suas filhas – Goneril, Regane e
Cordélia – e uma secundária centrada no conde de Gloucester e seus filhos Edgar e
Edmundo (ilegítimo). As duas tramas têm o mesmo tema: a ingratidão dos filhos para com
os pais, e muitas vezes se misturam, não sendo necessariamente intercaladas na peça de
Skakespeare. Segundo Bradley, a trama secundária serve para mostrar que a tragédia de
Lear não é fortuita, mas fruto de uma “influência malévola no mundo” (1971, p.262).
Analisando as duas tramas, pretendemos mostrar que o texto de Shakespeare é mais denso e
complexo que a crônica de Geoffrey sobre Leir.
3.1 Lear e a ingratidão das filhas
A tragédia de Shakespeare começa com o condes de Kent e de Gloucester comentando a
divisão do reino que o Rei Lear está prestes a fazer e ressaltando que a partilha será
rigorosamente igual. A divisão do reino de Lear é similar a de Leir: Goneril e Regane, já
casadas, bajulam o pai, dizendo que o amam mais que tudo, assim logrando ficar com um
terço do reino cada uma. Cordélia, antes mesmo de ser chamada a falar, ironiza a fala das
irmãs, pensando que é melhor ficar calada. Ao ser interrogada pelo pai sobre o que poderia
falar para ter uma parte maior que a das irmãs, Cordélia diz que não tem nada a declarar e
depois fala que o ama como uma filha deve amar a um pai e enfatiza que tanto ela – que
está prestes a casar-se – quanto as irmãs não podem amar só o pai, tendo que amar os
maridos também. Lear se enfurece e a deserda, o que leva um de seus pretendentes, o conde
de Borgonha, a desistir do casamento, fazendo com que ela se torne esposa do Rei de
França que a aceita mesmo assim, o que revela a nobreza deste em detrimento do caráter do
conde, cujo desejo de casamento estava vinculado à riqueza da noiva. É importante
ressaltar que o Conde de Kent percebe a sinceridade de Cordélia e a falsidade das outras e
tenta defender a filha mais nova do rei, só que acaba sendo expulso do reino, sendo alvo
também da fúria do rei Lear. O conde de Kent, entretanto, terá um papel importante na
seqüência da tragédia, quando o rei será vítima da ingratidão e da perversidade de Goneril e
de Regane. A má intenção das duas filhas com o pai já começa se desenhar bem no final da
primeira cena do primeiro ato quando, ao fim da divisão do reino, as duas conversam e
chegam à conclusão de que precisam dar um jeito de se beneficiar da situação antes mesmo
de o rei Lear ir morar com uma delas.
Lear vai morar com Goneril, que se aborrece porque o pai bateu num empregado do
palácio, e manda que os empregados do pai sejam tratados com frieza. A seguir, o conde de
Kent aparece disfarçado no palácio do Duque de Albânia para ajudar o rei Lear a se
defender de Oswaldo, o empregado obediente de Goneril, que se recusa a aceitar suas
ordens, dizendo que o rei é apenas o pai de Goneril. Entra em cena também o bobo do rei,
que, com ironia, critica o rei por ter dado tudo às filhas. Goneril fica fria com o pai, o
insulta e diz que ele deve reduzir o número de soldados à metade. O rei a chama de
desnaturada, a amaldiçoa pra que ela não tenha filhos, diz que quer ficar com Regane e
percebe que Cordélia não estava tão errada. Vale ressaltar que Goneril esconde do marido o
71
motivo da revolta do rei, não parecendo que Albânia tenha culpa da situação. Tudo isso se
passa em quinze dias.
Goneril escreve uma carta à irmã para convencê-la a não permitir que o pai tenha o
número de empregados que quer, mandando que Oswaldo a entregue depressa. Ao mesmo
tempo, Kent vai entregar cartas de Lear a Gloucester. Como Regane está no castelo de
Gloucester, os dois mensageiros se encontram e brigam asperamente chegando às vias de
fato. Kent é punido pelo marido de Regane e o rei Lear fica furioso ao ver seu empregado
ultrajado, considerando o castigo um desrespeito a ele próprio. Para piorar a situação
Regane demora a receber o pai, dá razão à irmã e diz que só aceita hospedar o pai se ele
ficar sem nenhum acompanhante e sugere que o rei peça perdão a Goneril. Regane e
Goneril dizem que, por estar velho, Lear não precisa de seus próprios serviçais e o rei se
magoa profundamente, começando a enlouquecer. Mas as duas filhas de Lear ainda são
capazes de mais uma crueldade: não deixam o conde de Gloucester abrigar Rei Lear em
meio a uma terrível tempestade e ele acaba indo parar na floresta completamente
desarvorado, como veremos mais adiante.
É importante notar que a atitude das filhas de Lear em abandonar e injuriar o pai dias
depois da partilha, chegando a deixá-lo ao relento e à pura sorte e levando-o a loucura,
acentua o teor trágico da narrativa (em comparação com o da de Leir).
3.2 O conde de Gloucester e seus filhos Edgar e Edmundo: a armadilha do filho
ilegítimo
Desde o início da tragédia, o conde de Gloucester se mostra preocupado com o afeto que
deve dedicar aos filhos Edgar e Edmundo e que herança lhes deixar. Só que Edmundo,
sendo bastardo, quer arrumar um jeito de usufruir e herdar a riqueza do pai. Com tal fim,
conspira contra o próprio irmão mostrando ao pai uma carta falsa em que Edgar teria dito
que os dois precisam matar o pai, que, estando velho, não precisa desfrutar de nada, para
que pudessem aproveitar a herança. Ao mesmo tempo, avisa a Edgar que o pai está
desgostoso com ele e o aconselha a evitá-lo e sair de casa. É interessante perceber que
Edmundo atribui ao irmão a opinião que tem do pai. Dando seqüência ao plano, Edmundo
pede para falar com Edgar e simula que o irmão mandou-lhe matar o pai e o feriu. Edgar
passa a ser considerado foragido e vai viver na floresta.
3.3 O terceiro e o quarto atos: dois pais vagam pelo mundo e os bons filhos tentam
protegê-los
Depois de abandonado pelas filhas, o Rei Lear vaga pela floresta, vociferando contra a
natureza e contra a ingratidão das filhas em belos trechos, acompanhado do bobo e de Kent,
que, mesmo disfarçado, tenta proteger o rei. Num de seus lamentos, o rei diz : “Sou um
homem que foi mais ofendido do que ofendeu” (ato III, cena 2), o que resume bem o que
sente. Na floresta, Lear encontra Edgar, também expulso de casa, que se finge de louco
para escapar da perseguição imposta pelo pai e o irmão traidor.
O conde de Gloucester fica com pena de Lear e, sentindo-se injuriado por não ter podido
decidir quem entraria em sua própria casa, resolve ajudá-lo indo até a floresta. Antes de
sair, conta a Edmundo sua intenção e ainda lhe revela que o exército francês deve
72
desembarcar na Inglaterra para ajudar o rei. Pede ao filho que não conte nada a Cornualha,
mas Edmundo o trai e revela tudo às filhas de Lear. Quando volta da floresta depois de ter
abrigado Lear num quarto em separado do palácio e o mandar para Dover, Gloucester é
interpelado por Regane e Cornualha. Quando o conde revela que mandou Rei Lear para
Dover, para livrá-lo das garras das filhas, e que ainda chegará o dia em que o Rei será
vingado, Regane lhe arranca um dos olhos. Um criado do conde tenta ajudá-lo, fere
mortalmente o marido de Regane, mas também morre. Regane arranca o outro olho do
conde e ele diz que Edmundo o vingará. Regane conta que o filho bastardo o odeia e o
delatou. Só neste momento, Gloucester percebe a falsidade de Edmundo e que Edgar é
inocente (ato III, cena 6).Vale ressaltar que as atitudes de Regane e do marido revelam que,
além da crueldade para com o pai dela, eles também não respeitam outros em condições
comparáveis às dele, pois quem cega um homem entrado em anos em sua própria casa é
uma pessoa extremamente má e insensível.
Depois de ficar cego, o conde começa a vagar pelo mundo e quer até matar-se, jogandose de um precipício. Edgar vê o pai e o salva, fazendo-o acreditar que se jogou do
precipício, mas sobreviveu. Edgar passa a tomar conta do pai sem revelar quem é, numa
atitude oposta à de Edmundo. Em suas andanças, o conde e o filho encontram Lear, louco,
com uma coroa de flores na cabeça, dizendo que ainda é rei (Ato IV, cena 6). Durante essas
caminhadas, Gloucester lamenta a sorte de Edgar e diz que o ama sem saber que o filho está
a seu lado.
Na cena seguinte, os emissários de Cordélia – que volta para o reino do pai sem o
marido, para ajudar na guerra contra Albânia – encontram o rei Lear e o levam para um
acampamento francês para tratá-lo. (A essa altura, os preparativos para a batalha já
começaram, sendo as tropas francesas comandas pelo marechal de França – já que o rei
francês está ausente – e as tropas inglesas comandadas por Albânia, que, apesar de não
concordar com o tratamento dado a Lear, luta para defender seu território. Cordélia chora
ao saber que as irmãs expuseram o pai à tempestade e as reprova. Uma das mais belas cenas
da tragédia é o reencontro do rei com a filha mais nova. Ele custa a reconhecê-la quando ela
lhe pede a bênção, mas depois percebe que se trata de Cordélia, dizendo-lhe que as outras
filhas o trataram mal, e pensa que ela também o fará por ter motivos para isso. Ela,
chorando, responde que não quer se vingar.
A esta altura, é possível traçar um paralelo entre Lear e Gloucester. Os dois pais são
traídos pelos filhos sendo cuidados por alguém (Kent e Cordélia no caso de Lear – tanto
que Cordélia chega a dizer que não sabe como agradecer tudo que ele fez pelo pai. Nesse
sentido, Kent pode ser considerado análogo a Favônio na história de Roma, que ajuda
Pompeu após a derrota, mesmo sendo inimigo deste, assim como Kent, que, apesar de ter
sido banido do reino por Lear, o ajuda de forma incansável, presumivelmente contando a
Cordélia a situação do pai, tendo também a ajuda de Gloucester.) A única diferença entre os
dois pais é que Lear enlouquece e Gloucester não. Cordélia e Edgar também tem algo em
comum: os dois são expulsos de casa sob a acusação de terem conspirado contra os pais,
quando na verdade os irmãos é que são falsos e traem os pais.
3.4 A ligação entre Edmundo, Goneril e Regane
Durante os preparativos para a guerra, começa a se desenhar um interesse de Goneril por
Edmundo, já que Albânia tem uma personalidade diferente da mulher e a recrimina por ter
73
renegado o pai, chamando-a de “tigre” e culpando-a pela loucura do pai. Goneril, por sua
vez, considera o marido um homem sem iniciativa e admira a impetuosidade do filho
maquiavélico do conde de Gloucester. Mas Regane, estando viúva e querendo se casar, não
vê com bons olhos os sentimentos da irmã por Edmundo. Isso fica claro quando Regane
insiste com Oswaldo para que ele lhe entregue uma carta dirigida pela irmã ao rapaz. A
carta não chega a ser entregue, porque o empregado de Goneril encontra o conde de
Gloucester e Edgar, no meio do caminho, e tenta assassinar o velho conde. Edgar defende o
pai e mata o mensageiro, ficando com a carta, e descobre que Goneril quer que Edmundo
acabe com a vida do marido. Esse triângulo de interesses terá enorme importância no
desfecho trágico da narrativa, como veremos a seguir.
3.5 O desfecho
No início do quinto ato, Regane pergunta a Edmundo se ele ama Goneril e ele disfarça. (Em
monólogo, Edmundo confessa que se comprometeu com as duas, com todo seu cinismo).
Goneril não gosta de ver os dois juntos e diz que prefere perder a batalha a perdê-lo para a
irmã. Ao fim da primeira cena, Edgar entrega a carta a Albânia.
Ocorre a batalha, mas esta não é descrita. Só sabemos do resultado por Edgar, que avisa
o pai que o rei perdeu e que Lear e Cordélia são prisioneiros. Edmundo, orgulhoso, manda
que os dois sejam postos em local seguro e sejam mortos rapidamente. O rei, em sua
loucura, acha bom ficar preso com a filha e considera que “cantarão como passarinhos
numa gaiola”. Ela percebe a gravidade da situação e se preocupa.
A seguir, Regane começa a passar mal. Albânia declara que Edmundo está preso por
traição e acusa também a mulher. O arauto toca a corneta e Edgar desafia o irmão sem se
identificar e o fere gravemente. Revela quem é, conta suas peregrinações com o pai,
dizendo que este morreu há pouco tempo depois de saber quem era seu “guia”. Goneril sai
desarvorada. Entra um gentil-homem com um punhal na mão e diz que Goneril confessou
que envenenou a irmã e se matou.
Edmundo se comove e tenta revogar suas ordens. Mas é tarde demais: Lear aparece com
Cordélia morta nos braços, lamentando que ela tenha sido enforcada e praguejando contra
todos pela morte da filha, mas se vangloria de ter matado o soldado que tirou a vida de
Cordélia.
Edmundo morre. Kent revela sua identidade ao rei e reafirma sua lealdade a ele ao dizer
que foi o homem que sempre o acompanhou. O Rei Lear morre falando ainda em Cordélia.
Albânia convida Kent e Edgar a ficar com ele no reino, mas o primeiro diz que deve partir.
Vale notar que a derrota de Lear e Cordélia para Edmundo e seus comparsas, bem como
o envenenamento de Regane pela irmã, o suicídio de Goneril e o assassinato de Cordélia,
aumentam o teor trágico do texto de Skakespeare. Já a pluralidade de temas tratados – a
ingratidão dos filhos, a perversidade humana, a loucura, a generosidade de uns poucos
homens e o ciúme – e a duplicidade de tramas – dão maior complexidade à tragédia e ao
mesmo tempo lhe conferem um forte pessimismo e universalidade (Bradley, 1971, p. 262273).
74
4. Diferenças e semelhanças entre Rei Lear e “Leir”
Existem semelhanças e diferenças claras entre a crônica de Geoffrey of Monmouth sobre
Leir e a tragédia de Shakespeare.
A primeira semelhança é o tema principal: a ingratidão dos filhos em face dos reis, seus
pais, que lhes dão um reino na velhice e que pagam pela generosidade e ingenuidade de
seus próprios atos ao enfrentar privações e humilhações: perda do poder (ainda que
temporária no caso de Leir), perda de acompanhantes, saudade das glórias passadas.
Outra semelhança é a prova de amor a que o rei submete as filhas antes da divisão do
reino, com a resposta mais sincera da filha mais nova e predileta, sua conseqüente exclusão
da partilha e seu casamento com um rei da região da França (equivalente à Gália de
Geoffrey), existindo nas tramas o motivo folclórico do amor como sal.
Há ainda um traço comum entre a trama de Leir, a de Lear e a de Gloucester: os três pais
só percebem a sinceridade dos filhos injustiçados ao sofrerem as privações que os filhos
desnaturados lhes impõem.
Já uma diferença marcante entre as estórias de Leir e Lear é o tempo decorrido entre a
divisão do reino e a ocorrência das exigências degradantes feitas pelas filhas mais velhas,
bem como a maneira como tais imposições acontecem e suas conseqüências. Na crônica de
Geoffrey, Leir só perde o trono dois anos depois da divisão do reino enquanto mora com a
filha mais velha, perdendo também gradativamente seus soldados e chegando a morar com
a filha do meio por um ano. Toma iniciativa de procurar a filha mais nova e reconquista o
reino. Já Lear é obrigado a abdicar de seus soldados quinze dias após a divisão do reino e
nem chega a morar com Regane, sendo logo exposto à tempestade, vítima da extrema
crueldade das filhas – que parecem ser mais perversas que as de Leir – , o que o leva a
perder a razão. Também não é ele que vai ao encontro de Cordelia. É ela que vem ajudá-lo,
já que seu estado não lhe permitiria viajar até a França. Para piorar a situação, ele perde a
guerra, não reconquista o reino e sua dignidade e ainda enfrenta a morte das três filhas,
sendo que a mais velha envenena a do meio e manda enforcar a mais nova.
Conseqüentemente, Leir morre sereno e não nos inspira tanta pena enquanto que Lear
morre atormentado e pesaroso e nos inspira compaixão. Neste aspecto, o personagem de
Shakespeare parece análogo ao rei Artaxerxes que, segundo Plutarco, também entrega seu
trono ao filho ainda em vida e vê os filhos se matarem pelo poder e morre de desgosto. Se
bem que Artaxerxes consegue sufocar a primeira rebelião contra ele (como Leir) ao
contrário de Lear (Furtado,1999, p.6). Essas distinções também se refletem no teor de
tragédia das narrativas: o texto de Geoffrey acaba sendo menos trágico que o de
Shakespeare, por dar ao rei a possibilidade de recuperar seu prestígio e não passar por
tantos infortúnios.
Outra diferença é que a Cordélia de Shakespeare não tem a mesma trajetória que a
Cordeilla de Geoffrey. Enquanto que a primeira perde a guerra com o pai e é assassinada, a
outra chega a reinar e só se suicida quando capturada pelos sobrinhos. As duas parecem ter
em comum: a dignidade, a coragem e o amor ao pai (tanto que ambas saem do país onde
são rainhas para cuidar e ajudar o pai).
O Duque de Albânia de Shakespeare também parece não ter tanta participação nas
humilhações impostas ao rei quanto o de Geoffrey (que efetivamente tira o reino de Leir e
concorda em diminuir os soldados do sogro), já que critica duramente a mulher por ter
abandonado o pai e luta na guerra um tanto contrariado.
75
Quanto aos aspectos formais, as diferenças entre as duas narrativas são enormes: a
crônica de Geoffrey é simples e curta (análoga a um registro histórico no estilo, embora
possua elementos ficcionais) contendo uma única trama e dois temas – a ingratidão dos
filhos para com os pais (o principal) e a possibilidade de uma mulher reinar – enquanto que
a tragédia de Shakespeare é longa, complexa e abarca vários temas além do principal – a
loucura, a perversidade e o cinismo da humanidade, o ciúme entre irmãs – e contém duas
tramas e, ainda, trechos irônicos como as falas do bobo de Lear que ataca Goneril e
Edmundo, ironia essa que não aparece na crônica sobre Leir.
5. Conclusão
Assim, podemos concluir que Shakespeare utiliza elementos da estória de Leir em Rei Lear
– uma de suas peças mais complexas – e lhes dá uma roupagem trágica e pessimista, o que
aumenta mais ainda a importância da crônica de Geoffrey. A vida de Leir, por si só já
fundamental para o folclore, também o é para a nacionalidade bretã, por fazer parte de uma
amplamente divulgada história dos reis bretões, sejam eles verídicos ou míticos. A
comparação entre as duas narrativas mostra como estórias parecidas podem ser recontadas
de maneiras alternativas, com o uso de outros elementos históricos, folclóricos e formais.
Bibliografia
BRADLEY, A. C. Shakespearean tragedy: lectures on Hamlet, Othello, King Lear,
Macbeth. 2a. ed. Londres: Macmillan, 1971.
FRASER, R. “The Source of King Lear” In: The tragedy of King Lear. W. Shakespeare.
Nova York: New American Library, c1963. Introdução de R. Fraser.
FURTADO, A L. “Leir: mais feliz rei do que pai” In: Textos medievais portugueses e suas
fontes. H. Megale e H. Osakabe (org). São Paulo: Humanitas, 1999.
–––– (org. e trad). Aventuras da távola redonda. Petrópolis: Editora Vozes, no prelo.
G. OF MONMOUTH. The history of the kings of Britain. Harmondsworth, Middlesex:
Penguin, 1966. Tradução e Introdução de Lewis Thorpe.
MACDOWALL, D. An illustrated history of Britain. 9a ed. Essex: Longman, 1995.
MOISÉS, M. A criação literária: Prosa II. 18a ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
SHAKESPEARE, W. Macbeth / Rei Lear. São Paulo: W.M. Jackson Inc., 1960. Tradução
de Artur de Sales e Jorge Costa Neves.
76
Ritmo e Descrição:
A marca anônima do estilo nas crônicas arturianas
Roberto Dutra Junior
Artur triunfou. Ferido de morte, no santuário místico em Avalon, Artur retornará quando
mais for preciso e nos guiará para a vitória. É bem verdade que seu exílio nunca o fez tão
presente. Desde que Artur e seus porta-vozes expandiram o reino de Logres por todo o
universo do imaginário cavaleiresco seu triunfo é notável. Do seu aparecimento na História
dos Reis da Bretanha até os dias de hoje. Impossível pensar em Idade Média sem pensar
em cavaleiros e castelos e simultaneamente pensar em Artur e seus cavaleiros em demanda.
Artur triunfa no imaginário de todos, o que faz pensar um pouco sobre a riqueza dos textos
da Matéria da Bretanha e sua capacidade atemporal de cativar. Que filtro druídico manteria
unida tal fluência por séculos e línguas e prosa e verso e traduções e adaptações?
A leveza da poesia narrativa medieval é talvez o traço que mais profundas marcas deixa
naqueles que percorrem o legado de seus textos. A beleza permeada nessas composições
está fortemente relacionada ao conteúdo ricamente imagético, capaz de invocar emoções
profundas e grandiosas – que outras mesmo não caberiam para traduzir o curso das
aventuras de cavalaria que marcaram a produção literária européia dos séculos XII e XIII.
Mesmo com vilanias, traições, sangue e batalhas, a Matéria da Bretanha deixa em nós uma
impressão lúdica de que o melhor ainda está por vir e o seu triunfo ou o desfecho é feito
mesmo em nossas próprias vidas, como se participássemos das cortes e justas. Vamos neste
estudo em busca de alguns traços que formam essa leveza que marca.
O objetivo deste ensaio é se debruçar sobre algum material da poesia narrativa medieval
dos séculos XII e XIII compondo a Matéria Arturiana e esboçar uma análise de algumas de
suas características de estilo, ressaltando alguns traços que enriquecem o valor estético de
seus textos e atestam a genialidade de seus autores. É preciso atentar, porém, para as
limitações que os séculos nos impõem e que aqui, no corpo deste texto, são relevantes para
tornar claro o escopo do estudo. Trabalhamos aqui com traduções, que foram escolhidas
por apresentar um cuidado lapidar dos tradutores em preservar em quaisquer das formas de
textos originadas a maior fidelidade possível com os originais.
Este ensaio não busca uma análise profunda e que esgote o tema, é antes um intróito, um
panorama seguido de uma breve exposição e análise de algumas das características que
permeiam a poesia narrativa medieval nos textos da tradição arturiana.
Em seu apanhado sobre a produção literária medieval, Segismundo Spina faz uma
divisão de critério estético para a produção literária medieval111. De acordo com este autor
os três tipos fundamentais do material literário medieval podem ser classificados como
sendo: uma literatura empenhada, uma literatura semi-empenhada e uma literatura de
ficção, os dois primeiros tipos estando relacionados a características pedagógicas,
alegóricas, políticas e satíricas. Uma vez que nosso objetivo aqui é abordar alguns aspectos
da produção no que concerne à Matéria da Bretanha e à produção lírica francesa (os lais,
para ser mais preciso), iremos concentrar-nos deste ponto em diante na última tipificação.
A literatura de ficção medieval tem evidentes intuitos estéticos e é claro o seu caráter de
entretenimento, seja ela do gênero da poesia épica, lírica e do romance ou conto (novela)
1
Consultar SPINA, S. (1973) p: 17-19, para detalhes a respeito dessa classificação.
77
cortês. Aqui podemos situar, a guisa de classificação apenas, o romance de cavalaria bretão
– seja em prosa ou verso – e o lai francês. Ainda frisando o caráter de entretenimento, é
preciso lembrar que a literatura da época era totalmente inserida numa tradição oral.
Romances, gestas e lais eram feitos para a voz e instrumentos. Poetas (muitas vezes
anônimos, que vivem pelo que suas obras nos encantam até hoje), trovadores, troubairitz
(no caso de Maria de França) e menestréis compunham para alegrar e encher de música as
noites de cortes de nobres medievais. Eis então que faziam com que as canções tivessem
em seu conteúdo uma propriedade narrativa, que, aliada à musicalidade tanto do seu
acompanhamento quanto da escolha de palavras, acabava em resultar numa “poesia que
conta”1. Sobre isso também nos lembra o estudioso Brian Stone:
But besides being the best medium for writers of genious, narrative poetry, in a society largely subsisting
on an oral tradition, often meant no more than story set up in rhyme and rhythm for declaiming or
chanting. It was an accepted critical dictum of the time that, if something was well expressed in prose, it
2
must be better expressed in verse.
Por outro lado, não podemos perder de vista outro agente ontogênico da literatura da
Idade Média, como nos mostra S. Spina, referindo-se a fatores intrínsecos da variação do
romance bretão e da gênese do ciclo do Graal:
A estrutura social é em boa parte, responsável pelas grandes divisões da produção literária medieval.
Dado o caráter internacional, mecenático da literatura laica, que vive em grande parte à mercê da classe
aristocrática, há um tipo de produção culta que se distancia das formas burguesas e populares. Aliás,
certas denominações das formas literárias medievais não escondem a sua procedência social: romance
cortês, novela cavaleiresca, conto burguês as próprias denominações trovador e jogral correspondem a
formas literárias de execução culta, palaciana, popular e burguesa (burguesa no sentido em que
representa a cultura da cidade).
Claro que este contexto3, envolvendo todo o processo de criação, deixou marcas
profundas de estilo em todas as composições. Mesmo onde essas composições nada mais
faziam que imprimir ritmo e rima a uma história, alguma genialidade prevalecia para deixar
uma marca de valor a cada peça. Sobre algumas dessas ferramentas retóricas é que
queremos abordar mais adiante neste ensaio. O elemento de imposição de técnica à
narrativa, seu estilo, em muito ajudou para que tais textos se tornassem algo que mágicos,
alcançando o valor de obra de arte e fazendo seus autores inconfundíveis mesmo dentro da
obscuridade do anonimato.
Duas das características estilísticas que aqui colocamos em evidência são a aliteração e a
modalidade de descrição peculiar encontrada nos romances de cavalaria, a primeira sendo
uma característica que reforça a qualidade musical dos romances cavaleirescos. A
aliteração é um recurso que não apenas marca toda a literatura britânica em versos do
período, mas o faz de maneira distintiva, particular da língua inglesa, remontando a uma
tradicão praticada antes da adoção de modelos clássicos, a uma marca de estilo que remete
a textos escritos em inglês antigo (Old English) 4. A descrição, por sua vez, aparece como
uma força-motriz da narrativa, seu elemento fundamental e fundador. Dentro das narrativas
1
Assim como nos mostra Marina Colasanti no prefácio para MARIE, de F. (2001).
STONE, B. (1964) p: 11.
3
STONE, B. (1964) fornece uma introdução às suas traduções de poesia medieval que situa brevemente o contexto social
e histórico, assim como o prefácio de Marina Colasanti, já citado aqui em nota anterior.
4
Tome os textos de Beowulf e The Seafarer, como exemplos de obras anteriores que utilizam o recurso aliterativo.
2
78
arturianas a descrição tem uma riqueza de pormenores bem particular à época, exercendo
um papel que não apenas serve à necessidade de criar uma imagem, mas exagera e fantasia
o que é descrito, introduzindo elementos fantásticos e promovendo hipérboles brilhantes
pela natureza do que atribuem aos seus elementos. Tais qualidades, encontradas no modelo
de descrição dentro da literatura arturiana, é que marcam o elemento descritivo de uma
característica original e única do gênero praticado pelos autores de romances de cavalaria.
É fazer notar que aliteração e descrição atuam juntas para criar um efeito. A primeira
realça a segunda e, pela musicalidade inerente que faz-se notar pela repetição de certos sons
das consoantes iniciais de certas palavras, assim aumenta o efeito da impressão que se quer
passar. Por ser um efeito obtido dos sons das letras do início das palavras e pela
proximidade natural (porém relativa, claro) entre o inglês médio (Middle English) e o inglês
elizabetano (incluindo a língua inglesa atual), este recurso pôde ser mantido na sua maior
parte ao longo das traduções consultadas.
O “poeta da pérola” produziu o primeiro dos romances arturianos que aqui serve de
exemplo. Além de Dom Galvão e o Cavaleiro Verde (Sir Gawain and the Green Knight), a
este poeta anônimo é atribuída a autoria dos poemas “Purity”, “Patience” e “Pearl”
(“Pérola”; daí a alcunha), por terem sido encontrados todos no mesmo manuscrito.
Utilizando as palavras de Brian Stone, o tradutor, para uma síntese, eis que : “ ‘Pearl’ is a
greater achievement than the same poet’s romance, Sir Gawain and the Green Knight, and
just as Sir Gawain must be considered one of the best narrative poems in English, so his
‘Pearl’ ranks among our finest elegies.”1
Duas passagens foram selecionadas para demonstrar o efeito criado pelo poeta, a
primeira descrevendo o Cavaleiro Verde e depois uma descrevendo Galvão. Estas, porém,
não se encontram transcritas na íntegra, por serem relativamente longas; logo,
concentramo-nos nos versos que acreditamos cerne de suas relevâncias que aqui
procuramos mostrar.
O romance de Dom Galvão e o Cavaleiro Verde conta de como, na corte do Rei Artur, o
Cavaleiro Verde adentrando na comemoração do ano-novo, desafia os presentes a atacá-lo
com um machado sob a condição de que este, ao sair vivo do golpe, dentro de um ano
recorreria ao direito de reverter o golpe a seu agressor. Não havendo quem aceitasse tal
desafio, prontificou-se Galvão, e eis que desenrola-se aventura. Ao penetrar na corte, a
primeira descrição do Cavaleiro Verde é feita em relação à sua estatura, tão alto era que
assim é descrito: “Who in height outstripped all earthly man. / From throat to thigh he was
so thickset and square, / His loins and limbs were so long and so great, /That he was half a
giant on earth, I believe;”2. O papel da aliteração ultrapassa o efeito sonoro e cria um
grupamento semântico envolvendo palavras com o mesmo som inicial e remetendo-as a
uma proximidade de significação. Assim para descrever o quão robusto o Cavaleiro Verde
é temos que: throat to thigh => thickset. Por sua vez, seus membros podem ser
concisamente visualizados quando unimos as semelhanças sonoras no verso3 em que: loins
and limbs => long. Configura-se então, o gigante, que logo adiante no poema também é
dito sério e sobrenaturalmente esverdeado: “A fellow fiercelly grim, / And all a glittering
green.” (149, 150).
1
STONE, B. (1964), p. 136.
STONE, B. (1974), l: 137-140, por serem de uma mesma edição, as referêcias a esse mesmo texto aparecem daqui em
diante indicadas ao longo deste estudo pelas linhas dos versos, entre parênteses.
3
No original em Middle English: "and his lyndes and his lymes so longe and so grete"
2
79
Logo adiante no romance, o poeta vale-se de uma outra passagem e complementa a
descrição do cavaleiro sobrenatural:
And a great bushy beard on his breast flowing down,
With the heavy hair hanging from his head,
Was shorn below the shoulder, sheared right round,
So that half his arms were under the encircling hair,
Covered by a king’s cape, that closes at the neck,
The mane of that mighty horse, much like the beard,
Well crisped and combed, was copiously plaited
With twists of twining gold, twinkling in the green,
First a gossamer, a golden one next. (182 – 190)
Neste trecho entretanto, o efeito produzido pela aliteração e a repetição das consoantes
nas tônicas iniciais inseridos na descrição do Cavaleiro Verde (sublinhados não constam do
original) parece querer realçar o avanço desse ser poderoso pela corte do rei. O ritmo
intensifica-se de tal forma devido à tônica (stress, sempre na primeira sílaba) aliterativa de
cada palavra que, como em um poema sinfônico, praticamente podemos visualizar cada
passada do gigante. Nunca fora visto tão imponente cavaleiro-e-montaria pelos nobres da
corte de Camelot. E no ápice desta caracterização, coroando a visão ameaçadora de sua
presença com um último exagero na sua descrição, como sempre há nas narrativas da ficção
medieval: “His dreadful blows, men deemed, / Once dealt, meant death was done.” (201,
202).
Galvão por sua vez é primeiramente percebido pela visão daqueles que o rodeiam,
primeiro ao mostrar sua alegria e descontração frente ao inevitável: “Gawain was glad to
begin the games in hall,” (495). Mas a desgraça anunciada ao corajoso sobrinho de Artur
comove a todos: “The gallant lords and gay ladies grieved for Gawain,” (539). E, como se
não bastasse, Galvão, pleno de si ainda profere sua fortaleza: “Said Gawain, gay of cheer, /
‘ Whether fate be foul or fair, / Why falter I or fear? / What should man do but dare?” (562565). Mas é na descrição de Galvão vestindo sua armadura que podemos verificar
novamente o efeito de aliteração aumentar nossa percepção da cena através do emprego de
elementos sonoros no verso. Até poderíamos dizer que cada som nos remete a uma nova
peça encaixada no corpo do cavaleiro. Palavra e som alteram a percepção da riqueza de sua
indumentária. Uma escolha estilística que produz um forte efeito na declamação, marcando
para o ouvinte não apenas o ritmo mas os elementos da cena com um grande poder
imagético. Eis como Galvão prepara-se:
The doublet he dressed in was dear Turkestan stuff;
Then came the courtly cape, cut with skill,
Finely lined with fur, and fastened close.
Then they set the steel shoes on the strong man’s feet
[…]
Which rested on rich material, wrapped the warrior round.
He had polished armour on arms and elbows,
Glinting and gay, and gloves of metal,
And all the goodly gear to give help whatever
Betide;
[…]
The least lace or loop was lustrous with gold. (572-591)
80
Mas a composição de Galvão só se completa quando, finalmente paramentado de seu
escudo com o emblema do pentagrama, nos é fornecida a justificativa – beirando o
metafísico – dos motivos para portar tal emblema: “First he was found faultless in the five
wits. / Next, his five fingers never failed the knight, / And all his trust on earth was in the
five wounds / Which came to Christ on the Cross, as the Creed tells.” (640-643). Onde o
efeito causado pela consoância de first/found/faultless ilustra perfeitamente o lugar que
Galvão ocupa em muitas narrativas como o cavaleiro mais destemido dentre tantos e dentro
de diversas das narrativas, embora com papel menor no ciclo do Graal. Temos aí uma
representação muito significativa, no contexto subjacente ao estilo da composição, da
dimensão do tipo de paladino que é Galvão.
Elementos característicos do verso, como o que colocamos acima, são praticamente
impossíveis de serem mantidos quando a tradução do texto original concebe um texto em
prosa. Neste caso vemos que o estilo como expressão dele mesmo ainda assim sobrevive
com algumas de suas marcas até mais fortes que outras. Exemplo disso encontramos no lai
“Lanval”, de Maria de França, única de suas narrativas poéticas marcadamente arturiana,
uma bela peça a compor as narrativas da crônica arturiana. Traduzido em prosa pela
maioria de seus tradutores, “Lanval”, assim como os demais, preserva justamente no caráter
descritivo uma das principais características da produção literária medieval de ficção. Nas
palavras de Furtado no intróito à sua tradução dos Lais: “As descrições de edificações,
roupas, e de toda sorte de bens buscam mostrar-nos como cada objeto é incrivelmente rico,
um reflexo, por certo, de como era importante, tanto para as mulheres como para os
homens, comprovar ter nascido de família nobre.”1 O tradutor também reafirma a
característica de exagero que permeia os Lais, assim como vimos estar presente nos versos
de Galvão. Cada dama é descrita como sendo a mais bela do mundo, sem par quanto a sua
beleza entre os seres viventes, da mesma forma que o Cavaleiro Verde é o mais alto que já
se viu e Galvão é perfeito em seus cinco sentidos.
“Lanval” de Maria de França – apesar do nome, não menos anônima que o poeta da
pérola – conta a história de como Lanval, querido por muitos, foi traído e viu-se frente a
uma condenação diante do falso testemunho da rainha, só podendo ser salvo por sua amiga.
Mas, vamos nos deter um pouco na amiga de Lanval. Ela possui riquezas tais que
superam as de um império! Quando Lanval cai em suas graças, a maneira com que este
distribui presentes a todos nos faz crer que seus recursos sejam mágicos ou mesmo
inesgotáveis. Até suas criadas parecem de uma opulência e beleza inconfundíveis:
“…nunca vira mais belas! Estavam vestidas ricamente em túnicas muito justas de púrpura
escura; tinham rostos muitos lindos.”(83) Entretanto, como nos exemplos tomados
anteriormente, é do primeiro encontro com a amiga, sob uma riquíssima tenda, uma das
mais fortes impressões que temos, através dos olhos do próprio Lanval:
“Nem a rainha Semíramis, no auge de sua riqueza, poder e saber, nem o imperador Otaviano, teriam o
bastante para comprar sequer o lado direito da tela. […] sob o céu não havia rei que as pudesse comprar,
por nada que tivesse que dar em troca. Dentro da tenda estava a donzela. À flor-de-lis e à rosa nova,
quando se abrem em pleno verão, ela ultrapassa em beleza. Reclinava-se sobre um leito muito bonito – as
cobertas valiam um castelo – em camisa apenas. Tinha o corpo muito bem feito e gracioso. […] Era mais
alva que a flor do espinheiro.” (83)
1
Na introdução de MARIE, de F. (2001), p: 31. Por serem de uma mesma edição, as referêcias futuras a esse mesmo texto
aparecem indicadas no corpo do ensaio pela página, entre parênteses.
81
Também o narrador do lai adiante acrescenta, da beleza da dama misteriosa que ama
Lanval, adentrando a cidade: “Em todo o século não haveria mais bela! […] Não houve no
burgo nem pobre, nem poderoso, nem ancião, nem criança que não viesse vê-la passar. […]
não houve quem a contemplasse que não se inflamasse de verdadeiro gozo.” (92) Riqueza e
beleza se equivalem como valores dentro da realidade dos Lais e essa união mostra que
cada um dos pólos pode ser usado para definir o outro. Uma beleza que não subsiste sem a
riqueza e esta, por sua vez, emoldurando a beleza e a colocando em um nível de certa forma
maravilhoso; onde falham os adjetivos e qualificativos humanos, estes são logo substituídos
por outros, mais altivos e fabulosos.
A verdade é que ela “Era mais alva que a flor do espinheiro.” (83) Poderíamos até ficar
estupefatos, não fosse descobrir que a amiga de Lanval reside na ilha de Avalon. O exagero
com que o belo é descrito então passa a ter uma conotação também de um elemento
maravilhoso. Além de marcadamente amorosos, os Lais também estão impregnados do
sobrenatural mágico, que poderíamos chamar mais precisamente de elementos feéricos. O
exagero justamente descortina o maravilhoso, dando-nos uma pista do que está por vir a
respeito dessa mulher tão especial.
Os trechos selecionados do lai demonstram a sobrecarga de significados de uma imagem
como recurso de narração/descrição com objetivo de maximizar a nossa impressão sobre a
riqueza da amiga de Lanval. Além de destacar a importância de uma posição de nobreza,
exemplifica um efeito, usado para marcar o receptor/leitor com uma imagem que se quer
criar. Quem não se lembrará de dama mais rica que uma rainha? Quem não vai se
maravilhar por descobrir sobre seu exílio final junto com seu amor, Lanval, na ilha de
Avalon? Claro que não busco respostas para estas perguntas. As respostas estão no
conteúdo estético do lai, assim como no conteúdo do poema narrativo de Galvão. Também
não se quer afirmar aqui que estas são as razões da perenidade da poesia e da Matéria
Arturiana, mas sim pontos de força, evidências de estilo que colaboram para que nós
mergulhemos no universo mítico e feérico das crônicas cavaleirescas.
O rei que foi, o rei que é. Tudo que rodeia Artur permanece como seu nome. Assim
também é a crônica que foi, a crônica que ainda é. Foi pretendido mostrar aqui uma
introdução às questões de estilo e algumas técnicas empregadas na poesia narrativa da
Matéria da Bretanha. Como exemplos representativos dessa produção, tomamos as
traduções de dois poemas significativos pela sua inserção no período medieval. As marcas
deixadas em nós pela leitura de tais poemas são realçadas pelo emprego de recursos
estilísticos, como a aliteração e o modo hiperbólico da descrição. Dom Galvão e o
Cavaleiro Verde e “Lanval”, valendo-se destes recursos, vêm durante os séculos mantendo
a mesma força para fascinar e para manter-se como obras de arte. Os valores da sociedade
ou de um grupo de leitores, mesmo que alterados com o passar dos anos, não modificam o
poder da técnica textual contida nessas obras. Mesmo se pensarmos numa superação do
estilo, ainda assim resta–nos o fascínio de um leitura sincrônica, como foi pretendida aqui,
que ponha em evidência as suas características como marcas da época. Por isso mesmo, – e
por ainda circularem com força constante pelos círculos de apaixonados e acadêmicos – sua
presença atemporal se dá de modo muito vivo, sinal de uma lírica que foi e, muito mais, de
uma lírica que é.
82
Bibliografia consultada:
BALDWIN, C.S. An Introduction to English Medieval Literature. London: Longmans,
Green, and Co, 1914.
FURTADO, A.L. Artur e Alexandre – Crônica de dois reis. São Paulo: Ática, 1995.
FURTADO, A.L. Aventuras da Távola Redonda – Estórias medievais do rei Artur e seus
cavaleiros. Petrópolis: Vozes, 2003.
MARIE, de França. Lais de Maria de França. FURTADO, A.L. (trad.). Petrópolis:
Vozes, 2001.
SPINA, S. Iniciação na cultura literária medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973.
STONE, B. (trad.). Medieval English Verse. Middlesex: Penguin, 1964.
STONE, B. (trad.). Sir Gawain and the Green Knight. 2º ed. Middlesex: Penguin, 1974.
83
Do motivo da Falsa Noiva ao Tema da Inveja:
Um percurso de leitura comparada de três contos de Grimm
ao episódio de “A Falsa Genevra”
Sylvia Maria Trusen
- Eu já li essa história em Andersen – disse Emília – e agora estou vendo bem claro como o
nosso povo faz nelas os seus arranjos. Foi Andersen quem a inventou.
- Não – disse D. Benta. Andersen nada mais fez do que colhê-las da boca do povo e arranjá-las a
seu modo, com as modificações que quis. Essas histórias são todas velhíssimas, e correm todos
os países em cada terra contada de um jeito. Os escritores o que fazem é fixar as suas versões,
isto é, o modo como eles entendem que as histórias devem ser contadas. (Lobato, 1960: 67)
1- Introdução
Embora o escritor do conto referido em epígrafe, Hansel e Gretel, não seja o
dinamarquês, mas os alemães Wilhelm e Jacob Grimm, a asserção nem por isso deixa de
ser pertinente. Principiou-se com ela este estudo, pois concentra duas informações cruciais:
a) as histórias são velhíssimas e correm todos os países;
b) os escritores fixam as suas versões, isto é, o modo como eles entendem que as histórias
devem ser contadas.
Esses são os dois aspectos centrais para a pesquisa aqui proposta. O primeiro deles atesta
a longa circulação literária entre diferentes áreas geográficas dos objetos de estudo deste
trabalho. Há pois que delimitar o campo sobre o qual irá se deter o olhar do pesquisador,
fixá-lo num ponto, pois, como fragmentos de espelhos coloridos que se rearranjam
ininterruptamente, as narrativas configuram espécie de calidoscópio feito por motivos em
constantes e diferentes mutações.1 Cumpre, portanto, interromper o fluxo constante de
narrativas sempre recompostas, recortar um aspecto, centrar a mirada sobre um vidrilho e
examiná-lo.
Propõe-se, assim, que o olhar se deixe cativar pela imagem, ou motivo, da falsa noiva.
Dada, porém, sua recorrência em muitos acervos – não é fortuita a perspicácia da
personagem-leitora Emília, “mas eu noto uma coisa: as histórias populares parecem uma só,
contadas de mil maneiras diferentes (Lobato, 1960 : 40) – vamos limitar a observação a três
contos compilados pelos Irmãos Grimm em duas edições, bem como a episódio narrado no
Lancelot do Lac. 2
Contudo, logo se verificará, sua recorrência vem plasmada por outro tema, o da inveja,
constituindo, portanto, esta também objeto de exame deste trabalho. Refletir acerca desse
elemento como tema que constitui o solo sobre o qual se erige o da falsa noiva teria ainda
outra vantagem, além de garantir unicidade ao estudo. Considerar o modo como as
1
Por motivo, entende-se um repertório de unidades recorrentes na ficção, articuladas entre si, e passível de migrar entre
narrativas, sejam elas de cunho popular ou não. Como unidades menores do enredo, prendem-se ao tema, que as envolve.
(Cf. Reis e Lopes: 1988). Embora reconhecendo a importância da lei de permutabilidade, definida por Propp (1984), bem
como da descrição das ações como partes constitutivas dos contos maravilhosos, não será empregada aqui sua teoria, pois
afasta-se dos objetivos propostos.
2
Ilustra a migração de motivos artúricos o ensaio de A. Furtado (2001), acerca da imagem alegórica da Besta Ladradora.
84
narrativas fundamentais, isto é aquelas sobre as quais se calcaram os valores morais da
civilização ocidental-cristã, vem aterrando a ética desta cultura, implica pensar sobre a
permanência da literatura ancorada no maravilhoso. Importa indagar-se a respeito da
vigência, senão o recrudescimento do interesse por tais narrativas (basta verificar o
aumento de traduções do gênero), num tempo de fragmentação de valores – e
indiferenciação de sujeitos assistidos pelo processo de homogeneização. Importa,
sobretudo, se levado em conta o fato de que foram, como é o caso dos Grimm, adaptadas a
um público cujo gosto distancia-se do nosso por mais de dois séculos.
E chega-se aqui ao segundo aspecto apontado por D. Benta. De fato, todo escritor lê e
traduz o modo como eles entendem que as histórias devem ser contadas. A tradução, em
sua acepção mais ampla, isto é como leitura e criação (Larrosa,1996; Paz, 1991) não apenas
de um idioma, mas de uma linguagem, comporta uma imagem, ou uma certa concepção de
público leitor para o qual se dirige. O estudo da primeira e última edição do acervo
compilado pelos irmãos Grimm, bem como dos apontamentos feitos, é nesse sentido
revelador. Mas fica ainda a questão: se constituído o acervo para um dado público leitor,
adaptado e traduzido para tal destinatário, como explicar sua permanência em plena pósmodernidade? Mais instigante é ainda o caso das narrativas da matéria da Bretanha, se
considerados os quase oito séculos que a separam do atual. O caminho a ser trilhado será,
portanto, o da literatura comparada. (Brunel; Pichois; Rousseau : 1990; Carvalhal : 1991)
O trabalho que se segue, ao fixar o olhar sobre o motivo da falsa noiva e as imbricações
possíveis com um dos chamados pecados capitais, a inveja, pretende construir um rumo,
provisória senda dentre tantas possíveis, para compreender a inquietante vigência dessas
narrativas sobre eles edificada.
2 – Alguns pressupostos teóricos
Antes de enveredar pelas trilhas que deverão levar ao estudo proposto, convém preparar
com prudência o terreno, pois a complexidade dos contos maravilhosos tem provocado uma
gama tal de interpretações que nos obriga a uma exposição sumária de seus fundamentos.
Com isso, esperamos esclarecer nossa opção teórica.
O primeiro grupo de intérpretes que cumpre citar orienta-se pelo método de
interpretação psicanalítica e tem nas figuras de Bettelheim (1980) e de Erich Fromm (1981)
alguns de seus principais expoentes. A grosso modo, pode-se dizer que sustentam a tese
segundo a qual o conto de fadas manifestaria a expressão de um desejo face a uma
realidade de carências. Ainda no campo da psicanálise, mas seguindo desta vez o rastro
junguiano, encontramos a tese de Marie-Louise von Franz, para quem a simbologia de tais
narrativas expressariam resíduos arquetípicos, presentes no inconsciente coletivo. A sua
origem estaria, portanto, no mito.
Um segundo método interpretativo tem por base a escola finlandesa, fundada por Antti
Aarne (1910), posteriormente desenvolvida por Stith Thompson (1987). Mais do que uma
análise, persegue um inventário das variantes de um mesmo conto, classificando-os
segundo índices numéricos que possibilitem a posterior comparação.
Não obstante a importância prática do trabalho, que indubitavelmente facilitou a
comunicação nas discussões científicas (verificável em quase todo arquivo de classificação
de contos), não lhe foi poupada a pertinente crítica de Propp, ao constatar que Aarne
desconsidera a lei da permutabilidade (Propp, 1984 : 16), em função da qual as partes
85
constitutivas de um dado conto podem migrar de uma variante à outra, sem que o todo
orgânico fosse alterado.
O problema, de fato, revela-se ao afirmar que “em muitos lugares foram deixados
espaços livres para novos tipos, de modo que estes possam receber a numeração adequada.”
(Aarne, 1910 : IV). E mais adiante:
Havendo a necessidade de, ao longo do tempo, ajuntar aqui ou acolá novos tipos além dos números para
tanto estipulados, permanece sempre a possibilidade de multiplicá-los, por exemplo mediante o
1
acréscimo de um pequeno algarismo romano. (1910 :IV)
A afirmação, de fato, aponta para a inexistência de uma descrição que abarque os
processos formais de composição a partir da combinação de diferentes unidades que
trasladam de uma narrativa a outra. Em outros termos, falta uma compreensão do lugar de
tais narrativas no sistema literário como um todo, ou, mais especificamente, do gênero a
que pertencem.
Propp, em contrapartida, propõe o estudo das relações funcionais entre os componentes
da narrativa, estratégia esta que lhe viabilizaria pesquisa etno-histórica posteriormente
desenvolvida em bases, acredita, mais científicas:
O estudo da estrutura de todos os aspectos do conto maravilhoso é a condição prévia absolutamente
indispensável para seu estudo histórico. O estudo das leis formais pressupõe o estudo das leis históricas.
(1984: 20)
Como material de pesquisa dispõe da coletânea de Afasanev, com base na qual logrou
definir trinta e uma funções como unidades morfológicas estáveis e constantes, princípio
este que permitiria a subordinação de cada conto a um grupo funcional.
Em pesquisa posterior, expande a sistematização feita por meio da pesquisa formal e
persegue, a partir de pesquisa etnográfica do folclore russo, a recorrência e transformação
histórica de elementos arcaicos nas narrativas. Embora afirme, portanto, que “o conto
conservou vestígios de numerosos ritos e costumes” (1997: 10), alerta para o fato de que é
rara a correspondência direta entre um e outro, verificando-se, mais freqüentemente, a
reinterpretação de um dado costume ou rito pelo conto que substitui elementos caídos em
desuso, em razão de transformações históricas.
De qualquer modo, é de se indagar se, malgrado a prudência do pesquisador, a
interpretação quanto à substituição de certas passagens por outras - em função de
modificações históricas -, não permanece algo mecânica. Por outro lado, a tentativa de
rastrear as alterações parece guiar a pesquisa em direção ao terreno arenoso das suposições.
É, pois, nesse sentido que explica a defloração da noiva por auxiliares do noivo, nos contos
russos, como reflexo da fusão do ritual de defloração, anterior ao casamento nas sociedades
arcaicas, e que passou a ocorrer, pelo marido, após o matrimônio:
A defloração não mais acontece antes do casamento, e sim depois. Assim, o personagem que realiza esse
ato deve agir imediatamente após a cerimônia, isto é, durante a primeira noite. A noite de núpcias
humana confunde-se com o defloramento totêmico. O defloramento é obra do “espírito da floresta”, ou
seja, no conto, do auxiliar do herói, de cujas mãos o herói recebe a noiva. (Propp, 1997 : 406)
1
Trad. nossa. Optou-se por verter para o português apenas os textos em alemão.
86
Todavia, nenhuma das linhas de investigação até agora apresentadas observa o fato
de que tais narrativas sofreram uma adulteração em virtude da mudança do receptor. O
Kinder–und Hausmärchen assinado pelos Irmãos Grimm leva no título a intencionalidade
de adaptar uma narrativa pré-existente ao gosto e capacidade do pequeno leitor do século
XIX. Não se trata, pois, de negar a pertinência das afirmações de Propp e de Aarne, mas de
considerar que estas se referem, ao menos no que tange ao acervo alemão, a um material
retrabalhado.
De fato, como observam Richter e Merkel (1974), o Kinder-und Hausmärchen é uma
escrita histórica e culturalmente delimitada, marcada pelo ajustamento de uma narrativa
popular às necessidades da criança burguesa, cujos traços são perceptíveis ao longo das
edições.
O fato tem efetivamente sérias implicações para o estudo das narrativas. A leitura dos
contos publicados em momentos diversos, marcados por intenções diferentes, atesta o
quanto interpretações que se aplicam a uma certa edição, - mais recorrentemente à de 1857
-, pouco ou nada se justificam quando se lê a primeira publicação do acervo.
Em trabalho anterior (Dissertação de Mestrado) já se verificou a importância do público
receptor e a conseqüente mudança do horizonte de expectativa na elaboração gradual do
acervo1. Trata-se agora de perceber a permanência de elementos que, malgrado as
alterações já reconhecidas, atravessam não apenas as edições, mas outras narrativas que
delas se aproximam pela ocorrência de temas e/ou motivos similares. Pode-se, pois, daí
inferir que a pesquisa aqui proposta, movimentando-se no âmbito da literatura comparada,
deverá recorrer para tanto às teorias literárias, mas sem negligenciar as contribuição de
outras disciplinas.
Nesse sentido, é importante notar, no que concerne à economia interna dos contos e da
história retirada da matéria da Bretanha, aquilo que os peculiariza, situando-os no amplo
universo da literatura.
Assim, no que concerne ao conto maravilhoso, tradução próxima ao Märchen, Hetman
explora as muitas possíveis definições:
Com o termo Märchen entendemos, desde Herder e os Irmãos Grimm, uma narrativa desenvolvida com
fantasia poética, e em especial as do universo mágico, histórias maravilhosas não ancoradas nas
condições da vida real, e que ouvimos, com maior ou menor prazer, embora as consideremos
2
inacreditáveis.” (Polivka e Bolte apud Hetmann, 1982 : 12)
Lüthi, outro estudioso do gênero, embora lembre, assim como Propp, que a questão não
é tanto o quê, mas como se narra, afirma:
O Märchen, porém, permanece para nós enigmático porque mescla, como se fora lógico, o extraordinário
3
com o natural, o distante com o próximo, o compreensível com o incompreensível. (Lüthi, 1992 : 6)
Em seu clássico estudo do fantástico, gênero narrativo fronteiriço entre o estranho e o
maravilhoso, Todorov assevera:
1
2
3
Referências teóricas importantes foram então as teses da estética da recepção e do efeito de Jauss e Iser.
Trad. nossa
Trad. nossa.
87
No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas
personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que
caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. (Todorov, 1975 : 59-60)
Malgrado as diferentes orientações metodológicas, percebe-se um fulcro comum. A
recorrência do termo maravilhoso e sua associação ao mundo do sobrenatural, do que foge
à lógica da experiência empírica, merece atenção, sobretudo se recordado que a natureza
dos romances de cavalaria reside na singular organização espaço-temporal, ou, na feliz
expressão de Bakhtin, “um mundo maravilhoso num tempo maravilhoso” (1990, 270). Se
diferentes orientações metodológicas apontam para sua contumaz repetição, observar as
alterações de cunho histórico em função da mudança do público receptor no corpus da
narrativa dos Grimm talvez possa indicar que, a despeito delas, permanece latente a
potência dos mirabilia, termo que se encontra na origem do maravilhoso, presente no
acervo dos Grimm e no episódio a ser investigado.
Talvez fosse, pois, de bom alvitre dirigir o olhar para a origem etimológica da palavra.
De fato, mirabilis era termo empregado no ocidente medieval no âmbito da cultura erudita
para referir-se a uma coleção de objetos extraordinários 1. (Le Goff, 1994). Em mirabilis
está a raiz do verbo mirari (mir), que permite remissão para o terreno visual, evidenciada
no verbo mirar. De mirar, chega-se ao miroir, traduzido pelo português por espelho, dada a
contaminação do latim speculum. Em ambos, contudo, tem-se a miragem do que não é real
– a inversão em imagem outra do que reproduz especularmente.
O leitor aqui já poderá estar supondo o destino da argumentação sugerida. Contudo, para
que a idéia adquira força de convencimento, cumpre ainda um passo: aliar a miragem
especular e o maravilhoso à alteridade. Seguindo o rastro da etimologia, afirmou-se até aqui
o estreito parentesco entre o campo de significações sugerido pelo termo mirabilis (mirar,
miroir, miragem) e o termo maravilhoso. Agora o que se quer é abarcar a alteridade como
instância estética, capaz de articular o maravilhoso à literatura erigida sobre os mirabilia.
Valiosas são aqui as teses do venezuelano Victor Bravo sobre a literatura fantástica e outras
circunvizinhas:
El drama que vive el acontecimiento literario – y que vive como consciencia sobre todo a partir del
romanticismo – es justamente esa tensión entre lo Mismo y la alteridad, entre subordinarse al peso de los
referentes del mundo, o hacer sentir su respiración y sus territorios como otro de los horizontes del
mundo. (Bravo, 1987: 21)
Se, por linguagem poética, Bravo entende uma linguagem constituída como outra face à
comunicacional, espécie de “perturbação de águas tranqüilas” (Bravo, 1987: 24), é lógica a
conseqüência que daí retira: a alteridade é o centro gerador do acontecimento literário. 2
Desse modo, a narrativa fantástica sobrevive, ainda segundo Bravo, da situação limiar entre
as leis da verossimilhança e as ilimitadas possibilidades da ficção, encenando, por
conseguinte, como nenhuma outra, a alteridade. 3
1
É importante, todavia, lembrar com Le Goff (1994) que, na Idade Média, o quadro conceitual que servia de referência aos
mirabilia era radicalmente distinto do moderno, uma vez que inexistia a dúvida face à (im)possibilidade do evento.
2
Por outro viés, mas chegando a conclusão semelhante, Yunes (2002) afirma o espaço da alteridade na literatura e sua
importância na construção de um mundo erigido sobre o valor das diferenças.
3
V. também, a respeito do fantástico, do estranho e do conto de fadas, estudo de Freud (1996) sobre novela de Hoffmann,
que serve de referência às pesquisas posteriores de Todorov e Bravo.
88
No outro extremo, na aniquilação do limite e do assombro diante do inusitado, está o
território do absurdo: o reino da Coconha: 1
Cuando el límite persiste y un ámbito ‘otro’ se pone en escena sin atender a las verosimilitudes de las
certezas de lo real, y sin penetrar estas certezas y cuestionarlas, cuando el límite persiste deslindando el
ámbito otro del ámbito de lo real, estamos en presencia de lo maravilloso. Podría decirse que, en lo
fantástico, lo ‘otro’ es una irrupción y, en lo maravilloso, un espectáculo. (Bravo: 1987, 244)
A asserção de Bravo, se é eficaz para entender os contos alemães, ela o é igualmente
para a compreensão do texto do Lancelot, uma vez que é fluido o trânsito nos romances de
cavalaria, e na obra precursora de Chrétien, entre as experiências empíricas e as do mundo
sobrenatural (Bakhtin, 1990; Cirlot, 1987). Ademais, sob o prisma da literatura comparada,
o próprio comércio não apenas material entre Ocidente e Oriente, intensificando a livre
circulação da produção artística (Hauser : 1993), também viabilizou o diálogo com os
contos maravilhosos orientais, os quais, por sua vez, enlaçam-se com o acervo dos Grimm.
(Coelho : 1982)
Se há objeção à pesquisa comparada de objetos tão particulares como o são os contos
compilados pelos irmãos Grimm e literatura retirada da matéria da Bretanha, refuta-a, como
procurou-se demonstrar, a potência dos mirabilia que transita entre eles. Para os mais
céticos há ainda a manifestação do motivo comum, a falsa noiva.
3 – O motivo da falsa noiva
Até o momento orientamo-nos pela preocupação em explicitar o gênero sob o qual se
inscreve o conto de fadas, o gênero maravilhoso, bem como seu caráter literário, no qual
manifesta-se a alteridade.
Cumpre agora reduzir o foco do nosso olhar circunscrevendo um motivo cuja circulação
possa ser identificada nos contos de Grimm e no Lancelot do Lac. Em primeiro lugar, a um
acervo. Os contos reunidos pelos irmãos Grimm oferecem diversas vantagens. A primeira
delas diz respeito à existência de registro escrito das anotações, além das diferentes edições
e manuscritos, o que evidentemente facilita o trabalho comparativo, evitando atribuições
simbólicas generalizadas. Outro mérito da compilação é ter servido, além das
dinamarquesas e finlandesas, à primeira classificação realizada por Aarne, (1910)
constituindo, pois, a base dos trabalhos de Stith Thompson:
Serviram como base para a mesma [para a pesquisa] a coleção manuscrita finlandesa, a coleção
2
dinamarquesa S. Grundvigs, além da já conhecida alemã, Kinder-und Hausmärchen dos irmãos Grimm.
É nesse sentido que optou-se por trabalhar com o motivo da noiva-substituta, K 1911,
que aparece nos contos do tipo Aa 403, Aa 408, Aa 450, Aa 533. 3 Tais motivos
correspondem, no acervo dos irmãos Grimm, aos contos número 13 (“Die drei Männlein im
Walde”), nº 11 (“Brüderchen und Schwesterchen”) e nº 89 (“Die Gänsemagd”),
1
Referência ao conto dos Grimm, "Das Märchen vom Schlauraffenland", que parece reportar-se ao mito do Pays de
Cocaigne, lugar idílico e simultaneamente às avessas, retratado nas narrativas medievais do século XIII. V. Também a
respeito Goff (1994)
2
Trad. nossa
3
A classificação aqui serve apenas como guia voltado a orientar o leitor, e não significa uma orientação metodológica.
89
respectivamente. 1 Fundamental será ainda a leitura comparada com o episódio intitulado
“A Falsa Genevra”, que, parte integrante do Lancelot do Lac, tem seu enredo centrado
sobre o motivo aqui abordado.
Principiar-se-á o itinerário pela leitura dos Grimm, para concluí-lo com “A falsa
Genevra.”
3.1 – Die drei Männlein im Walde (KHM nº 13)
O conto que seria traduzido, no Brasil, por Monteiro Lobato com o título “As enteadas e os
anões” 2 foi publicado pelos irmãos já na primeira edição do acervo, no primeiro tomo, com
o título “Die drei Männlein im Walde”. Prosseguiu na reedição da coletânea em 1819, para
desaparecer nas subseqüentes (1837, 1840, 1843, 1850) e ressurgir na última (1857), em
sua versão definitiva.
Na brochura que sai a público em 1922, contendo os apontamentos dos irmãos relativos
à origem das narrativas, o leitor é esclarecido quanto aos narradores das versões publicadas.
Sabe-se desse modo que o conto provém de duas variantes:
Segundo duas narrativas, ambas de Hessen, que se completam. Em uma, proveniente da região de
Zwehrn, falta o início com a prova da bota; o nome homenzinhos da caverna [Höhlenwaldmännlein],
para o nome homenzinhos do bosque [Waldmännlein], com o qual, na região baixa de Hessem, são
designados os pequenos que moram nas cavernas da floresta e que roubam as crianças que ainda não
foram batizadas. 3 (Grimm, 1982, V. 3 : p. 22-3)
A leitura da edição de 1819/22, com anotações de próprio punho dos autores (1996),
revela ainda o nome do narrador e a data - após a linha 29 (p.46), o nome Dortchen,
acompanhado de “09 oct. 1812” e na página seguinte, ao final da narrativa, novamente o
nome da narradora. E de fato, a pesquisa laboriosa de Rölleke dos manuscritos 4 atesta
provir a narrativa de duas versões narradas por Dortchen Wild 5 e publicada naquele mesmo
ano. Posteriormente, porém, foi contaminada por variantes narradas por Dorothea
Viehmann, de Zwehrn, e por outra, relatada por Amalie Hassenpflug..
Essa informação é especialmente relevante se lembrarmos que a família Hassenpflug
provinha de huguenotes foragidos da França. Explica-se assim que o motivo das tartarugas
que saltam da boca da filha da madrasta, inexistente na versão de 1812, apareça na seguinte
(1819). E de fato é esta que encontramos no conto, bastante similar, “Les Fées”, da
coletânea Histoires ou contes du temps passé, avec des moralités, de Charles Perrault,
publicado no século anterior e igualmente difundido.
Em linhas gerais, o conto narra, na última versão escrita pelos irmãos, as agruras de uma
jovem, criada pela madrasta e sua filha. Como fora obrigada em pleno inverno a colher
frutos silvestres sob a neve, encontra três homenzinhos que, certificando-se de suas
1
Poder-se-ia ainda incluir o nº 49, “ Die weisse und Schwarzbraut”, dentre os contos do tipo Aa Th 403 mas para efeito de
análise consideramos que três contos constituem um número significativo, dentro dos limites deste trabalho, para ilustrar o
motivo da falsa noiva
2
Conferir ainda tradução de David Jr, mais recente, a qual, embora menos criativa que a de Lobato, está bastante próxima
à edição de 1857
3
Trad. nossa
4
Trata-se do manuscrito de Ölenberg, pois encontrado em convento homônimo, contendo as cópias enviadas a
Clemens
Brentano, colega e autor do Des Knaben Wuderhorn.
5
Trata-se na realidade de Dorothea Grimm, cujo nome de solteira era
Wild, mãe dos autores. Rölleke tem interessante
estudo acerca dos mitos criados em torno de seus narradores, em sua maioria burgueses.
90
virtudes, tais como humildade e generosidade, concedem-lhe três dons: ouro jorrando da
boca ao falar, beleza, e casamento com rei. Invejosa, vai a filha da madrasta ao mesmo
bosque, mas ocorre-lhe o inverso. Constatando o mau-caráter da menina, os três
homenzinhos lhe concedem três maldições: tartarugas ao falar, feiúra, morte infeliz. Após
casamento com rei, de quem concebe uma criança, a heroína é raptada pela madrasta e
substituída na cama pela filha. A trama é descoberta e as duas são punidas O trecho
concernente à substituição é descrito em detalhes, de modo inclusive a garantir
verossimilhança ao leitor moderno, mais atento à lógica interna do texto:
Em seguida, a filha feia deitou-se na cama, e a velha cobriu-a dos pés à cabeça. Quando o rei voltou e
queria falar com sua mulher, gritou a velha: “Silêncio, silêncio! Que agora não pode ser; ela está acamada
pois tomou um suadouro. Vossa Excelência precisa deixá-la repousar por hoje."
O rei não pensou nada de mal e voltou na manhã seguinte, mas ao falar com sua mulher recebeu como
resposta cágados que saltaram de sua boca a cada palavra pronunciada – embora dela habitualmente
jorrassem moedas de ouro.
Então ele perguntou o que significava aquilo, mas a velha disse que vinha dos suores e que logo passaria.
1
(Grimm, 1982 : 95)
Com efeito, se comparado com o primeiro registro (1812), destacam-se os acréscimos
feitos, inclusive os que apontam para a substituição da noiva, uma vez que lá a única
informação que se tem a respeito é um lacônico “No dia seguinte, disseram ao rei que a
rainha morrera durante à noite.”:
Tempos depois a rainha concebeu um príncipe, e quando ela estava só à noite, doente e fraca, então a
criatura má, com sua filha, levantou-a da cama e levaram-na para fora até o rio e a jogaram nele. No dia
2
seguinte, disseram ao rei que a rainha morrera durante a noite. (Grimm, 1999 : 88)
Poder-sei-a pensar que o trecho relativo à noiva substituta provém da versão francesa
narrada, como visto, por Marie Hassenpflug. A hipótese, todavia, não parece provável – ao
menos se tomarmos como referência a leitura do “Les Fées” de Perrault 3. Resta ainda a
possibilidade de provir da versão de Dorothea Viehmann, mas o território de suposições
tornar-se-ia demasiadamente arenoso. De certo apenas uma recriação a partir de narrativas
que os irmãos anotaram. A versão original, esta, permanece exercendo a atração própria dos
horizontes inacessíveis.
3.2 – Brüderchen und Schwesterchen (KHM nº 11)
O segundo conto eleito neste itinerário de leituras é o igualmente já traduzido no Brasil
com os títulos “Os dois irmãozinhos” (Lobato), ou “O irmão e a irmã” (David Jardim Jr.).
Como no relato anterior, o enredo da última versão elaborada pelos irmãos, gira em
torno das aflições de duas crianças, criadas pela madrasta, que decidem abandonar o lar. O
rapaz logo será encantado em corço ao tomar água de uma fonte enfeitiçada pela perversa
mulher e ambos convivem, assim, em choupana na floresta, até serem descobertos por um
1
Trad. nossa da vesão publicada em 1857 (Grimm, 1982 : 95)
Tradução nossa da versão publicada em 1812 (Grimm, 1999: 88)
3
Aqui, afora o fato de as fadas substituírem os homenzinhos da floresta, o primeiro segmento narrativo é praticamente
idêntico. Mas a segunda parte – do casamento ao trecho em que o animal é desencantado - inexiste na versão francesa (cf.
Perrault, 1981)
2
91
jovem príncipe que por ali caçava. Após o esperado matrimônio, a princesa concebe uma
criança, e, como se leu no conto nº 13, a madrasta mata a heroína substituindo-a por sua
filha - a quem lhe falta um olho -, que aparece inesperadamente na narrativa:
Quando tudo terminou, a velha pegou sua filha, colocou-lhe uma touca, e a estendeu sobre o leito no
lugar da rainha. Também lhe deu a fisionomia e forma da rainha, mas aquele olho que tinha a menos, este
ela não podia lhe dar. Para que o rei, porém, não se desse conta, fez com que se deitasse sobre o lado em
que lhe faltava o olho. De noitinha, ao chegar em casa e saber que tinha tido um filho, alegrou-se de todo
o coração, e quis se aproximar da cama de sua mulher e ver o que ela fazia. Aí gritou a velha: “De modo
algum! Deixa a cortina fechada porque a rainha não pode ver luz e precisa ter muita tranqüilidade!” O
1
Rei voltou e ficou sem saber que em sua cama dormia uma falsa rainha. (Grimm, 1982 : 84)
O crime é descoberto e punido.
Contudo, o motivo da falsa noiva, ver-se-á, também foi introduzido posteriormente. A
trajetória da sua publicação principia no manuscrito de Öllenberg de Jacob Grimm, mas é
dois anos depois que se converte em narrativa apta a ser publicada no Kinder-und
Hausmärchen. Sai portanto a lume logo no 1º volume da 1ª edição (1812), reaparece na 2ª
(1819) e ressurge na última (1857).
Segundo os irmãos, o conto resulta da fusão de duas narrativas da região de Main. De
fato, o leitor tem a nítida impressão, como aliás também no nº 13, de que ele encerra duas
narrativas agrupadas – especialmente ao se deparar com o novo rumo narrativo logo após o
happy end que paradigmaticamente encerra o conto de fadas:
O rei ajudou a linda jovem a montar em seu cavalo e dirigiu-se com ela para seu palácio, onde a festa
realizou-se com grande pompa. Assim ela tornou-se uma rainha e viveram muito tempo felizes (Grimm,
2
1984 : 84)
Entretanto, há outro aspecto que não deve passar despercebido. Se aqui, vale dizer na
versão de 1857, o rei é um jovem solteiro que galantemente oferece sua mão à futura noiva
– “O rei fitou-a com olhos amigáveis, estendeu-lhe a mão e perguntou, ‘Você não quer me
acompanhar até meu reino e casar-se comigo?’ ” (1984: 83) – lá, na edição de 1812, o que
se lê é:
Na corte do rei todas as honras lhe foram feitas - jovens e bonitas mulheres lhe serviam, mas, entre todas,
ela era a mais bela. O pequeno corço, este, ela não perdia de vista e lhe fazia todas as vontades. Logo
depois a rainha morreu, e assim a irmãzinha casou-se com o rei e viveram em completa felicidade. (1999:
3
82)
Não parece precipitado afirmar que um rei casado que traz para casa uma linda jovem
sinaliza um triângulo pouco adequado à leitura nos sólidos lares burgueses... Logo, a
alteração nos remete ao afirmado anteriormente – as gradativas adaptações, que visavam o
novo receptor, foram de tal ordem que não devem ser menosprezadas. Outrossim, vale
ressaltar que todo o trecho concernente à caça do animal – do entusiasmo pelo som dos
trompetes à sua ferida e conseqüente perseguição, bem como o decorrente encontro com a
1
2
3
Trad. nossa da versão de 1857 (Grimm, 1982: 84)
Versão de 1857. A de 1812 também anuncia um final feliz após o qual a narrativa toma nova direção.
Trad. nossa da versão de 1812. (Grimm, 1999: 82)
92
heroína – inexiste na versão de 1812. Aqui o leitor deve-se contentar com a descrição
sumária do encontro:
Passado um tempo, o rei, caçando, perdeu-se por ali. Foi então que encontrou a jovem com o animalzinho
na floresta e surpreendeu-se com sua beleza. Ele a ergueu para que montassem em seu cavalo e a levou
1
consigo, e o corço foi correndo ao lado, preso pelo cordão. (1999, 82)
Ademais, observada ainda a brochura publicada em anexo à edição de 1812, contendo
anotações dos irmãos (Grimm, 1996), se lêem não apenas correções, mas o processo de
fusão das versões logo atrás apontadas. Um trecho de 14 linhas narrando a inveja, não da
rainha, mas de outra personagem, a sogra – “A mãe do rei, porém, sentiu inveja e quis
destruir a menina” -, bem como a condenação à morte da heroína, – aparece com riscos
verticais indicando a supressão que, de fato, mais tarde se verificaria na publicação do
conto. A versão da madrasta, asfixiando a noiva e substituindo-a pela filha, suplanta as
anteriores, pois se mostra mais ajustada ao novo público a que se endereça.
Donde, no que concerne ao motivo estudado, o aparecimento durante o processo de
elaboração do conto “Brüderchen und Schwesterchen” de um fragmento inicial no qual não
há menção ao motivo da falsa noiva. Na edição de 1812, tem-se a complementação da
narrativa pela versão contada por Marie de Hassenpflug em 1811 2, na qual aparece a morte
da rainha, bem como a menção à substituição da noiva pela filha da madrasta, e,
finalmente, na de 1857, ocorre o acréscimo de novos elementos – o rei casado torna-se
solteiro, a jovem heroína esposa legítima.
Observação similar pôde ser feita, como visto, no “Die drei Männlein im Walde”, no
qual se constatou a posterior inclusão do trecho referente à substituição da noiva pela filha
da madrasta. Logo se constatará, na leitura do Lancelot, que o motivo tem entretanto larga
trajetória na história literária do gênero. Por enquanto, cumpre ainda examinar aspecto que,
embora menos evidente, não é menos significante, sobretudo porque cinge várias narrativas
dedicadas ao motivo, em especial as duas aqui apresentadas
A figura da madrasta, com efeito, chama a atenção, uma vez que cabe à personagem a
ação estudada (a substituição da noiva). A literatura de cunho psicanalítico já fez muitas
incursões neste terreno, mas talvez não seja má idéia tomar outro rumo e averiguar a
etimologia da palavra. Diferentemente do português, o termo em alemão deriva da
formação do substantivo mutter (mãe) antecedido pelo prefixo stief (stiefmutter) - o mesmo
que encontramos para padrasto (stiefvater), enteado(a) (stiefkind), meia-irmã
(stiefschwester) ou meio-irmão (stiefbruder). E, como os irmãos celebrizaram-se também
como dedicados gramáticos, além de folcloristas, publicando um volumoso dicionário, é de
bom alvitre ir a essa fonte. Nela se lê sob o verbete, além do significado esperado para
stiefmutter - “maternidade não natural, obtida mediante segundo casamento do pai”
(Grimm, 1960 : 2804) –, o esclarecimento de que a “associação da imagem de perversidade
e crueldade da madrasta em sua relação com os enteados manifesta-se com significativa
freqüência desde tempos antigos.” (2804)
Citam diferentes crônicas, mas lembram também “especialmente os contos de fadas;
‘desde que mamãe morreu, não temos uma boa hora sequer. A madrasta nos bate todos os
dias, ...e pra comer, só crostas de pão velho.’ ” 3
1
2
3
Trad. nossa da versão de 1812 (loc. cit).
Cf. anotações de próprio punho dos autores no fecho da narrativa, (Grimm, 1996 : 38, l. 24)
Trata-se, pois, do conto aqui reproduzido na versão de 1812.
93
Se a informação dos Grimm atesta a importância do termo na economia dos contos, ela,
entretanto, não diz muita coisa no que concerne à etimologia do prefixo. Cumpre pois abrir
as páginas de um léxico de alemão medieval. No dicionário editado por Köbler (1993)
revela-se provir o termo stiefmutter de stiofmuoter, cujo prefixo provavelmente resultaria
do indo-germânico steupa, mesma origem do que fora o verbo stiufen. Consultado pois
este último verbete, lê-se que ele constitui “verbo regular do alemão medieval”. É traduzido
para o alemão contemporâneo por “verweist werden, berauben” Ora, o verbo verweisen,
aponta para dois significados, admoestar, repreender, mas também desterrar. E por fim,
berauben, roubar. (Duden, 1989). Não é portanto difícil depreender que a palavra mesma
stiefmutter abriga as ações que o leitor/ouvinte espera da personagem. Inclusive aquela por
nós estudada. Substituir a noiva legítima por outra implica, em última instância, desterrá-la
(em ambas as versões dos dois contos ) e/ou roubar-lhe o lugar no leito nupcial (versão de
1857).
3.3 – Die Gänsemagd (KHM nº 89)
O conto, também já traduzido no Brasil 1, veio a público pela primeira vez no II tomo da
edição do Kinder- und Hausmärchen, em 1815. (Rölleke, 1980). Diferentemente, do conto
anterior, após a primeira publicação ressurge já na 3ª edição (1819), desaparece das quatro
edições seguintes para voltar a ser incluído na última, em 1857. No que concerne ainda a
sua publicação, é curioso notar que também se distingue de muitos do acervo por já
encontrar, desde a primeira vez, sua versão praticamente definitiva. De fato, se feita a
leitura da primeira e última, ver-se-á que as poucas alterações restringiram-se a uma ou
outra pontuação, de modo, talvez, a conferir maior dinamicidade ao texto, agora escrito.
Sua narração deve-se, todavia, à costureira, amiga da família, Dorothea Viehmann, dona
de vasto repertório (contribuiu para 37 dos 200 contos compilados). (Rölleke, 1980)
Segundo opinião dos irmãos, o tema central da narrativa seria “a realeza em suas
profundas raízes garantida pelo nascimento e mantida ainda que sob a forma da
escravidão.”
De fato, o conto relata a história de uma jovem princesa prometida ao príncipe de um
reino distante que leva em seu enxoval preparado pela rainha, além de ricos adornos, um
cavalo que fala e um lenço cuja insígnia são três gotas do sangue da mãe:
Ao se aproximar a hora da despedida, a velha mãe dirigiu-se ao seu aposento, pegou uma faquinha e fez
com ela um corte num dedo, que começou a sangrar. Então deixou que três gotas de sangue pingassem
sobre um lenço branco e entregou-o à filha, dizendo: “Querida, guarde este lenço pois ele te será de
2
grande valia durante a viagem.” (Grimm, 1999 : 355)
A observação dos irmãos legitima-se, com efeito, pela imagem do lenço com o sangue
materno. Para Propp (1997), certos motivos do conto maravilhoso tendem a relatar a
aceitação do marido no clã da mulher, refletindo desse modo arcaicas relações matriarcais,
mas Rölleke (1982), por sua vez, aponta o parentesco com as narrativas do tipo Aa Th
403a, 403b, 450. Donde o motivo da noiva substituta apresentar-se igualmente aqui:
1
V. as seguintes traduções de Lobato, Monteiro. “A pastorinha de gansos” (1960); Jardim Jr., David. “A moça dos gansos”
(2000); Maldonado , Zaida. (2002). “A guardadora de gansos”
2
Trad. nossa da versão de 1815 (Grimm, 1999: 355)
94
Então a criada montou no Falada e a verdadeira noiva no pangaré, e assim cavalgaram adiante, até
finalmente chegarem ao palácio real, onde houve grande alegria com a chegada delas. O filho do rei foi
ligeiro em sua direção, ergueu a criada do cavalo, pensando ser ela sua noiva, e subiu com ela as escadas
1
do palácio, enquanto a princesa teve que ficar lá embaixo sozinha de pé.
Todavia, o texto nº 89 do acervo constitui caso excepcional, pois apresenta desde a
primeira publicação sua forma definitiva e, conseqüentemente, encena sem surpresas na
primeira versão o mesmo motivo que aparecerá na última. Desperta ainda a atenção o fato
de ser a criada quem substitui a noiva2, e não a filha da madrasta como nos outros dois.
Seria, pois, tentador retirar de cena o que dela destoa e em seu lugar propor outra narrativa3,
de modo a garantir a uniformidade das asserções. Mas, não raramente, é a diferença que
propicia a compreensão do que dela se aparta. E de fato é neste conto que se encontra de
modo mais expressivo o motivo que tem servido de fio condutor ao estudo – o que se
manifesta inclusive na linguagem empregada, como se depreende dos trechos, “A criada
montou sobre o Falada e a noiva verdadeira sobre o velho pangaré” (p. 26); “Mas logo em
seguida disse a falsa noiva ao jovem rei...” (loc. cit). “O jovem chamava-se Conradinho, e a
verdadeira noiva tinha que ajudá-lo a pastorear os gansos.”(loc.cit).
Com efeito, como nenhum outro, a narrativa põe frente a frente as noções de falsa e de
legítima noiva. É possível supor que o fato derive de o conto encenar, como argutamente
observaram os irmãos Grimm, a realeza transmitida pelos ancestrais. De fato, noivado e
conseqüente casamento entre clãs da nobreza encontram, na simbologia do lenço, o
testemunho do direito adquirido hereditariamente – e, na contraposição de quem o usurpa,
ostenta-se a imobilidade social.
Entre o último conto e os dois primeiros, a frágil distância que separa dois sentimentos
cruciais da civilização, a cobiça e a inveja, fundadas na literatura que sobre eles se
edificou4. Dela faz parte a próxima narrativa deste percurso.
3.4 – A falsa Genevra
Cumpre agora deter-se sobre o motivo em outra narrativa, cujos traços remontam ao
período medieval. Conforme logo se verificará, o episódio de “A Falsa Genevra” apresenta
traços em comum com os contos abordados, mas também, ver-se-á, diferenças.
Integra o Lancelot do Lac, embora também esteja presente, com diferenças, na Vulgata
Arturiana, mais especificamente no Livre de Lancelot del Lac (Furtado : 2003) e constitui
portanto parte importante da matéria da Bretanha.5
A respeito desta cumpre notar certos aspectos que a distanciam dos contos dos Grimm.
A matéria da Bretanha vem emoldurada pela história do roman, o que marca o início de
uma sorte de escrita denunciadora de seu caráter ficcional. Conforme nota Cirlot (1987), o
1
Trad. nossa da versão de 1815 (Grimm, 1999, 356)
No conhecido conto tradicional brasileiro da "Moura Torta", do tipo Aa 408, a impostora é "uma escrava negra, cega de
um olho" (Cascudo : 2002).
3
V. por exemplo “ Die weisse und die schwarze Braut” (“A noiva branca e a preta”), que apresenta o mesmo tema. A noiva é
aqui também substituída pela meia-irmã (v. 1857).
4
Emprega-se o termo fundamental em referência às narrativas sobre as quais se erigiu a cultura judaico-cristã
5
Como esclarece o tradutor, a Vulgata Arturiana provém de autor anônimo, tendo sido escrita, acredita-se, entre os anos
de 1215 – 1235. (Furtado : 2003; Cirlot : 1987)
2
95
próprio deslocamento do uso do termo indica uma significativa mudança na elaboração e
processo de construção do gênero:
El cámbio semântico del concepto roman es prueba de ello: una primera utilización adverbializada en la
expression mettre em roman (traducir a la lengua românica) fue sustituída por outra sustantivizada,
emprendre um roman, manifestándose asi esa transformación segun lo que el roman dejó de ser
traducción para convertirse em novela.
Com efeito, observa a Autora, a distância que separa as traduções de Wace para o
francês da Historia Regum Britanniae de Geoffrey de Monmouth – feita para ser
apresentada à corte de Leonor de Aquitânia – da obra de Chrétien de Troyes delineia o
progressivo surgimento do ficcional, mesclado às noções de realidade:
En pocos años, el roman que habia nacido a la sombra de la historia, se vio invadido por un plano de
construcción de la realidad absolutamente novedoso: la ficcionalidad. Casi de modo imperceptible, la
figura del rey Arturo tratada de una perspectiva histórica fue absorvida por el plano de la ficción.
Não é pois fortuito que a figura central de boa parte da matéria da Bretanha, o Rei Artur,
situe-se no limiar entre ficção e realidade (Gilberto Mendonça Teles : 2003).
Se tal processo aponta para uma gradual mudança no labor criativo, também atesta uma
modificação significativa na atitude do público receptor. Concebidas inicialmente como
crônicas que dão testemunho da genealogia das casas, forjavam um passado glorioso
voltado a notabilizar os feitos de seus senhores. Eram portanto erigidas sobre a égide do
mecenato (Hauser : 1993) que contratava clérigos ou egressos dos âmbitos eclesiásticos
para integrá-los ao círculo laico cortesão.
Tal inclusão, associada à difusão da prática de tradução dos clássicos latinos ou da
elaboração de crônicas, prepararam o terreno para a transformação do gênero.
E é pois nesse sentido que será examinado o episódio que faz parte do Lancelot do Lac.
A história relata as aventuras desencadeadas após a chegada à corte do Rei Artur de
impostora que se intitula a verdadeira Genevra, afirmando haver sido raptada do leito e
substituída por outra dama, aquela que injustamente trazia a coroa.
Percebe-se pois na argúcia da impostora o feito idêntico ao que se leu nas versões de
1857 dos contos de Grimm. No entanto, a aparência não deve iludir e logo será objeto de
análise. Por enquanto, o foco incidirá sobre as coincidências.
A narrativa abre sinalizando dois espaços – um público e outro privado. Na corte, o rei,
sentado enquanto faz suas refeições, recebe o estranho mensageiro:
Um dia, sentava-se o rei à mesa para o desjejum. Ao final da refeição, entrou uma donzela muito
formosa, acompanhada de um cavaleiro de idade avançada, de aparência envelhecida e cabeça branca.
Apresentaram-se ambos diante do rei Artur, e o cavaleiro falou em voz tão alta que o escutaram por toda
a sala, dizendo ao rei (...). (p. 111)
Se as refeições servem de moldura ao momento de sociabilidade (Régnier-Bohler
1991), a acusação feita reveste a gravidade da denúncia, pois a contamina pelo testemunho
coletivo.
No outro extremo do início da narrativa, o espaço da solidão, por vezes também dos
jogos amorosos ou de divertimentos, o lugar que escapa ao olhar de outrem. Embora possa
configurar-se como sítio seguro e de recolhimento, é anunciada aqui como lugar propício às
96
ciladas, o que não difere do que se leu nos contos abordados. Também lá os quartos
revelam sua face sombria, onde as manobras e vilanias se manifestam:
Mas o leito também pode ser um símbolo da culpa: com efeito, pode ser o lugar das sombras, do crime, o
lugar que marca para sempre a impossibilidade de esclarecer o que realmente se passou ali. (RégnierBohler : 1991, 328)
Tampouco a floresta oferece sítio seguro. São inúmeros os contos de Grimm, além dos
abordados (Hansel e Gretel, Rotkäpchen são apenas os mais célebres) que fazem das suas
sombras espaço de perigo e destruição. Em “A falsa Genevra” mostra-se como sítio
indicado para o rapto do rei, imprudente mas sensível às atrações da caçada. Da floresta à
abadia e dela ao dormitório, a narrativa recupera o papel central dado à esfera privada.
“Com isso dissimulou seus pensamentos enquanto surgia o novo dia (p. 117)”, informa o
narrador.
Lugar portanto de engenhosidades amorosas, de pensamentos secretos, mas também de
calúnias. A sentença destacada, se aponta para esse espaço que serve de elo entre as
narrativas tratadas, pois é nele que ocorre o crime, também começa a revelar o que as
aparta. A dissimulação do pensamento de Genevra, a falsa, mas também do Rei – “e
contudo voltava a lembrar-se daquela que por longo tempo fora sua companheira” (p. 117)
– testemunha o incipiente mas lento surgimento da noção de indivíduo, da qual não temos
traço nos contos coletados e retrabalhados pelos Grimm (são personagens planas,
configurando tipos desprovidos de nomes, Lüthi, 1992).
Tal processo se dá num cenário situado entre a imobilidade social da estrutura feudal e o
lento surgimento de uma classe entre a nobreza hereditária e os servos. (Hauser). A
narrativa de “A falsa Genevra” indica justamente os contratos feitos sob o signo do abismo,
da cobiça e inveja daí decorrentes, e há deles variados testemunhos:
- E sabei bem, falou Bertelai, que, se consentirdes em agir como aconselho, arranjarei para que tenhais o
rei sob o vosso domínio. Mas é preciso que antes me jureis, em nome dos santos, que fareis o que eu
recomendar e não deixareis que me desmascarem.
Ela se disse pronta a jurar:
- Sabei ainda, ajuntou ela, que se fordes capaz de fazer com que o rei Artur me queira tomar, farei de vós
homem de alta posição, coberto de honrarias, por todos os dias de vossa vida. (p. 113)
Outrossim, note-se a súbita mudança de conduta dos vinte cavaleiros que se prontificam,
não sem a ironia do narrador, a honrar e zelar por sua senhora.
No âmbito dos contos dos Grimm, verificou-se no “Gänsemagd” a marca dos laços
sangüíneos e o engenho como forma única de ludibriar o rígido estamento social. Se aqui o
lenço continha as insígnias da legítima nobreza, na “falsa Genevra” serve de signo
notabilizador o anel que seria falsificado.
Contudo, o simulacro de um anel, de um lado, e a imagem forjada de uma noiva real, por
outro, encenam a tênue fronteira que separa as narrativas dos Grimm do episódio do
Lancelot estudado.
A respeito da obra de Chrétien, notou com perspicácia Cirlot (1987) que esta revela a
preparação de terreno fértil sobre o qual germinaria a ficção moderna 1 e o mesmo pode-se
1
Cf. especialmente capítulo Difusión y persistência de la matéria artúrica. A Autora embora se refira especialmente à obra
do escritor que trabalhara para a corte de Marie de Champagne, bem como ao ciclo de Lancelot em prosa da Vulgata,
demonstra as possibilidades abertas pelo gênero ficcional. Bahktin (1990), por sua vez, examina a originalidade do
97
depreender do episódio de “A falsa Genevra”. São vários os sinais desse processo mas aqui
será ressaltada a emblemática substituição da noiva e o que abriga de testemunho do jogo
ficcional.
Viu-se, nas edições enxertadas pelos Grimm, a usurpação do posto de rainha encetada
pelas madrastas e suas filhas. Note-se, ademais, que as recorrentes substituições são
freqüentemente maquinadas por personagem mais idosa – conquanto não seja esta a regra,
v. “Gänsemagd” – que conduz e inicia o jovem nas armadilhas do poder. 1 Não é diferente a
situação encenada na narrativa que faz parte do Lancelot do Lac, uma vez que couberam ao
velho Bertelai as diferentes etapas do plano traçado – da descoberta da linda donzela de
passado desconhecido, da mensagem e fabricação do falso anel, à poção empregada para
que o rei se encantasse pela donzela. E como bem nota seu tradutor (Furtado : 2003), se
esta versão difere da encontrada na Vulgata, na qual a premência pelas leis da
verossimilhança obrigam ao narrador reportar-se à imagem das meias-irmãs para justificar
o engodo, nesta última serve e mostra-se como lógica a maravilha da poção. No que
concerne ainda ao diálogo entre as narrativas dos Grimm e a “Falsa Genevra”, é importante
recordar que foi apenas na edição de 57 que se deu a adaptação da substituição da noiva por
versão mais verossímel ao leitor moderno. Infere-se daí que o episódio tratado reveste-se de
uma proposição na qual as noções de verdade e mentira deslizam de seus campos
semânticos. O que aqui se afirma é corroborado também pela complicação da trama, que,
nesse sentido, difere em larga medida dos contos dos Grimm:
E então aquela – disse ele, apontando a rainha – que se faz chamar de Genevra, foi trazida e os que
haviam confabulado a cilada a deitaram no lugar de minha dama. Voltando-se contra Genevra, levaramna para fora da terra e a aprisionaram em uma abadia (...). Mas, graças a Deus, agora está livre e vos faz
saber que essa Genevra que ali está não tem direito a portar coroa, antes merece morrer
vergonhosamente.
Ao simular a impostura, o trecho aponta para duas direções: de um lado para as
expectativas do seu público, edificada sobre os códigos de punição – merece morrer
vergonhosamente – mas simultaneamente para um corpo de narrativa, a exemplo dos
estudados, edificado sobre a exemplaridade das punições. 2 Mais especificadamente,
significa isso afirmar que, se o enunciado encerra aspectos extratextuais capitais para seus
destinatários, pois funda seu horizonte de expectativas em relação aos acontecimentos
vindouros na narrativa, também volta-se sobre um conjunto de textos nos quais a
descoberta da falsa noiva e a decorrente punição são emblemáticas.
Percebe-se aí o início da dobra. E ela encarna-se na figura da “Falsa Genevra”,
simulacro que se corporifica como tal pela conversão da imagem real, a legítima esposa, em
simulacro de si mesma. Ao invés da eliminação, como nos contos de Grimm, a
superposição de imagens. A fórmula é tão mais genial na medida que não apenas superpõe,
mas antepõe uma face à outra, inserindo uma dúvida fundamental: afinal qual é imagem
verdadeira - o que implica também indagar, afinal o que é verdadeiro, a ficção ou o real? A
advertência de um como se que a peculiariza aponta desde o início da narrativa para os
cronotopo dos romances de cavalaria, as deformações fabulosas do tempo e do espaço, e o comércio que estabelece com
a história ulterior do romance, a exemplo dos românticos, simbolistas, surrealistas e expressionistas.
1
No caso dos Grimm, notou-se ademais a particularidade do substantivo
stiefmutter, cujo campo semântico abriga e
enuncia a ação a ser perpetrada.
2
A respeito das condenações e suplícios praticados e o processo de transformação até seu extermínio nos quadros da
Europa moderna, cf. Vigiar e Punir (Foucault : 1991)
98
sinais de um jogo especular – converter em imagem outra o que aparenta ser real – próprio
do ficcional. (v. Iser : 1996).
Conquanto a matéria histórica não tenha sido suprimida -, e sua importância, já se
afirmou, reside inclusive na conformação dos horizontes de expectativas – a própria
organização do tempo, possível sobretudo a partir da obra de Chrétien (Cirlot : 1987;
Bakhtin : 1990), permite perceber a abertura para um corte radical com o tempo histórico.
Assim, o princípio do episódio abordado – um dia sentava-se o rei à mesa ...- mais do que
outorgar o factual, desliza para um valor de origem, isto é, não desencadeador do relato
histórico, mas do ficcional. Isso torna-se mais cabal na construção do duplo plano de ação,
introduzido pela estratégia do enquanto isso e/ou conjunções adversativas associadas ao
escalonamento de tempos verbais indicadoras da simultaneidade temporal – enquanto isso
discutiam o incidente.... (p. 113); mas a rainha, que ele deixara na Bretanha, nenhuma
disposição tinha (....) (p. 119).
Verifica-se assim que o episódio da “Falsa Genevra” recobre-se de um sentido
impensável na economia dos contos maravilhosos estudados. Se o motivo da falsa noiva
nestes são símbolos que plasmam o pecado movido pela inveja, lá ultrapassa a dimensão
exemplar e utilitária para instaurar o lugar da ficção.
O verbo empregado – ultrapassar – quer, todavia, indicar que, se há um processo de
inovação, ele radica a partir do que excede, mas não o elimina do campo de visão de seus
leitores. O motivo da falsa noiva, portanto, permanece, bem como o tema sobre o qual se
erige.
4 – Conclusão: o motivo da falsa noiva e o tema da inveja
O percurso traçado até agora deteve o olhar sobre as narrativas em busca de traços comuns
e distintivos: algo que permitisse enlaçá-las, mas simultaneamente percebê-las em suas
singularidades. A eleição de um dado motivo permitiu que saltasse à vista um aspecto que
cumpre, pois, de agora em diante perseguir.
Verificou-se que, embora o tema da falsa noiva estivesse efetivamente presente nas duas
edições do Gänsemagd, uma vez que não houve alterações significativas entre uma e outra,
não se pôde afirmar o mesmo em relação ao “Die drei Männlein im Walde”, e menos ainda
ao “Brüderchen und Schwesterchen”. Contudo, se pôde ler seu aparecimento nas versões de
1857 e, de maneira especial, no “A falsa Genevra”. Todavia, há outro tema de larga
trajetória na literatura que enlaça as narrativas em ambas versões, bem como o episódio do
Lancelot. De fato, se lê logo no primeiro parágrafo de “Die drei Männlein im Walde¨”
(1812) que a madrasta “ao ver que sua enteada era linda e que dela todos gostavam, mas
que sua filha era feia, sentiu então inveja, passando a desprezá-la, e a pensar nos meios
para maltratá-la.” (Grimm, 1999 : 87)
Eleita como pecado destruidor (Hortal, 2001 : 68), a inveja faz parte da lista dos pecados
capitais, uma vez que sua maior vileza reside não no desejo de obter o que não lhe pertence,
mas na profunda tristeza gerada pela alegria do outro (Mendonça, 2001). Não é pois
fortuito que o texto de “Brüderchen und Schwesterchen” descreva esta amargura provocada
pela felicidade alheia .
A madrasta, porém, soube da ventura da irmãzinha. Acreditava que a menina há muito
fora devorada pelas feras da floresta e ei-la agora coroada rainha do Reino. A bruxa
zangou-se tanto que só podia pensar nos meios de arruinar sua alegria. (Grimm, 1999 : 82).
99
Cumpre, pois, examinar mais de perto a elaboração desse sentimento nas narrativas
estudadas e para tanto serão úteis as reflexões do psicanalista Renato Mezan. Deve-se, no
entanto, salientar que não se trata de servir-se das narrativas visando explicações
psicanalíticas – pelas mesmas razões apontadas inicialmente, afora ser este estudo de índole
diversa –, mas de recorrer aos instrumentos mais adequados para entender a complexa
organização desse sentimento e facilitar a compreensão de sua configuração nos textos
literários. Estes, portanto, deverão permanecer – espera-se – como ponto de partida e de
chegada deste trabalho.
E para tanto é de bom alvitre principiar pelo texto já citado por Mezan, e com o qual o
Autor desenvolve com argúcia sua tese, mas ao qual daremos rumo um pouco diverso. 1
Trata-se de fragmento do Metamorfoses que aqui será citado na tradução de Bocage
(Ovídio, 2000 : 65):
A gruta da Inveja
É a estância da Inveja em gruta enorme,
Lá nuns profundos vales escondida,
Aonde o Sol não vai, nem vai Favônio.
Reinam ali rigoroso, eterno frio,
De úmidas, grossas névoas sempre abunda.
O monstro vive de vipéreas carnes,
Dos seus tartáreos vícios alimento.
Da morte a palidez lhe está no aspecto,
Magreza, e corrupção nos membros todos;
Olha sempre ao revés; ferrugem torpe
Nos asquerosos dentes lhe negreja;
Vê-se o fel verdejar no peito imundo,
Espumoso veneno a língua verte:
Longa o riso lhe jaz dos negros lábios,
Só se nos mais há pranto há nela riso,
Em não vendo chorar lhe acode o choro:
Não goza de repouso um só momento,
Os cuidados que a roem não sofrem sono:
Mirra-se de pesar, ao ver nos homens
Qualquer bem; rala, e rala-se a maligna,
É verdugo de si, ódio de todos.
Logo nos primeiros versos se lê o desterro da inveja em sítio apartado dos homens e dos
deuses, bem como o veneno que a alimenta. Com efeito, a literatura é pródiga no
testemunho de sua ação destruidora. Pela inveja, germinada na rivalidade entre irmãos,
Caim matou Abel (Gn 4), Jacó roubou do irmão Esaú a primogenitura (Gn 27), José foi
traído e vendido pelos irmãos (Gn 37,11). Os exemplos do Gênesis testemunham, porém,
que muito próxima à inveja está a cobiça, e fartos são os exemplos que oferecem a falsa
Genevra e o engenhoso Bertelai:
1
Não nos cabe investigar hipótese do Autor, para quem há na inveja uma faceta que serve de mecanismo de proteção
contra impulsos narcísicos do Ego Ideal em retornar ao ventre materno.
100
Já a donzela que levava o rei não estava nem um pouco contrariada, antes alegre, acima de todas as que
jamais provaram a felicidade, porque contava ter agora como arranjar para tornar-se a rainha coroada da
1
Bretanha, de vez que tinha o rei em seu poder. (p. 116)
O frágil liame que a separa da cobiça é explicado por Hortal (p. 76):
A cobiça tem uma potência, é produtiva, comporta um desejo e pode até mesmo comportar uma dose de
saúde, se o preço da conquista não implicar no apagamento de princípios éticos fundamentais.
(Mendonça, 2001 : 76)
De fato, o que se lê na “Falsa Genevra”, para além da cobiça que mobiliza o desejo para
obter algo análogo, é a força destruidora voltada a eliminar o possuidor do alvo de desejo.
Em outros termos, o que se lê é a inveja em sua ação de eliminar a alteridade, a imagem
outra consubstanciada na legítima noiva de Artur.
Contudo, alerta ainda o poema, a inveja é sinuosa, espia pelas frestas, “olha sempre ao
revés.” Vem associada à visão, como se depreende, observa Mezan, da etimologia da
palavra resultante do latim invidia cujo radical vedere (ved-) é o mesmo presente em
vedere.
O desejo que move um tal olhar secreto e certeiro assemelha-se ao da rapina – apoderarse e simultaneamente furtar, isto é, privar do outro a ventura imaginariamente abrigada no
objeto. Implica isso dizer que aquilo que atrai o olhar do invejoso comporta certos traços
que o tornam únicos. De fato, como alerta Mezan (1987), o objeto anelado contém algo de
indefinido que extrapola seu próprio âmbito. Serve tão-somente de veículo em que se
deposita o anseio.
A meu ver, convém distinguir o que chamei de suporte da inveja do que proponho
denominar objeto da inveja. O objeto da inveja é um objeto imaginário ou fantasmático,
algo que se supõe assegurar ao seu detentor um estado de felicidade e que, se estivesse em
mãos do invejoso, asseguraria a este último uma felicidade igual. O suporte da inveja é uma
coisa empírica que encarna esse objeto imaginário (...)”(123)
Afora as implicações clínicas que a diferenciação entre suporte e objeto possa ter,
interessa aqui marcar o caráter idealizado, para além de sua realidade material, no qual se
aninha a idéia de completude.2
O objeto invejado encarna assim a idéia de que a carência será doravante impossível.
Mais além do cavalo que fala, do lenço com o sangue materno (“Gänsemagd”), das moedas
de ouro jorrando da boca (“Drei Männlein im Walde”), da condição de rainha (“Brüderchen
und Schwesterchen”; “A falsa Genevra”), as narrativas testemunham um desejo de
inesgotável felicidade – o happy end consagrado nos contos de fadas.
Conquanto circunde o objeto da inveja uma áurea fantasmagórica e imaginária,
testemunhada em todas as narrativas investigadas, há também nesse aspecto algo que marca
a fronteira entre os contos de Grimm e as aventuras do Lancelot do Lac. O relato de “A
Falsa Genevra” sugere a indelével marca deixada pela tristeza da inveja, cujos traços nem
as cinzas da fogueira eliminam.
Se a narrativa dos Grimm sinaliza, como no “Brüderchen und Schwesterchen”, a
felicidade eterna – “A perversa madrasta foi queimada viva, e quando o fogo a consumiu, o
1
Cf. também na pág. 113 e passim. “E sabei bem, falou Bertelai, que, se consentirdes em agir como aconselho, arranjarei
para que tenhais o rei sob o vosso domínio".
2
Mezan, a partir de estudo de Melanie Klein, associa a idéia de tal estado à imagem guardada do seio materno.
101
corço transformou-se, e Irmãozinho e Irmãzinha ficaram reunidos e viveram juntos e felizes
toda a vida (Grimm, 1999) - , a do Lancelot atesta os sinais do que não se pode exterminar:
E houve muitos deles que partiram do local antes que o fogo fosse aceso, pois não encontraram coragem
para vê-la morrer. Muito foi a donzela chorada e lamentada.
O feito depois de concretizado não pode mais ser anulado, os traços não se apagam.
Permanece no episódio um lastro de tristeza que faz da heroína entidade mais complexa que
as personagens dos Grimm. Próxima a seus leitores, torna legível um fado que bem poderia
comungar com seu público.
Outrossim, o episódio encena de modo contundente o que há de virulento na inveja. O
final feliz, abrandado como se vê hoje em muitas adaptações dos contos, é impossível na
lógica desse sentimento corrosivo, pois a amargura que lhe é peculiar tem dois
destinatários. Algoz de si e de quem inveja, “não goza de repouso um só momento,/os
cuidados que roem não sofrem sono.”
Também aqui souberam os irmãos examinar a sinuosidade do sentimento, encenando
nas páginas da última versão do conto ”Die drei Männlein im Walde” o destino sombrio da
inveja:
E quando chegou o batizado, indagou à velha presente: “qual castigo deve ser aplicado a aqueles que
arrancam alguém da cama para arremessá-lo na água?” “Nada melhor”, respondeu a velha, “do que
colocar o malfeitor num barril atravessado por pregos e deixá-lo rolar montanha abaixo até a água.”
Disse, pois, o rei: “Acabaste de proferir tua própria sentença” - e ordenou que trouxessem um barril
daquele modo e que lá metessem a velha com sua filha. Então martelaram a tampa, fechando-a bem, e
jogaram o barril morro abaixo, que foi rolando pelo barranco até o rio.
O seu suplício tem formato similar à serpente que morde a própria cauda, consumindo a
si própria em seu veneno. A fórmula "o feitiço volta-se contra o feiticeiro", encontrada,
aliás, em outras narrativas que encenam o mesmo tema e motivo, mais do que admoestar,
explicita o martírio da inveja, pois “é verdugo de si, ódio de todos.”:
E os barões declararam que, portanto, a farão matar segundo o mesmo julgamento que fora imposto à
rainha, pois eram de opinião que ela deveria perecer de igual morte, tendo sido provada culpada desse
mesmo crime, assim como Bertelai e ela haviam reconhecido por suas próprias bocas. Declarou o rei que
isso lhe parecia justo e razoável. (p. 129)
Se algoz de si própria, explica-se que seu veredicto tenha como destinatário quem o
pronuncia. A recorrente imagem, nos contos, bem como em “A falsa Genevra”, de o
invejoso pronunciar sua própria sentença de morte serve como metáfora desta sorte de autocorrosão.
Cumpre agora retornar ao princípio, reler o trajeto traçado, para finalmente concluí-lo.
Partiu-se do exame do motivo da falsa noiva em três contos dos Irmãos Grimm e no
episódio intitulado “A falsa Genevra”, para esquadrinhar sua encenação na primeira e
última edições dos Grimm, e compará-lo com o relato do Lancelot do Lac. Acompanhou o
percurso a compreensão da noção de alteridade como centro gerador do texto literário que,
verificada nas narrativas abordadas, permite inseri-las neste vasto domínio. Por outro lado,
o procedimento possibilitou enxergar a imbricação entre inveja e a usurpação do lugar da
noiva, constituindo a primeira tema gerador do segundo. Com base ainda nas reflexões de
102
Mezan, calcadas em textos sobre os quais erigiu-se a cultura ocidental, enfocou-se o
destacado lugar ocupado pela inveja como tema central da civilização judaico-cristã,
estabelecendo-se, assim, possível elo que explique a permanência das narrativas dos
Grimm, bem como o relato retirado da matéria da Bretanha.
Mas isso, é claro, não passa de uma versão, pois como lembra sabiamente D. Benta:
“Os escritores o que fazem é fixar as suas versões, isto é, o modo como eles entendem que as histórias
devem ser contadas.”
Certamente há outras maneiras de contar este mesmo enredo. Esta foi uma delas.
Referências Bibliográficas
Brüder Grimm. (1996) Kinder und Hausmärchen. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht.
(Reprodução da edição com anotações manuscritas dos irmãos, do Museu de Brüder
Grimm, Cassel)
__________. (1999). Die drei mänlein im Walde. In Kinder und Hausmärchen. ed. facsímile da 1ª ed. de 1812-15. 2ª ed. Eschborn bei Frankfurt a. Main: Klotz, 86-88.
________ . (1982). Die drei mänlein im Walde. In Kinder und Hausmärchen. Ed.
comemorativa em 03 vol. com Anmerkungen zu den einzelnen Märchen, V. I, Stuttgart :
Philipp Reclamm, 91-97.
______________. (2000).Os três homenzinhos do bosque . In: Contos de Grimm. Trad.
David Jardim Jr. Belo Horizonte /Rio de Janeiro: Itatiaia, 505-510.
_______(1999).Gänsemagd. In Kinder und Hausmärchen. ed. fac-símile da 1ª ed. de 181215. 2ª ed. Eschborn bei Frankfurt a. Main: Klotz, 355-361.
_____. (1999).Gänsemagd. In Kinder und Hausmärchen Ed. comemorativa em 03 vol. com
Anmerkungen zu den einzelnen Märchen, Stuttgart : Philipp Reclamm, V. II, 24-30.
___________. (2000). A moça dos gansos. In: Contos de Grimm. Trad. David Jardim Jr.
Belo Horizonte /Rio de Janeiro: Itatiaia, 187-193.
_________. (1999). Brüderchen und Schwesterchen. In Kinder und Hausmärchen. ed. facsímile da 1ª ed. de 1812-15. 2ª ed. Eschborn bei Frankfurt a. Main: Klotz, 81-86.
__________ (1999). Brüderchen und Schwesterchen. In Kinder und Hausmärchen. Ed.
comemorativa em 03 vol. com Anmerkungen zu den einzelnen Märchen, V. I, Stuttgart :
Philipp Reclamm, 79-86.
______________. (2000). O irmão e a irmã. In: Contos de Grimm. Trad. David Jardim Jr.
Belo Horizonte /Rio de Janeiro: Itatiaia, 29-36.
103
____________. (1960). Deutsches Wörtebuch. Leipzig: S. Hirzel.
Freud, Sigmund . (1996). O estranho. In Obras completas, vol. XVII, Rio de Janeiro:
Imago, 235-273.
Aarne, Antti. (1910). Verzeichnis der Märchentypen.. Helsinki: Druckerei der finischen
Literaturgesellschaft.
__________. (1987). The types of the folktale: Translated and Enlarged by Stith Thompson.
Helsinki: Suomalainen Tiedeakatemia.
Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do rei Artur e seus Cavaleiros. (2003)
Trad. e seleção de Antonio L. Furtado. Petrópolis, Vozes [versão preliminar].
Bakhtin, Mikhail. (1990) Questões de literatura e de estética. 2ª ed. Trad. de Aurora
Fornoni Bernardini et allii. São Paulo : Hucitec.
Bettelheim, Bruno. (1980). A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Bravo, Victor. (1985). Los poderes de la ficicón. Caracas: Monte Ávila.
Brunel, P.; Pichois, C.; Rousseau, A-M. (1990) . Que é literatura comparada. São Paulo:
Perspectiva.
Carvalhal, Tania Franco. (1993). comparada e teoria literária: intertextualidade e
comunidades inter-literáris. In Tempo Brasileiro, 114-115, 29-37.
Cascudo, Luis da Câmara. (2002). Contos tradicionais do Brasil. 18ª ed. Rio de Janeiro :
Ediouro.
Coelho, Nelly Novaes (1982), A Literatura Infantil: História, Teoria, Análise: das Origens
Orientais ao Brasil de Hoje. 2ª ed. São Paulo: Quíron/Global.
Cirlot, Victoria. (1987) La novela arturica: orígenes de la fición en la cultura europea.
Barcelona: Montesinos.
Darnton, Robert. (1987). Los campesinos cuentan cuentos. In: La gran matanza de gatos y
otros episódios en la historia de la cultura francesa. México: Fondo de cultura
econômica.
Duden Deutsches Universalwörterbuch. (1989). 2ª ed. Mannheim : Wien.
Fromm, Erich. (1981). Märchen, Mythen, Träume. Reinbeck bei Hamburg: Rowohlt.
Foucault, Michel. (1991). Vigiar e punir. 8ª ed. Trad. De Ligia M. Pondé Vassalo de
Surveiller et punir. Petrópolis, Vozes
104
Furtado, Antonio L. (2001). Formação de uma alegoria na Demanda do Santo Graal.
Palavra, 7, 56-67.
Goff, Jacques Le. (1994). O imaginário medieval. Trad. de Manuel Ruas de L’imaginaire
médiéval. Lisboa: Estampa.
Hauser, Arnold. ( 1994) Historia social de la literatura y del arte. 23ª ed. Trad. de A Tovar
e Varas-Reyes para o espanhol, de The Social History of Art. Barcelona: Labor, II v., V.
I.
Hetmann, Frederik. (1982). Traumgesicht und Zauberspur. Frankfurt a. Main: Fischer.
Hortal, Jesus. (2001) Inveja. In Yunes, Eliana e Bingener, Maria Clara Lucchetti. (org).
Pecados. Rio de Janeiro :PUC-Rio; São Paulo :Loyola, 68-71.
Köbler, Gerhard (org.) (1993). Wörtebuch des althochdeutschen Sprachschatzes. München:
Paderborn.
Larrosa, Jorge. (1996). La experinecia de la lectura. 2 ed. Barcelona: Laertes.
Lobato, José Bento Monteiro.(1960). Histórias de Tia Nastácia. 11ª ed. São Paulo:
Brasiliense.
Lüthi, Max. (1992). Das europäische Volksmärchen. Tübingen: Francke Verlag.
Mendonça, Terezinha. (2001). In Yunes, Eliana e Bingener, Maria Clara Lucchetti. (org.)
Pecados. Rio de Janeiro :PUC-Rio; São Paulo :Loyola, 75-81.
Mezan, Renato. (1987). A inveja. In Novaes, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São
Paulo: Cia das Letras.
Ovídio. (2000). A gruta da inveja. In Metamorfoses. Trad. de Bocage. São Paulo: Hedra.
Paz, Octavio.(1991). El signo y el carabato..Barcelona : Seix Barral.
Perrault, Charles. (1981) Les Fées. In Contes. Paris : Gallimard, 165-167.
Propp, Valdímir. (1997).. As raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: Martins
Fontes.
__________. (1984). Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense
Universitária.
Reis, Carlos; Lopes, Ana Cristina.(1988). Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo :
Ática.
105
Régnier-Bohler, Danielle. (1990). Ficções. In: História da vida privada, 2: da Europa
feudal à Renascença. São Paulo: Cia das Letras.
Richter, Dieter. (1974). Märchen, Phantasie und soziales Lernen. Berlin: Basis.
Rölleke, Heinz. (1982) Beiträger und Vermittler der Märchen.. In: Brüder Grimm. Kinder
und Hausmärchen. Ed. comemorativa em 03 vol. V. 03 com Anmerkungen zu den
einzelnen Märchen, Stuttgart : Philipp Reclamm, 559-574.
__________. (1985). Wo das Wünschen noch geholfen hat. Bonn: Buvier.
Todorov, Tzvetan. (1975). Introdução à literatura fantástica. Trad. de Maria Clara Correa
Castello do Introduction à la littérature fantastique. São Paulo: Perspectiva.
Yunes, Eliana. (2002) Onde está o outro. In Leituras compartilhadas: Cadernos de Leitura
do Leia Brasil, v. IV.
106
O Eterno Retorno do Cavaleiro ao Reino do Caos:
Apontamentos quanto à leitura das intertextualidades
nas ficções arturianas
Alex Jesus de Souza
Enunciando a tese
Enfeitiçado pelo tempo, o agente do FBI Fox Mulder despertara no mesmo dia da semana.
Ininterruptamente. Às 8h30m o relógio disparara o alarme e Mulder ingressara em mais uma segundafeira. Os cenários, as circunstâncias, os diálogos reprisaram-se com pequenas variações, enfim o
cotidiano fora revisitado obsessivamente. À revelia do protagonista.
Recorro a "Monday", título de um capítulo do seriado norte-americano de televisão Arquivo
X, descrito acima, para operar como esteio deste ensaio, a ser desenvolvido em seguida.
Numa segunda-feira do ano 2543, relatam-se aventuras intergaláticas movidas a capa e
espada. E temperadas com generosas doses de amor cortês. Aprisionada por arquétipos
sedimentados, a produção ficcional contemporânea experimenta novas roupagens estéticas.
Contudo, as texturas elementares permanecem intactas, depositadas no inconsciente
coletivo da Humanidade.
O caso é que os romances de cavalaria integram o extrato literário permanentemente
revisitado pelos ficcionistas da atualidade. À revelia deles ou não.
Diante desse painel difuso, no qual camadas literárias se intercambiam e se nutrem
indiscriminadamente, os desafios propostos pelas leituras intertextuais potencializam-se.
Com efeito, emprego para apoiar esta tese, ao abordar o tema da intertextualidade
especificamente na literatura arturiana, o mito do Eterno Retorno e a Teoria do Caos, a fim
de articular as ficções arturianas aos arquétipos narrativos reeditados ad eternum nas
histórias contemporâneas. Modelos estes que emulam novas estéticas – no caso, obras de
ficção científica – e orientam a apropriação e transgressão das narrativas, atitudes
praticadas por autores filiados ao pós-modernismo.
Recordo-me de que o professor Antonio Furtado, à ocasião da primeira aula da
disciplina Formação e Transformação da Narrativa, encaminhou aos alunos duas
questões temáticas do curso, a serem respondidas nos nossos últimos encontros. Num dos
tópicos, pedia-se assinalar os aspectos das lendas arturianas passíveis ou não de
incorporação às narrativas contemporâneas.
Creio que este trabalho abrange a pergunta formulada pelo professor, pois a absorção e a
comunicação de textos literários integram o núcleo dos estudos de leituras intertextuais.
Talvez o termo “incorporar” suponha uma relação hierárquica entre as narrativas, um
jogo de forças no qual quem sofre a ação encontra-se subordinado ao sujeito. Em virtude da
horizontalidade das camadas literárias – no caso, as histórias medievais e as ficções
contemporâneas –, sugiro uma comunicação amistosa e nutritiva entre esses universos, com
a prevalência do verbo “dialogar”.
Um diálogo travado numa eterna segunda-feira.
107
Anaxágoras, autor da Teoria do Big Bang
El universo (que otros llaman la Biblioteca) se compone de um número indefinido, y talvez infinito, de
galerias hexagonales, com vastos pozos de ventilación em el medio, cercados por barandas bajísimas.
Desde cualquier hexágono, se ven los pisos inferiores y superiores: interminablemente.
/.../
También sabemos de otra superstición de aquel tiempo: la del Hombre del Libro. En algún anaquel del
algún hexágono (razonaram los hombres) debe existir un libro que sea la cifra y el compendio perfecto de
todos los demás: algún bibliotecario lo há recorrido y és análogo a un dios.
Jorge Luis Borges
Era uma vez um reino muito, muito distante – em cifras cronológicas, cerca de 12 a 15
bilhões de anos atrás –, um ponto no qual estava concentrada toda a matéria existente, e,
por isso mesmo, apresentava uma densidade altíssima. Em um momento qualquer houve
uma explosão, e a matéria concentrada nesse ponto se expandiu e se misturou.
Assim formaram-se todas as coisas, conforme crêem os cientistas partidários do Big
Bang, a teoria mais aceita até agora para descrever a origem e evolução do Universo. E, por
extensão, vítima de refutações e açoites provenientes das chibatas religiosas, filosóficas e,
sobretudo, da autoflagelação do campo científico.
Revisito a notória e polêmica explicação acerca da origem de todas as coisas para
ilustrar as reflexões do fenômeno da intertextualidade nas narrativas medievais. Pois, como
discorre Michel Schneider no ensaio Ladrões de Palavras:
“O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma ‘primeira’ vez, depois sua escritura foi
apagada por algum copista que recobriu a página com um novo texto, e assim por diante. Textos
primeiros inexistem tanto quanto as puras cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixe
vestígios, a invenção nunca tão nova que não se apoie sobre o já-escrito.”
Descrito o conceito de Schneider, a teoria do Big Bang se aprisionaria às redes de
conexões textuais, pois o ineditismo da idéia seria demolido pela Filosofia, que vislumbra
numa passagem do pensador pré-socrático Anaxágoras a descrição da origem de todas as
coisas:
"Todas as coisas estavam juntas, ilimitadas em número e pequenez; pois o pequeno era ilimitado. E
enquanto todas elas estavam juntas, nenhuma delas podia ser reconhecida devido sua pequenez. Pois o ar
e o éter prevaleciam sobre todas as coisas, ambos ilimitados. Pois no conjunto de todas as coisas, estas
são as maiores, tanto em quantidade como em grandeza."
Avancemos na linha temporal do instante da Criação à Idade Média, mais precisamente
na Bretanha Insular – a Grã-Bretanha ou Inglaterra da atualidade –, sucessivamente
ocupada por bretões, saxões e normandos. Segundo observa Furtado em Aventuras da
Távola Redonda,
“... no século XI os bretões ainda dominavam a ilha, mas resistiam com dificuldade cada vez maior aos
ataques dos saxões. Um dos líderes dos bretões teria sido Artur, rei segundo alguns, chefe militar ou
‘senhor da guerra’ segundo outros. Ou talvez pura ficção, na opinião de muitos. Seja como for, depois da
época em que ele teria vivido, os saxões (junto com outros povos de origem germânica, tais como os
anglos e os jutos) acabaram prevalecendo.”
E, mais adiante:
108
“... no século XII, quando os normandos já haviam por sua vez subjugado os saxões, o bretão Geoffrey of
Monmouth propôs em sua História dos Reis da Bretanha a primeira biografia detalhada de Artur, rei sem
dúvida alguma sendo ele. Escrito por Geoffrey em latim (Historia Regum Britanniae), o livro foi logo
traduzido em diversas línguas, destacando-se a tradução francesa em versos de Wace, concluída em 1155,
intitulada Roman de Brut. E outros autores vieram acrescentar novas narrativas sobre o já famoso rei e
seus bravos homens, inaugurando-se assim uma rica tradição literária conhecida como Matéria da
Bretanha.”
A fim de traçar as coordenadas do fenômeno da intertextualidade nas narrativas
arturianas, empreguei a Teoria do Big Bang para investigar o fio que tece o emaranhado de
conexões entre os textos literários, pois creio que, assim como todas as coisas, a expressão
literária principiou num núcleo extremamente denso, atomizado a partir da Grande
Explosão Cósmica.
Cabe a nós identificar esses fragmentos, na esperança de reconstituir a Biblioteca de
Babel imaginada por Borges. Por isso, retrocedi até o instante inicial da formação e
evolução do Universo no presente ensaio para avançar no território da intertextualidade.
O eterno retorno opera.
E o passado visita o futuro
A linguagem poética surge como um diálogo de textos: toda a seqüência se constrói em relação a uma
outra, provinda de um outro corpus, /.../ O livro remete a outros livros e pelo modo de intimar (aplicação
em termos matemáticos), confere a esses livros um novo modo de ser, elaborando assim sua própria
significação.
Julia Kristeva
Visto o extenso corpus das romances de cavalaria, recortemos exemplos de analogias
literárias nas quais contemplamos conexões entre textos arturianos e histórias de As Mil e
Uma Noites de Sherazade:
a) cotejo do episódio de Galvão em Escavalon (Perceval de Chrétien de Troyes) e
o Cavaleiro da Espada (anônimo) com um episódio do Tale Of King Omar Bin
Al-Nu'uman And His Sons Sharrkan And Zau Al-Makan.
b) similitudes do episódio do Leito da Maravilha (Perceval de Chrétien de Troyes)
e a Mula sem Freio (anônimo) com Judar And His Brethren;
c) comparação entre a Mula sem Freio (anônimo) e Julnar The Sea-Born And Her
Son King Badr Basim Of Persia.
Consideremos em mais detalhe o estudo das semelhanças entre trechos do Perceval de
Chrétien de Troyes e da narrativa The Fisherman and the Jini, de As Mil e Uma Noites (em
The Arabian Nights: Yet another source of the Grail stories?):
“Most critics have attempted to understand Chrétien by looking at other works within the limits of the
Celtic and French literature of this period. I did the same but could find no convincing answer to the
questions above (Why is the Mained King also called the Rich Fisher King? What is the relationship of
the many secondary ‘adventures’ to the main Grail theme?). So let us drop such limits, basing ourselves
on the recognized existence of recurring themes in the folk literature of different countries. If we find a
109
similar pattern, its study may help us understand the topic at hand. Is there in some folk literature an
example of a rich fisherman?”
Mais adiante, o artigo citado tenta identificar a disposição da mesma estrutura narrativa
em fragmentos das duas histórias:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
A Voyager starts a trip across the desert.
In a a montainous region, he finds a course of water.
A Fisherman is there, somehow serving as a guide.
Continuing the trip, the Voyager sees a castle built of dark stone.
He enters and stays for some time in a vestibule.
Next, he is attracted to a room where he finds his Host sitting on a couch.
The Host is wearing rich clothes and his head is covered.
The Host apologizes to the Voyager for not being able to get up to salute him.
They seem uncertain about the distance covered by the Voyager to reach the castle.
The Voyager draws a sword.
A Princess passes by bearing a cup; another object is also brought.
The Princess goes into a secluded room.
The Fisherman is said to be very rich.
Its revealed that in the secluded room is hidden a Semidead man, who cannot leave the room and
lives on whatever is brought to him in the cup.
Calca-se o cotejo da espinha dorsal das duas histórias na metodologia desenvolvida por
Vladimir Propp em Morfologia do conto maravilhoso, pedra angular das pesquisas
histórico-genéticas do folclore.
As análises empreendidas por Propp nos fornecem a dimensão da complexidade dos
estudos do folclore:
“No Ocidente predomina até hoje o princípio do simples estudo cronológico, e não do estadial. Um
material da Antigüidade clássica será considerado ali mais antigo do que o material anotado em nossos
dias. No entanto, do ponto de vista estadial, um material da Antigüidade clássica pode refletir um estágio
relativamente tardio do Estado agrícola e, um texto contemporâneo, relações totêmicas muito mais
primevas.”
E prossegue:
“/.../ o caso está em que o folclore, tal como outras manifestações da cultura espiritual, não registra de
imediato e conserva por muito tempo, nas novas condições, as velhas formas. Visto que todo povo
sempre passa por alguns estágios de seu desenvolvimento, e todos eles encontram reflexo no folclore,
depositam-se nele, o folclore de todo povo é sempre poliestadial, e isto constitui uma de suas
características.
O problema da ciência consiste em decompor as camadas deste conglomerado complexo, e deste modo
conhecê-lo e explicá-lo.”
As camadas narrativas contaminaram-se nos sedimentos da memória da Humanidade. O
passado se transmuda na pré-configuração do futuro. Nenhum acontecimento é irreversível
e nenhuma transformação é definitiva. Em certo sentido, pode-se dizer que nada novo se
produz no mundo, pois tudo não é mais que a repetição dos mesmos arquétipos primordiais.
No caso deste estudo, nos restringiremos aos arquétipos fincados nos romances de
cavalaria, os quais emulam novas produções estéticas na cinematografia e nas letras.
110
Os modelos cimentados nas narrativas medievais nos obrigam a palmilhar trilhas por
meio de diferentes concepções temporais. Visitemos, então, O Mito do Eterno Retorno,
conforme Mircea Eliade:
“Así como los griegos, en el mito del eterno retorno, buscaban satisfacer su sed metafísica de lo ‘óntico’
y lo estático (pues, desde el punto de vista de lo infinito, el devenir de las cosas que vuelven sin cesar en
el mismo estado es por consiguiente implícitamente anulado y hasta puede afirmarse que ‘el mundo
queda en su lugar’), del mismo modo el ‘primitivo’, al conferir al tiempo una dirección cíclica, anula su
irreversibilidad.”
O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel afirmava que a natureza das coisas se
repete ao infinito e que “não havia nada de novo sob o sol”. Todavia, a repetição conserva
um sentido: conferir uma “realidade” aos acontecimentos, que se reeditam por imitarem um
Acontecimento Exemplar.
O efeito-borboleta
Os Acontecimentos Exemplares – amor cortês, lealdade, generosidade... – mencionados no
ciclo arturiano se estendem à estética da modernidade, fato que ressoa no labirinto proposto
pela ficção de Borges, na qual textos literários se refletem e se intercambiam num jogo de
espelhos infinito. A atmosfera exala um odor de desorganização, desestabilidade. Eis que
surge para nos auxiliar a idéia de caos.
Desde que surgiu como uma estrutura de idéias articuladas, na década de 60, a teoria do
Caos tem suscitado novos, amplos e formidáveis debates sobre as relações de causa e efeito
que regem o Universo. Durante séculos, os cientistas analisaram os fenômenos
exclusivamente à luz da leis da física clássica.
Nas últimas décadas, no entanto, novas experiências indicaram que pequenos desvios
nas condições iniciais de um processo são capazes de alterá-lo radicalmente com o decorrer
do tempo. Trata-se do já famoso “efeito-borboleta”.
De acordo com essa fórmula-provérbio, o bater de asas do inseto, na Ásia, pode
determinar ou impedir a ocorrência de uma terrível tempestade nos Estados Unidos. Com
base em novos estudos, percebe-se que uma sutil ordem microscópica de relações está
presente onde antes presumia-se que houvesse apenas o caos.
Os eventos atinentes ao universo literário, segundo os conceitos da teoria descrita acima,
também obedecem a esse fantástico sistema anônimo de organização. Especialistas
vinculados às ciências humanas identificam a ação do Caos em revoluções políticas, em
transformações econômicas e na modificação de costumes e regras morais.
Portanto, com o advento da Teoria do Caos, as leituras intertextuais se nutrem de um
aporte científico. Potencializam-se. Os labirintos borgianos se bifurcam em infindáveis
ramos. Sem começo, sem fim.
Os romances de cavalaria, assim, se espraiam na modernidade. Diluem-se nas batalhas
intergaláticas, esgueiram-se nas obras de ficção científica.
A palavra “incorporação”, nesse sentido, é pontuada por novos extratos semânticos. Todos
os textos dispõem-se numa mesma camada literária, híbridos estão, a pureza é demolida. O
que existe são cópias, simulacros, simulações, em eterno diálogo.
111
O futuro, esse eterno passado
Os autores brasileiros, por ocasião da eclosão do movimento modernista, rejeitavam os
modelos tradicionais de narrativas. Mário de Andrade qualificou Macunaíma de rapsódia,
ao passo que Clarice Lispector nomeava a própria criação literária de pulsação.
Numa posição clara de vanguarda artística, a recusa aos formatos tradicionais de
narração pelos escritores modernistas representava uma tentativa de instalar o novo, ao
abolir os modelos literários calcificados.
Transpostos mais de 80 anos da efervescência modernista, e com a crise pela qual
passam os conceitos da modernidade, os autores contemporâneos resgatam os modelos
clássicos e estabelecem diálogos férteis com estes, como nos casos de Borges, Ítalo Calvino
e Ricardo Piglia.
No panorama cinematográfico atual, estúdios empenham milhões de dólares em
produções épicas preenchidas por magia, ideais românticos, amores corteses – O Senhor
dos Anéis e Harry Potter. E cineastas permanecem a vislumbrar o futuro impulsionado a
embates de capa e espada – a saga de Guerra nas Estrelas configura-se no exemplo mais
emblemático do redimensionamento das aventuras medievias.
E não menos emblemática é a constatação do diretor George Lucas, que certa vez numa
entrevista afirmou existirem apenas dez tipos de histórias a serem narradas. Cabe a nós
reinventarmos a forma de contá-las.
Referências Bibliográficas
FURTADO, Antonio L. Artur e Alexandre – Crônica de dois reis. São Paulo: Editora Ática
S. A., 1995.
FURTADO, Antonio L. Aventuras da Távola Redonda – Estórias Medievais do rei Artur e
seus Cavaleiros. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2003.
FURTADO, Antonio L. "The Arabian Nights: Yet Another Source Of The Grail tories?" In
Quondam et Futurus – A Journal of Arthurian Interpretations, 1, 3 1991.
BORGES Jorge Luis. Ficciones. Buenos Aires, Argentina: Emecé Editores, S. A., 1956.
ELIADE, Mircea. El Mito del Eterno Retorno. Buenos Aires, Argentina: Emecé Editores S.
A., 1951.
PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 1984.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de Palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o
pensamento. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.
SILVA, Anderson Luiz da. “Labirintos”: desafios para a leitura das Intertextualidades
(Dissertação de Mestrado – PUC-Rio). Rio de Janeiro, 1998.
112
Caradoc do Braço Inchado
e o Desafio do Auto-conhecimento
Terezinha de Fátima Sanches Bussad
Introdução
Esta pesquisa versará sobre a luta do herói Caradoc pela liberdade e auto-conhecimento,
envolvendo a questão arquetípica da anima, refletida nos conflitos familiares e afetivos, e
manifestada pela linguagem simbólica.
Com o propósito de situar o Feminino na narrativa, será apresentada a mulher no
contexto da Idade Média e o sistema medieval de valores, onde a misoginia não apaga o
papel fundamental que ocupava, de fato, numa sociedade masculina e militar.
No caminho para essa leitura, a seção Um parêntese para a História procura situar o
processo de iniciação de um cavaleiro e a participação efetiva da mulher na sociedade
medieval. O poder transformador da paixão trata do motivo que desencadeou a trama: a
paixão proibida. Os papéis femininos na narrativa apresenta a mulher protagonista e suas
funções. Está explícito na Criação do herói quem foi Caradoc, sua valentia, força e
coragem. Em O trágico destino de Caradoc tem-se a abordagem da vingança dos pais e o
sofrimento, que levam ao Processo de individuação e à busca do auto-conhecimento,
analisando a trajetória do herói para libertar-se e enfrentar uma nova vida, já senhor de si.
Um parêntese para a História
A título de fundamentar as considerações teóricas desta pesquisa, relata-se, a seguir,
informações históricas sobre a iniciação de um cavaleiro e sobre o decisivo papel da
mulher no plano afetivo, familiar, político, social e cultural no sistema medieval de valores.
A sociedade na Idade Média era organizada por homens educados para o combate, via
de regra misóginos, e por clérigos celibatários, portanto, masculina e militar. No plano
afetivo, o futuro cavaleiro sempre mantinha fortes laços com a mãe, ainda que afastado dela
desde criança para servir a um senhor e fazer seu aprendizado das coisas da guerra. O pai
transformava-se num estranho, podendo, mais tarde, ser um rival, quando o filho crescia e
fortalecia os vínculos com seu senhor. Ao contrário, guardava grandes saudades da mãe, de
quem fora separado muito cedo, e a quem muito respeitava e venerava.
No que se refere às família nobres, em muitos casais a mulher tinha origem mais
elevada, o que levava a um grande mercado matrimonial, pois, no plano político, era
importante casar as filhas para expandir as alianças da família e gerar prole masculina
numerosa. Era importante não deixar de casar os cavaleiros, pois a troca de mulheres entre
os feudos, entre os reinos, criava laços de parentesco e mantinha a paz social. No plano
cultural, a influência delas se acentuava; quando não morriam de parto, sobreviviam aos
maridos, que iam para as guerras ou se envolviam em grandes aventuras. As mulheres
transformavam-se, então, na grande memória familiar, o esteio da nobreza feudal (Duby:
1997).
113
Nos ritos de iniciação que marcam a idade adulta, "o preço de tornar-se homem é a
renúncia ao mundo feminino" (Duby: 1997) – onde está o espaço lúdico da criança e a
presença materna. Freud destaca a importância da permanência da alma de criança no
adulto, para o bem viver. Constituir-se homem significava aceitar essa separação.
Nas cerimônias finais, o jovem cavaleiro, após vigília, orações, confissões e comunhão,
devia trazer sua espada para ser benta pelo sacerdote. O poder da espada tem um duplo
sentido: o destruidor, aplicada contra a injustiça, a maleficência e a ignorância, que a torna
positiva; e o construtor porque estabelece e mantém a paz e a justiça.
Há uma oposição evidente entre os sentimentos de proteção e comunhão, próprios da
maternidade, e o imperativo de separação na iniciação masculina. Subverte-se, assim, a
relação mãe-filho, resultando nos homens um sentimento de temor ao Feminino.
Várias leituras podem ser feitas do fenômeno da iniciação. Mas quer ela exorcise a parte
do feminino que cada jovem traz em si para confirmá-lo na virilidade, quer represente para
o iniciado um segundo nascimento social depois do nascimento biológico, quer marque o
recalque dos desejos proibidos na infância e sua inserção na sociedade com a aceitação de
suas leis e obrigações, a iniciação reafirma sempre uma polaridade fundamental: o feminino
é o infantil e o natural, o masculino é o adulto e o social.
Enquanto as mulheres são excluídas do mundo adulto, sendo confundidas com as
crianças, num espaço em que o Feminino se infantiliza, os homens organizam-se nos papéis
de chefes, guerreiros, caçadores e sacerdotes, produzindo as regras e os valores da cultura e
da sociedade.
O poder transformador da paixão
Numa das genealogias do Amor, Hesíodo descreveu que
... antes de tudo existiu o Abismo; depois a Terra de flancos amplos, assentada firmemente, oferenda
perene a todos os vivos, e o Amor, o mais belo dentre os deuses imortais, aquele que derreia os membros
e que, no peito de todo deus como de todo homem, doma o coração e a vontade prudente.(citado por
Chevalier)
O amor de Eliavrés por Ysaive desencadeou a trama e delineou as atitudes do mago para
satisfazer seus desejos com a mulher amada. As conseqüências dessa paixão determinaram
a luta de nosso herói Caradoc para resolver seus conflitos.
A natureza mágica da narrativa transparece na construção da trama inicial, com a
transformação de animais que assumem a aparência de um ser humano – a bela Ysaive.
Eliavrés substituiu a mulher por animais assinalados com símbolos positivos na cultura
pagã. Com os escolhidos – a cadela, a porca e a jumenta – tinha o propósito e o cuidado de
enviar ao rei uma mulher completa, feminina e bela, como Ysaive: que o satisfizesse
sexualmente, conforme o simbolismo da cadela; que tivesse o domínio do conhecimento,
humildade, paciência e coragem como a jumenta – símbolo da paz; e que fosse fértil, como
a porca. Com estas alegorias o mago enganou o rei e realizou seu sonho, e Ysaive cumpriu
o destino das mulheres medievais de sempre serem tomadas para satisfazer o desejo
masculino.
Estudando Georges Duby, no seu livro Damas do século XII – a lembrança das
ancestrais, descobre-se o mundo feminino, o sistema medieval de valores e o lugar nele
114
reservado às mulheres. Nesse universo, segundo Thomas de Chobham, a mulher tem o
poder de "amolecer" o coração de um homem com seus abraços e carícias, tendo como uma
das funções "dar serenidade ao exercício do poder". (Duby: 1997)
Os papéis femininos na narrativa
Centraremos o estudo nas manifestações conflituosas recorrentes da anima, arquétipo da
feminilidade na caracterização de Jung (Silveira), uma vez que podemos considerar como
estáveis as relações de Caradoc com todos os personagens masculinos que circulam na
narrativa. Estas relações são comprovadas nas manifestações de amor, amizade e apreço
que recebeu quando o rei Artur reconheceu sua bravura e sagrou-o cavaleiro precocemente,
chegando a desfalecer ao sentir-se impotente diante do destino do sobrinho amado. E
também se comprovaram em outras ocasiões: quando seu pai biológico contou-lhe a trama
que envolveu seu nascimento; nos carinhos demonstrados pelo rei Caradoc – considerado
seu pai, até então; e na atitude de Cador da Cornualha – seu companheiro de armas, que
saiu à procura do amigo, para ajudá-lo. Entretanto, Caradoc tem um relacionamento sem
afetividade com a mãe.
A mitologia grega apresenta o caráter viperino da mulher ao mostrar Zeus anunciando o
nascimento da primeira mulher – Pandora – simbolizando a origem dos males da
humanidade (cf. Chevalier e Geerbrant, citando Hesíodo, no Dicionário de Símbolos):
Eu presenteei os homens com um mal, e todos, no fundo do coração desejarão cercar de amor sua própria
infelicidade (...) Atena lhe ensinará seus trabalhos, o ofício que tece mil cores; Afrodite de ouro sobre sua
fronte espalhará a graça, o desejo doloroso, as preocupações que despedaçam os membros, enquanto que
um espírito imprudente e um coração artificioso serão, por ordem de Zeus, colocados nela. E, em
seu seio, criará mentiras, palavras enganadoras, coração manhoso, assim como o quer Zeus. Depois
(...) põe nela a palavra e a essa mulher ele dá o nome de Pandora, porque são todos os habitantes do
Olimpo que, com esse presente, fazem da desgraça um presente para os homens.
Duas mulheres circulam nesta lenda desempenhando papéis importantes: a mãe de
Caradoc, Ysaive, e Guignier, a amada que o salvou.
A primeira, que naturalmente deveria exercer seu papel materno, protegendo o filho,
trama contra sua vida. Mais tarde, num momento em que se encontra sem forças para
praticar o mal, talvez com a fraqueza e a doença a tomar-lhe o corpo e o espírito, ressurge
na narrativa para ajudar a salvar o filho. Até então, comportamento desta mãe destoava das
normas sociais da Idade Média, quando o poder da mulher estava relacionado à
maternidade – eram poderosas por meio de seus filhos. A mulher naquele tempo não tinha
utilidade nem verdadeira existência social enquanto não era mãe.
Ao saber a verdade sobre seu pai, Caradoc não deixou de reconhecer sua mãe, mas não a
perdoou, e indicou ao pai o castigo que deveria impor-lhe – aprisionamento na torre do
castelo – mas a rainha transformou a torre em Torre da Promiscuidade. Cabe lembrar que
na Idade Média a torre servia para observar os inimigos, e, quando associada à cultura,
significava a elevação das idéias.
Guignier participa diferentemente na estória: ama, protege, ajuda e salva o herói. Age
como anima médica (Salles), ajudando a curar o mal. Quando aceitou participar do
processo de ajuda para livrar seu amado do sofrimento, sabia que podia receber a
transferência deste mal para seu corpo.
115
A criação do herói
O recém-nascido Caradoc era a alegria do rei. Quando completou quatro anos, puseram-no a estudar;
logo que aprendeu a distinguir as letras e entender o que lia, foi mandado ao tio que se maravilhou com
ele, pois o donzel era de coração gentil e belo corpo. (trad. por Furtado)
O precoce desenvolvimento de Caradoc e sua reconhecida bravura levaram-no a ser
sagrado cavaleiro numa grande festa, organizada pelo tio Artur.
Ser cavaleiro era uma condição de grande requinte, nos termos da cultura daquele
tempo. O cavaleiro era o senhor de sua montaria, o que metaforicamente poderia
representar o domínio de seu próprio eu, o devotamento à dama eleita, o exercício de uma
função como, entre outras, a liderança de uma guerra. Porém o cavaleiro não chegava a ser
um soberano, era um chevalier servant, que se realizava na luta por uma grande causa.
Caradoc passou a ser um paladino. Inserido no grupo de cavaleiros, respeitava as ordens da
cavalaria e identificava-se com os valores coletivos de um cavaleiro.
Analisando a cerimônia do dia de Pentecostes no palácio do rei Artur, percebe-se que o
desafio lançado pelo estranho cavaleiro – um golpe de espada na sua cabeça – não agradou
a nenhum cavaleiro. E no entanto esse costume de cortar cabeças já era comum entre os
celtas. Nas guerras, os gauleses carregavam em seus cavalos as cabeças dos inimigos
vencidos. Chevalier e Geerbrant, no Dicionário dos Símbolos, relatam que a cabeça
abrange a autoridade de governar, de ordenar e instruir, enquanto Platão compara sua forma
esférica a um microcosmo. E, lembrando que uma espada seria usada para a decapitação,
um elemento interessante relacionado também nessa obra é a espada individualizada, com
um nome próprio como se fosse um ser dotado de vida e vontade – tal como a de Carlos
Magno, chamada Joyeuse (Alegre) nas canções de gesta.
Mas Caradoc, para livrar a corte da desonra, aceitou a proposta. Suas demonstrações de
valentia e falta de temor eram condizentes com os ideais da cavalaria, cujos seguidores
viviam em busca de aventuras.
O trágico destino de Caradoc
Quando Eliavrés, já envergonhado com a vingança do rei Caradoc, que obrigou-o a lidar
com os mesmos animais que enviou ao seu leito nupcial, procurou a rainha na torre, foi
surpreendido pela privação de suas carícias até que se consumasse uma vingança contra o
próprio filho. Sob a influência e domínio desta mulher perversa, seduzido por seus encantos
e seus enfeites, Eliavrés arquitetou o violento plano que resultou numa serpente de natureza
maligna enroscada no braço de Caradoc, para sugar seu sangue e alimentar-se de sua carne.
À semelhança do homem, a serpente também distingue-se de todas as espécies de
animais. Quando se faz feminina, enrosca-se, beija, abraça, sufoca, engole, digere e dorme.
A serpente, escreve Bachelard, "é um dos mais importantes arquétipos da alma humana".
No tantrismo, é Kundalini, que, enroscada na base da coluna vertebral sobre o chacra do
estado de sono, "fecha com a boca o canal do pênis". Quando desperta, a serpente sibila e
se enrijece; opera-se, então, a ascensão sucessiva dos chacras; é a subida da libido, a
116
manifestação renovada da vida, em contraste com o propósito do enroscar da serpente no
braço de Caradoc: sugar-lhe a vida.
O processo de individuação e auto-conhecimento O momento da cura
Após ser vitimado pela vingança de seus pais, Caradoc vive um período de profunda
solidão, vai caminhando pelo reino à procura de algum eremitério para se confessar. Um
traço importante a ser abordado é a mudança radical na vida do herói, quando abandona os
valores coletivos da cavalaria e entra num processo de individuação – nisso seguindo de
perto as etapas definidas por Jung (Silveira, Salles) –, na busca de valores interiores para
descobrir a si mesmo.
Desde os primórdios, o homem busca compreender a si, a seu destino e às manifestações
de seu inconsciente, cercado por um mundo de símbolos que, inconscientemente ou não,
utiliza através da linguagem, dos gestos e dos sonhos.
Para ajudar Caradoc, Cador precisaria contar com
Uma donzela tão nobre quanto ele e igualmente bela, e ela o amasse tão lealmente que fizesse tudo que
ele rogasse, essa o poderia curar. Cumpriria que ele fizesse encher duas cubas, uma com leite e a outra
com o mais fino vinagre que pudesse achar. Faria a jovem entrar no leite e ele próprio no vinagre. Ela
mostraria o seio sobre a borda da cuba à serpente felã – e, se a donzela então a conjurasse, por Deus que
não falha nem engana, a largar Caradoc imediatamente, a serpente o deixaria de pronto, pois não poderia
suportar o vinagre. Farejaria a doçura do leite e o odor da carne alva. Abandonando de uma vez o braço
dele, seco e descorado como está, em que nada resta senão nervos e ossos, saltaria para o seio. Assim
poderia ainda sarar aquele que o diabo faz enlanguescer. (trad. por Furtado)
Guignier, sua irmã, atendia a todas as exigências que o mago relatou para a cura. Para
ajudar Caradoc, teria de sofrer por ele, recebendo em seu corpo a serpente destruidora caso
seu irmão não conseguisse matá-la. O plano para salvar Caradoc de sua sina estava repleto
de simbolismo. Seu primeiro relacionamento com o Feminino, na figura da mãe, fora
marcado por grandes conflitos, diferentemente das relações satisfatórias que nosso
personagem manteve com o elemento masculino.
A presença de Guignier nesta estória representa a salvação plena para o herói, pois ele
precisa livrar-se da serpente e buscar o conhecimento de si, para ter o arquétipo da anima
resolvido, e desfrutar de uma existência feliz ao lado de sua amada. No processo de cura,
Guignier exerce o papel maternal, dando-lhe metaforicamente o seio – símbolo da
maternidade, fonte de suavidade e segurança, e associado às imagens de intimidade, de
oferenda, de dádiva, de refúgio – para curá-lo do mal. Aceitando este papel que Caradoc lhe
adjudica, Guignier assumirá o papel arquetípico de mãe.
Colocada dentro de uma cuba com leite, a virgem oferece o seio direito – um convite ao
bote da serpente para desfrutar de sua carne. O seio, marca do feminino e símbolo maior da
mulher, é o elemento diferenciador citado por Freud. Distingue fisiologicamente a mulher
do homem e tem o valor de alimentar uma nova vida continuando a espécie.
Um dos significados simbólicos do leite, entre os celtas, é o caminho de iniciação, o
lugar da imortalidade. Não sendo só bebida, possui virtudes curativas. O leite é o símbolo
lunar, feminino por excelência e está ligado à renovação da primavera.
É muito oportuno pesquisarmos o leite e o seio como símbolos, para compreendermos o
lugar destas alegorias na única oportunidade de salvação para Caradoc, que só irá encontrar
117
a cura arremessando o seu mal em direção à pessoa amada, aquela que para o cavaleiro
encarna a anima, soma de todas as virtudes maternais de que carece.
Ao transferir a imagem materna para a mulher amada, Caradoc espera, ao menos
inconscientemente, um comportamento maternal de Guignier. Quando isto ocorre com um
homem, ele geralmente passa a ter atitudes e exigências pueris, perturbando profundamente
a relação e resultando em complicações amorosas e decepções causadas pelas idealizações.
As manifestações da anima, costumam ocorrer numa primeira fase da vida centrada no
exterior, nos seres reais, nos problemas amorosos, nas ilusões e desilusões experimentadas.
Já na segunda fase, com o esgotamento das primeiras projeções, aflora a mulher dentro do
homem, depois de reprimida durante anos pelo senso comum, por imposição do qual as
expressões emocionais devem ficar restritas ao sexo feminino.
Neste universo simbólico entrará Caradoc para lutar pela cura e continuar a busca de si
mesmo, iniciada após sofrer a vingança dos pais, quando saiu vagando, completamente só,
reencontrando seus valores interiores e despertando para a compreensão dos conflitos da
não-aceitação da anima em sua vida. O encontro com Guignier é a solução analógica para
seus problemas. Mas, para curar-se integralmente, livrando-se da serpente e dos conflitos
de seu inconsciente, necessitará da atuação infalível de Cador, o grande mediador, para que
a vingança não reverta contra Guignier. Cador acreditava estar apto para lidar com a
serpente, mas também estará ameaçado quando o animal deixar o corpo de Caradoc. O
papel de Cador foi acertadamente comparado ao do analista, presidindo, não sem risco para
ele próprio, ao processo de cura; participaria como elemento mediador da trama, onde
mesclam-se o seu mundo, o de Caradoc e o de Guignier, numa relação acima de tudo
humana (Salles).
Esconjurando a vingança dos pais com magia feminina, Caradoc estará libertando-se dos
conflitos inconscientes que o impediam de aceitar e conviver com a anima. O corte na
serpente é uma ruptura na predominância do princípio masculino, para que Caradoc possa
enxergar e compreender o lado feminino e despertar para uma nova vida.
Conclusão
Há quem considere que "o importante hoje não é descobrir, mas recusar o que nós somos
( ... ) É preciso promover novas formas de subjetividade recusando o tipo de
individualidade que nos foi imposto durante muitos séculos". (Foucault)
Se usarmos estes parâmetros para um olhar na trajetória de nosso herói, Caradoc,
verificamos que sua luta pela liberdade e auto-conhecimento resultou no maior domínio de
si próprio, de sua psique e do mundo. Combatendo os vestígios do passado, simbolizado
pela relação doentia com a anima, superou um presente conflitante, revelado na luta para
livrar-se da vingança dos pais e, redimido, pôde buscar um futuro a realizar.
A leitura linear desta lenda permitiu concluir uma trajetória de des-construção da
narrativa para, paulatinamente, desvendar uma estratégia reveladora dos conflitos latentes
do personagem. Com efeito, a partir do momento em que se viu sozinho, o herói passou a
caminhar pelo reino, em trajetória repleta de significado:
"A simbologia da estrada real fala de uma estrada direta, sem possibilidade de desvio. Foi aplicada na
Idade Média e na vida monástica como via régia: aquela que evita os desvios, os atalhos – tudo o que
pode dissipar a alma e reter a atenção " (Chevalier)
118
Levado a distanciar-se dos ideais coletivos da cavalaria ao ser dominado pela peçonha
da serpente, pôde olhar para dentro de si, perceber o caos e descobrir-se multifacetado para,
só então, buscar e aceitar a redenção – somente possível através da mulher amada, que,
simbolicamente, revelou o sentido de sua projeção.
Com esta análise, procuramos encontrar subsídios para uma reflexão sobre os conflitos
inconscientes que fazem parte da composição do ser humano. Dentro deste contexto,
percebemos que a estória é sobre alguém que, levado por seus infortúnios a desvincular-se
de formas externas de dominação, de exploração, tem finalmente de apurar como se liga o
sujeito a ele mesmo.
Enfim, como lembra Foucault, são lutas que "giram em torno da mesma questão: quem
somos nós?"
Bibliografia
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da família. Trad. Priscila V. de Siqueira.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes,
1990.
BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel.
BLOCK, R. Howard. Misoginia Medieval. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1995.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da Mitologia; A Idade da Fábula – Histórias de
deuses e heróis. Trad. David Jardim Júnior. 28ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações
S/A, 2002.
CASCUDO, Luís da Câmara. Anúbis e outros ensaios: mitologia e folclore. 2ª ed. Rio de
Janeiro: FUNARTE/Achiamé; Natal: UFRN, 1993.
CHEVALIER, Jean e GEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad.: Vera da
Costa e Silva, Raul de Sá Barbosa, Angela Melim, Lúcia Melim, 17ª ed. Rio de Janeiro,
José Olympio, 2002.
DUBY, Georges. Damas do século XII – A lembrança das ancestrais. Trad. Maria Lúcia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
______________ História das mulheres na Idade Média. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, 16a ed. Org.: Roberto Machado. Rio de
Janeiro, Graal, 2000.
119
FURTADO, Antonio L. (org. e trad.). Aventuras da Távola Redonda, Petrópolis: Vozes,
2003.
GREENE, Liz. Uma viagem através dos mitos: o significado dos mitos como um guia para
a vida. Trad.: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Org. Lise
Mary Alves de Lima Petrópolis, Petrópolis: Vozes, 1998.
OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: o feminino emergente, 3ª ed. São
Paulo: Brasiliense, 1999.
PRIORE, Mary Del (org.).História das mulheres no Brasil, 5ª ed. São Paulo: Contexto,
2001.
SALLES, C. Alberto. Caradoc Briefbras, o processo de cura em uma lenda do Ciclo
Arturiano. Conferência proferida no VIII Simpósio da AJB. Belo Horizonte, 8 de
Setembro de 2000.
SCLIAR, Moacyr. A Paixão Transformada. 3ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
SILVEIRA, Nise da . JUNG, Vida & Obra, 18ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
120
A Última Nau para Avalon –
D. Sebastião: A história, o mito, a lenda
Claudio de Sá Capuano
Introdução
A história cultural portuguesa guarda histórias muito curiosas que são capazes de encerrar
em si caracteres ao mesmo tempo instigantes e contraditórios. 0 amor de Inês de Castro e
D. Pedro é um dos mais fortes exemplos de narrativa em que todos os ingredientes
romanescos são ali postos a reagir, gerando um produto emblemático da cultura portuguesa.
Dentre os reis daquele país, certamente é D. Sebastião o que teve em torno de si uma
construção de histórias e lendas que, mais que simplesmente retratar ou fixar sua passagem
pela história, produziram uma gama de idéias que permearam o imaginário popular durante
alguns séculos, sendo até hoje alvo do interesse de pesquisadores diversos. Este trabalho
não foge à regra.
0 que me interessa fixar neste texto são alguns aspectos relativos à figura de D.
Sebastião, principalmente no que diz respeito ao seu perfil anacronicamente medieval,
construído não apenas por uma tradição popular, mas também pela literatura e pelo ensaio
português.
Não é de se admirar que dois dos maiores expoentes literários do século XX em
Portugal, Fernando Pessoa e José Saramago, tenham tratado, seja no sentido de reler a
tradição, seja no de criticá-la, da figura do rei que nasceu sob os auspícios de uma lenda
ligada ao messianismo.
Pretendo destacar as semelhanças entre a trajetória de D. Sebastião e a de outros
personagens. Entre eles, Artur, o cavaleiro medieval lendário cujo cicio narrativo circulou
amplamente pela península ibérica, abrindo caminho para a gesta sebástica, numa
manifestação tardia do espírito da aventura medieval num Portugal que entrava nos tempos
modernos.
Aspectos do mito sebástico na Mensagem de Fernando Pessoa
0 poema Mensagem, reunião em três partes de uma sucessão de poemas de tamanho e
forma variáveis, procura traçar, numa visão ao gosto modernista da primeira metade do
século XX, um panorama dos quase dez séculos da história de Portugal. Entretanto, a
estratégia do poeta Fernando Pessoa passa pelo trato da história, sem contudo esquecer o
que há e o que pode ali haver de lenda. Talvez o "Mysterio", assim grafado algumas vezes
nesses versos, seja o mote mais forte para se entrar no espírito do poema. A mensagem em
si nos chega de forma fragmentária e cifrada. 0 próprio nome contém o mesmo número de
letras que há na palavra "Portugal", título primeiro dado ao poema.
Na primeira parte de Mensagem, chamada "Brasão", Pessoa traça um panorama da
primeira parte da história de Portugal, os momentos iniciais de luta pela fixação na terra.
Parte porém da localização idealizada de Portugal na Europa, percorre a idéia de mito
produzindo-lhe uma bela definição poética, para só então abordar as figuras históricas dos
121
primeiros tempos do reino.
No primeiro poema, a Europa aparece humanizada: é uma figura feminina, com cabelos
"romanticos" (romanos) e olhos gregos. Não há qualquer referência direta a Luís de
Camões na Mensagem, mas já ali, no primeiro poema, surge a "mais ocidental praia
lusitana" (e européia).
Europa está deitada, como uma esfinge, com um cotovelo na Itália e outro na Inglaterra,
o rosto a olhar o ocidente:
Fita com olhar sphyngico e fatal,
0 Occidente, futuro do passado
0 rosto que fita é Portugal
1
(Pessoa, 1972:73)
Apresentado o rosto "mysterioso" da Europa, o poeta define o mito, a partir do Odisseu,
mítico fundador de Lisboa:
0 mito é o nada que é tudo.
0 mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo
0 corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
A origem está portanto no mito, na lenda:
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Autorizada pelos poemas iniciais, haverá na Mensagem uma liberdade de tratar história e
lenda, personagens históricos e lendas a eles associados sem qualquer preocupação, uma
vez que a lenda se remete ao que não necessariamente foi, mas, parafraseando os versos
acima, justamente por não ser é que foi existindo e compondo o imaginário que se pretende
retratar na Mensagem.
0 primeiro personagem 'português' propriamente dito que surge na Mensagem é o conde
D. Henrique, francês de nascimento, marido de D. Tareja, pai do primeiro rei D. Afonso
Henriques. Pessoa o coloca no poema como uma espécie de barão assinalado, revestido da
missão de iniciar o processo histórico português. 0 poema a ele dedicado é uma saborosa
referência ao momento em que Artur se encontra com Excalibur:
1
A partir daqui omitirei a referência, de vez que estes poemas podem ser lidos na íntegra no final do texto em anexo.
122
Todo começo é involuntario.
Deus é o agente.
0 heroe a si assiste, vario
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"
Ergueste-a, e fez-se.
0 primeiro homem a lutar no que seria Portugal é portanto um braço que conduz a
espada que, por sua vez, abre o caminho para a formação de Portugal. 0 poema dedicado ao
primeiro rei faz forte referência à sua condição de cavaleiro medieval, modelo de retidão e
força que deve servir de exemplo aos que o sucedem, tendo na espada símbolo de força, da
virilidade necessária à fixação territorial do reino:
Pae, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infieis vençam,
A benção como espada,
A espada como benção!
Uma última referência associada à Matéria da Bretanha presente na primeira parte da
Mensagem é o poema dedicado a D. Filipa de Lencastre, esposa de D. João I, o Mestre de
Avis, o nobre que na revolução de mesmo nome conseguiu, por aclamação popular,
ascender ao trono e manter a integridade do reino. D. Filipa aparece no poema como um
ventre assinaldo, capaz de gerar vários filhos, todos altamente dotados. Pessoa a eleva à
condição de princesa-madrinha de Portugal.
Que ENIGMA havia em teu seio
Que só genios concebia?
Que archanjo teus sonhos veio
Vellar, maternos, um dia?
Volve a sós teu rosto serio,
Princesa do Santo Gral,
Humano ventre do Imperio,
Madrinha de Portugal!
A primeira referência a D. Sebastião aparece ainda na primeira das três partes da
Mensagem. Encontra-se no terceiro grupo de poemas chamado "As quinas", que
representam, na linguagem simbólica do poema, os sacrifícios e os sofrimentos. Ali D.
Sebastião fala em primeira pessoa e se assume como louco por ter desejado grandeza. A
idéia do mito também ali se encontra. A idéia de que, uma vez morto o corpo, sobrevive a
idéia.
É importante observar dois aspectos fundamentais. Apesar de assumi-lo como mito,
123
Pessoa não deixa de reconhecer sua morte enquanto homem, o que não impede que haja a
expectativa de seu retomo. Afinal, o que há de voltar não é o "ser que houve", mas "o que
há". 0 segundo aspecto é o contundente apoio à ousadia de espírito que o poeta enxerga no
rei, o que fica patente no questionamento feito nos três últimos versos do poema:
Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza,
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
0 posicionamento de D. Sebastião como quinto representante das quinas poderia ser lido
como mera representação de sua morte. Entretanto, o sofrimento aponta tanto para o
passado quanto para o futuro. 0 passado de Portugal é todo feito de sacrificios sucessivos
para a conquista do território, fixação do homem na estreita faixa de terra no extremo
ocidente da Península Ibérica. 0 sofrimento é também o próprio da família real portuguesa,
que se extingue, ao menos na sucessão direta, com D. Sebastião. 0 Mestre de Avis e D.
Filipa de Lencastre iniciaram uma dinastia, que teve seu ápice talvez com D. João II, o
príncipe perfeito, um dos maiores entusiastas das conquistas portuguesas de além mar.
Entretanto, talvez devido aos sucessivos casamentos em família, a partir de D. Manuel, o
chamado 'venturoso', a sucessão portuguesa se viu ameaçada e de fato não se concretizou.
Todos os filhos de D. João III (filho de Manuel I) morreram jovens. D. João, pai de D.
Sebastião, sempre teve a saúde fraca, tendo morrido em tomo dos 20 anos, ainda durante a
gestação de D. Sebastião. Sem pai e afastado da mãe logo após o nascimento, o príncipe
que seria rei aos 14 anos foi educado por jesuítas, educação esta que era alvo de grandes
críticas na época. Também sempre doente, o rei parecia acreditar que era o representante de
uma suposta glória portuguesa, ainda maior que a conquista do oriente, e que seria coroada
pela vitória de Portugal contra os infiéis da África, em batalhas em que o próprio rei seria o
primeiro cavaleiro.
Fernando Pessoa repete o procedimento português dos primeiros tempos após a morte de
D. Sebastião de silenciar o dramático perecimento do monarca, mas apresenta, no
penúltimo poema da segunda parte da Mensagem, a partida de D. Sebastião, que coincide
com o início do sebastianismo propriamente dito. Há imagens interessantíssimas ali criadas.
0 título do poema, "A última nau", é sintomático. Aponta o fim de um ciclo de expansão
para o mar. Por outro lado, fixa, na partida pela água, aquele que será a encarnação do mito.
0 mar é concreto, mas a nau aporta numa "ilha indescoberta" que passará a ser a morada
mítica do rei, de onde um dia ele ressurgirá. A imagem é metafórica e alusiva à partida de
Artur para Avalon.
A ausência do rei, a sua falta e a falta de tudo o que se encerrou com o seu
desaparecimento, é o que vai justamente alimentar a alma atlântica do povo português. Um
sol muito particular é posto no início e no final do poema. Inicialmente, o sol é aziago,
presságio dos infortúnios da expedição. Seria paradoxal a ligação entre o sol e a má sorte
124
quando se fala de navegação – afinal bom tempo é sinal de sucesso – não fosse Portugal
lutar nas areias do deserto contra aqueles que tinham no sol um correligionário. Morto o rei,
surge a névoa, que só se dissipará quando o rei retornar, agora sim sob um sol aliado,
trazendo ainda os símbolos do 'Império'.
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ancia e de presago
Mysterio.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a fórma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Ali, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlantica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mysterio.
Surges ao sol em mim, e a nevoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Imperio.
Na terceira e última parte da Mensagem, chamada "O Encoberto", D. Sebastião aparece
não apenas como mito, mas também como possibilidade de representar a reconquista de um
rumo, seja ele na direção do mar ou não. É certamente a mais enigmática das três partes.
No primeiro dos cinco poemas do grupo "Os symbolos", mais uma vez D. Sebastião fala
em primeira pessoa, afirmando que é o que há nele em sonho o que regressará:
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
No terceiro poema-símbolo, o rei é o próprio desejado. Esta é na verdade uma referência
histórica, que se reporta à época da dificil gestação de um herdeiro para Portugal. Quando
D. Sebastião nasce, depois da morte do próprio pai e de todos os seus tios, dá-se a ele a
alcunha de Desejado, aquele que enfim seria capaz de perpetuar a soberania e a glória, no
entender do povo, de Portugal. Porém, sua saúde era frágil e sua trajetória apontou
justamente para outro lado. Uma vez morto, D. Sebastião passa a ser o Desejado que não
há. No poema, sua figura é associada à de um cavaleiro puro, um Galaaz, que irá redimir a
pátria de todos os seus males.
125
Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!
Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucharistia Nova.
Mestre da Paz, ergue teu gladio ungido,
Excalibur do Fim, em geito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!
Ainda na última parte da Mensagem, Fernando Pessoa apresenta todos os elementos que
compuseram o imaginário mítico em torno de D. Sebastião. Estão ali o Bandarra, e a
associação das profecias anteriores ao nascimento do rei e ele próprio, o padre Vieira,
mentor da idéia de um Quinto Império a partir de Portugal, e a saudade (enquanto metáfora
do saudosismo tão caro a Pessoa), e a necessidade da crença no presente.
Alguns aspectos históricos e pensamentos teóricos em torno do mito sebástico
0 surgimento da mitologia em tomo de D. Sebastião tem um suporte histórico que de certa
forma se reporta ao surgimento de lendas medievais, como as relacionadas ao ciclo
arturiano. Os momentos de incerteza política e principalmente os de real ameaça à
soberania ou independência de um povo são momentos propícios para o surgimento de
lendas.
É o que parece ter ocorrido em tomo da figura de Artur. Justamente quando a derrota do
povo bretão era a mais estrondosa, começa a formação dos elementos que desembocariam
na criação das lendas que formariam o ciclo arturiano. (Furtado, 1995:17). 0 mistério que
envolve a figura de Artur é uma marca importante na composição da lenda.
Vimos que o poeta Femando Pessoa, ao reler na Mensagem toda a tradição de seu povo,
parece fazer questão de associar algumas imagens à de D. Sebastião. Está ali o mistério
envolvendo o seu desaparecimento. Pessoa trata também de uma névoa que se abate sobre
Portugal devido ao desaparecimento do rei. Os dois elementos, mistério e névoa, também
fazem parte do imaginário das lendas arturianas. Conhecedor que era da cultura inglesa,
não deve ter sido gratuita a incorporação que Pessoa fez de tais elementos para compor a
sua visão de Portugal e de D. Sebastião.
A névoa passa a ser inclusive objeto de reflexão, 0 rei, muito provavelmente devido à
sua educação religiosa, tinha algumas obstinações, como a guerra em África, na qual ele
próprio seria o primeiro cavaleiro, e cujo objetivo maior era a derrota dos "infiéis". A
ensaísta Maria Alzira Seixo (1999:33), por exemplo, relaciona o nevoeiro à mentalidade
confusa do rei e a uma enevoada obstinação por aquilo que o faria perecer. Consultando a
bibliografia dos que escreveram sobre aquele momento político em Portugal, percebe-se
que as disputas político-religiosas parecem ter criado um verdadeiro clima de equívoco, que
se transformou prontamente em comoção depois da morte do rei.
126
Também os elementos que giram em tomo do mistério associado ao desaparecimento de
D. Sebastião é fruto de construção. No seu trabalho a respeito do Sebastianismo, Lucette
Valensi nos traz aspectos fundamentais para a compreensão do surgimento da mitologia em
torno de D. Sebastião. A primeira marca que a autora aponta como desencadeadora de um
não esclarecimento que propiciaria a formação de uma mitologia em torno do caso foi a
censura às primeiras informações sobre o acontecido em Alcácer-Quibir:
As "noticias da África" tiveram dificuldade em abrir caminho até a capital. De início foram retardadas
pela distância e pela dificuldade das comunicações. De resto, poucos portugueses sobreviveram ao campo
de batalha. Os mortos contavamse aos milhares, assim como os prisioneiros, que permaneceram cativos
no Marrocos, esperando ser resgatados. Apenas um pequeno número - menos de cem / ... / - conseguiu
chegar a Arzila. Dali, de Ceuta e de Tânger, onde se encontrava a frota, o relato dos acontecimentos
chegou a Lisboa, ao que parece, em 12 de agosto. Exerceu-se então uma censura oficial sobre as
palavras e os escritos. (Valensi, 1994:17, grifo meu)
Após a censura dos momentos iniciais, os portugueses, nas palavras de Valensi, "se
enlutam e emparedam no silêncio" e por "mais de vinte anos os relatos impressos da
batalha foram feitos em línguas estrangeiras." (ibidem, p.20). Para isto também colaborou o
fato de que a união com a Espanha era do interesse dos espanhóis, mas era também algo
muito delicado. Lucette afirma então que aos espanhóis não "teria sido muito proveitoso
humilhar os portugueses sublinhando a responsabilidade de Sebastião no desastre de seu
exército". (ibidem, p. 26)
No capítulo inicial de seu estudo sobre o Sebastianismo, Antônio Machado Pires cita a
conhecida obra de 1810, de autoria de José Agostinho de Macedo, intitulada O s
sebastianistas, Reflexões sobre esta ridícula seita. Partindo justamente de um texto que se
constitui numa das primeiras tentativas de desconstruir a validade da crença no mito, o
autor constata que "a crença sebástica, que ainda podia ter alguma desculpa nos anos
seguintes ao início da dominação filipina, é agora motivo de vergonha para os portugueses
do começo do século XIX, fazendo-os passar por estúpidos e semibárbaros aos olhos das
outras nações." (Pires, 1980:13)
Ao longo do século XIX, surgem obras de análise do sebastianismo, que se alternam
entre ferrenhas críticas à crença no mito sebástico e tentativas de compreensão do
Sebastianismo enquanto fenômeno cultural português. Já no século XX, porém, o ensaísta
Antônio Sérgio publicou uma importante crítica ao Sebastianismo. Para ele, D. Sebastião
nada mais foi que um "inexcedível pedaço de asno" e muito o surpreende o tanto de retórica
que "tem ele inspirado à literatura." (Sérgio, 1980:241). Esse texto é na verdade uma crítica
ao estudo de Oliveira Martins, presente na História de Portugal, em que o historiador tenta
extrair do mito sebástico algo de inconsciente, característico da raça. Antônio Sérgio
discorda veemente disto e afirma que
o bandarrismo, longe de ser o produto, ou o efeito, de um espírito rácico português, foi uma das causas
ou factores da imaginação portuguesa da decadência, graças à confluência de ideias alheias, da educação
profetista dos eclesiásticos e de factos históricos supervenientes: fenómeno social e intelectual, portanto,
independente da raça em que se manifestou. (Sérgio, 1980: 24 1)
Acrescenta ainda que as idéias alheias reportam-se ao messianismo hebraico presentes
em trovas do Bandarra. Na citação acima, no entanto, importa-nos a referência a uma
decadência, colocada como efeito que o messianismo profético causou no imaginário
127
português em função de uma situação de decadência. Ao incorporar o medievalismo aos
poemas da Mensagem, Femando Pessoa consegue atenuar as críticas apaixonadas, porque
desloca o que é histórico para o plano mítico. Assim, o que pode parecer ridículo no plano
concreto, quando lido no plano simbólico toma-se expressivo.
Um último aspecto em comum a ser tratado é a idéia de profecia que facilmente se liga
aos ciclos lendários. Na apresentação que faz à História do Futuro de António Vieira,
Maria Leonor Carvalhão Buescu trata da associação do Sebastianismo a ideologias
proféticas. 0 profético tem como função não meramente adivinhar, mas reconhecer, através
de sinais. Trata-se da "revelação e da interrupção correcta e 'iluminada' dos sinais".
(Buescu, 1992:20). Assim, as alegorias presentes nas narrativas de ciclos lendários são rica
fonte simbólica. Pessoa parece estar consciente disto ao transportar a discussão a respeito
de uma crença atribuída ao primitivismo popular para o plano de uma mitologia, que, de
forma inversa, enriquece a reflexão que se pode fazer a respeito do mito.
Últimas aproximações: Artur, Alexandre da Macedônia, Frederico I e D. Sebastião
Ao poema de Pessoa que inspirou o título deste texto, cabe ainda uma última observação.
Uma última nau poderia sugerir a idéia de última viagem. De certa forma sugere mesmo,
uma vez que se pode entender que a viagem de D. Sebastião marcou o fim do ciclo da
expansão territorial portuguesa. Entretanto, se pensarmos em termos simbólicos, a não
menção, no poema, de uma última viagem recobre-se de um significado interessante.
Uma viagem só tem seu sentido completo se, além da ida, realiza-se também o percurso
da volta. Qual é o sentido da Odisséia senão a própria demanda do retorno feita por parte
do Odisseu? Há ali o desenvolvimento do sentimento do nostos, conceito grego que aponta
para a vontade, para a necessidade de voltar, sentimento este que está no étimo da palavra
portuguesa 'nostalgia'. O viajante parte justamente para retornar, uma vez que é no retorno
que a viagem de fato se efetiva.
A viagem sem volta de D. Sebastião gera no imaginário português uma permanente
nostalgia, transformando o rei desaparecido numa constante "presença ausente". A negação
da morte, o não reconhecimento de um cadáver ou a idéia do desaparecimento se
sobrepondo à da própria morte fazem com que se forje a idéia do retorno, que, com o passar
do tempo, torna-se nostálgica e se transforma na promessa de recuperação de algo que se
perdeu.
Esta não é uma imagem incomum, muito menos associada apenas a personagens
históricos. O fim de Artur na lenda, por exemplo, não é exatamente a sua morte, mas a
condução de seu corpo ferido para Avalon para que, depois de muito tempo, seja curado.
Permanece, portanto, a possibilidade de que volte a reinar.
Algo semelhante acontece com outros personagens, entre eles Alexandre da Macedônia.
No livro Artur e Alexandre – crônica de dois reis, a tese desenvolvida pelo autor é a de que
as lendas do ciclo arturiano, a partir da versão de Geoffrey de Monmouth, tenham tido
como fonte textos dos três primeiro séculos da era cristã a respeito de Alexandre. (Furtado,
1995:207) Segundo o autor, a lenda do desaparecimento de Artur é muito semelhante à da
tentativa de desaparecimento de Alexandre, o Grande. Aqui nos interessa destacar apenas a
idéia de que, tendo um rei sobrevivido a um ferimento de morte, torna-se possível a
construção de uma mitologia que nutre a idéia de um retorno redentor.
128
Outro personagem que tem ligado ao seu desaparecimento a construção de uma lenda
semelhante é o chefe medieval germânico Frederico I, o Barbarossa. Apesar de as
condições de sua morte serem historicamente conhecidas – o rei se afogou em um rio
durante uma campanha onde hoje está a Turquia – há a lenda de que ele esteja adormecido
no monte germânico de Kyffhäuser, numa caverna de calcário, esperando o momento do
retorno para restaurar a antiga glória de seu povo.
A visão que o poeta Fernando Pessoa destaca no poema "A última nau" é muito
semelhante às lendas em torno de Alexandre, Artur ou Barbarossa. O rei não morreu,
sequer se feriu. Apenas aportou em uma ilha indescoberta, para dali ressurgir trazendo os
símbolos da glória imperial portuguesa. Esta é uma tradução poética da simples crença do
retorno do rei, nutrida pela crença sebástica ao longo dos séculos que se seguiram à batalha
de Alcácer-Quibir.
Na própria Mensagem, porém, Pessoa trata de racionalizar a lenda. Representa a morte
do corpo, mas a sobrevivência de uma essência, essa sim, porque abstrata, capaz
efetivamente de retornar. É o que se lê nos poemas "Quinta / D. Sebastião, Rei de
Portugal"...
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
... e "Primeiro/D. Sebastião":
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura
É Esse que regressarei.
Da mesma forma, no poema "Quarto / As ilhas afortunadas", o não lugar que serve de
morada para o rei que espera o momento do retorno é fixado pelo poeta:
/.../
São ilhas afortunadas
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando
Cala a voz. e há só o mar.
A semelhança entre o mito construído em torno de D. Sebastião e figuras puramente
lendárias como Artur, ou históricas como Alexandre e Frederico I, é evidente, mas guarda
uma diferença contundente. Todos os personagens são alvo de uma construção em função
de uma história de bravura, de conquistas, de grandes feitos que conseguiram pôr em
prática. No caso de Sebastião, a lenda precede a glória, já que ele é lembrado pelo que
seria, após as grandes conquistas na África, não pelo que já tinha realizado quando partiu.
129
Derradeiros ecos
As lendas em torno de D. Sebastião transcenderam as fronteiras de Portugal devido
obviamente ao processo de colonização iniciado no século XVI. Assim, são bastante
conhecidas no âmbito da literatura brasileira exemplos de textos que tratam do tema. Entre
eles estão o romance Pedra Bonita, de José Lins do Rego, e o tratado de Euclides da Cunha
sobre a Guerra de Canudos: Os Sertões.
O caso de Euclides da Cunha é curioso, pois o jornalista viu no Conselheiro um seguidor
do sebastianismo1, idéia esta que se disseminou em função da popularidade do livro.
Estudos mais recentes, entretanto, tendem a desfazer esta idéia.
No texto "Canudos como cidade iletrada: Euclides na urbs monstruosa", Roberto
Ventura baseia sua reflexão na observação do fato de que Euclides da Cunha atribui a
Antônio Conselheiro profecias com tom apocalíptico que, somadas a fontes orais e aos
cadernos encontrados nas ruínas de Canudos, permitiram-lhe traçar "um perfil sombrio do
líder da comunidade." (Ventura, 1997:89)
Assim, Euclides formou uma visão de Canudos como um movimento sebastianista e
messiânico, pautado na crença do retorno de D. Sebastião, que viria derrotar as forças
republicanas e restaurar a Monarquia. Ventura afirma ainda que Euclides da Cunha, em Os
Sertões, criou "uma imagem de Canudos como cidade iletrada, dominada por fanatismos e
superstições transmitidos de forma oral." (Ventura, 1997:93) Seu raciocínio avança no
sentido de afirmar que o escritor buscou elaborar uma via para a compreensão lógica do
episódio de Canudos:
Construiu um modelo interpretativo para dar conta das relações e conflitos entre a sua própria cultura,
letrada e urbana, e a cultura oral sertaneja, marcada por mitos messiânicos e pela tradição católica.
Procurou dar voz ao outro, objeto de seu discurso e inimigo de suas concepções políticas, ao incorporar
textos destinados à oralização, produzidos segundo uma lógica mítica e religiosa que lhe era estranha.
(ibidem, p. 93)
Entretanto, como observa o próprio Ventura, Euclides da Cunha tendia a desqualificar o
discurso religioso (idem, p. 96), que nada mais era que o discurso do outro, em função de
suas convicções pré-conceituadas.
Isto estaria em profunda dissonância com os manuscrito de Antônio Conselheiro, textos
estes que Euclides da Cunha só conheceu meses antes de morrer, sete anos depois de
publicados Os Sertões:
Os sermões de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, recolhidos em dois volumes manuscritos
a que Euclides não teve acesso, mostram um líder religioso muito diferente do fanático místico ou do
profeta milenarista retratado em Os Sertões. Revelam um sertanejo letrado, capaz de exprimir, de forma
articulada, suas concepções políticas e religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional,
corrente na Igreja do século XIX. (ibidem, p. 90)
O fato é que os dois livros manuscritos que Antonio Conselheiro deixou escritos são
obras em que apenas temas religiosos, em consonância com os preceitos do catolicismo da
época, são tratados. Em apenas um deles trata propriamente de assunto político. Condena a
1
Euclides da Cunha atribui a seguidores de Antonio Conselheiro no movimento de Canudos, "rudes poetas rimando-lhe os
desvarios", versos reveladores de suas "tendências messiânicas" na linha do Sebastianismo, na intenção de atacar a
república que era para ele obra do Anti-Cristo: "D. Sebastião já chegou / ... / Visita nos vem fazer / Nosso rei D. Sebastião. /
Coitado daquele pobre / Que estiver na lei do cão!" (Cunha, 1985:250)
130
República e suas leis seculares, muito provavelmente por ver nelas a negação dos preceitos
religiosos em que se pautavam seus pensamentos.
O tema final tratado por Roberto Ventura nesse texto reporta-se à avaliação das crenças
sebastianistas, messiânicas e milenaristas associados ao Conselheiro e aos sertanejos de
Canudos, como quis fazer crer Euclides da Cunha ao ler as profecias atribuídas a Antônio
Maciel. Hoje, tais idéias não são consensuais entre os historiadores, que não vêem naquela
comunidade predomínio da crença milenarista. Esta seria apenas um dos elementos do
discurso religioso presente na tradição oral que circulou entre os habitantes de Canudos:
Ao contrário dos poemas e profecias citados por Euclides, os sermões de Antônio Conselheiro não
contêm referências a dom Sebastião nem revelam expectativas na vinda de um messias capaz de trazer a
vitória do Bem sobre o Mal ou esperanças milenaristas na criação do paraíso na Terra. (ibidem, p. 97)
Conclui, portanto, o texto, reafirmando a hipótese de que Euclides da Cunha pode ter
supervalorizado a crença sebástica em meio à gente de Antônio Conselheiro.
O fato é que, de uma maneira ou de outra, a crença de que um cavalheiro medieval
(ainda que tardio) poderia retornar de um exílio nebuloso para restaurar o passado
conseguiu circular por quatrocentos anos em Portugal e também no Brasil. Ajudado talvez
por mais uma lenda, a que Euclides da Cunha ajudou a disseminar, D. Sebastião pôde
permanecer no imaginário popular, como se sua nau estivesse pronta para o retorno, para
aportar no lugar de onde saiu, ou mais além, por aqui, talvez.
Bibliografia:
BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. "Apresentação à História do Futuro". In VIEIRA,
António. História do Futuro. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2a ed, 1992.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.
FURTADO, Antonio L. Artur e Alexandre - crônica de dois reis. São Paulo: Ática, 1995.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1972.
PIRES, António Machado. D. Sebastião e o encoberto. 2a ed. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbekian, 1980.
SÉRGIO, António. Breve Interpretação da História de Portugal. Lisboa: Sá da Costa,
1978.
SEIXO, Maria Alzira. "0 essencial sobre José Saramago." In: Lugares da Ficção em José
Saramago. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999.
VALENSI, Lucette. Fábulas da Memória - a batalha de Alcácer-Quibir e o mito do
sebastianismo. Trad. de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1994.
VENTURA, Roberto. "Canudos como cidade iletrada: Euclides na urbs monstruosa ". In
ABDALA Jr., B. & ALEXANDRE, Isabel. Canudos, palavra de Deus, sonho da Terra.
São Paulo: Editora SENAC: Boitempo, 1997.
131
Anexo: Poemas da Mensagem citados no texto
PRIMEIRO / OS CASTELOS
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
Ergueste-a, e fez-se.
QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES
0 cotovelo esquerdo é recuado;
0 direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
Pae, foste cavaleiro.
Hoje a vigilia é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
0 Ocidente, futuro do passado.
0 rosto com que fita é Portugal.
Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infieis vençam,
A benção como espada,
A espada como benção!
PRIMEIRO / ULISSES
SÉTIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE
0 mito é o nada que é tudo.
0 mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo
0 corpo morto de Deus,
Que ENIGMA havia em teu seio
Que só genios concebia?
Que archanjo teus sonhos veio
Vellar, maternos, um dia?
Vivo e desnudo.
Volve a sós teu rosto serio,
Princesa do Santo Gral,
Humano ventre do Imperio,
Madrinha de Portugal!
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE
PORTUGAL
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
Louco, sim, louco, porque quiz grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
E a fecundal-a decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nella ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Todo começo é involuntario.
Deus é o agente.
0 heroe a si assiste, vario
E inconsciente.
132
XI. A ULTIMA NAU
Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucharistia Nova.
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ancia e de presago
Mysterio.
Mestre da Paz, ergue teu gladio ungido,
Excalibur do Fim, em geito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a fórma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
QUARTO / AS ILHAS AFORTUNADAS
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlantica. se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mysterio.
Surges ao sol em mim, e a nevoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Imperio.
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas
São terras sem ter lugar,
PRIMEIRO / D. SEBASTIÃO
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando
Cala a voz e há só o mar.
'Sperai! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
QUINTO / O ENCOBERTO
Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura
É Esse que regressarei.
Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa que é o Cristo.
TERCEIRO / O DESEJADO
Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!
Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.
133

Documentos relacionados