O Brasil dos Agrocombustíveis - Soja e Mamona

Transcrição

O Brasil dos Agrocombustíveis - Soja e Mamona
Apresentação
5
Soja
Capítulo_1 | Biodiesel e hegemonia da Soja
Caso | BR-158 desponta como nova rodovia da soja
Capítulo_2 | Impactos Trabalhistas e Socioeconômicos
Caso| Agricultura familiar do Sul
Capítulo_3 | Impactos Ambientais
Caso | Sojicultor ameaça Parque das Emas, em Goiás
Capítulo_4 | Impactos Fundiários
Caso | Sobreviventes do massacre constroem alternativas em Corumbiara
Capítulo_5 | Impactos sobre Indígenas
Caso | Povo Paresi: os índios sojeiros do MT
Capítulo_6 | Considerações Finais e Recomendações
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Mamona
Apresentação
Capítulo_1 | A Mamona e o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel
Capítulo_2 | Impactos da Mamona e do PNPB na Agricultura Familiar
Caso | A Mamona na Bahia
Capítulo_3 | Considerações Finais e Recomendações
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notas
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Apoio
Colaboraram para a realização deste relatório
Associação Indígena Halitinã
Blog De Olho no Tempo
Comissão Pastoral da Terra (CPT) - Araguaína (TO)
Comissão Pastoral da Terra (CPT) - São Felix do Araguaia (MT)
Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-BA)
Operação Amazônia Nativa (Opan)
Parque Nacional das Emas - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
Prefeitura Municipal de Ribeirão Cascalheira (MT)
Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (Sedam)
O Brasil dos Agrocombustíveis
Índice
soja e mamona
Expediente
O Brasil dos Agrocombustíveis:
Impactos das Lavouras sobre a Terra, o Meio
e a Sociedade - Soja e Mamona 2009
ONG REPÓRTER BRASIL
Coordenação geral
Leonardo Sakamoto
Centro de Monitoramento dos Agrocombustíveis
Autores
Marcel Gomes (Coordenador)
Antonio Biondi
Thaís Brianezi
Verena Glass
Projeto gráfico e Diagramação
Gustavo Monteiro
Fotos
Equipe Repórter Brasil
Arquivo/Ministério dos Transportes (pág. 9)
Leonardo Melgarejo (pág. 15)
Agência Brasil (págs. 16 e 46)
Raimundo Dima Lima/Sedam-RO (pág. 20)
Arquivo Museu do Índio/RJ (pág. 36)
Copyright ONG Repórter Brasil
É permitida a reprodução total ou parcial da publicação, devendo citar fonte de referência.
Impresso no Brasil.
Distribuição gratuita.
Abril de 2009
ISBN ***
Este quarto volume dos relatórios “O Brasil dos
Agrocombustíveis - Impactos das lavouras sobre a terra, o
meio e a sociedade” inaugura o segundo ano de trabalho do
Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis (CMA)
da Repórter Brasil. Dentro do objetivo de monitorar ano a
ano os efeitos causados pelas culturas utilizadas na produção de agroenergia, dos pontos de vista social, ambiental,
fundiário e trabalhista, lançamos nosso primeiro relatório
de atualização, relativo às culturas da soja e da mamona.
Em 2008, o governo brasileiro e o empresariado nacional empreenderam esforços para consolidar o país
como pólo produtor e exportador de agrocombustíveis.
Nossas usinas de esmagamento de oleaginosas e de produção de biodiesel, além de terem se multiplicado, ainda estão
subutilizadas. Não é infundada, portanto, a expectativa de
expansão das lavouras ligadas à produção de agroenergia
nem o temor de que se ampliem também os danos socioambientais decorrentes dela. Esperamos, portanto, que este
relatório seja útil às pessoas, organizações e movimentos
empenhados em implantar alternativas eficazes à exploração predatória.
No processo de elaboração deste relatório, a equipe do CMA-Repórter Brasil percorreu 21.400 quilômetros, por meio aéreo e terrestre. Estivemos em Goiás, estado onde ocorreu o caso mais grave de trabalho escravo na
soja apurado em 2008 e no qual sojicultores desafiam normas ambientais no entorno do Parque Nacional das Emas;
no Sudeste de Rondônia, vimos de perto o avanço da soja
na floresta amazônica; na Bahia, conhecemos agricultores
familiares do Semi-árido que têm na mamona uma fonte
segura de renda; no Mato Grosso, percorremos a Terra
Indígena Utiariti (MT), onde os Paresi plantam soja em
grande escala, e percebemos como a chegada do grão valorizou terras e agravou conflitos fundiários ao longo da
rodovia BR-158; e no Distrito Federal conversamos com
gestores e lideranças do movimento social para entender
melhor as modificações do Programa Nacional de Uso e
Produção de Biodiesel (PNPB).
A seleção desses locais se deu a partir da lógica de complementação às áreas pesquisadas no ano passado, quando visitamos o Rio Grande do Sul, Paraná, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Pará, Ceará,
Bahia, Piauí e Maranhão, além do Paraguai, para a produção do primeiro relatório sobre soja e mamona. A nova
missão a que nos propusemos não é fácil, porque diversos
bancos de dados que subsidiam a análise dos impactos dessas culturas no Brasil não são atualizados anualmente. A
lacuna por informações recentes é maior nos indicadores
relativos à dimensão social.
Felizmente, apesar dessa dificuldade, conseguimos identificar fenômenos interessantes, graças especialmente às pesquisas de campo. Nas viagens deste ano,
mais uma vez, contamos com a solidariedade e hospitalidade de organizações e movimentos parceiros, aos quais somos imensamente gratos. Também agradecemos a todos
os entrevistados, especialistas, líderes sociais, pesquisadores e representantes do governo que nos forneceram dados
valiosos. Por fim, expressamos nossa gratidão aos parceiros que permitiram a viabilização deste projeto: Fundação
Doen, Cordaid e Solidariedad.
O Brasil dos Agrocombustíveis
Apresentação
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soja e mamona
6
Capítulo_1
Biodiesel e Hegemonia
da Soja
Desde o lançamento do primeiro relatório sobre a
soja do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da
ONG Repórter Brasil, em abril de 2008, o mundo agrícola virou de pernas para o ar. A crise financeira internacional, a partir do segundo semestre do ano, reduziu o crédito disponível para os produtores brasileiros, dificultando o
planejamento da safra 2008/09. O resultado é uma colheita estimada em 58,1 milhões1 de toneladas pela Companhia
Nacional de Abastecimento (Conab), volume semelhante
ao período anterior, de 60 milhões de toneladas, segundo
a própria Conab, ou de 57,8 milhões, conforme o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em termos de área, a Conab aponta que a produção da soja na safra 2008/09 manteve-se muito próxima
em relação à anterior, avançando de 21,31 milhões para
21,56 milhões de hectares, ou 1,2% a mais. Os estados em
que a cultura mais avançou em termos percentuais foram o
Piauí (8,0%), Rondônia (6,2%) e Goiás (5,5%). Outros estados com extensões consideráveis de soja apresentaram altas menos expressivas, casos de Minas Gerais (3,7%), Santa Catarina (3,1%), Bahia (2,8%) e São Paulo (1%). Com
relação aos três principais pólos, Mato Grosso, o maior
produtor do país, teve alta de 5,68 milhões para 5,77 milhões de hectares (mais 1,7%), Paraná apresentou alta de
1%, chegando a 4,017 milhões, e o Rio Grande do Sul teve
queda de 1,2%, recuando para 3,789 milhões de hectares.
Outros estados produtores importantes também apresentaram queda na área plantada, como o Maranhão (- 7,3%),
o Tocantins (- 4%) e o Mato Grosso do Sul (-0,9%).
A crise não foi capaz, porém, de conter parte dos
investimentos que já estavam programados no setor do biodiesel no país, que, como se sabe, utiliza majoritariamente a
soja como matéria-prima. Entre os meses de março de 2008
e de 2009, o número de usinas no país saltou de 51 para 65
unidades2, elevando a capacidade nacional de produção em
23%, para quatro bilhões de litros por ano. É um potencial
produtivo praticamente três vezes superior às necessidades
impostas pelas leis no país, que exigem a mistura obrigatória de 3% de biodiesel ao diesel, e que ainda pode ser ampliado em 2009 - a Agência Nacional do Petróleo (ANP),
que regula esse mercado, analisa os pedidos para construção de oito novas usinas e a ampliação de outras quatro.
Tamanho apetite dos investidores pode ser explicado por dois motivos. O primeiro é que o setor empresarial aguarda ainda para o primeiro semestre de 2009 o
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103m3/Mês
A abertura dos
mercados globais é uma
das metas da política externa brasileira. Ao longo
de 2008, o governo do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva firmou uma série
de acordos bilaterais com
outras nações, a fim de
ampliar as possibilidades
de exportação para o Brasil. No mês de novembro,
quando o ambiente internacional já estava tumultuado pela crise financei2008
2009
ra, o governo organizou
Capacidade nominal acumulada
Produção mensal de Biodiesel
autorizada pela ANP
em São Paulo a Conferência Internacional de BioFonte: Fonte: Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)
combustíveis, com a participação de dezenas de
delegações estrangeiras. Na ocasião, Brasil e Estados Uni
Caso parte desses planos se concretize, o Brasil
dos ampliaram os termos do memorando de entendimenpode se tornar um dos principais fornecedores de agroto assinado por ambos em 2007, para contemplar novos
combustíveis para o mercado internacional. E, no caso do
acordos de cooperação científica, permitir projetos de debiodiesel, restam poucas dúvidas de que a soja continusenvolvimento de usinas em nações da América Central,
ará sendo a principal matéria-prima utilizada. Com proCaribe e África, e integrar os sistemas de processamento e
dução, infra-estrutura de distribuição e armazenamento
distribuição de agrocombustíveis de cada país.
em diversas regiões do país, o grão responde por algo entre 70% e 90% do biodiesel fabricado, a depender do mês
Em dezembro, durante a II Cúpula Brasil-União
de apuração. Além disso, o biodiesel de soja tem atendido
Européia, no Rio de Janeiro, a delegação brasileira inmais facilmente às especificações químicas que permitem a
cluiu novamente o tema nos debates e na declaração final
mistura com o diesel de petróleo, ao contrário daquele prodo encontro. Além do presidente Lula, estiveram presenduzido com mamona e gordura animal.
tes o mandatário francês, Nicolas Sarkozy, e o presidente da Comissão Européia, o português José Manuel Durão
Essas vantagens podem fazer com que cada vez
Barroso. Conforme esse documento, a energia renovável é
mais o biodiesel se torne um vetor importante para a exfundamental para o atendimento das necessidades de depansão da soja no país. Atualmente, isso ainda não ocorsenvolvimento sustentável no mundo, pois permitira a
re. A produção de 1,3 bilhão de litros de biodiesel por ano,
substituição da queima de combustíveis fósseis e a redução
necessária para garantir a mistura de 3%, exige o procesdas emissões de gases causadores do efeito estufa.
samento anual de pouco mais de 4,5 milhões de tonela-
O Brasil dos Agrocombustíveis
aumento da mistura obrigatória para 4%.
BRASIL - PRODUÇÃO DE SOJA (EM MILHÕES DE TONELADAS)
Se adotada pelo governo brasileiro, isso
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008**
criaria uma demanda trimestral próxima a
31,3 30,9 32,8 37,9
42,1
51,9 49,5
51,1
52,4 57,8
58,1
450 milhões de litros de biodiesel, acima
* Fonte: IBGE
dos atuais 330 milhões. O outro motivo
**Fonte: Conab
é a expectativa de abertura dos mercados
BRASIL - EXPORTAÇÃO DE SOJA EM GRÃO (EM MILHÕES DE TONELADAS)
globais ao biodiesel, ainda pouco exporta1998
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
do pelo Brasil. Para empresários e o gover9,2
8,9
11,5
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15,9
19,8
19,2 22,4 24,9 23,7 24,4
no brasileiro, os agrocombustíveis são uma
Fonte: Abiove
aposta no futuro pós-crise, quando se espera que os preços do petróBIODIESEL NO BRASIL - EVOLUÇÃO DA PRODUÇÃO E DA CAPACIDADE AUTORIZADA
leo voltem a subir e que as
340
preocupações com as mu330
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danças climáticas incenti310
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vem cada vez mais o uso
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dos agrocombustíveis.
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soja e mamona
BRASIL - MATÉRIAS-PRIMAS USADAS PARA PRODUÇÃO
DE BIODIESEL - FEVEREIRO DE 2009
8
4,96% 2,11%
19,25%
Óleo de Soja
para se afirmar que a produção de agrocombustíveis esteja impactando as lavouras de alimentos no Brasil, país que ainda possui muitas terras produtivas sub-utilizadas (condição que o
governo federal faz questão de propagar).
É difícil mensurar o efeito que a produção dos agrocombustíveis exerce sobre o preGordura Bovina
ço dos alimentos, uma vez que outras variáveis
Óleo de Algodão
ajudam a explicar a valorização dessas commodities, como o aumento do consumo de carne na
Outros Materiais Graxos
China4, que impulsiona a demanda por soja e
73,68%
milho. Segundo análise do Observatório de Políticas Públicas para Agricultura da UniversidaFonte: Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)
de Federal Rural do Rio de Janeiro5, a relação de
causalidade entre maior demanda por agrocombustíveis e alimentos mais caros tende a ser mais evidendas de soja, ainda pouco frente a uma produção de quase
te no médio e longo prazos: se cada vez mais terras forem
60 milhões. Mas, se o cenário internacional se modificar e
ocupadas com lavouras destinadas à indústria do biodiemais e mais nações se abrirem aos agrocombustíveis brasisel, a pressão fundiária aumentará e se refletirá em custos
leiros, é necessário questionar quais impactos a expansão
maiores na produção de alimentos.
das culturas agrícolas trarão ao país. O avanço da soja não
destruirá o Cerrado e a Amazônia? Trabalhadores rurais
A favor do agronegócio da soja, projetos de infracontinuarão submetidos a regimes degradantes no camestrutura têm sido elaborados para permitir a expansão
po? A democratização do acesso a terra continuará sendo
das lavouras. Entre eles, construção de armazéns, asfalum sonho? Os indígenas terão a chance de escolher entre
tamento de rodovias, viabilização de hidrovias e ferrovias,
sua cultura ou a cultura do agronegócio que cada vez mais
além da ampliação de portos. O Centro de Inteligência da
adentra suas terras?
Soja estima que o custo de deslocamento do grão brasilei
ro seja quase oito vezes mais alto do que nos Estados Uni
Até hoje, a equação que equilibra a expansão dos
dos. Na região Centro-Oeste do país, onde se concentram
agrocombustíveis com desenvolvimento sustentável é alvo
50% da produção nacional de soja, o tema da logística de
de disputas. O relatório “The State of Food and Agricultransportes é colocado como central. Além da recuperação
ture 2008 - Biofuels: prospects, risks and opportunities”,
da BR-163 e da hidrovia Araguaia-Tocantins, discute-se a
da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Aliextensão do asfaltamento da BR-158, no Nordeste do Esmentação (FAO), reafirma o risco que o aumento dos pretado do Mato Grosso. Isso permitiria ampliar os embarços das commodities agrícolas representa para a segurança
ques pelo porto de Itaqui, no Maranhão.
alimentar, especialmente nos países que importam grande parte do alimento que consomem, como os africanos.
Esse projeto, porém, poderia causar uma série de
O documento, divulgado em outubro de 2008, inclui a deimpactos sobre o meio ambiente e as populações indígemanda crescente por agrocombustíveis como fator signifinas da região, como pode ser visto no estudo de caso aprecativo para o encarecimento dos produtos agrícolas, mas
sentado a seguir. Ao longo deste relatório, são travadas
destaca que ela pode representar também uma oportunidiscussões acerca de outros impactos ambientais e indígedade de desenvolvimento rural para os países mais pobres,
nas causados pela soja em diversas regiões do Brasil, além
cujos principais beneficiados seriam os pequenos e médios
de problemas trabalhistas, fundiários e socioeconômicos.
agricultores.
Procurou-se sempre ilustrar os temas discutidos com estudos de casos representativos de cada impacto. Não resta
Em sua tese de doutorado, o engenheiro Otávio
dúvida de que a soja gere riquezas para o país. A questão
Cavalett, pesquisador da Faculdade de Engenharia de Alié saber se sua expansão está de acordo com os princípios
mentos da Universidade de Campinas (FEA/Unicamp),
básicos do desenvolvimento sustentável do ponto de viscalculou que são necessários aproximadamente 5,2 m² ao
ta social e ambiental. Pelo que se pode ver neste estudo, a
ano de lavoura de soja para produzir um litro de biodieresposta não é nada animadora.
sel. Na prática, isso significa que foram usados cerca de 62
m² de área agrícola sempre que um caminhoneiro encher
o tanque de seu veículo com 400 litros da mistura de 3%
de biodiesel ao óleo diesel3. De acordo com o pesquisador,
essa área seria suficiente para produzir 400 kg de tomate
ou 14 kg de feijão. Não há elementos conclusivos, porém,
O agronegócio está mudando a dinâmica territorial do Baixo
Araguaia, no Mato Grosso. Ao longo BR-158, as lavouras de soja começam a dominar a paisagem de uma região onde a principal atividade
econômica é a pecuária. As transformações mais marcantes, porém,
não vêm das sacas de grãos colhidas no local, mas da expectativa do
asfaltamento da rodovia, que vai viabilizar o escoamento de toda produção sojicultora do nordeste mato-grossense pelo porto de Itaqui, no
Maranhão, rumo ao mercado consumidor europeu.
Asfalto deve chegar a Alô Brasil
até o fim de 2009
MA
PA
Xinguara
Santana do Araguaia
Confresa
Alô Brasil
MT
VilaTO
Rica
Ribeirão
Cascalheira
A BR-158 atravessa o Brasil de Norte a Sul. Ela começa em
Altamira, no Pará, e termina em Santana do Livramento, no Rio Grande
do Sul, já na fronteira com o Uruguai. Os seus 3.864 quilômetros de
extensão também passam pelos estados do Mato Grosso, Goiás, Mato
Grosso do Sul, São Paulo, Paraná e Santa Catarina. A implantação definitiva da rodovia aconteceu no fim da década de 70, mas sua abertura
teve início em 1944, dentro do projeto de interiorização idealizado pelo
então presidente Getúlio Vargas.
Ligação entre BR-158 e ferrovia Carajás leva soja
até porto de Itaqui (MA).
Dos pouco mais de 800 km da BR-158 no Mato Grosso, cerca
de 400 km ainda são de estrada de terra esburacada, que se tornam
quase intransitáveis no período de chuva. É justamente o trecho que
corta o Baixo Araguaia, entre Ribeirão Cascalheira e Vila Rica. Como
no Pará a rodovia já está pavimentada, o término do asfaltamento no
Estado vizinho possibilitará o transporte da soja até a ferrovia Carajás,
da mineradora Vale, e, por ela, ao porto maranhense. Além de Carajás, a
Vale controla outra ferrovia estratégica para o agronegócio na região: a
Norte-Sul, que, quando concluída, possuirá cerca de 2.000 km, cortando
os estados de Goiás, Maranhão, Pará e Tocantins. Ela tem atualmente
200 Km, entre os municípios maranhenses de Açailândia e Porto Franco; mas, até o fim do ano, deve chegar à cidade de Guaraí, no Tocantins,
completando 571 Km.
Trocando em miúdos: a pavimentação da BR-158 deixou de
ser uma reivindicação apenas de moradores do Baixo Araguaia, como o
borracheiro Edson Lopes, que trabalha há dois anos e meio na beira da
rodovia e, em duas semanas, só havia consertado um pneu de moto. A
pressão pela obra deve ser entendida dentro do modal formado também pelas duas ferrovias, no contexto do projeto do governo federal de
melhorar a competitividade logística da produção de soja no país. Não
por acaso, portanto, a pavimentação da BR-158/MT consta da lista de
obras prioritárias do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).
O interesse em asfaltar a rodovia, porém, não é só do governo federal, que neste ano aprovou uma previsão orçamentária de
R$ 64 milhões para a obra (insuficiente, visto que o custo de 200 Km
ultrapassa R$ 158 milhões, de acordo com o Departamento Nacional de
Infra-Estrutura de Transportes - DNIT). Ele é principalmente do governo
do Mato Grosso, cuja Secretaria de Infra-Estrutura firmou convênio com
o DNIT para executar, com verbas estaduais, a pavimentação dos outros
200 Km. Até o fim do ano, o asfalto que hoje termina em Ribeirão Cascalheira deve chegar a Alô Brasil, povoado à beira da BR, no município
de Bom Jesus do Araguaia. De lá parte um entroncamento da estrada
até Querência, município onde o Grupo André Maggi, da família do governador mato-grossense, produz soja na fazenda Tanguro, que tem 82
mil hectares.
Soja chega antes do asfalto
É justamente em Alô Brasil que a multinacional sojeira Cargill
adaptou dois antigos silos de arroz para armazenamento de soja, com
capacidade para 100 mil sacas cada um. De acordo com o gerente desta
unidade, João Luiz Seresuela, durante a colheita passam por lá 750 mil
sacas de soja. “Em 2010, vamos construir um silo novo, ampliando nossa
capacidade de armazenamento para 800 mil sacas”, revelou o gerente.
Segundo ele, a soja armazenada é hoje escoada pelo porto de Santos,
no estado de São Paulo.
BR-158 (a partir de MT/GO)
Ferrovia Norte-Sul
Ferrovia Carajás
Hidrovia Tocantins - Araguaia
Croqui ilustrativo elaborado por Isis Perdigão (2005)
Gerente da Cargill em Alô Brasil, João Seresuela:
capacidade do silo vai quadruplicar
O Brasil dos Agrocombustíveis
Caso | BR-158 desponta como nova rodovia da soja
9
soja e mamona
10
O gaúcho Saddir Secco é um dos produtores que vendem
soja para a Cargill - e também para a multinacional Bunge. Desde 1982
o Grupo Secco planta soja em Rio Verde, em Goiás, município no qual
também possui lojas da rede FertVerde, revendedora de fertilizantes
químicos e agrotóxicos. Há oito anos, os sete irmãos Secco ampliaram
suas atividades para Ribeirão Cascalheira, onde são proprietários de 6
mil hectares de terra, dos quais 2.800 estão ocupados com lavouras
mecanizadas do ‘grão de ouro’. “Quando chegamos, em 2001, compramos o hectare por R$ 800 a R$ 900. Hoje, ele já vale em média R$ 2
mil”, contou o empresário. Saddir torce para que o asfalto traga consigo a rede elétrica, já que a energia da fazenda vem de duas turbinas
instaladas em um córrego. Mas ele é cauteloso quanto às previsões de
crescimento da produção de soja na região: “A BR-158 é importante, mas
a expansão da área plantada de soja no Baixo Araguaia vai depender
principalmente da relação entre os custos de produção e o valor da
commodity. O investimento para se produzir em áreas degradadas é
muito alto”.
Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) sobre a produção agrícola nos municípios são de
2007, quando Ribeirão Cascalheira tinha 6.500 hectares de soja. Nos
três anos anteriores, a área plantada foi de: 5,5 mil, 15 mil e 9,5 mil,
respectivamente. “Com a alta do preço, a soja foi vista como grande
oportunidade pelos médios proprietários daqui. Mas a valorização do
real frente ao dólar, a queda da produtividade em virtude da chuva
e oscilação de preços no mercado internacional os desestimularam”,
argumentou o assessor de comunicação da prefeitura, Luís Cláudio da
Silva. A lamentação do proprietário do Grupo Secco parece confirmar
essa avaliação: “Nas safras de 2003/2004 e de 2004/2005, para cada
saca de soja que produzimos, tivemos R$ 8 de prejuízo”, contou Saddir.
Saddir passou ao sobrinho Diego a administração
do Grupo Secco no Baixo Araguaia
soja já está consolidada”, afirmou o assessor municipal. Novamente, o
exemplo do Grupo Secco reforça a análise de Luís Cláudio: os quatro
operadores de máquina que estão colhendo soja no Baixo Araguaia foram trazidos de Goiás e quem administra a fazenda é Diego Secco, um
sobrinho de Saddir recém-formado em Agronomia.
O Vale dos Esquecidos
O Baixo Araguaia é conhecido como “Vale dos Esquecidos”.
Dados obtidos em um levantamento da Comissão Pastoral da Terra
(CPT) ajudam a explicar o triste apelido: a unidade do Instituto Brasileiro
de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mais
próxima fica em Barra do Garças, a 800 km da região e, no início de
2008, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente fechou seus escritórios
em Canarana, São Félix do Araguaia e Porto Alegre do Norte. Se, por um
lado, o asfaltamento da BR-158 em uma região com ausência de vários
serviços públicos causa preocupação, por outro pode facilitar justamente a vinda deles para a área. “Nós só passamos a ter juiz e delegados
residentes quando o asfalto chegou até a sede do município, em 2006”,
relatou Luiz Eduardo de Moraes, assessor da Secretaria de Esportes de
Ribeirão Cascalheira.
A história da região não é marcada apenas pelo descaso
governamental, mas especialmente pelas lutas populares, organizadas
em torno da Prelazia de São Felix do Araguaia. Prova disso é o nome
que a BR-158 recebe ao passar na área urbana de Ribeirão Cascalheira:
Avenida Padre João Bosco. Uma homenagem ao religioso morto a tiros
por um policial em 1976, quando tentou interromper o espancamento de
duas agricultoras que estavam presas na delegacia municipal. A polícia
torturava as mulheres para descobrir o paradeiro do agricultor Jovino,
irmão de uma delas e pai de outra. Ele havia assassinado um soldado
pistoleiro (Félix), agindo em legítima defesa: o fazendeiro Abraão Barros
contratara Félix para matar Jovino, porque o agricultor se recusava a
lhe vender o lote onde morava. “Na missa de sétimo dia do Padre João
Bosco, os posseiros destruíram a cadeia e libertaram as duas presas”,
narrou Luiz Soares de Souza, o Luiz Cateto, que era criança quando viu
o corpo do soldado Félix caído na porta da casa de Jovino.
Recentemente, a sociedade civil do Baixo Araguaia passou
a contar com o esforço coordenado de ONGs que já trabalhavam na
região de forma desconexa. Há um ano e meio seis dessas organizações
criaram a Articulação Xingu Araguaia (AXA): a Associação Nossa Senhora da Assunção (Ansa), o Fórum Matogrossense de Meio Ambiente e
Desenvolvimento (Formad), o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o Instituto Socioambiental (ISA), a Associação Terra Viva e
a própria CPT. Juntas, elas desenvolveram uma campanha contra o uso
irracional do fogo na atividade agropecuária.
O pessimismo dos produtores do Baixo Araguaia em relação
à soja parece estar diminuindo. Um passeio entre Ribeirão Cascalheira e
Alô Brasil, no trecho da BR-158 que deve ser asfaltado ainda neste ano,
dá indícios de que o grão de fato vem ocupando o espaço do gado, pelo
menos nas fazendas localizadas nas margens da rodovia. “A soja voltou
a ser a aposta dos médios e grandes produtores. O problema é que ela
não gera empregos no município: os operadores de máquinas e administradores de fazenda são trazidos de outros locais, onde a lavoura de
Assim como a emblemática BR-163 (Cuiabá-Santarém), a
BR-158 também é chamada de “Estrada da Soja”. A mesma empresa
(Ecoplan Engenharia) fez o estudo e o relatório de impacto ambiental
(EIA-RIMA) do asfaltamento das duas rodovias. Mas, enquanto que na
Cuiabá-Santarém houve a criação de um grupo interministerial responsável pela gestão do território influenciado pela rodovia, na BR-158 não
há sinais do mesmo zelo. Até a transparência, nesse caso, tem sido
negligenciada: apesar dos inúmeros pedidos feitos à assessoria de comunicação do Ibama por dados detalhados e/ou entrevistas, a Diretoria
de Licenciamento Ambiental do órgão limitou-se a informar que “há dois
trechos com licença prévia e um em análise”.
Conflitos fundiários
Cerca de mil e duzentas famílias que vivem no Projeto de
Assentamento (PA) Bordolândia, em Bom Jesus do Araguaia (MT), no
entorno da BR-158, correm o risco de serem despejadas. Há dois anos,
elas foram cadastradas e assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Mas uma liminar, fruto de um pedido
do Ministério Público Federal, ordena a retirada dos assentados do local,
porque eles estariam desmatando a área sem autorização do Ibama.
O conflito fundiário no PA Bordolândia se insere no contexto de especulação imobiliária potencializado pela expectativa de
asfaltamento da BR-158. O lote de 10 alqueires em que a assentada
Sirlene Rodrigues Lobo produz arroz, feijão e milho e cria galinhas,
fica a cerca de um quilômetro da beira da rodovia. Indiferente às
disputas jurídicas, a agricultora torce para que a pavimentação do
trecho próximo à sua lavoura aconteça de fato até o fim do ano, para
facilitar a venda da produção na sede de Ribeirão Cascalheira. Foi
a esperança de conquistar um pedaço de terra que levou Sirlene a
Bom Jesus do Araguaia - mesmo anseio que a fez sair de Rolim de
Moura, em Rondônia, em direção a acampamentos em Aripuanã e,
depois, em Juína, ambos já no Mato Grosso.
Sirlene Lobo torce
pela chegada do asfalto
11
A execução da liminar deveria acontecer no dia 27 de março,
justamente quando a Repórter Brasil esteve no assentamento. Graças à
intervenção de D. Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia do Xingu, e da Procuradoria do INCRA, o prazo para a retirada dos assentados
foi prorrogado por 30 dias.
A assessoria do procurador Mário Lúcio Avelar, autor do
pedido, confirmou a denúncia de desmatamento. Juçara Ramos,
representante da Confederação Nacional das Associações de Servidores do Incra, afirmou que o desmatamento (que já atinge pelo
menos metade dos 50 mil hectares do assentamento) é de responsabilidade dos antigos proprietários da fazenda Bordolândia. Essa
é também a avaliação do advogado Israel Roxo Guimarães, que
assessora os assentados. “O fazendeiro construiu duas estradas
dentro da floresta. Quem quer preservar o cofre, não mostra o
caminho até ele”, argumentou.
Israel Roxo: desmatamento
não é culpa dos assentados
O Incra criou o PA Bordolândia em 2007, ao conseguir junto
ao Supremo Tribunal Federal uma liminar de imissão de posse na fazenda, então considerada improdutiva. Segundo a assessoria de comunicação do órgão, porém, como o processo jurídico sobre a produtividade da
área não chegou ao fim, a desapropriação dela continua em aberto. “A
indenização foi inicialmente calculada em R$ 25 milhões. Hoje a empresa açucareira Santa Rosa está pedindo R$ 150 milhões. É um absurdo: o
valor do hectare passou de R$ 500 para R$ 3 mil”, reclamou Roxo.
O Brasil dos Agrocombustíveis
O trecho da BR-158 no Mato Grosso ainda sem licença prévia
para asfaltamento é o que corta a Terra Indígena Maraiwatsede, invadida por posseiros e, principalmente, grandes fazendeiros. A situação é
tão grave que os 630 indígenas Xavante que vivem lá estão confinados
em uma só aldeia, impedidos de circular com segurança pelos 165 mil
hectares de seu território demarcado e homologado (leia mais em Impactos sobre Indígenas, na página 32). Uma nota do DNIT revelou que
“o trecho [da BR-158] que passa pela aldeia indígena Marawatsede está
em processo de elaboração de projeto para um contorno que passará
em volta da reserva”.
Segundo o levantamento da CPT, no Baixo Araguaia 13 mil
famílias vivem em 56 assentamentos, que somam cerca de um milhão
de hectares. A organização estima que entre 20 a 40% dos lotes estejam passando por um processo de reconcentração fundiária, em que
os assentados estariam vendendo sua terra. Os compradores seriam
comerciantes e médios proprietários ligados ao poder local.
soja e mamona
12
Capítulo_2
Impactos Trabalhistas
e Socioeconômicos
A produção de soja no Brasil é caracterizada por
elevado grau tecnológico, com a quase totalidade da área
colhida mecanicamente. Essa tendência foi acentuada em
2008, como indicam os dados de venda de máquinas agrícolas, que atingiram naquele ano 54.421 unidades, 42% a
mais do que em 2007.
Em 2009, diante da disseminação da crise financeira mundial, as vendas no Brasil devem cair 13,8%, de
acordo com estimativa da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Mas, no médio
prazo e diante da recuperação da economia, a visão hegemônica existente no governo brasileiro e entre empresários do setor - de que o modelo a seguir é o do grande
agronegócio - deve garantir que a comercialização de máquinas agrícolas volte ao normal.
É justamente a opção por esse modelo “modernizador” da agricultura brasileira que explica a redução
gradual do número de trabalhadores nesse setor ao longo dos últimos anos. Segundo o último levantamento da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em
2005 havia 17,8 milhões de trabalhadores rurais no país,
17,1 milhões em 2006 e 16,5 milhões em 2007. Em termos
relativos, o número de trabalhadores na agricultura apresentou uma queda de 19,2% do total da força de trabalho
brasileira em 2006, para 18,2%, em 2007. A produção de
soja, financiada por grandes tradings internacionais e voltada à exportação, é um dos grandes vetores dessa transformação do campo brasileiro.
Entretanto, apesar desse processo de “modernização”, milhares de trabalhadores continuam submetidos
a condições degradantes de trabalho em todos os cantos
do país. Na verdade, muitas vezes o empregado explorado, por vezes até reduzido à condição análoga à de escravo, torna-se funcional aos modelos mais tecnológicos de
produção, ao reduzir os custos referentes ao trabalho em
um empreendimento agrícola. Casos desse tipo costumam
ser encontrados nas áreas de expansão da agropecuária da
Amazônia e do Cerrado. Nessa condição, se não houver algum tipo de repressão e punição a esse empregador que
explora, ele obtém vantagens competitivas no mercado.
No caso da lavoura de soja, chama a atenção o
fato de que ainda são encontrados trabalhadores escravos
pelos grupos de inspeção. Em 2008, sete propriedades
a cana ficou em 1o lugar, com 2.553 libertados, seguida pela
pecuária, com 1.026 libertados. No total, 5.244 trabalhadores escravos foram resgatados no país em 2008.
TRABALHO ESCRAVO NA SOJA E TOTAL DE CASOS - BRASIL
2004
2005
2006
2007
2008
Casos na Total de Casos na Total de Casos na Total de Casos na Total de Casos na Total de
Casos
soja
Casos
soja
soja
Casos
soja
Casos
soja
Casos
DENÚNCIAS REGISTRADAS
14
220
7
278
4
265
4
264
9
280
DENÚNCIAS FISCALIZADAS
6
126
2
161
2
136
1
152
7
214
TRABALHADORES LIBERTADOS
133
3.212
47
4.570
0
3.666
9
5.968
125
5.244
Fonte: Comissão Pastoral da Terra (CPT)
De acordo com a CPT, o caso mais grave de trabalho escravo na soja apurado em 2008 ocorreu na fazenda Cerro
Largo, localizada em Cristalina, Goiás, propriedade de Ari
Luiz Langer. Lá, o grupo móvel de fiscalização encontrou
78 trabalhadores escravos no mês de maio. Langer já pagou R$ 128 mil em indenizações aos trabalhadores. Também houve flagrante de trabalho escravo em uma fazenda
no Maranhão, na cidade de Balsas, em duas áreas de soja
no Piauí (cidades de Antônio Almeida e Monte Alegre), em
Fazenda
São Francisco
Cerro Largo
Carajá
Curitiba
Califórnia
Borba
uma na Bahia (em São Desidério) e em uma no Mato Grosso (em Ipiranga do Norte). A CPT recebeu ainda denúncias de trabalho escravo em outra fazenda no município de
Balsas e em uma propriedade localizada em Dom Eliseu,
no Pará, mas não houve fiscalização. Em alguns dos casos
comprovados de trabalho escravo, os trabalhadores não
estavam diretamente envolvidos no plantio de soja, mas
sim na preparação do terreno para o cultivo, por exemplo,
catando raízes.
SOJA - CASOS DE TRABALHO ESCRAVO FLAGRADOS EM 2008
Proprietário
Município
UF Data da inspeção Trabalhadores libertados
Lauro Tramontini
Ari Luiz Langer
João Dilmar Meller Domenighi
Sadi Zanatta CPF: 307.640.330-34
Wilson Luis de Melo
Airton Rost de Borba
São Desidério
Cristalina
Balsas
Ipiranga do Norte
Antônio Almeida
Monte Alegre
BA
GO
MA
MT
PI
PI
1/8/08
20/5/08
13/10/08
10/9/08
15/11/08
24/11/08
7
78
9
6
8
17
Indenização já paga
R$ 6.052,64
R$ 128.932,31
R$ 7.254,18
R$ 12.688,64
R$ 13.431,84
R$ 16.460,55
Fonte: Comissão Pastoral da Terra/Abril de 2009
Tomado isoladamente, o número de 125 libertados em áreas de soja no ano passado é pequeno frente ao
total de 5.244 trabalhadores. Mas sempre é preciso ressaltar que o trabalho escravo é apenas o último estágio da
superexploração do trabalho que, infelizmente, ainda existe no país. É a baixa qualidade das condições de emprego, principalmente no campo, que rebaixa o país a um dos
líderes mundiais em acidentes de trabalho. O número de
empregados acidentados durante o cultivo da soja cresceu
de 286 casos, em 2006, para 485, em 2007, de acordo com
o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Os dados
referentes a 2008 ainda não foram divulgados. Por conta
das subnotificações, estima-se que o número de acidentes
seja ainda maior.
Além disso, o intenso uso de agrotóxicos nas
lavouras de soja também causa problemas para o trabalhador. De acordo com os últimos dados divulgados pelo
Sistema Nacional de Informações Tóxico-farmacológicas
(Sinitox), 6.297 pessoas foram contaminadas por agrotóxicos em 2006, e 186 morreram. Em 2005, haviam sido
contaminadas 6.017 pessoas, com 199 mortes. Não é pos-
sível calcular quais desses casos referem-se a problemas
com agrotóxicos usados na soja, já que o Sinitox divulga
apenas os números agregados. Também no caso dessa base
de dados, o índice de subnotificação é elevado.
Para avançar na melhoria das condições de trabalho no campo, ao menos duas estratégias têm se mostrado
eficientes: as ações diretas de fiscalização nas propriedades rurais, comandadas por auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e a pressão de atores
da sociedade civil e do próprio governo sobre as cadeias
produtivas das empresas, de modo a garantir a adoção de
critérios às práticas de cultivo e comercialização.
Sob essa perspectiva, um dos instrumentos que
tem possibilitado avanços é a “lista suja” do trabalho escravo, atualizada constantemente pelo ministério. Nela,
são listados os empregadores que cometeram o crime e
que passam a sofrer restrições na obtenção de créditos
financeiros em bancos e fundos oficiais. Atualmente, a
“lista suja” contém o nome de 197 empregadores, sendo
pelo menos cinco deles plantadores de soja. Esse número
O Brasil dos Agrocombustíveis
onde havia plantio do grão foram inspecionadas e 125 trabalhadores libertados, de acordo com dados da Comissão
Pastoral da Terra (CPT). No ranking do trabalho escravo,
13
soja e mamona
14
pode ser maior porque há diversos casos em que as autoridades não identificaram a atividade praticada pelos
trabalhadores libertados.
sugeridas adequações. Caso isso não seja feito, o sojicultor
é excluído da lista de fornecedores. Segundo a empresa, há
atualmente dois casos de exclusão.
Os cinco nomes citados na lista são: Fatisul Indústria e Comércio de Óleos Vegetais, de Dourados, no
Mato Grosso do Sul; Eduardo Dall Magro, da fazenda
Cosmos, localizada em Ribeiro Gonçalves, no Piauí; Fernando Ribas Taques, dono da Fazenda Carolina do Norte,
de Alto Parnaíba, Maranhão; Yakov Kalugion, proprietário da fazenda São Simeão, localizada em Campos Lindos,
Tocantins; e Marco Antônio Mattana Sebben, da fazenda
Mattana, município de Campos de Júlio, Mato Grosso.
O modelo seguido pela Amaggi não é ainda o ideal, sobretudo porque não é capaz de enfrentar os malefícios
causados pelo modelo de produção de soja no país, baseado
na grande propriedade, no monocultivo, no intenso uso de
agrotóxicos, na concentração de renda e no pouco valor
dado ao trabalho. Mas não deixa de ser assombroso que
existam grandes companhias de soja que ainda resistem a
monitorar suas cadeias produtivas, dando de ombros para
mínimas práticas de responsabilidade social e ambiental.
Tanto a Fatisul quanto Eduardo Dall Magro
foram incluídos na última atualização da “lista suja”, em
dezembro de 2008 - a primeira por conta da libertação de
nove empregados escravos durante fiscalização em 2007, e
o segundo por causa do flagrante de 21 escravos em 2004.
O tempo decorrido para que ambos entrassem na lista suja
se deve aos trâmites do processo administrativo em curso
no Ministério do Trabalho e Emprego.
Sem o envolvimento das empresas e dos governos, estes cumprindo sua função de planejar e fiscalizar, o
crescimento da atividade agrícola pode se dar ao largo do
desenvolvimento social. Estudos conduzidos pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO) dentro da linha de pesquisa “Boom Agrícola e Persistência da Pobreza Rural” apontam a precariedade das
condições de trabalho como um dos fatores que impede a
população mais pobre de se apropriar da renda agrícola.
Isso ocorreria principalmente por conta da informalidade
do mercado de trabalho e dos baixos salários, sobretudo os
pagos às mulheres.
Os efeitos positivos da “lista suja” têm sido maximizados pelo Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, hoje assinado por mais de 160 empresas e associações. Lançado em 2005, o pacto reúne grupos que se
dispõem a aperfeiçoar suas cadeias produtivas, fiscalizando
fornecedores e dispensando aqueles que utilizam formas
degradantes de trabalho. O pacto foi construído a partir
dos estudos de cadeia produtiva realizados pela ONG Repórter Brasil, que hoje integra o Comitê Gestor do pacto
ao lado da Organização Internacional do Trabalho e do
Instituto Ethos de Responsabilidade Social.
O papel da iniciativa privada no combate à escravidão contemporânea ganhou um novo impulso com a
realização do 2º seminário do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, em março de 2009, na cidade
de São Paulo. No evento, foram apresentados o Código de
Conduta e a plataforma digital de monitoramento da iniciativa. Além disso, algumas companhias tiveram a oportunidade de divulgar suas estratégias de responsabilidade
socioambiental.
Na área de cultivo e comercialização de soja, a
companhia Amaggi Exportação e Importação, uma das
maiores em atuação no país, apresentou seu sistema de
gestão social e ambiental junto a seus fornecedores. A empresa monitora as condições sociais e ambientais nas fazendas, produzindo indicadores que passam pelas práticas
agrícolas empregadas, manejo adequado de agrotóxicos e
qualidade das condições de trabalho. Na safra 2006/07, foram 610 propriedades pré-financiadas, todas cadastradas
e auditadas, totalizando 447 mil hectares de soja. Quando
um fornecedor não atinge os padrões exigidos, a ele são
Mesmo em países em que a pobreza vem caindo,
como é o caso do Brasil, essa queda é menor do que o avanço verificado na produção agrícola. Para o brasileiro José
Graziano da Silva, representante da FAO para a América
Latina e o Caribe, possíveis benefícios não são automáticos
e dependem da conciliação de políticas públicas específicas
para o campo.
Prova disso é a posição dos municípios brasileiros
onde mais se produz soja em relação ao Mapa da Pobreza e
da Desigualdade, produzido pelo IBGE e referente a 2003.
Sorriso, Sapezal, Nova Mutum e Campo Novo dos Parecis, os quatro primeiros do ranking de produção em 2007,
possuem incidência de pobreza (27,72%; 27,59%; 25,53%
e 32,07%, respectivamente) e coeficiente de desigualdade
social de Gini6 (0,43; 0,42; 0,42 e 0,42, respectivamente)
melhores do que o do Mato Grosso (34,34% e 0,47), Estado onde estão localizados.
Em quinto lugar no ranking, porém, Diamantino, também no Mato Grosso, possui incidência de pobreza
(38,45%) pior que a do Estado e índice de Gini um pouco melhor (0,46). É uma situação parecida com a sexta do
ranking nacional de produção de soja, a cidade baiana de
São Desidério, onde a pobreza (51,65%) é maior do que a
registrada no Estado da Bahia (43,47%), e o índice de Gini
um pouco melhor (0,39 ante 0,49 no Estado).
Caso | Agricultura familiar do Sul
Se por um lado a produção nacional de biodiesel não representa ainda um perigo concreto para os agricultores familiares, por
outro não tem se traduzido em uma alternativa real de melhoria da qualidade de vida desses pequenos produtores - a despeito dos esforços
do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB). O Estado
onde essa contradição é mais visível talvez seja o Rio Grande do Sul,
campeão em vendas de biodiesel no mais recente leilão promovido pela
Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Na região Sul, a soja está
presente também na
agricultura familiar
Em uma região onde a cultura da soja está consolidada inclusive na agricultura familiar (embora, nesse caso, não como monocultivo), os projetos de incentivo à diversificação de oleaginosas para
produção de agrocombustíveis não têm apresentado bons resultados7.
A participação dos pequenos agricultores gaúchos no mercado de biodiesel tem se limitado à venda de soja em grão às usinas instaladas no
Estado8, que assim obtêm do Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA) o Selo Combustível Social e as facilidades de financiamento e
incentivos fiscais decorrentes deles.
No 13o. leilão de biodiesel da ANP, realizado em fevereiro
deste ano, dos 315 mil m3 de biodiesel arrematados, 106,1 mil m3 (33,7%
do total) foram produzidos no Rio Grande do Sul. Apenas uma usina, a
Oleoplan, vendeu 42,5 mil m3, respondendo sozinha por 13,5% de todo
agrocombustível comprado. A produção média da usina gaúcha localizada em Veranópolis, no nordeste do Estado, é de 12 mil m2, sendo que a
soja é a matéria-prima de 90% desse biodiesel. De acordo com o sóciodiretor da Oleoplan, Marcos Boff, 30% da soja processada pela usina é
proveniente da agricultura familiar, volume mínimo estabelecido pelo
MDA para a obtenção do Selo. Quando questionado sobre quanto a Oleoplan economiza com a redução das alíquotas de PIS/Pasep e Cofins9,
o empresário limitou-se a responder que “há uma redução de alíquotas,
no entanto há todo o custo e o envolvimento da empresa nas atividades
relacionadas com o incentivo da agricultura familiar”.
A Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras
na Agricultura Familiar do Brasil - Regional Sul (Fetraf-Sul) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul
(Fetag-RS) têm feito pressão para que ao menos parte do incentivo
fiscal oriundo da obtenção do Selo Combustível Social seja revertido em
bônus para os agricultores familiares gaúchos. Assim, eles têm recebido
um adicional de em média R$ 1 por saca de soja vendida às usinas de
biodiesel. “Esse valor não
é suficiente hoje para que
uma família decida plantar mais soja, porque o
preço do grão varia muito
e a decisão do agricultor passa também pela
comparação com outras
culturas”, explicou o assessor de política agrícola
da Fetag-Sul, André Raupp. Ele ressaltou, ainda,
que a produção de biodiesel de soja poderá se
tornar vetor de expansão
da área plantada de soja
na agricultura familiar,
concorrendo com culturas alimentares, se ela
diminuir a oferta de soja
para alimentação e, assim, mantiver o preço da
commodity alto.
A Fetraf-Sul estima que
em 2009 a quantidade de
soja vendida no Rio Grande do Sul por pequenos produtores para produção de biodiesel gire em
torno de um milhão de toneladas (em grãos). A negociação se dá de
forma direta (entre o agricultor e a indústria) ou por meio de cooperativas da agricultura familiar (reconhecidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). “Quando a comercialização é intermediada,
em alguns casos a indústria repassa um valor para que a cooperativa
preste a assistência técnica. Quando é direta com o agricultor, praticamente inexiste assistência técnica, apesar da obrigatoriedade do fornecimento por parte da indústria de biodiesel”, revelou o representante da
Fetraf-Sul no estado, Rui Valença.
O Brasil dos Agrocombustíveis
Esses dados indicam que não é possível fazer
uma ligação direta entre produção de soja e melhoria da
qualidade de vida da população. Como analisa a FAO, a
participação de setores não-agrícolas no desenvolvimento de cidades tem sido cada vez maior, incluindo áreas de
prestação de serviços e turismo. Além disso, a organização
defende que os agricultores familiares cumprem um papel
importante na redução da vulnerabilidade das famílias rurais. São questões para os quais os governos e os atores da
sociedade civil precisam cada vez mais atentar.
15
soja e mamona
Capítulo_3
Impactos Ambientais
16
A luta por manter a Floresta em pé e recuperá-la
é um dos centros nervosos do debate sobre a expansão da
soja no Brasil e seus impactos. Face a face, enfrentam-se as
iniciativas para preservar, recompor, explorar de forma sustentável e as moto-serras, tratores, correntes, machados e
outros instrumentos hoje utilizados para fins muito menos
nobres que os imaginados por seus criadores. Os discursos
de parte a parte se radicalizam, com o objetivo de enfraquecer o outro lado. No campo que defende que a soja precisa
de novas terras, o discurso antipreservação ambiental mistura-se com o ataque à causa indígena com a afirmação do
desenvolvimento a todo custo, com a crítica ao estrangeiro,
entre outras estratégias de retórica e convencimento.
Nesta guerra de informação e interesses, até
grandes grupos de comunicação colocam-se em campanha.
Foi o caso da tevê Band, que, em abril de 2009, defendia
nos intervalos comerciais de seus programas em Rondônia
que a legislação ambiental do Brasil precisa mudar. E por
quê? Porque, segundo o grupo - evidentemente apropriando-se do discurso de quem propõem mudanças no atual
modelo de desenvolvimento - “nosso futuro está em risco”
caso a legislação do setor não mude.
Área desmatada na Amazônia: batalha de interesses
Num cenário de embates e conflitos em torno da
expansão da soja no território brasileiro, a iniciativa “Moratória da Soja”, promovida pela Associação Brasileira das
Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e pela Associação
Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), completará em julho de 2009 os três anos inicialmente previstos
para a proposta. Segundo o documento base da iniciativa,
as companhias inseridas na cadeia do setor estão proibidas de adquirir soja oriunda de novas áreas desmatadas na
Enquanto alguns setores se articulam para que a
iniciativa não seja prorrogada após julho, também se colocam presentes as vozes de entidades e agentes públicos
que defendem não somente a prorrogação da “Moratória
do Soja” em relação à Amazônia, mas também sua adoção
para o bioma do Cerrado. E, conforme o próprio ministro
do Meio Ambiente, Carlos Minc, comentou recentemente, está em discussão entre os principais atores envolvidos
com as questões ambientais e agropecuárias a proposta de
se lançar iniciativa semelhante à da soja para a cadeia da
carne bovina.
No caso da soja, para que se criem as condições
para as empresas cumprirem com o acordado, a iniciativa
promove um monitoramento nos municípios situados no
bioma amazônico que possuem mais de 5 mil ha de soja.
Nesses municípios, busca-se identificar onde houve novos
desmatamentos após julho de 2006, e onde essas novas
áreas de floresta derrubada deram lugar ao plantio de soja.
O monitoramento contemplou 630 polígonos desflorestados após julho de 2006, em 46 municípios e um total de
157.898 ha. Atenta-se, no levantamento, especialmente
para as áreas em que o desmatamento atingiu mais de 100
ha. Segundo os responsáveis pela iniciativa, foram identificados plantios de soja em doze polígonos localizados em
dez propriedades. O total de soja plantada sobre a área desmatada ficou em 1.385 ha.
Segundo o documento divulgado pela Abiove e
Anec em abril de 2009, “dos 12 polígonos que plantaram
soja em área desflorestada após julho de 2006, sete estão
localizados no município de Feliz Natal (MT), dois em
Dom Eliseu (PA), e um em Gaúcha do Norte (MT), Sinop
(MT) e Querência (MT)”. Dos cinco municípios em que
foram identificados problemas com a soja, quatro deles
encontram-se na lista dos que mais desmataram a Amazônia em 2008: Feliz Natal, Dom Eliseu, Gaúcha do Norte
e Querência, segundo dados da Operação Arco Verde, do
Ministério do Meio Ambiente (MMA), voltada à controlar e prevenir os desmatamentos na região.
Embora o levantamento dedique atenção especial
às áreas com mais de 100 ha de desmatamento, parte dos
polígonos identificados com soja referem-se a áreas em que
o desmatamento não chegou a esse total: as áreas desmatadas ficaram entre 35 ha e 600 ha. Segundo Raquel Carvalho, da campanha Amazônia do Greenpeace, “de dois anos
para cá, o padrão de desmatamento vem sofrendo uma
mudança. Os pequenos desmatamentos, pulverizados, têm
aumentado muito, e isso tem que ser reconsiderado para
o monitoramento da próxima safra”. Ela acrescenta que
“muitas das áreas de soja estão se expandindo em desmatamentos abaixo de 100 ha. E o monitoramento hoje enfoca
os maiores de 100 ha”. No 1º ano da iniciativa, percebeu-se
que boa parte dos desmatamentos situava-se abaixo dos
100 ha, o que levou à realização de um projeto piloto voltado a monitorar os polígonos com áreas desmatadas inferiores a essa referência. E foi justamente esse projeto piloto
que permitiu a identificação de cinco dos doze polígonos
desmatados na última safra. Os cinco menores de 100 ha
em Feliz Natal.
Raquel Carvalho pondera os resultados com algumas questões. “O ano passado não foi um ano muito interessante para a expansão da soja, as traders colocaram
menos recursos, os insumos aumentaram e a crise mundial
certamente deu uma abalada no avanço do setor”. Raquel
avalia que a própria moratória tenha um efeito sobre a intenção e realização de investimentos no plantio da soja. E
faz uma ressalva central a ser considerada: “Os resultados
não significam que a soja tenha deixado de ser um vetor de
desmatamento importante”.
Segundo o 7º levantamento de Grãos da Safra
2008/2009, publicado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) em abril de 2009, a área da soja recuou 2%
nos estados produtores da região Norte em 2008, caindo
de 517,5 mil ha para 506,9 mil ha. O único estado da região
em que houve expansão foi Rondônia (6,2%), com a área
subindo de 99,8 mil ha para 106 mil ha. Pará (- 4,9%) e Tocantins (- 4%) apresentaram queda na produção, que ficou
estagnada em Roraima. Quanto ao Amazonas, os dados da
Conab indicam que não havia soja cultivada no Estado nem
em 2007 nem em 2008. O Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), contudo, apontava para a existência
de 806 hectares no Amazonas em 2007, localizados em sua
quase totalidade no município de Humaitá. Nos outros dois
estados produtores que também possuem áreas pertencentes ao bioma Amazônico, Mato Grosso e Maranhão, houve
alta de 1,7% e queda de 7,3% respectivamente10.
Com relação ao real alcance da iniciativa, é necessário que agora se garanta o efetivo cumprimento do pacto. Primeiro, para que as empresas signatárias da proposta
não comprem a soja das novas áreas desmatadas - cabendo
ressaltar que a restrição estabelecida não é à toda produção
da propriedade, mas sim à porção proporcional à área desmatada. E segundo para que aqueles que desrespeitaram o
compromisso tenham o acesso ao crédito restringido.
Para Raquel, a rastreabilidade da cadeia produtiva da soja é um próximo passo de grande importância
para o avanço da idéia da moratória. Com ela, “as empresas
vão poder comprovar para os seus consumidores qual é a
origem da soja que utilizam”. A rastreabilidade da cadeia,
passo fundamental para a responsabilidade de cada agente
envolvido, carece, contudo, de uma primeira informação
O Brasil dos Agrocombustíveis
Amazônia, ou de propriedades que utilizem mão-de-obra
escrava (em qualquer bioma). Movimentos ambientalistas
como Greenpeace e WWF acompanham o processo de
monitoramento.
17
soja e mamona
básica: identificar quem é o proprietário da área produtora. E hoje, na Amazônia, uma porcentagem bem baixa das
propriedades está com o proprietário identificado.
18
O engenheiro agrônomo Vicente Godinho, pesquisador da Embrapa Rondônia, avalia que exista atualmente “muito pouca soja na Amazônia”. Para Godinho,
“quando começa a falar em grão na Amazônia, falam muita
besteira. Muitos envolvidos no debate estão mal intencionados, e, quando se quer falar de número, não querem
saber”. Ele cita uma estatística segundo a qual, no Mato
Grosso, principal Estado produtor, 75% da soja seja plantada em área de Cerrado, 24% em área de transição e somente 1% em área do bioma amazônico. Independentemente
de haver outras estatísticas distintas, e leituras distintas
dos limites e extensão de cada bioma, o questionamento
central não parece ser esse. Mas talvez o desprestígio que
vitima o Cerrado e que parece começar a ser superado.
Soja e Cerrado
O professor Manuel Eduardo Ferreira, do Laboratório de Processamento de Imagem e Geoprocessamento (Lapig) da Universidade Federal de Goiás, publicou no
início de 2009 pesquisa recente sobre os impactos que as
frentes de expansão do agronegócio podem causar ao Cerrado. Segundo o estudo, caso o atual ritmo de devastação
seja mantido, nas próximas décadas o bioma irá perder 40
mil km2 a cada dez anos. Ou, trocando para hectares, 4 milhões de hectares por década serão derrubados no bioma,
um dos mais ricos em biodiversidade do mundo. Serão 16
milhões de hectares, ou 160 mil km2, perdidos até 2050.
Uma área equivalente à metade do Estado de Goiás ou dez
vezes a área do Distrito Federal. Desse total desmatado,
seis milhões de hectares devem ser incorporados à agropecuária. Com isso, o bioma terá sido dizimado à metade de
sua extensão original: a área derrubada do Cerrado chegará a 960 mil km2, ou seja, quase a mesma área do que será
mantido em pé do Cerrado, em torno de 1 milhão de km2.
A soja, mais uma vez, desempenha papel de relevo. Segundo o levantamento “Áreas Prioritárias para Conservação, Uso Sustentável e Repartição dos Benefícios da
Biodiversidade Brasileira” do ministério do Meio Ambiente, pelo menos 27 das áreas identificadas como prioritárias
encontram-se ameaçadas diretamente pela soja11.
No relatório sobre a soja publicado pelo Centro
de Monitoramento de Agrocombustíveis da ONG Repórter Brasil em 2008, uma das recomendações defendia que o
Cerrado, assim como os demais biomas do Brasil, deveriam
receber atenção semelhante à Amazônia em termos de monitoramento de sua devastação. E, no início de abril de
2009, o governo federal anunciou medidas que sinalizam
sua intenção em seguir nessa direção. Segundo o MMA,
o monitoramento por satélite da cobertura florestal pelo
governo federal, antes restrito à Amazônia, foi estendido
à Caatinga, ao Cerrado, à Mata Atlântica, ao Pampa e ao
Pantanal12. Para o ministério, o monitoramento é fundamental para orientar as políticas públicas e as decisões para
o combate ao desmatamento e para a conservação da biodiversidade.
Para que a fiscalização apoiada pela tecnologia
apresente melhores resultados, a aprovação pelo Congresso Nacional da Proposta de Emenda à Constituição (PEC
115/95) que prevê a transformação do Cerrado e da Caatinga em patrimônios nacionais (conhecida como PEC do
Cerrado e parada desde 1995 no Congresso) guarda importância fundamental. Assim como a destinação de verbas
para o MMA, para implementar, por exemplo, as ações que
defende como necessárias à proteção das áreas prioritárias
identificadas pelo ministério.
Tais medidas podem fortalecer a luta das entidades que advogam a idéia de que o avanço da soja pode e
deve se dar somente sobre as áreas já desmatadas - tanto
por haver áreas suficientes para a expansão do setor, quanto
para evitar que novos desmatamentos ocorram. Esse é um
dos principais embates nas articulações que discutem a idéia
de uma certificação socioambiental para a cadeia da soja no
Brasil e em outros países produtores importantes. Parte das
empresas do setor é contrária à idéia, assim como defendem
que não se faça menção nas políticas de certificação à diferenciação entre soja convencional e soja transgênica.
Em outubro de 2008, um dossiê sobre impactos
na Amazônia gerados pelas atividades agropecuárias e extrativistas de grandes empresas, produzido pela ONG Repórter Brasil e pela Papel Social Comunicação para o movimento Nossa São Paulo e Fórum Amazônia Sustentável,
apontou uma série de problemas ambientais relacionados à
produção de soja no bioma. Também listou estudos de caso
que apontaram a co-responsabilidade de traders e exportadores do grão que, ao adquirirem a soja de fontes “sujas”,
em última instância ou não reprimem ou até incentivam
direta ou indiretamente as más práticas.
Entre as empresas citadas no dossiê “Conexões
Sustentáveis - quem se beneficia com a destruição da Amazônia”, estão as multinacionais Bunge e ADM e as brasileiras Caramuru e São José Alimentos. Após a divulgação do
documento, o movimento Nossa São Paulo e uma série de
ONGs ambientalistas buscaram abrir o diálogo com o setor
empresarial, propondo um Pacto Empresarial pelo financiamento, produção, uso, distribuição, comercialização e consumo sustentáveis de grãos de soja (in natura ou processados)
produzidos na Amazônia e destinados à cidade de São Paulo.
Pela proposta, os signatários do pacto se comprometeriam a estabelecer instrumentos (de adoção voluntária) que regulamentariam minimamente a cadeia produtiva
A amplitude dos resultados da iniciativa, porém,
poderia ter sido bem maior, caso os setores que se dizem
interessados em promover um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia tivessem sido coerentes com
suas ações de marketing. Como o pacto permitiu a adesão
de ONGs e instituições de pesquisa e correlatas, a lista de
signatários hoje inclui apenas três empresas (Grupo Pão
de Açúcar, Wal-Mart e Vale Grande Indústria e Comércio de Alimentos S/A), sete entidades não governamentais
e uma instituição financeira (IFC-International Finance
Corporation). Nenhuma das traders citadas no dossiê e nenhuma empresa ligada à Abiove (protagonista da “Moratória da Soja”) se propuseram a assinar o pacto.
Mas o jardineiro vai morrer. Não podemos admitir”. Zezinho considera que “é preciso haver um enfrentamento - no
diálogo” e que “o Brasil precisa de um Código Florestal
Verde e Amarelo”.
José Rodrigues da Silva, chefe do escritório regional do Ibama de Vilhena, destaca que, desde abril de 2008,
data em que chegou à região, não houve nenhuma autuação
do setor da soja em Vilhena e nos demais municípios sob
responsabilidade do escritório (Chupinguaia, Corumbiara,
Cabixi, Cerejeiras, Pimenteiras e Colorado do Oeste).
19
Soja e Código Florestal
Enquanto alguns avanços são perceptíveis no
combate ao desmatamento e na redução dos impactos da
produção da soja, há setores que defendem mudanças em
sentido contrário. Ou seja, de permitir que se amplie o desmatamento, que se diminua a área de reserva legal em cada
bioma do país, entre outras propostas.
Em Rondônia, boa parte da floresta tombou quando o governo militar incentivou a migração para a região.
Em parte do Estado, esse processo foi contido, e a recuperação da vegetação torna a paisagem ainda mais impressionante, aproximando-se da força que teve um dia. Em
outras regiões, o processo de destruição segue intenso.
As iniciativas como a “Moratória da Soja”, o monitoramento via satélite e a presença mais sólida das instituições do Estado e entidades da sociedade civil conseguiram, se não virar o jogo, ao menos equilibrá-lo no Sul de
Rondônia. Para José Antonio Oliveira, do Departamento
de Comunicação do Sindicato dos Produtores Rurais de
Vilhena, município situado na região de Rondônia conhecida como Cone Sul, e o principal pólo da soja na Amazônia,
o governo federal, resolveu “confiscar 80% da Amazônia
legal”, referindo-se à lei que exige manutenção de 80% da
floresta em pé. Oliveira, que é mais conhecido por “Zezinho”, destaca que, há quarenta anos, os militares convocaram moradores de outras regiões para abrir novas fronteiras na Amazônia, e que agora as regras todas mudaram.
Para ele, quem deveria ser multado seria o governo. “Antes, vivíamos sob um regime ditatorial, mas de democracia
no agronegócio. Hoje, temos um regime democrático, mas
sob ditadura ambiental”. Para o diretor da entidade, outros
países “querem fazer um jardim da Amazônia para eles.
O Brasil dos Agrocombustíveis
do grão na Amazônia, como financiar e/ou adquirir apenas
produção de soja de fontes (CPFs e CNPJs) que não estão
incluídas na lista suja do trabalho escravo e na relação de áreas embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e que estejam
localizadas nas áreas liberadas pela “Moratória da Soja”.
José Rodrigues da Silva, do Ibama de Vilhena
Silva registra, contudo, que o Ibama local tem detectado muitos problemas em relação ao gado13. “Da estrada, não se vê nada, pois são áreas muito extensas e densas
de floresta, parece que está tudo ok. Mas de satélite ou de
helicóptero percebe-se que há problemas de desmatamento”, denuncia. Segundo ele, a tecnologia da devastação está
mudando: na região de Chupinguaia, há fazendas em que só
são cortados os estratos inferiores das árvores. “A copa das
maiores se mantém, o que não caracteriza desmatamento
no satélite. Mas na fiscalização - e na legislação - sim”.
O pesquisador Vicente Godinho acredita que, ao
menos no Cone Sul de Rondônia, onde fica a base da Embrapa em que ele trabalha, “quem não abriu [novas áreas
desmatadas], não abre mais”. Godinho avalia que as multas pesadas e a fiscalização mais intensa hoje existente não
permitem abrir novas áreas de desmatamento muito grandes - embora problemas de menor monta sigam acontecendo. O pesquisador também visualiza mudanças na mentalidade dos pecuaristas, que também começam a perceber
que terão dificuldades em comercializar seus produtos se
não se adequarem à nova realidade. “Como ocorreu com
a moratória da soja, logo o pecuarista não vai conseguir
também”, aposta.
soja e mamona
20
Segundo Paulo Fernando Lermen, promotor do
Ministério Público Estadual de Rondônia (MPE) lotado
em Vilhena, em décadas anteriores parte dos produtores
chegaram a desmatar 65% de suas áreas, uma vez que o
zoneamento econômico e ecológico do Estado previa essa
possibilidade. Contudo, em meados da década de 1990, o
governo do presidente Fernando Henrique determinou os
limites de 50% ou 80% de desmatamento para alguns Estados, Rondônia entre eles - sendo que o limite menos rígido
se aplicava somente às propriedades mais antigas. Diante
das variadas situações jurídicas, a atuação do MPE na região tem sido atualmente no sentido de verificar a situação das propriedades em relação às áreas de preservação
(permanente e reserva legal). Lermen explica que existem
cerca de 140 procedimentos no órgão com o objetivo de legalizar a área toda e a reserva legal. Para tanto, os responsáveis pelos imóveis assinaram um termos de ajustamento
de conduta (TAC) junto ao MPE, que tem contado com a
colaboração do Ibama e da Secretaria de Desenvolvimento
Ambiental (Sedam) nos processos.
O chefe do escritório do Ibama em Vilhena, por
sua vez, analisa que “antes, o produtor ocupava a área, desmatava de qualquer jeito e esperava resolver a titulação,
que sabia que viria. Hoje, com a legislação mais rigorosa e
o Ibama mais presente, isso não tem como acontecer”.
No novo contexto, os produtores que não possuem suas áreas de preservação corretamente averbadas
precisam correr contra o tempo para resolver sua situação.
O governo federal publicou em julho de 2008 um decreto
que obrigava todas as propriedades a averbar até dezembro do ano passado devidamente suas áreas de reserva legal. O prazo estipulado, obviamente, não se demonstrou
tão defensável quanto os objetivos do decreto, cuja data
para cumprimento das exigências foi prorrogada para dezembro de 2009. Valdir Harmatiuk, coordenador de Licenciamento e Monitoramento Ambiental da Sedam, contudo,
entende que, ainda assim, não existe capacidade técnica de
se mudar isso em um ano, nem em Rondônia nem no Brasil. Ele afirma que o governo do Estado vinha trabalhando
nesse sentido desde 2003, por meio de políticas públicas, e
que seguirá atuando nesta linha.
A situação em Rondônia pode dar uma boa noção
do que ocorre em outras unidades da Federação. De um
total de 114 mil propriedades demarcadas em todo Estado, cerca de 5 mil encontram-se atualmente com suas áreas
de reserva legal devidamente averbadas. E outras 13 mil
propriedades estão com o processo para regularização em
curso. Muitas propriedades, contudo, não possuem sequer
os documentos definitivos de posse do Incra, o que impede
a continuidade do processo na esfera ambiental. A regularização das propriedades em Rondônia e no restante da Amazônia, por sinal, é uma das prioridades do governo federal
para a região (veja capítulo sobre impactos fundiários).
Valdir Harmatiuk está há cerca de nove anos na
Sedam, tendo sido antes do Instituto de Terras do Estado,
órgão que formulou o zoneamento econômico e ecológico
de Rondônia. De acordo com Harmatiuk, a aprovação do
zoneamento, em 2003, tem colaborado para quedas nos índices de desmatamento estaduais. Ele acredita que os efeitos do zoneamento, somados aos processos de averbação
da reserva legal e das áreas de proteção permanente, pode
nos próximos anos passar a equilibrar, ou até superar, a
conta do que é desmatado e do que é recuperado da vegetação em Rondônia.
Raimundo Dima Lima e Orlando Silva,
da Sedam, junto ao rio Corumbiara
Flora e fauna do Parque Estadual de
Corumbiara, em Rondônia
Assoreamento de lagoa na região de
Cerejeiras, onde a soja avança
A beleza da região, por ora, está protegida pelo
próprio ciclo de cheias que inunda a maior parte das terras locais. E a qualidade dos solos também não é das mais
apropriadas para a agricultura em boa parte da área, por
exemplo na fronteira leste do Parque Corumbiara. Contudo, a região de Vilhena também chegou a ser considerada
imprópria para a soja, mas, com investimentos em tecnologia, tornou-se uma fronteira promissora do grão.
Ainda no sentido dos cuidados a serem tomados
e preocupações que se colocam, pesquisas da Universidade
Federal de Rondônia (Unir) apontam riscos trazidos pelo
desmatamento e pela atividade agropecuária para a fauna
e a flora locais, por exemplo para as espécies de peixes locais. Além disso, os estudos afirmam a importância de um
maior monitoramento da qualidade da água nas bacias dos
rios Corumbiara e Guaporé. A contaminação do solo por
agrotóxicos utilizados na cultura da soja, na região de Vilhena, portanto, torna-se perigosa. E claro, pela escala hoje
verificada, representam uma ameaça que não chega a ultrapassar os limites dos municípios locais. Contudo, o Sul de
Rondônia conta com nascentes de muitos rios, que mais
à frente vão contribuir inclusive na formação de rios de
importância nacional, como o Mamoré e o Madeira, logo o
Amazonas. E problemas nesta região representam, portanto, problemas para bacias hidrográficas de responsabilidade federal - em alguns casos até de mais de um país.
O Brasil dos Agrocombustíveis
O Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis percorreu o trajeto entre Vilhena e Pimenteiras
do Oeste (na fronteira com a Bolívia, às margens do rio
Guaporé) na companhia de Raimundo Dima Lima, gerente
do Parque Estadual de Corumbiara, e de Orlando Silva,
diretor regional de Gestão Ambiental da Sedam para a
região de Colorado do Oeste, Cerejeiras, Cabixi, Corumbiara e Pimenteiras. No percurso, foi possível detectar tanto importantes trechos em que a Floresta Amazômica e o
Cerrado estão em evidente recuperação, quanto os muitos
problemas a serem enfrentados. Boa parte deles causados
pelo agronegócio que impera na região. Por exemplo, em
um trecho do rio Corumbiara próximo à cidade de mesmo
nome, as matas ciliares inexistem, e o pasto para o gado
chega até a margem do rio, que é uma das principais artérias de vida do Parque Corumbiara. À beira da rodovia
que liga os municípios de Cerejeira e Pimenteiras, as belas
lagoas que compõem a várzea do rio Santa Cruz correm
risco, e algumas delas estão em processo de assoreamento,
decorrente da manipulação inadequada da terra nas lavouras mecanizadas da soja na região. O Santa Cruz é um dos
principais afluentes locais do rio Guaporé, que, nos períodos de cheia, alaga boa parte da planície que o circunda,
em espetáculo semelhante - e de importância próximo para
os ciclos da fauna e flora locais - ao verificado no Pantanal
Mato-grossense.
21
No caminho entre Cerejeiras e
Pimenteiras do Oeste, belezas
ameaçadas
Povos indígenas que vivem em reservas no município de Vilhena também temem o avanço da soja, sendo
que algumas plantações se encontram nos limites da Terra
Indígena Tubarão-Latundê. Para os indígenas, o problema
pode não estar colocado agora, mas vir a se estabelecer
a longo prazo. E, segundo relatos de indígenas apresentados ao Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis,
existem ocasiões em que os produtores da soja jogam as
embalagens de agrotóxico com resíduos direto nas terras
indígenas - tendo havido inclusive situações em que índios
pegaram os galões usados por achar bonito, limparam-nos
e usaram até para armazenar água para consumo humano.
O circuito percorrido com os servidores da Sedam
também permitiu constatar que os debates sobre desenvolvimento x preservação, área produtiva x reserva legal
e áreas de preservação permanente, alterações no Código
Florestal, etc., seguem candentes e em aberto. Conforme
resume Valdir Harmatiuk, também da Sedam, “a discussão
sobre o Código Florestal vai dar muito pano para manga, não vai sair de repente, e nem sabemos onde vai dar”.
Um tema de suma importância para o setor da soja, que
divide opiniões entre os próprios produtores e governos
de Estado onde o grão é um dos carros-chefe da economia,
e que pode ser decisivo não só para a forma de produção
que o setor pretende desenvolver, mas que pode determinar também o futuro de diversas áreas da Amazônia, do
Cerrado e dos demais biomas brasileiros.
Caso | Sojicultor ameaça Parque das Emas,
soja e mamona
22
em Goiás
Uma das poucas áreas de preservação de Cerrado no país,
o Parque Nacional das Emas, no Sudoeste de Goiás, é um santuário
pressionado pela atividade agropecuária. Em suas fronteiras, grandes
sojicultores, alguns amparados por decisões judiciais, utilizam variedades transgênicas e agrotóxicos vetados pelas normas ambientais.
O plano de manejo do parque, aprovado em 2005, permite
apenas o uso de agrotóxicos de classe 4, tarja verde, em um trecho de
dois mil metros a partir das fronteiras da área de preservação. Mas em
outubro de 2008 uma operação do Ibama multou produtores da região
e apreendeu equipamentos usados em pulverizações. Os produtores
recorreram e, em fevereiro de 2009, uma liminar da Justiça Federal
liberou a utilização dos agrotóxicos proibidos.
Quanto ao uso de transgênicos, a situação também preocupa. Em dezembro de 2008, pelo menos 18 produtores foram multados por cultivarem essa variedade de soja a menos de 500 metros da
fronteira do parque e tiveram sua produção embargada. O plantio de
transgênicos nesse limite é vetado por lei após aprovação e sanção
presidencial da medida provisória 327/06.
De acordo com Marcos Cunha, funcionário do Instituto Chico
Mendes e chefe do parque, o Emas é considerado um parque estável,
já cercado e sem grandes conflitos fundiários. Mas as dificuldades de
lidar com a atividade agrícola que o circunda é permanente. “Meu papel
é dialogar com os produtores, explicar o problema e buscar as soluções.
Mas nem sempre é uma tarefa fácil”, diz ele, que assumiu o posto em
meados de 2008.
áreas de Cerrado, mas que continuam sob risco diante da especulação
agropecuária.
Estimativas dão conta de que apenas 2,2% do Cerrado são
protegidos por unidades de conservação federais e estaduais, ante
19,9% da Amazônia Legal. Além disso, até hoje esse bioma não possui
sistemas dedicados de monitoramento por satélite, como acontece há
anos com a Amazônia.
Histórico de ilegalidades
A norma do plano de manejo que proíbe agrotóxicos é uma
das mais contestadas pelos produtores da região. Quando o plano foi
aprovado, em 2005, ela não foi posta em prática imediatamente e
aguardou-se a constituição de um grupo de trabalho para discuti-la.
Diante da demora para uma definição, a ONG Instituto Socioambiental
(ISA) e o Ministério Público Federal foram à Justiça Federal exigindo a
aplicação da norma. Em setembro de 2008, a juíza Luciana Laurenti
Gheller emitiu decisão favorável. Os produtores foram notificados, mas
a fiscalização do Ibama realizada logo após a decisão flagrou o uso de
agrotóxicos proibidos.
De acordo com o sojicultor Eduardo Peixoto, também ex-prefeito de Chapadão do Céu, município considerado a “porta de entrada”
do Parque das Emas, apenas com os agrotóxicos permitidos não seria
possível combater a ferrugem asiática na soja. Ele mesmo alega que
teria prejuízos em 1,6 mil hectares dos 1,8 mil que possui nas redondezas
do parque. Além disso, Peixoto diz que a proibição não faz sentido do
ponto de vista técnico.
O sojicultor Eduardo Peixoto
é crítico ao veto de alguns
tipos de agrotóxico
Marcos Cunha (à esq.), chefe
do Parque das Emas, aponta
problemas no mapa
“O que nós argumentamos é que é uma burrice barrar o uso
de certos defensivos com base nas classes, porque elas se referem ao
efeito no ser humano, e não nas plantas e nos animais. Foi permitido
na região do parque apenas o defensivo de faixa verde, mas há alguns
desses que matam peixes”, diz ele, que afirma preferir chamar os agrotóxicos de defensivo agrícola.
O Parque Nacional das Emas foi criado em 1961 pelo então
presidente Juscelino Kubitschek, que governou o Brasil entre 1956 e 1961.
Possui 131 mil hectares de rica flora e fauna, da qual se destacam emas,
veados-campeiros, tamanduás-bandeira, lobos-guará e inúmeras espécies de aves e serpentes. É um exemplo da biodiversidade existente nas
O produtor Ronan Barbosa Garcia Jr. teve um caminhão e um
pulverizador apreendidos por mais de dois meses pelo grupo de fiscais
do Ibama durante a fiscalização de outubro. Segundo ele, a impossibilidade de usar agrotóxicos causou prejuízos de 30% em sua lavoura próxima
ao parque, por conta da ferrugem asiática. Ele possui cinco fazendas,
onde planta 4,8 mil hectares de soja, além de milho, algodão e sorgo.
O Brasil dos Agrocombustíveis
Fernando Ribeiro (à esq.), do Ibama:
agricultura avançou sem controle
23
“Tenho 21 anos de lavoura e sei que agricultura e meio ambiente podem conviver. Nós usamos agrotóxicos na região há 30 anos
e nunca houve problema. Com faixa verde não dá pra ter produção
agrícola”, afirma Garcia Jr., que diz comercializar sua produção de soja
com as grandes tradings que operam na área, como Bunge, Cargill e
“principalmente a ADM”.
Degradação ambiental
De acordo com o Ibama, os problemas ambientais na região
do Sudoeste de Goiás não se restringem ao Parque Nacional das Emas.
O engenheiro florestal Fernando Di Franco Ribeiro, chefe do Escritório
Regional do Ibama de Rio Verde, um dos principais municípios da região,
avalia que é raro encontrar propriedades cuja reserva legal e a área de
proteção permanente estejam de acordo com a legislação.
“É sinal de uma agricultura que avançou sem controle”, afirma Ribeiro. Para se regularizarem, muitos produtores têm recorrido à
compra de terras distantes e mais baratas para comporem a reserva
legal. A lei permite que 16 pontos percentuais dos 20 de reserva possam
estar localizados fora da propriedade.
O Sudoeste goiano é uma das maiores regiões sojicultoras
do país. Em 2007, foram plantados 917 mil hectares, segundo o IBGE. No
município de Chapadão do Céu, uma das “portas de entrada” do Emas, a
área de soja tem variado entre 60 mil e 100 mil hectares desde o início
da década de 90. Em 2007, o plantio foi de 82,3 mil hectares, a maior
parte mantida por grandes proprietários de terra.
Preocupado com o futuro do parque, o Ibama iniciou um programa piloto na região do entorno chamado Pró-Legal. Segundo Ribeiro,
o órgão tem trabalhado para identificar propriedades irregulares e notificar os produtores. “Depois, buscamos, junto com o Ministério Público
Federal, que o proprietário assine um TAC [termo de ajustamento de
conduta] para se regularizar”, diz o chefe do Ibama.
A idéia é permitir a formação do chamado corredor de biodiversidade do Araguaia, com a conexão do Parque Nacional das Emas ao
Araguaia e ao Parque do Taquari. Para que isso seja possível, a intensa
atividade agrícola regional permanece como um robusto desafio.
soja e mamona
Capítulo_4
Impactos Fundiários
24
O debate sobre as mudanças na legislação ambiental que se desenrola no país, tendo o Congresso Nacional como centro nervoso, pode resultar em impactos sobre
o território em todo o Brasil, não só do ponto de vista do
meio ambiente e das condições físico-climáticas. Eventuais
alterações no Código Florestal podem resultar, evidentemente, em hectares adicionais de áreas para a soja e outras
culturas hoje protagonistas do agronegócio. Por exemplo,
com parte das áreas de reserva legal se transformando em
terra produtiva, caso seja autorizada a diminuição das áreas protegidas em cada bioma brasileiro.
Enquanto tal processo não chega a uma conclusão, o setor produtivo busca, das mais diversas formas,
consolidar sua influência e poder político e econômico em
diversas regiões do país, de modo a ampliar suas propriedades e, conseqüentemente, sua produção. Neste cenário,
a soja, por seu peso na pauta do agronegócio brasileiro,
exerce influência fundamental, relacionando-se diretamente com os conflitos fundiários, com o aumento do preço da
terra, com as dificuldades adicionais que impactam sobre a
reforma agrária no Brasil, etc.
Na Amazônia, a força da soja nesse processo é de
grande monta, conforme explica o professor Ricardo Silva, do Departamento de Geografia e pró-reitor de Cultura,
Extensão e Assuntos Estudantis da Universidade Federal
de Rondônia (Unir). De acordo com o professor, que estudou especialmente o caso de Rondônia, a indústria da
soja atua no sentido de especializar o Estado em termos
produtivos e sociais, organizando o território como um
todo. Não bastasse tal envergadura de influência, a soja, ao
ocupar áreas anteriormente destinadas à pecuária, empurra o gado para outras regiões de Rondônia, com variadas
conseqüências.
Baseando-se nas idéias do geógrafo Milton Santos (falecido em 2001) sobre a organização do território,
Ricardo Silva estudou em seu mestrado - bem como vem
analisando em seu doutorado - o papel desempenhado pela
soja em Rondônia. “Pecuária e madeira sempre houve no
Estado, ao passo que a soja é um fenômeno mais recente,
sobretudo a partir da metade da década de 1990”.
De acordo com a pesquisa realizada pelo professor
da Unir, a soja se instalou em Vilhena e entorno sobretudo
em áreas antigas de pastagem, onde anteriormente o gado
ficava. “E o que acontece em âmbito do Estado? O gado
que antes ficava no Sul, foi para o Norte, levando consigo
os conflitos afins”. Por outro lado, o professor registra que,
Segundo o IBGE, em 1995 havia 4.500 hectares
de soja em Rondônia. O número chegou a 89,5 mil hectares em 2007, ou seja, a área da soja no Estado multiplicou-se por 20 em pouco mais de uma década. No ano de
2008, de acordo com a Conab, o cultivo da soja apresentou
um aumento de 6,2% em Rondônia. Na região Norte, a
soja recuou 2% em 2008, ao passo que no Brasil avançou 1,2% (passando de 21,31 milhões para 21,56 milhões
de hectares). Os Estados em que a cultura mais avançou
em termos percentuais foram o Piauí, que foi de 253,6 mil
para 273,9 mil hectares (8,0%); Rondônia, em que a área
plantada subiu de 99,8 mil para 106 mil ha; e Goiás, com
aumento de 5,5% (passando de 2,18 milhões para 2,3 milhões de hectares).
Conforme explica o professor da Unir, à medida
que o campo se moderniza, o capital rebate na cidade. Vilhena apresenta o melhor Índice de Desenvolvimento Humano de Rondônia, ao mesmo tempo em que se apresenta
como um município extremamente urbano, com cerca de
95% da população vivendo na cidade (a média do Estado é
de 69%). A relação campo-cidade se mantém intensa, uma
vez que a cidade vive em função do campo, porém em outros patamares: o setor de serviços se aquece, a oferta de
empregos melhora, o preço dos aluguéis aumenta, o valor
da terra sobe etc.
Construção de shopping Center em Vilhena
Nesse contexto, as mudanças correm a olhos vistos em Vilhena. Às centenas de bicicletas e motos, somamse muitos e muitos carrões. O comércio recebe franquias
de grifes de diversas regiões do país. E a cidade acompanha ansiosamente a construção de seu shopping center, ao
lado da rodoviária e pertencente ao grupo Pato Branco um
dos mais influentes da região. Os migrantes chegam aos
montes - e, embora o IBGE apontasse em 2007 uma população de 66.746 habitantes em Vilhena, é corrente ouvir
na cidade quem acredite que tal número já tenha passado
de 100.000. Chamada por alguns de “a cidade mais sulista
do Norte”, Vilhena recebe migrantes de todas as regiões
do país.
Neste processo em que o campo se dinamiza e influi nos rumos da economia de todo o município, aspectos
negativos também são facilmente perceptíveis. Um exemplo é a migração do campo para a cidade, que reflete a saída
- muitas vezes por falta de opção, ou até mesmo por conflitos mais intensos - do pequeno agricultor do campo. E
outra migração é aquela verificada do campo para o campo.
No caso de Rondônia, o professor Ricardo Silva explica
que a migração tem se dado de forma importante do Cone
Sul - onde o agronegócio avança - e do Vale do Guaporé
para o Norte do Estado, com destinos a municípios como
Porto Velho, Buriti e outros. Alguns deles com taxas de
crescimento de quase 3.000%, ou 30 vezes, em apenas dez
anos (entre 1997 e 2007).
Segundo o docente da Unir, “a população que saiu
do Centro-Sul destinou-se para o Norte, com todos os conflitos envolvidos, com a questão do desmatamento, do alto
grau de violência no campo, da tendência à concentração
fundiária”. Enquanto nas décadas de 1970 e 1980 Rondônia foi palco da distribuição de lotes de terra para inúmeras
famílias - o que colabora para que Rondônia hoje ostente
alguns dos melhores índices de qualidade de vida do Norte
e Nordeste - hoje o processo é outro. A política de distribuição de terra e colonização foi substituída, no entender
de Ricardo Silva, pelo fortalecimento do agronegócio e por
mudanças no perfil da economia local. “Hoje, você praticamente só vê gado em Rondônia, além de outros produtos
fortes, como a própria soja, o arroz e o milho. Nesse cenário, há uma tendência de concentração de terra, os produtos caíram em termos de produção, e hoje se importa
quase tudo”, afirma, citando como exemplos as quedas ou
estagnação na produção de itens básicos e relevantes como
o feijão e o café.
O engenheiro agrônomo Vicente Godinho, pesquisador da Embrapa Rondônia em Vilhena, explica que
quase toda a soja produzida na região não fica por lá, e a
maioria vai para exportação. Nesse processo, as empresas
Cargill e Amaggi, com unidades em Vilhena e Cerejeiras,
são as principais protagonistas na cadeia produtiva da soja
a granel, ao passo que a Portal, com uma unidade em Vi-
O Brasil dos Agrocombustíveis
do ponto de vista positivo para o Sul de Rondônia, verifica-se um aquecimento da atividade agrícola e econômica
no campo e na cidade. Um processo que se verifica em várias outras regiões brasileiras em que a soja se estabeleceu
como uma cultura promissora.
25
soja e mamona
26
lhena, se destina ainda a processar óleo. A capital da soja
na Amazônia, conforme Vilhena pode ser compreendida,
também possui uma agroindústria razoavelmente desenvolvida em relação ao arroz, chegando a trazê-lo de outras
áreas para processar e vender para os estados vizinhos do
Amazonas, Roraima e Acre além de exportar para o Peru
e até para a África. O milho produzido na região vai em
parte para ração animal, e, em sua maioria para o consumo
humano regional.
Os grandes da soja
Ao passo que nas décadas de 1980 e 1990 o Estado ainda era o principal agente de organização territorial em Rondônia, a partir de 1995 as grandes empresas,
como ocorre no restante do Brasil, passam a ser agentes de
grande importância nesse processo também, criando uma
especialização produtiva do território. Seguindo essa tendência, as traders ligadas ao mercado da soja desempenham
papel central.
No Maranhão, por exemplo, fazendeiros, prefeitos e empresários se uniram em 2008 para defender a exclusão do Estado da Amazônia Legal, área em que vigora
a regra de preservação de 80% da Reserva Legal, ou seja,
apenas 20% das propriedades podem ser desmatadas para
uso econômico. Tendo como um dos objetivos ampliar
a área passível de expansão da soja na região, os setores
envolvidos divulgaram em agosto de 2008 uma carta em
que advogam que as propriedades localizadas na Região
Tocantina possam ter até 65% da área total desmatadas,
seguindo a proporção adotada para as fazendas localizadas
no Cerrado14.
Por outro lado, a destinação de grandes áreas
para a monocultura cria uma instabilidade do território.
“Isso porque a pecuária saiu do Centro-Sul do Estado e foi
para o Norte. E a gente sabe que onde aumenta a pecuária
aumenta o desmatamento. “E isso com grilagem de terra,
com invasão de terra”, explica Ricardo Silva. Para ele, parte das grandes empresas muitas vezes possui participação
inclusive nesses processos conflituosos, com capital forte
envolvido nessas situações.
Em Rondônia, áreas de preservação e
reservas indígenas são alvo de cobiça
O professor ressalta que a existência do zoneamento econômico no Estado não tem impedido o avanço
das atividades econômicas sobre áreas de preservação e outras. “O zoneamento representa uma política positiva em
termos de desenvolvimento sustentável, de uma pactuação
entre a sociedade sobre o uso da terra, sobre o que tem que
proteger, etc. Mas as próprias instituições tiveram muita dificuldade em aceitar, em aplicar”, explica. No Estado,
praticamente todas as áreas da zona 1, que são da atividade
econômica, estão ocupadas. Com isso, a pressão por novas
áreas desemboca sobre as reservas naturais e indígenas. E
isso se dá sob o olhar das autoridades, que muitas vezes não
fiscalizam, ou até incentivam invasões, na avaliação de Silva. “A Flona [Floresta Nacional] de Bom Futuro está com
cerca de 40 mil cabeças de gado, e os senadores, o governo
do Estado tem uma posição de defesa dos pecuaristas, dizendo que podem seguir lá, que irão defendê-los”. Para o
professor, existe uma política oculta de invasão de unidades de conservação, de devastação ambiental. E o governo
federal, por sua vez, é ausente. “Não adianta só mandar a
Polícia Federal, é necessária uma política mais afirmativa”.
Na avaliação do docente, a maior parte dos parlamentares
não se coloca a favor da idéia de sustentabilidade, inclusive
por contarem com uma forte base de pecuaristas e madeireiros, que se espraia por boa parte da população.
José Antonio Oliveira, do Departamento de Comunicação do Sindicato dos Produtores Rurais de Vilhena,
concorda em parte com o professor da Unir. Para ele, as
autoridades ambientais e fundiárias precisam investir mais
em ações preventivas, informativas, pró-ativas, de orientação, etc., em lugar de só aplicar multas e outras sanções.
Para ele, que veio do Rio Grande do Sul há 15 anos, “o
agricultor é tratado como bandido, ao passo que o índio é
paparicado”. Oliveira, que é conhecido por “Zezinho”, ressalta que Vilhena possui cerca de 1,1 milhão de hectares,
número muitas vezes menor que os hectares destinados às
reservas indígenas no Estado: são 4,5 milhões de hectares.
Para 5,2 mil índios. Ou seja, cerca de 800 hectares para
cada índio15. Tais números, para ele, comprovariam a injustiça na distribuição de terra em Rondônia.
Evandro Padovani, presidente do sindicato dos
produtores de Vilhena, traz outros
números interessantes para o debate sobre a questão fundiária em
Rondônia, que pode ser tomada
como metonímica para o restante da
Amazônia e também para as demais
regiões de expansão da soja no país.
Segundo Padovani, que veio de Cascavel, Paraná, há cerca de nove anos,
“o plantio no Cone Sul possui cerca
de 120 mil hectares de soja”. Em Vilhena, são 18 produtores de maior
relevância, com aproximadamente
Nos municípios vizinhos de Corumbiara e Chupinguaia, acrescenta Padovani, o Grupo Fertipar, do
empresário Alceu Feldmann, conta com cerca de 25 mil
hectares de soja plantados. Neste último município, são
menos produtores que em Vilhena, mas com propriedades
ainda maiores.
A vastidão das terras dos grandes produtores
supera, inclusive, fronteiras nacionais. Segundo Zezinho,
embora tal fenômeno não seja ainda corrente em Rondônia, que possui extensa fronteira (composta essencialmente
por reservas ambientais) com a Bolívia, no Mato Grosso já
existem produtores que contam com vastas áreas de plantio de soja no país vizinho.
De acordo com Vicente Godinho, a condição fundiária no Mato Grosso e no Sul de Rondônia permitiu que
a grande produção se estabelecesse ao longo desse eixo.
Segundo ele, ninguém queria plantar no Cerrado dessas
áreas, o que permitiu módulos maiores e produção em escala. “O solo daqui era tido como pobre”, conta ele. Ironicamente, a Chapada dos Parecis, que se inicia no Mato Grosso, passa por Vilhena e segue adentro em Rondônia, veio a
se tornar uma das maiores áreas contínuas para agricultura no mundo. “É algo fantástico”, comenta Godinho. “Era
um grande vazio demográfico, onde a agricultura chegou e
começou a desenvolver as cidades”.
Para o pesquisador da Embrapa, a produção de
soja, para ser competitiva hoje, precisa de escala, e o produtor tem conseguido fazer isso com destreza na região que, para ele, não é apropriada para a pequena agricultura.
No entender de Godinho, inclusive, é mais interessante e
barato para o país pagar uma remuneração direta ao produtor do que financiar a agricultura familiar. A produtividade em Vilhena, uma das melhores do país, pode ser
explicada pela condição de solo e de chuva e pelas tecnologias desenvolvidas e aplicadas localmente (a Embrapa
está na região desde 1982). Segundo Godinho, para que
seja possível a atividade se fortalecer ainda mais, precisará
de propriedades maiores. Em seu veredicto, o pesquisador
define que “o que faz a soja é a grande capacidade de produzir e de escoar”, acrescentando que o corredor formado
pela rodovia BR-364 e pela hidrovia dos rios Madeira e
Amazonas trouxe condições mínimas para o setor se estruturar ao longo da região.
A cadeia produtiva da soja enfrenta, contudo, dificuldades no último período em alguns setores. Uma delas
foi a resolução do Banco Central16, referente às condições
fundiárias e ambientais que devem existir nas propriedades agrícolas para que essas possam receber crédito bancário. Adotada em junho do ano passado, ela colaborou para
que se acentuasse o afastamento dos bancos do plantio da
soja. De acordo com Zezinho, do sindicato dos produtores, “os bancos foram saindo, diminuindo”, o que para ele
“não se deve somente à questão fundiária e ambiental, mas
também ao risco da agricultura”. Em seu entender, outro
grave problema é a ganância - que se reflete nas grandes
subidas de preço - do setor de fertilizantes. “E o governo
não tem controle sobre isso”. Para Zezinho, “o governo
precisa de política agrícola. E nem precisa ser de longo
prazo. De médio mesmo”.
Enquanto a situação junto aos bancos e ao governo não se altera, os produtores têm ampliado suas ligações
- e sua dependência - junto às traders do setor, que acabam
se fortalecendo ainda mais em âmbito regional e nacional.
Zezinho pondera: “não é que a relação com essas empresas seja boa. Ela é a solução hoje”. Para ele, se não fosse a
Amaggi e a Cargill, a situação do agronegócio no Sul de
Rondônia hoje seria muito complicada.
Soja e reforma agrária
Embora a região de Vilhena apresente-se como
um local de ótimas perspectivas para o agronegócio, certamente ela não é cobiçada unicamente por esse segmento.
Pelo contrário, produtores que chegaram antes buscam
viabilizar sua sobrevivência nessa região.
A família de Antonio Carlos Rodrigues, o Carlão, foi contemplada com um lote pelo governo militar em
1979, atraída pela propaganda voltada à colonização da
região Norte. Em 1998, a família, à revelia dele, vendeu
a propriedade, de cerca de 100 hectares, para um criador
local de gado. Recentemente, Carlão uniu-se a um grupo
de pequenos produtores, com o qual formou uma associação de agricultores em Vilhena. Acampados às margens
da rodovia BR-174, os produtores, que politicamente se
apresentam como Movimento dos Trabalhadores Acampados (MTA), pleiteiam uma área do Exército, próxima ao
aeroporto da cidade.
Em 2008, ele participou da reocupação da fazenda
Santa Elina, que em 1995 foi palco do Massacre de Corumbiara. Após três ordens de despejo, contudo, os produtores
deixaram a área, onde é criado gado. Em Colorado do Oeste, outro município da região em que o Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis esteve em abril de 2009,
um muro trazia a inscrição de um dos movimentos locais
da luta por terra, a Liga dos Camponeses Pobres: “Viva a
Reforma Agrária! A Santa Elina é do povo! - LCP”. Para
Carlão, “o avanço do agronegócio na região dificultou a situação dos pequenos produtores, claro”. Mais uma vez, uma
história de Rondônia emblemática do restante do Brasil.
O Brasil dos Agrocombustíveis
40 mil hectares de soja. Ou seja, uma média de mais de 2
mil hectares para cada produtor.
27
soja e mamona
Francisco Sales, chefe da divisão de ordenamento fundiário do Incra-RO afirma que está acontecendo na
região de Vilhena, como em todo Estado, um processo de
reconcentração fundiária. Tal situação não se repete em
todo país, mas, onde a soja avança, é em muitas ocasiões
um de seus efeitos mais evidentes (ver texto “Terra segue
concentrada, apesar das políticas de reforma agrária”).
Sales explica que, na década de 1970, Rondônia viveu um
processo intenso de colonização, com milhares de pessoas chegando do Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste,
atraídas pela propaganda do governo. “No eixo da rodovia
BR-364, foram vários os projetos de colonização e depois
de assentamento. Depois desse eixo, tais projetos foram se
espalhando pelo Estado” e o processo segue em curso.
28
Antonio Carlos Rodrigues,
o Carlão: defesa da
agricultura familiar
Ele conta que “na terra do Exército mesmo, tem
um grande plantador de soja e de milho safrinha com cerca
de 2 mil, 3 mil hectares”. A avaliação de Carlão é que “a
agricultura familiar é a solução” para a região, e que os
governos municipais, estadual e federal precisam investir
mais no segmento.
O pleito do MTA de uso das terras em questão
para fins de reforma agrária já chegou ao Exército e à Secretaria de Patrimônio da União (SPU) - a área é de propriedade da União, tendo sido arrendada à instituição das
Forças Armadas do país. De acordo com o gerente regional do Patrimônio da União em Rondônia (braço da SPU
no Estado), Antonio Ferreira, para que a SPU libere a área,
é preciso que o Exército a desafete, ou seja, abra mão formalmente de sua destinação para fins militares. Ferreira
acrescenta que a SPU está “realizando gestões para que
isto aconteça”, pois somente após tal ato do Exército a
União poderá disponibilizar a área ao Incra, que a destinará aos pequenos produtores.
Procurado pelo Centro de Monitoramento de
Agrocombustíveis, o Centro de Comunicação Social do
Exército esclareceu, laconicamente, que o Exército está
estudando o assunto. Com relação ao arrendamento de
parte da área para o produtor de soja, apontada por Carlão,
a assessoria explicou que “a Força tem arrendado áreas da
União, sob a sua jurisdição, observando, no entanto, que
os arrendatários desenvolvam atividades que possibilitem
o adestramento do Exército”. O centro de comunicação
acrescentou, por fim, que “adestramento é o preparo da
tropa para o desempenho das atividades operacionais e é
realizado por meio de exercícios de imitação do combate”.
Ele acrescenta que, sobretudo nos anos 80 e 90,
em Corumbiara, Colorado e Cerejeiras foram criados assentamentos da reforma agrária, com áreas de 100 hectares para baixo. Hoje, contudo, “muita gente está vendendo
seus lotes”, seja para comprar lotes maiores em outras regiões, seja por necessidade, seja por outros motivos. Segundo Sales, o problema tem ocorrido “em especial nessa
região da soja”.
O chefe de ordenamento fundiário do Incra-RO
afirma que tais ocorrências são irregulares, e “não admitimos que isso aconteça em área de assentamento”. Segundo
Sales, “nós depois vamos ter que retomar. Isso a reforma
agrária não admite: uma área de assentamento não pode
ser transformada em grande propriedade, em latifúndio”.
Sales explica que, ao ser beneficiado por um lote
da reforma agrária, o agricultor passa a realizar um pagamento para o Tesouro Nacional pela área com que foi
contemplado. Além disso, o Incra recomenda ao agricultor
que faça o registro da posse do lote logo que é beneficiado. A partir do registro, são esperados dez anos para que o
agricultor possa fazer a venda. E o pagamento integral do
título, previsto na maioria dos lotes utilizados para este fim
em Rondônia para ser feito em até 20 anos, poderia ser concluído antes, caso o agricultor tivesse condições e interesse.
De acordo com Sales, “a venda ou repasse da área só pode
acontecer a partir do momento que você cumpriu com o pagamento integral do título e tendo se completado dez anos
do registro”. Situação que, evidentemente, não se verifica
em boa parte dos lotes vendidos em Rondônia. E que se repete em outras regiões do país em que a soja cresce, como é
o caso de Itanhangá, no Mato Grosso, conforme denunciou
o relatório do CMA sobre a soja no ano passado.
De acordo com Sales, na região de Vilhena houve
um trabalho maior de regularização fundiária em relação
ao restante do Estado: “Teve regularização de tudo que é
tamanho. De 50 hectares a 900 hectares, que são 15 módulos para Rondônia”. Pelas regras atuais vigentes em Rondônia, até 900 hectares, o Incra pode fazer a regularização
Hoje, uma das prioridades do governo federal
para a região Norte é a regularização fundiária. Para Antonio Ferreira, da SPU-RO, a situação do Estado de Rondônia nesse processo pode ser considerada mais simples do
que a verificada nos demais Estados do Norte. “As áreas
em Rondônia estão arrecadadas pelo Incra, o que falta é
regularizar a situação dos ocupantes nas áreas possíveis de
regularização”. Segundo Ferreira, tais iniciativas serão feitas de forma mais intensa em 2009 a partir da MP 458, que
ao final de abril encontrava-se em debate no Congresso
Nacional (ver texto “Polêmica, MP 458 busca regularizar
terras na Amazônia”), e cujo texto inicial elaborado pelo
Executivo federal busca atentar especialmente para a situação do pequeno produtor.
Cabe registrar que, em Rondônia, o valor da terra
tem subido muito, o que, mais uma vez, amplia as dificuldades para os pequenos produtores. O pesquisador da Embrapa Vicente Godinho recorda-se do tempo, nas décadas
de 1970 e 1980, em que “o pessoal não queria nem terra
dada aqui no Cone Sul de Rondônia”. Segundo ele, “agora,
esquece: o preço da terra aqui é quase igual ao do Paraná”.
No Brasil, mesmo com crise financeira mundial, o
valor da terra continua a subir. E a alta recente da soja, na
Bolsa de Chicago e no mercado brasileiro, é apontada como
um dos fatores centrais dessa inflação fundiária, conforme
dados da consultoria Agra-FNP. Com a alta do dólar, a
soja voltou a ganhar força na exportação e a se valorizar.
Além do impulso do grão, o maior interesse dos investidores estrangeiros pela terra no Brasil - motivado em parte
pela própria soja também - levou o preço médio do hectare
no Brasil a um novo recorde nominal, chegando a R$ 4.373
no primeiro bimestre de 2009.
Terra segue concentrada, apesar
das políticas de reforma agrária
Publicado no início de 2009 pelo geógrafo Eduardo
Paulon Girardi, da Universidade Estadual Paulista (Unesp),
o Atlas da Questão Agrária Brasileira analisou dados oficiais
referentes ao período 1992-2003 e concluiu que as propriedades rurais no país continuam concentradas, apesar dos anos de
aplicação das políticas de reforma agrária. Naquele período de
onze anos, a estrutura fundiária brasileira aumentou 35% em
área, ou 108 milhões de hectares, para 418 milhões de hectares
no total. O maior avanço ocorreu nas regiões de expansão do
moderno agronegócio da soja. O Centro-Oeste respondeu por
35% das novas áreas incorporadas, e apenas o Mato Grosso, por
22% do total. A maior parte dos novos 108 milhões de hectares,
ou 71,9 milhões, ficou nas mãos dos grandes proprietários, en-
quanto apenas 36,5 milhões foram apropriados pelos pequenos
produtores. Isso explica porque o país continuou possuindo um
elevado índice de Gini para a terra - quanto mais próximo de
um, mais concentrado. De acordo com o Atlas, a maior parte dos
municípios brasileiros tinha índice de Gini entre médio e alto em
2003: os valores do índice entre 0,501 e 0,800 foram verificados
em 4.283 municípios (76,9% dos 5565 municípios) e compreendiam 83,1% da área total dos imóveis rurais; aqueles com grau
de concentração acima de 0,800 eram 359 (6,4%) e detinham
10,8% da área dos imóveis rurais; e aqueles com índice de Gini
de até 0,500 eram 924 (16,6%) e compreendiam 6% da área
total dos imóveis rurais.
Polêmica, MP 458 busca
regularizar terras na Amazônia
A área da Amazônia Legal (composta pelos estados da
região Norte do Brasil, além de Mato Grosso e parte do Maranhão) que carece de regularização fundiária pode chegar a 96%
das terras da região17. Este cenário explica o envio ao Congresso
Nacional, no primeiro semestre de 2009, da Medida Provisória
458, que autoriza a transferência a particulares de terrenos públicos de até 1,5 mil hectares na região. Se por um lado a medida
foi proposta pelo governo federal para trazer segurança jurídica
e garantir o direito à terra de pequenos e médios agricultores que
obtiveram legalmente suas áreas, por outro ela possibilita a legalização de áreas obtidas por meios fraudulentos. Não por acaso,
ela foi apelidada por movimentos sociais, entidades e pesquisadores como “MP da Grilagem de Terras”. Antes dela, em 2008 a
MP 422 havia sido objeto de críticas, ao aumentar de 500 para
1.500 hectares a área passível de dispensa de licitação.
A MP 458 é válida apenas para terras da União localizadas na Amazônia Legal e já arrecadadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Na prática,
isso abrange áreas em 436 municípios (sendo que em 172 deles
inclui as sedes urbanas). Ao todo, o governo prevê a regularização de 296 mil imóveis rurais, numa extensão superior a 67,4
milhões de hectares de terras federais não-destinadas18.
Uma das exigências da MP 458, que está em vigor
desde 10 de fevereiro de 2009, é que a ocupação da área rural a
ser regularizada seja anterior a dezembro de 2004. Além disso,
os posseiros beneficiados, brasileiros natos ou naturalizados, não
podem ser proprietários de outro imóvel rural, devem ter sua
principal atividade econômica advinda da exploração do imóvel e não podem exercer cargo ou emprego público em órgãos
diretamente ligados à regularização fundiária. A titulação do
imóvel rural, a cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), dispensa licitação. No caso de ocupantes de áreas
que possuam até um módulo fiscal, o processo é gratuito; para
áreas de até quatro módulos fiscais, há dispensa de vistoria prévia, ou seja, o cumprimento dos requisitos legais será averiguado
apenas por uma declaração do ocupante; e nas áreas entre 4 e 15
módulos fiscais a vistoria é obrigatória e a alienação também é
dispensada de licitação.
O Brasil dos Agrocombustíveis
fundiária direta. Entre 900 e 2.500 hectares, a lei permite
via licitação. E acima disso, somente via Congresso Nacional, que precisa autorizar.
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soja e mamona
30
Nas áreas urbanas, o MDA pode transferir a responsabilidade pela titulação aos municípios. Nesse caso, as regras
estabelecidas pela MP 458 mudam: para os ocupantes de área de
até mil metros quadrados a transferência é gratuita; nas áreas
superiores a mil e inferior a 5 mil metros quadrados não há
dispensa de licitação, mas sim direito de preferência àquele que
comprove a ocupação por um ano ininterrupto, sem oposição, até
a data de publicação da MP, de área superior a mil e inferior
a 5 mil metros quadrados. As exigências para os beneficiados
também são outras: eles não podem ter renda mensal familiar
superior a cinco salários mínimos nem possuir outro imóvel urbano ou rural acima de quatro módulos fiscais; devem utilizar
o imóvel a ser regularizado como única moradia ou como meio
lícito de subsistência.
dia de 350 a 450 toneladas de urucum por ano, sendo que em 2008
atingiu a marca de 700 toneladas. “Pretendemos chegar a 1.000 toneladas”, anima-se Joãozinho, acrescentando que os assentamentos
Vanessa e Vitória da União concentram a produção, que é feita em
todo município. “São assentamentos compostos por remanescentes
do massacre”, faz questão de frisar.
A expectativa da prefeitura é lançar em 2009 o Plano
Municipal de Desenvolvimento Rural e Ambiental, que, de acordo
com Joãozinho, “vai contar com vários programas para evitar que
o pequeno produtor entre na monocultura”. Parte dos agricultores
trabalha hoje segundo essa lógica, sobretudo aqueles inseridos na
cadeia produtiva da carne, muito forte no Estado. Com um orçamento da prefeitura “muito apertado” (cerca de R$ 13 milhões), a gestão
de Joãozinho e Selvino Boaventura tem buscado parcerias com o
governo do Estado, bem como trabalhado pela obtenção de recursos
advindos de emendas de parlamentares estaduais e federais aos
orçamentos de Rondônia e da União.
Caso | Sobreviventes do massacre constroem alternativas em Corumbiara
Em agosto de 1995, a cidade de Corumbiara, no Sul do
Estado de Rondônia, foi palco do massacre de 13 trabalhadores sem
terra. Hoje, quase 14 anos depois, sobreviventes do massacre lutam
para reescrever - mais uma vez - a história da região, pólo produtor
de soja no Estado. Após terem ocupado a fazenda Santa Elina e
resistido às emboscadas e torturas, aos assédios e à própria morte, os sobreviventes daquele que ficou conhecido como o Massacre
de Corumbiara estão à frente do processo que busca transformar a
realidade da região e construir alternativas para os pequenos agricultores. Enquanto aguardam a punição pela Justiça dos policiais,
jagunços e autoridades envolvidas no triste episódio.
O vice-prefeito João Ribeiro de Amorim (PT), o Joãozinho,
é um dos que tiveram a vida profundamente marcada pelo massacre
e que hoje trabalham para que a história seja diferente. Eleito em
2008 ao lado do prefeito Selvino Alves Boaventura (PTB), com cerca
de 95% dos votos, Joãozinho possuía dois irmãos entre os acampados na Fazenda Santa Elina em 1995. Os dois conseguiram escapar ao
massacre, mas um 3o, vereador, não teve a mesma sorte. Apoiador
do movimento pela reforma agrária na região, e aliado dos ocupantes da Santa Elina, foi assassinado em dezembro de 1995. Nascido
no Paraná, em Assis Chateubriand, Joãozinho chegou a Rondônia em
1981. No ano seguinte, a família foi contemplada pelo Incra com um
lote de 21 alqueires paulistas, ou cerca de 50 hectares. Joãozinho
conta que “o pai, agricultor, cultiva na área até hoje”.
Para desenvolver o trabalho na prefeitura, Amorim escolheu como um de seus principais assessores outro agricultor sobrevivente ao massacre. Polaco é hoje o chefe de serviços agrícolas,
principal responsável pelas atividades de campo no município.
Joãozinho explica que a atual gestão da prefeitura vai trabalhar para reverter a situação de crescente concentração fundiária
da região - capitaneada pelos setores da soja e do gado -, no sentido
de fortalecer a agricultura familiar e a produção de alimentos. Corumbiara, que possui uma população de cerca de 9.500 habitantes
(IBGE 2007) é um grande produtor de leite, e um importante produtor de urucum, comercializado junto às indústrias de cosméticos, tinturaria e alimentícia. Historicamente, o município produzia uma mé-
Área de cultivo de soja em Corumbiara
Corumbiara tem de cerca de 30 mil hectares de soja e os
principais produtores são a Fertipar e a Fazenda Santa Ana. Contudo,
não são poucas as propriedades no município em que se planta mais
de 1.000 hectares de soja. E os grandes produtores têm buscado
ampliar seus domínios, inclusive por meio da aquisição de terras da
Reforma Agrária. “Dentro do assentamento Vitória da União, muitos
agricultores estão arrendando ou vendendo os lotes para as empresas produzirem soja”, denuncia Joãozinho. Diante do prejuízo aos
pequenos agricultores, a prefeitura pretende antes recolher dados,
para então definir as ações voltadas a diminuir os impactos causados
por tal assédio. O Incra, por exemplo, confirma que a região é palco
atualmente de um processo de re-concentração fundiária, eivado de
irregularidades (ver “Impactos fundiários”).
Os problemas, contudo, não se restringem às questões
fundiárias. Os agrotóxicos utilizados no cultivo da soja estão entre as
principais reclamações dos agricultores do assentamento Vanessa. O
temor, seja em termos de saúde, ambiental ou mesmo da produção
de alimentos, se justifica, pois o veneno é lançado por avião em áreas que fazem divisa com o assentamento. Para completar o quadro,
uma usina de cana deve se instalar em breve em Cerejeiras, em
área próxima a Corumbiara. “E, assim como no caso da soja, o grupo
proprietário da usina pretende arrendar terras para produzir cana”,
finaliza Joãozinho.
O Brasil dos Agrocombustíveis
Para fortalecer a agricultura familiar, a prefeitura acredita
ser importante permitir aos produtores que se tornem independentes dos atravessadores. Além disso, o município pretende fortalecer
a Feira da Agricultura Familiar, que já ocorre, e realizar a primeira
edição da Festa do Urucum. Joãozinho explica que o Executivo municipal não conta com políticas mais voltadas aos grandes produtores.
“Eles já possuem a estrutura deles, com secador próprio de grãos,
caminhões, todo o maquinário”, lembra, acrescentando que recentemente o governo do Estado asfaltou a rodovia que liga Corumbiara a
Cerejeiras, a fim de facilitar o escoamento da soja e do gado produzidos na região.
31
soja e mamona
Capítulo_5
Impactos sobre
Indígenas
Branco foi o primeiro Paresi a
plantar soja na terra indígena
32
À medida que a produção da soja cresce no Brasil,
aumenta também a pressão do agronegócio sobre as terras
indígenas. Não por acaso, a 2ª Assembléia Geral da Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (Mopic), ocorrida em dezembro de 2008, teve como tema “O impacto
da soja sobre as terras indígenas do Cerrado”. Estiveram
presentes no evento representantes de 24 etnias: Xavante,
Bakairi, Nambikwara, Paresi, Umutina, Enawenê Nawê,
Rikbaktsa, Apiaká, Kayapó, Panará, Kisêdjê, Kamaiurá,
Kuikuro, Ikpeng, Waurá, Yudja, Mehinako, Guarani Kaiowa, Guarani Mbya, Terena, Kinikinawa, Xerente, Javaé,
Xacriabá. O encontro aconteceu na terra indígena Wawi,
do povo Kisêdjê, no Mato Grosso.
A Mopic é uma articulação relativamente nova,
cuja assembléia inaugural ocorreu em dezembro de 2007.
Já no primeiro documento de propostas e reivindicações19,
a necessidade de maior organização e fortalecimento dos
povos indígenas do Cerrado surge como resposta aos impactos negativos “do agronegócio, da agropecuária e atualmente da produção de biocombustíveis”. Na carta resultante da segunda assembléia20, há denúncias que podem ser
inseridas nas quatro categorias de ameaças estabelecidas
no primeiro relatório do Centro de Monitoramento de
Agrocombustíveis21: ocupação direta de terras tradicionais
já garantidas pelo Estado brasileiro; degradação ambiental
do entorno de territórios tradicionais, afetando as comunidades; pressão política ou judicial contra a demarcação
de terras demandadas como tradicionais, já reconhecidas
por estudos socioantropológicos; e ocupação consentida de
terras tradicionais, por meio das chamadas “parcerias”.
Ocupação direta
de terras indígenas
A Terra Indígena (TI) Manoki, do povo Irantxe,
e a TI Maraiwatsede, do povo Xavante, são dois casos emblemáticos de invasão de territórios tradicionais já garantidos pelo Estado brasileiro. Ambas as áreas ficam no Mato
Grosso e possuem fazendas de soja produzindo ilegalmente dentro delas.
A TI Manoki já foi reconhecida oficialmente como
terra indígena e, no início do ano, a Fundação Nacional do
Índio (Funai) abriu edital para contratar as empresas que
farão a demarcação da área. Ela tem 205 mil hectares e é
contínua à TI Irantxe - área com 45 mil ha já demarcada e homologada, onde vivem cerca de 400 indígenas que
aguardam a consolidação do território ampliado para voltarem a ocupá-lo. As duas TIs em questão estão dentro do
município de Brasnorte, no centro-oeste do Estado, região
produtora de soja.
O Grupo de Trabalho que estudou a reivindicação dos Irantxe de demarcar a Terra Iindígena Manoki
foi criado pela Funai em 2000. Enquanto uma área permanece em estudo para eventual demarcação como território indígena, não é permitida sua exploração econômica.
Apesar disso, entre 2000 e 2005, o desmatamento na área
Manoki passou de 18,9 mil para 35,5 mil hectares. Essa
destruição ambiental aconteceu principalmente em virtude
de empreendimentos agropecuários irregulares: a Fazenda
Melhoramentos Agrários de Diamantino, localizada totalmente dentro da TI Manoki e cuja atividade principal é a
sojicultura, tinha 637 ha desmatados em 2000. Em 2005,
a área desflorestada atingiu 8.994 hectares, de um total de
39.840 ha da pretensa propriedade. Em termos relativos, a
destruição da área da fazenda subiu de 1,6% para 22,6% de
sua área total.
Outro exemplo é a Fazenda Membeca, que de
2003 a 2006 promoveu o desmatamento ilegal de mais de
8 mil hectares de florestas dentro da TI Manoki. Em 2006,
após um trabalho de pesquisa na região, o Greenpeace23
denunciou que tanto a Cargill quanto a Bunge, por meio de
silos instalados em Brasnorte, compravam soja da Fazenda
Membeca. O rastreamento também conseguiu comprovar
que a Cargill exportava soja daquela área, em seu porto
instalado em Santarém (PA).
A TI Maraiwatsede, com 165 mil hectares nos
municípios de São Félix do Araguaia e Alto da Boa Vista,
na região nordeste do Mato Grosso, já foi demarcada e homologada. Nem por isso os problemas enfrentados pelos
630 membros do povo Xavante que vivem nela são menores. Eles estão confinados em uma única aldeia, também
chamada de Maraiwatsede, e a hostilidade de fazendeiros
e posseiros impede que transitem com segurança por seu
território. Locais sagrados para a cultura Xavante, como
antigos cemitérios do seu povo, estão invadidos, e há inclusive um núcleo urbano dentro da terra indígena, conhecido
como Posto da Mata.
O histórico que levou os Xavante a este confinamento forçado é dramático. Nos anos 60, o governo
brasileiro apoiou a criação de um grande empreendimento
agropecuário no território Xavante: a Fazenda Suiá-Missu. Em 1966, a Força Área Brasileira (FAB), com anuência
do Serviço de Proteção ao Índio24, transportou os Xavante
que moravam na área para uma missão salesiana (a missão
São Marcos), a 400 quilômetros da região. À transferência
forçada seguiu-se a dispersão dos indígenas para outras
áreas dos Xavante e inclusive de outros povos indígenas.
Nos anos 90, os Xavante expulsos de Maraiwatsede iniciaram uma campanha internacional pela recuperação de
seu território original. Em 2004, uma decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) autorizou o retorno deles, mas
não proibiu a permanência dos não-índios.
A TI Maraiwatsede é atravessada no sentido norte-sul pela BR-158, rodovia ao longo da qual a produção
de soja vem se expandindo e cujo asfaltamento é estratégico para o escoamento da produção nacional de grãos
(ver Caso BR-158 na página 9). No relatório de impacto
ambiental da obra25 estão listados os riscos para o povo
Xavante: atropelamentos, acidentes com cargas perigosas
que contaminariam os recursos naturais utilizados diretamente pelos indígenas, e aumento da pressão pelo uso das
margens da rodovia para atividades agropecuárias comerciais (o que geraria novas invasões do território).
Degradação ambiental
Maraiwatsede é uma palavra Xavante que significa mato bonito. Com o histórico de invasões, porém,
a bela vegetação deste território indígena corre risco de
extinção. Dados de monitoramento por satélite divulgados
em março deste ano pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe) revelam que o desmatamento na Amazônia caiu 70% de novembro de 2008 a janeiro de 2009, em
relação ao mesmo período entre 2007 e 200826. Dentro das
áreas indígenas, porém, ele teria aumentado 9%, sendo que
a TI Maraiwatsede lidera o triste ranking da destruição,
com 47,3 Km² desmatados no referido trimestre.
O Brasil dos Agrocombustíveis
A seguir, discutiremos separadamente cada um
desses quatro tipos de ameaça. Por se tratar de um relatório de atualização, daremos ênfase aos casos que sofreram
impactos mais evidentes nos últimos doze meses. A seleção
desses exemplos se deu a partir de pesquisa de campo no
Mato Grosso e de consulta às principais entidades envolvidas diretamente com o tema22.
33
soja e mamona
34
Mas os danos ambientais da monocultura de soja
que afetam os povos indígenas não acontecem somente
quando as plantações se localizam dentro de seus territórios garantidos pelo Estado. Também em março deste
ano, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) divulgou o embargo de
50 mil hectares de lavouras sem licenciamento ambiental
em Brasnorte (MT). O Grupo Fronteira, responsável pela
área, acumula cerca de R$ 11 milhões em punições por crimes ambientais e, desta vez, foi multado em R$ 990 mil.
As plantações em questão são vizinhas a duas terras indígenas: TI Menku, do povo Myky, e TI Enawene Nawe, do
povo de mesmo nome.
Os Xavante da TI Sangradouro, no município de
Primavera do Leste (MT), também sentem os efeitos do
agronegócio de exportação, baseado na utilização de adubos químicos e agrotóxicos nas lavouras mecanizadas de
soja. Lá é a terra natal do coordenador da Mopic, HiparidiXavante. “Nossas aldeias sofrem com os aviões que passam
sobre nós jogando agrotóxicos e fazendo vôos rasantes,
para nos assustar”, relatou ele.
A pesquisadora Maria Lúcia Gomide defendeu
neste ano sua tese de doutorado27 propondo a conectividade das terras indígenas Xavante inseridas na Bacia do Rio
das Mortes, atualmente fragmentadas por meio de fazendas de soja e pecuária. Na TI Sangradouro, ela coletou o
seguinte depoimento do indígena Ruriõ:
“ (…) Em Sangradouro a gente gostaria que as cabeceiras,
as nascentes que começam fora da área indígena seja conservada, também pedaço de mata chamado galeria porque
os córregos que vai abastecer as cabeceiras dentro da área
indígena não seja poluída , a gente vê que existe muitas fazendas bem encostadas nas margens dos rios, e córregos.
Então o esterco, o veneno que coloca na soja escorre tudo
no rio, imagina rio Sangradouro começa lá fora e passa lá
dentro, e todo ano nós fazemos o ritual grande que usa o rio
que esta poluída, perfuração da orelha, a iniciação do waia
chamado também segredo dos homens, usa muito desse rio.
(...)” (RURIÕ, 2003)28
Pressão política e judicial
O lobby político e judicial estabelecido pelo setor
ruralista a favor de seus interesses, via de regra, representa
uma ameaça indireta aos indígenas. Em alguns casos, ele se
manifesta como uma violenta campanha declarada contra
os direitos desses povos tradicionais. No contexto da soja,
um exemplo elucidativo é o da Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado do Mato Grosso (Famato), cujo presidente licenciado, Homero Pereira, é deputado federal pelo
Partido da República (PR). O parlamentar apresentou no
segundo semestre de 2008 um Projeto de Decreto Legislativo (PDC) na tentativa de cancelar a Portaria n° 1.429,
assinada pelo ministro da Justiça Tarso Genro em agosto,
declarando a posse permanente do povo Irantxe sobre a
Terra Indígena Manoki.
Além disso, Pereira é autor do projeto de lei (PL
490/2007) que propõe demarcar terras indígenas por
meio de leis, ou seja, apenas com aprovação dos deputados
federais e senadores. Entidades indígenas e indigenistas já
se manifestaram contrárias à proposta, que altera o procedimento legal vigente no país29, no qual a demarcação de
terras indígenas é atribuição exclusiva da Funai. O PL 490
está há dois anos em tramitação no Congresso Nacional
e recebeu apoio público da Famato. “Passando a competência para o Congresso, evita-se qualquer tipo de laudo
tendencioso que vem beneficiar grupos que querem tirar
proveito de situações e usar o índio como massa de manobra”, manifestou-se por escrito o primeiro-secretário da
entidade, Valdir Correa.
Parcerias agrícolas
As parcerias agrícolas entre indígenas e fazendeiros ou empresas agropecuárias são defendidas como legítimas pelo povo Paresi, que neste ano colheu 12 mil hectares
de soja no Mato Grosso (leia mais sobre esta experiência
da monocultura de soja em terras Paresi no texto abaixo).
Dados sobre a lavoura mecanizada de soja em outras terras
indígenas, porém, parecem confirmar a suspeita de ONGs
socioambientalistas de que os contratos de parceria funcionam na prática como arrendamentos de terras tradicionais,
prática ilegal.
Na TI Ligeiro, no Rio Grande do Sul, a monocultura mecanizada gerou concentração de renda entre os 1,9
mil Kaigang que vivem lá e dividiu as aldeias. Em 2005,
300 indígenas que não concordavam com o uso do território para produção comercial de soja foram retirados à força da área pelas lideranças que coordenavam a negociação
com os fazendeiros. As disputas internas se tornaram tão
graves que a Funai foi obrigada a criar um Grupo de Trabalho (GT) para mediar o conflito e, com apoio da Polícia
Federal, reconduzir à TI Ligeiro os indígenas expulsos.
A antropóloga da Funai que coordenou o GT, Juracilda Veiga, contou que neste ano o órgão fará uma avaliação do esforço de gestão territorial na TI Ligeiro. Ela
apresenta como indicativo de que a ação governamental
teve aspectos positivos o fato de lideranças de outra terra
indígena Kaigang com presença de monocultivo de soja terem solicitado no fim do ano passado ao Ministério Público Federal um trabalho de intervenção similar ao realizado
na TI Ligeiro. “O lado mais perverso da soja é inserir a
lógica de mercado nas terras indígenas, deixando muitas
famílias sem acesso à terra. Como uma cultura que exige
mecanização, ela só é economicamente viável se plantada
em grande escala”, argumentou a antropóloga.
Há um ponto que une setores favoráveis e contrários às parcerias agrícolas: a análise de que elas surgem em
um contexto de dificuldade de efetivação de políticas públicas que garantam a sustentabilidade dos povos indígenas.
“Vejo esta iniciativa como uma grande fonte de renda para
os índios, que, por muitas vezes, passam por dificuldades
de atendimento médico, escolar e alimentar”, opinou o primeiro-secretário da Famato. “A Funai é conivente com
essa realidade. Os gestores se justificam ponderando que
não há alternativas de renda para os indígenas”, sustentou
Francisca Ângelo, a Chiquinha Paresi, membro do Conselho Nacional de Política Indígena (CNPI).
como o fornecimento de adubo, semente, veneno, combustível e aluguel das máquinas agrícolas, é bancado pelo parceiro não-indígena.
A receita líquida é dividida de forma igual entre o fazendeiro e a
associação indígena, que deposita metade da verba em uma conta no
Banco do Brasil e destina o restante a aquisições coletivas e à divisão
entre as famílias de cada aldeia envolvida com a respectiva lavoura.
Ângela Zunizakae mora na aldeia Bacaval, na terra indígena Utiariti, em Campo Novo dos Parecis (município que, em 2007,
ocupou o quarto lugar do ranking nacional de área plantada de soja,
com 298 mil hectares). Lá, a associação indígena Waymaré possui um
contrato de fornecimento de insumos agrícolas com a Incofal Indústria e Comércio de Farelo, relativo a uma área de mil hectares. Na safra passada, a família de Ângela, assim como as outras 10 que vivem
na aldeia, recebeu R$ 2 mil pela repartição dos lucros da lavoura. “Deu
para eu construir minha casa”, conta ela, orgulhosa, enquanto mostra
a casa de madeira avarandada - estilo arquitetônico que domina a
paisagem da aldeia, ao lado das malocas de palha usadas para rituais
e, em menor escala, como moradia.
Ângela construiu a casa
com o dinheiro da soja.
Caso | Povo Paresi: os índios sojeiros do MT
Em 2009, os Paresi estão colhendo no Mato Grosso 12 mil
hectares de soja, a quinta safra desde que se iniciaram contratos de
parceria com fazendeiros e com uma empresa da região. A existência
de lavoura mecanizada nas terras indígenas (TIs) Paresi, Rio Formoso
e Utiariti, se por um lado representa conquistas para esse povo (como
o retorno às aldeias dos homens que trabalhavam nas fazendas e a
obtenção de renda para investir em projetos comunitários), por outro
abre um precedente que preocupa as demais etnias que vivem no
Cerrado e nas áreas de transição com a floresta amazônica.
As terras indígenas são bens da União, de usufruto exclusivo de seus moradores tradicionais. Por isso, o Estatuto do Índio (de
1973) não permite que elas sejam arrendadas, proibição reforçada pela
Instrução Normativa no. 3 de 2006 da Fundação Nacional do Índio
(Funai). Organizações não-governamentais (ONGs) socioambientais e
o movimento indígena temem que os contratos de parceria representem uma forma de driblar a lei. “Eles são apenas outro nome do arrendamento. Os tratores são do branco, os lucros também”, argumentou
o coordenador da Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (Mopic), Hiparidi-Xavante.
No caso dos Paresi, porém, a questão não parece tão simples. São os indígenas que trabalham na lavoura, inclusive na operação das máquinas, graças à experiência adquirida como funcionários das fazendas e aos cursos ministrados pelo Serviço Nacional de
Aprendizagem Rurarl (Senar). O pagamento dessa mão-de-obra, assim
“As pessoas falam que deixamos de fazer festas tradicionais. A gente não faz mesmo festa para a soja, porque não é da nossa
cultura. Mas fazemos oferta para o milho, o arroz”, afirmou o coordenador de lavoura da aldeia Bacaval e irmão de Ângela, Arnaldo Zunizakae, mais conhecido pelo apelido de “Branco”. “Hoje já não vivemos
só da caça e da pesca e isso tem custo. Para fazer festa hoje, a gente
precisa de dinheiro”, argumentou ele, acrescentando que graças à
lavoura da soja os 52 moradores de Bacaval voltaram a plantar milho
(mas já de forma mecanizada, na chamada safrinha, cuja produção
também é comercializada).
Os benefícios da agricultura comercial, porém, não são
unanimidade entre os Paresi. As críticas mais contundentes, em geral,
vêm dos mais velhos. “Para mim a soja trouxe divisão. No meu ponto
de vista, o povo ficou muito individual, olhando só para o que é dele”,
afirmou Carmindo André Orezu, que também mora na TI Utiariti, na
aldeia Salto da Mulher, comunidade responsável por uma área de 500
hectares de lavoura. A mulher dele, Emília Zolazokero, ainda faz “roça
de toco”, a agricultura familiar dos Paresi, baseada em tubérculos
(especialmente a mandioca). “Eu tenho cabaça de chicha [bebida tradicional], faço beiju e carne moqueada no centro da maloca. Quando
era pequena, não tinha outra comida e eu não achava falta de nada.
A gente comia isso de manhã, no almoço, à noite e estava satisfeito.
Hoje a criança acorda para ir pra escola e se não tiver leite, bolacha e
bolo, não come nada”, contou ela.
O Brasil dos Agrocombustíveis
A terra indígena em questão é a TI Cacique Doble, também localizada no Rio Grande do Sul, onde vivem
500 Kaigang. De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpin-SUL), lá ocorre inclusive plantio de
soja transgênica. “O arrendamento [de terras tradicionais]
hoje faz parte da cultura Kaingang, mas foi algo imposto.
O SPI arrendava terra dos indígenas para as serrarias e
expulsava quem era contra”, declarou Romancil Cretã, o
coordenador da entidade e um membro do povo Kaigang.
“Quando o presidente Lula assinou a polêmica Medida Provisória que liberava plantação de transgênicos e excetuava
entorno de unidades de conservação e áreas indígenas30,
lideranças Kaigang da TI Cacique Doble escreveram para
ele reclamando que ficaram de fora”, revelou a antropóloga
do Instituto Sócioambiental (ISA), Fany Ricardo.
35
soja e mamona
Emília lamenta a mudança dos hábitos alimentares
36
Para Branco, “cultura que não muda é a que está no museu” e a mudança de hábitos alimentares significa um avanço. “A gente estava passando fome, só comendo beiju, farinha, carne de caça
e pesca. Hoje no nosso prato tem carne de boi, café, pão, fruta, uma
alimentação mais equilibrada”, defende ele, que há menos de um ano
também trabalha como coordenador de saúde da Associação Indígena
Halitinã, conveniada com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para
o atendimento dos 1.584 Paresi que vivem em nove terras indígenas
no Mato Grosso, todas elas já demarcadas. Nos anos 1960, segundo
dados da Funai, os Paresi eram apenas 360 pessoas. A taxa de crescimento atual desse povo é alta: 7,2% ao ano. Em 2004, quando as
parcerias agrícolas começaram, nasceram 48 Paresi e morreram três,
sendo um deles menor de um ano. No ano passado, foram 55 nascimentos e 4 óbitos, nenhum de crianças.
Política integracionista
Branco, Ângela, Carmindo e Emília concordam em um ponto. A inserção dos Paresi na sociedade do consumo é bem anterior ao
estabelecimento das parcerias agrícolas. O antropólogo Ivar Bussato,
atual coordenador da ONG Operação Amazônia Nativa (Opan), apoiou
os Paresi na batalha pela garantia de seu território. Ele afirmou que
o contato desse povo com o modelo civilizatório capitalista data do
século XVII, quando parte dos indígenas foi escravizada pelos bandeirantes. Desde então, o cotidiano dos Paresi passou a ser impactado
pelos ciclos econômicos que marcaram a região: eles trabalharam na
coleta da seringa e da poaia (erva de cujas raízes se extrai a emetina,
usada como princípio ativo em medicamentos), como guarda-fios e
guias das comissões telegráficas (motivo pelo qual ficaram conhecidos como “os índios de Rondon”), como vendedores de artesanato na
beira da BR-364 (construída em 1961, cortando o território Paresi de
leste a oeste) e, a partir da década de 1970, com a expansão da fronteira agrícola por colonos do sul do país, como mão-de-obra barata na
implementação das fazendas.
Paresis trabalharam na abertura
da linha telegráfica de Cuiabá
A mãe de Branco e Ângela, por exemplo, foi interna do
centro missionário e só aprendeu a língua indígena com o marido,
já adulta. Apesar disso, o casal sempre privilegiou o português nos
seus diálogos. Branco fala bem Pareci porque passou parte da infância
com os avós, na aldeia Formoso. Ângela, por sua vez, seguiu o caminho materno: tornou-se fluente em Paresi apenas quando se casou e
passou dois anos na aldeia do marido, Juininha. Em Bacaval, as lições
da professora indígena Graciele Zuizukaeru são todas em português.
Pela manhã, ela dá aulas a 11 crianças de 4 a 12 anos, todas reunidas
na mesma sala. Os jovens que chegam à 5a. série são obrigados a
estudar na cidade: todos os dias, 13 estudantes de Bacaval pegam o
ônibus na aldeia às 11h00 e só retornam às 19h00, enfrentando uma
esburacada estrada de terra por onde transitam também muitos caminhões carregados de soja.
O histórico de interação com a chamada cultura ocidental
ajuda a explicar por que desde 1992 os Paresi reivindicam ao governo
federal apoio para a agricultura em grande escala. De acordo com
o administrador-executivo regional da Fundação Nacional do Índio
(Funai) em Tangará da Serra (MT), Carlos Márcio Vieira Barros, a demanda inicial era por financiamento direto. Em setembro de 2003,
após um protesto no qual os Paresi retiveram cinco funcionários da
Funai durante uma semana, o presidente do órgão assinou a Portaria
865, na qual autorizava o gestor local da Funai a assinar documentos
junto ao Banco do Brasil para obter financiamento agrícola por meio
da penhora da safra. O banco não liberou qualquer crédito, mas os 19
contratos de parceria agrícola que começaram a ser firmados em dezembro citam a Portaria 865 na cláusula que trata “da garantia entre
a comunidade e o fornecedor”.
Branco foi o primeiro Paresi a trabalhar com agricultura
mecanizada dentro do território indígena, ainda em 1997, após ser funcionário de uma fazenda durante nove anos. “Quando saí de lá, meu
ex-patrão me doou uma plantadeira velha e me emprestou um trator.
O combustível eu conseguia com a prefeitura de Sapezal”, revelou. De
início, ele plantou 45 hectares de arroz. Na safra seguinte, foram 60
hectares. No terceiro ano, em 1999, quando a área da lavoura mecanizada atingiu 90 hectares, o arroz já dividia espaço com a soja. Em
2000, a soja já era a cultura principal dos 150 hectares plantados pela
família Zunizakae.
A lavoura mecanizada nas terras indígenas Paresi, que somam 1,3 milhão de hectares, não pode se expandir além dos 15.450
hectares já aceitos a contra-gosto pela Funai e pelo Ministério Público
Federal (MPF), divididos em 17 lavouras não contínuas. Os outros dois
contratos são referentes a mais duas plantações de mil hectares cada
uma, na TI Irantxe, do povo de mesmo nome, e na TI Tirecatinga, dos
Nambikwara. A localização de cada lavoura levou em conta preocupações ambientais: áreas planas, distantes de cursos d´água e das aldeias. Ainda assim, o desmatamento nessas áreas não foi autorizado
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Reno-
váveis (Ibama), que agora cobra da Funai a regularização ambiental..
A região onde vivem esses três povos indígenas é considerada um
berço de águas: lá nascem os rios Paraguai e Guaporé, além dos principais afluentes do rio Juruena.
A busca por alternativas
Os contratos de parceria entre os indígenas e os fazendeiros são válidos até 2012. As aldeias cujos moradores já tinham
contato anterior mais intenso com agricultura mecanizada, como a
Bacaval, devem utilizar a verba guardada no Banco do Brasil para tentar permanecer no agronegócio por conta própria. Branco afirmou que
comercialização direta da soja será o grande desafio e que aposta no
mercado de agrocombustíveis para superá-lo, embora na região, até o
momento, haja apenas usinas canavieiras. “Eu adoraria dizer que estamos exportando nossa produção, mas não é verdade. O Blairo Maggi
[governador do Mato Grosso] é meu amigo pessoal e não compra um
grão da nossa soja, porque sabe que pode dar problema. Nossa soja
hoje vai para produção de ração”, declarou o indígena.
A conta-investimento na qual é depositada metade da renda líquida da soja está em nome da associação indígena Waymaré.
De acordo com Branco, o saldo dela é de R$ 1,4 milhão e deve atingir
R$ 2,2 milhões até o fim deste ano. Dinheiro que, por exigência da
Funai e do MPF, só pode ser sacado ao fim dos contratos. O índio
empreendedor reconhece, no entanto, que a maioria das comunidades envolvidas na agricultura mecanizada deve investir em fontes de
renda mais familiares à sua cultura tradicional, como a produção e a
venda de artesanato.
A Associação Halitinã, inclusive, usou parte do lucro já disponível da soja como contrapartida para a criação de peixes em tanques-rede, com apoio da Secretaria Nacional de Aqüicultura e Pesca.
Além disso, desenvolve o projeto Kani - Sustentabilidade e Geração
de Renda na Extração do Pequi, com financiamento do programa Petrobras Fome Zero.
“Esses projetos alternativos em geral carecem de acompanhamento técnico regular e de viabilidade econômica”, opinou Ivar
Bussato. “Os Paresi lutaram pela terra, sobreviveram, têm direito a
decidir sua história e seu jeito de viver hoje. O modelo agrícola que
eles adotam é o da região, direcionado pelas multinacionais de semente e agrotóxicos”, ponderou o antropólogo. “Se eles plantassem
organicamente, ninguém iria criticar, poderia ocupar dez vezes a área
atual. Mas eles não dispõem desse modelo: o que têm é o da concentração de renda”, completou ele.
O Brasil dos Agrocombustíveis
“Em 1945, os jesuítas criaram um centro missionário em
Utiariti, onde desde 1910 funcionava uma estação telegráfica”, relata
Bussato. Para Emília, foi o início da desestruturação da cultura Paresi.
“As coisas começaram a mudar com os jesuítas, tinha crianças de
várias aldeias que estudavam lá e eram proibidas de falar o idioma”,
explica ela. De fato, as aldeias onde atualmente há menos falantes do
Paresi, língua pertencente ao tronco Aruak, são aquelas nas quais a
ação catequisadora da chamada Missão Anchieta foi mais forte.
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soja e mamona
38
Capítulo_6
Considerações Finais
e Recomendações
A produção de soja no Brasil continua longe de
merecer o rótulo de “sustentável” ou “responsável”. Seu
modo de produção voltado ao mercado externo, baseado
na grande propriedade e no uso intensivo de agrotóxicos,
gera uma série de impactos sociais e ambientais no país.
Permanecem válidas, portanto, as recomendações apresentadas no primeiro relatório do Centro de Monitoramento
de Agrocombustíveis (CMA) da Repórter Brasil.
Entre essas propostas de ação para o setor público e o empresarial, com objetivo de mitigar os impactos
negativos do produto mais importante da pauta agrícola
nacional, estão: o aumento da fiscalização trabalhista e
ambiental; o incentivo a práticas agrícolas alternativas;
o cancelamento de contrato de pré-financiamento e/ou
compra de soja de produtores localizados em terras indígenas ou quilombolas; a exigência de apresentação de
documentos definitivos de propriedade de terra na assinatura de contrato de pré-financiamento entre tradings
de soja e produtores. E, principalmente, a reorientação
da política agrária nacional com vistas à garantia da soberania alimentar e à construção de um modelo de desenvolvimento mais justo. Para isso, é fundamental a
realização da reforma agrária, aliada à criação de alternativas de emprego e renda no campo.
Na safra 2008/2009, parte da bilionária dívida da agricultura empresarial brasileira foi renegociada
sem que as instituições financeiras incluíssem as contrapartidas ambientais e sociais defendidas pelo CMA,
como a manutenção da reserva legal das propriedades e
a formalização das relações de trabalho. No tocante a novos financiamentos, porém, houve avanços, pelo menos
no bioma amazônico: o Conselho Monetário Nacional
condicionou a concessão de créditos rurais por bancos
públicos e privados à apresentação do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) e de certidões ou licença
ambiental do imóvel onde o projeto será executado.
Outra boa notícia recente é a assinatura do
protocolo de intenções entre o Ministério do Meio Ambiente, a Universidade Federal de Goiás e organizações
não-governamentais para viabilizar a implementação
do Programa de Monitoramento por Satélite do Bioma
Cerrado, a exemplo do que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) já realiza na Amazônia. O Cerrado deveria herdar da floresta amazônica também um
mecanismo como a moratória da soja, por meio do qual
a Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais
A produção de biodiesel no Brasil continua tendo a soja como principal matéria-prima, beneficiando especialmente a agricultura empresarial. Para que os agrocombustíveis sejam de fato um vetor de fortalecimento
da agricultura familiar, a Petrobras deve consolidar seu
papel estratégico, mas não exclusivo no Programa Nacional de Produção e Uso de Biocombustíveis (PNPB).
Na prática, isso significa garantir instalações de esmagamento de outras oleaginosas nas usinas já instaladas pela
estatal e naquelas em planejamento, além de investir em
assistência técnica ampla, a partir de uma perspectiva de
desenvolvimento e a melhoria da renda dos agricultores,
como reivindica o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST).
É necessário defender a legislação ambiental e
indigenista, vistas como obstáculos à expansão do agronegócio no Brasil. Não por acaso, no último ano, aumentou a pressão por mudanças no Código Florestal, com
propostas de alteração que atendem ao desejo de maximização do lucro dos grandes proprietários rurais em
detrimento da preservação do meio ambiente. Na mesma
linha, os sojicultores realizam lobby para alterar o processo de demarcação de terras indígenas, de modo que a
garantia dos direitos territoriais de povos e comunidades
tradicionais fique condicionada aos interesses da bancada ruralista. Contra essas mudanças, as organizações da
sociedade civil podem cumprir um papel destaque.
O Brasil dos Agrocombustíveis
(Abiove) e a Associação Brasileira dos Exportadores de
Cereais (Anec) se comprometeram a não comprar o grão
produzido em áreas desmatadas da Amazônia após a assinatura do acordo (que se deu em julho de 2006).
39
soja e mamona
MAMONA
40
No primeiro semestre de 2008, quando o preço
do barril de petróleo começou a bater sucessivos recordes
- chegando a US$ 142 em julho -, houve quem expressasse otimismo com uma possível abertura de espaço para o
crescimento de energias alternativas, em especial os agrocombustíveis. No Brasil, porém, essa expectativa foi abandonada quando o custo das matérias-primas de biodiesel,
ao acompanhar o petróleo, acabou onerando a indústria
nacional em tal medida que várias usinas não foram capazes de entregar o volume de agrocombustível contratado
pelos leilões da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Agrocombustíveis (ANP).
Com a eclosão da crise econômica mundial no segundo semestre de 2008, o preço do petróleo caiu abruptamente, barateando também as commodities no mercado internacional. Concomitantemente, porém, o biodiesel - bem
como óleos vegetais utilizados como alternativa aos fósseis - perdeu competitividade, o que, de acordo com especialistas no mercado internacional de óleos vegetais, atingiu também a mamona.
No início de 2009, uma análise da ICIS Chemical
Business1 acerca do mercado mundial de óleo de mamona
concluiu que, com o petróleo barato, a expectativa é que a demanda pelo produto recue em relação a 2008, assim como a
sua rentabilidade (o preço do óleo de mamona já caiu de US$
2 mil por tonelada no ano passado para US$ 1 mil este ano).
Ainda de acordo com a ICIS, esta conjuntura poderá levar a
uma diminuição mundial da área plantada de mamona.
No Brasil, segundo o relatório de safra da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) de abril de 2009,
este fenômeno já ocorre. Em comparação com 2008, quan-
A queda da área plantada de mamona no Brasil,
no entanto, pouco tem a ver com petróleo ou outros fatores
que vêm abalando os humores do mercado internacional.
De acordo com a indústria ricinoquímica no Brasil, a demanda pela mamona continua acima da capacidade produtiva dos agricultores, os preços pagos na Bahia, maior estado
produtor, foram excepcionalmente bons em 2008, e a aposta na oleaginosa por parte da Petrobras, que inaugurou três
novas usinas de biodiesel nos últimos dez meses (em Quixadá, no Ceará, Candeias, na Bahia, e Montes Claros, Minas Gerais), deve aumentar a concorrência no mercado interno. Então por que a mamona perdeu espaço no país?
Na avaliação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), um dos problemas envolvendo o cultivo da oleaginosa - praticado quase que exclusivamente pela
agricultura familiar - foi a sucessiva quebra de acordos de
usinas de biodiesel com os produtores (atrasos nos pagamentos, abandono da produção etc.), causando desconfiança e rejeição em relação à cultura. Já setores organizados
ligados aos agricultores culpam as empresas e os órgãos
governamentais, apontando falta de qualidade da assistência técnica, atraso na entrega e baixa qualidade das sementes, e falta de incentivos.
Em meados de 2008, a cultura sofreu um revés
quando a ANP considerou o óleo puro de mamona impróprio para a produção de biodiesel em função de sua viscosidade. O governo, que havia elevado a oleaginosa a símbolo do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel
(PNPB) desde o seu lançamento, em 2004, reagiu, argumentando que a mistura do óleo de mamona a outros óleos
vegetais aumenta a qualidade do agrocombustível, discurso
encampado também pela Petrobras Biocombustíveis, ramo
da estatal criado no ano passado.
Seja como for, tanto o MDA quanto a Petrobras
reconhecem que a mamona está longe de virar biodiesel.
As usinas que continuam comprando a produção da agricultura familiar o fazem para garantir a concessão do Selo
Combustível Social, mecanismo que vincula uma série de
incentivos fiscais à aquisição de matéria-prima da agricultura familiar e, mais importante, possibilita a participação
das usinas nos leilões de biodiesel da ANP. Em função da
valorização da oleaginosa no mercado ricinoquímico, a mamona adquirida pelo setor do biodiesel é praticamente toda
revendida à indústria química, transformando as usinas, em
última instância, em meros atravessadores.
Já no campo, a maioria dos agricultores pouco se
importa com o destino de sua produção. Na Bahia, maior
estado produtor de mamona do Brasil desde a década de
1970, os sertanejos do Semi-árido cultivam a oleaginosa
como uma alternativa econômica, um “seguro-safra” mais
resistente à seca, que garantirá uma renda mínima em caso
de perdas das lavouras de milho e feijão. Em 2008, comemoraram a alta dos preços forçada pela concorrência das indústrias de biodiesel num mercado tradicionalmente dominado pelas companhias ricinoquímicas, que produzem por
exemplo lubrificantes e cosméticos, mas seu interesse pelo
agrocombustível pára por aí.
O Brasil dos Agrocombustíveis
do o país plantou cerca de 160 mil hectares de mamona, a
Conab prevê uma diminuição de 7,8% da área ocupada pela
oleaginosa este ano (cerca de150 mil hectares). Esta queda
atinge principalmente a região Nordeste, maior produtora
do país, que, dos 156 mil hectares cultivados em 2009, plantou apenas 142 mil este ano.
41
soja e mamona
42
Capítulo_1
A Mamona e o
Programa Nacional
de Produção e Uso de
Biodiesel
Investimentos frustrados: o
caso da Brasil Ecodiesel
Cultivada há décadas pelos pequenos agricultores nordestinos em função de sua relativa resistência às recorrentes estiagens do Semi-árido, a mamona chegou a ser
uma cultura relativamente importante em estados como o
Ceará, Pernambuco e principalmente a Bahia entre o final
da década de 1980 e o início da década de 1990, como registra a Série Histórica da Mamona do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE, que acompanha o seu desempenho desde a safra 1976/77). Naquele período, o país
chegou a ser o principal produtor de óleo de mamona do
mundo, posição que perdeu para a Índia e para a China em
meados da década de 1990.
Este histórico foi um dos principais fatores que
levaram o governo federal a eleger a mamona como uma
espécie de “carro-chefe” do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB) em 2004, quando lhe conferiu a “missão” de imprimir ao programa brasileiro de agroenergia um caráter mais social, através de mecanismos que
buscaram vincular a produção de biodiesel ao investimento na agricultura familiar.
Idealizado para ser um contraponto ao que ocorre na cadeia produtiva do etanol, dominado pelo grande agronegócio, o PNPB criou o Selo Combustível Social
para obrigar as usinas de biodiesel a negociarem ao menos uma parcela da matéria-prima com os pequenos agricultores, sob risco de exclusão nos leilões de biodiesel da
ANP (os leilões públicos para comercialização de biodiesel
reservam 80% dos lotes para oferta exclusiva dos produtores que possuem o Selo Combustível Social). Por outro
lado, ofereceu aos detentores do Selo uma série de vantagens econômicas e fiscais, como acesso a alíquotas de PIS/
Pasep e Cofins com coeficientes de redução diferenciados, acesso a melhores condições de financiamento junto
ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e suas instituições financeiras credenciadas,
ao Banco da Amazônia (BASA), ao Banco do Nordeste do
Brasil (BNB), ao Banco do Brasil (BB) ou outras instituições financeiras que possuam condições especiais de financiamento para projetos com Selo Combustível Social2.
Diante das metas, são poucos os agricultores familiares no PNPB
O Brasil dos Agrocombustíveis
Na prática,
AUGE E DECADÊNCIA DA MAMONA NO BRASIL – ÁREA PLANTADA EM MIL HECTARES
porém, esta estraté- REGIÃO/UF 1983/84 1984/85 1985/86 1986/87 1987/88 1988/89 1989/90 1990/91 1991/92 1992/93 1993/94
gia tem apresentaNORDESTE 342,9
410
391,9
254,9
236,1
256
221,8
223,8 166,6
129,5
112,6
do poucos resultaMA
dos. De acordo com
PI
7,8
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24,6
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14,3
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1,9
CE
10
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1,9
2
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1,5
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0,5
0,5
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2009 do Ministério
PE
22
34
38
19
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35,8
32
36
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3,3
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das Minas e EnerAL
gia (MME), o óleo
SE
de soja continua
BA
302
340
309,7
192,8
175,4
187,7
161,4
163
109,2
115
91,4
sendo a matériaFonte: IBGE
prima mais utilizada para a fabricação
produção industrial de biodiesel no país em 2005 e que fodo biodiesel, seguida do sebo e do óleo de algodão. No mês
cou seus investimentos iniciais na mamona nordestina.
de janeiro, a soja teve uma participação de 71% na produção nacional de biodiesel, seguida pelo sebo animal, com
O pioneirismo da Brasil Ecodiesel e seu alardea25%, e o algodão, com 3%. A soma das demais oleaginosas
3
do
plano
de inclusão de cerca de 120 mil agricultores fateve uma participação de apenas 1% .
miliares em projetos de produção de matéria-prima de biodiesel - principalmente mamona - em todo o país atraíram
Por outro lado, a previsão inicial do PNPB, em
o apoio (e uma certa benevolência) do governo federal e do
termos de resultados sociais, era a inclusão, em quatro
presidente Lula, que pessoalmente inaugurou duas usinas
anos, de ao menos 200 mil famílias de pequenos agricultoda empresa no Piauí e no Tocantins.
res no programa, a serem atraídas por facilidades vinculadas ao Selo Social (que também já sofreu modificações no
A primeira das usinas inauguradas por Lula, em
início de 2009, como descrito na próxima página). Um leFloriano,
Piauí, estava vinculada a um inédito projeto de
vantamento do MDA divulgado no final de 2008, no en“reforma agrária privada”, o Núcleo Santa Clara, em Canto
tanto, contabilizou apenas 38 mil famílias vinculadas ao
do Buriti - caso descrito em detalhes no primeiro relatório
PNPB (dado relativo ao ano de 2007; os números de 2008
O Brasil dos Agrocombustíveis4, do Centro de Monitoraainda não foram tabulados), sendo que, para 2009, o MDA
mento de Agrocombustíveis, de abril de 2008. Criado em
prevê a inclusão de cerca de 80 mil famílias.
novembro de 2003 em uma área de 53 mil hectares cedidos
à Brasil Ecodiesel pelo governador do Piauí, Wellington
De acordo com Arnoldo Campos, responsável
Dias (PT), o projeto foi dividido em 20 núcleos residenpelo programa de biodiesel no MDA, grande parte da culciais e trouxe cerca de 600 famílias para a área. O acorpa pelo fraco desempenho da inclusão social do PNPB redo entre as partes previa o fornecimento, por parte da emcai sobre a empresa Brasil Ecodiesel, primeira a iniciar a
43
soja e mamona
Mudança no Selo Combustível
Social facilita vida das empresas
44
Elaborado, concedido e fiscalizado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Selo Combustível Social previu, desde o início do PNPB, uma série
de facilidades fiscais para o setor industrial que adquirisse
matéria-prima da agricultura familiar, como acesso a alíquotas de PIS/PASEP e COFINS com coeficientes de redução diferenciados (ver tabela).
produtiva da usina, para que tenha direito ao Selo. Já no
que diz respeito às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, as
“despesas adicionais” podem chegar apenas a 50% do valor
gasto com matéria-prima.
Para Francisco Lucena, coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf),
estas mudanças favorecem ainda mais as empresas, já beneficiadas pelas isenções tributárias, em detrimento dos agricultores. Se antes a assistência técnica e demais auxílios
ALÍQUOTAS DE PIS/PASEP E DE CONFINS APLICADAS AO BIODIESEL
PIS/Pasep e Cofins (R$/Litro de biodiesel)
Sem selo Combustível Social
Com selo Combustível Social
Regiões Norte, Nordeste e Semi-árido:
Mamona e palma
R$ 0,15
R$ 0,00
Outras matérias-primas
R$ 0,218
R$ 0,07
Regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul:
Qualquer matéria-prima, inclusive mamona e palma
R$ 0,218
R$ 0,07
Como estabelecido por meio de Instrução Normativa (IN), o Selo seria concedido apenas às usinas que
estabelecessem um contrato de assistência e compra e
venda (com índices pré-estabelecidos) com agricultores
familiares, estimulando assim a sua integração na cadeia
produtiva do biodiesel. Nesse sentido, pela versão original
da IN de 2004, a indústria de biodiesel teria que comprovar
que, dos gastos com matéria-prima, ao menos 50% seriam
com produtos da agricultura familiar no Nordeste e Semiárido, 30% nas regiões Sudeste e Sul, e na região Norte e
Centro-Oeste, 10%.
Desde o início deste ano, as regras do Selo foram
modificadas por meio de uma nova Instrução Normativa,
publicada em 25 de fevereiro de 2009. Uma primeira mudança se refere ao percentual de aquisição de produtos da
agricultura familiar no Nordeste, que, de 50%, passa a ser de
30%. Já para o Norte e o Centro-Oeste, o coeficiente continua em 10% até a safra 2009/2010. Na safra 2010/2011, subirá para 15%. Sul e Sudeste mantêm o percentual de 30%.
Mais significativa, porém, é a modificação que
permite às empresas incluir nestes percentuais de “gastos
com a agricultura familiar” não apenas a aquisição de matéria-prima, mas os recursos destinados a outros serviços
previstos pelo Selo Combustível Social. Sementes e adubos
“doados” aos agricultores, correção de solo, hora máquina
e/ou combustível, além de salário, diárias, deslocamento,
alimentação, material didático e hospedagem dos técnicos
que prestam assistência aos produtores (agora obrigatória)
entram no cálculo.
Nas regiões Norte, Nordeste e do Semi-árido, todos estes gastos podem ser somados à compra da produção
dos pequenos agricultores para fechar o percentual obrigatório de participação da agricultura familiar na cadeia
à produção familiar eram tidos como uma contrapartida
social aos incentivos fiscais, a sua inclusão no cômputo dos
gastos com a agricultura familiar diminui a rentabilidade
do biodiesel para os produtores.
“Por exemplo: nas regras antigas, para que os
requisitos do Selo Social fossem cumpridos, se a empresa
gastava 100 mil com matéria-prima no Nordeste, 50 mil
iam para a agricultura familiar. Hoje, ela gasta 5 mil com
assistência técnica, 3 mil com insumos, 3 mil com correção
de solo, 2 mil com sementes, e apenas 17 mil são destinados aos produtores”, explica Lucena.
Arnoldo Campos, responsável pelo programa de
biodiesel no MDA, argumenta que as mudanças no Selo devem gerar um equilíbrio regional maior no setor do biodiesel, uma vez que só recebe os benefícios fiscais - isenção do
PIS/Pasep e Cofins - a empresa que efetivamente produzir
biodiesel da matéria-prima adquirida da agricultura familiar. Isso deixa as usinas nordestinas, que compram mamona - altamente valorizada - dos pequenos agricultores, mas
revendem o produto para a indústria química, em desvantagem em relação às usinas do Sul, que compram soja da
agricultura familiar e produzem biodiesel do grão. Ou seja,
ao ampliar o leque de custos que podem ser incluídos na
contabilidade do Selo no Nordeste e no Norte, as empresas
se beneficiariam também nestas regiões.
“Fora do Sul, a agricultura familiar sofre de baixa
tecnologia e produtividade. Então tivemos que incentivar
as empresas a investirem nas regiões mais pobres”, argumenta Campos. Já Lucena, que reconhece que a Fetraf não
participou do remodelamento do Selo Combustível Social,
avalia que as mudanças foram uma concessão ou resposta à
pressão das empresas, o que tiraria cada vez mais o caráter
social do PNPB.
Já no segundo ano do projeto, os produtores começaram a se queixar de atrasos no plantio, falta de sementes e não cumprimento de outros acordos por parte
da empresa. Nos anos seguintes, o projeto, que, ao nascer,
havia sido considerado um modelo de inclusão social do
biodiesel, passou a ser alvo de denúncias e investigações
por parte do Ministério Público do Trabalho por “fraude
na relação de emprego, mediante desvirtuamento do contrato de parceira agrícola; assédio moral; trabalho infantil;
e meio ambiente do trabalho inseguro”, como consta em
processo concluído em 2008.
Famílias do projeto Santa Clara
passam necessidades
pos. Em vários estados, também levou a um abandono da
cultura. O Piauí, que chegou a ter uma área de 15,8 mil
hectares na safra 2005/065, por exemplo, este ano plantou
apenas 2,3 mil hectares, segundo levantamento da Conab.
Já no Paraná, onde o governo estadual anunciou,
em 2008, um programa de investimento intensivo em agroenergia, o atraso do pagamento a cerca de 200 agricultores
da região de Wenceslau Bráz por parte da empresa levou a
um grande retrocesso da implantação da mamona no Estado, explica Richardson de Souza, coordenador do programa de bioenergia da Secretaria Estadual de Agricultura.
De acordo com ele, os agricultores ficaram receosos e a
área plantada de mamona, que em 2008 foi de cerca de 400
hectares, deve diminuir pela metade em 2009.
No Rio Grande do Sul, a Brasil Ecodiesel causou graves prejuízos aos agricultores com a distribuição
de sementes de péssima qualidade, afirma o coordenador
de agroenergia da Embrapa Clima Temperado de Pelotas,
RS, Sergio Delmar dos Anjos e Silva. Segundo ele, a União
das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu entidade estudada no primeiro relatório do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis sobre soja e mamona,
no ano passado - teve que descartar aproximadamente 20
toneladas de sementes fornecidas pela empresa em função
de doenças. Comparativamente, áreas cultivadas com sementes da Brasil Ecodiesel produziram uma média de 300
kg/ha, enquanto outros produtores chegaram a picos de
2,4 mil kg/ha.
Por outro lado, muitos parceiros têm vendido a
mamona contratada pela empresa à indústria química - que
tem pago um preço superior ao praticado pela Brasil Ecodiesel -, o que contribuiu para a fragilização da sua saúde
econômica. Amargando sucessivos prejuízos nos últimos
anos - R$ 38 milhões em 2006, R$ 45,9 milhões em 2007 e
R$ 197,1 milhões em 2008 -, ao longo do terceiro trimestre
do ano passado a Brasil Ecodiesel deixou de entregar o volume de biodiesel arrematado nos leilões da ANP (que, em
novembro, chegou a cancelar parte dos contratos, rescisão
posteriormente anulada pela Justiça).
O não cumprimento de acordos por parte da Brasil Ecodiesel com pequenos agricultores parceiros em todo
o Brasil - e em especial no Nordeste - acabou causando
uma debandada do setor do PNPB, avalia Arnoldo Cam-
De qualquer forma, a empresa está abandonando
a mamona para aderir à soja. Como afirmou em balanço
publicado em março deste ano, “os investimentos efetuados para o desenvolvimento da cultura de mamona no
Semi-árido brasileiro, através da agricultura familiar, não
apresentaram os resultados esperados”. A opção pela soja
pode ser verificada nos resultados de suas unidades nos
últimos dois anos: na usina de Rosário do Sul (RS), pólo
produtor do grão, por exemplo, a comercialização de Biodiesel saltou de 17,4 mil m3, em 2007, para 37,7 mil m3 em
2008. No mesmo período, nas unidades de Floriano (PI),
Crateús (CE) e Iraquara (BA), focadas na mamona, a comercialização de Biodiesel caiu de 31,8 mil m3 para 4,6 mil
O Brasil dos Agrocombustíveis
presa, de sementes, assistência técnica, o manejo do solo e
o plantio da mamona, além da titulação, após dez anos, de
25 hectares para cada família. Os agricultores, por sua vez,
se responsabilizariam pelo trato cultural e por entregar, a
cada ano, 3 mil kg de mamona.
45
soja e mamona
m3 na primeira, de 44,9 mil m3 para 22,3 mil m3 na segunda
e de 61 mil m3 para 39,3 mil m3 na terceira.
Não obstante, as irregularidades no cumprimento
das normas do Selo Combustível Social apuradas pela auditoria do MDA nas unidades da empresa, e a insuficiente
prestação de contas ao ministério em 2008, devem levar a
Brasil Ecodiesel a perder a certificação em três ou quatro
de suas seis usinas em 2009, adianta Arnoldo Campos. De
acordo com ele, apesar de politicamente muito negativo
para o governo em função da forte aposta publicitária na
empresa como ícone do PNPB, “o MDA deve quebrar a
Brasil Ecodiesel”.
46
Usina da Brasil Ecodiesel em Tocantins,
inaugurada por Lula, pode perder Selo
A Petrobras
Com o fracasso do projeto de produção de biodiesel de mamona da Brasil Ecodiesel, a única empresa que
ainda investe consistentemente na oleaginosa é a Petrobras. Nos três estados onde instalou suas usinas (Bahia,
Ceará e Minas Gerais), a estatal tem buscado parceiros da
agricultura familiar - obrigatórios para a manutenção do já
concedido Selo Combustível Social - entre os produtores
de mamona, apesar de reconhecer que, no atual estágio de
organização produtiva, a cultura não tem resultados.
Atualmente, as usinas, que ainda não têm instalações de esmagamento, compram óleo de soja no mercado
para produzir biodiesel e revendem a mamona da agricultura familiar para a indústria química. Mas a decisão de
fomentar a produção familiar de mamona, principalmente
no Nordeste, é política e deve orientar os futuros investimentos da estatal, garantem seus diretores.
Além do inerente aspecto social, porém, o investimento na agricultura familiar também é uma necessidade
econômica, já que, segundo o coordenador do programa de
biodiesel do MDA, Arnoldo Campos, a estatal ainda não
cumpriu os requisitos do Selo Combustível Social. “A empresa já está com o Selo há três meses e ainda não providenciou assistência técnica, por exemplo”, explica Campos.
Para atender às exigências a suas usinas, a Petrobras tem adotado a estratégia de formar parcerias com os
governos estaduais e com organizações e movimentos dos
agricultores. Em Minas Gerais, onde o presidente Lula
inaugurou a unidade de Montes Claros em abril deste ano,
de acordo com a Empresa
de Assistência Técnica e
Extensão Rural do Estado
de Minas Gerais (EmaterMG), que deve assumir o
apoio técnico aos agricultores, foram cadastrados
8.675 produtores familiares, na expectativa de uma
produção de 7 mil toneladas em 5,8 mil ha.
No Ceará, o governo
estadual, maior parceiro da
Petrobras, assumiu um papel decisivo no projeto de
fortalecimento da mamona.
Um programa de incentivo
ao cultivo da oleaginosa,
que, até 2008, pagou R$
150 por hectare a quem
produzisse mamona - num limite de três hectares -, foi ampliado, com vista ao fortalecimento de práticas ambientalmente sustentáveis. Segundo a Secretaria da Agricultura,
hoje o incentivo pode chegar a R$ 300/ha, num limite de
cinco hectares, à mamona cultivada com manejo agroecológico. Este programa está sendo utilizado pela Petrobras
como base inicial para suas operações.
De acordo com o gerente de suprimentos da empresa, Paulo Roberto Moreira Dias, a estatal aproveitou o
cadastramento do governo para buscar seus próprios parceiros. Mas reconhece que a pouca cultura organizativa dos
agricultores (como cooperativas e associações) dificulta o
fechamento de contratos, que são feitos de forma individual com cada produtor. Outro desafio, segundo Dias, é reconquistar agricultores que foram prejudicados em contratos com a Brasil Ecodiesel, já que, “onde a Brasil Ecodiesel
atuou, deixou traumas que estamos tentando minimizar”.
No início de 2009, a soma dos agricultores contatados nos
estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco,
Piauí e Paraíba (vinculados à usina de Quixadá) totalizou
25 mil cadastrados com interesse em contratos.
Já na Bahia, os principais parceiros da Petrobras
são as organizações sociais de agricultores, como a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e
o Movimento de Luta pela Terra (MLT), afirma o diretor
da estatal no estado, David Leal. Segundo ele, a empresa,
que já vinha desenvolvendo projetos com o MST e a Fetraf através do programa Petrobras Fome Zero há alguns
anos, contou com o auxílio das entidades para divulgar o
programa de parcerias para o biodiesel e cadastrar agricultores, cooperativas e associações interessadas, chegando a
um total de 17 mil produtores (a maioria dos contratos
é com produtores de mamona, mas o programa também
inclui culturas como o dendê e o girassol).
Segundo Leal, além dos acordos de compra da
produção, os contratos na Bahia incluem fornecimento de
sementes, manejo do solo (principalmente descompactação
da terra), e assistência técnica. A meta do projeto é produzir 75 mil hectares de mamona através de parcerias com
cerca de 32 mil agricultores.
Dificuldades
Do ponto de vista econômico, o desafio de viabilizar a mamona no mercado de agroenergia é grande.
Numa comparação com a soja, cultura mais utilizada na
produção de biodiesel (e que deve ocupar este ano cerca de
21,5 milhões de ha, frente a 150 mil ha de mamona), além
da baixa produção, o preço da baga ou do óleo de mamona
está muito longe de ser competitivo. Em julho de 2008,
por exemplo, quando as commodities atingiram um pico de
alta dos preços, enquanto a saca de soja de 60 kg girava em
torno dos R$ 47, a mamona foi vendida a R$ 85. No mesmo
mês, a tonelada de óleo de mamona saiu por cerca de R$ 5
mil, contra R$ 2,2 mil a tonelada de óleo de soja. Esta relação se alterou pouco no início de 2009: em abril, enquanto
a saca de soja era vendida a R$ 42 (cotação de Barreiras,
BA), a mamona estava cotada a R$ 62 em Irecê (BA). Da
mesma forma, a tonelada de óleo da primeira custava R$
1,6 mil, contra R$ 4,1 mil o óleo da segunda6.
Além da pouca oferta e dos altos preços da mamona, o setor de agroenergia também concorre com o conso-
lidado mercado da indústria ricinoquímica, em última instância o destino final da produção atualmente. “As usinas
de biodiesel, como qualquer empreendimento, têm de focar
em resultados. Caso o óleo de mamona produzido em sua
indústria seja caro demais para produção de biodiesel, faz
mais sentido vendê-lo para o mercado da ricinoquímica,
que é carente de produto - o setor, aliás, já tem uma capacidade ociosa tremenda por falta de mamona. A resposta
para a utilização da mamona na indústria de biodiesel, enfatizamos, passa pelo preço”, afirma Adrian Gouw, gerente
comercial da Bom Brasil, uma das maiores empresas do
setor ricinoquímico da Bahia.
O fator preço, por sinal, tem levado muitos fornecedores de mamona a trocar de clientes sem aviso prévio.
Tanto a Petrobras como a Brasil Ecodiesel apostaram nos
acordos (com preços pré-estabelecidos) com os agricultores para garantir a entrega da mamona. Este mecanismo,
no entanto, acabou se mostrando ineficiente, já que, no
momento da venda, os contratos foram ignorados e a produção comercializada de acordo com as melhores perspectivas de ganho.
Segundo Edivando dos Santos, presidente da Cooperativa Regional de Reforma Agrária da Chapada Diamantina (Coopracd) e coordenador de produção do MST
da região de Itaberaba, BA, a “infidelidade” dos produtores
acaba sendo uma questão de sobrevivência. “Em 2008, fizemos um acordo com a Petrobras, mas acabamos vendendo
a maior parte da mamona para a indústria química, que
estava pagando melhor. O pouco que vendemos para a estatal foi para ficarmos no mercado. Além de pagar menos,
ela também demorava cerca de 30 dias para depositar o
dinheiro, enquanto a Bom Brasil, por exemplo, pagou na
hora. Para a Cooperativa, responsável pela remuneração
dos agricultores, é essencial que tenha dinheiro em caixa
para fazer as transações comerciais. Isso nos obriga a escolher quem paga mais e mais rápido”, explica.
Edivando dos Santos: no mercado
da mamona, leva quem paga mais
O Brasil dos Agrocombustíveis
Sede de projeto de parceria
Petrobras-MST em Itaitê, BA
47
soja e mamona
48
Diante desta situação de insegurança, a Petrobras
resolveu modificar as regras de parceria. De acordo com o
diretor na Bahia, David Leal, a empresa estendeu os contratos de um para cinco anos e ofereceu um preço mínimo
- a média dos últimos 36 meses mais 10% - como piso, ou
o pagamento do preço de mercado como teto. Além disso,
garante a assistência técnica, a logística (buscará a produção no campo) e a entrega de sementes de mamona, milho
e feijão (culturas alimentares plantadas em consórcio com
a mamona). Na Bahia, a estatal também criou um fórum de
debate e decisão sobre as políticas do projeto de biodiesel
- a Reunião de Análise Crítica (RAC) - que reúne os movimentos sociais, bancos públicos e órgãos governamentais,
experiência considerada bastante exitosa por Leal.
A pergunta agora é se a opção pela mamona - e
outras culturas da agricultura familiar, como o girassol,
o amendoim e o dendê na Bahia - se sustentará em longo prazo. Os altos investimentos em uma cultura instável,
onerosa e de pequena expressão no mercado nacional podem gerar questionamentos, uma vez que a Petrobras é
uma empresa de capital misto. Ou seja, do ponto de vista
da eficiência econômica, por que apostar na mamona? A
dúvida se justifica porque a estatal não goza dos incentivos fiscais do PNPB, já que não esmaga a oleaginosa - e,
mesmo se esmagasse, seria mais provável que revendesse
a produção para a indústria química, devido ao alto preço.
Outra questão em aberto: se o óleo de mamona virar biodiesel, o preço final deste produto na bomba seria viável?
Segundo Arnoldo Campos, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, à época da criação do PNPB o
preço da mamona era competitivo, o que justificou os investimentos iniciais na cultura. Mas, frente à necessidade
estratégica de diversificar as matérias primas do biodiesel
- a dependência exclusiva da soja é um risco que o programa de agroenergia não pode correr, defende -, os preços
atrativos das oleaginosas da agricultura familiar, como
mamona, canola, girassol e amendoim, por exemplo, são
um estímulo para a expansão das culturas.
“Para o MDA, preço bom é bom. A mamona, na
nossa avaliação, é uma reserva energética muito importante, e é muito melhor trabalhar a expansão da área em
períodos de alta dos preços, já que isto é um incentivo adicional para os agricultores. Do ponto de vista econômico,
se fizermos uma comparação com a cana, é obvio que não
chegamos nos patamares produtivos de hoje sem investimentos”, afirma Campos. Da mesma forma, a mamona seria caixa para o governo, porque, mesmo não direcionando
a produção para a fabricação de biodiesel no presente, não
teria prejuízos com os investimentos, já que a oleaginosa é
vendida no mercado a preços competitivos, avalia.
Na Bahia, David Leal também defende os investimentos na mamona como uma estratégia para garantir
suprimentos para o programa de agroenergia em médio
e longo prazo. Enquanto empresa de petróleo, argumenta Leal, a Petrobras recebeu incentivos e investimentos de
1954 a 2000 para chegar ao atual estágio de auto-suficiência. Segundo ele, o programa de biodiesel deve ser encarado da mesma forma, como um investimento estratégico na
segurança energética do país. A Petrobras Biocombustível é um programa estratégico para o país que exigirá um
tempo de maturação, também argumenta o gerente de suprimentos da Petrobras no Ceará, Paulo Roberto Moreira
Dias. “O desafio é enorme, mas acredito que em cinco anos
possamos atingir um equilíbrio econômico”, aposta Dias.
Organizações continuam
reticentes
As três maiores organizações de trabalhadores
rurais do país - MST, Fetraf e Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (Contag), através de suas
federações estaduais - não negam o interesse na mamona para o biodiesel, desde que atenda aos interesses dos
agricultores; dançar conforme a música das empresas e do
governo, no entanto, não tem gerado grande entusiasmo.
Tanto o MST quanto a Fetraf, bastante próximos da Petrobras na Bahia e em Minas Gerais, têm declarado interesse nas parcerias e no cultivo de mamona, mas
reivindicam uma participação maior na cadeia do biodiesel. Ou seja, além dos incentivos ao cultivo da oleaginosa,
querem participar do processamento com a produção e
venda do óleo, um tema bastante controverso.
Segundo a Petrobras, apesar do desejo de que o
avanço na cadeia produtiva aconteça, a estrutura organizativa dos movimentos e cooperativas ainda é muito frágil, o que implica no adiamento de financiamentos para
projetos de processamento. Já os movimentos afirmam
que o vigor nos investimentos da empresa no biodiesel
caiu, sendo que o etanol de cana estaria canalizando a
maior parte dos recursos disponíveis para o setor.
De acordo com Francisco Lucena, da direção nacional da Fetraf, a entidade havia proposto algumas experiências-piloto de esmagamento de mamona em Minas
Gerais, com ampliação na infraestrutura regional, como estradas. Mas depois de uma sinalização positiva, a crise econômica global, que explodiu no segundo semestre de 2008,
teria levado a empresa a recuar. “O objetivo da Petrobras
era entrar no mercado como a maior empresa de biodiesel,
e investir na agricultura familiar principalmente através
da organização de cooperativas. Mas agora ela é uma mera
atravessadora da produção de mamona”, avalia Lucena.
Já o MST demanda, além do controle sobre a cadeia produtiva, que os investimentos visem o desenvolvimento e a melhoria da renda nos assentamentos de forma
mais ampla, explica Julio César Vasconcelos, coordenador
de produção do MST na Bahia. Para isto, a assistência técnica dos contratos com a Petrobras teria que trabalhar os
assentamentos de forma sistêmica, e não recortada para as
O Brasil dos Agrocombustíveis
Capítulo_2
Impactos da mamona
e do PNPB na
Agricultura Familiar
49
soja e mamona
culturas de milho, feijão e mamona, como proposto pela
empresa, explica.
Diversificação em assentamento
do MST reúne mamona, mandioca,
caju e milho na mesma área
50
No Ceará, a Federação Estadual dos Trabalhadores na Agricultura (Fetraece), ligada à Contag, está tentando reestruturar a produção da mamona depois de uma
experiência traumática de parcerias com a Brasil Ecodiesel.
Segundo Antonio Darinho do Nascimento, presidente da
cooperativa da entidade, a Cooperbio, os contratos com a
empresa foram cortados depois de uma série de problemas,
principalmente o não recolhimento da produção nas propriedades. “No ano passado, teve agricultor que botou fogo
na mamona de raiva. Dos 23 mil que plantaram a oleaginosa, só 9 mil conseguiram comercializar. Enviamos um
comunicado a todos os sindicatos filiados explicando que
rompemos os convênios com a Brasil Ecodiesel, mas como
os contratos são individuais, cada agricultor fica livre pra
fazer o que quer. Mas agora estamos conversando com a
Petrobras, que nos ofereceu um preço satisfatório, para retomar o cultivo de mamona como uma atividade suplementar às culturas alimentares”, diz Darinho.
Já a Fetraf no Estado, que também foi muito crítica aos convênios de integração praticados pela Brasil Ecodiesel, ainda não apostou suas fichas na Petrobras como
alternativa, explica o coordenador da entidade no Ceará,
Manoel Arnaud Peixoto. Segundo ele, “ainda não temos
uma boa relação com a Petrobras, e acreditamos que, se a
agricultura familiar permanecer como mera produtora de
matéria-prima, a renda da mamona não é significativa”.
Independente do processo de construção das relações comerciais e políticas com empresas e governos, no
entanto, os movimentos têm queixas quanto aos serviços já prestados. Tanto na Bahia
quanto no Ceará, de acordo com o MST e a
Fetraf os agricultores receberam sementes de
má qualidade da Petrobras e dos governos estaduais, entregues fora do tempo de plantio,
o que prejudicou a produção. Da mesma fora,
denunciam as entidades, a assistência técnica
tem sido problemática, insuficiente e falha.
De acordo com o assessor do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária [Incra] no Ceará, Eduardo Barbosa, o
grande problema da assistência tem sido
seu foco exclusivo na mamona, o que deixa
a propriedade e o projeto de viabilização da
agricultura familiar de fora. “Isto é um retrocesso”, diz Barbosa, que defende a adoção de práticas
agroecológicas como alternativa mais viável para as pequenas propriedades.
O problema é semelhante na Bahia, avalia o dirigente do MST, Julio Vasconcelos. Segundo ele, até o
início de abril deste ano o MST não havia fechado contratos com a Petrobras em função de desacordos no que diz
respeito à assistência técnica. “A Petrobras sugeriu uma
remuneração de R$ 29/mês por família atendida (cada
técnico é responsável por 100 famílias, de acordo com as
normas do Selo Combustível Social), a ser repassada para
as cooperativas para contratação de agrônomos. Consideramos isso um valor inviável, já que há todos os encargos
e custos com deslocamento, alimentação, etc. Achamos
que o mínimo seria um pagamento de R$ 45/mês por família atendida”, explica Vasconcelos.
Pragmático, o coordenador do MST avalia que a
permanência da Petrobras nos projetos com a agricultura
familiar é uma questão de vontade política da estatal e do
governo federal. “Se a empresa der um subsídio inicial para
a mamona, a cultura pode deslanchar. Mas a oleaginosa tem
mercado garantido, com ou sem a Petrobras. O porém é
que se tivermos apenas a ricinoquímica no setor, os preços
voltarão a cair. Na minha opinião, se a Petrobras não incentivar a atividade, nunca teremos biodiesel de mamona”.
SÉRIE HISTÓRICA DA MAMONA NA REGIÃO DE IRECÊ, BA
Ano
Área Plantada (Ha) Área Perdida(Ha) Produção(Ton) Preço(sc de 60Kg) Rend.(Kg/Ha)
Contrariando todas as expec- Safra 05/06
56.433
0
31.687
31
562
tativas, depois de um ano de ótimos reSafra 06/07
60.857
0
26.513
55
435,7
sultados, a Bahia diminuiu a área plantada
Safra 07/08
67.693
1.000
55.770
73
734
de mamona em 2009. De acordo com o
Obs.: Preços médios
sétimo levantamento da safra de grãos
Fonte: EBDA
da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), publicado em abril, a oleaginosa ocupa este ano 101,5 mil hectares,
uma queda de 17,7% em relação à safra
2007/08, que cultivou 123 mil ha. Não
obstante, a Bahia continua sendo o maior
produtor da oleaginosa do país, mantendo
uma tendência histórica. De acordo com
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que acompanha o desempenho da cultura desde 1977, a mamona
chegou a ocupar 340 mil hectares do território baiano na safra 1984/85, época em
que o Brasil ainda dominava o mercado
internacional de óleo de rícino, principal
destino do produto7.
Ano
Safra 05/06
Safra 06/07
Safra 07/08
SÉRIE HISTÓRICA DO MILHO NA REGIÃO DE IRECÊ, BA
Àrea Plantada (ha) Àrea Perdida (ha) Produção (ton) Preço saca/60kg Rend.(kg/ha)
112.842
63.859
43.015
18
878
164.227
86.221
46.272
18
536,7
140.553
69.800
40.075
25
552
Obs.: Preços médios
Fonte: EBDA
Ano
Safra 05/06
Safra 06/07
Safra 07/08
SÉRIE HISTÓRICA DO FEIJÃO NA REGIÃO DE IRECÊ, BA
Àrea Plantada (ha) Àrea Perdida(ha) Produção(ton) Preço saca/ 60kg Rend.(kg/ha)
115.880
79.214
5.987
80
163
102.772
73.877
6.021
50
208,4
75.480
56.880
2.017
150
27
Obs.: Preços médios
Fonte: EBDA
Apesar de o país ter perdido a liderança do mercado de óleo
para a Índia e a China na década de 1990 - o que levou a uma diminuição significativa da área plantada de mamona na Bahia -, a oleaginosa
passou a compor a cultura produtiva do sertanejo baiano assim como o
milho e o feijão, formando com eles a “tríade de sustentação” da agricultura familiar do Semi-árido. Isto se deu, de forma geral, em função de
alguns fatores: a relativa resistência à seca, o conhecimento empírico
do cultivo, a produção das próprias sementes, a facilidade de armazenamento, a boa produtividade e um mercado sempre demandante
transformaram a mamona, plantada em sistema de consórcio com as
culturas alimentares, em uma espécie de fonte fixa de renda, disponível
ao longo do ano e mesmo em períodos em que a estiagem maltratou as
culturas alimentares.
Tomando-se como base o desempenho do feijão, do milho
e da mamona na safra 2007/08 na região de Irecê, maior produtora
do Estado, por exemplo, temos que, em função da seca neste período,
56,8 mil hectares de feijão e 69,8 mil hectares de milho foram perdidos, contra apenas mil hectares perdidos de mamona. Na safra deste
ano (2008/09), ainda mais castigada pela estiagem, dados do Acompanhamento de Plantio da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola
(EBDA) apontam que, dos 45,4 mil hectares de feijão plantados na região de Irecê, 23,8 mil tinham sido perdidos até meados de fevereiro.
As perdas do milho no mesmo período atingiram 25,5 mil dos 154,9 mil
hectares plantados, e apenas a mamona resistiu8.
Em Itaitê, o assentado Leônio dos Santos
lamenta perdas do milho e do feijão, mas
espera resultados da mamona
Em relação aos preços da cultura, 2008 foi um ano excepcionalmente bom para a mamona, como mostra a tabela acima. Enquanto
a saca de 60 kg de feijão na região de Irecê (que regula os preços da
cultura no Nordeste) foi vendida, em média, a R$ 150, e a de milho a
R$ 25, o preço médio da mamona foi de R$ 739, com picos de R$ 86.
Se compararmos as 2.017 toneladas de feijão colhidas na região com
as 55.770 toneladas de mamona, no entanto, temos um rendimento de
R$ 5,04 milhões na primeira e R$ 66,9 milhões na segunda cultura, um
diferencial significativo para o orçamento dos agricultores.
No início de 2009, no entanto, a mamona sofreu uma desvalorização em relação ao ano anterior, oscilando entre R$ 50 e R$ 62.
Esta faixa de preço, estima o Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA), deve se manter ao longo do ano.
A título de comparação, os preços do milho, cotados pelo
CEPEA/ESALQ e Instituto de Economia Agrícola (IEA) de São Paulo, ficaram em torno de R$ 22 a saca de 60 kg, e os do feijão, também cotados
pelo IEA, tiveram picos de R$ 122 e baixas que chegaram a R$ 6010.
Mamona não substitui alimentos
Apesar do bom desempenho agrícola e econômico da mamona, de acordo com os agrônomos da EBDA Valfredo Vilela e Ariosvaldo
Morais, a oleaginosa não tem suplantado ou substituído as culturas alimentares em termos de área plantada. Segundo os agrônomos, hoje
como na década de 1970, o sertanejo vê a mamona como um complemento da economia familiar - baseada no milho e no feijão -, mesmo
porque a alta do preço é um fenômeno mais recente, desencadeado
pela entrada da indústria do biodiesel num mercado dominado, até
2005, pela ricinoquímica.
Um exemplo deste comportamento é o planejamento produtivo do MST na região de Itaberaba. Sediada em Itaitê, pequeno município localizado aos pés da Chapada Diamantina, a Cooperativa Regional
O Brasil dos Agrocombustíveis
Caso | A mamona na Bahia
51
soja e mamona
52
de Reforma Agrária da Chapada Diamantina (Coopracd), presente em
nove assentamentos e acampamentos na região, pretende estreitar as
relações com a Petrobras, com quem desenvolve um projeto de cultivo
de mamona através do programa Petrobras Fome Zero desde 2003.
Mas o MST quer um planejamento sistêmico das áreas que trabalhe a
mamona como apenas mais uma cultura das atividades produtivas.
No assentamento do Baixão, um dos mais organizados da
região e que abriga hoje 140 famílias, a mamona sempre foi um cultivo
importante, apesar de complementar às culturas alimentares. Segundo
o presidente da Coopracd, Edivando dos Santos, que também preside
a Associação dos Assentados do Baixão e coordena o setor de produção do MST na região, apesar do projeto da Petrobras Fome Zero (que
incluiu a construção de três galpões, a aquisição de vários veículos, um
escritório em Itaitê e assistência técnica), em 2008 a cooperativa acabou vendendo a maior parte de sua produção para a indústria de óleo
de mamona Bom Brasil, sediada em Salvador, uma vez que seus preços
(até R$ 80 a saca de 60 kg) eram bem melhores do que os da Petrobras
(R$ 55, em média).
Os bons resultados da oleaginosa no ano passado levaram
os assentados do MST a ampliar a área de mamona em 2009 em cerca
de 40% - aumento que também se deu com o milho e o feijão, culturas
consorciadas, explica Edivando -, mas o projeto produtivo no Baixão é
muito mais amplo. De acordo com o agricultor Leônio Oliveira dos Santos, que este ano sofreu grandes perdas nas culturas de milho e feijão,
a mamona passou a ter uma importância maior com o agravamento das
estiagens e o “descontrole” das chuvas, que “hoje caem fora de época e
em pontos esparsos”. Mas a idéia ainda é trabalhar a mamona, que tem
uma boa produtividade, como complemento das culturas alimentares e
garantir a soberania alimentar do assentamento, explica Leônio.
Atualmente, os assentados do Baixão se dedicam principalmente à criação de gado e suínos, e ao cultivo de mandioca, mamona, milho, feijão de arranque, feijão de corda, amendoim, abóbora,
castanha, pinha e banana. De acordo com um levantamento do agrônomo Edson Fernandes, técnico do Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra), somada a economia produtiva anual do
assentamento, a renda mensal média das famílias gira em torno de
R$ 435,34, o que é considerado um bom resultado. Neste balanço (elaborado com base nos resultados do último ano), a pecuária de corte,
praticada por 124 famílias, foi a atividade mais rentável do Baixão
(rendeu R$ 198 mil ao assentamento), seguida pela mandioca (R$ 147
mil) e pela mamona (R$ 113,4 mil). O rendimento do milho foi de R$
75,6 mil, e do feijão, R$ 91 mil.
O controle ambiental também é uma prioridade no Baixão,
explica o agricultor Leônio dos Santos. Além de banir os insumos químicos - o que não gera grandes perdas, já que as terras do assentamento
ainda são muito férteis -, o MST procura manter a reserva legal de cada
área familiar e do assentamento, sob pena de repreensão. Assim, a
abertura de novas áreas para a mamona é feita de forma controlada,
sendo que os investimentos maiores são na qualidade das sementes e
nas técnicas de cultivo para o aumento da produtividade.
Nesse sentido, em alguns lotes coletivos, localizados às margens do rio Una, a Coopracd tem desenvolvido experimentos de consorciamento de mamona, milho e feijão, além de testes com variedades
de sementes, para avaliar o desempenho das culturas. De acordo com
Edivando e Leônio, a produtividade média de mamona no Baixão é de
900 kg por hectare, chegando a picos de 1200 Kg, resultado considerado bom. “Chegamos a verificar que a mamona sozinha, sem o consorciamento, tem obtido resultados até melhores, mas essa não é uma
possibilidade para o assentamento, em função do princípio da soberania
alimentar”, afirma Edivando.
Edivando e Leônio observam
desempenho do milho e da mamona
em área experimental do Baixão
Biodiesel não altera rotina dos agricultores
A longa convivência do sertanejo baiano com a mamona
criou uma cultura muito própria de comercialização da oleaginosa, que
pouco se preocupa com o destino final do produto. Quando há uma
organização maior dos agricultores, algumas cooperativas negociam diretamente com a indústria, mas no geral o destino da produção que sai
da propriedade são os galpões dos atravessadores.
Em Itaitê ou Cafarnaum (região de Irecê), por exemplo, o
atravessador é quase uma entidade bancária, que recebe qualquer
quantia de mamona e paga na hora, ou até adiantado. Mamona pode
virar moeda de troca - três quilos de mamona por um quilo de arroz -, o
dinheirinho da feira, ou a primeira mesadinha das crianças, que juntam
restos e vendem no comércio por dois reais, explica o agrônomo da
EBDA Valfredo Vilela.
Na opinião da maioria dos pequenos produtores do Semiárido baiano ouvidos pelo CMA, a entrada da Petrobras no mercado de
mamona do Estado, que se concretizou com a construção da usina de
biodiesel no município de Candeias em meados de 2008, resultou, até
agora, apenas numa oscilação favorável de preços, pouco alterando a
cadeia produtiva da cultura em termos de área plantada ou mesmo
quanto às formas de comercialização.
Em Cafarnaum, pequeno município com cerca de 17,5 mil
habitantes, a maioria na zona rural, e que é um dos maiores produtores
de mamona do país, a Petrobras ou outras indústrias de biodiesel, como
a Brasil Ecodiesel, ainda não entraram de verdade no mercado, afirma o
agricultor Iranildo Alves dos Santos. Considerado um “grande” produtor
- em seus 380 hectares, 70% da produção agrícola é de mamona não
consorciada com milho e feijão, culturas que ocupam o restante da área
-, Iranildo tem investido em melhoramentos de sementes e manejo,
e comemora a alta dos preços impulsionados pelo biodiesel, mas de
resto não vê diferença no mercado com a chegada das indústrias de
agroenergia na Bahia. “A Petrobras esteve aqui no ano passado, mas
fez apenas uma explanação do projeto do biodiesel. Até o momento,
Iranildo em sua plantação de
mamona: biodiesel não mudou nada
para furar um poço e plantar cenoura e tomate irrigados, a gente ficava.
Lá fora o sofrimento é demais. Em Minas Gerais, já passei quase uma
semana dividindo uma marmita com outro companheiro, porque não
tínhamos dinheiro nem encontrávamos trabalho”, diz.
Comparados aos assentados do MST em Itaitê, grande parte
dos pequenos agricultores da região de Irecê tem uma renda e uma
qualidade de vida bastante inferiores; muito por falta de organização,
mas também em função de menos investimentos, avalia o agrônomo
O Brasil dos Agrocombustíveis
não me interessei, porque aqui temos grande desconfiança depois dos
fracassos dos contratos com a Brasil Ecodiesel no passado, que não
renderam nada a quem fez”, explicou Iranildo.
53
Já o agricultor Firmino Rosa de Souza, que possui 43 hectares divididos com seu filho Joselito, não sabe o que é biodiesel nem
quem são os compradores finais de sua pequena produção, que é vendida aos atravessadores. Com a estiagem deste ano, a família de Firmino
perdeu praticamente toda a produção de milho e feijão, e a mamona
passou a ser um tipo de “seguro de vida”, explicou o agricultor. “Aqui,
quando tudo acaba, a nossa sobrevivência depende da mamona, que
ainda se segura. Sobre o biodiesel, fico só parado escutando. Não me
preocupo pra onde vai a minha mamona, na roça eu só penso mesmo
em trabalhar”, explica.
Apesar da esperança de que a mamona, ao contrário das
outras culturas, resista ao sol escaldante que secou o sertão no início
do ano, Firmino e Joselito nunca pensaram em aumentar a área da
oleaginosa. Mas eles também sabem que a produção que se salvar não
sustentará a família. Como faz há alguns anos, em abril Joselito já se
preparava para migrar temporariamente para Minas Gerais em busca de
trabalho na colheita de café, atividade de pouca rentabilidade mas que
garante uma renda adicional de R$ 2 mil, em média.
Como Joselito, mais de cem homens de sua comunidade devem deixar as propriedades em busca de serviço no café ou no corte
de cana em outros estados por três a quatro meses, conta o agricultor.
“Se tivéssemos um mínimo de condições, se tivéssemos financiamento
Falta de renda em Cafarnaum obriga
Joselito a migrar em busca de trabalho
da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA), Ariosvaldo
Morais. De acordo com ele, a mamona tem a característica de fixar o
agricultor no campo, mas a falta de investimentos pode neutralizar este
efeito positivo.
Nesse sentido, o “abandono”, por parte da Petrobras, dos
produtores que não são vinculados a alguma organização ou movimento, acaba sendo um problema na Bahia, afirma Morais. Segundo ele, um
amplo setor de pequenos agricultores acaba ficando sem investimentos
e apoio, o que pode impactar ainda mais a cultura da oleaginosa no
Estado. “A Petrobras está direcionando todos os recursos para os movimentos sociais, mas como ficam os outros? Na Bahia temos cerca de
60 mil produtores de mamona que não têm acesso aos programas de
incentivo da empresa”, pondera Morais.
Firmino de Souza no terreiro
com produção de mamona
soja e mamona
54
Capítulo_3
Considerações Finais
e Recomendações
Historicamente desenvolvida e difundida no Semi-árido nordestino, região onde a agricultura familiar é
dominante, a mamona é uma cultura de uso intensivo de
mão-de-obra. Esta característica por enquanto é reproduzida em outras regiões do país para onde a planta tem se
expandido, como Sul e Sudeste, e ainda são relativamente
poucas as experiências de cultivo - e menos ainda as de colheita - mecanizados da oleaginosa.
Essa “inerência” à agricultura familiar ainda
tem excluído do plantio da mamona impactos comuns a
outras culturas, como o monocultivo, o uso intensivo de
agrotóxicos, a expansão da fronteira agrícola e a conseqüente pressão sobre as vegetações nativas e territórios
de comunidades tradicionais, ou a superexploração do
trabalhador, o trabalho escravo, o desemprego rural e os
acidentes de trabalho. Também não há indícios de que a
oleaginosa esteja ameaçando culturas alimentícias. Por
outro lado, talvez por não fazer parte do seleto mundo
do agronegócio, a mamona tem sofrido problemas básicos, como a falta de sementes e disseminação das pesquisas já realizadas sobre a cultura.
Segundo o pesquisador e coordenador de agroenergia da Embrapa Clima Temperado de Pelotas (RS),
Sergio Delmar dos Anjos e Silva, além do volume insuficiente de sementes, a sua qualidade também tem deixado
muito a desejar. No Rio Grande do Sul, apesar dos bons
preços praticados em 2008 - nos acordos com a empresa
de óleos vegetais e biodiesel Oleoplan, o preço da saca
de 60 kg, acertado com os produtores, foi de R$ 80 - e
da resistência da oleaginosa à estiagem (que tem levado
a perdas de cerca de 90% de culturas anuais como milho,
feijão e soja no noroeste do Estado), a área plantada de
mamona deve diminuir bastante em 2009. Se tivessem
disponibilidade de sementes, afirma Sergio, os produtores gaúchos sem dúvida aumentariam o cultivo de mamona, podendo até deslocar o milho e a soja em função
das condições climáticas.
Do ponto de vista econômico, é possível afirmar
que a mamona é uma cultura que reúne uma série de aspectos positivos; mas o maior beneficiado nesta cadeia
produtiva é o setor empresarial. Como na Bahia, a mamona do Sul, vendida em São Paulo ou mesmo no Nordeste, também tem mercado garantido junto à indústria
química. Pela inclusão no Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), porém, a oleaginosa
passa a ser um ótimo negócio para as usinas gaúchas, que
Já a agricultura familiar é o setor que mais está
à mercê de fatores de risco, como instabilidades climáticas, produtivas e de mercado. É a ponta fraca da cadeia, a que arca com os prejuízos, e que está submetida
às políticas de preço, mercado e até produção estipuladas
pelas empresas e pelo governo. Por outro lado, diante
de um universo de cerca de 4,13 milhões de agricultores
familiares no Brasil, a meta inicial de inclusão de 200 mil
produtores no PNPB já era irrisória. O fracasso do programa, neste sentido, nos últimos quatro anos, diminui
ainda mais o seu impacto social.
Também é possível afirmar que, diante de realidades como a constatada entre pequenos agricultores de
Cafarnaum (maior produtor de mamona da Bahia), que
ano a ano buscam emprego e renda na cana ou no café
em outros estados, expondo-se a ameaças como trabalho
escravo ou degradante, as políticas de apoio aos produtores ainda são insuficientes (de acordo com a Empresa
Baiana de Desenvolvimento Agrícola - EBDA, o fenômeno da migração atinge toda a macro-região de Irecê).
Se a proposta do governo federal for mesmo fortalecer a agricultura familiar por meio do PNPB, os investimentos públicos terão que extrapolar o plantio da
mamona e focar o desenvolvimento sustentável tanto das
propriedades quanto da região. Parte desse fortalecimento
está na organização produtiva e associativa, principalmente das regiões Norte e Nordeste, e deve prever o avanço
dos agricultores na cadeia do biodiesel, possibilitando sua
participação no processamento das oleaginosas.
Será preciso, ainda, estender as vantagens do
PNPB, hoje oferecidas ao setor empresarial, aos produtores rurais, e garantir a continuidade das políticas
de apoio para que possíveis mudanças de governos não
interfiram na sua efetividade. Da mesma forma, apesar
da atual decisão política da Petrobras de incentivar a
mamona e outras oleaginosas da agricultura familiar, é
preciso que o governo não se apóie unicamente na estatal
como força motriz do PNPB, uma vez que não pode controlar a médio e longo prazos as políticas da empresa.
Se o objetivo do governo com a produção de biodiesel é contribuir para a segurança energética do país e,
ao mesmo tempo, desenvolver a agricultura brasileira, é
preciso que a agricultura familiar, eleita principal ator
deste processo pelo PNPB, receba o mesmo tratamento
dispensado por anos ao desenvolvimento do setor sucroalcooleiro ou, indo além, ao parque petrolífero do país.
Por fim, é coerente, por parte do governo, considerar o desenvolvimento de cultivos alternativos à soja
uma estratégia política. Diante disso, é preciso que haja
uma integração maior entre os ministérios envolvidos
nos projetos de agroenergia, os órgãos de pesquisa e as
representações dos agricultores para que as definições
de políticas para o biodiesel sejam feitas conjuntamente,
evitando problemas básicos com sementes, assistência
técnica e relações comercias com o setor privado.
O Brasil dos Agrocombustíveis
produzem combustível a partir da soja e, com a mamona,
se beneficiam das vantagens do Selo Combustível Social
e do mercado promissor da ricinoquímica. Ou seja, vendem caro um óleo nobre, produzido a partir de matériaprima incentivada.
55
soja e mamona
Notas
Soja
1 Sétimo levantamento da safra 2008/9, divulgado em abril de 2009.
2 Dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
3 Esse cálculo considera que o biodiesel em questão foi produzido exclusivamente de soja.
4 Enquanto a população do mundo dobrou em 20 anos, o consumo de proteína animal quintuplicou. Recentemente, a
China tem encabeçado esse crescimento: há 20 anos, um chinês comia em média 15 Kg de carne por ano; valor que hoje
subiu para 38 Kg. Dados do Instituto Wervel, da Alemanha.
56
5 Flexor, George. Preços agrícolas e biocombustíveis num contexto de insegurança alimentar. Oppa/CPDA/UFRRJ: Rio de
Janeiro, maio de 2008.
6 O coeficiente de Gini varia de 0 a 1. Zero corresponde à completa igualdade (renda repartida) e 1 equivale à completa
desigualdade (uma só pessoa concentra toda renda).
7 De acordo com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Fetag-RS), a exceção
seria a experiência de Canguçu, no sudeste do estado, destacada no primeiro relatório do Centro de Monitoramento
de Agrocombustíveis. As dificuldades para consolidação da mamona no estado seriam a falta de familiaridade dos
agricultores com a oleagionosa, a falta de assistência técnica especializada e a produtividade relativamente baixa.
8 Desde 2007, existem quatro usinas no Rio Grande do Sul com autorização de funcionamento da ANP: Brasil Ecodiesel,
BSBios, Granol e Oleoplan. Todas elas possuem o Selo Combustível Social.
9 O PIS/Pasep (Programa de Integração Social) e a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) são
contribuições sociais de natureza tributária.
10 A área plantada caiu de 71,1 mil hectares para 67,6 mil ha no Pará e de 331,6 mil ha para 318,3 mil ha em Tocantins.
Em Roraima, a área se manteve estável em 15 mil ha. Já o crescimento no Mato Grosso foi de 5,68 milhões de ha para
5,77 milhões de hectares. E a queda no Maranhão na área da soja foi de 421,5 mil ha para 390,7 mil ha.
11 Fonte: http://www.arcplan.com.br/mma/cerrado_fichas_das_areas_prioritarias.pdf
12 Dados do ministério do Meio Ambiente destacam que, até 2002, o Cerrado já havia perdido 39% de sua cobertura
original. O Pampa, que também é bastante ameaçado pela expansão da soja, havia perdido quase a metade de sua extensão
original, ao passo que a Caatinga, ameaçada em grau menor pelo avanço da monocultura do grão, havia perdido 36%.
A Mata Atlântica é o bioma com a vegetação nativa mais devastada, tendo perdido 73% de sua cobertura original. E o
Pantanal é o bioma extra-amazônico mais preservado, com 87% de sua cobertura nativa intacta.
13 Sobre pecuária e desmatamento na Amazônia, ver estudos da Amigos da Terra - Amazônia Brasileira (http://www.
amazonia.org.br/arquivos/308285.pdf) e do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) (http://
www.imazon.org.br/novo2008/arquivosdb/120849pecuaria_mudancas_climaticas.pdf)
14 Ver matéria “Ruralistas querem excluir Maranhão da Amazônia Legal”, na Agência Repórter Brasil (http://www.
reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=1485)
15 Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai) existem atualmente 22 Terras Indígenas em Rondônia.
Somadas, essa áreas totalizam pouco mais de 6,1 milhões de hectares, o equivalente a cerca de 25% do território do
Estado. Povos de 28 etnias indígenas distintas vivem nesses territórios, com uma população de cerca de 9 mil indígenas.
17 Informações do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia.Ver: http://www.imazon.org.br/novo2008/
arquivosdb/QuemDonoAmazonia.pdf
18 Informações do Programa Terra Legal do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ver: www.mda.gov.br/
arquivos/1726920047.pdf
19 Mopic. Carta dos Povos Indígenas do Cerrado. Mato Grosso do Sul, 13 de dezembro de 2007.
20 Mopic. Carta final - 2ª. Assembléia Geral da Mopic. Mato Grosso, 12 de dezembro de 2008.
21 Repórter Brasil. O Brasil dos agrocombustíveis - os impactos da lavoura sobre a terra, o meio e a sociedade. Soja Mamona,
2008. São Paulo: Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis, 2008.
22 Entrevistamos pesquisadores e gestores da Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpin-Sul), do Centro de
Trabalho Indigenista (CTI), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Federação da Agricultura e Pecuária do
Mato Grosso (Famato), da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Instituto Socioambiental (ISA), do Ministério Público
do Trabalho (MPT), do Ministério Público Federal (MPF), da Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (Mopic) e da
Operação Amazônia Nativa (Opan).
23 Greenpeace. Comendo a Amazônia. Brasil, 2006.
24 O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) era o órgão indigenista do governo federal, antecessor da Funai.
25 Ecoplan. EIA-Rima, PBA e assessoria técnica para o licenciamento das obras da pavimentação da BR-158/MT. Brasil:
fevereiro de 2007.
26 É importante destacar que os dados foram obtidos pelo sistema Deter - Detecção do Desmatamento em Tempo Real,
mais apropriado para a função que lhe dá nome do que para análise de séries históricas de desflorestamento. Além disso,
grande parte da Amazônia Legal esteve encoberta por nuvens no período (63% em novembro, 86% em dezembro e 76%
em janeiro), o que dificultou o monitoramento por satélites.
27 Gomide, Maria Lúcia. Marãnã bödödi - a territorialidade Xavante nos caminhos do Ró. Tese defendida no doutorado em
Geografia Física da USP em março de 2009.
28 Mantivemos a transcrição do depoimento feita pela pesquisadora, preservando o modo de falar do informante indígena.
29 Estatuto do Índio (Lei 6001/1973).
30 A primeira Medida Provisória do governo Lula autorizando o plantio de soja transgênica no Rio Grande Sul.
Mamona
1 Castor-based chemicals are making a comeback, but few companies have the technology to participate as innovators,
03.04.09 - http://www.icis.com/Articles/2009/04/03/9206058/castor-chemical-development-increases.html
2 Informações do MDA.
3 Boletim mensal dos combustíveis renováveis, MME - fevereiro de 2009.
4 O Brasil dos Agrocombustíveis - Impactos das lavouras sobre a terra, o meio e a sociedade: soja e mamona http://www.reporterbrasil.org.br/documentos/o_brasil_dos_agrocombustiveis_v1.pdf
5 De acordo com a série histórica do IBGE.
O Brasil dos Agrocombustíveis
16 Resolução 3.545 do Conselho Monetário Nacional / Banco Central, de fevereiro de 2008.
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soja e mamona
6 Preços de fevereiro de 2009 de acordo com levantamento da Aboissa Óleos Vegetais.
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7 O óleo de mamona na ricinoquímica é um dos principais componentes de cerca de um terço das graxas para motores,
além de tintas, cosméticos, detergentes, pigmentos, colas, resinas, poliuretanos, peças automotivas, cabos para telefonia,
entre outros.
8 No início de março, as perdas do feijão e do milho podem ter chegado a mais de 80%, segundo análise preliminar dos
agrônomos da EBDA. A mamona, que, no último levantamento de 17 de fevereiro, não havia sofrido perdas, em função da
estiagem também terá uma produção menor ao final da safra, estima a EBDA.
9 Dados da Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA) em março de 2009.
10 Cotação nacional de culturas divulgada pelo MDA.

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