crianças e não discriminação

Transcrição

crianças e não discriminação
1
CRIANÇAS E NÃO
DISCRIMINAÇÃO
Um Manual Interdisciplinar
CREAN
2
CRIANÇAS E NÃO DISCRIMINAÇÃO
3
CRIANÇAS E NÃO
DISCRIMINAÇÃO
Um Manual Interdisciplinar
Editado por
Dagmar Kutsar
Hanne Warming
Traduzido para português por
João Félix Almeida
Editoras da tradução
Rita Nunes
Catarina Tomás
Natália Fernandes
Children’s Rights Erasmus Academic Network
(CREAN)
Com o apoio do Programa de Aprendizagem Contínua
da Comissão Europeia Projecto financiado com o apoio
da Comissão Europeia.
A informação contida nesta publicação vincula exclusivamente os autores,
não sendo a Comissão responsável pela utilização que dela possa ser feita.
A Comissão não é igualmente responsável pelos websites externos
referidos na presente publicação.
Traduzido do original em inglês:
Dagmar Kutsar and Hanne Warming (Eds).
Children and Non-Discrimination. An Interdisciplinary Textbook. CREAN.
University Press of Estonia, 2014.
Para além da correta referência aos autores dos capítulos, não é
necessária permissão para reproduzir ou utilizar os conteúdos deste
manual, por quaisquer meios.
Dagmar Kutsar, Hanne Warming (Ed)
Este livro pode ser citado como Crianças e Não Discriminação.
Um Manual Interdisciplinar. CREAN.
University Press of Estonia, 2015
Traduzido para portugues por Joao Felix Almeida
Editoras da traducao Rita Nunes, Catarina Tomas, Natalia Fernandes
ISBN 978-9949-9710-3-9 (print)
ISBN 978-9949-9710-4-6 (pdf)
University Press of Estonia, 2015
PREFÁCIO 5
PREFÁCIO
Rita Nunes, Dagmar Kutsar, Hanne Warming
Rita Nunes, MA, é investigadora no Instituto Intercultural de Educação e no Departamento de Direito Constitucional e Administrativo
da Freie Universität de Berlim. É Coordenadora da Children’s Rights
Erasmus Academic Network (CREAN) e da European Network of
Masters in Children’s Rights (ENMCR). [email protected]
Dagmar Kutsar, Doutorada, editora deste manual, é Professora
Associada de Política Social, na Universidade de Tartu, na Estónia. É
coordenadora do módulo de ensino sobre os direitos e bem-estar
das crianças do Programa de Mestrado de Trabalho Social e Política
Social, da Universidade de Tartu. [email protected]
Hanne Warming, Doutorada, coeditora deste manual, é Professora
de Sociologia, Infância e Trabalho Social, e Diretora do grupo de investigação ‘Sociedades em Mudança: Cidadania, Participação e Poder’, no Departamento de Sociedade e Globalização, da Universidade
de Roskilde, na Dinamarca. Ela está empenhada nas questões dos
direitos das crianças, enquanto membro da ONG dinamarquesa ‘BemEstar das Crianças’. [email protected]
Este manual interdisciplinar forma uma parte integrada do projeto “Children’s
Rights Erasmus Academic Network” (CREAN), que é financiado pela Comissão Europeia. A rede é composta, na sua vasta maioria, por universidades
que oferecem cursos ou módulos de educação superior na área dos direitos
das crianças, com o principal objetivo de melhorar, o campo académico dos
direitos das crianças, enquanto àrea de conhecimento interdisciplinar. Com
este manual, a rede CREAN pretende preencher a lacuna existente na literatura relacionada com o Art.º 2.º da CDC ONU – o direito da criança à não
discriminação e à igualdade – que é um princípio geral da Convenção. Outros
objetivos do manual são promover a compreensão do Art.º 2.º da CDC ONU
e de como ele afeta os direitos das crianças, lançar luz sobre a discriminação
ecom base na idade das crianças em vários domínios das suas vidas, e discutir
as formas de não discriminação e o valor da igualdade.
6
Rita Nunes, Dagmar Kutsar, Hanne Warming
Esta publicação procura envolver o leitor, questionar os estereótipos
normativos da discriminação das crianças, e ultrapassar a mera perspetiva
“Conveniente” de que as crianças não são capazes ou de que não conseguem
algo. O manual discute investigação conduzida por um leque de académicos e de profissionais e procura conduzir a uma reflexão e debate. Pretende
refrescar e melhorar a capacidade de os futuros profissionais identificarem
e questionarem as políticas e as práticas discriminatórias e de conduzirem
investigação sobre os direitos das crianças à não discriminação.
Este livro está organizado em duas partes. Na primeira parte, “Abordagem
legal à não discriminação da criança”, faz-se uma síntese dos mais importantes instrumentos legais internacionais, centrando a análise a um nível regional (Conselho da Europa) e, finalmente, examinando o caso específico de leis
nacionais (da Croácia). Mais detalhadamente, esta parte começa com uma
introdução teórica aos direitos da criança e à não discriminação. O primeiro
capítulo, da Professora Paroula Naskou-Perraki, introduz a proteção internacional dos direitos humanos, a uma escala global. Este tópico é desenvolvido
no segundo capítulo, pela Professora Agnes Lux, através da análise dos mecanismos de denúncia (casos judiciais relacionados com crianças que foram
vítimas de discriminação devido à propriedade, à origem racial, à pertença
a uma minoria ou devido ao seu lugar de nascimento, entre outros fatores) e
dos órgãos promotores da igualdade, ao nível da Europa. É também realçado
o caso específico, promovido em alguns países europeus, dos Provedores de
Justiça sobre os direitos das crianças. A análise dos mecanismos de denúncia
conduz o leitor, em maior profundidade, ao direito da criança a ser ouvida
e à questão de uma Justiça Adaptada à Criança. O capítulo escrito pela
Professora Dubravka Hrabar demonstra a forma como uma Justiça Adaptada
à Criança pode ser um degrau em direção à plena aplicação de procedimentos não discriminatórios em relação às crianças. No capítulo quatro, a Dr.ª
Irena Majstorović aborda a participação das crianças relativamente à mediação familiar. Aí, é examinada a forma como o princípio da não discriminação funciona, não apenas em relacionamentos verticais entre o Estado e a
Família, mas também horizontalmente no seio da unidade familiar, especialmente quando há um conflito de interesses entre os membros da família. Uma
lista de documentos legais relacionados com os direitos das crianças e a não
discriminação, com links para as fontes, e a lista de abreviaturas usadas nesta
secção, completam a primeira parte deste manual.
Na segunda parte, “Combater a discriminação da criança” os autores
focam-se em formas específicas de discriminação, tal como a discriminação em virtude de raça, da linguagem, da origem étnica e da deficiência.
Mais à frente, são explorados os novos riscos de discriminação que surgem com as recentes tecnologias. Finalmente, é sublinhada a conceção das
crianças, enquanto sujeitos possuidores de capacidades e competências para
PREFÁCIO 7
protegerem os seus direitos, e são introduzidas diretrizes que procedam à
monitorização dos direitos das crianças no campo da educação. Mais detalhadamente, a segunda parte começa com um capítulo escrito pelo Professor
Manfred Liebel, que confronta o leitor com exemplos de discriminação baseada na idade, como a restrição de as crianças menores terem acesso a direitos e serviços. A discriminação com base na discriminação étnica e racial,
com uma atenção especial às minorias, e às crianças imigrantes e refugiadas,
é abordada pela Dr.ª Urszula Markowska-Manista e pela Dr.ª Ewa Dąbrowa,
no capítulo seis. As crianças migrantes são igualmente o tópico do capítulo
seguinte, elaborado por Ivan Traina e pela Professora Roberta Caldin, que
se centram na discriminação múltipla de crianças em virtude da etnia e da
deficiência de que são portadoras. Os autores propõem um instrumento de
mapeamento das barreiras de acesso, dos setores de vida e dos recursos que
se constituem em obstáculos à realização dos direitos das crianças, ou vice-versa – conducentes a uma situação de discriminação. No capítulo oitavo,
de Smiljana Simeunovic Frick e de Cezar Gavriliuc, a não discriminação de
crianças que não se enquadram nos padrões familiares típicos – por exemplo,
as crianças que vivem em lares residenciais ou as crianças que vivem nas,
assim designadas, famílias transnacionais – é cuidadosamente examinada. O
capítulo que se segue, de Kairi Talves e de Rita Nunes, oferece uma perceção
do ciberbullying e dos novos riscos de violação do direito de uma criança à
não discriminação a ele associados.
Os dois últimos capítulos da segunda parte deste manual são dedicados
às competências evolutivas das crianças, no seu combate à não discriminação, da autoria do Dr. Villagrasa Alcaide e do Dr. Isaac Ravetllat Ballesté, e à
monitorização da aplicação da CDC ONU na área da educação, da autoria da
Professora Nevena Vuckovic Sahovic.
Todos os capítulos deste livro são providos com perguntas e exercícios
para reflexão, que dão a oportunidade e permitem discussões a partir das
próprias perspetivas dos estudantes de cada país. Cada capítulo termina com
uma curta lista de leituras recomendadas. Este manual interdisciplinar pode
ser usado, enquanto material de ensino, na educação superior, e como fonte
de informação para os investigadores. Pode igualmente oferecer apoio informacional aos agentes políticos e a outros agentes da sociedade civil.
8
AGRADECIMENTOS
Este manual interdisciplinar culmina a investigação conduzida pelos parceiros envolvidos no CREAN. Foi financiado pelo Programa de Aprendizagem
Contínua da Comissão Europeia. Gostaríamos de agradecer a todas as autoras e autores que deram a sua contribuição para este manual, pela sua sabedoria, empenho e paixão relativamente aos direitos das crianças. Para além
disso, estamos gratos aos revisores, cujos comentários foram uma ajuda e um
apoio. Gostaríamos de agradecer à Editora Universitária da Estónia, por se
ter oferecido para publicar este manual. Ainda gostaríamos de agradecer a
contribuição dos assistentes editoriais Knut Heidelk e Madita Siddique, pela
sua valiosa ajuda com a edição linguística do manuscrito.
Rita Nunes,
Coordenadora do CREAN
Dagmar Kutsar e Hanne Warming,
Editores
PREFÁCIO 9
ÍNDICE
LISTA DE ABREVIATURAS .............................................................................
INTRODUÇÃO ...................................................................................................
11
13
PARTE I: ABORDAGEM LEGAL À NÃO DISCRIMINAÇÃO DA CRIANÇA
CAPÍTULO 1: UMA INTRODUÇÃO À PROTEÇÃO INTERNACIONAL
DOS DIREITOS HUMANOS. Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki ............
33
CAPÍTULO 2: NÃO DISCRIMINAÇÃO, MECANISMOS DE QUEIXA E
ORGANISMOS DE IGUALDADE. Agnes Lux ...............................................
60
CAPÍTULO 3: DIRETRIZES DO COMITÉ DO MINISTROS DO
CONSELHO DA EUROPA SOBRE UMA JUSTIÇA ADAPTADA À
CRIANÇA (2010) – ASPETO DA LEI FAMILIAR. Dubravka Hrabar ........
78
CAPÍTULO 4: PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA MEDIAÇÃO
FAMILIAR: UM EXEMPLO DE NOVOS DESAFIOS PARA A NÃO
DISCRIMINAÇÃO. Irena Majstorović .............................................................
92
LISTA DE DOCUMENTOS LEGAIS RELEVANTES ................................... 113
PARTE II: COMBATER A DISCRIMINAÇÃO DA CRIANÇA
CAPÍTULO 5: ADULTISMO E DISCRIMINAÇÃO COM BASE NA
IDADE CONTRA AS CRIANÇAS. Manfred Liebel ....................................... 121
CAPÍTULO 6: DISCRIMINAÇÃO CONTRA CRIANÇAS DE
MINORIAS ÉTNICAS E NACIONAIS NA EDUCAÇÃO:
PROBLEMAS SELECIONADOS DE EDUCAÇÃO EM PAÍSES DA UE
COM ESPECIAL ÊNFASE NA POLÓNIA. Urszula Markowska-Manista,
Eva Dąbrowa ........................................................................................................ 148
CAPÍTULO 7: DISCRIMINAÇÃO MÚLTIPLA DAS CRIANÇAS
COM DEFICIÊNCIA E BACKGROUND MIGRANTE. Ivana Traina,
Roberta Caldin ...................................................................................................... 178
CAPÍTULO 8: NÃO DISCRIMINAÇÃO E CRIANÇAS DE FAMÍLIAS
NÃO TÍPICAS NA MOLDÁVIA. Smiljana Simeunovic Frick,
Cezar Gavriliuc ..................................................................................................... 194
CAPÍTULO 9: COMO AS CRIANÇAS SÃO DISCRIMINADAS NO USO
DOS SEUS DIREITOS. Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté .. 214
CAPÍTULO 10: CIBERBULLYING – AMEAÇA AOS DIREITOS E AO
BEM-ESTAR DAS CRIANÇAS. Kairi Talves, Rita Nunes ............................. 228
10
ÍNDICE
CAPÍTULO 11: MONITORIZAÇÃO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO NA
EDUCAÇÃO. Nevena Vučković Sahović .......................................................... 243
CONCLUSÃO: DESAFIOS E PERCURSOS PARA O TRABALHO
FUTURO NESTE CAMPO. Hanne Warming ................................................. 261
PREFÁCIO 11
LISTA DE ABREVIATURAS
AJIL
CAT
CED
CEDAW
CERD
CIEEL
CoE
CDC
CRPD
ECHR
ECOSOC
ECRI
ETS
EU
FAO
FRA
G.A.
HRC
ICCPR
ICESCR
ICJ
ILM
ILO
IMF
NGO
NHRIs
OAS
OHCHR
OJ
OSCE
Res.
S.C.
UDHR
American Journal of International Law
Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas
cruéis, desumanos ou degradantes
Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas
contra os Desaparecimentos Forçados
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres
Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas
de discriminação racial
Centro da Lei Económica Internacional e Europeia
Conselho da Europa
Convenção sobre os Direitos da Criança
Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência
Convenção Europeia dos Direitos Humanos
Conselho Económico e Social
Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância
Lista de Tratados Europeus
União Europeia
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia
Assembleia Geral das Nações Unidas
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP)
Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e
Culturais (PIDESC)
Tribunal Internacional de Justiça
International Legal Materials
Organização Internacional do Trabalho
Fundo Monetário Internacional
Organização Não Governamental
Instituições Nacionais de Direitos Humanos
Organização dos Estados Americanos
Escritório do Alto-comissário das Nações Unidas para os
Direitos Humanos (EACNUDH)
Jornal Oficial da União Europeia
Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa
Resolução das Nações Unidas
Conselho de Segurança das Nações Unidas
Declaração Universal dos Direitos Humanos
12
LISTA DE ABREVIATURAS
UN
Nações Unidas
UNCTAD Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
UNHCHR Escritório do Alto-comissário das Nações Unidas para os
Direitos Humanos (EACNUDH)
UNHCR Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNTS
United Nations Treaty Series
UPU
União Postal Universal
WGC
Working Group on Communications
WGS
Working Group on Situations
WHO
Organização Mundial de Saúde (OMS)
WTO
Organização Mundial do Comércio (OMC)
INTRODUÇÃO 13
INTRODUÇÃO
O Direito à Não Discriminação:
Bases e Conceitos dos Direitos Humanos
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
O Prof. Doutor Manfred Liebel é o Diretor do Instituto Internacional de Estudos da Criança e dos Jovens na International
Academy for Innovative Pedagogy, Psychology and Economy
(INA gGmbH) e do Mestrado em Estudos da Criança e dos Direitos das Crianças na Freie Universität Berlin. [email protected]
Katre Luhamaa, MA, é uma investigadora na área dos direitos
humanos e internacionais no Instituto de Direito Internacional
e Europeu, da Faculdade de Direito da Universidade de Tartu. Os
seus principais interesses estão relacionados com a aplicação
comparativa dos direitos humanos internacionais e, em especial,
dos direitos da criança. [email protected]
Kiira Gornischeff, uma líder de projeto na União para o BemEstar da Criança da Estónia e uma estudante do curso de Mestrado da Faculdade de Direito da Universidade de Tartu. No seu
trabalho, ela promove a participação das crianças, e também o
aconselhamento das famílias e a investigação no campo de um
sistema de justiça adaptado às crianças. [email protected]
O direito à não discriminação é um dos mais complexos e importantes tópicos
de projeção internacional dos direitos humanos. Por isso, uma introdução aos
documentos internacionais sobre direitos humanos relativos ao direito à não
discriminação é necessário, para contextualizar este tópico, tendo em especial
atenção o princípio da igualdade. Relativamente às bases legais, abordaremos,
em especial, a questão da discriminação direta e indireta, e forneceremos
referências sobre regras e autoridades jurídicas que podem ser usadas contra a discriminação. Tendo em conta a teoria social, passaremos a expor, de
seguida, as caraterísticas e interconexões em que a discriminação se revela na
vida social, e os conceitos e teorias que podem ser úteis para as compreender
14
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
e abordar. Ao fazer isto, prestamos atenção especial ao conceito de “múltipla
discriminação”1
Parte I: Princípios dos Direitos Humanos
1. O princípio da igualdade na lei internacional
A necessidade de igualdade está no centro de qualquer sistema legal democrático – igualdade das pessoas perante a lei, igualdade de oportunidades, igualdade de acesso à educação, igualdade entre os géneros, etc. (ver, por exemplo,
Smith, 2012). Faz também parte de qualquer instrumento internacional de
direitos humanos, bem como de alguns sistemas constitucionais nacionais.
Isto sugeriria que é possível haver uma compreensão intuitiva universal sobre
o que igualdade significa e sobre como pode ser conseguida. A igualdade
implica que todos os seres humanos devem usufruir dos direitos garantidos
pelos instrumentos internacionais numa base comum e na sua totalidade. Isto
exige que os Estados tenham aceitado as suas respetivas obrigações, decorrentes dos tratados, de darem todos os passos necessários para permitir que
todas as pessoas gozam desses direitos.2
Um olhar mais atento à questão da igualdade revela que o seu significado
é relativo e muda de acordo com as circunstâncias ou grupos que estamos a
analisar. Qualquer decisão tomada pode ter um impacto direto ou indireto
nas vidas dos outros.3 O direito à igualdade está protegido através da proibição da não discriminação; portanto, conforme discutido abaixo, o objetivo da
lei sobre a não discriminação é permitir a todos os indivíduos uma perspetiva
de acesso igualitário e justo às oportunidades disponíveis numa sociedade.
A discriminação pode afetar a forma como as pessoas são tratadas em
todas as esferas da sociedade, seja na política, na educação, no emprego, nos
serviços sociais ou de saúde, na habitação, no sistema penitenciário, na aplicação da lei.4 Vistas de uma perspetiva histórica, as fontes de discriminação
relacionam-se com a raça, com o sexo ou orientação sexual, com os antecedentes étnicos e religiosos, com as deficiências, com a idade, com o estatuto
social, etc. (ver uma discussão mais desenvolvida em Freedman, 2002: 27–65).
1
A primeira parte deste artigo foi escrita por Katre Luhamaa e por Kiira Gornischeff, a
segunda parte deste artigo foi escrita por Manfred Liebel.
2
Comissão de Direitos Humanos ‘Comentário Geral n.º 28: Artigo 3 (A Igualdade de Direitos entre Homens e Mulheres)’ (HRI/GEN/1/Rev9 (Vol I) pp. 228–234) parágrafos 2–3.
3
Manual de Lei Europeia sobre Não Discriminação, Agência dos Direitos Fundamentais da
União Europeia, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: – Conselho da Europa, Luxemburgo 2011, p. 21.
4
Direitos Humanos na Administração da Justiça: Um Manual de Direitos Humanos para
Juízes, Procuradores e Advogados, capítulo 13. Direito à Igualdade e Não Discriminação na
Administração da Justiça, Nações Unidas. Nova Iorque e Genebra, 2003, p. 636.
INTRODUÇÃO 15
O princípio fundador da Declaração Universal dos Direitos Humanos5 é
o de que todas as pessoas nascem “livres e iguais em dignidade e em direitos”
(artigo 1), o que significa que os direitos universais devem aplicar-se a todos,
sem qualquer distinção, igualmente entre homens e mulheres. Sendo assim,
a compreensão tradicional da não discriminação requer que grupos semelhantes sejam tratados de forma semelhante e que grupos diferentes sejam
tratados de forma diferente.6 Isto levanta uma questão: que grupos são semelhantes e que grupos são diferentes, uma vez que o tratamento igual contém
vários elementos. Em primeiro lugar, exige igualdade perante a lei (conhecida
igualmente por “igualdade formal” e, em segundo lugar, requer proteção igual
da lei (igualdade substantiva).
A adoção da UDHR foi um importante primeiro passo para confirmar o
princípio da igualdade perante a lei. O Artigo 2.º da UDHR fornece uma lista
das bases proibidas de discriminação: “Todos os seres humanos podem invocar
os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção
alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento
ou de qualquer outra situação.
Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político,
jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa,
seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a
alguma limitação de soberania.”7
O significado pleno desta exigência é mais clarificado no artigo 3 do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP)8 e nos artigos 2 (2) e 3 do
Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC).9
O Comité de Direitos Económicos, Sociais e Culturais clarificou que aos
Estados é exigido que tomem “todas as medidas necessárias para permitir
que todas as pessoas usufruam desses direitos. Entre estas medidas, incluem-se a remoção dos obstáculos que impeçam um igual usufruto desses direitos, a educação da população e dos funcionários do Estado sobre os direitos
humanos, e o ajustamento da legislação nacional, de modo a tornar efetivos
os direitos protegidos pelo Pacto. Estas medidas não devem ser medidas de
proteção, mas também medidas positivas em todas as áreas, para se conseguir
5
Assembleia Geral das Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de
Dezembro de 1948, 217 A (III), daqui em diante referida como UDHR.
6
Ver mais informações, p. ex. no Manual de Lei Europeia sobre Não Discriminação, 2011,
Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2010, pp. 21–22.
7
Direitos Humanos na Administração da Justiça (Nota de Rodapé n.º 4), p. 636.
8
Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral, de 16 de Dezembro de 1966, que entrou em
vigor em 23 de Março de 1976. Daqui em diante referida como PIDCP.
9
Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral, de 16 de Dezembro, que entrou em vigor
em 3 de Janeiro. Daqui em diante referida como PIDESC.
16
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
uma igual outorga de poder efetivo” para todas as pessoas.10 Desta forma,
garantindo-se que uma igualdade de jure11 não resultará necessariamente
numa igualdade de facto12 (Smith, 2012, Nota de Rodapé n.º 1).
Assim sendo, de maneira a proteger e a prevenir os direitos individuais e
coletivos, a lei sobre não discriminação tem, geralmente, dois elementos. Em
primeiro lugar, a lei determina que os indivíduos que se encontram em situações semelhantes devem receber um tratamento semelhante, e não serem tratadas de modo menos favorável simplesmente devido a uma caraterística de
“proteção” particular que possuam (isto é conhecido como proibição da discriminação direta). E, em segundo lugar, a lei de não discriminação estipula
que os indivíduos que se encontram em situações diferentes devem receber
tratamentos diferentes uma vez que estes se tornam necessários para lhes permitirem usufruir oportunidades particulares nas mesmas condições de base
dos outros (também conhecida como proibição da discriminação indireta).
Ambos os tipos serão explicados em detalhe, mais abaixo.13
Os acima mencionados tipos de não discriminação encontram-se protegidos por remediações diferentes e mais detalhadamente em todos os principais instrumentos internacionais de direitos humanos, incluindo o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP); Pacto Internacional dos
Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC); Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial14; Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres15;
Convenção sobre os Direitos da Criança16 e Convenção dos Direitos das
Pessoas com Deficiência17; a Convenção Europeia dos Direitos do Homem18; a
Carta Social Europeia (revista)19, etc. Estes instrumentos, e as instituições que
garantem a sua proteção, são discutidos mais pormenorizadamente no capítulo de Paraskevi Naskou-Perraki “Uma Introdução à Proteção Internacional
dos Direitos Humanos”.
10
Comentário Geral N.º 28 (Nota de Rodapé n.º 2), parágrafo 3. A substância desta obrigação é analisada em maior detalhe, p. ex, Direitos Humanos na Administração da Justiça (Nota
de Rodapé n.º 4), p. 639.
11
De jure – por direito.
12
De facto – na realidade.
13
Manual de Lei Europeia sobre Não Discriminação (Nota de Rodapé n.º 3), p. 21.
14
Adotado e disponível para assinatura e ratificação pela resolução 2106 (XX) da Assembleia Geral de 21 de Dezembro de 1965, que entrou em vigor no dia 4 de Janeiro de 1969.
15
Nova Iorque, 18 de Dezembro de 1979, em vigor a 3 de Setembro de 1981, Nações Unidas,
Treaty Series, vol. 1249, p. 13.
16
Nova Iorque, 20 de Novembro de 1989, em vigor a 2 de Setembro de 1990, Nações Unidas,
Treaty Series, vol. 1577, p. 3.
17
Nova Iorque, 13 de Dezembro de 2006, em vigor a 3 de Maio de 2008, Nações Unidas,
Treaty Series, vol. 2515, p. 3.
18
Emendada pelos Protocolos N.º 11 e 14, suplementados pelos Protocolos N.º 1, 4, 6, 7, 12
e 13, CETS N.º 194.
19
Estrasburgo, 3 de Maio de 1996, em vigor a 1 de Julho de 1999, CETS N.º 163.
INTRODUÇÃO 17
2. Os conceitos legais
A lei anti-discriminação desenvolveu-se rapidamente, tanto em âmbito, como
em complexidade, mas não conseguiu diminuir de facto a discriminação. Isto
significa que também o número de medidas exigidas pelos instrumentos
internacionais de direitos humanos tem aumentado e tem-se tornado mais
abrangente.
Discriminação direta
O fundamento da igualdade é a proibição da discriminação direta e formal
e esta proibição está presente em todos os principais sistemas de proteção
dos direitos humanos, incluindo as leis das Nações Unidas, da Convenção
Europeia dos Direitos Humanos e da União Europeia20. Por exemplo, o artigo
7 da DUDH estabeleceu o direito à igualdade da seguinte forma: “Todos são
iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos
têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente
Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.”
Uma das definições de discriminação direta pode ser encontrada no artigo
2 (2) da Diretiva sobre Igualdade Racial21 que afirma que a discriminação
direta “ocorre sempre que, em razão da origem racial ou étnica, uma pessoa seja
objeto de tratamento menos favorável que aquele que é, tenha sido ou possa vir
a ser dado a outra pessoa em situação comparável;”.22 É definida, de forma bastante similar, no Comentário Geral n.º 20 do Comité de Direitos Económicos,
Sociais e Culturais, no qual a discriminação direta “ocorre quando um indivíduo é tratado de forma menos favorável do que outra pessoa numa situação
semelhante, devido a uma razão relacionada com fundamentos proibidos. A discriminação direta inclui, igualmente, atos detrimentais ou omissões, com base
em fundamentos proibidos, quando não existe nenhuma situação semelhante
comparável (ex. o caso de uma mulher grávida).23 Eliminar a discriminação
formal requer que seja assegurado que a Constituição, leis e documentos políticos de um Estado não discriminam com base em fundamentos proibidos;
20
Para casos-exemplo, ver o caso Coleman, em que uma mãe se queixou de que estava a
ser vítima de tratamento desfavorável no trabalho, com base no facto de que o seu filho era
portador de uma deficiência. ECJ Coleman vs. Attridge Law e Steve Law, caso c-303/06 “2008”
i-5603, de 17 de Julho de 2008. Ver, também, Direitos Humanos na Administração da Justiça
(Nota de Rodapé n.º 4), p. 638.
21
Diretiva do Conselho 2000/43/EC, de 29 de Junho de 2000, que implementa o princípio
da igualdade de tratamento entre pessoas, independentemente da origem racial ou étnica.
22
Manual de Lei Europeia sobre Não Discriminação (Nota de Rodapé n.º 3) pp. 21–22. Para
casos-exemplo, ver o caso Coleman, em que uma mãe se queixou de que estava a receber um
tratamento desfavorável no trabalho, devido ao facto de o seu filho ser portador de uma deficiência. ECJ, Coleman vs. Attridge Law e Steve Law, case c-303/06 “2008” i-5603, 17 de Julho
de 2008.
23
Nações Unidas, Conselho Económico e Social, Comentário Geral N.º 20, parágrafo 10, a.
18
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
por exemplo, as leis não devem recusar benefícios de segurança social iguais
às mulheres com base no seu estatuto marital.24
A discriminação direta é claramente baseada no conceito de igualdade
enquanto consistência. Como tal, é um conceito relativo. Não é o tratamento,
em si, que está em causa, mas o facto de uma pessoa ser tratada de forma
menos favorável do que outra. Igualdade, neste caso, é conseguida, se as duas
partes forem igualmente bem tratadas; mas isto também é conseguido se elas
tiverem sido igualmente mal tratadas e não há nada que sugira que a primeira
situação seja mais desejável do que a segunda (ver, também, a discussão em
Freedman, 2002).
Exemplos de discriminação direta são a recusa de admissão num restaurante ou numa loja; receber uma pensão ou salário menor; ser sujeito a abuso
ou violência verbal; não ser capaz de reclamar direitos de herança; ser excluído de um sistema de educação regular; não ser permitido o uso de símbolos
religiosos, etc.25
Estabelecer a discriminação direta requer encontrar um indivíduo do sexo
oposto, raça, grupo etário, etc., numa situação semelhante, porque a comparação destas situações é a chave da fórmula legal. Isto produz uma lista de
outros problemas – a escolha de um grupo comparável, ela própria, requer
julgamentos de valor complexos, sobre quais as diferenças que são relevantes
e quais as que são irrelevantes; podem mesmo existir situações em que não
pode ser encontrado nenhum grupo comparável (p. ex. gravidez, discriminação por deficiência) (ver também a discussão em Freedman, 2002: 92–105).
A discriminação é frequentemente justificada por referência a outras
prioridades sociais, como fatores de política económica ou social. Os tratados internacionais sobre direitos humanos não permitem tais justificações. O
efeito horizontal desta proibição, no entanto, não é absoluto, porque podem
existir valores em competição que são mais importantes do que o da igualdade. O teste da proporcionalidade, portanto, tem de ser aplicado em todas as
circunstâncias, para avaliar se um tratamento diferente num caso particular
é justificado.26
Discriminação Indireta
Um tratamento igual não é suficiente para solucionar todas as desigualdades da sociedade. Pelo contrário, pode haver casos em que um tratamento
igual conduziria a resultados desiguais – tratar as pessoas da mesma maneira,
24
Ibid., parágrafo 8, a.
Ver p. ex. Manual de Lei Europeia sobre Não Discriminação (Nota de Rodapé n.º 3) pp.
22–23.
26
O Manual sobre a legislação europeia antidiscriminação (Nota de Rodapé n.º 3) dá alguns
exemplos sobre como o teste da proporcionalidade funciona em diferentes áreas de proteção.
Ver, especialmente, o capítulo 4, para o caso exemplificativo da lei.
25
INTRODUÇÃO 19
independentemente dos seus diferentes ambientes, frequentemente acentua
a diferença. Este é o movimento da consistência para a substância. Examinar
o impacto de práticas e critérios aparentemente neutrais revela até que ponto
a cultura ou a religião dominantes são favorecidas (ver uma discussão mais
detalhada em Freedman, 2002: 106–116, Nota de Rodapé n.º 27). Os objetivos
do conceito de discriminação indireta são ambíguos, já que este pretende ir
para além de um tratamento igual para alcançar igualdade de resultados, bem
como igualdade de oportunidades.
A lei internacional reconhece que a discriminação pode resultar não
somente de se tratar pessoas de modo diferente em situações semelhantes,
mas também de se oferecer o mesmo tratamento a pessoas que estão, de facto,
em situações diferentes.27 De acordo com o Comentário Geral n.º 20, a discriminação indireta refere-se a leis, políticas ou práticas que parecem ter um
valor facial neutro, mas possuem um impacto desproporcionado no exercício
de direitos enquanto distintos de fundamentos de discriminação proibidos.
Por exemplo, exigir uma certidão de nascimento nas matrículas das escolas
pode ser discriminatório para minorias étnicas ou não nacionais, que não
possuam, ou a quem tenham sido negadas, tais certidões.28 O Comité dos
Direitos Humanos confirmou este entendimento e determinou que discriminação é qualquer distinção que “tem o propósito ou efeito de tornar nulo ou
prejudicar o reconhecimento, o usufruto ou o exercício, por todas as pessoas, em
pé de igualdade, de todos os direitos e liberdades”, realçando que “o usufruto de
direitos e liberdades, em pé de igualdade, … não significa tratamento idêntico
em todos os casos”.29
O movimento para além do tratamento consistente não eliminou a necessidade de um grupo de comparação, embora o indivíduo e o seu tratamento
sejam substituídos por um grupo e o seu tratamento comparável. Por isso, é
necessário, para garantir que a condição ou exigência é tal que consideravelmente menos indivíduos de um grupo, do que do outro, podem adequar-se. A
escolha do grupo de comparação certo é particularmente importante, e também difícil, já que a escolha errada pode mesmo reforçar a discriminação.30
Eliminar a discriminação, na prática, exige que se preste atenção suficiente
a grupos de indivíduos, que são vítimas de preconceito histórico ou persistente, em vez de apenas se comparar o tratamento formal de indivíduos em
27
Para um caso legal, ver p. ex. D.H e Outros vs. República Checa, em que uma série de testes
foram usados para estabelecer a inteligência e a adequação de estudantes, para determinar se
eles deviam ser afastados da educação regular e colocados em escolas especiais. ECTHR, D.H.
e Outros vs. República Checa “GC” (N.º 57325/00), 13 de Novembro de 2007, parágrafo 79;
Manual de Lei Europeia sobre Não Discriminação, 2011, p. 29.
28
Nações Unidas, Conselho Económico e Social. Comentário Geral N.º 20, parágrafo 8, b.
29
Comité de Direitos Humanos, Comentário Geral N.º 20, parágrafo 10, b.
30
Existem muitos casos legais do ECHR nesta questão. Ver e.g. Burden vs. Reino Unido, n.º
13378/05, § 60, CEDH, 2008, etc.
20
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
situações semelhantes. Os Estados devem, assim, adotar as medidas necessárias para prevenir, diminuir e eliminar as condições e as atitudes causadoras ou perpetuadoras de discriminação substantiva ou de facto. Por exemplo, assegurar que todos os indivíduos têm acesso igual a habitação, água e
saneamento adequados, ajudará a ultrapassar a discriminação das mulheres e
meninas e das pessoas que vivem em instalações informais e em áreas rurais.31
Como muitos destes valores são relativos, o equilíbrio entre diferentes
interesses é especificamente importante e isto pode significar que algumas
medidas ou barreiras, que podem parecer discriminatórias, de facto apoiam
uma igualdade substantiva. Por isso, nestes tipos de casos, a obrigação de justificar as medidas tomadas depende, frequentemente, da parte que impõe as
medidas (i.e., é aplicada a inversão do ónus da prova32).
3. Para além da discriminação indireta – a discriminação revertida
O reconhecimento dos limites, tanto da discriminação direta, como da indireta, tem conduzido os legisladores a iniciar uma nova direção – a imposição
de direitos positivos que promovam a igualdade, em vez da exigência negativa
de evitar a discriminação. Estas exigências podem envolver campanhas de
promoção, quotas positivas, obrigações específicas impostas às autoridades
públicas ou às entidades privadas, incentivos dados para melhorar a posição
de grupos marginalizados, etc. Estas medidas anti-discriminação afastam-se
do modelo baseado nas falhas, e reconhecem que a discriminação societária
se estende para além dos atos individuais de preconceito (ver uma discussão
mais ampla em Freedman, 2002: 121–124, Nota de Rodapé n.º 27).33
Sistemas legais diferentes têm salientado a importância de diferentes
elementos de igualdade. A lei da UE, por exemplo, realça a igualdade de
31
Nações Unidas, Conselho Económico e Social, Comentário Geral N.º 20, parágrafo 8, b.
Ver p. ex. a Diretiva 2006/54/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de Julho
de 2006, sobre a implementação do princípio de oportunidades iguais e igual tratamento de
homens e mulheres em assuntos de emprego e ocupação (reformulação).
33
Esta questão tem também sido abordada pelas agências das Nações Unidas. Ver, por
exemplo, o Comité sobre a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas, ‘Recomendação Geral N.º 32: O Significado e Alcance de Medidas Especiais na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial’ UN Doc. CERD/C/
GC/32, 24 de Setembro de 2009; Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das
Nações Unidas, ‘Comentário Geral 13: O Direito à Educação’ UN Doc. E/C.12/1999/10, 8 de
Dezembro de 1999; Comité sobre a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres, ‘Recomendação Geral N.º 25: Artigo 4(1) da Convenção (medidas especiais temporárias)’ UN Doc.
A/59/38(SUPP), 18 de Março de 2004; Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas,
‘Comentário Geral N.º 18: Não Discriminação’ UN Doc. A/45/40 (Vol. I.) (SUPP), 10 de Novembro de 1989; Comité sobre a Eliminação da Discriminação Racial, ‘Recomendação Geral
N.º 30, sobre Discriminação contra Não Cidadãos’ UN Doc. HRI/GEN/1/Rev.7/Add.1, 4 de
Maio de 2005.
32
INTRODUÇÃO 21
oportunidades. O Tratado de Funcionamento da União Europeia34 oferece
um exemplo no artigo 157 (4): “A fim de assegurar, na prática, a plena igualdade entre homens e mulheres na vida profissional, o princípio da igualdade de
tratamento não obsta a que os Estados-Membros mantenham ou adotem medidas que prevejam regalias específicas destinadas a facilitar o exercício de uma
atividade profissional pelas pessoas do sexo sub-representado, ou a prevenir ou
compensar desvantagens na sua carreira profissional.”
Estas medidas podem incluir a remoção de barreiras e a reparação de desvantagens ou estereótipos passados; a promoção de uma representação igualitária e, através dela, a garantia de que isto conduzirá a uma alteração estrutural. Tem de ser reconhecido, no entanto, que existem limites para aquilo que a
lei pode fazer. Processos legais são sempre caros e de longa duração e podem
arrastar consigo estigmatização, e também existem limitações nas remediações legais disponíveis. É necessário, portanto, reconhecer a importância das
medidas de política social, quando se abordam questões de discriminação.
Parte II: Discriminação na vida social
As situações de discriminação na vida social apresentam variações e interconexões diversas. Para se conseguir compreender eventos de discriminação,
a sua origem e impacto, deve atribuir-se grande importância aos conceitos
multidimensionais.35
1. Categorias de Discriminação
Tendo em mente o desenvolvimento dos conceitos multidimensionais, a socióloga Leslie McCall (2005) diferencia entre três possibilidades:
Conceitos anti-categóricos questionam categorias, em geral, já que a
construção de categorias, em si mesma, já é geradora de inclusão e
exclusão. As categorias são compreendidas como sendo normas, que
também constroem o desvio das normas. Os conceitos anti-categóricos tentam abolir quaisquer referências a fatores de discriminação;
Os conceitos intra-categóricos questionam o grau de homogeneização
e a necessária diferenciação nas categorias. Tentam, igualmente, compreendê-las de forma mais acurada. Tais conceitos são sobretudo interessantes para as consequências da discriminação (diferentes ‘razões’
para diferentes pessoas em diferentes circunstâncias);
34
35
OJ C 326, 26.10.2012.
Os seguintes comentários referem-se parcialmente a Baer, Bittner & Göttsche (2010).
22
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
Os conceitos inter-categóricos usam, estrategicamente, diferentes categorias enquanto categorias macrossociais. Isto permite-lhes contrastar
disparidades sociais, e possibilita medidas e as suas divergências. Estes
conceitos referem-se a contextos sociais mais amplos, que conduzem a
desvantagens sociais e, finalmente, à discriminação de seres humanos.
Para identificar a discriminação, são geralmente usadas as categorias raça,
etnia, género, religião ou visão do mundo, deficiência, idade ou identidade
sexual. Levanta a questão das razões para as escolhas, quer dizer, se em todos
os contextos as mesmas categorias são relevantes ou se têm de ser sempre
empiricamente determinadas, de novo, de cada vez. A escolha não só tem de
ser justificada, mas em certos contextos tem de ser deixada em aberto, acrescentando novas categorias relevantes a esta categorização. Isto é, frequentemente, p. ex. em estudos sobre género, expresso pelo “etc.”, no final de uma
lista de categorização. A legislação anti-discriminação tem reconhecido isto
como a proibição de discriminação ao nível dos direitos humanos, devido às
razões comparáveis no interior de diferentes frases.
Uma hierarquia de categorias é problemática, por causa das seguintes razões: Em primeiro lugar, coloca-se a questão, se, e que discriminação,
deve ser abordada ou deve ser deixada em aberto ou em forma da tabu. Em
segundo lugar, deve perguntar-se em que casos faz sentido, ou se justifica,
focar-se em certas categorias, por exemplo, podem existir contextos em que
o racismo tem de ser trazido à liça sem levantar questões como a deficiência,
a identidade sexual ou a idade, ao mesmo tempo.36 Em todo o caso, é importante tornar transparentes as prioridades escolhidas e justificá-las relativamente ao conteúdo.
Questões centrais que devem ser levantadas em qualquer conceito são as
seguintes: como estão conectadas entre si as diferentes dimensões da discriminação e como se influenciam mutuamente; que importância é dada a estas
dimensões; referem-se a indivíduos ou a grupos, são acerca de identidades
(subjetivas ou atribuídas) ou acerca dos traços de alguém (‘naturais’ ou socioculturais); e, finalmente, se é sobre a prerrogativa de alguém para discriminar
outros.
2. Intersecionalidade
Muito conhecido e influente para a análise da discriminação é o conceito de
intersecionalidade. O conceito foi submetido desde os anos 80 pela jurista
norte-americana Kimberlé Crenshaw. Ela argumenta que uma proteção legal
36
Gayatri Spivak (1987), o teorizador dos Estudos Subalternos, discutiu isto como a “essencialização estratégica”.
INTRODUÇÃO 23
útil pode não apenas desconstruir a discriminação nas suas peças, mas também reconhecê-la como sendo eventos complexos.
Crenshaw usa o termo ‘intersecção’ como a imagem de um cruzamento
em que duas razões para discriminar (particularmente ‘raça’ e ‘sexo’) podem
reunir-se, o que foi compreendido em bases legais. Ela critica uma ‘abordagem de eixo único’, que, separadamente, se foca em diferentes razões de discriminação. Esta abordagem reconhece que a discriminação é baseada em
racismo ou sexismo ou em outras razões, mas não inclui, precisamente, a discriminação intersecional específica.
Dando um exemplo, Creenshaw critica políticas anti-discriminação que
se referem a apenas um eixo, ao mesmo tempo que nega que a experiência
de discriminação sentida pelas mulheres ‘negras’ não se adequa a todas as
situações de discriminação das mulheres (brancas). Ora, essas políticas constroem tal experiência de modo a ser tão diferente, em comparação com a das
mulheres ‘brancas’ ou com a dos homens ‘negros’, que as matérias de facto
da experiência das mulheres negras não podem ser cumpridas (‘as mulheres
negras não podem levar alguém a tribunal devido a discriminação sexual,
como parece ser um caso particular’). Se não for por outro motivo, a intersecionalidade deve tornar-se, de forma séria, lei, por outras palavras, a sobreposição de hierarquias e a interação entre o racismo e o patriarcado em geral.
Do mesmo modo, trata-se de posições sociais únicas nesse ponto particular
de interferência, a localização das ‘mulheres de cor’ em ambos os sistemas de
subordinação que se sobrepõem.
Em obras posteriores, Creenshaw relaciona a sua análise crítica com as
políticas: a separação em casos individuais de discriminação, por exemplo,
no caso do combate à violência doméstica, conduzem a uma incapacidade
de formar uma coligação entre o movimento dos direitos civis para os negros
e os movimentos feministas, ou mesmo colocá-los em competição entre
si. Torna-se aparente na “desautorização interseccional”, que nas mulheres
‘negras’ se pode bater, o que significa que elas são confrontadas com o racismo
em contexto feminista e que podem ter de enfrentar o sexismo num contexto
antirracista, ao mesmo tempo, e portanto têm de lutar por um espaço que não
lhes exige que defendam ou que separem as partes do seu interesse político. “A
subordinação intersecional não tem de ser criada intencionalmente; de facto,
é, frequentemente, a consequência da imposição de uma carga que interage
com vulnerabilidades pré-existentes, para criar mais uma dimensão de desautorização” (Crenshaw, 1991: 1249). Isto necessitaria de ser ultrapassado por
uma melhor compreensão da discriminação intersecional.
24
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
3. Discriminação múltipla, composta e intersecional
O jurista finlandês Timo Makkonen da European Network of Independent
Experts in the Non-Discrimination Field, introduziu outro conceito, que distingue entre “discriminação múltipla”, “discriminação composta” e “discriminação intersecional” (Makkonen, 2002: 2), como termos principais.
A ‘discriminação múltipla’, de acordo com Makkonen, descreve “uma situação em que uma pessoa sofre de discriminação devido a vários fundamentos,
mas de uma forma em que a discriminação ocorre com base num fundamento
de cada vez” (op. cit.: 10). ‘Múltipla’ significa um acrescento ou acumulação
de discriminação, devido a diferentes razões, e em diferentes momentos ou,
respetivamente, em lugares diferentes. À laia de exemplo, Makkonen ilustra
com o caso de uma mulher com deficiência que é discriminada por ser uma
mulher que tenta avançar como um carregador e, também, devido à sua deficiência física, ao tentar entrar num edifício. Socialmente, estas experiências
conjugam-se nos pré-requisitos de uma pessoa. Neste caso, o principal enfoque é nos diferentes momentos, tanto como na forma de ver dos interessados.
A seu lado, a ‘discriminação composta’ é descrita como uma “situação em
que vários fundamentos de discriminação se acrescentam uns aos outros,
numa situação particular: a discriminação com base num fundamento acrescenta-se à discriminação baseada num outro fundamento, para criar um peso
acrescido” (op. cit.: 11). A segregação no campo do trabalho pode servir como
exemplo, onde se reconhece que alguns trabalhos são especificamente femininos ou masculinos e, ao mesmo tempo, se associam certos trabalhos a pessoas
migrantes, outros como trabalhos que são encarados como trabalho de gente
‘branca’ ou que não têm antecedentes migrantes.
Makkonen usa o termo ‘discriminação intersecional’ num sentido mais
restrito (do que Crenshew) como “uma situação em que existe um tipo específico de discriminação, em que vários fundamentos de discriminação interagem concorrentemente” (ibid.). Este género de discriminação acumula a
interação específica de vários motivos de discriminação. A esterilização forçada de mulheres portadoras de deficiências pode servir como exemplo. Nem
as mulheres sem deficiências, nem os homens portadores de deficiências, são
afetados por ela. Isto é semelhante à forma racista-sexista de dar uma notificação: Certas pessoas ficam colocadas num lugar, que é cruzado por duas
políticas discriminatórias diferentes.
Em geral, o conceito global de Makkonen ajuda a compreender a discriminação que ocorre em diferentes ocasiões, em diferentes quadros e em diferentes situações, relativamente a uma pessoa.
INTRODUÇÃO 25
4. Eixo de desigualdade e discriminação estrutural
As filósofas sociais alemãs Cornelia Klinger e Gudrun Axela Knapp (2007)
descrevem um conceito de discriminação multidimensional, que escolhe,
como tema central, o ‘eixo de desigualdade’. Esse conceito aborda o nível
macrossocial, discutindo as interseções da desigualdade estrutural (situações) de um ponto de vista sociológico. Com esta abordagem, as autoras
manifestam-se contra um enfoque exagerado no nível individual dos sujeitos, das suas identidades e experiências, o “grande enfoque em aspetos de
identidades e discriminação do nível micro-teorético até ao meso-teorético”
(Klinger & Knapp, 2007: 35–36). Portanto, o que se ‘cruza’ aqui são estruturas.
Trata-se de discriminação estrutural e pode ser facilmente relacionada com
a discriminação institucional. De acordo com Linda Supik (2008: 2), isto é
compreendido como “o mecanismo direto ou indireto de desvantagem, que
está enraizado nas estruturas sociais das instituições sociais, e portanto distribui oportunidades de participação de forma desigual, sem o fazer premeditadamente ou sem que haja nenhuma ‘má-fé’. Ocorrem no seio do sistema
educacional, no mercado de trabalho ou no sistema de saúde, por exemplo.
Isto só se torna visível, muitas vezes, em comparações estatísticas de grupos.”
De forma semelhante, a discriminação estrutural é, frequentemente, escolhida como tema central para marcar situações de desigualdade sociais intensificadas, que estão, portanto, relacionadas com experiências individuais mas
que, no entanto, funcionam independentemente das intenções individuais.
Na opinião de Klinger e Knapp, a atenção deve ser dada a três eixos de desigualdade: classe, género e ‘raça’. A escolha destes três eixos justifica-se porque
apenas esses três influenciam, de forma sustentável, a desigualdade social,
em “quase todas as sociedades” (Klinger & Knapp, 2007: 20). De acordo com
Klinger e Knap, eles formam a patena básica de situações de desigualdade nas
relações sociais pela sua referência comum ao trabalho. Todos os três estão,
portanto, a estruturar e a segregar no mercado de trabalho, no que respeita ao
emprego reprodutivo e remunerado.37 A ‘raça’, a classe, e o género servem para
justificar a degradação de certas ocupações, que estavam a criar efeitos únicos
mas estruturalmente ainda comparáveis de estranheza, ao interrelacionarem-se a um nível informativo. Assim sendo, esta abordagem pode ser compreendida como ‘intra-categórica’, no sentido de McCall (2005). Por exemplo, a
coação exercida por diferentes desigualdades pode ser empiricamente analisada relativamente ao ‘fosso salarial’ no mercado de emprego ou a discriminação das crianças com antecedentes migrantes no seio do sistema educacional.
O conceito é produtivo, relativamente à compreensão da discriminação
multidimensional. Ele permite compreender as ‘razões’, enquanto ‘eixos de
desigualdade’, em que ocorrem situações de desvantagem, mas que são proibidas por serem discriminações.
37
Semelhante ao processo de segregação no sistema educacional.
26
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
5. Interdependência
Na Alemanha, Katharina Walgenbach et al. desenvolveram outro conceito,
que indica uma compensação interativa de razões para discriminação, descrevendo o choque das diferentes razões. Ela demonstra, de forma exemplar,
que o conceito de categorias definíveis e sobreposição está a reproduzir uma
conceção, em que as categorias têm um “centro genuíno” (Walgenbach et al.,
2007; Walgenbach, 2014). Os autores veem o risco de conceitos de intersecionalidade, que trabalham com metáforas como “interseção” ou “eixo” em
conformarem-se a uma norma. Por conseguinte, Walgenbach et al. (2007: 9)
sugerem “compreender o género enquanto uma categoria interdependente.
Ao proceder assim, o termo interdependência não pode ser usado para descrever interações entre categorias, que se alternam, sobretudo as categorias
sociais são concetualizadas como independentes umas das outras. Assim,
esta sugestão significa que categorias como classe, etnicidade, ou sexualidade
devem ser encaradas como interdependentes, elas próprias.”
Esta conexão lida com um conceito ‘anti-categórico’ de intersecionalidade,
mas também inclui partes de uma análise ‘intra-categórica’ (nos termos de
McCall, 2005), o que significa que a construção de categorias transforma-se
num tópico em si mesmo e é analisado, de forma crítica, para se compreenderem as experiências multidimensionais da desigualdade, tomando em linha
de conta a sua categorização formativa.
6. O problema de distinção das categorias
Em alguns contextos de discriminação, a assunção das categorias cria fundação óbvia para investigar a sua complexidade e condições. Por conseguinte,
o nível de categorias será analisado em detalhe em abordagens existentes até
agora. Segundo a linguista Antje Hornscheidt (2007: 67), o estabelecimento
das categorias ocorre através da linguagem: “De um ponto de vista linguístico
perspetivo-pragmático […], as categorias são categorizações, apoiadas e criadas por práticas de nominação, que são intensamente convertidas e, portanto,
parecem incluir uma naturalidade antecedente – no pensamento e no uso
linguístico, o processo de categorização com aqueles relacionada, desenvolve-se numa categoria temporalmente fixada, com uma denotação linguística
antecedente.”
De acordo com estas afirmações, as práticas de nomeação estão a conduzir
na direção de uma categorização dos seres humanos e, consequentemente,
tanto à inclusão, como à exclusão. Daqui surge a distinção crucial entre os que
se encontram incluídos e os que o não estão, por exemplo, entre os que estão
protegidos por lei contra a discriminação e aqueles cujos casos são abordados
através de aconselhamento anti-discriminação, ou entre ‘aqueles que não são
INTRODUÇÃO 27
afetados’ e ‘os outros’. A denotação separa grupos imaginários e cria horizontes de denotação adicionais. Para além do mais, as denotações são processos ‘ontológicos’, porque tudo o que é rotulado, ‘é assim’ desde esse preciso
momento. No campo do trabalho legal contra a discriminação, um ‘dilema da
diferença’38 está a surgir, por causa disso. Por um lado, tentar rotular algo de
injustiça e, por outro lado, tratar de dizer que não está estabelecida, pressupõe
mudança e, portanto, não é essencial.
No contexto da discriminação, o problema em si surge muitas vezes de
uma categorização de natureza ‘ontológica’ da linguagem que originalmente
tem o propósito de a resolver. Tem sido feita a crítica de o facto de a lei contra
a discriminação, ao referir o termo ‘raça’, se tornar, ela mesma, racista. Ao
mesmo tempo, desenvolveram-se debates no campo das ‘deficiências’. Porém,
também o termo ‘idade’ fixa algo que, atualmente, não é possível fixar, uma
vez que a idade cronológica da vida tem efeitos diferentes. O termo ‘género’
sugere dois tipos de género que são claramente definíveis, apesar de, na
jurisdição dos dias de hoje, género ser compreendido enquanto um espetro
multidimensional e altamente heterogéneo de diferentes traços, que permite
compreender intersexualidade e transsexualidade, bem como formas de vida
transgénero, de uma forma mais adequada. Uma reflexão sobre os métodos
linguísticos de denotação faz-nos pôr em causa a forma como falamos das
pessoas e das experiências das pessoas, tanto como exige de nós que encontremos maneiras apropriadas de abordar a discriminação, sem a reproduzir
linguisticamente.
7. Resumo e perceção sobre como lidar com diferentes conceitos
O desenvolvimento de conceitos de discriminação multidimensional baseia-se no conhecimento de que a redução a um traço, razão ou dimensão de
discriminação distorce a realidade social e a experiência das pessoas que estão
a ser alvo de discriminação. Ao realçar a multidimensionalidade, não se está
a falar de diferenças ou de simples variedade, mas de desigualdade e de hierarquia, que conduzem a resultados discriminatórios. A distribuição social
das oportunidades é especificamente desigual, em termos de certas estruturas
que podem ser descritas como ‘eixos’. O dinheiro, o tempo livre ou flexível,
o acesso a posições de influência, a realização de desejos pessoais, a proteção de qualquer tipo de violência, o reconhecimento e os recursos que não
são distribuídos aleatoriamente, mas estruturados em função do racismo, das
desvantagens decorrentes da faixa etária, das deficiências, da exclusão social
de pessoas enquanto deficientes, pelo sexismo e hétero-sexismo. Isto não está
38
De acordo com os conceitos de infância e direitos das crianças, o ‘dilema da diferença’ é
discutido por Karl Hanson (2012: 71–72).
28
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
primariamente relacionado com ‘fobia’ ou com ‘hostilidade’, mesmo que se
tenha desenvolvido parcialmente num contexto político. Apresenta o risco da
individualização e da psicologização.
Consequentemente, deve ser lembrado que a discriminação tem os seus
fundamentos em certas ordens culturais e simbólicas, em solidificações e
estruturas ideológicas, que se manifestam sob a forma de experiências de
prejuízo e desvantagem. O hétero-sexismo, em contraste com a ‘homofobia’
ou com a ‘transfobia’, ilustra que aquele lida com a discriminação, devido à
norma da visão hétero-sexista dos dois géneros – e relaciona-se com dois
géneros diferentes, naturais, complementares, e que se buscam um ao outro.
Por consequência, uma orientação para uma ordem de géneros biológica
binária, tanto como formas de vida contra homossexuais ou bissexuais, como
identidades individuais que se revelam contra pessoas intersexuais e transsexuais.39 Diferentes pessoas são afetadas de diferentes maneiras, porque as
pessoas assumem posições sociais de diferentes formas: todas têm um género,
uma identidade sexual, uma idade cronológica, etc. Algumas categorias são
importantes em relação à identidade de uma pessoa. Embora, em certos contextos, haja desvantagens que vêm a par de certos privilégios, aquelas podem
mudar de significado ao longo do tempo. Nos países europeus, por exemplo,
as pessoas ‘brancas’ encontram-se regularmente numa situação privilegiada
relativamente a categorizações racistas, o que leva à ‘norma’ de ‘ser branco’ e,
portanto, uma pessoa nunca é forçada a lidar com isso ou a questionar o facto
de ‘ser branca’, ou a questionar de que maneira poderia lutar contra a discriminação estrutural e institucional no trabalho, na escola, etc. Para dar outro
exemplo, ao mesmo tempo, as mulheres e os homens são regularmente categorizados como heterossexuais. É por isso que lésbicas, mulheres e homens
gay ou bissexuais não se referem à sua identidade sexual, em contextos onde
podem potencialmente ocorrer situações de discriminação. Mesmo que possam ser caraterizados como lésbicas ou gays devido a uma norma relativa ao
género que influencia a nossa interpretação da aparência exterior e do comportamento, ninguém fala sobre isso diretamente. Outros podem igualmente
falar sobre esse tema com normalidade e, por exemplo, falar sobre o seu relacionamento e sobre as crianças. As estruturas criam efeitos hierarquizantes,
mesmo que os indivíduos os experienciem de forma diferente.
Em termos destas ideias, parece fazer sentido falar de ‘dimensões’, em
vez de ‘razões’ ou de ‘traços’. Apesar de este termo parecer mais abstrato,
usado como um cabeçalho, permite uma diferenciação contextualizada. Por
razões similares, o termo ‘categorização’ deve ser preferido ao termo ‘categorias’, especialmente quando diz respeito a situações que se relacionam com
39
Um exemplo é a atual classificação, para intervenções cirúrgicas, de crianças com caraterísticas sexuais distintas que a orientam para um dos géneros, que tem consequências significativas nas suas identidades futuras.
INTRODUÇÃO 29
a ciência ou o conhecimento especializado, bem como com a lei política ou
com outras conexões políticas. Em contraste com ‘razão’, ‘traço’ ou ‘categoria’,
este termo realça o processo ativo de criação de uma realidade desvantajosa
através da linguagem. Por exemplo, se os antecedentes étnicos, o género (ou a
‘generação’), a religião, a mundividência (ou ‘culturalização’), a deficiência, a
idade ou a identidade sexual (norma sexual) são somados como ‘categorizações’, torna-se óbvio que não estamos a tratar de algo que as pessoas têm ou
‘são’, até um certo ponto, mas sim de divisões a que é dada forma por pessoas
em certas posições de poder. As ‘categorizações’ podem igualmente refletir
a auto-perceção e a identidade das pessoas enquanto um homem, uma mãe
heterossexual, uma lésbica jovem, um muçulmano rico, etc. Mas o que faz a
grande diferença é que estas pessoas podem fazer tudo isso, não tendo necessidade de o fazer. A exclusão ou a discriminação inclui uma divisão entre
conforme à norma e não conforme à norma, que serve de fundação para a
compreensão da discriminação.
A ‘categorização’, de forma associativa, conduz a uma compreensão diferenciada e complexa da discriminação. Isto cria valor adicional na legislação
e nos tribunais, na política e na sensibilização, bem como na educação contra a discriminação. Em outros contextos, outros termos podem ser úteis; no
entanto, as razões avançadas contra os termos usuais devem ser ativamente
abordadas. A multidimensionalidade, neste contexto, não é nada de abstrato
também: é importante e não incompreensível, apesar de ser complexa. Ela
também ajuda a investigação científica a lidar com uma maior complexidade
das realidades da vida e com os vários níveis de desigualdade.
Em consequência, é importante referir e explicar a discriminação multidimensional na comunicação pública e indicar, com clareza, casos e constelações diferentes, os perigos da ‘estereotipização’, ‘prioritização’, e ‘hierarquização’, assim como a ‘essencialização’. O termo discriminação multidimensional
deixa em aberto a forma como as diferentes categorias se afetam umas às
outras. Isto será usado como uma vantagem.
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INTRODUÇÃO 31
PARTE I:
ABORDAGEM LEGAL
À NÃO DISCRIMINAÇÃO
DA CRIANÇA
32
Manfred Liebel, Katre Luhamaa, Kiira Gornischeff
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos 33
CAPÍTULO 1:
UMA INTRODUÇÃO À PROTEÇÃO
INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS1
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
Paraskevi Naskou-Perraki, Dr. Dr.h.c. é Professora de Lei Internacional e das Organizações Internacionais no Departamento
dos Estudos Europeus Internacionais, Universidade da Macedónia, Tessalónica, Grécia, Diretora da Política Intercultural da
UNESCO. [email protected]
1. Introdução
O propósito deste material de ensino é permitir que o leitor navegue por entre
o complexo tópico dos direitos das crianças e da não discriminação. Para o
conseguirmos, pensamos ser apropriado prosseguir este esforço, explicando
certas coisas básicas acerca da proteção internacional dos direitos humanos,
na qual a não discriminação, enquanto tal, está incorporada.
O princípio geral da igualdade e não discriminação influencia todas as
convenções, tratados, declarações e resoluções que foram elaborados depois
da criação das Nações Unidas.2 Este é um princípio que foi primeiro visto,
na sua forma preliminar, na Carta das Nações Unidas3, e foi, depois, completamente expandido, alargado e diversificado em outros textos internacionais,
nos quais ganhou a sua verdadeira dimensão, em resultado do esforço para
abolir todas as formas de discriminação.4
Podemos, com facilidade, detetar e categorizar os fundamentos básicos
em que a discriminação se pode basear: género/sexo, orientação sexual, raça,
cor da pele, descendência e origem étnica, nacionalidade, linguagem, religião e crenças, deficiência, idade, opinião política ou outra, estatuto marital,
1
A autora deseja expressar a sua gratidão ao Sr. Manos Kalaintzkis pela sua investigação
académica.
2
Ver Struggle against Discrimination, Studies on Human Rights, UNESCO, França, 2004.
3
Artigo 1, 3 da Carta das Nações Unidas.
4
Ver, por exemplo, entre outros, a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação (CERD) e o seu rico caso legal.
34
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
parental e familiar.5 Esta lista não é exaustiva, porque a intolerância e o preconceito são, infelizmente, um fenómeno comum em ambientes diversos e
pluralistas. Uma estrutura convencional, abrangente e universal, foi remetida,
para ser mobilizada, num combate perpétuo relativo à questão da discriminação, de modo a salvaguardar o princípio geral da igualdade.
2. Considerações Gerais sobre a evolução dos Direitos Humanos
A proteção internacional dos direitos humanos é um ramo novo da lei internacional, que se desenvolveu, rapidamente, após a 2.ª Grande Guerra e a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR-1948).6 Mesmo
a teoria da lei internacional foi adaptada a novas circunstâncias, uma vez que
o indivíduo se torna num sujeito da lei internacional, adicionalmente protegido pelas normas internacionais, para além das nacionais.7 Um impressionante corpus de regras e princípios de atos internacionais foi adotado, quer de
forma convencional, quer declarativa, alterando de maneira positiva a posição do indivíduo e do grupo de indivíduos nas sociedades nacionais, bem
como a nível internacional.
O fundamento comum para a evolução dos direitos humanos é o respeito
e a proteção da dignidade do indivíduo e o valor da pessoa humana, apesar da
diversidade de culturas que compõem o mundo atual. Os direitos humanos
podem ser encarados como o último estádio de progresso na evolução da
Humanidade, como os valores centrais da sobrevivência e prosperidade de
todos os seres humanos.
O pleno significado dos direitos humanos está consagrado e bem definido
na famosa citação de Nelson Mandela: “negar às pessoas os seus direitos humanos é desafiar a sua própria humanidade”.8 O esforço da comunidade internacional para proteger os direitos humanos é constante em quase todas as partes
do mundo e evidente na proliferação dos tratados sobre direitos humanos e
o estabelecimento de mecanismos protetores de controlo, tanto universais,
como regionais. Hoje em dia, a teoria das três gerações9 dos direitos humanos
5
Centro Internacional para a Proteção Legal dos Direitos Humanos, The Protection of the Individual in International Law, Essays in honour of J. Dugard, Cambridge University Press, 2007 p.
25.
6
G. A., Res. 217 A (III), de 10 de Dezembro de 1948.
7
Ver, em geral, T. Skouteris e A. Vermeer-Kunzli (Eds.), The Protection of the Individual in
International Law, Essays in honour of J. Dugard, Cambridge University Press, 2007 p. 25.
8
Sessão conjunta da House of Congress, Washington DC, EUA, 26 de Junho de 1990.
9
A primeira geração inclui os direitos civis e políticos que foram judicializados (i.e., cuja
violação dá aos indivíduos acesso aos tribunais), enquanto a segunda geração inclui direitos económicos, sociais e culturais que não eram tão judicializáveis como a terceira geração de direitos,
que estão incluídos na Carta Africana dos direitos Humanos e dos Povos, de 1981 (i.e., o direito
à solidariedade, à autodeterminação, o direito ao desenvolvimento, e outros). O abandono da
teoria das três gerações deve-se à adoção do Protocolo Adicional da ICESCR, de acordo com
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
35
é considerada obsoleta, à medida que observamos que, devido aos passos inovadores ocorridos nesta área, os direitos humanos são universais, indivisíveis,
interdependentes e interrelacionados.
2.1. Proteção Universal/Regional
A proteção universal dos direitos humanos abrange basicamente o estudo do
sistema das Nações Unidas, os tratados sobre direitos humanos adotados no
seio da estrutura das Nações Unidas (ONU), os procedimentos e mecanismos estabelecidos pelos principais corpos subsidiários das Nações Unidas, as
Agências Especializadas e outros organismos ou programas que funcionam
no seio do sistema da ONU. A proteção dos direitos humanos nunca descansa, enquanto violações continuarem a ser cometidas. É uma área da legislação internacional em evolução e maleável, com um grande grau de adaptabilidade, em que novos organismos são criados, textos adicionais são escritos
(i.e., Protocolos Opcionais)10 e a proteção tornando-se mais especializada e
individualizada (trabalhadores imigrantes, pessoas portadoras de deficiências, povos indígenas, etc.).
A Proteção Regional dos Direitos Humanos também se desenvolveu nos
últimos 60 anos; a começar pela Convenção para a Proteção dos Direitos do
Homem e das Liberdades Fundamentais (1950), seguida pela Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (1976), a Carta Africana de Direitos
Humanos e dos Povos (1981) e a Carta Árabe dos Direitos Humanos (2006).
Um novo desenvolvimento na Região Asiática é a Declaração dos Direitos
Humanos da Associação de Nações do Sudeste Asiático [ASEAN] (2012).11
Há distinções entre a proteção dos direitos humanos na ONU e a nível
regional, e isto reflete um desenvolvimento exponencial, pelo que os princípios e as regras nestes diferentes sistemas, quer mostram coerência, quer
não a mostram. Isto é evidente no facto de, em outras regiões, o progresso do
estabelecimento de um sistema regional de proteção dos direitos humanos ser
tão lento. Por exemplo, em certas partes do mundo, por exemplo, nos Estados
Árabes, foi apenas recentemente que uma nova Carta dos Direitos Humanos
foi adotada, e, na Ásia, este esforço foi finalizado apenas há dois anos. No
o qual os indivíduos podem levar comunicações contra os seus países ao Comité relevante, e
após a adoção do Protocolo que emendou a Carta Africana, criando um Tribunal Africano dos
Direitos Humanos e dos Povos, com o direito para ser aplicado aos indivíduos. Um segundo
Protocolo da Carta Africana fundiu o Tribunal da União Africana e o Tribunal do Protocolo,
criando o Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos, sedeado em Arusha.
10
Protocolos Facultativos ou Adicionais a um tratado são atos internacionais que, ou acrescentam novos direitos humanos ou emendam certas medidas do tratado ou do mecanismo de
implementação.
11
Ver P. Naskou-Perraki, International Mechanisms protecting Human Rights. Texts, comments, case law, Ant. N. Sakkoulas – Bruylant, Atenas – Bruxelas, 2010, pp. 25–46, 343–344,
446–448, 467–468, 535–536, 595–596, 613.
36
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
entanto, deve notar-se que o nível de proteção garantido pelos instrumentos
regionais de direitos humanos e pelos mecanismos de controlo é mais elevado
do que o permitido pelos tratados universais de direitos humanos, principalmente devido à coesão política e cultural que cada região demonstra. A
homogeneidade de texturas num determinado contexto geográfico permite
que a proteção seja orientada para problemas-chave de formas mais compatíveis com os componentes civis dessas sociedades. À estrutura universal
falta-lhe a agilidade e a flexibilidade, em termos de individualidade, a que o
conceito de direitos humanos se encontra ligado íntima e inevitavelmente;
entretanto, o sistema regional é conhecido pelo seu vigor – um aspeto que se
perde na imensa complexidade da estrutura universal.
2.2. Princípios Básicos da Proteção dos Direitos Humanos
O princípio básico da lei internacional dos direitos humanos reside na soberania territorial e na igualdade dos Estados. Todos os Estados têm a responsabilidade básica de proteger os indivíduos sob sua jurisdição, como previsto
nas constituições nacionais, nas leis nacionais e nos tratados internacionais
ratificados. O pré-requisito para a aplicação da lei internacional é a ratificação
de convenções-protocolos internacionais ou de outros atos pelos Estados.
2.2.1. Exaustão das remediações nacionais
Com base neste princípio, os indivíduos devem resolver os seus problemas
de acordo com a estrutura nacional, antes de apelar aos mecanismos internacionais. Consequentemente, a proteção dos direitos humanos é sobretudo
uma matéria nacional12, enquanto a proteção internacional é subsidiária, do
ponto de vista dos mecanismos. Os indivíduos ou grupos de indivíduos são
obrigados a abordar o assunto e a fornecer reparação adequada aos termos
deste princípio, aplicando medidas locais.
12
Vale a pena mencionar, neste momento, que, segundo a Res. da A. G. 48/134, de 20 de
Dezembro de 1993 (Princípios de Paris), cada Estado é obrigado a estabelecer através de legislação uma Instituição/Comité Nacional para a Proteção dos Direitos Humanos (NHRIs),
que terá uma natureza independente, trabalhando como um organismo de aconselhamento
do governo e do parlamento, para a implementação dos tratados internacionais e promoção e
proteção dos direitos humanos. Os princípios preveem que os NHRIs possam deter um poder
“quasi-judicial”, para trabalhar efetivamente. Ver, entre outros, B. Burdekin, National Human
Rights Institutions in the Asia-Pacific region, The Raoul Wallenberg Institute Human Rights
Library, M. Nijhoff , Leiden, 2007, p. 7 et seq., Asia-Europe Meeting, National and Regional
Human Rights Mechanisms, Proceedings of the 11th Meeting on Human Rights, Prague, 20–
25 November 2011, Asia-Europe Foundation, SinG.A.pore, 2012, p. 18 et seq.
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
37
2.2.2. Hierarquia de Direitos Humanos
Existem certos direitos incluídos nas constituições, bem como em tratados
internacionais, que não podem ser abolidos em quaisquer circunstâncias,
sobretudo durante guerras ou emergências que ameacem a vida da nação.13
O facto de quatro destes direitos – o direito à vida, a proibição da tortura, a
proibição da escravatura e a não retroatividade das ofensas criminais – serem
comuns às cláusulas derrogatórias, é uma evidência do seu estatuto de regras
jus cogens14 da legislação internacional sobre os direitos humanos, mais elevadas na denominação hierárquica. O princípio da não discriminação pode
ser acrescentado a esta categoria, uma vez que qualquer ato sobre os direitos
humanos inclui uma cláusula sobre a não discriminação.15
2.2.3. Fontes da legislação sobre direitos humanos
As fontes básicas das leis sobre os direitos humanos são as convenções. Existem
mais de 300 Convenções, Tratados, Protocolos, Acordos e outros, adotados pela
Assembleia Geral das Nações Unidas, pelas Agências Especializadas e pelas
Organizações Regionais. Por razões de índole didática, as fontes podem ser
divididas em fontes gerais – como os dois Acordos sobre Direitos Humanos e, a
um nível regional, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a Convenção
Americana dos Direitos Humanos, a Carta Africana sobre os Direitos Humanos
e dos Povos, etc. – e em fontes especiais, que se encontram em textos com um
alcance limitado e específico, por exemplo a Convenção sobre a Eliminação
da Discriminação Racial, Convenção relativa à Luta Contra a Discriminação
no Campo do Ensino, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, a Convenção sobre os Direitos da Criança,
a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, etc. Cada Estado que ratifica
um tratado assume a obrigação de o introduzir na sua ordem legal interna e de
o implementar de boa-fé, sem o princípio da reciprocidade.16
13
Estes são o artigo 4 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, o artigo
15 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 27 da Convenção Americana de
Direitos Humanos, e o artigo 4 da Carta Árabe dos Direitos Humanos.
14
O artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, sob o título: “Tratados
incompatíveis com uma norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens)” reafirma: “É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, seja incompatível com uma
norma imperativa de direito internacional geral. Para os efeitos da presente Convenção, uma
norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derrogação não é permitida e
que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma
natureza.”. Ver D. Shelton ‘’Normative Hierarchy in International Law’’, 100 AJIL, 2006, p. 291.
15
Ver, por exemplo, UDHR, artigo1,2, ICCPR e ICESCR, artigo 2, 3, CDC, artigo 2, CRPD,
artigo 5, 6, etc.
16
A reciprocidade contém a equivalência de tratamento de cidadãos estrangeiros num outro Estado. O princípio da reciprocidade não se aplica, quando está em jogo a proteção dos
direitos humanos. Por exemplo, se um país viola os direitos do Estado X, isso não implica que
o outro Estado faça o mesmo aos cidadãos do primeiro Estado.
38
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
Proteger os direitos humanos é uma regra de obrigatoriedade nacional. Os
órgãos estatais implementam as leis nacionais ou os tratados internacionais
ratificados pelos parlamentos nacionais. A proteção internacional é subsidiária e intervém apenas como regra, quando a proteção nacional falha.
3. A proteção dos Direitos Humanos ao Nível Universal:
o Sistema das Nações Unidas
3.1. A Carta das Nações Unidas
A Organização das Nações Unidas17 tem sido pioneira na proteção dos
direitos humanos, desde a sua criação, conhecendo, claro, alguns desafios.
No seu Preâmbulo, a Carta “proclama a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade de direitos entre
homens e mulheres…” e, ao longo das suas medidas, realça a importância
que recai sobre estes direitos.18 De acordo com o artigo 1.º, entre os propósitos da Organização encontra-se o “respeito pelos direitos do homem e pelas
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou
religião;”. No artigo 1, 3, a Carta chama a si o encargo de coordenar todos
os Estados, com o objetivo de alcançar uma cooperação internacional que
promova e encoraje o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Esta medida transformou a face do mundo, já que com a sua natureza intencionalmente vaga, trouxe consigo um desenvolvimento não intencional, uma componente que os redatores da Carta não anteciparam. Para
além disso, a obrigação dos Estados de encorajarem o respeito pelos direitos humanos e de cooperarem com a assistência da Organização, de modo a
alcançarem com sucesso este propósito é mencionada em outras medidas da
Carta. O artigo 2, 7 da Carta estipula que a Organização não deve “intervir
em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer
Estado”.19 Recentemente, a comunidade internacional identificou a necessidade de mudar a sua interpretação rígida, para se adaptar ao novo status quo.
Devemos ter em consideração o facto de a proteção dos direitos humanos não
recair unicamente sob a alçada da legislação nacional, especialmente quando
os Estados falham na sua resposta efetiva a atrocidades.20 É, atualmente, aceite
que as medidas sobre os direitos humanos da Carta têm a força de uma lei
17
A Carta da ONU foi adotada em 1945, entrou em vigor no dia 24 de Outubro de 1945,
com 193 Estados membros, a partir de Fevereiro de 2014. Ver UNTS, vol. 1.
18
Arts.1, 8; 13(b); 55(c); 62(2); 76(8) da Carta das Nações Unidas.
19
Ver também a Res. 2131(XX) da A. G., de 21.12.1965, a Res. 2625(XXV) A. G., de 1970,
juntamente com a Ata Final de Helsínquia, de 1975.
20
Um exemplo caraterístico é o Apartheid, na África do Sul, e a condenação através da Res.
2606 (XXIV) da Assembleia Geral, de 21.11.1969, assim como a intervenção humanitária e
a nova noção “responsabilidade de proteger”, que dá à comunidade internacional a opção de
intervir em casos de crimes de guerra, genocídio, etc.
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
39
internacional positiva. Como tal, elas estabelecem deveres básicos que todos
os membros devem cumprir de boa-fé.21
3.1.1. Principais Instituições Protetoras dos Direitos Humanos
As principais instituições da ONU, a quem estão confiados os princípios e os
objetivos previstos no Preâmbulo e no 1.º artigo da Carta, são a Assembleia
Geral (A. G.) e o Conselho Económico e Social (ECOSOC). Eles foram
investidos dos poderes de instituir órgãos subsidiários22, para os assistirem
na sua missão. Através desta competência, uma variedade de organismos,
Comissões, Comités e Subcomités foram criados, aos quais a Organização
delegou funções específicas no campo da promoção e proteção dos direitos
humanos.23 Estes órgãos e instituições integram uma estrutura bastante complexa, mas efetiva, que opera no seio da Organização.
3.1.1.1. A Assembleia Geral
A A. G. é o principal órgão da ONU, através do qual todos os Estados membros
participam, de pleno direito, para lidar com questões que cabem no âmbito da
Carta, para assegurarem a implementação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, para todos, no respeito pelo princípio da igualdade e
da não discriminação.24 Dentro do seu contexto operam seis Comités, cada
um deles lidando com os direitos humanos no âmbito dos seus mandatos,
também.25 Significativo é o papel do terceiro Comité da A. G. (Comité para as
Questões Sociais, Culturais e Humanitários – SOCHUM), do quarto Comité
(o Comité para as Questões Políticas Especiais e para a Descolonização –
SPECPOL), tendo ambos contribuído fortemente para a promoção dos direitos humanos. Para além destes, o sexto Comité (Questões Jurídicas) constitui, também, um importante fórum de negociações para novos instrumentos
legais internacionais.
Por vezes, embora não frequentemente, a A. G. recorre a um mecanismo
de procedimentos de aconselhamento no Tribunal Internacional de Justiça
(ICJ), de modo a clarificar determinadas interpretações em questões de lei
internacional, relativas a direitos humanos.26 Estabelece igualmente vários
21
Nomeadamente os artigos 1,3, o artigo 8, o artigo 13,o artigo 55a,c, o artigo 62,2, o artigo
73 a, c da Carta.
22
Ver os artigos 13, 55, 56, 62 e 68 da Carta.
23
Rh. K.M.Smith, Textbook on International Human Rights, Fifth Edition, OUP, Oxford,
2012, pp. 56–82.
24
Ver o artigo 13 da Carta.
25
Ver Basic Facts about the UN 2014, UN Department of Public Information, New York
2013, pp. 24–25.
26
Ver Advisory Opinions do ICJ, i.e. Legalidade da Ameaça ou uso de Armas Nucleares
(1996) e, mais recentemente, no caso das Consequências Legais da Construção do Muro nos
Territórios Palestinianos Ocupados (2004). Especialmente neste último caso, isto foi consi-
40
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
organismos subsidiários, com o mandato de cumprirem os seus deveres, e
contribuiu para a adoção de um número de Convenções e Declarações internacionais, começando com a adoção da UDHR. Desde então, tem surgido
uma longa lista de Convenções internacionais; algumas delas incorporam um
mecanismo de proteção (Comissão ou Comité).27 Para o propósito deste livro,
o foco da atenção recairá na Convenção sobre os Direitos da Criança (1989)
e os seus três Protocolos, o primeiro sobre os Direitos da Criança, relativo ao
envolvimento de crianças em conflitos armados (2000), o segundo relativo à
venda, prostituição e pornografia infantis (2000), e o terceiro relativo à instituição de um Procedimento de Comunicação (2012). A CDC é considerada
a mais completa Convenção sobre a proteção dos direitos humanos, já que
incorpora todos os tipos de direitos humanos (civis, políticos, económicos,
sociais e culturais), assim como categorias especiais de crianças, como as
refugiadas, as portadoras de deficiências, as imigrantes e outras.
A A. G. também adota um número prolífico de Resoluções que, embora
tenham uma natureza legal não vinculativa, dão uma contribuição particular para a formação da lei internacional e para a emergência de outros aspetos valiosos a ter em consideração. Este género de decisão é frequentemente
designado como soft law (não vinculativa); por outras palavras, as resoluções
integram normas que refletem as intenções dos Estados relativamente à evolução da lei positiva, no futuro, através da adoção, ou de uma convenção internacional ou da lei usual. A soft law (não vinculativa) enquanto termo, descreve o processo de maturação da lei internacional; ela marca a transmutação
derado um meio alternativo de fazer uso de pressão para pôr termo a possíveis ou existentes
violações dos direitos humanos, e a Presença Sul-Africana na Namíbia (1971).
27
Como a Convenção Internacional para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio
(1948); Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de
Outrem (1949); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e o Segundo
Protocolo Facultativo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, com o objetivo
de abolir a pena de morte (1989); o Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais
e Culturais (1966) e o Protocolo Facultativo sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais
(2008); a Convenção Relativa ao Estatuto de Pessoas Apátridas (1954); a Convenção para a
Redução dos Casos de Apatridia (1961); a Convenção sobre a Não-Aplicabilidade de Limitações Estatutárias para Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade (1968); a Convenção
Internacional sobre a Supressão e Castigo do Crime de Apartheid (1973); a Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979) e o Protocolo Opcional à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres (1999); a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes (1984) e o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (2002); a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados (2006);
a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (2006) e o Protocolo Opcional à
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (2006).
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
41
de um conceito de princípio político e moral para um direito legal, com a
consequente natureza de obrigação.
Finalmente, não se deve subestimar a contribuição da A. G. na recolha
e no exame de todos os relatórios submetidos pelos vários Comités, através
da ECOSOC, relativamente à ratificação e implementação de tratados e convenções assinados pelos Estados membros. É a universalidade de um fórum
destes que acrescenta imensa pressão a um Estado que, constantemente, viole
as suas obrigações, assumidas em tratados internacionais, e é denunciado à
comunidade internacional, através de relatórios conclusivos, que são publicados por comités relevantes de cada Estado.28
Independentemente do caráter não vinculativo das decisões destas instituições, as suas contribuições para os direitos humanos são enunciadas meramente durante a frequente citação do tópico. Um dos exemplos mais caraterísticos sobre a questão da não discriminação foi o fenómeno do apartheid e
da discriminação de africanos na África do Sul. Este incidente levou muitas
organizações a expulsar a África do Sul da sua lista de membros.29
3.1.1.1.1. Organismos subsidiários da Assembleia Geral: o Conselho dos
Direitos Humanos das Nações Unidas
O Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas (HRC) foi criado30
enquanto um organismo subsidiário da A. G.31, substituindo a Comissão dos
Direitos Humanos, que operava, inicialmente, sob a supervisão da ECOSOC32,
e que tinha sido muitas vezes alvo de crítica, pelo seu trabalho insatisfatório,
bem como pela sua qualidade de membro. O HRC é composto por 47 membros, que são pessoas de elevado caráter moral e qualificações, verdadeiros
peritos na promoção e proteção dos direitos humanos.33
O HRC é assistido por alguns relatores especiais e peritos independentes que oferecem os seus serviços numa base voluntária.34 Um painel de
28
Ver os Relatórios Conclusivos dos Comités da CDC sobre diferentes Estados membros.
ILO e UPU.
30
Res. 60/251 da A. G. de 15 de Março de 2006. K. Annan, In Larger Freedom: Towards
Development, Security and Human Rights for All, A. G., A/59/2005/Add.3,26/05/2005, § 182.
31
N. Schrijver, The UN Human Rights Council: A new ‘‘society of the committed’’ or just old
wine in new bottles, in Skouteris Th.,Vermeer-Kunzil A. (eds), The Protection of the individual in international law. Essays in honour of John Dugard, 2007, p. 181.
32
Artigo 68 da Carta. A Comissão foi criada em 1946, enquanto que, em 1947, a Subcomissão sobre a prevenção da Discriminação e proteção das Minorias foi estabelecida.
33
13 de África, 13 da Ásia, 6 da Europa de Leste, 7 da Europa Ocidental e outros, e 8 da
América latina e das Caraíbas.
34
O Conselho destaca numerosos relatores todos os anos. A instituição tem o desígnio de
oferecer conhecimentos valiosos sobre aspetos específicos dos direitos humanos, e as pessoas
elegíveis para ocupar os lugares são peritas na área. Especialmente sobre a proteção de Crianças: i) Relator Especial sobre o tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças; ii) Relator Especial sobre venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil; iii) Relator
Especial sobre o direito à educação; iv) Perito Independente sobre as questões das minorias.
29
42
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
Conselheiros composto por 18 peritos independentes assiste o trabalho do
HRC. As funções principais do HRC são, entre outras, 1) promover a educação e a aprendizagem dos direitos humanos, 2) contribuir para uma plena
implementação das obrigações dos direitos humanos, 3) rever, periodicamente, a um nível global, a implementação dos direitos humanos, 4) cooperar, estreitamente, com os governos, com as organizações regionais, com os
comités nacionais de direitos humanos e com a sociedade civil, 5) submeter
um relatório anual à A.G.
Comunicação individual
O procedimento da comunicação individual baseia-se no procedimento
“1503” da ECOSOC.35 O HRC foi instruído pela A.G. para melhorar, no prazo
de um ano, se julgado necessário, os mecanismos, a função e a competência
da antiga Comissão dos Direitos Humanos, com o objetivo de estabelecer um
sistema especial de procedimentos sobre a comunicação individual. O último
seria julgado – de forma objetiva – de acordo com o grau de eficiência relativamente à proteção da alegada vítima.
De acordo com a Resolução 5/136, a comunicação que é admitida perante
o HRC deve preencher os seguintes requisitos:
•
•
•
•
•
deve dizer respeito a qualquer tipo de violações dos direitos humanos
de qualquer Estado e em quaisquer circunstâncias;
deve manter um registo de confidencialidade;
não deve ser anónima ou mal manifestada – de outra forma, não será
admitida no Working Group of Communications (WGC), que examina as comunicações em conjunto com o Secretário-Geral;
quaisquer medidas nacionais devem ter sido completamente exploradas, a menos que seja aparente que seriam ineficazes ou injustificadamente demoradas;
caso seja admitida, deve ser comunicada ao Estado em questão, para
este contrapor os seus argumentos.
O WGC, composto por cinco membros de elevada integridade, examina a
admissibilidade das comunicações. O WGC, sob o Procedimento de Queixas
do HRC, encaminha situações particulares para exame no Working Group
Situations (WGS). O WGS faz recomendações sobre as medidas necessárias a
serem tomadas. O HRC tomará uma decisão final.
35
Res. 60/251 § 5 da A.G., que foi modificada pela Res. 2000/3 da ECOSOC e a decisão dos
Conselho Dos Direitos Humanos, sob o título “Conselho dos Direitos Humanos: Construção
de Instituições”, Res. 1503 (XLVIII) da ECOSOC, de 27 de Maio de 1970.
36
Res. 5/1 do HRC.
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
43
Procedimentos Especiais
OS Procedimentos Especiais da ONU são um mecanismo eficiente e flexível,
que inclui “Relatores Especiais” ou “Peritos Independentes”, sendo os Grupos
de Trabalho normalmente compostos por cinco peritos independentes, por
um “Representante Especial do Secretário-Geral” e por um “Representante do
Secretário-Geral”. De acordo com este mecanismo, um número limitado de
mandatários são apontados pelo HRC para investigarem a situação dos direitos
humanos, em todas as partes do mundo, independentemente de um governo
particular ser uma parte de qualquer tratado relevante sobre direitos humanos.
De modo a manter a integridade dos Procedimentos Especiais, o Comité
de Coordenação foi criado para melhorar a coordenação entre os mandatários e estabelecer as ligações entre eles e o Gabinete do Alto-Comissário para
os Direitos Humanos (OHCHR), a estrutura alargada sobre os direitos humanos da ONU e a sociedade civil, promovendo, assim, o estatuto do sistema dos
Procedimentos Especiais.
3.1.1.2. ECOSOC
Este organismo das Nações Unidas, formado por 5 membros, está autorizado
pela Carta a aprovar leis que promovam o respeito e a garantia dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais, a redigir tratados e a submetê-los à
A.G. para aprovação, a convocar conferências internacionais sobre direitos
humanos e a criar Comités para a proteção dos direitos humanos. A Carta,
especificamente, determina que o ECOSOC será promotor de “elevados
padrões de vida, pleno emprego, e condições de progresso e desenvolvimento
económico e social… [, assim como] o respeito universal pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e sua observância, sem distinção de raça, sexo,
linguagem, ou religião”.37 Em concordância com o acordo entre os Estados
membros da ONU e as Agências Especializadas, o ECOSOC pode igualmente
receber relatórios sobre a implementação das decisões do ECOSOC e as recomendações da G. A. pelos Estados, e comunicar as suas observações relacionadas com os acima referidos relatórios da G. A., no seu relatório anual. As
Comissões que funcionam no seio do contexto de tratados internacionais que
são adotados pela G. A. submetem os seus relatórios ao ECOSOC que, posteriormente, os submete à G. A.
O ECOSOC está ligado a algumas Agências Especializadas e coordena as
atividades destas, colaborando com a sociedade civil, através das ONGs.38
Criou, também, alguns órgãos subsidiários.39
37
Artigo 55 (a) e (c) da Carta.
Artigo 63 da Carta.
39
Nomeadamente a Comissão sobre a População e o Desenvolvimento, a Comissão para o
Desenvolvimento Social, a Comissão para um Desenvolvimento Sustentável, a Comissão para
o Estatuto das Mulheres, e a Comissão sobre prevenção do Crime e Justiça Criminal.
38
44
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
3.1.1.3. O Conselho de Segurança (S.C.)
O Conselho de Segurança tem, ocasionalmente, abordado questões relacionadas com a violação dos direitos humanos, apesar de o seu principal mandato ser
o de preservar a paz e a segurança internacionais. Quando a paz internacional
se encontra sob ameaça, devido a violações dos direitos humanos, o SC pode
atuar, em harmonia com o determinado no Capítulo VII da Carta das Nações
Unidas. Deve referir-se que em casos em que as violações dos direitos humanos
implicam um membro permanente do S.C., tal pode levar a um impasse que
conduziu a uma inação, devido ao seu exercício do direito de veto.40 Após o fim
da Guerra Fria, o Conselho de Segurança tornou-se bastante ativo, e iniciou
uma série de medidas para salvaguardar a paz e a segurança no mundo inteiro.
Tomou medidas especiais para confrontar situações no Sudão, em Angola, no
Afeganistão, na República do Congo, e na Líbia, etc., no contexto do Capítulo
VI e VII da Carta, ao mesmo tempo que criou Tribunais Criminais ad hoc para
efetivamente lidarem com violações de leis humanitárias.41
O S.C. estabeleceu o Grupo de Trabalho sobre as Crianças e os Conflitos
Armados42, para monitorizar e fazer relatórios sobre crianças afetadas por
conflitos armados.43 O Grupo de Trabalho está mandatado para: a) rever
relatórios sobre violações dos direitos das crianças, b) desenvolver e implementar planos de ação nacionais para as crianças durante conflitos armados44. O Secretário-Geral redige relatórios periódicos, que são submetidos ao
Grupo de Trabalho, para consideração, e são oficialmente apresentados pelo
Representantes Especial do Secretário-Geral para as Crianças em Situações de
Conflito Armado.45 Depois de uma exaustiva avaliação da situação, o Grupo
de Trabalho despacha recomendações dirigidas às partes envolvidas.
As últimas recomendações foram emitidas em 2013, e referiam-se a situações no Sudão do Sul, na República Democrática do Congo, na República
Centro-Africana, nas Filipinas e na República Árabe da Síria.
3.1.1.4. O Tribunal Internacional de Justiça (ICJ)
O ICJ não tem jurisdição em casos que se relacionam com indivíduos;
porém, pode ouvir petições inter-Estados que digam respeito à violação de
40
I.e. Síria, 2013.
As Res. 808 e 827 do S. C. (1993) estabeleceram o Tribunal Criminal Internacional para a
Antiga Jugoslávia, e pela Res. 955 (1994) o Tribunal relevante para o Ruanda.
42
Res. 1612 (2005) do S. C.
43
De acordo com a lei humanitária, existem seis violações principais contra os direitos das
crianças nos conflitos armados: matar ou mutilar crianças; recrutamento ou uso de crianças
como soldados; violação das crianças e outros abusos sexuais graves; rapto de crianças; ataques contra escolas ou hospitais; negação de ajuda humanitárias às crianças.
44
Res. do S. C. 1539 (2004).
45
A primeira Representante Especial a ser alguma vez nomeada foi a Sr.ª Leila Zerrougui, da
Argélia, a quem foi atribuído o grau de Vice-Secretária-Geral.
41
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
45
convenções que protegem os direitos humanos ou relativas à interpretação
das prescrições destas convenções.46 O ICJ tem promovido os direitos humanos ao examinar, em sede de jurisprudência, o caráter de várias prescrições
sobre direitos humanos, pelo prisma das regras jus cogens ou obrigações erga
omnes.47
3.1.1.5. O Secretário-Geral (SG)
O Secretário-Geral participa em muitas reuniões dos órgãos das Nações
Unidas e tem sido, frequentemente, convidado a desempenhar um papel
importante no campo dos direitos humanos. O SG pode “chamar à atenção
do Conselho de Segurança quaisquer assuntos que, na sua opinião, possam
ameaçar a manutenção da paz e segurança mundial” e usa os seus “bons ofícios”, de forma confidencial, para levantar preocupações relativas aos direitos
humanos nos Estados Membros, incluindo questões como a libertação de prisioneiros e a comutação de sentenças de morte. Os resultados de tais comunicações são relatados ao Conselho de Segurança. O mundo tem testemunhado
a importantíssima contribuição do SG para a manutenção da paz, segurança
e promoção dos direitos humanos e para a reforma da ONU, através dos seus
relatórios dirigidos aos 3 principais órgãos (G. A., S.C., ECOSOC), que tiveram como intenção atrair a sua atenção para certos assuntos urgentes, ao
mesmo tempo que prestavam informações valiosas.48
3.1.1.6. O Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos
(ACNUDH)
Em 1993, a ONU estabeleceu o novo posto do ACNUDH.49 Ele/ela tem o
posto de Delegado do Secretário-Geral e é nomeado por um período de quatro anos, com a possibilidade de renovação por mais um mandato, segundo
recomendação do SG, aprovada pela G. A.
O Alto-Comissário executa os seus “bons ofícios” relativamente à proteção
dos direitos humanos, em representação do SG. O ACNUDH é considerado
o agente da ONU com maiores responsabilidades pelas atividades relacionadas com os direitos humanos. É sua responsabilidade promover e proteger os
46
I.e. Bósnia-Herzegovina vs. Sérvia e Montenegro, em 1992, Croácia vs. Sérvia e Montenegro, em 1999, violação da Convenção contra o Crime de Genocídio.
47
Obrigações erga omnes significam que todos os Estados podem ser considerados como
tendo um interesse legal na sua proteção. A Tração de Barcelona, um dos mais conhecidos
casos na história do tribunal, Nicarágua vs. EUA (1986), Portugal vs. Austrália (1995), Legalidade da ameaça de uso de Armas Nucleares (Opinião de Aconselhamento – 1996), Bread
(1998), LaGrand (1999), F.E. Schwelb, The ICJ and Human Rights clauses of the Charter in 66
AJIL., pp. 337–350.
48
Ver artigos 97–99 da Carta.
49
Res. (48/141, 20.12.1993) da G. A. e artigos 1, 13, 55, da Carta.
46
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
direitos humanos para todos e manter um diálogo contínuo com os EstadosMembros, revelando as violações dos direitos humanos que ocorrem em todo
o mundo. O ACNUDH atua, quer na forma de cooperação e coordenação de
atividades, quer através de pressão diplomática ou pública junto dos governos,
de modo a pôr fim às violações e prevenir a sua recorrência. Especificamente,
o ACNUDH deterá a responsabilidade por todas as atividades realizadas sob
os auspícios das Nações Unidas, relacionadas com os direitos humanos, i.e.,
gestão de crises, prevenção e aviso atempado, assistência aos Estados em períodos de transição, promoção de direitos substantivos e racionalização do programa de direitos humanos.
Entre as suas tarefas também se incluem a cooperação internacional nos
assuntos relativos aos direitos humanos, o encorajamento e a coordenação do
sistema da ONU em todas as atividades no campo dos direitos humanos, o
apoio aos organismos, órgãos ou Comités (como instituídos pelas várias convenções internacionais) que lidam com a proteção dos direitos humanos, a
realização de uma ação preventiva de violações e uma rápida resposta à violação dos direitos humanos, o encorajamento do estabelecimento de comités
nacionais de direitos humanos e a disseminação de informação e prestação de
assistência técnica, quando for considerado necessário, para proteger os direitos
humanos. O ACNUDH deverá colaborar com os governos, organismos judiciais, organizações regionais, organizações universais, ONGs, sociedade civil e
ajudará na promoção da proteção dos direitos humanos a nível nacional, em
concordância com as convenções internacionais sobre direitos humanos.
3.2. Agências Especializadas
As Agências Especializadas da ONU são organizações intergovernamentais
incorporadas no sistema da ONU, que são ativas num campo delimitado e
especializado.50 Funcionam autonomamente e cooperam com a ONU. Têm
as suas próprias instituições e determinam as suas próprias políticas nos
seus campos de especialização, bem como o campo dos direitos humanos,
se este recair nas suas competências. Algumas das Agências Especializadas,
cujo mandato inclui a proteção dos direitos humanos, são a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), com mais de 190 Convenções, algumas das
quais se referem à proteção da Criança51, a Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), com uma caraterística
Convenção relativa à luta contra a Discriminação no campo da Educação
(1960) e o Protocolo Adicional (1962), incluindo um mecanismo de proteção52, a Organização Mundial de Saúde (OMS), assim como a Organização
50
Ver artigos 57, 63 da Carta.
Em particular, as Convenções da OIT que protegem as Crianças, entre as quais, as mais
recentes são a 182 e a 190 (1999).
52
Human Rights: International Protection, Monitoring, Enforcement, J. Symonides ed.,
UNESCO Publishing, 2003 p. 91–134.
51
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
47
para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Há, igualmente, outras organizações internacionais que têm recentemente desenvolvido uma estratégia
de direitos humanos, em certas áreas de atividade, como o Banco Mundial,
o Fundo Monetário Internacional (FMI), e a Organização Mundial do
Comércio (OMC). Para além das já mencionadas agências, a ONU criou
alguns organismos e programas, como a Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento (UNTAD), o Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados (ACNUR), o Fundo para a População das Nações
Unidas (UNFPA), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o
Programa Alimentar Mundial (PMA) e o Programa das Nações Unidas para
os Estabelecimentos Humanos (UN-Habitat).
3.3. Principais Convenções que Protegem os Direitos Humanos
Na estrutura da ONU, alguns tratados sobre direitos humanos caraterizam-se
por serem de grande valor. Aparte algumas prescrições da Carta da ONU, a
UDHR, os dois Convénios e os seus Protocolos constituem o “Projeto de Lei
dos Direitos Humanos” a uma escala universal. Por conseguinte, será dada
uma ênfase especial a estes instrumentos internacionais.53
3.3.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR)
A UDHR54 foi o primeiro instrumento sobre direitos humanos a ser adotado pela ONU. Compreende um Preâmbulo e 30 artigos e consagra todos
os direitos civis, políticos, económicos e culturais, sendo uma mistura única
de direitos da mais diversa natureza.55 A proclamação do artigo 1 é da maior
importância e o seu significado reflete a evolução dos instrumentos legais dos
direitos humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir uns em
relação aos outros dentro de um espírito de fraternidade.” Esta é a primeira
vez que um texto convencional faz um corte tão claro para assegurar e reafirmar o caráter inerente da igualdade em todas as suas formas, com uma ênfase
especial na igualdade em termos de direitos. Nenhum ser humano deverá ser
privado dos seus direitos, porque eles nascem transportando-os consigo pelo
mero facto de existirem. O artigo 2 vem solidificar o princípio geral da igualdade e da não discriminação de uma forma triunfante.56
53
Non-discrimination in International Law: A Handbook for practitioners, o.p, p. 4–11.
Res. 217 (A).
55
See L. Henkin, The International Bill of Rights: The Universal Declaration and the Covenants, in R. Bernhardt and JA. Johowicz (ads), International Enforcement of Human Rights,
1, 1987, Ph. Alston, Refl ection on the Universal Declaration of Human Rights, 50th Anniversary Anthology, M. Nijhoff , The Hague, 1998, p. 28 et. seq.
56
A. Eide, G. Alfredsson, G. Melander, A. Rehof, A. Rosas(eds.) The Universal Declaration
of Human Rights: A Commentary, Scandinavian University Press, Oxford, 1992.
54
48
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
Na sua qualidade de resolução da A.G., à UDHR falta o fundo de obrigação legal e, deste modo, foi primeiro encarada como vaga e como um esforço
para sossegar as legítimas exigências dos povos. O seu propósito foi o de fornecer “uma compreensão comum dos direitos humanos, de acordo com o seu
preâmbulo, a servir de padrão comum de realização para todos os povos e
nações…”.57 Desde a sua adoção, no entanto, seguiu-se-lhe um dominó de atos
legais, que, na sua maioria, usaram a UDHR como fundação e retrataram o
conteúdo da Declaração, reafirmando, deste modo, a sua colossal importância. A efervescência legal multidimensional que se seguiu, nas décadas subsequentes, reconheceu os redatores da UDHR e conferiu ao documento o elevado estatuto que ele merecia, enquanto lei internacional usual ou enquanto
incluindo princípios gerais de lei erga omnes.
3.3.2. Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) 58
O PIDCP, adotado em 1966, lista uma série de direitos civis e políticos, mais
do que a UDHR, bem como as obrigações que os Estados Parte têm para o
implementar, após ratificação. Entre estes contam-se, como exemplos, o princípio da não discriminação com base na raça, na cor, no sexo, na língua, na
religião, na opinião política, ou de qualquer outra opinião, na origem nacional ou social, na propriedade ou no nascimento, ou noutra situação (artigo
2,1)59, assim como a proteção de membros de minorias étnicas, religiosas ou
linguísticas e do seu direito a usufruir a sua própria cultura, a professar e praticar a sua própria religião, ou a empregara sua própria língua (artigo 27).60
O mecanismo apresentado pelo Pacto é o Comité dos Direitos Humanos,
um órgão composto por 18 peritos (artigos 40–41), com a principal tarefa de
monitorizar a implementação do Pacto. Todos os Estados Parte são obrigados
a submeter relatórios ao Comité acerca dos seus progressos na implementação dos direitos civis e políticos do Pacto. Adicionalmente, o artigo 41 do
Pacto permite ao Comité analisar queixas inter-Estados. A competência do
Comité é expandida no primeiro Protocolo Facultativo61, que lhe confere a
competência para examinar queixas individuais relativas a alegadas violações
dos direitos humanos da parte de países parte do Protocolo. Como pré-requisitos para a admissibilidade de comunicações individuais, o artigo 22 define
o esgotamento de todas as medidas nacionais disponíveis.62 Adicionalmente,
57
B. Simma and Ph. Alston, The source of Human Rights Law; Customs jus cogens and
General Principles, 12 Australian Yearbook of International Law, 1992, p. 82.
58
Res. 2200A (XXI) da A.G., 1966, 167 ratificações.
59
Ver B.G. Ramcharan, Equality and non-discrimination, in L. Henkin (ed.), The International Bill of Human Rights, 1981, p. 246 seq.
60
Ver o Comentário Geral N.º 23 (50), artigo 27 do Doc. CCPR/C/21/Rev.1.Adotado 5, 1994.
61
Res. 2200A (XXI) da A.G., 1996, 167 ratificações.
62
Th. Buergenthal, D. Shelton, D. Stewart, International Human Rights in a nutshell, West
Group, United States of America, Fifth Edition 2009, pp.43–63.
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
49
o artigo 2 do Protocolo facultativo estabelece três condições negativas para
as comunicações serem admissíveis, nomeadamente, elas não serem anónimas, não serem abusivas do “direito de submissão” ou “incompatíveis com
quaisquer medidas do Pacto”. Um segundo Protocolo facultativo foi acrescentado, em 1989, e o seu objetivo foi a abolição da pena de morte.63 Os casos
legais do Comité são impressionantes.64 Para além dos acima mencionados,
o Comité é responsável pela interpretação do Pacto e dos seus Protocolos
facultativos, e com essa finalidade, emite Comentários Gerais65 que incluem
diretrizes para facilitar aos Estados Partes a implementação das medidas.66
Ao longo dos anos, os Comentários Gerais têm-se desenvolvido num instrumento quasi-judicial.
3.3.3. Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais
(PIDESC)67
O PIDESC foi adotado em 1966 e enumera vários direitos básicos que estão
ligados ao bem-estar económico, social e cultural de uma pessoa, sendo o seu
objetivo o desenvolvimento global e uma integração adequada nas estruturas
sociais. O Pacto oferece a estrutura que deve ser usada pelos Estados para
promulgar e tomar todas as medidas necessárias para afirmar um padrão de
proteção dos direitos nele incluídos. O Pacto reconhece a sensibilidade desses
direitos, bem como a diversidade de capacidade dos Estados para tentarem
efetuar a implementação protetora das suas medidas. Assim sendo, como
referido no artigo 2, cada Estado-Membro é responsável por tomar “medidas,
individualmente, através de assistência e cooperação internacionais, especialmente económica e técnica, até ao máximo dos seus recursos disponíveis,
com vista a conseguir, progressivamente, a plena realização dos direitos reconhecidos no Pacto.”
O Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (CDESC68), um órgão
formado por peritos independentes que monitoriza a implementação do Pacto,
pelos seus Estados-Membros, e examina relatórios sobre as medidas que os
Estados adotaram, foi estabelecido, pela ECOSOC, em 1985.69 Concebido de
acordo com o mesmo padrão do Comité dos Direitos Humanos, examina
os relatórios dos Estados e, até 2008, faltava-lhe a competência para ter em
63
Res. 44/128 da A.G., 1989, 78 ratificações.
Para uma lista detalhada dos casos legais ver P. Naskou-Perraki, International Mechanisms Protecting Human Rights, o.p., pp. 62–134.
65
Artigo 40, 4 ICCPR.
66
Ver, entre outros, o Comentário Geral N.º 18: Não Discriminação, 10/11/1989, CPPR.
67
Res. 2200ª (XXI) da A.G., 1966, 161 ratificações.
68
P. Naskou-Perraki, The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights
and monitoring of it’s enforcement, in N. Aliprantis (editor), Social rights: challenges at European, regional and international level, Bruylant, Brussels, 2010, pp. 179–213.
69
Res. 1985/17, da ECOSOC, 1985.
64
50
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
consideração as comunicações individuais. Após a adoção do Protocolo facultativo, a sua competência foi alargada e ao Comité foram atribuídos poderes
para considerar também as comunicações individuais.70 O Protocolo entrou
em vigor, em Maio de 2013, depois de alcançado o número exigido de ratificações. Adicionalmente, tem competência para emitir Comentários Gerais
clarificadores das verdadeiras proporções do nexo protetor que estabeleceu,
endossando certeza legal e uma implementação correta.
3.3.4. Outros Tratados da ONU que protegem os Direitos Humanos
Para além da Carta dos Direitos Humanos, existem sete outras importantes
convenções internacionais que lidam com categorias específicas protetoras
dos direitos humanos e fornecem um mecanismo de controlo, para o qual os
indivíduos podem enviar comunicações escritas, no caso de os Estados parceiros violarem os seus direitos. Estas são:
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (CERD)71 1965 – com um importante caso legal
do Comité para a eliminação da Discriminação Racial (CERD):
Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra as Mulheres (CEDAW)72 1979 – com o Protocolo Facultativo de
1999, e um caso legal em andamento no seu Comité73 (CEDAW);
Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, (CAT)74, 1984 – com o Protocolo Facultativo75 e uma interessante jurisprudência perante o Comité (CAT);
Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), 1989 – com três Protocolos Facultativos, sendo o primeiro sobre o envolvimento das crianças em conflitos armados (2000), o segundo sobre a venda de crianças,
sobre a prostituição das crianças e sobre a pornografia das crianças
(2000), e o terceiro sobre o procedimento das comunicações individuais (2012). O relevante Comité sobre os Direitos da Criança (CDC)
ainda não forneceu nenhum caso legal;
Convenção sobre a Proteção dos direitos de todos os Trabalhadores
Migrantes e dos Membros das suas Famílias (CMW)76, 1990 – sem qualquer jurisprudência relevante apresentada pelo Comité;
70
71
72
73
74
75
76
Res. A/RES/63/117 da A.G., 2008.
Res. A/RES/63/117 da A.G., 2008.
Res. A/34/180 da A.G., 1979.
Res. A/54/4 da A.G., 1999.
Res. A/39/46 da A.G., 1984.
Res. A/57/199 da A.G., 2002.
Res. A/45/158 da A.G., 1990.
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
51
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (CRPD)77,
2006 – com um Protocolo Facultativo78 (2006), que entrou em vigor
recentemente e com um número limitado de casos legais apresentados
ao Comité;
Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os
Desaparecimentos Forçados (CED)79, 2006 – que também entrou em
vigor recentemente. O Comité relevante ainda não apresentou nenhum
caso legal.
Os Comités podem considerar um caso relacionado com violações de direitos humanos, após esgotar as medidas locais; este é um procedimento que
demora vários anos, em alguns casos.
Todas estas Convenções emitem Comentários/Recomendações Gerais que
tentam interpretar certas prescrições e facilitar a sua implementação pelos
Estados Parte, podendo realizar medidas provisionais e inquirição de contatos, em caso de violações graves. Devido ao facto de este material de ensino
dizer respeito à proteção das crianças e ao seu direito à não discriminação,
vamos desenvolver com mais pormenor a Convenção sobre os Direitos da
Criança.
3.3.4.1. Convenção sobre os Direitos das Criança das Nações Unidas (CDC)80
A CDC foi adotado em 1989 e entrou em vigor a 2 de Setembro de 1990.
É considerado o mais completo tratado de direitos humanos e o mais largamente aceite instrumento dos direitos humanos. A Convenção atribui às
crianças um extenso catálogo de direitos civis, políticos, económicos, sociais
e culturais “independentemente da raça, da cor da pele, do sexo, da língua, da
opinião política ou outra, da origem étnica ou social, da propriedade, da deficiência, do nascimento ou de outro estatuto da criança, dos seus pais ou guardiões legais.”81 A CDC reconhece as vulnerabilidades das crianças e observa
o facto de elas serem, frequentemente, sujeitas a um tratamento inaceitável.
A Convenção constrói, como sua base e principal prioridade, o superior interesse da criança.
O conteúdo da CDC é bastante familiar, já que toma emprestadas prescrições de outros instrumentos legais do passado, embora a inovação da
Convenção resida no facto de as crianças serem individualizadas e terem o
privilégio de serem sujeitos exclusivos de um tratado internacional. A proteção consignada na Convenção procura abolir uma série de práticas de
77
78
79
80
81
Res. A/61/106 da A.G., 2006.
Ibid.
Res. A/RES/61/177 da A.G.
Res. A/44/25, da A.G., 1989, 193 ratificações, exceto por parte dos EUA e da Somália.
Artigo 2,1 da Convenção.
52
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
maus-tratos contra as crianças: exploração económica, uso ilícito de drogas, exploração sexual, tráfico, abuso, soldados-crianças. Para além disso, o
Comité sobre os Direitos da Criança foi estabelecido ao abrigo da Convenção,
com a tarefa especial de “examinar o progresso feito pelos Estados”82, sendo
constituído por 18 peritos independentes. O Comité monitoriza a implementação dos três Protocolos Facultativos à Convenção – no envolvimento
das crianças em conflitos armados e na venda das crianças, na prostituição
infantil e pornografia infantil83 – no Procedimento das Comunicações, que
irá permitir ao Comité ter em consideração as comunicações individuais
submetidas pelas crianças, relacionadas com violações específicas dos seus
direitos, ao abrigo da Convenção e dos seus dois Protocolos Facultativos. O
Terceiro Protocolo Facultativo entrou em vigor no dia 14 de Janeiro de 2014,
após o depósito do décimo instrumento de ratificação, atribuindo a crianças
individuais ou grupos de crianças o direito de submeter queixas, sempre que
os seus direitos sejam violados, ao abrigo da Convenção da CDC e dos seus
outros dois Protocolos, tendo em consideração que os seus Governos tenham
já ratificado o Protocolo. Para lá do que já mencionámos, o Comité é responsável pela interpretação da Convenção e seus Protocolos e, para esse efeito,
emite Comentários Gerais clarificadores do verdadeiro significado das suas
prescrições.84
4. Proteger os Direitos Humanos a Nível Regional
Adicionalmente ao sistema da ONU sobre a proteção dos direitos humanos a
nível universal, há igualmente a ter em conta a proteção dos direitos humanos
a nível regional. O exame dos sistemas de proteção regionais existentes na
Europa, na África, e nas Américas, assim como a lei dos direitos humanos nos
países árabes, revela as recentes alterações dos procedimentos, conjuntamente
com os desenvolvimentos substantivos no campo da legislação sobre os direitos humanos. Procederemos sobretudo à análise do sistema europeu.85
4.1. Europa
4.1.1. Conselho da Europa (CoE)
O sistema europeu de proteção dos direitos humanos veio à superfície com
a fundação do CoE,86 a primeira Organização Europeia política que foi
82
Artigo 43, 1 da Convenção.
Ambos os Protocolos foram adotados pela A/RES/54/263 da A.G., de 2000.
84
Até ao presente dia, o Comité adotou 17 Comentários Gerais.
85
Ver, entre outros, M. N. Shaw, International Law Sixth Edition, Cambridge, 2008 p. 345 et seq.
86
O Estatuto do Conselho da Europa foi assinado, em Londres, a 5 de Maio de 1949, e entrou
em vigor a 3 de Agosto de 1949. A Organização tem 47 Estados membros.
83
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
53
estabelecida pelos dez Estados europeus ocidentais, com o propósito de trabalhar para a “manutenção e posterior implementação dos direitos humanos
e das liberdades fundamentais” (preâmbulo). De acordo com o Estatuto do
CoE (artigo 3), os Estados “devem aceitar os princípios da regra da lei e do
usufruto, por parte de todas as pessoas, no âmbito da jurisdição dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais” para serem aceites enquanto membros do CoE, podendo ser excluídos do CoE em caso de violação das suas
obrigações87 (artigo 8 do Estatuto).
4.1.1.1. Convenção Europeia dos Direitos Humanos (ECHR)
A mais importante conquista do CoE é a adoção da Convenção Europeia para
a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (ECHR)88, que
foi completada com 16 Protocolos. A “jóia da coroa”, como a Convenção é
usualmente denominada, protege e garante, principalmente, os direitos civis
e políticos, bem como o direito à educação e à propriedade dos indivíduos
que vivem nos 47 Estados-Membros. O artigo 14 da Convenção lida explicitamente com a não discriminação e afirma que “o usufruto dos direitos e
das liberdades anunciadas nesta Convenção deverá ser assegurado, sem discriminação de qualquer tipo, como o sexo, a raça, a cor da pele, a língua, a
religião a opinião política ou outra, a origem nacional ou social, a associação
a uma menoridade nacional, a propriedade, o nascimento ou outro estatuto”.
A redação do artigo 14 torna bastante claro que o direito à não discriminação
não pretende ser um direito isolado devendo ser considerado como interligado a outros direitos, no seio da ECHR, o que significa que os indivíduos
não podem alegar uma violação dos direitos humanos com base, apenas, em
fundamentações de não discriminação, mas são obrigados a combinar a sua
aplicação com outro direito contido na Convenção.89 Em 2005, o mais essencial dos Protocolos foi adotado, o Protocolo 12, que realça (artigo 1,1) que
o “usufruto de qualquer direito anunciado pela lei será assegurado sem discriminação de qualquer género…”, Par. 2: “Ninguém será discriminado pelas
87
Ver o famoso “caso grego” colocado aos órgãos do CoE, sobre violações dos direitos humanos, durante o período da junta militar da Grécia, de 1967 a 1974, e a expulsão da Grécia
do CoE.
88
Adotada em 1850, entrou em vigor em 1953, ETS n.º 1. Ver, entre outros, I. Cameron, An
introduction to the European Convention on Human Rights, 6th ed., Justus, Uppsala, 2011.
89
Existe um rico caso legal relacionado com a não discriminação, e vale a pena mencionar
que o Tribunal alargou o seu âmbito de proibição contra a discriminação, contido no artigo
14, relativamente à sua conjunção com o direito à família e os direitos das crianças. Ver Caso
de Kroon e outros vs. Países Baixos (Apelo n.º. 18535/91), Caso de Godelli vs. Itália (Apelo n.º
33783/09), Caso de Anayo vs. Alemanha (Apelo n.º 20578/07 ), Caso de X vs. Letónia (Apelo
n.º 27853/09), Caso de Y.C. vs. Reino Unido (Apelo n.º 4547/10) e outros. Ver entre outros, P.
Van Dijk, F. Van Hoof, A. Van Rijn and L. Zwaak (eds) Theory and Practice of the European
Convention on Human Rights, 4th Edition, Intersentia, Antwerpen, 2006.
54
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
autoridades públicas, sob quaisquer pretextos…”90. A contribuição crítica
deste Protocolo é que, após a sua adoção, o direito à não discriminação é considerado um direito adicional e autossuficiente para a Convenção, que pode
ser invocado, como tal, em tribunal (artigo 3 do Protocolo). Relativamente
à estrutura administrativa do Tribunal, o 11.º Protocolo, de 1998, foi alterado, da seguinte maneira:91 o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos permanente tem jurisdição compulsiva para lidar com inter-Estados e comunicações individuais. O indivíduo tem um locus standi92 para apresentar casos
diretamente ao Tribunal, que é composto por 47 juízes independentes eleitos pela Assembleia Parlamentar, de uma lista de três candidatos propostos
pelos Estados-Membros. Um Único juiz tem a competência de declarar uma
comunicação inadmissível, comités de três juízes examinam a possibilidade
de admissibilidade de uma comunicação, enquanto Câmaras de sete juízes
emitem a decisão dos méritos da comunicação. A Grande Câmara, composta
por dezassete juízes, aceita o pedido, se o caso levantar questões graves relacionadas com a interpretação da aplicação da Convenção ou dos Protocolos,
ou uma questão grave de importância geral. A Assembleia Plenária do
Tribunal exerce sobretudo funções administrativas. O Comité dos Ministros
do CoE supervisiona a execução do julgamento93, assegurando que o Estado
toma todas as medidas apropriadas para implementar a decisão do Tribunal.
A Convenção não é apenas invocada no Tribunal, mas também nos tribunais nacionais de muitos países. Os Estados-Membros tentam adaptar as
suas leis internas e a sua aplicação, em conformidade com as prescrições da
Convenção, ou emendar a legislação nacional, se necessário. O sistema europeu é considerado o mecanismo mais avançado e efetivo de implementação
da proteção dos direitos humanos de todo o mundo.
4.1.1.2. Outras Convenções
Além da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o trabalho legislativo do CoE tem sido vasto. Algumas das mais importantes convenções que
foram adotadas na estrutura desta organização são as seguintes: a Carta
Social Europeia (1961) e a Carta Social Europeia Revista (1996) garantem
direitos sociais e económicos; a Convenção Europeia para a Prevenção da
Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes (1987); a
90
O Protocolo foi assinado em Roma, no dia 4 de Novembro de 2000, e entrou em vigor a 1
de Abril de 2005.
91
A Comissão Europeia dos Direitos Humanos foi abolida.
92
Locus Standi significa que o indivíduo tem o direito de se apresentar perante o Tribunal e
defender-se a si mesmo/a, formalizando uma queixa contra o seu país, alegando uma quebra
da Convenção. Este é o único Tribunal regional de direitos humanos em que os indivíduos
têm locus standi. Em outros Tribunais regionais os indivíduos apresentam-se perante um Comité que decide se o caso pode ser levado ao Tribunal.
93
Artigo 46,2 do ECHR.
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
55
Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias (1992), dando ênfase
ao respeito das prescrições educacionais respeitantes às línguas minoritárias; a Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais (1995);
a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças94 (1996),
que envolve a criança no processo de tomada de decisão, com um Comité
permanente que revê a sua implementação; a Convenção para a Proteção dos
Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da
Biologia e da Medicina (1997) e os seus Protocolos: Protocolo Adicional à
Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser
Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, Que Proíbe a Clonagem
de Seres Humanos (1998): Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos do
Homem e a Biomedicina relativo à Investigação Biomédica (2005): Protocolo
Adicional à Convenção dos Direitos Humanos e Biomedicina sobre testes
genéticos relacionados com a saúde (2008).
4.1.1.3. Outras Instituições
A um nível institucional, e para uma mais efetiva proteção dos direitos humanos, o CoE criou uma instituição independente: o Escritório do
Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos 95. O Alto
Comissário está mandatado para promover a consciencialização e o respeito
pelos direitos humanos nos países membros. O CoE também estabeleceu
a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), que é um
órgão independente que monitoriza os direitos humanos, especializado no
combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia, ao antissemitismo
e à intolerância.
4.1.2. União Europeia
4.1.2.1. O Tratado de Lisboa
Os tratados que estabeleceram as Comunidades Europeias não continham
nenhuma referência específica aos direitos humanos; assim sendo, as instituições e os Chefes de Estado adotaram políticas que realçavam princípios
como a democracia e o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades
fundamentais. Referências aos direitos humanos aparecem no preâmbulo do
Ato Único Europeu (1987) e, mais tarde, no Tratado de Maastricht (1992), e
no Tratado de Amesterdão (1999).
Deve realçar-se que, desde 1969, o Tribunal de Justiça das Comunidades
Europeias desempenha um importante papel na proteção de direitos fundamentais, no âmbito da legislação comunitária.
94
P. Naskou-Perraki; P. Papapashalis, Child protection in the framework of the Council of
Europe, CIEEL, Working papers 2, Ant. N. Sakkoulas, Athens-Komotini, 2002, p. 45 et seq.
95
Res. (99) 50, sobre o Comissário do CoE para os Direitos Humanos, 7 de Maio de 1999.
56
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
O Tribunal das Comunidades Europeias desenvolveu gradualmente uma
extensa jurisprudencia relativa ao respeito de direitos fundamentais, tal como
a Convenção Europeia dos Direitos Humanos os garante (e como eles derivam das tradições constitucionais comuns dos Estados membros), enquanto
princípios gerais da lei Comunitária.96 O Tratado da União Europeia, tal
como emendado pelo Tratado de Lisboa97 prescreve no artigo 6 que “a UE se
funda nos princípios da liberdade, democracia, respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e pela regra da lei, princípios que são comuns
a todos os Estados membros”. Além disso, “a União respeitará os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Proteção dos
Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (…) e tal como resultam
das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros.” Com o Tratado
de Lisboa, a UE assume a responsabilidade de aceder, enquanto um todo, à
Convenção Europeia dos Direitos Humanos, um grande passo em direção à
harmonização e unificação das duas ordens legais.
4.1.2.2. A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia
Para além disso, o Tratado de Lisboa incorpora a Carta dos Direitos Fundamentais98 (Carta) na legislação básica europeia, assegurando uma melhor
proteção aos cidadãos europeus. A Carta aplica-se aos membros da UE,
quando estes implementam a legislação da UE. Inclui uma longa lista de
direitos humanos, dividida em sete capítulos e influencia os julgamentos do
Tribunal e as políticas das instituições europeias. Em particular, garante as
liberdades e os princípios, especialmente os que se referem à não discriminação99, estabelecida na referida Carta, fornecendo simultaneamente as suas
prescrições, incluindo os direitos civis, políticos, económicos e sociais, com
um caráter de obrigatoriedade legal.100
4.1.2.3. Instituições da UE
Entre outras Instituições da UE, a Agência dos Direitos Fundamentais (FRA)
foi estabelecida em 2007101, com o propósito de fornecer às instituições da
96
H.G. Schermers, D. F. Waelbroeck, Judicial Protection in the European Union, Kluwer
Law International, The Hague, London, New York, Sixth Edition, 2001.
97
O Tratado de Lisboa foi assinado em 2007, e entrou em vigor em 1/12/2009, emendando,
sem os rever, os tratados da União Europeia e do Conselho da Europa, e conferindo à União
Europeia personalidade legal.
98
Inicialmente redigida em 2000, e mais tarde incorporada no texto do Tratado de Lisboa,
entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009.
99
Art. 21 da Carta dos Direitos Fundamentais.
100
G. Di Federico (Ed.), The EU Charter of Fundamental Rights, From Declaration to Binding Instrument, Springer, Bologna, 2011, p.320.
101
Regulamento do Conselho 168/2007 de 15/02/2007, substituindo o Centro Europeu de
Monitorização do Racismo e Xenofobia [CEMRX].
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
57
Comunidade e aos Estados-Membros da UE assistência e conhecimento
especializado relativo aos direitos fundamentais, aquando da implementação
da legislação comunitária.102 A FRA apoia os Estados-Membros a tomarem
medidas ou a decidirem sobre ações a tomar, dentro das suas respetivas esferas de competência, para respeitar os direitos fundamentais. Entre as suas
principais áreas de trabalho, encontra-se a discriminação baseada em diferentes fundamentos, e os direitos das crianças, incluindo a proteção das crianças,
mais recentemente sobre as crianças e a justiça.
4.1.3. Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE)
A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE)103 tem
como prioridades: consolidar os valores comuns e construir sociedades
civis, prevenir conflitos locais, restaurar a estabilidade e levar a paz a áreas
devastadas pela guerra, ultrapassar défices reais e percebidos de segurança
e evitar a criação de novas divisões, através da promoção de um sistema de
segurança cooperativo. Criou três órgãos para enfrentar e lidar com as questões de direitos humanos, o Escritório para as Instituições Democráticas e
Direitos Humanos (1991), de modo a supervisionar eleições livres e instituições democráticas, o Alto Comissariado para as Minorias Nacionais (1992), e
o Representante para a Liberdade dos Meios de Comunicação Social a (1997).
A OSCE providencia formação às instituições nacionais de direitos humanos,
às ONGs, ao mesmo tempo que se foca na igualdade de género, no combate à
tortura, no tráfico de seres humanos e na liberdade de religião.104
5. Conclusão
A proteção dos direitos humanos é um assunto importante para a Humanidade.
Deve ser prioridade dos Estados assinar, ratificar e implementar os tratados
sobre direitos humanos, de acordo com as suas constituições e leis nacionais.
É seu dever criar Comités Nacionais de Direitos Humanos e apoiar ONGs que
trabalhem no campo dos direitos humanos. Os Estados devem criar Provedores,
especialmente para crianças e outros mecanismos a nível nacional. Se os Estados
falharem na sua realização, os mecanismos internacionais fornecem proteção,
uma proteção com a qual os Estados concordaram, depois de terem ratificado
os tratados internacionais. A ratificação de um tratado está interligada com
102
Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Manual sobre a legislação europeia antidiscriminação, Luxembourg, 2011.
103
(OSCE). Baseada na Carta de Paris, que foi assinada em Paris, entre 19–21 de Novembro
de 1990, e entrou em vigor a 21 de Novembro de 1990, ILM, 1991. É composta por 55 Estados
Membros.
104
D.J. Galbreath, The Organization for the Security and Co-operation in Europe, Routledge,
London and New York 2007, p. 92–116.
58
Paraskevi (Paroula) Naskou-Perraki
obrigações sérias da parte do Estado, sendo a primeira a revisão da legislação
nacional interna, de acordo com aquela que emana do texto da Convenção.
Principalmente, os Estados devem incorporar a evolução da proteção dos direitos humanos nos programas educacionais, em todos os níveis de educação. É
um lugar-comum que, apenas através da educação e da informação, podemos
respeitar os direitos humanos e o princípio da não discriminação.
Os direitos humanos necessitam de mecanismos de implementação; sem
controlo, a implementação dos direitos humanos seria o equivalente a uma
democracia sem eleições livres: uma promessa vazia. A necessidade de um
Tribunal Internacional para os Direitos Humanos parece agora mais urgente
do que nunca. Os mecanismos quasi-judiciais que os diferentes tratados estabeleceram têm um espetro específico, quando se trata dos seus julgamentos,
que excluem e proíbem, em termos de admissibilidade, a invocação de outras
bases legais respeitantes a certas infrações dos direitos humanos.105
A Carta da UE coloca o respeito pelos direitos humanos ao mesmo nível
da manutenção da paz e da segurança, ao mesmo tempo que dá prioridade
a ambos, enquanto padrões indispensáveis para o bem-estar da comunidade
internacional.
É necessário compreender que os conflitos são um esquema que evolui,
que constantemente toma novas formas. Desta maneira, é possível falar da lei
internacional como não estando mais limitada à regulação das relações entre
Estados soberanos, mas alargando-se, igualmente, ao tratamento dos indivíduos no interior dos Estados. Os indivíduos são agora colocados no mapa,
enquanto parte visível da ordem legal internacional, ao mesmo tempo que
o que tem sido comprometido e alvo de miopia pelas instituições, para além
dos Estados, melhorou, agora, de forma dramática. Tomando em consideração que esta conceção conservadora abreviada da lei internacional, enquanto
ocupando-se apenas com os Estados, não se adequa às atuais circunstâncias
do século 21, compreendemos que a Humanidade necessita de uma instituição internacional permanente, dotada de personalidade legal, com os poderes
e a delegação para tomar decisões, de uma forma final e legalmente obrigatória, sobre todas as alegadas violações dos direitos humanos, baseadas em
queixas trazidas ao seu conhecimento. O paradigma da CoE, com a evolução de um Tribunal permanente, no seio da estrutura da Organização, exerceu uma forte influência na proliferação e disseminação dos direitos humanos, não apenas na Europa, como também em outras regiões106, fornecendo,
105
M.C. Bassiouni and W. A. Shabas (eds.), New Challenges for the UN Human Rights Machinery, What Future for the UN Treaty Body System and the Human Rights Council Procedures?, Intersentia, Cambridge-Antwerp-Portland, 2011, pp. 17–32.
106
A Convenção Americana dos Direitos Humanos, a Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos e a Carta Árabe sobre os Direitos Humanos são instrumentos regionais que aspiraram a criar um regime similar ao instituído pela CoE. Ver, entre outros: P. Naskou-Perraki,
CAPÍTULO 1: Uma introdução à proteção internacional dos direitos humanos
59
simultaneamente, uma boa prática e, portanto, um precedente para a instituição de uma iniciativa global.107
Questões para reflexão
•
•
•
•
•
•
•
Quais são os principais tratados Internacionais que protegem o princípio da não
discriminação?
Explica se a Declaração Universal tem um caráter obrigatório para os Estados.
Que sistema de proteção dos direitos humanos é mais eficiente e porquê?
Propõe alterações, a nível universal, que conduzam a uma mais efetiva proteção dos
direitos humanos.
Como funciona o Conselho para os Direitos Humanos?
Identifique obrigações internacionais relativas aos direitos humanos, decorrentes da
Carta das Nações Unidas.
O Estado europeu X, tendo assinado e ratificado o ICCPR e o ECHR, está a agir de
forma discriminatória contra Y, uma criança afegã. Os pais de Y pedem-lhe ajuda e
perguntam-lhe qual é o mecanismo mais eficiente de que podem fazer uso para proteger os direitos de Y e porquê?
Leituras adicionais
Bassiouni, M.C. and Shabas, W.A. (eds.), New Challenges for the UN Human Rights
Machinery, What Future for the UN Treaty Body System and the Human Rights
Council Procedures?, Intersentia, (Cambridge-Antwerp-Portland, 2011) 480.
Buergenthal, T., Shelton, D., Stewart, D. International Human Rights in a nutshell (5th
Edition, West Group, United States of America, 2009) 450.
European Union Agency for Fundamental Rights, Handbook on European non-discrimination law, (Publications Office of the European Union, Luxembourg, 2011) 156.
Human Rights: International Protection, Monitoring, Enforcement, J. Symonides (eds.),
(UNESCO Publishing, 2003) 421.
Naskou-Perraki, P. International Mechanisms protecting Human Rights, (Ant. N.
Sakkoulas-Bruylant, Athens, Brussels, 2010) 654.
Non-discrimination in International Law: A Handbook for practitioners, (Interights,
International Centre for the Legal Protection of Human Rights, London, 2011) 261.
Smith, Rh.K.M. Textbook on International Human Rights, (5th Edition, Oxford 2012) 744.
Steiner, H.J., Alston, P., Goodman, R. International Human Rights in Context: Law,
Politics, Morals (3rd Edition, Oxford University Press, USA, 2007) 744.
Skouteris, Th., Vagias, M. (eds.), International Organizations and the Protection of
Human Rights, Essays in Honor of Professor P. Naskou-Perraki, (Themis Publishers,
Nik. A. Sakkoulas, Athens) 2014, 2.
“The African Court on Human Rights and People’s Rights”, Revue Hellenique de Droit International, 2003, pp. 205–222, P. Naskou-Perraki, “The Arab Charter on Human Rights: A new
start for the protection of human rights in the Arab World”, in Revue Hellenique de Droit
International, 2009, pp. 117–136.
107
Rh. K. M. Smith, Texts and Materials on International Human Rights, Third Edition, Routledge, London and New York, 2013, pp. 389–435.
60
Agnes Lux
CAPÍTULO 2:
NÃO DISCRIMINAÇÃO,
MECANISMOS DE QUEIXA E
ORGANISMOS DE IGUALDADE
Agnes Lux
Agnes Lux tem uma licenciatura em ciência política e direito.
Trabalhou para o Gabinete do Comissário para os Direitos Fundamentais, na Hungria (2008–2014) e é atual diretora da advocacia dos direitos da criança na UNICEF da Hungria (2008–2014).
É também palestrante/professora na Universidade ELTE, Faculdade de Direito, em Budapeste – a sua tese de doutoramento
é sobre instituições que defendem os direitos das crianças.
[email protected]
1. Estrutura europeia sobre a não discriminação
O direito à não discriminação é reconhecido inter alia pelos principais instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, o Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos da ONU, a Convenção
sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, a Convenção
sobre a Eliminação da discriminação Racial da ONU, e a Convenção N.º 111
da OIT. As prescrições sobre não discriminação, contidas na Convenção para
a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, foram
reforçadas pela entrada em vigor, a 1 de Abril de 2005, de um novo Protocolo
12 a essa Convenção, que estipula o direito permanente a um tratamento
igual.
Hoje em dia, a União Europeia combate ativamente todas as formas de discriminação e luta pelo respeito universal dos direitos humanos, promovendo,
em primeiro lugar, o espírito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(daqui em diante: ECHR)1 e, desde 2009, realizando a sua missão ao abrigo
da legalmente obrigatória Carta dos Direitos Fundamentais da UE2.
A ECHR é um acordo internacional obrigatório, adotado (até ao momento)
1
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (2002). Convenção Europeia sobre os Direitos
do Homem. Documento Fonte, http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_ENG.pdf.
Acedido em 20 de Março de 2014.
2
Jornal Oficial da União Europeia (2010). Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia. Documento Fonte. http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:
2010:083:0389:0403:en:PDF. Acedido em 20 de Março de 2014.
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
61
por 47 Estados Europeus, incluindo os 28 Estados Membros da UE. Adotado
em 1950, entrou em vigor em 1953, sendo a primeira das convenções do
Conselho da Europa3 e a pedra angular de todas as suas atividades. Os
Estados-Membros têm uma obrigação de assegurar que ela é plenamente
aplicada e respeitada nos seus territórios. Se não cumprirem a sua obrigação,
podem enfrentar acusações de violação da ECHR perante o Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos (daqui por diante: Tribunal)4, em Estrasburgo.
O Artigo 14 da ECHR determina que “O gozo dos direitos e liberdades
reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões
políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria
nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação.”
Em muitos casos, outras prescrições específicas da ECHR podem ter
influência na legislação sobre a igualdade e a não discriminação dos Estados
Membros; esta influência pode ser, quer direta, quer indireta, sendo a última
possível através da proibição da discriminação prevista no artigo 14.
O âmbito da ECHR para implementar e proteger os direitos das crianças
não é imediatamente evidente, dado que contém poucas referências específicas aos direitos da criança. Apesar de não ser aparente que o Tribunal tenha
seguido uma estratégia consistente para remeter para a Convenção sobre os
Direitos da Criança da ONU (daqui por diante: CDC ONU) 5 em todos os
casos que envolvam crianças, tem vindo a fazer tais referências, com uma
frequência crescente e com um efeito significativo.6
O Tribunal emite julgamentos contra os Estados-Membros do Conselho
da Europa sobre alegadas violações dos tratados europeus sobre direitos
humanos. As queixas podem ser apresentadas por indivíduos ou por outros
3
O Conselho da Europa é a organização que lidera os direitos humanos na Europa, desde
1949. Inclui 47 Estados membros, entre os quais figuram os 28 Estados membros da União
Europeia. Todos os Estados membros do Conselho da Europa assinaram a CEDH. A sua sede
é em Estrasburgo.
4
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos é um tribunal internacional criado em 1959.
Ele toma decisões sobre petições apresentadas por indivíduos ou Estados, que aleguem violações dos direitos civis e políticos estipulados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Desde 1998, estabeleceu-se como um tribunal permanente; os indivíduos podem apelar para
ele diretamente (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O Tribunal em resumo. Documento Fonte. http://www.echr.coe.int/Documents/Court_in_brief_ENG.pdf. Acedido em 20 de
Março de 2014).
5
Direitos Humanos nas Nações Unidas, Gabinete do Alto Comissário para os Direitos Humanos. Convenção sobre os Direitos da Criança – Adotado e disponível para assinatura, ratificação e catalogação pela resolução 44/25 da Assembleia Geral, de 20 de Novembro de 1989;
entrada em vigor em 2 de Setembro de 1990, de acordo com o artigo 49. http://www.ohchr.
org/en/professionalinterest/pages/crc.aspx. Acedido em 20 de Março de 2014.
6
Kilkelly, U. (2001). Best of Both Worlds for Children’s Rights. Human Rights Quarterly 23,
308–326.
62
Agnes Lux
Estados-Membros. A falha dos Estados em cumprir os julgamentos pode
conduzir à sua expulsão do Conselho da Europa e as decisões do Tribunal
são obrigatórias para todos os membros do Conselho da Europa. O Tribunal
lida com casos em que um indivíduo não recebeu um reparação adequada
pelas violações nos tribunais do seu próprio país, ou não foi capaz de aceder ao sistema nacional de justiça. O Comité de Ministros, que é o órgão de
tomada de decisões do Conselho da Europa, e é composto pelos Ministros
dos Negócios Estrangeiros dos Estados Membros, é responsável por supervisionar a implementação dos julgamentos do Tribunal. O Tribunal tem, igualmente, uma função de aconselhamento, que lhe permite emitir ‘Opiniões de
Aconselhamento’, as quais podem ser requeridas pelo Comité de Ministros do
Conselho da Europa, sendo mais detalhadas em relação a um artigo ou aspeto
de uma Convenção, para ajudar a interpretar o seu significado.
2. Os direitos das Crianças e o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos
A ECHR, o principal e mais importante tratado sobre direitos humanos da
Europa, não menciona especificamente os direitos das crianças. No entanto,
os direitos contidos na ECHR aplicam-se às crianças, e, de facto, têm sido
apresentadas ao Tribunal queixas que alegam uma quebra destes direitos no
caso de crianças (ver mais abaixo). Menores ou jovens (o texto é inconsistente no seu uso da terminologia relevante) aparecem apenas no artigo 5,
relacionado com o direito à liberdade, e no artigo 6, relativo ao direito a um
julgamento justo. Consequentemente, à ECHR faltam-lhe direitos substantivos para as crianças. No entanto, muitos aspetos permitem um recurso à
CDC ONU, porque muitas das prescrições da ECHR se encontram redigidas
em termos latos e podem, dessa forma, ser interpretadas de modo expansivo.
Claramente, a ECHR, no Século XXI, não pode ser isolada das condições
ambientais legais e sociais.7
Para além do mais, o Conselho da Europa adotou alguns tratados – especificamente para proteger os direitos das crianças –, que podem ser invocados
no Tribunal para enfrentar quebras desses direitos:
•
7
Convenção para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e
os Abusos Sexuais (2010)8;
Ver, igualmente, Kilkelly 2001: 313.
Gabinete de Tratados do Conselho da Europa (2010). Convenção sobre a Proteção das
Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais. http://conventions.coe.int/Treaty/
Commun/ QueVoulezVous.asp?NT=201&CM=8&DF=&CL=ENG. Acedido em 20 de Março
de 2014.
8
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
•
•
•
•
•
63
Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças
(1996)9
Convenção Europeia sobre os Estatuto Jurídico das Crianças Nascidas
fora do Casamento (1975)10
Convenção Europeia em Matéria de Adoção de Crianças (1967)11
Convenção Europeia sobre o Reconhecimento e a Execução das
Decisões Relativas à Guarda de Menores e sobre o Restabelecimento
da Guarda de Menores (1980)12
Convenção Europeia sobre o Repatriamento de Menores (1970)13
Nas últimas décadas, o Tribunal reconheceu, igualmente, a importância
da CDC ONU na sua jurisprudência, declarando primeiro no caso Sahin
vs. Alemanha (2003) que “os direitos humanos das crianças e os padrões aos
quais todos os Estados devem aspirar na realização destes direitos para todas as
crianças estão expostos na Convenção sobre os Direitos das Crianças das Nações
Unidas.”14
2.1. Breve panorâmica de casos do Tribunal relacionados com crianças e o
Artigo 1415
O primeiro caso envolvendo direitos das crianças foi apresentado ao Tribunal,
em 1978. Dizia respeito ao castigo corporal judicial de um cidadão do Reino
Unido, Anthony Tyrer, que tinha 15 anos de idade ao tempo da sentença, em
9
Rede Internacional dos Direitos das Crianças (CRIN) (1996). Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças. Documento Fonte: http://www.crin.org/en/library/
legal-database/european-convention-exercise-childrens-rights. Acedido em 20 de Março de
2014.
10
CRIN (1975). Convenção Europeia sobre o Estatuto Jurídico das Crianças Nascidas fora
do Casamento. http://www.crin.org/en/library/legal-database/european-convention-legal-status-childrenborn-out-wedlock. Acedido em 20 de Março de 2014.
11
CRIN (1967). Convenção Europeia em Matéria de Adoção de Crianças. http://www.crin.
org/en/library/legal-database/european-convention-adoption-children. Acedido em 20 de
Março de 2014.
12
CRIN (1980). Convenção Europeia sobre o Reconhecimento e a Execução das Decisões
Relativas à Guarda de Menores e sobre o Restabelecimento da Guarda de Menores. http://
www.crin.org/en/library/legal-database/european-convention-recognition-and-enforcement-decisionsconcerning-custody. Acedido em 20 de Março de 2014.
13
Conselho da Europa (1970). Convenção Europeia sobre o Repatriamento de Menores.
http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/071.htm. Acedido em 20 de Março de
2014.
14
Outras decisões do Tribunal que citam a CDC ONU: CRIN (2012). CDC no Tribunal:
O Caso Legal da Convenção dos Direitos da Criança. http://www.crin.org/docs/CRC_in_
Court_ Report.pdf. Acedido em 20 de Março de 2014.
15
Procurar a base de dados THESEUS do Conselho da Europa, relacionado com crianças,
http://www.coe.int/t/dg3/children/caselaw/caselawchild_en.asp. Acedido em 20 de Março de
2014.
64
Agnes Lux
1972. Ele tinha-se declarado culpado, num tribunal local de menores, na ilha
de Man, de uma agressão ilegal, ocasionando danos corporais a um estudante
da sua escola. O tribunal tinha-o sentenciado a três chicotadas. O queixoso
reclamou que este castigo corporal judicial constituía uma quebra do artigo 3
da ECHR, que proíbe a tortura e o tratamento ou castigo degradante ou desumano. Ele também reclamou que o castigo era destrutivo para o bem-estar
da sua família e, portanto, infringia o artigo 8, uma vez que não existiam
medidas que retificassem a violação, como exigido pelo artigo 13; reclamou,
ainda que o castigo era discriminatório, com base no artigo 14, porque ele era
primariamente aplicado a pessoas financeira e socialmente vulneráveis.
As muitas outras infrações aos direitos das crianças que têm desde então
sido objeto de litígio no Tribunal incluem os maus-tratos de crianças sob custódia da polícia; o direito a assistência legal para as crianças em situação de
conflito com a lei; a detenção e deportação de crianças pequenas; a audição
das crianças nos seus processos de decisão sobre a sua proteção e colocação; a
adoção internacional; e o castigo corporal, em casa e na escola, e vários casos
de discriminação.
No caso Linguístico Belga16 (1968), os requerentes – pais de mais de 800
crianças francófonas, que viviam em certas partes (principalmente de língua
alemã) da Bélgica – queixaram-se de que aos seus filhos era negada uma educação em francês. O Tribunal determinou que negar a algumas crianças o
acesso a escolas de língua francesa, com um estatuto especial nas seis comunidades dos arredores de Bruxelas, apenas porque os seus pais viviam fora
dessas comunidades, representava uma violação do artigo 14.
No caso Marcks vs. Bélgica17, uma mãe solteira belga queixou-se que a ela e
à sua filha Alexandra eram negados direitos concedidos a mães casadas e aos
seus filhos: entre outras coisas, ela tinha de reconhecer a sua filha (ou trazer
documentos legais) para estabelecer a sua filiação (as mães casadas podiam
apresentar o boletim de nascimento); o reconhecimento restringia a sua capacidade para deixar em legado propriedade à sua filha e não criava um elo legal
entre a criança e a família da mãe, a sua avó e a sua tia. Apenas pelo casamento,
e depois de adotar a Alexandra (ou de completar um processo de legitimação),
seria capaz de assegurar que a sua filha tinha os mesmos direitos de um filho
legítimo. O Tribunal detetou violações dos artigos 8 e 14, relacionados com
ambas as petições, relativamente ao estabelecimento da afiliação maternal da
Alexandra, a falta de um elo legal com a família da mãe e os seus direitos de
herança e a liberdade da mãe de escolher a forma de dispor da sua propriedade.
No caso Inze vs. França18 (1987), o peticionário não estava legalmente
habilitado para herdar a quinta da sua mãe, quando esta morreu, sem
16
17
18
N.os 1474/62, 1677/62, 1691/62, 1769/63, 1994/63, 2126/64.
N.º 6833/74.
N.º 8695/79.
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
65
testamento feito, porque nasceu fora dos laços do matrimónio. Embora ele
tenha trabalhado na quinta até aos seus 23 anos de idade, o seu meio-irmão
mais novo herdou toda a quinta. O peticionário recebeu, em última instância,
uma pequena parcela de terreno, da parte do seu irmão, que a sua mãe queria
deixar-lhe. O Tribunal – notando que o peticionário apenas aceitou o acordo,
porque ele não tinha nenhuma esperança de obter mais – determinou que
tinha havido uma violação do artigo 14.
No caso Mazurek vs. França19 (2000), o peticionário – nascido de uma
relação adúltera – estava habilitado a herdar apenas metade, porque um
criança legítima tinha também uma pretensão ao património da sua mãe, de
acordo com a lei em vigor na altura (1990). O Tribunal notou uma tendência
clara, na Europa, para a abolição da discriminação em relação às crianças na
situação do peticionário. Essa criança não poderia ser censurada por eventos
situados fora do seu controlo. Tinha havido, portanto, uma violação do artigo
1 do Protocolo N.º 1, em conjunção com o artigo 14.
No caso Camp e Bourimi vs. Países Baixos20 (2000), Eveline Camp e o seu
bebé Sofian tiveram de abandonar a casa da família quando o pai de Sofian,
Abbi Bourimi, morreu sem testamento feito, antes de reconhecer Sofian e de
casar com a Sr.ª Camp (como tinha sido a sua intenção). De acordo com a
lei holandesa, da altura, os pais e os irmãos do Sr. Bourimi herdaram o seu
património. Eles mudaram-se, mesmo, para a sua casa. Sofian foi, mais tarde,
declarado legítimo, mas, uma vez que a decisão não tinha efeitos retroativos,
ele não foi declarado herdeiro do seu pai. Fazendo notar que o Sr. Bourini
tinha tido a intenção de casar com a Sr.ª Camp e de reconhecer Sofian, o
Tribunal determinou que a exclusão de Sofian da herança do seu pai era desproporcionada, em violação dos artigos 8 e 14.
O caso H.G. e G.B. vs. Áustria21 (2005) foi acerca de diferenças na idade
mínima para manter relações homossexuais e heterossexuais na Áustria. Foi
questionado o castigo de atos homossexuais consensuais entre homens adultos e adolescentes, com idades entre os 14 e os 18 anos, enquanto as relações
heterossexuais e lésbicas entre adultos e adolescentes, do mesmo grupo etário,
não eram punidas. O artigo 8 e o artigo 14 foram violados.
O caso D.H. vs. República Checa22 (2007) dizia respeito a 18 crianças ciganas de nacionalidade checa, que foram colocadas em escolas para crianças
com necessidades especiais – incluindo as portadoras de uma deficiência
19
N.º 34406/97, ver também Merger e Cros vs. França (pet. n.º 68864/01)
N.º 28369/95.
21
Ver também os casos Sutherland vs. Reino Unido, 27 de Março de 2001; L. e V. vs. Áustria, 9
de Janeiro de 2003; S. L. vs. Áustria, 9 de Janeiro de 2003; B.B. vs. Reino Unido, 10 de Fevereiro
de 2004; Woditschka e Wilfling vs. Áustria, 21 de Outubro de 2004; Ladner vs. Áustria, 3 de
Fevereiro de 2005; e Wolfmeyer vs. Áustria, 26 de Maio de 2005.
22 N.º 57325/00.
20
66
Agnes Lux
mental ou social – entre 1996 e 1999. Os peticionários argumentaram que
estava a ser implementado um sistema educacional de duas camadas, em que
a segregação das crianças ciganas para essas escolas – que adotavam um currículo simplificado – era quase automática. O Tribunal notou que, na altura
relevante, a maioria das crianças em escolas especiais da República Checa
eram de origem cigana. As crianças ciganas com um intelecto médio/acima
da média eram frequentemente colocadas nessas escolas, com base em testes
psicológicos que não eram adaptados a pessoas com as suas origens étnicas.
O Tribunal concluiu que a lei, naquele tempo, tinha um efeito desproporcionadamente prejudicial nas crianças ciganas, constituindo ainda uma violação
do artigo 14.
No caso Sampanis e Outros vs. Grécia23 (2008), as autoridades gregas
falharam ao não matricular na escola um grupo de crianças gregas de origem cigana – que não estavam a receber qualquer educação formal – durante
um ano académico completo. Mais de 50 crianças foram, subsequentemente,
colocadas em escolas especiais, num anexo escolar para supostamente as preparar para a sua reintegração nas classes regulares. O Tribunal fez notar que as
crianças ciganas não foram adequadamente testadas – nem inicialmente, para
verificar se elas precisariam de atender classes preparatórias, nem mais tarde,
para verificar se elas tinham progredido suficientemente para se juntarem à
escola regular. O Tribunal detetou uma violação do artigo 2 do Protocolo n.º
1 (direito à educação) e ao artigo 14, relacionadas ambas com o procedimento
de matrícula e com a colocação das crianças em classes especiais.
No caso Brauer vs. Alemanha24 (2009), a peticionária não conseguiu herdar do seu pai, que a tinha reconhecido ao abrigo de uma lei que se aplicava a crianças nascidas fora do casamento anteriormente a 1 de Julho de
1949. A igualdade de direitos de herança disponível à luz da lei, na antiga
República Democrática da Alemanha (onde ela tinha vivido a maior parte da
sua vida) não se aplicava, porque o seu pai tinha vivido na República Federal
da Alemanha, na altura em que a Alemanha foi unificada. O tribunal detetou
violações dos artigos 8 e 14.
No caso Oršuš e Outros vs. Croácia25 (2010), quinze croatas de origem
cigana queixaram-se de terem sido vítimas de discriminação racial, por terem
sido segregados em turmas compostas apenas por ciganos e, consequentemente, foram vítimas de danos educacionais, psicológicos e emocionais. O
Trinunal observou que apenas crianças ciganas tinham sido colocadas em
turmas especiais, nas escolas em questão. O Governo atribuiu a separação
à falta de proficiência dos estudantes na língua croata. No entanto, os testes
que determinaram a sua colocação nessas turmas não focaram em especial as
23
24
25
N.º 32526/05, ver também: Sampani e Outros vs. Grécia (petição n.º 59608/09).
N.º 3545/04.
N.º 15766/03.
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
67
competências linguísticas, o programa educacional subsequentemente implementado não tinha como alvo esses problemas linguísticos e o progresso das
crianças não foi monitorizado com clareza. A colocação dos peticionários em
turmas formadas apenas por ciganos era, por isso, injustificada, violando o
artigo 2 do Protocolo n.º 1 e o artigo 14.
O caso Genovese vs. Malta26 (2011) dizia respeito à recusa de garantir
a cidadania maltesa ao peticionário britânico – nascido na Escócia (Reino
Unido), fora do casamento, de mãe britânica e pai maltês – com base no facto
de ser filho ilegítimo. A uma criança nascida no seio do casamento, ou filha
de uma mãe maltesa, teria sido concedida a cidadania de Malta. Foi detetada
uma violação ao artigo 14.
O caso Horváth e Kiss vs. Hungria27 (2013) dizia respeito às queixas de
dois jovens rapazes ciganos que denunciaram que a sua educação em escolas para crianças com deficiência mental, tinha sido o resultado de um erro
de colocação que era equivalente a um ato de discriminação. Foi detetada a
violação do artigo 2 do Protocolo n.º 1, juntamente com a violação do artigo
14. O Tribunal realçou que existia uma longa história de colocação errada
de crianças ciganas em escolas especiais, na Hungria. O Tribunal declarou
que a colocação escolar dos peticionários indicava que as autoridades tinham
falhado ao não ter em consideração as necessidades especiais dos membros
de um grupo desfavorecido. Como resultado, os peticionários tinham sofrido
de isolamento e tinham recebido uma educação que tornou a sua integração
social ainda mais difícil.
O Caso Lavida e Outros vs. Grécia28 (2013) dizia respeito à educação de
crianças ciganas que foram limitadas a atender uma escola primária, em que
todos os outros estudantes eram outras crianças ciganas. Foi detetada uma
violação do Artigo 14, em conjunção com o artigo 2 do Protocolo n.º 1.
O caso X e Outros vs. Áustria29 (2013) foi acerca da adoção de um rapaz
pela companheira do mesmo sexo da sua mãe, na Áustria. O Tribunal declarou ter havido discriminação contra as peticionárias – um casal de lésbicas e
o filho de uma delas, nascido fora do casamento e reconhecido pelo seu pai, e
cuja mãe tinha, sozinha, a sua custódia – especialmente, quando comparado
com o caso de casais de sexos diferentes, não casados, uma vez que era legalmente impossível para a parceira da mãe adotar a criança desta. Foi declarada
uma violação do artigo 8 e do artigo 14.
26
N.º 53124/09.
N.º 11146/11.
28
N.º 7973/10.
29
Ver Fretté vs. França, 26 de Fevereiro de 2002; Emonet e Outros vs. Suíça, 13 de Dezembro de
2007; E.B. vs. França [GC], 22 de Janeiro de 2008; Zaunegger vs. Alemanha, 3 de Dezembro de
2009; Sporer vs. Áustria, 3 de Fevereiro de 2011; Gas e Dubois vs. França, 15 de Março de 2012.
27
68
Agnes Lux
3. A legislação da UE sobre os direitos das crianças e a não
discriminação
O Tratado de Lisboa entrou em vigor em Dezembro de 2009, e enquanto parte
imanente da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, recebeu um caráter legal
obrigatório. A Carta reúne, num único documento, os direitos fundamentais
e as liberdades protegidas na UE, reagrupados em seis capítulos: dignidade;
liberdades; igualdade; solidariedade; direitos dos cidadãos e justiça. É dirigido às instituições e órgãos da UE e às autoridades nacionais dos Estados
membros da UE, quando estes implementam a legislação da UE. O Título III
sobre a igualdade contém as prescrições gerais da igualdade perante a lei e a
proibição de qualquer tipo de discriminação, assim como prescrições mais
específicas relacionadas com os direitos das crianças e dos idosos, com a integração de pessoas portadoras de deficiências, com a igualdade entre homens
e mulheres e com a diversidade linguística.
O artigo 21 da Carta também declara que:
“toda a discriminação baseada em qualquer fundamento como o sexo, a
raça, a cor da pele, a origem étnica ou social, as caraterísticas genéticas, a
língua, a religião ou crença, a opinião política ou outra, a pertença a uma
minoria nacional, a propriedade, o nascimento, a deficiência, a idade ou
a orientação sexual, será proibida.”
O artigo 24 é acerca “dos direitos da criança”, e diz, explicitamente
“1. As crianças deverão ter o direito a uma proteção e cuidados que sejam
necessários ao seu bem-estar. Elas podem exprimir livremente os seus
pontos de vista. Tais pontos de vista serão tomados em consideração em
assuntos que lhes dizem respeito, de acordo com as suas idades e maturidade. 2. Em todas as ações relacionadas com as crianças, quer realizadas
pelas autoridades públicas, quer por instituições privadas, o superior interesse das crianças deve ser a consideração primária. 3. Todas as crianças
terão o direito de manter, numa base regular, uma relação pessoal, e contato direto com ambos os progenitores, a menos que isso seja contrário aos
seus interesses.”
Nos anos mais recentes, a UE implementou um corpus considerável de legislação para fazer face à discriminação baseado no sexo, relacionada com o
salário, com as condições de trabalho e com a segurança social. Mas também
precisa de combater a discriminação baseada num conjunto de outros fundamentos. É por essa razão que o Tratado de Amesterdão, de 1997, incluiu
o artigo 13, que dá poder à Comunidade para agir de modo a lidar com a
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
69
discriminação baseada numa nova série de fundamentos, incluindo a origem
étnica ou racial, a religião ou a crença, a idade, a deficiência, e a orientação
sexual. Este artigo foi subsequentemente modificado pelo Tratado de Nice,
para permitir a adoção de medidas de incentivo pela maioria qualificada
votante no Conselho da UE. Para assegurar que todos os que vivem na UE
possam beneficiar de uma proteção legal efetiva contra a discriminação, o
Conselho adotou duas diretivas, em 2000: a Diretiva sobre a Igualdade Racial30
e a Diretiva da Igualdade no Emprego31.Estas diretivas representaram um progresso significativo para assegurar proteção contra a discriminação na União
Europeia. Elas exigiram alterações significativas na legislação nacional de
todos os Estados-Membros, mesmo naqueles que já possuíam uma legislação
anti-discriminação compreensiva.
Ao nível europeu, existem duas estruturas legislativas diferentes relativas
lei da igualdade e da não discriminação: (1) a da UE (diretivas sobre não
discriminação) e (2) a do Conselho da Europa (ECHR). A legislação da UE é
obrigatória em todos os Estados-Membros da UE, que têm não só a obrigação
de a respeitar e aplicar as leis da UE, como de assegurar que os seus cidadãos
também as respeitam e aplicam.
4. Instituições que defendem os direitos: órgãos de igualdade,
provedores
Os órgãos de igualdade são organizações independentes que assistem vítimas
de discriminação, monitorizando as questões de discriminação e promovendo
a igualdade. É-lhes legalmente exigido que promovam a igualdade e combatam a discriminação, em relação a um, alguns ou a todos os fundamentos
de discriminação cobertos pela legislação da UE – género, raça e etnicidade,
idade, orientação sexual, religião ou crença e deficiência.
A legislação da UE sobre igualdade de tratamento exige aos EstadosMembros que criem um órgão de igualdade. No entanto, não existem diretrizes específicas para os Estados-Membros sobre o modo como estes órgãos
devem operar. Atualmente, mais de dez anos após a data de implementação da
Diretiva de Igualdade Racial e das Diretivas sobre Igualdade de Tratamento
de Género, uma grande variedade de práticas relacionadas com os órgãos de
30
Jornal Oficial das Comunidades Europeias: Diretiva 2000/43/CE do Conselho, de 29 de
junho de 2000, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção de origem racial ou étnica. Documento Fonte. http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/
LexUriServ.do?uri=OJ:L:2000:180:0022:0026:EN:PDF. Acedido em 20 de Março de 2014.
31
Jornal Oficial das Comunidades Europeias: Diretiva 2000/78/CE, de 27 de novembro de
2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade
profissional. Documento Fonte. http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:
L:2000:303:0016:0022:EN:PDF. Acedido em 20 de Março de 2014.
70
Agnes Lux
igualdade florescem nos Estados-Membros da UE. Até ao momento, a legislação europeia anti-discriminação apenas exige que os órgãos de igualdade
sejam estabelecidos nos campos da raça e origem étnica e do género. No
entanto, muitos países têm órgãos que lidam igualmente com outros fundamentos para a discriminação.
Os órgãos de igualdade são exigidos para fornecerem assistência independente às vítimas de discriminação. Esta assistência pode envolver um leque de
atividades, incluindo:
•
•
•
•
fornecer informação sobre a existência de leis anti-discriminação e
sobre a possibilidade de agir judicialmente, para procurar remédio ou
compensação, após um ato de discriminação:
encaminhar as pessoas que são vítimas de discriminação para uma
organização/instituição que as possa ajudar;
ajudar as pessoas que são vítimas de discriminação a alcançar um
arranjo amigável/acordo mútuo (mediação) com os discriminadores; e
providenciar aconselhamento legal e representação a pessoas que
tenham sido vítimas de discriminação.
Os órgãos de igualdade podem igualmente:
•
•
conduzir inquéritos independentes sobre discriminação;
publicar relatórios independentes e fazer recomendações sobre qualquer questão relacionada com discriminação.
Muitos órgãos de igualdade também promovem a igualdade de tratamento,
através de campanhas de informação dirigidas ao público em geral e oferecendo apoio aos empregadores e aos prestadores de serviços sobre boas práticas no campo da igualdade.
A Rede Europeia de Órgãos de Igualdade (Equinet)32 reúne 38 organizações de 31 países europeus, que têm o poder do combater a discriminação,
enquanto órgãos de igualdade nacionais, em todo o leque de fundamentos,
incluindo a idade, a deficiência, a género, a raça ou origem étnica, a religião
ou crença e a orientação sexual.
32
A Equinet está construída sobre um projeto de dois anos “Fortalecendo a cooperação
entre órgãos especializados para a implementação de uma legislação de igualdade de tratamento” (2002–2004), e é atualmente financiada pelo PROGRESS, o Programa para o Emprego
e Solidariedade Social da Comunidade Europeia (2007–2013). http://www.equineteurope.org/
Member-organisations-. Acedido em 20 de Março de 2014.
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
71
4.1. Provedor [Ombudsman]
Em muitos países do mundo, um provedor33 lida com queixas resultantes de
decisões públicas, de ações ou de omissões da administração pública. Embora
o papel específico varie, o detentor deste cargo é normalmente eleito pelo
Parlamento ou designado pelo Chefe de Estado ou pelo Governo, com a ajuda
ou após consulta ao Parlamento. O papel do provedor é proteger as pessoas
contra a violação dos direitos fundamentais, o abuso do poder, erros, negligência, decisões injustas e má administração, e melhorar a administração
pública, ao mesmo tempo que torna as ações do Governo mais transparentes
e a sua administração mais responsabilizável perante o público.
Quer seja designado pela legislatura, pelo executivo ou por uma organização, os deveres típicos de um provedor são a investigação de queixas e a tentativa de as resolver, usualmente através de recomendações (legalmente vinculativas, ou não) ou da mediação. Ao nível nacional, muitos provedores têm
um amplo mandato para lidar com todo o setor público, e, por vezes, também
com elementos do setor privado (p. ex., prestadores de serviços contratados).
Em alguns casos, o mandato é mais restrito, por exemplo a setores particulares da sociedade.34 Desenvolvimentos mais recentes incluíram a criação de
um Provedor das Crianças especializado35.
4.2. Instituições Nacionais de Direitos Humanos/Provedores dos Direitos das
Crianças
As Instituições Nacionais de Direitos Humanos (NHRIs)36 para as crianças são entidades públicas fundadas na legislação, financiadas pelo Estado e
encarregadas da responsabilidade de responder perante a legislatura e/ou o
33
Um termo indígena da Suécia, da Dinamarca e da Noruega, Ombudsman [Provedor] tem
as suas raízes etimológicas na palavra nórdica antiga “umbo.smar.r”, significando, essencialmente, “representante” (com a palavra umbud/ombud significando procurador, advogado,
isto é, alguém que está autorizado a agir por outra pessoa, um significado que ainda detém
nas línguas escandinavas). O primeiro uso preservado ocorre na Suécia. Na lei dinamarquesa
da Jutland, de 1241, o termo é umbozman e significa um funcionário real civil numa circunscrição administrativa. O uso moderno do termo começou na Suécia, com o Ombudsman do
Parlamento Sueco, instituído pelo Instrumento do Governo de 1809, para salvaguardar os
direitos dos cidadãos, ao estabelecer uma agência de supervisão independente do ramo executivo.
34
Ver mais: Kucsko-Stadlmayer, Gabriele (Ed.) (2008). European Ombusman-Institutions:
A comparative legal analysis regarding the multifaceted realisation of an idea. Wien, New
York: Springer.
35
Ver mais: Brian Gran: The Roles of Independent Children’s Rights. Williams, Jane and
Invernizzi, Antonella (Eds.) (2011): The Human Rights of Children. From Visions to Implementation. Surrey, UK Ashgate Publishing Group, p.p. 219–237.
36
Ver mais: Haász, Veronika (2013). The Role of National Human Rights Institutions in the
Implementation of the UN Guiding Principles. Human Rights Review, Volume 14, Issue 3, p.p.
165–187.
72
Agnes Lux
Governo. Estas instituições são baseadas nos “Princípios de Paris”37, adotados
pela Assembleia Geral da ONU, em Dezembro de 1993, através da Resolução
48/134. Os Princípios afirmam que as instituições nacionais devem ser investidas com a competência de promover e de proteger os direitos humanos e
que lhes deve ser concedido um mandato o mais alargado possível, “claramente anunciadas num texto constitucional ou legislativo”. Entre as responsabilidades que lhe devem caber, encontram-se:
•
•
•
•
•
•
submeter recomendações, propostas e relatórios em qualquer assunto
relacionado com os direitos humanos (incluindo prescrições legislativas e administrativas e qualquer situação de violação dos direitos
humanos) ao Governo, ao Parlamento e a outro órgão competente;
promover a conformidade entre as leis e as práticas nacionais e os
padrões internacionais nos direitos humanos;
encorajar a ratificação e a implementação de padrões internacionais;
contribuir para o procedimento de apresentação de queixa de acordo
com instrumentos internacionais;
assistir na formulação e execução do ensino dos direitos humanos e
de programas de investigação e aumentar a consciencialização pública
dos direitos humanos através de informação e da educação;
cooperar com as Nações Unidas, com as instituições regionais, e com
as instituições nacionais de outros países.
Todas estas funções podem ser reorientadas para se relacionarem especificamente com a promoção e a proteção dos direitos humanos das crianças.
Tal como acontece com muitos desenvolvimentos positivos para as crianças, a ideia de um provedor para as crianças foi primeiramente desenvolvida
por organizações não-governamentais (ONGs). Radda Barnen, Salvem as
Crianças – Suécia, estabeleceu um Provedor para as Crianças, nos anos de
1970 e promoveu a ideia internacionalmente, durante o Ano Internacional da
Criança (1979).
O Governo norueguês foi o primeiro a usar legislação para criar um órgão
independente para as crianças. Um Ato estabelecendo o Barneombud [Provedor]
foi aprovado pelo parlamento Norueguês, em 1981. Em 1975, o Ministério da
Justiça tinha estabelecido um comité para analisar a legislação sobre os pais
e os filhos e para decidir se existia a necessidade de um órgão público apenas
para as crianças. A proposta unânime do Comité, no seu relatório de 1977, foi
a de que um gabinete do Provedor para as Crianças, público, nacional, devia
ser estabelecido. A proposta foi examinada por um comité interdepartamental, representando os seis departamentos com maiores responsabilidades na
37
Texto completo: http://www2.ohchr.org/english/law/parisprinciples.htm. Acedido em 20
de Março de 2014.
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
73
área das crianças. O Ato que estabelecia o gabinete, enquanto um órgão autónomo, é restrito: o dever estatutário do Barneombud [Provedor] é “promover
o interesse das crianças na sua relação com as autoridades públicas e privadas”.
Em 1998, o Ato foi emendado para ligar as funções do Provedor à implementação da CDC ONU. Desde o nascimento da instituição pioneira norueguesa,
muitos outros países, na Europa, e em outros lugares, aceitaram a necessidade
de estabelecer instituições, estatutariamente independentes, para monitorizar, promover e proteger os direitos humanos das crianças. Desde a adoção
da CDC ONU, em 1989, o desenvolvimento destes gabinetes para crianças é
muito utilmente considerado como parte do processo de implementação da
CDC ONU, e lado a lado ou no contexto do desenvolvimento de instituições
nacionais independentes de direitos humanos.
O Artigo 4 da CDC ONU obriga os Estados parceiros a “realizar todas
as medidas apropriadas legislativas, administrativas e outras, para a implementação dos direitos reconhecidos na presente Convenção”. As Instituições
Nacionais Independentes de Direitos Humanos (NHRIs) são um importante
mecanismo para promover e assegurar a implementação da Convenção e o
Comité dos Direitos das Crianças considera que o estabelecimento desses
órgãos encaixa no compromisso assumido pelos Estados parceiros, após a
ratificação, de assegurarem a implementação da Convenção e de fomentarem
a realização universal dos direitos das crianças. A este respeito, o Comité saudou o estabelecimento dos NHRIs e dos provedores/comissários das crianças
e de órgãos similares independentes para promover e monitorizar a implementação da Convenção em alguns Estados parceiros.38
Alguns fizeram-no, criando uma instituição nova, separada, com uma
variedade de nomes: Comissários ou Comissões para as Crianças ou para
os Direitos das Crianças, Conselho nacional para os Direitos das Crianças,
Defensores das Crianças, Advogados das Crianças, Delegados dos Direitos
das Crianças. Outros desenvolveram um enfoque específico no seio das instituições nacionais ou gerais dos direitos humanos. Em alguns Estados, estas
instituições são nacionais ou federais; em outros, elas são regionais ou locais.
As instituições independentes para os direitos das crianças têm-se multiplicado em todas as regiões e atualmente existem em mais de 80 países.39
A Rede Europeia de Provedores de Justiça para os Direitos das Crianças
[European Network of Ombudspersons for Children] (daqui em diante:
ENOC) é uma associação não lucrativa e independente de organizações de
direitos das crianças. O seu mandato é facilitar a promoção e a proteção dos
direitos das crianças, tal como formulados na Convenção sobre os Direitos
38
Comentário geral n.º 2 sobre o papel de Instituições Nacionais de Direitos Humanos Independentes na Protecção e Promoção dos Direitos da Criança (2002).
39
Vuckovic Sahovic, N.; Doek, J.E.; Zermatten, J. (Eds.) (2012). The Rights of the Child in
International Law. Bern: Stämpfli Publishers.
74
Agnes Lux
das Crianças da ONU. A ENOC foi estabelecida numa reunião em Trondheim
(Noruega), em 1997, quando um grupo inicial de 10 instituições se encontrou
com a UNICEF. O gabinete da UNICEF para a Europa Ocidental, em Genebra,
acordou em fornecer serviços de Secretariado à ENOC durante os primeiros
10 anos, tendo, mais tarde, o Secretariado mudado para Estrasburgo. Todos
os anos a ENOC organiza uma reunião anual. Em 2012 abrangia já 40 instituições, em 31 países, no seio do Conselho da Europa, 20 dos quais países da UE.
A qualidade de membro está limitada às instituições dos 47 Estados Membros
do Conselho da Europa e elas devem estar em harmonia com os Princípios
de Paris. A ENOC adotou os Padrões para as Instituições Independentes
de Direitos das Crianças. Pretende estabelecer elos e partilhar informação e estratégias com instituições independentes de direitos das crianças –
provedores das crianças, comissários para as crianças, ou pontos focais dos
direitos das crianças em instituições nacionais de direitos das crianças ou nos
gabinetes de provedores gerais. Juntamente com a CRIN – Children’s Rights
Information Network – está a estabelecer uma rede global virtual.
5. Nivel Internacional do Direito à Reparação – CDC ONU
Há três procedimentos principais para apresentar queixas sobre violações das
prescrições dos tratados dos direitos humanos perante os órgãos dos tratados
dos direitos humanos da ONU:
•
•
•
comunicações individuais;
queixas Estado a Estado;
inquéritos.
Há igualmente procedimentos a seguir para queixas que ultrapassem o âmbito
do “sistema do corpo de tratados”, nomeadamente através dos Procedimentos
Especiais do Conselho dos Direitos Humanos e do Procedimento de Queixas
do Conselho dos Direitos Humanos. Existem nove tratados internacionais
centrais sobre direitos humanos. Cada um desses tratados estabelece um
“órgão de tratado” (Comité) de peritos para monitorizar a implementação
das prescrições do tratado pelos Estados subscritores.40 Os órgãos de tratado
(CCPR, CERD, CAT, CEDAW, CRPD, CED, CMW, CESCR e o CDC) podem,
40
Os nove órgãos de tratado que monitorizam a implementação dos tratados centrais internacionais sobre os direitos humanos: Comité dos Direitos do Homem (CCPR), Comité
dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (CESCR), Comité para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres
(CEDAW), Comité contra a Tortura (CAT), Subcomité para a Prevenção da Tortura (SPT),
Comité sobre os Trabalhadores Migrantes (CMW), Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiências (CRPD), Comité contra os Desaparecimentos Forçados (CED).
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
75
em certas circunstâncias, receber e analisar queixas individuais ou comunicações de individuais:
1. O Comité dos Direitos do Homem (CCPR) pode analisar comunicações
individuais, que aleguem violações dos direitos anunciados no Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos pelos Estados subscritores do Primeiro Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos:
2. O Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres
(CEDAW) pode analisar comunicações individuais que aleguem
violações à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres pelos Estados subscritores do
Protocolo Opcional à Convenção sobre a Eliminação da Discriminação
contra as Mulheres;
3. O Comité contra a Tortura (CAT) pode analisar queixas individuais
que aleguem violações dos direitos avançados na Convenção contra
a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes pelos Estados subscritores, que tenham feito a necessária declaração ao abrigo do artigo 22 da Convenção;
4. O Comité para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) pode
analisar petições individuais que aleguem violações da Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial pelos Estados subscritores, que tenham feito a necessária declaração ao abrigo do Artigo 14 da Convenção;
5. O Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiências (CRPD) pode analisar comunicações individuais que aleguem violações da Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências pelos Estados subscritores ao Protocolo Facultativo da Convenção;
6. O Comité sobre os Desaparecimentos Forçados (CED) pode analisar comunicações individuais que aleguem violações da Convenção
Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas do Desaparecimento
Forçado pelos Estados subscritores, que tenham feito a necessária
declaração ao abrigo do Artigo 31 da Convenção;
7. O Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (CESCR) pode
analisar comunicações individuais que aleguem violações do pacto
Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais pelos
Estados subscritores do Protocolo Facultativo do Pacto Internacional
dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais.
No caso de dois outros órgãos de tratado (o Comité sobre Trabalhadores
Migrantes (CMW), e o Comité dos Direitos da Criança (CDC), os mecanismos de queixa individuais ainda não entraram em vigor.
76
Agnes Lux
O Comité dos Direitos das Crianças (daqui em diante: Comité)41 é o órgão
de peritos independentes que monitoriza a implementação da CDC ONU
pelos seus Estados subscritores. Também monitoriza a implementação de
dois protocolos facultativos da Convenção, sobre o envolvimento de crianças em conflitos armados42 e sobre a venda de crianças, sobre a prostituição
infantil e sobre a pornografia infantil.43 No dia 19 de Dezembro de 2011, a
Assembleia Geral da ONU aprovou o Terceiro Protocolo Facultativo44 sobre
o Procedimento de Comunicações, que permitirá às crianças submeter queixas relativas a violações específicas dos seus direitos, ao abrigo da CDC ONU
e dos seus primeiros dois Protocolos Facultativos. O Protocolo foi colocado
à disposição para assinatura, em 2012, e entrou em vigor em Abril de 2014,
permitindo que as crianças de Estados que não o tenham ratificado pudessem
apresentar queixas sobre violações dos seus direitos diretamente ao Comité –
desde que não tivessem encontrado uma solução ao nível nacional.45
Todos os Estados subscritores são obrigados a submeter relatórios regulares ao Comité sobre a forma como os direitos estão a ser implementados. Os
Estados devem relatar inicialmente dois anos depois de terem aderido à CDC
ONU e, depois disso, todos os cinco anos. O Comité examina cada relatório e
dirige as suas preocupações e recomendações ao Estado subscritor, na forma
de “observações conclusivas”.
O Comité revê relatórios adicionais, que devem ser submetidos pelos
Estados que acederam aos dois Protocolos Facultativos da CDC ONU.
O Comité reúne-se em Genebra e, normalmente, tem três sessões por
ano, consistindo de um plenário de três semanas e de um grupo de trabalho,
prévio à sessão, de uma semana. Em 2010, o Comité analisou relatórios em
41
Nações Unidas, Direitos Humanos. Gabinete do Alto Comissário para os Direitos Humanos (2014). Comité dos Direitos da Criança. http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRC/
Pages/CRCIndex.aspx. Acedido em 20 de Março de 2014.
42
Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Participação de
Crianças em Conflitos Armados. Adotado e posto à disposição para assinatura, ratificação e
acesso pela resolução A/RES/54/263 da Assembleia Geral, no dia 25 de Maio de 2000, entrou
em vigor a 12 de Fevereiro de 2002. http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/
OPACCRC.aspx. Acedido em 20 de Março de 2014.
43
Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança Relativo à Venda de
Crianças, à Prostituição Infantil e à pornografia Infantil. Adotado e colocado á disposição
para assinatura, ratificação e acesso pela resolução A/RES/54/263 da Assembleia Geral, de
25 de Maio de 2000, entrou em vigor a 18 de Janeiro de 2002. http://www.ohchr.org/EN/
ProfessionalInterest/Pages/OPSCCRC.aspx. Acedido em 20 de Março de 2014.
44
Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança Relativo à Instituição de Um
Procedimento de Comunicação, ONU, 2011 – https://treaties.un.org/doc/source/signature/
2012/CTC_4-11d.pdf. Acedido em 20 de Março de 2014.
45
Conectar os Direitos da Criança (2014). As crianças podem agora procurar justiça através da ONU. http://www. childrightsconnect.org/index.php/connect-with-the-un-2/op3-crc/
press-release-op3-crc. Acedido em 20 de Março de 2014.
CAPÍTULO 2: Não discriminação, mecanismos de queixa e organismos de igualdade
77
duas câmaras paralelas de 9 membros cada, “como uma medida excecional e
temporária”, de modo a esvaziar a reserva de pedidos acumulados. O Comité
também publica a sua interpretação do conteúdo das prescrições sobre direitos humanos, conhecidas como comentários gerais sobre questões temáticas
e organiza os dias de discussão geral.
Questões para reflexão
•
•
•
Que instituições protegem os direitos das crianças, com especial cuidado ao seu
direito à não discriminação?
O atual sistema de proteção da crianças é suficientemente eficiente? Faça uma análise
SWOT!
Existe um provedor dos direitos das crianças no seu país ou outro NHRI no teu país?
Como é que ele trabalha?
Leituras adicionais
Haász, V. (2013). The Role of National Human Rights Institutions in the Implementation
of the UN Guiding Principles. Human Rights Review, Volume 14, Issue 3, p.p. 165–187.
Kucsko-Stadlmayer, G. (Ed.) (2008). European Ombudsman-Institutions: A comparative legal analysis regarding the multifaceted realisation of an idea. Wien, New York:
Springer.
Vuckovic Sahovic, N., Doek, J.E., Zermatten, J. (Eds.) (2012). The Rights of the Child in
International Law. Bern: Stämpfl i Publishers.
Williams, J., Invernizzi, A. (Eds.) (2011): The Human Rights of Children. From Visions to
Implementation. Surrey, UK Ashgate Publishing Group.
78
Dubravka Hrabar
CAPÍTULO 3:
DIRETRIZES DO COMITÉ DO MINISTROS DO
CONSELHO DA EUROPA SOBRE UMA JUSTIÇA
ADAPTADA À CRIANÇA (2010) –
ASPETO DA LEI FAMILIAR
Dubravka Hrabar
Dubravka Hrabar, Doutorada, Professora Catedrática, Diretora
do Departamento da Lei da Família, Faculdade de Direito, Universidade de Zagreb, Croácia, Fundadora e Coordenadora dos
Estudos de Mestrado Interdisciplinares dos Direitos das Crianças em Zagreb; agraciada com o prémio para a promoção dos
direitos das crianças. [email protected]
1. Introdução
Um dos princípios que é fundamental para a avaliação e aplicação dos direitos das crianças plasmados na Convenção dos Direitos das Crianças da ONU
(1989) é o princípio da proibição da discriminação, expresso no artigo 2.1
Ele prescreve:
1. Os Estados Partes respeitarão e assegurarão os direitos de cada criança,
enunciados na presente Convenção, no âmbito da sua jurisdição, sem
discriminação de qualquer tipo, independentemente da raça, da cor
da pele, do sexo, da língua, da religião, da opinião política ou outra,
da origem nacional, étnica ou social, da propriedade, da deficiência,
do nascimento ou de outro estatuto da criança ou dos seus pais ou
guardiões legais.
2. Os Estados subscritores tomarão todas as medidas apropriadas para
assegurar que a criança é protegida contra todas as formas de discriminação ou castigo, com base no estatuto, nas atividades, nas opiniões
expressas, ou nas crenças dos seus pais, dos seus responsáveis legais,
ou de membros da família.
1
Para além desta prescrição, no Preâmbulo da Convenção também encontramos prescrições promotoras da igualdade entre todas as crianças. Cf. A Convenção dos Direitos da Criança (adotada a 9 de Novembro de 1989, com entrada em vigor no dia 2 de Setembro de 1990),
1577 UNTS 3 (CDC).
CAPÍTULO 3: Diretrizes do comité do ministros do Conselho da Europa
79
A discriminação das crianças é possível com base em vários fundamentos
e é mais fácil reconhecer isso como uma forma de tratamento desigual das
crianças com base na diferença de raça, de cor da pele, de género, de língua,
ou de religião, do que outros tratamentos discriminatórios em algumas outras
situações. Assim sendo, a Convenção dos Direitos da Criança deixa em aberto
a possibilidade (de facto, a proibição) da discriminação de crianças devido a
algum “outro estatuto”.
Um tratamento desigual das crianças por parte dos adultos é possível a
dois níveis. O primeiro é a discriminação entre as próprias crianças, quando a
lei ou o procedimento (público ou privado) permite ou proíbe algo a algumas
crianças, mas não a outras, precisamente devido a diferentes fundamentos
de discriminação. O outro nível de discriminação das crianças coloca-se em
relação aos adultos, quando se encontram na mesma situação. Precisamente
os procedimentos judiciais, que frequentemente também envolvem as crianças, são um exemplo de como a criança pode ser desvalorizada ou discriminada, no exercício do seu direito a expressar a sua opinião, que é garantido
pela Convenção dos Direitos da Criança, relativamente ao direito dos adultos
nos procedimentos em tribunal.2
2. O Direito da Criança a Ser Ouvida
Relativamente à posição legal das crianças nos procedimentos em tribunal,
deve fazer-se notar que a Convenção sobre os Direitos das Crianças contém
várias prescrições que são fundamentais para uma compreensão de muitos
documentos posteriores relacionados com esta questão. Em primeiro lugar,
relaciona-se com o artigo 12 da Convenção, que afirma:
1. Os Estados Partes assegurarão à criança que é capaz de formar os seus
próprios pontos de vista o direito de exprimir esses pontos de vista,
livremente, em todos os assuntos que a afetam, sendo atribuído o
devido peso aos pontos de vista das crianças, de acordo com a idade e
a maturidade da criança.
2. Com esta finalidade, à criança deverá, em particular, ser dada a oportunidade de ser ouvida em quaisquer procedimentos judiciais e administrativos que a afetem, quer diretamente, quer através de um representante ou de um órgão apropriado, de uma maneira consistente com
as regras processuais da legislação nacional.
O primeiro parágrafo do artigo é expresso de forma abrangente e assinala
a força da subjetividade de uma criança em relação a todas as pessoas e
2
Como veremos mais tarde, a necessidade de proteger as crianças relaciona-se com os procedimentos no tribunal civil e criminal, mas também nos procedimentos administrativos.
80
Dubravka Hrabar
situações. Portanto, respeita a pessoa na criança, a auto-consciencialização e
a autonomia. A criança é respeitada na sua qualidade de sujeito, não de objeto
das ações (dos adultos). No segundo parágrafo, que está relacionado com os
procedimentos formais, a obrigação é prescrita aos Estados signatários para
agirem no sentido de permitir que a criança seja ouvida.
Aqui, duas circunstâncias devem ser realçadas – a primeira é que ouvir
uma criança representa uma possibilidade e não uma obrigação e a segunda é
a de que ser ouvida é uma forma de realização do direito de a criança expressar a sua opinião (de acordo com o parágrafo 1 do mesmo artigo). Existe uma
conexão lógica entre o direito da criança exprimir a sua opinião/ponto de
vista/atitude e o direito dos adultos (individuais ou instituições) de ouvirem
a criança. Ouvir uma criança (tal como o conceito alargado de expressar uma
opinião) é um direito da criança, mas tem um caráter relativo, uma vez que a
Convenção dos Direitos da Criança estabelece uma ligação entre este e a idade
e maturidade da criança. Isto é compreensível em si mesmo, uma vez que as
crianças, nos seus primeiros 18 anos, passam por várias fases de maturidade e
de compreensão do mundo à sua volta e das suas próprias necessidades.
A idade e a maturidade são muito individuais e, em resultado disso, a
Convenção não cria uma obrigação de ouvir uma criança, mas apenas prescreve essa possibilidade.A realização deste direito da criança depende de um
julgamento prévio acerca da sua capacidade para, tendo em conta a sua idade
e maturidade, usar o seu direito para formar e exprimir uma opinião. Embora
a possibilidade de ouvir uma criança em algumas outras situações também
inclua a opção não-verbal (p. ex., desenhos, no caso de crianças pequenas),
os procedimentos em tribunal são formais e, nesse sentido, a idade e a maturidade de uma criança devem afetar a decisão de lhe colocar perguntas ou
de ela querer, ou não, expressar a sua opinião. A base do problema da efetiva
participação das crianças em procedimentos judiciais está relacionada com as
suas limitações cognitivas e emocionais. Nos procedimentos dos tribunais de
família3, similares aos procedimentos criminais, “a imaturidade psicológica
pode afetar o desempenho dos jovens…, de formas que se estendem para
além dos elementos da compreensão e do raciocínio”4.
A opinião de uma criança pode ser identificada primariamente pela formulação de um ponto de vista, como um desejo, atitudes e pontos de vista
e a sua expressão. Ambos os processos dependem da idade e da maturidade da criança. Para as compreendermos é necessário, frequentemente, um
3
Como o divórcio, a anulação do casamento, a custódia de crianças, os contatos com o
outro progenitor, a pensão de alimentos, etc.
4
Thomas Grisso e outros, “Juveniles’ Competence to Stand Trial: A Comparison of Adolescents’ and Adults’ Capacities as Trial Defendants” [2003] Law and Human Behaviour 27
(2) 357, quoted under Accounting for Consideration of Legal Capacity of Children in Legal
Proceedings, coll. papers, ERA, Belfast, 2013, 3.
CAPÍTULO 3: Diretrizes do comité do ministros do Conselho da Europa
81
conhecimento especial e específico (através de uma prévia educação dos profissionais) e, depois, fazer uma avaliação. A Convenção afirma que às opiniões (isto é: pontos de vista) é dada significância considerando a idade e a
maturidade da criança.
3. O Significado das Diretrizes sobre uma Justiça Adaptada às Crianças
Encontramo-nos em tempos de mudança, em que a viragem na direção de
um respeito mais significativo pelas crianças se expandiu para além do círculo familiar da criança. A proteção das crianças e dos seus direitos está a
espalhar-se para outras áreas, o que se relaciona com a necessidade de alterações nos procedimentos das autoridades e do estatuto das crianças durante
os procedimentos. Das Diretrizes sobre a Justiça Adaptada às Crianças5,
de 2010, coloca-se a obrigação às legislações nacionais de ajustarem as suas
regras sobre os estatutos procedimentais das crianças aos novos requerimentos, não apenas no sentido do tratamento das mesmas, mas igualmente em
reconhecimento pelo seu novo estatuto procedimental. Como resultado,
foram adotados vários documentos que precederam as Diretrizes, mas que se
tornaram parte das políticas dirigidas às crianças pelo Conselho da Europa.
Nas Diretrizes adotadas pelo Conselho da Europa, é feita referência a muitos documentos de âmbito europeu e de âmbito global6, dos quais alguns têm
uma significação geral, e outros têm dedicado a maior parte do seu conteúdo
5
Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça Adaptada às
crianças, 17 de Novembro de 2010.
6
As Diretrizes referem-se a: A Convenção da ONU relativa ao Estatuto dos Refugiados
(adotado em 28 de Julho de 1951, entrou em vigor em 22 de Abril de 1954) 189 UNTS 137,
o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (adotado em 16 de Dezembro de 1966,
entrou em vigor em 23 de Março de 1976) 999 UNTS 171 (ICCPR), o Pacto Internacional dos
Direitos Económicos, Sociais e Culturais (adotado em 16 de Dezembro de 1966, entrou em
vigor em 3 de Janeiro de 1976) 993 UNTS 3 (ICESCR), a Convenção da ONU sobre os Direitos
da Criança (adotado em 20 de Novembro de 1989, entrou em vigor em 2 de Setembro de 1990)
1577 UNTS 3 (CRC), a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências
(adotado em 13 de Dezembro de 2006, entrou em vigor em 3 de Maio de 2008) 2515 UNTS 3,
a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (adotado em 4 de Novembro de 1950, entrou em vigor em 3 de Setembro de 1954) ETS 005, como
emendado pelos Protocolos N.os 11 e 14 e suplementado pelos Protocolos N.os 1, 4, 6, 7, 12
e 13), a Convenção Europeia sobe o Exercício dos Direitos das Crianças (adotado em 25 de
Janeiro de 1996, entrou em vigor em 1 de Julho de 2000) ETS n.º 160, a Carta Social Europeia
(revista) (adotada em 3 de Maio de 1996, entrou em vigor em 1 de Julho de 1999) ETS n.º 163,
a Convenção do Conselho da Europa sobre o Contato Respeitante às Crianças (adotado em
15 de Maio de 2003, entrou em vigor em 1 de Setembro de 2005) ETS n.º 192, a Convenção
do Conselho da Europa para a Proteção de Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos
Sexuais (adotado em 25 de Outubro de 2007, entrou em vigor em 1 de Julho de 2010) CETS
n.º 201 e a Convenção Europeia em Matéria de Adoção de Crianças (revista) (adotada em 27
de Novembro de 2008, entrou em vigor em 1 de Setembro de 2011) CETS n.º 202.
82
Dubravka Hrabar
às crianças. As Diretrizes, embora sejam designadas de soft law ou secundária, e, portanto, um ato legal não vinculativo, ainda representam uma razão
válida para alterar as regras nos procedimentos civis (dentro e fora do tribunal), relativamente à posição procedural das crianças.
Um sistema de justiça adaptado às crianças, numa definição preliminar,
indicaria um sistema de justiça no qual todos os direitos relevantes da criança
são aplicados até ao mais elevado nível possível, tendo em consideração o
nível da maturidade da criança e a sua capacidade para compreender as circunstâncias do caso7. Ao analisar as diretrizes, consegue-se uma imagem
global do estatuto especial das crianças nos procedimentos no tribunal e da
necessidade de um tratamento especial das mesmas, quando se encontram
num tribunal, de uma forma ou de outra. Isto é, no preâmbulo, é realçado
que o direito de qualquer pessoa a ter acesso à justiça e a um julgamento
justo – em todas as suas componentes (incluindo, em particular, o direito a
ser informada, o direito a ser ouvida, o direito a uma defesa legal, e o direito
a ser representada) – é necessário numa sociedade democrática e aplica-se
igualmente às crianças, tendo, no entanto, em consideração, a sua capacidade
para formar os seus próprios pontos de vista.
As Diretrizes são aplicadas em procedimentos judiciais e alternativos (par.
I/1), que é interessante para todas as legislações (da família), que tenham dividido o assunto jurisdicional por situações de lei familiar (em jurisdição judicial e administrativa). Procedimentos alternativos são procedimentos destinados a uma resolução pacífica da disputa.
4. As crianças nos procedimentos
A aplicação das Diretrizes diz respeito a todas as formas sob as quais as crianças poderão, por quaisquer ordens de razões e seja em que capacidade for,
entrar em contato com todos os órgãos e serviços competentes, na implementação da lei criminal, civil ou administrativa (par. I/2.). Aplicado a casos
familiares, isto significa que uma criança poderia ser o queixoso ou o réu ou
um interveniente nos procedimentos, mas o que é mais comum, um sujeito
secundário, quando existe um conflito entre os pais e os filhos (p. ex., em procedimentos de divórcio dos progenitores). A exigência de que uma criança,
durante os procedimentos no tribunal, seja reconhecida (enquanto possibilidade, mas não obrigação, pelas razões expressas anteriormente), abre as portas à subjetividade procedimental.
Mais ainda, o respeito pelo direito da criança à informação, à representação, à participação e à proteção, ao longo dos procedimentos, deve seguir-se,
7
Ankie Vandekerckhove and Killian O’Brien, “Child-Friendly Justice: turning law into reality” [2013] ERA Forum 14, 4, Springer Berlin Heidelberg.
CAPÍTULO 3: Diretrizes do comité do ministros do Conselho da Europa
83
sob todas as suas formas, tendo em consideração a maturidade da criança
e a sua capacidade para compreender as circunstâncias do caso. Porém, ao
mesmo tempo, esta posição da criança não deve prejudicar os direitos das
outras partes envolvidas (par. I/3.). Estes direitos da criança refletem, por um
lado, a sua vulnerabilidade e falta de conhecimento e a sua dependência dos
adultos, por outro. Embora a colocação de uma criança no centro dos procedimentos seja importante, também não deve causar danos aos outros sujeitos
e respeitar a posição da criança não deve perturbar o equilíbrio da igualdade
de todos perante o tribunal.
O conceito de “justiça adaptada às crianças” é definido no par. II./c e é
relativo a um sistema de justiça que garante o respeito e a efetiva implementação dos direitos de todas as crianças ao mais elevado nível possível, tendo em
mente os princípios listados abaixo e concedendo a consideração devida ao
nível de maturidade e compreensão da criança e das circunstâncias do caso.
É, em particular, uma justiça que é acessível, apropriada à idade (da criança),
rápida, diligente, adaptada e focada nas necessidades e nos direitos da criança,
incluindo os seus direitos a um processo justo, a participar nos procedimentos e a compreendê-los, a respeitar a vida da família e à sua integridade e
dignidade.8
Os princípios fundamentais são: a participação, o superior interesse da
criança, a dignidade, a proteção da discriminação e a regra da lei (de acordo
com o par. III). Nenhum destes princípios deve ter qualquer prioridade, mas
eles devem estar todos igualmente representados nos procedimentos em
tribunal. As Diretrizes advogam a plena participação das crianças nos procedimentos, tendo em conta a sua maturidade e quaisquer dificuldades de
comunicação de que elas possam sofrer. As crianças devem ser consideradas
e tratadas enquanto plenas detentoras de direitos e devem estar habilitadas
a exercer todos os seus direitos. Por esse motivo, a imaturidade e a dependência de uma criança não deve afetar, de nenhuma maneira, a sua posição
procedimental.
O superior interesse da criança tornou-se o padrão em todas as Convenções
adotadas após a Convenção dos Direitos da Criança e um princípio de procedimento e da mesma forma, nas Diretrizes, aos Estados é ordenado que
garantam a aplicação deste princípio, através do qual a avaliação da proteção
do superior interesse da criança depende de vários fatores:
8
A “justiça adaptada às crianças” refere-se a sistemas de justiça que garantem o respeito e
a efetiva implementação dos direitos de todas as crianças, ao máximo nível atingível, ao mais
elevado nível possível, tendo em mente os princípios listados abaixo e concedendo a consideração
devida ao nível de maturidade e compreensão da criança e das circunstâncias do caso. É, em particular, uma justiça que é acessível, apropriada à idade (da criança), rápida, diligente, adaptada
e focada nas necessidades e nos direitos da criança, respeitando os direitos da criança, incluindo
os seus direitos a um processo justo, a participar nos procedimentos e a compreendê-los, a respeitar a vida da família e à sua integridade e dignidade.”
84
Dubravka Hrabar
•
•
•
aos seus pontos de vista e opiniões deve ser dado o devido valor:
todos os outros direitos das crianças, como o direito à dignidade, à
liberdade e à igualdade de tratamento, devem ser respeitados, em
qualquer altura;
deve ser adotada uma abordagem compreensiva, por todas as autoridades relevantes, de modo a terem em devida conta todos os interesses
em jogo, incluindo o bem-estar físico da criança e os seus interesses
legais, sociais e económicos.
5. Uma Abordagem Multidisciplinar e Interdisciplinar
Do ponto de vista dos procedimentos judiciais (civis) da família, as exigências
(par. III/B/4) dirigidas aos Estados-Membros para estabelecerem abordagens
multidisciplinares, com o objetivo de avaliarem os melhores interesses das
crianças em procedimentos em que estejam envolvidas, parece ser muito interessante. Isto significa que as Diretrizes reconhecem a necessidade de que a
consideração do estatuto das crianças depende de várias áreas disciplinares
(psicólogos, psiquiatras, etc.), e de que o correto tratamento de uma criança
assume a natureza complementar destas profissões.
As garantias procedimentais, no seio da regra da lei (par. E/2), os princípios
da legalidade e da proporcionalidade, a presunção de inocência9, o direito a
um julgamento justo, o direito a aconselhamento jurídico, o direito de aceder
aos tribunais e o direito de apelar, não devem ser diferentes dos usufruídos
pelos adultos e não devem ser minimizados ou negados sob o pretexto dos
superiores interesses da criança, independentemente de o caso se tratar de
procedimentos plenamente judiciais e não judiciais10 e administrativos.
As Diretrizes, além disso, fornecem os, assim chamados, elementos gerais
da justiça adaptada às crianças (par. IV), que incluem importantes diretrizes
para a sua proteção em procedimentos civis (IV/A/14), sobre a necessidade
de uma formação interdisciplinar sobre os direitos e necessidades das mesmas
de diferentes grupos etários, dirigidas a todos os profissionais que trabalham
com elas. Para além do mais, elas indicam a necessidade de formação dos
profissionais que estão em contato direto com as crianças (especialmente com
as crianças que se encontram numa situação particular de vulnerabilidade),
no sentido de formação no campo da comunicação (IV. A/15). Portanto, nesta
prescrição, é reconhecida a necessidade de os profissionais de diferentes perfis deverem trabalhar juntos, para obterem conhecimentos novos e específicos sobre as crianças e o Estado deve fornecer, a esses profissionais, os meios
para obterem esses conhecimentos.
9
10
Importante nos procedimentos criminais.
Isto refere-se, por exemplo, aos procedimentos de arbitragem ou mediação.
CAPÍTULO 3: Diretrizes do comité do ministros do Conselho da Europa
85
Esta abordagem multidisciplinar às crianças é muito importante. As diretrizes exigem uma ampla colaboração entre diferentes profissionais, de modo
a obter-se uma compreensão global da criança, bem como uma avaliação da
sua situação legal, psicológica, social, emocional, física e cognitiva (IV.A/16).
As várias formas de os profissionais se relacionarem com outros, mencionados pelas designações: advogados, psicólogos, médicos, polícias, agentes de
emigração, assistentes sociais e mediadores e com todos estes enquanto parte
da sua cooperação estreita, devem fornecer o necessário apoio àqueles que
tomam decisões (sobretudo, os juízes), para emitirem decisões formais relativas a uma criança. (A/17).
6. Assistência às Crianças por parte dos Serviços Sociais
Dada a dependência da criança e, em regra, a sua imaturidade e falta de compreensão dos procedimentos dos tribunais, deve ser-lhe fornecido apoio, por
parte de várias organizações e indivíduos. Estes podem ser serviços sociais,
médicos forenses, provedores das crianças, ONGs, linhas SOS criança e advogados. Os serviços sociais devem, como todos os outros, ter profissionais
especialmente equipados, que deverão pôr em prática todas as exigências de
uma justiça adaptada às crianças. O que significa que eles devem estar disponíveis, tanto em termos de proximidade (num sentido geográfico), durante
os seus horários de trabalho e os seus serviços devem ser gratuitos (especialmente para crianças pobres e para aquelas que se encontram numa posição
desfavorecida). Os serviços sociais especializados relacionam-se com uma
abordagem social, legal e psicológica, implicando uma educação contínua dos
profissionais, da sua experiência e supervisão e o seu tratamento não deve
ser estigmatizante. A linguagem que usam, quando se dirigem às crianças
deve ser amigável, devendo ser capazes de comunicar usando a linguagem das
mesmas, com objetivos claros, respeitando-as e respeitando a sua privacidade/
confidencialidade, mostrando-se dignos de confiança. Os objetivos devem
ser claros e eles devem ajudar a criança a falar por si própria (e não falar em
seu nome). Existe uma grande necessidade de uma abordagem multidisciplinar, o que significa que os serviços legais e sociais trabalhem em conjunto,
tendo conhecimentos psicológicos e tendo em mente alternativas possíveis
aos procedimentos judiciais. A função dos serviços sociais é a de promover
novas metodologias de litigação, para evitar que a criança seja remetida de
um serviço para outro, a de tornar claro qual é o seu papel e a sua função, mas
igualmente de ser capaz de procurar ajuda especializada, sempre que necessário. A abordagem a cada criança deve ser individualizada, protegendo-o/a, e
tendo em atenção as necessidades de cada uma em particular (especialmente,
se a criança é pobre ou vulnerável). Os serviços sociais devem ser capazes de
86
Dubravka Hrabar
assegurar intervenção imediata de emergência, se necessário, e reportar casos
de perigo. Padrões de qualidade, uma monitorização e uma avaliação devem,
é claro, ser estabelecidos incluindo mecanismos de queixa, recomendações e
trabalho em rede.11
7. Representação da Crianças e o Papel dos Advogados
As Diretrizes apontam para a necessidade de respeitar o direito da criança
ao seu próprio aconselhamento e representação legais, em seu próprio nome,
nos procedimentos em que haja, ou possa existir, um conflito de interesses
entre a criança e os seus progenitores ou outras partes envolvidas (IV D/37),
devendo a assistência legal ser gratuita, ou prestada em condições mais favoráveis do que no caso dos adultos (IV. D/38).
Relativamente à representação das crianças nos procedimentos em tribunal (civil e de família), os documentos mais relevantes são a Convenção
Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças12 (1996), que analisa
em detalhe os direitos procedimentais das crianças. Para além de se referirem
a isto, em algumas das suas prescrições, as Diretrizes desenvolvem alguns dos
detalhes. Por exemplo, no par. IV/D/39–42, no seio da estrutura do aconselhamento legal e da representação das crianças nos procedimentos, as Diretrizes
requerem que os advogados que representam as crianças possuam formação e tenham conhecimentos no campo dos direitos das crianças e questões
relacionadas, que sejam capazes de comunicar com as mesmas ao nível de
compreensão destas. Simultaneamente, as diretrizes consideram as crianças
clientes de pleno direito, com os seus próprios direitos e os advogados devem
fornecer-lhes todas as informações e explicações necessárias relativas às possíveis consequências dos pontos de vista/opiniões da criança representando
a sua opinião. O tribunal tem, no entanto, em casos de conflito de interesses
entre os progenitores e as crianças, a autoridade de nomear, ou um responsável ad litem ou outro representante independente, para representar os pontos
de vista e os interesses da criança. Portanto, o papel do representante é o de
ser o primeiro elo entre o tribunal/sistema judicial e a criança.
O papel do representante, quando este é um advogado, ou quando requer
o seu envolvimento, é determinado pela sua disponibilidade, pela sua capacidade de ouvir a criança, por haver advogados em número suficiente, por
trabalhar gratuitamente, oferecendo um serviço que inclui aconselhamento,
apoio à criança na expressão das suas opiniões, mas não tomando decisões
11
cf. Benoit Van Keirsbilck, “Child’s friendly justice guaranteeing children’s rights within the
EU legal framework“, coll. papers, ERA, Belfast, 2013.
12
A Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças (adotada em 25 de
Janeiro de 1996, entrou em vigor a 1 de Julho de 2000), ETS n.º 160.
CAPÍTULO 3: Diretrizes do comité do ministros do Conselho da Europa
87
em seu lugar, pela proteção da privacidade da mesma (mesmo na sua relação
com os progenitores), estando presente em todos os procedimentos, atuando
prontamente, assegurando a monitorização da situação, mesmo após a decisão do tribunal. A assistência legal inclui, é claro, o aconselhamento legal, a
assistência e representação de todas as pessoas, em todos os tipos de procedimentos e em todas as etapas dos procedimentos.
Podem existir modelos diferentes para o fornecimento de assistência legal,
como os defensores públicos, os advogados privados, os advogados contratados, os esquemas pro bono, as associações de advogados e os profissionais
para-legais.13 A assistência legal deve ser entendida como um dever muito
importante e como uma responsabilidade do Estado, nos casos em que
mulheres e crianças estejam envolvidas.
8. O Papel do Tribunal
Em muitos sistemas legais, esta importante extensão da autoridade do tribunal é sobretudo expressa no exercício do direito da criança a ser ouvida e a
exprimir os seus pontos de vista. A obrigação especial estabelecida ao tribunal é a de respeitar o direito da criança de ser ouvida em todos os assuntos/
procedimentos que a/o afetam e estar adaptado ao nível de compreensão e de
capacidade de comunicar da criança. As Diretrizes deixam de fora a decisão
sobre como a criança deve ser ouvida, embora realce que este é um direito
e não uma obrigação da mesma. Deve ser atribuída uma relevância devida
aos pontos de vista e opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade, e o tribunal não deve recusar ouvi-la, se esse é o desejo dela/dele.
Naturalmente, o tribunal deve explicar às crianças que o seu direito a serem
ouvidas e os seus pontos de vista, apesar de serem tomados em consideração,
podem não determinar, necessariamente, a decisão final. Podemos interpretar o papel do tribunal de uma maneira dual: por um lado, ele é o símbolo de
justiça e imparcialidade e por outro ele aplica a justiça. O seu papel é muito
exigente e em relação às crianças enquanto participantes em procedimentos
judiciais, é ainda mais sensível.
O princípio de urgência é também referido, em particular, nas Diretrizes
(IC/D/3/50–53), porque serve o superior interesse das crianças. É certo que,
precisamente nos procedimentos do tribunal de menores (p. ex., sobre parentalidade, custódia parental, rapto por um dos progenitores), que a urgência
dos procedimentos exige uma “excecional diligência” da parte do tribunal,
para evitar efeitos indesejáveis nas relações familiares. Um capítulo separado
das Diretrizes é dedicado à organização dos procedimentos, a um ambiente e
linguagem adaptados à criança (IV/D/5/54–63). Destas exigências, referimos,
13
ibid.
88
Dubravka Hrabar
em particular, a necessidade de as crianças estarem familiarizadas com a
organização do tribunal e dos procedimentos, o uso de linguagem apropriada
à sua idade e nível de compreensão, a necessidade de interação com elas/eles,
para mostrar sensibilidade e compaixão14, devendo-lhes ser permitido estar
acompanhados/as pelos seus progenitores ou, quando apropriado, por um
adulto por ela/ele escolhido, os métodos de entrevista, como a videoconferência ou a gravação em áudio ou as audições prévias na câmara do tribunal,
devem ser usados e considerados como evidências admissíveis. Assim sendo,
todos estes detalhes são a expressão da grande desproporção entre a criança e
o tribunal, que é visualmente parecida com a imagem do David e do Golias.
Portanto, apoiar uma criança assume que esta está familiarizada com o sistema e trazê-lo até à criança tão próximo quanto possível do seu nível de compreensão. É de notar que estas exigências vão desde o ajustamento psicológico
da criança (linguagem, comunicação, empatia) às instruções legais (o valor
do testemunho da criança).
No capítulo sobre o período de tempo após os procedimentos judiciais,15
as Diretrizes exigem que os representantes legais (o advogado da criança,
o guardião ad litem ou o guardião) tenham uma relação ativa e adaptada à
criança na comunicação e na explicação da decisão ou sentença tomada, e
que lhe forneçam a informação necessária sobre possíveis medidas que possam ser tomadas, como um apelo ou mecanismos de queixa independentes.
Acreditamos que é particularmente importante realçar aquilo que é expressamente afirmado, que a implementação das sentenças pela força devia ser
uma medida de último recurso em casos de famílias em que estejam envolvidas crianças (IV/E/78). Após julgamentos com procedimentos extremamente
conflituosos, devem ser fornecidos orientação e apoio, idealmente gratuitos,
às crianças e suas famílias, por serviços especializados (IV/E/79). O comentário sobre estas exigências serve primariamente para fazer notar a sua aplicabilidade a crianças emocionalmente mais maduras e a todas aquelas interessadas no lado legal e judicial do problema, tanto durante os procedimentos
no tribunal, como após estes. Mais ainda, é importante que as Diretrizes reconheçam a nocividade da implementação forçada das sentenças dos tribunais,
uma vez que qualquer aplicação, na criança, é ao mesmo tempo um castigo
para ela e a criação de novos problemas na comunicação e no exercício de
direitos individuais, tanto para os progenitores, como para o/a filho/a.
14
15
As Diretrizes usam a palavra inglesa “sensitivity”, e o texto francês usa o termo “sensibilité”.
Os, assim designados, procedimentos pós-judiciais amigos das crianças.
CAPÍTULO 3: Diretrizes do comité do ministros do Conselho da Europa
89
9. Atividades futuras
Enquanto parceiro na promoção de outras ações adaptadas às crianças (par.
V), os Estados encorajam a promoção da investigação em todos os aspetos de
uma justiça adaptada às crianças, trocam práticas e promovem a cooperação
no campo da justiça internacional adaptada à criança, promovem a publicação de instrumentos legais relevantes, criam gabinetes de informação sobre
os direitos das crianças (possivelmente ligados a associações de advogados, a
serviços de segurança social, a provedores (das crianças), a Organizações Não
Governamentais (ONGs) e a outros órgãos ou instituições, como os provedores das crianças e, o que nos parece ser particularmente importante, estabelecem sistemas de juízes e advogados especializados em crianças e ainda
desenvolvem tribunais em que tanto medidas legais como sociais podem ser
tomadas a favor das crianças. Tudo isto, simultaneamente com tudo o resto já
referido16, é muito importante para uma correta abordagem às crianças nos
procedimentos em tribunal.
O sistema de proteção das crianças nos procedimentos em tribunal deve
ser uma resposta a um necessário equilíbrio entre a sua sobre-proteção e a
inexistência de proteção. Uma perceção sobre a situação mais comum nos
Estados membros da União Europeia permite-nos concluir que, nos dias de
hoje, uma exigência extremamente importante das Diretrizes é (V/l.) – que
os Estados assegurem que todos os profissionais implicados, que trabalham
em contato com as crianças, nos sistemas judiciais, recebam um apoio e uma
formação adequados, assim como orientação prática, de modo a garantirem
e implementarem, adequadamente, os direitos das crianças, em particular
quando avaliam quais são os superiores interesses das crianças em todos os
tipos de procedimentos que as envolvam ou afetem. Independentemente do
facto de serem crianças, elas encontram-se frequentemente envolvidas em
procedimentos de tribunais, direta ou indiretamente e o acesso ao tribunal
deve ser considerado um direito fundamental. Independentemente da ideia
básica de que seria bom que as crianças vivessem num ambiente em que não
tivessem nenhum contato com o sistema de justiça, o que quer dizer, que
não tivessem quaisquer problemas, o facto é que existem várias situações em
que as crianças entram em contato com ele (o divórcio dos seus progenitores,
procedimentos criminais, quer na qualidade de testemunhas, de vítimas, ou
de perpetradores, de requerentes de asilo, etc.).
16
No que respeita a este assunto, é menos importante, por exemplo, que as crianças estejam
familiarizadas com a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais (cf. Nota 6), a inclusão dos direitos das crianças no currículo escolar, familiarizar os progenitores com a importância dos direitos das crianças, etc.
90
Dubravka Hrabar
10. Conclusão
À laia de conclusão, podemos realçar o seguinte, relativamente às Diretrizes:
•
•
•
o seu objetivo é fazer com que os Estados-Membros alterem os seus
sistemas legais, de modo a protegerem as necessidades especiais das
crianças, implementando princípios internacionalmente acordados17;
as Diretrizes fazem parte da estratégia do Conselho da Europa sobre
os Direitos das Crianças18 e dos Estados espera-se que atuem, efetivamente, nessa direção;
tudo isto parte do princípio de que os Estados devem, ativamente,
abordar a aplicação das diretrizes ao nível profissional e financeiro,
de maneira a que os sistemas judiciais nacionais sejam transformados,
para fornecer às crianças uma posição mais favorável nos procedimentos em tribunal.
As Diretrizes, se adotadas e implementadas em todos os países europeus,
isto é nos estados membros do Conselho da Europa, poderiam eliminar um
tipo especial de discriminação das crianças, respeitando o direito da criança
expressar os seus pontos de vista livremente e de acordo com a sua idade e
maturidade.
Em jeito de conclusão, a aplicação das Diretrizes apenas será apropriada
se todos os Estados se decidirem a exercê-las e garantias para o seu exercício,
apoio concreto, avaliação, troca de experiências e boas práticas é algo esperado da parte de todos.
Questões para reflexão
•
•
•
•
•
•
17
A que se refere o princípio da proibição da discriminação das crianças?
Qual é o documento global fundamental dedicado à proteção das crianças?
O que sabe acerca do direito de uma criança a ser ouvida?
Que órgão adotou as Diretrizes sobre uma justiça adaptada às crianças?
As Diretrizes são vinculativas para os Estados membros do Conselho da Europa ou
da União Europeia?
Em que procedimentos em tribunal se aplicam as Diretrizes?
“... os Estados-Membros são encorajados a adaptar os seus sistemas legais às necessidades específicas das crianças, preenchendo a lacuna entre os princípios internacionalmente
acordados e a realidade” <http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/childjustice/Guidelines_
en.asp>. Acedido em 7 de Setembro de 2012.
18
“Estas diretrizes formam uma parte integral da estratégia do Conselho da Europa sobre os
direitos das crianças e do seu programa “Construir uma Europa para e com as crianças”. Uma
série de atividades de promoção, de cooperação e de monitorização nos Estados-Membros,
com vista a assegurar a efetiva implementação das diretrizes para o benefício de todas as
crianças.”; ibid.
CAPÍTULO 3: Diretrizes do comité do ministros do Conselho da Europa
•
•
•
•
•
•
91
Onde se pode verificar a abordagem multidisciplinar e interdisciplinar às crianças?
Qual é o papel do tribunal e qual o do representante das crianças nos procedimentos
em tribunal?
Que serviços são capazes de ajudar as crianças durante os procedimentos?
Em que princípios se baseiam as Diretrizes?
Ouviu falar de algum caso (no seu país ou em outro sítio) de violação do direito da
criança a ser ouvida?
Que tipo de disputas familiares podem afetar o direito da criança a ser ouvida?
Leituras adicionais
“Compilation of texts related to child-friendly justice” Directorate general of human rights
and legal affairs [2009] Council of Europe http://www.coe.int/t/dghl/standardsetting/
childjustice/childfriendly_EN.pdf.
“Complementarities and synergies between juvenile justice and social services sector,
The proceedings of the ChildONEurope seminar on juvenile justice” [2012] Istituto
degliInnocenti http://www.childoneurope.org/issues/publications/coe%206_web.pdf.
Muncie, J., Goldson, B. “Towards a global ‘child friendly’ juvenile justice?” [2012] 40 (1)
International Journal of Law, Crime and Justice 47–64.
Gudbrandsson, B. “Towards a child-friendly justice and support for child victims of
sexual abuse”, Protecting Children from Sexual Violence: A Comprehensive Approach
[2010] <http://www.coe.int/t/dg3/children/1in5/Source/PublicationSexualViolence/
Gudbrandsson.pdf>.
O’Donnel, R. “The role of the EU legal and policy framework in strengthening child
friendly justice” [2013] 14 4 ERA Forum Springer Berlin Heidelberg, 507–521.
92
Irena Majstorović
CAPÍTULO 4:
PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS
NA MEDIAÇÃO FAMILIAR:
UM EXEMPLO DE NOVOS DESAFIOS PARA
A NÃO DISCRIMINAÇÃO
Irena Majstorović
Irena Majstorović, Doutorada, Professora Associada, Departamento de Direito da Família, Faculdade de Direito, Universidade
de Zagreb, Diretora Delegada do Mestrado Interdisciplinar sobre
Estudos dos Direitos das Crianças em Zagreb.
[email protected]
1. Observações iniciais
A proteção das crianças da discriminação é um ponto comum no discurso
contemporâneo científico e político. A ideia desenvolveu-se lentamente,
sobretudo a partir da Segunda Grande Guerra, mas foi fortemente apoiada
pela comunidade internacional e tem sido quase universalmente aceite. Por
isso, as sociedades modernas, pelo menos ao nível das intenções e declarações, estão empenhadas na proteção das crianças. Não obstante, também
podem ser identificados algumas limitações e obstáculos. O propósito desta
contribuição é a de examinar a forma como o princípio da não discriminação funciona, não apenas nas relações verticais entre o Estado e as famílias,
mas igualmente nas relações horizontais, nomeadamente as que se tecem no
seio da família, especialmente em circunstâncias em que existe um conflito de
interesses entre membros da família.
Tentaremos provar que se conseguiu um enorme desenvolvimento no
campo da proteção das crianças da discriminação, mas que ainda resta muito
por fazer. Tentaremos, em particular, verificar esta hipótese no campo da
mediação familiar, já que a arena legal e social está a ganhar uma importância cada vez maior. Nomeadamente, são exatamente estas questões familiares sensíveis que realçam a importância de as crianças serem protegidas. As
questões em aberto são numerosas e incluem, entre outras, o facto de certos
sistemas ignorarem completamente o papel das crianças nos processos de
mediação, o que se apresenta como uma forma de discriminação em função
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
93
da idade. Para além do mais, deve afirmar-se que nem todos os processos
de mediação envolvendo e incluindo crianças estão adaptados às crianças.
Em todo o caso, embora declaremos que as crianças não devam ser, de todo,
discriminadas, em particular nas questões familiares, a discriminação contra as crianças existe e é um fato. A discriminação é consequência, não simplesmente de particularidades da família e da vida familiar, em geral, como
também de um insuficiente nível de consciencialização de que as crianças são
sujeitos jurídicos, cujo direito de expressarem os seus pontos de vista e de participarem em processos relevantes para o todo familiar tem de ser garantido e
respeitado, na teoria e na prática.
Nomeadamente, a família tem sido sempre considerada o ambiente mais
importante e ideal para criar uma criança. No sentido legal, a sua importância tem sido ainda mais realçada pela noção de que é um grupo unitário natural e fundamental da sociedade, dotado de proteção pela sociedade
e pelo Estado.1 A família inclui também a noção de intimidade, de um círculo restrito de familiares, ligados quer pelo sangue, quer pelo casamento,
cujas relações são privadas e especiais. É seu o direito a manter os direitos da
família para si mesmos, na condição de proporcionar uma vida harmoniosa e
satisfatória para todos, especialmente aos membros mais vulneráveis. Assim
sendo, tendo em conta o princípio da não intervenção em assuntos da família, a menos que a situação o exija, as sociedades devem ser muito cautelosas
sobre quando e como devem intervir.
Para o propósito desta contribuição, tentaremos avaliar a adequação de
exigências que o Estado está a colocar aos membros da família relativamente
à mediação familiar. No que diz respeito a isto, tentaremos descrever os processos de mediação familiar, em particular aqueles relacionados com os processos de separação e divórcio, para realçar as questões da participação das
crianças na mediação. Designadamente, a nossa hipótese é a de que as crianças não devem ser discriminadas nestes processos, com base na sua idade e
imaturidade.
Pelo contrário, a participação das crianças deve ser avaliada de acordo com
a sua idade e maturidade. Deve ser-lhes dada a oportunidade de emitirem a
sua opinião. Não obstante, todas as nossas atividades relacionadas com crianças têm de estar em sintonia com o próprio conceito do superior interesse da
1
cf. Artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (adotada em10 de Dezembro de 1948), Resolução 217 A (III) <http://www.un.org/en/documents/udhr>, artigo 23 do
Pacto Internacional sobre os direitos civis e políticos (adotado em 16 de Dezembro de 1966,
entrou em vigor em 23 de Março 1976) 999 UNTS 171 (ICCPR), <https://treaties.un.org/doc/
Treaties/1976/03/19760323%2006-17%20AM/Ch_IV_04.pdf> e o Preâmbulo da Convenção
dos Direitos da Criança (adotada em 20 de Novembro de 1989, entrou em vigo em 2 de Setembro
de 1990) 1577 UNTS 3 (CRC) <https://treaties.un.org/doc/Treaties/1990/09/19900902%200314%20AM/Ch_IV_11p.pdf>. Todos os sites referidos no texto foram acedidos em 2 de Fevereiro de 2014.
94
Irena Majstorović
criança. A nossa preocupação é a de que, em certas situações, os Estados, isto
é, os sistemas legais, estão inclinados para permitir ou para defender uma
maior participação das crianças em processos de mediação, em que lhes são
dados mais direitos e, em consequência, mais responsabilidades, do que as
crianças teriam desejado.
Percorremos um longo caminho desde os tempos em que os direitos das
crianças não eram reconhecidos na teoria e na prática, quando as crianças
não podiam emitir opiniões, até tempos recentes em que as crianças quase são
forçadas a fazer ouvir a sua opinião. Embora este desenvolvimento seja globalmente positivo, novas questões surgem no horizonte. O pêndulo inclina-se
para o reconhecimento da opinião da criança e a ação está, consequentemente,
a mover-se numa outra direção, mas permanece a questão – até que ponto
devemos deixar que se mova nessa direção? Onde encontrar o equilíbrio?
2. Disputas familiares enquanto uma categoria particular da vida e
de questões legais
As relações familiares são sempre consideradas especiais; elas referem-se a
nuances íntimas e privadas da vida, que são importantes para todos. A mesma
noção se aplica aos litígios familiares, que têm também uma importância
especial. Existem pelo menos três caraterísticas específicas dos litígios familiares.2 Em primeiro lugar, os litígios familiares envolvem pessoas que, por
definição, são levadas a manter relações interdependentes que se vão prolongar no tempo. Em segundo lugar, os litígios familiares surgem num contexto emocional penoso que os exacerba. E, em terceiro lugar, a separação e o
divórcio têm um impacto sobre todos os membros da família, especialmente
sobre as crianças.3
A história contemporânea testemunha o desmoronamento da família,
em geral. A situação familiar e a sua relevância são diferentes, em Estados
diferentes, como consequência de desenvolvimentos históricos diferentes,
2
Parágrafo 7 do Preâmbulo à Recomendação N.º R (98) 1 do Comité de Ministros dos
Estados-Membros do Conselho da Europa sobre mediação familiar <https://wcd.coe.int/com.
instranet.InstraServlet?command=com.instranet.CmdBlobGet&InstranetImage=1153972&
SecMode=1&DocId=450792&Usage=2>.
3
Embora oriundas de outro continente, as experiências australianas avisam-nos de que,
de acordo com um estudo publicado em 2000, as crianças dependentes de pais divorciados
tinham o dobro das probabilidades (25% versus 12%) de desenvolverem dificuldades de saúde
mental na infância, relativamente às famílias de progenitores que nunca se tinham separado.
Citado de acordo com: Jennifer McIntosh, “Child inclusion as a principle and as evidencebased practice: Applications to family law services and related sectors” [2007] 1 Australian
family relationships clearinghouse, Issues 1, 3. Para uma perspetiva europeia, relativa à
Noruega e Inglaterra, cf.: Adrian L. James et al., “The voice of the child in family mediation:
Norway and England” [2010] 18 International journal of children’s rights 313–333.
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
95
da tradição e das crenças dos seus cidadãos. No entanto, algumas tendências
comuns podem ser identificadas, particularmente:
•
•
•
•
o declínio do número de casamentos e o adiamento da idade do casamento e da idade de ter filhos;4
o aumento do número de divórcios;5
o aumento do número de uniões de facto6 registadas, e o aumento do
número de crianças resultantes de relações extramatrimoniais;7
e também o aumento do número de famílias monoparentais.8
Este é, definitivamente, um processo imparável, mas deve ser mencionado
que um importante direito persiste para os membros das famílias, mesmo
após o desmoronamento da união familiar – o direito a uma vida familiar.
4
Relatórios do Eurostat afirmam que a taxa bruta de casamentos na EU declinou de 7,9
casamentos por cada 1 000 habitantes, em 1970, para 4,4 casamentos por cada 1 000 habitantes, em 2010, uma redução de 3,5 casamentos por cada 1 000 habitantes, e um declínio global
de 36% no número absoluto de casamentos. Cf. <http://epp.eurostat.ec.europa.eu/statistics_
explained/index.php?title=File:Crude_marriage_rate,_seleted_years,_1960-2011_
(per_1_000_inhabitants).png&fi letimestamp=20130130111229>.
5
Segundo relatórios do Eurostat, a taxa bruta de divórcios quase duplicou de 1,0 divórcios por cada 1 000 habitantes, em 1970, para 1,9 divórcios por cada 1 000 habitantes, em
2009, uma subida que se explica em parte pela permissão do divórcio em Estados em que,
anteriormente, tal não era permitido – em Itália, até 1970, em Espanha, até 1981, na Irlanda, até 1995, e em Malta até 2011. <http://epp.eurostat.ec.europa.eu/statistics_explained/
index.php?title=File:Crude_divorce_rate,_selected_years,_1960-2011_(1)_(per_1_000_
inhabitants).png&filetimestamp=20130130111212>
6
Tendo em conta os diferentes estatutos dos casais casados e não casados, deve afirmar-se
que a Diretiva 38/2004/EC define que, para o propósito da Diretiva, a definição de “membro
da família” devia igualmente incluir o/a o parceiro registado se a legislação do Estado-Membro de acolhimento considerar as parcerias registadas como equiparadas ao casamento. (parágrafo 5. do Preâmbulo).Cf . Diretiva 2004/38/EC do Parlamento Europeu e do Conselho, de
29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União
e dos membros das suas famílias no território dos Estados-Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.º 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE,
73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE OJ L158/77
http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2004:158:0077:0123:en:PDF.
7
Deve notar-se que o número de crianças nascidas fora do casamento está em constante crescimento <http://epp.eurostat.ec.europa.eu/statistics_explained/index.php?title=File:Live_births_
outside_marriage,_1960-2011_(%25_share_of_total_live_births).png&filetimestamp=
20130130111239>.
8
http://epp.eurostat.ec.europa.eu/statistics_explained/index.php?title=File:Private_
households_by_household_composition,_2011.png&filetimestamp=20131004104540. Deve
também mencionar-se que estas famílias estão sujeitas a risco significativo de pobreza monetária, uma vez que, segundo o Eurostat, um em cada três lares, neste grupo, tendiam a
ser afetados, em 2011, na UE <http://epp.eurostat.ec.europa.eu/statistics_explained/index.
php?title=File:Single_parents_with_dependent_children_at_risk_of_poverty_or_social_
exclusion,_EU-27,_2005,_2008_and_2011Fig5_7.png&fi letimestamp=20131024082238>
96
Irena Majstorović
Este direito humano subjetivo é garantido por dois documentos europeus
importantíssimos sobre os direitos humanos. Em primeiro lugar, encontra-se
definido no Artigo 8, Parágrafo 1, da Convenção para a proteção dos Direitos
do Homem e das Liberdades Fundamentais (ECHR):9 Qualquer pessoa tem
direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. Em segundo lugar, este direito também se encontra garantido
pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,10 que, no Artigo 7
estipula: Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações.
Para o propósito deste artigo, três importantes questões devem ser respondidas. Em primeiro lugar, quais são os mais perfeitos documentos legais,
globais e regionais, relacionados com a mediação em assuntos familiares e
com a participação das crianças, em particular? Em segundo lugar, que papel
deve ser atribuído às crianças na resolução legal de questões relacionadas
com a desagregação das famílias? Esta é a questão primariamente colocada
pelo desenvolvimento legal dos direitos das crianças e do direito da criança
a expressar os seus pontos de vista, hoje em dia parte de vários documentos
internacionais e regionais (europeus). E, em terceiro lugar, sendo de especial
importância para o tópico abordado neste artigo, qual é o papel das crianças
nos processos de mediação, designadamente quais são o alcance e o âmbito,
bem como quais as ressalvas da sua participação para os quais a prática nos
aconselha a sermos cuidadosos? Assim, no próximo capítulo, tentaremos
resumir as prescrições legais mais importantes e definir os maiores desafios
com elas relacionadas.
3. A estrutura legal internacional
3.1. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças (UNCDC)
A UNCDC é o mais importante instrumento legal para a proteção dos direitos
da criança. Entre os numerosos direitos que garante às crianças, aquele que é
particularmente relevante para o tópico deste artigo é o Artigo 12, que afirma:
1. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões
que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as
opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.
9
Adotado em 4 de Novembro de 1950, entrou em vigor em 3 de Setembro de 1954, ETS 005,
emendado pelos Protocolos N.os 11 e 14, e suplementados pelos Protocolos N.os 1, 4, 6, 7, 12 e
13. O texto da Convenção encontra-se disponível em: <http://www.echr.coe.int/Documents/
Convention_ENG.pdf>
10
Jornal Oficial da União Europeia, , C 83, 30.3.2010, disponível em: http://eur-lex. europa.
eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0389:0403:en:PDF
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
97
2. Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida
nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou de organismo adequado,
segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.
No Comentário Geral N.º 12 sobre o direito da criança a ser ouvida, o Comité
dos direitos da criança reitera que o direito da criança de expressar os seus pontos de vista é, definitivamente, um dos valores fundamentais da Convenção,
e este artigo é considerado como uma prescrição única num tratado sobre
direitos humanos, porque se refere ao estatuto legal e social das crianças, a
quem falta a autonomia plena, mas que têm direitos enquanto sujeitos.11
No que respeita aos processos de separação e divórcio, sendo estes relevantes para o propósito deste artigo, o Comité dos direitos da criança determinou
que toda a legislação tem de incluir o direito da criança de ser ouvida pelos
decisores, e durante os processos de mediação.12 Mais ainda, este Comentário
geral resolve a dúvida ainda subsistente em algumas legislações nacionais, em
relação com a idade em que às crianças deve ser garantido este direito. O
Comité relembra-nos que a UN CDC, ela própria, “prevê que este assunto
seja determinado numa base caso a caso, uma vez que se refere à idade e à
maturidade e, por essa razão, exige uma avaliação individual da capacidade
da criança”.13 Sendo assim, tentativas nacionais de elaborar documentos que
estabeleçam uma idade limite são desnecessárias e insatisfatórias.14 Mais
ainda, deve ser realçado que não compete à criança provar a sua maturidade,
mas os Estados devem presumir que a criança tem a capacidade para formar
os seus pontos de vista e reconhecer que ela/ele tem o direito de os expressar.15
11
Comentário Geral N.º 12 (2009) – O direito da criança a ser ouvida, Comité dos direitos
da criança, 25.6.2009, 3 <http://www2.ohchr.org/english/bodies/crc/docs/AdvanceVersions/
CRC-C-GC-12.pdf>
12
Ibid., parágrafo 52.
13
Ibid.
14
Cf. Os dados apresentados no esboço do relatório Preliminar, de Peter Newell, “Children’s
rights and disputes over parental divorce and separation – ENOC survey”, in: “Children
and disputed divorces, A collection of presentations given at the Annual Conference of the
Children’s Rights Ombudspersons’ Network in South and Eastern Europe and expert meetings organised by the Ombudsperson for Children of the Republic of Croatia” [2010] Ombudsperson for children Croatia, Zagreb, 23, 28, 29 <http://www.dijete.hr/hr/izvjemainmenu-93/
doc_details/338-children-and-disputed-divorces.html> Também, cf. A investigação dos sistemas norueguês e britânico, James (n 3).
15
Parágrafo 20. do Comentário Geral N.º 12 (2009).
98
Irena Majstorović
Merece menção que o Protocolo Facultativo à CDC relativo à instituição
de um procedimento de comunicação,16 que entrou em vigor em Abril de
2014, reitera no seu Preâmbulo, entre outras coisas:
Reafirmando igualmente o estatuto da criança enquanto sujeito de direitos e ser humano com dignidade e capacidades evolutivas;
Reconhecendo que o estatuto especial e a situação de dependência da
criança podem criar-lhe dificuldades reais na prossecução das vias de
recurso em caso de violação dos seus direitos; Considerando que o presente Protocolo irá reforçar e complementar os mecanismos nacionais e
regionais que permitem às crianças apresentar queixas por violação dos
seus direitos;…
Encorajando os Estados Partes a desenvolverem mecanismos nacionais
adequados que permitam à criança, cujos direitos tenham sido violados,
aceder a vias de recurso internas eficazes.
Da mesma forma, nos artigos 2 e 3 do Terceiro Protocolo Facultativo, os princípios gerais orientadores do Comité sobre os direitos da criança e sobre as
regras de procedimento, são definidos como se segue:
Princípios gerais orientadores do exercício das funções do Comité
No exercício das funções que lhe são conferidas pelo presente Protocolo,
o Comité deve guiar-se pelo princípio do superior interesse da criança.
Deve também ter em consideração os direitos e as opiniões da criança,
atribuindo a essas opiniões o devido peso, em função da idade e do grau
de maturidade da criança.
Regulamento interno
1 - O Comité adotará um regulamento interno para aplicar no exercício
das funções que lhe são conferidas pelo presente Protocolo. Ao fazê-lo,
terá especialmente em conta o artigo 2.º do presente Protocolo, a fim de
garantir que os procedimentos são adaptados à criança.
2 - O Comité incluirá no seu regulamento interno mecanismos de salvaguarda para impedir que a criança seja manipulada por aqueles que
agem em seu nome, podendo recusar-se a analisar qualquer comunicação
que considere não ser no superior interesse da criança.
16
O texto do Protocolo está disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/bodies/crc/
docs/CRC-OP-IC-ENG.pdf>
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
99
É muito provável que o Protocolo Facultativo à CDC relativo à instituição
de um procedimento de comunicação provoque numerosos processos em que
um número cada vez mais crescente de crianças possam submeter queixas.
No entanto, deve realçar-se que a pré-condição para as crianças realizarem
os seus direitos é a sua consciencialização relativamente à existência desses
direitos, que, infelizmente, com muita frequência, não serão usufruídos.
3.2. A Convenção de Haia para a proteção das crianças
A conferência de Haia de Direito internacional privado ainda não redigiu uma
convenção particular sobre a mediação. Ainda assim, a mediação, em geral, é
regularmente mencionada em convenções relativas à posição legal das crianças.
A Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças17 não
menciona explicitamente a mediação, mas num curto espaço de tempo se compreendeu que é importante criar regras e objetivos comuns a todos os Estados
Partes da Convenção. Assim, em 2012, o Gabinete Permanente da Conferência
de Haia de Direito Internacional Privado, publicada na Redação Revista do Guia
de boas práticas nos termos da Convenção de Haia, ao abrigo da Convenção,
sobre mediação18, que é a sua sétima parte, apresenta uma posição comum
sobre o envolvimento das crianças na mediação familiar.
Como comentário geral, é realçado que o envolvimento de uma criança na
resolução da disputa pode servir diferentes propósitos. “Em primeiro lugar,
ouvir os pontos de vista da criança fornece informações sobre os seus sentimentos e desejos, que podem ser informações importantes quando se trata de
determinar se uma solução é no superior interesse da criança. Em segundo
lugar, pode abrir os olhos aos pais para os desejos da criança e ajudá-los a
distanciarem-se das suas próprias posições, em prol de uma solução comum
aceitável. Em terceiro lugar, o envolvimento da criança respeita o direito desta
a ser ouvida, ao mesmo tempo que fornece à criança uma oportunidade para
ser informada sobre aquilo que se está a passar.”19
Como Coley afirma, ouvir as crianças exige duas mudanças fundamentais: em primeiro lugar, requer que aqueles cuja tarefa é escutar as crianças
tenham a formação e a experiência que lhes permitam compreender o que as
crianças dizem e, em segundo lugar, que ouvir o que as crianças têm a dizer
necessita valorizar um amplo leque de interesses, enquanto “as crianças falam
em termos de relações, de interdependência e do caso, e o sistema legal é
17
Adotado em 25 de Outubro de 1980, entrou em vigor a 1 de Dezembro de 1983. O texto da
convenção está disponível em http://www.hcch.net/index_en.php?act=conventions.text&cid=24>.
18
Guia de Boas Práticas nos termos da Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980 sobre
os aspetos civis do rapto internacional de crianças, Parte V – Mediação, redigida pelo Gabinete Permanente, disponível em http://www.hcch.net/index_en.php?act=publications.details&
pid=5537&dtid=52.
19
ibid 67.
100
Irena Majstorović
incapaz de ouvi-las enquanto continuar a dar prioridade a direitos abstratos
e individualistas”.20
A prescrição da Convenção de Haia, de 1980, que precisa de ser mais
realçada é o Artigo 13, Parágrafo 2, que se define da seguinte maneira: “A
autoridade judicial ou administrativa pode também recusar‐se a ordenar o
regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu
já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.” Isto enquadra-se com o direito, geralmente aceite, da criança em ser ouvida. No entanto, dois importantes avisos
são realçados na redação do Guia Revisto.21 Por um lado, os pontos de vista
da criança devem ser tidos em consideração, de acordo com a idade e maturidade da criança. Por outro lado, deve ter-se em cuidadosa consideração à
forma como os pontos de vista das crianças pode ser introduzida no processo de mediação, e se a criança deve ser envolvida, direta ou indiretamente,
dependendo das circunstâncias de cada caso individual.22
A Convenção relativa à Competência, à Lei aplicável, ao Reconhecimento,
à Execução e à Cooperação em matéria de Responsabilidade parental e de
medidas de Proteção das Crianças23: é o papel da autoridade central tomar
todas as diligências apropriadas para facilitar, através da mediação, conciliação, ou qualquer outro meio análogo, as soluções de mútuo acordo para a
proteção da pessoa ou ou dos bens da criança, em situações abrangidas pela
Convenção (artigo 31, ponto b). Sob a influência do artigo 12 da CDC ONU,
esta Convenção fornece, no artigo 23 (2), Subparágrafo b, esse reconhecimento de uma medida tomada num Estado Contratante pode ser recusada
Se a medida tiver sido tomada, salvo em caso de urgência, num contexto de um processo judiciário ou administrativo, sem se ter concedido à
criança a possibilidade de ser ouvida, violando os princípios fundamentais dos procedimentos do Estado requerido.
Na Convenção de Haia de 23 de Novembro de 2007, sobre a Cobrança Internacional
de Alimentos em benefício dos Filhos e de outros Membros da Família24 é determinado que as autoridades centrais, inter alia, “Incentivar soluções amigáveis tendo
20
Maria Coley, “Children’s voices in access and custody decisions: the need to reconceptualise rights and effect transformative change” [2007] 12 Appeal 48, 49.
21
ibid 69.
22
Maria Coley, “Children’s voices in access and custody decisions: the need to reconceptualise rights and effect transformative change” [2007] 12 Appeal 48, 49.
23
Adotada em 19 de Outubro de 1996, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2002. O texto da convenção está disponível em: <http://www.hcch.net/index_en.php?act=conventions.
text&cid=70>.
24
Adotada em 23 de Novembro de 2007, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2013. O texto da Convenção está disponível em: <http://www.hcch.net/index_en.php?act=conventions.
text&cid=131>.
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
101
em vista a obtenção do pagamento voluntário de alimentos, se oportuno através
da mediação, da conciliação ou de processos análogos” (Artigo 6, Parágrafo 2,
Subparágrafo d). É afirmado, igualmente, que os Estados contratantes deverão
prever medidas eficazes de direito interno para dar execução às decisões ao
abrigo da presente Convenção, medidas que incluem, entre outras, o uso de
mediação, da conciliação ou outros procedimentos análogos para favorecer a
execução voluntária (Artigo 34, Parágrafo 2, Subparágrafo i).
4. Estrutura europeia da mediação na legislação da família
A europeização da legislação da família é um processo que começou há várias
décadas, mas a legislação da família não é comum na Europa, e a legislação
europeia comum da família, no sentido substantivo da palavra, não existe. No
entanto, a harmonização e a unificação de iniciativas estão a ganhar cada vez
mais importância. O Conselho da Europa começou as suas atividades, neste
campo, nos últimos anos da década de sessenta do século XX, e tem implementado uma abordagem voluntária e gradual. A União Europeia, porém,
tem incluído legislação da família, na sua área de interesse, apenas nas duas
últimas décadas. Ao contrário do CoE, a UE está a defender uma abordagem
mais fragmentária e imposta por Bruxelas. Ainda assim, a legislação da família é um assunto de esfera de competência nacional, e a alteração no paradigma legal, em congruência com o princípio da atribuição25, requer que os
Estados-Membros confiram as suas competências, neste campo, à União.
25
Cf. Artigo 5 do Tratado da União Europeia:
1. A delimitação das competências da União rege-se pelo princípio da atribuição. O exercício das competências da União rege-se pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade.
2. Em virtude do princípio da atribuição, a União actua unicamente dentro dos limites
das competências que os Estados-Membros lhe tenham atribuído nos Tratados para alcançar os objectivos fixados por estes últimos. As competências que não sejam atribuídas
à União nos Tratados pertencem aos Estados-Membros.
3. Em virtude do princípio da subsidiariedade, nos domínios que não sejam da sua competência exclusiva, a União intervém apenas se e na medida em que os objectivos da acção
considerada não possam ser suficientemente alcançados pelos Estados-Membros, tanto
ao nível central como ao nível regional e local, podendo contudo, devido às dimensões ou
aos efeitos da acção considerada, ser mais bem alcançados ao nível da União. As instituições da União aplicam o princípio da subsidiariedade em conformidade com o Protocolo
relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade. Os Parlamentos nacionais velam pela observância do princípio da subsidiariedade de acordo com
o processo previsto no referido Protocolo.
4. Em virtude do princípio da proporcionalidade, o conteúdo e a forma da acção da União
não devem exceder o necessário para alcançar os objectivos dos Tratados. As instituições
da União aplicam o princípio da proporcionalidade em conformidade com o Protocolo
relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade.
Versão consolidada do Tratado da União Europeia [2012] OJ C326/13 <http://eur-lex.europa.
eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2012:326:0013:0046:EN:PDF>
102
Irena Majstorović
Neste campo, é também uma abordagem relativamente nova, que ocupa
uma posição de contrabalanço ao conceito bem enraizado de sentenças judiciais que são impostas às partes. A mediação é normalmente entendida como
“um processo no qual um terceiro, o mediador, imparcial e neutro, apoia as
próprias partes, na negociação das questões que são objeto do litígio, tendo
em vista a obtenção de acordos comuns”.26 Afirma-se que o uso da mediação
familiar tem o potencial de:27
•
•
•
•
•
•
melhorar a comunicação entre os membros da família;
reduzir o conflito entre as partes no litígio;
dar lugar a resoluções amigáveis;
assegurar a manutenção de relações pessoais entre os pais e os filhos;
reduzir os custos económicos e sociais da separação e do divórcio para
as próprias partes e para os Estados;
reduzir o período de tempo, de outra forma necessário, à resolução
dos conflitos.
4.1. As atividades do Conselho da Europa
Ao nível regional da Europa, o Conselho da Europa realizou atividades muito
importantes neste campo, durante décadas. Os documentos relevantes para
o tópico desta contribuição incluem a Convenção europeia sobre o exercício
dos direitos da criança, de 199628, a Convenção Relativa às Relações Pessoais
no que se Refere às Crianças29, assim como três instrumentos de “soft law”
(não vinculativo): a Recomendação N.º R (98) 1 do Comité de Ministros do
Conselho da Europa aos Estados-Membros sobre a Mediação Familiar30, a
Recomendação 1639 (2003) sobre mediação familiar e igualdade dos sexos31,
e as Diretrizes sobre justiça adaptada às crianças (2010).32 É importante, também, mencionar que a mediação em assuntos civis em geral, e a mediação em
26
Parágrafo 10. do Preâmbulo à Recomendação N.º R (98) 1, do Comité de Ministros dos
Estados-Membros sobre a mediação familiar.
27
Parágrafo 7. Do mesmo Preâmbulo.
28
STCE n.º 60. O texto da convenção está disponível em: <http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/160.htm>
29
STCE n.º 192. O texto da convenção está disponível em: <http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/192.htm>
30
O texto da recomendação está disponível, conforme anteriormente referido, em: <https://
wcd.coe.int/com. instranet.InstraServlet?command=com.instranet.CmdBlobGet&InstranetI
mage=1153972&SecMode=1&DocId=450792&Usage=2>
31
O texto da recomendação está disponível em: <http://assembly.coe.int/Documents/AdoptedText/ta03/EREC1639.htm>
32
O texto das diretrizes, que são o tópico da contribuição da Professora Hrabar para esta
publicação, está disponível em: <https://wcd.coe.int/ViewDoc.jsp?id=1705197>.
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
103
assuntos penais têm sido foco de interesse de instituições da CoE33, como
também o têm sido as alternativas de litigação entre as autoridade administrativas e as partes privadas34, mas não são relevantes para o tópico desta
contribuição.
O objetivo da Convenção europeia sobre o exercício dos direitos das crianças tem três componentes. Nomeadamente, ao garantir e proteger os direitos
processuais da criança, três tipos especiais de direitos processuais são garantidos à criança: o direito a ser informada e a expressar os seus próprios pontos
de vista durante o processo, o direito de nomeação de um representante distinto, bem como outros possíveis direitos processuais. O mais relevante para
o propósito deste artigo é o primeiro, acima mencionado no artigo 3, que diz:
À criança que à luz do direito interno se considere ter discernimento
suficiente deverão ser concedidos, nos processos perante uma autoridade
judicial que lhe digam respeito, os seguintes direitos, cujo exercício ela
pode solicitar:
• Obter todas as informações relevantes;
• Ser consultada e exprimir a sua opinião;
• Ser informada sobre as possíveis consequências de se agir em conformidade com a sua opinião, bem como sobre as possíveis consequências
de qualquer decisão.
Da mesma forma, no artigo 13, esta Convenção explicitamente menciona
a mediação enquanto uma alternativa útil de mecanismo de resolução de
conflitos:
A fim de prevenir ou de resolver conflitos e de evitar processos perante
uma autoridade judicial que digam respeito a crianças, as Partes deverão,
nos casos apropriados por elas definidos, encorajar o recurso à mediação
ou a qualquer outro meio de resolução de conflitos, bem como a sua utilização para chegar a um acordo.
O escopo, também composto de três componentes, da Convenção Relativa
às Relações Pessoais no que se Refere às Crianças, inclui: define os princípios
33
Ver: Recomendação Rec (2002) 10, do Comité de Ministros dos Estados-Membros do
Conselho da Europa sobre mediação sobre mediação em matéria civil <https://wcd.coe.int/
ViewDoc.jsp?id=306401&Site=COE>, e Recomendação N.º R (99) 19 do Comité de Ministros
dos Estados-Membros do Conselho da Europa sobre Mediação Penal <https://wcd.coe.int/
ViewDoc.jsp?id=420059>, respetivamente. Ver: Recomendação Rec (2002) 10 do Comité de
Ministros dos Estados-Membros do Conselho da Europa sobre mediação em matéria civil.
<https://wcd.coe.int/ViewDoc.jsp?id=420059> respectively.
34
Ver: Recomendação Rec (2001) 9 sobre alternativas à litigância entre autoridades administrativas e entidades privadas <https://wcd.coe.int/ViewDoc. jsp?id=220409&Back>.
104
Irena Majstorović
gerais a aplicar às decisões relativas às relações pessoais, estabelece medidas
de salvaguarda e garantias adequadas para assegurar o bom desenrolar das
visitas e o regresso imediato das crianças no final destas e instaura uma cooperação entre as autoridades envolvidas a fim de promover e melhorar as relações pessoais transfronteiras..
De forma semelhante, também, à Convenção Relativa às Relações Pessoais
no que se Refere às Crianças, esta Convenção define, no Artigo 7, Parágrafo
b, relativo à resolução de disputas respeitantes ao contato, que as autoridades
judiciais têm o papel de tomar todas as medidas apropriadas:
… para encorajar os pais e outras pessoas com laços familiares com a
criança a alcançarem acordos amigáveis no que diz respeito ao contato,
em particular através do uso da mediação familiar e de outros processos
de resolução de disputas.
A Recomendação N.º R (98) 1 do Comité de Ministros do Conselho da
Europa aos Estados-Membros sobre mediação familiar resulta da observação, por parte das instituições do Conselho da Europa, de que as sociedades
modernas têm de reconhecer o crescente número de disputas familiares, particularmente as resultantes de separação ou divórcio, e também de notar “as
consequências perniciosas dos conflitos para as famílias” e o elevado custo
social e económico para os Estados.35 Mais ainda, a necessidade de assegurar
a proteção dos superiores interesse e o bem-estar da criança é referido.
Relativamente ao escopo da mediação, essa recomendação prevê que seja
aplicado em todas as disputas entre membros das mesma família, quer tenham
uma relação de sangue ou por casamento, e a todos os que estão a viver ou que
viveram em relações familiares, como definido pela lei nacional. No entanto,
em consonância com o princípio geral de autonomia dos Estados-Membros
do Conselho da Europa, é ainda realçado que os Estados são livres para determinar as questões específicas ou casos cobertos pela mediação familiar.
Enquanto um dos dez princípios do processo de mediação, é afirmado
que
“o mediador deverá ter em mente, muito particularmente, o bem-estar e o
interesse superior da criança, deverá encorajar os pais a concentrarem-se
nas necessidades do filho e deverá recordar aos pais a sua responsabilidade primordial, tratando-se do bem-estar dos filhos, e a necessidade de
os informarem e consultarem36
35
36
Parágrafo 2 do Preâmbulo a esta recomendação.
Princípios da mediação familiar – III. Processo de mediação, ponto viii.
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
105
Este é um elemento muito importante, uma vez que a consulta da opinião das
crianças pode ter uma influência significativa no repensar das relações, não
apenas entre os pais e os filhos, mas também entre os próprios pais.
No que respeita a assuntos internacionais, devemos ter em mente o cada
vez maior número de disputas familiares com um elemento internacional, é
recomendado que os Estados devam considerar criar mecanismos para usar
em casos de mediação que apresentem um elemento de conexão com o estrangeiro, quando se mostrar apropriado, especialmente em todos os assuntos que
se relacionam com crianças, e particularmente aqueles relativos à guarda e ao
direito de visita, quando os pais vivam ou tencionem viver em Estados diferentes. Para além disso, a mediação internacional deve ser considerada como
um processo apropriado, de maneira a permitir aos pais organizar ou reorganizar a guarda e o direito de visita, ou regular diferendos em consequência
de decisões sobre essas questões. É igualmente realçado que no caso de uma
deslocação ilícita ou de uma retenção da criança, a mediação internacional
não deverá ser utilizada se puder vir a atrasar o rápido regresso da criança.37
Em 2005, a Comissão Europeia para a eficiência da justiça (CEPEJ) propôs
Diretrizes para uma melhor implementação das recomendações existentes
relacionadas com a mediação familiar e com a mediação em assuntos civis.38
Duas conclusões ou diretrizes não vinculativas serão mencionadas neste
artigo: em primeiro lugar, o CEPEJ defende que, no que se refere à mediação
familiar, os Estados-Membros do Conselho da Europa unanimemente reconhecem a importância do superior interesse da criança, embora os critérios
variem de acordo com as legislações nacionais.
Em segundo lugar, é recomendação do CEPEJ que os Estados-Membros e
outros órgãos envolvidos ma mediação familiar trabalhem em conjunto para
estabelecerem critérios comuns de valores que sejam usados para definir o
superior interesse da criança, incluindo a possibilidade de as crianças fazerem
parte do processo de mediação. Estes critérios devem incluir a importância
da idade ou maturidade mental da criança, o papel dos pais e a natureza da
disputa.
Tendo em vista a Recomendação 1639 (2003) sobre mediação familiar e
igualdade de sexos, pode ser reestabelecido que a mediação familiar é um
processo construtor da vida e gestor da vida entre os membros da família, na
presença de uma terceira parte independente e imparcial, conhecida como o
mediador.39 Tem sido reiterado, ainda, que é essencial assegurar que a mediação conduza a um acordo que satisfaça os desejos de uma parte, se essa parte
37
Princípios da mediação familiar – VIII. Assuntos internacionais.
Comissão europeia par a eficiência da justiça (CEPEJ): Uma melhor implementação da
mediação nos Estados-Membros do Conselho da Europa, Regras prescrições concretas [2005]
http://www.coe.int/t/dghl/cooperation/cepej/series/Etudes5Ameliorer_en.pdf>
39
Artigo 1 desta recomendação.
38
106
Irena Majstorović
domina outra, de qualquer forma que seja. “Quando o ‘cerne’ da contenção é
a criança, ele ou ela devem ser ouvidos no processo de mediação, porque ele
ou ela são reconhecidos como sujeitos com direitos. Às crianças deve ser permitido dizer o que pensam, se a solução a encontrar tem genuinamente em
conta os seus superiores interesses.”40 Tem-se verificado, também, através dos
resultados da investigação, que as crianças são extremamente influenciadas
pelo divórcio, e que as emoções, durante esse período, podem deixar consequências graves para toda a vida.41
As Diretrizes sobre a justiça adaptada às crianças, de 2010, são consideradas um progresso no sentido de garantir que nos processos da legislação criminal, civil ou administrativa “o direito de todas as crianças a serem informadas sobre os seus direitos, disporem de meios adequados de acesso à justiça e
serem consultadas e ouvidas nos processos que lhes digam respeito ou que as
afetem. ” (Secção I, Ponto 3).42 Na Diretriz 24, é definido que:
As alternativas ao processo judicial, tais como a mediação, a desjudicialização e a resolução alternativa de litígios, devem ser incentivadas sempre que possam servir melhor o interesse superior da criança. O recurso
prévio a tais alternativas não deve ser utilizado para criar obstáculos ao
acesso da criança à justiça.
No memorando Explanatório, é mais detalhadamente explicado que antes de
levar os casos a tribunal, pode ser no superior interesse da criança voltar-se
para métodos de resolução de disputas alternativos (RDA), como a mediação,
uma vez que estas diretrizes cobrem os processos tanto no tribunal, como
fora dele.43 É frequentemente afirmado que em alguns casos os métodos da
RDA são, não apenas mais eficientes, mas também têm mais possibilidades
de resolver outras questões problemáticas, em linha com a assunção de que
os conflitos devem ser evitados, em vez de serem resolvidos. É claro que pode
objetar-se que, por vezes, o recurso aos tribunais oferece mais garantias a uma
criança44, mas esta decisão deve ser cuidadosamente refletida em cada caso.
40
Parágrafo 6 desta recomendação.
Diz-se, por vezes, que a raiva que as crianças sentem nos processos do divórcio dos seus
pais, lhes rouba a sua infância. E vice-versa, o perdão pode ser mais importante para os filhos
do divórcio do que para qualquer outro grupo. Solangel Maldonado, “Taking account of children’s emotions: anger and forgiveness in “renegotiated families”” [2009–2009] 16:2 Virginia
journal of social policy and the law 469, 470.
42
É igualmente referido na mesma prescrição, que “Respeitar os direitos das crianças não
deve prejudicar os direitos das outas partes envolvidas”, o que está em linha com o princípio
legal básico de que os direitos de uma parte devem ser exercidos, desde que não prejudiquem
os direitos de outra parte.
43
Memorando Explanatório às Diretrizes, parágrafo 22, 17.
44
ibid. parágrafo 54, 23.
41
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
107
4.2. As atividades da União Europeia
As atividades da União Europeia relativas à mediação familiar estão necessariamente restringidas pelos limites da jurisdição da UE. Embora a abordagem
esteja a mudar e a UE esteja mais do que interessada em regular a legislação
da família em geral, como aconteceu há duas décadas, a legislação substantiva da família permanece fora da jurisdição da União Europeia. Esta situação
reflete-se na escassez de fontes na legislação da Europa relevantes para este
tópico. Porém, um certo número de documentos menciona a mediação, relacionada com a família sem, no entanto, se estender em detalhes.
O Livro verde sobre os modos alternativos de resolução dos litígios em matéria civil e comercial45 não se refere, em detalhe, à mediação familiar, nem
forneceu análises da participação das crianças nesses processos. Apenas é
afirmado, no Parágrafo 48, que os responsáveis políticos tomaram, portanto,
consciência do papel privilegiado que os ADR podem desempenhar para
solucionar os litígios familiares de dimensão transfronteiras, que estes litígios
dizem respeito às questões ligadas ao exercício da autoridade paternal – os
direitos de guarda dos filhos e de visita – à partilha do património familiar
ou ainda à fixação da pensão alimentar. As partes em litígios poderão assim
recorrer aos ADR antes mesmo de encararem o recurso a um tribunal tanto
durante o procedimento judiciário como na fase de execução das decisões de
justiça.
A Regulação do Conselho (EC) N.º 2201/2203, de 27 de Novembro de 2003,
relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o
Regulamento (CE) nº 1347/200046, mencionam as questões de mediação,
primariamente no contexto do papel e das funções das autoridades centrais
nacionais. No Parágrafo 25 do Preâmbulo encontra-se definido que as autoridades centrais deverão cooperar tanto em termos gerais como em casos específicos, principalmente para favorecer a resolução amigável de litígios familiares em matéria de responsabilidade parental. No que respeita ao Artigo 55
sobre a cooperação em casos específicos de responsabilidade parental, é afirmado que as autoridades centrais deverão (entre outras, como mencionado
no Subparágrafo e): Facilitar acordos entre os titulares da responsabilidade
parental, através da mediação ou de outros meios, e facilitar para o efeito a
cooperação transfronteiriça.
A Diretiva 2008/52/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de
Maio de 2008, sobre a mediação em aspetos civis e comerciais47, no seu
Preâmbulo (Parágrafo 6), define que a mediação pode proporcionar uma
solução extrajudicial rápida e pouco onerosa para litígios em matéria civil e
45
46
47
[2002] COM 196.
[2003] OJL 338/1.
[2008] OJL 136/3.
108
Irena Majstorović
comercial através de procedimentos adaptados às necessidades das partes. É
mais provável que os acordos obtidos por via de mediação sejam cumpridos
voluntariamente e preservem uma relação amigável e estável entre as partes.
No entanto, esta Diretiva não deve aplicar-se a direitos e obrigações relativamente aos quais as partes não são livres de decidir, elas mesmas, ao abrigo da
lei relevante aplicável. Como afirmado no Parágrafo 10 do Preâmbulo, estes
casos são frequentes na lei das famílias.48
O Programa da UE para os direitos da criança 49, considerada um muito
importante documento relativo aos direitos das crianças não desenvolve as
questões da mediação familiar, mas reitera que os litígios familiares podem ter
efeitos nefastos para o bem-estar das crianças, e que fornecimento adequado
de informações às crianças e aos pais acerca dos respetivos direitos consagrados na legislação da UE é um requisito prévio que lhes permite defender esses
direitos em ações de direito da família. De igual modo, o Programa prevê que
a Comissão Europeia, em cooperação com os Estados-Membros, irá redigir
e manter atualizadas fichas informativas sobre a legislação da UE e nacional
em matéria de obrigações de alimentos, mediação e reconhecimento e execução de decisões referentes ao poder paternal, que podem ser lidas como
um incentivo aos Estados-Membros para a promoção dos procedimentos de
mediação.50
A análise apresentada confirma que as fontes legais relacionadas com a
mediação familiar em geral e, em particular, a relativa à participação das
crianças nesses processos, são satisfatórias. Os documentos legais ao nível
internacional, e também ao nível europeu, são numerosos e suficientemente
desenvolvidos. Ainda assim, numerosas questões permanecem sem resposta.
Na minha opinião, este é o maior desafio neste campo para a implementação da proteção das crianças da discriminação. É um ponto comum, bem
como a adoção de documentos legais, apesar de ser um processo complicado,
é meramente um primeiro passo, já que ter uma estrutura legal estável não é
suficiente. Esta é exatamente a fase em que a legislação europeia se encontra –
com um sistema legal adequado, no entanto com tantas questões em aberto,
relativamente à sua implementação, algumas das quais serão abordadas no
próximo ponto.
48
No Parágrafo 21 do Preâmbulo a esta Diretiva, existe um importante ressalva legal: Consequentemente, se o conteúdo de um acordo resultante de mediação num assunto de legislação
da família não puder ser aplicável no Estado membro em que o acordo foi concluído, e onde
o pedido de aplicação for efetuado, esta Diretiva não deve encorajar as partes a contornar a
lei daquele Estado membro, fazendo com que o seu acordo seja aplicável num outro Estado
membro.
49
Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a Comunicação da Comissão ao
Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das
Regiões – Programa da UE para os direitos da criança [2011] COM 60.
50
ibid 6.
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
109
5. Questões em aberto sobre a participação das crianças em
processos de mediação familiar – novos desafios para a não
discriminação
Aqui chegados, é razoável subtrair os sistemas em que as crianças não têm
forma de expressão , de todo, nas situações de desmembramento da família.
Esta situação é, claramente, uma forma de discriminação com base na idade,
e tais práticas devem inevitavelmente ser alteradas. Esta posição também é
defendida pelos documentos legais, tanto a nível internacional, como europeu. No entanto, na esfera legal europeia, as questões em aberto permanecem,
na sua maioria, fora da arena legal. É a questão da implementação, que permitiria que as crianças não fossem, realmente, mais discriminadas.
O código europeu de conduta para mediadores51, por exemplo, lançado
com a ajuda da Comissão Europeia, em 2004, estabelece uma série de princípios com os quais os mediadores individuais devem decidir, voluntariamente,
comprometer-se, sob sua própria responsabilidade, mas as crianças não são
mencionadas em qualquer um destes princípios, provavelmente na presunção
de que essa é uma questão já resolvida. Na nossa opinião, tal não é o caso, e
compete a cada Estado fornecer respostas adequadas às novas questões. Por
consequência, os sistemas legais em que os direitos de participação das crianças são reconhecidos, protegidos e experimentam todo o tipo de problemas,
nomeadamente aqueles relativos às diferentes questões da sua implementação. Em geral, pode dizer-se que as crianças, normalmente, querem tomar
parte nos processos de mediação. Elas querem expressar os seus pontos de
vista, as suas dúvidas, e os seus receios. Permitir que a criança participe nesses processos fornece-lhe, não apenas o sentimento de dignidade, mas também de responsabilidade para investir todos os seus esforços para cumprir o
acordo. É a questão de ter uma união estável e responsável dos membros da
família, capaz de permitir uma comunicação saudável.
Por outro lado, as crianças não querem ser alvo de pressões. Elas não querem ser postas de lado, mas não são capazes de tomar decisões vinculativas
para toda a família e não devem ser forçadas a tal. Elas não devem ser forçadas a escolher entre os progenitores, nem estes devem ser forçados a escolher
entre os seus filhos. É tarefa do mediador ajudar os membros da família a
alcançarem um acordo que venham a respeitar e cumprir no futuro. À criança
nunca deve ser dado um papel que ele/ela não pode compreender nem desempenhar. A decisão de a criança dever participar, de todo, e de que forma exatamente, essa participação deve ser posta em prática, compete aos adultos. O
mediador e os pais devem decidir, depois de consultarem a criança, quanto
ao âmbito da participação da criança nos processo. Ao nível do princípio, não
podemos defender nenhuma exceção a esta regra. Há diferentes maneiras de
51
<http://ec.europa.eu/civiljustice/adr/adr_ec_code_conduct_en.pdf>.
110
Irena Majstorović
incluir a criança no processo, em que se incluem, entre outras: comunicar
com a criança no início dos processos, incluindo a criança, periodicamente,
no processo, incluir ativamente a criança durante todo o processo, discutindo
com a criança acerca do acordo alcançado, bem como incluir a criança na
última sessão, com o objetivo de informar a criança sobre o processo.
É da maior importância que toda a comunicação com a criança e que o
processo que inclui crianças seja realizado tendo em conta o princípio dos
seus superiores interesses. Embora, por princípio, as crianças não possam ser
discriminadas em processos de mediação, com base na sua idade ou imaturidade, as sociedades modernas não devem ir demasiado longe nesta nova
direção. Conforme já foi mencionado, não devemos dar às crianças mais
direitos e, portanto, mais responsabilidades, do que as crianças quereriam ter.
Nomeadamente, se nós, dando o melhor de nós, tentamos assegurar que este
direito processual de uma criança – o direito a que a sua opinião seja ouvida,
é para ser estritamente respeitada, em todos os casos, afastar-nos-emos, infelizmente, do importantíssimo critério relacionado com a criança – o superior
interesse da criança. De acordo com o artigo 3, parágrafo 1 da CDC ONU:
Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas
ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse
superior da criança.
Desta maneira, devemos repensar este direito, mas não a obrigação de uma
criança. A opinião de uma criança não é vinculativa, e deve ser tomada em
consideração tendo em conta a idade e a maturidade da criança. Se persistirmos neste caminho de erradamente avaliarmos este direito como uma obrigação, estaremos a causar danos às crianças.52
6. Conclusão
Os direitos das crianças são um importante tema legal e social. A opinião
de uma criança não é vinculativa, e deve ser tida em consideração, segundo
a idade e a maturidade de uma criança – o direito de exprimir a sua opinião deve ser testado no campo específico da mediação familiar, avaliando
52
Judith S. Wallerstein conduziu um estudo longitudinal, ao longo de vinte e cinco anos, sobre o impacto do divórcio nas crianças, concluindo que o sistema legal não foi bem-sucedido
na tarefa de servir ou proteger os interesses das crianças e, mais ainda, que as crianças do seu
estudo, atualmente adultos, ficariam muito surpreendidas se alguém lhes dissesse que alguém,
no seio da comunidade legal, tinha tido em consideração o seu superior interesse. Citado de
acordo com: Coley (n 19), 51. Embora este seja um estudo americano, pode bem presumir-se
que os resultados na Europa seriam similares.
CAPÍTULO 4: Participação das crianças na mediação familiar
111
o escopo do princípio da não discriminação. Como se segue da análise efetuada, os documentos legais que garantem a uma criança a participação na
mediação são numerosos e de grande importância, tanto a nível internacional, como regional, europeu. Assim, o aspeto normativo, em geral, não coloca
quaisquer outras questões. A questão controversa, portanto, é o aspeto da
implementação que é a realização concreta do direito da criança a expressar
os seus próprios pontos de vista e, consequentemente, a não ser posta de lado
e discriminada, em virtude da sua idade e imaturidade.
As sociedades modernas, em geral, testemunham o conceito vinculativo
crescente dos direitos das crianças. Relativamente ao direito de expressar a
sua opinião, percorremos um longo caminho em apenas algumas décadas.
No passado, estava para além da nossa mais fantasiosa imaginação, que a uma
criança devesse ser garantido o direito de expressar, livremente, os seus pontos de vista, e que tais opiniões pudessem ser relevantes. As crianças eram sistematicamente discriminadas, nesta área, e isto pode ser explicado pela quase
completa ignorância do facto de que as crianças são sujeitos jurídicos, e como
tal devem ser protegidas. Isto, é claro, não anula a necessidade e a obrigação
da família e, a um nível mais alargado, do Estado, de proteger os seus membros mais fracos, e as crianças em particular, mas a estas últimas deve ser dada
a oportunidade de fazer ouvir as suas vozes em situações familiares importantes, como os processos de mediação familiar.
Não obstante, o pêndulo inclinou-se para outra direção, algumas vezes,
também, para outra finalidade. Assim, novas questões surgem no horizonte
que têm de ser reavaliadas. É tempo de tentar parar o pêndulo, que desliza da
completa desvalorização dos pontos de vista da criança para o entendimento
de que o direito de uma criança expressar os seus pontos de vista é um seu
dever ou obrigação, e reequilibrar o pêndulo, garantindo que os direitos das
crianças sejam re-concebidos enquanto uma unidade holística, estando todos
ao serviço do bem-estar da criança.
Questões para reflexão
•
•
•
•
•
Qual é o objetivo da mediação familiar e de que forma influencia as crianças?
Quais são as limitações da participação das crianças nos processos de mediação da
família?
Devem os sistemas legais estabelecer uma idade limite particular para essa participação, ou é apropriada a determinação cumulativa da idade e da maturidade?
Quais são as vantagens de uma abordagem interdisciplinar e da garantia de participação das crianças na mediação familiar?
Existem outras possibilidades, que possam ser úteis para a proteção do direito da
criança de expressar a sua opinião?
112
Irena Majstorović
Leituras adicionais
Casals, M.M. “Divorce mediation in Europe: An introductory outline” [2005] 9.2.
Electronic journal of comparative law <http://www.ejcl.org/92/art92-2.pdf>
Family mediation in the European Union – Survey Report, European Network of National
Observatories on Childhood Europe [2005] http://www.childoneurope.org/ issues/
family_mediation/family_mediation_childoneurope_2005.pdf
Roberts, M. “Mediation in family disputes – Principles of practice” (third edition, Ashgate
2012)
Dowling, E., Diana E. “Promoting positive outcomes for children experiencing change in
family relationships” in S. Roffey (ed), Positive relationships: Evidence based practice
across the world (Springer 2012)
Lista de documentos legais relevantes 113
LISTA DE DOCUMENTOS LEGAIS RELEVANTES
DOCUMENTOS DAS NAÇÕES UNIDAS
Carta das Nações Unidas (adotada em 26 de Junho de 1945, entrou em vigor em 24 de
Outubro de 1945) 1 UNTS 1
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (adotada em 9 de
Dezembro de 1948, entrou em vigor em 12 de Janeiro de 1951) 78 UNTS 277
Declaração universal dos direitos do Homem e do Cidadão (proclamada em 10 de
Dezembro de 1948), Resolução da AG 217 A (III) (DUDH)
Convenção para a supressão do tráfico de pessoas e da exploração de Prostituição de
Outrem (adotada em 21 de Março de 1950, entrou em vigor em 25 de Julho de 1951)
96 UNTS 271
Convenção relativa ao estatuto dos refugiados (adotada em 28 de Julho de 1951, entrou
em vigor em 22 de Abril de 1954) 189 UNTS 137
Protocolo Adicional à Convenção relativa ao estatuto dos refugiados (adotado em 31
de Janeiro de 1967, entrou em vigor em 4 de Outubro de 1967) 606 UNTS 267
Convenção relativa ao estatuto dos apátridas (adotado em 28 de Setembro de 1954,
entrou em vigor em 6 de Junho de 1960) 360 UNTS 195 (CERD)
Convenção para a redução dos casos de apatridia (adotada em 30 de Agosto de 1961,
entrou em vigor em 13 de Dezembro de 1975) 989 UNTS 175
Emenda ao Artigo 8 da convenção Internacional sobre a eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial, (adotada em 15 de Janeiro de 1992, entrou em
vigor em 16 de Dezembro de 1992) Resolução 47/111 da AG
Pacto internacional sobre os direitos civis e políticos (adotado em 16 de Dezembro de
1966, entrou em vigor em 23 de Março de 1976) 999 UNTS 171
Protocolo Facultativo referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos (adotado em 16 de Dezembro de 1966, entrou em vigor em 23 de Março de
1976) 999 UNTS 171
Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos com vista à Abolição da Pena de Morte (adotado em 15 de Dezembro de
1989, entrou em vigor em 11 de Julho de 1991) 1642 UNTS 414
Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (adotado em 16
de Dezembro de 1963, entrou em vigor em 3 de Janeiro de 1976) 993 UNTS 3 (ICESCR)
Convenção sobre a não aplicabilidade de limitações estatutárias para crimes de guerra
e crimes contra a Humanidade (adotada em 26 de Novembro de 1968, entrou em
vigor em 11 de Novembro de 1970) 754 UNTS 73
Convenção internacional para a supressão e Punição do crime de apartheid (adotada
em 30 de Novembro de 1973, entrou em vigor em 18 de Julho de 1976) 1015 UNTS 243
Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (adotada em 18 de Dezembro de 1979, entrou em vigor em 3 de Setembro de
1981) 1249 UNTS 13 (CEDAW)
Protocolo opcional à Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (adotado em 16 de Outubro de 1979, entrou em vigor em
22 de Dezembro de 2000) 2131 UNTS 82
Convenção contra a tortura e outras Penas ou Tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes (adotado em 10 de Dezembro de 1984, entrou em vigor em 26 de Junho
de 1987) 1465 UNTS 85 (CAT)
114
Irena de
Lista
Majstorović
documentos legais relevantes
Protocolo Facultativo à Convenção contra a tortura e outras Penas ou tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes (adotado em 18 de Dezembro de 2002, entrou em
vigor em 22 de Junho de 2006) 2375 UNTS 237
Convenção internacional sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores
migrantes e membros das suas famílias (adotada em 18 de Dezembro de 1990,
entrou em vigor em 1 de Julho de 2003) 2220 UNTS 3 (CMW)
Convenção internacional para a proteção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados (adotada em 20 de Dezembro de 2006, entrou em vigor em 23 de
Dezembro de 2010) 2715 UNTS (CED)
Convenção sobre os direitos da criança (adotada em 20 de Novembro de 1989, entrou
em vigor em 2 de Setembro de 1990) 1577 UNTS 3 (CDC)
Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Participação
de Crianças em Conflitos Armados (adotado em 25 de Maio de 2000, entrou em
vigor em 12 de Fevereiro de 2002) 2173 UNTS 222
Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda de
Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil (adotado em 25 de Maio de
2000, entrou em vigor em 18 de Janeiro de 2002) 2171 UNTS 227
Protocolo Facultativo à Convenção dos direitos da criança relativo à instituição de
um procedimento de comunicação (adotado em 19 de Dezembro de 2011, entrou
em vigor em 1 de Abril de 2014) Resolução da AG 66/138
Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiências (adotada em 13 de Dezembro
de 2006, entrou em vigor em 3 de Maio de 2008) 2515 UNTS 3 (CRPD)
Protocolo facultativo anexo à Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiências (adotado em 13 de Dezembro de 2006, entrou em vigor em 3 de Maio de 2008)
Resolução da AG A7RES/61/106
Instituições nacionais para a promoção e proteção dos direitos humanos (aprovado
em 20 de Dezembro de 1993 pela resolução 48/134 da AG (princípios de Paris)
DOCUMENTOS DA UNESCO
Convenção relativa à luta contra a discriminação na educação (adotada em 14 de
Dezembro de 1960, entrou em vigor em 22 de Maio de 1962) 429 UNTS 93
Protocolo instituidor da Conciliação e bons ofícios da comissão para ser responsável
por procurar e resolver quaisquer disputas que podem surgir entre os EstadosMembros da Convenção contra a discriminação na educação (adotado em 10 de
Dezembro de 1962, entrou em vigor em 24 de Outubro de 1968)
LISTA DE DOCUMENTOS RELEVANTES COMENTÁRIOS GERAIS DO
COMITÉ DOS DIREITOS DA CRIANÇA
Comentário geral n.º 1. (2001) – sobre os fins da educação, CRC/GC/2001/1, 17 de Abril
de 2001
Comentário geral n.º 2. (2002) – sobre o papel de Instituições Nacionais de Direitos
Humanos Independentes na Proteção e Promoção dos Direitos da Criança, CRC/
GC/2002/2, 15 de Novembro de 2002
Comentário geral n.º 3 (2003) – sobre HIV/SIDA e direitos das crianças, CRC/
GC/2003/3, 17 de Março de 2003
Lista de documentos legais relevantes 115
Comentário geral n.º 4 (2003) – Sobre saúde dos Adolescentes e o desenvolvimento dos
adolescentes no contexto da Convenção dos direitos da criança, CRC/GC/2003/4,
1 de Julho de 2003
Comentário geral n.º 5 (2003) – sobre medidas gerais de aplicação da Convenção sobre
os direitos da criança, CRC/GC/2003/5, 27 de Novembro de 2003
Comentário geral n.º 6 (2005) – sobre o tratamento de crianças não acompanhadas e
separadas fora do seu país de origem, CRC/GC/2005/6, 1 de Setembro de 2005
Comentário geral n.º 7 (2006) – sobre a realização dos direitos da criança na primeira
infância, CRC/GC/2005/7/Rev. 1, 20 de Setembro de 2006
Comentário geral n.º 8 (2007) – sobre o direito da criança à proteção contra os castigos corporais e outras formas de penas cruéis ou degradantes, CRC/C/GC/8, 2 de
Março de 2007
Comentário geral n.º 9 (2007) – sobre os direitos das crianças com deficiências, CRC/C/
GC/9, 27 de Fevereiro de 2007
Comentário geral n.º 10 (2007) – sobre os direitos das crianças no âmbito da justiça dos
jovens, CRC/C/GC/10, 9 de Fevereiro de 2007
Comentário geral n.º 11 (2009) – sobre crianças indígenas e os seus direitos ao abrigo
da Convenção, CRC/C/GC/11, 12 de Fevereiro de 2009
Comentário geral n.º 12 (2009) – sobre o direito da criança a ser ouvida, CRC/C/GC/12,
1 de Julho de 2009
Comentário geral n.º 13 (2011) – sobre o direito da criança a não ser sujeita a qualquer
forma de violência, CRC/C/GC/13, 18 de Abril de 2011
Comentário geral n.º 14 (2013) – sobre o direito da criança a que o seu interesse superior seja primacialmente tido em conta, CRC/C/GC/14, 29 de Maio de 2013
Comentário geral n.º 15 (2013) – sobre o direito da criança ao gozo do melhor estado
de saúde possível, CRC/C/GC/15, 17 de Abril de 2013
Comentário geral n.º 16 (2013) – sobre as obrigações dos Estados relativamente ao
impacto do setor do sector empresarial nos direitos das crianças, CRC/C/GC/16,
17 de Abril de 2013
Comentário geral n.º 17 (2013) – sobre o direito da criança ao repouso, tempos livres,
brincar, atividades recreativas, vida cultural e artística, CRC/C/CG/17, 17 de Abril
de 2013
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
Convenção sobre a Discriminação em matéria de Emprego e Profissão (adotada em
25 de Junho de 1958, entrou em vigor em 15 de Junho de 1960) (Convenção n.º 111)
CONFERÊNCIA DE HAIA PARA A LEI PRIVADA INTERNACIONAL
Convenção sobre os aspetos civis do rapto internacional de crianças (adotada em 25 de
Outubro de 1980, entrou em vigor em 1 de Dezembro de 1983)
Convenção relativa à Competência, à Lei aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à
Cooperação em matéria de Responsabilidade parental e de medidas de Proteção das
Crianças (adotada em 19 de Outubro de 1996, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2002)
116
Irena de
Lista
Majstorović
documentos legais relevantes
Convenção sobre a recuperação internacional de Apoio à Criança e outras formas de
sustento familiar (adotada em 23 de Novembro de 2007, entrou em vigor em 1 de
Janeiro de 2013)
Protocolo sobre a lei aplicável às obrigações de sustento (adotado em 23 de Novembro
de 2007, entrou em vigor em 1 de Agosto de 2013)
DOCUMENTOS DO CONSELHO DA EUROPA
Convenção para a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais (adotada
em 4 de Novembro de 1950, entrou em vigor em 3 de Setembro de 1954) ETS 005,
como emendada pelos Protocolos N.os 11 e 14, que entraram em vigor em 1 de Junho
de 2010) (ECHR)
Convenção europeia sobre a repatriação de menores (adotada em 28 de maio de 1970,
entrou em vigor em 11 de Agosto de 1978) CETS n.º 85
Convenção europeia sobre o estatuto jurídico das crianças nascidas fora do casamento (adotada em 15 de Outubro de 1975, entrou em vigor em 11 de Agosto de
1978) CETS n.º 85
Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e
à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e de Medidas de Proteção
das Crianças (adotada em 20 de Maio de 1980, entrou em vigor em 1 de Setembro de
1983) CETS n.º 105
Convenção europeia sobre o exercício dos direitos das crianças (adotada em 25 de
Janeiro de 1996, entrou em vigor em 1 de Julho de 2000) ETS n.º 160
Carta social europeia (revista) (adotada em 3 de Maio de 1996, entrou em vigor em 1 de
Julho de 1999) ETS n.º 163
Convenção Relativa às Relações Pessoais no que se Refere às Crianças (adotada em 15
de Maio, entrou em vigor em 1 de Setembro de 2005) ETS n.º 192
Convenção do Conselho da Europa para a proteção das crianças contra a exploração
sexual e os abusos sexuais (adotada em 25 de Outubro de 2007, entrou em vigor em
1 de Julho de 2010) CETS n.º 201
Convenção europeia em Matéria de Adoção de Crianças (revista) (adotada em 27 de
Novembro de 2008, entrou em vigor em 1 de Setembro de 2011) CETS n.º 202
Convenção europeia para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes (adotada em 26 de Novembro de 1987, entrou em vigor em 1 de
Fevereiro de 1989) CETS n.º 126
Carta europeia das linguas regionais ou minoritárias (adotada em 5 de Novembro de
1992, entrou em vigor em 1 de Março de 1998) CETS n.º 148
Convenção Quadro para a proteção das minorias nacionais (adotada em 1 de Fevereiro
de 1995, entrou em vigor em 1 de Fevereiro de 1998) CETS n.º 157
Convenção para a proteção dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face
às aplicações da biologia e da medicina(adotada em 4 de Abril de 1997, entrou em
vigor em 1 de Dezembro de 1999) CETS n.º 164
Protocolo Adicional à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da
Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, Que
Proíbe a Clonagem de Seres Humanos (adotado em 12 de janeiro de 1998, entrou
em vigor em 1 de Março de 2001) CETS n.º 168
Lista de documentos legais relevantes 117
Segundo Protocolo Adicional à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e
da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, relativo ao Transplante de Órgãos e Tecidos de Origem Humana (adotado em 24 de
Janeiro de 2002, entrou em vigor em 1 de Maio de 2006) CETS n.º 186
Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos do Homem e a Biomedicina relativo à
Investigação Biomédica (adotado em 25 de Janeiro de 2005, entrou em vigor em 1 de
Setembro de 2007) CETS n.º 195
Protocolo adicional à Convenção sobre os direitos humanos e a biomedicina relativamente a testes genéticos para fins relacionados com a saúde (adotado em 27 de
Novembro de 2008) CETS n.º 203
Recomendação n.º R (98) 1 do Comité de Ministros do Conselho da Europa aos
Estados-Membros sobre a Mediação Familiar (adotada em 21 de Janeiro de 1998)
Recomendação 1639 (2003) sobre mediação familiar e igualdade dos sexos (adotada
em 25 de Novembro de 2003)
Diretrizes sobre uma justiça adaptada às crianças (2010) (adotada em 17 de Novembro
de 2010)
DOCUMENTOS DA UNIÃO EUROPEIA
Carta dos direitos fundamentais da União Europeia, 2010] OJ C83/389
Tratado da União Europeia [2012] OJ C326/13
Tratado sobre o funcionamento da União Europeia [2012] OJ C326/47
Diretiva do Conselho 2000/43/EC de 29 de Junho de 2000, que aplica o princípio
da igualdade de tratamento entre as pessoas, sem distinção da origem racial ou
étnica (Diretiva de igualdade racial) [2000] OJ L180/22
Diretiva do Conselho 2000/78/EC de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um
quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional
(Diretiva sobre igualdade no emprego) [2000] OJ L303/16
Regulação do Conselho (EC) N.º 2201/2003 de 27 de Novembro de 2003, relativo à
competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE)
nº 1347/2000 [2003] OJ L338/1
Diretiva 2004/38/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril de 2004,
relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos
membros das suas famílias no território dos Estados-Membros (EEC) N.º 1612/68
e revogando as Diretivas 64/221/EEC, 68/360/EEC, 72/194/EEC, 73/148/EEC,
75/34/EEC, 75/35/EEC90/364/EEC e 93/96/EEC [2004] OJL158/77
Diretiva 2006/54/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 5 de Julho de 2006,
relativa à aplicação do princípio da igualdade de oportunidades e igualdade de
tratamento entre homens e mulheres em domínios ligados ao emprego e à atividade profissional (Diretiva do igual tratamento dos géneros) [2006] OJ L204/23
Diretiva 2008/52/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de Maio de 2008,
sobre mediação em certos aspetos civis e comerciais [2008] OJ L 136/3
Livro verde sobre os modos alternativos de resolução dos litígios em matéria civil e
comercial [2002] COM 196
118
Lista de documentos legais relevantes
Programa da UE para os direitos da criança, Comunicação da Comissão do Parlamento
Europeu, do Conselho, do Comité Europeu Económico e Social, e do Comité das
Regiões – Uma Agenda da UE para os Direitos da Criança [2011] COM 60
DOCUMENTOS DA OSCE
Conferência sobre segurança e cooperação na Europa, ata final (adotada em 1 de
Agosto de 1975) (Ata final de Helsínquia)
Lista de documentos legais relevantes 119
PARTE II:
COMBATER
A DISCRIMINAÇÃO
DA CRIANÇA
120
Irena Majstorović
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças 121
“Os adultos não nos tratam como seres humanos. Tratam-nos como bébés que
ainda não se conseguem expressar”1
CAPÍTULO 5:
ADULTISMO E DISCRIMINAÇÃO COM
BASE NA IDADE CONTRA AS CRIANÇAS
Manfred Liebel
Prof. Dr. Manfred Liebel, Diretor do Instituto para os Estudos
Internacionais sobre a Infância e Juventude na International
Academy for innovative Pedagogy, Psychology and Economy
(INA gGmbH) e do Mestrado em Estudos sobre a Infância e os
Direitos das Crianças na Freie Universität Berlin.
[email protected]
Não ser discriminado e ser protegido da discriminação pertence aos direitos
humanos inalienáveis, o que é válido para as crianças. Os critérios pelos quais
a discriminação é medida, como por exemplo encontrar-se em desvantagem
por causa da cor da pele, do sexo ou do ambiente social, estão definidos em
tratados de direitos humanos internacionais e, da mesma forma, encontraram
o seu caminho para a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (daqui
por diante: CDC). O facto de os humanos poderem experimentar discriminação, com base na sua idade, apenas recentemente foi reconhecido e, aqui
e ali, tem levado a exigências e políticas legais correspondentes. No entanto,
até agora, quase só os idosos se encontravam no foco da atenção. O artigo
que se segue tenciona explorar porquê e como as pessoas também podem ser
discriminadas, de formas específicas, por não terem ainda atingido a maioridade, isto é por serem crianças ou ‘menores’, e de que modo esta situação deve
ser confrontada. Existem similaridades com aquilo que é designado de ‘adultismo’ e com o que pode ser compreendido como um ambiente estrutural de
discriminação com base na idade.
1
De um questionário feito em 2006 e 2007 pela Aliança para os Direitos das Crianças em
Inglaterra e pelo Gabinete National para as Crianças (Willow, Franklin & Shaw, 2007: 26)
122
Manfred Liebel
1. O que se compreende por discriminação?
Neste artigo2 a discriminação, em geral, é compreendida como “uma ação
que ameaça as pessoas injustamente, devido à sua pertença a um grupo social
particular. Os comportamentos discriminatórios tomam muitas formas, mas
eles envolvem alguma forma de exclusão ou rejeição” (Nações Unidas, n.d.
CyberSchoolBus). Frequentemente, a diferença é feita entre discriminação
direta ou indireta ou institucionalizada. O termo discriminação direta aplica-se quando uma pessoa ou grupo de pessoas se encontra, deliberadamente,
em desvantagem, devido a certas caraterísticas visíveis ou atribuíveis e, estão,
desta forma, impedidas de ter um estatuto de igualdade, igualdade de acesso
a recursos, igualdade de acessos aos processos de tomada de decisão, igual
forma de exercício de direitos, etc. Discriminação indireta ou institucionalizada aplica-se quando certas leis, regulações, medidas, normas sociais, etc.,
parecem ser neutrais, ou aplicáveis a todos da mesma maneira, mas, de facto,
têm consequências prejudiciais sobre uma pessoa ou grupo de pessoas, ou tais
consequências são aceites na sua implementação. Além disso, a molestação
conta como discriminação, quando a dignidade de uma pessoa está danificada e é criado um meio ambiente que é caraterizado por intimidação, hostilidade, humilhação, degradação ou insulto. Tendo em vista a sua origem ou
causa, deve fazer-se uma diferenciação entre a discriminação individual ou
estrutural. A última pode ser compreendida como uma forma de violência
estrutural ou, na sua forma extrema, como genocídio, também.3 A realidade
social mostra que uma pessoa ou grupo de pessoas nunca é discriminada com
base num único fundamento, mas sempre devido a múltiplos fundamentos.
Isto, frequentemente, acumula os seus efeitos perniciosos, e é denominada de
discriminação composta ou intersecional (ver Makkonen, 2002).
A proibição da discriminação, enquanto uma proibição de arbitrariedade,
é principalmente aplicada à ação governamental, mas também pode ser aplicada ao domínio não-governamental. O mesmo acontece com os contratos
entre pessoas. A última depende da importância que a sociedade confere ao
controverso princípio da autonomia privada e outros direitos básicos. A proibição da discriminação, que foi inicialmente concebida como um direito de
defesa, tem sido igualmente compreendido como um direito de prescrição ou
de participação, por exemplo, quando se espera que o Estado ou a autoridade
2
Algumas partes deste artigo baseiam-se num capítulo do meu livro: Children’s Rights
from Below: Crosscultural perspetives. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2012(a). Gostaria
de agradecer às minhas colegas Rebecca Budde, Janica Hundacker e Rita Nunes, pelos seus
comentários e pelo seu apoio em expressar os meus pensamentos em inglês.
3
Parece-me importante concetualizar a discriminação de um modo que inclui consequências existenciais, incluindo a destruição das condições para uma vida humana com dignidade e as suas correspondentes identidades sociais (ver, p. ex., Moses, 2010; Rashed & Short,
2014).
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
123
local gaste dinheiro para combater a discriminação, i.e., para promover a
igualdade legal ou social.4
As caraterísticas definidas em tratados internacionais de direitos humanos5, que não lhes permite dar espaço a uma desvantagem, aplica-se a todos
os seres humanos, independentemente da sua idade. Até agora, não tem
ficado expressamente contemplado nestes tratados que a discriminação pode
ter como razão primária a idade de uma pessoa ou de um grupo social.6
Até recentemente, é feita referência à idade como uma possível razão para
discriminação, de que as pessoas idosas são consistentemente vítimas, e cuja
participação plena na vida social se tem a intenção de proteger e garantir.7 O
que está a receber pouca consideração é o facto de pessoas ou grupos sociais
poderem sofrer de discriminação ou encontrar-se numa situação de dependência, devido a um baixo estatuto social ou legal, em conexão com o seu
estado de serem menores.
2. Discriminação contra as crianças
Embora em alguns países as leis e os regulamentos que protegem os adultos idosos da discriminação baseada na idade,8 tenham entrado em vigor
durante a última década, em praticamente nenhum país é a idade ou o estatuto das crianças oficialmente reconhecido como razão ou causa de discriminação. Pelo contrário, muitos países têm regulações e práticas legais que
suportam a discriminação das crianças com base na idade. Por exemplo, o
4
Na Alemanha, o dever para com a correspondente implementação é, de acordo com a
jurisdição do Tribunal Constitucional Federal Alemão, sujeito a uma “reserva do possível, em
termos do que o indivíduo pode, de forma sensata, reclamar da sociedade” (BVerfG, 1 BvR
2320/98 of 10.12.2004, parágrafo n,º 21). Disponível em: http://www.bverfg.de/entscheidungen/rk20041210_1bvr232098.html
5
No seio da estrutura da ONU, isto inclui a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948), os acordos sobre direitos civis e políticos (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, 1966), como nos direitos económicos, sociais e culturais (Pacto Internacional sobe
Direitos Económicos, Sociais e Culturais, 1966), para além de convenções específicas que se
referem particularmente a grupos de pessoas vulneráveis (i.e. a Convenção da ONU sobre os
Direitos da Criança), bem como protocolos facultativos (i.e. sobre crianças em cenários de
conflitos armados).
6
O Comité de Direitos Humanos da ONU, que foi substituída pelo Conselho de Direitos
Humanos da ONU, reconhece a idade como um motivo para discriminação, por referência à
caraterística não especificada ‘outro estatuto’, o que em todos os tratados de direitos humanos
segue a denominação de motivos de discriminação específicos.
7
Prescrições correspondentes encontraram o seu caminho para, por exemplo, integrar as
diretivas antidiscriminação da União Europeia, ou o Ato Geral Alemão de Igualdade de Tratamento (Allgemeines Gleichbehandlungsgesetz: AGG, 2006).
8
Um dos poucos exemplos de leis dedicadas à discriminação baseada na idade é o Ato
Australiano contra a Discriminação na Idade, de 2004; ver Hemingway, 2004.
124
Manfred Liebel
Ato Geral Alemão de Igualdade de Tratamento (AGG), que tem em consideração a discriminação com base na idade, tem prescrições que explicitamente
permitem um diferente tratamento em relação à idade, sobretudo relativamente a pessoas jovens. Desta maneira, limites mínimos na idade são exigidos em determinados trabalhos ou para iniciar uma educação profissional. As
mesmas regras, em termos de contratos de emprego (para rácios de salários
e pagamentos) e para o término de um contrato de emprego. Tais regulações
são consideradas “objetivas, adequadas e justificadas por uma causa legítima”,
são justificadas através do argumento de que a integração dos jovens na força
de trabalho deve ser ajudada e para assegurar a proteção dos menores (de
acordo com o parágrafo 10 ‘Tratamento diferencial justificável em razão da
idade’).
Outro caso é o sancionamento legal de diferenças de salário, em função
da idade do trabalhador. Na Austrália, as designadas ‘taxas de salário júnior’
estão, atualmente, isentas da legislação antidiscriminação.9 Esta prática é,
por vezes, também, explicitamente estabelecida nas regulações do salário
mínimo. Nos Países-Baixos, o salário mínimo é escalonado de acordo com
a idade; não há salário mínimo, de todo, para os trabalhadores com idades
abaixo dos quinze anos (embora vários tipos de emprego sejam permitidos a
partir dos 13 anos de idade) e um /a jovem de quinze anos está habilitado/a a
apenas um terço do total do salário mínimo de um adulto, aumentando gradualmente até à quantia total do salário mínimo ao atingir os 23 anos de idade.
De forma semelhante, na Grã-Bretanha, o Ato Nacional do Salário Mínimo
(1998, capítulo 39, 1, 2, c) não se aplica àqueles que se encontram na faixa
etária da escolaridade compulsiva (16 anos); em 2009, o salário mínimo, por
hora, era de £5.73 para um adulto, £4.77 para quem tem uma idade abaixo dos
vinte e dois anos, e £3.53 para aqueles que têm menos de dezoito anos. Nos
Países Baixos, isto é explicitamente justificado pelo Ministro dos Assuntos
Sociais, por uma assumida diferença na produtividade, por um aumento das
hipóteses de os jovens entrarem no mercado de trabalho, por as necessidades
dos jovens serem menores, quando comparadas com as dos adultos, e pela
necessidade de não tornar o trabalho mais atrativo do que a escola, para os
jovens (Bourdillon et al., 2010: 177).10 Algumas convenções internacionais
9
Taxas de salário júnior são contraditórias com o artigo 27 da CDC, bem como com o artigo 7 do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que obrigam os
Estados subscritores a assegurarem que todos têm o direito a “salários justos e igual remuneração para um trabalho de igual valor, sem distinção de qualquer tipo” (Comissão dos Direitos
Humanos e Igualdade de Oportunidades, 2000:61).
10
A justificação das taxas diferenciadas do salário mínimo, fornecidas pelo Governo neerlandês, é, em parte, questionado pela Confederação dos Sindicatos dos Países Baixos (FNV), e
considerada problemática nas Observações Conclusivas adotadas, em 2010, do Comité sobre
a Convenção para a Fixação do Salário Mínimo da OIT N.º 131 (ver http://www.ilo.org/dyn/
normlex/en/f?p=1000:13101:0::NO::P13101_COMMENT_ID:3077156).
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
125
(p. ex., a Convenção 138 da Organização Internacional Trabalho, as idades
mínimas estão fixadas para os diferente tipos de emprego) podem, possivelmente, ter também, efeitos discriminatórios similares contra as crianças.
A falta de consideração pelo aspeto específico às crianças da discriminação nos tratados de direitos humanos, conduziu, ocasionalmente, ao questionamento se os direitos humanos são considerados como “direitos dos adultos” (Wintersberger, 1994). Notavelmente, as razões com base na idade para
a discriminação não são explicitamente consideradas na CDC. O Artigo 2
afirma o seguinte:
1. Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir os direitos
previstos na presente Convenção a todas as crianças que se encontrem
sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou outra da criança, de seus pais ou representantes
legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social, fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação.
2. Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas para que a
criança seja efectivamente protegida contra todas as formas de discriminação ou de sanção decorrentes da situação jurídica, de actividades,
opiniões expressas ou convicções de seus pais, representantes legais ou
outros membros da sua família.
Este artigo é, com frequência, interpretado como uma proibição ou tratamento discriminatório baseado na diferença de atributos entre as crianças, i.e.
em comparação com outras crianças, mas não em relação aos adultos (ver, p.
ex., Áustria, 2004). Embora a CDC não nomeie expressamente a idade como
um possível fator de discriminação, o Comité sobre os Direitos da Criança
da ONU,11 nas suas várias Observações Conclusivas, mencionou a discriminação contra as crianças baseada na idade e pediu o seu fim. Em particular,
antecipou uma contínua verificação da idade limite, de acordo com os seus
supostos propósitos de proteção e a sua apropriabilidade. Aqui, o Comité foi
guiado por duas noções: regulações respeitantes a aspetos relativos à proteção
e desenvolvimento das crianças e jovens (por exemplo, legislação criminal
juvenil), que devia estabelecer idades limites mais elevadas, enquanto as idades limites em regulações relacionadas com a independência das crianças (por
11
Este Comité, que atualmente é composto por 18 personalidades independentes eleitas
pela Assembleia Geral da ONU, avalia os relatórios dos Estados, exigidos pela Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, sobre a implementação dos direitos das crianças, e emite
recomendações na forma de assim designadas Observações Conclusivas. Para além disso, dá
os seus pareceres nos assim designados Comentários Gerais, sobre assuntos fundamentais da
práxis dos direitos das crianças.
126
Manfred Liebel
exemplo, direitos de participação) deviam ser verificadas para se avaliar como
podiam ser mais baixas ou mesmo se idades limites deviam ser aplicadas.12
Formas de discriminação baseadas na idade ou legitimadas pela idade
(do/a menor) podem ser encaradas como a expressão de um entendimento de
que na infância as crianças são, em princípio, inferiores aos adultos e têm um
estatuto mais baixo ou têm menos competências. É um meio – nem sempre
usado conscientemente – de conservar a vantagem dos adultos e para impedir
ou adiar a igualdade das crianças. Por um lado, a necessidade das crianças de
proteção deve ser satisfeita, por outro lado, a suposta necessidade de ‘civilizar’
as crianças, através da educação ou de regras de conduta deve ser mantida. A
discriminação contra as crianças baseada na idade é também discutida sob a
designação de ‘adultismo’, que normalmente é compreendido como o abuso
do poder dos adultos em relação às crianças (Flasher, 1978: 514).13 É definida
como os “comportamentos e atitudes baseadas na assunção de que os adultos
são melhores do que as pessoas jovens, e estão habilitados a agir sobre elas
sem o acordo destas” Bell, 1995: 1; Gong & Wright, 2007). O termo é igualmente usado para descrever a opressão das pessoas jovens pelos adultos, que
pode ser comparada ao racismo e ao sexismo (Roche, 1999). Termos similares, como ‘privilégio de adultos’, ‘adultocracia’ e ‘adultocentrismo’ têm sido
propostos como alternativas (Bonnichsen, 2011) a este tipo de discriminação.
A pouca investigação existente até ao momento distingue formas diferentes,
como ‘adultismo internalizado’ (Sazama, 2004), ‘adultismo institucionalizado’
(Hernandez & Rehman, 2002), ou ‘adultismo cultural’. Num manual sobre
mudança na comunidade, é afirmado que o adultismo internalizado leva as
pessoas jovens a “questionar a sua própria legitimidade, a duvidar da sua própria capacidade para fazer a diferença” e a perpetuar uma “cultura de silêncio” entre eles (Chekoway, 1998: 12). O adultismo institucionalizado pode ser
aparente em qualquer caso de preconceito sistémico, em que as limitações
ou exigências formalizadas são impostas às pessoas simplesmente devido à
sua tenra idade. Como veremos nos tópicos seguintes, as políticas, as leis, as
regras, as estruturas organizacionais, e os procedimentos sistemáticos, cada
12
Ver Comentário Geral N.º 12 ‘O direito a ser ouvido’, 2009. Disponível em: http://www2.
ohchr.org/english/bodies/crc/docs/AdvanceVersions/CRC-C-GC12.pdf.
13
De acordo com a Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Adultism), o termo ‘adultismo’
foi primeiramente usado por Patterson Du Bois (1903:17), e aparece na literatura francesa de
Psicologia, em 1929, descrevendo a influência dos adultos sobre as crianças. Foi vista como
uma condição através da qual uma criança possui “um físico e um espirito” à imagem dos
adultos, e foi exemplificado por um “rapaz de 12 anos e por uma rapariga de 13, que tinham
o espírito e a personalidade de adultos. […] Eles foram colocados em instituições, devido a
roubo e prostituição. Estas formas de precocidade conduzem o indivíduo a ter dificuldades e
deve ser reconhecido precocemente no desenvolvimento do indivíduo” (Courbon, 1933/2010:
355). Esta definição foi, mais tarde, substituída por uma proposta efetuada nos anos 1970, em
que se definia o adultismo como o abuso do poder dos adultos sobre as crianças.
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
127
um serve de mecanismo para alavancar, perpetuar, e instilar o adultismo por
toda a sociedade. Estas limitações são frequentemente reforçadas através da
força física, da coerção ou de ações policiais, e são, muitas vezes, vistas pelo
prisma de um duplo padrão (Males, 1997). O adultimo cultural é muito mais
ambíguo, porém é uma forma muito mais prevalente de discriminação ou de
intolerância contra as crianças e os jovens. Quaisquer restrições ou formas de
exploração devidas à sua tenra idade, enquanto opostas às suas habilidades,
compreensão ou capacidades, podem ser designadas de ‘adultistas’. Estas restrições são, com frequência, atribuídas a eufemismos permitidos a adultos,
com base apenas na sua idade, como um ‘melhor julgamento’ ou ‘a sabedoria
da idade’. Isto resume o adultismo cultural, de modo semelhante a outras versões de adultismo, enquanto uma abordagem de discriminação com base na
idade ou como um passo na sua direção.
A discriminação das crianças relacionada ou justificada com a sua idade
tem, até ao presente, sido negligenciada em debates e na investigação sobre
os direitos das crianças. O desenvolvimento da teoria correspondente é muito
recente.14 Portanto, uma diferenciação tipológica entre vários tipos desta
forma de discriminação (ou adultismo) deve ser, primeiro, realizada. Na minha
opinião, devem distinguir-se quatro formas de discriminação, que se relacionam com as crianças enquanto indivíduos ou enquanto um grupo social
constituído por ordens geracionais:
1. medidas contra o castigo de atitudes indesejadas das crianças, que são
toleradas ou encaradas como normais nos adultos:
2. medidas que são justificadas pela real ou presumida necessidade especial de proteção das crianças, mas que, afinal de contas, conduzem a
mais desvantagens para estas, por um lado porque o seu âmbito de atividade é limitado, por outro lado porque elas são excluídas de práticas
específicas e de áreas da vida social;
3. o acesso limitado, quando comparado com os adultos, a direitos, bens,
instituições e serviços;
4. a falta de consideração do grupo social constituído pelas crianças nos
processos de tomada de decisões políticas, que pode trazer consequências negativas, mais tarde, na vida das criança e na vida das gerações
seguintes.
Os acima mencionados tipos de discriminação contra as crianças com base
na idade encontram-se quase por todo o mundo. Mas eles não afetam todas
14
A discriminação com base na idade foi uma questão central de protesto para o movimento
antiautoritário, já nas décadas de 1960 e 1970, mas não estava relacionada com os direitos
humanos e não conduziu a nenhuma teoria explícita sobre discriminação com base na idade
ou adultismo.
128
Manfred Liebel
as crianças da mesma forma. Os primeiros três, pelo menos, são particularmente comuns nas crianças que vivem em situação de grande pobreza ou de
particular ‘perigo’, seja devido ao facto de que o seu comportamento social
não está em consonância com a conceção prevalente do comportamento
apropriado para as crianças, seja porque elas têm comparativamente poucas
oportunidades para conhecerem os seus direitos e insistirem na sua aplicação. A discriminação específica à idade é, frequentemente, acompanhada por
discriminação com base em outros fundamentos, que a reforçam. A este respeito, deve ter-se em atenção a discriminação camuflada ou combinada com
outros tipos de discriminação (discriminação ‘escondida’ ou ‘intersecional’),
de que são particularmente vítimas as crianças que já se encontram numa
situação de desvantagem, e que não podem chamar a atenção para si mesmas
ou que o fazem de formas ‘conspícuas’. De modo inverso, a referência à idade
pode servir como uma razão ‘insuspeita’ para disfarçar, por exemplo motivos
racistas ou sexistas.
2.1. Discriminação devida a comportamentos indesejados
Uma forma comum de discriminação das crianças com base na idade são as
políticas contra comportamentos que não são desejados, e respetivo castigo,
tolerados ou encarados como adequados nos adultos. Estes tipos de comportamento não são rejeitados e combatidos por constituírem uma infração
das leis criminais ou porque impliquem perigo para as pessoas, mas apenas
devido ao facto de envolverem um/uma ‘menor’. Entre estes, as assim designadas ‘ofensas ao estatuto’ (CRIN, 2010), que são medidas como o recolher
obrigatório e proibições de permanecer em locais públicos, limitados a pessoas de certas idades, e castigo em caso de estas medidas não serem respeitadas. Num sentido mais lato, podem igualmente incluir medidas repressivas
devidas a, ou para evitar, comportamentos indesejados ou ‘insubordinados’,
‘vadiar pelas ruas’, ‘vagabundagem’, criação de grupinhos, fugas, ‘cábulas na
escola’15, desobediência, recolha de ‘lixo’ ou outros tipos de comportamentos
encarados como ‘antissocial’ ou inadequados para as crianças.16 ‘Antissocial’
15
A este respeito, não se trata de uma questão de violação do atendimento legal da escola,
mas de degradação moral, falta de consideração pela causa, e tratamento repressivo das crianças que não vão às aulas.
16
Por exemplo, de diferentes partes do mundo, ver CRIN (2013), por exemplo, as Normas
sobre Comportamentos Antissociais (ASBOs), no Reino Unido e na Irlanda, ou os recolheres
obrigatórios entre o anoitecer e o amanhecer que são diferenciados, de acordo com a idade,
na Rússia. Virginia Morrow (2002) procurou recolher as perspetivas e as reações de crianças
com idades entre os 12 e os 15 anos, em Inglaterra, sobre o recolher obrigatório. Ver, também,
sobre este assunto, o Comentário Geral N.º 10 do Comité dos Direitos da Criança das Nações
Unidas (“Direitos das Crianças na Justiça Juvenil”): “É muito comum que os códigos criminais
contenham prescrições que criminalizam os problemas comportamentais das crianças, como
vadiação, ociosidade, fugas e outros atos, que, frequentemente, são resultado de problemas
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
129
é entendido de forma a incluir, até, tipos de comportamento em crianças que
são considerados ‘normais’ em crianças, mas que os adultos consideram perturbadores. Isto pode ser visto, por exemplo, no ‘ruído das crianças’, que é
interpretado pelos adultos como sendo uma perturbação da paz e, portanto,
é uma razão para proibir as crianças de brincarem, do ‘reboliço’ em pátios e
lugares públicos, ou mesmo impedir a construção de instalações para crianças em áreas residenciais.
Na Alemanha, em janeiro de 2010, Berlim foi o primeiro Estado Federal a
colocar o ‘ruído das crianças’ ao abrigo da proteção do Estado. No parágrafo
6 da lei sobre a proteção contra a poluição sonora, o seguinte parágrafo novo
foi introduzido: “Ruídos perturbadores provindos de crianças, como expressão do desenvolvimento natural da criança e a preservação do desenvolvimento da oportunidade apropriadas para crianças, são, em princípio, adequados e, portanto, aceitáveis.” A necessidade de modificar a lei foi verificada
numa série de casos legais, em que o estabelecimento de centros de cuidados
à criança foi alvo de objeções, com base no expectável aumento da poluição
sonora (ver BBC News, 2010). Em maio de 2011, o Ato Federal de Controlo
de Imisção (que é uma regra aplicável em toda a Alemanha) foi emendada
com um parágrafo similar. No parágrafo 22, diz-se que: “O ruído que é causado pelas crianças em instalações de centros de dia para crianças, recreios
ou instituições semelhantes, como campos de jogos, não tem, normalmente,
efeitos ambientais prejudiciais. Para avaliar este ruído, não é permitido usar
os dados limite ou os níveis de orientação da imisção.17
O notável fenómeno inclui as férias ‘sem crianças’ ou, mesmo, as assim
designadas ‘áreas livres de crianças’, inclui também certos restaurantes, hotéis
ou resorts de saúde. Isto nem sempre está expresso de forma direta e clara,
como num caso recente de uma estalagem no Estado Federal Alemão da
Baviera: “Eu fiz uma análise de mercado que mostra que existe um nicho de
mercado.”18 No entanto, quando esta linha fina exclui as crianças, mas não os
animais de estimação, pode argumentar-se que existe discriminação contra as
crianças (por exemplo, na Grã-Bretanha, uma agência imobiliária desenvolveu um conceito de ‘aldeia livre de crianças’).19
psicológicos ou socioeconómicos. É particularmente um assunto de preocupação que as raparigas e as crianças da rua sejam, muitas vezes, vítimas de criminalização. […] O Comité
recomenda que os Estados subscritores devem abolir as prescrições sobre ofensas ao estatuto,
de modo a estabelecer um tratamento igualitário, à luz da lei, para crianças e adultos.”
17
Alemanha, 2013; disponível em: http://www.gesetze-im-internet.de/bundesrecht/bimschg/
gesamt.pdf (tradução do autor).
18
http://www.focus.de/panorama/welt/tid-7707/kinderfreie-zone_aid_136211.html.
19
http://www.stuttgarter-nachrichten.de/inhalt.rentnerparadies-ein-dorf-als-kinderfreiezone.
b882975b-5cce-47a1-a341-dee4e21e9d68.html.
130
Manfred Liebel
Medidas contra o uso de lugares públicos por parte das crianças e de jovens
acontecem, frequentemente, no contexto da privatização ou comercialização
desses espaços. Os jovens, que não agem em conformidade com um comportamento orientado para o consumo, por um lado porque não possuem os
meios financeiros suficientes, por outro porque eles querem usar esses espaços para o seu próprio prazer ou para comunicarem entre si de uma forma que
é apropriada para eles/elas, são expulsos e, mesmo, perseguidos pela polícia.
Um exemplo vindo da Alemanha, é a regulação política, que primeiro entrou
em vigor na cidade de Chemnitz, em 26 de março de 2009. Com o objetivo
de proteger os cidadãos de molestamento e assegurar a proteção dos jovens,
alguns espaços públicos foram-lhes interditos. Alguns grupos específicos de
jovens são banidos de lugares públicos, porque são acusados de consumir
álcool e drogas, de serem ‘agressivos’ ou de se comportarem de uma forma
‘descontrolada’. Um exemplo específico é o dos estádios e campos de futebol, que ‘apenas podem ser usados para os seus propósitos’, não com ‘objetos
perigosos’ e onde não se pode entrar depois das 10 horas da noite (ver Stadt
Chemnitz, 2011).
O castigo corporal (que pode ser acrescentado a esta categoria de discriminação com base na idade), como uma forma de correção de comportamento indesejado, é uma prática social que causa danos à integridade física e
mental das crianças e jovens, ou que põem em risco a sua saúde ou, mesmo
a sua vida, é um exemplo.20 Outro exemplo que eu gostaria de referir é o
assim designado sistema de alarme Mosquito (usado em países europeus e na
20
Inúmeros exemplos podem ser encontrados no Relatório sobre a Violência contra as
Crianças da ONU (ONU, 2006). Num dos Manuais (CRIN, 2013), distribuído pela Child
Rights Information Network, é realçado: ‘As leis de muitos países falham na proteção das
crianças da violência da mesma forma que os adultos são protegidos dela.’ Em todo o mundo,
apenas 24 Estados, até ao momento, proibiram todas as formas de castigo corporal contra as
crianças (CRIN, 2009).
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
131
Austrália) ou o Tela Sónica (usada nos EUA e no Canadá). Este é um dispositivo eletrónico, usado para impedir os jovens de se aglomerarem, que emite
um som de alta frequência. O som pode normalmente ser ouvido apenas por
pessoas com menos de 25 anos de idade, uma vez que a capacidade humana
de ouvir sons de alta frequência se deteriora com a idade. O dispositivo é
comercializado como um instrumento de segurança para impedir os mais
jovens de se juntarem em áreas específicas. Como tal, é promovido para reduzir comportamentos antissociais, a pintura de graffitis, o vandalismo, o uso e
distribuição de drogas, e a violência. São vendidos, sobretudo, para uso junto
das lojas e perto de terminais de transporte. Até ao momento, o dispositivo é
vendido no Reino Unido, na Austrália, na França, na Dinamarca, em Itália,
em Espanha, na Alemanha, na Suíça, no Canadá e nos Estados Unidos. O
sistema de alarme Mosquito criou controvérsia com base nos direitos humanos. Os críticos dizem que discrimina os mais jovens e infringe os seus direitos humanos, enquanto os apoiantes argumentam tornar o Mosquito ilegal
infringiria os direitos dos proprietários dos estabelecimentos comerciais, que
sofrem perdas nos negócios, quando ‘adolescentes sem regras’ afastam os seus
clientes. De facto, o Mosquito é uma arma indiscriminada que apenas é bemsucedida em demonizar as crianças e os mais jovens e infringe os seus direitos
humanos.21
21
Uma campanha, no Reino Unido, designada de ‘Abaixo o zumbido’ exige que o Mosquito
seja banido. O Comissário das Crianças para a Inglaterra criticou o dispositivo por, indiscriminadamente, ter como alvo as crianças e os bebés, independentemente dos seus comportamentos. Ele descreve essas medidas como “demonizadoras das crianças e dos mais jovens”, e
como criando uma “divisão perigosa e segregadora” entre os jovens e os idosos. O dispositivo
foi criticado num relatório conjunto dos Comissários para as Crianças de todas as partes do
Reino Unido, que faz parte de uma revisão dos padrões no Reino Unido elaborada pela ONU.
Um relatório do Conselho da Europa, de 2010, pediu que fosse banido, sugerindo que o uso
do Mosquito pode infringir a legislação sobre os direitos humanos. Em janeiro de 2011, o
dispositivo foi banido em todos os edifícios da Assembleia e Parcerias de Sheffield (Reino
Unido), após uma campanha bem sucedida conduzida pelo Parlamento de Jovens local (see:
http://www.sheffi eldtelegraph.co.uk/news/local/local-teen-wins-campaignto-ban-controversial-device1-3104497). Sheffield é a maior cidade do país em que essa proibição se encontra
em vigor. Essa proibição foi reconhecida pelo Governo do Reino Unido no seu documento
‘Positive for Youth’, publicado pelo Departamento de Educação, em janeiro de 1012 (http://
media.education.gov.uk/assets/files/positive%20for%20youth.pdf). Este documento estratégico atua de forma a impulsionar uma nova abordagem às políticas globais dos Ministérios
do Governo para os jovens com idades compreendidas entre os 13 e os 19 anos. Embora
mencionada no documento, uma proibição nacional do dispositivo do Mosquito ainda não
faz parte do Acordo de Coligação, ou de parte da política do Governo (para mais informação,
ver http://en.wikipedia.org/wiki/The Mosquito). Outras medidas com o propósito de impedir
os mais jovens de se juntarem em centros comerciais são pôr a tocar música clássica ou usar
luzes cor-de-rosa. Elas são justificadas, pela polícia, por serem medidas contra o ‘comportamento antissocial’ dos jovens. Para exemplos de práticas em cidades britânicas, ver: http://
news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/england/nottinghamshire/7963347.stm and http://www.bbc.
co.uk/news/uk-england-birmingham16307364.
132
Manfred Liebel
Os menores, cujo comportamento é encarado como indesejável, são,
em muitos países, ameaçados com a prisão e outras formas de detenção,
embora eles não tenham infringido a legislação criminal geralmente aplicável.22 Uma vez que tenham sido identificados pela polícia ou pelo sistema
de justiça, é-lhes negada, muitas vezes, ajuda legal, caindo numa espiral de
depreciação crescente, de estigmatização e de desrespeito, até chegarem ao
ponto de atingirem formas de exclusão prolongada da vida social.23 Este pode
também ser o caso de crianças que aborrecem os próprios pais ou os novos
padrastos ou madrastas na família, e são, portanto, denunciadas às autoridades como sendo ‘associais’ ou ‘rebeldes’, de modo a verem-se livres delas.24
Particularmente afetadas são as crianças que se demoram ‘pelas ruas’ e que,
de maneira particularmente fácil, devido ao seu modo de vida diferente ou
‘perturbador’, são vistos como suspeitos de serem criminosos ou de serem
um perigo para os outros. Em casos extremos, a perseguição chega ao ponto
de as crianças se tornarem o alvo dos designados esquadrões da morte, que
– ocasionalmente, a pedido de homens de negócios abastados – se dedicam
a uma ‘limpeza social’ de bairros completos das cidades e procuram pôr um
termo à vida das crianças.25 Tais práticas são, por vezes, mesmo encorajadas
pela legislação, por exemplo pelas leis destinadas a ‘combater gangues’, que
marcam as crianças e os mais jovens, apenas pela sua forma de vestir, como
um perigo para a segurança e ordem públicas. Como são alvo destas medidas
sobretudo os bairros pobres, pode-se dizer que existe uma criminalização da
pobreza ou uma ‘discriminação escondida’.
Quando, a respeito desta questão, se discute sobre as ‘crianças com dificuldades’, os problemas das crianças não são normalmente abordados, em vez
disso, as crianças são encaradas como o problema em si mesmo. Os comportamentos ‘conspícuos’ das crianças são exagerados, desenraizados das suas causas, e usados como uma razão para justificar certas medidas, quer para defesa
de comportamentos indesejados, quer para os abafar. São normalmente justificados com o argumento de que as crianças têm uma notória necessidade de
educação e que alguém lhes deve ‘impor limites’. De facto, os mais jovens são,
22
No caso das crianças pequenas, elas podem mesmo ser dirigidas contra os adultos ou
mentores, que são encarados como culpados por negligência.
23
Mesmo na Diretrizes das Nações Unidas sobe Prevenção do Crime de Jovens, as ‘ofensas
de estatuto’ são expressamente contrariadas, devido às suas consequências estigmatizadoras,
vitimizadoras e criminalizadoras (Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil, 1990). Disponível em: http://www.unhchr.ch/html/menu3/b/h comp47.htm.
24
As histórias de crianças que cresceram em asilos para crianças na era pós-guerra na República Federal da Alemanha demonstra este ponto, que, embora tenha provocado escândalo
através da campanha ‘campanha dos asilos’ (Heimkampagne) na década de 1970, só recentemente foi ‘oficialmente’ admitida.
25
Podem encontrar-se exemplos, em particular, em países da América Latina, como o Brasil, a Colômbia, a Guatemala e El Salvador.
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
133
desta forma, considerados seres humanos a quem (ainda) falta ‘civilização’ e
de quem se pode recear, portanto, distúrbios ou perigos particulares. Os seus
comportamentos são medidos, em todas as suas componentes, segundo critérios de avaliação erigidos pelos adultos e projetados nas crianças e nos mais
jovens. São típicos de uma sociedade adultista e paternalista. Estas reflexões
também se aplicam à segunda forma de discriminação com base na idade, que
é justificada com a necessidade de proteger as crianças.
2.2. Discriminação com o intuito de proteger as crianças
A discriminação com base na idade não acontece sempre por causa de uma
intenção de trazer danos às crianças, mas pode ser uma consequência indesejável da proteção que se entende ser-lhe devida. As crianças são, sem quaisquer dúvidas, dependentes dos cuidados e da proteção dos adultos, e quanto
mais novas forem maior é essa dependência. Em alguns casos, certas regulações são absolutamente essenciais para a proteção das crianças, em que diferem das regulações para os adultos, por exemplo, manter as crianças afastadas
de conflitos armados ou prescrever cadeiras e cintos de segurança em veículos motorizados. Normalmente – particularmente em teoria do direito – presume-se que estabelecer idades limite é a melhor forma de conseguir essa proteção para as crianças. No entanto, o estabelecimento de idades limite pode,
como se pode verificar em muitos exemplos, ter consequências ambivalentes.
As crianças são confrontadas com uma série de idades limite, que as deixa
perplexas, no momento em que têm de tomar as suas próprias decisões –
muitas das quais têm consequências de enorme importância nas suas vidas.
A idade em que têm uma palavra a dizer nos tratamentos médicos, em que
podem contrair matrimónio, votar, ou decidir que religião desejam professar, é regulada, de maneira diferente, em cada cultura e, por vezes, no seio
da mesma cultura. Em algumas culturas, as crianças já assumem responsabilidades, que noutras são rejeitadas, por não serem consideradas adequadas
para as crianças; nestas últimas sociedades, a proteção das crianças vai até um
ponto tal que estas quase não têm a possibilidade de tomar as suas próprias
decisões. Os exemplos das idades limite para o trabalho infantil e a exclusão
das crianças trabalhadoras da legislação que regula o salário mínimo, mostra
até que ponto estas regulações podem conduzir à discriminação das crianças.
Elas negam a um grupo etário completo a decisão de ganhar dinheiro por
sua própria decisão, ou contribuir para a manutenção da sua família com o
dinheiro ganho com o seu trabalho, independentemente das condições em
que esse trabalho ocorre.
As crianças que trabalham e são mais novas do que esta idade limite
movem-se por entre as sombras da ilegalidade, têm de esconder o facto de
trabalharem, e não podem reclamar direitos laborais no local de trabalho.
134
Manfred Liebel
Isto, não apenas torna as crianças indefesas perante a exploração e os maus-tratos, ou mesmo as sujeita à perseguição policial, mas também prejudica a
sua autoestima. Sem ter em conta as razões que as levam a trabalhar, é-lhes
transmitido o sentimento de que estão a fazer algo de errado e de que devem
sentir-se envergonhadas por isso.26
Outro exemplo é o tratamento das assim designadas crianças deficientes.
Em muitos países, as crianças com dificuldades de saúde mental podem ser
institucionalizadas, recorrendo a fundamentos que não seriam aplicáveis aos
adultos. Em alguns lugares, as crianças são confinadas a instituições de saúde
mental, sem que os seus pontos de vista sejam tidos em consideração, o que
não acontece no caso dos adultos. Por exemplo, vários Estados dos EUA permitem que os pais voluntariamente hospitalizem os seus filhos em instituições de saúde mental (CRIN, 2009:18). Em outro contexto, os pais medicam
os filhos, devido à sua hiperatividade, considerando-a uma doença.27
As limitações no âmbito da atividade das crianças, devidas à sua idade,
são, geralmente, justificadas de duas formas. Em primeiro lugar, pensa-se que
é necessário proteger as crianças delas próprias, já que se julga que elas não
têm as competências necessárias para prever as consequências das suas decisões.28 Por outro lado, é admitido que as crianças da mesma idade possam
ter diferentes competências, e estabelecer uma idade mínima é, por isso, uma
medida imperfeita, mas é simplesmente julgada efetiva, já que é fácil de controlar e de implementar. Estes argumentos baseiam-se na conceção de que as
decisões tomadas acerca das crianças pertencem geralmente ao domínio dos
adultos, e de que os adultos são superiores às crianças em todas as matérias.
Têm, também, um entendimento paternalista de proteção, porque se entende
que esta fica melhor assegurada na mão dos adultos, que sabem melhor o que
é o ‘o interesse superior da criança’ (como afirmado na CDC).
26
Este e outros argumentos contra a Convenção 138 da OIT, em que é determinada a idade mínima para alguém se envolver em trabalho remunerado, podem ser encontrados em
Bourdillon, White & Myers (2009). Por razões de autoproteção e autoestima, organizações de
crianças trabalhadoras na América Latina e em África reclamam expressamente um ‘direito ao
trabalho’ (Liebel, 2004 & 2013b). Os juristas Karl Hanson e Arne Vandaele (2013), que – tendo
em vista as diferentes interpretações dos direitos das crianças – veem as crianças trabalhadoras expostas a um ‘dilema de diferença’, discutem diferentes possibilidades legais de confrontar
a discriminação e a desvantagem das crianças trabalhadoras.
27
Nem no relatório da Eurochild & Inclusion Europe (Latimier & Šiška, 2011), nem no
recente relatório mundial sobre as crianças com deficiência da UNICEF (UNICEF, 2013), é
abordada a discriminação com base na idade.
28
Com esta finalidade, há vários anos que é solicitado que as crianças, por exemplo, tenham
um direito individual a uma remediação pela violação dos seus direitos, que possam exercer
em tribunais nacionais e internacionais. Finalmente, um correspondente Protocolo Facultativo à CDC relativo à instituição de um Procedimento de Comunicação, foi adotado pela
Assembleia Geral da ONU, em 19 de dezembro de 2011, que inclui mecanismos de queixa individuais para as crianças. Disponível em: http://treaties.un.org/doc/source/signature/2012/
a-res66-138-english.pdf.
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
135
A proteção das crianças torna-se discriminação com base na idade quando
a relativa falta de experiência ou de competências serve para justificar regulações particulares que prolongam a dependências das crianças para além do
necessário ou limitam as suas liberdades no âmbito das suas atividades. Desta
maneira, o estatuto das crianças é de subordinação e a desigualdade entre os
adultos e as crianças é solidificada, impedindo as crianças de terem confiança
nas suas próprias competências e de fazer uso dos seus direitos de forma independente. Para confrontar este estado de coisas, as competências das crianças
devem, pelo menos, ser tomadas a sério, e deve ser-lhes dadas oportunidades
de participarem em decisões sobre como e de que riscos ou perigos estão protegidas ou sobre como querem moldar as suas vidas.
2.3. Restrição, com base na idade, de acesso a direitos e serviços
Os tipos de discriminação com base na idade acima referidos representam
uma violação dos direitos alocados às crianças ao abrigo da CDC. Eles violam
a sua dignidade humana, bem como os direitos específicos de se reunirem,
pacificamente, e de expressarem as suas opiniões. São, porém, igualmente
uma expressão do facto de que os direitos das crianças, em particular aqueles
direitos que têm a intenção de as proteger, são frequentemente concebidos
arbitrariamente pelos adultos ou por instituições do Estado. Neste caso, as
crianças têm poucas esperanças de os exercer ou influenciar.
Uma das principais intenções da CDC é, sem dúvida, pôr um fim ao tratamento arbitrário e, assim, também, à discriminação contra as crianças.
Assegura a proteção, a evolução e a participação das crianças, enquanto matéria de atribuição de direitos. No seu tratamento dessa questão, no entanto,
dificilmente oferece quaisquer oportunidades reais de exercício de direitos,
pelas próprias crianças, e de se protegerem a si mesmas da violação dos seus
direitos. O facto de as crianças poderem ser discriminadas puramente com
base nas suas idades não é explicitamente considerado na CDC. Os ‘interesses
superiores ’ das crianças são garantidos e serão alvo primário de consideração
(artigo 3), mais ainda, os seus pontos de vista devem ser tidos em consideração ‘de acordo com a sua idade e maturidade sobre as questões que lhe respeitem (artigo 12). Mas como o critério e a decisão sobre este assunto permanece
nas mãos dos adultos, os portões de acesso à discriminação com base na idade
continuam abertos.
Num estudo com crianças e jovens, entre os 12 e os 17 anos de idade, na
Inglaterra, Escócia e País de Gales (Gamelas, 2007), descobriu-se que todas
elas experimentavam discriminação devido à idade, incluindo quando tentavam aceder a serviços de emergência ou de apoio, ou usar transportes públicos
ou lojas de comércio. Os participantes mostraram prontidão em realçar a sua
determinação em conseguir igualdade de direitos para crianças e jovens. Este
136
Manfred Liebel
desejo manifestava-se num mais amplo compromisso com a igualdade: eles/
elas não pediam nem esperavam quaisquer favores especiais para quem tinha
menos de 18 anos. Em vez disso, acreditavam que todos tinham o direito de
serem tratados com respeito e justiça. Todas as crianças e jovens davam exemplos de discriminação pessoal, devido às suas idades, incluindo:
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chamarem uma ambulância e ser-lhes recusada ajuda, por terem
menos de 18 anos:
serem dispensados de serviços de saúde infantis, mas não serem elegíveis para serviços para adultos:
serem tratados de maneira diferente pela polícia – acusados de causarem distúrbios, de serem ‘insolentes’, de presumirem que iriam causar
vandalismo ou serem perigosos;
os adolescentes vítimas de bullying não receberem tanta ajuda na
escola, como as crianças mais novas;
não lhes ser permitido abrir uma conta bancária de poupança educação, por terem menos de 16 anos (apesar de terem apresentado todos
os documentos exigidos);
verem os bolsos dos casacos revistados por funcionários/seguranças, à
saída de centros comerciais;
serem servidos depois dos adultos, mesmo quando se encontravam à
frente destes, nas filas;
serem banidos de supermercados, por usarem o uniforme da escola;
não permitirem que os estudantes se sentassem num café de supermercado para tomarem o pequeno-almoço – tinham de comprar a
comida e comê-la fora do recinto;
serem banidas de lojas em que os animais podiam entrar;
restrições no número de crianças que podiam permanecer nas lojas,
em simultâneo – com funcionários monitorizando quantas crianças
podem entrar numa loja;
sinais em lojas dizendo ‘proibida entrada a crianças’, embora, neste
caso, esta fosse a única loja da zona do ramo imobiliário;
serem seguidas numa loja de artigos elétricos, enquanto faziam compras, por uma câmara de filmagem, e tratados/as de forma suspeita
pelos funcionários;
ser-lhes dito para saírem de veículos de transporte de passageiros ou
estes não pararem para poderem entrar;
ser-lhes dito que tinham de ficar de pé, em veículos de transportes de
passageiros, porque não pagavam um bilhete de adulto;
não acreditarem neles/nelas, quando lhes era pedido o bilhete de
criança;
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
•
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137
inconsistência acerca do que é uma ‘criança’ e do que é um ‘adulto’
(especialmente em veículos de transporte de passageiros e nos cinemas), mas também no que respeita aos impostos, à entrada na carreira
militar ou à idade de voto;
não confiarem neles/nelas para pagar por uma refeição, num restaurante (op. cit.: 4–5).
Em muitas sociedades, as decisões que têm impacto nas vidas das crianças
são tomadas em tribunais, na família, na escola, e em outras esferas, em que
não são consultadas, em situações em que os adultos o seriam (exemplos do
Reino Unido, são relatados em Young Equals, 2009). Os direitos das crianças
são violados em sistemas de justiça em todo o mundo, como resultado de
discriminação indireta que ocorre devido a uma desigualdade de acesso aos
tribunais e, portanto, à justiça, quando comparado com os adultos. O direito
das crianças a serem ouvidas em processos judiciais é frequentemente muito
limitado, quer porque as suas idades os/as banem expressamente dos processos em tribunal, até atingirem a maioridade, quer porque os processos são
complexos e não estão adaptados às crianças. Em muitos países, as crianças
não são ouvidas nos tribunais e são excluídas da participação em decisões que
as afetam nos tribunais de menores.
A investigação mostra que a pobreza infantil está ligada às decisões políticas e à alocação de recursos efetuada pelos Estados, e não à riqueza global dos
Estados e, mesmo assim, as crianças raramente são tidas em consideração nas
políticas de desenvolvimento macroeconómico, ao contrário do que acontece
com os adultos. O efeito desta falha é discriminatória, porque as necessidades
materiais e os interesses das crianças são subsumidos nos do lar ou família,
quando podem ser muito diferentes. Mesmo nos assim designados Estados
Sociais, aos serviços para as crianças é frequentemente alocada uma porção
mais pequena do Orçamento do que a equivalente para os serviços destinados
aos adultos. Por exemplo, os fundos que o Reino Unido disponibiliza para os
serviços de saúde mental das crianças e adolescentes é apenas 5% do orçamento dedicado à saúde mental, ainda que as crianças representem 25% da
população. Em outos países, as crianças são proibidas de usar o ‘abono de
famíla’, elas mesmas, ou de receberem dinheiro fruto do seu próprio trabalho.
As crianças são “o único grupo na sociedade moderna que não pode fazer
cumprir quaisquer reclamações legalmente garantidas aos recursos políticos e
sociais disponíveis. Mesmo hoje, as crianças, em muitos Estados Sociais dificilmente têm quaisquer direitos que possam fazer cumprir aos serviços locais
e à sua quota-parte dos recursos da sociedade” (Kränzl-Nagl, Mierendorff &
Olk, 2003: 11).
Isto também se aplica quando às crianças são negados direitos civis e políticos, por exemplo (alguns exemplos são relatados em CRIN, 2009):
138
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Manfred Liebel
quando as crianças são impedidas de participar em associações organizadas simplesmente por causa da sua idade (p. ex., sindicatos);
quando as crianças são excluídas de procedimentos de consulta de
legisladores políticos, para desenvolver políticas económicas e sociais
que estão abertos aos adultos, ou quando lhes é negado o direito geral
de voto;
quando às crianças não é formalmente garantida a nacionalidade, até
fazerem 18 anos de idade, ou quando a cidadania das crianças está
dependente da dos pais;
quando apenas os pais podem requerer que as crianças possam ser
dispensadas das aulas de educação religiosa, mas as crianças não têm
o direito a fazer essa escolha (como, p. ex., é o caso no Reino Unido);
quando os ‘menores’ não casados não são reconhecidos como pais dos
seus filhos (como, p. ex., é o caso na Colômbia).
A referência à idade e maturidade, enquanto um fator condicional do exercício de direitos individuais, e a consideração da opinião das crianças é uma
faca de dois gumes. Pode ser usada para legitimar a discriminação das crianças com base na idade – e, até agora, esta é a prática dominante – mas também
pode ser usada para combater a discriminação com base na idade. O que é
requerido para isto não é – como tem sido tão comum até ao momento – que
nos concentremos naquilo que as crianças não podem fazer, mas antes prestar
atenção àquilo que elas podem fazer, e que os critérios pelos quais as competências das crianças são usualmente medidos sejam desafiados. Isto é, pelo
menos, de vez em quando, requerido pelos ativistas dos direitos das crianças
e pelo Comité dos Direitos da Criança da ONU, sob a referência ao princípio
do ‘desenvolvimento das suas capacidades’ estabelecido no artigo 5 da CDC.
De acordo com este artigo, as idades limite, que erguem uma ponte particularmente popular para a discriminação com base na idade, não devem mais
ser estabelecidas; ao invés, às crianças deve ser dado poder e a oportunidade
de exercer os seus direitos tão cedo e até à máxima extensão possível.29
2.4. Discriminação geral
A discriminação com base na idade pode afetar as crianças individuais ou
as crianças enquanto um grupo social ou enquanto uma geração. No último
caso, podemos falar de discriminação geral, que ocasionalmente é igualmente
descrita como uma falta de justiça intergeracional. Um exemplo é a falta de
consideração pelas crianças enquanto grupo social nas tomadas de decisão
políticas, o que tem consequências negativas na vida futura das crianças e,
29
Ver, p. ex., Lansdown (2005), assim como o Comentário Geral N.º 12 (2009) do Comité
dos Direitos da Criança da ONU.
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
139
mesmo, na das próximas gerações, como as consequências de longo prazo da
energia nuclear ou o impacto da produção de energia fóssil no meio ambiente
e no clima. Também decisões de política fiscal, por exemplo as relativas à
dívida da nação, podem ter consequências negativas importantes nas gerações futuras.
As crianças e os jovens podem, por esse meio – de acordo com os peritos
do Plano de Ação Nacional para a Implementação dos Direitos das Crianças
(Áustria, 2004: 110–111) – “serem vistas da mesma forma que um grupo
minoritário, que experiencia um tratamento discriminatório particular e
múltiplo às mãos da maioria governante dos adultos. Esta forma de discriminação (geracional) pode aplicar-se a quase todas as áreas da lei (como os
direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos), assim como ao meio
em que a criança vive (família, escola, lazer, etc.).”
A discriminação das gerações subsequentes pode ser compreendida como
uma forma de desigualdade social. Surge pela circunstância de os ‘menores’,
devido ao seu estatuto legal e social, terem menos oportunidades de poderem implementar os seus direitos económicos e sociais, por si mesmos. Isto é
ainda mais realçado pelo facto de as crianças, mesmo na investigação, serem
concebidas “como parte de uma unidade coletiva, que compreende adultos
(pais) e filhos, e não como peticionárias, elas mesmas, no que respeita aos
recursos da sociedade (p. ex., rendimento do trabalho)” (Olk, 2009: 188).
De modo a combater a discriminação geracional, o governo federal austríaco apontou a uma ‘Geração Tendencial’ no seu Plano de Ação (Áustria,
2004). De acordo com esse documento, todas as decisões políticas devem
ser consideradas em relação com o impacto que terão nas gerações futuras.
Tal como no caso do ‘Género Tendencial’ (através do qual as perspetivas de
género foram transformadas em ações estatais), as consequências das decisões políticas serão questionadas, tendo em conta as crianças e os jovens.
Juntamente com as medidas de ‘discriminação positiva’, o Plano de Ação luta
por “igualdade de oportunidades e igualdade de direitos para todas as crianças, enquanto um objetivo político principal e uma questão para influenciar
medidas construtoras de uma consciencialização”. Isto será conseguido, questionando todas as medidas políticas a implementar, e avaliando o seu impacto
nas gerações futuras, considerando a discriminação geracional no periódico
oficial que relata o meio ambiente das crianças, e encorajando a participação
das crianças e dos jovens em todos os assuntos que as afetem.30
30
De uma forma geral, esta questão é abordada em ‘Perspetivas da Estratégia de Sustentabilidade Nacional da Alemanha’ através da frase chave ‘justiça geracional’, que o Governo alemão aprovou em 2002 (Bundesregierung, 2002). A partir de então, a sua implementação tem
sido documentada e interpretada em relatórios governamentais sobre o seu progresso. Sobre
os diferentes significados de ‘justiça geracional’, e outras dimensões da justiça que afetam as
crianças, ver Liebel (2013a).
140
Manfred Liebel
Tomar a discriminação geracional e a desigualdade, como estrutura conceptual principal, faz-nos correr o risco de interpretar os conflitos socioeconómicos como conflitos entre gerações. Mais ainda, pode “[distrair-nos] do
dramático aumento da desigualdade no seio de todas as gerações (Butterwegge
& Klundt, 2003: 8). Em virtude da importância que a diferenciação geracional
detém em relação às vidas dos indivíduos, esta abordagem tem algumas virtudes. Por exemplo, não é prestada nenhuma atenção à extensão e à forma como
o processo de transformação neoliberal das políticas fiscais e sociais pode
aumentar a desigualdade e o défice de justiça, tanto entre gerações, como no
seio de cada geração, e conduzir a padrões complexos de discriminação. O
mesmo se aplica a outra áreas políticas, em que a discriminação é gerada, por
exemplo, nas políticas ambientais.31
3. Conclusão: Consciencialização crescente e desafios
A questão da discriminação com base na idade tem sido posta de lado no
debate sobre os direitos humanos e os direitos das crianças e pouca investigação tem sido feita neste domínio. Do mesmo modo, a CDC, ela própria,
concede-lhe pouca proeminência.
Não obstante, em algumas partes do mundo, a consciencialização e a oposição à discriminação com base na idade e ao adultismo está numa fase crescente. Por exemplo, em 2006 e 2007, um inquérito conduzido pela ‘Children’s
Rights Alliance for England’ e pelo ‘National Children’s Bureau’ (Willow,
Franklin & Shaw, 2007) perguntou a 4 060 crianças e jovens se tinham sido
tratados de forma injusta com base em certos critérios (raça, idade, sexo,
orientação sexual, etc.). Um total de 43% dos jovens britânicos inquiridos
relatou ter experienciado discriminação com base nas suas idades, uma percentagem substancialmente maior do que aqueles que haviam sido vítimas
de discriminação em outras categorias de discriminação, como o sexo (27%),
a raça (11%), ou a orientação sexual (6%). A discriminação em função da
idade aumentou com a idade: 29% daqueles com menos de 11 anos de idade
experienciaram-na, em comparação com 64% dos jovens com 16 e 17 anos
(ibid: 8 e 21; ver também o acima mencionado estudo de Gamelas, 2007).
Do Instituto de Prevenção de Crises dos EUA, o estudo sobre a prevalência
do adultismo detetou algumas organizações locais de serviços aos jovens que
31
Em 2012, a organização alemã de direitos das crianças Terre des Hommes iniciou uma
campanha sob a frase chave ‘As crianças são responsabilizáveis perante os seus pais’ pelo reconhecimento, desenvolvimento e implementação dos direitos ambientais das crianças. Em
1998, a ‘Coligação Nacional para a Implementação da Convenção da ONU sobre os Direitos
da Criança’ alemã já tinha definido os direitos das crianças como “o direito de cada criança a
crescer num ambiente intacto, a viver uma vida saudável, e a desenvolver perspetivas futuras
positivas”.
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
141
abordavam esta questão (Tate & Copas, 2003). Por exemplo, um programa
local em Oakland, na Califórnia (Youth Together, 2008), descreve o impacto
do adultismo, que “prejudica o desenvolvimento dos jovens, em particular, da
sua autoestima e sentimento de valor de si mesmos, a capacidade para formar
relações positivas com adultos afetuosos, ou mesmo ver os adultos como aliados”. A discriminação com base na idade é crescentemente reconhecida como
uma forma de intolerância em ambientes sociais e culturais. Um crescente
número de instituições sociais está a reconhecer as posições das crianças e
dos jovens como um grupo minoritário oprimido (Young & Zasama, 2006:
95). Muitos jovens estão a reunir-se contra os mitos adultistas disseminados
pelos mass media, entre as décadas de 1970 e de 1990 (Movement Strategy
Center/Young Wisdom Project, 2006; Giroux, 2003).
A investigação compilada por duas fontes (um estudo ao nível nacional
da Universidade de Cornell, e um estudo sobre a juventude da Universidade
de Harvard) mostrou que a estratificação social entre os grupos de jovens é
causadora de estereotipia e de generalização; um exemplo é o mito perpetuado pelos media de que os adolescentes são imaturos, violentos e rebeldes
(Young & Zasama, 2006: 94). Oponentes do adultismo e da discriminação
com base na idade argumentam que estes conduziram um crescente número
de jovens, de académicos, de investigadores e de outros adultos a juntarem-se contra estes fenómenos, organizando programas educativos, protestos, e
criando organizações devotadas a publicitar o conceito e a abordá-lo (ibid:
92). Nos Estados Unidos da América, as atividades dos assim designados
Youth Rights Movement, que é composto, por exemplo, pela ‘Americans for a
Society Free from Age Restrictions’, pela ‘National Youth Rights Association’,
‘Youth for Human Rights’, pela ‘Youth Speak Out Coalition’, pela ‘What Kids
Can Do’, ou pela ‘The Free Child Project’; no Reino Unido, o ‘Article 12
Scotland’ ilustra esta visão. Um exemplo germânico é o grupo sediado em
Berlim ‘KinderrechtsZänker/KRAETZAE’. Não obstante as diferenças de exigências e formas de ação, estas associação reclamam a diminuição e remoção de várias restrições legais impostas aos mais jovens, por exemplo: a idade
de voto, a idade de ingestão de bebidas alcoólicas, o recolher obrigatório, e
a frequência obrigatória da escola. Elas também favorecem um acesso mais
facilitado à emancipação dos mais jovens e um maior respeito pelos direitos
das crianças e dos jovens (ver Liebel, 2012b, para mais detalhes e referências).
Muitas das iniciativas e organizações centradas no adultismo e na discriminação com base na idade situam-se em países ricos de um mundo minoritário. Elas realçam as mudanças na relação criança-adulto, no sentido de
libertar os mais jovens das restrições que lhes são impostas pelos adultos mais
poderosos ou por instituições dominadas por adultos. Enquanto algumas
delas dão prioridade à proteção das crianças contra as práticas discriminatórias dos adultos, outras, de uma maneira mais ofensiva, tentam alcançar uma
142
Manfred Liebel
completa igualdade de direitos e de poder entre os mais jovens e os adultos.32
Outras formas de discriminação, por exemplo, baseadas em desvantagens
sociais ou desigualdades, são frequentemente menos tidas em conta. Em contraste, nos países mais pobres, da maior parte do mundo, também há iniciativas e organizações que têm em mente a discriminação com base na idade, mas
que realçam os problemas resultantes da desigualdade social e da pobreza, de
uma forma mais acentuada, compreendidas como uma forma de violência
estrutural. Exemplos destes são os movimentos de crianças e adolescentes trabalhadores, que têm vindo a surgir na América Latina, em África e na Ásia,
deste a década de 1980 (ver Liebel, 2004: 19–37).Entretanto, um número crescente de instituições governamentais, académicas, e educacionais, por todo o
mundo, está a desenvolver estudos que respondem a muitas das insinuações e
implicações da discriminação com base na idade ou ao adultismo. Os efeitos
do adultismo são analisados, por exemplo, por Mike Males (2002) e Henry
Giroux (2003). O tópico tem sido abordado, igualmente, na literatura de psicologia da libertação (Watts & Flanagan, 2007).33 Simultaneamente, a investigação tem mostrado que os jovens que lutam contra a discriminação com
base na idade e contra o adultismo no seio das organizações da comunidade,
têm uma elevada taxa de impacto nessas agências, assim como nos seus pares,
os adultos que trabalham com eles/elas, e na comunidade às quais essas organizações pertencem (ver Zeldin et al., 2000). O facto de a discriminação com
base na idade ter atraído mais interesse, em tempos recentes, pode ficar-se a
dever ao facto de, só agora, a separação normal e a subordinação das crianças
estar a ser uma questão tida em conta, enquanto uma fase da vida e, também,
enquanto um grupo etário. As fronteiras entre os mundos da infância e da
idade adulta estão a tornar-se, em grande parte, indefinidas e mais questionáveis, à medida que as crianças (têm de) assumir responsabilidades mais cedo
nas suas vidas, de ganhar um impulso de competências e, talvez mesmo, uma
vantagem competitiva com as tecnologias da comunicação, bem como adquirir e formar uma maturidade sociocultural. Tudo isto é acompanhado pelo
facto de que a sequência da aprendizagem, do trabalho e do consumo está
sujeita a fases da vida cada vez menos definidas, e que as atividades que, até
agora, eram encaradas como sendo tipicamente das crianças ou dos adultos
estão crescentemente misturadas.
32
As últimas podem ser localizadas na tradição dos assim designados ‘Movimentos de Libertação das Crianças’, ativos na década de 1970, principalmente nos Estados Unidos da América (ver, p. ex., Farson, 1974; Gross & Gross, 1977; para uma panorâmica, ver Liebel, 2012a:
37–39).
33
A ‘psicologia da libertação’, que tem as suas raízes na América Latina, difere da psicologia
convencional na ênfase dada aos direitos humanos e à igualdade social. Os seus princípios
doutrinais são a exposição da injustiça social, a criação de sociedades justas, a promoção da
autodeterminação e da solidariedade com os outros, acabando com a opressão e reparando os
seus efeitos (ver Martín-Baró, 1994; Burton & Kagan, 2005).
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
143
Estes processos não só ganham expressão no facto de as crianças serem
percebidas como sujeitos e como agentes, mas igualmente revelam que elas
estão impedidas de obter o correspondente estatuto social, com mais oportunidades para agirem e exercerem a sua influência. Isto reflete uma nova sensibilidade em relação à discriminação com base na idade, não apenas entre as
próprias crianças, como também na investigação sobre os direitos das crianças, o que representa um novo desafio.
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Nota: Todos os recursos da internet foram acedidos em 13 de agosto de 2013.
Questões para reflexão
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Define discriminação.
Distingue e explica os diferentes conceitos de discriminação.
Faz sentido incluir o molestamento e o genocídio no conceito de discriminação? E
porquê?
Em que Artigos e em que declarações está a discriminação em geral e a discriminação
contra as crianças, em particular, codificada na CDC ONU?
A discriminação contra as crianças é a mesma coisa que a discriminação com base
na idade?
A discriminação com base na idade está contemplada nos Comentários Gerais e
nas Observações Conclusivas do Comité dos Direitos da Criança da ONU, e de que
formas?
Devem a discriminação com base na idade e o adultismo ser compreendidos como
sendo equivalentes? Como compreendes a relação entre estas duas formas de
discriminação?
Por favor, distingue e explica diferentes conceitos e categorias de adultismo?
Por favor, distingue e explica diferentes conceitos e categorias de discriminação com
base na idade?
O que se deve compreender por “ofensas ao estatuto”?
Podem as “taxas de trabalho júnior” ser legitimadas pelas diferenças assumidas entre
as crianças e os adultos?
De que forma a proteção das crianças pode conduzir à discriminação contra as
crianças?
Quais são os riscos de compreender a “discriminação geracional” como uma categoria
de discriminação?
Por favor, explica possiveis relações entre a discriminação com base na idade e outros
aspetos da discriminação contra as crianças?
Existem leis no teu país sobre a discriminação com base na idade? Elas incluem a
discriminação contra as crianças? Dá exemplos.
CAPÍTULO 5: Adultismo e discriminação com base na idade contra as crianças
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147
Apresenta exemplos práticos de discriminação com base na idade no teu país, por
exemplo, na vida do dia a dia, nas instituições do Estado ou nos meios de comunicação social.
Como é que essas formas de discriminação com base na idade podem ser abordadas
na prática dos direitos da criança?
As Observações Conclusivas dos Relatórios sobre os Estados do teu país incluem a
discriminação com base na idade?
Por favor, reflete sobre as relações e contradições entre a igualdade e a diferença no
caso das regulações oficiais sobre a discriminação contra as crianças.
Leituras adicionais
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148
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
CAPÍTULO 6:
DISCRIMINAÇÃO CONTRA CRIANÇAS
DE MINORIAS ÉTNICAS E NACIONAIS
NA EDUCAÇÃO: PROBLEMAS SELECIONADOS
DE EDUCAÇÃO EM PAÍSES DA UE
COM ESPECIAL ÊNFASE NA POLÓNIA
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
Urszula Markowska-Manista, Doutorada, Professora Assistente
no Departamento de Educação Básica e Secretária Científica do
Diretor nos Estudos Interdisciplinares sobre Desenvolvimento e
Bem-Estar da Criança Janusz Korczak da UNESCO, na Academia
de Educação Especial Maria Grzegorzewska (Varsósiva, Polónia).
[email protected]
Ewa Dąbrowa, Doutorada, Professora Assistente, no Departamento de Educação Básica, na Academia de Educação Especial
Maria Grzegorzewska (Varsóvia, Polónia) e formadora na área da
antidiscriminação. [email protected]
1. Discriminação – uma tentativa de definir o fenómeno
A discriminação (Latim discriminativo – diferenciação) é um fenómeno prevalente no mundo contemporâneo. A vida quotidiana dos adultos, jovens e
crianças está repleta de várias formas e dimensões conscientes e inconscientes de discriminação. Devido a certas caraterísticas, e.g. período de desenvolvimento, sexo, deficiências, orientação sexual, fé religiosa, nacionalidade ou
filiação étnica, ela afeta, igualmente, grupos sociais e indivíduos particulares.
As alterações sociopolíticas que estão a acontecer no mundo conduziram à
legitimação de novas regras na Europa – a regra da igualdade de tratamento1
1
Ordem do Conselho 2000/43/WE, de 29 de junho de 2000, que implementa a regra da
igualdade de tratamento das pessoas, independentemente da sua origem racial ou étnica, Law
Journal. L 180 of 19 July 2000, p. 22.
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
149
e a regra da não discriminação – permitindo que cada pessoa tenha uma vida
condigna – sem exclusão ou marginalização.
As Nações Unidas lançaram-se numa luta contra as desigualdades e contra a discriminação, aceitando e realizando os Objetivos de Desenvolvimento
para o Milénio. Também a Comunidade Europeia se empenhou na promoção
da construção de uma sociedade livre de discriminação em todas as esferas
básicas da vida social.
Observando as transformações acima mencionadas, deve responder-se às
perguntas seguintes: O que é a discriminação? Quais são as suas fontes? Quais
são os seus mecanismos? A discriminação afeta cada uma e todas as pessoas,
como sempre aconteceu, e estará presente no espaço em que as pessoas vivem
e onde agem. Assim, ela afeta as dimensões educacional, social, económica,
política, legal, cultural, assim como outras dimensões da vida humana.
A discriminação manifesta-se na socialização (estereotipia dos papéis
sociais), nos costumes (aceitação, pela sociedade, de padrões de pensamento
referentes ao papel e à forma de julgar os sexos particulares), na religião, nos
conceitos (ao preservar certos padrões sociais), no comércio (repetidamente
violando a dignidade da criança, da mulher e do homem) e na dimensão
profissional.
Os traços típicos que podem tornar-se a razão para a discriminação são: a
cor da pele, a origem social, a origem étnica, a nacionalidade, o nascimento,
a idade, o género, a orientação sexual, as deficiências, a aparência física, a fé/
religião ou a sua falta, o estatuto social, a mundivisão e a situação material.
No dicionário de termos desenvolvido na Polónia, no seio do projeto
do Gabinete da Agência Governamental para um Tratamento Igualitário
“Tratamento Igualitário – Um Padrão para uma Boa Governação”, a discriminação é definida como “tratar certos indivíduos ou grupos sociais de uma
forma diferente, normalmente menos justa, do que outros indivíduos ou grupos. É baseada no preconceito e no rótulo”.2 A mesma publicação nota um
grande leque de significados do termo discriminação, sendo definida como:
•
•
diferenciação injustificada de uma situação ou dos direitos dos
indivíduos;
tratamento desigual, legalmente não fundamentado, e injustificado
por razões objetivas;3
De acordo com os registos incluídos num dos relatórios polacos dedicados à
discriminação, o termo significa oportunidades reduzidas de acesso a bens
sociais (educação, profissões, riquezas, etc.), devido a afiliação a um grupo
2
Słownik pojęć: Sieć równości. Portal o tolerancji i równym traktowaniu. http://www.siecrownosci.gov.pl/slownik-pojec/art,19,dyskryminacja.html. Accessed 28 Feb 2014.
3
Ibidem.
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Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
que é sujeito a um estereótipo, sem se ter em conta as disposições ou os méritos individuais (Krajobraz dyskryminacji I, 2003: 30).
Os autores do documento realçam outros significados do termo, chamando a atenção para o seu grande alcance. Assim, a discriminação pode ser
entendida como:
•
•
•
ações prolongadas, sistemáticas e injustas que limitam a possibilidade
de satisfazer todas as necessidades e de alcançar todos os padrões valorizados numa determinada cultura;
tratamento injusto de indivíduos ou sociedades, recusando-lhes a participação em determinadas esferas da vida, privilégios, poder, com
base apenas numa atitude desfavorável e no preconceito, devido aos
seus traços reais ou presumidos;
acesso limitado a bens sociais (educação, profissão), devido a afiliação num grupo sujeito a estereótipos, sem ter em consideração as verdadeiras caraterísticas de um indivíduo (Krajobraz dyskryminacji I,
2003: 30).
É significativo que, ao nível legal, tais descrições da definição do termo sejam
evitadas. É citada no contexto de tipos de comportamento discriminatório
com que as pessoas se podem deparar nas suas vidas. A lei diferencia entre
discriminação direta, discriminação indireta e molestamento (incluindo
molestamento sexual). Esta abordagem é apresentada, tanto na legislação
internacional, como na polaca. Assim, o “Ato de 3 de dezembro de 2010 sobre
a implementação das regulações selecionadas sobre igualdade de tratamento
da União Europeia” afirma que a discriminação direta é uma situação em
que “uma pessoa física, independentemente do sexo, da raça ou da orientação sexual, é tratada de modo menos favorável do que outra pessoa é, foi ou
seria tratada numa situação similar”, enquanto a discriminação indireta é um
estado em que, com base nos pré-requisitos acima mencionados, “com consequência de uma regulação alegadamente neutral, dos critérios empregues ou
da ação realizada, dá lugar ou pode dar lugar a desproporções desfavoráveis
ou a uma situação particularmente desfavorável para a pessoa em questão,
a menos que a regulação, o critério ou a ação seja objetivamente justificada,
devido a um objetivo que esteja de acordo com a lei e que deve ser alcançado,
e os meios necessários para alcançar esse objetivo sejam corretos e necessários” (Pawlęga, 2005: 14).
Existem três mecanismos que são as fundações da discriminação; no
entanto, o indivíduo nem sempre está consciente deles:
•
uma atitude de restrição em relação à atual diversidade humana, que é
o ponto de referência absoluto na descrição de um ser humano (todas
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
•
•
151
as pessoas que se situam para além desse ponto são percebidas como
sendo “diferentes”, “estranhas”);
uma atitude dogmática das normas culturais, como sendo livres de
ambiguidade e critérios objetivos de ordenar a realidade;
a disseminação de estereótipos e de preconceitos numa sociedade
(Pawlęga, 2005: 14).
O que também é significativo são as divisões sociais e a estrutura hierárquica
da sociedade que contribui para um acesso diferenciado a recursos e a meios.
A acima mencionada tipologia refere-se ao caráter das ações discriminatórias, porém ignora os pré-requisitos que são determinantes na discriminação.
Existe um número extremamente elevado de tais pré-requisitos. Eles são: a
idade, o sexo ou as deficiências, para nomear apenas alguns. Para o propósito
deste artigo, o problema da discriminação referir-se-á à discriminação contra as crianças de minorias étnicas, contra as crianças refugiadas, e contra as
crianças reemigrantes. Como os autores da notícia do relatório “A formação
para o preconceito e para a discriminação tem vários tipos de condicionantes,
dependendo do grupo social afetado pela discriminação. Toma a forma do
resultado da socialização e, como regra, começa logo na infância. A natureza
do afeto envolve o seu elevado caráter de contágio, i.e. a difusão fácil e inconsciente às pessoas que se mantêm em contacto próximo” (Pawlęga, 2005: 14).
A discriminação manifesta-se a si mesma sob um número de formas e tem
várias faces. Tem lugar a muitos níveis e assume aspetos variados. Os sintomas de discriminação podem assumir tanto uma forma direta como indireta;
no entanto, o conceito de discriminação indireta é a confirmação do estado
privilegiado de um determinado grupo ou comunidade. Não há dúvidas de
que a discriminação é uma ameaça para vários grupos. Entre estes estão as
minorias étnicas, os migrantes, e, de forma cada vez mais crescente, os reemigrantes. Tal como afirmado no relatório da Agência da União Europeia para
os Direitos Fundamentais, de 2011, “Discriminação étnica é ainda uma triste
realidade em toda a UE, quer no campo dos cuidados de saúde, da educação,
do emprego ou das condições de vida”4 Este estado é confirmado pela investigação do Eurostat sobre a discriminação, que indica que a discriminação
com base na origem étnica é um fenómeno frequente nas sociedades europeias.5 Qual é a situação das crianças nesta perspetiva?
4
Relatório da UE: discriminação com base na origem étnica é ainda um problema por
resolver. http://www.lex.pl/ko/czytaj/-/artykul/raport-ue-dyskryminacja-na-tle-etnicznymto-wciaz-nierozwiazany-problem. Acedido em 28 de fevereiro de 2014.
5
Dyskryminacja w UE w 2012, EUROBAROMETR: http://ec.europa.eu/public_opinion/
archives/ebs/ebs_393_fact_pl_pl.pdf. Acedido em 27 de fevereiro de 2014.
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Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
2. Discriminação contra as crianças na Europa
Uma análise das regulações internacionais existentes relacionadas com a prevenção da discriminação entre as crianças refere-se às regulações legais gerais.
O documento básico é “A Convenção do Direito da Criança”, que inclui:
“Artigo 2: Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e a garantir
os direitos previstos na presente Convenção a todas as crianças que se
encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política ou outra da criança, de seus pais ou representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social, fortuna,
incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação.
2. Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas para que a
criança seja efectivamente protegida contra todas as formas de discriminação ou de sanção decorrentes da situação jurídica, de actividades,
opiniões expressas ou convicções de seus pais, representantes legais ou
outros membros da sua família.”6
Em uso, estão regulações formuladas em documentos básicos dedicados a direitos humanos, bem como em documentos adicionais, incluindo:
a Resolução Sobre a Proteção das Crianças e dos seus Direitos, de 1997, a
Convenção Europeia sobre a Implementação dos Direitos das Crianças, formulado em Estrasburgo, em 25 de janeiro de 1996. Um grupo especial é o
grupo de crianças de minorias étnicas, de crianças imigrantes (incluindo as
refugiadas) e das crianças reemigrantes. Como afirmado na “Recomendação
1596 (2003) sobre a situação de jovens migrantes na Europa”, “1. Jovens
migrantes representam um grupo variado e heterogéneo. Incluem crianças,
mulheres jovens e homens jovens que se tornaram presas de traficantes ou
que foram introduzidos clandestinamente num país, com a esperança de
escaparem à pobreza, à perseguição, ou a uma situação de violência generalizada; jovens que entraram nos países europeus através de canais legais para
estudar, para trabalhar, ou pare se reunirem às suas famílias; e migrantes de
segunda geração que nasceram no país hóspede. Muitos deles são provenientes de países não europeus; mas muitos outros são europeus que se movem,
legal ou ilegalmente, de um país membro para outro. Eles são imigrantes para
alguns Estados e emigrantes, ou emigrantes retornados, para outros.”7
6
Convenção sobre os Direitos das Crianças, assinado pela Assembleia Gerald a ONU, em
20 de novembro de 1989.
7
Sytuacja młodych migrantów w Europie. Zalecenie Rady Europy Zgromadzenia Ogólnego1596 (2003). Desenvolvido com base em: Jaros P., Prawa dziecka. Dokumenty Rady Europy, Rzecznik Praw Dziecka, Warszawa 2012, website: http://www.brpd.gov.pl/uploadfiles/
publikacje/prawa_dziecka_dokumenty_rady_europy.pdf. Acedido em 28 de fevereiro de 2014.
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
153
Este grupo é referido em regulações diretas: CM/Rec(2007)9 sobre os projectos de vida a favor de menores migrantes não acompanhados (aprovada
pelo Comité de Ministros de 12 de julho de 2007, no encontro de Ministros de
1002), a Recomendação CM/Rec(2008)4 do Comité de Ministros sobre a promoção da integração de crianças migrantes e de origem imigrante (aprovada
pelo Comité de Ministros de 20 de fevereiro de 2008), a Recomendação 1703
(2005) da Assembleia Parlamentar sobre a protecção e assistência às crianças
separadas requerentes de asilo, aprovada na reunião 1018 dos Ministros), mas
igualmente em regulações indiretas – i.e. regulações respeitantes aos direitos garantidos aos pais ou aos guardiões. No caso dos direitos dos empregados à liberdade de movimento, a criança de um empregado pode instalar-se
com um dos seus progenitores num outro país da União Europeia. No caso
das regulações para a reunião das famílias (DIRECTIVA 2003/86/CE DO
CONSELHO relativa ao direito ao reagrupamento familiar), as crianças têm o
direito de permanecerem no Estado hóspede e de lhes ser garantido o acesso
às esferas fundamentais da vida social (incluindo a educação).
No que se refere às candidaturas para o estatuto de refugiado, os direitos das crianças são tratados com caráter de prioridade. O direito à proteção é garantido aos indivíduos tendo em consideração as suas situações. As
Recomendações do Conselho Europeu de 2003, sobre crianças em conflitos
armados, têm o objetivo de:
•
•
•
responder aos problemas, como a violência contra as crianças, o
impacto dos conflitos armados nas crianças, o tráfico de crianças, etc.;
ter em consideração os direitos e as necessidades das crianças em esferas particulares, como a educação e os cuidados de saúde;
ter em consideração os direitos das crianças em todos os programas e
projetos financiados pela Comunidade Europeia.
Uma análise dos relatórios desenvolvidos em termos europeus permite afirmar
que a discriminação é mais frequentemente dirigida contra as crianças ciganas.
Os europeus indicam uma atitude negativa em relação aos ciganos e ao fenómeno
das más relações, num ambiente de pares, com as crianças ciganas. A melhor situação existe na Polónia e na Lituânia; enquanto as situações mais críticas acontecem na República Checa e na Eslováquia (Frakas, 2007: 13). Adicionalmente,
como resultados dos dados apresentados pelo Diretor do FRA Morten Kjaerum:
“em média, à volta de 20% dos ciganos com 16 anos ou mais não sabiam ler ou
escrever, em contraste com 1,5% dos seus vizinhos não ciganos:
•
apenas uma em cada duas crianças ciganas frequentavam o jardim de
infância, quando comparados com três em cada quatro dos seus vizinhos não ciganos;
154
•
•
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em alguns países, uma percentagem de até 35% das crianças ciganas dos
7 aos 15 anos de idade não frequentavam a escolaridade obrigatória;
e apenas 15% dos jovens ciganos tinham completado qualquer forma
de educação pós-secundária ou vocacional, comparados com cerca de
64% dos seus vizinhos não ciganos”8.
Um relatório dedicado à discriminação na Europa nota que a discriminação se refere a crianças de origem migrante e se manifesta na disparidade na
esfera da motivação e realizações dos estudantes (Zick, Küpper, Hövermann
2011). Estes dados são confirmados pela investigação internacional PISA.9
As crianças de minorias conseguem notas mais baixas do que os seus pares
que não têm um experiência de migração na área da leitura com compreensão, do pensamento matemático e do pensamento científico. A investigação
conduzida na Alemanha revelou que o problema diz respeito, não apenas à
primeira geração de crianças, mas também a crianças da segunda e terceira
gerações. Mais ainda, estas crianças frequentam menos o segundo nível de
estudos. Os autores do documento “ Educação para as Crianças Migrantes,
de Minorias, e Marginalizadas, na Europa” acentuam: “a estrutura do sistema
educacional, com a prática do rasto na linha da frente; a segregação no seio e
entre bairros e escolas; a discriminação direta e indireta na sala de aula e nas
escolas pelos funcionários e pelos outros estudantes, incluindo o bullying e
fracas expetativas dos professores; e preconceito curricular. Para além disso,
os fatores ‘baseados em casa’ incluem défices de linguagem, estilos parentais, e, em alguns casos, práticas culturais e religiosas. Geralmente falando,
estes podem ser considerados problemas de inclusão” (Brind, Harper, Moore,
2008: 5).
Em anos recentes, também tem sido chamada a atenção para o problema
das crianças reemigrantes, privadas de cuidados parentais e que enfrentam
muitos problemas na esfera da educação. Têm sido tornados públicos relatórios iniciais, nesta área, que indicam quais são os problemas básicos que
as crianças encontram. Entre estes, são frequentemente listados problemas
de linguagem, dificuldades de adaptação, permanecer sem receber cuidados
parentais, por terem os seus pais a trabalhar em outro país.
Nos relatórios de organizações e instituições não-governamentais, cujos
fins estão direcionados para o bem-estar das crianças e da juventude, surgem
questões essenciais para a atual política de integração:
8
Kjaerum M., Exclusion and discrimination in education: the case of Roma in the European Union. http://fra.europa.eu/en/speech/2013/exclusion-and-discrimination-educationcase-roma-european-union. Acedido em 1 de março de 2014.
9
PISA – Competências Desaproveitadas: Compreender o Potencial dos Estudantes Imigrantes, OCDE, 2010.
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
•
•
•
•
•
•
155
sobre práticas educacionais não discriminatórias;
sobre uma educação não discriminatória das crianças e jovens em
ambientes culturalmente diversificados;
sobre a cooperação das escolas com as comunidades minoritárias em
ambientes culturalmente diversificados;
sobre as oportunidades e as barreiras à educação para os estudantes
das minorias e das maiorias em condições de multiculturalismo;
sobre a igualdade de oportunidades educacionais das crianças refugiadas, dos estudantes repatriados e dos estudantes das maiorias;
sobre as soluções práticas no combate à discriminação das crianças
através da educação, incluindo a educação intercultural.
3. A (não) discriminação contra as crianças com experiência migrante
e das minorias nacionais e étnicas na Polónia
Na Polónia, o grupo de crianças das minorias, imigrantes e reemigrantes não é
numeroso. Os dados estimados relativos ao número de imigrantes e indivíduos
de origem migrante podem encontrar-se no último Censo. Como resultado do
Censo, este grupo constitui 0,15% (57 500) da população. O mais numeroso é
o grupo de ucranianos (24% do número total), seguidos dos alemães (cerca de
9%), dos russos (cerca de 8%), dos bielorrussos (cerca de 7%) e dos vietnamitas
(cerca de 5%). 674 900 pessoas nasceram fora da Polónia. Perto de 1% da população (383 200) indicam que ambos os progenitores nasceram no estrangeiro.
Tendo em consideração o país de origem dos pais e as alterações geopolíticas,
podemos supor que eles são indivíduos deslocados (incluindo repatriados). Os
dados não incluem os imigrantes temporários, que constituem o grupo mais
numeroso, assim como os indivíduos com uma autorização de residência. Há
um grupo, ligeiramente maior, de minorias nacionais e étnicas na Polónia. No
Censo 809, milhares de pessoas declararam ser originários da Silésia, 228 mil –
da Cassúbia (região da Polónia), 109 mil – da Alemanha, 48 mil – da Ucrânia,
47 mil – da Bielorrússia, 16 mil – ciganos, 13 mil – da América, 10 mil – e da
região de Lemko; que constituíam 3,81% da população total.10
Os números incluídos no Censo podem ser apenas tratados de forma
aproximada, já que eles não abarcam todas as pessoas residentes na área da
Polónia, e se referem a declarações não verificadas de indivíduos que participaram no Censo. Os dados não têm em consideração o número de crianças. A percentagem de crianças migrantes e de origem migrante, de crianças pertencentes a minorias étnicas e nacionais, bem como migrantes, pode
10
Censo nacional sobre a População e a Habitação de 2011: http://www.stat.gov.pl/cps/rde/
xbcr/gus/ PUBL_lu_nps2011_wyniki_nsp2011_22032012.pdf. Acedido em 10 de janeiro de
2014.
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Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
ser calculada com base nos dados disponíveis no Sistema de Informação
Educacional, no sítio da internet do Ministério da Educação Nacional, relativos à educação de crianças pertencentes a minorias linguísticas. Os dados
indicam que, em 2012, 62 060 estudantes estavam a aprender a língua de grupos minoritários nas pré-escolas e em todos os níveis de ensino da Polónia.
Com muita frequência, estes eram estudantes que estavam a aprender alemão,
cassúbio, bielorrusso, e ucraniano; as aulas de línguas escolhidas menos frequentadas eram a da língua da minoria cigana (apenas 1 pessoa).11
Na Polónia, regulações separadas sobre antidiscriminação referentes a
crianças migrantes (incluindo as refugiadas), a crianças pertencentes a minorias e crianças reemigrantes não existem. As regulações relativas aos grupos
acima mencionados referem-se apenas à esfera da educação, no espírito da
implementação de uma igualdade de acesso universal à educação para todas
as crianças e jovens em idade escolar.
Uma análise às regulações gerais indica que, já na Constituição da República
Polaca, no Artigo 35, é garantido aos cidadãos polacos pertencentes a minorias
étnicas e nacionais a liberdade de preservarem e desenvolverem a sua própria
língua, de preservarem os seus costumes e tradições, e de desenvolverem a sua
própria cultura, incluindo o direito a criarem as suas próprias instituições educacionais e culturais, assim como instituições que sirvam o propósito de protegerem a sua identidade religiosa e a sua participação nos acordos sobre assuntos relacionados com as suas próprias identidades culturais. “1. A República
da Polónia garante aos cidadãos polacos pertencentes a minorias nacionais e
étnicas a liberdade de preservarem e desenvolverem as suas próprias línguas, de
preservarem os seus costume e tradições e de desenvolverem a sua cultura. 2. As
minorias nacionais e étnicas têm o direito de criar as suas próprias instituições
educacionais e culturais, bem como instituições que sirvam para proteger a sua
identidade religiosa e para participar nos acordos sobre assuntos relacionados
com a sua própria identidade cultural”.12 A Constituição (Art. 12) garante a
todos os pais, na Polónia, o direito de educar os seus filhos no seio do espírito
11
Dados recolhidos no Sistema de Informação Educacional. Acedido em 30 de setembro de
2012.
12
Fonte: Konstytucja Rzeczypospolitej Polskiej z dnia 2 kwietnia 1997 r. (Dz. U. z dnia 16
lipca 1997 r.) (a Constituição da República da Polónia, de 2 de abril de 1997). (Diário Legislativo, de 16 de julho de 1997). A regra constitucional acima mencionada encontra-se desenvolvida em dois atos legislativos: O Ato Legislativo de 6 de janeiro de 2005, sobre minorias
nacionais e étnicas e sobre linguagens regionais (Diário Legislativo, de 2005, pos. 17, n.º 141,
com emendas posteriores), bem como o Ato de Educação de 7 de setembro de 1991 (Diário
Legislativo, de 2004, N.º 256, pos. 2572, N.º 273, pos. 2703 e N.º 281, pos. 2781) e o preceito
do Ministro da Educação Nacional, de 14 de novembro de 2007, sobre as condições e métodos
empregues nas pré-escolas, escolas e instituições públicas para o desempenho de tarefas que
permitam a preservação da noção de sentimento de identidade nacional, étnica e linguística
de estudantes pertencentes a comunidades nacionais e étnicas minoritárias e a comunidades
que usam uma linguagem regional (Diário Legislativo, 2007.214.1579).
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
157
da sua própria cultura e religião. Além disso, o ato legislativo sobre minorias
nacionais e étnicas e sobre linguagens regionais regula os assuntos sobre a preservação e desenvolvimento da identidade cultural das minorias nacionais e
étnicas, bem como a preservação e desenvolvimento de uma linguagem regional. Um outro documento: o Ato sobre Educação, juntamente com os atos executórios, regula os assuntos relacionados com a educação das crianças e jovens
pertencentes a minorias nacionais e étnicas, assim como com as comunidades
que se servem de uma língua regional.
Em linha com a Convenção sobre os Direitos da Criança e com a Constituição
da República da Polónia (Art. 10, Ato 1), todas as crianças têm o direito à
educação. Todas as crianças residentes no território da República da Polónia,
independentemente do seu estatuto legal, estão sujeitas à educação obrigatória. Deste modo, a obrigação refere-se, também, aos estrangeiros que residem
na Polónia, legal ou ilegalmente. “No Artigo 70, do Ato 1, da Constituição da
República da Polónia, é garantido o direito à educação a todas as pessoas e é
especificado que a educação é obrigatória até aos 18 anos de idade. O termo
“todas as pessoas” refere-se, também, a não cidadãos da Polónia, que residam
no território da Polónia. O direito à educação significa que nenhuma pessoa
que deseje educar-se, e tenha menos de 18 anos, pode ver recusado este direito,
e os órgãos do Estado têm a obrigação de facilitar o acesso à educação. A falta
de conhecimento da língua polaca, ou a falta de documentação adequada sobre
a educação prévia, não pode ser razão para recusa.” (Klaus, 2006: 55–56).
A educação tem um papel chave na resolução das dificuldades enfrentadas
pelas minorias que tentam preservar as suas identidades e tradições. “Apesar do
facto de a educação das minorias nacionais e étnicas ser um elemento integral
do sistema de educação polaco, as necessidades e condições especiais em que
os estudantes pertencentes a minorias vivem e aprendem requer o emprego de
soluções legais diversificadas, que possam permitir a realização plena dos direitos educacionais a que estão habilitados” (Machul-Telus, Majewska, 2012: 9).
As crianças de minorias nacionais e étnicas, assim como as crianças que
usam uma língua regional, incluindo o biolorrusso, o arménio, a língua
cigana, e as crianças estrangeiras (incluindo as refugiadas), de acordo com o
Ato de 7 de setembro de 1991, e os seus atos executórios13 relevantes, podem
beneficiar de, entre outros:
13
As regulações estão incluídas no Preceito do Ministério da Educação Nacional, de 1 de
abril de 2010, sobre a aceitação de indivíduos, que não são cidadãos polacos, nas pré-escolas,
escolas, centros de formação de professores e instituições públicas, bem como sobre a disponibilização de lições de língua polaca adicionais, de lições de compensação adicionais e de
educação sobre a língua e a cultura do país de origem, e também no Preceito do Ministério da
Educação Nacional, de 14 de novembro de 2007, sobres as condições e métodos de desempenho das tarefas que permitam a manutenção de um sentimento de identidade nacional, étnica
e linguística, nas pré-escolas, escolas ou instituições públicas, dos estudantes pertencentes a
grupos de minorias nacionais ou étnicas e comunidades que usam uma linguagem regional.
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•
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•
•
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lições de língua polaca adicionais, de cinco horas por semana, e de
lições de compensação adicionais;
educação no campo da língua e da cultura do grupo minoritário ou
país de origem;
manuais escolares gratuitos;
assistentes culturais (assistentes ciganos).
As escolas com ensino da língua materna são importantes para casa minoria
nacional (Łodziński, 2005). Deste modo, a educação das crianças pertencentes
a minorias nacionais e étnicas podem ser organizadas, entre outras, em escolas
ou instituições que ofereçam uma educação adicional na língua minoritária ou
na língua regional, conduzida na forma de lições separadas, com o polaco como
língua de ensino, exceto nas lições da língua da minoria ou da língua regional.
Com base no Preceito de 2007 do Ministério da Educação Nacional “§ 1.1
As pré-escolas, escolas e instituições públicas permitem que as crianças pertencentes a minorias nacionais e étnicas, bem como a comunidades que usam
uma língua regional, e que são referidas no Ato de 6 de janeiro de 2005, sobre
minorias nacionais ou étnicas e sobre línguas regionais (Diário Legislativo
n.º 17, pos. 141 e n.º 62, pos. 550), preservem e desenvolvam o sentimento
de identidade nacional, étnico e linguístico, por meio de: 1) lições sobre a
língua da minoria nacional ou étnica, posteriormente referida como “língua
minoritária”, assim como sobre a língua regional; 2) lições que ofereçam educação sobre a sua própria história e cultura. 2. Para permitir que os estudantes
de minorias nacionais e étnicas, bem como de comunidades que usam uma
língua regional, possam preservar e desenvolver o sentimento de identidade
nacional, étnico e linguístico, incluindo o conhecimento sobre a sua própria
história e cultura, as pré-escolas, as escolas e as instituições públicas podem
conduzir lições de geografia do país com que a minoria nacional se identifica,
assim como lições de arte, ou outras, adicionais”.14
É necessário realçar que existem três Estratégias governamentais para o Desenvolvimento da Educação das Minorias: “Estratégia para o Desenvolvimento
da Educação da Minoria Germânica”15, a “Estratégia para o Desenvolvimento
da Educação da Minoria Lituana”16, a “Estratégia para o Desenvolvimento da
14
O Preceito do Ministério da Educação Nacional, de 14 de novembro de 2007, sobre as
condições e métodos de desempenho, pelos instituições pré-escolares, escolas e instituições
públicas, das tarefas que permitam manter a noção de identidade nacional, étnica e linguística
dos estudantes pertencentes a grupos nacionais e étnicos minoritários e às comunidades que
usam uma língua regional (Diário Legislativo de novembro de 2007, pos. 1579).
15
Estratégia para o Desenvolvimento da Educação da Minoria Germânica: http://www.vdg.
pl/attachments/article/47/Strategia%20niemiecka%20-%20tekst%2012.%2003.%202007.pdf.
Acedido em 17 de outubro de 2013.
16
Estratégia para o Desenvolvimento da Educação da Minoria Lituana: http://www.vdg.
pl/attachments/article/47/Strategia%20niemiecka%20-%20tekst%2012.%2003.%202007.pdf.
Acedido em 17 de outubro de 2013.
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
159
Educação da Minoria Ucraniana”17. A 11 de fevereiro de 2014, a “Estratégia para
o Desenvolvimento da Educação Bielorrussa” foi aprovada. A estratégia é resultado da cooperação entre a administração governamental e as organizações da
minoria bielorrussa, e será submetida à aprovação do Ministro da Administração
e do Ministro da Educação Nacional. “A Estratégias para o Desenvolvimento da
Educação da Minoria Bielorrussa na Polónia” é o quarto documento que empreende os desafios educacionais únicos necessários para a educação de minorias
nacionais ou étnicas particulares na Polónia, incluindo os direitos das crianças a
preservarem a identidade e a educação da minoria.
As estratégias acima mencionadas formam regulações educacionais que
devem delinear as direções do desenvolvimento qualitativo na área da suplementação de base didática e da formação didática dos profissionais que se
defrontam com as necessidades da educação das minorias, bem como com
a procura do estabelecimento de escolas bilingues e de escolas com a língua
de determinada minoria nacional. As estratégias refletem as necessidades
e as expetativas no campo da educação das minorias germânica, lituana e
ucraniana e envolvem, entre outros, a rede escolar, o financiamento educacional para as minorias, os conteúdos educacionais, os currículos e manuais
escolares, a formação e treino dos professores, assim como os conselheiros de
metodologias operacionais, questões relativas à introdução de certificados de
habilitação académica bilingue nas escolas bilingues.
3.1. As crianças estrangeiras e a educação
Como regra, as crianças têm acesso à educação na Polónia. O direito a aprender a sua própria língua e a preservar a sua própria cultura, é também garantido às crianças estrangeiras. Às crianças estrangeiras – mesmo que, à luz
da lei, residam na Polónia ilegalmente – em concordância com os acordos
internacionais é garantido o direito a uma educação gratuita e adicional, a
lições de língua polaca organizadas para crianças estrangeiras a frequentar a
escola, bem como a outras aulas de compensação. As escolas têm a obrigação
de apoiar os estudantes na preservação das suas identidades nacionais, étnicas, e religiosas, bem como a preservarem as suas línguas (Art. 13 do Ato da
Educação18). As escolas não têm a obrigação de organizar lições de língua
17
Estratégia para o Desenvolvimento da Educação da Minoria Ucraniana: http://www.
kuratorium.waw.pl/files/f-2928-2-strategia.pdf. Acedido em 26 de fevereiro de 2014.
18
“Art. 13. 1. A escola e as instituições públicas permitem aos estudantes preservar as suas
identidades nacionais, étnicas e religiosas e, em particular, a preservarem as suas línguas e as
suas próprias histórias e culturas. 2. Na aplicação, pelos pais, o tipo de educação referido no
Ato 1, pode ser conduzido: 1) em grupos, unidades ou escolas separados; 2) em grupos, unidades ou escolas – com lições adicionais sobre história e cultura; 3) em equipas educacionais
interescolas. 3. O Ministro apropriado para os assuntos da educação definirá, sob a forma de
uma prescrição, as condições e os métodos de desempenho das tarefas, referidas no Ato 1 e
2, nas pré-escolas, escolas e instituições públicas, particularmente o número mínimo de estu-
160
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
do país de origem das crianças estrangeiras. No entanto, elas são obrigadas a
garantir o acesso às salas usadas com propósitos educacionais, se uma associação cultural ou uma embaixada do país de origem das crianças tomar a
iniciativa de organizar lições na língua.
Relatórios sobre casos de discriminação são raros, tanto na área da educação, como em outras esferas. De acordo com os dados do Provedor dos
Direitos das Crianças, de 21 de dezembro de 2010, a discriminação de crianças estrangeiras em países fora da União Europeia não foi referida. Foram elaborados relatórios sobre os estrangeiros residindo ilegalmente na República
da Polónia, relacionados com os cuidados de saúde.19 Isto não significa que
não existissem dificuldades relacionadas com, e.g. educação:
•
•
•
inadaptação das exigências escolares aos princípios culturais e
religiosos;
problemas com a avaliação e classificação dos estudantes;
relutância por parte dos pais em aceitar uma criança estrangeira numa
determinada turma.
Este problema é, igualmente, indicado pela Comissão Europeia contra o
Racismo e a Intolerância (ECRI), que realça que, de acordo com relatórios
sobre as escolas polacas, existem casos de discriminação, que afetam sobretudo estudantes ciganos e estrangeiros; no entanto, em anos recentes, a situação tem vindo a melhorar.20
A violação dos direitos e dos comportamentos que podem ser entendidos
como discriminatórios afeta as crianças que permanecem em centros de acolhimento para estrangeiros, e diz respeito às próprias condições de uma vida
em segurança, ou ao acesso à educação ou a outros serviços e bens. Tal como
o documento afirma: “A baixa taxa de frequência escolar das crianças ciganas é extremamente alarmante. O programa para a comunidade cigana, na
Polónia, não é implementada com igual entusiasmo por todos os Presidentes
dantes para quem estas formas particulares de educação definidas no Ato 2 são organizadas. 4.
No trabalho educacional-didático, as escolas públicas asseguram a possibilidade de preservar
a cultura e tradições regionais. 5. A aquisição dos manuais escolares e dos livros suplementares usados na educação dos estudantes, na área necessária para preservar o sentimento de
identidade nacional, étnico e linguístico pode ser apoiado financeiramente pelo orçamento do
Estado, na quantia que o ministro apropriado tem à sua disposição para assuntos da educação.” (Ato da Educação de 7 de setembro de 1991 (Diário Legislativo, 1991, n.º 95, pos. 425).
19
De acordo com os dados do Provedor dos Direitos das Crianças, de 21 de dezembro de
2010. De: M. Pryczyńska, Dyskryminacja cudzoziemców w Polsce, Centrum pomocy prawnej
im. H. Nieć, 12 de abril de 2011, p. 23.
20
Relatório da ECRI sobre a Polónia, publicado em 15 de junho de 2010, Conselho da Europa, Estrasburgo, 2010, CRI(2010)18, P. 21: http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/ecri/countryby-country/poland/POL-CbC-IV2010-018-POL.pdf. Acedido em 28 de fevereiro de 2014.
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
161
de Câmara. Outras minorias históricas têm, igualmente, razões de queixa,
e.g. sobre o âmbito de implementação do Ato Legislativo de 2005 relativo às
minorias nacionais e étnicas, bem como as línguas regionais, e do Ato sobre a
comunidade muçulmana.”21
Vários documentos indicam, igualmente, um tratamento menos favorável das crianças estrangeiras, em escolas certificadas, e a colocação de crianças em centros vigiados, devido a atos cometidos pelos seus pais. Em 2013,
havia 6 centros de reclusão vigiados na Polónia. Menores com pais, assim
como menores sem guardiães legais, estavam colocados nestes centros. Estes
centros são monitorizados 24 horas por dia, por guardas fronteiriços, e estão
rodeados por uma vedação de 3 metros de altura, e as regulações e o ritmo
de funcionamento quotidiano é pesado para as crianças e evoca associações
de “prisões”22. As crianças aí internadas não frequentavam as aulas na escola.
Elas normalmente tinham, de uma forma limitada, a possibilidade de participar em aulas conduzidas na área do centro. Outro aspeto negativo da permanência em estado de confinamento é a natureza derrogatória do local, a falta
de contacto com os seus pares e uma vivência de acordo com os padrões dos
adultos.
No projeto de 2012 do ato legislativo sobre os estrangeiros, não há prescrições para instrumentos que protegeriam as crianças estrangeiras contra a
sua colocação em centros vigiados com condições de vida similares às de uma
prisão.23 É necessário realçar que a colocação de crianças em centros vigiados causa sofrimento injustificado sofrimento e medo, e viola os direitos das
crianças, incluindo o direito à proteção. Para além disso, a própria colocação
das crianças – mesmo durante um curto período de tempo – em detenção
(outras condições de funcionamento diário, isolamento do mundo exterior),
pode conduzir a danos irreparáveis à mente das crianças, desordens psicofisiológicas do desenvolvimento e dificuldades na adaptação social às novas
condições culturais do país hóspede. O novo ato legislativo sobre os estrangeiros24 introduz regulações relativas à colocação de crianças estrangeiras,
sem guardiões legais, em centros vigiados. De acordo com estas regulações,
21
Ibidem, p. 10.
Baseado em: Informação sobre o estado de realização dos direitos dos indivíduos colocados em centros vigiados para estrangeiros geridos por guardas fronteiriços, Ministerstwo
Spraw Wewnętrznych, Departament Kontroli, Skarg i Wniosków, Warszawa, January 2013.
http://bip.msw.gov.pl/download/4/15845/12-15-37KW378922DKSIWplik2.pdf. Acedido em
20 de fevereiro de 2014.
23
Informação sobre este assunto é proveniente de, entre outras fontes: A Fundação de Helsínquia para os Direitos Humanos, Amnistia Internacional, Associação sobre a Intervenção
Legal.
24
No dia 30 de dezembro de 2013, um novo ato legislativo sobre os estrangeiros foi publicado no Diário Legislativo (Diário Legislativo de 2013, pos. 1650). O ato entrou em vigor em 1
de maio de 2014.
22
162
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
as crianças com menos de 15 anos, que permanecem sem guardiões legais,
não serão colocadas em centros vigiados. O projeto prévio do ato legislativo
sobre os estrangeiros assumiu que as crianças com menos de 13 anos de idade
seriam colocadas em centros vigiados. À luz da Convenção sobre os Direitos
da Criança, e de outros Atos legislativos internacionais vinculativos para a
Polónia, justifica-se a expetativa de que a detenção de crianças estrangeiras,
tanto das que têm guardiões legais, como daquelas privadas desse estatuto,
será completamente abolida. O Centro de Ajuda Legal, sob os auspícios de
Halina Nieć, faz notar que “no plano de implementação preparado, não há
regulações que possam confirmar tais assunções, ou mesmo indicar a possibilidade de considerar uma mudança em atos legislativos, apropriados sobre
este assunto, no futuro. Nós postulamos que regulações apropriadas tomarão
forma no documento em questão, para ficar de acordo com a posição consequentemente apresentada por organizações polacas não-governamentais que
trabalham em prol dos direitos das crianças estrangeiras”25
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que rege assuntos relativos à
detenção de menores, realça a sua grande vulnerabilidade em estado de detenção e os efeitos negativos resultantes da sua separação das famílias ou dos seus
mais próximos guardiões. O tribunal considera que a detenção de crianças é
uma violação do Artigo 5 do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (i.e.
o direito a usufruir de liberdades e de segurança pessoal) e o Artigo 3 (i.e.
liberdade de torturas e de tratamentos desumanos ou humilhantes).”26 Deste
modo, é também uma violação do Artigo 3 da Convenção sobre os Direitos da
Criança, que toma em consideração o bem-estar de uma criança: “Em todas
as ações relacionadas com as crianças, o bem-estar da criança será o elemento
mais crucial.” Um tribunal, que decide enviar um menor, sem guardião ou
família, para um centro vigiado, tem de ter em conta o bem-estar da criança.
Colocar uma criança em centros vigiados deve ser uma absoluta exceção, não
a regra. A possível colocação de um menor numa destas instituições deve
ser apenas uma solução de emergência e durar, possivelmente, o mais curto
espaço de tempo.
De acordo com a “Informação sobre o estado da realização dos direitos dos
indivíduos colocados em centros vigiados para estrangeiros geridos por guardas fronteiriços”27. Tendo em mente que as obrigações da Polónia resultantes
25
Stanowisko Centrum Pomocy Prawnej im. Haliny Nieć odnośnie planu wdrażania dla
dokumentu: “Polityka migracyjna Polski – stan obecny i postulowane działania”, Kraków, 31
de janeiro de 2014.
26
“Kampania NA RZECZ CAŁKOWITEGO ZNIESIENIA UMIESZCZANIA DZIECI
CUDZOZIEMSKICH W ZAMKNIĘTYCH OŚRODKACH STRZEŻONYCH” (3.2012).
27
Informacja o stanie realizacji praw osób osadzonych w Strzeżonych Ośrodkach dla
Cudzoziemców prowadzonych przez Straż Graniczną. Ministerstwo Spraw Wewnętrznych,
Warszawa 2013 (Informação sobre o estado da realização dos direitos dos indivíduos colocados em centros vigiados para estrangeiros geridos por guardas fronteiriços, Varsóvia, janeiro
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
163
da necessidade de proteger as fronteiras externas da União Europeia, o elevado nível de implementação instrumental dos procedimentos relativos aos
refugiados, bem como do tratamento dos imigrantes na Polónia, enquanto
país de trânsito, não é completamente possível abdicar da colocação de famílias com filhos em centros vigiados. Por razões humanitárias, e para proteger
a vida familiar, não é recomendado separar as famílias, colocando os pais
em detenção, enquanto os seus filhos são colocados em centros de cuidados
educacionais. No entanto, é recomendada a realização de ações simultâneas,
cujo propósito seria minimizar os efeitos negativos da detenção dos menores.” Entre estas tarefas, encontram-se as seguintes:
“… atribuir elevada prioridade aos procedimentos relativos aos indivíduos que permanecem em centros vigiados e a mais elevada das prioridades aos procedimentos relativos aos menores estrangeiros, de modo
a limitar a estadia de famílias com filhos e da estadia de menores em
centros vigiados;
e colocar todas as famílias com filho e os menores sem guardiões em um
ou dois centros, em conjunto com o aumento dos esforços para garantir
as melhores condições possíveis nestes centros – tanto nas condições dos
espaços, como na educação dos profissionais com qualificações na área de
ensino de estrangeiros e com o conhecimento das línguas apropriadas”.28
O problema das crianças reemigrantes também é apresentado de forma marginal. As crianças reemigrantes estão a regressar às escolas polacas nas grandes urbes e nas pequenas cidades. Cada caso é diferente e requer um trabalho
individual com uma criança. Em 2008, calculava-se que, nas escolas polacas,
em todos os níveis de ensino, havia 6 101 estudantes reemigrantes – sobretudo
os filhos de polacos que, depois de a Polónia ter aderido à União Europeia,
se tornaram parte da migração económica de massas no estrangeiro29. Os
de 2013). http://bip.msw.gov.pl/download/4/15845/12-15-37KW378922DKSIWplik2.pdf.
Acedido em 20 de fevereiro de 2014.
28
Informacja o stanie realizacji praw osób osadzonych w Strzeżonych Ośrodkach dla
Cudzoziemców prowadzonych przez Straż Graniczną. Ministerstwo Spraw Wewnętrznych,
Warszawa 2013 (Informação sobre o estado da realização dos direitos dos indivíduos colocados em centros vigiados para estrangeiros geridos por guardas fronteiriços, Varsóvia, janeiro de 2013). http://bip.msw.gov.pl/download/4/15845/12-15-37KW378922DKSIWplik2.pdf.
Acedido em 20 de fevereiro de 2014.
29
O maior número de crianças reemigrantes frequentava as escolas do primeiro ciclo do
ensino básico (4 156) e as escolas do segundo ciclo do ensino básico (1 546). Os dados totais
para o ano escolar de 2008, e para o primeiro período de 2009/2010, recolhidos através dos
curadores da educação. Basedao em: A resposta de Zbigniew Włodkowski – Sub-secretário do
Ministério da Educação Nacional, de 10 de Junho de 2010, à interpelação n.º 15 801, de Kazimierz Moskal. K. Moskal (2010). Interpelação sobre os problemas educacionais das crianças
164
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
dados do Ministério de Educação Nacional indicam que as crianças reemigrantes, que retornaram às escolas polacas, desde 2008, têm de compensar
as diferenças no currículo escolar. Quanto mais tempo uma criança permanece no estrangeiro, mais profundos e fortes são os repetidos choques que ela
experimenta.
Relativamente às declarações dos polacos (que vivem no estrangeiro, relativamente ao seu futuro), sobre o seu regresso ao pais de origem, pode assumir-se que o seu número vai crescer no futuro. É difícil indicar formas claras de discriminação contra este grupo. As crianças reemigrantes encontram
uma série de problemas, tais como:
•
•
•
•
•
barreiras comunicacionais no uso da língua polaca;
dificuldades de adaptação e pedagógicas relacionadas com a construção de relações no ambiente escolar;
complementação das diferenças curriculares, em particular nas disciplinas de ciências;
dificuldades no domínio da gramática e da forma escrita da língua
polaca, que é uma componente essencial nos exames externos;
contatos difíceis com os pais, se eles permanecerem no estrangeiro.30
Relativamente ao acima exposto, seria necessário organizar lições adicionais
de língua polaca gratuitas, lições adicionais compensatórias em disciplinas
obrigatórias, e oferta de apoio psicológico aos estudantes e aos seus pais/
guardiães
As escolas polcas diferem das britânicas, da irlandesas ou das francesas,
não apenas na homogeneidade culturas das turmas, mas igualmente na forma
como o conhecimento é transmitido e nos métodos de trabalho com as crianças. O que é novo para os estudantes reemigrantes é o sistema educacional,
os currículos, as exigências dos professores e as relações professor-estudante.
Anos de aprendizagem numa língua diferente e em contextos socioculturais
distintos, meses gastos em pré-escolas e escolas na Grã-Bretanha, Irlanda,
Noruega ou outros países da União Europeia ou de fora da Europa, muito frequentemente criam distância para a língua, cultura e história do país de origem. A reserva e as deficiências de conhecimentos e competências resultam
da língua, das diferenças de currículos, das disparidades nos contextos sociais
e culturais, assim como na quantidade de conhecimento que é transmitido
(teórico, não prático).
As experiências dos professores indicam que, após uma longa estadia no
estrangeiro, os estudantes regressam sem o conhecimento da gramática e da
reemigrantes. http://sejm.e-prawnik.pl/vi-kadencja/interpelacje/8253.html. Acedido em 1 de
março de 2014.
30
Ibidem.
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
165
ortografia polacas. Eles, muitas vezes, não estão familiarizados ou enraizados
na história e geografia ensinada nas escolas polacas. Os esforçados pais trabalhadores – emigrantes – nem sempre têm o tempo, nem as possibilidades, e
muito frequentemente – as condições, de cuidar da educação polaca dos seus
filhos. Alguns dos progenitores usam a língua do país de residência, ou um
dialeto local (e.g. silésio), no contato diário com os seus filhos. Deste modo, a
criança não é exposta à linguagem literária polaca em casa. “Eles não sabem
os textos base, cujo conhecimento é exigido na escolaridade obrigatória nas
escolas polacas. Elas não sabem o que é uma metáfora ou uma apóstrofe”31
Uma vez tomada a decisão de regresso ao seu país, os efeitos da distância
linguística e cultural para o país de origem tornam-se aparentes para todos
os participantes no processo educacional-didático. As observações dos professores indicam que alguns estudantes reemigrantes, nas escolas polacas,
“ficam para trás do resto da turma”, porque não conseguem escrever ou ler
em polaco, ou porque apresentam dificuldades em ambas as competências.
Como resulta dos dados do Ministério da Educação Nacional, o maior
problema refere-se aos estudantes do 1.º ciclo do Ensino Básico (mais de 4
mil), que têm de ultrapassar as barreiras de comunicação no uso do polaco
como língua materna, tanto na oralidade, como na escrita. Alguns estudantes enfrentam problemas relacionados com a sua identidade nacional.
Adicionalmente, os professores referem problemas com a compreensão de
mensagens que lhes são transmitidas e com a fala correta da língua polaca,
que, como resultado, gera problemas no seu relacionamento com o grupo
de pares e na integração na turma da escola. Entre os problemas recorrentes
encontram-se a sintaxe e a ortografia, bem como a pronúncia de sílabas que
são naturais na língua polaca: ”sz” (“sh”), “cz” (“tch”), “dż” (“dj”). As insuficiências de conhecimentos (num determinado nível da educação) dos estudantes que regressam do estrangeiro são normalmente muito grandes, e assim os
professores podem conduzir aulas de compensação em determinado campo
das disciplinas escolares. Às crianças que regressam ao país sem saberem a
língua polaca ou, tendo conhecimento dela de forma insuficiente, é garantida
ajuda na forma de lições adicionais, gratuitas, de língua polaca.32 A organização deste tipo de ajuda é da competência do órgão que gere a escola. Não
obstante, o período total de tempo devotado a estas lições não pode exceder
os 12 meses. Estas lições devem ser organizadas de acordo com ordens do
Ministério, desde 2010. O número de crianças reemigrantes que enfrentam
31
K. Domagała, Reemigranci na Śląsku: Angielska szkoła, śląskie problemy, Dziennik
Zachodni, 2013: http://www.dziennikzachodni.pl/artykul/874993,reemigranci-na-slaskuangielskaszkola-slaskie-problemy,id,t.html. Acedido em 26 de fevereiro de 2014.
32
As presentes regulações estão incluídas no art. 94 do Ato Legislativo de 7 de setembro de
1991, sobre o sistema de educação, emendado em março de 2009. As regulações entraram em
vigor em 1 de janeiro de 2010.
166
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
dificuldades com as suas competências linguísticas vai crescer nas turmas das
escolas, daí a necessidade de ações sistémicas que apoiem os estudantes e os
seus pais, bem como a necessidade de permitir que os estudantes tenham
acesso à qualidade de educação que seja apropriada e adequada para o nível
de educação em que se encontram.
O sistema educacional polaco assume eu todos os estudantes que residem no território da Polónia, ou que regressam do estrangeiro, são aceites na
escola de acordo com uma necessidade legislativa de realizarem uma escolaridade obrigatória, baseada nos seguintes documentos:
•
•
um certificado oficial emitido por uma escola local estrangeira33 (se
o certificado for emitido no sistema educacional de um determinado
país) ou um certificado emitido pelo diretor da escola que o estudante
frequentou;
certificados de graduação das consecutivas turmas da escola do 1.º
ciclo do Ensino Básico, se o estudante frequentou alguma.34
As questões relacionadas com o reconhecimento dos certificados das crianças e jovens estrangeiros são determinadas pelas regulações do Preceito do
Ministério da Educação Nacional, de 16 de abril de 2006, sobre a notificação
dos certificados escolares e dos certificados de graduação das escolas secundárias recebidos no estrangeiro. “Os certificados de graduação podem ser
notificados por um curador apropriado para o lugar de residência da pessoa que se candidata à notificação e, no caso de o lugar de residência não
puder ser comprovado, por um curador apropriado para a instituição em que
33
O termo “um certificado obtido no estrangeiro” refere-se a qualquer documento emitido
por uma instituição autorizada para esse fim, que confirma a graduação por uma escola ou de
um determinado nível de educação, no estrangeiro.
Um certificado recebido no estrangeiro é reconhecido como equivalente a um certificado
de graduação de uma escola polaca do 1.º ciclo do Ensino Básico, se o período de educação
definido no currículo, necessário para receber aquele certificado, tem a duração de 6 anos ou
mais, e se os candidatos aceites no primeiro ano de educação não tiverem mais do que 6 anos
de idade. Ver: Preceito do Ministro Nacional da Educação e da Ciência, de 6 de abril de 2006,
sobre a notificação dos certificados escolares e sobre os certificados dos exames escolares do
Ensino Secundário obtidos no estrangeiro (Diário Legislativo de 13 de abril de 2006.
34
More: A. Baranowska et all. (2008). Powrotnik. Nawigacja dla powracających. Wydanie I, Warszawa. http://www.kopenhaga.msz.gov.pl/resource/15f62d31-4666-440d-9657-afe26b20591a; Powroty. Zielona linia: http://www.powroty.gov.pl/download/Powrotnik_Nawigacja_dla_powracajacych.pdf. Accessed 20 Feb 2014; o §19 do ato 1, p. 33 do ato 3 do Preceito do Ministério
nacional da Educação e Desporto de 20 de fevereiro de 2004, sobre as condições e os procedimentos de aceitação de estudantes em escolas públicas, bem como das transferências de
um tipo de escola para outro (Diário Legislativo de 2004, N.º 26, pos. 232). Acedido em 26 de
fevereiro de 2014.
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
167
a pessoa pretende submeter o certificado obtido no estrangeiro”.35 Os documentos acima mencionados são a confirmação de que os estudantes cumpriram as suas obrigações educacionais e uma garantia dos graus recebidos por
eles na escola estrangeira. Todos os documentos estrangeiros requeridos permitidos na Polónia, com base no ato legislativo sobre a língua polaca, devem
ser traduzidos para polaco. Dever realçar-se que as escolas não exigem que os
pais/guardiães do estudante se submetam a testes psicológicos relacionados
com o estado mental e o nível de desenvolvimento de uma criança. Ajudar as
crianças a adaptarem-se às realidades da escola polaca é competência dos professores da turma, dos funcionários da escola, dos pedagogos da escola, dos
psicólogos, dos pais e de outras pessoas envolvidas nos cuidados das crianças.
De acordo com a decisão de uma pessoa dirigente da instituição educacional (por vezes, o processo de aceitação dá-se após uma consulta aos professores), todos os estudantes que regressam à escola são aceites e classificados –
segundo o sistema de educação polaco – numa turma própria, com base na
candidatura submetida a um responsável pela direção da escola, num certificado de uma escola estrangeira, no número total de anos de escolaridade frequentados pela criança, desde os 5 anos de idade, e após uma entrevista com
o candidato. Ao aceitar uma criança numa instituição educacional, a pessoa
responsável também toma em consideração a idade do estudante, o número
de anos durante os quais a criança frequentou a escola (incluindo o número
de anos de escolaridade em escolas polacas) e a turma em que o candidato
obteve a sua graduação. No caso de um estudante não ter sido aceite numa
escola da sua preferência (este caso é particularmente pertinente nas escolas
do 3.º ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário), os pais ou guardiães
têm o direito de apelo da decisão tomada pela pessoa responsável da escola
para o Departamento de Educação.
É necessário relembrar a regra da localização das crianças numa determinada região ou distrito, a quem é dada preferência de aceitação nas e.g. escolas do 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico. Assim, a decisão relativa á aceitação na
escola é influenciada pelo registo da residência. É claro que os pais/guardiães
podem submeter uma candidatura a qualquer escola por eles selecionada,
porém as suas candidaturas serão consideradas tendo em conta o número
de lugares que a escola tem disponíveis. A decisão de aceitar um estudante é
tomada pelo Diretor da escola.
35
Conversa com o Sr. Sielatycki, Regulações sobre a aceitação das crianças nas escolas da
Polónia. Transcrição disponível no site: http://www.powroty.gov.pl/pl/chat/archiwum/1056.
html. Acedido em 20 de novembro de 2013.
168
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
4. E que dizer sobre o combate à discriminação contra as crianças no
mundo contemporâneo?
Em anos recentes, várias ações antidiscriminação contra as crianças e os seus
guardiões têm sido tomadas. Estas ações são o resultado da política da União
europeia para a igualdade e para a igualdade de oportunidades dos cidadãos
dos Estados europeus. As alterações na natureza da legislação antidiscriminação têm contribuído para o desenvolvimento da estratégia antidiscriminação
e a realização de numerosas ações com o propósito de contrariar a discriminação. O Instituto de Sociedade Aberta tomou a decisão, em 2007, de relizar um
programa educacional, designado “Programa de Apoio Educacional” (ESP),
que é devotado à educação das crianças migrantes, das crianças pertencentes
a minorias e das crianças marginalizadas. O objetivo do programa, realizado
em França, na Alemanha, na Holanda e na Grã-Bretanha, é integração social
e prevenção da injustiça na esfera da educação.36 Ações de natureza similar
estão a ser iniciadas, igualmente, em outros países, incluindo a Polónia. Os
relatórios relativos à Polónia indicam mudanças positivas, que tiveram lugar
em anos recentes. Ao mesmo tempo, é recomendado que:
•
•
•
•
•
se realizem esforços para erradicar o racismo entre as crianças da
escola;
se lancem campanhas antirracistas dirigidas à sociedade, na sua totalidade, se assegurem iguais oportunidades para as crianças ciganas e
para erradicar os sistemas segregacionistas nas escolas;
se coopere com os pais, com o propósito de assegurarem a frequência
universal da escola;
se aumente o nível de educação nos centros de receção de nos centros
vigiados;
se providenciar cuidados especiais às crianças estrangeiras.37
Os países da União Europeia são países que estão numa fase de grandes
transformações no que se refere á composição da população: uma entrada
de imigrantes e, ao mesmo tempo, uma acentuada migração económica. O
movimento interno dos habitantes da UE e a entrada de população (incluindo
famílias com filhos) de países fora da UE está em crescendo, o que é seguido
de uma diversidade cultural e nacional, bem como de problemas de integração social, incluindo a integração das crianças e uma garantia dos seus direitos que são referidos na Convenção. Este fenómeno é particularmente visível
36
Educação para os Migrantes, Minorias, e Crianças marginalizadas na Europa (EMMME).
Relatório da ECRI sobre a Holanda, publicado em 15 de junho de 2010, Conselho da Europa, Estrasburgo, 2010, CRI(2010)18, p. 21. Website: http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/
ecri/country-by-country/poland/POL-CbC-IV2010-018-POL.pdf. Acedido em 28 de fevereiro de 2014.
37
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
169
nos grandes centros urbanos. Por um lado, esta situação, em primeiro lugar,
cria a necessidade de promover a integração efetiva dos recém-chegados na
comunidade local, o que permitirá aos estrangeiros preservarem as suas identidades e funcionarem numa realidade social que lhes é estranha. Por outro
lado, chama a atenção para os direitos das crianças migrantes (de minorias
étnicas, de imigrantes e de reemigrantes) para a não-discriminação.
Uma análise do fenómeno da discriminação contra as crianças de minorias
étnicas, de crianças imigrantes e de crianças reemigrantes, tanto na Europa,
como na Polónia, permite delinear as áreas em que são necessárias mudanças
para melhorar a atual situação e para reduzir a ameaça da discriminação:
•
•
•
•
•
•
perceção da discriminação contra as crianças sob uma perspetiva universal, no contexto da discriminação contra os adultos;
tratamento fragmentário da discriminação contra as crianças – o problema mais frequentemente abordado é o da discriminação contra as
crianças na esfera da educação, ignorando outras esferas, como os cuidados de saúde, as condições de vida, etc.;
falta de instrumentos de monitorização regular da discriminação contra as crianças;
investigação de referência sobre grupos selecionados – refugiados e
crianças ciganas;
falta de instituições que abordem os problemas de discriminação contra as crianças;
falta de ações integradas antidiscriminação para as crianças (o escopo
da intervenção está ligado às políticas do Estado e às experiências
neste campo.
Tal como foi realçado por Cecilia Malmström, Comissária dos Assuntos
Internos, “os menores que chegam sozinhos às nossas fronteiras encontram-se entre os que estão mais expostos e vulneráveis nas nossas sociedades.
Embora seja encorajador que as políticas da UE tenham ajudado a melhorar
as condições e a proteção das crianças, mais desafios se perfilam no horizonte.
Precisamos de melhorar os nossos procedimentos para assegurar que estas
crianças são alvo de uma receção digna nas fronteiras da Europa. Isto inclui
uma melhor cooperação e partilha de informação entre os países da UE”38
38
Asilo e migração: a UE deve esforçar-se mais para proteger as crianças desacompanhadas, http://europa.eu/rapid/press-release_IP-12-1033_en.htm. Acedido em 26 de fevereiro de
2014.
170
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
Comentários finais
No presente texto, tentámos responder às seguintes questões: Qual é a escala e
a natureza da discriminação, e como se define, em geral, a discriminação contra as crianças de minorias étnicas ou nacionais, bem como contra as crianças
migrantes e reemigrantes?
Tentámos apresentar o fenómeno da discriminação acompanhando o dia
a dia das crianças encaradas como ‘diferentes’, ‘piores’, ‘outras’, devido à sua
distinção cultural, étnica e nacional, através do prisma de processos globais e
locais, que ocorrem no seio das dimensões legal-política, social-educacional e
cultural, em relação, tanto com o espectro global, como com o específico dos
fenómenos relacionados.
O direito dos estrangeiros, das minorias e dos reemigrantes à não-discriminação, em primeiro lugar na esfera da educação, requer uma revisão das
ações previamente tomadas e a preparação das instituições educacionais e
dos ambientes, de modo a poder-se trabalhar em condições de multiculturalismo autodesconstruído. Parece-nos crucial tomar em conta as diferenças de
caráter cultural e a experiência de trabalho com minorias e crianças estrangeiras, em determinados países da União Europeia. Os modelos de integração (mesmo que apenas devidos à diferenciação no movimento de migração
contextual-histórico, às tradições de imigração e de emigração, à presença de
grupos migrantes particulares ao longo dos séculos, ao passado colonial, às
diferenças entre os principais canais de movimento de estrangeiros: empregados, reuniões de famílias, indivíduos em busca de proteção, repatriados,
imigrantes ilegais, presença histórica de minorias nacionais e étnicas no território de um determinado país, tradições de relações interétnicas ou a sua
ausência39) e o caráter das políticas antidiscriminatórias nos países europeus
diferem, tanto nos conceitos adotados por países particulares, nos meios
empregues, na legislação, e nos resultados alcançados através de estratégias
de integração sociopolíticas.
Deste modo, parece-nos essencial desenvolver soluções interdepartamentais, dentro do espírito da antidiscriminação, adequadas às necessidades e
à natureza do trabalho em grupos multiculturais de crianças, jovens, e respetivos pais, bem como em ambientes locais. É particularmente importante
incluir, nos currículos, o conteúdo de uma educação multicultural e antidiscriminação e para promover os direitos das crianças, tanto entre as crianças,
como entre os adultos, assim como promover um espírito de abertura e o valor
da cooperação em condições de heterogeneidade social e cultural, a partir do
mais precoce período de vida de uma criança. Isto implica a necessidade de
39
Cf.: A. Kicinger, Koncepcje integracji imigrantów ze społeczeństwem przyjmującym
na przykładzie praktyki wybranych państw europejskich, Międzynarodowa Organizacja do
spraw Migracji, 2005. http://www.iom.pl/res/files/integracja/integrUE_koncepcje.doc
CAPÍTULO 6: Discriminação contra crianças de minorias étnicas e nacionais na educação
171
ultrapassar as barreiras sistémicas e de estabelecer instituições de “fora”, de
empreender uma cooperação com as autoridades educacionais de uma comunidade local, de uma região, com bibliotecas, centros comunitários, grupos e
associações de imigrantes e de minorias, ambientes locais ou órgãos de comunicação social.
No relatório de peritos intitulado “Uma análise de experiências de países
europeus na esfera da educação das crianças e jovens estrangeiros” (Dąbrowa,
Markowska-Manista, 2010) para o projeto “Tu também pode ter uma educação em Varsóvia” para o Departamento de Educação da Cidade de Varsóvia,
nós indicámos a necessidade de desenvolver um conceito de política antidiscriminação coerente e multidimensional, com a finalidade da integração e
igualitarização das oportunidades dos estudantes migrantes, sobretudo das
crianças refugiadas. Deve incluir:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
um diagnóstico das necessidades dos estudantes migrantes e dos estudantes de origem migrante;
estabelecimento de uma atual escola base e comunicação entre as escolas em que os estudantes estrangeiros estudam;
estabelecimento de uma base de “boas práticas”, realizada na esfera da
educação das crianças migrantes e da educação intercultural;
distribuição de boas práticas “efetivas”, na esfera da educação das
crianças imigrantes;
sessões de treino para os funcionários pedagógicos, na esfera da educação intercultural e multicultural, preparadas em cooperação de centros de formação de professores, de instituições de educação superior,
de ONGs (incluindo os líderes de outros grupos culturais);
assegurar um apoio linguístico coerente e efetivo aos estudantes, na
esfera da aprendizagem da linguagem do país de receção, e as suas
línguas nativas com base nas origens culturais;
melhoria da formação académica de professores e pedagogos, das sessões de treino e competências de professores, com referência às crescentemente necessidades diversificadas dos estudantes;
iniciação do diálogo com os pais migrantes e do seu empenho nas atividades escolares;
desenvolvimento da consciência social do Outro e da diversidade da
sociedade polaca;
formação das atitudes de abertura, de diálogo e de respeito pelo Outro;
cooperação estreita entre as instituições de educação formal e informal;
desenvolvimento da cooperação internacional na esfera da troca
de experiências relacionadas com os ambientes de trabalho dos
imigrantes.
172
Urszula Markowska-Manista, Ewa Dąbrowa
Para garantir os direitos das crianças de minorias nacionais e étnicas, das
crianças reemigrantes e das crianças estrangeiras, incluindo o direito à não-discriminação, em oposição a uma forte influência da cultura do local de
residência (dimensão local), assim como aos problemas resultantes de uma
diversificação das sociedades (dimensão global), era e ainda é a mais complicada tarefa que as sociedades da União Europeia enfrentam. Esta é uma tarefa
única, particularmente na falta de consciencialização, por parte dos cidadãos
que habitam nos países da União Europeia, dos seus próprios direitos40, uma
tarefa que requer mostrar abertura aos testemunhos das crianças pertencentes a grupos minoritários, e a dar-lhes voz, – uma voz que ainda permanece
minoritária.
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40
De acordo com o EU-MIDIS, a investigação efetuada pela Agência Europeia dos Direitos
Fundamentais, em 2010, apenas 25% dos inquiridos declarou ter conhecimento das regulações antidiscriminação. Os resultados da investigação estão disponíveis em: http://fra.europa.
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oraz społeczności posługującej się językiem regionalnym. (Dz. U. Nr 214, poz. 1579). /
Order of the Minister of National Education of 14 November 2007 on the conditions
and methods employed by preschools, schools and public institutions to perform
tasks enabling the preservation of the sense of national, ethnic and language identity of students belonging to national and ethnic minorities and communities using a
regional language (Law Journal 2007 No 214, pos.1579).
Questões para reflexão
•
•
•
•
•
As regulações antidiscriminação relativas às crianças devem ser recomendadas
(incluindo as crianças de minorias étnicas, as crianças imigrantes e as crianças
reimigrantes)?
Qual é a situação das crianças das minorias étnicas, das crianças imigrantes e reimigrantes da Europa, no teu país?
Quais são os direitos que as crianças das minorias no teu país têm?
Como obter e incluir nos debates nacionais sobre os direitos das crianças à não-discriminação as vozes das crianças migrantes, reemigrantes, pertencentes a minorias
nacionais e étnicas, e refugiadas? Como – de uma forma não discriminatória – fazer
ouvir essas vozes?
Apresenta uma ideia de ações que as crianças e/ou os jovens seriam capazes de empreender para assumir a responsabilidade de informar os adultos, e torná-los conscientes
dos seus direitos, e que teriam impacto?
Leituras adicionais
Discrimination in the EU in 2012. Report, Special Eurobarometer, November 2012.
http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_393_en.pdf. Accessed 28 Feb
2014.
Education and Migrations strategies for integrating migrant children in European schools and societies. A synthesis of research findings for policy-makers. An independent
report submitted to the European Commission by the NESSE network of experts,
Brussels: European Commission. http://www.nesse.fr/nesse/activities/reports/activities/reports/education-and-migration-pdf. Acedido em 28 de fevereiro de 2014.
Gambaro A., Kobayashi Y., Levy R., Rasheed L., Winkler E. (2008), Unaccompanied children. What happens once they are back home? Project report. Geneve: International
Reference Centre for the Rights of Children Deprived of their Family. http://www.
iss-ssi.org/2009/assets/files/others/Unaccompanied_children-ISS-Final_report-23June_2008.pdf. Acedido em 1 de março de 2014.
Little D. (2010). The linguistic and educational integration of children and adolescents
from immigrant backgrounds. Strasbourg: Council of Europe. http://www.coe.int/t/
dg4/linguistic/Source/Source2010_ForumGeneva/MigrantChildrenConceptPaper_
EN.pdf. Accessed 1 Mar 2014.
Zick A., Küpper B., Hövermann A. (2011). Intolerance, Prejudice and Discrimination. A
European Report. Berlin: Friedrich Ebert Stiftung.
178
Ivan Traina, Roberta Caldin
CAPÍTULO 7:
DISCRIMINAÇÃO MÚLTIPLA DAS CRIANÇAS
COM DEFICIÊNCIA E BACKGROUND MIGRANTE
Ivan Traina 1, Roberta Caldin 2
Ivan Traina é doutorando, Assistente de Investigação no Departamento de Estudos da Educação da Universidade de Bolonha. O seu interesse em tópicos dos direitos das crianças centrase nas crianças com deficiências com um passado migrante,
incluindo a educação a multidiscriminação de grupos vulneráveis, a tecnologia de assistência e as abordagens participativas.
[email protected]
Roberta Caldin é Professora de Educação Especial no Departamento de Estudos da Educação de Bolonha. O seu interesse
incide sobre direitos das crianças, nas crianças com deficiências
com background imigrante. Conduziu um projeto de investigação com o objetivo de investigar as relações entre os estudantes
migrantes com deficiências (de idades compreendidas entre os
0 e os 14 anos) e o sistema escolar italiano (2008–2010).
[email protected]
Introdução
Este artigo foca-se no tema da discriminação múltipla das crianças com deficiências e background imigrante. A sua finalidade é fornecer uma panorâmica acerca do significado da discriminação múltipla em relação à migração
e às deficiências das crianças, oferecendo um possível instrumento e uma
estratégia inclusiva para abordar o assunto. O artigo tenta fornecer informação de apoio aos professores, aos investigadores e aos estudantes interessados
nos estudos do direito das crianças à não-discriminação, e à perspetiva da
igualdade e da inclusão.
De modo a abordar esta questão, será feita uma análise aprofundada da
literatura académica, de estudos, de documentos internacionais e de diretrizes políticas, que têm sido implementados. A metodologia usada na revisão
da literatura consistiu em pesquisar bases de dados3 e publicações impres1
Capítulos 1, 2 e 3.
Capítulos 2, 4 e 5.
3
Pesquisa nas bases de dados: ProQuest Family Health, ProQuest Education Journals, ProQuest
Nursing & Allied Health Source, ProQuest Eric, ProQuest Social Science Journals, Google Scholar.
2
CAPÍTULO 7: Discriminação múltipla das crianças com deficiência
179
sas, que mencionam ou se focam no tema das crianças com deficiências com
background imigrante.
Este novo tópico tem sido bastante investigado a nível nacional e internacional desde o início do século. Ao passo que a literatura científica relacionada com o ensino, com estratégias de receção e inclusão dos estudantes com
background imigrante, bem como com deficiências, é bastante numerosa, a
combinação dos dois tópicos ainda não conheceu desenvolvimentos significativos. Por essa razão, a primeira parte do artigo fornece um breve resumo
do significado do termo “discriminação múltipla”. De acordo com isso, uma
possível ferramenta para identificar barreiras à inclusão, aos recursos e a ajudas, em diferentes setores da vida, é apresentada. A segunda parte apresenta
um projeto de investigação de “escola inclusiva”, como uma estratégia possível para abordar a questão, promovida pelo município de Bolonha, e implementada em colaboração com o Departamento de Estudos Educacionais da
Universidade de Bolonha.
1. Background imigrante
Entre os poucos exemplos de investigação sobre discriminação múltipla em
relação à migração e à deficiência nas crianças, alguns dos estudos focam-se
em: famílias migrantes de crianças com deficiências (Caldin, Argiropoulos
e Dainese, 2010; Caldin, 2012a; Goussot, 2010); como é percecionado o
progresso da criança (Lusa, 2009); as relações com as escolas (Al-Hassan e
Gardener III, 2002); a língua enquanto barreira ao envolvimento parental
na educação das suas crianças (Reyes-Blanes, 2002); e o acesso a serviços
(Chamba e Ahmed, 1999).
Apesar dos muitos estudos sobre as consequências e impactos sobre as
pessoas com deficiências devido a desastres ambientais, guerras e conflitos,
em muita documentação de política internacional há uma persistente falta de
enfoque sobre as crianças migrantes com deficiências, assim como reflexões
específicas sobre o papel das agências, das escolas e ensino, da família, dos
mediadores culturais e dos serviços de assistência social.
Embora seja verdade que têm sido conduzidos alguns estudos sobre refugiados com deficiências ou que procuram asilo, poucos trabalhos têm tido
em consideração o processo de integração de crianças com deficiências após
a sua chegada a um país estrangeiro. Este tipo de negligência é igualmente
demonstrada pela exclusão dos documentos4 de migrantes com deficiências,
4
Incluindo: a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (UNCRPD); o Relatório Mundial sobre Deficiência (Organização Mundial de Saúde,
2011); a Estratégia Europeia para a Deficiência (UE, 2010a); o Estudo do Desenvolvimento da
Cooperação no Conselho da Europa (EU, 2010b).
180
Ivan Traina, Roberta Caldin
de refugiados e de pessoas que procuram asilo. Os únicos documentos oficiais da UE que se referem a esta questão são: o Plano de Ação 2006–2015 da
Conselho da Europa, que recomenda que “As pessoas com deficiência/incapacidade provenientes de grupos minoritários, de migrantes e de refugiados com
deficiência/incapacidade apresentam múltiplas desvantagens decorrentes da
discriminação ou da falta de conhecimento da existência dos serviços públicos.
Os Estados Membros devem assegurar que o apoio dispensado às pessoas com
deficiência/incapacidade tenha em atenção a língua ou os antecedentes e raízes
culturais e as necessidades específicas e particulares destes grupos minoritários.”
(Conselho da Europa, 2006); e o Relatório sobre a Discriminação Gerada pela
Interseção da Deficiência e do Género (UE, 2013).
No que toca às referências aos projetos europeus sobre o tópico, este é mais
desenvolvido com a ajuda de estudos publicados ao abrigo de dois projetos fundados na estrutura do Programa de Aprendizagem Contínua (subprograma
Comenius, Ação 2). O primeiro, intitulado “Desenvolvimento das Condições
para Crianças Ciganas com Deficiências e Trabalhadores Migrantes”, foi implementado entre 1996 e 1998. O segundo, “Materiais de ensino para estudantes
com deficiências e background imigrante”5, foi conduzido entre 1996 e 2001
(Agência Europeia para o Desenvolvimento da Educação Especial, 2009).
Considerando que o fenómeno migratório tem um impacto claro nos sistemas da educação e da saúde dos países hospedeiros (nível nacional), dando
origem a novas questões e problemas interculturais (nível internacional), as
escolas e os serviços educativos desempenham um papel decisivo na facilitação do processo da inclusão. Isto deve-se ao facto de as escolas serem o
melhor meio ambiente para satisfazer as necessidades das crianças e das suas
famílias, ao fazê-las sentirem-se bem-vindas e apoiadas, tendo em consideração a sua origem e língua diferentes. O contexto educacional também pode
oferecer a oportunidade para uma participação entre os professores, os serviços e os mediadores culturais, para melhorar a qualidade do processo através da inclusão das crianças (com deficiências ou sem elas), com background
imigrante e das suas famílias.
Por esta razão, consideramos que o sistema educacional é a agência que, em
colaboração com outras, incluindo a família, os serviços de saúde, as autoridades locais, os órgãos públicos ou privados, a sociedade civil e as associações
de imigrantes, podem reunir informação para obtermos um melhor conhecimento, baseado em evidências, do fenómeno. Elevar o nível de consciencialização, numa sociedade, sobre o papel da escola do 1.º ciclo de Ensino Básico,
enquanto lugar básico da inclusão social é “ponto de referência inescapável para
as famílias migrantes e para os seus filhos” (Caldin, 2012b), em que soluções
inovadoras podem ser encontradas e as necessidades existentes expostas.
5
Disponível em: http://eacea.ec.europa.eu/static/Bots/docbots/Documents/Compendium/
Comenius/comp_c2_97.PDF.
CAPÍTULO 7: Discriminação múltipla das crianças com deficiência
181
2. Crianças com deficiências em famílias migrantes: o conceito
da discriminação múltipla
É grande a vulnerabilidade das famílias migrantes com filhos deficientes. No
contexto europeu, a experiência diz-nos que as famílias que chegam, com
um filho deficiente, creem que podem receber mais cuidados e assistência no
novo país. A realidade é muito diferente das suas expectativas e as famílias
migrantes recebem pouca atenção. Por este motivo, encontram dificuldades
práticas de todo o género, incluindo barreiras culturais, sociais e linguísticas; alocação de habitação adequada para a deficiência da criança; acesso aos
serviços de saúde e de educação; falta de amizades, de redes de familiares, de
participação, etc.
Estas dificuldades são representativas dos diferentes contextos e setores da
vida que uma família com uma criança deficiente tem de enfrentar na vida
quotidiana. Estas famílias, com frequência, são confrontadas com diferentes
tipos de discriminação, que surgem tanto da variedade de contextos, como da
experiência de muitas questões ainda sujeitas a discriminação, neste caso, o
racismo e a deficiência.
O conceito de discriminação múltipla reconhece que uma pessoa “pode
ser discriminada com base em mais do que um fundamento, numa determinada situação ou ocasião. Por outras palavras, uma pessoa não apenas tem
uma origem minoritária, mas também uma certa idade e género que se podem
acrescentar à sua vulnerabilidade à discriminação” (EU-MIDIS, 2011)6. Por
exemplo, uma mulher com deficiência pode ser afetada pela discriminação de
forma diferente de um homem com a mesma deficiência (UE, 2013). Outras
características ou circunstâncias, como pertencer a uma minoria religiosa
ou ter um ambiente educacional diferente, podem afetar as experiências de
discriminação. O desenvolvimento do conceito da discriminação múltipla é
relativamente recente, mas tem um interesse particular, porque abre novas
possíveis trajetórias de investigação para se compreender fenómenos sociais
marcados por um elevado nível de complexidade, não imediatamente compreensível, e por aspetos multifatoriais.
Considerando que o termo “múltipla” significa discriminação em mais do
que um fundamento “numa determinada situação ou ocasião” (EU-MIDIS,
2011), no nosso caso particular, podemos usá-lo como uma forma de discriminação que indica um conjunto mais alargado de situações discriminatórias
que afetam as crianças com deficiências de famílias migrantes. Não obstante,
tem ficado provado que as famílias migrantes são sujeitas a uma discriminação dupla prolongada: o racismo – bem como a deficiência – e dinâmicas
6
Como provado pelo recente projeto de acesso aos cuidados de saúde, da Agência Europeia
para os Direitos Fundamentais, em que o Departamento de Estudos sobre Educação do Alma
Mater Studiorum, da Universidade de Bolonha, participou.
182
Ivan Traina, Roberta Caldin
relacionadas de exclusão social. Além disso, estereótipos enraizados baseados
no racismo e na deficiência limitam fortemente o acesso a: oportunidades
educacionais, serviços e recursos públicos, cuidados de saúde, espaços de
socialização e ambientes inclusivos, de maneira mais acentuada do que no
caso das crianças deficientes naturais do país.
As análises levadas a cabo na literatura existente revelam que alguns dos
estudos conduzidos se têm focado, quer na questão das crianças com deficiências e nas suas necessidades educativas especiais (Meijer et al., 2003), quer
na questão da educação das crianças de famílias migrantes (Eurydice, 2004).
No entanto, nenhuns estudos se centraram na relação entre ambos os temas
(Agência Europeia para o Desenvolvimento da Educação nas Necessidades
Especiais, 2009). De modo a tentar lançar luz sobre aquilo que significa, para
as crianças, serem migrantes e serem portadoras de deficiências, no que à
discriminação e exclusão diz respeito, é importante sumariar as principais
questões que precisam de ser consideradas, de modo a compreender-se e
abordar-se esta questão dupla:
•
•
•
•
•
•
•
•
causas da migração;
interseções da deficiência, da raça, da cultura, da pobreza, do género
(incluindo o estatuto legal do processo de migração);
reconstrução dos estilos de vida das pessoas com deficiência como
eram no país de origem (incluindo as atitudes culturais e as expectativas sociais):
tratamento no país hóspede (incluindo o tratamento médico e a
educação);
políticas dirigidas aos migrantes com deficiências (incluindo medidas
sociais específicas);
serviços sociais (incluindo formas de participação e barreiras à
inclusão);
recursos e ajudas (incluindo serviços, tecnologias, etc.);
práticas para o respeito dos direitos humanos e civis (incluindo a justiça social).
Para a recolha de informações sobre estas questões, propomos uma abordagem integrada e holística, usando um “Mapa Contextual” como instrumento
para esquematizar a informação. Pode ajudar os profissionais (professores, educadores, cuidadores, peritos em migração e em deficiências, etc.) a
obter uma melhor compreensão da situação de discriminação múltipla contra as crianças portadoras de deficiências e o meio ambiente dos migrantes.
Identificamos, em particular, diferentes áreas da vida (ou setores) do dia a dia,
e, para cada uma delas, tentamos identificar os aspetos da natureza local, no
que respeita às barreiras, recursos e ajudas. O mapa abaixo apresentado tem
CAPÍTULO 7: Discriminação múltipla das crianças com deficiência
183
a finalidade, não só de fornecer uma visão geral do contexto, incluindo as
barreiras e os recursos, mas sobretudo identificar possíveis soluções sobre a
maneira de abordar e de reduzir este complexo fenómeno nas interconexões
entre diferentes setores da vida.
3. Compreender o Complexo Fenómeno da Discriminação Múltipla:
o Mapa Contextual
A discriminação múltipla pode ser considerada como um fenómeno social multidimensional, que precisa de ser abordado enquanto desafio que se desenvolve,
em particular no que diz respeito às pessoas com deficiências, aos imigrantes
e a outras categorias de pessoas vulneráveis, como as mulheres, os idosos, as
minorias étnicas e religiosas, etc. Para fazer face a este fenómeno social multidimensional e para compreender o conceito de discriminação múltipla, descrito
nesta secção, queremos propor, como instrumento, o mapa contextual.
Pensamos que, tendo em consideração as complexas questões relacionadas
com o assunto deste artigo, é necessário adotar uma abordagem integrada e
holística, para podermos compreender as barreiras e para conceber soluções
que as minimizem. Comparada com as abordagens que têm em conta a deficiência enquanto dimensão separada, gostaríamos de usar uma abordagem
que tem a finalidade de analisar as interseções e conjunções entre diferentes
setores da vida (educação, saúde, forma de vida, participação). Inclui variáveis que são usadas para avaliar fatores dinâmicos facilitadores ou dificultadores da inclusão, da afirmação dos direitos civis e humanos, da redução das
barreiras e dos obstáculos. Estas variáveis devem ser encaradas como elementos integrados de ambientes complexos e dinâmicos (físicos, culturais, comportamentais, socioeconómicos e virtuais), em que emergem constantemente
novos desafios e oportunidades.
Para adotar e facilitar a aplicação desta abordagem holística, e considerando a deficiência um “conceito evolutivo”, que representa um fenómeno
complexo que reflete interações entre “aspetos do corpo de uma pessoa e características da sociedade em que ele ou ela vive” (OMS, 2007), foi concebido um
mapa contextual para organizar diferente informação de diferentes setores, e
para orientar possíveis intervenções de integração. A ideia consiste em usar
o mapa para abordar as várias questões de forma transversal, tomando em
conta a multitude de aspetos que estão ligados, de perto, às áreas da deficiência e da migração. O mapa deve ser usado, não só para conceptualizar as três
dimensões diferentes da investigação (representadas pelos eixos na figura 1),
mas também como um instrumento operacional para visualizar que recursos,
ajudas, fatores facilitadores ou dificultadores se encontram disponíveis num
contexto preciso ou numa dada ocasião.
184
Ivan Traina, Roberta Caldin
y
Ambientais
Económicas
Barreiras
Sócio-culturais
Linguísticas
Educação
x
Saúde e cuidados
de saúde
Sectores da vida
Subsistência (incluindo
habitação, lazer,
desporto)
Participação na
Sociedade Civil
z
Serviços
Atitudes e Integração
e entrega Tecnologia
expectativas política
de produtos
Ajudas e Recursos
Figura 1: Mapa Contextual
O mapa foi concebido de acordo com as áreas identificadas pela Comissão, na
Estratégia Europeia para a Deficiência 2010–207, e as novas prioridades para
a investigação sobre a deficiência na Europa (Priestley, Waddington, Bessozi,
2010). Inclui três dimensões conceptuais de investigação representadas pelos
três eixos. Esta abordagem pode ser usada para “compreender”, i.e. conceptualizar a informação de diferentes setores da vida (eixo do “z”, na figura),
enquanto se investigam de acordo com um abordagem integrada que evita
compartimentações ou análises setoriais limitadas. O mapa pode, igualmente,
ser usado para designar a “ação”, identificando os recursos e as ajudas (eixo do
“x”, na figura), através de um conjunto de domínios em que os fatores facilitadores ou dificultadores do acesso, da participação e da inclusão podem ser
avaliados. A última dimensão (eixo do “y”, na figura) completa a estrutura,
fornecendo os elementos que “avaliam” as barreiras. Para este aspeto da participação e envolvimento da família, dos amigos, das associações de imigrantes, das organizações para as pessoas deficientes (daqui por diante: OPDs),
7
Disponível em: http://ec.europa.eu/justice/discrimination/disabilities/disability-strategy/
index_en.htm.
CAPÍTULO 7: Discriminação múltipla das crianças com deficiência
185
dos mediadores culturais, dos ativistas da sociedade civil, das organizações
de defesa e de lobbying, é fundamental, já que “pode fornecer o necessário feedback, sugestões e contribuições para o desenvolvimento da política” (Oliver e
Barnes, 2012). Promover “compreensão, ação e avaliação” é o aspeto central
em volta do qual o mapa foi concebido.
3.1. Focando-nos nas dimensões e interseções
De modo a fornecer o foco sobre a maneira de ler o mapa, deixamos, abaixo,
uma descrição resumida das suas diferentes dimensões e do significado das
interseções entre setores, barreiras e recursos.
Os “Setores da vida” – o eixo “z”
Esta dimensão baseia-se na tradicional abordagem às questões da deficiência,
em que as barreiras são abordadas (e as inovações são geradas) no seio de quatro setores diferentes constitutivos das dimensões da vida: educação, saúde e
cuidados, vivência e participação). A informação destes setores devem ser
tidas em consideração, para se compreender e conceber ambientes multifacetados livres de barreiras8 para a inclusão de todos (OMS, 2010).
Os “Recursos e ajudas” – o eixo do “x”
Esta dimensão é representada pelas barreiras linguísticas, socioculturais, económicas e ambientais. Isto implica o envolvimento ativo das famílias, dos profissionais, dos peritos, dos mediadores culturais, das OPDs, dos ativistas da
sociedade civil, das organizações de defesa e de lobbying com o fim de recolher feedback, sugestões, avaliações e ideias novas. A estrutura proposta não
estaria completa sem a dimensão que permite a análise das barreiras e avaliar
o impacto, adequar-se à mudança a múltiplos níveis (socioculturais, linguísticos, económicos e ambientais). O ponto de vista significa reconhecer que
fatores afetam o comportamento humano, em múltiplos níveis, e que avaliar
quais são as barreiras ou removê-las requer o envolvimento ativo de pessoas
que sugiram soluções efetivas.
Os níveis das barreiras na investigação e na análise das interseções entre
os setores da vida e os recursos são representados pelos paralelepípedos no
mapa. O nível – altura do paralelepípedo – depende das características do
contexto.
8
Organização Mundial de Saúde, (2010). Diretrizes de Reabilitação Baseadas na Comunidade.
186
Ivan Traina, Roberta Caldin
Barreiras a nível
linguístico
Barreiras a nível sociocultural
Barreiras a nível
económico
Barreiras a nível
ambiental
Figura 2: Níveis das barreiras
Por exemplo: se consideramos o setor “Educação” e as interseções com os
recursos e as ajudas, o contexto que a rodeia pode ser mapeado para fornecer
mais conhecimento sobre as necessidades das famílias e das crianças. Isto é
conseguido através das respostas a uma série de questões, incluindo: quais são
os serviços de apoio locais; que agências são capazes de fornecer orientação
nas tecnologias de assistência; quais são as políticas e a legislação; quais são as
atitudes e as expetativas do sistema educacional, das famílias, e da sociedade
enquanto um todo. Todas estas questões devem ser tidas em consideração
e fazê-las corresponder com possíveis barreiras linguísticas, socioculturais,
económicas e ambientais, porque em “contextos multiculturais a deficiência
parece ser mais complexa e culturalmente influenciada” (Caldin, 2012b).
Neste exemplo, as barreiras linguísticas podem emergir nos setores da
educação, da saúde e cuidados de saúde, e na participação na vida civil. Neste
caso, a análise sobre que serviços (públicos ou privados) estão presentes no
contexto do apoio a estas necessidades pode ajudar a desenvolver uma intervenção mais aprofundada para reduzir estas barreiras. Se as barreiras estão
no nível sociocultural, no setor da participação na vida civil, podem ser recomendadas intervenções políticas. Outro caso podia ser representado pelas
barreiras ambientais, no setor da vivência, em particular, nos cuidados domiciliários, onde o desenvolvimento da tecnologia (e-saúde, automação doméstica, tecnologia de assistência) pode ajudar as famílias.
Com base neste exemplo, dado o contexto, as possíveis barreiras e recursos
são mapeados, e as estratégias de intervenção podem ser concebidas. Uma
estratégia possível que desejamos propor é apresentada na secção seguinte e
diz respeito à abordagem à Escola Inclusiva.
CAPÍTULO 7: Discriminação múltipla das crianças com deficiência
187
\
Ambientais
Económicas
Sócio-culturais
Linguística
[
Educaç ã o
Saúde e cuidados de saúde
Subsistência
Participação na
Sociedade Civil
]
Serviços e Tecnologia Atitudes e
entrega de
expectativas
produtos
Política
Figura 3: Exemplo de mapeamento do contexto
4. Escola Inclusiva: Uma Estratégias Possível para Enfrentar a
Questão da Discriminação Múltipla
Tendo fornecido um exemplo de um instrumento possível, como o mapa
contextual, desejamos propor uma estratégia de abordagem ao fenómeno da
discriminação múltipla que se dá nas escolas. Este conhecimento foi gerado
por um projeto recente promovido pela cidade de Bolonha, em colaboração
com o Departamento de Estudos da Educação da Universidade de Bolonha.
A investigação foi coordenada por Roberta Caldin, Professora de Educação
Especial, no Departamento, e foi conduzida entre março de 2008 e novembro
de 2010, com a finalidade de investigar a relação entre os estudantes migrantes
com deficiências (com idades compreendidas entre 0 e 14 anos) e o sistema
escolar italiano. As organizações envolvidas na investigação foram: 18 escolas
(e todas as escolas de Bolonha, no caso dos questionários online elaborados),
6 jardins de infância, 6 comissões de saúde ASL (do munícipio de Bolonha,
de 1 paróquia, de 4 associações), 12 famílias migrantes (33 pessoas), 3 cooperativas e 1 Comité Orientador de Cuidados Sociais. Um total de 513 pessoas
esteve envolvido, incluindo: 304 professores regulares e de apoio, 91 diretores
de escola/funcionários e profissionais de apoio, 6 trabalhadores da área da
saúde (funcionários de neuropsiquiatria e educadores), 37 trabalhadores de
serviços educacionais (dos jardins de infância, coordenadores pedagógicos,
188
Ivan Traina, Roberta Caldin
educadores, etc.), 5 assistentes sociais, 33 migrantes e 37 membros de equipas
de mesas redondas institucionais e de equipas científicas.
Os instrumentos usados foram: questionários online (dirigidos a todas
as escolas do município de Bolonha), questionários para os funcionários do
ensino, entrevistas, grupos de discussão focalizada, entrevistas semiestruturadas e reuniões agendadas. De acordo com os mais recentes Relatórios sobre
Migrantes/Caritas (2008; 2010; 2011), Emilia Romagna é uma das regiões
italianas com a mais elevada percentagem de estudantes que são filhos de
migrantes e, só na área de Bolonha, há cidadãos de 142 países diferentes. Este
projeto de investigação exploratória é um dos primeiros do género em Itália
e na Europa, se considerarmos o contexto específico italiano, que garante a
inclusão dos estudantes com deficiências nas escolas. Este fenómeno migratório afeta os sistemas da educação e da saúde dos países hospedeiros, originando novos problemas organizacionais, sociais e culturais. Como atestado
por muitos trabalhos de investigação, a abordagem através de uma escola
inclusiva pode representar a estratégia capaz de enfrentar estas questões, uma
vez que as escolas e os serviços educacionais desempenham um papel chave
“na facilitação do processo da inclusão, não apenas oferecendo respostas apropriadas às transformações culturais, mas também estimulando as trocas culturais e o diálogo entre a juventude e educando-a para uma coexistência global”
(Caldin & Serra, 2011).
Para as famílias imigrantes, a escola permanece uma referência essencial, na sua qualidade de comunidade educacional acolhedora (Canevaro,
D’Alonzo, Ianes, Caldin, 2011), representando o melhor meio ambiente para
satisfazer as necessidades das famílias, ao fazê-las sentirem-se bem-vindas.
Esta assunção foi confirmada pelos professores, através dos dados recolhidos pelos questionários e entrevistas, para quem as escolas desempenham
um papel fundamental na educação das crianças com deficiências, e são uma
referência importante para as famílias migrantes. Por exemplo, as escolas e
os professores são o ponto de contacto com o sistema de serviços sociais,
o primeiro guia para o complexo sistema de segurança social da Itália, que
é, frequentemente, difícil de abordar, devido aos complexos procedimentos
burocráticos. Para promover e afirmar o seu papel referencial, é importante
considerar e organizar as escolas de uma maneira inclusiva, não apenas para
os seus alunos, mas também para as famílias destes e, especialmente, nos
casos de migração e deficiência, também para as associações de etnias e de
imigrantes, que são grandemente representativas das nacionalidades presentes na comunidade.
Como observado através dos dados e do feedback recolhidos, uma abordagem inclusiva, pelas escolas, é a premissa para criar uma relação com as
famílias baseada na confiança. Uma vez criada esta confiança sólida, a família
pode ser diretamente envolvida no processo educacional dos seus filhos. Este
CAPÍTULO 7: Discriminação múltipla das crianças com deficiência
189
elemento foi considerado importante para o sucesso da inclusão dos filhos
com deficiências dos migrantes, pelo que uma relação com base na confiança
é um elemento que torna o processo mais fácil. Numa escola inclusiva, a
família e a comunidade escolar podem cooperar para assegurar o bem-estar
do estudante, e trabalhar em conjunto num processo educacional coerente.
Desta forma, o aspeto inclusivo da escola pode ser assumido enquanto estratégia para fazer frente ao fenómeno da discriminação múltipla. Os principais
instrumentos para pôr em prática este objetivo, usando esta estratégia, foram
baseados na comunicação e na participação, como emergiu no inquérito conduzido entre as pessoas envolvidas.
Os principais aspetos a serem considerados, quando se aplica uma estratégia baseada na abordagem à escola inclusiva no contexto educacional, estão
listados abaixo:
•
•
•
•
•
•
criar uma confiança sólida com as famílias e com a comunidade;
apoiar o envolvimento no processo educacional;
promover uma abordagem de participação;
adotar uma comunicação clara e efetiva;
respeitar a diversidade com uma atitude de abertura mental;
apoiar os pais, com medidas de apoio às suas competências linguísticas.
Estes aspetos ajudam a realçar a prioridade do fortalecimento da cooperação entre as escolas e as famílias migrantes, que, se estiverem envolvidas, respondem e participam (Caldin, 2012b). Por essa razão, precisamos de definir
instrumentos e protocolos para receber, acompanhar e guiar, para que seja
efetivamente assegurado o processo de inclusão dos estudantes migrantes
portadores de deficiências, permitindo-nos enfrentar os desafios de uma
sociedade multicultural.
5. Observações Finais
O que emerge, de forma clara, da análise da literatura conduzida e do projeto
de investigação implementado, é que, quando um filho de migrantes tem uma
deficiência, o processo de inclusão torna-se ainda mais complexo, e muitos
fatores têm de ser considerados. Por esta razão, pensamos que a comunidade
científica deve apoiar e facilitar o trabalho dos professores, dos educadores,
dos mediadores culturais, das famílias, dos profissionais, das associações
de imigrantes e das OPDs. Através da estratégia e do instrumento sugeridos, tentámos oferecer uma contribuição para uma melhor compreensão do
fenómeno, tendo em consideração as diferentes dimensões desta questão.
Algumas considerações emergiram, e desejamos realçar alguns aspetos da
190
Ivan Traina, Roberta Caldin
discriminação múltipla sofrida por famílias migrantes com filhos portadores de deficiências. A primeira consideração é acerca do papel que as escolas
podem desempenhar num processo de inclusão bem sucedido, representando
o meio ambiente natural onde a criança deve ser colocada (Sabatino, 2008),
e um canal de acesso para todos os outros serviços (Favaro, Demetrio, 2004).
Outra consideração diz respeito à utilidade de mapear o contexto com o
qual as famílias entram em contacto, considerando os diferentes setores da
vida, como a educação, os cuidados de saúde, a vivência e a participação.
Em particular, precisamos de analisar necessidades e barreiras, existentes ou
novas (sociais, linguísticas, económicas e ambientais), e fazer-lhes frente com
recursos e ajudas (com serviços e produtos, tecnologia, atitudes e políticas),
analisando estas interseções para compreender e conceber ambientes multifacetados livres de barreiras. Mais ainda, parece que as perceções dos pais
sobre a deficiência do seu/sua filho/a são influenciadas pela sua rede local
e pelas relações com o seu país de origem (Goussot, 2010; Moro, 1998). A
rede em que as famílias vivem é um importante elemento que influencia o
processo de inclusão. De facto, a solidão social destas famílias desenvolve-se,
com frequência, para um isolamento, em que experimentam uma condição
de invisibilidade social, sem quaisquer relações significativas nas suas rotinas
diárias, experienciando múltiplas formas de discriminação. A migração, com
a circunstância agravante da deficiência, é um fenómeno que necessita de ser
encarado de forma mais estrutural, através de uma abordagem holística, que
está estreitamente ligada com um projeto de educação comum, porque “as
escolas são chamadas, não apenas a responder com soluções às transformações
sociais, mas ainda a oferecer uma forma nova de compreender a educação e a
aprendizagem das novas gerações” (Caldin, 2012a).
Desejamos encorajar os leitores a interagirem com o instrumento proposto, para organizarem informação proveniente de vários setores, e para
orientarem possíveis intervenções integradas.
Neste artigo, abordámos alguns elementos urgentes para apoiar os processos de inclusão de crianças portadoras de deficiências, de origem migrante.
Considera-se que uma abordagem holística, com estratégias inclusivas e instrumentos estruturados, para uma análise do contexto, representa uma útil
referência para profissionais, professores, funcionários das escolas, professores, assistentes sociais, investigadores e pais, que têm a responsabilidade
de abordar formas de discriminação múltipla e desenvolver uma sociedade
inclusiva para todos.
CAPÍTULO 7: Discriminação múltipla das crianças com deficiência
191
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Um exercício para reflexão
Concluímos com uma proposta de tentativa para usar o mapa contextual para mapear
o seu contexto em relação a uma possível situação que uma família migrante, com um
filho deficiente, pode enfrentar. Significa escolher um ou mais setores da vida (educação,
saúde e cuidados, vivência ou participação civil), e procurando possíveis recursos e ajudas (representados por serviços, tecnologias, atitudes ou políticas), avaliando as barreiras
que se colocam no caminho para a inclusão e as possíveis soluções.
Por exemplo, se nos referimos ao setor da saúde e dos cuidados:
•
•
•
Quais são os serviços de apoio locais? De que forma é que fornecem informação
às famílias? Estes serviços apresentam barreiras à acessibilidade e como é que se
acede a eles?
Que agências são capazes de fornecer automação doméstica ou tecnologias de
assistência? E, se existem, podem estas ajudas ser também aplicadas a outros setores da vida (p. ex., educação ou vivência)? Quais são as possíveis barreiras ao uso
destas ajudas (p. ex., económicas, ambientais)?
Que políticas e legislações devem ser desenvolvidas para apoiarem uma maior
participação das famílias, das associações de migrantes, da sociedade civil, para
reduzir o fenómeno da exclusão?
CAPÍTULO 7: Discriminação múltipla das crianças com deficiência
193
Leituras adicionais
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194
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
CAPÍTULO 8:
NÃO DISCRIMINAÇÃO E CRIANÇAS
DE FAMÍLIAS NÃO TÍPICAS NA MOLDÁVIA
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
Smiljana Simeunovic Frick é consultora em direitos das crianças, com um enfoque na participação das crianças em processos de tomada de decisão em vários cenários. Tem trabalhado
com o Serviço de Desenvolvimento do Liechtenstein (LED) e
com o Centro de Informação dos Direitos da Criança (CRIC) na
Moldávia, desde 2011. Editou uma publicação com relatos de
crianças dirigidos ao Comité de Direitos da Criança, em 2012.
[email protected]
Cezar Gavriliuc é o coordenador executivo do Centro de Informação dos Direitos da Criança (CRIC) na Moldávia. Ele é um dos
fundadores do CRIC e coordenador dos seus numerosos projetos. Para além da não discriminação, é perito em outras áreas dos direitos das crianças, como a participação das crianças
(especialmente nos processos de monitorização e relatórios do
CRIC) e a sua proteção. [email protected]
1. Introdução
Embora as crianças vivam um muitos tipos de família diferentes, a idealizada
família tradicional nuclear ainda é a norma social na Moldávia.1 Na verdade,
os pais podem ser biológicos, adotivos, padrastos ou madrastas, solteiros,
1
O que denominamos pelo termo família tradicional familiar é também conhecido como
família moderna nuclear. “De um ponto de vista sociológico, é usual fazer uma distinção entre
a família tradicional alargada e a família moderna nuclear, e entre estas e a família pós-moderna. A família tradicional e a família moderna baseiam-se nos laços de sangue e no casamento,
e diferem relativamente aos graus de relação incluídos na definição dos termos. A família
pós-moderna abrange relações que não são baseadas apenas numa relação sanguínea ou casamento (como os casais heterossexuais não casados ou como os parceiros do mesmo sexo),
como as relações familiares ‘ausentes’ (como as famílias monoparentais), como as famílias
‘binucleares’, em que os progenitores se separaram e estabeleceram novas famílias nucleares.”
(Merin, 2005:88–89). No entanto, como a família moderna (nuclear) é entendida e promovida
como sendo tradicional na Moldávia, vamos usar o termo família tradicional nuclear, neste
artigo. Além disso, o termo “moderna” poderia ser enganador.
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
195
um casal, casados, divorciados, viúvos, recasados, parceiros, heterossexuais,
homossexuais, transgénero, etc. (ver Jeltova e Fish, 2005:18). Os progenitores
e os filhos podem viver na mesma, mas também, em diferentes casas, vilas e
cidades ou, mesmo, países, durante um período de tempo curto ou longo. As
crianças podem não ter um dos progenitores, ou mesmo nenhum. Da mesma
forma, as crianças podem não manter relações íntimas e de proximidade com
os progenitores, por várias razões (P. ex, violência), mas ainda assim têm
famílias e continuam a manter essa relação com outros membros da família.
“Porém, as instituições sociais, incluindo as escolas, estão frequentemente mais
inclinadas para o modelo de família mais tradicional, e apesar dos esforços para
adaptar-se às necessidades das estruturas familiares, em transformação e diversas, aquelas, com frequência, ficam para trás em relação às realidades sociais.”
(ibid, p:18). Assim sendo, a discussão sobre a família (não típica), enquanto
fundamento para a discriminação contra as crianças, pode ser também relevante para a perspetiva de outros países.
Como os exemplos da Moldávia discutidos neste capítulo irão mostrar,
pode haver padrões comuns de discriminação, que afetam membros de
diversas famílias não típicas, mas pode haver igualmente diferenças, apesar
da similaridade do contexto. Vamos discutir exemplos, tanto de formas de
discriminação direta, como indireta, contra dois grupos: crianças com os pais
a trabalharem no estrangeiro (famílias transnacionais) e crianças que vivem e
deixam instituições residenciais (famílias que enfrentam várias dificuldades).
A interpretação do termo “discriminação”, e as suas diferentes formas usadas
neste artigo, baseiam-se na experiência do Centro de Informação dos Direitos
das Crianças (CRIC) da Moldávia, uma organização não-governamental que
tem a missão de fazer progredir os direitos das crianças. O CRIC tem uma
grande experiência no trabalho, tanto com as crianças e os seus pais que trabalham no estrangeiro, como com os cuidadores. Por outro lado, o CRIC
apoia as escolas na Moldávia na abordagem a várias questões, por exemplo,
aquelas que se referem à (não)discriminação.
As famílias transnacionais, i.e. as famílias cujos membros vivem em diferentes países e, no entanto, mantêm relações íntimas, são um fenómeno mais
recente na Moldávia. A falta de emprego no país, a procura de uma força de
trabalho não qualificado e mal pago em outros países, a abertura das fronteiras e a disponibilidade de meios de transporte, são fatores que, normalmente, são invocados para explicar o desenvolvimento deste fenómeno (ver,
por exemplo, IOM, 2012). Menos tidas em conta são as questões relativas à
forma como as instituições sociais facilitam ou dificultam a inclusão social
dos membros da família transnacional, crianças incluídas. A primeira parte
deste capítulo oferecerá uma resposta para a questão que se centra no estabelecimento educacional escola. Tanto a discriminação direta, como a indireta, contra as crianças, no sistema escolar da Moldávia, cujos progenitores
196
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
estão a trabalhar no estrangeiro, serão descritas. A segunda parte centrar-se-á
na discriminação contra as crianças que saem das instituições, na Moldávia.
Em contraste com as crianças cujos pais trabalham no estrangeiro, este grupo
de crianças tem uma história mais longa. No entanto, as condições da sua
existência têm mudado constantemente, afetando também o regime das instituições residenciais, e, assim, a situação das crianças que vivem nelas e que
delas saem. Para além disso, a questão relativa à forma como as instituições
residenciais contribuem para a exclusão social deste grupo de crianças tem
sido documentada. Porém, apesar de uma importante reforma do sistema de
proteção das crianças, as instituições residenciais não melhoraram as condições de vida das crianças aí residentes, e as crianças que entram e saem destas
instituições ainda são alvo de discriminação. Algumas formas e mecanismos
antigos de discriminação contra estas crianças serão brevemente descritos,
mas o artigo focar-se-á sobretudo em formas de discriminação que surgiram
recentemente.
Tendo em vista as tendências e mudanças nas condições de vida contemporâneas, as formas familiares continuarão, provavelmente, a diversificar-se.
Na Moldávia, por exemplo, a reforma dos cuidados infantis e do sistema de
proteção das crianças vai, certamente, contribuir para um crescente número
de novos modelos de família, como as famílas.
ias de acolhimento e as famílias de adoção, e para a visibilidade das famílias que enfrentam dificuldades várias. Enquanto as escolas e outras instituições sociais não alterarem a sua abordagem tradicional, caracterizada por
facciosismo pela família nuclear biológica, as crianças que vivem em famílias
não típicas continuarão a ser discriminadas. Apesar do autoproclamado compromisso com a inclusão social de todas as crianças, as escolas continuarão,
em vez disso, a contribuir para a sua exclusão. As últimas partes deste artigo
discutirão algumas estratégias para diminuir a discriminação e melhorar a
situação das crianças que são discriminadas.
2. Discriminação contra as crianças cujos pais trabalham
no estrangeiro
O tratamento das famílias transnacionais e, mais em particular, das crianças
nas escolas da Moldávia, cujos pais estão a trabalhar no estrangeiro, pode ser
comparada ao tratamento, pela sociedade, de outros grupos de crianças de
famílias não típicas, em muitos países, por exemplo, com os filhos de famílias de lésbicas, de gays, de bissexuais e de transgénero (LGBT), nos Estados
Unidos (ver Jeltova e Fish, 2005).
A atitude societal geral e os sentimentos em relação às famílias transnacionais são negativos, especialmente quando as mães trabalham no estrangeiro.
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
197
Um discurso público idealizado sobre a família dá mais força ao preconceito
contra as famílias transnacionais. Manifestações usuais de atitudes negativas
relativamente a crianças de famílias transnacionais incluem visões estereotipadas das famílias transnacionais, falta de comunicação entre as escolas e
as famílias nas questões relevantes para as crianças e discriminação contra
as crianças (comparar com Jeltova e Fish, 2005). Para além da discriminação direta, estas crianças também são discriminadas de forma indireta. O
discurso público idealizado acerca da família manifesta-se na promoção do
modelo tradicional de família biológica nuclear, através dos currículos. O
mesmo facciosismo, favorecendo o modelo tradicional de família dá forma às
relações gerais entre as escolas e as famílias. As escolas, na Moldávia, com frequência, têm visões estereotipadas das famílias tradicionais e dos seus membros. Muitas vezes, elas são percebidas como um grupo homogéneo.
Estereótipos comuns podem condensar-se, deste modo:
•
•
•
as famílias tradicionais são, financeiramente, mais ricas;
as crianças dessas famílias são negligenciadas ou abandonadas pelos
seus pais;
a falta de cuidados e de amor, especialmente por parte das mães que
trabalham no estrangeiro, têm consequências negativas graves, tanto
no bem-estar das crianças, como no seu desenvolvimento.
Tudo o que é considerado negativo no comportamento e aparência destas
crianças é, com muita frequência, ligado causalmente à migração dos seus
pais, tanto pelas escolas, como pela sociedade enquanto um todo (ver, p. ex.,
Cheianu-Andrei et al, 2011). Raramente é reconhecido que existem muitos fatores que influenciam a situação das famílias transnacionais, que, frequentemente, enfrentam múltiplos desafios e problemas de todo o género.
As diferenças nos ajustamentos dos cuidados prestados a estas famílias são,
igualmente, negligenciadas. Exemplos de famílias transnacionais que são
bem-sucedidas em manter relações íntimas estreitas são sistematicamente
desvalorizados.
Embora alguns planos de ação migratórios coloquem desafios às relações
familiares, as preocupações das crianças não se limitam à falta dos cuidados
e supervisão parentais, tal como é predominantemente compreendido pela
sociedade e pelas escolas. Reduzir as necessidades e os interesses das crianças a uma relação “bem definida” com os progenitores e, particularmente,
com as mães, ignora outras importantes questões, que são pertinentes para as
crianças de famílias transnacionais. Uma questão tipicamente ignorada, neste
contexto, é a maneira como as instituições sociais, por exemplo a escola, dificultam ou facilitam a inclusão social das crianças de famílias transnacionais.
198
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
Alguns professores estão conscientes da discriminação de que são vítimas, na escola, as crianças cujos pais trabalham no estrangeiro. Estes professores explicam que alguns colegas partilham o acima mencionado preconceito contra as famílias transnacionais e seus membros. Os seus sentimentos
negativos (p. ex., inveja por causa da alegadamente melhor situação material
das famílias transnacionais) são reforçados quando combinados com crenças acerca da irresponsabilidade dos progenitores (“eles interessam-se mais
pelo dinheiro do que pelos seus filhos”) e a autoperceção das suas próprias
tarefas a respeito das crianças das famílias transnacionais (mais trabalho pelo
mesmo, já de si, baixo salário). Alguns professores manifestam estes sentimentos e atitudes negativos, tratando as crianças de famílias transnacionais
de forma diferente. Eles criam menos ou nenhumas oportunidades para estas
crianças participarem nas aulas, para desenvolverem e/ou demonstrarem os
seus conhecimentos e competências. Para além disso, classificações elevadas
são, por alguns professores, completamente negadas aos filhos de pais que
trabalham no estrangeiro, ou atribuídas apenas a troco de um pagamento/
prémios (ver UNICEF & CRIC, 2006:51). A discriminação direta contra as
crianças de famílias transnacionais limita, tanto as suas oportunidades educacionais atuais, como as futuras.
Para além do mais, estas crianças também são alvo de discriminação
indireta. Da mesma forma que em outros países, os currículos escolares, na
Moldávia, não lidam com estruturas familiares diversas. Apesar da autoproclamada missão das escolas de equiparem os estudantes com conhecimento
e informação acurados, bem como de desenvolverem as suas vivências e as
suas competências sociais (ver MET & Unicef, 2008:42–44), elas falham a respeito de alguns grupos de crianças, também por causa do forte facciosismo a
favor do modelo tradicional de família, nos currículos (ver ibid., p. 36–39; ver,
por exemplo, Jeltova e Fish, 2005, em relação às crianças de famílias LGBT).
Embora exista uma diversidade de modelos de família na Moldávia, o modelo
de família tradicional, em que os seus membros estão unidos por um laço sanguíneo e pelo casamento, é o único promovido pelo sistema educacional. Ao
mesmo tempo, este modelo tem sido idealizado pelo sistema. Por exemplo,
nas discussões formais e informais sobre violência contra as crianças, organizadas pelo CRIC, os professores tendem a evitar o tópico da violência sexual
doméstica. O mesmo se aplica ao seu trabalho com as crianças.2 A violência
sexual é discutida apenas como um problema nas famílias em que existe um
padrasto ou uma madrasta, ou, por vezes, nas famílias de acolhimento ou de
2
O CRIC tem vindo a apoiar o Ministério da Educação a desenvolver e implementar uma
política de proteção à criança, no sistema educacional, desde janeiro de 2013. Nesta estrutura,
o CRIC reúne com regularidade com os professores, no formato de workshops, seminários,
visitas de monitorização, etc., dedicados ao tópico da violência contra as crianças, à sua prevenção e medidas de proteção.
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
199
adoção. Muitos professores apoiam a visão de que um pai biológico não consegue abusar sexualmente dos seus filhos; ou antes, que apenas um pai não
biológico é capaz de tal ato. Ao reforçarem a ideia de que a violência sexual
tem lugar apenas em outras estruturas familiares, mas não na família, i.e. na
família nuclear tradicional, estes professores contribuem para a idealização
deste modelo de família. Ao mesmo tempo, eles retiram valor a outras estruturas familiares, p. ex., famílias com filhos adotivos.
Nas escolas moldavas, todos os modelos de famílias são medidos em
relação a esta idealizada família nuclear tradicional. Os modelos de famílias
transnacionais não obtêm qualquer reconhecimento nesta estrutura normativa. Eles são ignorados, desvalorizados, ou ridicularizados nas escolas. As
crianças de famílias transnacionais e de outros modelos não típicos de famílias, não se sentem respeitadas ou aceites no meio escolar/na sala de aula, nem
conseguem desenvolver um sentimento positivo da sua autoimagem. Além
do mais, a perceção negativa das suas famílias coloca desafios adicionais às
relações das crianças com os seus pais/cuidadores e, em especial, com as suas
mães. Uma vez que o modelo idealizado de família normalmente assume os
papéis tradicionais dos géneros,3 as mães que trabalham no estrangeiro são
percebidas como particularmente deficitárias e irresponsáveis. Quanto mais
tempo elas permanecem no estrangeiro, pior. As formas típicas de cuidados
maternos, como os emocionais e práticos, são ou ignorados ou desvalorizados, quando são providenciados à distância/do estrangeiro. O mesmo se
aplica às formas de cuidados maternos não típicos, p. ex., os cuidados financeiros. Ao insistir na importância de uma relação determinada e pré-definida
entre a mãe e o filho/a, as escolas estão – paradoxal e infelizmente – a tornar
mais difícil que as mães que trabalham no estrangeiro e os seus filhos estabeleçam e mantenham uma boa relação (ver, p. ex., Cheianu-Andrei et al,
2011:43–53, 111–113, 132).
Além disso, o núcleo familiar tradicional não é apenas idealizado e promovido pelas escolas, também é tomado como fundação nos processos gerais
da escola. Uma análise às queixas regulares dos professores sobre os pais
3
De acordo com um estudo conduzido na Moldávia: “quase dois terços dos progenitores
entrevistados (homens e mulheres, em igual proporção) acredita que as mulheres devem estar
mais envolvidas nos trabalhos domésticos do que os homens. O restante terço diz que ambos
devem ser responsáveis. Relativamente às responsabilidades financeiras, quase metade dos
progenitores incluídos no estudo (homens, mais frequentemente que as mulheres) acredita
que os homens são mais responsáveis por ganharem o sustento da família.” (Unicef, 2007:63)
De forma semelhante, um exame do sistema do 1.º ciclo do Ensino Básico, a partir da perspetiva de género, conclui: “Com maior probabilidade, as questões existentes no Ensino Básico sobre a promoção da igualdade de géneros pode ser atribuída ao aspeto qualitativo da educação:
a indiferença ou negligência em relação às questões de género, a promoção de estereótipos
acerca das relações de género, e a falta de materiais didáticos sobre estes assuntos.” (MET &
Unicef, 2008:103; para mais informação, ver ibid.: 101–106).
200
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
que ficaram abaixo das suas expetativas, pode ajudar-nos a compreender a
maneira como os professores compreendem o papel dos progenitores ideais, a
respeito da vida escolar dos seus filhos. A expetativa é a de que os pais, assim,
forneçam recursos, como:
•
•
•
•
•
conhecimento e competências (p. ex., ajudar nos trabalhos de casa);
tempo (p. ex., para cargas de trabalhos de casa, para uma comunicação
regular com a escola);
financeiros (p. ex., pagamentos e taxas formais e informais);
redes sociais (p. ex., organizarem outras fontes de apoio e de ajuda);
mobilidade (p. ex., reuniões escolares) (comparar com MET & Unicef,
2008: 115–120).
Os processos baseados em tais assunções discriminam indiretamente as
crianças de famílias que não se adequam a este ideal e que não podem fornecer estes recursos. Muitas famílias/progenitores têm dificuldades em respeitar
alguns ou todos os recursos listados. O mesmo se aplica às famílias transnacionais. Não partilhando a vida diária dos seus filhos, torna-se difícil, para
muitos progenitores transnacionais, envolverem-se intensamente em todos
os aspetos da escolaridade dos seus filhos (p.ex., nos trabalhos de casa e nas
reuniões). Vivendo no estrangeiro, é, muitas vezes, na prática, quase impossível, estarem presentes, pessoalmente, em reuniões organizadas pela escola.
A comunicação com os seus filhos e com as escolas é, em alguns casos, complicada, devido aos elevados custos das chamadas telefónicas e dos meios de
transporte, e/ou pela falta de tempo (alguns progenitores trabalham durante
muitas horas e auferem salários baixos, p. ex., cuidadores). Finalmente, com
base no estereótipo de que as famílias transnacionais têm mais recursos financeiros, espera-se delas, por vezes, que paguem taxas (informais) mais elevadas. Para além de ignorarem outras possíveis despesas das famílias transnacionais, em geral, esta é outra forma de discriminação contra aqueles que não
ganham elevados salários, apesar de trabalharem no estrangeiro.
Outros membros de famílias transnacionais podem enfrentar dificuldades
similares. Os cuidadores ou as pessoas agindo na qualidade de pessoas de
recurso enquanto os progenitores estão no estrangeiro, não são, por vezes,
aceites pelas escolas. Para além disso, algumas delas, por exemplo, muitos
avós, não têm o conhecimento e as competências para apoiar a escolarização das crianças. As crianças que estão a cargo de avós doentes e/ou dos
seus irmãos, e que, assim, detêm a maior responsabilidade pelo lar – que é,
frequentemente, o caso das crianças mais velhas, cujas mães/progenitores
estão a trabalhar no estrangeiro – também não se conformam com o ideal de
estudante.
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
201
A conformidade com a família ideal reflete-se no desempenho académico
das crianças. As crianças de famílias que não são conformes ao ideal, normalmente, têm desempenhos académicos mais baixos (ver, p. ex., MET & Unicef,
2008: 26–28). No entanto, a escola culpa as famílias/progenitores pela falha
em se conformarem com o ideal, em vez de refletirem sobre o seu próprio
papel de facilitadores ou de dificultadores do envolvimento dos membros das
famílias na escolarização dos seus filhos. As escolas têm a expetativa de que os
pais e outros membros da família se adaptem aos processos estabelecidos, em
vez de adaptarem os processos para maximizarem o envolvimento familiar e
o apoio à escolarização dos seus filhos.
3. Discriminação contra as crianças que saem de instituições
A atitude e sentimentos societais gerais em relação às crianças vindas do
acolhimento institucional são, também, negativos. Como acontece com o
grupo de crianças anterior, as manifestações usuais destas atitudes e sentimentos incluem estereótipos e mitos acerca delas, assim como atitudes
discriminatórias.
Tanto as escolas do Ensino Básico, como as do Ensino Secundário, têm,
muitas vezes, pontos de vista estereotipados acerca das crianças acolhidas institucionalmente, p. ex., das suas necessidades e dos seus interesses. Elas são
também percebidas como um grupo homogéneo. Os largamente difundidos
e comuns, e parcialmente contraditórios estereótipos, incluem:
•
•
•
•
4
as crianças são mimadas, e usam mal a ajuda e assistência que lhes é
prestada;
elas são negligenciadas ou abandonadas, tanto pelas suas famílias,
como pelas instituições;
devido às dificuldades (da família, das instituições), o seu desenvolvimento pessoal está atrasado (desempenho académico baixo, competências comunicacionais pobres, conflitos, roubos, etc.);
elas vão replicar as falhas dos seus progenitores – a institucionalização
de crianças é tipicamente considerada como uma falha dos pais, uma
vez que as razões que levaram à sua institucionalização são consideradas falhas dos seus pais, p. ex., incapacidade para sustentar a família.4
“Enquanto o indicador de aceitação da pobreza é bastante elevado, existem, na sociedade,
alguns preconceitos contra os pobres, que podem ter uma influência negativa nos indicadores
de aceitação num futuro próximo. Assim, mais de 40% de inquiridos acreditam que muitos
dos pobres são preguiçosos e não querem trabalhar, que no caso da maior parte dos pobres, é
sua a culpa de se encontrarem nessa situação, e que muitos pobres são bêbedos. Mais de 30%
consideram que muitos dos pobres têm um baixo QI e que são agressivos.” (Fundação Soros –
Moldávia, 2011:8).
202
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
Sentimentos e atitudes negativos resultam, muitas vezes, em discriminação
contra estas crianças, as suas oportunidades educacionais, por exemplo,
podem ser, ou negadas, ou limitadas, devido a discriminação. Alguns diretores de escolas secundárias abertamente desencorajam os estudantes vindos de instituições a candidatarem-se ou a matricularem-se nas suas escolas
(sugerindo que a escola não é boa para elas ou que elas não serão capazes de
acompanhar as exigências da escola, em termos de aprendizagem). Outros
fazem-nos de uma forma mais subtil, sugerindo outras escolas ou procurando, ativamente, algumas falhas na candidatura, para as excluir do processo
de matrícula. Aquelas que conseguem matricular-se ficam em risco de serem
discriminadas pelos professores. Da mesma forma que nos dados encontrados para o grupo anterior, alguns professores fornecem aos estudantes vindos
de instituições menos, ou nenhumas, oportunidades para desenvolverem ou
para demonstrarem as suas capacidades.5 Além disso, as escolas profissionais têm a expetativa de que os seus estudantes tenham recursos financeiros suficientes próprios (p. ex., para os materiais escolares), competências
sociais e contactos (p. ex., para organizarem estágios) (ver Milicenco et al, no
prelo). Isto, indiretamente, discrimina os estudantes provindos de instituições, que, com frequência, não têm esses recursos. Com exceção dos órfãos,
aos estudantes vindos de instituições, na Moldávia, não é fornecido qualquer
tipo de assistência social e apoio (financeiro, habitacional, informacional,
etc.), embora eles também se encontrem numa situação de premente necessidade de tais apoios (ver UNICEF, 2011:92, 96–7). Em contraste com o grupo
anterior, porém, é reconhecido que há mais do que um fator que influencia
o bem-estar das crianças de instituições residenciais. Para além da família,
as instituições são tipicamente discutidas como outro fator principal. No
entanto, é negligenciado o facto de que as crianças que vivem em instituições
residenciais enfrentam diversos problemas relacionados com as suas famílias
– desde a morte dos progenitores, à pobreza familiar, à negligência e ao abandono. Exemplos de crianças que mantêm relações íntimas com as suas famílias são normalmente desvalorizadas. Por outro lado, a consciencialização da
forma como as instituições residenciais contribuem para a exclusão social
está a crescer, na Moldávia. A segregação residencial é reconhecida como um
dos principais mecanismos de discriminação contra as crianças que vivem
em instituições. O movimento das crianças que vivem em instituições encontra-se restrito à área das instituições, que inclui uma escola a elas ligada. As
instituições residenciais estão, também, por vezes, geograficamente isoladas.
5
Esta descrição é baseada na experiência do CRIC no apoio à inclusão social de graduados
de instituições residenciais. A abordagem compreensiva do CRIC compreende, tanto a preparação para uma vida independente (começa ainda nas instituições, com o desenvolvimento
de competências de vida e sociais), como um apoio adequado durante a sua transição para a
independência (p. ex., no processo de matrícula e no percurso escolar).
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
203
Isto, obviamente, dificulta a participação das crianças na vida da comunidade.
A falta de comunicação fortalece as noções e assunções pré-concebidas das
comunidades, e acrescenta-se aos estereótipos acerca das crianças que vivem
em instituições. As grandes instituições residenciais são, além disso, caracterizadas pela prestação de cuidados e relações entre os funcionários e as crianças, que têm um cunho impessoal, assim como por uma ineficiente alocação
dos recursos. Muitos dos fundos, escassos, são usados para a manutenção
dos grandes edifícios ou para contratar um grande número de funcionários
auxiliares. Isto também contribui para que a situação nas instituições piore, o
que, por conseguinte, conduz à exclusão social deste grupo de crianças. Com
base neste conhecimento, iniciou-se uma grande reforma dos cuidados infantis e do sistema de proteção, na Moldávia (ver Evans, 2013; UNICEF, 2011;
UNICEF, Every Child and OPM, 2009).
Apesar do crescente conhecimento acerca da situação das crianças em
acolhimento institucional, os seus interesses e as suas necessidades são, com
frequência, tipicamente reduzidos ao restabelecimento das relações familiares e/ou à sua saída das instituições. Uma avaliação da reforma do sistema de
cuidados infantis, na Moldávia, 2007–2012, entende esta redução como um
defeito da reforma: “A realidade é que a menos crianças está a ser negado o seu
direito de viverem numa família, do que em 2007 [quando a reforma começou].
Mas as crianças têm outras necessidades, assim como direitos; a necessidade de
proteção do abuso e da exploração, de uma dieta adequada, de abrigo, de educação, de roupa adequada, e calor emocional e de carinho. Se estas necessidades
das crianças reintegradas nas suas famílias, ou colocadas em famílias substitutas, ou impedidas de serem admitidas em instituições, estão a ser satisfeitas, é
uma outra questão.” (Evans, 2013:33)6
Apesar da crescente atenção a este grupo de crianças, algumas dimensões
relevantes ainda estão a ser negligenciadas. A forma como a educação das
crianças em acolhimento institucional, ou antes os seus currículos escolares,
dificulta ou facilita a sua inclusão social, é completamente ignorado. Além do
mais, as crianças que não foram reintegradas nas suas famílias ou em estruturas de tipo familiar, mas têm de abandonar as instituições por terem atingido
a idade limite de frequência, foram esquecidas, tanto na discussão pública,
como na reforma.
6
“No entanto, isto não significa que todos os direitos dessas crianças [reintegradas, impedidas de serem admitidas em instituições] tenham sido respeitados. Apenas um estudo detalhado das crianças reintegradas ou das crianças impedidas de admissão revelará exatamente
de que modo os outros direitos das crianças têm, ou não, sido respeitados. Um direito particularmente importante das crianças, no contexto das reformas dos cuidados infantis e na
desinstitucionalização, é o direito das crianças a participarem em decisões que as afetam. Entrevistas com crianças que foram integradas na sua família biológica ou alargada sugerem que
algumas delas sentiram que esse direito não foi completamente respeitado.” (Evans, 2013:43;
ver, também, p. 63; 71).
204
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
Do mesmo modo que as crianças de outras famílias não típicas, os currículos que favorecem o modelo idealizado de família tradicional discriminam, indiretamente, as crianças que vivem em instituições. Estes currículos
de tendência predominante são seguidos, também, pelas escolas ligadas às
instituições residenciais. Como acontecia com o grupo anterior, este grupo de
crianças é confrontado com uma educação que, constantemente, transmite a
mensagem de que elas são deficitárias e fracassadas. Não surpreendentemente,
elas não conseguem sentir-se respeitadas ou aceites num tal ambiente escolar,
nem conseguem desenvolver uma autoimagem positiva. Uma perceção societal negativa resulta numa autoperceção negativa destas crianças. Como no
caso do grupo anterior, a autoperceção negativa tem um efeito amplificador.
Tem um efeito negativo, não apenas na sua aprendizagem (ver Marzano e Hefl
ebower, 2012:24), mas também nas suas relações sociais (familiares e outras).
Além disso, a ênfase na importância da família para a própria identidade,
nos currículos escolares, é discriminatória das crianças que não têm família ou
cujo conceito de família difere do conceito normativo. Tal ênfase acrescenta-se à autoimagem negativa destas crianças e, por conseguinte, enfraquece a
sua autoconfiança. Como acontece com a noção de família, os currículos, na
Moldávia, operam com uma noção de identidade pré-determinada e hierárquica. De acordo com esta noção, a família e a etnia são mais importantes do
que, p. ex., o(s) grupo(s) de pares, os passatempos e interesses, a religião, etc.
Em tais circunstâncias, as crianças nem têm espaço para explorar, nem para
determinar, por si próprias, o que é importante para a sua identidade, sob que
forma e até que ponto. Para além da discriminação indireta no sistema educacional, as crianças que vivem em instituições residenciais enfrentam uma
discriminação semelhante na reforma da proteção infantil, na Moldávia. Esta
reforma também é tendenciosa, favorecendo (mais) as formas familiares típicas/tradicionais: biológicas, alargadas, de acolhimento, adotivas, etc. Ainda
que tenha de se referir que a reforma do sistema de proteção infantil, na
Moldávia, foi desenvolvido como reação ao anterior facciosismo (soviético) a
favor dos cuidados institucionalizados, a injustiça da atual abordagem,7 no
entanto, indiretamente discrimina as crianças que já se encontram em instituições, cujas probabilidades de reunião com as suas famílias são bastante
baixas, e que vão, assim, muito provavelmente, viver nas instituições até atingirem a idade limite. As crianças com deficiências, com problemas comportamentais (ver Evans, 2013:34, 43, 50), crianças mais velhas e crianças que
passaram muito tempo em instituições, frequentemente, encontram-se neste
7
A acima mencionada redução dos interesses e das necessidades das crianças às resultantes
de viverem numa família pode ser compreendido como parte da mesma tendência da reforma. A família é tratada, não apenas como uma condição necessária, mas também suficiente,
para o bem-estar e desenvolvimento das crianças. Tal tratamento sugere uma idealização da
família no atual sistema de proteção infantil da Moldávia.
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
205
grupo de crianças. Dado que a reforma do sistema de proteção infantil não
trouxe, até ao momento, mudanças essenciais ao funcionamento das instituições residenciais, as instituições ainda contribuem para a exclusão social das
crianças que vivem nessas instituições, da mesma forma que antes da reforma.
Apesar de se ter conhecimento das deficiências das instituições residenciais,
na Moldávia, não se verificaram importantes melhoramentos nas condições
de vida destas instituições. Às crianças não foram facultados cuidados mais
adequados e educação. Elas estão a sair de instituições, sem se encontrarem
preparadas para terem uma vida independente (p. ex., sem vivências desenvolvidas e sem competências sociais, e sem um plano de transição). A adoção
de padrões mínimos nos cuidados, na educação, e na socialização das crianças
que se encontram em instituições residenciais (ver RMG, 2007), não conduziu
a melhoramentos significativos, uma vez que nenhuns recursos foram alocados
para a sua implementação. Mesmo a agenda de reformas do atual sistema de
proteção infantil não prevê a provisão de qualquer assistência e apoio às crianças que saem das instituições (ver UNICEF, 2011: 92, 96–7). Quando deixam os
cuidados públicos, as crianças, não só ainda não estão preparadas, desprovidas
de oportunidades, ou com oportunidades limitadas, de conseguirem habitação
e de continuarem a sua educação, como também se confrontam com a imagem
societal deteriorada das instituições. A má imagem das instituições reforça as
atitudes e sentimentos societais negativos em relação às crianças que deixam
essas instituições, e coloca-as em risco de mais discriminação (ver, acima, o
que ficou dito a propósito da escolarização). O conhecimento das deficiências
das instituições residenciais tem, desde então – paradoxal e infelizmente –
contribuído mais para piorar a situação das crianças que vivem e que deixam
essas instituições. Isto não é típico apenas na Moldávia. Tem sido cada vez mais
reconhecido que “[uma]‘estigmatização’ dos cuidados institucionais, enquanto o
menos favorável ambiente para as crianças, pode tender a reforçar estas tendências e contribuir para a estigmatização destas crianças” (Cantwell e Holzscheiter,
2008:13; ver, também, o Comité sobre a CDC, 2005:6).
Uma imagem societal negativa das instituições parece não somente desencorajar o apoio a uma reforma destas instituições, mas também complicar
o estabelecimento de programas de apoio e assistência para as crianças que
deixam as instituições. Sem mesmo ser perguntado às crianças afetadas, é
geralmente assumido que as crianças que ultrapassam o limite de idade de
frequência de instituições residenciais que funcional mal querem sair destas
instituições, e o sistema de proteção, em geral, tão cedo quanto possível, de
modo a iniciarem uma vida independente (uma vida autossuficiente, para a
qual uma pessoa não precisaria de nenhuma ajuda ou apoio), esta assunção
fornece uma base para negar apoio e assistência sociais às crianças que deixam as instituições. Esta prática discrimina as crianças que deixam as instituições, que não têm quaisquer recursos externos, ou que os têm em quantidade
206
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
insuficiente e, assim, não podem manter-se sem apoio e assistência sociais
(adicionais).
4. Currículos antitendenciosos
Como acontece em outros países, os professores, na Moldávia, estão a ficar
mais consciencializados das crescentes diferenças entre os estudantes nas suas
salas de aulas. Para além de serem originárias de vários tipos de famílias, as
crianças de uma sala de aulas podem, agora, diferir, também, a respeito da
língua que falam, da etnia, da religião, das capacidades, etc. A diversidade
da sala de aula reflete a diversidade de sociedade da Moldávia. As estruturas familiares variam cada vez mais; formas e tipos de famílias, recentemente
desenvolvidos, na Moldávia, variam da família multigeracional até à família monoparental; da família transnacional às famílias multiculturais, etc.
Adicionalmente, as alterações nas políticas educacionais, especialmente o
conceito de educação inclusiva, têm contribuído, significativamente, para a
diversificação da composição da sala de aula. O número de crianças ciganas
e de crianças com deficiências, numa sala de aula típica, aumentou, devido
ao novo conceito. Ao mesmo tempo, os professores, na Moldávia, estão conscientes das suas limitadas competências para lidarem com esta crescente
diversidade. A sua formação inicial foi baseada na ideia de uma sociedade
homogénea, de acordo com a qual as diferenças existentes têm sido ignoradas
ou conceptualizadas como deficiências. Com base nesta ideia, alguns grupos
de crianças têm sido segregados, p. ex., aqueles com crianças portadoras de
deficiências ou as que não têm progenitores. Isto ajudou a manter as escolas e as salas de aula mais homogéneas e à (re)produção dos valores, crenças e comportamentos dominantes, mais prováveis no passado. No entanto,
a consciencialização das consequências negativas desta prática tem emergido
na Moldávia. Em lugar de uma sociedade homogénea, esta abordagem tradicional à educação tem, em vez disso, contribuído para a (re)produção de uma
sociedade hierárquica, ao serviço do(s) grupo(s) societário(s) dominantes e
discriminatória em relação aos outros (ver Apple, 2004:59–62). Um número
cada vez maior de atores políticos e sociais, deste modo, concordam que a
abordagem base ao sistema educacional na Moldávia deve ser alterada. Para
responder melhor aos desafios da mudança na composição das salas de aula,
os professores devem ser equipados com um currículo mais sensível à diversidade. De modo a serem capazes de adaptar a sua própria prática de ensino às
necessidades e aos interesses das crianças com várias origens, os professores
devem ser equipados com métodos e instrumentos adequados.
Um ponto de partida para tal mudança, tanto para a educação e formação dos professores, como para a condução do seu trabalho diário, é a
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
207
autorreflexão. A autorreflexão é o ponto inicial e central da abordagem antitendenciosa à educação. Em lugar de culpar as crianças por serem diferentes e
incapazes de se adaptarem à escola, a abordagem antitendenciosa encoraja os
professores a pensarem sobre a forma como as crianças com diferentes origens
são tratadas pelas escolas, e sobre como as escolas se podem adaptar às necessidades e interesses individuais dos seus estudantes. Com base nesta autorreflexão, os professores são apoiados para atuarem contra a discriminação.
Louise Derman-Sparks, a fundadora de uma abordagem antitendenciosa,
nos últimos anos da década de 80, do séc. XX, definiu-a, como se segue:
“[Antitendenciosa é uma] abordagem ativa/ativista para desafiar o preconceito, o estereótipo, o facciosismo, e os ‘ismos’. Numa sociedade em que
as estruturas institucionais criaram e mantêm o sexismo, o racismo e o
deficientismo, não é suficiente ser não-tendencioso (e também altamente
provável de o ser), nem é suficiente ser um observador. É necessário que
cada indivíduo intervenha ativamente, que desafie e contrarie os comportamentos pessoais e institucionais que perpetuam a opressão.” (DermanSparks, 1989:3, citado de Gramelt, 2010:102).
O desenvolvimento do conceito de antitendenciosismo começou nos EUA,
nos últimos anos da década de 1980. Um grupo de professoras de jardim
de infância, lideradas por Louise Derman-Sparks, desenvolveu o conceito
de educação infantil precoce, que tem em conta a diversidade cultural. Elas
publicaram Empowering young children. Anti-Bias-Curriculum e sugeriram-no como uma estrutura conceptual de trabalho para agir nas instituições
educacionais (ver Gramelt, 2010:101). A abordagem sofreu um considerável
desenvolvimento, entretanto. Alguns elementos fazem parte, agora, do currículo dos jardins de infância, em alguns países, e também tem sido adaptado às escolas do 1.º ciclo do Ensino Básico. Os seus elementos também têm
sido usados em outros ambientes.8 O principal objetivo desta abordagem é
desenvolver as competências, tanto das crianças, como dos professores, para
lidarem, de forma positiva, com a diversidade.
“Os objetivos dos currículos consistem em permitir que todas as crianças: construam uma autoidentidade consciente e confiante; desenvolvam
uma interação com a diversidade confortável, compreensiva, e justa; e
que desenvolvam um pensamento crítico e as competências para se afirmarem, e aos outros, em face da injustiça.” (Derman-Sparks, 1989:ix,
citado de Gramelt, 2010:102)
8
A abordagem antitendenciosa desenvolveu-se bastante a partir da prática. Ver Gramelt,
2010, para uma rara documentação de um desses processos com enfoque na Alemanha.
208
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
Uma vantagem da abordagem antitendenciosa é o seu acentuado enfoque na mudança institucional. Uma vez que os professores são entendidos
como agentes chave desta mudança, o seu foco recai no desenvolvimento
das suas capacidades para se ajustarem, ativamente, à diversidade, incluindo
as capacidades para reconhecerem e lutarem contra qualquer tratamento
discriminatório.
O CRIC introduziu componentes básicos de abordagem antitendenciosa
nos seus vários trabalhos com as escolas e com os professores. Como parte
deste esforço, um curso de formação sobre não discriminação, com um guia
metodológico para a educação cívica dos professores, foi recentemente desenvolvido. Tendo em conta o contexto da Moldávia, o curso ajuda os professores a analisarem a diversidade na escola e na sala de aula e a examinarem a
forma como o currículo atual, as metodologias de ensino tipicamente usadas
e os processos gerais da escola facilitam ou dificultam a inclusão das crianças
com diferentes origens. Outro importante aspeto inclui o apoio dado aos professores para desenvolverem a consciencialização das suas próprias origens,
atitudes, expetativas, etc. Finalmente, a sua parte central é o desenvolvimento
de estratégias para lutar contra a discriminação, tal como agir contra qualquer
sobrerrepresentação ou sub-representação, evitar o desequilíbrio ou oferecer
múltiplas perspetivas.
Na estrutura do curso sobre não discriminação, os professores de educação
cívica elaboraram critérios para desenvolverem, implementarem e avaliarem
as suas atividades educativas, de modo a facilitar a inclusão, a não discriminação e a participação de todas as crianças. Para além de serem relevantes para
as crianças, os tópicos das atividades educativas devem ser apresentados de
uma maneira construtiva e positiva, e com respeito por cada criança e pelos
membros da sua família, independentemente da situação ou das dificuldades atualmente experimentadas por elas. A respeito das estratégias de ensino,
os professores de educação cívica realçaram, por exemplo, que os métodos
usados devem criar oportunidades que envolvam todas as crianças. Portanto,
uma variedade de métodos deve ser combinada para que todas as crianças
tenham a possibilidade de expressar os seus próprios pensamentos, sentimentos, experiências e uma interação compreensiva possa ser estimulada.
Ao discutirem os critérios que os ajudarão a estabelecer uma relação adequada com os seus estudantes, os professores foram explícitos acerca de evitarem comentários que rotulassem ou fizessem um juízo de valor. Da mesma
forma, eles sugeriram que os professores devem intervir em caso de comportamento discriminatório contra qualquer criança, não apenas durante as
aulas, como também durante os intervalos, nas reuniões com os funcionários
ou pais/cuidadores, etc. Os professores de educação cívica relataram que os
critérios foram muito úteis, especialmente na altura da elaboração e avaliação
das aulas. No entanto, eles relataram dificuldades em manter-se a par destes
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
209
elevados padrões no quotidiano. Enquanto que a sua consciencialização relativamente à diversidade e à (não)discriminação aumentou, os professores
requerem apoio contínuo e mudanças sistémicas (p. ex., uma revisão dos atuais currículos, uma política escolar antidiscriminação, etc.).
5. Diversidade das estruturas familiares e prevenção da
estigmatização das crianças que vivem e deixam as instituições
residenciais
Um dos primeiros Dias de Discussões Gerais organizados pelo Comité dos
Direitos da Criança (daqui em diante: o Comité) foi dedicado ao papel da
Família na promoção dos direitos das crianças.
“Com base nas diferentes intervenções, pareceria difícil argumentar a
favor de uma única noção de família. Através da influência de fatores
económicos e sociais, e das tradições políticas, culturais ou religiosas prevalecentes, a família foi formada de acordo com uma diversidade de formas e, naturalmente, enfrenta diferentes desafios ou condições de vida.
Seria, pois, aceitável considerar que apenas alguns tipos de famílias ou
de situações familiares merecem assistência e apoio por parte do Estado
e da sociedade, i.e., as famílias nucleares, alargadas, biológicas, adotivas
ou monoparentais? Poderia ser considerado que apenas em algumas circunstâncias teria a família ou a vida familiar um valor social decisivo?
Com base em que critérios: legais, políticos, religiosos ou outros? Seria
possível favorecer a perspetiva segundo a qual apenas em certas condições
deverão ser dadas às crianças a oportunidade de usufruir de direitos que,
de facto, são inerentes à dignidade da sua natureza humana?
Todas estas questões parecem colocar o valor essencial do princípio da
não discriminação no palco da discussão geral.” (ver Comité sobre a
CDC, 2005:3).
No seio da mesma estrutura, o Comité também discutiu a situação das crianças que vivem em instituições.
“Foi levantada a questão se a implementação dogmática do princípio de
que a colocação numa instituição deve ser o último recurso pode resultar
numa estigmatização das crianças que vivem, ou que vão viver, nessas
instituições. Tal prática pode prejudicar o desenvolvimento da criança
que necessita de cuidados alternativos e deixar a instituição em que a
criança é, em última instância, colocada, com uma missão impossível.
Uma avaliação cuidadosa e multidisciplinar das necessidades da criança
210
Smiljana Simeunovic Frick, Cezar Gavriliuc
que necessita de cuidados e de proteção deve fornecer uma opinião informada sobe a decisão sobre se os cuidados fora de casa são no superior
interesse da criança e que forma devem tomar. O Comité recomenda que
seja dada uma especial atenção a esta questão no desenvolvimento dos
padrões sugeridos na Parte IV deste documento. O Comité reconhece que
é estimulante alterar a ideologia enraizada por detrás do modelo institucional, mas encoraja os Estados Partes a dar passos realistas com vista
a mudar instituições tradicionais, por exemplo, estabelecendo unidades
especializadas mais pequenas, no seio das instituições, aumentando o
número de profissionais que trabalham para, e com, as crianças, e fornecendo a estes profissionais formação sistemática.” (Comité sobre a CDC,
2005:6).
Para além da melhoria das condições nas instituições de acolhimento, alguns
autores sugerem que, para prevenir a sua estigmatização, ou antes das crianças que nelas vivem, a interpretação de possíveis planos de ação de cuidados
alternativos, listados no Artigo 20 da Convenção sobre os Direitos da Criança,
como uma possível classificação, devia ser evitada. Cantwell e Holzscheiter
argumentam que a adequação e a necessidade de um plano de ação de cuidados alternativos não devem ser avaliados com base na sua hierarquia pré-determinada, mas antes tomando em conta “a sua capacidade para responder efetivamente e apropriadamente a circunstâncias, necessidades e desejos
específicos de uma criança individual, num dado momento da sua vida […]
por exemplo, a família de acolhimento também deve ser avaliada quanto à sua
adequação e necessidade: uma quebra séria nas colocações em famílias de acolhimento é apenas mais uma indicação de que estas não são adequadas a algumas crianças. Assim, se uma instituição pode ser considerada ‘adequada’, e se
a colocação de uma criança é ‘necessária’, pode haver fundamentos para questionar por que razão essa solução deveria ser automaticamente relegada para o
estatuto de ‘último recurso’.” (Cantwell e Holzscheiter, 2008:55–56).
5. Conclusão
O sistema educativo moldavo tem dificuldades para reconhecer a variedade
de formas de família existentes no país. As necessidades e interesses gerais e
específicos das crianças de famílias não típicas estão a ser sistematicamente
negligenciadas na sua escolarização. Porém, o tratamento discriminatório
destas crianças, nas escolas, é normalmente desvalorizado, quando o seu
baixo desempenho académico e a sua exclusão social estão em discussão.
Devido à crescente diversidade das sociedades contemporâneas, a capacidade
para responder à diversidade tornou-se uma competência chave nas nossas
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
211
vidas diárias. Consequentemente, a sua importância para a educação, em
geral, e para o currículo, em particular, é crescente (ver OCDE, 2005:12–13).
Uma abordagem antitendenciosa ajuda as escolas a criar condições mais favoráveis para o desenvolvimento de todas as crianças, incluindo aquelas provenientes de famílias de diferentes origens. As estruturas familiares existentes
devem ser reconhecidas, não apenas pelas escolas, como também por outras
instituições sociais. O Comité encoraja os Estados Partes a adaptarem, de
forma ativa, as suas instituições para satisfazerem as necessidades, também,
daqueles tipos de famílias que, raramente, são reconhecidas nas leis e nas práticas. Finalmente, enquanto os cuidados residenciais existirem/persistirem,
deve ser também socialmente reconhecidos e apoiados enquanto um meio
ambiente propício ao bem-estar e ao desenvolvimento das crianças.
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http://www.oecd.org/pisa/35070367.pdf ” Accessed 17 March 2014.
Republica Moldova Guvernul (2007). HOTARIRE Nr. 432 din 20.04.2007 pentru aprobarea
Standardelor minime de calitate privind îngrijirea, educarea şi socializarea copiilor din
instituţiile de tip rezidenţial. “http://www.aliantacf.md/ro/resurse/hg-432-din20042007-pentru-aprobarea-standardelor-minime-de-calitate-privind-Óngrijirea”.
Acedido em 17 de março de 2014.
Soros Foundation – Moldova (2011). Perceptions of the population of the Republic of
Moldova on discrimination: sociological study. “http://www.soros.md/files/publications/documents/Studiu_sociologic_EN.pdf ”. Acedido em 20 de junho de 2014.
UNICEF (2007). Violence against children in the Republic of Moldova. Study Report.
“http://www.unicef.org/moldova/ro/Violence_against_children_ro.pdf ”. Acedido em
20 de junho de 2014.
UNICEF (2011). Situation Analysis of Vulnerable, Excluded and Discriminated Children
in Moldova. “http://www.unicef.org/moldova/Raport_ENG.pdf ”. Acedido em 17 de
março de 2014.
UNICEF & CRIC (2006). The Situation of Children Left Behind by Migrating Parents.
“http://childrights.md/files/publicationsen/cric_study_report_en_2006.pdf ”.
Acedido em 17 de março de 2014.
UNICEF, EveryChild and OPM (2009). Assessment of the Child Care System in Moldova.
“http://www.unicef.org/ceecis/Moldova_child_welfare_assessment_-_final_
2009_09_ENG.pdf ”. Acedido em 17 de março de 2014.
Questões para reflexão
•
•
De que forma são as crianças com pais a trabalhar no estrangeiro, e os seus cuidadores, discriminados nas escolas da Moldávia? Quais dos seus direitos (de acordo com a
CDC) foram prejudicados devido a discriminação?
Quais são as características de uma abordagem antitendenciosa (objetivos, focos,
passos para os professores, para as crianças, etc.)? Ver, também, o vídeo: Anti-Bias
Curriculum: em “https://www.youtube. com/watch?v=Tx1HF_rh95c”.
CAPÍTULO 8: Não discriminação e crianças de famílias não típicas na Moldávia
•
•
•
•
•
213
Qual é a sua atitude em relação à família e qual a sua importância para o bem-estar
das crianças? Descreva uma família típica, de acordo com a sua opinião. Quantas
famílias contacta que correspondem à sua descrição de uma família típica? Qual é a
natureza do seu contacto com famílias não típicas e com as crianças dessas famílias;
quanto contacto, que tipo (privado, profissional), etc.? Quão similares/diferentes são
em relação à família típica que descreveu?
Que diferentes tipos de famílias existem num país do seu interesse? Como estão estes
diferentes tipos representados em livros e outros materiais usados na escola? Que
estruturas familiares estão sobrerrepresentadas ou sub-representadas nestes materiais? Que visões estereotipadas estão relacionadas com alguns tipos familiares?
Qual é a imagem das instituições residenciais e das crianças que vivem nestas instituições, num país do seu interesse? Faça o seu próprio quadro de estereótipos, através de
uma análise de sítios da internet e de jornais. Como é que essas afirmações caracterizam essas crianças? De que forma estão as razões estruturais refletidas em descrições
das suas situações?
Qual é a perspetiva do Comité sobre as várias estruturas familiares? Analise as
Observações Conclusivas do Comité relativas a questões e recomendações relacionadas com a discriminação das crianças na situação de cuidados alternativos, incluindo
as instituições residenciais e as crianças que deixam as instituições.
Analise a lista dos fundamentos para discriminação contra as crianças mencionados nas Observações Conclusivas do Comité (ver CRIN, 2009:5): Quais deles estão
relacionadas com a família? Qual é a situação das famílias mencionadas num país do
seu interesse? Existem outras formas de famílias em risco de discriminação que são
conhecidas por si, mas não estão na lista?
Leituras adicionais
Courtney, M.E. and Iwaniec. D. (eds.) (2009). Residential Care of Children. Comparative
Perspectives. New York: Oxford University Press, Inc.
Derman-Sparks, L. and Ramsey, G.P. (2011). What If All the Kids are White? Anti-bias
Multicultural Education with Young Children and Families. New York: Teachers
College Press.
SOS Children’s Villages International (2012). When care ends. Lessons from peer research.
“http://www.sos-childrensvillages.org/what-we-do/childrens-rights/imatter”.
Acedido em 23 de junho de 2014.
214
Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté
CAPÍTULO 9:
COMO AS CRIANÇAS SÃO DISCRIMINADAS
NO USO DOS SEUS DIREITOS
Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté
Carlos Villagrasa Alcaide, Doutorado, é Professor Titular de Lei
Civil e de Lei da Família na Faculdade de Direito da Universidade
de Barcelona, em Espanha, onde é também Diretor do Mestrado
em Lei da Família e Infância. Presidente da Associação de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes; Juiz do Tribunal
Provincial de Barcelona; Coordenador e Professor de Lei Civil na
Universidade Nacional de Educação à Distância; Diretor de Investigação Legal no Instituto da Infância e do Consórcio Urbano
Mundial. [email protected]
Isaac Ravetllat Ballesté, Doutorado, é Professor de Lei Civil e de
Lei da Família na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona, onde é também Coordenador do Mestrado em Lei da Família e a Infância; Secretário-Geral da Associação de Defesa dos
Direitos das Crianças e Adolescentes; Juiz do Tribunal Provincial
de Barcelona; Coordenador Académico e Professor de Lei Civil e
Romana, na Universidade Nacional de Educação à Distância; Consultor para a reforma da legislação sobre os direitos das crianças
(Parlamento da Catalunha). [email protected]
1. Introdução
O interesse no conceito dos direitos das crianças tem crescido, de forma significativa, durante a última década. Dois fatores parecem estar a criar uma
mais elevada consciencialização das crianças como sendo um grupo minoritário, com direitos próprios. Em primeiro lugar, existe uma crescente apreciação, entre os leigos e os profissionais, das obrigações do Estado, ao abrigo da
Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (ONU CDC). Em
segundo lugar, uma maior consciencialização dos direitos tem sido gerada
pela implementação, ao nível nacional, do mencionado Tratado Internacional.
O facto de as crianças estarem, como os adultos, habilitadas a reclamar os
direitos garantidos, não apenas pelos organismos internacionais, como pelos
nacionais, tem tido um enorme impacto na perceção, por parte dos adultos,
do estatuto das crianças.
Muitos dos que ensinam e trabalham com os princípios legais que afetam as crianças estão comprometidos, de corpo e alma, com a noção de que
CAPÍTULO 9: Como as crianças são discriminadas no uso dos seus direitos
215
as crianças são detentoras de direitos. Não obstante, para estes profissionais,
pode não ser muito claro de que forma devem promover tal noção, de uma
forma que melhore as vidas das crianças, na prática, em vez de lhes permitir
permanecer na defesa de um ideal teorético, que pode significar a introdução
de uma espécie de discriminação com base na idade. A lei não permanece
rígida, e o propósito deste material de ensino é considerar até que ponto os
princípios legais emergentes podem ser usados para conseguir tal objetivo. As
crianças, como outros grupos minoritários, são afetados por vários ramos da
lei, todos com o seu próprio caráter distintivo. Consequentemente, embora se
assista a um aumento rápido no corpo da legislação sobre os direitos humanos, também devemos prestar atenção aos casos de lei doméstica e à legislação nacional.
Este artigo tomará em consideração a legislação em desenvolvimento, na
Europa, de acordo com um leque tradicional de tópicos legais, que refletem
as próprias atividades das crianças e os princípios usados para as ajudar. O
documento será dividido em diferentes secções, todas globalmente considerando até que ponto a lei reconhece a crescente maturidade dos adolescentes
e a sua capacidade para um pensamento e uma ação independentes. Estas secções irão fazer a revisão de até que ponto a lei encoraja os adultos a consultar
os adolescentes e crianças mais velhas sobre decisões relativas ao seu presente
e ao seu futuro, e o espaço que lhes é concedido para tomar decisões, por si
próprias, legalmente vinculativas.
A última parte deste artigo tratará da forma como a lei equilibra os direitos das crianças mais novas, que são incapazes de tomar decisões, por elas
próprias, contra os poderes e as responsabilidades dos pais, relativamente à
sua educação. Será considerada a forma como a lei, ao apoiar a autonomia
parental, por vezes, prejudica o cumprimento legal dos direitos das crianças,
em vários contextos. Finalmente, queremos oferecer aos leitores um exemplo
hipotético de cidadania ativa das crianças, para dar poder às crianças para
fazerem uso dos seus direitos. Alcançamos este objetivo, através de uma história imaginária que envolve as próprias crianças.
2. As crianças enquanto detentoras de direitos
O Preâmbulo à ONU CDC afirma a ideia de que a uma criança deve ser oferecida a proteção e a assistência necessárias para que ele/ela possa, plenamente, assumir as suas responsabilidades no seio da comunidade. Este aspeto
característico ou objetivo da ONU CDC requer que a criança seja plenamente
reconhecida como detentora de direitos, a quem será permitido o exercício
dos seus direitos. Mas ao fazê-lo, os pais têm as responsabilidades, os direitos
e os deveres de providenciar à criança, de uma maneira consistente com as
216
Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté
suas capacidades evolutivas, fornecendo-lhes direção e orientação apropriadas (artigos 5 e 14 da ONU CDC).
Ao reconhecer as crianças como detentoras de direitos, o conceito de capacidades evolutivas é crucial. Esta ideia representa o reconhecimento da crescente autonomia da criança, e a necessidade de respeitar a gradual aquisição
do exercício independente dos direitos, consagrado na ONU CDC, como o
direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de pensamento, de consciência, de religião e liberdade de associação. Deve notar-se, no entanto, que o
conceito de capacidades evolutivas tem implicações em todos os direitos consignados na ONU CDC, e exige mudanças significativas em todos os níveis
da sociedade. Representa um desafio fundamental às atitudes em relação às
crianças, questionando algumas das nossas mais profundamente enraizadas assunções acerca das necessidades das crianças, do desenvolvimento das
crianças, da proteção das crianças e do agenciamento das crianças.
As idades limite arbitrárias tradicionalmente impostas pela lei nos diferentes países europeus são, frequentemente, difíceis de justificar. Por exemplo,
a idade de responsabilidade criminal, a idade em que uma pessoa pode dar
o seu consentimento ao tratamento médico, a idade de casamento (com o
consentimento parental ou judicial), a idade para fumar, para comprar álcool
ou para deixar a educação a tempo inteiro. Ao passo que, em muitos países da Europa, os adolescentes podem conduzir uma mota, aos 17 anos, eles
têm de esperar até aos 18 anos para votarem, para assinarem contratos de
arrendamento e para se candidatarem a apoio financeiro. Muitos adultos não
têm a capacidade de exercer, de todo, todos os direitos a que, enquanto cidadãos adultos, estão automaticamente habilitados. Pelo contrário, há inúmeras crianças a quem, apesar de possuírem competência mental, esses direitos
são negados, somente devido ao seu estatuto de menores.A competência para
tomar decisões varia enormemente, dependendo de uma variedade de fatores,
como a pressão de pares e o ambiente familiar. Não depende apenas da maturidade e das circunstâncias sociais da pessoa que chega a uma decisão, mas
também do conteúdo e do contexto da decisão em questão. Assim, enquanto
uma pessoa, em qualquer faixa etária, pode necessitar de uma variedade de
competências e, portanto, de um tipo relativamente sofisticado de competência antes de ser capaz, por exemplo, de dar o seu consentimento para uma
cirurgia, precisará de um tipo muito mais baixo de competência para ativar
uma máquina (Fortin, 2009: 82–86).
A investigação de Alderson com crianças, num hospital, levou-a a concluir
que as crianças desenvolvem a competência para tomar decisões complexas
acerca do seu tratamento médico, em idades muito mais precoces do que os
adultos pensavam ou aceitavam. De facto, ela argumenta que, uma vez que
muitas crianças podem superar muitos adultos em qualidades como a inteligência, a capacidade e a prudência, as diferenças entre os adultos e as crianças
CAPÍTULO 9: Como as crianças são discriminadas no uso dos seus direitos
217
residem sobretudo nas crenças sociais acerca da infância, mais do que nas
capacidades atuais das crianças (Alderson, 1993: 190).
A investigação sobre o desenvolvimento psicológico de adolescentes mais
velhos sugere que pode ser justificada uma abordagem diferente relativamente àqueles que se encontram na última fase da adolescência. A investigação certamente apoia os que argumentam que a atual lei é demasiado restritiva, na sua abordagem à capacidade de tomar decisões das crianças mais
velhas. Alguns escritores, como Lindley, argumentam a favor de uma abordagem mais sofisticada à libertação das crianças (Lindley, 1989: 79). Segundo
ele, existem boas razões para rejeitar a contenção de que todas as crianças
deviam ter iguais direitos à autodeterminação, devido à significativa correlação entre a infância e a incompetência (Lindley, 1989: 79). O mesmo autor
considera, igualmente, que é difícil justificar restrições paternalistas a todos
os adolescentes com menos de 18 anos, simplesmente devido ao seu estatuto
de menores. Ele sugere que, quando as crianças atingem os 13 anos de idade,
são suficientemente estáveis e têm competência conceptual suficiente para
serem capazes de ter os objetivos de um plano de vida. Com base nisto, ele
defende que as leis relativas à faixa etária dos 13 aos 16 anos deviam ser liberalizadas. Citando as elevadas taxas de atividade sexual dos adolescentes com
menos de 16 anos, ele critica as leis que impedem as raparigas com menos
de 16 anos de darem o seu consentimento ao ato sexual. Ele também argumenta que os elevados níveis de absentismo escolar indicam que as pessoas
mais jovens, entre os 13 e os 16 anos, não devem ser forçadas a permanecer
num sistema de educação obrigatório, a tempo inteiro, mas que, em vez disso,
devia ser-lhes permitido trabalhar a tempo inteiro. Além disso, do seu ponto
de vista, aos adolescentes devia ser oferecida uma educação política nas escolas, e permitido votar (Lindley, 1989: 88–92).
Existe a necessidade de uma clareza consideravelmente maior nos princípios legais que se aplicam aos adolescentes, e de a lei manter um melhor
equilíbrio entre permitir aos mais jovens tanta liberdade quanta lhes permite
as suas capacidades, ao mesmo tempo que se refreia a sua possibilidade de
fazerem escolhas que restringem o seu próprio desenvolvimento futuro. A
lei fornece uma série de mensagens dúbias acerca dos limites à autoridade
parental, quando as crianças atingem a adolescência. Esta incoerência surge,
sem dúvida, do facto de a sociedade, ela própria, estar incerta acerca da forma
como os pais devem adaptar-se à maturidade crescente dos seus filhos.
Progenitores com capacidade de discernimento podem argumentar que
eles são apoiados, numa abordagem deste género, pelo artigo 5 da ONU CDC.
Isto requer que os governos respeitem os direitos e os deveres dos pais de fornecerem “direção e orientação apropriadas no exercício, pelas crianças, dos
direitos que lhes são reconhecidos”. Não obstante, os pais não devem negligenciar o qualificativo da frase do artigo, que realça que a direção e orientação
218
Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté
parentais devem ser apenas fornecidas “de uma maneira consistente com as
capacidades evolutivas da criança”. Mais ainda, os artigos 12, 13 e 14 do CDC
enfatizam, todos eles, o direito da criança a desenvolver a sua capacidade para
o pensamento e ação independentes.
Embora a legislação doméstica possa, de forma útil, encorajar alterações
nas atitudes parentais, em muitas ocasiões ela tem falhado em agarrar a oportunidade de agir em conformidade. Reconhecidamente, a substituição do
novo conceito de “responsabilidade parental” em desfavor da velha expressão
“direitos e deveres parentais” reflete a realidade do dia a dia de ser pai ou
mãe; também desencoraja que as crianças estejam sob o controlo absoluto
dos pais. Todavia, o falhanço da imposição do dever dos pais de consultarem
os seus filhos acerca de assuntos importantes relacionados com o seu próprio
futuro é, realmente, dececionante. Um importante passo na direção da ideia
de considerar as crianças como detentoras de direitos, a quem será permitido
o exercício dos seus direitos, por si mesmas, foi dado pelo caso Gillick, no
Reino Unido. Este caso rapidamente saltou para os noticiários internacionais,
porque foi a primeira vez que os Tribunais reconheceram a capacidade de
uma criança, e ficou conhecido como o “caso Gillick”. De facto, em 1982, a Sr.ª
Victoria Gillick levou a tribunal a sua autoridade local de saúde (Autoridade
de Saúde de West Norfolk e Área de Wisbech) e o Departamento de Saúde
e Segurança Social, numa tentativa de impedir que os médicos fornecessem
conselho ou tratamento na área da contraceção a adolescentes com menos de
18 anos, sem o consentimento dos pais. O caso chegou ao Supremo Tribunal,
onde o juiz Woolf rejeitou as argumentações da Sr.ª Gillick. O Tribunal de
Apelo reverteu esta decisão, mas, em 1985, chegou à Câmara dos Lordes e à
Câmara dos Lordes em Leis (Lord Scarman, Lord Fraser and Lord Bridge),
que se manifestaram a favor da sentença original, emanada pelo juiz Woolf:
“… se uma criança é ou não capaz de dar o necessário consentimento
dependerá da maturidade e da compreensão da criança e da natureza
do pedido de consentimento requerido. A criança deve ser capaz de fazer
uma avaliação razoável das vantagens e das desvantagens do tratamento
proposto, para o consentimento, no caso de ser conferido, possa ser descrito como verdadeiro consentimento, de forma apropriada e justa.”
Este caso providencia que a voz da criança seja ouvida e escutada em tribunal,
quando atingir um estado de compreensão suficiente para ser capaz de fazer
uso da sua própria razão. Se sim ou não, uma criança é capaz de o fazer, tem
sido considerado ser uma questão de facto.
CAPÍTULO 9: Como as crianças são discriminadas no uso dos seus direitos
219
3. Lições de Gillick
A crescente influência do caso Gillick reflete-se, não apenas nas diferentes
legislações domésticas europeias, mas também nos casos de lei. Esta é a maior
razão que nos conduz a realçar os princípios que emanam desta importante
decisão da Câmara dos Lordes. A decisão da Câmara dos Lordes no julgamento Gillick vs. Autoridade de Saúde de Norfolk e Área de Wisbech estabeleceu novos limites legais às relações entre os progenitores e os seus filhos
adolescentes. Reflete a visão de que a lei deve encorajar os pais a ficarem quietos e a permitirem que os adolescentes tomem importantes decisões, com o
mínimo de interferências possível.Uma preocupação recorrente é a de que,
promovendo os direitos das crianças, a lei e a política vão minar o estatuto e a
autoridade dos progenitores. Ansiedades como estas, levaram Victoria Gillick
e Sue Axton a procurar uma confirmação legal do seu direito de criarem as
suas filhas da forma que entendiam ser mais adequada (Gillick vs. Autoridade
de Saúde de Norfolk e Área de Wisbech, 1986).
A decisão Gillick enviou uma forte mensagem aos pais, dizendo-lhes que
os seus próprios direitos relativos à tomada de decisões se encontram restringidos, e de que eles têm o dever de permitir que os adolescentes façam
uma transição gradual para a idade adulta. Uma interpretação da lei, nestes
termos, não fornece, porém, diretrizes claras sobre o ponto em que os adolescentes atingem um estado de maturidade, quando poderão tomar decisões
por si próprios. Realmente, a fraqueza do conceito de competência de Gillick
é a sua incerteza.
Discutivelmente, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (ECHR)
fortaleceu a capacidade de os pais controlarem os seus filhos adolescentes,
por referência aos seus próprios direitos, ao abrigo do artigo 8 da ECHR.
Mas, ao contrário, os/as adolescentes podem, eles próprios também, reclamar
direitos consignados na Convenção contra os seus pais. Como teria o caso
corrido à Sr.ª Gillick, se ela tivesse ido ao tribunal após a implementação do
Ato dos Direitos Humanos (1998), em vez de a ele ter recorrido, na altura
em que o fez, em meados dos anos 80, do séc. XX? Algumas destas questões
foram clarificadas quando a Sr.ª Axon adotou uma posição muito semelhante
à de Victoria Gillick, em 2006.
R (Axon) vs. Secretário de Estado para a Saúde e a Associação de
Planeamento Familiar forneceu uma boa oportunidade de mostrar de que
forma os princípios do caso Gillick relativos à inter-relação entre os progenitores e os adolescentes podem ser alinhados com a estrutura da ECHR relativa
aos direitos humanos. A Sr.ª Axon tinha reivindicado que os pais são legalmente responsáveis por todos os aspetos do bem-estar das crianças, incluindo
em assuntos relacionados com a saúde e a sexualidade, e que, se os médicos
mantiverem em secretismo as consultas das crianças, isso enfraquecerá as
220
Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté
capacidades dos pais de as aconselhar e de as ajudar em assuntos sexuais. Ela
também reivindicou que tais direitos e responsabilidades são reforçados pelo
artigo 8 do ECHR.
Segundo Silver J, uma leitura atenta da decisão Gillick refutou todas as
reivindicações da Sr.ª Axon; continuou a ser uma boa lei e não foi afetada pelo
direito da Sr.ª Axon, ao abrigo da ECHR de ver a sua vida familiar respeitada
pelo Estado. A sua convicção de que qualquer direito ou poder parental, ao
abrigo do artigo 8, não é mais abrangente do que aquele delineado pela lei
comum, conduziu à sua tradução da ideia da Câmara dos Comuns de que a
autoridade parental definha à medida que a criança desenvolve as suas competências de tomada de decisão, nas fronteiras do artigo 8.
Para concluir, os direitos parentais da Sr.ª Axon, ao abrigo do artigo 8 da
ECHR, de aconselhar e guiar as suas filhas tinham, portanto, cessado, quando
estas atingiram a competência de Gillick. Esta ideia de os pais simplesmente
perderem os seus direitos ao respeito pela vida familiar, logo que os seus
filhos ganhem suficiente compreensão para serem capazes de alcançar decisões, por elas próprias, não é completamente apoiada pela jurisprudência de
Estrasburgo. A proposta da Câmara dos Lordes, no caso Gillick, de que os pais
percam todos os direitos de influenciar o seu filho ou a sua filha relativamente
a quaisquer decisões tomadas, e que são do domínio da responsabilidade dele
ou dela, não foi recebida com entusiasmo pelos progenitores, ou, de facto, por
uma justiça convencional e paternalista. Pouco tempo decorrido, o Tribunal
de Apelo enfraqueceu a tentativa da Câmara dos Lordes de assegurar que
os pais respeitassem as capacidades dos seus adolescentes para a autonomia.
Em diferentes casos, o sujeito do requerimento estava a resistir a tratamento
médico destinado a salvar-lhe a vida, e em cada um deles, o Tribunal de Apelo
defendeu que, sob a sua inerente jurisdição, um tribunal pode cancelar os
desejos de um jovem paciente e autorizar um tratamento que lhe salve a vida.
Por um lado, o Tribunal de Apelo, na Resolução R (um menor) (custódia:
consentimento de tratamento), autorizou o uso compulsório de drogas anti-psicóticas para tratar um jovem de 15 anos que sofria de um comportamento
crescentemente paranoico e perturbado. Por outro lado, o Tribunal de Apelo,
na Resolução W (um menor) (tratamento médico: jurisdição do tribunal),
autorizou o tratamento compulsório de um jovem de 16 anos de idade, em
estado anorético perigoso.
4. Idades legais limite
A lei reflete um sentimento de grande confusão relativamente ao momento
em que as crianças devem assumir uma responsabilidade plena pelas suas atividades. Várias legislações europeias, como a espanhola, a italiana, a francesa
CAPÍTULO 9: Como as crianças são discriminadas no uso dos seus direitos
221
ou a portuguesa, excluem todas as pessoas com menos de 18 anos de um
estatuto de “emancipação” legal plena. Um leque de desqualificações faz com
que todos os menores, de qualquer idade, incapazes de assinar um contrato
legalmente vinculativo, detenham legalmente uma propriedade, redijam um
testamento ou exerçam o direito de voto. Não obstante, algumas liberdades de
adultos estão disponíveis aos jovens de 16 e 17 anos de idade, deixando aqueles que se situam abaixo dessa faixa etária sujeitos a um muito mais alargado
leque de restrições.
4.1. Abaixo de 16 anos de idade
Para os jovens com menos de 16 anos, uma série de prescrições legislativas
têm, ao longo dos anos, acumulado uma coleção de bizarros limites etários
arbitrários que regulam um leque de atividades, como a compra de um animal de estimação (permitido aos 12 anos) e montar um cavalo sem o uso de
um capacete de segurança (permitido aos 14 anos). Um jovem de 16 anos
pode, inter alia, comprar bilhetes da lotaria e tinta em latas de aerossol, vender sucata e alistar-se nas Forças Armadas. A explicação simples para esta
confusão legislativa é que as idades para a qualificação foram adotadas numa
base had hoc e assistemática.
Especialmente interessantes e com um significado mais prático são as
prescrições da legislação criminal, que determinam as idades dos 16, 15, 14
ou mesmo 13, como a altura em que as crianças podem consentir em manter
relações sexuais. Na Europa, os países em que essa idade de consentimento é
de 16 anos incluem o Chipre, a Finlândia, a Geórgia, a Letónia, a Lituânia, os
Países Baixos, o Reino Unido, a Noruega e a Suíça. Na Áustria, na Alemanha,
em Portugal e em Itália é de 14, e na França, na República Checa, na Dinamarca
e na Grécia, é de 15. A Espanha tem uma das mais baixas idades de consentimento, que podia ser dado aos 13 anos de idade, embora, recentemente, tenha
concordado em subi-la para os 16.
Outro ponto que adquiriu especial importância é a atual legislação sobre
a obrigatoriedade de frequentar a escola a tempo inteiro de todos os jovens
até aos 16 anos. Os que têm menos de 16 anos devem frequentar a escola a
tempo inteiro; e são, deste modo, impedidos de ganhar a sua independência
financeira, através de um trabalho a tempo inteiro.
As regras que atualmente determinam até que ponto os menores podem
assumir um trabalho a tempo parcial são, não apenas extremamente confusas, como também não as protegem adequadamente. As regulações nacionais
têm introduzido leis muito complicadas, limitadoras do trabalho de crianças com menos de 16 anos. Estas, atualmente, diferem consideravelmente;
dependendo da idade concreta de uma criança e do tipo de trabalho que esta
executa. A natureza confusa das prescrições que restringem o número de
222
Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté
horas e os dias da semana em que as crianças com menos de 16 anos podem
trabalhar, permite que elas sejam largamente desprezadas, não apenas pelos
empregadores, como também pelas autoridades locais, que são responsáveis
pela sua implementação.
4.2. Mais de 16 e menos de 18
Este grupo etário é tratado de uma maneira estranhamente ambivalente, em
muitas partes da Europa. Estes jovens enfrentam uma série de barreiras legais
que, inter alia, os excluem de votar, de falar no Parlamento, de cargos de direção numa escola, de adquirir património imobiliário ou de fazer uma doação. Para além disso, aqueles que pensam na possibilidade de sair de casa vão
descobrir no seu caminho várias restrições adicionais à sua independência
financeira. Eles apenas se podem candidatar a um número muito restrito de
benefícios da Segurança Social, e, com as exceções dos contratos para receberem o “indispensável” e os benefícios contratuais do serviço, não podem
efetuar nenhum contrato legalmente vinculativo. Entretanto, certas liberdades importantes ficam à disposição dos jovens de 16 anos. Eles podem exercer o seu consentimento sobre tratamentos cirúrgicos, médicos ou dentários,
contrair matrimónio com o consentimento dos progenitores, alistarem-se
nas Forças Armadas e consentirem em manter relações sexuais, como acima
mencionado.
Não se consegue discernir nenhuma política clara, na lei que atualmente
regula as vidas das pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 18
anos de idade, que procuram trabalho. Em geral, a lei trata-as como adultos, exigindo que paguem contribuições para a Segurança Social nacional e
impostos. No entanto, na maior parte da Europa, por exemplo, tem sido reconhecida a vulnerabilidade deste grupo de jovens trabalhadores, através da
implementação das restrições protetoras do emprego do Conselho da Europa.
Mas foi apenas em 2004, em consequência de críticas internacionais, que o
esquema estatutário do salário mínimo foi alargado aos jovens de 16–17 anos
de idade. O avaro pagamento inicial era oficialmente justificado por mostrar
um equilíbrio entre a necessidade de pôr cobro à exploração e de evitar que os
jovens fossem atraídos para fora de um sistema educacional ou formativo, que
lhes é muito necessário, trocando-o por um emprego mais bem remunerado.
Apesar das contínuas críticas às atuais regulamentações, que as classificam
de discriminatórias, encorajando o uso de trabalhadores mais jovens como
uma força de trabalho barata, não parece vislumbrar-se muito entusiasmo, da
parte das entidades oficiais, para alinhar este estatuto do salário mínimo com
o que se aplica às pessoas com idades compreendidas entre os 18–21 anos de
idade.
CAPÍTULO 9: Como as crianças são discriminadas no uso dos seus direitos
223
4.3. Liberalizar a lei para os maiores de 18 anos?
As atividades não especificamente abrangidas pela legislação são regulamentadas pela decisão da Câmara dos Lordes relativa ao caso Gillick (1986). Os
Lordes rejeitaram a proposta de que a fixação de limites etários podia ser
sempre um método satisfatório de determinar a competência legal de uma
criança. Permitir que qualquer criança seja dotada da capacidade legal para
tomar as suas próprias decisões, “quando alcança uma compreensão e inteligência suficientes para se decidir em assuntos que requerem uma tomada
de posição”, é uma refrescante abordagem liberal. Não obstante, cria uma
camada de incerteza sobreposta a uma lista mal ordenada de limites etários
inflexíveis, abaixo dos quais, as crianças não têm quaisquer capacidades, e
acima dos quais existe uma liberdade total para o desempenho da atividade
em questão.
5. Os papéis ativos das crianças
Na presente secção, gostaríamos de desenvolver, à laia de exemplo, uma situação imaginária, em que crianças requerem que os seus direitos sejam tidos
em conta. Este caso pode ser usado como base de discussão adicional sobre o
papel atualmente desempenhado pelas crianças, nas nossas sociedades. Neste
ponto, é crucial realçar que existe uma distinção entre ser um cidadão e agir
como um cidadão: para ser um cidadão, no sentido legal, significa usufruir
os direitos de cidadania necessários para a ação e para a participação social e
política. Agir como cidadão envolve o cumprimento do potencial pleno concedido por esse estatuto. A legislação atual, tanto nacional, como internacional, apenas foca a sua atenção nas crianças enquanto detentoras de direitos,
mas não dá um passo em frente e cria as condições apropriadas para encorajar
as crianças a agirem como verdadeiros cidadãos. Desta forma, as crianças são
claramente excluídas de todos os processos que envolvem tomadas de decisões que envolvem as suas vidas.
O enredo é situado numa cidade ficcional, chamada Rainbow, uma
pequena cidade centrada nos adultos, onde pessoas mais velhas estão a refletir sobre a construção de um recreio infantil numa antiga pedreira situada
nos arrabaldes da cidade. Para descobrir o que vai acontecer, o leitor deve ler
as páginas seguintes. Depois disso, pode usar as questões colocadas no final
deste documento, para conduzir uma discussão acerca da visão e do tratamento oferecidos às crianças pelas leis.
224
Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté
6. Conclusão
Contrastando as práticas do dia a dia das crianças e suas famílias com os
instrumentos legais, a grande distância entre a forma como as capacidades
das crianças são definidas e abordadas torna-se aparente. É fácil concluir que
nenhum instrumento legal pode ser considerado, do ponto de vista técnico,
fundamentalmente bom para a promoção dos direitos e da cidadania das
crianças. Para fornecer às crianças e jovens mais serviços e mais consistentes,
seria necessário “repensar” a legislação. Os modelos adultos sobre a infância,
as estruturas institucionais e as práticas dos adultos em relação às crianças –
por outras palavras, a forma como as crianças são conceptualizadas, encaradas
e tratadas – são essenciais para se compreender até que ponto a lei encoraja
os adultos a consultar os adolescentes e as crianças mais velhas sobre decisões
relacionadas com o seu presente e com o seu futuro, e o âmbito que lhe é
concedido para tomarem as suas próprias decisões, legalmente vinculativas.
Referências
Alderson, P. (1993) Children’s consent to surgery, Oxford University Press.
Fortin, J. (2009) Children’s rights and the developing law. Cambridge, 2009, Third Edition,
Ed. Cambridge University Press.
Lindley, R. (1989) Teenagers and other children, in Scarre, G. (Ed.) Children, parents and
politics, Cambridge University Press.
Caso de estudo para reflexão
A informação sobre um plano para criar um recreio espalhou-se entre as crianças locais
como um fogo selvagem, e no sábado seguinte uma multidão delas reuniu-se na pedreira.
‘Temos de ter uma reunião como deve ser,’ disse July Mackenzie, quando ela e Ella
chegaram. ‘Precisamos de um porta-voz. Serei eu’.
Todos os que estavam ao alcance da voz acenaram com a cabeça, entusiasticamente;
July, que tinha herdado da sua mãe a capacidade de organização, bem como a sua aparência, era-lhes bem familiar, mais como uma líder, do que como uma seguidora.
Depois, ela desatou a correr em direção a uma grande rocha, situada perto da barraca
dos trabalhadores. ‘Para aqui, todos,’ gritou ela. ‘Muito bem, todos sabem por que estamos aqui. Os adultos decidiram organizar um comité para discutir a melhor forma de
construir aqui um recreio’.
‘Nós não queremos um recreio,’ gritou alguém, enquanto outra voz interrompeu, em
concordância, ‘Nós queremos este sítio tal como está!’. Um rugido de aprovação seguiu-se
a esta segunda afirmação, e July deixou-o crescer antes de levantar a mão para o acalmar.
‘Certo – mão no ar quem quer que o recreio vá em frente. E mão no ar quem não quer,’
continuou ela, quando todas as mãos escolheram a posição que as crianças tomavam.
Desta vez, uma floresta de braços acenou freneticamente no ar.
‘Parece que todos queremos que este sítio fique como está.’
‘Mas quem vai escutar a nossa opinião?’ gritou alguém.
CAPÍTULO 9: Como as crianças são discriminadas no uso dos seus direitos
225
‘Eles têm um comité, por isso nós também vamos ter um comité. Pedimos uma reunião e dizemos-lhes o que queremos’.
‘Eles não nos vão ouvir!’ insistiu a mesma voz, e cabeças acenaram em concordância
por toda a pedreira.
Malcolm, que tinha um fraquinho secreto pela July, tinha estado a beber, observando
como ela se destacava de todos os outros. Ela era tão convincente; então, percebendo que
ele podia tomar parte na discussão, em vez de deixar o trabalho todo para ela, ele sugeriu,
‘Podíamos chegar a um compromisso. Isso significa que poderíamos chegar a um acordo –
ganhando nalguma coisa, e cedendo noutra. Podíamos dizer-lhes que concordamos com
o recreio, mas que tem de ter aquilo que nós queremos, não aquilo que eles querem lá pôr’.
‘Grande ideia!’, a July sorriu para ele, e o seu coração encheu-se de alegria. ‘O Malcolm
tem razão – nós podíamos dizer-lhes que concordamos com a ideia deles, desde que
sejamos nós a escolher o que deve haver no recreio. Assim, é mais provável que eles nos
escutem, e nós teríamos as coisas da forma que queremos. Que pensam disto?’
Fez-se um momento de silêncio, e depois, à medida que as crianças se juntaram à volta
da rocha, elas perceberam que o compromisso podia trazer-lhes benefícios, começaram
a ouvir-se sugestões de todos os lados. ‘Uma parede para escalar – um balancé – coisas
para brincar ao Tarzan – um trampolim – baloiços nas árvores – uma corda para subir!’
De novo, a July teve de levantar a mão para pedir silêncio. ‘Muito bem, já temos um
começo. A próxima coisa que temos de fazer é formar o nosso próprio comité, e depois
ir para casa e pensar sobre as coisas que gostaríamos de ter no nosso recreio. Escrevemos
essas coisas numa folha, e reunimo-nos, aqui, daqui a uma semana. O comité fará uma
lista das vossas exigências e entrega-a ao comité dos adultos. Pode ser?’. Então, quando
as cabeças acenaram que sim, vigorosamente. ‘Agora, temos de nomear o nosso comité’.
‘July como líder,’ gritou o Malcolm, e os outros aplaudiram.
‘Ella, escreve,’ ordenou a July, que tinha equipado a sua irmã mais nova com um bloco
de apontamentos e um lápis, antes de saírem de casa. ‘Eu, como Presidente, e agora precisamos de um secretário e de alguns membros para formar o comité – três devem chegar.
Há alguém com jeito para escrever e que queria ser o nosso secretário?’
‘Por favor!’ acrescentou a Ella.
O John MacDonald levantou a mão. Alguns segundos mais tarde, a July votou no
Gregor para membro do comité, porque tinha sido ele a alertar os outros para o plano de
transformar a sua querida pedreira num recreio oficial. O Malcom voluntariou-se e foi
aceite, e o Peter Hoff ficou como terceiro membro do comité.
‘Portanto, durante a próxima semana, vocês têm de escrever as coisas que querem ter
no nosso novo recreio, e transmitir essa informação aos membros do comité,’ instruiu a
July. ‘Reunir-nos-emos na sexta-feira, de tarde, para estudar as vossas listas, e no sábado,
teremos outra reunião, neste local, antes de irmos falar com os adultos. Teremos que ser
rápidos e teremos que ser firmes. Vocês sabem como os adultos são; se eles descobrem
que estamos a ripostar, eles provavelmente encherão este sítio com baloiços de bebé, e um
pequeno balancé, antes que os possamos impedir!’.
***
‘Tens a certeza?’ Os meus filhos não me disseram nada sobre a criação de um comité!’
‘Eu só sei disto porque a July estava a trabalhar no computador do pai, ontem à noite,
fazendo pesquisas na internet sobre tudo o que podia encontrar sobre equipamentos para
recreios de crianças. Porque não haviam as crianças de ter um comité, Helen? Tu e os
outros criaram um’.
226
Carlos Villagrasa Alcaide, Isaac Ravetllat Ballesté
‘Mas são crianças!’
‘Nunca subestimes as crianças. A minha July é uma rapariga muito inteligente. Ela
organizou os outros para escreverem as suas ideias sobre o que querem para o recreio’,
disse a Ingrid, com orgulho.
‘Portanto, tu deves avisar o Presidente do comité dos adultos, e os outros, de que as
crianças vão em breve marcar uma reunião com eles. Pessoalmente, eu penso que é uma
grande ideia. Por que deviam as crianças aceitar um recreio construído pelos adultos? É
muito melhor dar-lhes o que elas quiserem, desde que seja razoável, e assim todos ficarão
contentes’.
Finalmente, a Helen ficou com a incumbência de informar Glen Smith, o Presidente
do comité de adultos, sobre o comité das crianças para o recreio.
Nessa noite, a Helen encontrou-se com o Glen. Ela falou-lhe na ideia das crianças
sobre o recreio e que tinham decidido que queriam envolver-se no seu planeamento.
O Glen franziu o sobrolho. ‘As crianças querem um lugar no comité?’
‘Não, elas formaram o seu próprio comité e agora estão a reunir ideias sobre o tipo de
recreio que querem’.
‘Estás a brincar comigo!’
‘Não estou, Glen. As crianças estão a levar este assunto muito a sério. Eles querem
uma reunião com o vosso comité antes de ser tomada qualquer decisão.’
‘Vamos lá a ver. As crianças vão querer todo o tipo de coisas especiais, como escorregas na água e por aí adiante. Temos de trabalhar num plano razoável, primeiro, e depois
começar a fazer um orçamento – e temos de submeter uma permissão para esse planeamento. Diz-lhes que elas podem entrar na discussão quando tudo estiver pronto – talvez.’
‘Eu penso que devíamos ouvir as opiniões delas mais cedo, Glen. Elas dizem que se
formos em frente sem falarmos primeiro com elas, não vão querer ter nada a ver com o
novo recreio’.
‘Quem são estas crianças, afinal?’
‘A maior parte das crianças da vila, dos 5 aos quinze anos,’ disse a Helen. ‘Elas não
querem reunir-se todas contigo, claro, apenas as do comité.’
‘Quem faz parte deste autodesignado comité?’
‘A July Mackenzie, o jovem Malcolm, o Gregor e um dos filhos dos McDonald’ replicou a Helen.
‘Muito bem, diz-lhes que teremos uma reunião na próxima sexta-feira. Acho que não
teremos outra oportunidade,’ resmungou o Glen.
O dia chegou. A July informou adequadamente os membros do comité. Eles apresentaram-se, todos elegantemente vestidos, e com o cabelo bem penteado, e apertaram
as mãos aos adultos, com solenidade. A July e o John, o Secretário, ambos traziam consigo pastas, que abriram logo que se instalaram em volta da mesa da sala de reuniões da
Câmara Municipal.
A July espalhou os papéis que tinha trazido sobre a mesa. Eram todas imagens de
equipamentos de recreios infantis, impressos a partir da internet, cada um deles com o
respetivo preço escrita numa letra bem desenhada.
‘Posso começar?’ perguntou ela, e quando o Glen assentiu com um gesto da cabeça,
prosseguiu, com vivacidade, ‘Nós reunimos ideias de todas as crianças da vila que estão
interessadas nesta área do recreio, e também tivemos um encontro com elas para sabermos o que elas queriam que vos disséssemos, esta noite. Portanto, em geral, queremos
a pedreira tal como está. Gostamos da velha barraca e usamo-la como nosso quartel-general. Por isso, seria ótimo se pudesse ser arranjada’.
CAPÍTULO 9: Como as crianças são discriminadas no uso dos seus direitos
227
‘Isso parece razoável, e não deve ser caro,’ concordou a Helen.
‘Foi o que nós pensámos. Como eu disse, gostaríamos da área tal como está, por
isso decidimos, já que estão dispostos a arranjar dinheiro para alguns esquipamentos de
recreio, que estes devem ser todos de madeira, não de plástico colorido. Assim, ajustam-se ao sítio’.
Vocês têm de pensar nos vossos irmãos e irmãs mais pequenas,’ sugeriu a Naomi.
‘Nós compreendemos isso, por isso pensámos que podia haver, digamos, quatro
baloiços para eles, e talvez um pequeno balancé, e uma área fechada onde possam brincar
em segurança. Fizemos um orçamento do seu custo, e não serão tão caros como algumas
das outras coisas na internet.’
Questões para reflexão
•
•
•
•
•
Os representantes das crianças e jovens (p. ex., dos grupos de redes de crianças e/
ou dos grupos de aconselhamento de crianças) estão envolvidos, adequadamente,
na conceção de novos programas (planos, orçamentos, indicadores) e organizações
legais sobre questões que as afetam, no seu país?
O sistema legal está preparado para ceder algum do poder dos adultos às crianças?
Os mecanismos de reclamação e outros mecanismos de responsabilização são acessíveis a crianças e jovens? ou, pelo contrário, elas são excluídas?
As limitações aos direitos das crianças de serem ouvidas, não apenas enquanto um
coletivo, mas também enquanto indivíduos: são uma forma de discriminação?
Que mecanismos poderia conceber para satisfazer a capacidade de as crianças serem
ouvidas, na vossa sociedade?
Leituras adicionais
Archard, D. (1993). Children Rights and childhood. London, Ed. Routledge.
Bonfils, P. & Gouttenoire, A. (2008). Paris, Ed. Dalloz.
Commaille, J. (2004) “L’enfant européen” in Gadbin, D. (dir.): Le statut juridique de
l’enfant dans l’espace européen. Brussels, Ed. Bruyland.
Mnookin, R. (1985). In the interest of children: advocacy, law reform and public policy.
New York, Ed. Freeman.
228
Kairi Talves, Rita Nunes
CAPÍTULO 10:
CIBERBULLYING – AMEAÇA AOS DIREITOS
E AO BEM-ESTAR DAS CRIANÇAS
Kairi Talves, Rita Nunes
Kairi Talves, MA, é Investigadora no Instituto de Estudos Sociais da Universidade de Tartu. A sua investigação foca-se no
comportamento parental e no bem-estar das crianças em
ambientes online e offline. [email protected]
Rita Nunes, MA, é Investigadora no Instituto Intercultural
de Educação e no Departamento de Direito Constitucional
e Administrativo da Freie Universität Berlin. A sua investigação centra-se nos direitos das crianças e Lei Europeia.
[email protected]
1. Introdução
O desenvolvimento de novas tecnologias e a crescente presença das tecnologias nas vidas quotidianas das pessoas iniciaram um debate sobre os riscos das
práticas comunicacionais modernas. Uma atenção considerável está voltada
para os jovens, os pioneiros da idade digital, que têm acesso a todos os tipos
de tecnologias e crescem usando a internet, o que os torna usuários naturais
dos novos média (Selwin, 2003). Ao mesmo tempo, eles são encarados, também, como particularmente vulneráveis a vários riscos que podem surgir na
internet (Livingstone et al, 2014). Um destes novos riscos é o ciberbullying,
que é o foco deste artigo. Mais precisamente, este artigo fornecerá informação
sobre o conceito e a prevalência do ciberbullying, ao descrever o impacto do
fenómeno sobre diferentes aspetos do bem-estar das crianças e a sua conexão
CAPÍTULO 10: Ciberbullying – ameaça aos direitos e ao bem-estar das crianças
229
aos direitos das crianças à não discriminação. Na conclusão do artigo, são
apresentadas medidas preventivas que podem diminuir o ciberbullying e as
suas consequências prejudiciais.
Ao contemplar a ligação entre o uso dos novos média e os direitos das
crianças, é importante mencionar que, nos dias de hoje, a internet, os telemóveis, e outros média digitais, fornecem às crianças muitos resultados positivos,
incluindo benefícios educacionais e sociais, como o acesso ao conhecimento,
à informação, à recreação, à socialização e à inclusão no seio dos seus pares.
Todos eles vão de encontro ao objetivo de participação das crianças no mundo
social e do seu desenvolvimento, como requerido pelo artigo 13 (direito das
crianças e participação, direito de liberdade de expressão) e pelo artigo 17
(direito de acesso à informação e aos média de massas) da Convenção sobre
os Direitos das Crianças das Nações Unidas (daqui em diante, CDC ONU).
Apesar destes inegáveis benefícios, existe uma desvantagem resultante da
presença online dos jovens, quando a internet se transforma num ambiente
de discriminação. O ciberbullying pode incluir a discriminação das crianças
que são percebidas como “diferentes”, como as pertencentes a grupos étnicos
minoritários, as pessoas LGBT, as crianças obesas, ou as crianças com deficiências. De acordo com o relatório do Centro de Investigação Innocenti da
UNICEF (IRC), o ciberbullying é uma das mais graves violações dos direitos
das crianças que ocorre nos ambientes online. Tais violações incluem violência e violação da privacidade e podem ter um impacto importante nas crianças, devido à sua anonimidade, e à sua capacidade para invadir, a qualquer
hora do dia ou da noite, as casas e outros locais seguros em que as crianças se
encontram (UNICEF IRC, 2011).
Apesar de tudo, o livre acesso à internet e os seus potenciais positivos,
assim como a promoção da cidadania e responsabilidade digital, são importantes meios para diminuir a exclusão e a discriminação no mundo atual, em
que a tecnologia desempenha um papel tão significativo. A internet não só
pode, mas deve, ser o lugar onde a discriminação online e o ciberbullying é
reduzido, evitado e minimizado, protegendo as crianças e os jovens de danos,
em conformidade com os artigos 2, 16 e 19 da CDC ONU.
2. As Crianças e os Média
Os média têm um grande impacto no comportamento das crianças, nas nossas sociedades. Os jovens são consumidores ativos de vários tipos de média
(Cooke, 2002; Heim et al, 2007). Estudos revelam que, nos EUA, uma “criança
típica despende mais de 38 horas por semana (quase 5,5 horas por dia) consumindo média, fora do ambiente escolar” (Cooke, 2002). Na Europa, também há uma tendência para um sempre crescente consumo de média. De
230
Kairi Talves, Rita Nunes
acordo com o Eurostat1, o uso da internet, entre os adolescentes, tem crescido extensivamente, em anos recentes: em 2007, 48% dos jovens entre os 16 e
os 24 anos de idade usavam a internet todos os dias; em 2013, o número tinha
atingido os 94% (Eurostat, 2013). A maioria das crianças, na Europa, usa a
internet, em casa ou na escola, um estudo mostra que 87% das crianças usam
a internet, em casa, e 63%, na escola (Livingstone et al, 2011).
Com os novos média, as crianças têm novas formas de comunicar, de fazer
amizades, e de brincar (Bennet, 2008). A crescente tendência de aceder à
internet, em todo o mundo, via dispositivos portáteis, como smartphones e
tablets, aumenta as atividades desempenhadas online, bem como as interações
virtuais das crianças com os seus pares (McKenna & Bargh, 2004).
As crianças e os jovens usam a internet para realizar uma vasto leque de
atividades (jogar, escrever num, transmissão de áudio e vídeo, participação em redes sociais, entre outras) e para construir comunidades na internet (Buckingham, 2006), através do email, das conversas online, e das redes
sociais, como o Facebook, o Ask.fm, o Twitter e o Myspace.
Hoje em dia, as crianças e os jovens usam sobretudo as redes sociais como
instrumento para o cyberbullying. Inquéritos efetuados no Reino Unido
demonstram que o Myspace é o instrumento preferido para o ciberbullying.
Este é seguido pelo Facebook e pelo Twitter. Apesar de tudo, instrumentos
como o Ask.fm, o Tumblr e o Bebo também são palco de ciberbullying. Em
Malta, por exemplo, o Snapchat é um dos principais instrumentos usados
entre as crianças que frequentam a escola. O Snapchat e o Ask.fm fornecem a opção de anonimidade. No entanto, eles envolvem muitos riscos, já
que as perguntas e as fotografias partilhadas nestes instrumentos podem ser
apagados após um curto período de tempo. Por exemplo, o Snapchat é uma
aplicação de mensagens de fotos que os usuários podem utilizar para enviar
fotografias, vídeos, textos e desenhos para uma lista controlada de destinatários, que podem visualizá-los durante um período de apenas 1 a 10 segundos,
sendo, depois, a mensagem e o seu conteúdo apagados. Estes serviços fornecem uma nova dimensão ao efeito de bullying, já que as provas são apagadas
e os efeitos são, até, impossíveis de calcular e medir.
As crianças experienciam muitos aspetos positivos nas suas práticas
comunicacionais online, como encontrar novos amigos, criar bons relacionamentos, e adquirir novos conhecimentos, uma vez que a internet é uma arena
extremamente prolífica em todas estas áreas. Ao mesmo tempo, a comunicação pode terminar em resultados muito negativos, como discriminação,
bullying ou outro tipo de comportamento prejudicial da parte de pares e de
estranhos.
1
Seybert, H. & Reinicke, P. em: Statistics in focus 29/2013, Catalogue number:KS-SF-13029-EN-N.
CAPÍTULO 10: Ciberbullying – ameaça aos direitos e ao bem-estar das crianças
231
3. Definição de ciberbullying e as diferenças para o bullying tradicional
De modo a compreender-se o conceito de ciberbullying, precisamos de compreender a etimologia da palavra. A palavra deriva do conceito de bullying.
Dan Olweus descreveu o bullying2 como um tipo específico de comportamento na adolescência e que ocorre em contextos escolares. O conceito contém três critérios principais: intencionalidade, repetição e desequilíbrio de
poder. Há uma intenção de prejudicar outros através de um abuso de poder
entre um perpetrador mais poderoso e a sua vítima mais fraca, tanto fisicamente, como socialmente. Este abuso pode ser repetitivo e demonstrar e confirmar a posição de poder mais elevada do perpetrador (Kalmus et al, 2014).
O ciberbullying é um género novo de bullying que tem algumas características diferentes das do bullying tradicional (Smith et al, 2008). As definições
do ciberbullying mostram características semelhantes, a que se juntam as das
modalidades tecnológicas. Portanto, as seguintes características do bullying
tradicional permanecem: desequilíbrio do poder, a intenção, e a repetição.
Menesini et al (2012) testaram a forma como os adolescentes analisaram e
entenderam os diferentes critérios do bullying e descobriram que a característica da repetição é abandonada quando os adolescentes avaliam um cenário
como sendo de ciberbullying. No entanto, três critérios adicionais são identificados no contexto do ciberbullying: a anonimidade, a publicidade, e a velocidade. Tanto as características tradicionais do bullying como a lista mais extensiva de critérios do ciberbullying são descritas abaixo.
A primeira característica tradicional do bullying, que também se aplica ao
ciberbullying é o desequilíbrio de poder. O desequilíbrio de poder baseia-se
nos micro-processos de ação e reação. Se o bully ataca e a vítima fica perturbada, e não sabe defender-se, um desequilíbrio de poder – por definição um
ataque de bullying – é criado no seio da díade. A segunda dimensão, a intencionalidade, demonstra que o perpetrador tem de ter a intenção de causar
dano. Há um comportamento agressivo relacionado com esta característica.
A terceira característica tradicional do bullying, a repetição, não será utilizada
no ciberbullying, uma vez que os adolescentes não a consideram importante
na sua análise do ciberbullying.
A primeira característica adicional do ciberbullying é a anonimidade. De
acordo com vários autores (Kalmus et al, 2014; O’Brien & Moles, 2010), o
ciberbullying permanece mais anónimo do que o bullying tradicional. A anonimidade permite que as crianças e jovens que não se envolveriam em práticas de bullying na escola ou em outros contextos as pratiquem online, porque
não têm receios de sofrerem represálias. Como o ciberbullying é mais secreto
do que o bullying tradicional, os perpetradores não estão sempre conscientes
dos efeitos imediatos que o seu comportamento exerce sobre a vítima. Como
2
O conceito de bullying foi desenvolvido na década de 1980.
232
Kairi Talves, Rita Nunes
resultado, os ciberbullies podem experienciar menos empatia e entender os
seus atos como menos danosos do que aqueles que exercem bullying no sentido tradicional.
A segunda característica adicional do ciberbullying é a publicidade. A
publicidade relaciona-se com o facto de o material usado no ciberbullying ser
facilmente acessível a uma audiência potencialmente muito vasta (Menesini
et al, 2012). O fluxo de informação é muito intenso, nos dias de hoje, e os
comentários e os vídeos podem ser acedidos em todo o mundo, num espaço
de tempo muito curto. O ciberbullying pode, literalmente, espalhar-se através
de muitas das aplicações que as crianças usam e, em consequência, alcança,
potencialmente, uma grande audiência num curto período de tempo. A publicidade, tipicamente, envolve instrumentos de comunicação básicos, como os
emails, as salas de chat, as mensagens instantâneas, os sítios das redes sociais
e os fóruns de discussão; no entanto, os jogos online, os blogues e os sítios da
web de partilha de vídeos também são, com frequência, usados.
Esta característica está muito relacionada com a rapidez. O facto de o
material online chegar rapidamente ao espaço cibernético significa que um
infinito número de adeptos pode juntar-se ao bullying. Muitos destes adeptos
não se envolveriam, normalmente, em abusos face a face, e podem não compreender o impacto que o ciberbullying pode ter na vítima, enquanto os bullies
se escondem atrás do ecrã dos seus computadores. Mesmo que o ciberbullying
seja considerado como um vasto conjunto de fenómenos que se aplicam a
diferentes grupos de alvos, a maioria das crianças que pratica ciberbullying
são conhecidos entre os seus pares, e não estranhos. Neste artigo, considera-se que o ciberbullying tem lugar, sobretudo, entre crianças ou jovens que mais
ou menos se conhecem. Os métodos do ciberbullying estão a desenvolver-se
rapidamente, acompanhando a rapidez do desenvolvimento da internet e dos
dispositivos móveis. Kowalski et al (2008) designaram as formas mais frequentes de ciberbullying como: Flaming3, Assediar4, Perseguir5, Denegrir6.
Personificar7 e Excluir ou Ostracizar8.
3
Flaming é uma troca de palavrões que progride durante um pequeno período de tempo e
entre pelo menos dois comunicadores.
4
Assediar é semelhante a flaming, mas é constituído por atos realizados por um só dos
intervenientes, com uma tendência para ser persistente no tempo ou recorrente.
5
Perseguir é parecido com assediar, com a principal diferença de ocorrer durante um período de tempo relativamente mais longo; neste caso, um perpetrador está a tentar evocar na
sua vítima sentimentos negativos de estar a ser perseguida.
6
Denegrir consiste em espalhar informação falsa ou em postar imagens editadas na internet,
frequentemente contendo conteúdo humilhante. Inclui, também, postar informação, imagens,
ou vídeos verdadeiros, que os seus possuidores pretendiam manter secretos e escondidos.
7
Personificar é roubar a identidade online de alguém. Os piratas informáticos acedem à
conta pessoal, em alguma aplicação, e usam-na para propósitos antissociais, e.g., para enviar
mensagens falsas ou indecentes aos amigos da vítima.
8
Excluir inclui a proibição de acesso a certos grupos online.
CAPÍTULO 10: Ciberbullying – ameaça aos direitos e ao bem-estar das crianças
233
É também de referir que existem tipos de ciberbullying que são percecionados pelos jovens vítimas de bullying, como menos prejudiciais, como os insultos e ameaças, enquanto outras formas são consideradas mais prejudiciais,
especialmente aquelas em que são usadas imagens ou vídeos, e quando existe
uma perceção de elevado risco de danos pessoais, e.g. em atos de chantagem.
As perceções podem diferir entre países, o que indica que o impacto do ciberbullying pode depender da importância cultural atribuída aos relacionamentos sociais estabelecidos no espaço cibernético.
4. Estudos sobre a prevalência do ciberbullying na Europa
4.a. Vítimas vs. Perpetradores
Os estudos sobre o ciberbullying estão a usar, sobretudo, as vítimas enquanto
fonte de informação e os autorrelatos como recursos cruciais de recolha de
dados. Os testemunhos das vítimas são importantes para esclarecer as experiências subjetivas do ciberbullying. Para além disso, de modo a compreender
melhor os motivos por detrás do ciberbullying, as perceções e as ações dos perpetradores também devem ser tidas em conta. Outra razão pela qual os estudos
necessitam de ter como alvo de atenção as perspetivas das próprias crianças é
a natureza do ciberbullying, a sua forte conexão com as tecnologias, e as suas
rápidas mudanças. Para se compreender os tipos específicos de tecnologias e de
contextos online, é importante prestar atenção aos pontos de vista das crianças
sobre as tecnologias em mudança e a popularidade variável de tecnologias de
comunicação específicas, enquanto contextos de incidentes de bullying.
Apesar do crescente uso dos telemóveis e da internet entre a nova geração,
o número de crianças vítimas de ciberbullying não é particularmente elevado
na Europa. De acordo com os dados de um inquérito efectuado pela EU Kids
Online9, 6% das crianças com idades entre os 9 e os 16 anos de idade, em 25
países europeus, foram vistos a enviar mensagens online indecentes ou prejudiciais. Estes mesmos dados explicam que apenas 3% tenham enviado mensagens deste teor a outros. Porém, mais de metade daqueles que receberam
mensagens de bullying ficaram bastante, ou muito, perturbados. No entanto,
parece que mais bullying ainda ocorre offline do que online.10 As diferentes
formas de ciberbulying não apenas tendem a combinar-se umas com as outras,
como, mais importante ainda, tendem a combinar-se com formas tradicionais
de bullying. Metade (56%) dos bullies online disseram que também tinham
realizado bullying face a face, e metade (55%) das vítimas online responderam
9
Mais informação acerca do projeto EU Kids Online pode ser encontrada em www.eukidsonline.net.
10
19% foram vítimas de bullying tanto online como offline (em comparação com 6% online),
e 12% realizaram bullying com outros online ou offline (vs. 3% online).
234
Kairi Talves, Rita Nunes
que também tinham sido alvo de bullying face a face. O bullying migra de
online para offline, e vice-versa, criando às vítimas dificuldades para escaparem ao bullying (Livingstone et al, 2011).
Os países europeus diferem bastante no que diz respeito à prevalência do
ciberbullying, assim como do bullying offline. Elevados níveis de bullying online
e offline frequentemente ocorrem em simultâneo. Isto sugere que com um
mais elevado nível de utilização da internet, a quantidade de bullying aumenta
e os perpetradores são capazes de atingir as suas vítimas através de diversos meios. Elevadas taxas de ciberbullying ocorrem em países onde a internet é usada de forma mais extensiva.11 Em alguns países, também existem
elevadas taxas de bullying tradicional.12 No polo oposto, países com um uso
menor da internet tendem a mostrar taxas menos elevadas de ciberbullying13
(Livingstone et al, 2011). Uma das explicações para estas correlações é a de
que as crianças, nos países com taxas mais elevadas de (ciber)bullying podem
estar mais consciencializadas acerca do bullying e, deste modo, estarão mais
propensas a reconhecerem, interpretarem e identificarem os atos de bullying.
Dependendo do país, as crianças atribuem diferentes significados, bem como
diferentes aceitações sociais, a atos prejudiciais de que tenham sido vítimas.
A segunda explicação que é sugerida para justificar esta correlação é a de
que há diferenças, não apenas de sensibilidade para percecionar o bullying,
mas também a própria natureza do bullying. Estas diferenças poderiam estar
relacionadas com os relacionamentos subjacentes estabelecidos nos ambientes escolares, em iniciativas educacionais específicas ou ao contexto e clima
social de cada país (Ortega et al, 2012).
No entanto, também existe um terceiro grupo de países onde o uso da
internet é muito elevado, mas onde o número de casos de bullying é bastante
baixo, e.g., nos Países Baixos, na Dinamarca, e na Eslovénia (Livingstone et
al, 2011), o que confirma que o elevado uso da internet não está diretamente
correlacionado com elevadas taxas de bullying.
Estes dados provam que a correlação acima mencionada pode depender
de outros aspetos, nomeadamente os aspetos do bullying offline. Gostaríamos
de realçar, aqui, que a análise do ciberbullying não deve centrar-se apenas nas
vítimas. Nem todas as crianças e jovens envolvidos em bullying são vítimas,
alguns são bullies, alguns são ativos e envolvidos espectadores e alguns não
estão envolvidos. Um estudo recente desenvolvido na Finlândia (Lindfors et
11
Na Estónia, 14% das crianças com idade compreendidas entre os 9 e os 16 anos de idade
foram vítimas de bullying, na Roménia, 13%, na Dinamarca, 12%, e na Suécia, 11%.
12
A percentagem de crianças que foram vítimas de bullying, tanto online, como offline, alcança, na Estónia, os 43%, na Roménia, os 41%, na Dinamarca, os 25%, e na Suécia, os 28%.
13
Por exemplo, 2% das crianças, em Itália, relatam atos de ciberbullying. Compare-se com
números de outros países: Portugal, 2%, Turquia, 3%, Grécia, 4%, Espanha, 4%. Correlativamente, também há taxas menos elevadas de bullying tradicional: Itália, 11%, Portugal, 9%,
Turquia, 11%, Espanha, 16%.
CAPÍTULO 10: Ciberbullying – ameaça aos direitos e ao bem-estar das crianças
235
al, 2012) mostra diferenças claras entre estar envolvido em ciberbullying e ter
a perceção de que é um problema grave. De acordo com este estudo, entre os
adolescentes finlandeses, com idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos,
a prevalência das vítimas de ciberbullying é de 11%, e apenas 2% deles tendem
a pensar que se trata de um problema grave e muito perturbador. O estudo
de Lindfors et al realça a necessidade de prestar mais atenção aos espectadores do ciberbullying.14 Lindfors et al (2012) revelam que testemunhar ciberbullying é a dimensão mais prevalente do ciberbullying e indicaram que um
adolescente pode estar exposto ao ciberbullying de várias formas.15
4.b. Bullying Online e tradicional
Geralmente, as crianças que são vítimas de bullying e/ou exercem bullying
sobre outros online “têm perfis demográficos e psicológicos similares aos
daquelas que são vítimas de bullying e/ou exercem bullying offline”16, exceto
no facto de que elas usam as possibilidades oferecidas pela internet. Os bullies
online apresentam uma maior probabilidade de usarem a internet, têm mais
confiança nas suas competências online, envolvem-se em atividades online de
risco e possuem uma ‘personalidade online’17.
Ortega et al (2012) compararam as vítimas do bullying tradicional e as do
ciberbullying e descobriram que as respostas emocionais ao bullying estão ligadas ao tipo de bullying de que foram vítimas. Em todos os tipos de bullying, a
resposta emocional mais comumente relatada é a raiva. Curiosamente, a proporção de vítimas que relatam emoções negativas, no ciberbullying, foi mais
baixa do que no bullying tradicional. Estas diferenças podem estar relacionadas com as características destes dois tipos de bullying. Alguns estudantes
parecem encarar o ciberbullying como (sobretudo) uma forma menos grave
de bullying, porque não é “real” e pode ser ignorada, de uma forma que o
bullying face a face não pode ser ignorado. Há, ainda, outras possibilidades,
por isso as diferenças encontradas podem estar relacionadas com a presença
ou com a ausência de contacto face a face: com o contacto face a face, as
vítimas obtêm mais informação emocional sobre os seus agressores, o que
permite que seja mais fácil compreender as suas intenções, e isso pode afetar
a resposta emocional. Os autores sugerem que a atual categorização, bullying
tradicional vs ciberbullying, pode ser insuficiente para capturar as complexidades destes fenómenos. Alguns tipos específicos de ciberbullying podem ser
mais semelhantes a alguns tipos específicos de bullying tradicional.
14
De acordo com o estudo, 13% das crianças explicaram que tinham testemunhado atos de
bullying de que foram vítimas amigos seus.
15
O estudo de Lindfors, Riittakerttu Kaltiala-Heino, e Arja H Rimpelä referindo-se ao Ciberbullying entre os Adolescentes Finlandeses.
16
Inquérito EU Kids Online ISSN 2045-256X.
17
Por outras palavras, elas sentem-se mais à vontade online do que offline.
236
Kairi Talves, Rita Nunes
Em suma, estes resultados sugerem que os bullies online podem ser diferenciados dos bullies tradicionais devido aos seus comportamentos e atitudes
associados à internet, bem como à sua composição por género, em vez de
com base nos seus comportamentos offline. Os bullies online e as vítimas do
bullying online são, também, mais vulneráveis offline. Isto é apoiado por estudos anteriores que indicam que aquelas crianças que são bullies online e que
as vítimas do bullying online já enfrentam problemas offline, e necessitam não
só de apoio nas suas vidas offline, como também nas suas vidas online. Nelas
se incluem crianças que são psicologicamente vulneráveis, socialmente excluídas, tendem a envolver-se em comportamentos problemáticos de procura de
sensações fortes ou que são membros, de uma forma ou de outra, de grupos
vulneráveis (Hasebrink et al, 2011).
6. Ciberbullying e o seu impacto no bem-estar e nos direitos
das crianças
Ser vítima de bullying tem um impacto direto no bem-estar das crianças, tanto
no sentido de um efeito direto e imediato, como numa influência de longo
prazo que pode não ser percebida à primeira vista. O índice de Bem-Estar
das Crianças da UNICEF categoriza 40 indicadores que são relevantes para as
vidas das crianças e para os direitos das crianças em seis subtítulos ou dimensões18 (UNICEF, 2007). Para além disso, para avaliar as dimensões múltiplas do bem-estar individual, a influência do ambiente social na qualidade de
vida tem de ser tida em conta. Conceptualizada como a ‘vivenciabilidade das
sociedades’, por Veenhoven (1996), esta dimensão pode ser designada como
medida de bem-estar19. Se considerarmos o contexto do bem-estar das crianças relacionado com a internet, o aspeto social pode ser compreendido em
termos de recursos e barreiras sociais, que permitem e apoiam, ou inibem as
crianças de usar a internet para satisfazer as suas necessidades e capacidades
(Kalmus et al, 2014: 3).
Com base nas categorizações do bem-estar individual e das influências do
ambiente social para descrever o bem-estar das crianças, Kalmus et al (2014)
combinaram-nas e relacionaram-nas com a internet. Os autores distinguiram entre seis componentes principais que são relevantes na investigação e
nas políticas dirigidas ao uso da internet pelas crianças: a material, a física, a
psicológica, a social, a desenvolvimental, e a do bem-estar social (Kalmus et
al, 2014). O impacto no bem-estar das crianças pode influenciar todos estes
18
Estes são: o bem-estar material; a saúde e segurança; a educação; as relações entre pares e
familiares; os comportamentos e riscos; e o sentimento subjetivo de bem-estar das crianças e
jovens.
19
Que faz uma avaliação das oportunidades oferecidas por uma sociedade para as pessoas
desfrutarem de uma elevada qualidade de vida.
CAPÍTULO 10: Ciberbullying – ameaça aos direitos e ao bem-estar das crianças
237
componentes, sendo o bem-estar psicológico e, mais especificamente, o sofrimento emocional da vítima, um dos problemas mais graves. O sofrimento
emocional pode conduzir a resultados mais graves, como baixa autoestima,
depressão ou pensamentos ou tentativas de suicídio. Os estudos mostram que
a ansiedade, a depressão e uma baixa autoestima são, tanto vaticinadores,
como consequência, de se ser sistematicamente atacado20. Análises relativas
ao papel das características psicológicas sugerem que as dificuldades psicológicas estão associadas, tanto com bullying online e vitimização, procura de
sensações fortes e ostracismo com vitimização. As crianças e jovens envolvidos em bullying online mostram uma mais elevada vulnerabilidade psicológica do que aqueles que não se envolvem neste tipo de bullying. Outros
componentes, como o bem-estar social, podem igualmente ser influenciados
pelo ciberbullying, quando as crianças e jovens se deparam com danos sociais
(perda de amigos, exclusão social, solidão, etc.).21
O ciberbullying afeta especialmente as crianças pertencentes a um grupo
vulnerável, como explicado acima. O direito à não discriminação que afeta as
crianças vítimas de ciberbullying é, igualmente, proeminente online. Relatórios
sobre as crianças com deficiências vítimas de ciberbullying mostram que esta
se tornou uma fonte de violação dos direitos das crianças22. Outras crianças
tornam-se um alvo de bullying, devido à cor da pele, à religião, à raça23, à
orientação sexual24, e às capacidades físicas, entre outros fatores. A discriminação de crianças que se encontram em situações vulneráveis não ocorre,
apenas, offline, já que o ciberbullying tem, também, um efeito negativo no
bem-estar das crianças.
7. Medidas para reduzir o ciberbullying – ajudar as crianças a ganhar
resiliência
A teoria transacional do stresse e do coping (Lazarus e Folkman, 1984) propõe
que a forma de uma pessoa lidar com um situação stressante, como o bullying,
não depende exclusivamente do acontecimento em si mesmo, mas da forma
20
De acordo com o inquérito anual Cyberbullying 2013, conduzido no Reino Unido, 7 em
cada 10 jovens são vítimas de ciberbullying, o que tem um efeito negativo na autoestima e nas
vidas sociais dos jovens.
21
Os danos associados às experiências negativas online difere na gravidade e na longevidade –
de consequências imediatas ou de curto prazo a efeitos mais prolongados ou, mesmo, efeitos
que duram a vida toda (Livingstone, 2013).
22
O Annual Cyberbullying Survey 2013, no Reino Unido, contou com a contribuição de
uma menina que relatou que: “ ela foi tombada da sua cadeira de rodas e todos estavam a rir-se
e a tirar fotografias dela”.
23
http://www.publico.es/actualidad/531035/agresion-racista-en-el-metro-de-barcelona.
24
http://www.telegraph.co.uk/news/uknews/1575145/Bullies-blamed-for-death-of-secondpupil-at-school.html.
238
Kairi Talves, Rita Nunes
como o indivíduo o avalia. O mesmo acontecimento pode conduzir a reações
diferentes, por parte de pessoas diferentes (Ortega et al, 2012). As variáveis
pessoais são importantes para se compreender por que razão vítimas diferentes mostram um impacto emocional diferente, e quais as estratégias que usam
para lidar com esse acontecimento. Estudos demonstraram que a ciber-vitimização tem resultados negativos: no desempenho académico (Katzer et al,
2009); problemas psicossociais, como depressão, ansiedade social, sentimentos de impotência e baixos níveis de autoestima (Raskauskas e Stolz, 2007).
De forma a lidar com o ciberbullyung, as crianças usam diferentes
estratégias:
1. ‘Fatalística’ ou ‘Passiva’: as crianças lidam com o ciberbullying mostrando indiferença, acreditam que serem incomodadas ou prejudicadas é, apenas, uma situação temporária, e que não lhes causará danos
substanciais ou de longo termo. As crianças aceitam que, por vezes, se
deparam com algo desagradável, mas que é somente temporário.
2. ‘Comunicativa’: As crianças decidem deixar de usar a internet, durante
algum tempo. Isto pode ser interpretado como uma forma de, simplesmente, evitarem o problema, sem eliminar a sua causa real.
3. ‘Proactiva’: As crianças tentam resolver o problema, apagando as mensagens desagradáveis, ou bloqueando os remetentes/perpetradores.
A última estratégia de coping, (de acordo com a literatura sobre resiliência) é
considerada a melhor forma de adaptação à adversidade, porque tem como
objetivo reduzir ou eliminar mais danos no futuro. A maior parte das crianças usam estratégias comunicativas, se foram vítimas de bullying online25.
Geralmente, a tendência das crianças para tentarem resolver o problema, de
forma proactiva, aumenta, quando sentem que estão a deparar-se com mais
insensibilidade. Um estudo conduzido por Hasebrink et al (2011) demonstra
que muitas das crianças se tornam vítimas de bullying como uma forma de
vingança. 32% das crianças e jovens tornam-se bullies depois de terem sido
vítimas de bullying.
Como resultado de uma crescente interação entre as crianças – usando as
novas tecnologias, em rápida mudança, em conjunto com uma falta de consciencialização e de compreensão por parte dos adultos, uma ansiedade social
está em crescendo – bem como o sensacionalismo, os mitos, e as respostas
políticas inapropriadas. Para evitar tais problemas, é necessário realizar uma
vasta avaliação do risco na infância, assim como analisar as contingências
que medeiam a relação entre o risco e o dano, quando se faz uma avaliação de
como, quando e porquê, algumas crianças são vulneráveis aos riscos online e
25
Os estudos mostram que 77% das crianças que tentam falar com alguém sobre o facto de
estarem a ser vítimas de bullying e que 36% delas tentaram resolver o problema.
CAPÍTULO 10: Ciberbullying – ameaça aos direitos e ao bem-estar das crianças
239
o que pode ser feito para minimizar os riscos e, também, os danos, com que
se deparam online.
Para minimizar os riscos, as opiniões (art. 12 ONU CDC) e experiências das crianças devem ser escutadas e reconhecidas. Os debates de política pública, relativos ao bem-estar das crianças, aos seus melhores interesses,
deverão ser promovidos, e os direitos das crianças deverão ser considerados,
tendo em conta as próprias opiniões das crianças. As crianças e os jovens são,
muitas vezes, os melhores peritos, no que respeita aos seus próprios média e
ao uso da tecnologia (UNICEF ICR, 2011). Considerando o bullying e a sua
relação, tanto com os mundos sociais online e offline, deve tornar-se explícito
que o risco pode existir em ambos. Ao passo que a internet tem acrescentado
novas fontes de risco, a história do dano é tão antiga como a própria infância.
Uma vez que o online e o offline se encontram estreitamente conectados, isto
também influencia as conexões mútuas e interseccionais entre risco e dano
(Livingstone, 2013).
A proteção das crianças das ofensas online não é tão simples como se pode
pensar, já que é necessário encontrar um equilíbrio entre o direito à proteção de todas as formas de violência e o direito à informação, à liberdade de
expressão e de associação, à privacidade e à não discriminação26. Este equilíbrio deve ancorar-se nos melhores interesses das crianças, enquanto fator
primário de consideração, no seu direito de serem escutadas e levadas a sério,
e no reconhecimento das capacidades evolutivas das crianças e jovens. É provavelmente impossível remover todos os riscos com que as crianças jovens se
deparam nos ambientes online27.
As medidas para combater o ciberullying incluem medidas para evitar
os comportamentos de bullying e medidas para dar poder às crianças, ensinando-as as técnicas de resiliência28. O ciberbullying inclui os elementos do
bullying face a face tradicional, o que significa que as crianças necessitam de
obter conhecimentos gerais sobre comportamentos anti-bullying29.
De acordo com o art.º 2.º da ONU CDC, o direito das crianças à não discriminação é um princípio central, que protege as crianças, independentemente
26
O Innocenti Research Centre (IRC), da UNICEF, elabora relatórios acerca da segurança
online das crianças.
27
Para além disso, a partir de um certo ponto, tentar fazê-lo pode ameaçar a própria essência
da internet e os seus múltiplos benefícios, incluindo a outorga de poder e de participação que
a internet tem para oferecer (UNICEF IRC 2011).
28
Por exemplo, que tipo de medidas serão tomadas para parar o perpetrador, como apoiar
as crianças, se alguma coisa as incomoda na internet, como prevenir o bullying, etc. É, igualmente, importante, que tenhamos em conta os espectadores, que sejam informados sobre
discriminação e bullying e tomem posição contra este tipo de atividades perpétuas.
29
Por exemplo, reconhecendo o direito de todos a um tratamento com respeito e a sentiremse em segurança, na escola e na comunidade, não pactuando com o bullying ou o assédio,
relatando tais situações, se foram testemunhas de bullying.
240
Kairi Talves, Rita Nunes
da sua raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social, propriedade, deficiências, nascimento ou outro estatuto.
Como referimos acima, grande parte do bullying concentra-se na violação
destes direitos e forma-se com base na discriminação.
Os pais e outros adultos, mas também os investigadores que têm lidado com
este tópico, devem ter em mente que as crianças experienciam o ciberbullying
de formas muito diferentes. Embora muitos jovens pensem que o ciberbullying
causa danos e é, possivelmente, ainda mais prejudicial do que o tradicional
bullying face a face, um número substancial deles pensam que é menos prejudicial. Nem todas as crianças e jovens se preocupam com o ciberbullying, mesmo
que já tenham sido vítimas de bullying, e muitos deles se referem à resiliência e
a um leque de estratégias de coping (O’Brien & Moles, 2010).
Finalmente, é necessária mais investigação para se compreender o que faz
com que alguns jovens sejam mais resilientes do que outros, e que características específicas tornam algumas crianças emocionalmente mais afetadas
do que outras. É importante e crucial escutar a opinião das crianças sobre o
ciberbullying e dar-lhes o poder de usar estratégias de coping, para ultrapassarem a discriminação online. Esta discussão é parte de uma grande mudança
dos discursos tecnologicamente deterministas (daquilo que a internet “faz” às
crianças), em favor do reconhecimento, igualmente, da criança como agente
(Livingstone et al, 2014).
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Acedido em 5 de Maio de 2014.
242
Kairi Talves, Rita Nunes
Questões para reflexão
•
•
•
•
•
Por que razão os riscos da internet, incluindo o ciberbullying, são tratados como uma
violação do direito das crianças a serem protegidas?
De que forma difere o ciberbullying do bullying tradicional (offline)? Em que aspetos são diferentes ou similares? Discute estes aspetos de acordo com a perspetiva do
direito das crianças à não discriminação.
Quais são as principais consequências do ciberbullying no bem-estar das crianças?
Descreve de que maneiras o ciberbulyying afeta o bem-estar psicológico, social e emocional das crianças.
Qual é a diferença entre riscos e dano, com que as crianças se deparam online? De que
forma está a diferença entre riscos e dano relacionada com os direitos das crianças, e
com estas como agentes? Por que razão a elaboração de políticas com base nas evidências deve ter em consideração a voz das crianças?
O que podem os pais/mães, professores, políticos, etc., fazer para reduzir os riscos e o
dano induzidos pelo ciberbullying?
Leituras adicionais
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ac.uk/39601/.
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Research Centre, UNICEF, http://www.unicef-irc.org/publications/pdf/ict_eng.pdf.
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação 243
CAPÍTULO 11:
MONITORIZAÇÃO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO
NA EDUCAÇÃO
Nevena Vučković Šahović
Nevena Vučković Šahović, Doutorada, é Professora na Faculdade de Direito da Universidade UNION, em Belgrado, na Sérvia; ensina Direito Internacional Público com especial atenção
para as Organizações Internacionais e Direito da Família, em
especial direitos da Criança; Coordenadora do Mestrado sobre
os Direitos da Criança. [email protected]
1. Introdução
O direito à educação é uma pré-condição para o desenvolvimento de um
indivíduo, bem como de uma sociedade. A Convenção dos Direitos sobre a
Criança (daqui para a frente, designada de: CDC ou a Convenção), no artigo
28, parágrafo 1, declara que o direito à educação se baseia na «igualdade de
oportunidades», e que os Estados-Membros da CDC (daqui para a frente,
designados de: Os Estados ou Países-Membros) são obrigados a «Tornar o
ensino primário obrigatório e gratuito para todos». Tal formulação realça o
valor básico do artigo 2 da CDC sobre a não discriminação. As raparigas,
as crianças refugiadas, as populações indígenas, as crianças pertencentes a
minorias étnicas, as crianças com deficiências, as crianças afetadas por conflitos armados e por desastres naturais, as crianças em conflito com a lei, todas
estão em risco de ter um acesso limitado, ou nenhum acesso, à educação,
assim como a não ter igualdade de oportunidades no que respeita à qualidade
da sua educação.
A questão principal é a forma de sabermos se os direitos da criança são
respeitados e usufruídos, num determinado país ou ambiente. Portanto,
este capítulo oferece informação, exercícios e exemplos aos estudantes1
para que estes possam praticar e obter as competências básicas para fazer
a monitorização e a avaliação dos direitos da criança, neste caso, relati1
Os estudantes do Ensino Secundário e do Ensino Superior são o alvo deste capítulo. O
uso da palavra “estudantes”, na parte dos exercícios deste capítulo, refere-se às crianças que
frequentam a Educação do Ensino Básico e Secundário.
244
Nevena Vučković Šahović
vamente à não discriminação na educação, e, subsequentemente, aplicar
o método para monitorizar qualquer outro direito.2
Este capítulo oferece um guia muito simples e básico, com um resultado
duplo: através do desenvolvimento dos instrumentos de monitorização, os
estudantes ficam estreitamente familiarizados com os direitos nacionais e
internacionais da criança, que se focam em áreas específicas, e também obtêm
competências para avaliarem o exercício de direitos.
Este capítulo é, igualmente, dirigido aos professores de direitos humanos/
da criança, que pretendam introduzir este tipo de exercício aos seus estudantes. Para além do mais, é um instrumento para os profissionais dos direitos da
criança, que podem considerar útil tentar aplicar e desenvolver instrumentos
simples que lhes permitam monitorizar os direitos da criança.
Qualquer tentativa de desenvolver instrumentos de monitorização, na
área específica dos direitos da criança, exige: conhecimentos sobre o tópico,
incluindo conhecimentos dos padrões legais, bem como algumas capacidades
básicas para usar métodos e instrumentos de investigação. Antes de embarcarem no desenvolvimento de indicadores, os estudantes e investigadores
devem identificar uma área dos direitos da criança que queiram monitorizar,
e com a qual se queiram familiarizar, e identificar os padrões legais relevantes,
após o que devem proceder ao desenvolvimento de uma lista de possíveis indicadores que os auxiliem a analisar o real exercício dos direitos.
A escolha do tópico para este capítulo exige uma perceção do que é o
direito da criança à não discriminação, bem como dos direitos da criança
no sistema educacional, e a análise da inter-relação entre os dois. Além
disso, requer um conhecimento geral dos direitos da criança, em particular da CDC, assim como dos documentos adotados pelo órgão de monitorização da CDC – o Comité dos Direitos da Criança (o Comité da CDC).
Tais documentos, adotados pelo Comité da CDC são Comentários Gerais,
Observações Conclusivas ou Recomendações. Todos eles são documentos
centrais que os estudantes e os investigadores devem usar para estabelecerem padrões e indicadores de desenvolvimento. Para além do conhecimento
dos documentos legais, os estudantes devem, igualmente, estar familiarizados
com os instrumentos básicos de monitorização. Por isso, este capítulo também explica o que é a monitorização dos direitos da criança, por que razão é
necessária, e de que forma deve ser conduzida, p. ex., através da identificação
de padrões e do desenvolvimento dos respetivos indicadores específicos.
2
O modelo oferecido, neste capítulo, é apenas um exemplo. Baseia-se num dos grupos do
projeto de 2013, “Índice dos Direitos da Criança na Educação”, desenvolvido na Sérvia por
Uzice.
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação
245
Os indicadores sobre a não discriminação na educação têm o propósito
de verificar de que modo cada criança usufrui do direito à proteção contra
a discriminação, num determinado ambiente, como nas escolas. Assim, os
indicadores devem ser desenvolvidos com base nos padrões legais internacionais, avaliando as leis e os dados nacionais. Nenhum conjunto “internacional”
de indicadores é adequado a todas as situações, por isso estes indicadores
devem ser, também, específicos para cada país e, mesmo, para cada ambiente
específico. Em muitos Estados verifica-se a inexistência de dados, regularmente coligidos e analisados, sobre o número de crianças ou as circunstâncias
em que estas não estão a usufruir do direito à educação, o que torna difícil,
para os Governos e outras entidades, monitorizarem o progresso efetuado na
prevenção da discriminação, promoverem um acesso igual à educação e assegurarem a implementação de uma educação apropriada a todas as crianças. A
falta destes dados torna, igualmente, difícil, ou mesmo impossível, comparar
a situação do direito das crianças à educação de país para país, e de região
para região. Ainda assim, é possível desenvolver uma lista simples de indicadores sobre a não discriminação na educação, e com ou sem dados recolhidos
pelos Governos, ela é um instrumento útil. A lista proposta neste capítulo tem
como alvo as escolas: pode ser facilmente testada em qualquer escola: os estudantes são aconselhados a tentar estabelecer contacto com uma escola, de modo
a avaliarem a utilidade desta, ou de outra, lista de indicadores, que ela desenvolve sobre a não discriminação na educação.
2. Direito à não discriminação (CDC, artigo 2)
A questão da não discriminação da criança e da própria infância é, até
certo ponto, abordada no preâmbulo à Convenção. No primeiro parágrafo
da Convenção, os Países-Membros notam que… “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos
iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz
no mundo.” O terceiro parágrafo preambular reafirma os princípios da não
discriminação reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem
da Organização das Nações Unidas e nos Pactos sobre Direitos Humanos, que
proclamaram, e concordaram, que todas as pessoas estão habilitadas a todos
os direitos e liberdades nesse documentos expostos, sem discriminação de
qualquer tipo, como de raça, de cor, de sexo, de linguagem, de opinião política
ou outra, de origem nacional ou étnica, de propriedade, de nascimento ou de
outro estatuto.
A essência deste direito consiste em que todos os direitos da CDC se apliquem a qualquer criança, sem exceção, e na obrigação dos Estados de oferecerem proteção contra qualquer forma de discriminação. O artigo 2 da CDC
246
Nevena Vučković Šahović
proíbe a discriminação “independentemente de qualquer consideração de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra da criança, de seus
pais ou representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica ou social,
fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra situação. ” A adoção
da Convenção é, de várias formas, uma resposta às reivindicações relativas à
proteção das crianças, bem como de outros grupos específicos, da discriminação. A discriminação das crianças e da infância está muito disseminada,
apesar dos mais de vinte anos decorridos sobre a implementação da CDC.”
3. Direitos relacionados com a educação (CDC, artigos 28 e 29) e
sobre a forma como estão relacionados com a não discriminação
A educação é o meio e a pré-condição para o usufruto de todos os direitos
humanos. A educação afeta a qualidade de vida e permite a melhoria das
condições de vida. Mesmo sendo a educação basicamente aceite enquanto
um direito cultural, ela tem elementos de direitos económicos, sociais, civis
e políticos. O Comité do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos,
Sociais e Culturais (ICESCR), no seu Comentário Geral n.º 13, denomina a
educação como um direito de outorga de poder, servindo como veículo básico
através do qual os adultos e as crianças socialmente marginalizados podem
erguer-se da situação de pobreza em que se encontrem e de obterem os meios
para serem participantes, de pleno direito, na vida das suas comunidades.3
O direito à educação é pertença de todos os seres humanos, embora a maior
parte dos beneficiários sejam crianças. O direito à educação é em primeiro
lugar, e sobretudo, um direito à aquisição de uma educação. No entanto, a
qualidade da educação e os objetivos da educação fornecem uma dimensão
cultural, filosófica, psicológica e democrática a este direito.
O direito das crianças à educação encontra-se no centro das leis internacionais sobre os direitos humanos, de numerosos tratados e documentos
internacionais e regionais, assim como em importantes reuniões e atividades internacionais. Está também sujeito a investigação e avaliação contínuas.
Cada Estado possui a sua própria legislação, e toma medidas para educar as
suas crianças. Porém, mesmo em relação ao acesso básico à educação e à frequência da escola, os resultados ainda são insatisfatórios. Apesar de ser difícil fornecer dados e estatísticas acurados, a um nível global, estima-se que
entre 93 e 130 milhões de crianças não frequentem a escola, sendo mais de
metade desse número constituído por raparigas. Quase 80% delas vivem na
África Subsaariana e no Sul da Ásia.4 A Rede Internacional dos Direitos da
Criança (CRIN) relata que quase um bilião de pessoas entraram no Séc. XXI
3
4
ONU, Doc E/C.12/1999/10, parágrafo 1.
http://www.unicef.org/girlseducation/index.php.
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação
247
sem conseguirem ler um livro ou assinar os seus nomes, e a maior parte delas
são mais pobres e menos saudáveis do que aquelas que o conseguem.5
O direito à educação não pode ser alcançado isoladamente dos outros
direitos humanos, o que significa que é necessária uma abordagem holística
para a sua concretização. Assegurar a não discriminação no acesso e atendimento é uma prerrogativa da implementação, com sucesso, de qualquer sistema educacional. Isto aplica-se à obrigação dos Países-Membros de assegurarem que o princípio da igualdade é respeitado, sob todos os aspetos relativos
ao direito à educação. Por exemplo, enquanto as raparigas não tiverem um
acesso igual à educação, e enquanto as escolas não forem ambientes sensíveis
ao género, que promovam uma igualdade de participação e uma outorga de
poder, a igualdade dos géneros não será uma realidade. Isto aplica-se às crianças com deficiências, às infetadas ou afetadas pela SIDA, às refugiadas, ou às
crianças pertencentes a populações indígenas, bem como a quaisquer outras
crianças pertencentes a minorias ou a grupos étnicos minoritários. Devido
a tudo isto, nós falamos, hoje, de uma abordagem à educação baseada nos
direitos humanos. O objetivo de uma abordagem deste género é assegurar a
todas as crianças uma educação de qualidade que respeite e promova a sua
dignidade e o seu desenvolvimento máximo.6
O artigo 28 da CDC sobre o direito das crianças à educação e o artigo 29
sobre os objetivos da educação estão estreitamente relacionados com os princípios gerais da não discriminação da CDC, com o respeito pelos superiores
interesses da criança, com o direito à vida, à sobrevivência e desenvolvimento
das crianças e com o respeito pelas opiniões da criança. Uma das exigências básicas, nos direitos humanos, é a de os Estados implementarem todas
as medidas para prevenirem e lutarem contra a discriminação. Da mesma
forma, os sistemas educacionais devem estar acessíveis a todas as crianças,
sem discriminação de qualquer tipo, e devem ser tomadas medidas afirmativas que favoreçam a inclusão das mais marginalizadas.7 O ICESCR identifica três dimensões da acessibilidade, que se sobrepõem: a não discriminação,
a acessibilidade física e a acessibilidade económica.8 As questões básicas na
identificação de situações de discriminação no acesso à educação prendem-se
com o facto de ser apurado se a raça, a cor da pele, a etnia, o sexo, a idade, a
linguagem, a religião, o estatuto económico e social são fatores que impedem
a criança de se matricular e de frequentar a escola. Adicionalmente, é importante, neste contexto, se as ações afirmativas são tomadas para alcançarem
aqueles que são mais vulneráveis e se existem leis, como leis sobre a prevenção
5
http://www.crin.org/themes/ViewTheme.asp?id=7.
UNICEF e UNESCO. Uma Abordagem à Educação para Todos com Base nos Direitos
Humanos. New York/Paris: UNICEF e UNESCO, 2007, p 1.
7
ONU, Doc E/C.12/1999/10, parágrafo 6 (b).
8
Ibid.
6
248
Nevena Vučković Šahović
do trabalho infantil, que necessitem de ser implementadas para assegurar a
acessibilidade.9
A Convenção contra a Discriminação na Educação da UNESCO (artigo 1)
fornece uma definição de discriminação na educação:
“‘o termo “discriminação” abarca qualquer distinção, exclusão, limitação
ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
publica ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição
econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a
igualdade de tratamento em matéria de ensino, e, principalmente:a) privar qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso aos diversos tipos ou
graus de ensino;b) limitar a nível inferior à educação de qualquer pessoa
ou grupo;c) sob reserva do disposto no artigo 2 da presente Convenção,
instituir ou manter sistemas ou estabelecimentos de ensino separados
para pessoas ou grupos de pessoas; ou
d) de impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições incompatíveis com a dignidade do homem”
A dimensão da não discriminação é reafirmada no artigo 28 da CDC, onde
o direito à educação deve ser realizado, com base numa igualdade de oportunidades, e que determina que a informação e a orientação sobre a Educação
Básica, Secundária e Profissional devem encontrar-se acessíveis a todas as
crianças. Como indicado mais acima, a discriminação na educação é abordada em outros tratados sobre os direitos humanos.
O artigo 29 da CDC acrescenta a dimensão da qualidade aos direitos estabelecidos no artigo 28. Além disso, o Comentário Geral n.º 1 do Comité dos
Direitos da Criança foca-se no artigo 29: Os Objetivos da Educação.10 A eliminação da discriminação na educação está estreitamente relacionada com
as formas de os Estados formularem e implementarem objetivos de educação.
Existe uma reivindicação, inter alia, para reavaliar e rever os manuais escolares, os programas escolares e os métodos de ensino.11
Como indicado na CDC, a educação deverá ser dirigida para desenvolver
o respeito pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais, os princípios
consagrados na Carta das Nações Unidas12, e o desenvolvimento do respeito
pelos progenitores das crianças, pelas suas próprias identidades culturais,
9
Vuckovic Sahovic, N, Doek, J, Zermatten, J: The Rights of the Child in International Law,
Staempfli, 2012., p. 220.
10
Comentário Geral N.º 1 do Comité da CDC: Os Objetivos da Educação, CRC/GC/2001/1.
11
Por exemplo, o artigo 10 da Convenção sobre a Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) implica que a discriminação contra as mulheres deve ser abordada através de medidas,
em particular, pela revisão dos manuais escolares e dos programas escolares, e pela adaptação
dos métodos de ensino. CEDAW, artigo 10 (c).
12
CDC, artigo 29 (1) (b).
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação
249
línguas e valores, pelos valores nacionais do país em que a criança está a viver
ou do país de que ela é originária, e por civilizações diferentes da sua própria.13
Aceitar este tipo de educação é tomar uma posição contra o racismo, contra a
discriminação racial, contra a xenofobia e a intolerância com ela relacionada.
O Comité da CDC realça que o racismo, e fenómenos relacionados, se desenvolvem onde existe ignorância, medos raciais, étnicos, religiosos, culturais ou
linguísticos não fundamentados, ou outras formas de diferença, exploração
de preconceitos, ou o ensino ou disseminação de valores distorcidos, e que a
ênfase deve ser colocada sobre a importância do ensino sobre o racismo como
tem sido historicamente praticado e, especialmente, sobre as formas como se
manifesta, ou tem manifestado, no seio de comunidades específicas.14
A educação deve ter como objetivo assegurar que todas as crianças aprendem as competências essenciais necessárias para a vida e que nenhuma
criança deixa a escola sem estar equipada para fazer face aos desafios com
que se pode deparar na vida.15 O artigo 29 (1 (e, d)) da CDC proclama que
os objetivos da educação são a preparação da criança para uma vida responsável numa sociedade livre, dotada de um espírito de compreensão, de paz,
de tolerância, de igualdade entre os sexos, e de amizade entre todos os povos
e grupos étnicos, nacionais e religiosos, e pessoas de origem indígena, bem
como o desenvolvimento do respeito pela ambiente natural. A educação é,
portanto, um instrumento indispensável para uma prevenção e eliminação
sistémica da discriminação.
4. Outros direitos da CDC relevantes para este tópico
Fazer a monitorização da não discriminação na educação exige uma visão
informada sobre outros direitos da criança. Está estreitamente relacionada
com os princípios básicos da criança consagrados na CDC: o direito à vida, à
sobrevivência e ao desenvolvimento, o respeito pelos pontos de vista da criança
e o direito à consideração primária dos superiores interesses da criança. Além
disso, a não discriminação na educação é passível de ser medida através de
uma avaliação do estado dos direitos da CDC, como (mas não limitado a):
liberdade de expressão, liberdade de pensamento, consciência e religião, liberdade de associação e de reunião com fins pacíficos, proteção da privacidade,
acesso à informação, proteção de todas as formas de violência, crianças com
deficiências, saúde (incluindo a educação para a saúde), crianças pertencentes a minorias ou a povos indígenas, descanso, lazer, brincadeira, recreação e
cultura, proteção do abuso de drogas, trabalho infantil, crianças em conflitos
13
14
15
CDC, artigo 29 (1) (c).
CDC, Comentário Geral N.º 1, parágrafo 11.
CDC, Comentário Geral N.º 1, parágrafo 9.
250
Nevena Vučković Šahović
armados. Assim, uma lista compreensiva de indicadores de não discriminação deve incluir os direitos mencionados, na sua qualidade de fontes legais.
5. Monitorização dos direitos da criança
Uma vez que os estudantes e os profissionais estejam familiarizados com o
tópico que estão a monitorizar, assim como com as fontes legais e conteúdos
dos direitos, devem receber informações/competências sobre como realizar a
monitorização e desenvolver os indicadores. O primeiro passo para o fazer é
através da monitorização.
Os Estados têm aceite, universalmente, as suas obrigações legais internacionais de implementar direitos no campo da educação, comprometendo-se
a implementar esses direitos. De modo a implementar direitos, os Estados
devem, i.e., monitorizar a sua implementação e confrontá-la com a lei internacional. Avaliar a conformidade das prescrições legais e práticas nacionais,
na área dos direitos da criança, e o progresso efetuado no que a isso diz respeito, é uma matéria complexa. Existem esforços contínuos para desenvolver
instrumentos adequados para monitorizar a implementação da CDC, e dos
padrões e Diretrizes da ONU com ela relacionados, que incluem a avaliação
da conformidade das prescrições legais e práticas nacionais com estes padrões
e do progresso efetuado no caminho para o respeito e implementação dos
direitos da criança. Um dos mais úteis instrumentos para realizar esta monitorização é composto pelos indicadores. São feitas várias distinções no desenvolvimento dos indicadores, como indicadores quantitativos e qualitativos e
indicadores estruturais, indicadores de processos e indicadores de resultados.
Não existe um conjunto compreensivo de indicadores para monitorizar a
implementação dos direitos da criança, em todos os seus aspetos, embora se
verifique a existência de muitas tentativas, ao nível internacional e nacional.
Monitorizar os direitos das crianças pode ser definido como: todas as
atividades com o propósito de avaliarem e medirem a conformidade das
leis e práticas nacionais com as prescrições da CDC e outros instrumentos, como os Padrões ou Diretrizes Mínimos relevantes para a implementação das prescrições da CDC. No seu Comentário Geral N.º 5, do artigo
4 da CDC, sobre as sobre medidas gerais de aplicação da Convenção sobre
os Direitos da Criança– o Comité da CDC reconheceu a importância da
monitorização:
“A auto-monitorização e avaliação é uma obrigação dos Governos. Mas
o Comité também encara como essencial a monitorização independente
do progresso da implementação realizada, por exemplo, por comités
parlamentares, por ONGs, por instituições académicas, por associações
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação
251
profissionais, por grupos de jovens e por instituições independentes de
direitos humanos.”16
A conformidade com a CDC e com outras leis internacionais relevantes é um
objetivo geral da monitorização dos direitos das crianças. Avaliar a conformidade das prescrições legais e práticas nacionais, no campo da discriminação
das crianças na educação, e o progresso feito a este propósito, é uma matéria
complexa.
O facto de as escolas serem ambientes onde as crianças passam uma
grande parte do seu tempo deve encorajar os monitores a continuamente
procurarem aí, e estarem preparados para encontrar, violações dos direitos
da criança, incluindo tudo o que diz respeito à igualdade. Por outras palavras,
todos aqueles que realizam a monitorização devem, objetivamente e de forma
independente, estar atentos ao exercício dos direitos das crianças nos sistemas
educacionais. Esta tarefa exige competências e conhecimentos específicos na
área dos direitos da criança. Exige, igualmente, conhecimentos dos processos
de monitorização e de avaliação. A monitorização e a avaliação são diferentes quando levadas a cabo por diferentes interessados na matéria. Há papéis
específicos em jogo, e não é possível deter a expetativa de que a monitorização
realizado pelo Estado, pela institucoes nacionais de direitos humanos ou pelas
ONGs e mesmo pelos estudantes tenham o mesmo grau de perceção e de qualidade. O Estado tem de olhar para os indicadores quantitativos e qualitativos
gerais. Por isso, é o Estado quem deve fornecer os meios e os instrumentos
aos monitores individuais e independentes. Isto pode ser conseguido através da construção de capacidades, da formação e da educação, bem como da
dotação orçamental. Para cada monitor da não discriminação das crianças na
educação é útil que exista um plano desenvolvido, contendo um conjunto de
indicadores e de questões relacionadas.
Se a conformidade com a CDC é um objetivo geral da monitorização
dos direitos das crianças na educação, então existe sempre a necessidade de
ser definido um objetivo específico. Tais objetivos podem ser temáticos ou
geográficos, como, por exemplo, a avaliação da participação das crianças na
educação, a administração da disciplina na educação, ou a discriminação das
crianças num sistema educacional.
16
CDC, Comentário Geral N.º 5, Medidas Gerais de Implementação, CRC/GC/2003/5, parágrafo 46.
252
Nevena Vučković Šahović
6. Trabalho prático: Uma lista exemplificativa de direitos, padrões e
indicadores para avaliar a não discriminação na educação
O exercício seguinte não é, de forma alguma, exaustivo. É apenas um exemplo: uma forma possível de desenvolver instrumentos para monitorizar a não
discriminação na educação. A lista contém algumas linhas em branco, para
serem preenchidas pelos estudantes e pelos profissionais. Estes podem, também, formular/alterar/acrescentar padrões, ou formular/alterar/acrescentar
indicadores. Os estudantes e os profissionais podem, igualmente, decidir formular listas detalhadas de questões, no seio de cada indicador.
✓
A lista deve começar assim:
INTRODUÇÃO GERAL
✓
Descreva, brevemente, uma área dos direitos da
criança que queira monitorizar. Forneça uma
definição geral do(s) direito(s) específico(s) que
vai monitorizar, na lei internacional, bem como
a sua definição nas suas leis nacionais. Para o
propósito deste exercício, deve ser redigido conforme exemplificado, de seguida:
A discriminação é definida como qualquer discriminação injustificável ou
tratamento desigual, ou omissão (exclusão, restrição ou preferência), em relação a indivíduos ou grupos, bem como a membros das suas famílias ou pessoas próximas delas, que se baseia na raça, na cor da pele, na descendência,
na nacionalidade, na origem nacional ou étnica, na língua, nas crenças religiosas ou políticas, no género, na identidade de género, na orientação sexual,
na propriedade, no nascimento, nas características genéticas, no estado de
saúde, nas deficiências, no estatuto marital ou familiar, nas convicções prévias, na idade, na aparência, na pertença a organizações políticas, a sindicatos ou outras organizações, e outras características pessoais, reais ou supostas
(daqui por diante, designadas de características pessoais). Medidas específicas introduzidas para se alcançar uma igualdade plena; proteção e progresso
de pessoas ou grupos de pessoas que se encontrem numa situação de desvantagem no processo educacional não são consideradas como enquadradas
numa situação de discriminação (ação afirmativa). A discriminação é proibida. Todas as crianças têm o direito de serem protegidas de todas as formas
de discriminação, de acordo com o artigo 2 da Convenção sobre os Direitos
da Criança, e de outras medidas nacionais e internacionais.
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação
✓
253
Complete a introdução Geral: Em relação ao
tópico específico da não discriminação na educação, acrescente informações gerais e definições dos direitos no seio do sistema educacional, tendo como base o exemplo precedente.
Explique de que forma se relacionam com o
direito à não discriminação.
DIREITO: 1. Contexto do artigo 2 da CDC sobre não discriminação
✓
Descreva um direito que vai monitorizar, para
obter uma imagem detalhada da área que escolheu. Identifique as suas fontes legais: tratado
internacional, documento internacional, lei
nacional, documento nacional ou outro. Por
exemplo, pode começar com uma e acrescentar
outras fontes:
O artigo 2 da Convenção sobre os Direitos da Criança sobre não discriminação é um dos princípios fundamentais da CDC, de acordo com o qual todas
as crianças têm o direito a serem tratadas com respeito, de modo a realizarem
o seu potencial pleno.
✓
Depois disso, “decomponha” um direito:
detete os seus elementos essenciais, defina-os
enquanto padrões separados, que irão ajudá-lo
a desenvolver indicadores para monitorizar. Por
exemplo:
Padrão 1.1. Todas as crianças são tratadas com respeito e dignidade, independentemente da raça, cor, género, língua, religião, opinião política ou outra,
origem nacional, étnica ou social, propriedade, nível de habilitação, nascimento ou outro estatuto da criança, dos seus progenitores ou guardiões legais.
✓
Sinta-se à vontade para introduzir explicações/
informações adicionais sobre o padrão, como descrições ou exemplos ou mesmo partes interessadas responsáveis pela sua implementação. Após
isto, já terá material suficiente para proceder a
uma decomposição mais detalhada, até às suas
mais pequenas peças, como, por exemplo, indicadores para esse padrão:
254
Nevena Vučković Šahović
1.1.1. Os professores não atribuem rótulos às crianças, com base nas suas
características pessoais.
1.1.2. As crianças, na escola, são rotuladas, com base em características pessoais.
1.1.3. As crianças, na escola, são informadas de que atribuir rótulos, com
base em características pessoais, é proibido.
1.1.4. A escola implementa medidas de ação afirmativa para apoiar crianças
vulneráveis.
1.1.5. A escola regista os resultados da ação afirmativa.
1.1.6. Existem evidências de medidas de ação afirmativa tomadas pela escola para apoiar crianças vulneráveis.
1.1.7. A escola não usa livros, revistas, sítios da internet ou outros meios que
sejam discriminatórios para qualquer criança ou grupo de crianças.
1.1.8. A escola não partilha ideias, informação ou opiniões que refiram um
tratamento diferencial ou violento contra qualquer pessoa ou grupo de pessoas, com base nas suas características pessoais.
1.1.9. Nenhumas mensagens escritas ou símbolos, que possam constituir-se em incitamento à discriminação, ódio e violência em relação a crianças
ou qualquer pessoa ou grupo de pessoas, com base nas suas características
pessoais, são permitidas na escola.
1.1.10. As regras e as consequências da violação de direitos aplicam-se, de
igual forma, a todas as crianças.
1.1.11. As regras e as consequências da violação de direitos aplicam-se,
igualmente, a todos os adultos que trabalham na escola.
1.1.12. Existem provas de que as regras de conduta na escola e as sanções
com ela relacionadas são aplicadas de forma consistente.
Padrão 1.2. As crianças e os funcionários da escola são informados sobre a
discriminação e conhecem os seus direitos e obrigações.
Explicação: As crianças e os adultos, na escola, têm o direito de serem informados sobre os seus direitos, de serem capazes de agir de acordo com eles. A
informação acerca da discriminação deve ser clara e deve transmitir a mensagem de que a discriminação não será tolerada e de que as vítimas serão
protegidas. A informação também ajuda os estudantes e os funcionários a
compreenderem que tipos de comportamento são discriminatórios.
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação
255
1.2.1. Todos os professores sabem o que a discriminação é, e como podem
proteger as crianças da discriminação.
1.2.2. Todos os estudantes, na escola, sabem o que a discriminação é, e de
que forma podem procurar restituição se forem vítimas dela.
1.2.3. Os professores sabem como reconhecer a discriminação e como informar os estudantes e os seus progenitores sobre os procedimentos da escola,
bem como de outros procedimentos disponíveis fora das escolas (Provedor
das Crianças…).
1.2.4. A escola mantém registos de todos os casos relatados de discriminação e das correspondentes intervenções de follow up.
1.2.5. A escola mantém registos do desenvolvimento profissional dos professores na área dos preconceitos e da discriminação.
1.2.6. A escola mantém registos do desenvolvimento profissional dos professores na área da discriminação e nos mecanismos de proteção da discriminação.
1.2.7. Todos os professores, e profissionais a eles associados, organizam
workshops para as crianças sobre a discriminação e sobre mecanismos de
proteção da discriminação.
1.2.8. Todos os profissionais associados aos professores organizam workshops
com os estudantes sobre a identificação da discriminação.
1.2.9. A escola mantém registos dos programas que os professores e profissionais seus associados conduziram, e que se relacionam com a Convenção
sobre os Direitos da Criança, com a não discriminação e com os mecanismos de proteção da discriminação.
1.2.10. O plano anual e o desenvolvimento do plano da escola incluem atividades de implementação no campo da promoção dos direitos da criança
e da não discriminação.
Padrão 1.3. A escola mantém um registo sobre as crianças alvo de discriminação e sobre os seus progenitores/guardiães, e toma medidas adequadas para
prevenir tal discriminação.
Explicação: ___________________________________________________
1.3.1. Os funcionários da escola são encorajados a relatar qualquer forma de
discriminação na escola.
1.3.2. As crianças e os progenitores/guardiães são encorajados a relatar
qualquer forma de discriminação na escola.
256
Nevena Vučković Šahović
1.3.3. Os professores sabem como reagir se uma criança for vítima de discriminação.
1.3.4. A escola mantém um registo de todos os casos relatados de discriminação e das medidas adotadas para pôr fim e prevenir a conduta discriminatória futura de qualquer pessoa na escola.
Padrão 1.4. Os estudantes e os progenitores/guardiães são tratados com o
devido respeito na escola.
Explicação: Todas as crianças e os seus progenitores/guardiães são aceites e
respeitados na escola, independentemente das suas características pessoais.
O tratamento com respeito das crianças e dos seus progenitores/guardiães é
feito em consonância com as suas características pessoais e com as suas ideias
e exigências.
1.4.1. Quando se dirigem aos estudantes, os professores e os funcionários da
escola não usam nomes, alcunhas e estereótipos que ofendam a sua dignidade, com base nas suas características pessoais.
1.4.2. O progresso dos estudantes (positivo ou negativo) não é ridicularizado.
1.4.3. Quando se dirigem aos progenitores, aos progenitores/guardiães dos
estudantes, os professores e os funcionários da escola não usam nomes, alcunhas e estereótipos que ofendam a sua dignidade, com base nas suas características pessoais.
1.4.4. As ideias e sugestões das crianças e as dos seus progenitores/guardiães
são tomadas em consideração e discutidas.
✓
Acrescente outro padrão, seguido de uma lista
de indicadores:
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
DIREITO: 2. Contexto dos artigos 7, 8, 29 e 30
✓
Este é um exemplo da forma de colocação de
uma questão no contexto de vários artigos da
CDC. O valor de uma abordagem como esta
reside no facto de refletir a indivisibilidade dos
direitos da criança. As desvantagens consistem na falta de precisão na abordagem à não
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação
257
discriminação num ambiente escolar, relativamente à sua identidade e pertença a grupos
minoritários. Encontrará mais orientações
depois de descritos os padrões e os indicadores.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 17, reconhece o
direito de todas as crianças a um nome e a uma nacionalidade, e o direito a
ser cuidada. O artigo 8 da Convenção regula o direito de todas as crianças à
preservação da sua identidade, nome e relações familiares.
O artigo 29 da CDC define como objetivo da educação “Inculcar na criança
o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores
nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes
da sua”
De acordo com o artigo 30 da CDC, a todas as crianças que pertençam a uma
minoria nacional, étnica ou religiosa é-lhes permitido, pelos membros do seu
próprio grupo, usufruir da sua cultura, praticar os seus direitos e falar a sua
língua.
Padrão 2.1 A instituição educacional respeita o nome, a nacionalidade da
criança e a sua relação no seio de um grupo étnico, religioso ou cultural.
Explicação: ___________________________________________________
2.1.1. Os professores, os funcionários e os estudantes respeitam todos os
estudantes, independentemente do seu nome ou nacionalidade.
2.1.2. A escola implementa um programa sobre a importância da igualdade,
do multiculturalismo e encoraja a compreensão e o respeito por outras culturas, línguas, cor da pele, origem nacional, etc.
Padrão 2.2. A escola respeita a identidade dos estudantes.
Explicação: ___________________________________________________
_____________________________________________________________
2.2.1. Nenhum aspeto da identidade das crianças – p. ex., aparência física, raça e etnia, estatuto económico, nascimento, género, orientação sexual,
nível de habilitação, língua nativa, etc., é ridicularizada e usada para criar
estereótipos.
2.2.2. A escola respeita todos os aspetos da cultura da família do estudante.
258
Nevena Vučković Šahović
Padrão 2.3. A língua materna de todas as crianças é reconhecida e respeitada.
Explicação: ___________________________________________________
2.3.1. Aos estudantes que pertencem a minorias étnicas é oferecida educação na sua própria língua.
2.3.2. Os estudantes pertencentes a minorias nacionais têm a oportunidade
de continuar a sua educação numa escola bilingue (se 2.3.1. não for possível)
2.3.3. Os estudantes pertencentes a minorias nacionais têm a oportunidade
de estudar a sua língua e cultura (se 2.3.1. e 2.3.2. não forem possíveis).
✓
Os direitos sob o Direito: 2 têm algo em comum,
e podem ser agrupados, como neste caso, mas
podem também ser divididos em direitos separados, com padrões específicos e uma mais
completa lista de indicadores. Tente fazer a sua
própria divisão desta secção em 4 direitos, de
acordo com a CDC.
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
DIREITO: 3. Contexto do artigo 28 da CDC
Este artigo da Convenção garante o direito à educação a todas as crianças, de
acordo com as suas capacidades e interesses. Do ponto de vista da não discriminação, isto significa que a disponibilização da educação e da informação
sobre instituições educacionais é garantida a todas as crianças; que as crianças
podem matricular-se na escola que desejem, em consonância com a lei, e que
todas as crianças são obrigadas a cumprir a escolaridade obrigatória.
Padrão 3.1. Todas as crianças se matriculam na escola por si escolhida, de
acordo com a lei.
Explicação: ___________________________________________________
_____________________________________________________________
3.1.1. As características pessoais da criança não complicam ou impedem a
matrícula na escola.
3.1.2. A escola implementa medidas específicas e outras medidas legais para
apoiar a matrícula das crianças e dos estudantes pertencentes a grupos vulneráveis, especialmente crianças com deficiências e crianças pertencentes a
minorias.
CAPÍTULO 11: Monitorização da não discriminação na educação
259
3.1.3. A escola documenta as medidas que implementa para apoiar a matrícula de crianças pertencentes a grupos vulneráveis, como crianças com
deficiências, crianças pertencentes a minorias, etc.
3.1.4. Os documentos exigidos para a matrícula na escola são os mesmos
para todas as crianças. Qualquer solicitação adicional de documentação,
que possa impedir a matrícula da criança, não é permitida.
3.1.5. Os estudantes pertencentes a grupos vulneráveis frequentam as aulas
nos mesmos edifícios que todas as outras crianças.
3.1.6. As crianças pertencentes a grupos sociais vulneráveis frequentam as
aulas nas mesmas salas de aula, com todos os outros estudantes.
Padrão 3.2. A escola implementa programas e métodos que permitem que
todas as crianças realizem o seu potencial máximo e alcancem os objetivos da
aprendizagem geral e os padrões educativos.
Explicação: ___________________________________________________
_____________________________________________________________
3.2.1 A escola oferece as condições que permitem que todas as crianças, independentemente das suas características pessoais, alcancem os resultados
comuns da educação, de acordo com as capacidades de cada criança.
3.2.2. As escolas mantêm registos das condições que permitem a todas as
crianças, independentemente das características pessoais, alcançarem os resultados educativos gerais.
3.2.3. Os professores usam uma variedade de formas de ensino e de métodos
de aprendizagem, e conduzem avaliações (e mantêm registos) desenhadas
à medida de cada criança, permitindo-lhes alcançar resultados positivos.
3.2.4. A falha no estabelecimento de objetivos no processo da educação não é
atribuída às características pessoais da criança ou da sua família, mas antes resulta na procura de formas alternativas de apoiar a aprendizagem da criança.
3.2.5. A escola implementa padrões de desempenho especiais para estudantes com capacidades excecionais, e constantemente monitoriza o seu desenvolvimento e progresso.
3.2.6. A escola aplica critérios iguais para a avaliação do desempenho educacional. A escola não pode diminuir os padrões de desempenho para
crianças de grupos sociais vulneráveis.
3.2.7. Existem registos de atividades e de medidas implementadas pela escola para prevenir o abandono escolar precoce.
3.2.8. Se um estudante, em resultado de características pessoais particulares,
não frequenta a escola com regularidade, a escola toma medidas, de acordo
com a lei, das quais deve haver um registo.
260
Nevena Vučković Šahović
✓
Acrescente outro direito, à sua escolha, seguido
de padrões e de listas de indicadores:
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
7. Conclusão
Como indicado na introdução a este capítulo, nenhum modelo de monitorização se adequa a todas as situações e ambientes. Por isso, a lista de padrões e
de indicadores proposta, enquanto instrumento de monitorização dos direitos
da criança (não discriminação na educação, neste caso), deve ser compreendida como uma orientação, em vez de um modelo acabado. A lista oferecida
neste capítulo é limitada no seu âmbito, o que reflete o facto de os direitos das
crianças serem complexos; de deverem ser monitorizados, tendo em conta a
sua inter-relação, e o facto de que monitorizar uma parte interessada (desta
vez, uma escola) oferece apenas respostas parciais que são necessárias para
avaliar a não discriminação geral na educação. No entanto, esta é uma abordagem passo a passo, que pode encorajar os professores universitários e os
seus estudantes, bem como os profissionais, a realizarem exercícios de monitorização mais ambiciosos, nesta ou em outra área dos direitos da criança.
Finalmente, mas não menos importante, a utilidade desta lista de padrões
e de indicadores dependerá do tipo e dos níveis de educação que os estudantes e os profissionais já detêm. Os estudantes e os profissionais podem encarar
este instrumento como muito estimulante.
Leituras adicionais
Vuckovic Sahovic, N, Doek, J, Zermatten, J. (2012). The Rights of the Child in International
Law, Staempfli.
UNICEF and UNESCO: A Human Rights-Based Approach to Education for All, 2007,
http://www.unicef.org/publications/files/A_Human_Rights_Based_Approach_to_
Education_for_All.pdf.
UNICEF: Manual for Measurement of Children in Formal Care Indicators, 2006, http://
www.unicef.org/protection/Formal_Care20Guide20FINAL.pdf.
UNICEF and UNODC: Manual for Measurement of juvenile justice indicators, 2007,
https://www.unodc.org/pdf/criminal_justice/Manual_for_the_Measurement_of_
Juvenile_Justice_Indicators.pdf.
Right to Education Project: The Right to Education: Indicators. http://www.right-toeducation. org/sites/right-to-education.org/files/resource-attachments/RTE_List_Right_
to_Education_Indicators_May_2013.pdf.
CONCLUSÃO: Desafios e percursos para o trabalho futuro neste campo 261
CONCLUSÃO:
DESAFIOS E PERCURSOS PARA O TRABALHO
FUTURO NESTE CAMPO
Hanne Warming
Hanne Warming, Doutorada, é Professora de sociologia, infância e assistência social, e Diretora do grupo de investigação
‘Sociedades em Mudança: Cidadania, Participação e Poder’, no
Departamento de Sociedade e Globalização da Universidade
de Roskilde, na Dinamarca. Ela está empenhada nas questões
dos direitos das crianças enquanto membro da NGO dinamarquesa ‘Bem-Estar das Crianças’. [email protected]
Em geral, este livro fornece uma perceção sobre uma variedade de tipos e formas de discriminação da criança e, além disso, fornece uma riqueza de fontes
que permitem a identificação e combate a essa discriminação. Alguns capítulos analisam formas específicas de discriminação ou discriminação em determinados contextos culturais e estruturais, ao passo que outros se centram nas
fontes jurídicas ou fornecem instrumentos analíticos para avaliar e combater
essa discriminação. Finalmente, inclui capítulos que fornecem exemplos de
boas práticas no campo da não discriminação.
Em 2012, Barry Percy-Smith e Nigel Thomas, na conclusão de um livro
sobre a participação das crianças, escreveram: “Reunir conclusões da variedade e diversidade de material incluído neste manual é um grande desafio”
(Percy-Smith & Thomas, 2012: 356). Exatamente a mesma coisa poderia
ser escrita acerca deste manual sobre as crianças e não discriminação. No
entanto, a diversidade de contribuições e as dificuldades em escrever uma
conclusão compreensiva não nos apanharam de surpresa. Pelo contrário,
aguardávamo-las e consideramo-las como necessárias e apropriadas, devido
à própria natureza do assunto. Assim, o livro reflete a forma que o combate
contra a discriminação das crianças, e as suas análises, deve assumir em muitos cenários sociais diversos e em muitos contextos estruturais e culturais
diferentes, exigindo ainda uma abordagem multidisciplinar e interdisciplinar.
Só esta abordagem multiforme e interdisciplinar é apropriada para enfrentar
o desafio da identificação e combate à discriminação, enquanto fenómeno
complexo, contextualizado e multiforme que é.
262
Hanne Warming
Discriminação fundada na ordem geracional
Em alguns casos, as crianças são discriminadas, apenas porque são crianças.
Isto é discriminação com base na idade, normalmente assumida como sendo
natural, devido à ordem das gerações. Paradoxalmente, esta discriminação
está de facto presente, também, numa das fontes jurídicas chave no combate
à discriminação das crianças, nomeadamente a Convenção dos Direitos da
Criança. Deste modo, através da formulação devem ‘ser tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade’, a
convenção salienta que as crianças devem ser ouvidas e ter uma opinião na
tomada de decisão, mas relativiza este direito, em função da avaliação que
dela fazem os adultos, numa escala que varia entre infantil e madura (i.e.,
como um adulto). Assim, a exploração e a avaliação da discriminação desta
discriminação legalizada através de formulações frágeis, tendencialmente
adultistas, nas fontes e nas políticas legais, bem como as estratégias para a
combater, formam uma tarefa essencial para o futuro.
Outro tipo de discriminação baseada na idade, relacionada com (uma
interpretação radicalizada e prática) da Convenção dos Direitos da Criança,
acontece quando certos direitos são interpretados como deveres da criança –
como algo a que a criança não se pode eximir. Exemplos destes incluem os
direitos das crianças a serem ouvidas e a darem a sua opinião, e os direitos
das crianças de pertencerem à sua família. Estas interpretações radicalizadas
ou práticas equivocadas dos direitos das crianças podem, no futuro, transformar-se num problema crescente – um campo de investigação de importância
crescente – em várias áreas.
Consequências negativas da discriminação
Em outros casos, as crianças são discriminadas por outras razões, que não de
ordem geracional, mas que se intersetam com as de ordem geracional. Esta
discriminação afeta um determinado grupo de crianças ou uma só criança,
dependendo do tipo e forma de discriminação. O primeiro caso dá-se se a
discriminação está relacionada com estruturas amplas de desigualdade social
(p. ex., a classe, o sexo, a etnia, a religião, a sexualidade, etc.) e/ou um determinado contexto institucional (p. ex., lares residenciais para crianças, escolas, órgãos de direção, etc.), ao passo que a discriminação de uma só criança,
enquanto um caso isolado, é, em vez disso, um resultado do acaso.
Todavia, quer se trate de um ou do outro tipo e forma, a discriminação
é uma questão de injustiça, que tem um impacto negativo nas condições
de vida, bem-estar e aprendizagem da cidadania das crianças afetadas pela
mesma, refletindo um aspeto patológico da sociedade: A discriminação é um
resultado de uma desigualdade e produz processos sociais de desintegração,
CONCLUSÃO: Desafios e percursos para o trabalho futuro neste campo
263
de alienação e de falta de coesão social (Delanty, 2003; Warming, 2014). A
exploração do impacto negativo da discriminação nas crianças discriminadas, assim como a forma como esta reflete aspetos patológicos da sociedade,
afetando não apenas as crianças em questão, mas todos nós, tanto as crianças
como os adultos, constitui, desta forma, outra tarefa essencial no futuro.
Outro: Aprofundando o trabalho futuro sobre crianças e (não)
discriminação
Apesar da diversidade, as contribuições oferecidas neste livro não abrange
todos os cenários sociais e os diferentes contextos estruturais e culturais em
que as crianças se encontram expostas à discriminação, embora forneça uma
fonte rica relativamente ao enquadramento legal internacional e europeu dos
direitos das crianças à não discriminação (parte 1), bem como relativamente
às abordagens analíticas e aos instrumentos de investigação, de exploração, de
monitorização e de avaliação dos vários tipos e formas de discriminação das
crianças (parte 2). A nossa expectativa é que os investigadores e os profissionais que trabalham com crianças encontrem inspiração e utilidade nestas fontes, na sua tarefa de identificação e combate contra a discriminação das crianças, relativamente a outros grupos de crianças representadas neste livro, assim
como preencher algumas das lacunas de conhecimentos neste campo. Aqui,
apenas chamamos a atenção para algumas àreas onde pode ser aprofundado o
trabalho futuro sobre as crianças e (não) discriminação; nomeadamente, processos criminais envolvendo crianças e jovens, prostituição infantil, crianças
e famílias refugiadas, representação das crianças nos média, pré-escola, orfanatos, instituições residenciais para crianças e jovens, e instituições e serviços
de saúde mental para crianças e jovens.
264
Este livro de texto interdisciplinar é parte integral do
projeto “Children’s Rights Erasmus Academic Network”
(CREAN), financiado pela Comissão Europeia.
Com este manual, o projetp CREAN pretende promover a
compreenssão do artigo 2 da Convencao das Nações Unidas
sobre os Direitos das Crianças - o direito das crianças à nao
discriminação e igualdade. O manual esclarece a discriminação de crianças baseada na idade e discute, entre outras, a não
discriminação e o valor da igualdade.