Alfredo Bronzato da Costa Cruz Uma versão da institucionalização
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Alfredo Bronzato da Costa Cruz Uma versão da institucionalização
Alfredo Bronzato da Costa Cruz Uma versão da institucionalização do movimento cristão : a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia Monografia apresentada à Graduação em História da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em História. Orientador: Prof.a Silvia Patuzzi Rio de Janeiro Dezembro de 2009 Ficha Catalográfica Cruz, Alfredo Bronzato da Costa Uma versão da institucionalização do movimento cristão : a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia / Alfredo Bronzato da Costa Cruz ; orientadora: Silvia Patuzzi. – 2009. 283 f. ; 30 cm Monografia (Graduação em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. História – Monografias. 2. Teoria e história da historiografia. 3. Eusébio de Cesaréia – História Eclesiástica. 4. História da historiografia antiga. 5. História do movimento cristão. I. Patuzzi, Silvia. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título. CDD: 900 Dedicado a Ir. Leiza Azenaide, Serva da Ssma. Trindade, que em uma despretensiosa conversa de fim de manhã foi a primeira pessoa a me indicar o quanto – positiva e negativamente – o cristianismo ainda continua em nossos dias a repousar sobre o legado imperial romano, e a Augusto Sampaio e Jadir Cruz, que tenho a imensa alegria de poder chamar de amigos. Diz uma história do folclore judaico que, a cada geração, há trinta e seis pessoas realmente boas e justas (os lamed vavnik) cujos méritos, que ignoram, são o fundamento do mundo. Geralmente trabalhando no anonimato, ajudam eles a tornar este planeta um lugar mais habitável e decente, e deste modo fazem Deus continuar a se alegrar com o que criou (Gênesis 1, 31). Não há palavras para expressar o quanto me honra ter podido estar em contato com pelo menos três destas nos mais recentes anos de minha vida. AGRADECIMENTOS Muitas pessoas contribuíram de muitos modos para que eu conseguisse conceber o plano deste trabalho, realizar a pesquisa no qual ele se sustenta e redigi-lo – ainda que se deva registrar que todas as falhas que nele constam se devem a erros e incompreensões unicamente meus. Todas elas foram importantes, favoráveis cada um a seu modo a este esforço, mas algumas merecem especial menção nestas páginas. Agradeço a meus pais, Dilene Teresa Bronzato e José Alfredo Fruz, por todo incentivo e apoio dado, e em especial por terem me ensinado que, antes de qualquer outra coisa, o estudo deve ser fonte de realização pessoal. Agradeço também a outros familiares que me incentivaram especialmente nestes tempos mais recentes: Célia Bronzato e Ary Rodrigues, Jacira Cruz, Jadira Cruz e, de modo muito especial, a Jadir Cruz, com quem tive a honra de poder passar muitas horas discutindo as mais diversas idéias. Agradeço àquelas pessoas que foram imprescindíveis por seu incentivo e sua intervenção – pequenos que lhes parecessem – para que eu ousasse vir para o Rio de Janeiro fazer a Graduação em História na PUC-Rio e aqui me mantivesse: Ir. Leiza Azenaide, Serva da Ssma. Trindade, Pe. Medoro de Oliveira, Pe. Paulo Cezar Costa, antigo pároco e mais recentemente mestre e interlocutor das idéias que presidiram a redação desta monografia, e D. Elias James Manning, O.F.M., bispo diocesano de Valença. Também faço um destaque especial para os que de forma determinante foram um apoio nesta caminhada até aqui: Augusto Sampaio e sua estimada esposa, que demonstraram para comigo reiteradas vezes uma preocupação que considerei completamente surpreendente. Agradeço a tantos professores cujas aulas, conversas e convivência me nutriram de forma especial, aproveitando para advertir que as marcas que estas deixaram em mim talvez possam ser bastante evidentes nas linhas que se seguem. Da PUC-Rio devo destacar Ricardo Benzaquen de Araújo, sempre gentil e solícito, exemplo daquilo que o nosso ofício de historiadores tem de mais erudito e bem articulado, e Silvia Patuzzi, orientadora deste trabalho, que depositou em mim uma imensa confiança ao dar-me a liberdade de arranjar e executar este trabalho quase da maneira como eu achasse que deveria fazê-lo, além de ter sido ajuda da maior valia nos períodos de maior dificuldade e ter demonstrado proverbial paciência com minhas angústias e prazos ignorados, ambos do meu Departamento de História; e Lina Boff, Maria Clara Bingemer e o já referido Pe. Paulo Cezar Costa, do Departamento de Teologia. Também a Lair Amaro, de quem assisti no segundo semestre do corrente ano as enriquecedoras aulas do curso “O Jesus Histórico e as Origens do Cristianismo”, ministrado no Centro Loyola de Fé e Cultura da PUC-Rio; a Heloisa Bertol Domingues, amiga e incentivadora de todas as horas, que foi minha orientadora de Iniciação Científica (2007-2009) no Projeto “História da Antropologia no Acervo Luiz de Castro Faria” (MAST / MCT); e a Magali Romero Sá, de quem sou atualmente auxiliar de pesquisa (Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz), muitíssimo compreensiva comigo nestas complicadas semanas de revisão, entrega e apresentação de minha Monografia. Registro também um muito obrigado a Celso Taveira, da Universidade Federal de Ouro Preto, que, não obstante o fato de não me conhecer pessoalmente, com satisfação e presteza disponibilizou-me um texto de difícil acesso no qual tinha especial interesse. Agradeço àqueles diversos amigos e amigas que tornaram esta lida mais suportável ao me honrar com sua companhia, e dentre estes destaco Leandro Cesar Bedetti, Rafael Carlos Francisco, Estevão Anísio, Paulo José Belisário, Juliana Pereira, André Calcagno, Maria de Belém, Leonardo Silva, Eduardo Gonçalves, Ana Toledo, Leandro Cavalcanti, Fernanda Giesta – e seu pai, Antônio Muccillo, que sem sombra de dúvidas foi a pessoa com quem mais conversei sobre o Império Romano e os problemas da História e da Historiografia Antigas em toda a minha vida –, Bruno Sampaio, Rafael Rochê, Carlos Taveira e Ricardo Milani. De um modo muito especial, também agradeço a Isabella Menezes, por seu incentivo, interesse, companheirismo e (eventualmente notável) compreensão, sempre disposta a me ouvir e a me ajudar a conduzir da melhor maneira possível todas as fases de elaboração e redação deste trabalho. Foram pessoas que fizeram – e felizmente continuar a fazer – a minha vida mais agradável, e que não poucas vezes estiveram dispostas a tomar como suas as minhas dúvidas, angústias e esperanças. Não há palavras no mundo para agradecêlos por isto. Agradeço também a PUC-Rio pela concessão de bolsa de estudos integral para a Graduação em História do primeiro semestre de 2005 ao segundo semestre de 2009, fazendo-o na pessoa do Vice-Reitor Comunitário, o supra-citado Augusto Sampaio, e de toda a sua equipe de trabalho. Resumo : O presente trabalho é uma análise possível da História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, obra na qual este bispo se propôs a fazer a crônica do cristianismo desde as suas origens até o seu favorecimento pelo Imperador Romano Constantino. Através da consideração de seu lugar de fala, temas, fontes e estratégias argumentativas, pretende-se aí esclarecer a partir de quais lentes pôde este autor apreender e narrar a trajetória histórica do movimento cristão, e como tal investigação e discurso se relacionam com o progressivo ancoramento de uma facção deste como instituição sociopolítica que se pretendia guardiã de uma verdade exclusiva e incontestável. Na seqüência de seus capítulos, tratamos sucessivamente das bases materiais que viabilizaram a produção intelectual de Eusébio; dos pressupostos teórico-metodológicos que nos permitem lidar com estas de modo inter-relacionado e mutuamente esclarecedor; dos grandes temas e matrizes intelectuais que se articulam em sua escrita e fornecem a sustentação para um método específico de raciocínio e construção discursiva da verdade (e do erro); de como estes possuem afinidades com as idéias e posicionamentos político-doutrinários do bispo de Cesaréia, fornecendo, por um lado, a sustentação para a sua militância durante as controvérsias cristológicas do século IV e, por outro, um esteio lógico para o modelo de vinculação entre Igreja e Império Romano que se edificava neste mesmo período. Palavras-chave : 1. Eusébio de Cesaréia – História Eclesiástica; 2. História da Historiografia Antiga; 3. História do Movimento Cristão. SUMÁRIO UM LIVRO QUE CONTÉM UM BISPO (OU : A GLÓRIA DE EUSÉBIO) ..............9 I .............................................................................................................................................. 9 II ........................................................................................................................................... 11 III .......................................................................................................................................... 17 A BIBLIOTECA DE CESARÉIA .................................................................................. 22 I ............................................................................................................................................ 22 II ........................................................................................................................................... 36 III .......................................................................................................................................... 45 POSSÍVEIS SIGNIFICADO HISTÓRICO E RAÍZES INTELECTUAIS DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA .......................................................................................... 65 I ............................................................................................................................................ 65 II ........................................................................................................................................... 76 III ........................................................................................................................................ 122 IV ........................................................................................................................................ 127 V ......................................................................................................................................... 145 VI ........................................................................................................................................ 172 DA PAX ROMANA À PAX CHRISTI (OU VICE-VERSA) ................................... 189 I .......................................................................................................................................... 189 II ......................................................................................................................................... 202 III ........................................................................................................................................ 223 IV ........................................................................................................................................ 245 V ......................................................................................................................................... 265 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 271 “Eu poderia ter vivido na época de Constantino, trezentos anos depois da morte do Salvador,do qual se sabia apenas que tinha ressuscitado como um Mitra ensolarado entre os legionários romanos. Eu teria testemunhado a disputa entre homoousios e homoiousios, sobre se a natureza de Cristo é divina ou se somente se assemelha à divindade. Provavelmente eu teria votado contra os trinitários, pois quem alguma vez pôde adivinhar a natureza do Criador? Constantino, Imperador do Mundo, janota e assassino,fez a balança pender para um lado no Concílio de Nicéia,de modo que nós, geração após geração, meditamos sobre a Santa Trindade, Mistério dos mistérios, sem o qual o sangue do homem teria sido alheio ao sangue do universo e o derramamento de Seu próprio sangue por um Deus sofredor, que se ofereceu a Si mesmo como sacrifício inclusive quando estava criando o mundo, teria sido em vão. Assim, Constantino foi simplesmente um instrumento indigno, inconsciente do que estava fazendo para pessoas de épocas distantes?E nós, sabemos para o que estamos destinados?” CZESLAW MILOSZ, “O Imperador Constantino” “O final da história só pode ser contado por metáforas, uma vez que se passa no reino dos céus, onde não há tempo. Talvez coubesse dizer que Aureliano conversou com Deus e que Este se interessa tão pouco pelas diferenças religiosas que o tomou por João da Panônia. Isso, no entanto, insinuaria uma confusão da mente divina. É mais correto dizer que, no paraíso, Aureliano soube que para a insondável divindade ele e João da Panônia (o ortodoxo e o herege, o abominador e o abominado, o acusador e a vítima) constituíam uma única pessoa.” JORGE LUIS BORGES, “Os teólogos” Introdução UM LIVRO QUE CONTÉM UM BISPO (OU: A GLÓRIA DE EUSÉBIO) I. “Seria agradável, portanto, pensar nela como a coruja de Minerva, alçando vôo no anoitecer de uma era intelectual. Mas ela tem uma organização que se assemelha mais ao vôo do inconstante pássaro pós-modernista, movendo-se em círculos hermenêuticos decrescentes, até que... E a referência a Minerva também não deve ser tomada por uma reivindicação de conhecimento profundo. Embora eu esvoace rapidamente por um vasto continente de erudição (...), faço-o apenas na condição de um turista (...), que recolhe aqui uma genealogia intelectual e, ali, um fragmento de folclore acadêmico, ao mesmo tempo que faz uma inspeção extremamente superficial dos grandes monumentos filosóficos. Como a maioria dos turistas, não há dúvida de que faço constantemente o papel de bobo.” MARSHALL SAHLINS, “A tristeza da doçura, ou a antropologia nativa da cosmologia ocidental” Não tenho conhecimento de nenhum formato padrão para introduzir um trabalho monográfico – ou qualquer outro, aliás. Tal omissão não nos deve afligir, já que todos sabemos (ou deveríamos saber) do que trata uma introdução. Na triste maioria dos casos, análogos aos (cada vez mais raros) prólogos de grande parte da literatura de ficção, são resumos ou encaminhamentos pouco responsáveis, que abundam em promessas não-cumpridas e hipérboles desimportantes, possuindo afinidades mais ou menos evidentes com os necrológicos, os panegíricos, os currículos, a publicidade e a oratória de sobremesa, de cafezinho e de bar. Não há porque ser assim: “(...) O prefácio comovido e lacônico dos ensaios de Montaigne não é a página menos admirável de seu livro admirável. O de muitas obras que o tempo não quis esquecer é parte inseparável do texto. Em As mil e uma noites – ou, como quer Burton, O livro das mil noites e uma noite –, a fábula inicial do rei que faz decapitar sua rainha cada manhã não é menos prodigiosa do que as que se seguem; o cortejo dos peregrinos que irão narrar, em sua piedosa cavalgada, os heterogêneos Contos de Canterbury foi por muitos considerado o mais ágil relato 10 do volume. Nos palcos elisabetanos era através do prólogo que o ator anunciava o 1 tema do drama.” Encontramos na última frase da citação acima uma coisa realmente digna de nota. Anunciar o tema do drama: eis um bom propósito para uma introdução de uma monografia de conclusão de curso de Graduação em História. Acho que é redundante afirmar que, dados os complexos mecanismos criativos que presidem a utilização da palavra escrita, e a virtual imprevisibilidade do resultado do esforço de colocarmos em caracteres as nossas idéias, esta introdução está sendo a última parte deste trabalho que redijo, de modo que também é uma espécie de despedida. O que pretendo fazer nesta espécie de ante-sala do discurso é apresentar alguns dos pressupostos, justificativas, abordagens e fontes que presidiram a composição de meu texto, retornando neste âmbito a um Projeto de Pesquisa que, com a finalidade de pontuar pela primeira vez tudo isto para mim mesmo, redigi em fins de novembro ou começo de dezembro do ano passado. Em tal esforço, espero conseguir apresentar com sucesso de onde parti e onde pude chegar; além do dever que me é imposto pelo imperativo da probidade intelectual, pretendo com isto facilitar o julgamento de eventuais leitores acerca daquilo que consegui (ou não) de fato obter em minha lida. Apresentação, projeto e instrumento de diagnóstico. De fato, não há agora mais nada que eu possa esperar de uma minha introdução a este modesto texto. 1 Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. pp. 8-9. 11 II. “Uma jovem chamada Ann descreveu como, na terapia, recuperou a memória do temível abuso satânico sofrido nas mãos dos pais e também descobriu que possuía múltiplas personalidades. Vídeotaipes e fotografias de família mostravam Ann, antes da terapia, como jovem animada e cantora de futuro promissor... ‘Não me importa se é ou não verdade’, afirmou o terapeuta de Ann, Douglas Sawin. ‘Para mim, o importante é ouvir a verdade da criança, a verdade da paciente. É isso que é importante. O que realmente aconteceu é irrelevante’. Quando lhe perguntaram sobre a possibilidade do relato de um cliente ser um delírio, Sawin não vacilou: ‘Todos nós vivemos em um delírio, só que mais ou menos delirante.’” DANIEL L. SCHATCHER, Em busca da memória “Nosso objeto não é a erudição do Ser e da Cultura, mas, antes, aquela Roma onde Cristo era Romano.” ERICH AUERBACH, Anotação no livro dos convidados do Instituto de Colônia, 1932 O que pretendi fazer em minha monografia – o resultado, como já mencionei, fica a critério de eventuais leitores que ela venha a ter – foi analisar a narrativa composta por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica, obra em dez livros que Jacques Liébaert designou como sendo “(...) A glória de Eusébio historiador”2, acerca da institucionalização do movimento cristão e sua ascensão de religião perseguida ou marginalizada à crença protegida e talvez professada pelo Imperador Constantino – e, pouco mais tarde, religião oficial do Império Romano. Para tal fim, busquei utilizar constantemente uma abordagem estilística e semântica semelhante àquela que Peter Gay fez de uma série de diferentes autores e obras em seu livro O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt.3 Considerei a observação de Arnaldo Momigliano de que “(...) A procura pelos precursores de Eusébio começou muito cedo, talvez de forma já esperada por um de seus seguidores imediatos, Sozômeno”4, e não pretendei de forma alguma seguir aqui esta linha de observação estritamente. Busquei, entretanto, encontrar em alguns trechos selecionados da considerada obra de 2 Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). p. 148. 3 Peter GAY. O estilo na história : Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. (Trad. Denise Bottmann). São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 4 Arnaldo MOMIGLIANO. “As origens da historiografia eclesiástica”. In: As raízes clássicas da historiografia moderna. (Trad. Maria Beatriz B. Florenzano). Bauru: EDUSC, 2004. p. 195. 12 Eusébio as marcas de sua formação pessoal, de suas leituras, suas simpatias (e antipatias) doutrinais e políticas, do seu lugar institucional de redação, e das matrizes de pensamento com as quais dialogou ao compor sua obra magna. Fiz isto, conforme me foi possível, de maneira mais ou menos minuciosa, certo de que se tratava de esforço trabalhoso, mas de resultados suculentos na medida em que forneceu muitos e interessantes insights sobre os encaminhamentos específicos que o bispo de Cesaréia deu a seu texto. Ao dissertar sobre esta ruptura ou desenvolvimento que é a passagem daquilo que se viria a chamar de Era Apostólica ou de Cristianismo Primitivo para a Igreja constantiniana, Eusébio de Cesaréia se posicionou sobre a instituição eclesiástica cristã de seu tempo. Ao fazer tal coisa, apoiando-se em ampla pesquisa documental e flertando com o gênero memorialístico, o bispo historiador se inseriu nos grandes debates que lhe eram contemporâneos, e elaborou a partir deles uma teoria cristã da História, assim como uma teologia política particular, de grande ressonância posterior. Nesta formulação se deixam entrever as formas segundo as quais ele compreendeu a natureza da história e as forças que a põem em movimento de contínua mutação. Cronista das perseguições sofridas pela Igreja Cristã desde os seus primórdios até os dias em que viveu e defensor de sua fé frente aos argumentos que lhe eram opostos, por um lado, pelos críticos judeus e pagãos e, por outro, pelas versões alternativas do cristianismo que disputavam espaço com a sua própria, Eusébio descreveu o favorecimento de sua fé por Constantino e a vitória deste contra seus inimigos políticos mais imediatos como uma intervenção direta de Deus na história. Seu elogio do Imperador, novo Moisés e novo Paulo, não é (ou não é apenas, poderiam apontar alguns), contudo, a bajulação de um eclesiástico que se beneficiou diretamente da proteção imperial ao clero, mas a elaboração de uma narrativa original sobre o cristianismo. Para demonstrar isto, recorri ao exame não do tardio e declaradamente panegírico eusebiano que recebeu o nome de Vida de Constantino, mas de uma obra que se pretendeu espelho dos fatos – e que talvez por isto seja mais reveladora de que os fatos em si mesmos, caso existam, são impossíveis de serem apreendidos e narrados de forma objetiva mesmo por um autor aferrado a este propósito e extremamente cônscio de suas tarefas. 13 Na História Eclesiástica podemos perceber, antes de qualquer outra coisa, que a Igreja não é mais considerada apenas como a comunidade dos que esperavam a iminente volta do Cristo para julgar os vivos e os mortos, mas um instrumento para a realização do Reino de Deus neste mundo. Trata-se da marca de uma significativa mudança de paradigma em relação à crença da grande maioria dos cristãos dos anos anteriores. Estruturando com base neste a sua mais influente obra, Eusébio de Cesaréia de algum modo ajudou a desencadear o vasto – e então já iniciado – processo de institucionalização da esperança cristã e de eclesialização da idéia evangélica de “Reino”, percurso este que está, especificamente, na base da montagem ideológica da autocracia bizantina e, de maneira mais ampla, do próprio conceito de Império (ou Estado) Cristão. Deve-se explicitar que para este autor, na raiz mesmo de sua filosofia da história, estava a convicção de que a realidade não é apenas o conjunto arbitrário de eventos encadeados quase que ao acaso, mas sim um todo prenhe de significados e direcionamentos mais ou menos velados; é simbólica e demanda interpretação, no sentido de que remete a elementos não-visíveis, que estão “abaixo da superfície” dos acontecimentos. Para Eusébio esta verdade dissimulada sob as aparências dos episódios correspondia não a um palco conflituoso onde se entrechocam de maneira informe as razões secretas do próprio homem e as combinações e injunções de paixões e interesses que o levam a agir, mas sim a um mundo superior de realização dos desígnios divinos, presidido mesmo em seus mais caóticos momentos pela providência transcendente e salvífica manifesta na redenção oferecida ao mundo pelo sacrifício de Jesus Cristo. Como já mencionado, o mais importante referencial teórico no qual me alicercei para realizar a pesquisa que estrutura esta monografia e redigi-la foi o formulado e exercitado pelo historiador norte-americano Peter Gay no seu já referido trabalho. Nesta obra breve e sumamente interessante, confessadamente inspirada em uma frase do livro de Sir Ronald Syme sobre Tácito – “os homens e as dinastias passam, mas o estilo perdura”5 –, Peter Gay aplicou para análise de uma série de autores da historiografia o mesmo método filológico e sociológico que Eric Auerbach aplicou em seu Mimesis às obras clássicas da literatura 5 Citado em: P. GAY. Op. cit. p. 11. 14 ocidental para investigar como nestas é representada a realidade.6 Com efeito, desde o primeiro momento em que imaginei este empreendimento que agora ofereço à vossa leitura, acreditei que podia ser consideravelmente proveitoso o recurso ao tipo de análise que Eric Auerbach e Peter Gay formularam e exercitaram em suas mencionadas obras para lidar com a narrativa apresentada por Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica sobre a institucionalização do movimento cristão. Isso se dá na medida em que o estudo do estilo, que “molda e é por sua vez moldado pelo conteúdo”7 de um texto, possui um importante valor diagnóstico para a história da historiografia: “(...) a maneira cultivada do escritor expressa de maneira instrutiva tanto o seu passado pessoal quanto as formas de pensar, sentir, crer e operar da [sua] cultura. (...) O estilo é o desenho no tapete – a indicação inequívoca, para o colecionador informado, do local e época e sua origem. É também a marca nas asas da borboleta – a assinatura inconfundível, para o lepidopterista atento, de sua espécie. E é o gesto involuntário da testemunha no banco dos réus – o sinal infalível, para o advogado observador, da prova oculta.”8 Acredito que semelhante abordagem, baseada na crença de que, ao invés de apenas buscar ler nas entrelinhas das obras para se obter informações relevantes sobre seus autores, pode-se chegar a resultados sumamente recompensadores ao se ler as próprias linhas por eles redigidas9, podem ajudarnos a vislumbrar as pessoas por trás – ou melhor, dentro – dos textos, a que diálogos devem ou contribuem em algo, como pensam seu próprio ofício e como compreendem a natureza do mundo em que vivem. Ainda que as convenções da escrita pública e, ao menos em se tratando de obras de narrativa histórica, as pretensões de veracidade ou verossimilhança limitem em muito as possibilidades de caracterização dos eventos de acordo com certas normativas retóricas, variadas de sociedade a sociedade, de época cultural a época cultural, sempre há certa margem de manobra larga o suficiente para ser muito instrutiva e nos indicar algo 6 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. Jacob Guinsburg). 7 P. GAY. Op. cit. p. 17. 8 Id. Op. cit. pp. 20-21. 9 Ibid. Op. cit. p. 29. 15 sobre os próprios historiógrafos. Mesmo as referidas convenções nos remetem a certos contextos, a certas compreensões socialmente forjadas, sobre o mundo, e para a reflexão do historiador isto não deixa de ser um indício relevante – muito ao contrário! Os artifícios narrativos que um autor usa para caracterizar eventos e personagens são possíveis indicações de qual sua opinião sobre aquilo que ele narra; a maneira como ele compõe sua narrativa, identificada no “seu tom de voz tal como surge na tensão ou no repouso de suas orações, seus adjetivos preferidos, sua escolha de episódios ilustrativos, suas tônicas, seus epigramas”10, desvela, ainda que de modo efêmero, qual a sua particular compreensão do homem e do mundo – afinal, faz toda a diferença contar uma mesma história, a História, como se esta fosse um épico, uma tragédia, uma comédia, uma liturgia ou teatro sacro, uma peregrinação, um carnaval ou um caos de desmandos e arbitrariedades sem sentido, ou seja, sem direção e significado. Além do mais, tais representações acerca do homem e do mundo possuem suas conseqüências, corolários sociopolíticos e morais que devem ser levados em conta, ainda que não de maneira anacrônica, em sua análise. Os autores e fontes que um historiador cita também são extremamente importantes para se definir com quem ele dialoga e onde acredita estarem as janelas para o passado a partir de seu presente – ou simplesmente que narrativas e vestígios despertaram seu interesse ou estavam disponíveis para o seu exame. Como, porque e através de quê um autor capta o passado e o representa em uma narrativa são coisas que apenas cuidadosa leitura de sua própria obra, considerada em seu próprio contexto, pode revelar. Peter Gay afirma que se um historiador “tem alguma consciência e competência profissional, irá necessariamente dizer muito mais a respeito do período sobre o qual está escrevendo do que sobre o período em que vive”11, mas ainda assim suas escolhas de tema, de eventos exemplares que invoca para apresentá-lo, as expressões que usa para fazê-lo, as fontes que utiliza ou rejeita para sua pesquisa, os autores com os quais concorda ou discorda, a tradição literária e científica na qual se insere ou contra qual se insurge, as formas retóricas de exposição das quais se apropria, o “tom de voz” que se faz presente no seu texto, são todos indícios que remetem ao 10 Ibid. Op. cit. p. 22. 11 Ibid. Op. cit. p. 30. 16 homem que escreve, suas intuições, crenças e intencionalidades mais profundas, ao mundo de seu ofício e ao seu universo de referências. 17 III. “O teólogo pode bem se comprazer na deleitosa tarefa de descrever a religião descendo do céu revestida de sua pureza natural. Ao historiador compete um encargo mais melancólico. Cumpre-lhe descobrir a inevitável mistura de erro e corrupção por ela contraída numa longa residência sobre a terra, em meio a uma raça de seres débeis e degenerados.” EDWARD GIBBON, Declínio e queda do Império Romano Como limitação e possibilidade de seu próprio ofício, os cientistas sociais – sejam eles historiadores, sociólogos, antropólogos, ou de outros tipos quaisquer – não podem ascender a verdades convencional e interpretativamente válidas sem descer ao intrincado universo de fatos particulares que compõem seu objeto de estudo.12 Um historiador especialmente interessado em se aproveitar do – como o chama o literato argentino Jorge Luis Borges – melancólico acaso que faz com que depois de certo tempo os próprios historiadores e suas narrativas historiográficas se convertam eles mesmos em objetos passíveis de uma análise de dimensões históricas deve ser bastante cuidadoso no trabalho de pesquisa a que se propõe.13 Somente a partir de um estudo adequadamente profundo de trabalhos específicos sobre temas bem delimitados é que ele poderá vir a em algum momento de sua carreira tecer considerações de caráter mais geral sobre como a realidade é, ou melhor, como a realidade pode ser – em diferentes contextos, de acordo com diferentes intencionalidades, dentro de diferentes dinâmicas de diálogo, pesquisa e escrita – retratada por uma obra de historiografia. Dessa maneira acima referida é que se quis proceder na elaboração deste trabalho de monografia, fazendo-o em relação a um autor e obra específicos: no presente caso, Eusébio de Cesaréia e sua História Eclesiástica. O que pretendi foi produzir como que um instantâneo discursivo sobre a imagem composta por este historiador acerca do desenvolvimento histórico do movimento cristão dos primeiros séculos e a sua institucionalização como religião permitida e protegida do Império Romano, buscando elencar alguns dos elementos contextuais, autores e conceitos com os quais o bispo de Cesaréia dialogou para compô-la. 12 Cf. Clifford GEERTZ. Observando o Islã : O desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”; dir. Gilberto Velho). ps. 12-14 e 33-35. 13 Cf. J. L. BORGES. Op. cit. pp. 86-87. 18 Se é verdade que certos tipos particulares de fé – aliás, como certos tipos particulares de dúvida – florescem em certos tipos particulares de sociedade e dinâmica social, também nos é possível afirmar que certa compreensão do historiador sobre o que faz e sobre qual a natureza de seu objeto de estudos está relacionada intimamente com seu contexto cultural específico. Não que isso seja um fator completamente determinante do que pode ou não elaborar ou fazer ele a partir de sua apropriação particular dos instrumentos de pensamento que lhe são fornecidos por sua formação cultural, mas não levá-la em conta seria como observar uma aranha que se move em uma teia sem considerar o formato e a construção da própria teia. Como já atestamos acima, qualquer historiador seriamente debruçado sobre determinada realidade que não é sua própria, passada, procurará escrever em seu âmbito profissional mais sobre seu estrito objeto de estudos do que sobre si mesmo; contudo, suas próprias escolhas de fatos a narrar como exemplares de certos processos, sua abordagem temática, as fontes que utiliza em sua pesquisa, os autores com os quais dialoga e como o faz, o estilo com o qual compõe seu texto, são indícios muito relevantes sobre o homem que escreve, o mundo no qual ele se insere (e para o qual ele escreve) e como ele compreende e lida com este mundo.14 Fazer a análise de como Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica retratou e interpretou o processo de oficialização da Igreja Cristã, que marca a passagem do cristianismo de uma crença mais ou menos periférica e esporadicamente perseguida para uma religião permitida e protegida pelo Império Romano, é pensar também como este homem compreendia e se posicionava em relação à sua própria crença cristã, e, mais ainda, é entrever como este pensador compreendia seu próprio ofício, a natureza, da história, do homem e do mundo. Antes de prosseguirmos em tal intento, é necessário fazer ainda algumas considerações preliminares. A primeira dela diz respeito à terminologia usada no título e no corpo deste trabalho. Em toda a parte preferi usar para me referir ao conjunto dos seguidores de Jesus de Nazaré a expressão movimento cristão ou movimento de Jesus do que cristianismo – com a qual expressamos o variado e nem sempre coerente sistema de crenças dos diversos cristãos – ou Igreja Cristã – que associamos a uma facção do movimento cristã que veio a se tornar 14 Cf. C. GEERTZ. Op. cit. p. cit. P. GAY. Op. cit. p. cit. 19 hegemônica contra outras versões concorrentes que acabaram sendo silenciadas e, por assim dizer, ficaram para trás; por institucionalização do movimento cristão queremos designar justamente a conformação de uma considerável fatia sua como uma instituição sociopolítica e jurídica solidamente estabelecida sobre uma realidade humana e patrimonial concretas e um conjunto de crenças conseqüentes inter-relacionadas de forma sistemática. Nisto tudo segui as considerações que Dale T. Irvin e Scott W. Sunquist registraram no prefácio da obra História do movimento cristão mundial, por eles organizada: “(...) O movimento cristão tem sido sempre maior do que qualquer comunidade eclesial individual ou local imaginou que fosse. Sua história reflete uma enorme diversidade de crenças e práticas através dos dois milênios passados. Poucos haverão de concordar com tudo o quanto tem sido dito ou feito em nome do cristianismo, e na verdade a própria história do movimento está repleta de disputas. Para narrar uma história fidedigna do movimento, é preciso levar em conta esta diversidade, as divergências que muitas vezes separam várias partes uma da outra, sem reduzir sua história comum à perspectiva de uma só. Somos forçados a unir numa história comum indivíduos e comunidades que em vida muitas vezes lutaram para distanciar-se uns dos outros, e cujos descendentes eclesiásticos com freqüência permanecem em desacordo uns com os outros hoje em dia. Muitas dessas diferenças surgiram como resultado da ultrapassagem por parte da fé cristã dos limites históricos da linguagem, da cultura e da identidade. O próprio tempo introduziu ulteriores mudanças no significado, na expressão e na prática. O movimento cristão foi continuamente diversificando-se por meio de 15 suas expansões, embora pretendesse permanecer o mesmo.” Em segundo lugar, tive de enfrentar a problemática das fontes. É um pouco embaraçoso reconhecer que lidei como amador com a História Eclesiástica, e que um meu próprio estudo um pouco mais aprofundado implicaria revisões muito sérias no trabalho que agora apresento. Embora tenha escolhido trabalhar com a análise estilística de um historiador de língua grega, o meu domínio do grego é simplesmente uma nulidade, reduzido ao de perscrutador de notas de rodapé e um tanto quanto displicente utilizador de dicionários e gramáticas. Evidentemente também considero saudável a regra de não se tratar de autores com os quais não se pode lidar no original, mas fui levado a desrespeitá-la não só por um fascinado ímpeto aventureiro que, ultrapassando a curiosidade, chegou a constituir quase uma imprudência e uma deselegância, mas também pela grande importância de 15 Dale T. IRVIN e Scott W. SUNQUIST (orgs.). História do movimento cristão mundial. Vol. I : Do cristianismo primitivo a 1453. (Trad. José Raimundo Vidigal). São Paulo: Paulus, 2005. p. 5. 20 Eusébio de Cesaréia na formação da tradição historiográfica do Ocidente e do Oriente de matriz civilizacional cristã – assim como pelo melancólico fato de que este autor é muito pouco ou quase nada estudado entre nós. Prescindir de investigá-lo por não poder apreciá-lo na sua formulação original seria equivalente a dar um tratamento sofístico àquela afirmação de Heródoto de que as nascentes do Nilo são desconhecidas16, contentando-me em afirmar que estas são de todo insondáveis e a observar encantado e ignorante o movimento sazonal das baixas e cheias e a fecundidade e devastação que as águas deste rio trazem à terra do Egito. Posto tudo isto, tive de lidar com uma obscura tradução em português da História Eclesiástica17, que cotejei com a mais autorizada feita por Argimiro VelascoDelgado, publicada em espanhol junto com o texto grego e acompanhada por uma minuciosa introdução, índices temáticos e onomásticos, referências bibliográficas muito completas e abundantes notas explicativas, em dois volumes pela Biblioteca de Autores Cristianos (BAC).18 Comparando as duas traduções, acabei constatando que a brasileira de que disponho é uma versão não-creditada da tradução Velasco-Delgado, mantendo inclusive fragmentos de algumas de suas notas – aliás, muito empobrecidos – e muitos espanholismos. Dadas estas circunstâncias, optei por citar sempre o texto em português, recorrendo, contudo, às notas e etimologias da outra tradução; para os trechos e termos de entendimento especialmente difícil, recorri sempre a esta, e em algumas vezes não hesitei em tatear o vocabulário grego com o auxílio das referências do enciclopédico Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs.19 Em terceiro lugar, há a questão da bibliografia que utilizei. Baseei a maior parte de minha análise em minhas próprias impressões e em uma mistura muito heterogênea de textos de historiadores, teólogos, cientistas sociais, literatos e filósofos. Há os que possam vir a achar que este ecletismo é uma desvantagem, 16 HERÓDOTO. História : O relato clássico da guerra entre Gregos e Persas. (Trad. J. Brito Broca; introd. Vítor de Azevedo). (2ª ed. reform.). São Paulo: Ediouro / Prestígio, 2001. (Col. “Clássicos Ilustrados”). Livro II, 28. p. 200: “(...) Nenhum dos Egípcios, Lídios e Gregos com quem palestrei vangloriava-se de conhecer as nascentes do Nilo”. 17 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. 18 EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997 [1973]. (2 vol.). 19 VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. 21 mas considero justamente o contrário. Transitei de bom grado entre diferentes discursos, examinando-os e colhendo neles o que achei proveitoso para ser aqui utilizado, e procurei em toda parte ter o cuidado de fazer as adequadas referências que pudessem situar ao leitor o local de fala dos autores mencionados. Os eruditos que estudaram a Antigüidade cristã, sejam eles de quaisquer formações acadêmicas, certamente estavam – e estão – no nível dos mais habilidosos de seus pares e produziram nos últimos séculos um verdadeiro universo de tratados muito minuciosos, labirinto que imagino impossível de ser percorrido inteiramente em uma só vida humana. Não tenho a mínima pretensão de cobrir toda esta polifônica biblioteca de Babel, mas fico satisfeito se os que lerem este trabalho considerarem que consegui entrar de alguma maneira proveitosa no vasto e altamente especializado “Campeonato Greco-Romano”.20 20 A expressão é do sociólogo Rodney Stark, que diz ter escrito o ensaio intitulado “The Class Basis of Early Christianity: Inferences from a Sociological Model” – cujos desdobramentos deram origem ao seu livro The rise of christianity – com o principal propósito de saber se era “suficientemente bom para jogar no Campeonato Greco-Romano”. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 7. Capítulo 1 A BIBLIOTECA DE CESARÉIA I. “Tu que transcreverás este livro, eu te conjuro, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de sua volta gloriosa, na qual virá julgar os vivos e os mortos: confronta o que tiveres copiado, e corrige-o com cuidado no exemplar em que o tiveres escrito. Transcreve também do mesmo modo esta súplica e coloca-o em tua cópia.” JERÔNIMO, De viris ilustribus Os primeiros passos do cristianismo rumo à sua institucionalização se deram na chamada “era da ansiedade”, conforme a definiu o filósofo Eric Dodds.21 De acordo com o que vemos na imprensa periódica e nos jornais da semana, segundo aquilo que vivemos em nosso cotidiano, poderíamos objetar – e com muita propriedade – que o nosso próprio tempo também é um período de ansiedade; além disso, o estudioso de História pode afirmar que seguramente todos os tempos – cada um a seu modo – são de ansiedade. Mais ainda: alguns, de mais discernimento, declaram que não há sequer “eras”, que estas são apenas divisões artificiais criadas a posteriori pelos historiadores e pelos líderes religiosos e políticos, pessoas que pretensiosa e arbitrariamente se propõem a fatiar a experiência humana de acordo com suas próprias concepções e interesses. Nisto tudo não deixam de ter razão. Aqueles anos transcorridos entre a chegada de Marco Aurélio ao trono (161 d.C.) e o Edito de Milão (313 d.C.), entretanto, foram para os habitantes das terras que então compunham o Império Romano marcados de forma singular por um extremo caos e insegurança, instaurados por calamidades naturais e sociais: constante inquietação financeira, declínio acentuado do poder das autoridades civis partidárias do legalismo em favor do autoritarismo dos magistrados investidos de funções militares, crescente escassez de gêneros alimentícios, decréscimo acentuado das taxas de natalidade, desorganização dos padrões tradicionais de organização familiar, mudança nas estruturas produtivas no campo, miséria urbana crônica, epidemias de grande 21 Citado em: Marilia Pacheco FIORILLO. O Deus exilado : Breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. pp. 121-122. 23 alcance e os efeitos debilitantes de uma estrutura cultural saturada “da crueldade caprichosa e do amor substitutivo da morte”.22 A tudo isto, somavam-se novas pressões surgidas nas fronteiras, e uma sensação de opressão e isolamento crescentes: o cristão Bardaisan – que eventualmente viria a se tornar, ou, como se queira, a ser considerado um heresiarca –, elemento complexo com uma aguda visão de seu mundo, falante de siríaco como língua-mãe e de pelo menos uma outra meia dúzia de idiomas, famoso por sua destreza como cavaleiro e arqueiro, bem versado na filosofia platônica e profundo conhecedor das Escrituras Sagradas de seus correligionários e dos judeus, afirmou. que a civilização estava cercada por terras ermas e povoadas por habitantes sinistros, entre os quais não havia nem mesmo o conhecimento das facilidades indispensáveis à vida urbana.23 No máximo na década de 210, escreveu ele que “(...) Em todas as regiões dos Sarracenos, na Líbia Superior, entre os Mauritânios... na Alemanha exterior, na Sarmácia Superior... em todos os territórios a norte do Ponto [mar Negro], do Cáucaso... e nas terras do outro lado do Oxus, ninguém vê escultores, pintores, perfumistas, cambistas ou poetas.”24 A maior parte dos súditos greco-latinos de Roma, convencidos de sua superioridade cultural, mas cada vez mais hesitantes quanto às suas reais capacidades bélicas, deve ter compartilhado da claustrofobia de Bardaisan, agravada mais e mais conforme a própria porção do mundo que consideravam como civilizada tornava-se um lugar tão estranho quanto violento. De um modo geral, o terceiro século depois do nascimento e morte de Jesus de Nazaré foi marcado pela turbulência e pela insegurança política na Bacia do Mediterrâneo, e em seus anos o governo imperial romano tornou-se, “cada vez mais, o prêmio a ser conquistado pelo chefe militar mais forte, pelos generais ambiciosos que abundavam”.25 Nestes dias, “(...) havia quase que invariavelmente alguma província nas mãos de um usurpador e, na prática, o império dificilmente 22 Cf. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 239. 23 Cf. Peter BROWN. A ascensão do cristianismo no ocidente. (Trad. Eduardo Nogueira; Rev. Saul Barata). Lisboa: Presença, 1999. (Col. “Construir a Europa”; dir. Jacques Le Goff). ps. 21 e 24. 24 25 Citado em: Id. Op. cit. p. cit. Steven RUNCIMAN. A civilização bizantina. (Trad. Waltensir Dutra). 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. pp. 12-13. 24 poderia ser considerado como uma comunidade unida”.26 O mais eficaz sistema sócio-político e econômico pré-industrial do mundo – com a possível exceção da China confuciana27 –, sob vários aspectos, finalmente defrontava-se com os seus limites e seguia a vereda do declínio; os grandes oradores e historiadores do mundo clássico, entretanto, operando com categorias de ordem apriorística e imutável, eram incapazes de propor, ou mesmo de conceber tal coisa: não viam e não podiam ver forças sociais em atuação, “mas somente vícios e virtudes, êxitos e erros; a sua maneira de colocar os problemas não é espiritual nem materialmente histórico-evolutiva, mas [exclusivamente] moralista.”28 Apenas na década de 280, Diocleciano, “o primeiro grande estadista que Roma produziu desde Augusto”29, conseguiu fazer implementar um programa de reformas de longo alcance com vistas à pacificação do Império pela reorganização das instâncias de comando civil e militar, uniformização da administração, submissão completa do exército, normalização do poder econômico do governo pela estabilização da moeda e valorização ideológica da pessoa do imperador – segundo Georges Suffert, ao proceder assim, este soberano acabou inventando “um dos primeiros Estados modernos e totalitários da História.”30 A Tetrarquia por ele instaurada, contudo, revelou-se mais frágil do que se poderia ter antecipado e, de fato, elevou a um novo nível os embates pelo governo de Roma: “(...) O império reformado por Diocleciano mal resistiu à sua abdicação, em 305. (...) [Ele] fizera o império depender do imperador, mas o sistema de dois 26 Id. Op. cit. p. cit. 27 Stephen L. DYSON. “A classical archaeologist’s responses to the ‘New Archeology’”. In: Bulletin of the American Schools of Oriental Research, s.l., s.v., n. 242, pp. 7-13, s.d. p. 10. Apud: John Dominic CROSSAN. O nascimento do cristianismo : O que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. (Trad. Barbara T. Lambert). São Paulo: Paulinas, 2004. (Col. “Repensar”). p. 222. 28 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. Jacob Guinsburg). p. 32. 29 30 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 17. Georges SUFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 63. O mesmo autor relativiza, a seguir, ainda na página citada, esta polêmica e certamente anacrônica caracterização ao declarar que se trata de um “(...) Julgamento um tanto excessivo, (...) [ainda que seja] certo que a centralização [administrativa] não pára de aumentar, que a polícia torna-se onipresente e que uma vaga religiosidade envolve este novo império.” Id. p. cit. 25 imperadores e uma norma de sucessão ao trono só poderia perdurar se os candidatos imperiais fossem homens de espírito elevado, isentos de ciúmes e de suspeitas. O título de césar era também perigoso, muito alto, mas ainda não bastante alto. Desapareceu rapidamente. Em 311 havia quatro imperadores (...). A cena estava, evidentemente, preparada para a guerra civil.”31 Nos freqüentes conflitos armados – contra correligionários romanos, contra inimigos externos – cidadãos pacíficos podiam inesperadamente se ver desgraçados, pilhados, violados, torturados, mortos; a Pax Romana era cada vez mais apenas um artifício retórico do que uma realidade cotidiana retoricamente apresentada pelos oradores, poetas e letrados.32 Edward Gibbon escreveu sobre este período que então “(...) O Império se viu afligido por cinco guerras civis; no restante do tempo, reinou não tanto um estado de tranqüilidade como de trégua armada entre os diversos monarcas hostis que, encarando-se um ao outro com olhos de medo e rancor, forcejavam por aumentar suas respectivas forças às custas de seus súditos.”33 Este ambiente político tumultuado, conforme escreveu Steven Runciman, contrastava com o que este historiador considerou “padrões de civilização [que] eram ainda altos.”34 O empobrecimento geral da população coincidiu com a ampliação do abismo existente entre pobres e ricos, e o fato material verificável é que, no âmbito de sucessivas crises, ainda que imersos na insegurança, “as classes mais ricas desfrutavam um conforto material e um luxo que ultrapassavam 31 S. RUNCIMAN. Op. cit. pp. 19-20. 32 E isto para aqueles homens livres que possuíam a cidadania romana. Para os povos que foram conquistados pelas armas romanas, ou que lhes declararam por si mesmos a sua submissão, a Pax Romana foi sempre, constitutivamente, marcada por uma “paz” no mínimo ambígua. É fato que durante um considerável período em toda a grande região sob o domínio romano praticamente nenhuma guerra devastava os campos e as cidades, as letras, artes e ofícios podiam desenvolver-se, por toda parte vigorava o mesmo sistema jurídico, e as fronteiras se encontravam em relativa tranqüilidade, mas tratava-se de uma situação de tensão latente. A paz havia sido estabelecida e era mantida pela marcha das legiões – paz-de-vitória para os romanos, paz-de-submissão para os vencidos – e por uma relação que, sendo na teoria uma relação de direito entre dois parceiros, era “na realidade uma ordem de dominação (...) acompanhada de rios de sangue e lágrimas de enormes dimensões”. Cf. Maria Clara Lucchetti BINGEMER (org.) Violência e religião : Cristianismo, Islamismo, Judaísmo : Três religiões em conflito e em diálogo. Rio de Janeiro / São Paulo: PUC-Rio / Loyola, 2001. (Col. “Teologia e Ciências Humanas”, n. 3). pp. 123-124. A este respeito, ver também: Klaus WENGST. Pax Romana : Pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991. 33 Edward GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. (Org. e introd. Dero A. Saunders; Pref. Charles A. Robinson. Jr.; Trad. e notas suplem. José P. Paes). Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 197. 34 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 13. 26 qualquer coisa já vista pelo mundo.”35 Com a miopia comum a grande parte de seus camaradas ricos de outros tempos e locais, em meio à doença, à violência, às moscas, os romanos mais abastados tornaram-se verdadeiros aficionados por incenso, cada vez mais ávidos dos prazeres sensuais que lhes podiam proporcionar os ungüentos raros, as peles e cabelos de servas e eunucos, o vinho de Falerno, as penas coloridas de pássaros exóticos, a lã purpúrea ou escarlate, a cera, a pimenta, o mel.36 Os “(...) Templos, estátuas, poemas épicos, revestiam-se todos de magnificência e rebuscamento”37, e a “arte e as letras ainda se mantinham fiéis aos velhos poemas gregos ou às suas magníficas reproduções surgidas na Roma augustina (...), mas a grande civilização que [o Império Romano] copiava perdera sua força vital”38 com o advento de profundas mudanças culturais. Na clássica cidade-estado grega o cidadão estava imerso na vida pública, identificando-a com a esfera mais imediata, mais íntima de sua existência: a lei, a defesa e a gestão da pólis eram assuntos intrinsecamente seus – o que não foi o caso nas monarquias helenísticas. Nestas a identificação entre governo e cidadão desapareceu, e este se viu reduzido à súdito – uma pessoa submissa à um núcleo de poder externo, que não se confunde com seu âmbito particular de interesses e afazeres. Afastado de constantes obrigações políticas, entretanto, ele também foi liberado para cultivar sua personalidade de diversas formas, e posto em diálogo com discursos e símbolos estrangeiros que então se punham à sua frente na medida em que as fronteiras estatais que o limitavam foram progressivamente extintas e seu horizonte de pensamento se expandiu para muito além daquilo que seus olhos podiam visar.39 Com a desintegração dos governos de origem macedônica e a expansão do Império Romano, que buscou a colaboração dos dirigentes nativos das diversas áreas que conquistou ao mesmo tempo em que 35 Id. p. cit. 36 Cf. R. STARK. Op. cit. p. 172. PETRÔNIO. “A ceia de Trimalchão”. In: Saticiron. (Trad. Miguel Ruas). São Paulo: Atemas. 1949. (Col. “Biblioteca Clássica”, v. 30). ps. 45-46 e 54. 37 S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 14. 38 Id. p.cit. 39 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 124-125. Edward McNall BURNS. História da Civilização Ocidental. (Trad. de Lourival G. Machado, Lourdes S. Machado e Leonel Vallandro). (3ª ed. rev. e at.). Porto Alegre: Globo, 1975. pp. 193-210. Henri Irenée MARROU. História da Educação na Antigüidade. São Paulo: Herder / USP, 1966. pp. 153-163 (especialmente as pp. 156-161). Helmut KOESTER. Introdução ao Novo Testamento. Vol. I : História, cultura e religião do período helenístico. (Trad. Euclides Luiz Calloni). São Paulo: Paulus, 2005. ps. 44-47, 105-118 e 167-170. 27 “incentivou, como precavida forma de controle administrativo, a assimilação lingüística e cultural”40, esta tendência ao individualismo e ao cosmopolitismo se acentuou, sintetizando novas formas de ser no mundo, sincréticas e concorrentes em um mercado discursivo caracterizado justamente pela livre-concorrência de idéias e modos de viver.41 Constituída esta estrutura, “(...) A Paidéia helenística [sic] recuou e cedeu (...). Agora não se lia mais o Platão político da República ou o comentador da ética socrática, mas o Platão místico de textos como Timeu.”42 Essa metamorfose teve importante ressonância na produção e preservação das fontes materiais do conhecimento formal nos primeiros séculos depois de Cristo. Para Edward Gibbon, este “homem engenhoso que, além do mais, tinha razão (...) [ou, para escrever em] palavras fatais, um clássico”43, este período em 40 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 124. 41 Cf. Marcus J. BORG e John Dominic CROSSAN. A última semana : Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. (Trad. de Alves Calado). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. ps. 27 e 31. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 124-125. S. RUNCIMAN. Op. cit. p. 14. H. I. MARROU. Op. cit. ps. 375-410 e 447-453. 42 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 126. Sendo plenamente válida a frase no âmbito de nossa argumentação, cremos, entretanto, que há uma pequena desatenção conceitual da parte da autora neste trecho que citamos. Pode-se considerá-la assim ou não. De nossa parte, cremos que seria mais adequado empregar o adjetivos helênica ao invés de helenística, de modo que se evitasse confundir a situação cultural da Hélade das polei com o estado das coisas durante a expansão de Alexandre Magno e os vários governos instaurados por seus generais sucessores. 43 Jorge Luis BORGES. Outras Inquisições. (Trad. Davi Arrigucci Jr.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 101. Sabemos o quanto esse juízo sobre Edward Gibbon pode ser mal interpretado e mesmo encarado como polêmico no contexto de nosso trabalho, mas ainda assim fazemos questão de registrá-lo. A obra magna de Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, a qual faremos aqui ocasional referência, é uma narrativa que foi caracterizada por mais de duzentos anos, e ainda hoje, como clássica – adjetivo que contempla a sua profundidade discursiva, as sucessivas leituras que lhe foram feitas e cujas marcas enriquecedoras chegam até nós, o fato de que não deixa indiferente quem a lê, que desperta uma nuvem críticas sobre si e as repele, que teima em persistir como origem ou rumor mesmo em meio a tantos outros escritos atualíssimos sobre o mesmo tema, e que é, de alguma forma, imortal. É temeroso falar em imortalidade no que se refere à validade de um texto, dado que toda obra e existência humana é sempre datada, localizada no tempo e no espaço e necessariamente marcada por esta situação idiossincrática, mas o fato é quem em muitos aspectos, comparados com trabalhos mais contemporâneos sobre os primeiros séculos da Era Cristã, o Declínio e queda permanece incólume – e isso não apenas em função do encanto que desperta como peça literária. J. B. Bury, organizador de uma ilustre edição deste livro escreveu com muita propriedade que “nem o historiador nem o homem de letras subscreverão sem mil reservas os capítulos teológicos de Declínio e queda”, e que mesmo assim, contudo, as mais minuciosas investigações sobre o período que é objeto da maior atenção de Gibbon “nem modificaram de modo substancial nem infirmaram o acerto” dos argumentos mais gerais que estruturam sua narrativa sobre a decadência do Império Romano, de como esta se caracterizou como o triunfo conjunto da barbárie e do cristianismo. Cf. Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. pp. 85-87. Italo CALVINO. Por que ler os clássicos? (Trad. Nilson Moulin). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 9-16. Dero A. SAUNDERS. “Introdução do Organizador”. In: E. GIBBON. Op. cit. pp. 23-26. O literato argentino Jorge Luis Borges registra que se pode ler a obra do grande historiador inglês tanto para saber da história romana quanto para se verificar como 28 que convergiram a beligerância e o legalismo romanos, as ferramentas do pensar grego, a hermenêutica e o monoteísmo judaicos, o dualismo e a magia persas, a astrologia e o fatalismo babilônicos, a mitopolitologia egípcia, os cultos de mistério, o estoicismo, o cristianismo, o gnosticismo e o neoplatonismo44 foi uma “época de decadência do saber e dos valores humanos”45, na qual “(...) O conhecimento que melhor serve a nossa condição e faculdades, todo o âmbito da ciência moral, natural e matemática, era negligenciado”.46 As conseqüências desta negligência no referente ao que é o tema de nosso presente interesse se evidenciam a uma consideração mais cuidadosa com alguma facilidade. Durante um largo período de tempo, sucessivos imperadores romanos seguiram os exemplos de Júlio César e César Augusto e incluíram bibliotecas em seus projetos de edificação pública, não se limitando a dotar seus próprios palácios e templos de estantes, arquivos e salas de leitura e transcrição. Ainda sob o primeiro Imperador de Roma, os banhos públicos – solidários da distribuição de pães, das arenas de gladiadores e dos hipódromos como parte da política governamental de contentamento das massas – passaram a incluir bibliotecas em suas dependências, espaços que continham tanto tratados jurídicos, médicos e científicos quanto obras literárias familiares – ainda que cada vez mais destas do que daqueles.47 Segundo a narrativa do bibliotecário Matthew Battles, “(...) À medida que a República tornava-se Império, as bibliotecas tão adoradas por Cícero prosperavam como nunca. (...) em meio aos sucessivos incêndios que poderia imaginá-la um cavalheiro setecentista, duplicidade de sentidos que não esvazia de valor seu texto, mas, ao contrário, o potencializa: “(...) Afora aquela prevenção contra o sentimento religioso em geral e contra a fé cristã em particular, Gibbon parece abandonar-se aos fatos que narra e reflete-os com uma divina inconsciência que o aproxima da cegueira do destino, do próprio curso da história. Como quem sonha e sabe que sonha, como quem aceita os acasos e as trivialidades de um sonho, Gibbon em seu século XVIII, voltou a sonhar o que viveram ou sonharam os homens dos séculos anteriores, nas muralhas de Bizâncio ou nos desertos árabes. (...) Épocas houve em que se liam as páginas de Plínio em busca de precisões; hoje as lemos em busca de maravilhas (...). Esse dia ainda não chegou para Gibbon, e não sabemos se chegará.” J. L. BORGES. Prólogos. ps. cits. 44 Que “tornou-se uma espécie de igreja-mor da causa pagã, com seus próprios dogmas e apologética.” M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 126. 45 E. GIBBON. Op. cit. p. 195. 46 Id. p. 196. 47 Cf. Matthew BATTLES. A conturbada história das bibliotecas. (Trad. João V. G. Cuter). São Paulo: Planeta, 2003. pp. 52-53. 29 flagelavam Roma, elas permaneceram em funcionamento (...). Mesmo em pleno declínio, o esplendor do Império ainda persistiu por um bom tempo. Romanos cristianizados do quinto século ainda faziam visitas aos palacetes uns dos outros para reviver um pouco da glória dos dias idos. O prolífico epistológrafo Sidônio Apolinário, numa carta a seu amigo Donídio descreve uma cena desse tipo (...) [sua] descrição evidencia mudanças no uso dos livros, muito embora as pessoas continuem a apreciar ‘a grandeza da eloqüência latina’ (...) agora existe espaço 48 para livros dissidentes, escritos por aqueles que Gibbon chama de ‘galileus’.” Tanto o corrosivo desinteresse, e o abandono que lhe é naturalmente associado, quanto as depredações feitas por governantes ávidos de apagar a memória de seus antecessores, e por contingentes de invasores e multidões furiosas, se juntaram aos acidentes da natureza – terremotos, inundações, incêndios, erupções vulcânicas, traças, baratas, cupins, piolhos, vespas, fungos, ratos, a acidez das tintas empregadas na escrita49 – para privar a posteridade da maior parte dos numerosos acervos escritos da cultura greco-romana. Pela conjugação de vários fatores, as bibliotecas públicas romanas (assim como as helenísticas que as precederam e ainda subsistiam – como, por exemplo, a ilustre Biblioteca de Alexandria) desapareceram com alguma rapidez na confusão reinante na “era da ansiedade”.50 Conforme “(...) as luzes de Roma foram se afastando daquilo que Gibbon chamava de ‘a mais formosa porção da Terra’, suas bibliotecas também começaram a definhar e a morrer. De modo geral, foram tempos sombrios para o estudo, para os livros e para as bibliotecas. (...) Com o declínio econômico e social acentuando-se cada vez mais, secaram as fontes dos recursos necessários para adquirir e preparar o pergaminho e o papiro e para sustentar exércitos de copistas. Até mesmo as estradas caíram no abandono, pondo fim ao eficiente sistema postal de Roma, que tinha uma importância central para a vida da Respublica litterarum. Cartas do período tardio mostram a nobreza romana assumindo o encargo de produzir suas próprias cópias, sinal seguro de que a provisão de escravos cultos, que fora 51 constante, agora minguava.” 48 Id. Op. cit. pp. 56-57. 49 Para uma síntese acerca de alguns dos variados fatores que engendram a destruição de livros, ver: Fernando BÁEZ. História universal da destruição dos livros : Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. (Trad. Léo Schlafman). Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. (Especialmente as pp. 307-313, que tratam dos inimigos naturais dos livros, das tintas ácidas e dos papéis auto-destrutivos, dos exemplares únicos de obras antigas e modernas, e de quando as editores e alfândegas as destroem). 50 Id. Op. cit. ps. 69 e 98-102. 51 M. BATTLES. Op. cit. p. 61. 30 A perda do entusiasmo por certas vertentes da literatura clássica em favor dos textos metafísicos e místicos, e as constantes disputas entre os partidos de metafísicos e místicos, que não apenas liam, mas veneravam estes mencionados escritos, somados à fragilidade dos suportes da redação então conhecidos fizeram sumir para sempre um número impensável de obras.52 Para a irremediável tristeza dos estudiosos da posteridade, o ramo cristão que viria a triunfar sobre os demais – e que a partir deste ponto chamaremos neste nosso trabalho, por motivos puramente práticos, conscientes do anacronismo inerente ao termo, de paleortodoxos – construiu, ao menos em um primeiro momento (até a segunda metade do século III, digamos), a sua identidade por oposição à literatura e à arte da antigüidade pagã.53 Mais decisivamente ainda, estes homens fiéis se opuseram à preservação dos textos de seus opositores intramuros, que precocemente designaram “heréticos”, dando a este termo uma conotação pejorativa que até então não possuía.54 “(...) O desaparecimento dos escritos gnósticos, causado em grande parte, pela feroz perseguição da [incipiente] Igreja católica”55 é um processo histórico sintomático de uma tendência comportamental mais ampla e arraigada, cuja origem entre os cristãos talvez remonte aos dias da pregação do Apóstolo Paulo em Éfeso.56 De forma quase irônica, entretanto, foi nas comunidades monásticas dos “galileus” e ao redor de suas cátedras episcopais que a “chama frágil e oscilante”57 da cultura literária da Antigüidade continuou a tremular. 52 Fernando Báez escreve que “(...) Sem recorrer à imaginação não há forma de quantificar as perdas [de textos clássicos] ocorridas entre os séculos II d.C. e VI d.C.” F. BÁEZ. Op. cit. p. 114. 53 Cf. M. BATTLES. Op. cit. p. cit. 54 M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 95-96 ,128 e 188-191. 55 F. BAÉZ. Op. cit. p. 106. 56 Id. Op. cit. p. 105. O episódio referido, narrado nos Atos dos Apóstolos, é aquele em que muitos do que haviam abraçado a fé pregada por Paulo começaram a confessar publicamente suas práticas mágicas, pelas quais a cidade de Éfeso era famosa na Antigüidade, trazendo seus livros e os queimando-os à vista de todos. Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Coordenação editorial de José Bortolini; Tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002 (4ª impressão: 2006). Atos dos Apóstolos 19, 18-19. p. 1938 e notas correspondentes. Da violência simbólica contra si e contra o próprio patrimônio à agressão do outro a distância é bastante pequena neste caso, dado o seu elemento comum de fomento: em última instância, ao se considerar além de toda discussão e argumentação humana, “(...) a certeza conduz à violência.” John J. COLLINS. A Bíblia justifica a violência? (Trad. Walter E. Lisboa). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Bíblia na mão do povo”, n. 1). p. 48. 57 M. BATTLES. Op. cit. p. 62. 31 A maior parte dos Evangelhos (e Atos dos Apóstolos) – canônicos e apócrifos – dos quais hoje temos conhecimento foi composta ainda nos séculos I e II, mas o cristianismo então não era exatamente uma religião do Livro como o judaísmo (e como o islamismo viria a ser): “(...) A experiência do Mestre e profeta Jesus assemelhou-se a um fogo que ninguém pôde extinguir, a uma luz capaz de iluminar a superfície da Terra, ou, seguindo a linha de Newman, a uma ‘idéia’ viva”.58 Os cristãos de então liam as Escrituras Sagradas hebraicas e, em sua maioria, as consideravam dotadas de autoridade, mas seguiam a uma a Pessoa cuja palavra, dada de viva voz, era ela mesma uma Nova Lei, que rompe os estáticos quadros culturalmente estabelecidos e põe todos os indivíduos que com ela entram em contato em movimento rumo a algo radicalmente novo.59 John B. Gabel e Charles B. Wheeler ressaltam que “(...) É fato que, mesmo depois de os evangelhos serem escritos, alguns membros da Igreja preferiam a tradição oral e não conseguiam ver a necessidade de um registro escrito”.60 A afirmação do cristianismo como uma religião do Livro é um processo longo, que se iniciou talvez com a formulação por Marcião, em meados do século II, de um corpus de textos sagrados – e que foi catalisado pela refutação deste pelo cristianismo paleortodoxo. Seja como for, este desenvolvimento – se é que assim o podemos chamar – alcançou um seu primeiro ápice mais ou menos simultaneamente à formulação cristológica e litúrgica do Concílio de Nicéia (325).61 Justamente 58 Richard BERGERON. Fora da Igreja também há salvação. (Trad. Maria Stela Gonçalves; rev. Iranildo B. Lopes). São Paulo: Loyola, 2009. p. 23. 59 Neste ponto, discordo de H. I. Marrou, que considera que o cristianismo é em princípio – ou seja, desde sempre e necessariamente – uma religião do Livro, e, mais ainda, uma crença livresca, “uma religião douta (...) [que] não poderia existir em um contexto de barbárie.” H. I. MARROU. Op. cit. p. 482. Cf. Mircea ELIADE. História das Crenças e das Idéias Religiosas. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. (Tomo II : De Gautama Buda ao Triunfo do Cristianismo; Volume 2 : Das Provações do Judaísmo ao Crepúsculo dos Deuses). pp. 165-166. Bernard SESBOÜË. “A comunicação da palavra de Deus: Dei Verbum”. In: Bernard SESBOÜË e Christoph THEOBALD (orgs.). Palavra da Salvação (Séculos XVIII-XX) : Doutrina da Palavra de Deus, Revelação, fé, Escritura, Tradição, Magistério. (Trad. Aldo Vannucchi; rev. Albertina P. L. Piva e Marcelo Perine). São Paulo: Loyola, 2006. (Col. “História dos Dogmas”, t. 4; dir. Bernard Sesboüë). pp. 435-438. J. D. CROSSAN. Op. cit. ps. 89-130 e 137-150. E. AUERBACH. Op. cit. p. 37. 60 John B. GABEL e Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura : Uma introdução. (Trad. Adail U. Sobral e Mana S. Gonçalves; apres. e anexos à ed. bras. Johan Konings). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2003. p. 169. 61 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 96. Alfred STUIBER e Berthold ALTANER. Patrologia : Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. (Trad. Monjas Beneditinas). (2ª ed.). São Paulo: Paulinas, 1988. (Col. “Patrologia”, n. 3). pp. 103-104. Julio Trebolle BARREIRA. A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã : Introdução à história da Bíblia. (Trad. Ramiro Mincato). Petrópolis: Vozes, 1995. ps. 274-284 e 294-302. Barbara ALAND. “Marcião – Marcionismo”. In: VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). 32 neste período intermédio – ou seja, entre o estabelecimento do corpus marcionita e do corpus niceno – ocorreu no ambiente cultural greco-romano que escrita deixou de ser um fim em si para ser apenas um meio, perecível: “(...) Na ausência da demanda imperial por inscrições em pedra e dos decretos e discursos a ser [sic] transcritos em papiro ou pergaminho, pouca coisa era escrita na forma de um registro perene.”62 Nos primórdios de sua fé (e igualmente nas comunidades monásticas tardo-antigas e medievais do Oriente e do Ocidente), os cristãos aprendiam a ler e a escrever apenas “para se entregarem com afinco a um trabalho espiritualmente recompensador”63, de modo que registravam versos das Escrituras e de outros textos que consideravam edificantes em cacos de cerâmicas (as óstracas) e em tabuinhas cobertas de cera, que não sobreviviam por muito tempo. A expansão das pesquisas arqueológicas nos séculos XIX e XX, somada ao significativo refinamento de seus métodos de análise, de fato fez vir à luz com surpreendente facilidade miríades de textos neste formato, importantes testemunhos – redigidos majoritariamente em grego, latim e siríaco, mas também em irlandês, etíope, armênio e sogdiano, entre outros idiomas – do estabelecimento e dinâmica de um imenso número de cristianismos dispersos entre o Atlântico e o Mar da China, dispostos como “contas de um imenso rosário partido. No condado de Atrim, no Norte da Irlanda, e em Panjikent, a Leste de Samarcanda, descobriram-se [por exemplo, alguns destes] fragmentos de cadernos de cópias (...) contendo linhas copiadas dos Salmos de David.”64 Inspirados nestas tabuletas é que os cristãos coptas e palestinos inventaram – ou pelo menos Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. pp. 881-882. Os efeitos desta transformação são vários e profundos, e um destes foi expresso de forma pungente por São Jerônimo quando este douto anacoreta escreveu que “(...) Tinge-se o pergaminho de cor de púrpura, traçam-se letras com ouro líquido, revestem-se de gemas os livros, mas diante das suas portas, totalmente nu, Cristo está morrendo”. Citado em: Paulo Evaristo ARNS. A técnica do livro segundo São Jerônimo. (Trad. Cleone A. Rodrigues). (2ª ed. rev. e ampl.). São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 28 e nota correspondente, n. 71, p. 37. Em referência a uma questão que é a esta conecta, ver: J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 167 e nota correspondente, n. 1. Sobre o caráter de definitivo (fechado) do cânone ortodoxo, ver a admoestação inserida no final do livro do Apocalipse, o último da Bíblica cristã pós-nicena: “(...) A todo o que ouve as palavras da profecia deste livro, eu declaro: ‘Se alguém lhes fizer algum acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará também a sua parte da Árvore da Vida e da Cidade Santa, que estão descritas neste livro!” BÍBLIA. Ver. cit. Apocalipse 22, 18-19. pp. 2167-2168 e notas correspondentes. 62 M. BATTLES. Op. cit. p. 62. 63 Id. Op. cit. p. cit. 64 P. BROWN. Op. cit. p. 22. 33 aperfeiçoaram – o códice, que deu origem ao formato moderno do livro.65 Substituindo os rolos, que eram o formato padrão dos livros na Antigüidade clássica, os códices eram formados por folhas de pergaminho ou papiro sobrepostas e unidas por um cordão entre si e à uma encadernação de couro rígido, madeira ou marfim, e foram introduzidos “em Roma pelos cristãos, que o trouxeram das cidades que sediaram a Igreja nos primeiros tempos, na Palestina, no Egito e na Grécia (...). Um mosaico em Ravena, do tempo de Sidônio, mostra um tradicional armarium romano cheio de códices deitados com as capas viradas para cima, e os títulos claramente à mostra. Eram evangelhos. O códice era algo tipicamente cristão.”66 Para Evaristo Arns, o que precipitou esta evolução técnica do livro foi “(...) O amor ao livro sagrado e sobretudo a posição oficial da Igreja.”67 Talvez não estejam excluídos desta formulação cunhada pelo atual Sr. Cardeal Emérito da Arquidiocese de S. Paulo quando tratava-se ainda um entusiasta do estudo erudito da antiga literatura cristã os bem conhecidos motivos de ordem missionária e apologética que influíram neste processo: sabe-se, por exemplo, que ainda por volta de 730 Bonifácio escreveu para seus confrades ingleses requisitando cópias da Bíblia que fossem escritas “em letras de ouro, para que a reverência às Sagradas Escrituras seja impressa nas mentes carnais dos gentios.”68 Não está no âmbito de nossa reflexão, entretanto, prosseguir tecendo considerações sobre as causas de tal notável mudança; cabe-nos apenas registrar que este novo suporte para a escrita não era apenas mais fácil de ler que os rolos e podia suportar mais caracteres do que estes (já que permitia que se escrevesse nos dois lados de uma mesma folha), mas também mais simples de ser armazenado e 65 Matthew Battles registra que “(...) Muitos conjecturam que a palavra inglesa para livro, ‘book’, teria vindo de ‘boc’, termo anglo-saxão que designa a faia, cuja madeira era muito usada na confecção das tabuletas. As tábuas de faia eram escavadas de maneira a conter um reservatório raso, onde se derramava a cera de abelha. Depois de esfriar, a cera formava uma superfície macia sobre a qual era possível escrever utilizando um estilo [sic]. Bastava um esfregão vigoroso para apagar o que estivesse escrito – algo bastante conveniente para quem escreve, mas não tão conveniente para o historiador. Tudo o que se escreveu sobre as tabuletas desapareceu.” Ibid. Op. cit. p. cit. 66 Ibid. Op. cit. p. 58. Evaristo Arns menciona que “(...) os manuscritos de autores cristãos que nos restam do século III compreendem quatro vezes mais codices que rolos, enquanto, para o mesmo período, entre manuscritos de autores pagãos, os rolos são quase quinze vezes mais numerosos que os codices.” P. E. ARNS. p. 105. 67 Id. Op. cit. p. 28. 68 Citado em: P. BROWN. Op. cit. p. 23. 34 organizado – o que no devido tempo iria permitir às bibliotecas atingirem um nível de complexidade impensável mesmo no Mouseion de Alexandria. Embora o material de que foram feitos estivesse tão sujeito à corrupção quanto o de seus predecessores, a posição estável dos códices nas estantes lhes garantiu menor exposição a danos e, portanto, durabilidade mais longa.69 Não apenas obras específicas foram preservadas da destruição pelo advento do códice e pelo interesse cristão na redação e – principalmente – na transcrição de certos textos70, mas literaturas inteiras, como a contida nos cerca de 250 manuscritos reunidos em um mosteiro sírio no século X por Moisés de Nisibis.71 Esta salvaguarda, entretanto, como já destacamos, foi extremamente seletiva. “Os textos dos chamados pagãos (...) tiveram a má sorte de ser transcritos lentamente, num processo favorável a poucos [e] (...) O desinteresse pela literatura pagã, gerado pelos cristãos, provocou, entre outras coisas, a extinção natural de muitos livros.”72 Daqueles que foram designados heréticos, ironicamente, conservaram-se muitos fragmentos, transcritos nas obras dos que se dedicaram em seus próprios manuscritos a refutá-los, “pois era necessário citar as passagens controvertidas”.73 Foi, contudo, apenas com a descoberta no século XX de antigos textos nãoortodoxos – como, por exemplo, os manuscritos maniqueus de Turfan e Al Fayyum, a biblioteca gnóstica de Nag Hammadi, o Códex Jung e o Códex Tchacos – que se pôde conhecer melhor a primitiva literatura cristã em suas diversas (e concorrentes) vertentes; até então, para mencionarmos um caso específico, “(...) O que se conhecia dos textos gnósticos era material de segunda mão, citações nem sempre acuradas, e invariavelmente pejorativas, dos padres da 69 Cf. M. BATTLES. Op. cit. p. 58. 70 Do qual Italo Calvino, fazendo referência a um período posterior, zomba de maneira muito refinada: “(...) Começa-se a escrever com gana, porém há um momento em que a pena não risca nada além de tinta poeirenta, e não escorre nem uma gota de vida, e a vida está toda fora, além da janela, fora de você, e lhe parece que nunca mais poderá refugiar-se na página que escreve, abrir um outro mundo, dar um salto. Quem sabe é melhor assim; talvez quando escrevia com prazer não era milagre nem graça: era pecado, idolatria, soberba. Então, estou fora disso tudo? Não, escrevendo mudei para melhor: consumi apenas um pouco de juventude ansiosa e inconsciente. De que me valerão estas páginas descontentes? O livro, o vazio, não valerá mais do que você vale. Não há garantias de que a alma se salve ao escrever. Escreve, escreve, e sua alma já se perdeu.” Italo CALVINO. O cavaleiro inexistente. (Trad. Nilson Moulin). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 61. 71 Cf. M. BATTLES. pp. 63-64. 72 F. BÁEZ. Op. cit. p. 111. 73 Id. Op. cit. p. 107. O mesmo autor acrescenta em seguida: “(...) Deste modo, puderam ser salvas verdadeiras jóias do pensamento religioso antigo.” Ibid. Op. cit. p. cit. 35 Igreja do século II. Tanto Irineu de Lyon quanto Tertuliano de Cartago, ao empregarem sua pena na denúncia do que chamavam de ‘falsa crença’, produziram mais faíscas do que luz: eram partidários demais, ferozes demais para deixar que seus adversários se explicassem.”74 No alvorecer do século IV, quando Eusébio de Cesaréia realizava a necessária pesquisa para escrever a sua História Eclesiástica, tão rica em citações de fatos, obras e autores, é que se concluía esta passagem das bibliotecas clássicas às bibliotecas cristãs, dos rolos aos códices. Muito do material que hoje não conhecemos in persona devia ainda estar disponível, como remanescente, à sua leitura; de fato, não são poucos os autores e obras que conhecemos apenas através de citações transcritas na prolífica obra eusebiana.75 O próprio Eusébio se empenhou na preservação consciente de parte deste material, engajando-se como seu predecessor Pânfilo na conservação e defesa da obra de Orígenes, núcleo seminal do grande centro de estudos que viria a ser a biblioteca eclesiástica de Cesaréia.76 74 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 36. 75 Cf. Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). ps. 143 e 145. 76 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. ps. 196 e 219. P. E. ARNS. p. 64 e 148. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 145. 36 II. “O que compreendemos e amamos em uma obra é a existência de um ser humano como uma possibilidade para nossa própria existência.” ERICH AUERBACH, A linguagem literária e seu público na Antiguidade tardia e na Idade Média “Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significante, sem cultura não haveria homens. (...) os homens, (...) até o último deles, são artefatos culturais.” CLIFFORD GEERTZ, “O impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem” Em História nenhum ponto é um todo isolado e auto-explicativo. É esta a possibilidade e o limite inerente ao trabalho de todo aquele que se propõe historiador. Considere-se o termo ponto como equivalente a evento, crença, artefato, procedimento, pessoa, localidade, sentimento, instituição, significado, ou qualquer outra coisa humanamente concebível, e ainda assim o axioma anteriormente formulado constituir-se-á em uma das poucas verdades de fato com a qual os historiadores, profissionais ou amadores, de todos os matizes ideológicos imagináveis, lidam sempre e necessariamente em seu ofício. Essa situação que constatamos – uma tautologia – é daquele tipo que não se deseja ou não se tem maios de questionar. Em História qualquer ponto – na acepção, já explicitada, em que aqui empregamos este vocábulo – apenas é, e pode ser, em relação a outros, ou seja, dentro de uma teia de coordenadas espaciais e temporais muito precisas. Nada nem ninguém é um fato isolado, surgido ex nihil, se considerado dentro de uma reflexão de dimensões históricas. Assim sendo, portanto, todas as coisas que formam o mundo dos homens, inclusive e principalmente os próprios, em suas mais diversas dimensões, mesmo as mais essenciais, são como vidraças dotadas sempre de algum grau de opacidade através dos quais é possível ousar tecer algumas considerações também sobre seu processo constitutivo no tempo e no espaço. De maneira nenhuma se pretende afirmar aqui que o saber histórico pode explicar integralmente porque tudo é como é. Sobre as desventuras do homem 37 enquanto habita este terceiro planeta de nosso sistema solar, os mais diversos campos de conhecimento especializados oferecem testemunhos, mais ou menos verificáveis de acordo com os padrões da lógica formal, tão diferentes e contraditórios entre si quanto sua própria variedade. As diversas concepções presentes e passadas de história, a filosofia especulativa, as diversas vertentes de psicologismos, a biologia evolutiva, as sociologias e as antropologias culturais e físicas em suas caleidoscópicas variações, todas as experiências de fé e teologias existentes, a astrologia, o senso comum de cada cultura: todos estes saberes, aos quais podemos ou não conferir alguma credibilidade conforme nossa própria formação e pendores idiossincráticos, possuem suas próprias versões do que e porque é o ser humano o que é, e de como e porque são todas as coisas que este produz, e dos significados que confere ao mundo em que vive, e à sua muito variada experiência de estar neste e o construir.77 Gostaríamos apenas de reafirmar que, sim, os historiadores podem fornecer validamente algumas interpretações acerca de como determinados pontos puderam vir a ser o que foram – ou são.78 Toda a reflexão acima composta pode parecer um mero elencar de obviedades, mas se deve lembrar que coisas óbvias, realidades com as quais nos acostumamos pelo trato cotidiano, as mais evidentes dentre elas, podem ser, e 77 Construí-lo com as mãos, com suor de seu rosto, mas também com o seu raciocínio prático, memórias, aspirações e fantasias: “(...) Pela sua capacidade de criar sinais, o homem não só ultrapassa a imediatidade da situação e dos instintos, mas ele se cria um mundo próprio de sentido. Pois com os sinais ele não só pode exprimir os dados e experiências presentes, mas também pode tematizar o real ausente, o futuro e o passado, o abstrato e o fictício, o normativo e o jocoso.” Xavier HERRERO. “O homem como ser de linguagem. Um capítulo de Antropologia Filosófica.” In: Carlos PALÁCIO (org.). Cristianismo e História. São Paulo: Loyola, 1982. (Col. “Fé e Realidade”, n. 10). O grifo é do autor. 78 Muitíssimo longe, contudo, estamos aqui da quimera de Laplace, que imaginava que o estado presente do universo seria – ao menos em teoria – passível de ser reduzido a uma fórmula matemática da qual se poderia deduzir todo os momentos que o antecederam e os que o sucederão. John Stuart Mill, no capítulo de sua Lógica que trata da lei da casualidade, manifesta possuir uma fantasia semelhante, ao argumentar que o estado do universo em qualquer instante é uma precisa e necessária conseqüência de seu estado no instante anterior, e que, portanto, o conhecimento perfeito de um único instante seria uma chave-de-leitura suficiente para que uma inteligência infinita soubesse toda a história passada e vindoura. Seguindo a mesma linha de raciocínio, este pensador também sustenta que, considerando-se que isso seja possível, a repetição ocasinal de qualquer momento implicaria a repetição de todos os outros, o que faria da história universal uma série cíclica. Mill não exclui porém a possibilidade de uma intervenção exterior que rompa o férreo nexo conseqüente que dá forma e ritmo ao devir das coisas – o substrato judaico-cristão de sua visão de mundo acabou por forçá-lo a relativizar o asséptico cientificismo pelo qual propôs que os imprevisíveis acontecimentos humanos fossem analisados. Ele “(...) Afirma que o estado q fatalmente produzirá o estado r; o estado r, o s, o estado s, o t; mas admite que antes de t uma catástrofe divina – a consummatio mundi, digamos – poderia ter aniquilado o planeta. O futuro é inevitável, mas pode não acontecer. Deus espreita nos intervalos.” Jorge Luis Borges. Outras Inquisições. pp. 35-36. 38 geralmente o são, as de mais difícil consideração analítica, as mais nebulosas existentes. Uma coisa posta à vista durante longa data, naturalizada como uma realidade de fato, não é necessariamente visível mesmo aos olhos mais atentos, como nos lembra Edgar Allan Poe em um seu conto de título A carta roubada, que foi objeto da análise de ensaios de Jacques Lacan e de Jacques Derrida.79 À vista, visível: não se está aqui a fazer mero jogo de palavras. Pelo contrário, quer-se chamar a atenção para algo que é tão óbvio aos historiadores, pressuposto, limite e possibilidade de seu ofício, que acaba lhes parecendo por vezes natural, e não apenas convencional (ou aceito como convencional). Pode-se considerar o objeto de atenção da História – a espécie humana e o mundo que ela constrói para si – de diversas maneiras, inclusive a partir de perspectivas históricas.80 O historiador pode deter-se sobre os diversos sentidos que as pessoas atribuem às coisas, por exemplo, mapeando a história dessas significações pelo inventário possível da “história de textos e contextos, das estruturas de linguagem e dos usos que dela se fez”,81 aproveitando-se de 79 Edgar Allan POE. “A carta roubada”. In: Braulio TAVARES (org.). Contos fantásticos no labirinto de Borges. (Trad. Julio Silveira et al; ilust. Romero Cavalcanti). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. 80 Tal afirmação pode parecer banal, mas cresce em importância se contrastamos o nosso historicismo de matriz tão judaico-cristã e tão européia com outros discursos acerca do homem no tempo, como, por exemplo, aqueles numerosos sábios do Industão que “não têm senso histórico (isto é: perversamente, preferem o exame das idéias ao dos nomes e das datas dos filósofos).” J. L. BORGES. Outras Inquisições. p. 30. Em outra parte, acerca desta mesma questão, Jorge Luis Borges e Alicia Jurado escreveram que “(...) Para o hindu que estuda filosofia, as diversas doutrinas são idealmente contemporâneas. A mais ou menos precisa cronologia dos sistemas filosóficos da Índia foi fixada por europeus”. Jorge Luis BORGES e Alicia JURADO. Buda. (Trad. Cláudio Fornari). (4ª ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. p. 25. 81 John G. A. POCOCK. Conceitos e discursos: uma diferença cultural? Comentário sobre o paper de Melvin Richter (pp. 83-96). (Trad. de Janaína de Oliveira e Marcelo Gantus Jasmin). In: Marcelo Gantus JASMIN e João FERES JR. (org.). História dos conceitos : debates e perspectivas. Rio de Janeiro: PUC-Rio / Loyola / IUPERJ, 2006. p. 85. Deve-se destacar o quanto é necessariamente humana esta possibilidade de investigação histórica. À título de mera ilustração, recordemos que a angeologia escolástica afirmou em mais de um grosso tratado, reiteradas vezes, que os mensageiros de Deus não necessitam da linguagem de modo algum, já que pensam e se comunicam por espécies inteligíveis não mediadas, ou seja, por apreensõesrepresentações diretas do real em si, manifesto para além de todos os artifícios e contingências verbais. Não haveria, portanto, maneira de um místico escrever uma história, por exemplo, da rebelião de Lúcifer, ou mesmo de registrar suas próprias conversas com seres celestiais, sem o recurso a metáforas, oximoros e hipérboles, expedientes que apenas imperfeitamente fraturam a linguagem abrindo-a para o transcendente e o aparentemente irreal. Além disso, sobre o que constitui exatamente o real em si os teólogos que sobre esta questão gravemente se detiveram não conseguiram concordar de modo algum. Cf. Jorge Luis BORGES. El idioma de los argentinos. Madri: Alianza, 2002 [1998]. p. 26. 39 “(...) uma série de possibilidades para explorar tanto as inovações e outros atos criativos realizados ou almejados pelos usuários individuais da linguagem – alguns dos quais vão ou desejam ir, de fato, muito mais longe –, quanto o processo de mudança mais lento, multi-autoral, e os processos de mudança social ou historicamente induzidos que têm lugar no interior de, e entre, linguagens disponíveis em sociedades e culturas específicas ao longo de períodos específicos de tempo e de duração variada.”82 Realçar que uma dimensão de perspectivas históricas é uma possibilidade de pensar sobre o homem, uma em outras, que deve se valer de seu método próprio de crítica e exposição de argumentos para afirmar a legitimidade daquilo que afirma, enriquece nossa presente reflexão. De modo algum a consciência de uma escolha de abordagem para lidar com certo tema a torna menos relevante; ao contrário, a sinceridade acerca de suas opções metodológicas deveria ser encarada sempre como um imperativo ético do historiador (e do antropólogo, e do biólogo evolucionista, e do psicólogo freudiano, e daí por diante) para com seu leitor, além de um elemento de acréscimo de eficácia e validade ao seu discurso. O caso é que assumimos como certo que “(...) a imagem de uma natureza humana constante, independente de tempo, lugar e circunstância, de estudos e profissões, modas passageiras e opiniões temporárias (...) [é] uma ilusão, que o que o homem é (...) [está] tão envolvido com onde ele está, quem ele é e no que ele acredita, que é inseparável dele.”83 Componhamos uma variação de tudo o que já foi afirmado nesta seção, e, ao revisitá-la, avancemos. Fato empiricamente dado, que podemos – e que também precisamos – assumir como seguro, é que a vida humana não se dá nunca em um vácuo, isoladamente; a respeito disso, o antropólogo Marshall Sahlins escreveu que “homens e mulheres são seres sofredores [justamente] por agirem tanto uns em relação aos outros quanto num mundo que possui suas próprias relações.”84 Além disso, só se pode ser alguém em algum lugar: ao se pensar as peripécias de homens e mulheres – e as estórias que estes nos deixam, ou que 82 Id. Op. cit. p. 84 e nota correspondente, n. 1. 83 Clifford GEERTZ. “O impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem”. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. (Col. “Antropologia Social”, n. 3; dir. Gilberto Velho). p. 26. 84 Marshall SAHLINS. Metáforas históricas e realidades míticas : Estrutura nos primórdios da história das Ilhas Sandwich. (Trad. e apres. Fraya Frehse). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (Col. “Antropologia Social”; dir. Gilberto Velho). p. 18. 40 outros compõem sobre elas – é necessário enquadrá-las da forma mais adequado possível no cenário em que estas se deram. Mais ainda: as pessoas (como os eventos) são o que são porque existem (ou acontecem) em determinado tempo e espaço. “(...) O que quer que seja que a antropologia moderna tenha afirmado – e ela parece ter afirmado quase tudo em uma ou outra ocasião –, ela tem a firme convicção de que não existem de fato homens não-modificados pelos costumes dos lugares particulares, nunca existiram e, o que é mais importante, não o poderiam pela própria natureza do caso.”85 Atestamos, assim, que a consideração do conjunto de ambiências nas quais uma pessoa é formada, nas quais se insere e com as quais dialoga é imprescindível para (tentar) compreendê-la.86 Ambiências 85 C. GEERTZ. Op. cit. p. cit. Neste mesmo ensaio que mencionamos, Geertz disserta de maneira muito esclarecedora sobre qual é, afinal, a “natureza do caso”. O ser humano de fato precisa dos padrões interpretativos que lhe são inculcados em sua formação como agente social, já que é através destes é que ele poderá tornar inteligível a experiência e lidar com ela de modo construtivo. Tais sistemas simbólicos são introjetados como se fossem naturais, e deles nos utilizamos, na maioria das vezes de forma espontânea e com facilidade, para auto-orientar-nos no curso corrente das realidades empíricas com as quais somos forçados a lidar. Nossa dependência de tais teias de sentido que a um só tempo nos modelam e nos animam é tão maior quanto é difusa e demasiado pálida a orientação que nos é dada por aquilo que está constitucionalmente gravado em nossos corpos e que podemos arrolar sob a indistinta rubrica de instintos. Estes, caso existam, fornecemnos apenas capacidades muito gerais de resposta, que, embora tornem possíveis a conquista de novos padrões de plasticidade, complexidade e efetividade de comportamento, nada regulam com precisão. Se fôssemos absolutamente afastados desde o nascimento dos demais seres humanos, milagrosamente sobrevivendo em celas ou estufas isoladas, apartados de todos os sistemas organizados de símbolos significantes que constituem as diversas culturas, teríamos um pensamento e uma corporeidade virtualmente ingovernáveis, simples caos de atos sem sentido, espasmos de movimento físico e mental não dotado de nenhum conteúdo inteligível. A cultura, portanto, não é apenas um ornamento da existência humana, como ser ativo e racional, mas o pressuposto desta. Isto se dá primordialmente porque a cultura não é um suplemento da natureza, algo como uma extensão ou mero aprimoramento de nossas capacidades inatas, mas um ingrediente essencial na formação do Homo Sapiens enquanto espécie animal. O aparecimento de atividades propriamente culturais (que remonta a quatro ou cinco milhões de anos a.C.) antecede o surgimento do ser humano como entidade distinta dos demais primatas superiores (o que data de aproximadamente duzentos ou trezentos mil anos a.C.), e se relaciona intimamente com o seu desenvolvimento filogenético e anatômico – bem mais do que muitos biólogos, psicólogos e filósofos aferrados ao projeto de ancorar certos comportamentos e formas de pensamento na ordem das coisas-como-elas-são gostariam de admitir. Entre sistemas de símbolos socialmente forjados e culturalmente disponíveis, a estrutura anatômica geral e o sistema nervoso central foi criado um circuito vital, através da qual cada um modelava (e modela) o funcionamento e o refinamento dos demais – a interação entre o uso crescente e a complexificação das ferramentas, as mudanças da anatomia dos membros superiores (e em especial dos dedos das mãos) e a representação expandida dos polegares no córtex é apenas o mais popular e mais gráfico dos processos relacionados a esta complexa rede pela qual, embora inconscientemente, o ser humano acabou determinando os estágios de seu próprio destino biológico. Cf. Id. Op. cit. pp. 33-37. Para uma reflexão correlata, muito próxima a esta, e que pode enriquecê-la consideravelmente, ver: David LE BRETON. “Corpo e simbolismo social”. In: As paixões ordinárias : Antropologia das emoções. (Trad. Luís A. S. Peretti). Petrópolis: Vozes, 2009. pp. 16-37. 86 Cf. Paul VEYNE. Como se escreve a História – Seguida de Foucault revoluciona a História. (Trad. Alda Baltar e Maria A. Kneipp). (4ª ed.). Brasília: Ed. da UnB, 1998. pp. 17, 19, 21-23, 34, 42-43 e 56-58. 41 estas que são intelectuais, mas não só: é tão importante levar em conta na análise de uma obra as técnicas de sua redação quanto à intencionalidade do autor ao compô-la, ou quando e onde ela foi efetivamente redigida, ou os debates que a estruturam quanto o seu público-alvo, ou as fontes às quais recorre para se informar do assunto do qual trata quanto os argumentos que efetivamente tomam forma no ato criativo de sua escrita.87 Isto tudo decorre do fato de que, ao contrário daquilo que assumiram como dogma basilar os individualistas de todos os tempos, “(...) o pensamento humano é basicamente tanto social como público – (...) seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não só nos ‘acontecimentos na cabeça’ (embora sejam necessários acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego entre (...) símbolos significantes – as palavras, para a maioria, mas também gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos como relógios, ou objetos naturais como jóias – na verdade, qualquer coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um significado à experiência.”88 É só a partir deste tipo de consideração de conjunto que a historiografia pode aspirar ser algo mais que simples colecionismo, antiquário e anedótico, ou 87 Remetemo-nos aqui à reflexão do ilustre historiador Fernand Braudel, que propõe que o exercício do pensamento histórico se dê levando em conta três distintos níveis ou durações, que estão assentados uns sobre os outros à maneira de camadas estratigráficas e são interdependentes em suas dinâmicas próprias, ou seja, conectados em um sistema de realimentação (feedback) positivo, onde cada um incide sempre e necessariamente sobre os demais. São estes três níveis: a) O da longa duração, que é a história quase imóvel (pelo menos até o advento da Revolução Industrial) do relacionamento do homem com o meio natural que o cerca (e que também é ou poderia ser o do desenvolvimento filogenético do ser humano enquanto espécie animal); b) O da média duração, que é o da história lentamente ritmada das instituições, dos grupos e dos agrupamentos, de suas psicologias coletivas e ethos, padrões morais e formas jurídicas; c) O da curta duração, que é a história dita factual, que se refere ao que Braudel poeticamente diz que são agitações “de superfície, as ondas que as marés elevam em seu poderoso movimento (...) história com oscilações breves, rápidas, nervosas (...) história ainda ardente” (p. 14). Não foram muitos os que perceberam as implicações práticas de tal proposição: abandonar as seguranças da geografia, da sociologia, da antropologia e do jornalismo e conceber a história como um campo de conhecimento que articula estes saberes e se propõe a lidar com o modo como se influenciam mutuamente. Dentro de tal quadro interpretativo, compreende-se que mesmo os acontecimentos mais originais e retumbantes, os profundos traumas e as grandes conquistas e formulações, não são mais do que instantes, que manifestações desses largos destinos e só se explicam por eles – e que também possuem a capacidade de influenciá-los em maior ou menor dimensão, e mesmo vir a modificar significativamente os seus rumos. Fernand BRAUDEL. Escritos sobre a História. (Trad. Jacob Guinsburg e Tereza C. S. da Motta; rev. Angélica D. Pretel e Vera Lúcia B. Bolognani). São Paulo: Perspectiva, 1978. (Col. “Debates”, Seção “História”; dir. Jacob Guinsburg). pp. 13-16. 88 C. GEERTZ. Op. cit. p. 33. 42 uma imensa coletânea de fragmentos biográficos ou elegíacos, destinada a salvar na medida do possível a memória dos indivíduos. Seja como personagem principal da narrativa, seja como figurante entre milhões de outros, próximos ou distantes dele mesmo cronológica e geograficamente, a singularidade individual de fato só conta historicamente pela sua especificidade, ou seja, por aquilo que tem de representativo de sua forma própria, socialmente recebida e exercida, de ser no mundo – e, eventualmente, em como contribui ela mesma para de alguma forma modificar esta em outra.89 Renunciamos aqui, entretanto, a qualquer explicação de chave determinista para, como fizeram venerandos homens da ciência no passado (e talvez ainda hoje), pensar a vida intelectual de qualquer pessoa ou período; do mesmo modo, também à tentação de explicar um indivíduo apenas pelo seu contexto de formação, aderindo a uma destas escolas de cientistas sociais que assumem entre nós ares de fraternidade religiosa. De fato, temos como certo que professar tal fé é se conformar a um padrão discursivo tão estreito que, ao buscar produzir uma imagem inteligível da experiência humana, desenha uma simplória caricatura da realidade, que acaba gerando mais dúvidas e dificuldades do que qualquer tipo de interpretação explicativa minimamente relevante – e quiçá aceitável – acerca desta. O que está em questão aqui não são os grandes sistemas interpretativos que se dispõem a apresentar as molas-mestras que impulsionam o movimento da História, mas o ser humano e como este constrói, narra e atua – ou pode fazê-lo – na realidade conforme a apreende. Como todos os homens, aquele que passou à História como Eusébio de Cesaréia era um homem de seu tempo, sendo formado e atuante especificamente em certa ambiência espacial e cultural, fruto ele mesmo de uma inumerável gama de influências socialmente incidentes. Se não podemos mapear e apresentar esse feixe de fatores formativos, podemos selecionar alguns destes, mais ou menos verificáveis, e com eles lidar, na convicção de que se trata de exercício analítico útil para se situar e compreender mais adequadamente este homem – autor e leitor do mundo como todos os outros homens e mulheres de todos os outros tempos e locais – e certo trecho aqui considerado de sua não pequena produção escrita. O 89 Cf. P. VEYNE. Op. cit. p. 57. 43 ato de leitura é o gesto básico do ser-no-mundo, e isto significa justamente perceber, distinguir, selecionar e interpretar, ações que fazemos de modo diverso de acordo com nossa bagagem cultural, em um horizonte que também é o das nossas possibilidades epistemológicas – em outros termos, “(...) Conhecemos apenas aquilo que conseguimos decifrar.”90 Com tudo isto, reafirmamos que cada ser humano se compõe como pessoa dentro de uma estrutura de concepções incorporadas em símbolos socialmente forjados, com os quais se comunica com os seus e torna inteligível o que é diverso, ou seja, com os quais dá “forma à experiência e objetivo à ação”.91 Quando cria algo de genuinamente original pelo manejo circunstancial e particular daquele instrumental cultural que lhe é formativo, o indivíduo não apenas “rompe as incrustações do senso comum”92 em um ímpeto surpreendente de absoluta genialidade, inovação ou iconoclastia, mas retorna necessariamente “ao mundo do óbvio e do ordinário, para corrigi-lo e mudá-lo à luz do que se aprendeu, ou do que se pensa ter aprendido, para transcendê-lo.”93 Sem o entendimento das dinâmicas sociais destes padrões de significados não poderíamos nem ao menos tatear em busca de uma leitura histórica que dissesse algo de relevante sobre qualquer experiência humana, em qualquer ponto do tempo ou do espaço: as pessoas se formam dentro de certos padrões interpretativos socialmente compostos e com estes estão necessariamente em constante diálogo – ainda que para modificá-los, ainda que para renegá-los e compor contra ele refutações e acusações de falsidade, ainda que para buscar aprofundá-los e reafirmá-los em face de condições históricas diversas das que os originaram. Faremos mais adiante nova menção a esta relação entre estruturas culturais, eventos inesperados e as revisões que eles forçam. Acerca desta questão das ambiências, retenhamos o seguinte fato capital: os autores que consultamos afirmam que a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia foi composta em um longo período, pelo artifício de sucessivas emendas 90 Braulio TAVARES. “Postfácio: Contos Borgianos”. In: B. TAVARES. Op. cit.. p. 279. 91 Clifford GEERTZ. Observando o Islã : o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”: dir. Gilberto Velho). p. 103. Em outra parte o mesmo autor afirma que “(…) Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos com os quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas.” C. GEERTZ. Op. cit. 1989. p. 37. 92 C. GEERTZ. Op. cit. 2004. p. 102. 93 Ibid. p.cit. 44 e camadas de redação e correção94, mas eles concordam quanto ao local de sua redação – tanto físico quanto social: tratava-se do Bispo de Cesaréia, em sua biblioteca episcopal – e às fontes aí disponíveis, coisa que naturalmente imprime decisiva marca no plano desta obra – e ajuda a definir a sua importância posterior, duradoura: “(...) Sua documentação era naturalmente muito parcial. Ele usou o que subsistia da literatura cristã antiga e podia ler ainda muitas obras perdidas para nós; utilizou também muitos dossiês de correspondência: cartas de bispos reunidas outrora a respeito de um assunto controvertido; assim, foram constituídos dossiês concernentes, por exemplo, à data da Páscoa (com cartas de Irineu, sobretudo, das quais Eusébio cita preciosos trechos), ao encratismo e ao problema dos lapsi... Serviu-se ainda da correspondência de Orígenes... A História Eclesiástica não tenta uma reconstituição contínua do desenvolvimento da Igreja: apresenta, antes, uma série de ‘flashes’, segundo o conteúdo dos documentos de que dispunha o autor. Do mesmo modo, ela é infinitamente preciosa pelos personagens, fatos e escritos que evoca e que, sem ela, talvez ignorássemos completamente. Como não nos mostraríamos gratos a Eusébio por ter conservado a emocionante carta das Igrejas de Vienne e Lião sobre a perseguição de 177 nesta última cidade? Ou as 95 linhas gerais de uma biografia de Orígenes?” 94 Cf. Jacques LIÉBAERT. Op. cit. p. 148. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 224. Carmelo CURTI. “Eusébio de Cesaréia (Palestina)”. In: VV. AA. Op. cit.. p. 537. Argimiro VELASCODELGADO. “Introducción”. In: EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997. (2 vol.). pp. 40*-46*. John D. CROSSAN. Op. cit. p. 503. 95 J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 148-149. 45 III. “Que otros se jacten de los libros que les ha sido dado escribir; yo me jacto de aquellos que me fue dado leer, dije alguna vez. No sé si soy un buen escritor; creo ser un excelente lector o, en todo caso, un sensible y agradecido lector.” JORGE LUIS BORGES, “Biblioteca personal” “No recuerdo una etapa de mi vida la que yo no supiera leer y escribir. Si alguien me hubiera dicho que esas faculdades son innatas, lo habría creído. Nunca ignore que mi destino sería literario. Simpre estava leyendo y escribiendo. La biblioteca de mi padre me parecia gratamente infinita. Las enciclopedias y los atlas me fascinaban. Ahora comprendo que mi padre desperto y fomento esa vocación.” JORGE LUIS BORGES, “Escribir” Orígenes – a quem Erasmo de Roterdã, um dos grandes humanistas do Renascimento, rendia a homenagem nada banal de declarar que aprendia mais sobre a filosofia cristã em uma de suas páginas do que em dez de Agostinho de Hipona96 – nasceu por volta de 185, e, mais ou menos em 202, com o martírio de seu pai, Leônidas, e o confisco dos bens que lhe cabiam por herança, teve de se refugiar na casa de uma rica mulher cristã de Alexandria. Desde muito cedo proveu a si mesmo e a seus familiares remanescentes com os ganhos do ensino de gramática; com apenas dezoito anos assistiu ao exílio forçado do clero de alexandrino, fato que provavelmente explica porque tão jovem foi encarregado pelo bispo Demétrio de instruir àqueles que se preparavam para receber o batismo.97 Assumiu esta tarefa “não apenas com seriedade, mas com exagero dramático”98, vivendo de maneira rigorosamente ascética; vendeu seus livros profanos e, interpretando literalmente Mateus 19, 12, castrou-se – “fato estranho, mas por demais conhecido e criticado para que seus admiradores mais entusiastas pudessem tê-lo negado.”99 Assim como ultrapassou em muito a sua época, o seu prestígio foi muito além do Egito e da Palestina. Retornarei ainda ao conteúdo de parte da imensa obra de Orígenes neste trabalho, mas por hora me deterei apenas 96 Cf. Id. Op. cit. p. 104. 97 Sobre a escola catequética de Alexandria, ver: B. ALTANER e A.STUIBER. Op. cit. pp. 195196. 98 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 89. 99 Id. Op. cit. p. cit. 46 em alguns aspectos de suas andanças – que, aliás, não são poucas. 100 Faremos menção, entretanto, apenas àquelas que tiveram como destino Cesaréia da Palestina, que viria a ser um privilegiado lócus da preservação, difusão e elaboração posterior de sua obra. Em 215 as tropas do Imperador Caracala sitiaram Alexandria e a submeteram, causando terrível mortandade como represália de uma tentativa de insurreição. Nesta ocasião as legiões romanas perseguiram especialmente os filósofos e suas escolas, dedicando um especial zelo à incineração de suas obras e ao saque do ilustre muséon.101 Não sabemos o que motivou este comportamento específico, mas podemos ressaltar que não se tratou de fato isolado na história da cidade. Quando a rainha Zenóbia de Palmira atacou a cidade em 272 desencadeou perseguições sistemáticas e impiedosas contra gramáticos, bibliotecários e livros; Aureliano comandou sua reconquista aos romanos um ano depois, e seus soldados agiram de forma muito semelhante aos palmirenses. Diocleciano promoveu mais tarde a destruição de todos os escritos filo-teológicos e fórmulas alquímicas que seus emissários conseguiram encontrar no interior da Alexandria de seu tempo, metrópole que no começo do século XX o historiador da arte Aby Warburg definiu como representando “a essência do lado obscuro e supersticioso do homem”102; aparentemente o Imperador de Roma acreditava que os habitantes da cidade “podiam aprender a converter metais em ouro com o objetivo de comprar armas.”103 Aproveitando o ensejo, fez destruir com fogo todos os livros sagrados judeus e cristãos que pôde; um registro contemporâneo declara que a Acta Martyrum era uma obra cara porque muitos exemplares desapareceram.104 De qualquer forma, da investida ordenada por Caracala, Orígenes e suas idéias – e 100 O adjetivo “imensa” aqui empregado não é apenas força de expressão ou artifício retórico para denotar a sua grande fecundidade no desenvolvimento literário e teológico da Antigüidade cristã; o clássico manual de Patrologia de Berthold Altaner e Alfred Stuiber menciona um catálogo de Jerônimo de 800 obras de Orígenes, e também um informe do tradutor da Vulgata referente a um levantamento de seu trabalho, feito por Eusébio e hoje perdido, nos quais constavam nada menos do que 2000 títulos. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 205. 101 Cf. Id. Op. cit. p. 204. F. BÁEZ. Op. cit. p. 72. 102 Citado em: Alexander ROOB. O Museu Hermético : Alquimia & Misticismo. (Trad. port. Tersa Curvelo). Köln / Londres / Los Angeles / Madri / Paris / Tóquio: Taschen, 2006. p. 18. 103 F. BÁEZ. Op. cit. p. cit. Na mesma página em que afirma isto, o autor remete-nos a uma nota na qual cita Edward Gibbon, autor que escreveu que esta “(...) perseguição de Diocleciano é o primeiro acontecimento autêntico na história da alquimia.” Id. Op. cit. p. 352, n. 143. 104 Cf. Ibid. Op. cit. p. 72. 47 talvez alguns de seus manuscritos – conseguiram escapar: sabe-se lá como logrou fugir, mas pôde ir para Cesaréia da Palestina, onde, a pedido do bispo da cidade, Teotito (ou Teoctisto), e de Alexandre, bispo de Jerusalém, pregou nas assembléias cristãs locais.105 Quando Orígenes chegou ao bispado de Teotito, este já era uma cidade de sólida tradição cristã e crescente importância no âmbito desta religião: tratava-se então da Sé Titular da Palestina, precedência que foi sancionada em 325 pelo 7º cânone do Concílio de Nicéia.106 As modernas escavações arqueológicas na região podem nos ajudar a compreender algo de sua dinâmica de vida desde os começos do movimento dos seguidores de Jesus até os dias do governo pastoral de Eusébio. Sua antiga área constitui um dos mais importantes sítios de pesquisa do Estado de Israel, além de um dos maiores; ele se estende ao longo do litoral mediterrâneo ao norte de Hadera, a meio caminho entre Haifa e Tel-Aviv, e o trabalho minucioso que aí vem sendo feito nos dá alguns informes preciosos sobre o período de nosso interesse.107 Segundo os mais confiáveis indícios, sua origem é helenística, e não judaica; a cidade desenvolveu-se ao redor da chamada Torre de Estratão, nome tanto de um aventureiro grego que se desgarrou das tropas de Alexandre, o Grande, e que aí se estabeleceu – ou que foi deixado propositalmente na região para manter a sua lealdade aos seus novos senhores macedônicos – quanto de um semi-lendário Rei dos Sidônios, que aí também teria subsistido, ainda que em tempos muito anteriores aos do Grande Conquistador. Em todo o caso, a Pyrgos Stratonos e suas imediações foram tomadas como patrimônio particular por Herodes Magno em 9 a.C.; este aí fez erguer um novo muro fortificado de ameias, assim como templos, palácios, um teatro, um hipódromo, uma grande arena com 105 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 204. 106 Cf. Daniel STIERNON e Bellarmino BAGATTI. “Cesaréia da Palestina”. In: VV. AA. Op. cit. p. 286. Apenas cento e poucos anos depois (em 451), ela foi rebaixada em sua dignidade e integrada ao Patriarcado de Jerusalém, considerado o quinto em primazia – depois das Sés de Roma, de Constantinopla, de Alexandria e de Antioquia. Honrada então como Metrópole Eclesiástica, teve jurisdição sobre vinte e oito dioceses sufragâneas, todas já governados por bispos de origem grega. Cf. Id. Op. cit. p. cit. S. VAILHÉ. “Cæsarea Palæstinæ”. In: Charles G. HERBERMANN, Edward A. PACE et al. The Catholic Encyclopedia : An international work of reference on the constitution, doctrine, discipline and history of the Catholic Church. (2a ed.). Nova Iorque: The Encyclopedia Press, 1913. (Vol 3 : Brown-Clancy) . p. 134. 107 Cf. D. STIERNON e B. BAGATTI. Op. cit. pp. 286-287. 48 lugar para 20.000 espectadores, um porto, banhos, fontes, canais de água potável e um aqueduto, um imenso obelisco de granito rosa e numerosos monumentos, ornados de colunatas e estátuas de grandes proporções, e rebatizou-a de Cæsarea Maritima, em honra de Augusto e em função de sua localização estratégica como porta de entrada mediterrânea da Palestina. Há registro de uma data precisa que marca sua passagem de um assentamento militar cercado por algumas poucas casas e dotado de notáveis melhoramentos por um déspota para uma cidade propriamente dita: em 13 d.C. grupos de colonos samaritanos foram deslocados à força para cultivar os campos ao seu redor e judeus helenizados receberam ordens de ir residir no interior de sua muralha. No mesmo ano Cesaréia Marítima foi constituída a capital civil e militar da Judéia, passando a ser a residência do procurador romano na região, em detrimento da cidade santa dos hebreus, localizada noventa quilômetros a leste.108 Pôncio Pilatos, famoso entre nós por sua participação no processo de condenação à morte de Jesus de Nazaré, foi um dos que residiu na nova e bela cidade litorânea. Para os romanos forçados a residirem na área, situada, sob mais de um aspecto, literalmente à margem do mundo grecolatino, Cesaréia apresentava-se como “um lugar muito mais agradável do que Jerusalém, a capital tradicional do povo judeu, que era interior e insular, provinciana e politizada, e freqüentemente hostil. Para as principais festividades judaicas, porém, Pilatos, como seus predecessores e sucessores, ia a Jerusalém.”109 Estes o faziam “não tanto por reverência empática pela devoção de seus súditos judeus, mas para estar na cidade caso houvesse problemas”110 – e de fato, “(...) Freqüentemente havia, em especial na Páscoa, uma festa que comemorava a libertação do povo judeu de um império anterior.”111 Com a grande revolta de 66-70 e sua repressão pelos romanos, os judeus foram dispersos, expulsos da Palestina, inclusive de Jerusalém – onde sobre as ruínas do Templo de Salomão se edificou outro, dedicado à Afrodite – e de Cesaréia Marítima. Vespasiano e Tito tornaram esta última cidade uma colônia exclusivamente romana, chamando-a de Colonia Prima Flavia Augusta Cæsarea. Sob Alexandre 108 Cf. S. VAILHÉ. Op. cit. pp. 134-135. 109 M. J. BORG e J. D. CROSSAN. Op. cit. p. 17. 110 Id. p. cit. 111 Ibid. p. cit. 49 Severo ela se tornou a mais populosa cidade da Palestina, então dividida em três províncias.112 Segundo a tradição eclesiástica, Cesaréia da Palestina foi logo atingida pela pregação cristã, talvez já no ano de 35.113 O livro dos Atos dos Apóstolos, que integra o cânone neo-testamentário contemporâneo, narra alguns importantes eventos da primeira Antiguidade cristã acontecidos nesta cidade: aí se estabeleceu o diácono Filipe após o seu encontro com o eunuco servo de Candace, rainha da Etiópia; aí Pedro (em aproximadamente 43) batizou o centurião Cornélio e toda a sua casa, introduzindo oficialmente os primeiros romanos de que temos conhecimento no movimento de Jesus; por aí Paulo passou mais de uma vez em suas viagens rumo à Ásia e Europa e, finalmente, aí foi preso e processado pelo estado romano (por volta do ano de 52).114 O primeiro bispo de Cesaréia cujo nome chegou até nós foi Teófilo, que teria assumido o governo pastoral da região no ano de 135; não há virtualmente mais nenhuma informação sobre a Igreja na região em meados dos séculos primeiro e segundo da Era Cristã. No alvorecer do terceiro século aí teve lugar um Concílio para definir a data da celebração da Páscoa; há significativos vestígios arqueológicos de edifícios cristãos datados deste período que eram usados exclusivamente como espaços de culto. De especial relevância são as ruínas de um edifício cruciforme nos quais se podem ver ainda restos de pinturas com cruzes, além de muitas inscrições que contêm versículos bíblicos, ou mencionam nomes de personagens conhecidos do cristianismo antigo e diversos fiéis dos quais não temos maiores notícias; aí também se encontrou um tesouro do período constantiniano com um medalhão de ouro com a cena da Anunciação, gravada de um lado, e de Salomão a cavalo, no outro. Apesar de estarem hoje submersas pelas águas do Mediterrâneo – que avançaram bastante sobre as suas margens orientais nos últimos 2.000 anos –, foi possível a pesquisas contemporâneas localizar suas muralhas concêntricas, edificadas sucessivamente nos períodos das cruzadas, bizantino, romano e por Herodes. Não muito distante desta primeira, contígua ao prédio cruciforme mencionado, se encontra o ambiente que os arqueólogos batizaram como Recinto 112 Cf. S. VAILHÉ. Op. cit. p. 134. 113 Cf. D. STIERNON e B. BAGATTI. Op. cit. p. 286. 114 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Atos dos Apóstolos 8, 40; 10; 23-26. ps. 1916, 1919-1921 e 1944-1950. 50 dos Cruzados, porque aí se encontrou uma estátua, muito mutilada, do Bom Pastor, datada de algum momento do século XIII – outras investigações, entretanto, comprovaram que se trata de um espaço edificado em meados do século III ou no princípio do seguinte. No seu grande pavimento ornado com um mosaico com figuras de animais também se pode ler o trecho da Epístola de Paulo aos Romanos que diz: “Como de dia, andamos decentemente; não em orgias e bebedeiras, nem em devassidão e libertinagem, nem em rixas e ciúmes.”115 A maior parte dos especialistas concordam que se trata de parte remanescente da grande sala de leitura da biblioteca de Cesaréia, também denominada, justamente, como sendo “de Orígenes”.116 Cercado de alunos e admiradores, este teólogo foi chamado novamente de Cesaréia da Palestina à Alexandria no ano de 217 pelo bispo Demétrio, que uma vez mais lhe confiou à tarefa de instruir os catecúmenos. Após um breve lapso de tempo, Orígenes entregou a catequese elementar desta escola a seu camarada Heraclas, que viria a se tornar sucessor de Demétrio e a instituir mais de vinte dioceses pelo Nilo acima117; dedicou-se ele próprio então a ministrar lições de filo-teologia e exegese bíblica a um auditório de personagens mais cultos que vinham lhe procurar – pagãos e cristãos dos mais diversos matizes – e a compor numerosas obras de teologia exegética e especulativa, sermões, livros apologéticos, de espiritualidade, de moral e de análise de questões filosóficas, ditando-as a notários e taquígrafos remunerados por Ambrósio, rico cidadão romano que foi por ele convertido da gnose valentiniana à fé cristã (ainda) paleortodoxa.118 Em 230, viajou à Grécia, e, estando de passagem em Cesaréia de Palestina, foi novamente convidado a aí pregar por seu amigo Teotito. Tal incumbência foi abertamente desaprovada por Demétrio de Alexandria, que já se ressentia, desconfiado, das audaciosas idéias teológicas de Orígenes; sabe-se que então “ele era objeto de críticas em certos meios e que mais tarde terá de defender a sua ortodoxia e justificar a abertura à filosofia.”119 Em reconhecimento à seus 115 Id. Ver. cit. Epístola aos Romanos 13, 13. p. 1988. 116 Cf. D. STIERNON e B. BAGATTI. Op. cit. pp. 286-287. S. VAILHÉ. Op. cit. pp. 134-135. 117 Cf. E. GIBBON. Op. cit. p. 279. 118 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 92. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 195-196. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. pp. 204-205. P. E. ARNS. Op. cit. p. 55 e nota correspondente, n. 121, p. 72. 119 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit. 51 grandes esforços, e talvez para apoiá-lo contra Demétrio, Alexandre de Jerusalém e Teotito de Cesaréia o ordenam presbítero, apesar de sua mutilação voluntária, contrariando um antigo costume de só elevar ao sacerdócio cristão homens com a potencialidade de gerarem filhos. O bispo de Alexandria se indignou de tal maneira contra isto que em um sínodo diocesano reunido no mesmo ano de 230 expulsou Orígenes formalmente de Alexandria e o destituiu do magistério catequético em todas as partes (mesmo fora de sua jurisdição pastoral) e da dignidade de presbítero, qualificando sua ordenação como ilegítima.120 Heraclas continuou o trabalho de seu predecessor, e quando o seu antigo companheiro tentou retornar à sua cidade de origem ano seguinte, o excomungou, fazendo com que fosse formalmente banido das terras do Egito.121 Segundo Marilia Fiorillo, o motivo deste embate não era o caráter inovador e autoral da teologia de Orígenes – que ela chega a designar como sendo “gnosticismo batizado” – e sim o seu prestígio pessoal, que acabou por se tornar um inconveniente para as ambições políticas de Demétrio (e Heraclas): ter-se-ia tratado menos de um embate entre tradicionalismo e pendores demasiado filosóficos do que um coup d’état eclesiástico que visava estabelecer um controle rígido da autoridade episcopal sobre o pensamento teológico alexandrino.122 Afirma a mesma autora que “(...) Prova disso é a deferência com que Demétrio havia tratado o antecessor de Orígenes, Clemente, cujas doutrinas poderiam ser consideradas muito mais desviantes”123; e a partir disto conclui ela que Demétrio perseguiu Orígenes e adulou Clemente não porque tivesse se tornado mais fiel, ou mais rígido, com a idade, mas porque, no intervalo de uma geração, a linha entre o que era permitido e o que não era em se tratando de teorização do cristianismo 120 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 204. 121 Cf. Id. Op. cit. pp. 201-202. 122 Cf. Ibid. Op. cit. p. 201. 123 Ibid. Op. cit. p. 202. Prossegue ainda a autora, na mesma página, tal linha de argumentação, desdobrando-a: “(...) Clemente (c. 140-211) sustentava, por exemplo, que a matéria era eterna (idéia totalmente platônica) e que o Filho não era uma criação (isto é, o Logos não se tornou realmente carne), mas uma espécie de ‘emanação’ (o que agradaria aos posteriores arianos), e que, cúmulo dos cúmulos, Javé e o Deus platônico eram o mesmo. Não há dúvida de que era um entusiasta da gnose, embora diferenciasse a verdadeira (uma estudada e calma aplicação, a dele) da falsa (a convulsiva, dos outros). Seu ideal era praticar para ser um Deus, isto é, empenhar-se para extrair de si o que já estava lá, para que ‘o divino elemento na natureza humana seja gradualmente trazido à tona, mais e mais perto de Deus, de quem, enfim, ele provém’.” 52 havia se tornado tanto mais relevante quanto menos tênue.124 Grandes comunidades cristãs corroboraram as atitudes de Demétrio e Heraclas em relação ao grande teólogo homenageado por Erasmo de Roterdã, especialmente a Sé de Roma, “porque os romanos tinham medo de serem eclipsados pela eloqüência e erudição do alexandrino.”125 Algumas outras, entretanto, se opuseram a ela: as da Palestina, da Arábia, da Fenícia e da Acaia. Quando o itinerante Sextus Julius Africanus chegou à cidade de Alexandria, não muitos anos depois da excomunhão de Orígenes, não encontrou nada do refinamento e sutileza de sua escola, mas apenas, erguido sobre as suas ruínas, o ensino chão-a-chão instituído por Heraclas. Seu legado já havia se transferido para outra parte.126 Atormentado por “tempestades de malignidade tão em contradição com o espírito do evangelho”127, Orígenes se estabeleceu definitivamente em Cesaréia da Palestina, onde constituiu uma nova escola e biblioteca e continuou o seu trabalho até a época das perseguições promovidas por Décio, quando “foi lançado na prisão e sofreu cruéis torturas, de cujas conseqüências morreu, no seu 70º ano, provavelmente em 253-54, em Tiro, onde, durante muito tempo, via-se seu túmulo.”128 Sediado na mais importante metrópole eclesiástica da Palestina de então, compôs numerosos volumes escritos, coisa que novamente só pôde ter sido materialmente realizada com o amparo de uma equipe, talvez fornecida por Teotito de Cesaréia; destes trabalhos ainda temos conhecimento de diversos comentários às Escrituras, de séries de homilias sobre o Antigo e o Novo Testamento, e da última versão da tão erudita quanto volumosa refutação do livro anti-cristão do filósofo neoplatônico Celso. A partir da mesma base de operações também se lançou a pesquisas diversas: perto de Jericó descobriu em uma jarra há muito lacrada uma tradução grega dos Salmos diferente das que eram conhecidas em sua época, um verdadeiro prelúdio à moderna corrida de pesquisadores que seguem em busca de antigos textos religiosos nos áridos desertos e cavernas do Oriente Médio. “Graças a Orígenes, Cesaréia da Palestina permanecerá um centro intelectual cristão muito ativo, até o fim do século IV; ali, o trabalho mais 124 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 193-203. 125 Id. Op. cit. p. 202. 126 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 204. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 202. 127 Citado em: Id. Op. cit. p. 201. 128 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. cit. 53 importante será a transmissão da Bíblia grega.”129 Não por acaso, mais tarde, quando Constantino se estabeleceu em Constantinopla, foi ao ateliê episcopal de Cesaréia, por intermédio de Eusébio, que o Imperador requisitou cinqüenta exemplares da Bíblia destinados a diversas igrejas, dentre as quais aquelas treze ou quatorze que fez edificar em sua nova capital.130 Imediatamente após a morte de Orígenes reacendeu-se e propagou-se o debate acerca da ortodoxia ou não de suas idéias; este só se acalmou de forma definitiva no século VI, quando, por um edito promulgado em 543, o Imperador Justiniano condenou nove das mais polêmicas proposições do grande teólogo alexandrino, decisão logo ratificada por todos os bispos de seus domínios, em primeiro lugar o Patriarca de Constantinopla, Menas, e Vigílio, que então era Papa de Roma.131 Em meados do século IV, entretanto, uma verdadeira batalha de palavras foi travada em torno desta questão, ampliada em muito pela fama e influência de Orígenes, que já em vida foi considerado o mais ilustre teólogo da Igreja grega, de tal maneira importante que nenhum amigo ou inimigo seu, ortodoxos ou heréticos, pôde efetivamente subtrair-se a imitá-lo em algo. De fato, “(...) Não houve nome, na Antigüidade cristã, mais discutido do que o de Orígenes; nenhum foi pronunciado com tão apaixonado entusiasmo ou tão profunda indignação.”132 Como os principais opositores de seu legado, se ergueram Teófilo, Patriarca de Alexandrina, e Epifânio de Salamis, diretor por quase trinta anos de um rigoroso mosteiro de modelo egípcio situado no deserto da Judéia, inimigo contumaz do pensamento grego, delator público de pelo menos dezoito personalidades eclesiásticas alexandrinas que designou como heréticas, e autor do Panarium (“Baú de medicamentos”), obra que “traz o elenco de 80 heresias, judaicas, pagãs e cristãs, e retrata as diversas seitas como inspiradas por serpentes cujo veneno põem em risco a pureza da fé.”133 A estes homens escandalizou especialmente a negação origenista da eternidade do inferno.134 129 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit. Também cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 398, n. 222. 130 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 145. 131 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 205. 132 Id. Op. cit. p. 205. 133 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 267, n. 25. 134 Em algumas poucas linhas, Berthold Altaner e Alfred Stuiber explicam esta polêmica posição filo-teológica do pensamento do grão-teólogo alexandrino: “(...) Um dos pontos capitais de sua 54 Do outro lado das trincheiras erguidas com impressionantes arabescos verbais, anos após a morte de Alexandre de Jerusalém e Teotito de Cesaréia, levantou-se um laborioso sucessor deste, Pânfilo. Proveniente de família nobre de Beritus (Beirute), Pânfilo exerceu alguns cargos públicos de certa relevância antes de se transferir para Alexandria para tomar aulas de filo-teologia com Piério, também chamado de “Orígenes, o jovem”, um dos eclesiásticos denunciados por Epifânio devido a suas opiniões supostamente desviantes. Privado de suas lições, transferiu-se para Cesaréia da Palestina, onde se dedicou a reanimar a escola fundada por Orígenes e ampliar o seu acervo. Com este intento restaurou e aumentou a biblioteca anexa à catedral, realizou novas aquisições, reuniu correspondência do polêmico teólogo, fez redigir catálogos de suas obras e organizou uma oficina de copistas. Foi ordenado sacerdote pelo bispo Agápito de Cesaréia, e veio a sucedê-lo no governo pastoral da Sé Titular da Palestina; aí desenvolveu uma reflexão e ensino que propriamente podem ser chamados de origenistas, por sua fidelidade aos modelos do erudito egípcio. Defendeu o seu mestre menos pela participação nas discussões públicas em torno de suas doutrinas do que pela conservação, divulgação e elaboração de seus manuscritos; assim, instaurou e fez crescer aquilo que foi de fato “a primeira grande coleção cristã de livros da Antigüidade.”135 Detido em novembro de 307 por ocasião da perseguição desencadeada por ordem de Maximino Daia, ficou dois anos na prisão; aí, com a ajuda de Eusébio, um seu aluno muito próximo, que se fez chamar por toda a vida de “Eusébio (filho) de Pânfilo”136, escreveu uma Apologia doutrina [i.e., de Orígenes] é a apokatástasis pánton: as almas que pecaram na terra, irão, depois da morte, para um fogo purificador; pouco a pouco, porém, todos, inclusive os demônios, subirão, de grau em grau, até que, por fim, inteiramente purificados , ressuscitarão com corpos etéreos e, novamente, Deus será tudo em todos. No entanto, esta restauração (apokatástasis) não significa o fim do mundo e, sim, um fim provisório. Antes de nosso mundo atual existiram outros mundos e, depois dele, ainda outros seguirão. De acordo com Platão, Orígenes ensinava sucederem-se os mundos, em mutação interminável. Portanto, Orígenes negava a eternidade do inferno”. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 213. 135 136 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 145. Id. Op. cit. p. cit. Evaristo Arns quase chega ao jocoso ao interpretar de maneira demasiado carnal esta filiação e escrever a respeito de Pânfilo que este era “parente de Eusébio”. P. E. ARNS. Op. cit. p. 148. Neste ato falho, desconsiderou toda a narrativa eclesiástica que se refere à relação mestre-discípulo nos termos de uma espécie de vínculo pai-filho.Tal topos discursivo é justamente a base do conceito de Padres / Pais da Igreja. Este nos remete em contextos cristãos à Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios (“Com efeito, ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais, pois fui eu quem pelo Evangelho vos gerou em Cristo Jesus”), à Didaquê (“Meu filho, procure evitar tudo o que é mau e tudo o que se pareça com o mau”) e a Ireneu de Lião (“Qui enim ab aliquo edoctus est verbo, filius docentis dicitur, et ille eius pater”). Suas raízes, contudo, são anteriores, e conduzem-nos ao surgimento do partido e do legalismo fariseu e 55 de Orígenes em seis livros, que deixou incompleta: decapitado em 16 de fevereiro de 310, o sexto livro foi concluído, em seu nome, por seu auxiliar.137 Citando numerosos textos do pensador alexandrino, alguns dos quais não conhecemos hoje senão por estes fragmentos de sua Apologia, Pânfilo “repele as acusações concernentes ao pensamento de Orígenes sobre a Trindade, a encarnação, a historicidade das Escrituras, a ressurreição, as penas, a alma, a metempsicose.”138 O sucessor de Agápito cedo percebeu as aptidões de Eusébio, e não tardou a ensiná-lo os métodos mais cuidadosos de pesquisa bíblica e a conhecer e admirar os diferentes aspectos da obra de Orígenes. “De Pânfilo, Eusébio herda o amor pelos manuscritos, o cuidado na transmissão crítica dos textos, o fervor pelo texto sagrado da Escritura. (...) juntos mantêm e enriquecem a biblioteca deixada por Orígenes (...) Juntos também defendem o grande alexandrino em face das contestações violentas e excessivas à sua pessoa e às suas idéias em certos meios.”139 Na escola teológica e na biblioteca de Cesaréia é que Eusébio recebeu a sua formação – assim como Gregório, o Taumaturgo. Por intermédio destas a tradição alexandrina – ou o origenismo, designe-se como queira – pôde estender sua influência para além de sua terra natal, onde estava sob o fogo cerrado de muitos e poderosos críticos; chegou aos grandes expoentes eclesiásticos da Capadócia – Basílio Magno e os dois Gregórios (o de Nazianzo e o de Nissa) – e desdobrou-se no tempo para fecundar a Igreja de Constantinopla na pessoa de Máximo, o Confessor, possivelmente o mais importante teólogo grego do século VII.140 Outras personalidades de relevo da literatura cristã antiga foram instruídos sob os auspícios dos bispos de Cesaréia, à sombra das estantes dos códices dos escritos de Orígenes e de versões de textos bíblicos que hoje só podemos conceber do rabinato como instituição, elementos já conhecidos na Palestina do século I – e duramente criticados por Jesus de Nazaré (“Quanto a vós, não permitais que vos chamem de ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. A ninguém na terra chameis de ‘Pai’, pois só tendes o Pai Celeste”). Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. pp. 17-22. (A citação de Ireneu – extraída de Adversus haereses IV : 41, 2 – está transcrita na p. 18). BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 23, 8-9. p. 1745. Primeira Epístola aos Coríntios 4, 15. p. 1998 e notas correspondentes. DIDAQUÊ. Português. Didaqué : O catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. Trad., introd. e notas Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. (15ª ed.). São Paulo: Paulus, 2008. III : 1. p. 11. 137 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 219. Henri CROUZEL. “Pânfilo de Cesaréia”. In: VV. AA. Op. cit. p. 1071. 138 Cf. Id. Op. cit. p. cit. 139 J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 145-146. 140 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 196, 301-311 e 516-518. 56 com a ajuda da imaginação.141 Acácio, Eusébio e Nemésio de Emessa, Gelásio, Filostorgo e Sócrates de Constantinopla, João Gramático, João Cozibita, Procópio de Gaza e o outro Procópio, historiador, que em dois livros distintos louvou e difamou Justiniano I e sua Imperatriz, Teodora: todos estes estudaram por algum período na antiga Cesaréia Marítima.142 No tempo em que Jerônimo estava a 141 Atenhamo-nos a mencionar acerca destes um único exemplo, bastante ilustre e de comprovada relevância. Durante muito tempo – e, até onde sabemos, desde períodos muito primitivos da história da Igreja – acreditou-se que o Evangelho de Mateus, o primeiro a ser apresentado no cânone cristão ortodoxo, foi o primeiro a ser redigido, em hebraico, e que o texto dito de Marcos, que lhe segue na ordem canônica, bem mais curto e composto em um grego gramaticalmente mais simples do que as versões gregas de seu antecessor, seria uma versão abreviada do escrito mateano. Corroborando isto, Eusébio de Cesaréia mencionou Clemente de Alexandria (Quis dives salvetur? 42, 1-15) que afirmou que, antes de Marcos e Lucas publicarem os seus respectivos Evangelhos, “(...) Com efeito, Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus, quando estava a ponto de ir para os outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna, fornecendo assim por meio da escritura o que faltava de sua presença entre aqueles de quem se afastava.” O douto prelado, no mesmo intento, também invocou o juízo de Irineu de Lião sobre o assunto (Adversus haereses III : 39, 15-16) e com este atestou que “Mateus publicou entre os hebreus, em sua própria língua, um Evangelho também escrito, enquanto Pedro e Paulo estavam em Roma evangelizando e lançando os fundamentos da Igreja. Depois da morte destes, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos por escrito, também ele, o que Pedro havia pregado.” Mais adiante, registrou ainda que quando Panteno, mestre de Clemente em Alexandria, partiu para pregar no Hindustão aí encontrou um Evangelho de Mateus, composto em caracteres hebraicos, que teria sido dado a “alguns habitantes do país que conheciam Cristo” pelas mãos do apóstolo Bartolomeu, destacado como primeiro arauto da fé cristã em tais terras. (Em outra parte, nos décimo quarto, décimo quinto e décimo sexto versículos do trigésimo nono capítulo do terceiro Livro de sua História Eclesiástica, Eusébio menciona escritos de Papías sobre a redação dos Evangelhos que, entretanto, nada afirmam claramente sobre a ordem de redação destes). A opinião de que o texto mateano antecipava o marcano foi abandonada pela parcela mais autorizada dos pesquisadores modernos, que proferem de maneira quase unânime o julgamento de que o Evangelho de Marcos foi o primeiro dos quatro intracanônicos a ser escrito, por volta do ano 70. (John B. Gabel e Charles B. Wheeler destacam que há não pequena probabilidade de a narrativa marcana ter sido o primeiro evangelho a ser redigido, ou seja, que ela teria inaugurado o evangelho como forma literária original). Os mesmos especialistas que contestam a correção temporal da ordem canônica datam a redação do Evangelho de Mateus em algum momento entre 80 e 90, não havendo nenhum consenso sobre sua preeminência ou postergação em relação ao escrito dito de Lucas. Como nenhum fragmento de nenhuma cópia do antiqüíssimo texto hebraico do de Mateus foi encontrado pelos arqueólogos contemporâneos, não há maneira de contradizer efetivamente a hipótese de que a primitiva versão mencionada por Irineu de Lião, Panteno, Clemente de Alexandria e Eusébio de Cesaréia de fato nunca foi composta na forma à qual se referem, e de que a narrativa mateana foi originalmente redigida em grego, usando tanto fontes próprias quanto o escrito de Marcos, o qual, ao que se pode depreender de sua análise textual comparativa, buscava corrigir e superar. Há notícia, entretanto, de que na antigüidade cristã havia um exemplar do evangelho hebraico de Mateus disponível na biblioteca de Cesaréia da Palestina. Ainda que não se saiba bem a procedência ou data de redação deste elo perdido das pesquisas eruditas sobre os Evangelhos, temos conhecimento de que se tratava de volume tão relevante que Jerônimo dispensou os copistas e correspondentes a ele associados para ir até o bispo local pedir – e obter a todo custo – uma autorização para transcrevê-lo de próprio punho. Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. Livro III : 24, 5-6. p. 97. Livro III : 39, 14-16. p. 113. Livro V : 8, 2-3. p. 167. Livro V: 10, 3. pp. 169-170. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. ps. 159 e 161, n. 143 e 150, e p. 297, n. 170-172. Eugenio ROMERO POSE. "Mateus (evangelho)". In: VV. AA. Op. cit. pp. 906907. J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. ps. 170, 174-175 e 178. P. E. ARNS. Op. cit. p. 149 e nota correspondente, n. 187, p. 165. 142 Cf. S. VAILHÉ. Op. cit. p. 134. D. STIERNON e B. BAGATTI. Op. cit. p. 286. 57 compor a sua tradução latina da Bíblia, “(...) O espírito comunitário dita ao bispo Euzoio – condiscípulo de Gregório de Nazianzo, em Cesaréia – o gesto magnífico de reconstruir a biblioteca de Orígenes e de Pânfilo”143; para este local é que o asceta se dirigiu quando desejou consultar, copiar ou mandar copiar algum texto especialmente difícil de ser achado.144 Juntamente com a Biblioteca de Elia Capitolina, ou Jerusalém, com a qual mantinha nos tempos de Eusébio um rico intercâmbio145, a de Cesaréia compunha uma espécie de sombra ou reflexo genuinamente cristão do acervo reunido em Alexandria por iniciativa dos governantes Ptolomeus: nas estantes palestinas podiam ser achadas, além das obras de Orígenes e versões diversas das Escrituras judaicas e cristãs, fontes de primeira mão como cartas, atas de martírios, códigos jurídicos helênicos e judaicos, obras apologéticas e anti-heréticas, histórias naturais de autores clássicos e as primeiras corografias cristãs, além de cópias de documentos oficiais, como os escritos do Imperador Galieno dirigidos aos bispos do Egito, um dos quais é transcrito no décimo terceiro capítulo do sétimo Livro da História Eclesiástica.146 Séculos de melancólica decadência se seguiram após a violenta tomada da cidade pelos samaritanos no ano de 556, ocasião marcada pelo saque de suas igrejas e pela matança generalizada de sua população. A ocupação persa em 614619 e a invasão árabe em 637-638 foram responsáveis pela precipitação do fim, ao ocasionarem dois incêndios monstruosos que consumiram quase por inteiro a Biblioteca de Cesaréia. Quando da época das Cruzadas, o Rei Balduíno I de Jerusalém reconstruiu parte da cidade em 1101, dotando-a de edificações esplêndidas em ornamentos e dividindo-a com seus arredores entre seus cavaleiros francos; neste processo foi encontrado um cálice ornamentado que se acreditou ser o Santo Graal, usado por Cristo na Última Ceia: este, cantando em diversos poemas medievais, foi levado para Paris em meados do século XII, e dele 143 P. E. ARNS. Op. cit. p. 27. 144 Cf. Id. Op. cit. p. 149. 145 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. ps. 56* e 58*. Eusébio menciona a sua relação com a biblioteca da antiga Jerusalém no vigésimo segundo capítulo do sexto Livro de sua História Eclesiástica: “(...) Floresciam nesta época muitos varões eloqüentes e eclesiásticos, cujas cartas, que mutuamente se escreviam, ainda hoje se conservam e são fáceis de encontrar. Também foram preservadas até nossos dias na biblioteca de Elia, formada por Alexandre, que então regia a igreja deli, e na qual nós também pudemos reunir pessoalmente o material para a presente obra.” EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. p. 211. 146 Id. Op. cit p. 246 e notas correspondentes, n. 500-501. 58 perdemos o rastro. Desde 1101 até 1496 trinta e seis bispos latinos ocuparam a Sé de Cesaréia da Palestina, e durante a ocupação franca esta província eclesiástica foi reorganizada em dez dioceses sufragâneas, nas quais foi mantido o episcopado grego (antes ligado ao Patriarcado Ortodoxo de Jerusalém) que declarou sua união com Roma. No século XVII, Anastácio, peregrino e autor de algumas notáveis obras de espiritualidade, mencionou que ainda lhe era possível encontrar no mercado, em porões ou em idas ao campo adjacente à cidade, fragmentos antigos, normalmente em péssimo estado, do imenso acervo da Biblioteca de Cesaréia. Em 1884 um grupo de muçulmanos bósnios foi deslocado pelo governo otomano para ocupar a cidade medieval, já então quase abandonada à poeira e aos fantasmas do passado – nesta ocasião já não havia virtualmente nenhum cristão a habitar a velha Metrópole Eclesiástica que outrora abrigou Orígenes. O atual nome do pequeno povoado que ainda subsiste em torno daquilo que era a grande Cesaréia Marítima é Kaisariyeh.147 Já estamos, entretanto, indo aqui muito longe em nossa divagação, demasiado distantes dos tempos de Eusébio. Note-se bem a expressão que usamos acima. Dos tempos – não do tempo. Eusébio de Cesaréia, autor da História Eclesiástica, nasceu no começo da década de 260 e faleceu em 339 ou 340: conheceu demasiado bem a Igreja Perseguida e a Igreja Triunfante. Viveu de forma intensa a paz que os cristãos tiveram após a morte do Imperador Aureliano, e percebeu com agudeza os problemas que se desenvolveram no interior da comunidade eclesial durante este período de arrefecimento da perseguição romana.148 Interpretou a intensa perseguição desencadeada por Diocleciano como um castigo divino contra as rivalidades surgidas entre os seguidores de Cristo, mas presenciou e narrou admirado a saga daqueles que “lutando animosamente em meio a terríveis tormentos, ofereceram quadros de grandes combates”149, resistindo até a tortura e a morte à determinação imperial de que todos deveriam oferecer “infames e impuros sacrifícios”.150 Declarou que esta “guerra sem quartel”151 promovida pelo Império contra os correligionários de Eusébio trouxe sobre esta formidável organização política a 147 Cf. S. VAILHÉ. Op. cit. p. 134. 148 Cf. Eusébio de Cesaréia. Op. cit. Livro VIII : 1, 1-8. pp. 273-274. 149 Id. Op. cit. Livro VIII : 3, 1. pp. 275-276. 150 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 3, 2. p. 276. 151 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 13, 10. p. 288. 59 justiça de Deus na forma de carestia, desordem civil e moléstias que vitimaram o povo e os governantes, e que o agravamento desta situação fez com que, de um lado, o Augusto Maxêncio, “por agradar e adular o povo romano, (...) ordenou a seus súditos interromper a perseguição contra os cristãos, simulando piedade e pensando que assim pareceria acolhedor e muito mais brando que seus antecessores”152, e, do outro, Constantino, filho do Imperador Constâncio, “o único de nossos contemporâneos que durante todo o tempo de seu mandato portou-se de um modo digno (...) e não participou o mínimo da guerra (...) [e] preservou livres de dano os fiéis que eram seus súditos”153, fosse proclamado imperador por suas legiões, mostrando-se sempre bondoso como seu pai para com os discípulos do Nazareno. Viveu a perseguição ordenada por Maximino no Oriente e cantou deslumbrado como “(...) quando a esperança já estava quase morrendo na maioria (...), Deus, campeão de sua própria Igreja, fazendo travar o freio, por assim dizer, do orgulho do tirano contrário a nós, demonstrou que o céu era um aliado posto ao nosso lado”154, e golpeou os domínios deste governante com a fome, a peste, a guerra e a pobreza. Descreveu com entusiasmo o conflito entre Constantino e Maxêncio e entre Licínio e Maximino, afirmando que foi por obra divina que os segundos foram vencidos pelos primeiros, que os superavam “tanto em linhagem quanto em educação, instrução, dignidade, inteligência e – o que é mais importante – em sábia prudência e em piedade para com o verdadeiro Deus.”155 Foi o cronista não só da “sucessão dos apóstolos”156, mas da completa mudança de situação dos cristãos no Império com o Edito de Tolerância proclamado por Constantino e Licínio em 313: um novo horizonte de expectativas se desvelou para o cristianismo – ou melhor, para certa corrente ou tendência do movimento de Jesus – com a aceitação e, logo depois, o favorecimento imperial; este traz consigo novas questões e esperanças, tematizadas por Eusébio ao longo de toda a sua obra.157 152 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 14, 1. p. 289. 153 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 13, 13. p. cit. 154 Ibid. Op. cit. Livro IX : 7, 16. p. 305. 155 Ibid. Op. cit. Livro IX : 10, 1. p. 312. 156 Ibid. Op. cit. Livro VIII : Prólogo. p. 273. 157 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 133. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 201. 60 In hoc signo vinces: é por meio de uma modalidade muito específica da fé cristã – tema ao qual voltaremos adiante – que o mundo romano do século IV assiste ao primeiro passo para uma síntese eficaz da religião, do Estado e da cultura, que irá refundir em bases novas e duradouras a lealdade das províncias ao governo central, dos súditos ao soberano.158 Interligados e simultaneamente se deram então o triunfo da Grande Igreja159 e de seu modelo organizacional e a passagem de uma política religiosa do Estado Romano – fundada em um substrato helenístico – para a sua defesa de uma Ortodoxia política – prenhe de afinidades eletivas com o modelo eclesiástico ao qual Constantino tornou-se simpático em algum momento dos anos 300 e no qual se inseriu como “bispo, ordenado por Deus para supervisionar os que estão fora da Igreja.”160 O discípulo de Pânfilo vivenciou e louvou esta guinada decisiva, cujas ambigüidades – que ele não demonstrou nunca intuir – não tardariam a aparecer. Logo outros prelados tiveram de defender a independência de sua jurisdição em relação àquela do Império, e alguns pagaram caro por ela161, mas a interpretação feita por Eusébio 158 Cf. M. FIORILLO. Op. cit. p. 202. S. RUNCIMAN. Op. cit. pp. 21-22. Henry CHADWICK e G. R. EVANS. Igreja Cristã. (Trad. port. Calos Noué e Francisco Manhães; rev. Carlos Noué e Meritxell Almarza). Barcelona: Folio, 2007. (Col. “Grandes civilizações do passado”). pp. 26-27. Karen ARMSTRONG. Uma história de Deus : Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. (Trad. Marcos Santarrita; rev. da trad. Hildelgarda Feist e Wladimir Araújo). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 146. Albert Habib HOURANI. Uma história dos povos árabes. (Trad. Marcos Santarrita). São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 23-24. 159 Ao usar esta expressão tomada de empréstimo do mencionado volume de Karen Armstrong – “(...) Os cristãos falavam agora numa Grande Igreja, com um único governo de fé, que evitasse o extremismo e a excentricidade” – nos referimos ao desenvolvimento no tempo imediatamente anterior e contemporâneo ao governo de Constantino como Imperador dos Romanos do grupo que denominamos anteriormente neste trabalho como paleortodxos. K. ARMSTRONG. Op. cit. p. 145. 160 Citado em: Paul JOHNSON. História do cristianismo. (Trad. Cristina de Assis Serra). Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 85. Sobre o conceito de Ortodoxia Política a que aqui fazemos referência, ver o capítulo com este mesmo título em: Celso TAVEIRA. O modelo político da autocracia bizantina : Fundamentos Ideológicos e Significado Histórico. 2002. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo (BR). pp. 341-348. 161 Mencionemos como único exemplo o célebre caso de João Crisóstomo, a quem foi atribuída – muito provavelmente de modo errôneo – a composição da Liturgia Bizantina (por isto dita “de São João Crisóstomo”). João Crisóstomo nasceu em Antioquia-sobre-o-Orontes, filho de uma família abastada, em ocasião ainda controversa (meados da década de 340 ou 350) – a primeira data precisa de sua vida que é conhecida pelos historiadores é a de sua ordenação como diácono, em 381. Recebeu uma educação esmerada e preparou-se para seguir carreira na chancelaria imperial constantinopolitana; conta em algumas das suas homilias que foram preservadas que passou sua juventude a divertir-se com os divertimentos teatrais e a observar o dia-a-dia dos tribunais. Ainda moço, por influência de um amigo, aproximou-se da fé cristã. Afastou-se do seculum, recebeu o batismo, assistiu às preleções de Diodoro, futuro bispo de Tarso, e dedicou-se à exegese. Tornouse amigo de Melécio, então bispo de Antioquia, que o nomeou leitor; sua família manifestou o desejo de que se fizesse padre, mas então não tinha a mínima vontade de envolver nas polêmicas político-teológicas que partiam a cidade, e, tão logo conseguiu fazê-lo, abandonou sua casa e se isolou no deserto sírio, primeiro, durante quatro anos, sob a orientação espiritual de um velho 61 monge, conhecido como taumaturgo, e, depois, por dois anos, isolado em uma gruta, onde tratou de decorar ambos os Testamentos. Com a saúde bastante debilitada, também em função da disciplina rigorosa que se auto-impôs, voltou à sua urbe natal, onde foi feito diácono. Em 386, Flaviano, sucessor de Melécio, ordenou-lhe sacerdote. Por doze anos fascinou os cristãos antioquenos com a sua eloqüência (daí o cognome de Crisótosmo, ou seja, “Boca de Ouro”, que postumamente lhe atribuíram) e não hesitou em fustigar os arianos e as demais seitas ditas heréticas que pululavam em Antioquia – até que foi escolhido como sucessor de Nectário, bispo de Constantinopla recém-falecido, conhecido por seu gosto pelo luxo. O prefeito de Antioquia temeu que João negasse o episcopado da capital do Império, e por isso fez com que partisse para lá sem dizer-lhe os motivos de tal viagem. Foi sagrado Patriarca a 26 de fevereiro de 398. Ninguém lhe perguntou se aprovava esta decisão. Ligado a este alto cargo, pretendeu moralizar os costumes e reformar a sociedade; arremeteu com entusiasmo sobre a riqueza insolente de alguns e sua dureza de coração para com os pobres. Pregou a fidelidade ao mandamento da caridade, recomendou a leitura diária dos dois Testamentos a todas as pessoas e vendeu uma parte dos bens de sua Sé. Em mais de uma ocasião chegou a contestar, moderadamente, as decisões do Imperador, de quem dependia diretamente o seu cargo; mais ou menos publicamente afirmou que a majestade imperial tinha intrínsecos limites, e que o domínio espiritual não se incluía em sua jurisdição. Graças ao auxílio de uma rica senhora da sociedade constantinopolitana que se dispôs a ajudá-lo, criou grandes obras de beneficência na cidade: multiplicou as esmolas, as refeições gratuitas, as guaridas para as noites de inverno. Inusitadamente, começou a proteger os godos que amontoavam as margens da capital; além disso, designou clérigos que os preparam para a conversão e constituiu um seminário para esse povo: graças a João, alguns anos depois, haveriam numerosos padres de origem bárbara em todo o Oriente bizantino. Quanto mais fez com que a Igreja de Constantinopla se livrasse do supérfluo, mas a fez enriquecer: por doações e legados, passou a dispor de grandes propriedades por toda a região e de um considerável poder econômico, assim como de imensa popularidade. À pedido dos bispos locais, foi a Éfeso, reuniu um sínodo e designou novos bispos. Legalmente tratava-se de um abuso – João não tinha autoridade para intervir em um território que não dependia de sua Sé –, mas todos se curvaram: por este gesto imprevisível, fez do arcebispo de Constantinopla o superior imediato das províncias eclesiásticas da Trácia, da Ásia e do Ponto. Como era de se esperar, sua proeminência e as exigências severas que fazia em nome do Evangelho logo despertaram tanto a inveja de alguns poderosos quanto a hostilidade dos que foram alvos de suas ácidas reprimendas – chamado de “João das Esmolas”, atraiu para si mesmo mais ódio do que amor. A imperatriz Eudóxia, algumas damas da Corte, os bispos de várias províncias e monges que viviam uma vida desregrada na capital do Império, articularam-se contra ele. Seus inimigos o acusaram de ter usado no Sínodo de Éfeso seu prestígio pessoal para contradizer o costume estabelecido e influir em um assunto administrativo da Igreja. Teófilo, Patriarca de Alexandria, um dos eclesiásticos mais criticados por João, pôs-se à frente da ofensiva, conseguiu atrair o apoio do Imperador para a sua causa e convocou o sínodo dito do Carvalho, diante do qual o bispo de Constantinopla foi intimado a comparecer. Reconhecendo que se tratava de uma armadilha, este não o fez – e foi deposto em conseqüência disto. Posto em silêncio, foi chamado meses depois a reassumir a sua Sé. Feito isto, novamente atacou de viva voz aqueles personagens públicos que considerava injustos e imorais. De maneira contumaz fustigou aqueles clérigos que admitiam em suas casas, a pretexto de protegê-los, jovens monges ou virgens consagradas, e com estes mantinham consórcios tão hipócritas quanto escandalosos. Sua paixão – da qual afirma em sua Homilia pronunciada no dia de sua ordenação [presbiteral] “que não se pode imaginar nada de mais forte e de mais tirânico” – repetida e rapidamente se tornou virulência, e não raro degringolou em sonora ofensa. Na noite de Páscoa de 404 seus inimigos fizeram com que baderneiros provocassem graves tumultos durante o batismo dos catecúmenos; multidões invadiram igrejas por toda a cidade, interromperam as liturgias, agridiram alguns sacerdotes e profanaram os templos. Cinco dias depois de Pentecostes do mesmo ano, o Imperador deu um veredicto que considerava João o responsável pelos mencionados conflitos, e assinava para ele uma ordem de exílio, desta vez definitiva. João escreveu ao bispo de Roma, Inocêncio, e lhe enviou porta-vozes, da mesma forma que o fez, antes Teófilo, seu detrator: o Papa tomou a defesa do arcebispo deposto, mas não possuía poder para se opor aos caprichos de Eudóxia, furiosa por ter sido comparada em uma homilia do Crisóstomo a Herodíade, esposa ilegítima de Herodes que foi alvo da sonora cólera do Batista. Após uma viagem de mais de noventa dias chegou à desértica região de Cucuso, nas fronteiras da Armênia, onde ficou por três anos; sua resistência silenciosa e ausência de revolta exasperam seus inimigos que, por fim, conseguiram que fosse transferido para a distante Cólquida (então Pityus), na costa oriental do Mar Negro. Debilitado pelas longuíssimas 62 acerca deste triunfo de um certo cristianismo e da autoridade imperial que o favorece é inequívoca. Pensando retrospectivamente, e tendo em vista o padrão de crescimento do cristianismo mediterrânico nos séculos I a III conforme este foi definido pelos modernos estudos de sociologia estatística, com o inevitável anacronismo de necessariamente considerarmos por seus resultados processos históricos do qual estamos tão distanciados no tempo e no espaço, pode até nos parecer quase inevitável que ocorresse alguma aliança entre a Igreja e o Estado romano.162 Isto, entretanto, não deve obscurecer a nossa tentativa de compreender como alguns daqueles que viveram os tempos que Eusébio viveu interpretaram o sentido desta aliança. De fato, não nos surpreende que considerassem tal coisa como uma milagrosa intervenção de Deus na história: “(...) agora aqueles homens odientos de Deus já não existem, porque tampouco existiam. Depois de haver causado e de haver sofrido por sua vez perturbações por breve tempo, e depois de suportar um castigo irrepreensível em justiça, eles marchas forçadas e pelos maus tratos impostos pelos soldados encarregados de vigiá-lo, morreu próximo a Comana, província do Ponto, em 14 de setembro de 407. Alexandre, então Patriarca de Antioquia, fez de tudo para reabilitar a sua memória, assim como Inocêncio de Roma. Já em 417 foi incluído nos martirológicos ocidentais, e pouco depois nos orientais. Com a ampliação dos conflitos entre Papas e Monarcas que marcariam toda a Idade Média e Moderna, foi constantemente evocado como defensor da liberdade da Igreja e como um santo conduzido às portas do inferno pelo poder imperial. Cf. Anne-Marie MALINGREY. “João Crisóstomo”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 761-763. G. SUFFERT. Op. cit. pp. 82-85. 162 Esta parece ser a intuição e o erro interpretativo que marcam o ensaio de especulação histórica composto por Carlos M. N. Eire sob o título de “Pôncio Pilatos poupa Jesus”. Este texto se encontra em uma coletânea de estudos de história contra-factual organizada por Robert Cowley, e aí é a única a tratar de um tema diretamente referente às religiões. A premissa da obra é interessante: os historiadores são profissionais que não possuem um campo externo de estudos, mas que têm como laboratórios suas mentes, e, posto isto, o estudo de resultados alternativos para determinados eventos da história permite que, pela imaginação, o pesquisador isole e retorça um dos dados que a documentação disponível lhe apresenta, buscando assim dimensionar a real importância desta variável determinada. A execução, no caso do ensaio de Carlos Eire, ainda que memorável, entretanto, não é das mais geniais. Padece este autor da duvidosa convicção de que entre o cristianismo e o Império Romano acabaria havendo algum tipo de conluio, mais cedo ou mais tarde, sem considerar devidamente o que poderia ocorrer se o próprio cristianismo tivesse vindo a ser outro. Na sua narrativa, os romanos protegeram Jesus de seus opositores judeus por ele pregar a submissão às autoridades imperiais: “À César o que é de César...” Muito mais cedo que na nossa própria realidade, o movimento de Jesus teria sido, então, cooptado pelo Império; mantido dentro dos limites do judaísmo conformista, um corpo doutrinal é organizado sob a tutela dos soberanos que promovem a nova religião, e, com o elogio da homogeneidade e a intolerância legitimadas e incitadas pela distinção mosaica e a sua conseqüente teologia do povo eleito, são impiedosamente perseguidos os dissidentes da religião oficial adventícia: tanto os que não aceitam o profeta Jesus, e ainda continuam apegados à pouco sutil justiça da Antiga Aliança e ao ideal nacionalista judaico, quanto os que insistem na supersticiosa crença de que ele era o Filho de Deus e ressuscitou no terceiro dia depois da sua morte. V. Carlos M. N. EIRE. "Pôncio Pilatos poupa Jesus". In: Robert COWLEY (org.). E se...? : Como seria a História se os fatos fossem outros. (Trad. Fábio Fernandes; Coord. ed. e pref. Mary Del Priore). Rio de Janeiro: Campus, 2003. 63 mesmos se arruinaram por completo e arruinaram seus amigos e suas famílias, tanto que as predições gravadas outrora em estelas são reconhecidas como verdadeiras ante os fatos. Por meio destes, a palavra divina afirma como verdadeiras as outras coisas, mas também o que declara acerca daqueles: ‘Os pecadores desembainharam uma espada; esticaram seu arco para abater o pobre e o indefeso, para degolar o reto de coração. Oxalá sua espada penetre em seus próprios corações e seus arcos se quebrem!’; e novamente: ‘Sua memória se perdeu com o eco, e seus nomes estão apagados para sempre e pelos séculos dos séculos’, porque realmente, ‘achando-se entre males gritaram, mas não havia quem os salvasse, gritaram ao Senhor, e não os escutou.’ Mesmo assim, ‘travaram-se-lhe os pés e caíram. Mas nós nos levantamos e nos endireitamos.’ E ante os olhos de todos mostra-se verdadeiro o que se predizia com estas palavras: ‘Senhor, em tua cidade reduzirás a nada sua imagem.’ Eles, que levantaram uma luta contra Deus parecida com a dos gigantes, tiveram um final igualmente catastrófico. (....) o Verbo salvador e emissor de luz divina, obedecendo ao amor do Pai, todo santidade para com os homens, (...) tendo eleito em primeiro lugar as almas dos supremos imperadores, valendo-se deles, amantíssimos de Deus, limpou inteiramente a terra habitada de todos os indivíduos ímpios e funestos e até dos terríveis tiranos, odientos de Deus. Logo trouxe à luz do dia os homens bem conhecidos por Ele, que em outro tempo haviam-se consagrado com sua vida a Ele e andavam ocultando-se ao abrigo de sua proteção, como numa tempestade de males, e honrou-os mui dignamente com a magnificência do Pai. E logo, também por meio destes, purificou e limpou as almas pouco antes manchadas e cobertas de material de toda espécie e montes de terra, que eram as ordens ímpias, usando como enxadas e ancinhos os impressionantes ensinamentos de suas doutrinas.”163 Posto isto, chegamos em um ponto nevrálgico de nossa reflexão. As pessoas interpretam os fenômenos históricos que vivenciam de acordo com padrões interpretativos socialmente forjados que lhes foram legados em sua formação e são continuamente exercidos e reforçados em sua vivência em comum. Estes mesmos fenômenos, entretanto, não estão obrigados a se adequar a nenhum sistema culturalmente pré-estabelecido, dada a imprevisibilidade que marca o desenrolar dos assuntos humanos; assim sendo, eles acabam forçando revisões e ajustes que modificam os mesmos padrões interpretativos através dos quais foram assimilados. A estrutura cultural de um indivíduo ou comunidade define como os eventos serão por ele considerados, mas a consideração de certos eventos concorre para modificar esta mesma estrutura, transformando-a em sua reprodução. Em outros termos, novos fatos e contextos demandam novas formas de narrativas. Estas, por sua vez, possuem determinados pressupostos e corolários, e atuam no sentido de gerar novas circunstâncias e interpretações possíveis.164 Ao 163 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 4, 29-31.59-60. ps. 327-328 e 333-334. 164 C. GEERTZ. Op. cit. 2004. pp. 102-103. M. SAHLINS. Op. cit. ps. 25-28 e 125-134. 64 narrar por meio de certo mecanismo de raciocínio próprio da apologética o triunfo de certo cristianismo contra seus opositores externos e contra o coro dos seus dissidentes, Eusébio de Cesaréia pôs em evidência os elementos que levou este movimento religioso a ser hostilizado e posteriormente cortejado – e cooptado – pelo Império Romano; ao cantar o triunfo de Constantino, “aferrado à aliança de Deus”165, elaborou uma teologia do governo imperial e se apropriou dos termos da cultura – inclusive da cultura política – greco-romana, tomando-os como base para o fortalecimento, intra e extramuros, até a hegemonia166 do movimento cristão – agora solidamente ancorado como instituição sociopolítica nos quadros jurídicos e ideológicos do Império Romano; ao buscar comprovar a ação de Deus no mundo dos homens em favor de uma determinado partido religioso com o recurso à erudição e à prova documental, através de convenções literárias que se acreditava serem capazes de comunicar não apenas conjecturas, mas a verdade, transformou a confiança cristã na Divina Providência em historiografia eclesiástica. 165 166 EUSÉBIO de Cesaréia. Op. cit. Livro VIII : 9, 3. p. 308. E a degradação, como afirmou Simone Weil. Cf. Simone WEIL. Ouvres. Paris: Gallimard, 1999. (Col. “Quarto”). p. 1013. Apud: R. BERGERON. Op. cit. p. 73. Capítulo 2 POSSÍVEIS SIGNIFICADO HISTÓRICO E RAÍZES INTELECTUAIS DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA I. “A história não é, portanto, uma categoria que explica, mas que explicamos.” M. GODELIER “Você acha que o passado afeta o futuro. Nunca passou pela sua cabeça que o futuro pode afetar o passado?” MAY SINCLAIR, “Onde seu fogo jamais se apaga” O nono Livro da História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia começa com a narrativa de como Maximino, Augusto que então governava as províncias romanas do Oriente, “ímpio como nenhum outro e convertido no maior inimigo da religião do Deus do universo”167, se desgostou do Edito promulgado pelos seus colegas Maximiano, Constantino e Licínio que fazia cessar a perseguição àqueles “que tinham abandonado a seita de seus antepassados”.168 Não podendo opor-se ao juízo dos outros co-imperadores, teria ele então tentado evitar que a nova legislação fosse conhecida nas regiões de seu governo, substituindo-a por uma instrução oral para que se afrouxasse o cerco armado contra os cristãos. Tal disposição de Maximino, consignada por escrito à sua revelia graças a um magistrado de nome Sabino, difundiu-se rapidamente entre as diversas instâncias de seu governo. Os efeitos de tanto, Eusébio descreve nos seguintes termos: “(...) Depois disto, os de cada província, pensando que a intenção do que se lhes escrevia era verdade, dão a conhecer por meio de cartas o pensamento imperial aos curadores, aos magistrados municipais e aos prepostos de distrito rural. Mas não fizeram avançar o assunto somente por meio de cartas, mas também, e muito principalmente, por meio das obras. Com o fim de levar a cabo a decisão 167 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. Livro IX : 1, 1. p. 299. 168 Id. Op. cit. Livro VIII : 17, 6. p. 294. 66 imperial, tiravam à luz do dia e davam liberdade a todos que tinham encerrados nos cárceres por terem confessado a divindade, e deixavam ir também os que dentre eles estavam condenados às minhas. Ainda que se equivocassem, eles criam que isto era o que verdadeiramente pensava o imperador [Maximino]. E ao ocorrerem deste modo as coisas, de repente, como uma luz que brilha saindo da noite escura, em cada cidade podia-se ver igrejas congregadas, reuniões concorridíssimas e, além disso, as cerimônias executadas do modo costumeiro. E todo pagão infiel era presa de grande espanto ante isto e se maravilhava de mudança tão prodigiosa, e a gritos proclamava grande e único verdadeiro o Deus dos cristãos. Dos nossos os que haviam sustentado valente e fielmente o combate das perseguições recobraram novamente sua liberdade franca para com todos; em troca, os que, enfermos na fé, haviam naufragado em suas almas apressavam-se alegremente em busca de remédio, implorando e pedindo aos fortes sua mão direita e suplicando a Deus que lhes fosse propício. E logo, os nobres atletas da religião, liberados do sofrimento das minas, regressavam a suas casas caminhando majestosos e radiantes através das cidades e transbordando uma indizível alegria e uma liberdade franca que não é possível traduzir com palavras. Assim, pois, ao longo dos caminhos e das praças, multidões em tropel realizavam sua viagem louvando a Deus com cantos e salmos, e os que antes estavam presos com duríssimos castigos e desterrados de suas pátrias, deverias vê-los agora recobrando seus lares com o rosto transbordante de alegria e satisfação, tanto que inclusive os que antes gritavam contra nós, ao ver agora um prodígio tão contrário ao que se poderia esperar, uniam-se também ao nosso regozijo pelo ocorrido.”169 A passagem, redigida em um tom correto, mas que não é pretensioso, evoca aquele encanto que é característico da palavra falada. O seu quadro discursivo, de uma estrutura e a movimentação quase cênica, poderia muito bem nos conduzir a afirmar que foi um trecho composto para ser lido coletivamente, como o foram os Evangelhos, as Epístolas Paulinas ou o Apocalipse. Tal intuição é reforçada se o lermos atentamente e o imaginarmos proferido desde os degraus de uma basílica ou de um púlpito ou do centro de uma assembléia reunida.170 Por 169 170 Ibid. Op. cit. Livro IX : 1, 7-11. p. 300. Jorge Luis Borges registrou em um ensaio intitulado “Do culto dos livros” que foi apenas depois de quatro séculos de existência do cristianismo – crença que é adesão aos ensinamentos e à Pessoa do maior dos mestres orais, do qual se tem notícia que escreveu apenas uma única vez: umas poucas palavras na terra, que nenhum homem leu (João 8, 6) –, portanto, pelo menos meio século depois da redação e difusão da História Eclesiástica, que “teve início o processo mental que, depois de muitas gerações, culminaria no predomínio da palavra escrita sobre a falada, da pena sobre a voz. Um admirável acaso quis que um escritor fixasse o instante (quase não exagero ao chamá-lo de instante) em que teve início o vasto processo. Conta santo Agostinho, no sexto livro das Confissões: ‘Quando Ambrósio lia, passava a vista sobre as páginas, fazendo sua alma penetrar o sentido, sem proferir palavra alguma nem mover a língua. Muitas vezes – pois não se proibia ninguém de entrar nem era costume avisá-lo quando alguém chegava – o vimos ler em silêncio e nunca de outro modo, e depois de algum tempo íamos embora, conjecturando que naquele breve intervalo que lhe era concedido para reparar seu espírito, livre do tumulto dos negócios alheios, não queria que o ocupassem com outra coisa, talvez receoso de que um ouvinte, 67 uma providencial ironia – como a que possibilitou que judeus das mais diversas regiões estivessem reunidos em Jerusalém naquele primeiro Pentecostes depois da execução de Jesus de Nazaré e aí ouvissem o primeiro discurso de Pedro como líder do grupo apostólico171 – a disposição favorável dos outros Imperadores em relação aos cristãos dribla a má vontade de Maximino e as medidas deste no sentido de dissimulá-la ou atenuá-la. O resultado de tal coisa é a libertação dos presos que se recusaram a participar do culto imperial e, com isto, um repentino florescimento da Igreja, que se associa, por um lado, à conversão dos pagãos que o testemunhavam, e, por outro, ao arrependimento e novo acolhimento no meio eclesial daqueles que haviam aceitado a adoração aos deuses do Estado como forma de se preservarem dos sofrimentos físicos, vinculado não à toa com o elogio dos “atletas da religião”, ou seja, dos que, em nome de Deus, resistiram pacificamente à violência romana e sobreviveram para testemunhar o fim desta.172 Sem dúvida, no referente ao nosso conhecimento de muitos personagens e eventos do movimento cristão na sua infância – como, por exemplo, este que acima mencionamos –, Eusébio de Cesaréi, por sua História Eclesiástica, é não só a mais conhecida como a única testemunha que resta.173 Esta contingência, atento às dificuldades do texto, lhe pedisse explicação de alguma passagem obscura ou quisesse discuti-la com ele, e com isso não pudesse ler todos os volumes que desejava ler (...).’ Santo Agostinho foi discípulo de santo Ambrósio em 384; treze anos depois, na Numídia, quando redigiu suas Confissões, ainda o inquietava aquele singular espetáculo: um homem, num quarto, com um livro, lendo sem articular as palavras.” À este relato, o literato argentino ajunta a seguinte nota: “(...) Os comentares explicam que, naquele tempo, era costume ler em voz alta para penetrar melhor o sentido, porque não havia sinais de pontuação, nem sequer divisão de palavras, e ler em grupo, para moderar ou evitar os inconvenientes da escassez de códices.” Jorge Luis BORGES. Outras Inquisições. (Trad. Davi Arrigucci Jr.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 132133 e nota correspondente, n. 1. 171 Cf. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Coordenação editoral de José Bortolini; Tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002 (4ª impressão: 2006). Atos dos Apóstolos 2, 1-36. pp. 1902-1904. 172 Certamente o epíteto “atletas da religião” empregado por Eusébio na referida passagem se relaciona com o trecho da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios onde o Apóstolo escreveu: “(...) Para os fracos, fiz-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a todo custo. E, isto tudo, eu o faço por causa do evangelho, para me torna dele participante. Não sabeis que aqueles que correm no estádio, correm todos, mas um só ganha o prêmio? Correi, portanto, de maneira a consegui-lo. Os atletas se abstêm de tudo; eles, para ganharem uma coroa perecível; nós, porém, para ganharmos uma coroa imperecível. Quando a mim, é assim que corro, não ao incerto; é assim que pratico o pugilato, mas não como quem fere o ar. Trato duramente o meu corpo e reduzo-o à servidão, a fim de que não aconteça que, tendo proclamado a mensagem aos outros, venha ser reprovado.” Id. Ver. cit. Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios 9, 22-27. p. 2004 e nota correspondente, a. 173 Cf. Carmelo CURTI. “Eusébio de Cesaréia (Palestina)”. In: VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). Petrópolis / São Paulo: 68 contudo, nos conduz a uma questão problemática que é a da veracidade dos fatos por ele registrados – isto é, se considerarmos, o que não é coisa unânime, que mais além, ou melhor, mais aquém, dos discursos dos historiadores há “algo de irredutível, que, na falta de melhor, continuarei a chamar de realidade.”174 Sob muitos aspectos, Eusébio era um historiador consciencioso, um homem atento aos seus tempos e às raízes dos eventos que aí se davam, dotado de grande erudição e um extraordinário acervo de fontes que, eventualmente, não chegaram até nós. Antes de ser um intelectual, entretanto, Eusébio era um eclesiástico e um sobrevivente das disputas internas e das pressões externas contra o movimento de Jesus, que acreditava que uma Igreja guardiã da doutrina de Cristo pura e inteira tinha sido por Ele instituída desde o princípio, solidamente estabelecida com o chamamento dos Doze e com a promessa de que “as portas do Hades nunca prevalecerão contra ela.”175 Isso fica bastante evidente ao considerarmos que o bispo de Cesaréia é incapaz de levar em consideração o desenvolvimento teológico de sua própria fé, coisa que pareceu muito evidente mesmo aos mais reverentes historiadores eclesiásticos da Contemporaneidade.176 As intencionalidades dos autores são fugidias aos seus leitores, mas, considerando o artífice por sua peça, bem se pode afirmar que aquilo que o animou a escrever uma obra dentro do gênero literário da historiografia era lançar mão deste para demonstrar, mediante a apresentação de provas documentais transcritas e a Vozes / Paulus, 2002. p. 537. Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). ps. 143 e 145-149. 174 Pierre VIDAL-NAQUET. Carta a Michel de Certeau (1975). In: Luce GIARD (org.). Michel de Certau. Paris: s.e., 1987. pp. 71-72. Apud: Carlo GINZBURG. O fio e os rastros : Verdadeiro, falso e fictício. (Trad. Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 216-217 e nota correspondente, n. 20 ao cap. 11, p. 407. 175 176 BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 16, 18b. pp. 1733-1734. Para Timothy Barnes este comprometimento de Eusébio de Cesaréia e a subseqüente limitação discursiva que ela lhe impõe incidem diretamente sobre a composição de sua História Eclesiástica, que, em grande parte devido a tanto, seria “menos uma narrativa coerente do que uma série de notas desconexas”. Timothy B. BARNES. Constantine and Eusebius. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1981. p. 132. Apud: John D. CROSSAN. O nascimento do cristianismo : O que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. (Trad. Barbara T. Lambert). São Paulo: Paulinas, 2004. (Col. “Repensar”). p. 503. Para exemplos relativamente piedosos da historiografia eclesiástica contemporânea, que reconhecem a evolução das idéias teológicas cristãs, mas rejeitam o relativismo que daí poderia decorrer, insistindo em uma solução de compromisso, ver: Félix Alexandre PASTOR. “Semântica do Mistério (Gênese e tipologia da linguagem da ortodoxia trinitária)”. In: Carlos PALÁCIO (org.). Cristianismo e História. São Paulo: Loyola, 1982. (Col. “Fé e Realidade”, n. 10). Bernard MOUNIER. O nascimento dos dogmas cristãos. (Trad. Odila A. de Queiroz). São Paulo: Loyola, 2005. pp. 131-132. 69 construção lógica de nexos causais entre eventos que um observador contemporâneo não-cristão poderia considerar absolutamente díspares, que a Igreja que havia sobrevivido e – mais tarde – triunfado era justamente a que havia logrado transmitir intacta por quase três séculos aquela Verdade que as autoridades pagãs buscaram calar com a violência e que as heresias supostamente tentaram deturpar. Procurar algo menos pastoso, que subsistiu factualmente ao relato eusebiano, chegar a algum ponto no qual pudéssemos nos apoiar com uma segurança um pouco maior para dissertar sobre o período que este tematiza implicaria um cotejo sistemático entre o texto de Eusébio e outras séries documentais que lhe antecederam e lhe eram contemporâneas, assim como algum nível de diálogo mais ou menos aprofundado com as pesquisas arqueológicas, antropológicas, filológicas e psicológicas que pudessem concorrer para o sucesso – necessariamente efêmero – deste nosso esforço.177 Cremos que tal coisa é possível, pois “(...) Ainda que não reduzamos a escrita da história a um somatório de fatos, ainda que os saibamos selecionados pelo ponto de vista que presidiu sua compreensão (...), a narrativa-do-que-houve já apanha a experiência no meio do caminho.”178 Contudo, além de não dispormos de tempo ou espaço para fazê-lo, simplesmente não se trata disto de nosso presente objetivo. A História Eclesiástica do bispo de Cesaréia de fato se constitui em uma reconstrução da realidade com fins ideológicos, como o são os quatro Evangelhos canônicos – que não nos apresentam uma biografia de Jesus no sentido moderno, ou greco-romano, do termo biografia179 – e, aliás, em alguma medida, todas as narrativas sobre o passado de que temos conhecimento. Esta reconstrução da realidade, contudo, não é apenas puro e simples documento ideológico, espécie de símile hipertrofiado da publicidade: as pretensões de verdade da historiografia remetem-nos às complexas discussões referentes aos problemas concretos ligados à escolha e uso de certas fontes, às técnicas de pesquisa e aos pressupostos dos historiadores – questões que não podemos deixar de ter em mente para considerar 177 Cf. C. GINZBURG. Op. cit. p. 327. 178 Luiz Costa LIMA. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 20. 179 Cf. Marilia Pacheco FIORILLO. O Deus exilado : Breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 164. John B. GABEL e Charles B. WHEELER. A Bíblia como literatura : Uma introdução. (Trad. Adail U. Sobral e Mana S. Gonçalves; apres. e anexos à ed. bras. Johan Konings). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2003. p. 169. 70 em todas as suas implicações a afirmação de que “a história se enraíza na sociedade onde vive o historiador.”180 Como escreveu Carlo Ginzburg, se referindo às posições teórico-práxicas defendidas por Arnaldo Momigliano, “princípio de realidade e ideologia, controle filológico e projeção do passado dos problemas do presente se entrelaçam, condicionando-se reciprocamente todos os momentos do trabalho historiográfico – da identificação do objeto à seleção dos documentos, aos métodos de pesquisa, aos critérios de prova, à apresentação literária.”181 Para que possamos prosseguir em bom termo, contudo, nos atenhamos apenas ao fato de que o registro feito por Eusébio representava uma ala da Igreja que havia crescido em popularidade, estabelecido uma sólida tradição quanto a seus textos e personagens fundadores, consolidado uma forma hierárquica e eficaz de administração (o episcopado monárquico) e se tornado hegemônica nos principais centros de poder do Império Romano, com o qual, nos tempos do historiador de Cesaréia, e também por sua ação, viria a aliar-se. Este extraordinário homem de letras recolhe e elabora em sua narrativa uma determinada memória eclesial, e a memória nunca é inocente: ela “transmuta a experiência, destila o passado em vez de simplesmente refleti-lo”.182 Sob este ponto de vista, a História Eclesiástica é também um dos palácios imaginativos sobre os quais o jesuíta Matteo Ricci falou aos seus cultos interlocutores chineses na última década do século XVI: um arranjo mais ou menos arbitrário de lembranças e conhecimentos distribuídos de tal maneira que façam sentido, que componham uma unidade significativa que seja eficaz, ou seja, dentro da qual milhares de experiências e conceitos pessoalmente vivenciados ou comunitariamente partilhados possam repousar tranquilamente até que sejam 180 Fernand BRAUDEL. Escritos sobre a História. (Trad. Jacob Guinsburg e Tereza C. S. da Motta; rev. Angélica D. Pretel e Vera Lúcia B. Bolognani). São Paulo: Perspectiva, 1978. (Col. “Debates”, Seção “História”; dir. Jacob Guinsburg). p. 9. 181 182 C. GINZBURG. Op. cit. p. 38. O grifo é do autor. David LOWENTHAL. The past is a foreign country. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1985. (Tradução para o português na Revista Projeto História, n. 17 – dossiê “Trabalhos da Memória”, São Paulo, PUC-SP, Programa de Pós-Graduação em História, novembro de 1998). p. 64. 71 trazidos à superfície do pensamento, singulares ou em séries de conteúdos encadeados, por um ato de vontade.183 Ainda a respeito desta questão, deve-se considerar também que, em si mesmos, os mais antigos textos cristãos, tanto intra como extracanônicos, contém ao mesmo tempo as sementes ou os pressupostos do desenvolvimento posterior da ortodoxia e da heresia.184 Do ponto de análise histórico-crítica, portanto, não se trata de uma questão de fundamentos teologicamente legítimos ou não, mas da maneira como os diversos grupos de fiéis os assumiram ou rejeitaram, e como estas comunidades de crentes se desenvolveram, em relação umas com as outras e com o restante das visões de mundo que compunham o mosaico cultural no qual se situavam. Colocando a questão de outra maneira, é fato que se os carpocracianos, os bardesanitas, os ofitas, os marcionitas, os tomesinos, os montanistas, ou qualquer outro dentre os inumeráveis grupos (supostamente) desviantes que o cristianismo de Eusébio havia se defrontado em sua ainda breve existência tivesse triunfado no lugar deste, nossa compreensão acerca da vida e missão de Jesus Cristo e dos fundamentos, organização e função da religião cristã iria ser radicalmente diferente da que hoje podemos ter. Muito diversa seria mesmo a nossa matriz cultural, realizações intelectuais e forma de conceber a realidade: Dante, por exemplo, poderia não ter descrito infernos, purgatórios e céus como estabelecimentos onde são conferidas as punições e recompensas correspondentes aos erros ou acertos dos seres humanos, mas cantado a virtude da epinoia, a glória da divindade andrógina, os éons e as esferas celestes dos gnósticos.185 183 Cf. Jonathan SPENCE. O Palácio da Memória de Matteo Ricci : A história de uma viagem: Da Europa da Contra-Reforma à China da Dinastia Ming. (Trad. Denise Bottmann). São Paulo: Companhia das Letras, 1986. pp. 19-23. 184 Cf. Helmut KOESTER. Ancient christian gospels : Their history and development. Londres (ING) / Filadélfia (EUA): SCM Press / Trinity Press International, 1990. p. XXX. Apud: J. D. CROSSAN. Op. cit. p.150. 185 Henry CHADWICK e G. R. EVANS. Igreja Cristã. (Trad. port. Calos Noué e Francisco Manhães; rev. Carlos Noué e Meritxell Almarza). Barcelona: Folio, 2007. (Col. “Grandes civilizações do passado”). p. 12. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 55. Jorge Luis BORGES. “Una vindicación del falso Basílides”. In: Ficcionario. Una antologia de sus textos. (Ed., introd., pról. e notas de Emir Rodríguez Monegal). Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1985. Para o próprio Eusébio de Cesaréia, é escusado destacar, tal possibilidade seria considerada ímpia nela mesmo, já que parecia se apresentar a seu juízo de modo muito claro de onde provinha tal constrangedora diversidade de cristianismos com a qual o seu próprio teve de se haver. Mais adiante mencionaremos novamente tal coisa, mas, por hora, destaque-se que ele bem o demonstra 72 Como detentor de um lugar institucional de relevo considerável no interior desta vertente cristã que incidentalmente veio a triunfar de algum modo sobre as demais, o autor da História Eclesiástica buscou mostrar que a Igreja à qual pertencia havia sido a pioneira e a principal corrente desta crença, na organização quanto na fé, e, enquanto Corpo Místico de Cristo, mesmo no que remontava aos tempos anteriores à existência histórica de Jesus de Nazaré.186 Esta convicção – sobre a qual se baseou uma relevante parte da historiografia eclesiástica católica e protestante até a contemporaneidade – foi recentemente contradita por nossas descobertas arqueológicas e pelas mais recentes pesquisas históricas sobre os primórdios do cristianismo. Em um lúcido trecho, composto a mais de trinta anos atrás, Paul Johnson afirmou que “(...) O cristianismo começou em meio à confusão, à controvérsia e ao cisma e assim prosseguiu. Uma Igreja ortodoxa dominante, com uma estrutura eclesiástica reconhecida, só emergiria muito gradualmente, representando um processo de seleção natural – uma sobrevivência espiritual do mais apto. (...) Jesus havia gerado certas idéias e matizes que se propagaram rapidamente por uma vasta área geográfica. Seus seguidores dividiram-se, desde o princípio, em elementos de fé e de prática. E, quanto mais os missionários afastavam-se da base, maior a probabilidade de seus ensinamentos entrarem em divergência. (...) Isso visto, era inevitável que a Igreja se expandisse não como um movimento uniforme, mas como um conjunto de heterodoxias. Ou, talvez, ‘heterodoxias’ seja a palavra errada, já que dá a entender que havia uma versão ortodoxa. (...) Desde o início, pois, houve inúmeras variedades de cristianismo, com pouco em comum (...). Cada Igreja tinha sua própria ‘história de Jesus’, e todas haviam sido fundadas por um membro do bando original que, passara a tocha adiante para um 187 sucessor designado, e assim por diante.” no início do sétimo capítulo do quarto Livro de sua História Eclesiástica: “(...) As igrejas de todo mundo já resplandeciam como astros brilhantíssimos, e a fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo chegava a seu pleno vigor em todo o gênero humano, quando o demônio, avesso ao bem assim como inimigo da verdade e sempre hostil, demasiadamente, à salvação dos homens, voltou contra a Igreja todas as suas artimanhas. Se em outro tempo suas armas eram as perseguições contra ela, que vinham de fora, agora, em troca, sendo-lhe vedados estes meios e lançando mão de homens malvados e feiticeiros como de funestos instrumentos e ministros da perdição das almas, levam [sic] a cabo sua campanha por outros caminhos. Imaginam [sic] todos os recursos, como o de que feiticeiros e embusteiros que se deslizem sob o próprio nome de nossa doutrina, para assim conduzir ao abismo da perdição os fiéis que conseguem capturar, e aos que não conhecem a fé, com os meios que põe em prática, afastar do caminho que leva à doutrina salvadora.” EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IV : 7, 1-2. p. 120. O grifo é nosso. 186 187 Id. Op. cit. Livro I : 3 e 4. pp. 21-27. Paul JOHNSON. História do cristianismo. (Trad. Cristina de Assis Serra). Rio de Janeiro: Imago, 2001. pp. 58-59. Sobre a importância destas diversas histórias de Jesus, cuja composição e uso estavam direta e intrinsecamente vinculados à vida de comunidades religiosas concretas, situadas no tempo e no espaço, enredadas em sistemas culturais e relações de poder internas e externas (não se tratando, portanto, de textos emanados de – ou referentes a – uma Igreja 73 A História Eclesiástica, portanto, não é apenas um registro de fatos, mas também uma narrativa que – dando realce a certas conexões entre uns, enquanto isola ou mesmo ignora outros – projeta no passado as convicções do autor, dispondo-o e retratando-o de acordo com o seu próprio olhar. Colocando a questão em outros termos, pode-se afirmar que ela é simultaneamente testemunho e projeto. Como qualquer outro discurso humano, a narrativa do conjunto de processos e eventos que forma a História é culturalmente ordenada de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas que lhe são próprios.188 Ao mesmo tempo, por outro lado, é baseado neste arranjo particular que os indivíduos organizam seus projetos e dão sentido aos objetos e elementos conjunturais com os quais se deparam.189 Não se trata de um expediente maquiavélico de deturpação da verdade com vistas a interesses egoístas, nem de uma articulada conspiração para falsear os acontecimentos em favor de um determinado grupo, hipótese inverossímil por seu corolário psicológico, que não pode por nós verificado. Se não se tratasse de “um mentiroso político consciente de suas metas, que mentia no interesse de uma pretensão à arquetípica), considere-se a afirmação do teólogo espanhol Alfredo Fierro de que “(...) mediante a interpretação política, o Evangelho reveste-se de beligerância social.” Alfredo FIERRO. O Evangelho beligerante : Introdução e crítica às teologias políticas. (Trad. Álvaro Cunha). São Paulo: Paulinas, 1992. (Col. “Libertação e teologia”, n. 8). p. 6. 188 Este ordenamento implica necessariamente em exclusões conscientes ou não: ao contrário da opinião de Mallarmé de que “o mundo existe para chegar a um livro”, a História, se entendida como a soma de todas as infindáveis memórias fragmentadas e distorcidas sobre todos os eventos e de todas as possíveis análises acerca de seus resquícios materiais, é simplesmente difícil ou inviável de ser formulada em qualquer forma de discurso: a realidade simplesmente não caberia na linguagem. Uma obra publicada nos anos de 1980 sobre a Guerra Civil Americana é composta de quatro grossos volumes, compreendendo quase 2.000 páginas; apenas com o auxílio de uma prodigiosa imaginação chegaríamos a conceber qual seria a extensão de um tratado que se dispusesse a cobrir com a mesma extensão de detalhes – ou com ainda mais profundidade – o surgimento do movimento de Jesus, as vidas de seus fundadores e primeiros propagadores e o seu desenvolvimento histórico nos seus três ou quatro primeiros séculos! Mesmo se postulássemos um hipotético cronista onisciente e imparcial, se não admitirmos que toda obra historiográfica é altamente seletiva, eventualmente forçada a resolver questões complexas de modo simplista e a lidar em uma única frase ou desprezar personagens de relevo e dezenas ou centenas de anos, acabaríamos chegando em uma defesa, semelhante à feita por G. K. Chesterton, da alegoria como única forma privilegiada de representação da realidade – acompanhada, talvez, pela arquitetura e pela música. Segundo a zombeteira afirmação deste autor britânico, “(...) O homem sabe que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anônimos que as cores de uma floresta outonal. Crê, no entanto, que esses matizes, em todas as suas fusões e conversões, são representáveis com precisão por um mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que de dentro de um corretor da bolsa possam realmente sair ruídos capazes de exprimir todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo.” Cf. J. L. BORGES. Op. cit. ps. 131 e 178179. C. GINZBURG. Op. cit. p. 228. J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 51. 189 Cf. Marshall SAHLINS. Ilhas de História. (Trad. Barbara Sette; rev. téc. Márcio B. de M. Leite). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 7. 74 autoridade absoluta”190, Eusébio de Cesaréia “(...) Tinha de escrever exatamente aquilo que lhe fosse exigido por sua fé [e] (...) Sua atividade devia limitar-se a redigir de maneira efetiva a tradição devota [de seu partido].”191 Um homem culto e convicto, o autor da História Eclesiástica articula o estabelecimento da sua crença cristã com os instrumentos discursivos que lhe estavam disponíveis, em resposta a situações bastante concretas – as acusações dos não-cristãos, as ameaças de dissensão, o exemplo incômodo de cristianismos outros – e, ao fazêlo, modifica os contornos e efetividade de suas próprias ferramentas e apresenta uma imagem da história que lhe parece bastante adequada à luz daquilo que considera genuíno; lembremo-nos que “(...) Para os que as têm, as crenças religiosas não são indutivas, mas paradigmáticas; o mundo (...) não fornece evidências de sua verdade, mas ilustrações dessa verdade.”192 Conforme já fizemos menção anteriormente, considerar o trecho de Eusébio de Cesaréia que acima citamos para saber o que aconteceu aos cristãos sob o governo de Maximino quando da promulgação por Maximiano, Constantino e Licínio de um Edito que dispunha que eles podiam se declarar sem represálias como tais e reparar os edifícios em que se reuniam193 nos exigiria ir muito mais fundo do que nossa atual competência nos permite, enveredando por uma erudita busca de outras fontes documentais referentes ao mesmo evento, a serem integradas em uma análise mais ampla acerca da verossimilhança e pertinência deste. Fazer algo diferente disto seria lançar-se a uma “história da historiografia sem historiografia”194, que admite um separação nítida entre a narrativa histórica e o trabalho de pesquisa em que ela se baseia.195 Tal dissonância nos parece, mais do que incoerente, esquizofrênica, mas a sua consideração apenas para fins analíticos pode conduzir ela mesma a um procedimento de pesquisa e à uma narrativa historiográfica interessante. Neste sentido, poderíamos assumi-la apenas 190 Erich AUERBACH. Mimesis : A representação da realidade na literatura ocidental. (Trad. Jacob Guinsburg). (5ª ed.). São Paulo: Perspectiva, 2004. (Col. “Estudos”, Seção “Crítica”, n. 2; dir. Jacob Guinsburg). p. 11. 191 Id. Op. cit. p. cit. 192 Cf. Clifford GEERTZ. Observando o Islã : o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”: dir. Gilberto Velho). p. 106. 193 Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 17, 9. p. 295. 194 C. GINZBURG. Op. cit. p. 43 e nota correspondente, n. 5 ao cap. 2, p. 350. 195 Cf. Id. Op. cit. p. cit. 75 na qualidade de construto intelectual explicativo – como são, por exemplo, os tão esclarecedores modelos ideais tecidos pela sociologia weberiana. Em apoio a este artifício, consideremos que “(...) Tem gente que imagina de boa-fé que um documento pode ser uma expressão da realidade (...). Como se um documento pudesse exprimir algo diferente de si mesmo (...). Um documento é um fato. A batalha, um outro fato (uma infinidade de fatos). Os dois não podem fazer um. (...) O homem que age é um fato. E o homem que conta é outro fato. (...) Todo depoimento dá testemunho apenas de si mesmo, do seu momento, da sua origem, do seu fim, e de nada 196 mais.” Estabelecida a nossa concordância com tal afirmação, outro passa a ser o foco de nossas considerações. Nosso suporte empírico continua a ser a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, mas o que aí buscamos não são dados factuais, mas uma imagem da realidade: não como se deu, por exemplo, a invenção e o desenvolvimento das idéias de Taciano ou Bardesanes, o Sírio197, mas como o ilustre bispo historiador as apreende e narra. A teia de significações que sustenta este retrato do mundo, “(...) o que os antropólogos chamam de ‘estrutura’ – as relações simbólicas da ordem cultural – é [em si mesma] um objeto histórico”198, no caso, o que é de nosso presente interesse. 196 Renato SERRA. “Partenza di un gruppo di soldati per la Libia”. In: Scritti letterari, morali e politici. (Org. M. Isnenghi). Turim: s.e., 1974. p. 286. Apud: C. GINZBURG. Op. cit. p. 229 e nota correspondente, n. 63 ao cap. 11, p. 411. 197 Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IV : 29 e 30. pp. 146-147. 198 M. SAHLINS. Op. cit. pp. 7-8. 76 II. “(...) todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vida, mas terminamos por viver apenas uma”. CLIFFORD GEERTZ, “O impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem” “Gostei daquela sua idéia de que ‘os livros levam uma pessoa dentro, o autor.’ Agradeci-lhe ter me compreendido.” JOSÉ SARAMAGO, Cadernos de Lanzarote Do autor da História Eclesiástica, o Monsenhor L. Duchesne assim escreveu na introdução de sua Histoire ancienne de l’Église: “(...) Nos tempos da perseguição de Diocleciano, enquanto igrejas eram destruídas, os livros sagrados queimados, os cristãos proscritos ou forçados à apostasia, um dentre eles trabalhava tranqüilamente, e dentro de seu escritório compilava a primeira história do cristianismo. Não se tratava de um espírito superior, ou mesmo especialmente dotado. Era, entretanto, um homem paciente, trabalhador, cônscio. Depois de se passarem longos anos, ele se parecia com os documentos que consultou e meditou para compor aquele livro. Com êxito, ele salvou do naufrágio e colocou todos eles em sua obra. Foi assim que Eusébio de 199 Cesaréia tornar-se-ia o pai da historiografia eclesiástica.” Com efeito, é um epíteto bem merecido este que se atribuiu a Eusébio. O grande especialista italiano em história da historiografia antiga Arnaldo Momigliano chamou a atenção para o fato de que sua incursão pela escrita da História abriu um novo período na história da historiografia, e ressaltou que é duvidoso que algum outro historiógrafo tenha tido um impacto tão direto quanto duradouro sobre as gerações de outros historiógrafos que o sucederam, autores que quase sempre o usaram de forma explícita como fonte e modelo. Sua História Eclesiástica estabeleceu os elementos essenciais e as regras de composição da imensa maioria das narrativas de dimensões históricas feitas pelos cristãos – e contra os cristãos – sobre o cristianismo no Ocidente e no Oriente: “a inter-relação contínua entre dogma e fato; o significado transcendental atribuído ao período das origens; a ênfase na documentação factual; a necessidade sempre presente de 199 Citado em: Celso TAVEIRA. O modelo político da autocracia bizantina : Fundamentos Ideológicos e Significado Histórico. 2002. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo (BR). p.189. 77 relacionar os acontecimentos das Igrejas locais ao corpo místico da Igreja Universal.”200 Quase dezessete séculos depois de ter entregue aos seus pares a versão definitiva de sua mais insigne obra, muito do que está consignado em seus caracteres continua a ressoar no interior da vida de uma significativa parte de seus correligionários póstumos. No dia 6 de janeiro de 1970 o secretariado vaticano para a educação católica publicou o “Regulamento fundamental de formação sacerdotal”, que, versando sobre as disciplinas teológicas, afirmou na sua disposição de n.o 79 que “(... ) A história eclesiástica deve ilustrar a origem e o desenvolvimento da Igreja como povo de Deus que se difunde no tempo e no espaço, examinando cientificamente as fontes históricas. (...) será preciso ressaltar o admirável encontro da ação divina e da ação humana, e favorecer nos alunos o genuíno sentido da Igreja e da tradição.”201 Trata-se de um programa de estudos nitidamente eusebiano. Há um pouco mais de dois anos, o Papa Bento XVI apresentou em sua audiência semanal aos peregrinos reunidos uma breve catequese sobre Eusébio de Cesaréia, “o primeiro a escrever uma história da Igreja, que segue sendo fundamental”202. Deste antigo escritor eclesiástico, destacou a “intenção moral”, o fato de que “sua análise da história nunca é um fim em si mesmo; [já que] não só busca conhecer o passado, mas aponta com decisão à conversão, e a um autêntico testemunho de vida cristã por parte dos fiéis. É um guia para nós mesmos.”203 São apenas duas ilustrações, e poder-se-ia referir outras mais, não só em âmbito católico romano, mas também ortodoxo oriental, reformado e mesmo pentecostal. Neste sentido, o bispo de Cesaréia ainda continua a se fazer presente de alguma maneira no mundo contemporâneo. Tal circunstância, entretanto, é apenas um lado do perfil histórico de Eusébio. Trata-se de um autor complexo, e, de acordo com a feliz afirmação de Gustave Bardy, seu comentador e tradutor para o francês, uma “personalidade 200 Arnaldo MOMIGLIANO. As raízes clássicas da historiografia moderna. (Trad. Maria Beatriz B. Florenzano). Bauru: EDUSC, 2004. p. 194. 201 Citado em: Marcel CHAPPIN. Introdução à história da Igreja. (Trad. Pier Luigi Cabra). São Paulo: Loyola, 1999. (Col. “Introdução às Disciplinas Teológicas”, n. 14; org. Rino Fisichell). p. 16. 202 PAPA BENTO XVI. Intervenção na audiência geral de 13 de junho de 2007. In: Informativo Zenit. O mundo visto de Roma. Cidade do Vaticano, 13 de junho de 2007. (Consultado em: http://www.zenit.org/article-15326?l=portuguese, em 14 de setembro de 2009, às 18:00Hs). p. 1. 203 Id. Op. cit. p. 2. 78 litigiosa”204, que da mesma forma que Constantino, o mais destacado personagem de uma considerável parte de seus escritos, tem sido objeto das mais sérias e apaixonadas discussões nos últimos mil seiscentos e tantos anos. Dos últimos dias de sua vida até meados do século VI, a maior parte dos bispos orientais teve sérias dúvidas quanto à autenticidade e firmeza de sua confissão de fé, tanto por ter saído ileso durante as perseguições dos anos 303-313 quanto por sua postura ambígua durante e depois do Concílio de Nicéia, quando foi de uma indecisão bastante peculiar à tentativa de forçar o estabelecimento de alguma posição intermediária entre partidos consubstancialista e os ariano. Foi publicamente acusado de ser um apóstata por ninguém menos que Atanásio de Alexandria, que colocou em questão no Concílio de Tiro (335) como pôde Eusébio ter escapado ileso do pior período da perseguição romana sendo então ele assumidamente já cristão, vivendo na mesma Cesaréia onde ocorreram tantos martírios e possivelmente tendo sido preso junto com seu mestre, amigo e colaborador Pânfilo, executado em 310.205 Mais moderado, o intelectual Patriarca Fócio de Constantinopla reconheceu no século IX a grande erudição e a preeminência de Eusébio de Cesaréia sobre todos os outros estudiosos da história e literatura cristã antiga, ainda que tenha definido seu estilo como impreciso, não agradável nem brilhante. Curiosamente e através de vias ainda não muito claras, esta querela de cunho disciplinar e dogmático ressoou na historiografia moderna e contemporânea sobre a Antigüidade Cristã bem mais profundamente do que um avaliador mais ingênuo poderia imaginar. De um modo geral, pode-se neste âmbito dispor de um lado os autores que acusaram Eusébio de Cesaréia de interesseiro irenismo, apostasia, bajulação, servilismo e falsidade, e do outro os que se esforçaram para, à título de buscar compreendê-lo adequadamente, justificá-lo ou desculpá-lo, fazendo, além de um autor seminal, um herói ou santo.206 De 1588 a 1607, Cesar Baronius produziu os doze volumes dos Annales eclesiastici, e nesta densa obra, dedicada em suas partes, alternadamente, a papas e príncipes laicos, fez um elogio da harmônica união entre o temporal e o espiritual de acordo com os cânones do gênero historiográfico. Bem recebida tanto na Europa católica quanto no Oriente ortodoxo, esta obra valorizou 204 Citado em: C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. 205 Cf. Id. Op. cit. pp. 189-190. C. CURTI. Op. cit. p. cit. 206 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. 79 Constantino como símbolo de ideal colaboração entre as autoridades civis e eclesiásticas e, com isto, elevou Eusébio de Cesaréia, seu biógrafo, ao nível de um profeta ou confessor da fé. Entre os protestantes, através da crítica moral do “Cristianismo político”, desenvolveu-se a concepção oposta, o que implicou uma sorte bastante distinta para o autor da História Eclesiástica. Johann Christian Hesse trouxe à público em Jena no ano de 1713 um seu trabalho com o título de Dissertatio historico-pragmatica, qua Constantinum Magnum ex rationibus politicis christianum e o subtítulo de De discrimine christianismi veri et politici, onde apresentava Constantino como um personagem negativo tanto para o Império Romano quanto para a fé cristã. Este autor holandês retratou tal soberano como um homem inescrupuloso que escolheu o cristianismo para submetê-lo aos seus interesses políticos, e considerou Eusébio de Cesaréia, na melhor das hipóteses, como um deslumbrado que mentia mais por auto-engano do que por qualquer outra coisa. No século XIX, o Die Zeit Constantins des Grossen (Bâle, 1853) de Jacob Burckhardt aprofundou este juízo, e apresentou aos seus leitores o quadro psicológico de um Constantino inescrupuloso e o autor da História Eclesiástica como um incoerente e traidor da verdade.207 Para este historiador, estava claro que “(...) Eusébio não é (...) um fanático; ele conhecia a alma profana de Constantino e bem seu frio e terrível despotismo; mas ele é o primeiro historiador realmente desonesto da Antigüidade. Sua tática, que tinha um sucesso glamuroso para aquela época e para toda a Idade Média, consistia em tornar, a qualquer preço, o primeiro grande protetor da igreja um ideal para futuros príncipes. Com isso, se perdeu para nós a imagem de um grande homem genial que nada sabia sobre incerteza moral na política e via a questão religiosa somente pelo lado da 208 utilidade política.” Tal juízo teria um efeito duradouro. Contra o pano de fundo da ascensão do nazismo e do stalinismo, Erik Peterson, teólogo da Faculdade de Bonn convertido ao catolicismo romano, no âmbito do projeto de desvincular o cristianismo da reflexão da “mais duvidosa de todas as ciências, as chamadas Ciências Humanas”209, considerou Eusébio de Cesaréia como uma espécie de 207 Id. Op. cit. pp. 294-295. 208 Citado em: SCHMITT. Teologia política. (Trad. Elisabeth Antoniuk; coord. e superv. Luiz Moreira). Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 109. 209 Id. Op. cit. p. 73. 80 Goebbels, um “perigoso ideólogo” que tentou formular uma continuidade entre o poder divino e o poder imperial como resposta política aos riscos de fracionamento deste. Tal autor o caracterizou como sendo “um cabeleireiro da peruca teológica do imperador”210 Constantino, expressão originalmente cunhada em 1919 por Overbeck, prócer da Faculdade Teológica de Basel, para atacar Adolf von Harnack, famoso professor da Universidade de Berlim e Teólogo Real Prussiano do Kaiser Wilhelm. Peterson opôs a distinção agostiniana das duas cidades ao elogio eusebiano do Império, associando-os, respectivamente, ao trinitarismo consubstancialista e ao arianismo; as revistas católicas Graal e Schweizer Annalen não tardaram a opor ele mesmo a Carl Schmitt, tido como figura ou tipo de Eusébio e responsável por elaborar uma teologia conformista que fizesse convergir cristianismo e totalitarismo.211 Para o próprio Carl Schmitt, o mais relevante sobre o panegirista de Constantino é que ele era “(...) Um bispo da igreja cristã (...) amante da paz e da ordem”212, características estruturantes de seu pensamento e bastante evidentes em sua crítica aos extremismos e elogio da autoridade imperial. O padre católico Martin Jugie em seu Le Schisme byzantin (Paris, 1941), um tratado histórico de beligerância nitidamente apologética, apresentou o bispo de Cesaréia como o grande teórico do cesaropapismo – que segundo o autor francês “é César, é o Estado civil substituindo o papa no governo supremo da Igreja, é o Estado totalitário se arrogando o poder absoluto sobre o sagrado e a o profano, um mal que encontra raízes no passado pagão e que encontrou sobretudo no Oriente, desde o século IV e com Constantino, seu terreno de eleição.”213 À Eusébio, portanto, atribuiu a formulação dos princípios especificamente religiosos que viriam a produzir “a nacionalização da Igreja, a submissão do clero e a hostilidade, surda ou declarada, à autoridade do papa.”214 No capítulo intitulado “Constantino e Eusébio”, o último do segundo volume (“Die Christliche Revolution”) de sua Politische Metaphysik (1959), o pensador Arnold A. T. Ehrhardt esforçou-se para reabilitar o bispo de Cesaréia, apartando o seu 210 Ibid. Op. cit. p. 72. 211 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 295-296. C. SCHMITT. Op. cit. ps. 70 e 72. 212 Id. Op. cit. p. 75. 213 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 298. 214 Id. Op. cit. p. cit. 81 pensamento político-teológico de um bizantinismo sem caráter, e descrevendo-o como sincero narrador de tempos tão extraordinários que de fato podiam ser considerados como sendo substancialmente diversos dos que os precederam. Trata-se de algo notável, já que este autor alemão foi na referida obra especialmente crítico com o que identificou como sendo o caráter cesáreo-papal dos governos de Justiniano e Teodora, de Carlos Magno e dos Otões. Dialogando com tal escrito, seu homônimo Arnold Gehlen, antropólogo das ciências naturais, filósofo e sociólogo, retomou a severa opinião de Burckhardt sobre Eusébio, desdobrando-a até as vias da ofensa pessoal em seu tratado Moral e Hypermoral : Eine pluralistiche Ethik, de 1969.215 Também na maior parte dos autores que consultamos diretamente para a composição deste trabalho ecoa esta controvérsia milenar. Não há neles uma única descrição sobre o autor da História Eclesiástica que não implique um explícito e necessário posicionamento sobre o seu caráter e / ou afiliações teológicas. No clássico manual de Patrologia de Berthold Altaner e Alfred Stuiber, cuja primeira edição é de 1931 e baseia-se em grande parte no trabalho de G. Rauschen publicado em 1903, consta que “(...) Embora não fosse grande teólogo, Eusébio era notável historiador”216, e que ele “(...) encara a história universal e eclesiástica com otimismo de cortesão; como bispo político, apoiado pelo Estado e devotíssimo ao imperador, desenvolve o ideal de um império e estado cristãos que repercutirá vigorosamente e por longo tempo, mesmo no Ocidente.”217 O insigne estudioso da Antigüidade Cristã Jacques Liébaert afirmou de um só fôlego que não há como não nos mostrarmos gratos a Eusébio por seu trabalho historiográfico e também que, posta fora de dúvida suas convicções cristãs, ainda assim sua teologia é discutível.218 Em outra parte de sua obra introdutória intitulada Os Padres da Igreja, ao principiar um perfil bio-bibliográfico de Atanásio de Alexandria, compara este genioso prelado ao moderado palestino: “Atanásio não teve a ciência de um Eusébio de Cesaréia (...) porém, em contato 215 Cf. C. SCHMITT. Op. cit. pp. 109-110. 216 Alfred STUIBER e Berthold ALTANER. Patrologia : Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. (Trad. Monjas Beneditinas). (2ª ed.). São Paulo: Paulinas, 1988. (Col. “Patrologia”, n. 3). p. 223. 217 218 Id. Op. cit. p. cit. Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). ps. 149 e 153. 82 com ele, pode-se medir a insuficiência da teologia, pura e simples, de Eusébio!”219 Não se trata de contraste novo: ainda no século XIX, no mesmo ano da publicação do Die Zeit Constantins des Grossen de Burckhardt, o grande publicista político Joseph Görres a havia elaborado dentro de uma série de discursos e panfletos compostos por ocasião de uma disputa entre o clero luterano e o Estado da Prússia.220 O piedoso jornalista e literato Georges Suffert descreveu Eusébio como um personagem um tanto quanto escorregadio, mas fundamentalmente bemintencionado, que nas desgastantes disputas teológicas do século IV era o portavoz daqueles indecisos que “gostariam de reconciliar todo mundo.”221 Marilia Fiorillo, que bradou em seu O Deus exilado : Breve história de uma heresia contra Irineu de Lyon e Tertuliano de Cartago, parece aprovar o tom moderado e douto do bispo de Cesaréia, e ao comentar o seu relativo silêncio sobre os primórdios do cristianismo em Alexandria afirmou que “(...) Seu silêncio só pode ser creditado à prudência: Eusébio, que era honesto, preferiu calar à fazer contrapropaganda.”222 No verbete sobre Eusébio de Cesaréia do Dicionário Patrístico e de Antigüidades Cristãs organizado por Angelo Di Berardino e publicado em 1983 pela editora italiana Marietti, o historiador e teólogo da Universidade de Catânia Carmelo Curti escreveu que a doutrina deste prelado do século IV “é tão profunda que se pode compará-la à de Orígenes (...) [ainda que permaneça ele] inferior ao grande alexandrino como pensador e como escritor.”223 Destaca ainda este autor que “(...) Os modernos encontraram em seus escritos imprecisões e defeitos de várias naturezas. Mas um juízo cauteloso sobre sua atividade não pode deixar de reconhecer que, sem suas pesquisas, bem pouco saberíamos dos primeiros séculos da cristandade. Justamente de suas obras históricas se constitui a melhor parte de sua produção e a estas está ligada sobretudo sua fama imperecível.”224 219 Id. Op. cit. p. 163. 220 Cf. C. SCHMITT. Op. cit. p. 112. 221 Georges SUFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 74. 222 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 193. 223 C. CURTI. Op. cit. p. cit. 224 Id. Op. cit. p. cit. 83 Além de sua imediata associação com o Imperador Constantino e as ambigüidades características deste personagem, a discussão sobre a sinceridade, o caráter, o legado e o significado histórico de Eusébio de Cesaréia e suas obras certamente também está relacionada com a escassez de documentos a ele contemporâneos de que dispomos para tratar de sua vida. Tal circunstância não deixa de ser uma grande ironia, já que conhecemos relativamente pouco Eusébio não obstante conhecer muito bem a sua produção intelectual, cuja maior parte foi preservada, por seus amigos e inimigos, através de numerosas edições, paráfrases, refutações e abundantes citações. Há notícias de que existiu na Antigüidade uma Vida de Eusébio, Bispo de Cesaréia, redigida por Acacio, seu sucessor nesta Sé e sincero admirador, logo depois da morte do distinto historiador; tanto a História Eclesiástica composta por Sócrates, quanto a composta por Sozômeno, dois continuadores declarados do trabalho de Eusébio, nos informam disto. Tudo indica que o modelo e principal fonte utilizada por Acacio para este escrito foi a Vida de Constantino composta pelo próprio Eusébio ou sob a autoridade de seu nome, à qual somou alguns documentos pessoais preservados em sua biblioteca e arquivo assim como suas próprias memórias do douto prelado. Jerônimo, que tinha um conhecimento bastante completo e profundo das obras de Eusébio de Cesaréia, e apesar de citá-lo profundamente e até de copiá-lo sem escrúpulos em não poucas matérias, transmitiu-nos referências demasiado escassas sobre a sua vida; do mesmo modo, aliás, que Rufino, seu tradutor para o latim e comentador, certamente o grande responsável pela transmissão de legado de Eusébio ao Ocidente. Algumas outras dispersas informações podem ser recolhidas em fragmentárias passagens das cartas de Alexandre de Alexandria e em alguns volumes compostos por seu sucessor Atanásio, por Eusébio de Emesa e por Eusébio de Nicomédia, assim como nas obras historiográficas dos já mencionados Sócrates e Sozômeno, e também nas de Teodoreto, Filostorgo e Gelásico de Cícico. Restam-nos também as indicações das atas dos sínodos e concílios dos quais participou, uma memória anônima que registra uma discussão sobre o seu caráter e ortodoxia travada no Segundo Concílio de Nicéia, as páginas a ele dedicadas no Antirrhetica do Patriarca Nicéforo de I de Constantinopla, as disposições dos burocratas de Justiniano I sobre a necessidade de se providenciarem cópias de alguns de seus textos, e todo o pouco de dados pessoais 84 que podemos recolher – na maior parte das vezes por mera inferência – em seus próprios trabalhos.225 Para a nossa grande infelicidade, é realmente muito pouco o que podemos obter de informações biográficas em suas obras, ainda que Eusébio tenha tido alguns costumes que favoreçam bastante tais investigações – por exemplo, o de fazer preparar novas edições por ele mesmo corrigidas de seus escritos e o de escrever numerosos prólogos e dedicatórias. Isto nos permite tanto perceber pela comparação o câmbio de suas idéias em sucessivas publicações, diversas entre si, de uma mesma obra, percebendo dinâmica onde um olhar mais ingênuo só notaria uniformidade, quanto discernir suas simpatias pessoais, que também são sintomáticas de inclinações doutrinais e políticas.226 Outra grande ajuda que prestou sem o saber aos pesquisadores dedicados a estudá-lo, foi a de ocasionalmente aludir a vicissitudes que teve de enfrentar no passado e de citar profusamente as suas próprias obras – somente na História Eclesiástica, ele menciona duas vezes suas Éclogas Proféticas (I : 2, 27; I : 6, 11), uma vez sua Crônica (I : 1, 6), quatro vezes sua Coletânea dos antigos testemunhos (IV : 15, 47; V : 1, 2; V : 4, 3; V : 21, 5) e uma vez seu Os mártires da Palestina (VIII : 13, 7).227 É uma lástima e uma ironia que do possivelmente farto epistolário de Eusébio, que se preocupou em organizar uma coleção a mais completa possível de cartas de Orígenes e baseou boa parte da História Eclesiástica em dossiês compostos por correspondências, não tenha restado para a posteridade mais do 225 Argimiro VELASCO-DELGADO. “Introducción”. In: EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro Velasco-Delgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997. (2 vol.). pp. 13* e notas correspondentes, n. 1-4. 226 Cf. Id. Op. cit. pp. 13*-14* e nota correspondente, n. 6. Tomemos um único exemplo a título de ilustração. Paulino de Tiro, a quem dedica um manual de geografia bíblica e o décimo Livro de sua História Eclesiástica, invocando-o “como selo que sanciona a obra toda” (X : 1, 2), foi um defensor de Ário de primeira hora (desde a metade do ano de 320), destinatário de uma importante carta de conteúdo doutrinal de Eusébio de Nicomédia, que, participante do Concílio de Nicéia, sujeitou-se a assinar as suas declarações e atas para não contrariar os anseios mais imediatos de Constantino e estabelecer a paz no interior da Igreja. A partir de 325, foi um dos que procurou uma forma de reintegrar os arianos expulsos da comunhão eclesial, colaborando no ataque aos consubstancialistas mais exaltados. Como verificaremos adiante, trata-se, sem sombra de dúvidas, de amizade coerente com as posturas assumidas pelo próprio Eusébio na reunião de Nicéia e nos anos que a sucederam. Cf. Manlio SIMONETTI. “Paulino de Tiro”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 1109-1110. 227 Este último escrito teve pelo menos duas versões revisadas pelo próprio Eusébio, e a edição mais antiga e mais breve figura em alguns antigos manuscritos gregos da História Eclesiástica como um suplemento seu ao oitavo Livro. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 224. 85 que fragmentos díspares, conservados quase que por pura casualidade. De fato, preservaram-se apenas quatro cartas inteiras de sua autoria: uma remetida a Constância, irmã de Constantino e esposa de Lícinio, onde se posicionou contra a confecção e veneração de imagens religiosas; uma a seus diocesanos, escrita desde o Concílio de Nicéia; e duas, conservadas nas atas desta mesma reunião, endereçadas a Eufratião (ou Eufrates) de Balanea e a Alexandre de Alexandria, tratando do caráter e das opiniões teológicas de Ário e de seus seguidores. Das que recebeu, temos notícias de uma redigida conjuntamente por Narciso de Neronias e um homem designado apenas como Cresto a Eufrônio de Antioquia e o referido Eusébio, que foi citada por Marcelo de Ancira. Baseados em todas estas peças bem pouco conexas é que desde o século XVII (com Valois e Tillemont) se têm elaborado ensaios bio-bibliográficos sobre o mais ilustre bispo de Cesaréia, e é desta tradição historiográfica, grosso modo, que todas as modernas referências sobre este personagem derivam.228 Clérigo e historiador de educação helênica, Eusébio de Cesaréia virtualmente não faz menção a si mesmo em toda a extensão da obra que estamos privilegiando em nossa análise. Quase todos os seus comentaristas sugerem que um trecho do quarto capítulo do décimo Livro de sua História Eclesiástica se refere ao próprio autor – “(...) E saiu ao meio um homem, um dos moderadamente dotados, que tinha composto um discurso”229 –, mas trata-se de fato de notícia de natureza duvidosa se considerarmos que se alicerça apenas na observação de que é quase certo que o orador fosse um bispo e de que Eusébio teve acesso ao texto proferido e o transcreveu; de qualquer forma, não há mais como verificarmos a autenticidade desta.230 Alguns autores informam-nos que nasceu, em uma família já cristã há mais de uma geração, por volta de 263, possivelmente na própria Cesaréia da Palestina, onde, como já tivemos a ocasião de comentar, teve a oportunidade de, tendo por mestre Pânfilo, receber sólida formação intelectual na célebre escola e biblioteca aí fundadas por Orígenes. Sua atividade literária foi interrompida pela violenta perseguição dos cristãos desencadeada, primeiro, a mando de Diocleciano (em 303) e, depois, de Maximino Daia (em 307). Quando 228 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 14* e notas correspondentes, n. 7-11. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 228. 229 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 4, 1. p. 321. 230 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 598, n. 20. 86 da morte de seu grande mentor, a quem ajudou a redigir (e completou) uma Apologia de Orígenes e homenageou com uma Biografia em três livros, buscou refúgio sucessivamente em Tiro e no Egito, onde assistiu de perto aos suplícios de vários cristãos e foi lançado na prisão. Não se sabe exatamente como logrou escapar da morte nas mãos dos romanos. De qualquer forma, boas razões permitem-nos conjecturar que voltou a Cesaréia antes de 313, ocasião na qual foi feito bispo desta Sé. Assumiu uma atitude conciliadora tanto na controvérsia referente aos lapsi quanto no debate suscitado pelas proposições de Ário, sendo, com efeito, “antes que lutador, sábio.”231 Esta mesma postura em favor de uma Igreja de posturas obrigatoriamente moderadas, capaz de admirar e atribuir um lugar destacado aos “nobres atletas da religião” ao mesmo tempo em que se dispunha a readmitir na comunhão os que estavam antes “enfermos na fé”232 – posicionamento que tanto pareceu conveniente e atraiu a admiração do Imperador Constantino quando da eclosão da crise ariana –, fez o bispo de Cesaréia ocasionalmente deixar a sua biblioteca para enredar-se nos meandros já perigosos da política eclesiástica. Em sua obra desejou edificar uma grande síntese doutrinal em que ficasse evidente o papel da tradição cristã como fermento divinamente posto no seio das culturas humanas, prefigurada e corroborada por aquilo que havia de melhor tanto no judaísmo quanto no helenismo; por este motivo elaborou uma teologia que tanto é histórica quanto é da História, baseada nas premissas da antiguidade seminal do cristianismo e da realização factual do Reino de Deus neste mundo. Tal gênero de convicção levou-o a um incansável interesse pelo passado, que utilizou explicitamente como fonte de autoridade para a ação no presente, e que foi concretizado na procura incessante por documentos que provassem os seus pontos de vista e na exploração de uma vasta literatura produzida pelos mestres da ortodoxia e por seus opositores, não-cristãos ou heresiarcas.233 Trabalhou com o texto grego da Bíblia com a ajuda de Pânfilo, e, fazendo uso da Hexapla, composta por Orígenes, tratou de melhorar as edições do Antigo e do Novo Testamento a partir de versões, respectivamente, hebraicas e copto 231 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 222. Sobre os lapsi, ver: Herman J. VOGT. “Lapsi (a questão dos lapsi)”. In: VV. AA. Op. cit. p. 809. Da problemática ariana trataremos adequadamente no capítulo seguinte. 232 Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IX : 1, 9-10. p. 300. 233 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. ps. 143 e 145. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 223. 87 siríacas destes conjuntos de textos. Nos séculos XIX e XX os pesquisadores lograram mesmo localizar antigos códices bíblicos em cujas margens estão registradas algumas das anotações de Eusébio de Cesaréia acerca destes trabalhos filológicos.234 Retomando a idéia de Antônio, um erudito alexandrino do século III, dividiu os textos evangélicos em curtas seções numeradas (que ainda não são as nossas divisões em capítulos e versículos, mas séries contínuas para cada Evangelho), e, servindo-se destes números, fez confeccionar tabelas indicativas das seções comuns a eles – seja aos quatro, seja a três, seja a dois, ou menções particulares de cada um. Neste esforço talvez tenha sido o primeiro estudioso a registrar a existência do problema sinótico e algumas de suas possíveis soluções.235 Deixou mais ou menos explícito que fazia isto para oferecer uma solução mais proveitosa (ou seja, conforme as suas próprias convicções) para as discrepâncias – para ele meramente superficiais ou aparentes – entre os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João do que a proposta de Taciano, que em seu Diatessaron harmonizou-os em uma única narrativa, bastante difundida nas vizinhanças de Cesaréia da Palestina dos séculos III e IV.236 Além deste seu ofício de editor das Sagradas Escrituras, deu contribuições originais à ciência antiga votada a perscrutá-las. Compôs um significativo trabalho de geografia bíblica, conhecido como Onomasticon, da qual só nos resta uma das suas quatro partes, vertida por Jerônimo para o latim e divulgada no Ocidente. Mais do que um guia de peregrinação estendido, tratava-se de um repertório dos nomes (em 234 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 145. 235 Sobre a questão sinótica, ver: J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 170-180. 236 A iniciativa de Taciano, pensador cristão do século II, de origem oriental (escreveu sobre si mesmo que era “nascido na terra dos assírios”) e discípulo de Justino Filósofo, catalogado por alguns entre os Apologistas da Fé e por outros entre o número dos heresiarcas, não foi a primeira ou única tentativa de apresentar os evangelhos que viriam a integrar o cânone cristão em um único texto, mas certamente foi a mais bem-sucedida. Preparado quase certamente no idioma siríaco e motivado por intenções litúrgicas e missionárias em favor das populações de onde era oriundo, por sua praticidade e sua estrutura aberta tanto a fáceis incorporações de logia extracanônicos ou apócrifos, quanto à supressão ou substituição de passagens, o Diatessaron se impôs largamente no Oriente, onde foi o evangelho oficial da primeira geração ortodoxa de Edessa, permaneceu em constante uso pelo menos até o início do século V em uma grande área que ia da Anatólia Interior à Pérsia e às franjas do atual Iêmen, e constituiu uma das fontes mais citadas dos Kephalaia maniqueus e em miríades de atos apostólicos de origem obscura e difusão muito limitada, redigidos em persa, armênio, georgiano e árabe. Também teve o seu impacto no Ocidente, ainda que em menor extensão, e inspirou a antiga harmonia evangélica latina chamada de Diapente, assim como uma série de textos medievais (italianos, holandeses, ingleses, alto-alemães) muito semelhantes a este, dentre os quais se destacam a Papysian Gospel Harmony (anterior ao século X), o Heliand (poema saxão sobre a vida de Jesus), o Monotessaron de Ludolfo da Saxônia e o Concordia evangeliorum quattuor de Zacarias Crisopolitano. Cf. Franco BOLGIANI. “Diatessaron”. In: VV. AA. Op. cit. p. 404. Id. “Taciano”. In: Id. Op. cit. pp. 1321-1322. 88 grego onoma) de lugares citados na Bíblia, com uma nota geográfica, filológica e histórica sobre cada um deles. Também foi possível aos estudiosos modernos reconstituir dois volumosos tratados exegéticos de sua autoria: um Comentário de Isaías e um Comentário dos Salmos.237 O restante de sua obra, sua parte mais fundamental, que a maioria dos autores divide artificialmente em histórica e dogmática, pode ser enquadrada toda na categoria de apologética. Como apologista da fé cristã, Eusébio de Cesaréia pode ser situado como herdeiro de uma tradição bélico-intelectual bem consolidada, que em última instância remonta ao uso paulino dos procedimentos estilísticos da diatribe e da discussão pública de conceitos da filosofia popular pagã238 e ao tempo da redação dos Evangelhos que acolheu como divinamente inspirados, ou seja, os quatro intracanônicos – John B. Gabel e Charles B. Wheeler afirmaram que “(...) O fato de Lucas e Mateus, agindo independentemente, terem escrito com uma cópia de Marcos ao lado só significa uma coisa: eles pretendiam suplantar Marcos com os seus próprios evangelhos.”239 Segundo o que escreveu o filósofo Bertrand Russell nos anos de 1920, é na figura do Jesus de Nazaré apresentado nestes mesmos evangelhos que se baseia a agressiva e triunfalista retórica da apologética cristã. Ainda que tenha sido associado a bons conselhos, como o de fazer o bem sem olhar a quem, não julgar para não ser julgado, ser espontâneo como as crianças, oferecer a outra face como forma de constranger um agressor, e não fazer ao outro o que você não quer que lhe seja feito, e em que pese o seu manifesto lirismo e seu amor pelos ofendidos e humilhados, ele tratava os que discordavam dele da maneira mais severa possível: “(...) Serpentes! Raça de víboras! Como haveis de escapar ao julgamento da geena?”240; “(...) Por que não reconheceis minha linguagem? (...) Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai.”241 237 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 145-147. 238 Cf. Rudolf BULTMANN. “Der Stil der paulinischen Predigt und die kyenischstoische Diatribe”. In: Forschungen zur Religion und Kultur des Alten und Neuen Testaments, n. 13, 1910. Apud: Henri Irenée MARROU. “A Igreja no seio de uma civilização helenística e romana”. In: CONCILIUM : Revista internacional de teologia. Ed. em língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, v. 67, n. 7. 1971. p. 844. 239 J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 171. 240 BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 23, 33. p. 1746. 241 Id. Ver. cit. João 8, 43-44a. p. 1866. 89 Precedido por numerosos e notáveis predecessores, entre os quais, por exemplo, Thomas Hobbes e David Hume, este filósofo manifestou um grande ceticismo quanto às virtudes morais do seguimento de Jesus justamente por considerar inadequado em absoluto o tom da prédica cristã. Para ele, é muito chocante a falta de compaixão que algumas passagens do Novo Testamento atribuem a Cristo. “Além de viver amaldiçoando os viciosos, imprecando contra os incrédulos e se comprazendo com atos vindicativos, o Jesus canônico demonstra pouca gentileza com inofensivos animais. Porque, pergunta-se Russell a propósito de um episódio de expulsão de demônios, em vez de onipotentemente mandá-los sumir, ele os faz entrar num pacífico grupo de porcos, que, desesperados, se precipitam despenhadeiro abaixo? Metáforas são sintomas.”242 Comparando-o a Sócrates, suave, cortês e infinitamente paciente com os que não queriam ouvi-lo, repudiou a tônica beligerante e impositiva de suas falas, considerando-as como muito afastadas da “excelência superlativa.”243 No prefácio do ensaio significativamente intitulado Por que não sou cristão escreveu que “(...) Dizem-nos, às vezes, que somente o fanatismo pode tornar eficiente um grupo social. Penso que isso é inteiramente contrário às lições da história. Mas, seja como for, só os que adoram abjetamente o êxito podem considerar admirável a eficiência sem levar em consideração aquilo que é realizado. Quanto a mim, acho melhor fazer um pouco de bem do que muito de mal. O mundo que eu gostaria de ver seria um mundo livre da virulência das hostilidades de grupo, capaz de compreender que a felicidade de todos deve antes derivar-se da cooperação que da luta. Gostaria de ver um mundo em que a educação tivesse por objetivo antes a liberdade mental que o encarceramento do espírito dos jovens numa rígida armadura de dogmas. O mundo precisa de corações e cérebros francos, e não é mediante sistemas rígidos quer sejam velhos ou novos, que isso pode ser conseguido.”244 Certo ou errado o juízo do filósofo inglês sobre esta questão, o fato é que cedo a agressividade apologética, aquilo que Edward Gibbon designou como “(...) O inflexível zelo e, se nos é permitido usar tal expressão, a intolerância dos cristãos”245, semelhantes a um fluxo que, “(...) por correr num canal estreito, 242 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 165. 243 Citado em: Id. Op. cit. p. 164. 244 Citado em: Ibid. Op. cit. pp. 165-166. O grifo consta na versão citada. 245 Edward GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. (Org. e introd. Dero A. Saunders; Pref. Charles A. Robinson. Jr.; Trad. e notas suplem. José P. Paes). Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 236. 90 despenhou-se com a força e às vezes a fúria de uma torrente”246, tornou-se uma atitude hegemônica entre aquela facção do movimento de Jesus que viria a constituir o cristianismo ortodoxo. De um modo geral, ela conformaria uma mentalidade comum, baseada na partilha de tradições dispersas pela enorme área geográfica na qual se difundiu a mensagem cristã nos primeiros séculos de sua existência. Tal coisa pode ser verificada pela consideração de uma série de acontecimentos protagonizados por cristãos, claramente semelhantes, ainda que bem distantes entre si no espaço e no tempo, e que esteja assentado que não tiveram quaisquer repercussões diretas ou imediatas uns sobre os outros. Em cerca de 730, logo depois de Bonifácio ter escrito para seus correligionários na Inglaterra pedindo cópias da Bíblia redigidas em letras de ouro, derrubou ele mesmo o carvalho sagrado de Geismar para evitar que os alvos de suas prédicas teimassem em continuar a adorá-lo. Quase na mesma época, na distante Mesopotâmia, os missionários nestorianos conduziam uma verdadeira guerra contra as grandes árvores sagradas das encostas montanhosas junto ao Mar Cáspio, ao fim da qual terminaram por derrubar “a maior parte da floresta”.247 Mais a leste ainda, em Karabalghasun, no vale do Alto Orkhon, o governante uigur de um império situado entre a China e a Mongólia Interior registrou em um inscrição feita por volta de 820 como Bogu Qaghan, seu predecessor, introduziu em 762 novos mestres no reino. Estes personagens citados eram pregadores maniqueus, arautos de uma fé missionária de origem basicamente cristã, e causaram imenso desconforto entre os locais por manterem uma atitude muito rude com as arraigadas tradições da população local – o que eventualmente causou sua expulsão ou extermínio. A atitude referida nesta inscrição e o esteio de pensamento que a um só tempo a motiva e justifica são claros como os que Carlos Magno fez gravar em pedra e metal quando, em algum momento entre 772 e 785, ordenou o incêndio do grande santuário de Irminsul, dito a “coluna que suporta o céu”248, e proibiu o paganismo na Saxônia: 246 Id. Op. cit. p. 237. 247 Citado em: Peter BROWN. A ascensão do cristianismo no ocidente. (Trad. Eduardo Nogueira; Rev. Saul Barata). Lisboa: Presença, 1999. (Col. “Construir a Europa”; dir. Jacques Le Goff). p. 23. 248 Citado em: Id. Op. cit. p. cit. 91 “(...) Lamentamos que estejais desprovidos de conhecimentos e que tenhais chamado ‘deuses’ aos espíritos malignos. Deveis queimar as antigas imagens gravadas e pintadas, e afastar para bem longe todas as orações aos espíritos e 249 demônios.” Este discurso e prática tão ofensivos foram talvez os maiores pontos fracos da missão cristã em não poucas regiões e épocas. Em 1253 o missionário franciscano Guilherme de Rubruck, ao confrontar-se na corte de Mangu Khan com uma grande quantidade de outras religiões, dentre as quais um considerável número de versões cristãs diferentes da sua própria, foi obrigado a ouvir uma bela lição de moral do próprio soberano dos tártaros. No relatório que o frade escreveu ao rei Luís da França da casa de sua ordem na cidade palestina de Acre, conta-nos ele que Mangu “(...) Começou por me confidenciar o seu credo: ‘Nós, Mongóis’, disse, ‘acreditamos que existe apenas um Deus, por cuja vontade vivemos e por cuja vontade morremos, e para com o qual temos um coração leal.’ Então eu disse: ‘Que assim seja, pois sem Sua graça isso não poderá ser.’ (...) Então ele acrescentou: ‘Mas assim como Deus nos dá os dedos diferentes das mãos, assim também dá aos homens modos diversos. Deus dá-vos as Escrituras, e vós cristãos não as respeitais. Não encontrais (nelas, por exemplo) que um deva encontrar defeito no outro, pois não?’ ‘Não, meu senhor’, respondi, ‘mas disse-vos desde o princípio que não quero brigar com ninguém.’ (...) ‘Não o digo’, continuou, ‘por vós. Deus deu-vos, portanto, as Escrituras e vós não as respeitais; Ele deu-nos adivinhos e nós fazemos o que eles nos dizem, e vivemos em paz.”250 Bem antes disto, em um contexto muitíssimo diverso, o Imperador Juliano, designado pelos cristãos como o Apóstata por sua tentativa de revitalizar o paganismo greco-latino na segunda metade do século IV, ao mesmo tempo em que admirou ou invejou os seguidores de Jesus por sua imensa obra assistencialista, criticou-lhes a intolerância, o péssimo hábito de tentar impor pela violência discursiva, simbólica e direta a sua verdade a todos os homens e mulheres. Em uma carta na qual sensata e obstinadamente defendia sua política religiosa de retirar o apoio militar estatal da ala ortodoxa do cristianismo e deixar que os diversos grupos de fiéis continuassem a debater interminavelmente entre si desde que não partissem para a agressão de fato uns contra os outros ou contra 249 250 Citado em: Ibid. Op. cit. p. cit. Citado em: Daniel J. BOORSTIN. Os Descobridores : De como o homem procurou conhecerse a si mesmo e ao mundo. (Trad. Fernando P. Rodrigues; rev. José Manuel Garcia). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. p. 130. 92 os não-cristãos – neste caso, seriam tomados apenas como baderneiros comuns e sofreriam as penalidades normalmente aplicáveis a tal circunstância –, argumentou que o que estas determinações fizeram foi auxiliar o estabelecimento da ordem pública e pôr fim a um infindável derramamento de sangue. Com uma perspicácia e sensibilidades notáveis para um estadista de um período de conflitos tão constantes, alegou que “(...) Muitas comunidades inteiras dos assim chamados hereges foram, na realidade, chacinadas, como em Samosata e Cízico, na Paflagônia. Bitínia e Galácia, entre várias outras aldeias tribais, foram saqueadas e destruídas – ao 251 passo que, no meu tempo, o exílio terminou e a propriedade foi restituída.” A agressividade apologética havia se tornado então comportamento arraigado, mas, antes disto, ela já havia sido forma mentis de todo um modelo discursivo, de uma forma de, por um lado, apresentar a fé cristã e, por outro, apreender o mundo cultural e inseri-la neste. Neste âmbito, deve-se reconhecer que, bem ou mal, entre muitas outras coisas, ela também foi um impulso e um fermento para o estabelecimento do cristianismo ortodoxo. O pensamento dos Padres da Igreja, que desde o começo e em sua virtual totalidade eram antes “pescadores de almas, (...) mais ocupados em invectivar do que em embelezar a imagem da nova religião para o público culto”252, desenvolveu-se de fato quase todo como uma teologia da refutação. Tal afirmação equivale a dizer que em tal processo se tratava não da exploração crescente ou do desenvolvimento progressivo de certas verdades reveladas – ou pelo menos não apenas isto –, mas da contraposição a afirmações compreendidas quase intuitivamente como inadequadas e desviantes. De nossa parte, cremos que não deixa de ser irônico que a doutrina reta tenha se estabelecido para oferecer a contrapartida discursiva à fé tida como obtusa. Isso pode ser verificado mesmo através de brevíssimas menções pontuais a alguns outros autores eclesiásticos antigos. Em explícita oposição a correntes cristãs que professavam que o comportamento dos fiéis era indiferente e negavam a factualidade da Encarnação e da Paixão e Morte de Jesus Cristo, Inácio de Antioquia insistiu no realismo e na 251 Citado em: P. JOHNSON. Op. cit. p. 105. 252 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 87. 93 eficácia redentora destes eventos.253 Ao pessimismo antropológico e à depreciação da matéria, Irineu de Lyon respondeu com um imensurável otimismo e com uma sonora ênfase na salvação da carne – temas embalados pelo grito de guerra de que, em relação aos hereges, era necessário “(...) Não só expor, mas ferir de todos os lados, fundo”.254 À negação da unidade da história salvífica, ou mesmo do efeito salvífico dos eventos históricos, teorizada por intelectuais como Marcião e Basílides, os Padres confrontaram o caráter progressivo da redenção, tanto a nível individual quanto comunitário e cósmico, reconhecendo nos acontecimentos humanos, sempre ambíguos, o desenho e execução de um plano divino visando à redenção de cada homem e do universo.255 Acerca deste complexo processo, Marilia Fiorillo afirmou, em uma formulação evocativa, mais sonora do que ponderada, que “(...) quando os Padres da Igreja escolheram o ‘desgarrado’ como alvo, não só de suas diatribes, como de seus tratados, estavam selecionando simultaneamente o inimigo-mor e um precioso colaborador. Pois boa parte do edifício doutrinário da Patrística foi montada a partir do material impuro e espúrio dos heréticos. (...) Devidamente depuradas, as emanações gnósticas viraram Pessoas da Trindade, éons se transformaram em anjos e o delicado tema do mal dissolveu-se no livre 256 arbítrio.” 253 A respeito disto, veja-se, por exemplo, o trecho de sua Carta aos Efésios (seções 7-8 e 18) onde escreveu: “(...) Há os que costumam, por um ardil pernicioso, servir-se por toda parte do Nome [de Jesus Cristo], mas praticam coisas indignas de Deus. A estes evitareis como a animais selvagens. São realmente cães raivosos, que mordem traiçoeiramente. É preciso precaver-nos de suas mordeduras, difíceis de curar. Um é o médico, em carne e espírito, gerado e não gerado, aparecendo em carne como Deus, na morte vida verdadeira, tanto de Maria como de Deus, primeiro capaz de sofrer, depois impassível, Jesus Cristo Senhor Nosso. (...) também aquilo que praticais, segundo a carne, é espiritual, pois fazeis tudo em Jesus Cristo. (...) Pois nosso Deus, Jesus Cristo, tomou carne no seio de Maria segundo o plano de Deus, sendo de um lado descendente de Davi, provindo por outro do Espírito Santo. Nasceu, foi batizado, para purificar a água pela Sua Paixão.” INÁCIO DE ANTIOQUIA. Cartas. (Trad., introd. e notas por Paulo E. Arns). (2ª ed.). Petrópolis: Vozes, 1978. (Col. “Fontes da Catequese”, n. 2). ps. 43 e 47. 254 Citado em: M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 99. 255 Desenvolvendo uma refinada argumentação semi-platônica neste sentido, Orígenes chega a uma opinião quase tão a-histórica quanto às dos mais empedernidos gnósticos, na qual virtualmente nega a pertinência pós-mortem dos atos praticados pelo ser humano. Segundo este autor, todas as almas – inclusive as dos demônios – tenderiam ao aperfeiçoamento em vida, e, após a morte, pouco a pouco, de grau em grau, subiriam um determinado número de esferas celestes correspondentes a sucessivas purificações necessárias. Ao término desta ascensão, ressuscitariam em corpos etéreos e então novamente Deus será tudo em todos. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 213. 256 M. P. FIORILLO. 190. Tal opinião não é nova: Edward Gibbon a expressou, afirmando que “(...) Os mais doutos dos pais da Igreja, por uma condescendência assaz estranha, imprudentemente admitiram [por fim] os sofismas dos gnósticos.” E. GIBBON. Op. cit. p. 243. 94 É no quadro deste acirrado combate contra os inimigos intramuros – e que, como em todo combate demorado em que há um pequeno espaço separando os lados contentores, tende a fazer dos beligerantes cada vez mais parecidos uns com os outros – e no esforço de oferecer respostas às objeções e zombarias de nãocristãos cultos que Eusébio de Cesaréia desenvolveu sua própria estratégia apologética, a um só tempo herdeira e inovadora em relação aos Padres que o precederam. O seu programa argumentativo talvez tenham sido apresentado em uma Introdução elementar geral, escrita antes de seu episcopado, da qual só conhecemos uma pequena parte, dedicada à transcrição e interpretação das profecias messiânicas da Bíblia judaica, e que se convencionou designar como Éclogas Proféticas. Já nesta sua obra estavam presentes os topoi discursivos que viria a explorar posteriormente, e a forma como faria isto: pretendia mostrar que o cristianismo por ele professado, longe de ser uma inovação sacrílega como alguns argumentavam, é a maturação e confluência das tradições mais veneráveis da Antiguidade, despojadas daquilo que era supérfluo ou contingente.257 Com efeito, Eusébio mostrou-se particularmente sensível à acusação helênica de que a fé cristã era nova e recente. Uma das características mais notáveis dos pensadores helenistas é justamente o seu interesse pelas instituições de culto do ponto de vista menos de suas proposições religiosas do que do das preocupações de cunho antiquário. Já no final do século III a.C. pode-se verificar, por exemplo, uma irrupção particularmente intensa destas reflexões entre os pensadores de formação intelectual ateniense: Amónio compôs um tratado intitulado Sobre altares e sacrifícios, Crates um Sobre sacrifícios atenienses, Hábron um Sobre festas e sacrifícios, e Apolónio um Sobre as festas 257 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 150-151. Eusébio de Cesaréia atribui esta opinião de que o cristianismo era uma inovação perniciosa, por exemplo, tanto ao Edito de Maximiano, Constantino e Licínio que ordena o fim da perseguição no Ocidente – “os cristãos, que tinham abandonado a seita de seus antepassados (...) tão grande a ambição que os retém e a loucura que os domina, que não seguem o que ensinaram os antigos, o mesmo que talvez seus próprios progenitores estabeleceram anteriormente” – quanto ao Edito de Maximino, gravado em estelas de bronze, como a afixada em Tiro, que o bispo historiador transcreve – “obscuridade e trevas do erro”, contrapostas aos sentimentos pagãos de “amor aos deuses (...) fé [que] não se dava a conhecer como fé de novas e ocas palavras, mas como fé sólida e extraordinária em excelentes obras.” Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 17, 6-7. p. 294. Livro IX : 7, 3-4. pp. 303-304. Curiosamente, talvez sem notar o raciocínio que espelha, o erudito bispo faz a mesma acusação aos cristãos que identifica como desviantes sempre que tem oportunidade para tanto: “(...) Como o inimigo da Igreja de Deus é em último grau avesso ao bem e amante do mal e de forma alguma deixa de lado qualquer maneira de conspirar contra os homens, fez com que de novo brotassem estranhas heresias contra a Igreja”. Id. Op. cit. Livro V : 14, 1. p. 172. 95 atenienses.258 Por motivos que aqui não teríamos espaço suficiente para considerar, para estes antigos, a antiguidade é critério de verdade e a tradição é considerada como a única instrutora confiável. Não poucos foram os autores cristãos que combateram este primado do “costume” humano. Taciano, Tertuliano e Lactâncio advertiram que o pensar helênico era intrinsecamente pagão, e, portanto, incompatível com o seguimento de Jesus Cristo – não obstante tenham usado a própria linguagem culta e instrumentos lógicos incorporados do mundo greco-latino para fazer tal coisa. Para urdir esta condenação, inspiraram-se, sobretudo, em certas passagens das epístolas de Paulo Apóstolo, dentre as quais se destacou uma que consta em uma sua carta aos coríntios e que consideravam como uma espécie de regra geral para o relacionamento entre o pensar cristão e o patrimônio cultural helenista (e judaico): “(...) Pois não foi para batizar que Cristo me enviou, mas para anunciar o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que se torne inútil a cruz de Cristo. Com efeito, a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o homem culto? Onde está o argumentador deste século? Deus não tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que crêem. Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus, é escândalo, para os gentios, é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.”259 Aferrado a este eloqüente pressuposto, este grupo de pensadores marcou a filosofia com um sinal bastante negativo, considerando-a desnecessária à fé, que, ao contrário, seria um pressuposto para entender a mensagem divina. Para alicerçar tal ponto de vista, muito citada foi passagem do Profeta Isaías que diz “(...) Se não crerdes, não vos manterei firmes.”260 A questão que se colocava, portanto, era se o patrimônio cultural greco-latino pode ser um caminho 258 Cf. Albin LESKY. História da literature grega. (Trad. Manuel Losa). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 710. 259 BÍBLIA. Ver. cit. Primeira Epístola aos Coríntios 1, 17-25. p. 1994. O grifo consta na versão citada. 260 Id. Ver. cit. Isaías 7, 9. p. 1265. 96 preparatório para a fé cristã, ou se esta, sabedoria revelada, era completamente independente daquele – que, neste caso, ao contrário, poderia inclusive lhe ser um obstáculo. Desde já podemos adiantar que, se muitos o rejeitaram, também não poucos foram os que reconheceram de bom grado ao saber e à virtude filosóficas um papel propedêutico para o seguimento de Jesus Cristo. No capítulo XIII da Filocalia, uma antologia origenista do século IV, foi sintetizado um argumento do teólogo alexandrino já bastante difundido e especialmente marcante na defesa do uso pelos cristãos dos instrumentos intelectuais disponíveis no patrimônio cultural helênico para a defesa, difusão e auto-compreensão da fé cristã. Trata-se da noção de Spolia ægyptorum (“os espólios dos egípcios”), expressão que remete ao episódio do livro do Êxodo (3, 21-22.12, 35-39), no qual, após a fuga do Egito, os judeus renderam graças a Iahweh em um culto no qual utilizaram os objetos de metal precioso, as roupas e a farinha que haviam conseguido levar consigo daquela terra. Segundo Orígenes, “(...) A filosofia (e a cultura grega em geral) estaria para o cristianismo assim como os vasos de prata egípcios para os judeus do êxodo.”261 Tal programa de incorporação, está bem expresso em uma passagem na qual escreveu que: “(...) Eu teria desejado que tomasses da filosofia dos gregos tudo aquilo que pode servir como propedêutica para introduzir ao cristianismo (...) e tudo o que será útil para a interpretação das Escrituras. E, assim, tudo o que os filósofos dizem da geometria e da música, da gramática, da retórica e da astronomia, chamando-as auxiliares, nós o aplicaremos também à própria filosofia em relação ao cristianismo.”262 Homens de posicionamento tão diverso quanto a isto como Taciano e Clemente de Alexandria, entretanto, concordarão que tudo o que é ou parece haver de bom na cultura greco-latina é em verdade proveniente do judaísmo, opinião, aliás, já expressa também nas obras do historiador judeu Flávio Josefo. Não há uma comprovação histórica para tal proposição, mas ela será muito difundida entre os escritores eclesiásticos dos primeiros séculos, possuindo um grande impacto no pensamento de Eusébio de Cesaréia, que, através de Pânfilo, foi um insigne discípulo de Orígenes. Julgando o cristianismo bastante forte e 261 Danilo MARCONDES. Iniciação à história da filosofia : Dos pré-socráticos a Wittgenstein. (12ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 [1997]. p. 110. 262 Citado em: Id. Op. cit. p. cit. e nota correspondente, n. 6, p. 288. 97 bem inserido na sociedade, o autor da História Eclesiástica o apresentou como o coroamento de uma tradição autêntica e mais antiga, subterraneamente inspiradora de tudo o que de bom e justo já foi produzido pelos homens de todos os tempos e lugares. A partir desta convicção nuclear, pôde recolher tudo o que pensou ser bom e proveitoso nas demais tradições filosóficas e religiosas helênicas e judaicas, assim como conciliar a fidelidade e amor ao passado com a factual novidade do cristianismo, demonstrando-lhe, pela consideração de que as religiões pagãs é que seriam mais recentes, o seu caráter legítimo e racional. Isto é especialmente exposto por Eusébio nas obras que intitulou Preparação evangélica (que quer mostrar a superioridade sobre o paganismo do judaísmo e as afinidades desta religião com a filosofia) e Demonstração evangélica (que quer provar que o mistério de Jesus Cristo é anunciado e conforme às escrituras sagradas dos judeus), mas, elemento estruturante de toda a sua produção intelectual, também consta, por exemplo, em um trecho do primeiro capítulo de sua História Eclesiástica: “(...) que ninguém pense que nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo é algo novo devido a sua época de vida em carne mortal. Mas, para que ninguém pense que sua doutrina é nova e estranha, como se tivesse sido criada por um homem recente e em nada diferente dos demais homens, explicaremos também brevemente este ponto. Não faz muito tempo, efetivamente, que brilhou sobre todos os homens a presença de nosso Salvador Jesus Cristo, e um povo, novo no conceito de todos, fez sua aparição assim, de repente, conforme as inefáveis predições dos tempos; um povo não pequeno, nem fraco, nem localizado em algum recanto da terra, mas ao contrário, o mais numeroso e o mais religioso de todos os povos, indestrutível e invencível por ser em todo momento objeto do favor divino, o povo ao qual todos honram com o nome de Cristo. (...) Mas se está claro que nós somos novos, e que este nome de cristãos só foi realmente conhecido entre todas as nações recentemente, ainda assim e apesar disto (...) nossa vida e o caráter de nossa conduta, adaptada aos próprios preceitos da religião, não é invenção nossa de ontem, mas que, por assim dizer, manteve-se em vigor desde a primeira criação do homem, graças ao bom senso daqueles antigos varões amigos de Deus. O povo hebreu não é um povo novo, pelo contrário, é sabido de todos que os homens sempre o reconheceram por sua antigüidade. Pois bem, seus documentos e escritos mencionam alguns homens antigos, escassos e espaçados no tempo, é certo, mas em troca, excelentes em religiosidade, em justiça e em todas as demais virtudes. Destes, alguns viveram antes do dilúvio, outros depois. Se, remontando desde Abraão até o primeiro homem, alguém dissesse que todos estes varões, cuja justiça está bem documentada, foram cristãos, ainda que não por nome, mas por suas obras, não estaria enganado. Porque este nome significa é que o cristão, devido ao conhecimento de Cristo e de sua doutrina, sobressai por sua sobriedade, por sua justiça, pela firmeza de seu caráter, pelo valor de sua virtude e pelo reconhecimento de um só e único Deus 98 de todas as coisas, e a atitude daqueles homens em relação a estas coisas não era 263 em nada inferior à nossa.” Neste mesmo âmbito, é que Eusébio pergunta-se: os numerosos cristãos, identificáveis por sua doutrina e por sua conduta e não por traços étnicos ou pelo seu idioma, seriam gregos, bárbaros (isto é, não-gregos), ou algum outro tipo de homens? Não poucos apologistas anteriores a ele sustentaram a crença de que os seguidores de Jesus constituíam um tertium genus, mas isto era necessariamente contradito pela ausência de uma evidente e inequívoca diferença empírica entre estes e os seus vizinhos não-crentes. Como observou Richard Sennett, “(...) O cristão batizado era portador de um segredo incognoscível. Judeus do sexo masculino poderiam ser identificados e seguidos, caso sua genitália fosse examinada, mas ‘a circuncisão de Cristo’ não deixava sinais no corpo. De forma mais genérica, pode-se dizer que um cristão não ostentava o significado do cristianismo; sua aparência era irrelevante.”264 Isto considerado, a resposta do bispo de Cesaréia para essa problemática é mais sutil: se os cristãos constituem mesmo uma terceira raça, não renegam as outras duas. Gregos ou bárbaros de raça e de espírito, recusam apenas a sua herança religiosa, não a positiva contribuição de sua cultura, aquela também divinamente insuflada “brisa perfumada [que] difundiu-se entre os homens”, ocasionando que “as mentes da maioria dos povos” se fosse, “por influência de legisladores e filósofos daqui e d’acolá”, “transformando em suavidade, ao ponto de chegarem a uma paz profunda, amizade e trato de uns com os outros.”265 A fé cristã ultrapassa o que a precedeu, completando-o, assumindo-o como providencial preparação a si mesma. Na opinião deste prelado, a sucessão dos fatos mostrava como Deus, desde a origem, pacientemente conduziu a educação do decaído gênero humano rumo ao seu reerguimento, e, com o advento da fé cristã, como teria emergido um tipo de pessoa realizada, conforme a vontade de Deus, antes apenas prefigurada em uns poucos homens e mulheres especialmente tocadas pelo divino. Mais ainda: “a ‘vitória’ providencial da Igreja sobre seus perseguidores é a confirmação notória desse 263 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 4, 1-2.4-5.6-7. pp. 25-26. 264 Richard SENNETT. Carne e pedra : O corpo e a cidade na civilização ocidental. (Trad. Marcos Aarão Reis). Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 124. 265 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 2, 22. p. 20. 99 fato; ela confere à esperança cristã um colorido novo; o Reino [de Deus] já se edifica neste mundo.”266 Eusébio concebia a corrente cristã com a qual se identificava como uma nação vitoriosa que era a um só tempo a mais antiga e a mais nova do mundo. Dele não poderíamos esperar que escrevesse uma história em duas partes – tratando, de um lado, da origem e desenvolvimento de sua fé, e, do outro, do quadro sociopolítico na qual ela se encarnou e ganhou corpo – já que demonstrou em todas as partes estar bem alicerçado na convicção de que a singular trajetória da Igreja não poderia ser contada se não como a de uma instituição que fosse levada por Deus ao triunfo contra os seus inimigos externos (os perseguidores) e internos (os heréticos). A ortodoxia doutrinária e a sucessão apostólica eram os pilares desta comunidade, e, “(...) Assim, a história eclesiástica substituiu as batalhas da história política comum pelos desafios inerentes à resistência à perseguição e à heresia.”267 Ao desenvolver tal concepção, Eusébio tinha diante de si a Bíblia Judaica, os textos de Flávio Josefo e os Atos dos Apóstolos, que também tratavam da luta contra os perseguidores, de um Deus que age na História em favor dos seus, da idéia de uma nação santa, (e no caso específico da obra de Lucas) da noção que o cristianismo havia assumido as prerrogativas de eleição divina do povo hebreu e da miraculosa expansão da fé cristã por um amplo espectro de lugares e povos bastante diversos entre si. Como escreveu Arnaldo Momigliano, entretanto, “(...) em cada caso as diferenças eram mais marcantes do que as similaridades. [De fato] (...) Mais de duzentos anos mais tarde [do que a redação dos Atos dos Apóstolos], Eusébio desencadeou um novo início em bases completamente diferentes: ele não estava preocupado em princípio com a difusão do cristianismo pela propaganda e pelo milagre, mas com a sua sobrevivência à perseguição e à heresia, de onde sairia vitorioso. (...) no conjunto, foi a partir da erudição helenística que Eusébio deu forma ao novo modelo de história eclesiástica. Nisto ele foi fiel à tradição helenística de seus mestres e ao seu próprio programa na Præparatio evangelica.”268 Esclareçamos o argumento. É moderando pela razão helenística a agressividade apologética de sua fé que Eusébio de Cesaréia buscou dar combate, 266 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 151. 267 A. MOMIGLIANO. Op. cit. p. 197. 268 Id. Op. cit. p. cit. 100 por exemplo, ao célebre filósofo neoplatônico Porfírio, autor de um Contra os cristãos, respondido por aquele prelado em uma grande obra de teologia sistemática, que infelizmente não chegou até nós. A produção historiográfica de Eusébio é complementar e sucedânea a este mesmo movimento argumentativo, e é neste sentido que deve ser compreendida como “filha da apologética”.269 Conformada pela fé e dotada desta combatividade aveludada que hoje identificamos tão bem em nossas discussões universitárias, é que se apresenta a imensa erudição de Eusébio, elemento que segundo Jacques Liébaert “faz de seus livros uma verdadeira obra de historiador, que será plagiada durante séculos e que continua a ser uma fonte de nosso conhecimento da alta Antiguidade.”270 O interesse do douto bispo palestinense pela narrativa histórica e pelo seu uso apologético parece ter sido realmente precoce, além de conexo com seus estudos sobre a filologia e a geografia da Bíblia Judaica e Cristã. Há indícios de que o primeiro de seus escritos a ser difundido (em 303 ou 304) foi mesmo uma Crônica, onde apresentou um resumo da história antiga dos caldeus e egípcios até a expansão romana e o advento do cristianismo, elaborada de acordo com fontes judaico-cristãs e helenísticas, ao qual anexou tabelas sincrônicas relacionando as cronologias bíblica e profana. Esta tentativa de cronologia universal não é nova: desde o século II a.C. pensadores judeus exercitaram-se nisto, e os cristãos mais interessados nas coisas pretéritas também o fizeram, quase desde a primeira hora do movimento de Jesus de Nazaré. Todos tinham um objetivo bem determinado – “mostrar que a revelação mosaica é mais antiga e, portanto, mais venerável que a filosofia grega, e que esta se inspirou nela”271 – e dentre eles se destaca Sexto Júlio Africano, amigo de Orígenes e autor de uma Cronografia em cinco livros, citado por Eusébio de Cesaréia como “executados com exatidão.”272 Sozômeno, um continuador bem mais modesto do trabalho de Eusébio, aventou a possibilidade de que o bispo de Cesaréia havia sido imediatamente precedido como historiador eclesiástico também por um certo Clemente – que não foi nem o bispo de Roma autor de uma Carta aos Coríntios, nem o filósofo cristão que ensinou em Alexandria pouco antes de Orígenes – e por Hegesipo, mas não se 269 J. LIÉBAERT. 148 270 Id. Op. cit. p. cit. 271 Ibid. Op. cit. p. cit. 272 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VI : 31, 2. p. 217. 101 trata de notícia das mais seguras. O Clemente ao qual o historiador cristão do século V se referia era o suposto autor de um Evangelho de Pedro – que não é uma história eclesiástica – e Hegesipo, personagem do qual se sabe bastante pouco, quase que apenas pelas citações feitas pelo próprio Eusébio de Cesaréia, parece ter sido não um historiador, mas um apologista anti-gnóstico do século II de não excessiva formação literária, que se dedicou principalmente a compilar uma rica série de tradições orais que circulavam entre as comunidades judeucristãs da Palestina de seus dias.273 Em seguida e talvez como complemento de sua Crônica – assim como, por certo ponto de vista, também da narrativa dos quatro Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos que considerava como dignos de confiança – foi que Eusébio de Cesaréia compôs a História Eclesiástica, sua obra mais conhecida e valorizada, a ponto de Liébaert escrever que “(...) A glória de Eusébio (...) é a memória que nos deixou da Igreja dos três primeiros séculos.”274 O bispo historiador reuniu material durante um bom tempo para compor este trabalho, e segundo autorizados estudos filológicos e comparativos realizados com as diferentes versões desta obra que nos restam da Antigüidade, apresentou dela uma primeira edição meses depois de dar ao público sua Crônica, rejeitou-a e compôs nova versão divulgada em 312, completou-a mais de uma vez entre 315 e 317 e, por fim, corrigiu-a em 324, depois da vitória de Constantino sobre seu antigo aliado Licínio, para apagar tanto quanto possível a memória deste, oficialmente execrada pelo governo romano.275 Nos primeiros dois parágrafos da História Eclesiástica, Eusébio enumera as cinco matérias de que pretende tratar nesta obra: 1. “(...) as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador até nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim 273 Cf. A. MOMIGLIANO. Op. cit. p. 195. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. pp. 106-107, n. 181-182. 274 275 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit. Cf. Id. Op. cit. p. cit. B. ALTANER e A. STUIBER. p. 224. C. CURTI. Op. cit. p. cit. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. pp. 41*-46*. 102 como o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus”; 2. “(...) quantos, quais e quando, absorvidos pelo erro e levando ao extremo suas fantasias, proclamaram publicamente a si mesmo introdutores de um mal chamado saber [gnose] e devastaram sem piedade, como lobos cruéis, o rebanho de Cristo”; 3. “(...) as desventuras que se abateram sobre toda a nação judia depois que concluíram sua conspiração contra nosso Salvador”; 4. “(...) o número, o caráter e o tempo dos ataques dos pagãos contra a divina doutrina, e a grandeza de quantos por ela, segundo a ocasião, enfrentaram o combate em sangrenta tortura; também os martírios de nosso próprio tempo”; 5. “(...) e a proteção benévola e propícia de nosso Salvador.”276 O primeiro item mencionado por Eusébio de Cesaréia é de especial interesse na medida em que destaca um dos principais pontos nevrálgicos da história da Igreja dos primeiros séculos e depois: a sucessão dos líderes das principais comunidades cristãs, fosse na administração pastoral e no culto, ou na pregação falada e escrita.277 Segundo a sua versão da história – que veio a ser hegemônica –, o movimento cristão aparece no primeiro momento como um fenômeno de crescente agregação de novos fiéis ao grupo inicial dos seguidores que conheceram pessoalmente Jesus de Nazaré, e a narrativa dos Atos dos Apóstolos apresenta esta dinâmica como devedora explícita da pregação daqueles que os quatro evangelhos intracanônicos apresentavam como especialmente distinguidos por Cristo dentre o conjunto dos que o acompanhavam.278 Estes pregadores estabeleceram logo entre o número dos que aderiam ao seu partido algumas estruturas que assegurassem a continuidade de seu ensinamento, e para tal propósito investiram alguns indivíduos como especialmente responsáveis pela 276 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 1, 1-2. p. 15. 277 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. 190. 278 Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver. cit. Atos dos Apóstolos 2, 37-47; 5, 12-16; e 11, 19-24. ps. 1904-1905, 1909, e 1921-1922. Deve-se reconhecer que, sob este aspecto, Paulo é uma espécie de coringa, um personagem especialmente importante e difícil de ser integrado. Sua assimilação acabará se dando por um recorrente destaque de sua absoluta singularidade no conjunto dos membros do movimento de Jesus do primeiro século de sua existência. 103 manutenção da doutrina e pelo dinamismo das comunidades. Não tardou muito para que estas disposições apostólicas se cristalizassem na convicção de que há um conjunto doutrinário a ser zelosamente conservado de distorções idiossincráticas e na idéia de que para que os guias dos fiéis sejam legítimos em seu exercício de autoridade deve haver entre eles uma sucessão que remonte em alguma instância àqueles que com o Nazareno comeram a sua última ceia em Jerusalém e O viram ressuscitado. As comunidades semeadas pelas palavras dos Doze e, depois, por Paulo – que também reivindicava ter tido um contato pessoal com o Ressuscitado – estariam, portanto, em comunhão entre si tanto pela origem quanto pela organização e profissão de fé comum, laço sempre renovado na mútua assistência espiritual e também material. Tal compreensão já está maduramente formulada nos dias de Tertuliano de Cartago, que escreveu que: “(...) Ora, os apóstolos (que significa ‘enviados’) desde o princípio afirmaram a fé em Jesus Cristo e estabeleceram igrejas pela Judéia, e, logo depois, dispersos pelo mundo, anunciaram a mesma doutrina e a mesma fé às nações e, portanto, fundaram igrejas em quase todas as cidades. Destas, depois, as outras igrejas derivaram a raiz de sua fé e a semente da doutrina, e ainda a derivam para serem justamente igrejas. Desta maneira, também estas são consideradas apostólicas, 279 como descendências das igrejas dos apóstolos.” Conforme se manifestavam mais e mais grupos que alegavam possuir uma revelação secreta de Jesus ou de algum de seus seguidores imediatos, entrelaçaram-se ainda mais fortemente em algumas das comunidades cristãs as idéias de tradição, legitimidade e sucessão apostólica, de modo que já durante o século II consolidou-se entre estes a doutrina de que a continuidade era algo essencial à existência da Igreja, concebendo-a como um “movimento de comunicação da vida divina que, começando em Deus, se propagou pela terra, através dos apóstolos e da sucessão dos bispos.”280 Pela necessidade apologética de coligir provas contra os que eram considerados hereges, portanto, é que nasceram as listas de bispos redigidas cronologicamente, provas documentais da historicidade da sucessão apostólica e, desta forma, da ortodoxia do ensinamento 279 TERTULIANO DE CARTAGO. De præscriptione hæreticorum 20, 4-7. Apud: Angelo DI BERARDINO. “Listas episcopais”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 832. 280 Yves CONGAR. Mysterium Salutis. Petrópolis: Vozes, n. 12, vol. IV / 3, 1976. p. 160. Apud: A. DI BERARDINO. Op. cit. p. 833. 104 de uma comunidade. Hegesipo281, Irineu de Lyon e Tertuliano de Cartago buscaram a apostolicidade direta ou indireta de algumas das Igrejas de seu tempo e o fizeram explicitamente para frustrar as pretensões de outros cristãos de serem mais fiéis aos ensinamentos das origens. Mais uma vez, citemos o ardente teólogo africano que registrou que “(...) Pode ser que haja heresias que ousem referir-se à idade apostólica, de forma a parecerem ensinadas pelos apóstolos, por terem nascido no tempo deles. Podese replicar aos mesmos: apresentem então os documentos de nascimento de suas igrejas; exponham os catálogos de seus bispos, mostrando desde o princípio sua sucessão, para que se veja que aquele que foi o primeiro bispo recebeu a investidura e foi precedido por um dos apóstolos ou, ao menos, por um homem apostólico, que com os apóstolos mantivesse constantes relações. Este é o modo pelo qual as igrejas apostólicas exibem seus próprios títulos: assim a igreja de Esmirna mostra que Policarpo foi colocado sobre aquela sede por João; assim a de Roma mostra que Clemente ali foi ordenado por Pedro; e assim também as outras exibem seus bispos que, constituídos no episcopado pelos apóstolos, são 282 para elas o veículo da semente apostólica.” Para esta mesma finalidade, que Eusébio muito bem poderia ter definido como profilática, foi que o bispo de Cesaréia consultou e utilizou tais documentos, elaborando ele mesmo o que cria ser as completas listas episcopais das Igrejas paleortodoxas de Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Roma. Este material é incorporado como parte constitutiva de sua História Eclesiástica - por exemplo, em III : 4, 1-10; III : 37; IV : 21 e 22, 1-6; V : 5, 8-9 e 6; e VI : 9,1 – e vai conformar a sua frente de ataque contra os que percebe como desviantes da fé correta (ou seja, a sua). Eusébio compreendeu a conseqüência lógica do argumento de não poucos dos Padres da Igreja que o precederam, e utilizou sua erudição e espírito investigativo para provar através de documentos históricos que toda heresia era de fato um pensamento posterior à reta fé (doxa), derivada de uma independente e desautorizada – e, portanto, má – interpretação deste. Homem afeito às letras, sensível à veneração helênica pelo passado, buscou alicerçar na narrativa historiográfica o argumento patrístico de que a anterioridade cronológica garantia a automática superioridade de conteúdo sobre todos os seus pretensos dissidentes.283 Na contemporaneidade pudemos duvidar disto porque 281 Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IV : 22, 3. pp. 139-140. 282 TERTULIANO DE CARTAGO. De præscr. 32, 1ss. Apud: A. DI BERARDINO. Op. cit. p. cit. 283 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 192. 105 “(...) Não só os manuscritos da Biblioteca de Nag-Hammadi e o Códex Tchacos provam o contrário (o Evangelho de Tomé é o mais antigo evangelho de que se tem notícia), como a pesquisa de Bauer sobre Edessa e Alexandria mostra que, lá, os heréticos chegaram e dominaram muito antes [e] (...) Os retardatários foram os ortodoxos.”284 Não temos, entretanto, condição de verificar se Eusébio submeteu os dados empíricos inescrupulosamente às suas convicções e pretensões religiosas, para de forma deliberada tentar criar uma verdade, ou se simplesmente trabalhou com a documentação a que teve acesso e considerou mais autorizada. Esta consideração, entretanto, não nos impede de valorizar o seu empenho particular e as interessantes – e talvez perversas – conseqüências deste, como, por exemplo, o fato de ter preservado os nomes e títulos das obras de tantos autores com os quais não concordava e os quais hoje só conhecemos por estas suas referências.285 Ao registrar em um relato historiográfico os enfrentamentos entre a Igreja da qual se considerava membro e as inúmeras heresias que lhe desafiavam a pretensão de ser a única depositária através dos tempos e espaços diversos da verdade legada por Jesus Cristo aos homens, Eusébio teve de desenvolver uma abordagem muito nova tanto em relação à Bíblia Judaica e a Josefo, onde, obviamente, não está presente o pejorativo conceito cristão de heresia286, quanto em relação ao livro canônico dos Atos dos Apóstolos, onde esta questão tem 284 Id. Op. cit. p. 191. Sobre a referida pesquisa do alemão Walter Bauer, ver: Ibid. Op. cit. pp. 186-189 e nota correspondente, n. 76, p. 272. 285 Cabe mencionar aqui a afirmação do crítico literário Harold Bloom de que, de certo modo, os rabinos foram mais argutos ao lidar com seus dissidentes do que os antigos Padres da Igreja – entre os quais certamente Eusébio de Cesaréia –, já que preferiram oferecer-lhes quase invariavelmente o silêncio do que registrar e examinar os seus argumentos para poder refutá-los. De um modo geral, a ortodoxia judaica se recusou “até mesmo a mencionar os hereges, esperando com isso sepultá-los para sempre. O silêncio rabínico, mais ainda que a denúncia patrística, foi imensamente bem-sucedido em seu plano de suprimir o que Idel chama de ‘controvérsia interna no pensamento judeu’. [De fato, devido a isto, por exemplo] (...) todos os textos gnósticos que hoje possuímos, em todo ou em parte, representam o gnosticismo cristão do século 2 da Era Comum.” Harold BLOOM. Presságios do Milênio : Anjos, Sonhos e Imortalidade. (Trad. Marcos Santarrita). Rio de Janeiro: Objetiva, 1996. p. 139. Segundo Vittorino Grossi, o termo – que muito possivelmente é derivado de (“retirar”) ou (“escolher”) – provém do vocabulário das escolas filosóficas da época helenística, e em Fílon, Flávio Josefo e na Septuaginta foi usado para indicar as várias correntes existentes no judaísmo, sendo original e hegemonicamente empregado aí sem um sentido depreciativo. Apenas paulatinamente esta expressão começou a indicar os que se afastavam do judaísmo da grande corrente (rabínico ou – antes de 70 – saduceu), e neste sentido foi empregada pelos judeus em âmbito cristão (ou seja, para designar os seguidores de Jesus Cristo como judeus desviantes). Cf. Vittorino GROSSI. “Heresia – Herético”. In: VV. AA. Op. cit. p. 665. 286 106 apenas um pequeno papel.287 Na historiografia pagã difundida em seu tempo, contudo, havia um tipo de narrativa que o podia ajudar significativamente. Este era a história das escolas filosóficas tal como ela foi escrita por Diógenes Laércio. Nos dez volumosos livros de sua Historias de filósofos, Laércio recolheu uma vertiginosa quantidade de citações, manancial de incalculável valor para os estudiosos posteriores, e reuniu listas das sucessões de mestres, notas doxográficas, apoftegmas e catálogos de livros. Há indícios de que para realizar esta empreitada ele mesmo baseou-se na obra de João Estobeu (século V a.C.), um literato macedônico que reuniu em uma Antologia de quatro livros passagens de poetas e prosadores acompanhadas de uns seus de pequenos perfis biobibliográficos.288 No âmbito das escolas filosóficas helenísticas a idéia de continuidade sucessiva (diadoquia) era pelo menos tão importante quanto para o cristianismo de Eusébio de Cesaréia – onde os bispos eram diadocos dos apóstolos da mesma forma que os scolarchai o eram de Platão, Pirro, Zenão e Epicuro. A idéia de sucessão nos estudos também foi essencial para o estabelecimento do pensamento rabínico – como, mais tarde, viria a ser para os cabalistas – mas este, por sua vez, se desenvolveu já sob o impacto do contexto retratado pelos escritos de Diógenes. Como a Igreja Cristã, as correntes de pensamento do helenismo também tinham suas ortodoxias e seus desviacionismos. Uma outra afinidade entre a historiografia eusebiana e a de Diógenes Laércio e seus pares é que, como o bispo de Cesaréia, “os historiadores da filosofia na Grécia usaram métodos antiquários e citaram documentos com muito mais freqüência e profundidade do que seus colegas, os historiadores políticos. (...) documentação direta, original, era essencial para estabelecer a justa reivindicação de autenticidade da ortodoxia contra perseguidores internos e dissidentes externos.”289 Voltaremos ainda a isto. Para Eusébio de Cesaréia, que não sabemos se foi leitor ou não do grande historiador antigo da filosofia grega, entretanto, as diferentes adesões dos diferentes homens a diferentes formas de pensar e regras de conduta não se dava pela própria natureza vária destes, mas, muito diversamente do que poderia afirmar Diógenes Laércio, pela maligna incitação demoníaca. É isto que Eusébio, 287 Cf. A. MOMIGLIANO. Op. cit. p. 197. 288 Cf. A. LESKY. Op. cit. p. 890. 289 A. MOMIGLIANO. Op. cit. p. 198. 107 citando um escrito de Justino Filósofo, demonstrou ao tratar de um heresiarca de nome Simão, que identificava com aquele Simão, dito o Mago, que teria se envolvido na Samaria em uma disputa com Pedro e João290: “(...) havendo-se propagado a fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo a todos os homens, o inimigo da salvação dos homens já tramava antecipar-se na captura da cidade imperial e para lá conduziu Simão (...). De fato, segundo as hábeis artes deste homem, ganhou para o erro muitos habitantes de Roma. Isto é demonstrado por Justino, que se distinguiu em nossa doutrina não muito tempo depois dos apóstolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente. Em sua primeira Apologia, dirigida a Antonino, em favor de nossa fé, escreve como segue: ‘E depois da ascensão do Senhor ao céu, os demônios levaram alguns homens a dizer que eram deuses, e estes não somente não foram perseguidos por vós [os romanos], mas até considerados dignos de honras. Um tal Simão, samaritano, originário da aldeia chamada Giton, que em tempos de César Cláudio realizou mágicos prodígios em vossa imperial cidade, Roma, por arte dos demônios que nele operavam, foi tido por deus, e como a um deus foi honrado por vós com uma estátua (...). E quase todos os samaritanos, além de uns poucos de outras nações, proclamaram-no e adoraram-no como ao Deus primeiro. E uma certa Elena, que na época andava com ele, e que primeiro estava num prostíbulo – em Tiro da Fenícia –, chamavam-na o Primeiro Pensamento nascido dele.’ (...) Recebemos pois por tradição que Simão foi o primeiro autor de toda heresia. Dele até hoje aqueles que, participando de sua heresia fingem a filosofia dos cristãos, sóbria e celebrada universalmente por sua pureza de vida, chegam de novo à superstição idólatra da qual pareciam estar livres, pois se prosternam diante de escritos e imagens do próprio Simão e de sua companheira, a já citada Elena, e se esforçam em render-lhes culto com incenso, sacrifícios e libações. Mas suas secretas práticas, das quais se diz que quem pela primeira vez as escuta fica estupefato e, segundo uma expressão escrita que corre entre eles, espantado, verdadeiramente estão cheias de espanto, de frenesi e de loucura, e são tais que não somente não podem ser colocadas por escrito, mas que nem sequer com os lábios pode um homem sensato pronunciar o mínimo, pelo exagero de obscenidade e costumes infames. Porque tudo quanto se possa pensar de mais impuro e vergonhoso fica bem superado pela abominável heresia destes homens, que abusam de mulheres 291 miseráveis e carregadas verdadeiramente de males de todo tipo.” Prosseguindo a análise do antes referido plano que Eusébio de Cesaréia anuncia nas primeiras linhas de sua História Eclesiástica, mais dois aspectos de grande interesse podem ser destacados: o relativo à economia e o pertinente à teologia de Cristo.292 Em linhas bastante significativas ele encerra a sua 290 Cf. BÍBLIA. Ver cit. Atos dos Apóstolos 8, 9-25. p. 1915. 291 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro II : 1-4.6-8. pp. 58-59. 292 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. 191. 108 introdução à mencionada obra reafirmando a necessidade de começar esta narrativa historiográfica através da economia e da teologia do Filho de Deus: “(...) E começarei, como disse, pelas disposições [] e a teologia [] de Cristo, que em elevação e grandeza excedem ao homem. Já que, efetivamente, quem se disponha a escrever as origens da história eclesiástica deve necessariamente começar por remontar-se à primeira disposição de Cristo mesmo – pois foi d’Ele mesmo que tivemos a honra de receber o nome 293 – mais divina do que possa parecer ao vulgo.” Como chamou a atenção Celso Taveira, “(...) Economia e teologia são dois termos especialmente caros ao vocabulário cristão, diretamente ligados que estão ao problema da natureza de Cristo.”294 No sentido mais geral oikonomia significa “disposição”, ou, neste contexto, mais exatamente, “disposição providencial [de Deus]”, aquilo que os Padres latinos traduziram por dispensatio (Jerônimo), dispositio ou admnistratio (Agostinho de Hipona). Já na epístola de Paulo aos Efésios (1, 9-10) este termo foi empregado em um sentido técnico para expressar que em Jesus Cristo hão de se realizar todos os desígnios de Deus Criador e Condutor de todas as coisas visíveis e invisíveis no dia previsto para a restauração das criaturas no céu e na terra.295 Justino Filósofo usou oikonomia para fazer referência às disposições de Deus relativas à Encarnação e a Paixão e Morte de Jesus, mas também para tratar das determinações divinas em geral. Inácio de Antioquia utilizou-o de forma bem mais restrita, apenas para lidar com a concepção virginal do Filho de Deus no seio de Maria. Ireneu de Lyon foi quem consagrou o uso deste vocábulo para designar a realidade externa da Encarnação e da Redenção, ou seja, a crença de que o Verbo efetivamente se fez carne e efetivamente foi torturado e morto na cruz para a redenção dos pecados de todos os homens e mulheres de todos os tempos. Eusébio de Cesaréia, por sua vez, empregou a palavra tanto no sentido mais geral de disposição providencial de 293 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 1, 7-8. p. 16. 294 C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. 295 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. pp. 2039-2040: “(...) conforme decisão prévia que lhe aprouve [i.e., a Deus] tomar para levar o tempo à sua plenitude [eis oikonomíam tou pléromatos ton kairon]: a de em Cristo encabeçar todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra.” Celso Taveira anotou que “(...) O ‘pleroma’ é um conceito grego para ‘preenchimento’ (‘fulness’), podendo apresentar sentido ativo ou passivo. Assim, a Igreja completa Cristo ou é preenchida por Cristo, assim como Cristo pode estar acima da Igreja como sua cabeça, mas também dentro da Igreja, que é seu corpo.” Cf. W. R. F. BROWNING. A Dictionary of the Bible. Oxford: Oxford University Press, 1996. p. 297. Apud: C. TAVEIRA. Op. cit. p. 192, n. 44. 109 Deus levada a cabo por Jesus Cristo, “ministro executor das obras paternas”296, para ele o significado principal, como para se referir à Sua atividade salvífica – os ensinamentos, milagres, morte e ressurreição, mas também as teofanias anteriores à Encarnação.297 Ainda que na passagem acima citada da História Eclesiástica pareçam estar contrapostos este termo e o teologia – que designa em nosso autor, assim como em seu mestre Orígenes, o relacionamento eterno do divino Pai com o seu divino Filho e destes com o divino Espírito Santo – no curso desta obra eles não vão ser tratados em capítulos à parte, como se fossem matérias absolutamente distintas. No artigo intitulado “La théologie d’Eusèbe de Césarée d’après l’Histoire Ecclésiastique”, Gustave Bardy atribuiu ao bispo de Cesaréia uma adesão estruturante a esta oposição, que ele percebeu como sendo referente à compreensão de uma diferenciação verbalmente passível de ser marcada entre o elemento humano de Cristo (oikonomia) e o sua divindade (teologia). Para chegar a tal conclusão, ele se baseou na distinção feita por Gregório Nazienzo e Severiano de Gabala (segunda metade do século IV, primeira metade do século V) entre os evangelhos da oikonomia (os três sinóticos) e o da teologia (o atribuído a João), aplicando-a retrospectivamente (de modo anacrônico, portanto) à obra eusebiana. Fazendo isto ele não considerou com a devida importância a já mencionada questão das teofanias pré-Encarnação do Filho, que ocupam um espaço bastante considerável do primeiro Livro da História Eclesiástica e são tomadas por Eusébio como parte da oikonomia de Cristo, ainda que, de acordo com Bardy, este afirmasse que tais coisas pertenceriam à sua teologia.298 Em seguida à passagem antes transcrita, expressa-se Eusébio para esclarecer em que sentido percebe a natureza de Cristo e como relaciona esta problemática com o própria obra historiográfica que se dispôs a apresentar: “(...) Sendo a índole de Cristo dupla: uma semelhante à cabeça do corpo, e por esta o reconhecemos como Deus, e outra, comparável aos pés, mediante a qual, e para a nossa salvação ele se revestiu de homem, sujeito ao mesmo que nós, nossa exposição a seguir será perfeita se iniciarmos o discurso de toda sua história partindo dos pontos principais e dominantes. Deste modo, a antigüidade e o 296 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 2, 5. p. 17. 297 Cf. p. ex. Id. Op. cit. Livro I : 2, 6-15. p. 16-19. Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 5, n. 10. C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. 298 Cf. Id. Op. cit. p. 7, n. 14. Basilio STUDER. “Teologia”. In: VV. AA. Op. cit. p. 1346. 110 caráter divino dos cristãos ficará patente aos olhos de todos que pensam que [o 299 cristianismo] é algo novo, estranho, de ontem e não de antes.” Marcada esta distinção entre duas índoles em Jesus Cristo, é interessante pensar que um pouco mais adiante, após piedosos salamaleques e constatações de que nenhum homem é suficientemente instruído para dissertar sobre os inefáveis mistérios da existência, anterior aos séculos, do Filho junto ao Pai, Eusébio começa a sua narrativa da história dos cristãos daquilo que cria ser realmente o começo de seu assunto. Para fazê-lo, cita (I : 2, 3) as primeiras linhas do Evangelho de João (1, 1.3). Ao contrário do antes citado Severiano, bispo de Gabala, localidade da Síria, exegeta morto ainda relativamente jovem em 430, que foi amigo e vigário de João Crisóstomo (401) e depois se sentou entre os acusadores deste arcebispo de Constantinopla no sínodo dito do Carvalho (403), que distinguiu entre os evangelhos endereçados a todas as nações e adequados para o uso missionário-pastoral (os sinóticos) e aquele que, aprofundando o pensamento de Cristo sobre si mesmo, é adequado apenas aos batizados e à leitura contemplativa (o de João) – acima já destacamos que ele identifica aqueles como se ocupando da oikonomia e este como da teologia do Filho de Deus –, o bispo de Cesaréia associa-os a um mesmo movimento humano e divino que se dá concretamente no tempo e no espaço. 300 Na condição de ser humano, Jesus Cristo foi um sujeito histórico: nasceu nos dias do reinado de Herodes Antipas, recebeu um nome de José, esposo de Maria, aprendeu o ofício de carpinteiro, anunciou que “(...) Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo”301, reuniu discípulos e com eles conviveu por volta de três anos, subiu a Jerusalém por ocasião de uma festa da Páscoa, e foi aí crucificado sob as ordens de Pôncio Pilatos; como sujeito divino, Ele transcende a história, e, mais do que isso, a dispõe, de acordo com os desígnios de seu Pai Todo-Poderoso. Ao fazer tais afirmações, “(...) Além do propósito genérico de assentar num alicerce perpétuo as honras divinas de Cristo”302 e do povo que recebe o seu nome – ou seja, os cristãos –, e do intento apologético de refutar as proposições dos ebionitas (que 299 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 2, 1. p. 16. 300 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 192-193. Sever J. VOICU. “Severiano de Gabala”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 1276-1277. 301 BÍBLIA. Ver. cit. Marcos 1, 15a. p. 1760. 302 E. GIBBON. Op. cit. p. 345. 111 consideravam Jesus o maior dos profetas, mas não Deus) e dos docetas (que negavam a realidade da Encarnação de Jesus), Eusébio posicionou-se como defensor de uma cristologia do alto, bem de acordo com a tradição joanina. Antes de prosseguirmos, para maior clareza em nosso assunto, é necessário que façamos alguma consideração a respeito desta importantíssima vertente cristológica assumida pelo bispo de Cesaréia como o mais relevante fundamento religioso de sua produção histórica. Uma boa e sucinta maneira de empreender tal análise é observando a distância que há entre certos trechos especialmente significativos do princípio do tardio Evangelho de João e do primitivo Evangelho de Marcos, que, como já indicamos em outra ocasião, a pesquisa contemporânea considera como sendo o mais antigo dos evangelhos intracanônicos. Em Marcos, o começo da história de Jesus que deve ser conhecida pelos fiéis e preservada pela consignação por escrito da ação destruidora do tempo é a pregação de João Batista, encarada como cumprimento de certo trecho das profecias de Malaquias e de Isaías.303 Não interessa saber a genealogia ou as circunstâncias do nascimento do Nazareno: tudo o que importa saber é que “(...) Aconteceu naqueles dias que Jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi batizado por João no rio Jordão. E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até ele, e uma voz veio dos céus: ‘Tu és o meu 304 Filho amado, em ti me comprazo.” Estritamente, o trecho citado não permite inferir se Jesus passou a ser “Filho de Deus” no momento em que, encharcado e amparado pelo Batista, teve esta revelação ou se desde sempre o é. Para o redator do Evangelho de Marcos, portanto, aparentemente tal circunstância não parece ser objeto de maior interesse. Daí ao prólogo do Evangelho de João, dele apartado no máximo por algumas décadas, há um verdadeiro abismo. Sem mais delongas, o redator do texto joanino identifica Jesus a Deus Criador do mundo, anterior a este e seu Senhor. No homem de Nazaré está, desde sempre a origem e conhecimento de todas as coisas. 303 Mais especificamente, de Malaquias 3, 1 – “Eis que enviarei o meu mensageiro para que prepare meu caminho diante de mim” – e de Isaías 40, 3 – “(...) Uma voz clama: ‘No deserto, abri um caminho para Iaweh, na estepe, aplainai uma vereda para o nosso Deus” –, trechos transcritos no corpo textual marcano logo após uma brevíssima introdução de uma única frase (Marcos 1, 1) – “(...) Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.” Cf. BÍBLIA. Ver. cit. ps. 1313, 1683 e 1759. 304 Id. Ver. cit. Marcos 1, 9-11. p. 1759. 112 Em uma página de excepcional enlevo poético, João – nome que aqui usamos por pura conveniência, ciente de que um evangelho não é uma peça literária autoral no sentido moderno, mas uma espécie de coro polifônico de autoria realmente anônima305 – retoma um hino mais antigo que faz referência à criação do mundo apresentada no primeiro capítulo do livro do Gênesis306 e proclama que: “(...) No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. (...) E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós vimos sua glória, glória que ele tem junto ao Pai, como Filho único, cheio de graça e de verdade. João dá testemunho dele e clama: ‘Este é aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim passou adiante de mim, porque existia antes de mim’. Pois de sua plenitude todos nós recebemos graça por graça (...) a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está no seio 307 do Pai, este o deu a conhecer.” É lento e complexo o processo pelo qual a maioria significativa passa a aceitar Jesus como sendo Deus: o fato de Ário, nos dias de Eusébio e com a simpatia deste, incomodar-se com tal afirmação e encontrar tamanha ressonância às suas idéias, por si só, é prova suficiente disto.308 No texto joanino, contudo, tal convicção já está bem assentada, assumida como um a priori. De um ponto de vista narrativo, o corolário desta identificação, adequadamente levado em consideração o pressuposto judaico da soberania de Deus sobre todas as coisas naturais – Ele é o que envia o trovão “pela vastidão dos céus, e seus raios aos confins da terra”309; é quem “fechou com portas o mar, quando irrompeu jorrando do seio materno”310 – e humanas – Ele é o que “(...) suscitou do Oriente aquele que a justiça chama para segui-la, a quem ele entrega as nações e sujeita os reis (...) Aquele que desde o princípio chamou à existência as gerações”311 – é o de que homem de Nazaré desde antes do mundo conhece e controla todas as situações de sua vida. Distante está incerteza do Jesus que hesita no horto e se 305 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 173-174. 306 Cf. BÍBLIA. p. 1842, nota a. 307 Id. João 1, 1-3.14-16.17b.-18. pp. 1842-1844. 308 Cf. Karen ARMSTRONG. Uma história de Deus : Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. (Trad. Marcos Santarrita; rev. da trad. Hildelgarda Feist e Wladimir Araújo). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. pp. 147-150. 309 BÍBLIA. Ver. cit. Jó 36, 3. p. 848. 310 Id. Ver. cit. Jó 38, 8. p. 850. 311 Ibid. Ver. cit. Isaías 41, 2.4a. p. 1316. 113 angustia na cruz312: como uma rocha, o Messias de João se mantém impassível diante dos que o vão prender, intercedendo ainda pelos seus313; quase alheio aos suplícios, não morre, mas entrega o espírito, cumprindo o que havia dito anteriormente: “(...) dou minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou livremente.”314 Como registram John B. Gabel e Charles B. Wheeler, passar dos textos sinóticos “ao evangelho de João sem tê-lo conhecido antes é uma espécie de choque.”315 O estilo do texto e o tom de sua narrativa são radicalmente diversos daqueles que caracterizam os de Marcos, Mateus e Lucas, e, como já mencionamos, mesmo a figura de Jesus é aí um pouco estranha, não mais uma personagem ativa e engajada, demasiado humana, mas alguém que está em um patamar acima, que observa e intervém no reino dos assuntos humanos como quem tudo enxerga de fora e sempre sabe o que irá acontecer.316 Ao que tudo indica o Evangelho de João é produto de outra tradição cristã primitiva, semelhante à que gerou os textos sinóticos, mas inicialmente independente desta.317 Pouco depois de aparecer, oriunda de certa pregação apostólica e de seu diálogo com o pensamento religioso samaritano, não centrado na espera de um Messias de tipo davídico, com correntes gnósticas semi-cristãs e quase-cristãs, com o judaísmo rabínico, com a filo-teologia de Fílon de Alexandria e com os textos herméticos, esta peculiar versão de Jesus passou por uma revisão que a aproximou das narrativas marcana, mateana e lucana. Isto teria se dado tanto pela apropriação de histórias de milagres e relatos da Paixão, quanto pela aceitação da autoridade de Pedro, a quem, ressuscitado, por três vezes o Nazareno teria dado o encargo de cuidar do conjunto de seus seguidores.318 Cotejado pelas cartas ditas 312 Ver, respectivamente, Marcos 14, 33.35-36a – “(...) começou a apavorar-se e angustiar-se (...) caiu por terra, e orava para que, se possível, passasse dele essa hora. E dizia: ‘Abba (Pai)! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice” – e 15, 34 – “(...) deu um grande grito, dizendo: ‘Eloi, Eloi, lemá sabachtháni’ que, traduzido, significa: ‘Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?’”. Ibid. Ver. cit. ps. 1781 e 1784. 313 Cf. Ibid. João 18, 1-9. p. 1888. 314 Ibid. João 10, 17b-18a. p. 1869. 315 J. B. GABEL e C. B. WHEELER. Op. cit. p. 180. 316 Id. Op. cit. p. 181. 317 Cf. John P. MEIER. Um judeu marginal : Repensando o Jesus histórico. (Trad. Laura Rumchinsky). (3ª ed.). Rio de Janeiro: Imago, 1992. v. 1. p. 53. 318 Cf. Raymond Edward BROWN. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 39. Charles Harold DODD. A Interpretação do Quarto Evangelho. (Trad. José Raimundo 114 de João que também foram incorporadas ao cânone neo-testamentário, escritos dedicados essencialmente a salvaguardar o texto do Quarto Evangelho de interpretações espiritualistas e anárquicas319, esta narrativa levou para o seio da Grande Igreja uma cristologia que realça o caráter de Jesus como personagem divino, o que, para os oponentes judeus do movimento cristão era uma maneira caracteristicamente helênica de infringir o Primeiro Mandamento da Lei Mosaica.320 O pregador galileu, entretanto, foi compreendido pelos seus seguidores como Deus de forma muito diversa da que os helênicos compreendiam os diversos homens-deuses que povoavam a rede de sistemas religiosos estruturada em torno da bacia do Mediterrâneo na Antigüidade e que com a sua história possuíam tantos paralelos significativos. O caso é que este cristianismo que professava que Jesus, sendo homem, também estava por sua própria natureza muito além dos simples mortais, e que viria a se tornar o ortodoxo, “reunia em si a atração de todas as religiões [que lhe eram] rivais.”321 Na figura do Filho de Deus, o divino dava-se a conhecer a todas as pessoas e não apenas a um pequeno grupo de iniciados ou eleitos. Por amor das indignas criaturas, Jesus teria se despojado de sua glória anterior ao mundo para se tornar homem, e deste modo sofrer a morte de um criminoso com o paradoxal fim de atrair para si todas as coisas: tratava-se de coisa mais radical do que poderiam conceber os seguidores de Dioniso, os conhecedores da lenda de Prometeu, e mesmo os seguidores do budismo Mahayana, centrado na figura do bodhisattva, um iluminado que, por piedade pura e simples, deliberadamente adia a sua entrada ou dissolução na beatitude do não-ser para ajudar os demais a encontrarem também a libertação. Como o rei-mártir espartano Ágis e como Tibério Graco, o Nazareno dedicara sua vida ao povo sem recorrer à força, nem mesmo para se preservar da violência de seus inimigos; como estes e como Tibério, como Trifon, o rei dos escravos sicilianos, e como o gladiador rebelde Espartáco teve um fim de carreira tão abrupto quanto violento – o que só depunha a seu favor tanto junto Vidigal). São Paulo: Teológica / Paulus, 2003. p. 181ss. Helmut KÖESTER. Introdução ao Novo Testamento. Vol. 2 : História e literatura do cristianismo primitivo. (2ª ed.). São Paulo: Paulus, 2005. ps. 194, 196 e 211. BÍBLIA. Ver. cit. João 21, 14-17. p. 1894. 319 Cf. p. ex.: Id. Primeira Epístola de João 2,22 e 4, 2-3. ps. 2127 e 2130. 320 Cf. Arnold Joseph TOYNBEE. Helenismo : História de uma civilização. (Trad. Waltensir Dutra; introd. Antonio Olinto). (5ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar, 1983. (Col. “Biblioteca de cultura histórica”). p. 207. 321 Id. Op. cit. p. 200. 115 aos que eram vítimas da brutalidade de seu tempo quanto diante dos que sofriam o tédio de uma vida insípida, sem nenhuma oportunidade de se arriscar por uma causa que considerassem que, sendo superior a si mesmos, realmente valia a pena. Do mesmo modo que o deus da vegetação Osíris-Adônis-Átis-Tamuz vencera a morte e voltara à vida; como Rômulo, como Héracles, como Empédocles, como Alexandre Magno e como Enoque, ascendeu aos céus. Como Mitra, superou as tentações que se lhe apresentaram, fosse a de realizar uma carreira como líder político popular e revolucionário, ou a de fugir do suplício que lhe estaria reservado desde sempre; como Hadad, deus da tempestade sírio, também conhecido como Júpiter Dolichê, iria aparecer a qualquer momento sobre as nuvens para auxiliar os seus fiéis e fustigar os inimigos destes; como Krishna, como Augusto, como Alexandre e como todos os faraós, era filho de um deus com uma mulher humana.322 O Pai de Jesus não seria, entretanto, apenas um membro de um panteão celestial qualquer, ou mesmo o Deus sublime e bom do dualismo zoroastriano, mas o próprio Verdadeiro Deus Único dos hebreus, figura religiosa que havia evoluído muitíssimo de importância e escopo de atuação desde os primórdios em que era apenas a ciumenta divindade protetora de seus clãs preferidos.323 Assumindo tal posição cristológica, Eusébio podia incorporar à sua própria versão do cristianismo uma vastíssima fatia do imaginário religioso eurasiano. Dele bem poderia ser a frase que mais tarde escreveria Agostinho de Hipona: “o deus do boné frígio [Átis] era cristão.”324 Ecclesia ab Abel: o conteúdo específico da religião cristã já existia desde a origem do mundo, ainda que oculto em imagens imperfeitas e desconexas; tudo pode ser reivindicado pelos cristãos como seu na medida em que expresse aspectos daquilo que consideram correto e bom; Cristo manifestou o que estava oculto, já presente de forma velada, ou, em uma imagem esteticamente cara aos cristãos do tempo de Eusébio, recolheu as diversas, desiguais, esparsas e insignificantes peças nas quais depositavam-se os germes de verdade que indicavam a criação do homem por Deus e a participação 322 Em relação à sua filiação, Arnold Toynbee escreveu também que “(...) a mãe humana de Jesus, Maria, estava de reserva, esperando o momento de tomar o lugar de Ísis e Cibele como a Grande Mãe de Deus (a Theotókos, que significa ‘gestadora de Deus’).” Ibid. Op. cit. p. 201. 323 324 Cf. K. ARMSTRONG. Op. cit. pp. 25-104. Citado em: Richard BERGERON. Fora da Igreja também há salvação. (Trad. Maria Stela Gonçalves; rev. Iranildo B. Lopes). São Paulo: Loyola, 2009. p. 69. 116 de sua espiritualidade e racionalidade no Seu Espírito e no Seu Logos e reuniu-as em um glorioso mosaico capaz de vislumbrar as gentes e guiar-lhes o pensamento a Deus.325 Da mesma maneira, ao compreender como associada à natureza de Jesus Cristo a do Criador e Todo-Poderoso Deus Único – em que pesem os pendores arianos que mais tarde virá a manifestar, tendências que temos boas razões para suspeitar que se devem mais a considerações de ordem político-administrativas do que propriamente teológicas –, e a história eclesiástica como um desdobramento de seu ministério salvador, Eusébio também pode fundamentar teologicamente a transferência da eleição divina e da realeza do Velho Israel (a nação judaica) para o Novo Israel (a sua Igreja), coisa que ele considerava como um fato histórico já consumado: “(...) Foi nesse tempo que assumiu o reinado sobre o povo judeu, pela primeira vez, Herodes, de família estrangeira, e cumpriu-se a profecia feita por meio de Moisés, que dizia: Não faltará chefe saído de Judá nem governante nascido de sua carne até que chegue aquele para quem está reservado, e sinaliza-o como esperança das nações. Esta predição efetivamente não havia sido cumprida durante o tempo em que ainda lhes era permitido viver sob governantes de sua própria nação, começando com o próprio Moisés e continuando até o império de Augusto. Nos tempos deste é que pela primeira vez um estrangeiro, Herodes, se vê investido pelos romanos com o governo dos judeus: segundo nos informa Josefo, era idumeu por parte de pai e árabe por parte de mãe. (...) Tendo pois o reino judeu vindo às mãos de tal pessoa, a expectativa das nações, conforme a profecia, estava também à porta; haviam desaparecido do reino os príncipes e mandatários descendentes por via de sucessão entre si do próprio Moisés. (...) Em seu tempo ocorreu visivelmente a vinda de Cristo e, segundo a profecia, seguiu-se a esperada salvação e vocação dos gentios. A partir deste tempo, efetivamente, os príncipes e mandatários originários de Judá, quero dizer, os que vinham do povo judeu, desapareceram, e em seguida naturalmente viram perturbados também os assuntos do sumo sacerdócio, que até então vinha sendo passado de modo estável de pais a filhos em cada geração. Encontramos importante testemunho de tudo isso em Josefo, que explica como Herodes, assim que os romanos lhe confiaram o reino, deixou de instituir sumos sacerdotes vindos da antiga linhagem, pelo contrário, distribuiu esta honra entre gente sem expressão. E diz ainda que na instituição dos sacerdotes Herodes foi imitado por seu filho Arquelau e depois dele pelos romanos, quando tomaram para si o governo dos judeus. O mesmo Josefo explica como Herodes foi o primeiro a fechar sob seu próprio selo as vestimentas sagradas do sumo sacerdote, não permitindo mais aos sumos 325 Cf. Id. Op. cit. pp. 69-70. Fernanda da S. M. SOARES. Mosaicos em procissão : A política de imagens de Justiniano em Ravena (527 – 565 a.D.). 2006. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Brasília, Brasília (BR). pp. 14-15. 117 sacerdotes levá-las sobre si, e que o mesmo foi feito por seu sucessor Arquelau, e depois deste pelos romanos. Tudo o que foi dito sirva também como prova do cumprimento de outra profecia referente à manifestação de Jesus Cristo nosso Salvador. No livro de Daniel, a Escritura determina clara e expressamente um número de semanas até o CristoPríncipe (...) e profetiza que, depois de cumpridas estas semanas, seria extinta por completa a unção entre os judeus. Agora, pois, demonstra-se claramente que 326 também isto se cumpriu com o nascimento de nosso Salvador Jesus Cristo.” Lançando mão de uma circunstancial citação da narrativa do historiador judeu Flávio Josefo, Eusébio pretendeu mostrar no tempo e no espaço como se transferiu a preferência de Iahweh dos judeus para os cristãos através de Jesus de Nazaré. Fazendo isto, de um só golpe refutou o judaísmo ao mesmo tempo em que incorporou, junto com as genealogias do Messias, as suas antigas tradições monárquica, sacerdotal e profética, considerado-as todas como referentes ao Verbo feito carne e seus seguidores. Sem maiores tensões, podia então reafirmar o quanto a religião dos hebreus era efêmera e contingente diante do Cristianismo (Demonstração Evangélica), ao mesmo tempo em que firmava a posição de que, diante dela, o paganismo greco-latino era uma superstição muito pobre (Preparação Evangélica). Assumindo o patrimônio do judaísmo normativo e templário – e significativamente ignorando as especulações hebréias de tipo gnóstico – Eusébio podia repudiar com serenidade aqueles que rejeitavam no todo ou em parte – como, por exemplo, Marcião – os princípios do pensamento véterotestamentário no qual se baseava a sua teologia da história. Ainda que não faça especificamente referência ao autor que estamos analisando, cabe aqui mencionar um trecho composto pelo historiador das religiões Mircea Eliade que pode enriquecer a nossa presente reflexão. Na mencionada passagem, o estudioso franco-romeno registrou que, com efeito, “(...) Ninguém podia proclamar-se cristão sem partilhar as doutrinas do Antigo Testamento referentes à gênese do mundo e à natureza do homem: Deus iniciara a obra cosmogônica criando a matéria e concluiu-a criando o homem, corpóreo, sexuado e livre, à imagem e semelhança do seu Criador. Em outras palavras, o homem foi criado com as potencialidades de um deus. A ‘história’ é a duração temporal durante a qual o homem aprende a praticar a sua liberdade e a santificarse; em suma, a fazer o aprendizado do seu ofício de Deus, pois o termo da Criação é uma humanidade santificada. Isso explica a importância da 326 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 6, 1-2.4.8-11. pp. 28-30. 118 temporalidade e da história, e o papel decisivo da liberdade humana, porque o 327 homem não pode ser convertido em deus contra a sua vontade.” Ora, cremos que é bastante evidente a afinidade que tal concepção expressa na citação acima tem com a noção eusebiana de que a história eclesiástica é uma parte de oikonomia de Cristo. É o Filho, a quem o Pai deu tudo328, quem instaura a nova Criação, pois nele o mundo será salvo.329 É a pertença à comunidade dos cristãos, que testemunha a redenção oferecida por Jesus Cristo e continua no mundo a sua missão330 que conduz o homem ao novo nascimento sem o qual não poderá entrar no Reino de Deus.331 Pertencer ao conjunto de seus discípulos é estar em Cristo, ser parte de Seu Corpo332, e “(...) Se alguém está em Cristo, é nova criatura.”333 Frente à diversidade de cristianismos que reivindicam todos serem os únicos caminhos para a salvação, Eusébio de Cesaréia responde enfatizando que a única Igreja legítima é a fundada pelos Apóstolos que haviam recebido de Jesus mesmo os seus ensinamentos e pública e efetivamente haviam transmitido sua autoridade aos bispos seus sucessores. Também os demais grupos cristãos dissidentes da instituição da qual o próprio Eusébio era epíscopo reivindicavam a origem apostólica, mas, como os demais Padres Apologistas, ele rejeita essas pretensas sucessões por serem secretas e documentalmente inverificáveis. Conforme a afirmação de Irineu de Lyon, este historiador buscou atestar que “antes de Valentino, não havia valentinianos, nem marcionistas antes de Marcião”334, e para ele isto constituía uma acusação fundamental e definitiva, já que tinha bem claro para si como surgiam as opiniões que identificava como diferentes das transmitidas pelos Apóstolos; a respeito do surgimento dos montanistas, por exemplo, registrou que: 327 Mircea ELIADE. História das Crenças e das Idéias Religiosas. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983. (Tomo II : De Gautama Buda ao Triunfo do Cristianismo; Volume 2 : Das Provações do Judaísmo ao Crepúsculo dos Deuses). pp. 165-166. 328 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. João 10, 29a. p. 1870. 329 Cf. Id. Ver. cit. João 3, 17b. p. 1848. 330 Cf. Ibid. Ver. cit. Atos dos Apóstolos 1, 8. p. 1900. 331 Cf. Ibid. Ver. cit. João 3, 5b. p. 1847. 332 Cf. Ibid. Ver. cit. Primeira Epístola aos Coríntios 12, 12-27. pp. 2008-2009. 333 Cf. Ibid. Ver. cit. Segunda Epístola aos Coríntios 5, 17. p. 2022. 334 IRENEU DE LYON. Adverus Haereses III : 4, 3. Citado em: M. ELIADE. Op. cit. p. 167, n. 4. 119 “(...) Como o inimigo da Igreja de Deus é em último grau avesso ao bem e amante do mal e de forma alguma deixa de lado qualquer maneira de conspirar contra os homens, fez com que de novo brotassem estranhas heresias contra a Igreja. Destes hereges alguns, como serpentes venenosas, rastejavam pela Ásia e pela Frígia, vangloriando-se de ter como modelo Montano e nas mulheres de sua 335 companhia, Priscila e Maximila, as supostas profetisas de Montanho.” A manutenção da tradição episcopal que remonta aos apóstolos e a indicação da origem indigna dos grupos cristãos que afirmou serem desviantes são, duas faces de uma mesma estratégia de auto-afirmação e refutação das críticas feitas pelos outros partidos do movimento cristão que não o seu, os principais pontos recorrentes dos oito primeiros livros da História Eclesiástica. Os dois últimos livros, acrescentados mais tarde pelo autor para dar conta do fim das perseguições romanas contra os cristãos, da vitória de Constantino contra os seus inimigos políticos mais imediatos e as ações deste estadista em prol da Grande Igreja, são os que esboçam de modo especial a sua teologia política – levada depois ao pleonasmo no texto de uma Vida de Constantino que lhe foi atribuída. Podemos considerar ainda que em todos eles a questão da continuidade da liderança desde as origens até os dias de Eusébio aparece enquanto garantia de legitimidade da verdadeira Igreja – assunto do qual já tratamos acima com o vagar adequado –, mas que também se presta a considerações que visam estruturar as relações hierárquicas a serem estabelecidas entre as diferentes comunidades que, mantendo um contato regular, professam uma mesma fé e mantém uma organização pastoral e um conjunto de normas litúrgicas e disciplinares mais ou menos comuns. Ela é, portanto, elemento classificatório mesmo no interior da Grande Igreja, “(...) uma Igreja que aparece no singular no título de uma História na qual desfilam, de fato, um grande número de igrejas locais que ainda lutariam pela supremacia ou pela autonomia durante muito tempo. A sucessão apostólica tornou-se um ponto essencial na questão da legitimidade, embora viesse a ser desprezada na precedência posteriormente dada à Sé de Constantinopla sobre Alexandria e Antioquia no Concílio de Constantinopla de 381 (...). Esse tipo de legitimação é ao mesmo tempo eficaz e flexível. Permite a abertura a interesses 335 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Livro V : 14. p. 172. A importância da referência à figura da serpente neste contexto é mais ou menos óbvia: remete de imediato o leitor judeu ou cristão ao relato da Queda do gênero humano e à figura do Diabo, Adversário de Deus. Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Gênesis 3. pp. 37-39. 120 políticos circunstanciais, ao mesmo tempo em que confere autoridade teológica 336 vinculando-se ao Antigo e ao Novo Testamento.” É nesta rede de comunidades historicamente dispostas no espaço e hierarquicamente umas em relação às outras, que Eusébio vai localizar o patrimônio da orthodoxia, definida na maior parte das vezes na sua História Eclesiástica por explícita oposição a cristianismos considerados inadequados. Das cartas de Dionísio de Corinto, por exemplo, o historiador destaca em primeiro lugar uma que teria sido remetida à Igreja de Esparta (Aos Lacedemônios) como “uma catequese de ortodoxia e exortação à paz e à união.”337 Basta-nos esta pequena citação para perceber como o bispo de Cesaréia vincula a comunhão eclesial à conformidade doutrinária. No Livro sexto desta obra, amplamente dedicado à vida, obra e idéias de Orígenes, Eusébio escreve que desde bem jovem o genial alexandrino teve de conviver com um heresiarca de origem antioquena, e que mesmo que por necessidade estivesse “(...) habitualmente com ele [na casa em que foi acolhido após o martírio de seu pai e o confisco do que lhe caberia como herança], já desde aquela idade dava provas claras de sua ortodoxia na fé, pois ainda que uma multidão incontável, não apenas de hereges, mas também dos nossos, se reunia junto a Paulo (assim se chamava o homem), porque lhes parecia eloqüente, jamais se conseguiu que o acompanhasse na oração, guardando desde menino a regra da Igreja e abominando – como diz textualmente sobre si mesmo em alguma parte – os 338 ensinamentos das heresias.” Não podemos anacronicamente procurar nestes trechos de Eusébio a Ortodoxia definida pelos Concílios de Nicéia (325) e Constantinopla (381) e depois da vitória do partido iconódulo (843), fundada no termo aristotélico orthodoxéo – que na Ética a Nicômaco designa uma tendência doutrinal assumida 336 C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 193-194. Para o estabelecimento da primazia de Constantinopla sobre as bem mais antigas dioceses de Alexandria, Antioquia e Jerusalém – mas não sobre Roma – foi fundamental o fato de se ter descoberto que André Apóstolo, irmão de Pedro, o segundo a ser chamado por Jesus para integrar o grupo dos Doze (Mateus 10, 2; Lucas 6, 14), presente em Caná da Galiléia quando de Seu primeiro milagre público (João 2, 1-2), foi o primeiro evangelizador da região de Bizâncio, vindo a ele mesmo crucificado não muito longe dali, em Patras. Devido a tal circunstância fortuita, pôde a cidade declará-lo seu padroeiro – em 356 ou 357 o Imperador Constâncio fez com que os seus restos mortais fossem transladados à sua capital – e, assim, reivindicar o segundo local na hierarquia das Sés supostamente estabelecidas pela autoridade da missão dos próprios companheiros do Nazareno. Cf. Elio PERETTO. “André apóstolo”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 97-98. Ivan DUJCEV. “Constantinopla (Istambul)”. In: Id. Op. cit. pp. 331-332. 337 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Livro IV : 23, 2. p. 141. 338 Id. Livro VI : 2, 14-15. pp. 194-195. 121 no âmbito de uma discussão filosófica – a partir das reflexões de Metódio de Patara, de Atanásio de Alexandria e destas e outras indicações do próprio Eusébio, em primeiro lugar porque todos ideológicos absolutamente coerentes são raríssimos de serem encontrados na História da Humanidade e muito menos no interior de mentes individuais, a não ser “naquelas de obsessivos e paranóicos”339 , substantivações que não poderiam ser atribuídas às características pessoais do moderado e bem articulado autor da História Eclesiástica. O uso que ele faz do termo como designativo de adesão a um conjunto de crenças e a uma concreta instituição sociopolítica é muito relevante, e seria consolidado “em duas direções: primeiramente nas relações da Igreja com o mundo externo, ao se ver confrontada com correntes filosóficas ou gnósticas, tendo assim que defender de propagandas externas e elaborar a sua própria; em segundo lugar, para fazer frente aos desvios internos, ou seja, para definir tanto as heresias quanto a próprio Ortodoxia.”340 Curioso e irônico é que esta mesma Ortodoxia conformada enquanto instância de poder não tardaria a impor restrições tanto a Orígenes – como já tivemos a ocasião de examinar no primeiro capítulo deste trabalho – como ao próprio Eusébio, em primeiro lugar porque suas considerações moderadas e moderadoras nos anos de 320-325 foram encaradas a partir da vitória do partido atanasiano como filoarianas – dedicaremos ao posicionamento do bispo de Cesaréia na querela ariana um considerável espaço no capítulo seguinte –, e, em segundo, porque a partir da resolução da crise iconoclasta condenou-se de forma decisiva o seu posicionamento contrário à representação do rosto de Cristo.341 339 Victor TURNER. Dramas, campos e metáforas : Ação simbólica na sociedade humana. (Trad. Fabiano de Morais). Niterói: UFF, 2008. (Col. “Antropologia e Ciência Política”, n. 42). p. 12. 340 341 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 196. Cf. Id. Op. cit. 194-196 e notas correspondentes, n. 48-51. Sobre a problemática entre iconoclastia, iconodulia e Eusébio de Cesaréia, ver: Henri CROUZEL. “Imagem”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 708-709. Antonio Carlos do Amaral AZEVEDO. “Iconoclasmo”. In: Antonio Carlos do Amaral AZEVEDO e Paulo GEIGER. Dicionário histórico de religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. pp. 190-191. Henry CHADWICK e G. R. EVANS. “Ícones e iconoclastia”. In: Igreja Cristã. (Trad. port. Calos Noué e Francisco Manhães; rev. Carlos Noué e Meritxell Almarza). Barcelona: Folio, 2007. (Col. “Grandes civilizações do passado”). Carlo GINZBURG. Olhos de madeira : Nove reflexões sobre a distância. (Trad. Eduardo Brandão). São Paulo: Companhia das Letras, 2001. pp. 104-138 (caps. 4 – “Ecce : Sobre as raízes culturais da imagem cristã” – e 5 “Ídolos e imagens : Um trecho de Orígenes e sua sorte”). 122 III. “Depois disso, eis que vi uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e diante do Cordeiro, trajados com vestes brancas e com palmas na mão. E, em voz alta proclamavam: ‘A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro! (...) Amém! O louvor, a glória, a sabedoria, a ação de graças, a honra, o poder e a força pertencem ao nosso Deus pelos séculos dos séculos. Amém!” APOCALIPSE 7, 9-10.12 Além das listas episcopais evocadas por Eusébio, inclusive na condição de um espelho das genealogias nobiliárquicas e sucessões de reis do Oriente Antigo, e dos catálogos de autores e obras heréticos e ortodoxos, se destacam na História Eclesiástica também as enumerações de mártires. Há aí o relato das mortes dos Apóstolos (II : 9; II : 23; II : 25; III : 5, 2; III : 31, 1-3), dos descentes de Davi e dos parentes carnais de Jesus Cristo (III : 19; III : 20, 1-7), de Policarpo e outros da cidade de Esmirna (IV : 15), de Justino Filósofo (IV : 16), dos mártires mencionados por Justino em sua própria obra (IV : 17), dos cristãos germânicos que foram assassinados nos tempos do Imperador Vero (V : 1), das perseguições na Alexandria do tempo em que Orígenes era jovem (VI : 1 e 2, 12-13), dos discípulos deste teólogo que vieram a dar testemunho de sua crença com a própria vida (VI : 4 e 5), dos perseguidos sob Maximino César (VI : 28), dos alexandrinos feitos mártires sob Décio (VI : 41), e tantos outros mais. Suas fontes de informação e modelos são as bem conhecidas Atas e Paixões dos Mártires, textos redigidos segundo o uso epistolar dos primeiros cristãos e que narram, respectivamente, as decisões da autoridade judiciária romana condenando os seguidores de Cristo à morte e os seus últimos dias e execução propriamente dita. Seu eixo argumentativo é “(...) a tese de que o martírio equivale a um combate, que os mártires são combatentes de Deus, que o diabo é o inimigo e os perseguidores, os seus sicários. Quando o inimigo crê tê-los aniquilado, então é que são vencedores, porque imitaram Cristo em sua humilhação e exaltação, e com ele se tornaram 342 testemunhas fiéis e verazes.” 342 Fabrizio BISCONTI. “Martírio”. In: VV. AA. Op. cit. p. 898. 123 Eusébio reconheceu em tais documentos um substrato factual pelo menos equivalente ao desejo de edificação espiritual que animou sua redação e difusão – assim como o faz, aliás, uma significativa parcela da crítica mais contemporânea, ainda que marcadas as devidas diferenças entre ambos os posicionamentos. Seja como for, o fato é que progressivamente a forma epistolar destes textos foi abandonada em favor do relato puro e simples, retoricamente moldado para aproximar os sofrimentos dos cristãos das narrativas evangélicas sobre a tortura e assassínio de Jesus – nos relatos de martírio consignados na História Eclesiástica pode-se, inclusive, notar a influência de ambas as formas. Tais escritos também são coloridos de tons nitidamente apologéticos, o que é bastante evidente quando Eusébio de Cesaréia refere-se aos cristãos das casas imperiais que foram perseguidos nos dias de Diocleciano e Galério: “(...) Acima de todos quantos foram celebrados alguma vez como admiráveis e famosos por sua valentia, assim entre os gregos como entre os bárbaros, esta ocasião [i.e., a perseguição citada] fez destacar os divinos e excelentes mártires Doroteo e os servidores imperiais que o acompanhavam. Ainda que seus amos os tenham considerados dignos da mais alta honra e no trato não os deixavam atrás de seus próprios filhos, eles julgavam, com toda verdade, maior riqueza do que a glória e o prazer desta vida as injúrias, os trabalhos e os variados gêneros de morte inventados contra eles por causa de sua religião. (...) depois de passar por combates de todo o gênero, morreram enforcados e alcançaram o prêmio da 343 divina vitória.” Segundo o programa apologético defendido por Eusébio, o cristianismo assumiu tudo aquilo de melhor que havia tanto no judaísmo, quanto no paganismo. Dado que a melhor forma de convencer os pagãos disto certamente era oferecendo elementos que concretamente fossem equivalentes cristãos dos mais importantes tipos de seu imaginário mítico (os heróis, no caso dos mártires), evidencia-se a importância em sua História Eclesiástica de semelhantes perícopes. Discute-se ainda se os contadores de martírios consultaram os arquivos judiciários dos romanos para colher detalhes dos processos aos quais se referiram, mas, pelo menos no caso de Eusébio, presume-se que tenha compilado tradições 343 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 6, 1. pp. 277-278. 124 que já circulavam por escrito em sua própria comunidade além de ter redigido suas próprias memórias sobre aquelas condenações públicas que teve a ocasião de pessoalmente ver e ouvir. Com efeito, “(...) nada impedia que as próprias testemunhas, senão talvez o risco de se traírem como cristãos, esteneografassem as perguntas [feitas pelos juízes] e as respostas [dadas pelos réus] e as usassem em seus relatos com mais liberdade do que um chanceler de ofício.”344 Quanto a isto, ainda há algo mais a ser ressaltado. A fé que tinham na vida eterna e sua identificação com os sofrimentos de seu Senhor permitiram que os membros do movimento cristão enfrentassem a violência e a morte com coragem, mas também trouxe ao cristianismo paleortodoxo uma grave crise de credibilidade. Quando começaram as esporádicas, mas violentas perseguições promovidas pelas autoridades romanas, os cristãos naturalmente interpretaram isto como sendo a “tribulação tal, como não houve desde o princípio do mundo que Deus criou até agora, e não haverá jamais”345 de que Jesus havia falado. Ainda que não haja consenso se feliz ou infelizmente, entretanto, o fato é que passou muito tempo e simplesmente não veio “o Filho do Homem (...) entre nuvens com grande poder e glória.”346 Os cristãos continuavam a ser eventualmente hostilizados, presos, torturados e mesmo mortos por sua crença e atitude diferenciada, e Deus simplesmente não se insurgiu contra isso. O Islã, por exemplo, nunca enfrentou este problema porque a curva de crescimento que conheceu já nos dias de Maomé, “freqüentemente mais por conquista do que por conversão pessoal, não deu margem a desapontamento.”347 O fato de que alguns dos mais destacados líderes dos cristãos tenham confiantemente se deixado abater não obstante não se terem realizado as predições apocalípticas atribuídas à seu Senhor, não só fez com que estas fossem de certa maneira relativizadas, mas também impressionou bastante os de fora e ajudou a mitigar a problemática de se constatar que a infra-estrutura do mundo empírico não tinha mudado “desde o caminho do sacrifício ao Gólgota – e, por conseguinte, a comunidade de Jesus, com os judeus, [ainda] roga em oração, por assim dizer na sala de espera da 344 F. BISCONTI. Op. cit. p. 899. 345 BIBLIA. Ver. cit. Marcos 13, 19. p. 1779. 346 Id. Ver. cit. Mc 13, 26. p. cit. 347 R. STARK. Op. cit. p. 205. 125 história, a irrupção do Reino, no ‘Pai-nosso’ da Igreja e no Kadish da sinagoga.”348 Não se pode apartar a referência eusebiana aos mártires, portanto, desta sua funcionalidade apologética, edificante e, por assim dizer, paliativa. Do mesmo modo, não há maneira de separá-la da veneração litúrgica que lhes era prestada, assim como do contexto eclesial específico da segunda metade do século III e primeira metade do século IV. Neste período foram realizadas as mais sistemáticas perseguições aos cristãos por parte das autoridades romanas, mas também houveram grandes interregnos de paz e crescimento entre elas. Já aí começou a chamar a atenção o ingresso no cristianismo de “adeptos de ocasião e bispos atraídos pelo prestígio social em grandes cidades, onde eram protegidos por senhoras de riqueza e refinamento”349, e desenvolveu-se uma indignada crítica de clérigos e laicos rigoristas do interior da própria Grande Igreja contra aquelas autoridades eclesiásticas que vivam a freqüentar as casas dos ricos, indivíduos nada úteis à sociedade civil ou eclesial, que cultivavam em nome de uma santa pobreza a mais rigorosa indolência e oportunismo.350 Como destacou Richard Sennett, foi justamente inter-relacionado com o processo de relativa mundanização da instituição religiosa que cresceu a importância da memória e do culto aos mártires como uma tentativa de preservar uma vinculação pessoal com o divino: “(...) A basílica e o martirium representavam duas faces do cristianismo: o Cristo Rei e o Cristo Salvador do martirizado e do fraco.”351 Se antes o caminho para o martírio era a mais segura maneira de realizar a imitatio Christi, o fim das grandes perseguições e o favorecimento de certa versão da fé cristã por Constantino interpôs aos que a seguiam uma quase intransponível murada. Nem todos foram os que podiam ou queriam seguir para o deserto e as grutas, em um auto-exílio do mundo que de algum modo os tornaria mais próximos de Deus. 348 Schalom BEN-CHORIN. “Die Entstehung des Christentums aus dem Judentum”. In: E-L. KROLL (org). Neue Wege der Ideengeschichte, Festschr. K. Kluxen. Paderbörn: s.e., 1996. p. 135. Apud: Heinz-Josef FABRY e Klaus SCHOLTISSEK. O Messias. (Trad. Milton Camargo Mota). São Paulo: Loyola, 2008. (Col. “Bíblia Loyola”, n. 53). p. 19 e nota correspondente, n. 27. 349 Celso TAVEIRA. “Eusébio: da razão antiga à verdade cristã”. In: VII CICLOS DE ESTUDOS DA RELIGIÃO: FÉ E CONHECIMENTO, 2004, Mariana (MG). Anais Eletrônicos do VII Ciclo de Estudos da Religião: Fé e Conhecimento. Mariana: Núcleo de Estudos da Religião (NER) / UFOP, 2004, vol. 1. (CD-ROM). p. 2. 350 Cf. Id. Op. cit. p. 3. 351 R. SENNETT. Op. cit. p. 128. 126 Pela mediação da prática cúltica e do relato histórico, portanto, era que a Igreja Peregrina poderia continuar vinculada a estes “atletas da religião verdadeiramente maravilhosos” que com “admirável paciência”, por intervenção “do poder divino do próprio Jesus Cristo, nosso Salvador” haviam vencido todos os elementos da natureza – o couro dos açoites, as presas, cascos e chifres das feras, o metal, o calor dos ferros em brasa, a água das correntezas – para enfim, quase depois de terem dado o seu consentimento para tanto, serem “degolados à espada”.352 Estes, a um só tempo, eram testemunho tanto para os de dentro quanto para os de fora, e com seu sangue tinham ajudado a conferir uma duradoura credibilidade à fé que professavam. 352 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 8, 1-2.6. pp. 279-280. 127 IV. “(...) também é registrado pelo mais ilustre dos historiadores hebreus, Flávio Josefo, ao relatar outros feitos referentes (...). A estas indicações, acrescenta”. EUSÉBIO DE CESARÉIA, História Eclesiástica I : 5,3-4 “(...) Quando um escritor saído dentre os próprios judeus transmite desde o começo em suas próprias obras estas coisas referentes a João Batista e a nosso Salvador, que subterfúgio resta aos que tramaram contra eles (...) sem que fique evidente o seu descaramento?” EUSÉBIO DE CESARÉIA, História Eclesiástica I : 11, 9 Antes de passarmos à seção seguinte, onde nos dedicaremos à outra das correntes que, juntamente com um conjunto específico de pressupostos religiosos e um desígnio apologético, fluíram para constituir o lago intelectual gerador que é a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, façamos uma digressão para considerarmos o uso que este autor faz da obra de Flávio Josefo, historiador que busca conciliar de modo bastante criativo a historiografia greco-latina e as narrativas históricas dos livros sagrados dos judeus. Os escritos de Josefo interessaram desde cedo os cristãos mais cultos e cônscios de que não bastava para a legitimação de sua comunidade os testemunhos redigidos em seu próprio âmbito como material normativo e de edificação moral e prática. O autor de Antigüidades Judaicas e outros importantes textos dissertou sobre personagens e eventos também citados nos escritos que os cristãos aceitavam como sagrados, e isso ocasionou sua constante utilização como uma espécie de complemento externo aos dados registrados nestas Escrituras. Além disto, sua preocupação em mostrar a antiguidade da religião judaica foi ao encontro da argumentação dos Padres da Igreja do século III que insistiam que a filosofia era filha da legislação mosaica e que a pregação de Jesus era prefigurada por ambas tanto quanto é o seu complemento substituto.353 Josefo também relatou a destruição de Jerusalém, que significativo número de comunidades cristãs 353 Raciocínio, aliás, bem assentado em falas de Jesus consignadas nos evangelhos intracanônicos, como, por exemplo: “(...) Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado.” BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 5, 17-18. p. 1711. 128 interpretou como cumprimento das profecias de Jesus registradas, por exemplo, no Evangelho de Marcos354 e sina da caducidade do velho Israel, posto à margem por Deus em favor de um novo Israel, um Israel espiritual: a Igreja Cristã.355 De diversos modos o amálgama entre as formas de narrar a história de helenistas e judeus forjada por Flávio Josefo influenciou a narrativa eusebiana: não à toa o bispo de Cesaréia designou-o sem nenhuma hesitação como “mais ilustre dos historiadores hebreus”.356 Uma das maneiras mais evidentes em que se manifesta esta relação é o fato de que vários trechos do controverso escritor judeu são diretamente transcritos no corpo da História Eclesiástica. Como observa Argemiro Velasco-Delgado, isto atesta o quanto Eusébio cria que a obra de Josefo coincidia com a tradição cristã que considerava correta, corroborava-a, e o fazia talvez até mesmo com algum adicional mérito, já que se tratava de um personagem que estava fora da comunidade eclesial e que, portanto, não se dedicaria a fazer a apologia desta, muito ao contrário.357 A autoridade de Flávio Josefo aí invocada é aquela do material forasteiro que incidentalmente, apenas por sua fidelidade às coisas como elas se deram, sustenta aquilo que já era considerado verdadeiro pelos crentes graças aos testemunhos – absolutamente engajados – daqueles que os precederam na fé.358 Com este explícito propósito o judeu de Roma359 é citado em pelo menos vinte e uma ocasiões: para confirmar ou 354 Cf. Id. Ver. cit. Marcos 13, 1-23. pp. 1778-1779 e nota correspondente, n. d, p. cit. 355 Cf. VV. AA. Flávio Josefo : Uma testemunha do tempo dos apóstolos. (Trad. I. F. Leal Ferreira; Rev. Josué Xavier). São Paulo: Paulinas, 1986. (Col. “Documentos do mundo da Bíblia”, n. 3). pp. 5-6. Raymond P. SCHEINDLIN. História ilustrada do povo judeu. (Trad. Miriam Groeger). Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. pp. 98-99. 356 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 5, 3. p. 28. 357 Do mesmo modo Eusébio de Cesaréia utilizou Fílon de Alexandria e aqueles historiadores pagãos que designa apenas como os que “transmitiram por escrito os acontecimentos daquele tempo [em que terminou o reinado de Domiciano e iniciou-se o de Nerva].” Cf. A. VELASCODELGADO. p. 58*. A citação que transcrevemos nesta nota foi retirada de: EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro III : 20, 8. p. 93. 358 Tal coisa é explicitada no interior de um contexto de debate apologético no Livro I : 11, 9: “(...) Quando um escritor saído dentre os próprios judeus transmite desde o começo em suas próprias obras estas coisas referentes a João Batista e a nosso Salvador, que subterfúgio resta aos que tramaram contra ele as Memórias, sem que fique evidente o seu descaramento?” Este texto que Eusébio aí critica confrontando-o não apenas com dados evangélicos, mas principalmente com elementos extraídos da obra de Josefo, é mencionado pelo bispo de Cesaréia também no mesmo Livro I : 9, 3-4 e no Livro IX : 5 e 7, 1. Id. Op. cit. ps. 36, 39 e 302-303. 359 Expressão que consta no título de um livro de Mireille Hadas-Lebel que é uma apresentação geral bastante simples da vida e obra do mesmo historiador. Cf. Mireille HADAS-LEBEL. Flávio Josefo, o judeu de Roma. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 129 complementar informações históricas contidas nos Evangelhos e Atos dos Apóstolos que a Igreja da qual Eusébio é partícipe já assumiu como canônicos (I : 5, 3-6; I : 8, 1-16; I : 9, 1-2; I : 10, 1-6; I : 11, 1-9; II : 11; II : 12, 1-2), para demonstrar como ao tempo do nascimento de Jesus de Nazaré terminaram os monarcas por sucessão hereditária dos judeus e sobre eles começaram a reinar um estrangeiro (I : 6, 2-10), para introduzir um breve comentário sobre a vida e a obra de Fílon de Alexandria (II : 5, 1-5), para tratar dos infortúnios que se abateram sobre a nação judaica após a crucificação do Nazareno, da guerra contra Roma e dos sinais divinos que a teriam antecipado (II : 6, 3-8; II : 26; III : 5, 4-5; III : 6; III : 8, 1-9), para registrar a estranha morte de Herodes (II : 10), para contar da agitação na Judéia dos dias de Nero (II : 20 e 21), para tratar do martírio de Tiago e de suas conseqüências (II : 23, 18-24)360, para oferecer dados acerca do próprio Flávio Josefo, de sua obra e da maneira como este elenca os livros da Bíblia Judaica (III : 9 e 10), e para mencionar a profecia que o historiador hebreu proclamou diante de Vespasiano, dizendo que este governaria o mundo, e aplicála a Jesus Cristo (III : 8, 10-11). Mesmo se considerarmos este autor apenas quanto ao número de referências que lhe são explicitamente feitas na História Eclesiástica, portanto, podemos perceber o quanto ele aí foi retomado por Eusébio de Cesaréia. Tal enumeração, contudo, não esgota de forma alguma tudo que podemos dizer de referente a este intercâmbio – na verdade, diz pouco além daquilo que é evidente a leitores minimamente atentos. Para prosseguirmos a bom termo, é necessário determo-nos um pouco mais neste assunto. É quase supérfluo repetir aqui alguma coisa acerca do percurso biográfico de Flávio Josefo, dado que este autor, menor dentro da constelação de historiadores que lhe eram contemporâneos, foi resgatado do esquecimento, sobrevalorizado e perscrutado quase à exaustão por numerosos pensadores da 360 No Livro II : 23, 20 de sua História Eclesiástica, Eusébio de Cesaréia menciona um trecho de Flávio Josefo – “(...) Isto [o assédio de Jerusalém pelas legiões comandadas por Vespasiano] sucedeu como vingança por Tiago, o Justo, irmão de Jesus, o chamado Cristo, porque exatamente os judeus o mataram, ainda que fosse um homem justíssimo” – que os especialistas desconhecem constar nos manuscritos deste autor. O prelado cristão não cita neste ponto, ao contrário de seu costume, o título da obra à qual faz referência, de modo que fica em aberto a questão de decidir se Eusébio preservou uma valiosa frase de um trabalho de Josefo que não chegou até nós, se ele a recolheu de outro autor, como Hegesipo, Orígenes (que também diz utilizar notícias registradas pelo historiador judeu acerca da morte de Tiago) ou algum anônimo florilégio, ou se a inventou pura e simplesmente, uma interpolação cristã que buscou de maneira oportunista valer-se da autoridade que, no plano da obra, deu-se ao textus receptus. Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. p. 72 e nota correspondente, n. 167. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 111, n. 200. 130 maior importância nos séculos que lhe separam de nós – e, curiosamente, de um modo muito especial no mundo moderno, que se põe a buscar obras alternativas para entender, para defender ou para criticar o legado que nos foi deixado pelos primeiros séculos da Era Cristã. Por outro lado, considerando-se que não é tão bem conhecido entre nós como Heródoto ou Tucídides, e que pode mesmo vir a guardar algumas simetrias quanto à sua vida com Eusébio de Cesaréia, que é aqui o foco de nossa reflexão, uma breve consideração acerca de sua trajetória pessoal e obras faz-se necessário para que prossigamos a bom termo. José ben Matias deve ter nascido em meados da década de 30 da Era Cristã. Os mais marcantes eventos de sua formação foram possivelmente o período que passou no deserto envolvido em rudes exercícios espirituais sob a orientação de um asceta de nome Bannus – que certas pessoas erradamente viriam a associar com João Batista e com os autores dos chamados Manuscritos do Mar Morto – e uma visita que fez em tempos pacíficos à capital do Império. Com trinta e tantos anos de idade liderou na Galiléia a revolta judaica contra os romanos. Refugiado em uma cisterna, foi de algum modo convencido a se render e, através de um macabro subterfúgio, conseguiu se desvencilhar de seus companheiros e o fazer. Pouco a pouco passou de prisioneiro a aliado dos seus captores, e nesta condição exortou (sem sucesso) seus antigos correligionários a deporem as armas, afirmou que César Augusto era o Messias referido nas escrituras religiosas dos judeus, e predisse que Vespasiano, general que o venceu, herdaria o Império. Finda a guerra, mudou-se para Roma, foi feito cidadão, e acrescentou ao seu nome já latinizado (Josefo) o da família de seus protetores (Flávio); parece também que recebeu um estipêndio de um importante arquivo público romano e chegou a ser homenageado ainda em vida com uma estátua na mesma cidade.361 É quase certo que sobreviveu a Domiciano e faleceu durante o reinado de Trajano, no final da segunda década do século II. Não renegou jamais o judaísmo – ao contrário, a todo tempo afirmou orgulhosamente provir de uma família sacerdotal (por parte 361 A única referência que temos acerca desta estátua erguida pelos romanos para homenagear este autor que anteriormente os combateu como líder guerrilheiro é feita justamente por Eusébio de Cesaréia no Livro III de sua História Eclesiástica. Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro III : 9, 2. p. 88. Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 141, n. 73. 131 de pai) e ser da linhagem dos Asmoneus (por parte de mãe) –, mas o releu à luz de seu pragmatismo político.362 Como pensador dedicou-se, de maneira geral ao estudo e narrativa da história dos judeus; em um primeiro momento, limitou-se a tratar dos eventos relativos à guerra de 67-70, ampliando gradativamente a sua análise para cobrir toda a história judaica que, em seus próprios termos, retrocede logicamente ao Dilúvio, a Adão e Eva, moldados sem pecado a partir do pó do Éden, e aos seis inequívocos dias hebreus, de ocaso a ocaso, nas quais, segundo o Gênesis, Deus criou todas as coisas visíveis e invisíveis. Estando, como no dito popular, em Roma como os romanos, compôs os sete livros de seu Bellum Judaicum, onde afirmou que a desunião dos judeus foi o que os levou à destruição: por causa desta, Deus os teria castigado, dando aos seus inimigos, vindos de outra margem do Mediterrâneo, o poder de submetê-los. Neste trabalho, cuja edição original em aramaico desapareceu, Josefo relatou principalmente os acontecimentos que testemunhou e nos quais participou, mas remontou ao passado para esclarecê-los, até tematizar a revolta dita dos Macabeus. Desgostoso do desprezo que a intelligentsia greco-latina nutria em relação aos judeus e suas tradições363, redigiu 362 Cf. VV. AA. 1986. p. cit. Vicente DOBRORUKA. “Historiografia helenística em roupagem judaica: Flávio Josefo, história e teologia.” In: Fábio Duarte JOLY (org.). História e retórica : Ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007. pp. 119-121. 363 No tempo de Flávio Josefo – ou seja, na passagem do século I ao II, e daí em diante – é bom observar. Alguns autores gregos da época das conquistas de Alexandre Magno demonstraram admiração pelos judeus, comparando-os aos brâmanes do Hindustão e descrevendo-os como uma nação de filósofo, talvez porque as suas restrições alimentares lembrassem ao mundo helênico o ascetismo pitagórico e porque as leis da Torá impressionavam-nos como uma tentativa de concretizar pela codificação legal de todas as circunstâncias cósmicas e humanas uma utopia política e religiosa. Mais tarde, escritores romanos chegaram a elogiar os judeus por adorarem Javé, que, ao estilo da boa tradição herodotiana dos estudos comparativos da religião, achavam ser o mesmo que Júpiter; alguns enalteceram a sua elevada cultura jurídica (chegando ao ponto de destacarem Moisés como filósofo e legislador e o equipararem a Sólon) e o fato de proibirem imagens de cunho religioso. Alguns elementos intelectualizados mais independentes sentiram-se atraídos pelo judaísmo ao ponto de submeterem-se ao doloroso rito da circuncisão – inclusive um primo-irmão do imperador Domiciano – e não poucos outros adotaram alguns de seus costumes, como acender lamparinas em honra do Sabá, freqüentar as sinagogas e observar alguns de seus preceitos, sem, entretanto, excluir de suas vidas os deuses que foram ensinados a venerar e os rituais que lhes eram associados. Estes personagens singulares, às vezes ridicularizados pela conservadora e sofisticada elite cultural greco-latina, postos entre um mundo e outro em um sentido muito diverso daquele em que Josefo estava, vieram a ser conhecidos como sendo “tementes a Deus”. Até os mais tolerantes etnógrafos do helenismo tardio, entretanto, mencionam com desagrado certas práticas judaicas como a circuncisão, que encaravam como uma arbitrária e perigosa mutilação, e a recusa de comer porco, animal particularmente valorizado pelos romanos, tanto para a comida como para o sacrifício. No contexto das revoltas judaicas contra o governo romano e de um crescimento bastante considerável no número de simpatizantes que a fé hebraica conquistou entre a classe alta romana, estes tradicionais pontos de incompatibilidade tematizados 132 uma obra em vinte volumes intitulada Antiguidades Judaicas, onde argumentou que as crenças e costumes de seu próprio povo eram mais antigos que os dos gregos, e pelo menos tão veneráveis quanto estes. Pelas mãos de Josefo, a história dos judeus se tornou explicitamente um tipo de história universal364, não pela abrangência geográfica e global relevância sócio-política, econômica e militar de eventos interligados (como a definiria Políbio), nem pela exaustão cronológica (como pretendia Éforo), mas pelo fato dela principiar com a criação do mundo e se vincular com as origens de todos os povos existentes, ligando-se de modo cada vez mais íntimo aos eventos ocorridos no resto do mundo após o Exílio Babilônico, e insinuando-se até um ponto no horizonte escatológico onde pela ação de Deus se tornaria o lócus da consumação ótima de toda a existência humana.365 Consciente disto, o autor tem em alta conta a sua obra, e incorre mais de uma vez na desagradável vanglória – também manifesta por Tucídides e por pela literatura helenística foram ampliados mais e mais pelos propagandistas políticos, até o ponto de a pregação antijudaica tornar-se um tema freqüente nos tratados da intelligentsia greco-latina. Mais ou menos na segunda metade do século II, por exemplo, já era senso comum entre os autores não-judeus que no Templo de Jerusalém se adorava uma cabeça de jumento ou de porco, e que quando de sua invasão pelo monarca selêucida Antíoco IV lá foi encontrado um cidadão grego que estava sendo engordado em preparação de um sacrifício humano anual. Cf. R. P. SCHEINDLIN. Op. cit. ps. 98 e 107-108. 364 Ainda que se deva lembrar que ele não foi o primeiro autor próximo do judaísmo a compor uma história universal: antes dele, o pagão Nicolau de Damasco, talvez um “temente a Deus", que alguns nos dão notícia de ter sido secretários de Herodes Antipas, escreveu uma em impressionantes cento e quarenta e quatro volumes. Infelizmente, esta sobrevive hoje só pelas citações que dela fez Flávio Josefo, e em verdade praticamente todo o material extra-bíblico que este historiador recolheu sobre a dinastia asmonéia e tudo o que ele mencionou sobre os herodianos foi extraído daí. Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 121-122 e nota correspondente, n. 5, p. cit. 365 Para chegar a esta última conclusão, Josefo, como em tantas outras coisas, se assenta em uma convicção judaica muito bem estabelecida, que pode ser auferida, por exemplo, nas belíssimas palavras do profeta Isaías, que se referindo a Jerusalém como símbolo de Israel, diz: “(...) Põe-te em pé, resplandece, porque tua luz é chegada, a glória de Iaweh raia sobre ti. Com efeito, as trevas cobrem a terra, a escuridão envolve as nações, mas sobre ti levanta-se Iaweh e a sua glória aparece sobre ti. As nações caminharão na tua luz, e os reis, no clarão do teu sol nascente. Ergue os olhos e vê: todos eles vêm a ti. (...) Então verás e ficarás radiante; o teu coração estremecerá e se dilatará, porque as riquezas do mar afluirão a ti, a ti virão os tesouros das nações. (...) Quem são estes que vêm deslizando como nuvens, como pombas de volta aos pombais? Em mim esperam as ilhas (...). Estrangeiros reedificarão teus muros, e os teus reis te servirão, pois que, se na minha cólera te feri, agora, na minha graça, me compadeci de ti. Tuas portas estarão sempre abertas, não se fecharão nem de dia nem de noite, a fim de que se traga a ti a riqueza das nações e seus reis sejam conduzidos a ti. (...) A glória do Líbano virá a ti, o zimbro, o plátano e o cipreste, todos juntos, para inundarem de brilho o lugar de meu santuário, e assim glorificarei o lugar em que pisam meus pés. Os filhos de teus opressores se dirigirão a ti humildemente; prostar-se-ão aos teus pés todos os que te desprezavam, e te chamarão ‘Cidade de Iaweh’, ‘Sião do Santo de Israel’. Em vez de seres abandonada e odiada, sem pessoa que passe pelo meio de ti, farei de ti eterno motivo de orgulho, motivo de alegria, de geração em geração. Sugarás o leite das nações, alimentar-te-ás das riquezas dos reis. E saberás que sou eu, Iaweh, que te salvo, que teu Redentor é o Poderoso de Jacó.” BÍBLIA. Ver. cit. Isaías 60, 1-4a.5.8-9a.10-11.13-16. pp. 1350-1351. 133 Políbio – de afirmar em alto tom ter composto uma narrativa absolutamente indispensável, que se detém naqueles eventos que são os mais singularmente importantes e decisivos do curso da história humana.366 Escrevendo como propagandista, como político e como crente, este pensador com os dois pés bem firmes em uma zona de interseção entre as visões de mundo helenística e judaica conscientemente enveredou-se pela apologia de sua obra e de si mesmo. Em um livro que chegou até nós sob o título de Contra Apião – muito importante também por preservar grande quantidade de referências e citações de autores que, em não poucos casos, só conhecemos pelas menções do próprio Josefo – defendeu a precedência hebraica e o caráter seminal de sua cultura contra os gregos de Alexandria que argumentavam que tais coisas eram falsas, pois não eram atestadas nas fontes documentais helênicas. A partir disto, aquele que fora José ben Matias se lançou em uma frenética busca e compilação de documentação extra que atestasse a veracidade de tudo o que já havia afirmado, registrando este esforço complementar em versões revisadas e ampliadas de suas obras que fez circular ainda enquanto vivia – a isto pretendemos fazer adiante nova referência. Como parte do mesmo movimento, redigiu também uma sua Vida (Autobiografia) para responder às contestações feitas por Justo de Tiberíades, antigo companheiro-de-armas e rival que afirmou que a participação de Josefo nos combates contra os romanos travados nas vilas, vales e montanhas da Galiléia fora insignificante e marcada pela atitude covarde.367 São estas as quatro obras que dele conservamos notícias, mas é de fato 366 367 Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 128. Vicente Dobroruka nos informa que embora Josefo não tenha sido o primeiro autor a nos fornecer dados autobiográficos, ele foi o primeiro a nos legar uma obra completa que tem por exclusivo tema a vida de quem a escreveu – e isso embora a biografia de si não ter sido jamais reconhecida na Antigüidade como um gênero literário autônomo. O mesmo autor observa também que pelos atuais padrões esta sua Vida seria considerada maçante e desigualmente proporcionada, centrada como está na experiência de José ben Matias como comandante de tropas guerrilheiras durante os estágios iniciais da revolta nacionalista de 67, e que, além disto, os fatos aí constantes realmente podem e devem ser lidos com cautela e mesmo colocados em xeque frente a outras fontes documentais que lhe eram contemporâneas, na medida em que “o personagem Flávio Josefo é notório por sua presunção e vanglória, o que coloca seus depoimentos sob suspeitas ainda mais fortes.” Posteriormente – mas ainda no final do século I, durante a vida do historiador hebreu – este texto foi acrescentado como um apêndice a uma nova edição das Antiguidades Judaicas. Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. pp. 119-120 e notas correspondentes, n. 3 e 4, p. cit. VV. AA. 1986. p. cit. Justo de Tiberíados compôs, além do panfleto contra Josefo – que conhecemos apenas pelas refutações tecidas por este autor – uma História da Guerra dos Judeus e uma Crônica dos Reis Judeus, hoje perdidas, às quais no século IX fez menção Fócio em sua obra intitulada Myriobiblon (ou Biblioteca). Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 144, n. 83. 134 bem pouco provável que tenha se dedicado a redigir apenas estas, se não mais, pela bem conhecida prolixidade dos historiadores e polemistas mediterrânicos dos séculos I e II.368 Toda a sua obra pode ser interpretada como uma tentativa de traduzir, de tornar aceitável a um público greco-latino culto e indiferente até o ponto da ocasional hostilidade a compreensão judaica da história, seus pressupostos e corolários, que ele mesmo de bom grado aceitava como parte da fé que havia recebido de seus pais. Para fazê-lo, Josefo seguiu o consagrado método de análise tucideano, ainda que divergisse deste em questões essenciais de pressuposto e de procedimentos de apresentação e verificação das provas capazes de comprovar (ou invalidar) sua narrativa. Em outros termos, como Tucídides, Josefo também buscou as causas profundas e gerais que subjaziam e determinavam a superficialidade e particularidade dos eventos, mas tal emulação esbarrou no crucial problema das distintas origens culturais que tornavam tão diverso o entendimento da natureza substantiva dos eventos e processos que se punham a descrever e examinar. Para termos um exemplo de tal circunstância, consideremos o fato de que “(...) Na perspectiva grega, e ainda segundo o modelo hipocrático para o entendimento da história, a falência do tecido político da cidade tal como descrita em Tucídides é conseqüência de um desequilíbrio interno, semelhante às doenças que afligem o corpo. Inversamente, o entendimento judaico da dissensão civil assemelha-se ao de sua correspondente noção de medicina, sendo as afecções da 369 sociedade e do corpo vistas como punição divina dos pecados.” 368 O autor da História Eclesiástica menciona aí uma outra obra de Josefo além destas: “(...) Há também uma outra obra escrita por ele, não sem nobreza, Sobre a supremacia da razão, que alguns intitularam Macabeus, porque contém as lutas dos hebreus valentemente sustentadas em defesa da piedade para com Deus e referidas nos escritos assim chamados Dos Macabeus.” EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro III : 10, 6. p. 89. Argimiro Velasco-Delgado afirma, baseado em estudo de A. Dupont-Sommer, que Eusébio equivoca-se em atribuir esta autoria a Josefo, tendo sido o Sobre a supremacia da razão composto por algum outro autor mais ou menos contemporâneo à revolta judaica de 67-70, talvez já depois do falecimento do autor de Bellum Judaicum. Alguns fragmentos remanescentes desta obra – da qual hoje não dispomos de nenhuma versão completa – aparecem agrupados em algumas edições da Septuaginta sob o título de IV Livro dos Macabeus. 369 V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 122 e notas correspondentes, n. 6-8. Para um exemplo do entendimento judaico das origens da doença (e, por conseguinte, da cura), ver, por exemplo, Deuteronômio 28, 15-16.21-23.26-27-29a.34-35.45-46: “(...) Todavia, se não obedeceres à voz de Iaweh teu Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus mandamentos e estatutos que até hoje te ordeno, todas estas maldições virão sobre ti e te atingirão: Maldito serás tu na cidade, e maldito serás tu no campo! (...) Iaweh enviará contra ti a maldição, o pânico e a ameaça em todo 135 Dada esta divergência basilar, observemos, para empiricamente verificá-la, por exemplo, como o historiador hebreu copia e re-significa o conceito tucidideano de stasis como chave-de-leitura que possibilita a compreensão dos eventos que levaram à guerra de 67 e ao desastre final judaico. Em Tucídides o vocábulo stasis significa basicamente “discórdia” e é associado às noções de degradação da comunidade política, sedição, convulsão popular, e, ocasionalmente, guerra civil; vincula-se ainda às imagens do miasma e implica uma degeneração coletiva, análoga a uma doença que se propaga até tomar conta de um corpo em função de um desequilíbrio dos seus humores ou da permanência do indivíduo em um ambiente demasiado hostil. Em Josefo inicialmente ele surge para caracterizar a ação desagregadora que um determinado grupo de radicais e exploradores tem no interior do tecido social hierosolimitano (Bellum Judaicum), mas servirá também para que este autor tentasse tornar inteligíveis ao leitor versado na historiografia greco-latina numerosas passagens dos livros históricos da tradição judaica que abordam o tema da discórdia civil, da desordem jurídica ou da conflagração entre nações próximas ou distantes. A sedição de Coré, Datã e Abiram contra Moisés, e suas conseqüências – o chão que se abre para engolir alguns dos rebeldes, o fogo que desce do céu para consumir outros, uma praga que se alastra entre os que lamentam suas mortes e que mata catorze mil e setecentas pessoas antes de cessar por ocasião de um oferecimento expiatório de incenso (episódios narrados em Números 16, 1-35.17, 1-15) –, são, para nos atermos a um único caso, um dos temas bíblicos que este autor (em Antigüidades Judaicas 4 : 13, 32) apresenta como stasis.370 Ora, não há nada mais distante do uso deste empreendimento de tua mão, até que sejas exterminado, até que pereças rapidamente por causa da maldade de tuas ações, pelas quais me abandonaste. Iaweh fará com que a peste se apegue a ti até que te elimine do solo em que estás entrando, a fim de tomares posse dele. Iaweh te ferirá com tísica e febre, com inflamações, delírio, secura, ferrugem e mofo, que te perseguirão até que pereças. O céu sobre tua cabeça ficará como bronze, e a terra debaixo de ti como ferro. (...) Teu cadáver será o alimento de todas as aves do céu e dos animais da terra, e ninguém os espantará. Iaweh te ferirá com úlceras do Egito, com tumores, crostas e sarnas que não poderás curar. Iaweh te ferirá com loucura, cegueira e demência; ficarás tateando ao meio-dia como o cego que tateia na escuridão, e nada será bem sucedido em teus caminhos. (...) Enlouquecerás com o espetáculo que os teus olhos irão ver. Iaweh te ferirá com uma úlcera maligna nos joelhos e nas pernas, de que não poderás sarar, desde a sola dos pés até o alto da cabeça. (...) Essas maldições todas virão sobre ti e te perseguirão e te atingirão, até que sejas exterminado, porque não obedeceste à voz de Iaweh teu Deus, observando os mandamentos e estatutos que ele te ordenou. Elas serão um sinal e um prodígio contra ti e tua descendência para sempre.” BÍBLIA. Ver. cit. pp. 292-293. 370 Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 124. Para uma exegese contemporânea deste episódio bíblico, ver: Vicente ARTUSO. A revolta de Coré, Datã e Abiram (Nm 16-17) : Análise estilísticonarrativa e interpretação. São Paulo: Paulinas, 2008. (Col. “Exegese”). 136 conceito por Tucídides, onde as causas e o contexto da desagregação política são, se não de forma absoluta, essencialmente leigos: ainda que na vida pólis religião e política tenham sido sempre indissociáveis – pensemos no processo de Sócrates, pensemos no episódio da mutilação das estátuas de Hermes postas nas encruzilhadas, pensemos na eleição por todos os cidadãos dos oficiantes de certos ritos dedicados à deusa Atenas – na obra deste historiador a ação divina de qualquer ordem não é de forma alguma considerada como elemento ativo na degradação da comunidade. Em Josefo, ao contrário, a questão da ofensa a Deus e suas implicações é a pedra-de-toque que sustenta toda narrativa acerca das instabilidades e rupturas políticas, de modo que ele aplica o conceito de statis para fazer referência indiferentemente aos dias de Noé, ou de Abraão ou de si próprio.371 As linhas mestras pelas quais se organiza a historiografia de Josefo, ou seja, a maneira pela qual ele apreende, seleciona e organiza discursivamente os eventos humanos são: a. A crença de que o sentido da história humana é dado por Deus; b. A convicção de que este sentido foi apreendido pelos profetas; c. A opinião de que a interpretação errônea dos sinais dados por Deus quanto ao sentido da história foi o que levou a desastres como a destruição de Jerusalém em 70; d. A percepção de que Deus, que ele acredita ser o Senhor da História, tem o poder de deslocar conforme a sua vontade o foco de seu favor dos judeus para outros povos, o que teria de fato, segundo este autor, ocorrido em relação aos romanos. Tais itens confundem-se, além disso, com a biografia do próprio historiador, que encontrou neles, conscientemente ou não, justificativa para a sua 371 Shimon Applebaum demonstrou que mesmo as causas econômicas mais chão-a-chão que Flávio Josefo apresentou como tendo precipitado o conflito aberto entre judeus e romanos nos anos de 67-70 foram apreendidas e formuladas por este autor sob o peso de tradicionais formulações de ordem religiosa. Cf. Simon APPLEBAUM. “Josephus and the Economic Causes of Jewish War”. In: Louis FELDMAN e Gohei HATA (orgs.). Josephus, the Bible and History. Detroit: Wayne State University Press, 1989. Apud: V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 126, n. 20. 137 vantajosa acomodação ao jugo romano.372 Afora a heterodoxia de afirmar que os judeus poderiam deixar de ser temporária ou definitivamente, de acordo com a vontade de Deus, o Seu povo eleito – opinião que os seguidores de Jesus, correndo em raias diversas, logo expandiriam até o pleonasmo ao conceberem a Igreja como sendo efetivamente um “novo Israel” que pretende ter como limites últimos todas as pessoas de todas as nações –, de um modo geral, a obra historiográfica de Josefo se desenvolveu rigorosamente de acordo com os termos da tradição judaica hegemônica de sua época, elaborada a partir da reforma promovida por Rabi Jochanan ben Zaccai a partir da escola de Jabné, o que significa dizer que ele resgata e revitaliza a concepção deuteronômica da história como relação didática de Deus com o povo judeu dentro do padrão ensinoaprendizagem-erro-punição-arrependimento-perdão, e harmoniza o papel da Providência divina com o livre-arbítrio atribuindo as desgraças do mundo às calamidades geradas pelo eterno conflito do homem contra o homem e por sua desobediência à Lei que lhe foi dada pelo Criador.373 Ciente de que era um fiel não obstante não tenha hesitado em argumentar diante de Vespasiano que era ele o monarca que deveria partir do Oriente para governar todo o mundo – tema que também aparece na obra de Virgílio e nos Oráculos sibilinos374 – pretendeu, além de tudo o mais, apresentar-se aos seus correligionários como um profeta, ou seja, como um daqueles homens que foram especialmente inspirados por Deus para compreender os Seus sinais nos acontecimentos humanos, e, portanto, o verdadeiro sentido destes, caóticos e arbitrários a um observador tão desatento quanto profano. Em sua Autobiografia, são explícitos os paralelos com as vidas de Isaías, Ezequiel, Eliseu, Daniel e Jeremias: “o episódio da pedrada recebida pelo 372 Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. pp. 128-129. A respeito disto, veja-se, por exemplo, Bellum Judaicum 3, 352-354: “(...) subitamente vieram à sua mente aqueles sonhos noturnos, nos quais Deus lhe tinha revelado o destino iminente dos judeus e dos soberanos romanos. Ele [Josefo] era um intérprete de sonhos e hábil em adivinhar os proferimentos ambíguos da divindade; ele mesmo era sacerdote, e descendente de sacerdotes, e ele não ignorava as profecias dos livros sagrados. Naquele momento teve e inspiração de ler seu significado, e, lembrando-se das imagens recentes de sonhos terríveis, rezou em silêncio a Deus. ‘Já que Te agrada’, ele disse, ‘a Ti que criaste a nação dos judeus, destruir a Tua obra, já que a fortuna passou para os romanos, e já que Escolheste meu espírito para anunciar o que está por vir, rendo-me de boa vontade aos romanos e me permitirei viver; mas És testemunha de que não vou como traidor, mas como teu ministro.” Citado em: Id. Op. cit. p. 130. 373 Solução que, aliás, é muito semelhante ao que seria depois postulado pela teologia rabínica e por um considerável número de Padres da Igreja. Cf. Ibid. Op. cit. p. 129. 374 Sobre os Oráculos Sibilinos, ver: B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. pp. 128-129. A. LESKY. Op. cit. p. 839 e notas correspondentes, n. 6-7, p. 844. 138 historiador quando exortava os judeus à rendição do lado de fora das muralhas de Jerusalém é deliberadamente interpretado por Josefo como paralelo entre ele mesmo e Jeremias (Jr 38 : 3-4 ss).”375 Um erudito que de bom grado fez a apologia do status quo que o beneficiava, Josefo, entretanto, buscou apresentar-se não exatamente como um homem de letras, mas como um homem imbuído da autoridade de dissertar sobre as coisas porque as presenciou e como uma voz que clamava no deserto. Servindo-se da tradição leitora do mito dos impérios mundiais presente tanto dentro (Livro de Daniel) quanto fora (Quarto Livro de Esdras, Livro III dos Oráculos Sibilinos) do cânone da Bíblia Judaica e não ignorando os apocalipses e textos pseudo-epigráficos compostos em seu próprio tempo, este historiador em momento algum demonstrou ceticismo quanto à possibilidade de a história humana ter um sentido redentor, mas, ao contrário, argumentou que a ação de Deus em favor dos seus é perceptível justamente quando as conjunturas contrariam – ou melhor, quando aparentam contradizer – os interesses imediatos de seu povo eleito. Ao contrário dos autores de oráculos, entretanto, tratou da análise específica de eventos particulares e não dos acontecimentos humanos em termos gerais compreendidos quase que absolutamente por um esperançoso e mobilizador viés escatológico. Acerca disto, deve-se considerar que “(...) Um texto historiográfico, ainda que não tenha como se isentar de concepções metahistóricas, religiosas ou seculares, apóia-se [ou pretende se apoiar] nas evidências de que o historiador dispõe e que lhe impõem limites. Neste sentido, não há como considerar Josefo, Daniel ou o Apocalispse siríaco de Baruch como semelhantes.”376 375 376 Cf. V. DOBRORUKA. Op. cit. p. 131. Id. Op. cit. p. 133. Após isto, informa o mesmo autor que “(...) Uma tentativa particularmente desastrada nesse sentido [de aproximar sem maiores cuidados a obra de Flávio Josefo da literatura apocalíptica que lhe era contemporânea] foi feita por Pierre Vidal-Naquet, o qual afirma que o discurso de Eleazar bem Yair aos defensores de Masada (última fortaleza a ceder aos romanos), tema do último livro de Bellum Judaicum, seria um apocalipse. O discurso consiste em uma longa e erudita exortação ao suicídio, tido por Eleazar como preferível à desonra da captura; sob qualquer ângulo que se analise, um típico discurso da historiografia antiga. Não se tem como levar a sério a afirmação de Vidal-Naquet – a menos que esvaziemos o termo ‘apocalipse’ de qualquer significação precisa, e o utilizemos em sentido vulgar. Nesse caso, qualquer texto de tom mais sombrio passa a ser um ‘apocalipse’; tal é a conseqüência lógica do raciocínio de Vidal-Naquet, que, no entanto, admite a semelhança essencial do discurso de Massada com outros da historiografia antiga.” Ibid. Op. cit. pp. 134-135 e notas correspondentes, n. 35-36, p. cit. 139 Louvável foi o esforço do autor de Antiguidades Judaicas em fazer apresentar uma série de obras historiográficas que atendessem às exigências do culto público helênico (e judeu-helênico, inclusive), tentando para este intento fazer dialogar a autoridade do informante de primeira-mão, a referência erudita a provas documentais e conceitos tão diversos como stasis, Providência Divina e messianismo. Apesar disto, entretanto, foi virtualmente ignorado tanto pelos leitores oriundos do mundo greco-latino – a citação que Suetônio faz a Josefo na sua Vida dos Doze Césares ao tratar do governo de Vespasiano é definitivamente a exceção, não a regra – quanto pelos que estavam bem assentados na tradição judaica, que ou o consideraram um traidor indigno de crédito e mesmo de atenção, ou o receberam de modo muito imprevisto (e mesmo enviesado), como se tivesse sido um redator de panfletos que exortavam os remanescentes de Israel à piedade religiosa e à resistência cultural. A respeito deste último juízo, deve-se considerar que ele ocasionou fenômenos editoriais de difícil explicação, como o fato de o único manuscrito completo do Apocalipse siríaco de Baruch de que dispomos atualmente estar apresentado em um códice (dito Ambrosiano) junto do Livro VI do Bellum Judaicum, que trata da queda de Jerusalém e que aí está intitulado de Quinto Livro dos Macabeus. Com o mesmo espanto, pode-se constatar de que um dos mais populares textos que circulavam entre os judeus da Europa do Medievo era o chamado Sefer Iosippon, um comentário anônimo e piedoso da obra de Flávio Josefo redigido no estilo das interpretações esotéricas compostas por numerosos rabinos pelo menos desde a primeira metade do século II sobre o primeiro capítulo do Livro do Gênesis (as Ma’aseh Bereshit) e sobre o primeiro capítulo do Livro de Ezequiel (as Ma’aseh Merkabah). Sua posteridade como historiador, sua divulgação universal, e mesmo sua respeitabilidade, foi garantida e catapultada quase que unicamente pelo uso que fez de sua obra o pensamento patrístico. Muitos foram os pesquisadores modernos que enfatizaram os limites dos trabalhos de Josefo – seu pouco rigor cronológico, seu exagero nos números referentes a pessoas, seus evidentes preconceitos de classe, seus férreos compromissos políticos, e seu ímpeto irrefreável e constante de se justificar, se defender e se valorizar, mesmo que a expensas de provas documentais forjadas, ou ao menos de procedência um tanto quanto duvidosa –, mas importa-nos 140 considerar aqui não estes, e sim como certos pressupostos e estratégias discursivas deste autor influenciaram decisivamente a historiografia cristã posterior.377 Por tudo que já afirmamos anteriormente, tal coisa pode estar suficientemente evidente para alguns; para evitar equívocos quaisquer, entretanto, recorramos a um exemplo comparativo que é quase eloqüente em si mesmo. Em primeiro lugar, tomemos um exemplo de Flávio Josefo citado por Eusébio. Escreve o bispo de Cesaréia ainda no Livro II de sua História Eclesiástica: “(...) é conveniente dar uma olhada na resposta pelo atrevimento de Herodes contra Cristo e os meninos de sua idade. Imediatamente depois, sem a menor demora, a justiça divina o perseguiu quando ainda transbordava de vida e lhe mostrou o prelúdio do que o aguardava para depois de sua saída desta vida. Não é possível resumir agora as sucessivas calamidades domésticas com que se enevoou a suposta prosperidade de seu reino (...) O que se pode supor a respeito disso deixa à sombra qualquer representação trágica. Josefo o explica extensamente em seus relatos históricos. Mas sobre como um flagelo divino o arrebatou e ele começou a morrer já desde o momento em que conspirou contra nosso Salvador e contra os demais meninos, será bom escutar as palavras do próprio escritor, que no livro XVII de suas Antigüidades Judaicas descreveu o final catastrófico da vida de Herodes como segue: ‘A doença de Herodes fazia-se mais e mais virulenta. Deus vingava seus crimes. 377 Cf. Ibid. Op. cit. p. 134 e notas correspondentes, ns. 37-38, p. cit. Roland GOETSCHEL. Cabala. (Trad. Myriam Campbello). Porto Alegre: L&PM, 2009. (Col. “L&PM Pocket”, n. 780; Sub-col. “Encyclopædia”, n. 2). pp. 16-30. VV. AA. 1986. p. cit. Esta influência, contudo, não foi nada inocente e envolveu mesmo adulterações: os textos do historiador judeu preservados dentro das estruturas culturais da Cristandade divergem muito entre si e estão bastante corrompidos por interpolações. Parece os copistas cristãos responsáveis por toda sorte de pequenos rearranjos textuais que nos mencionados escritos podem ser verificados acharam o testemunho de Josefo um pouco sóbrio demais, talvez um pouco insuficiente, e resolveram enriquecê-lo. Assim devidamente cristianizada, a obra de Flávio Josefo foi amplamente difundida na Idade Média, tanto na sua antiga versão em grego quanto na célebre versão latina que foi preparada sob a direção de Cassiodoro. Levando-se em consideração a quantidade de manuscritos da Bellum Judaicum e das Antigüidades Judaicas que chegaram a nós que foram redigidos entre os séculos VIII e XVIII na região do norte da França e de Flandres, podemos auferir que se tratavam de trabalhos particularmente conhecidos e valorizados nesta região e período. Cf. F. BLATT (org.). The Latin Josephus. Aarhus: s.e., 1958. Vol. I. pp. 15-16. G. N. DEUTSCH. Iconographie et illustration de Flavius Josèphe au temps de Jean Fouquet. Leiden: s.e., 1968. p. IX (mapa). Apud: C. GINZBURG. Op. cit. p. 213 e nota correspondente, n. 6 ao cap. 11, p. 406. Deve-se notar ainda que a relevância – se não a autoridade – de Josefo também se fez sentir ocasionalmente em alguns ambientes devocionais cristãos, especialmente em meios monásticos. Temos notícias de que, por exemplo, extratos de seus textos faziam parte das leituras pessoais e litúrgicas prescritas durante a Quaresma no mosteiro de Corbie por volta de 1050. Cf. A. WILMART. “Le couvent et la bibliothèque de Cluny vers le milieu Du XIè siècle”. In: Revue Mabillon, s.l., n. 11, 1921. pp. 89124 (especialmente ps. 93 e 113) Apud: C. GINZBURG. Op. cit. p. cit. e nota correspondente, n. 7 ao cap. 11, p. cit. 141 Com efeito, era um fogo suave que não denunciava ao tato dos que o apalpavam um abrasamento como o que por dentro aumentava sua destruição; e logo uma vontade terrível de comer algo, sem que nada lhe servisse, ulcerações e dores atrozes nos intestinos, e sobretudo no ventre, com inchaço úmido e reluzente nos pés. Em torno do baixo-ventre tinha uma infecção parecida; mais ainda, suas partes pudentas estavam podres e criavam vermes. Sua respiração era de uma rigidez aguda e extremamente desagradável pela carga de supuração e por sua forte asma; em todos os membros sofria espasmos de uma força insuportável. O certo é que os adivinhos e os que têm sabedoria para predizer estas coisas diziam que Deus estava fazendo-se pagar pelas muitas impiedades do rei.’ Isto é 378 que o autor citado anota na mencionada obra.” Agora, consideremos um trecho que Eusébio redige na qualidade de testemunha dos acontecimentos de seu próprio tempo.379 No décimo sexto capítulo do nono Livro de sua História Eclesiástica, este autor descreve como se foi atenuando até se encerrar a perseguição aos cristãos iniciada por Diocleciano e continuada por Galério: “(...) assim que a graça divina e celestial começou a mostrar uma preocupação benévola e propícia para conosco, também nossos governantes, aqueles mesmo que nos haviam feito a guerra, mudaram milagrosamente de pensamento (...), extinguindo mediante editos favoráveis e ordens cheias de suavidade a fogueira da perseguição, que havia alcançado tal amplidão. Mas a causa desta mudança não foi algo próprio dos homens, nem como alguém poderia dizer, compaixão ou humanidade dos governantes, nem muito menos, já que eles mesmos eram os que cada dia, desde o começo até esse momento, imaginavam mais e piores suplícios contra nós, renovando constantemente, umas vezes de um modo e outras de outro, com diversas invenções, os maus-tratos que nos infligiam. Foi mais evidentemente uma visita da própria providência divina, que reconciliou o povo consigo, atacou o perpetrador de nossos males [i.e., César Galério] e descarregou sua ira sobre [este] líder da maldade e de toda a perseguição, já que, ainda que isto houvesse de ocorrer por juízo de Deus, não obstante a Escritura diz: Ai daquele por quem venha o escândalo! Alcançou-o, pois, um castigo divino que, começando por sua própria carne, avançou até a sua alma. Efetivamente, de repente saiu-lhe um abcesso em meio às partes secretas de seu corpo, e logo uma chaga fistulosa em profundidade. Sem possibilidades de cura, foram-lhe corroendo até o mais fundo das entranhas. Dali brotava um ninho de vermes e exalava um fedor mortal, já que a massa de suas carnes, produzida pela abundância de alimento e transformada já antes da enfermidade em uma quantidade excessiva de gordura, ao apodrecer então, oferecia o aspecto mais 380 insuportável e espantoso aos que se aproximavam.” 378 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 8, 3-8. p. 34. 379 Cf. Id. Op. cit. Livro VIII : Prólogo. p. 273. 380 Ibid. Op. cit. Livro VIII : 16, 1-4. p. 293. 142 Estamos inequivocamente diante de textos parecidos. Os padecimentos de Herodes e Galério aí retratados são semelhantes tanto quanto ao estilo de sua redação – estilo que remete a um procedimento vétero-testementário comum, que é o da enumeração ou conglobação – quanto no relativo a seus conteúdos objetivos e causa primeira. Um e outro cometeram violência contra determinado grupo de pessoas querido por Deus, e assim perpetraram um crime contra Ele mesmo; a resposta divina, muito longe das preleções sobre misericórdia e amor desinteressado mesmo aos inimigos, é rápida, brutal e inescapável. Intermináveis agonias os esperam no outro mundo, mas isto não basta: é necessário que eles sofram ainda em vida, na carne, as primícias do que serão os seus sofrimentos espirituais post-mortem, não – ou não apenas – por uma disposição sádica de uma Inteligência Infinita ou por uma Inefável raiva, mas para que este suplício seja testemunho do que ocorre com os maus aqui e além, para que antes que passem para os sofrimentos eternos fique evidente a todos os que foram por ele ultrajados e todos os que com ele colaboraram o quão torpe e horrendo é o destino dos que se dispõem a fazer guerra contra o Senhor. Tudo neles recende a dor a asco: reaparecem os divinos castigos lançados contra os egípcios e aqueles males que o Deutoronomista reconhece como sinal certo do desagrado de Deus contra o que deles padece; aquelas partes de suas anatomias que os raios do sol nunca tocaram são tomadas por feridas e podridão e delas brotam miríades de vermes e insuportáveis cheiros; seus corpos já inchados pelos prazeres da boa mesa, em um caso, exigem ser saciados, em vão, com mais e mais alimento, e, em outro, deformam-se e oferecem horrível espetáculo aos que o vêem: parecem estar a ponto de rebentarem-se em calor, em sangue e pus, com se de repente esses tivessem se tornados porosos e começassem a deixar passar, em matéria, as trevas que antes apenas continham dentro de si mesmo, como se o próprio inferno estivesse em seus estômagos e forçasse a saída. A carne de Herodes e Galério não é apenas uma referência necessária por tratar-se de seres humanos – e, portanto, seres corpóreos –, não é um artifício retórico, mas o local onde se concretiza de modo inequívoco um juízo divino. Com a naturalidade de um Clive Barker – mas com distintos propósitos – Eusébio de Cesaréia apresenta estas verdadeiras liturgias punitivas, que não pretendem purgar crime algum – são antecipações, não atenuações –, mas traçar no corpo destes condenados 143 “(...) sinais que não se deve apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a lembrança da exposição, (...) do sofrimento devidamente constatado. E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo. O próprio excesso das violências cometidas é uma das peças de sua glória: o fato de o culpado gemer ou gritar (...) não constitui algo de acessório ou vergonhoso, mas é o próprio cerimonial da justiça que se manifesta em sua força. Por isso sem dúvida é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte [neste caso, em sentido percebido como muito literal] (...). A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento 381 possível.” Como interpretar a existência de tantas analogias significativas entre o texto de Eusébio e o texto de Josefo transcrito por Eusébio? Disto devemos supor pura e simplesmente uma convergência dos fatos? Ora, não há nada que nos impeça de fazê-lo, a não ser probidade intelectual e um ceticismo demasiado cultivado. Afora o inverificável fator transcendente envolvido em ambas as narrativas – e que é enfatizado na segunda delas pela paráfrase que combina Lucas 16, 1 e 22, 21 –, uma pesquisa poderia ser empreendida para que, na análise de outras séries documentais do período, pudéssemos estabelecer a verossimilhança da morte de Galério segundo Eusébio de Cesaréia (e de Herodes Antipas segundo Flávio Josefo). Isto, contudo, exigiria um tempo e erudição de que definitivamente não dispomos e, além do mais, não é absolutamente importante para os nossos propósitos atuais: basta-nos verificar a presença de um topos historiográfico comum sobre o qual se articulam ambas passagens.382 Disto não decorre necessariamente que o bispo de Cesaréia tenha simplesmente urdido uma mentira, ou coisa assim. Acerca disto o melhor que temos a fazer é suspender os juízos de valor mais contundentes, seguramente ditados mais pelos preconceitos que pelos textos, e nos atermos ao que no momento tivemos a ocasião de verificar: a influência, tanto ao nível dos conteúdos narrados quanto no do estilo da narrativa, 381 Michel FOUCAULT. Vigiar e punir : Nascimento da prisão. (Trad. Raquel Ramalhete). (31ª ed.). Petrópolis: Vozes, 1987 (2006). pp. 31-32. 382 A hipótese de que em inúmeras passagens de sua obra Josefo se utilizou mais de topoi narrativos recorrentes na tradição historiográfica tanto greco-latina quanto judeu-helênica e tradicional judaica do que de testemunhos em primeira mão ou pesquisas documentais foi aguda e cautelosamente formulada por Pierre Vidal-Naquet, que chegou a tal conclusão, grosso modo, partindo de uma análise comparada das narrativas consignadas na Bellum Judaicum sobre a capitulação dos sobreviventes de Jotapata e a captura dos de Massada. Cf. Pierre VIDALNAQUET. “Flavius Josèphe et Masada”. In: Les Juifs, la mémoire, le présent. Paris: s.e., 1981. Apud: C. GINZBURG. ps. 212 e nota correspondente, n. 5 ao cap. 11, p. 406. 144 das obras históricas de Flávio Josefo sobre a História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia.383 383 Não se pode dar por bem resolvida, ainda que muito modesta e provisoriamente, nenhuma discussão sobre a influência de Flávio Josefo na obra de Eusébio de Cesaréia sem mencionar o ilustre testimonium flavianum, transcrito no Livro I (11, 7-8) da História Eclesiástica. A controversa passagem, que consta em todas as cópias das Antigüidades Judaicas produzidas em meios cristãos depois da difusão da História Eclesiástica, é a seguinte: “Depois de [Josefo] explicar tudo isto a respeito de João [Batista], na mesma obra histórica menciona também nosso Salvador nos seguintes termos: ‘Por este mesmo tempo viveu Jesus, homem muito sábio se é que de homem devemos chamá-lo, porque realizava obras portentosas, era mestre dos homens que recebiam com prazer a verdade e atraiu não somente muitos judeus, mas também muitos gregos. Este era o Cristo. Havendo-lhe infligido Pilatos o suplício da cruz, instigado por nossos líderes, os que primeiro o haviam amado não cessaram de amá-lo, pois ao fim de três dias novamente apareceu-lhes vivo. Os profetas de Deus tinham dito estas mesmas coisas e outras incontáveis maravilhas sobre ele. A tribo dos Cristãos, que dele tomou o nome, ainda não desaparece até hoje.” (pp. 38-39 na edição em português que utilizamos). Para Argimiro Velasco-Delgado a inserção desta passagem no conjunto do texto da História Eclesiástica é coerente, mas marcada por sinais inequívocos da insegurança de Eusébio quanto à sua autenticidade. De um modo geral, ela seria uma resposta às problemáticas sobre a vida de Jesus postas na ordem do dia pelas chamadas Memórias de Pilatos – em seguida explicitamente mencionadas (I : 11, 9) –, e também um apêndice às referências que Josefo faz em sua obra a João Batista. De fato, para o cristianíssimo Eusébio seria uma indignidade que tão estimado autor seu tivesse mencionado o primo menos importante do Salvador e não o próprio. Estritamente não há condições de avaliar de forma precisa se o bispo de Cesaréia inventou pura e simplesmente esta referência, ou se a encontrou no texto das Antigüidades Judaicas que consultou. Sobre esta segunda hipótese, deve-se considerar que a terminologia aí aplicada para retratar Cristo é muito arcaica, não utilizada em virtualmente em nenhum ambiente cristão dos séculos III e IV, e também o fato de que Orígenes, sem o citar in extenso, mencionou Flávio Josefo como um dos não cristãos que testemunhavam o ministério, as condições da morte e a ressurreição de Jesus Cristo em seus escritos. Estas duas circunstâncias bem poderiam ser tomadas como provas que deve ter havido manuscritos de Josefo datados de meados do século II ou começo do século III que de fato continham a menção ao Nazareno. Considerando-se que se referir ao Nazareno como o Messias (em grego, Cristo) era demasiado inadequado para um judeu afeito às suas tradições como Josefo, não se pode, entretanto, excluir a possibilidade de um copista cristão que, antes de Eusébio e de Orígenes, tenha contribuído para corrigir esta distração do historiador judeu. Outros autores aventaram a possibilidade de que o próprio ex-guerrilheiro tenha se tornado em algum momento do final de sua vida simpático aos cristãos – o que é muito improvável – e chegaram a defender que a menção às obras portentosas e a ressurreição do pregador galileu foram inseridas pelo próprio Josefo em uma segunda edição de suas obras, realizadas em contexto bem diverso da primeira. Usando as técnicas da crítica textual mais rigorosa nos mais antigos escritos de Josefo disponíveis na contemporaneidade, certos especialistas chegaram ao seguinte trecho, idealmente expurgado dos acréscimos cristãos posteriores: “Por este mesmo tempo viveu Jesus, um homem sábio, que realizava obras portentosas e era mestre de homens que recebiam com prazer a verdade, atraindo a si não apenas muitos judeus, mas também muitos gregos. Havendo-lhe infligido Pilatos o suplício da cruz, instigado por nossos líderes, os que primeiro o haviam amado não cessaram de amá-lo. A tribo dos Cristãos, que dele tomou o nome, ainda não desaparece até hoje.” No século X, um anônimo tradutor verteu para o árabe um escrito de Agapitus, bispo da Frígia, chamado O Livro do Título, uma crônica do mundo desde o seu primeiro dia até o ano de 941 ou 942, que também reproduz esta polêmica passagem de Josefo citada por Eusébio. Como registrou Marilia Fiorillo, a paráfrase islâmica tomou o cuidado de acrescentar indicadores de dúvida substanciais àquilo que o seu redator considerava incerto: “Similarmente, Josefo, o hebreu (...) escreveu sobre o governo dos judeus: ‘Naquele tempo, havia um homem sábio que era chamado Jesus. Seu comportamento era bom e conheciam-no por ser virtuoso. E muitas pessoas entre os judeus e de outras nações tornaram-se seus discípulos. Pilatos condenou-o a ser crucificado e morrer. Mas aqueles que haviam se tornado seus discípulos não abandonaram sua escola. Eles disseram que ele lhes havia aparecido três dias depois da crucificação e que estava vivo; assim, ele era talvez o 145 V. “Para o amor não satisfeito o mundo é um mistério, um mistério que o amor satisfeito parece compreender.” R. BRADLEY, Appearance and Reality, XV “Considerai cada detalhe da Escritura. Para quem sabe cavar fundo, cada um deles encerra um tesouro. Talvez, onde não se espere encontrar quase nada, é que estejam ocultas as preciosas jóias do mistério.” ORÍGENES, Oitava Homilia sobre o Gênesis “Há um mistério, há um conteúdo escondido na história...O mistério é o das obras de Deus, que constituem no tempo a realidade autêntica, escondida detrás das aparências.” JEAN DANIÉLOU, “Saggio sul mistero della storia” Já mencionamos anteriormente neste nosso trabalho como Eusébio formou-se intelectualmente – de modo muito literal, aliás – à sombra da reflexão de Orígenes e como se fez um dos guardiões e perpetuadores de seu legado intelectual. Uma das intuições que orienta a redação do presente texto é a de que Eusébio de Cesaréia aplicou aos eventos históricos o mesmo método de leitura criado e exercitado pelos chamados Padres Alexandrinos em suas considerações exegéticas, o que teve implicações das mais relevantes para a sua obra historiográfica. Aí a letra remete ao espírito, a imanência é aberta à transcendência e o puro materialismo é ferido de morte, dando espaço a uma nova forma de ver e narrar as trajetórias dos homens no mundo. Talvez tenha razão o juízo de que Eusébio não era grande teólogo, ainda que notável historiador384, mas é mister reconhecer que, situado dentro da tradição teológica alexandrina, o bispo de Cesaréia encarou a história universal e eclesiástica, não só na qualidade de “bispo político, apoiado pelo Estado e devotíssimo ao imperador”385, mas também como crente e pensador da fé cristã. Consideremos arbitrariamente um trecho que, como tantos outros, parece corroborar esta nossa hipótese. No quinto capítulo do quinto Livro de sua História Eclesiástica, escreveu Eusébio: Messias, a cujo respeito os profetas contaram maravilhas.” Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 50, n. 171. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 153-155. 384 Cf. A. STUIBER e B. ALTANER. Op. cit. p. 223. 385 Id. Op. cit. p. cit. 146 “(...) Marco Aurélio César, estando em ordem de batalha frente aos germânicos e aos sármatas, passava grande dificuldade por causa da sede que castigava seu exército. Mas os soldados que serviam sob a assim chamada legião de Metilene – que por sob sua fé subsiste desde então até hoje –, formados frente ao inimigo, puseram seus joelhos no chão, segundo nosso familiar costume de orar, e dirigiram suas súplicas a Deus. Tal espetáculo pareceu, na verdade, muito estranho aos inimigos, mas outro documento conta que no mesmo instante foram surpreendidos por outro espetáculo ainda mais estranho: um furacão punha em fuga e aniquilava os inimigos, enquanto que a chuva caía sobre o exército dos que haviam invocado o socorro divino e o reanimava quando já estava todo ele a ponto de perecer pela sede. O relato conserva-se inclusive entre os escritores alheios a nossa doutrina que se preocuparam em escrever sobre aqueles tempos. Também os nossos o dão a conhecer. No entanto, os historiadores de fora, alheios a nossa fé, expõe o prodígio, mas não confessam que estes se realizou pelas orações dos nossos; já os nossos, como amantes da verdade, transmitem o ocorrido com simplicidade e sem malícia. Destes poderá ser também Apolinário, que afirma que a legião autora do prodígio por sua oração recebeu do imperador, a partir de então, um nome adequado ao sucedido, que em língua latina se diz Fulmínea. Testemunha destes fatos, digno de crédito, poderia também ser Tertuliano, que dirigiu ao senado a Apologia latina em favor da fé, da qual fizemos menção mais acima, e confirma o relato com uma demonstração mais ampla e clara. Escreve, pois também ele e diz que até agora conservam-se as cartas de Marco, o imperador mais sábio, nas quais ele mesmo atesta que, estando seu exército a ponto de perecer na Germania por falta de água, salvou-se pelas orações dos cristãos. E segue dizendo Tertuliano que o imperador ameaçou inclusive com a pena de morte aos que tentassem acusar-nos. A tudo isso o mesmo autor junta o seguinte: ‘Que tipo de leis são estas então, ímpias, injustas e cruéis, seguidas somente contra nós? Vespasiano não as observou, apesar de ter vencido os judeus; Trajano teve-as em parte como nada, ao impedir que se perseguissem os cristãos, e Adriano, apesar de ocupar-se com muita curiosidade das coisas, não as sancionou, como tampouco o que é chamado Pio.’”386 Nesta passagem bem podemos verificar três distintos níveis de leitura da realidade que se sobrepõem e complementam mutuamente, formando uma singular unidade significativa. Em primeiro lugar, dois eventos aparentemente díspares: um grupo de legionários capadócios que reza por suas vidas e talvez pelo sucesso nas armas, e uma intempérie que se abate sobre o campo, saciando a sede de uns e dispersando outros. Não nos são transmitidas informações precisas sobre a disposição das tropas, nem quaisquer uma sobre o clima e o relevo locais, que nos permitiriam julgar com mais discernimento o ocorrido – de fato, isto é o menos relevante: importa ao redator que reconheçamos a atitude moral dos 386 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 5, 1-7. pp. 164-165. 147 soldados e a existência de uma conexão entre a sua humilde oração e a tempestade que os socorre salvando-os da sede e livrando-os do combate. Outros autores, cristãos e não-cristãos, são invocados para atestar a veracidade do ocorrido, ainda que estes últimos sejam desprestigiados justamente por não reconhecerem o que para Eusébio é o fulcro significativo do evento.387 Da narrativa de tal prodígio, emerge um significado muito prático sob a forma de questionamento, exposto pela transcrição do trecho de Tertuliano: se os cristãos servem nos exércitos do Imperador, intercedem a favor deste ao seu Deus e são por Ele atendidos, se são pelo supremo magistrado de Roma ornados com um novo e prestigioso nome e pela sua proteção pessoal, que razão poderiam ter os que os acusam de impiedade e subversão, declarando-os ateus e revolucionários perigosos à paz do Império? Não bastasse isso, mais ainda um outro nível é insinuado: o Deus adorado pelos cristãos é compreendido como um deus eficaz – diversamente das deidades louvadas pelos romanos e pelos germânicos e sármatas que os deixaram, respectivamente, padecer sob a agonia da sede e sob a força dos ventos e da chuva –, o Deus que antes dera seu favor aos judeus, e que agora intervém na História, segundo a sua vontade, em favor do Novo Israel.388 As coisas não são apenas as coisas: tudo o que acontece e subsiste no universo é parte de um texto imutável escrito por Deus desde a eternidade numa língua que o homem tem se decifrar se quiser sobreviver e buscar estar em 387 Ou por lhe darem um outro sentido. Eusébio não cita nenhum dos autores dos quais discorda quanto a isto, mas, por exemplo, sabemos que Dion Cássio em sua Historia (72, 8-10) e em sua Vida de Marco Aurélio (Historia Augusta, c. 24) trata com algum vagar deste episódio da “chuva milagrosa”, ainda que o situe à iminência de uma batalha contra uma coalizão de cuados e marcomanos e o atribua – assim como fazem Claudiano em sua crônica do desenvolvimento das instituições romanas e o reitor Temistio (Orationes, c. 15) – à piedade e méritos pessoais de Marco Aurélio. Outros autores antigos atribuem este fato extraordinário a uma intervenção de Júpiter Capitolino, a um artifício do mago egípcio Arnúfis, a uma divindade desconhecida (que – Tertuliano bem o destaca – poderia ser o Deus dos cristãos), ou ao simples acaso. Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 291, n. 136 e 138. Ver também: Victor SAXER. “Fulminata (Legião XII)”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 593. 388 Na narrativa de Eusébio talvez ecoem, conscientemente ou não, passagens véterotestamentárias tais como Jó 38, 12-13.22-27, em que Iaweh, “do seio da tempestade” (Jó 38, 1), responde com rispidez ao sofrido personagem que questionava os Seus desígnios: “(...) Alguma vez deste ordens à manhã, ou indicastes à aurora um lugar, para agarrar as bordas da terra e sacudir dela os ímpios? (...) Entraste nos depósitos de neve? Visitastes os depósitos do granizo, que reservo para os tempos da calamidade, para os dias da guerra e da batalha? Por onde se divide o relâmpago, ou se difunde o vento leste sobre a terra? Quem abriu um canal para o aguaceiro e o caminho para o relâmpago e o trovão, para que chova em terras despovoadas, na estepe inabitada pelo homem, para que se sacie o deserto desolado e brote erva na estepe?” BÍBLIA. Ver. cit. pp. 850-851. 148 bons termos diante do julgamento Dele.389 Os acontecimentos são sumamente importantes, dotados em si mesmo de uma grandeza religiosa própria, por serem a um só tempo invólucro e via de acesso da manifestação providente e redentora de Deus, que os dispõem conforme os seus inefáveis critérios. No caso de Eusébio de Cesaréia, tal concepção é diretamente oriunda de sua fé cristã, apreendida não apenas por sua prática comunitária e suas leituras das escrituras que considerava sagradas, mas também mediada e enriquecida pelos comentários que sobre estas fizeram Orígenes e seus predecessores. Sendo tal o caso, devemos considerá-los aqui com o vagar e a riqueza de detalhes que são exigidos por sua importância, tanto direta, como fontes, fornecendo material que Eusébio recolhe fartamente, muitas vezes o citando in extenso, quanto como no referente aos fundamentos metahistóricos da narrativa eusebiana. Nos primeiros dias do cristianismo, Alexandria era sob muitos aspectos a principal cidade do Mediterrâneo Oriental, a segunda cidade politicamente mais importante do Império Romano, um centro intelectual prestigioso e cosmopolita, ornado com instituições célebres – o Muséon, ou Biblioteca de Alexandria, espécie de academia em que, financiados pelo Estado, trabalhavam miríades de copistas-arquivistas e pensadores dedicados às mais diversas reflexões físicas e metafísicas – e um porto onde circulavam em grande quantidade bens, pessoas e idéias provindas de regiões tão distantes quanto a Ibéria, a Bretanha e o Hindustão. Então, “Atenas já não contava muito [e] (...) Paradoxalmente, a capital cultural do helenismo se transportara para o Egito, entre os pântanos e o mar.”390 Nesta pulsante metrópole se desenvolveu uma comunidade judaica muito importante por volta do século III a.C., notável por ter empreendido a difícil tarefa de traduzir as suas Sagradas Escrituras para o grego, idioma corrente do Império Greco-Latino; seis séculos depois aí viria a se desenvolver também o neoplatonismo de Plotino, que a tantos conquistou por seus conceitos filosóficos e exercícios místicos refinados. Tal ambiente deve ter sido tocado muito cedo pela missão cristã, tanto por sua proximidade dos primeiros núcleos de irradiação do 389 Cf. Braulio TAVARES. “Postfácio: Contos Borgianos”. In: VV.AA. Contos Fantásticos no labirinto de Borges. (Org. e apr. Braulio Tavares; il. Romero Cavalcanti; trad. Julio Silveira et al.). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. p. 283. 390 Georges S UFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.p. 44. 149 movimento de Jesus – estava localizada, por exemplo, a 350 km de Jerusalém391 – , quanto pelo significativo número de judeus e simpatizantes que compunham a sua população.392 Em que pese a atestada influência da teologia alexandrina na obra de Eusébio, é significativo, entretanto, que ele quase não registre notícias da situação dos cristianismos egípcios dos séculos I a III, mencionando apenas eventos ou personagens muito dispersos no tempo: a pregação de Marcos nas terras irrigadas pelo Nilo e a fundação de uma tão numerosa quanto rigorosa comunidade cristã (II : 16), o testemunho que Fílon teria redigido sobre estes fiéis (II : 17), um falso profeta daí originário que causou perturbações políticas na Palestina (II : 21), a enumeração sem muito mais dos bispos de Alexandria (III : 14; IV : 1; IV : 5; IV : 11, 6; V : 9), e a pregação de Basílides e a sua refutação por Agripa (IV : 7, 3-8). Apenas ao compor resumos bio-bibliográficos sobre Panteno, o filósofo, e Clemente, “homônimo do discípulo dos apóstolos que antigamente regeu a igreja de Roma”393 (V : 10; V : 11), que percebemos uma mudança na abordagem eusebiana sobre o bastante particular movimento cristão desta área. Para Marilia Fiorillo esta curiosa circunstância se deu pelo fato de os mais antigos cristãos do Egito serem considerados por Eusébio como heterodoxos, de tal forma que, para evitar mentir sobre eles, o autor da História Eclesiástica simplesmente optou por ignorar as suas realizações, escritos e práticas – para ele constrangedores – e omiti-los quase integralmente de sua volumosa obra.394 Com mencionamos, o primeiro escritor eclesiástico não apostólico e não herético atuante em Alexandria do qual Eusébio trata com algum vagar é Panteno, que deve ter aparecido na cidade por volta de 180 e cuja morte se deu por volta de 200.395 O bispo de Cesaréia nos informa que se tratava de um cristão, formado no estoicismo, que se destacava entre os “homens eloqüentes e estudiosos das coisas divinas” que formavam uma “escola das sagradas letras”, instituída na metrópole 391 Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 153. 392 Rodney Stark comprovou admiravelmente que foi no âmbito das redes sociais formadas por estes agrupamentos humanos que pelo menos até os dias de João Crisóstomo se desenvolveu prioritariamente e com maior sucesso a missão cristã. V. Rodney STARK. “A missão junto ao povo judeu: as razões de seu provável sucesso”. In: R. STARK. Op. cit. pp. 61-84. 393 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 11, 1. p. 170. 394 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 193-203. (em especial, ps. 193-195 e 200-203). 395 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 195. Salvatore LILLA. “Panteno”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 1073. 150 egípcia “por costume antigo”. 396 (Certamente esta é a “escola” na qual Orígenes mais tarde viria a ensinar, e aqui temos um interessante indício de que poderia se tratar de uma estrutura anterior ao próprio cristianismo que foi re-significada por este; talvez originalmente fosse mesmo um centro de ensino associado a uma sinagoga). Panteno em determinado momento pôs-se em missão rumo à Índia, onde teria encontrado alguns rastros da pregação apostólica e um antigo evangelho redigido em caracteres hebraicos. Junto dele, Clemente recebeu a mais importante parcela de sua formação, ainda que não se tenha estabelecido se isto se deu antes da partida do ex-filósofo estóico para o Oriente ou depois de um seu eventual retorno.397 Clemente de Alexandria, nascido Titus Flavius Clemens, muito possivelmente na cidade de Atenas, personagem que Jacques Liébaert destaca como o primeiro humanista cristão, assume integralmente a “dupla fidelidade dos Padres: ao mesmo tempo, à tradição cristã e à cultura de seu tempo (...). Ele é grego e cristão com naturalidade, com serenidade, sem se questionar”.398 Compreendeu agudamente que os cristãos tinham necessidade de se fazer compreender no mundo cultural greco-latino se aí quisessem obter algum êxito missionário, e que isto era tornado verdadeiramente urgente na proporção em que as suas exigências cada vez mais imperiosas conduziam os seguidores de Jesus de Nazaré a também “assumir as responsabilidades desta civilização que tinham desejado e pretendido poder rejeitar.”399 Foi tomado também pela certeza de que haviam muitas coisas no helenismo que eram francamente opostas ao ideal evangélico, mas que seu legado não era possível de ser rejeitado: a famosa diatribe de Tertuliano contra a cultura clássica – “(...) Que há de comum entre 396 Todas as citações desta frase foram extraídas de: EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 10, 1. p. 169. 397 Eusébio parece associar Clemente a Panteno, se não por mais, ao tratar daquele logo depois de se referir a este. Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 10-11. pp. 169-170. No manual de Berthold Altaner e Afred Stuiber, entretanto, levantam-se dúvidas quanto a esta relação que a tradição eclesial atestou durante longo período: “(...) Cerca de 180, Panteno, oriundo da Sicília, apareceu em Alexandria, como primeiro mestre cristão de renome. Clemente seria o segundo mestre desse gênero, não como discípulo de Panteno, nem como sucessor seu à frente de uma escola; talvez haja mesmo ensinado simultaneamente com Panteno e outros.” B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. cit. 398 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 87. 399 H. I. MARROU. Op. cit. p. 843. 151 Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja?”400 –, que, aliás, nunca foi um consenso, não era para Clemente passível de ser sustentada. Mais ainda, o salto do horizonte de pensamento semítico para um panorama conceitual indo-europeu, grego e filosófico oferecia ao cristianismo com generosidade magnífica ferramentas mentais para que ele compreendesse melhor a si mesmo e elaborasse em mais refinadas bases a sua pregação, exegese e teologia.401 Bom observador e bom crítico dos estilos de vida, foi um homem total como depois o seriam Isidoro de Sevilha na Idade Média, Della Mirandola e Da Vinci no Renascimento, e Sir Richard Burton na Era Vitoriana; imensamente erudito, conhecia em detalhes não somente os textos judaicos e cristãos da Bíblia, mas toda a literatura paleortodoxa e herética de então, assim como praticamente todos os mais relevantes produtos intelectuais da tradição greco-latina clássica e tardia, as polêmicas filosóficas e os estudos científicos, assim como os florilégios e compêndios de curiosidades – as mais de trezentos e sessenta citações tiradas de escritores profanos que constam na parte sua obra conhecida pelos modernos o atestam muito bem. Quando louvou àquela sabedoria que Cristo teria revificado e completado, mais do que por sua pregação, por seu sacrifício, e apresentou o nome dos sábios que teriam anunciado e preparado à sua Encarnação, ainda que não o soubessem, é que Clemente dá mostras do caráter enciclopédico de seu pensar, mencionando não apenas os filósofos gregos e os astrólogos persas de que nos dão notícia o Evangelho de Mateus, mas também “os sábios desconhecidos da Caldéia, do Egito, da Gália (...), os magos da Arábia e os místicos hindus.”402 Ainda que não tenha sido bispo, ou mesmo clérigo – aliás, como seu antecessor Panteno –, Eusébio o assinalou como entre os mais “célebres da sucessão apostólica”403, justificando esta afirmação com uma citação de Clemente no qual este afirma que recebeu a fé de “varões bem-aventurados e realmente eminentes (...) que conservaram a verdadeira tradição do ensinamento bendito proveniente em linha reta dos santos apóstolo, de Pedro e de Tiago, de João e de Paulo, 400 TERTULIANO DE CARTAGO. De praescr. 7, 9. Apud: H. I. MARROU. Op. cit. p. 844. 401 Cf. Id. Op. cit. pp. 843-844. 402 G. SUFFERT. Op. cit. p. 46. 403 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro V : 6, 1. p. 170. 152 recebendo-a o filho do pai”.404 Autor entusiasta e muito religioso, não obstante o seu mau juízo da palavra escrita405, deixou uma série de trabalhos tão variados quanto originais, redigidos em um estilo elegante que é culto sem nunca cair no pedantismo ou no preconceito puro e simples; por vezes, chega mesmo às alturas da poesia e se aproxima muito da fôrma homérica. Segundo Georges Suffert, nele já “(...) Passamos sem choque das palavras dos gigantes da Ilíada às bem mais desorientadoras de Cristo e de seus apóstolos.”406 Espécie de antítese de Tertuliano e pleonasmo de Justino, parece ser bastante simpático à nossa contemporaneidade pós-moderna, não só por seu manifesto espírito aberto, disposto a levar até as últimas conseqüências o mandato paulino de examinar tudo e tomar para si o que é bom407, mas pela sua desconcertante – e talvez consciente – falta de sistematicidade e clareza.408 De Clemente de Alexandria conservamos notícias de três obras principais, que se presume terem originalmente feito parte de um único bloco argumentativo, talvez destinado ao uso na instrução catequética. Em primeiro lugar temos uma Protreptikòs pròs Héllenos (“Exortação aos gentios”), que é um chamado à conversão e uma apologia da adesão ao seguimento de Jesus Cristo, redigida no 404 Id. Op. cit. Livro V : 6, 3.5. p. cit. A menção a um “bem-aventurado presbítero Clemente, varão virtuoso e probo” feita por Alexandre de Jerusalém em uma carta transcrita na História Eclesiástica não é prova suficiente para que se deduza com certeza que Clemente de Alexandria recebeu o sacramento da Ordem. Ibid. Op. cit. Livro VI : 11, 6. p. 202. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 197. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 369, n. 78. 405 Jorge Luis Borges no já citado ensaio “Do culto dos livros” registra o receio de Clemente de Alexandria para com as idéias consignadas por escrito e indica que este tem sua origem na tradição filosófica grega (Pitágoras, Platão) e na atitude de Jesus “o maior dos mestres orais, que apenas uma vez escreveu algumas palavras na terra e nenhum homem as leu”. Para exemplificar tal coisa, o literato argentino cita dois trechos por ele redigidos a este respeito: “(...) O mais prudente é não escrever, mas aprender e ensinar de viva voz, porque o escrito fica”, e “(...) Escrever num livro todas as coisas é deixar uma espada nas mãos de uma criança”. J. L. BORGES. Op. cit. pp. 131132. 406 G. SUFFERT. Op. cit. p. 45. 407 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Primeira Epístola aos Tessalonicenses 5, 21. p. 2064. 408 Para Jacques Liébaert tal circunstância impediu que Clemente assumisse um lugar que realmente fizesse jus à sua genialidade no rol dos grandes autores cristãos da Antigüidade. Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 88. Por outro lado, causam constrangimentos entre os fundamentalistas de todos os tempos palavras como “(...) Não há, por certo, senão um caminho da verdade, mas ele é como um rio inesgotável, para o qual correm os outros cursos d’água, vindos um pouco de cada lugar. Daí estas palavras inspiradas: ‘Escuta, meu filho, e recebe as minhas palavras para teres muitos caminhos para a vida. Eu te ensino as vias da sabedoria, para que não te faltem fontes’, as fontes que jorram (todas) da mesma terra. E não há somente para um único justo que ele diz haver vários caminhos de salvação; acrescenta que há para multidões de justos, multidões de outros caminhos; faz com que se entenda assim: ‘os atalhos dos justos brilham como a luz’.” Citado em: Id. Op. cit. p. cit. 153 estilo que é, deliberadamente, o da discussão filosófica e cultura erudita de seu tempo.409 Neste texto, a exemplo de outros apologistas judeus e cristãos primitivos, esboçou um quadro verdadeiramente horripilante da loucura e imoralidade dos mitos pagãos e dos cultos de mistério – afirmação nossa que deve ser matizada pelo curioso fato de que as mais recentes pesquisas históricas sobre o tema acabaram por comprovar que este Padre da Igreja se ateve mais à narração objetiva dos fatos do que se poderia imaginar. Alinhavando algumas idéias de Platão e de alguns poetas que acreditava serem também inspiradas por Deus, voltou-as contra as doutrinas das mais populares escolas filosóficas helênicas sobre a essência divina; usando os argumentos da alta cultura helenista, atacou com refinamento o paganismo popular, afirmando a indignidade de suas representações do transcendente e a bestialidade de suas formas cultuais. Com palavras que transpiram sincero fascínio, apresentou aos seus leitores Jesus Cristo, “cantor e mestre do novo mundo (...) a sublimidade da revelação do Logos e a maravilhosa riqueza da graça divina, que satisfaz plenamente toda nostalgia do homem pela luz, pela verdade e pela vida.”410 Em segundo, temos um trabalho de nome Paidagogós (“O pedagogo”), dirigido aos batizados, onde é apresentada uma maneira de viver o mandato evangélico na sociedade ambiente, mudando-a desde dentro naquilo que ela tem de mau e preservando e enriquecendo com o cristianismo aquilo que ela tem de bom. Aí são oferecidos apontamentos concretos para que os cristãos pudessem atender ao imperativo apostólico de “dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-lo pede (...), com mansidão e respeito”.411 Clemente não conclamou os fiéis a um ostentoso comportamento ascético, nem exigiu de forma alguma que renunciassem os crentes às suas alegrias e satisfações mundanas, mas, lembrando que é imperativo que o cristão guarde sua plena independência em relação aos 409 J. Quaest (Patrologia, v. I, Turim, 1967, p. 289) observou que esta obra de Clemente de Alexandria se insere no gênero literário das dissertações do jovem Aristóteles (entre as quais constava também um Protreptikòs), continuado por trabalhos análogos compostos por Epicuro, Cleantes, Crisipo, Posidônio, Cícero, e, mais tarde, no século IV d.C., Jâmblico. Cf. Salvatore LILLA. “Aristotelismo”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 155. 410 411 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 198. BÍBLIA. Ver. cit. Primeira Epístola de Pedro 3, 15b-16a. p. 2117. Jacques Liébaert escreve a respeito desta obra, comparando-a com os vários textos de Tertuliano que se dispunham a fazer o mesmo, ainda que de maneira muito diversa, que “se este último é mais profeta, Clemente é mais educador”. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit. 154 bens passageiros, pediu-lhes apenas que não se deixassem subjugar pela necessidade de gozá-las de forma desenfreada, e mantivessem tudo em justa medida. Se considerarmos tal obra contra o pano de fundo da opulenta Alexandria, onde subsistiam indissociáveis o luxo e – do ponto de vista cristão, é mister ressaltar – a degradação moral, salta à vista o inusitado bom sendo do seu autor, que insiste naquele tipo de postura que nossa sabedoria popular codificou no dito nem tanto à terra, nem tanto ao mar.412 Composto em três livros, o Paidagogós se encerra com um hino a Cristo que é muito belo; o segundo e o terceiro volumes contêm pormenorizadas prescrições, dispostas aparentemente sem nexo lógico, sobre o comer e o beber, o cuidado do corpo, a vida conjugal, o descansar e a recreação, o vestuário, a habitação, as relações sociais, o estudo e tantas outras coisas, notas que remetem-nos a códigos similares compostos em ambientes bastante diversos por sábios hebreus (a Mishnah, ou Comentário à Lei) e chineses (o Liji, ou Livro dos ritos).413 Por fim, temos a vertiginosa coletânea de oito livros intitulada Stromata (“Tapeçaria”), que aborda temas os mais diversos e o faz de maneira de tal monta desordenada que ou se trata de peça inconclusa que se dedicava a tratar de modo sintético de toda a Criação ou está organizada de acordo com uma lógica que os especialistas antigos e modernos ainda não conseguiram apreender. Tais hipóteses são apenas aproximações a um texto que, com efeito, mais parece ter saído da imaginação de um Jorge Luis Borges. Já que nada se pode afirmar de muito seguro sobre trabalho tão peculiar, ao menos aparentemente o público para o qual ele se dirige é o heterogêneo e exigente conjunto dos gentios que se interessam por querelas filosóficas; em não pouco número de trechos, parece que o seu 412 Compõe talvez uma unidade de propósito com este trabalho também o Tís ho sozómenos ploúsios (“Que rico se salvará?”), homilia sobre o texto de Marcos 10, 17-31 que só conhecemos em versão latina (sob o título de Quis dives salvetur?). Aí Clemente tenta demonstrar que os ricos também podem chegar à felicidade eterna, já que não é a posse ou não de quaisquer bens materiais que definem a sua salvação (ou danação) do ser humano, mas a sua consciência de ser pecador, sua confiança em Deus e o seu bom (ou mau) comportamento. Para argumentar neste sentido, o autor invoca a lenda sobre o encontro do apóstolo João com um jovem de família abastada que se tornara chefe de um bando de ferozes salteadores, e de como aquele, por fim, consegue converter e reintegrar este à Igreja. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 200. 413 Cf. Id. Op. cit. p. 199. No começo do conto “O Zahir”, Jorge Luis Borges escreveu que: “(...) Os hebreus e os chineses codificaram todas as circunstâncias humanas; na Mishnah se lê que, iniciado o crepúsculo do sábado, um alfaiate não deve sair na rua com uma agulha; no Livro dos ritos, que um hóspede, ao receber a primeira taça, deve assumir um a grave, e, ao receber a segunda, um ar respeitoso e feliz.” Jorge Luis BORGES. O Aleph. (Trad. David Arrigucci Jr.). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 94. 155 principal propósito é comprovar que a sabedoria cristã é síntese qualitativa e complemento de todas as formas de sabedoria. Ao contrário dos gnósticos, que consideravam o conhecimento profano e de Deus incompatível com a fé, Clemente parece propor na Stromata que o seguidor de Jesus Cristo deve conciliar ambos, numa relação sincera e harmoniosa. Seja como for, é nesta obra complexa e ainda pouquíssimo estudada que Clemente de Alexandria apresenta a sua visão fortemente providencialista da História associada à noção de que a filosofia foi uma preparação para que os helênicos recebessem a mensagem cristã tanto quanto teria sido para os judeus a observância da Lei Mosaica: “(...) Antes da vinda do Senhor, a filosofia era indispensável aos gregos para conduzi-los à justiça; agora se torna útil para conduzi-los à veneração de Deus. Ela serve de forma preparatória aos espíritos que querem chegar à fé pela demonstração. ‘Teu pé não tropeçará’, como diz a Escritura, se atribuis à Providência tudo o que é bom, tanto grego quanto cristão. Deus é a causa de todas as coisas boas, umas imediatamente e por si mesmas, como o Antigo e o Novo Testamento; outras por corolário. Mesmo a filosofia talvez também tenha sido dada como um bem direto aos gregos, antes que o Senhor tivesse ampliado até eles o seu chamado, pois realizava a educação deles, exatamente como a Lei dos judeus, para ir até Cristo. A filosofia é um trabalho preparatório; ela abre caminho 414 àquele que Cristo depois torna perfeito...” De Panteno e Clemente, entretanto, o autor da História Eclesiástica parece destacar que o mais importante foi terem contribuído para a formação de Orígenes, de quem foi um dos herdeiros – inclusive do ponto de vista material –, conforme já tivemos a ocasião de assinalar anteriormente: “(...) Tendo sucedido a Panteno, Clemente vinha regendo a catequese de Alexandria até aquele mesmo tempo, de maneira que também Orígenes foi um de seus discípulos.”415 Já tivemos antes a ocasião de tratar de alguns aspectos da vida e obra deste extraordinário personagem que “(...) Já em vida, (...) foi considerado o mais insigne teólogo da 414 Citado em: J. LIÉBAERT. Op. cit. p. cit. Deve-se destacar que o juízo de Clemente sobre o pensar helênico era respeitoso e mesmo entusiasta, mas não ingênuo: de acordo com este autor (Stromata I : 7, 37), “(...) A filosofia (...) tem de se radicar no ensino da justiça e da piedade para ser uma educação preparatória para o conhecimento espiritual (...) [e se assim não fosse] reduzirse-ia a silogismos, a entinemas e a definições ocas, que tentam conseguir créditos para uma afirmação, e jamais descobrir as linhas da verdade.” Antonio QUACQUARELLI. “Paideia”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 1061. 415 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VI : 6, 1. pp. 198-199. 156 Igreja grega”416, de modo que agora passaremos em revista apenas algumas suas considerações que nos parecem ter sido especialmente influentes no desenvolvimento da historiografia eclesiástica conforme esta se deu na mais conhecida obra de Eusébio de Cesaréia e na produção intelectual de seus continuadores. As primeiras obras de Orígenes, dentre as quais constam também muitas produções de improviso, como pequenas notas e sermões e discursos que foram esteneografados, datam de seu período alexandrino, ou seja, dos anos de 215 a 230.417 De notável importância é um tratado então composto que foi intitulado Dos Princípios, onde, sob um título recorrente na produção filosófica greco-latina clássica (em grego Peri Archôn), tratou Orígenes, em quinze volumes bastante independentes entre si, de expor os pontos basilares da fé cristã, cunhando uma primeira apresentação metódica e acessível ao público culto de sua cidade de sua visão como crente do homem, do mundo e de Deus.418 Lidou nesta obra de modo especialmente sensível com a problemática do mal em um mundo que seria criado e guardado por uma divindade supostamente boa, ou seja, dedicou-se à composição de uma teodicéia, esforço que Max Weber reconheceu como sendo a questão central e mais espinhosa da ética das religiões de redenção.419 Deve-se, compreendê-la, sob o pano de fundo de um grande atrito de palavras: recordemonos que, para lidar com tal incerteza, “(...) Os gnósticos haviam proposto uma solução dualista: o combate de dois princípios. (...) Orígenes percebe que se trata de uma armadilha intelectual. Não existem, face a face, um Deus bom e outro mal. Para ele, as almas divididas podem encontrar novamente a pureza original. Então, a história do mundo estará realmente terminada.”420 Partindo do conjunto de escrituras que tinha como sagradas e da tradição da comunidade eclesial da qual se sentia partícipe, o teólogo buscou dialogar de espírito aberto com os seus 416 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit 205. 417 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 91. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. cit. 418 Cf. Id. Op. cit. pp. 209-210. 419 Cf. Max WEBER. “Rejeições religiosas do mundo e suas direções.” In: Textos selecionados. (Trad. Maurício Tragtenberg, Waltensir Dutra et al.). (3ª ed.). São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Col. “Os Pensadores”). p. 265: “(...) A necessidade metafísica respondeu à consciência de tensões existentes e insuperáveis, e, através da teodicéia, ela tentou encontrar um sentido comum apesar de tudo.” 420 G. SUFFERT. Op. cit. p. 47. 157 interlocutores externos e internos ao movimento de Jesus; Jacques Liébaert destaca que “Orígenes está, aqui, no extremo do esforço de compreensão da fé em seu tempo; às vezes ele se lança em hipóteses audaciosas, que lhe custarão problemas póstumos. A amplitude da visão é algo inédito no pensamento patrístico; o livro não terá equivalentes entre os Padres posteriores.”421 Paralelamente à composição do que veio a ser o seu mais conhecido trabalho expositivo, mas vinculado a este de forma intestina – lembremos que o Peri Archôn é concluído com um pequeno tratado de exegese –, o jovem teólogo alexandrino iniciou suas pesquisas sobre a Bíblia Judaica e começou a redigir numerosos trabalhos sobre os textos sagrados dos cristãos, dentre os quais se destaca um, tão vasto em seu número de páginas quanto sumamente denso em seu conteúdo, sobre o Evangelho de João, que era uma deliberada réplica a uma obra similar composta gnóstico Heracleão.422 É notável este relevo que Orígenes dá ao texto joanino: é neste, já considerado por Clemente de Alexandria como mais notável que os Evangelhos Sinóticos, e nas epístolas paulinas que ele encontraria o método de leitura das Escrituras que exercitou em suas obras e legou aos seus inúmeros leitores – dentre os quais Eusébio de Cesaréia, que, sem o explicitar em sua História Eclesiástica, o usará com naturalidade para apreender, selecionar, interpretar e apresentar narrativamente os eventos humanos que se dispôs a registrar em sua vasta obra. Já estabelecido em Cesaréia da Palestina, sob a proteção do bispo local, Teotito, e de seu confrade Alexandre de Jerusalém, dedicou-se ainda mais – certamente com a ajuda de uma equipe de auxiliares – a redigir numerosas homilias e comentários à Escritura. Por volta de 248, quase certamente com mais de 60 anos, escreveu sua importante refutação ao Alethès lógos do filósofo 421 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 92. Esta amplitude de visão foi uma espécie de realização da já mencionada indicação clementina de que também o saber clássico está semeado de boas coisas, de elementos que provém de Deus, e que justamente por isso pode e deve ser aplicado ao entendimento de Sua Palavra e Vontade: em uma carta a Gregório, dito o Taumaturgo, escreveu Orígenes que era o seu desejo que este tirasse “da filosofia grega tudo o que pode servir como ensinamento encíclico ou propedêutico de introdução ao cristianismo; e igualmente da geometria e da astronomia, tudo o que for útil à interpretação da Sagrada Escritura. E assim, o que dizem os filósofos da geometria e da música, da gramática, da retórica e da astronomia, chamando-as auxiliares da filosofia, nós o aplicaremos, de nosso lado, à própria filosofia com relação ao cristianismo...” Citado em: Id. Op. cit. p. 93. 422 Sobre este personagem, discípulo de Valentino, ver: Claudio GIANOTTO. “Heracleão”. In: VV. AA. Dicionário patrístico...Op. cit. pp. 663-664. 158 platônico Celso, na qual incidentalmente veio a preservar por meio de suas citações considerável parte do argumento anticristão do filósofo. Nos oito livros que passaram à posteridade com o banal título de Contra Celso, Orígenes, com serenidade e erudição, respondeu às invectivas que apresentavam Cristo como impostor vulgar, atribuíam os aspectos extraordinários de sua vida à liberdade poética ou falsidade de seus primeiros seguidores, e afirmavam que a rápida difusão do seu movimento se deveu à forte impressão que produziu nos mais simples os aterradores panoramas do Juízo Final e do fogo do inferno apresentados nos discursos de seus arautos. Em contrapartida a isto, ressaltou o teólogo alexandrino a inverdade de alguns dos eventos referidos por Celso, e alegou que as curas de enfermos e expulsões de demônios que se faziam ainda nos seus tempos sob a autoridade de Jesus de Nazaré, assim como a união e a pureza dos costumes dos cristãos era mais do que suficiente para comprovar a verdade de sua crença.423 Continuou a viajar, a responder às críticas de seus detratores e a manter significativa correspondência com seus amigos e alunos. Mais de uma vez atendeu ao chamado de bispos que o consultavam sobre questões especialmente ásperas de exegese e dogmática: uma coleção de documentos achados em um rincão egípcio no ano de 1941 trouxe à luz também o relato de um destes serviços de consultoria na forma de uma resposta dada a um grupo de bispos do sul da Palestina.424 Em sua obra de especialista nos textos sagrados de judeus e cristãos, Orígenes aliou com quietude preocupações que – anacrônica, mas acertadamente – poderíamos classificar como próprias de um moderno espírito científico a uma atitude profundamente religiosa, que se assentava na convicção de que a oração tanto quanto a disciplinada dedicação são os principais instrumentos do estudioso deste tema, admoestando ao que se dispõe a sê-lo que siga as palavras do Evangelho que dizem: “(...) Pedi e vos será dado; buscai e achareis; batei e vos será aberto; pois todo aquele que pede, recebe; o que busca, acha, e ao que bate, se lhe abrirá.”425 Postulando tal comportamento, introduziu a exploração sistemática 423 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 209. 424 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. ps. 92 e 94. A mencionada coleção de documentos passou a ser conhecida como Papiros de Tura (nome da cidade em que foi descoberta) e revelou pelo menos dois outros textos de Orígenes até então desconhecidos: a Disputa com Heráclides e os escritos Sobre a Páscoa. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. pp. 205-206. 425 BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 7, 7-8. p. 1715. (Trecho que é idêntico a: Lucas 11, 9-10. p. 1809). Na mística origenista esta passagem está estreitamente vinculada a João 14, 13-17: “(...) E o que pedirdes em meu nome, eu o farei a fim que o Pai seja glorificado no Filho. Se pedirdes algo em 159 do texto bíblico, valorizando “sua leitura por si mesma, e a leitura meditada para interiorizar e se apropriar da Palavra de Deus”.426 Partindo da crença de que o Antigo e o Novo Testamento são a eterna encarnação em caracteres do Logos que se oferece continuamente a todos os homens do seu presente e de todos os tempos vindouros até o dia do Juízo, percebeu com agudeza que o estudo de tais escritos supunha antes de qualquer outra coisa o acesso e o profundo entendimento de uma versão correta, distante das traduções falhas e contendo o mínimo possível de adulterações piedosas. Discutindo com os judeus sobre suas próprias escrituras sagradas, percebeu a existência de não poucas divergências entre a versão hebraica e a da Septuaginta da Lei e dos Profetas, assim como diferenças significativas entre esta e outras traduções gregas também de origem judaica, e até o fato de que mesmo os manuscritos da LXX apresentavam numerosas variações entre si. Abordou tal problemática de forma original, abrindo mão de considerar tais desigualdades entre os textos como maldosas falsificações anti-cristãs urdidas em tempos recentes pelos filhos dos hebreus que pérfida e obstinadamente se mantinham atrelados ao tão vazio quanto cego seguimento da Lei mosaica, para tomar sempre o texto hebraico como o original e, portanto, como historicamente prioritário. Não se escusou de assumir o labor conseqüente a esta opinião: trabalhou com rabinos e considerou suas opiniões427, iniciou-se no seu idioma sagrado e começou a reunir todo o material documentário então existente para elaborar um instrumento de trabalho através do qual pudesse lidar a contento com os livros véterotestamentários. Empenhado neste propósito, compilou a Hexapla, obra monumental de formato muito curioso, onde o texto da Bíblia Hebraica era apresentado de maneira sinótica em seis colunas: (1) o texto hebraico preservado meu nome, eu o farei. Se me amais, observareis meus mandamentos, e rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece convosco.” Id. ver. cit. p. 1880. Cf. Carta de Orígenes a Gregório, o Taumaturgo. Citado em: J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 93. 426 427 Id. Op. cit. p. 96. Uma passagem da Homilia sobre o Êxodo (V, 5) talvez ateste isto, caso os “anciãos” a que Orígenes se refere sejam mesmo, como se pode conjecturar, estudiosos judeus da Bíblia: “(...) Eu ouvi os anciãos dizerem que, nessa passagem do mar [Vermelho, que se teria aberto ao comando de Moisés], as águas se dividiram em tantas frações quantas são as tribos de Israel e que cada tribo teve seu próprio caminho aberto no mar; a prova estaria nestas palavras do salmo: ‘Aquele que dividiu o Mar Vermelho em frações’... Pensei ser piedoso não omitir essa observação dos anciãos sobre as divinas Escrituras.” Citado em: Ibid. Op. cit. p. 102. 160 nas sinagogas da Palestina e na região do Delta do Nilo; (2) a transcrição sem mais do texto hebraico em caracteres gregos; (3) a tradução grega de Áquila, muito literal, composta talvez na primeira metade do século II d.C.; (4) a tradução grega de Símaco, caracterizada por lançar mão de paráfrases e mesmo de alguns resumos, que sucede em algumas décadas a de Áquila; (5) a tradução grega da Septuaginta, ou dos LXX, que data de algum momento entre os séculos III e I a.C. e já era adotada como canônica pela Igreja grega nos tempos de Orígenes; (6) a tradução grega de Teodocião, que talvez tenha sido feita no século I de nossa era e em ambiente judeu-cristão. Em alguns livros dissecados na Hexapla as descobertas pessoais do teólogo permitiram que se alinhassem sete, oito ou até nove colunas de textos diversos entre si – foi o caso dos Salmos, por exemplo, onde ele lidou com edições dos textos bíblicos provenientes de outros ambientes judaicos – o babilônico, o romano, o essênio, o saduceu – que hoje estão indisponíveis tanto aos fiéis quanto aos pesquisadores. Jacques Liébaert registrou que “(...) Esse instrumento de trabalho foi conservado, provavelmente em um único exemplar, em Cesaréia, aonde iam consultá-lo; depois desapareceu, para grande prejuízo da ciência bíblica.”428 Não é difícil notar sua imensa influência nos já mencionados trabalhos exegéticos empreendidos por Eusébio. A partir do uso da Hexapla, Orígenes, que nunca se permitiu corrigir o texto que já estava estabelecido como de uso corrente, normativo e litúrgico, em sua comunidade eclesial, extraiu uma apresentação da Septuaginta em que as variações, acréscimos ao original hebraico ou lacunas em relação a este foram a ele adequados ou preenchidos por outras traduções gregas mais fiéis ao sentido primeiro do texto; junto do próprio corpus textual, completamente marcado por sinais críticos – tomados de empréstimo das edições dos clássicos greco-latinos compilados no Muséon alexandrino – que indicavam todas as divergências existentes entre as suas versões conhecidas, haviam ainda muitas notas explicativas, comentários histórico-literários429, moralmente edificantes ou de 428 429 Ibid. Op. cit. p. 96. Jacques Liébaert chamou a atenção para o fato de que nestas notas Orígenes aventou a possibilidade de que o autor da Epístola aos Hebreus, que a tradição designou com sendo o próprio Paulo de Tarso, não fosse o Apóstolo dos gentios, mas um camarada de missão ou discípulo próximo, a quem seu pensamento fosse familiar, e que isto é justamente o que diz a exegese contemporânea, que incluiu este referido escrito no rol daqueles denominados “deutero-paulinos”. Cf. Ibid. Op. cit. p. 99. 161 cunho espiritualizante, que exploravam o sentido alegórico dos trechos ali consignados. Como fica evidente nesta edição da qual infelizmente só nos restam vestígios parciais, a principal preocupação de Orígenes é com a interpretação da Bíblia. Em mais de uma ocasião ele considerou a problemática de maneira explícita, confrontando a leitura cristã paleortodoxa de suas próprias escrituras com a que delas faziam judeus e gnósticos. Com comovente solicitude de bom homem de Igreja, o organizador da Hexapla insistia que o povo cristão tinha necessidade de ser esclarecido na compreensão da Bíblia para não se deixar enredar em fábulas adventícias elaboradas por aproveitadores e nem padecer em leituras ingênuas que, tomando tudo ao pé da letra, sem nenhum distanciamento, acabavam por serem pouco adequadas à dignidade de Deus e danosas à fé – além de ofensivas à razão, o que também cria um pecado na medida em afirmava que a razão humana participa de algum modo da Inefável Razão divina.430 Dada esta opinião, não deixa de ser curioso, entretanto, que este homem tão atencioso com seus irmãos menos esclarecidos e que deveria chamar tanta atenção por suas faces glabras e voz aguda em uma época em que o filósofo e o erudito eram caracterizados justamente pela voz firme e barba longa (sinal de sabedoria), tenha se castrado não por inspiração do neurótico repúdio ao sexo que caracterizaria alguns teólogos ocidentais, como Jerônimo e Agostinho de Hipona, mas justamente por entender literalmente aquele trecho dos Evangelhos em que Jesus comenta que alguns indivíduos se faziam eunucos por amor ao Reino de Deus.431 Como os autores do Novo Testamento e os integrantes da tradição rabínica, Orígenes interpretou e apresentou as Escrituras em uma perspectiva unificadora e edificante, através do qual olha para o passado da comunidade, percebe aí a ação de Deus em favor dos seus, e, diante das problemáticas do 430 431 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 196. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 99. K. ARMSTRONG. Op. cit. p. 140. Citando o historiador britânico Peter Brown, Karen Armstrong menciona que talvez Orígenes tenha lançado a faca à sua genitália também para empiricamente verificar ou “demonstrar sua doutrina da indeterminação da condição humana, que a alma logo deveria transcender [para se elevar do material ao divino]. Fatores aparentemente imutáveis como a distinção entre os sexos cairiam por terra no longo processo de divinização, pois em Deus não há macho nem fêmea.” Id. Op. cit. p. cit. Dado que a leitura que Orígenes fez das Sagradas Escrituras foi prioritariamente alegórica, outra coisa que muito nos chama atenção é o fato de que tenha mobilizado todas as não poucas ferramentas intelectuais de que dispunha para refutar o marcionita Apeles que afirmava – aliás, com razão – que as dimensões que o Gênesis indica para a Arca de Noé não permitiriam que nela fosse acolhido um número grande de animais como o suposto no mesmo texto. Cf. Henri CROUZEL. “Orígenes”. In: VV. AA. Dicionário patrístico… Op. cit. p. 1047. 162 presente, reconhecendo a responsabilidade dos fiéis na edificação destas, confia que Ele novamente intervirá na História em favor dos que sinceramente o buscam. Na qualidade de reverente fiel, nunca chegou ao ponto de confrontar criticamente os textos basilares de sua religião, mas, com as qualidades da precisão, da simplicidade e da clareza, tão raras de serem encontradas nos clérigos de todos os tempos e latitudes, assumiu e explicitou os princípios básicos de toda a leitura cristã antiga da Escritura. Em primeiro lugar, afirmou que o conjunto heterogêneo de materiais que a forma é todo igualmente inspirado pelo Espírito Santo, e, portanto, possui uma unidade de sentido em vistas desta comum origem divina. Em segundo, percebeu ou postulou que os textos bíblicos são estruturalmente diversos dos demais textos, escondendo sentidos profundos sob a literalidade dos significados presentes na superfície de suas linhas. Por fim, professou que a Bíblia não é apenas um documento histórico ou normativo, mas um instrumento pelo qual Deus continua a falar algo aos cristãos – tratar-se-ia de um livro vivo e um livro da vida, conforme o que afirmou o Apóstolo: “(...) tudo o que se escreveu no passado é para nosso ensinamento que foi escrito, a fim de que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos esperança.”432 Assentado nestes princípios norteadores, Orígenes se esforçou para pesquisar todas as significações dos escritos bíblicos que se pôs a analisar, mesmo partindo do suposto de que estas são inesgotáveis em todos os seus detalhes, uma vez que nada foi inspirado por Deus ao acaso, e que não é dado à finita inteligência humana perscrutar os insondáveis desígnios do Todo-Poderoso. Como mencionamos anteriormente, é na distinção paulina entre “letra” e “espírito” que Orígenes foi buscar seu método de exegese433, assim como na interpretação 432 433 BÍBLIA. Ver. cit. Epístola aos Romanos 15, 4. p. 1989. Id. Ver. cit. Segunda Epístola aos Coríntios 3, 6. p. 2019: “(...) Foi ele [i.e., Deus] que nos tornou aptos para sermos ministros de uma Aliança nova, não da letra e sim do Espírito, pois a letra mata, mas o Espírito comunica a vida.” Cf. ORÍGENES, Homilias sobre o Êxodo. Citado em: J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 100: “(...) A lei é espiritual e deve ser compreendida em sentido espiritual. Quanto a nós, sabemos que a Escritura não foi redigida para nos contar histórias antigas, mas para nossa instrução salutar; assim, compreendemos que o que acabaram de nos ler é sempre atual, e não somente neste mundo, representado pelo Egito, mas em cada um de nós. Vejamos a regra de interpretação que nos legou o Apóstolo Paulo. Escrevendo aos Coríntios, disse ele em certo ponto [1Cor 10, 1-4]: ‘Sabemos que nossos antepassados estiveram todos sob a nuvem, que todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, que todos comeram o mesmo alimento espiritual e todos tomaram a mesma bebida espiritual; bebiam do rochedo espiritual que os acompanhava: ora, esse rochedo era Cristo.’ Vós vedes a diferença entre a leitura puramente histórica e o ensinamento de Paulo. À travessia do mar, para os judeus, Paulo chama de batismo; no que eles acreditavam ser uma nuvem, Paulo vê o Espírito Santo. Convém aproximar desta passagem a palavra do Senhor no Evangelho [Jo 6, 49-50]: ‘Vossos pais comeram o maná no 163 profunda que o redator do Evangelho de João ressaltou estar presente em não poucas das falas de Jesus que registrou.434 Não saciado em aprofundar a leitura da Bíblia através do prisma da fé comunitária, da crítica histórico-literária e da experiência, recorreu sistematicamente também ao sistema da alegoria, onde se apoiou para mapear um universo de significações simbólicas em todos os pormenores do texto. Tal leitura deste variado conjunto de obras, entretanto, não é absolutamente original dentro do ambiente intelectual alexandrino de meados do século III d.C. e, conforme antes assinalamos, não se restringia de modo algum àquelas interpretações cristãs da Bíblia Judaica, que tinham como pressuposto que a única leitura realmente correta desta era a que fosse feita à luz das verdades de fé da Encarnação, da Paixão redentora e da Ressurreição de Jesus Cristo. Em última instância, ela se vincula à visão platônica de mundo, que atribuía à qualquer realidade duas faces – uma perecível, visível e contingente e outra imutável, invisível e eterna – , e já encontramo-la na obra de alguns dos filósofos gregos, que a empregavam para interpretar os poemas e mitos da tradição homérica, e de judeus eruditos como Aristóbulo e Fílon435, também alexandrino, autor bastante citado por Eusébio de Cesaréia, que efetivamente o trata como um protocrisão. No início do século I d.C., Fílon era um líder estimado da comunidade judaica de Alexandria e suas interpretações da Torah se assemelhavam de modo surpreendente às que dezoito séculos depois iriam influenciar a redação da Plataforma de Pittsburgh, o documento fundador do Judaísmo Reformado nos deserto e morreram; mas quem comer o pão que eu dou jamais morrerá’. E acrescenta [Jo 6, 51]: ‘Eu sou o pão descido do céu’. Depois, Paulo fala claramente do rochedo que os acompanhava e diz [1Cor 10, 3b]: ‘O rochedo era Cristo’. O que vamos, pois, fazer, nós que recebemos de Paulo, mestre da Igreja, tais regras de interpretação? Não é justo aplicar aos outros casos a regra que ele nos transmitiu por meio de semelhante exemplo? Ou, segundo a opinião de alguns, desprezando o que nos transmitiu tão grande e excelente apóstolo, vamos voltar às ‘fábulas judaicas’?... Tendo, pois, recebido do bem-aventurado apóstolo Paulo os germes da inteligência espiritual, cultivemolos na medida em que, graças às vossas orações, o Senhor se dignará a nos iluminar.” 434 Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver. cit. João 2, 18-22. p. 1847: “(...) Os judeus interpelaram-no, então, dizendo: ‘Que sinal nos mostras para agires assim?’ Respondeu-lhes Jesus: ‘Destruí esse santuário, e em três dias eu o levantarei’. Disseram-lhe, então, os judeus: ‘Quarenta e seis anos foram precisos para se construir este santuário, e tu o levantarás em três dias?’ Ele, porém, falava do santuários do ser corpo. Assim, quando ele ressuscitou dos mortos seus discípulos lembraram-se de que dissera isso, e creram na Escritura e na palavra dita por Jesus.” Ver também: Id. Ver. cit. p. 1847, n. a. 435 Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 196. G. SUFFERT. Op. cit. p. 45. Manlio SIMONETTI. “Alegoria (tipologia)”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. pp. 66-67. 164 EUA.436 O fato de ter sido encarado pelos seguidores de Jesus como um antecipador de algumas de suas doutrinas mais caras tornou suas obras muito populares entre os Padres da Igreja (que, com efeito, foram os que as conservaram para a posteridade), e há quem sugira que ele possa ter prenunciado e mesmo influenciado uma considerável parcela dos argumentos presentes nas epístolas paulinas; sobre isto, Henri Crouzel escreveu que Fílon era “um judeu que muitas vezes em sua teologia está próximo de um cristão: é de se notar a afirmação de que Deus opera na alma a ação virtuosa e que o homem deve dar-lhe graças; a distinção do criador e da criatura substitui aquela mais grega do incorpóreo e do corpóreo; enfim, a importância dada à caridade.”437 Tal fato pode ter realmente concorrido para criar entre os judeus da diáspora um consenso receptivo àquilo que Gerd Theissen definiu como sendo nada mais do que uma forma de “judaísmo adaptado”438, mas isto não é o principal tema de nossa presente consideração; importa-nos mais ressaltar aqui alguma das mais evidentes afinidades de seu método de exegese com o desenvolvido pela escola teológica alexandrina, de modo especial por Orígenes. Exatamente como os rabinos que compuseram o movimento reformista dos séculos XIX e XX, Fílon estava preso entre dois mundos, não pertencendo integralmente a nenhum deles: “(...) Como poderia ele ser totalmente helenizado, se de certa forma permanecida judeu?”439 Nutrido do sincero apego à fé de seus pais e da melhor formação enciclopédica que a cultura helenista podia oferecer – tratava-se de homem solidamente versado em gramática, retórica, dialética, jurisprudência comparada, música, geometria, astronomia, física e medicina – empenhou-se em lidar com os textos que venerava como sagrados e com o que considerava as anomalias presentes neles. A solução que propôs para tal 436 Cf. R. STARK. Op. cit. ps. 66-67 e 74. Alan UNTERMAN. “Reformista, judaísmo”. In: Dicionário judaico de lendas e tradições. (Trad. Paulo Geiger). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p. 219. 437 Henri CROUZEL. “Fílon de Alexandria”. In: VV. AA. Dicionário patrístico... Op. cit. p. 577. 438 Gerd THEISSEN. The Social Setting of Pauline Christianity : Essays on Corinth. Philadelphia: Fortress Pressm 1982. p. 124. Apud: R. STARK. Op. cit. p. 73. Cf. também: K. ARMSTRONG. Op. cit. ps. 109-110, 113-114, 124-125. A mesma autora registra que as primeiras doutrinas cristãs foram consideradas validamente judaicas por ninguém menos do que o insigne Gamaliel, neto de Hilel, um dos mais importantes sábios judeus do período formativo do judaísmo rabínico. Cf. Id. Op. cit. p. 105. 439 R. STARK. Op. cit. p. 74. 165 problemática existencial teve uma influência que ele talvez jamais tenha podido intuir; muito possivelmente este pensador não podia imaginar quais mecanismos de raciocínio estava acionando quando sujeitou à autoridade divina à razão e à interpretação alegórica, considerando a Lei mosaica “exclusivamente por meio do espelho da filosofia grega”440, e, desta forma tentando propor explicações que considerava mais dignas e razoáveis para todo o sistema de normas e crenças sobre o qual se assentava a religião judaica. Zelosamente, Fílon buscou extrair dali tudo o que fosse demasiado sensível ou arbitrário, ou reformulá-lo como símbolos de realidades ocultas. Seu objetivo inicial parece ter sido modesto e mesmo limitado – mostrar os caracteres arcaicos e os fundamentos transcendentes, e, portanto, eternamente válidos, de certas regras jurídicas –, mas o que realizou foi muito mais notável. Afirmou que Iaweh proibiu aos judeus o consumo de carne de aves de rapina e de mamíferos carnívoros para exaltar a virtude da paz; que o Templo de Jerusalém era um símbolo do mundo, e suas diversas partes análogas às regiões do cosmo, da mesma forma que também o eram as vestes do sumo-sacerdote que uma vez por ano penetrava no recinto do Santos dos Santos para se pôr diante de Deus; que os animais são na Escritura e nos sonhos a forma visível das paixões invisíveis; que os casais Adão e Eva e Abraão e Sara correspondem não a pessoas de carne e osso existentes em qualquer tempo ou lugar, mas ao constitutivo par inteligência e sensação; que Abraão, Jacó e Isaac são três tipos de adquirentes de Sabedoria, respectivamente, pelo estudo, pelo exercício ascético e pelo amadurecimento espontâneo das capacidades naturais.441 Na tentativa de Fílon de conciliar sua crença em um Deus pessoal com a demonstração da harmonia cósmica, o evidente significado histórico, dogmático e normativo de boa parte da Torah perdeu substância em favor de sentimentos morais e espirituais que lhe estariam implícitos, ocultos sob os caracteres. É certo que pessoalmente ele tinha uma acentuada propensão mística, mas seu compromisso com a filosofia platônica o levou a afastar drasticamente o divino do mundo, postulando que o sobrenatural só podia de fato ser apreendido em meio a 440 W. H. C. FREND. The Rise of Christianity. Philadelphia: Fortress Press, 1984. p. 35. Apud: R. STARK. Op. cit. p. 74. 441 cit. Cf. R. STARK. Op. cit. p. cit. H. CROUZEL. Op. cit. pp. 576-577. G. SUFFERT. Op. cit. p. 166 camadas e camadas de abstração e esforço intelectual sucessivo.442 Dois circuitos de idéias – aparentemente conflitantes, mas de fato encadeados – são ativados na obra de Fílon e de seus pares, e é importante que os mencionemos com clareza. 443 Em um determinado plano, a intervenção direta de Deus na História é transladada do plano sensível para o inteligível: o raivoso e patologicamente ciumento Iahweh do Antigo Testamento ganha os ares de um remoto Ser Absoluto; o Criador que no terceiro capítulo do livro do Gênesis passeava no primevo jardim no frescor da tarde, conversando com as suas criaturas e sendo por elas enganado, acaba por ser considerado onipotente, dotado de conhecimento infinito e posto fora do tempo, “en un presente inmóvil y abrasador de siglos, ajeno de vicisitudes, horro de sucesión, sin principio ni fin.”444 Em outro plano, não são apenas os escritos sagrados que ganham significados transcendentes, mas também os fatos que eles narram – e potencialmente todos os fatos que dizem respeito àqueles que procuram Deus. Textos e contextos são inflados de uma dignidade religiosa difícil de conceber agora no final da primeira década do século XXI: determinados até nas mínimas coisas por Deus, que nada dispõe de forma leviana, os acontecimentos passam a ser encarados como saturados de Providência, concretizações astuciosamente veladas do supremo Poder e de sua toda-poderosa Vontade. Seguindo por caminhos nem tão diversos dos de Fílon, os Padres Alexandrinos iriam chegar a conclusões semelhantes às suas, ainda que significativamente matizadas por sua crença na Encarnação; não surpreende, portanto, que tenham utilizado tão amplamente a obra deste homem que partiu de um pensamento filosófico para chegar a um encontro místico com a divindade e, neste, a uma sacralização das próprias realidades criadas e uma decisiva valorização da História enquanto palco da atuação da Providência. Inspirado nos procedimentos exegéticos de tal pensador judeu-helenístico, Orígenes buscou sistematizar suas intuições de fiel cristão e elaborar uma teoria dos diversos sentidos da Escritura que tomasse como analogia os três elementos ou distintos níveis que cria comporem o ser humano: corpo, mente e espírito. Em princípio, portanto, distinguiu três graus de crescente profundidade a serem 442 Cf. D. WINSTON. “Whas Philo a Mystic?” In: J. DAN e F. TALMAGE (orgs.). Studies in Jewish Mysticism. Cambridge: AJS, 1982. pp. 15-19. 443 Cf. R. STARK. Op. cit. p. 75. 444 Jorge Luis BORGES. Inquisiciones. Madri: Alianza, 2002 [1998]. p. 163. 167 assinalados na leitura dos textos bíblicos - um corporal / literal, um psíquico / moral e um espiritual / místico –, ainda que não pudesse se ater estritamente a estes na medida em que reconhecia que os escritos que considerava sagrados estariam sempre abertos a atualizações e novas leituras divinamente inspiradas, e em que era perfeitamente cônscio de que na experiência cristã é a adesão espiritual ao movimento de Jesus de Nazaré que comanda a vida moral do crente.445 Orígenes recusou em numerosas ocasiões a tentação de volatizar o texto que se punha a analisar e construir sobre a interpretação deste teias e arabescos de divagações, ressaltando sempre que é o sentido literal do escrito a base de toda a sua interpretação, ainda que este não esgote o seu alcance, da mesma maneira que, para o fiel, o sofrimento de Jesus de Nazaré em sua tortura e assassínio não foram um fim em si mesmos, mas parte de um projeto de redenção enquanto meio para que a humanidade pecadora fosse reapresentada a Deus.446 Tal expediente interpretativo, muito divulgado, logo deu origem às mais diversas ficções e excêntricas conjecturas, que chegavam ao ponto de mencionar um passagem bíblica e retorcê-la até que o significado oculto que lhe fosse atribuído contradissesse o que ela com todas as letras comunicava; Orígenes intuiu este mal do qual logrou esquivar-se, e estabeleceu a normativa de que a literalidade da Escritura deve ser objetivamente levada em conta ao se estabelecer algo a partir de sua mensagem, que ela deve ser explicada necessariamente por si própria , e que os sentidos que dela podem ser depreendidos precisam lhe ser coerentes para que possam ser válidos. Como registra Liébaert, (...) sem se identificar com a exegese patrística, a interpretação origenista da Escritura representa assim mesmo a sua tendência dominante, e o que se diz sobre ela vale amplamente para o todo.”447 445 Isto significa, em outros termos, que em certos ensaios exegéticos Orígenes passou com tranqüilidade do sentido literal de um texto ao conteúdo místico que ali acreditava repousar, e que se referia a coisas relativas aos planos divinos de salvar o gênero humano, a Cristo, à Igreja... E daí à aplicação moral-práxica destes conteúdos. Sua teoria, portanto, englobava também variações aplicáveis a alguns casos especiais, às vezes especialmente problemáticos, e justamente por esta sua extraordinária flexibilidade foi logrou tamanha popularidade e sobrevivência nos meios cultos cristãos. Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 99. 446 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Epístola aos Hebreus 9, 15b.26b. p. 2094: “(...) Sua morte aconteceu para o resgate das transgressões cometidas no regime da primeira aliança; e, por isso, aqueles que são chamados recebem a herança que foi prometida. (...) uma vez por todas, agora, no fim dos tempos, que ele se manifestou para abolir o pecado por meio do seu próprio sacrifício.” 447 J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 104. 168 Não tardaria a se opor ao sistemático alegorismo dos auto-proclamados herdeiros do insigne teólogo alexandrino toda uma estirpe de exegetas, formados sob os auspícios da Sé de Antioquia, que se caracterizariam pelo reverente respeito à literalidade do texto bíblico e pela veemente recusa de proceder à arbitrária exumação de sentidos supostamente escondidos pela Inefável Razão sob ou entre as linhas dos sacros manuscritos que gerações de fiéis tinham atestado como divinamente inspirados. Estes homens, verdadeiros apóstolos do senso comum dos crentes, desconfiados de inovações, proverbialmente sóbrios e dotados de um olhar tão crítico que às vezes chega a transmitir-nos um aroma de ceticismo, segundo a fórmula de Teodoro de Mopsuéstia, abstiveram-se resolutamente de “ver Cristo por toda parte nas Escrituras”.448 Foram, contudo, um pequeno conjunto de comentadores, limitados a um não muito vasto ambiente eclesial (a região de Antioquia dos séculos IV e V), que não conseguiram fazer frente à transformação do texto bíblico em uma “floresta de símbolos”.449 Devemos notar que – fato capital para a nossa reflexão – a interpretação alegórica do texto bíblico era então absolutamente indissociável de sua extensão aos eventos por ele referidos, e logo a crença na Divina Providência foi ativada para transformar toda a realidade em um imenso texto que também é uma comunicação de Deus. Extraordinário é o alcance de tal concepção na história intelectual das regiões culturais cuja matriz civilizadora foi o cristianismo. Já fora do ambiente patrístico, mas ainda na Alta Idade Média, o gaulês Amalário de Metz, falecido por volta de 837, inspirando-se talvez em práticas orientais que lhe eram contemporâneas e das quais hoje não temos notícias, aplicou um símile da leitura alegórica das Escrituras à vida ritual da Igreja. “(...) Amalário se manteve na tradição dos Padres e da Liturgia no que se refere ao aspecto sacrificial da eucaristia (...) Mas foi justamente partindo da afirmação da presença do sacrifício da cruz na celebração que ele procurou mostrar em todas as passagens da 448 Citado em: Id. Op. cit. p. 104. Cf. B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 196. 449 A expressão foi retirada de: J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 101. 169 celebração um aspecto da paixão do Senhor e até de toda a sua vida.”450 Seus desdobramentos seriam ainda mais notáveis. A idéia a um só tempo singela e astuta de que a divindade teria escrito um livro prenhe de tantos sentidos que era ele mesmo vivo acabou ainda por conduzir os cristãos à piedosa asserção de que ele escrevera dois, e que o outro era a Criação ou a História. Desejando reunir argumentos justificativos da verdade simultânea da Bíblia e da teoria copernicana, Galileu Galilei apresentou aos seus detratores uma explicação engenhosa das aparentes discrepâncias entre as palavras do corpus escriturístico e os fatos observados na natureza, onde afirmava que só existia uma Verdade, mas que esta é comunicada sob duas formas, complementares; que são ambas linguagens de Deus, ainda que em uma Ele tenha sido mais explícito do que na outra: “(...) tanto as Sagradas Escrituras como a Natureza procedem do Verbo Divino, as primeiras como a fala do Espírito Santo e a segunda como a executora mais vigilante das ordens de Deus.”451Em seu Advancement of Learning, composto no início do século XVII, Francis Bacon afirmou que Deus ofereceu aos homens dois livros – o volume das Sagradas Escrituras, onde está minuciosamente consignada a Sua Vontade, e o volume das coisas criadas, que atesta o Seu Poder e seria como que uma chave-de-leitura do outro – para que não pudéssemos nos escusar de crer n’Ele e nem incorrêssemos em nenhum tipo de erro. Por volta de 1624, Sir Thomas Browne escreveu que dois eram os livros em que costumava a aprender teologia – a Bíblia e a natureza, manuscrito universal e público, posto sempre à contemplação de todos os viventes – e que todas as coisas eram artificiais, porque todas as coisas subsistentes eram obra de Deus. No ensaio A educação do gênero humano, de 1780, G. Ephraim Lessing apresentou a história da humanidade como estruturada por um desígnio pedagógico da parte de Deus, que, passo a passo, orquestra os diversos e aparentemente díspares acontecimentos e excita a razão dos povos para que eles se ponham mais e mais no caminho do cumprimento de Sua Vontade, ou seja, 450 Salvador MARSILI et al. A Eucaristia : Teologia e História da Celebração. (Trad. Benôni Lemos; rev. téc. José J. Sobral). São Paulo: Paulus, 1986. (Col. “Anámnesis”, n. 3). p. 101. O grifo é nosso. Comparemos isto com o que já havia afirmado, por exemplo, Clemente de Alexandria (Paidagogós 2, 19s): “(...) O sangue do Senhor tem um duplo sentido: um, carnal, resgata-nos da perdição; outro, espiritual, unge-nos. Beber o sangue de Cristo significa participar da imortalidade do Senhor.” Citado em: B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 202. 451 Citado em: D. J. BOORSTIN. Op. cit. p. 298. 170 diante de Sua Presença. Em 1833 o escocês Thomas Carlyle superou todas as conjecturas anteriores e declarou que a história universal – à qual os homens devem decifrar e onde todos eles estão inscritos – é uma Escritura Sagrada da qual somos co-autores, ainda que, como afirmaria tal autor um ano mais tarde, o sejamos de diferentes formas (as pessoas de gênios seriam verdadeiros evangelhos, enquanto os meramente talentosos e os demais são comentários, glosas, anedotas, traduções e sermões). Contra a visão cristã providencialista, de um Deus que orienta a História e manipula os homens, fazendo com que, repousando na ignorância pessoal e coletiva, eles cumpram os Seus desígnios, um “Deus que tece como aranha”452, é que Nieztsche se insurgiu, proclamando-a, mais a modo de profeta do que de filósofo, como “uma das mais corruptas concepções de Deus a que sobre a terra se tem apresentado”.453 No começo do século XX, Léon Bloy retomou a convicção registrada em um catecismo distribuído às crianças de França, “depois do Antigo e do Novo Testamento, o mais belo dos livros do mundo”454, de que nada no mundo acontece sem a expressa ordem ou, pelo menos, a tácita permissão do Criador. Este autor afirmou explicitamente que “(...) Quando se diz que é uma lástima que tal acontecimento tenha sucedido em lugar de tal outro, a gente considera sempre a si mesmo, não a Deus... É preciso dizer, pelo contrário, que tudo o que acontece é adorável, tanto na história dos povos como na história dos indivíduos, e que nada deve ser suposto melhor ou mais feliz do que sucede hoje ou sucedeu a cem anos – mesmo as mais terríveis 455 catástrofes.” Para o responsável por esta singular observação, a história humana é um imenso texto litúrgico, prenhe de significados, ainda que a importância de cada evento e personagem seja indeterminável e esteja profundamente oculta naquilo 452 Friedrich NIEZTSCHE. O Anticristo. (Trad. Pietro Nassetti). São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 51. 453 Id. Op. cit. pp. 51-52. 454 Octávio de FARIA. Léon Bloy. Rio de Janeiro: Record, 1968. (Col. “Profetas do Mundo Moderno : O Pensamento Pelos Textos”, n. I). p. 144. 455 Id. Op. cit. p. cit. 171 que é a inconcebível mente do Senhor.456 Dá-nos verdadeira sensação de vertigem constatar que tais muito influentes concepções sobre o divino e o humano, determinantes durante muitos séculos no âmbito do debate metahistórico e historiográfico já estão apresentadas – ainda que implicitamente ou em gérmen – no pensamento origenista e, como tais, orientam o plano e a redação da História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia. 456 Cf. J. L. Op. cit. 2007. pp. 135-136. Jorge Luis BORGES. Prólogos : Com um prólogo dos prólogos. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Rocco, 1985. p. 39. G. Ephraim LESSING. “La educación del genero humano”. In: Escritos filosóficos e teológicos. (Org., trad. esp., introd. e notas Augustín Andreu Rodrigo). Madri: Nacional, 1982. 172 VI. “Os sacerdotes procederam para com ele como depois fizeram comigo, embora eu nada lhes tivesse dito sobre minha família. Conduziram-me a uma das dependências do templo, onde me mostraram colossais estátuas de madeira que lhes haviam legado os grandes sacerdotes, pois cada um destes não deixa, em vida, de ali colocar sua estátua. Enumerando-as todas na minha presença, provaram-me, pela do último morto, que cada um daqueles sacerdotes era filho de seu predecessor, mas sem admitir, todavia, que eles tivessem sua origem em algum deus, como Hecateu quisera fazê-los acreditar falando-lhes de sua genealogia. A essa afirmativa do historiador, eles opuseram a genealogia daqueles pontífices, limitando-se a dizer-lhe que cada um deles representava um piromis (termo egípcio correspondente a bom e virtuoso) gerado por outro piromis, continuando assim até o último daquela geração de sacerdotes. Sua origem, eles não deviam a nenhum deus ou herói. Os sacerdotes provaram-me, assim, que todos aqueles representados pelas estátuas, longe de serem deuses, haviam sido piromis, e acrescentaram ser verdade que, em tempos anteriores à existência desses homens, os deuses tinham reinado no Egito e privado com os mortais. (...) Os Egípcios consideram esses fatos incontestáveis, pois têm o hábito de anotar rigorosamente o transcurso dos anos. HERÓDOTO, História, II : 63-65 “¿Quién se resigna a buscar pruebas de algo no creído por él o cuya prédica no le importa?” JORGE LUIS BORGES, “Tres versiones de Judas” Além da singular mistura de pregação e demonstração especulativa, de pathos e logos, que marca a narrativa da História Eclesiástica, deve ser levada em conta a já destacada erudição de Eusébio, e como esta conforma a sua escrita. Uma vez mais, usemos um exemplo como referência empírica. No décimo terceiro capítulo do primeiro Livro desta sua obra, o bispo de Cesaréia registrou a história de como o rei Abgaro, “que reinava excelentemente sobre os povos do outro lado do Eufrates e tinha seu corpo destroçado por uma doença terrível e incurável pelo poder humano”457, ouviu falar de um homem chamado Jesus, de quem se dizia que fazia milagres, e lhe enviou uma carta por um mensageiro, pedindo que este fosse até a sua presença e o livrasse de sua enfermidade. O curandeiro não atendeu seu pedido de imediato, mas o respondeu, fazendo-lhe “a honra de uma carta de próprio punho e letra”458 na qual prometia enviar mais tarde um de seus seguidores até a monárquica presença, para salvar os 457 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro I : 8, 2. p. 40. 458 Id. Op. cit. Livro I : 8, 3. p. cit. 173 corpos e almas do rei e de seus súditos. Assim sendo, não muito depois da crucificação de seu mestre, “Tomás, um dos doze apóstolos, movido por Deus, enviou à região de Edessa Tadeu – que também era um dos setenta discípulos de Cristo – como arauto e evangelista da doutrina de Cristo, e por meio dele se cumpriu o que se havia prometido.”459 Eusébio relatou que, estando Tadeu em Edessa, ele se pôs a curar todo tipo de enfermidades, e o rei Abgaro, lembrando-se da promessa feita por Jesus em sua carta, o fez vir aos pés do seu trono. Nesta ocasião, diante de sua corte reunida, “uma grande visão apareceu a Abgaro no rosto do apóstolo Tadeu”460 e o monarca se prosternou diante do andarilho – que o curou, aos grandes de seu reino e à outros de seus concidadãos. Após isso, pediu que Abgaro reunisse em assembléia todos os moradores de seus domínios, e a eles pregou sobre a vida e as obras, o caráter divino e a missão, a humilhação, a morte, a ressurreição e a ascensão aos céus de Jesus; o rei fez como foi pedido e ordenou também “que lhe dessem ouro e prata sem poupar”461 – agrado do qual Tadeu declinou. Tal narrativa dos primeiros tempos, heróicos, do movimento dos seguidores de Jesus é demasiado problemática, e muito possivelmente fictícia. Para mencionarmos um único ponto em que se evidencia a sua falta de verossimilhança, Eusébio data a troca de afabilidades entre Abgaro e Jesus nos anos 28 ou 29 de nossa Era, período em que o Nazareno, mais um pregador itinerante entre tantos pregadores itinerantes da Palestina do século I, possivelmente não era conhecido nem mesmo em Jerusalém.462 Esta consideração, entretanto, é de pouca importância para a nossa presente reflexão. Importa-nos muito mais considerar aqui a forma como o autor da História Eclesiástica narra 459 Ibid. Op. cit. Livro I : 8, 4. p. cit. 460 Ibid. Op. cit. Livro I : 8, 14. p. 42. 461 Ibid. Op. cit. Livro I : 8, 21. p. 43. 462 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. pp. 222-223. J. P. MEIER. Op. cit. Richard A. HORSLEY e John S. HANSON. Bandidos, profetas e messias : Movimentos populares no tempo de Jesus. (Trad. Edwino Aloysius Royer). (2ª ed.). São Paulo: Paulus, 2007. (Col. “Bíblia e sociologia”). Ver também: M. FIORILLO. Op. cit. pp. 214-228. Jacinto GONZÁLEZ NUNEZ (Tr. e anot.). La leyenda del Rey Abgar y Jesus : Origenes del cristianismo em Edessa – Seguido de “La Ensenanza del apostol Addai”. Madri: Ciudad Nueva / Fundación San Justino, 1995. (Col. “Apocrifos cristianos”, n. 1). Celso Taveira evidenciou as ligações entre a história da cura e conversão de Abgar por Tadeu com a da cura e conversão de Constantino por Silvestre. Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. 2002. pp. 208-212, e notas correspondentes, n. 64-66. 174 este evento: no centro desta historieta breve, que pode ser colocada junto com outros atos apócrifos dos apóstolos – literatura recreativa popular nos diversos meios cristãos dos séculos I e II, que tem como principal pretensão completar a narrativa de Lucas “pela narração dos destinos pessoais de alguns apóstolos”463 – Eusébio interpola a transcrição das cartas de Abgar e Jesus. Chegamos a um ponto nevrálgico. Não se trata apenas de citar uma passagem bíblica e interpretá-la como apoio a um determinado argumento, expediente usado deste o começo do movimento de Jesus e que, em última instância, de acordo com os textos intracanônicos, remete à sua própria pregação.464 Não se trata da menção de um autor ou documento para refutá-lo unicamente, recurso presente nas obras de outros escritores cristãos antes da História Eclesiástica, e que quase invariavelmente, pela ferocidade e parcialidade demasiadas de sua argumentação, incapaz de considerar a racionalidade própria e as motivações dos adversários, mas apenas os efeitos nocivos e desagregadores de suas idéias no interior da vida comunitária e do sistema doutrinal cristão hegemônico, produziu sobre os trechos citados “mais faíscas que luz.”465 Os expedientes de convencimento usados por Eusébio não são aí apenas evidentemente autorais, relacionados tanto à coerência de seu raciocínio quanto à capacidade intra-textual de seduzir do leitor, mas remetem este a uma autoridade outra, não-bíblica: “(...) Temos de tudo isto testemunho escrito, tirado dos arquivos de Edessa, que naquele tempo era a corte. Nos documentos públicos que neles se guardam e que contém os feitos antigos e dos tempos de Abgaro, encontra-se também o referido testemunho, conservado deste então e até hoje. (...) nada melhor do que ouvir as próprias cartas que tiramos dos arquivos e que, traduzidas do siríaco, dizem 466 textualmente como segue”. Dos primeiros aos últimos Livros da História Eclesiástica tal recurso é utilizado: Eusébio cita, entre outros, trechos não pequenos de Flávio Josefo, Sexto 463 B. ALTANER e A. STUIBER. Op. cit. p. 141. 464 Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver. cit. Lucas 4, 14-27. pp. 1794-1795. 465 M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 36. Eusébio também o faz em muitas ocasiões, veja-se, por exemplo: EUSÉIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IX : 5. p. 302. Relevante é pensar que em certas oportunidades ele não fez tal coisa, ou ao menos tentou fazê-la em um nível argumentativo bastante diverso, por exemplo, de Inácio, de Tertuliano ou de Irineu. 466 Id. Op. cit. Livro I : 8, 5. p. 40. O grifo é nosso. 175 Júlio Africano, Fílon e Clemente de Alexandria, Tertuliano de Cartago, Irineu de Lyon, Fileas de Tmuis, Sabino, e muitos mais, além de transcrever editos e cartas imperiais romanos referentes aos cristãos. Não é crível que tais ocorrências sejam apenas a marca de um repetido erro estilístico: de fato, é inconcebível que semelhante cacofonia seja acidental na precisa e cônscia redação eusebiana. Ao contrário, suas referências explícitas e citações de documentos não apenas apóiam a sua narrativa, conforme já havíamos mencionado, mas em pontos não desimportantes a estruturam. Não são apenas interrupções ocasionais, incômodos necessários para legitimar uma dissertação eloqüente de façanhas dignas de serem lembradas e corroborar os significativos discursos registrados – ou melhor, recriados de forma verossímil, como deveriam ter sido pronunciados – pelos redatores tanto da grande história política greco-romana (Tucídides, Políbio, Tácito, Suetônio, Plutarco) quanto dos primeiros tipos de escritos cristãos (hinos e fórmulas litúrgicas, símbolos e profissões de fé, cartas pastorais, catecismos, evangelhos, atos e apocalipses). Na História Eclesiástica tais excertos são elementos vitais que fazem de Eusébio de Cesaréia, se não o primeiro, o patrono de uma venerável linhagem de historiadores dedicados à menção dos mais diversos documentos escritos e à discussão minuciosa de problemas específicos a respeito de sua veracidade, datação e sentido.467 As origens deste tipo de preocupação e uso “são muito antigas e, por isso, obscuras”.468 Sua busca nos remete a um período muito anterior à Cristandade e mesmo à História de Heródoto; talvez possamos situá-la nos mais áureos tempos do Império Persa, cujos soberanos faziam conhecer sua vontade em seus vastos domínios subdivididos em numerosas satrapias por meio de editos gravados em pedra e metal – alguns dos quais foram reproduzidas nas crônicas de seus súditos.469 De qualquer forma, foi no mundo helenístico, durante os séculos III e II a.C., que essa forma de história fartamente documentada, insuflada pela pretensão 467 Anthony GRAFTON. As origens trágicas da erudição : Pequeno tratado sobre a nota de rodapé. (Trad. Enid Abreu Dobránszky). Campinas: Papirus, 1998. ps. 129-130 e 135. E isto não obstante o próprio Eusébio de Cesaréia ter sido um pouco crédulo demais em relação as fontes às quais teve acesso, como mostra o próprio caso mencionado da suposta troca de correspondências entre Abgaro (também Abgar) e Jesus. Cf. M. FIORILLO. Op. cit. pp. 220-221 e nota correspondente, n. 90, p. 273. 468 469 A. GRAFTON. Op. cit. p. 135. Como, por exemplo, os judeus. Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver cit. Esdras 1, 1b-4. p. 628 e nota correspondente, n. f. 176 de se referir a episódios – além de dignos de serem lembrados – verdadeiros, tomou forma. Podemos, unicamente para fins analíticos, isolarmos e mencionarmos como duas as suas matrizes principais. A primeira destas remete-nos aos sacerdotes, administradores, juristas e cientistas da Síria, da Mesopotâmia, do Egito e de Israel.470 A existência destes homens de letras (e números) tinha como pressuposto sistemas culturais refratários à idéia de progresso, que concebiam as mudanças apenas no interior de um sistema temporal cíclico, e que se assentavam na – e se legitimavam pela – gestão e transmissão de certos dados escritos. Os sinais laboriosamente gravados em tabuletas de argila, na pedra e no bronze, na madeira, no couro, no vellum e no papiro organizavam de algum modo a entropia das vivências cotidianas e dos eventos extraordinários (mas previstos) ao fazer uma distinção entre o que deveria ser registrado e rememorado (ou não), criando assim uma “imagem lingüística e inteligível do cosmos.”471 Tal ordem de coisas sustentava e era decorrente de modelos sócio-políticos que, baseados em um lastro cultural e mental largamente comum, entretanto, eram bastante distintos entre si: “Estado omnipotente e cidadão em potência no Egipto clássico, iniciativa privada e individualismo na Mesopotâmia semítica, monarquia 470 Cabe lembrar que nas antigas culturas semitas e no Egito faraônico, em não poucos momentos – ou melhor, na maior parte do tempo – as funções sacerdotais, administrativas, jurídicas e científicas, tais como as compreendemos na Contemporaneidade, se sobrepunham e se articulavam em uma prática e em um discurso integrados. Pensar em uma divisão entre ciência e religião, tão típica do Ocidente hodierno – e que talvez não seja empiricamente verificável nem aí – e projetá-la no mundo pré-moderno é um anacronismo crasso. Cf. José Nunes CARREIRA. Introdução à História e Cultura Pré-Clássica : Guia de Estudo. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1992. (Col. “Biblioteca Universitária”). pp. 31-33. Paul GARELLI. O Oriente Próximo Asiático : Das origens às invasões dos povos do mar. (Trad. Emanuel O. Araújo). São Paulo: Pioneira / USP, 1982. pp. 80-81. 471 José Nunes CARREIRA. Filosofia antes dos gregos. Mem-Martins: Publicações EuropaAmérica, 1994. p. 12. Além do mundo público – doméstico, agrícola, templário ou estatal – é interessante ter em mente que esta imagem do mundo determinava, por exemplo, a devoção religiosa dos homens e mulheres daquilo que se convencionou chamar na historiografia de região do Crescente Fértil: “(...) Em quase todos os setores (...), em quase todas as épocas verifica-se a existência de antropônimos inteligíveis, que consistem em nomes determinados do tipo ‘servidores do deus N.’ ou em curtas frases verbais ou nominativas que atribuem a um determinado deus um certo número de acções ou de propriedades que acabam todas por significar que o deus em questão protege (cura, salva, faz viver, gera, etc.) o portador do nome. Esta constância da antropologia semítica não é absolutamente específica, sendo no entanto reveladora de uma certa constância de devoção.” Pierre LÉVÊQUE. As primeiras civilizações. Volume III : Os indo-europeus e os semitas. (Trad. Antonio J. P. Ribeiro). Lisboa: Edições 70, 1990. (Col. “Lugar na História”, n. 43). p. 155. 177 representativa e ‘democrática’ em Israel.”472 Muitos destes sacerdotes, administradores, juristas e cientistas – assim como os herdeiros imediatos dos saberes altamente especializados dos quais eram detentores – viveram para serem repentinamente submetidos a potências estranhas à seu horizonte sócio-político e intelectual, ou marginais a ele: primeiro, vieram os gregos com Alexandre da Macedônia, e depois os romanos, de certa forma seus sucessores. Estas novas forças conquistadoras atuaram de modo decisivamente diverso de seus antecessores, tanto sumério-babilônicos (permitiram que os povos conquistados se mantivessem em suas pátrias), quanto persas (permitiram que os povos conquistados assimilassem algo da cultura de seus novos senhores), e o estabelecimento do grego como uma língua franca permitiu que os representantes mais cônscios de culturas que antes só se haviam encontrado em campo de batalha ou esporadicamente e em seus próprios termos idiossincráticos lidassem diretamente uns com os outros, dentro de um padrão idiomático – e, portanto, epistemológico – comum. Oriundos de tradições diversas, ainda que interligados por seu passado remoto e por sua submissão presente a outros, estes quadros intelectuais derivados daquilo que a teoria marxista enquadrou na rubrica comum de Modo de Produção Asiático não tardaram a se encararem como rivais uns dos outros, assim como de seus dominadores. Como seus correspondentes acadêmicos da atualidade, não poucos dentre estes experimentaram a trágica necessidade de se afirmarem superiores aos demais que se encontravam em igual situação e de “vingar no arquivo suas derrotas no campo de batalha.”473 Quando no século III a.C. o egípcio Manetho e o caldeu Berossus verteram para o grego relatos míticos e crônicas de suas respectivas culturas, eles já estavam empenhados em demonstrar a antiguidade e a respeitabilidade destas, em salvaguardar o que podiam lá onde as armas greco-romanas não o poderiam alcançar: no passado. Em outros termos, a sedução do outro conquistador e a ameaça da assimilação – mais do que a de desterro ou extermínio – quando somada a uma drástica aproximação de modos tão distintos de ser no mundo fez com que se tornasse urgente para outros letrados como Manetho e Berossus “mostrar que vieram de um antigo Estado, que 472 J. N. CARREIRA. Op. cit. 1994. p. 273. 473 A. GRAFTON. Op. cit. p. cit. 178 possuíam uma tradição política e social há muito estabelecida, registrar sua história em uma longa série de documentos, preferivelmente inscritos em pedra, assim como sua religião venerável.”474 Os judeus seguiram este mesmo caminho por volta, no máximo, do século II a.C. Merecem ser tratados à parte já que “(...) O encontro do helenismo com o judaísmo (...) foi o maior acontecimento isolado da história helênica.”475 As medidas de helenização levadas a cabo pelos selêucidas na parte judaica da Celessíria não apenas foram politicamente pouco prudentes como chegaram às raias da catástrofe. Tentativas de coagir os judeus e mudar à força alguns de seus mais arraigados preceitos religiosos provocaram não apenas proclamações exaltadas – “e sobre a nave do Templo estará a abominação da desolação”476 –, mas também martírios e uma rebelião liderada pela família Hasmoneana, que logrou ser vitoriosa. Os Hasmoneanos – também conhecidos como Asmoneus ou Macabeus – construíram um principado guerreiro independente a partir do antigo Estado-Templo de Jerusalém, atacaram e destruíram algumas colônias gregas ou filo-helênicas instaladas a leste do rio Jordão, conquistaram e converteram pela força as regiões vizinhas da Iduméia e da Galiléia à sua fé, e talvez tenham criado a primeira forma combativa de nacionalismo judaico.477 Esta reviravolta política foi ao encontro das já mencionadas angústias de alguns letrados: era necessário afirmar que era legítima a existência de um reino judaico independente. Tal necessidade de algum modo se expressou nas formas articuladas e mutuamente dependentes de um revival religioso, de uma hipertrofia da importância de Jerusalém, do seu Templo e do sistema cúltico para o qual este havia sido erguido, e da re-elaboração de dados históricos na forma de novas crônicas, mais adequadas aos novos tempos. Quando a expansão da autoridade romana – primeiro, pelos seus colaboradores locais e, depois, pela marcha de suas próprias legiões – pôs fim à autonomia conquistada na guerra macabéia, o anseio de autoafirmação e a escolha da discussão erudita como campo de batalha (possível) foi inflacionado em proporções correspondentes a esta nova vicissitude. As gerações 474 Id. Op. cit. p. cit. Cf. A. LESKY. Op. cit. p. 808. 475 A. TOYNBEE. Op. cit. p. 173 476 BÍBLIA. Ver. cit. Daniel 9, 27b. p. 1573 e nota correspondente, n. l. 477 A. TOYNBEE. Op. cit. p. 172. 179 de cristãos que ficaram com o encargo pouco gratificante de se verem com a não ocorrência da parusia que criam iminente e de enfrentarem as críticas disparadas contra seu partido por judeus e gentios seriam decisivamente impactados por tais circunstâncias. O primeiro espécime acabado e genuinamente judeu deste gênero de escrito do qual temos conhecimento é a chamada Carta de Aristeas a Filocrato. Esta epístola explica as origens da tradução grega da Bíblia hebraica, a Septuaginta, e nesta narrativa o autor insere uma grande quantidade do que parecem ser documentos oficiais: memorandos do século III a.C. nos quais Ptolomeu Fidelfo (ou Sóter), rei do Egito, e Demétrio de Falero, um suposto bibliotecário de Alexandria, discutem a necessidade de acrescer tal versão dos textos sagrados dos judeus ao maior acervo de conhecimento escrito da Antigüidade, assim como quais os procedimentos usariam para obtê-la. Ainda não se chegou a um consenso acerca de sua data de redação, mas não é improvável que seja apenas pouco anterior, ou mesmo contemporânea, aos primórdios do movimento de Jesus – de qualquer forma, ela evidentemente se refere a um objeto cuja existência lhe é significativamente anterior. A Carta de Aristeas, com todos os preciosos documentos que ela menciona, “tem a desvantagem de ser uma fraude, mas também as virtudes da brevidade e da clareza.”478 O modelo que forneceu teve uma imensa ressonância: de fato seu autor acabou por determinar os contornos principais pelos quais o gênero viria a se desenvolver. Seus objetivos apologéticos e o tipo de debate no qual se insere determinam sua forma: “(...) não a prosa despojada, clássica dos historiadores políticos, mas uma mistura de argumentos técnicos e documentos de apoio, os últimos citados literalmente no próprio texto.”479 Aristeas é um ilustre precursor daqueles trechos mais incômodos de seu correligionário Flávio Josefo. Já vimos antes como este autor se aproximou da historiografia política conforme esta foi redigida por Tucídides e Políbio, mas, ao contrário destes, ele usou farta documentação para conferir eficácia discursiva à alguns de seus relatos – como prova, por exemplo, de que o erudito grego Apiano 478 A. GRAFTON. Op. cit. p. 136. 479 Id. Op. cit. p. cit. 180 e o egípcio Manetho haviam incitado violências de todo tipo contra a comunidade judaica de Alexandria. Ele cita diretamente no corpo de sua narrativa grandes fragmentos documentais ou mesmo escritos in extenso, enveredando não raro em minuciosas discussões sobre onde os havia encontrado e porque eram dignos de crédito. Parece que a maior parte destes textos Josefo simplesmente leu, já vertidos para o grego, em obras mais antigas, hoje perdidas, mas, no entanto, este historiador menciona ter localizado alguns deles em arquivos de cidades reais. Em Contra Apião (1, 73) e nas Antigüidades Judaicas (8, 50-55), inclusive, fez referências a documentação fenícia que remontava a milhares de anos antes de sua época.480 Argumentou que estes eram autorizados porque tinham sido “preservados [em sua maior parte] por sacerdotes, e não meros historiadores”481, e declarou com argúcia que os documentos que sustentavam as reivindicações judaicas não obstante tenham sido escritos por inimigos dos judeus mereciam especial consideração. Suas afirmações são muito inteligentes, mas a natureza curiosa dos documentos que citou de maneira tão segura ainda hoje é discutida pelos pesquisadores, fazendo sua narrativa parecer “mais uma fonte de problemas críticos do que de métodos para solucioná-los.”482 As relações deste procedimento, o poder de tais afirmações e o raciocínio erudito que os justifica é muito similar ao que podemos perceber na obra de Eusébio de Cesaréia. Não é mesmo vão afirmar que foi tanto aqui como em Diógenes Laércio que o primeiro historiador eclesiástico pode ter se nutrido para elaborar a sua narrativa sobre a caminha histórica de uma única legítima Igreja Cristã. Esta, aliás, podia ser compreendida tanto como uma espécie de nação – superiora a qualquer outra – como uma espécie de escola filosófica – a mais sublime delas –, e o douto prelado assumiu a tarefa de, escrevendo como polemista e crente, provar a factualidade da prioridade de sua doutrina e da transcendência de sua instituição. Há ainda, como anunciamos antes, uma outra matriz historiográfica com a qual dialoga intimamente este esforço. Por volta do século V a.C. no máximo, mesmo antes de caírem sob a dominação das forças estrangeiras dos macedônicos e dos romanos, os gregos já haviam enveredado também por esta preocupação 480 Cf. Ibid. Op. cit. p.141 e notas correspondentes, n. 24-25. 481 Ibid. Op. cit. p. 141. 482 Ibid. Op. cit. pp. 141-142. 181 com as coisas efetivamente antigas. Enquanto alguns historiógrafos de cultura helênica continuaram a se preocupar com a narrativa dos grandes acontecimentos públicos e elaboravam as bases intelectuais de uma história universal, uma miríade de pensadores seus correligionários se dedicava a produzir infindáveis monografias históricas nas quais se tratava de uma imensa esfera de assuntos altamente especializados, como o estabelecimento de datas precisas nas quais acontecimentos importantes haviam ocorrido, a formulação de cronologias comparadas entre o metro olímpico e as diversas formas bárbaras de medir o tempo, a reconstrução discursiva de antigas e semi-perdidas práticas religiosas e instituições políticas, de rituais públicos, de processos judiciários e das vidas privadas de seus ancestrais. Às vezes, tais laboriosos homens transitavam de um gênero a outro sem maiores problemas: Nínfis de Heracléia, por exemplo, compôs uma densa obra de vinte quatro volumes estritamente vinculada ao modelo tucideano que narrava das conquistas de Alexandre Magno até o seu próprio nascimento (em meados do século III a.C.) e também um pequeno e igualmente denso tratado sobre a história de sua cidade. Demorou muito pouco para que os próprios gregos começassem a competir com os já mencionados autores que escreviam na língua dos Helenos as histórias de suas próprias pátrias, refutando algumas de suas pretensões: mencionemos o caso de Menandro de Éfeso, que tentou provar o quanto as tradições fenícias eram derivadas das helênicas e como os seus mitos e titulações nobiliárquicas eram o fruto deformado de um processo mimético mais ou menos explícito que havia sido dificultado por diversos desencontros lingüísticos. Nestas dissertações técnicas poderíamos ir buscar as raízes clássicas do folclorismo, da numismática, da paleografia, da diplomática, da filologia, da história do direito e de tantas outras disciplinas que os historiadores dos século XIX candidamente designaram como auxiliares.483 O historiógrafo siciliano Timeu de Tauroménio (final do século III ou início do século IV a.C.), cuja obra lembra a de Heródoto – ao que consta o seu trabalho mais conhecido também tinha o título de Histórias, e a seção introdutória deste, composta em cinco livros, expunha a geografia do Ocidente ao Mar Cáspio e da Etiópia até o extremo Norte, os costumes de algumas centenas de povos, hipóteses sobre as suas genealogias, além de provérbios e lendas de todo gênero – 483 Ibid. Op. cit. p. 144. A. LESKY. Op. cit. p. cit. 182 foi um digno herdeiro desta tradição monográfica grega. Reconheceu a importância crescente de Roma no contexto mediterrânico e se dedicou à sua arqueologia e expansão militar, foi muito cuidadoso com a cronologia, e citou amplamente um tratado intitulado Sobre a Sicília, de Lico de Régio, que, sob este despretensioso título, era uma ampla história estruturada a partir do antagonismo entre Gregos e Bárbaros. Parece que realizou ou estava prestes a realizar a fusão da tradição historiográfica herodoto-tucideana com a preocupação antiquaria de um muito considerável número de escritores gregos, e para isto parece ter contribuído a sua formação específica: “Timeu tornou-se historiador não nos cenáculos da actividade política e militar, mas sim nas bibliotecas de Atenas.”484 Não nos restaram senão uns poucos fragmentos e citações em outros autores de seus escritos, de modo que não podemos avaliar muito precisamente qual foi a sua influência sobre a historiografia posterior. Conhecemo-lo mais através das considerações de Políbio, que, chegando “à história por um caminho completamente diferente, censurou-lhe a erudição teórica e livresca.”485 Depois dele, a fecunda escrita antiquaria enveredou por uma tendência a fazer recompilações de tudo aquilo que se podia extrair de proveitoso ou bizarro da literatura anterior. Um produto típico deste momento é a vastíssima obra de Agatárquides de Cnido (século II a.C.), que tratou em dez livros da história asiática e em quarenta livros da história européia. Os estudiosos modernos o conhecem relativamente bem devido a um grande extrato de uma sua obra intitulada Sobre o Mar Vermelho (que para ele é o Golfo Pérsico) que foi transcrita e comentada pelo Patriarca Fócio de Constantinopla. Há indícios de que seus trabalhos foram relativamente difundido entre os pensadores romanos do período imperial tardio. Nele a citação documental chega à verdadeira hipertrofia e, associada a miríades de considerações de ordem absolutamente técnica, chega a tornar não poucas passagens simplesmente ininteligíveis aos não-iniciados.486 Antes de Agatárquides, entretanto, outro autor daria um uso bastante diverso para esta erudição. Hecateu, que relutantemente assumiu a liderança da rebelião jônia contra os persas entre 500 a.C. e 494 a.C., escreveu antes de iniciar 484 Id. Op. cit. p. 809. 485 Ibid. Op. cit. p. cit. 486 Ibid. Op. cit. p. 814. 183 sua vida de guerreiro profissional sobre a geografia da terra e as genealogias dos gregos, e usou extensivamente os resultados de suas pesquisas em terras orientais para afirmar que os mitos gregos eram inverídicos, já que iam contra aqueles fatos bem atestados pelas cronografias fenícias e egípcias. “(...) A história mais conhecida sobre ele é registrada por Heródoto: ele se vangloriava diante dos sacerdotes de um templo egípcio que podia contar dezesseis ancestrais e o décimo sexto era um deus. Isso significava colocar a idade heróica dezesseis gerações antes de 500 a.C. A resposta dos sacerdotes egípcios foi a de introduzir Hecateu às imagens de 345 gerações de seus predecessores – sacerdote após sacerdote sem qualquer traço de deus ou de herói no começo da lista. Um homem que desejasse aderir à tradição de sua própria família não teria qualquer dificuldade em aceitar o desafio dos sacerdotes egípcios. Teria respondido que evidentemente os deuses teriam mantido um contato mais prolongado com os gregos do que com os egípcios. Mas este não foi o ponto de Hecateu. A lição que aprendeu ficou registrada na introdução de uma de suas obras – as Genealogias. Em palavras que ainda não perderam a sua força depois de 2.500 anos, ele proclamou: ‘Eu, Hecateu direi o que acredito ser a verdade: as histórias dos gregos são muitas e são ridículas.’ A nova atitude em relação à tradição é clara.”487 Hecateu forjou um instrumento de combate formidável contra a religião grega ao apontar a sua pequenez frente aos antiqüíssimos e muito elaborados outros sistemas de crenças da região do Crescente Fértil. De forma depreciativa, mencionou a multiplicidade das histórias dos helenos e parece ter afirmado “que as tradições gregas, já que eram muitas, contradiziam umas às outras e acrescentavam ao seu próprio absurdo.”488 Pouco antes deste milésio sumamente cético, houve Herodoro do Ponto (também dito de Heracléia) que escreveu um Mito dos Argonautas na qual “o cordeiro de ouro, por que lutavam Atreu e Tiestes, transforma-se numa figurinha de ouro no meio duma bandeja”489, ou seja, onde já se pode notar “claramente a secularização e a banalização do mito”.490 Segundo algumas posteriores compilações de escritos seus, entretanto, ele valorizou as histórias tradicionais através de interpretações moralizantes – retratando, por exemplo, “Héracles como filósofo da virtude que derruba as 487 A. MOMIGLIANO. Op. cit. 57. 488 Id. Op. cit. p. 58. 489 A. LESKY. Op. cit. 359. 490 Id. Op. cit. p. cit. 184 paixões com a maça do espírito”491 – e, de qualquer forma, ainda que tenha apresentado a religião grega a partir de elementos tomados da erudição histórica e etnográfica e da ciência natural jônica, em parte nenhuma de seus fragmentos que foram preservados até a contemporaneidade notamos a beligerante acidez característica de Hecateu. Como continuador deste, podemos com muita propriedade destacar Evémero, originário da colônia grega de Messina e amigo de Cassandro, que à época (meados do século IV a.C.) era Rei da Macedônia, pensador que pretendeu explicar a mitologia grega pela mitificação de fatos históricos acontecidos em um passado remoto. Evémero escreveu um tratado em três volumes intitulado Narrativa sagrada no qual afirmava ter visitado uma ilha do Oceano Índico de nome Panchaio onde encontrou antigas inscrições que provavam que os deuses e deusas da Grécia eram reis, príncipes, filósofos, legisladores, guerreiros e heróis humanos que foram considerados divinos por seus pares e súditos em tempos muito antigos. Haveria na origem dos mitos, portanto, um fundamento histórico, obscurecido por sucessivas gerações de ignóbil veneração; e caso se achasse os documentos adequados era possível provar o quão vazias eram as práticas cúlticas então vigentes. “(...) Tudo, enfim, se conterá nos limites das possibilidades humanas. Júpiter, ou Zeus, que castiga os gigantes com seus raios, era um monarca reprimindo uma sedição. A chuva de ouro de Dânae era o dinheiro com que seus guardas foram subornados. A forja onde Prometeu fabricava homens de barro não passava de um atelier onde um artista modelava estatuetas de forma humana. Quando se conta de Dédalo, que fazia estátuas que marchavam, isto queria apenas significar que êle aperfeiçoou a arte da estatuária, separando as pernas das figuras humanas. E assim por diante: Éolo, o deus dos ventos, não passava de um antigo marinheiro muito hábil em predizer o tempo. Os Ciclopes seriam uma raça de selvagens que habitavam a Sicília. Os Centauros eram cavaleiros que realmente existiram. Atlas, a personagem mítica que sustenta o globo nos ombros, não era mais do que um grande astrônomo consultando um globo em miniatura. Todos os deuses, gregos e romanos, as narrações mitológicas, tudo se reduz, para esta escola, a personagens e acontecimentos históricos. Júpiter teria realmente reinado em Creta. Hércules seria um cavaleiro errante ou um general belicoso, 492 Aquiles, um valente campeão que se teria salientado no sítio de Tróia...” 491 492 Ibid. Op. cit. p. cit. Arthur RAMOS. Estudos de Folk-Lore : Definição e limites. Teorias de interpretação. (Pref. Roger Bastide). (2ª ed. rev.). Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1958 [1951]. pp. 41-42. 185 Muito poucas pessoas aderiram à tese de Evémero, e logo não tardou para que este autor se visse enredado em justas acusações de ateísmo; de fato, “(...) A idéia de que divindades haviam sido anteriormente pessoas comuns, transformadas depois da morte em seres superiores, implicava dessacralizar a essência da religião grega.”493 Ele deu um passo que mesmo o duro Hecateu não ousou dar e, se pessoalmente pagou o preço por isto, sua obra, entretanto, foi preservada e muito utilizada séculos depois, em um contexto outro, pelos apologistas do cristianismo contra os seus debatedores pagãos. Esta hermenêutica histórica dos mitos é muito utilizada, por exemplo, por Eusébio de Cesaréia na sua Preparação Evangélica. Neste tratado apologético já acima referido, o escritor eclesiástico reivindicou os argumentos de Hecateu e de Evémero, e mostrou como as várias interpretações que os pagãos davam aos seus próprios mitos se destruíam mutuamente: Hélio, Apolo, Hércules, Dioníso e Asclépio eram todos considerados indistintamente o sol, o que não poderia ser; um sistema fazia de Zeus a personificação da razão, outro o tinha como sendo o nome dado ao poder anímico do fogo (ou do ar), enquanto um terceiro, mais crível porque alicerçado em provas documentais verificáveis, o reduzia a uma personagem histórica cuja importância foi inchada por homens que não queriam abandonar as velhas superstições de seus pais e, portanto, inventaram para esta uma miríade de confusas explicações morais, físicas ou de outros tipos. Tudo o que havia de bom e justo nestes sistemas de crenças já era cristão desde o começo do mundo e, mais ainda, o bispo de Cesaréia indicou uma farta documentação para atestar que “tôda a teologia pagã fôra tomada de Moisés, apresentado como o protótipo dos deuses gentios, assim como sua irmã Miriam e sua mulher Zippora teriam servido de modelo para as deusas pagãs.”494 Não há nenhum argumento estritamente semelhante a este consignado na redação da História Eclesiástica, mas devem-se apontar os traços comuns que podem ser identificados entre ele e aquela narrativa historiográfica, dentre os quais o mais notável é que em ambos os textos Eusébio usa sua erudição para 493 A. C. A. AZEVEDO. “Evemerismo”. In: A. C. A. AZEVEDO e P. GEIGER. Op. cit. p. 154. 494 A. RAMOS. Op. cit. pp. 43-44. 186 sustentar as prerrogativas de sua instituição eclesial – seja contra os pagãos, contra os judeus ou contra os cristãos que não fazem parte do adequado redil. Além de exercer a vital função de apoiar as teses desenvolvidas pelo autor, os documentos aí citados também estendiam uma ponte para um passado não muito distante onde era muito difícil ser cristão.495 Ao mesmo tempo em faziam isto, excitavam a auto-estima do crente e incitavam o seu sentimento de pertença a uma organização que não apenas possuía um futuro que se estendia para além da história, mas concretamente se enraizava nesta de maneira a mais gloriosa possível. Tanto a História Eclesiástica quanto a Preparação Evangélica – composta ao que parece entre os anos de 313 e 325 – são ofensivas e defensivas e não apenas um inocente relato historiográfico e uma inocente apresentação doutrinária. Foram redigidas para lidar com as concretas acusações de que o cristianismo se fundava apenas em uma convicção cega, de que era uma seita oportunista aparecida apenas no undécimo instante e uma massa confusa de grupos desconexos em perpétua discordância uns com os outros. A linha de raciocínio sobre a qual se alicerçam, em outras palavras, é a mesma: “(...) a realização das profecias de Cristo e dos hebreus é uma prova do cristianismo; o próprio sucesso do cristianismo, que implica a assistência divina, é uma prova, particularmente quando se verifica que esse sucesso se dá lado a lado com a paz romana; o ensinamento de Cristo teve o poder inédito de civilizar os costumes das nações, de conduzir os homens a verdades mais nobres e a uma vida mais filosófica; graças a esse ensinamento até mesmo as mulheres, os bárbaros e as pessoas destituídas alcançaram uma atitude altamente filosófica e uma doutrina sã; mas o maior serviço foi talvez o de conduzir os homens da 496 idolatria para a verdadeira piedade.” Eusébio revelou uma grande originalidade ao fazer um grande esforço para pensar como seu adversário ideal – o homem inteligente, seja judeu, cristão de outra estirpe ou bárbaro, que submete a sua fé cristã a uma perscrutação minuciosa – e tentar lhe responder em termos que lhe fossem convincentes. Para lidar com aqueles de pendores mais especulativos, afirmou que a fé, além de indispensável para os ignorantes que não podem seguir uma demonstração 495 A. GRAFTON. Op. cit. p. 136. 496 C. TAVEIRA. Op. cit. 2004. p. 4. 187 racional, é também uma convicção bem fundada naquilo que subjaz às mais elevadas motivações da atividade humana e um pressuposto para o acesso a verdades mais beneméritas do que as da própria filosofia.497 Para confrontar os céticos mais chão-a-chão, compilou e organizou em relato uma série de documentos que podem lhe provar preto-no-branco a validade das afirmações dos cristãos, como eles historicamente teriam assumido o patrimônio da antes piedosa nação dos hebreus e da virtude helênica, suplementando-o ainda com a sua divina doutrina, mantida incólume através dos tempos e dos espaços pela sucessão apostólica. O que podemos observar neste esforço é a formulação de um método de pensamento que alicerçado em comprovações materiais, históricas, “transforma as questões da moral e da verdade em doutrinas dogmáticas de caráter a-priorístico e punitivo (...) [aquilo] que Eusébio de Cesaréia, em sua vasta Preparação Evangélica, chamou de ‘nova ciência cristã’ e de ‘verdade da esperança.’”498 Este a priori é justamente a convicção de que, seja de onde for considerada, a mensagem cristã é auto-evidente. É apenas para os hesitantes e rebeldes que se deve demonstrá-la. Alicerçando nas sutilezas do raciocínio lógico-especulativo e histórico-crítico a experiência religiosa do seguimento de Jesus Cristo, entretanto, o raciocínio à moda de Eusébio enveredou em uma labiríntica e – em um termo sincero – insolúvel problemática entre o senso de um mysterium terrible et fascinans, algo que choca o homem ao lhe privar das consolações da normalidade ao mesmo tempo que exerce sobre ele irresistível atração, uma experiência onde não há nada de racional, geradora de um arrebatamento que pode ser comparável ao causado pela música e pelo erotismo, e a explicação do transcendente minuciosamente estruturada em termos lógicos e mobilizada pela retórica demonstrativa / dialogal.499 Dadas as diferentes maneiras pelas quais os seres humanos apreendem a realidade empírica com a qual são forçados a se defrontar gostando disto ou não, um conjunto doutrinal teoricamente coerente e padronizado, e em essência imutável, só pode se impor a um grande número de pessoas se conseguir de algum modo se adaptar “às realidades da percepção 497 Id. Op. cit. p. 5. 498 Ibid. Op. cit. p. 1. 499 Ibid. Op. cit. p. 2. K. ARMSTRONG. Op. cit. p. 60 e nota correspondente, n. 2, p. 501. 188 metafísica e moral locais e mesmo individuais.”500 Por outro lado, o confronto entre esta necessária flexibilidade e a identidade ou pretensão cristã de conter uma diretiva imperativamente revelada por Deus à humanidade, à qual não se podia em momento algum perder de vista, conduziu a uma tensão fortíssima, que no caso do que antes designamos como a Grande Igreja propiciou diretamente à formação de uma estrutura dogmática cristalizada e uma ordem hierárquica supostamente estabelecida por determinação divina que envolvia “inextricavelmente celibato e autoridade, mosteiros e episcopado, episcopados e patriarca, e, finalmente, patriarca e imperador.”501 Deriva daí o paradoxo de uma verdade que se cria auto-evidente ao menos para quase todos ter de ser propagada e divulgada por mecanismos específicos de caráter punitivo da Igreja e do Estado, a saber, a pregação de não existente possibilidade de salvação extra ecclesiam – o inverso lógico de se afirmar que todas as coisas virtuosas do mundo já eram cristãs desde o seu surgimento ainda que não se soubesse antes disto – e a sustentação política e jurídica de tal conceito, manifesta primeiro no favorecimento de um determinado partido religioso e, em seguida, coerentemente, na exclusão e perseguição aos que se presume que teimem em permanecer no erro. Como escreveu Celso Taveira em um texto intitulado “Eusébio : Da razão antiga à verdade cristã”, estamos ao mencionar tais questões fazendo referência essencialmente a uma tautologia ou circuito auto-alimentado, pois ao afirmarmos as bases político-jurídicas deste constrangimento especificamente religioso também estamos aludindo aos alicerces de sustentação ideológica de um método estritamente racional “de imposição de um tipo de verdade sobre outros então vigentes e concorrentes. (...) [Acerca desta] nova forma de expor a verdade queremos propor o seguinte: entre os séculos IV e VI, o triunfo desse novo método injetou na vida da sociedade um igualmente novo tipo de comportamento abrumadoramente condicionado pelo temor abafado e pelo conformismo psicológico.”502 500 C. GEERTZ. Op. cit. p. 28. 501 C. TAVEIRA. Op. cit. 2004. p. 3. 502 Id. Op. cit. p. 1. O grifo é nosso. Conclusão DA PAX ROMANA À PAX CHRISTI (OU VICE-VERSA) I. “Rugido de leão é a ira do rei, orvalho sobre a terra o seu favor.” PROVÉRBIOS 19, 12 Em meados de 324, as tropas de Constantino dispersaram as de Licínio, imperador do Oriente e outrora um seu aliado, diante dos muros de Crisópolis, tornando-o governante único do Império Romano. Juntos estes dois soberanos oriundos dos ásperos campos de batalha das fronteiras do mundo greco-latino haviam proclamado em 313 a concessão da liberdade de culto a todas as religiões submetidas ao domínio temporal dos romanos, o chamado “Edito de Milão” – medida que favoreceu de modo especial os mais bem organizados e ambiciosos dentre os cristãos. Ao fazê-lo, mais confirmavam do que contradiziam a prática latina tradicional, afinal “(...) Roma havia tolerado [sempre] as antigas religiões tribais, desde que não importassem sacrifícios humanos, por serem, em essência, tão conservadoras quanto a sua própria; todas subscreviam estruturas humanas hierárquicas.”503 Já no ano de 314, entretanto, despontaram hostilidades entre os dois, fundadas sobre divergências de ordem político-religiosa: ao que parece, Constantino favorecia abertamente os cristãos, talvez almejando conscientemente ter “a oportunidade de controlar a política eclesiástica quanto à ortodoxia e o tratamento da heterodoxia”504, e se orgulhava de deixar os pagãos aos seus próprios cuidados; enquanto Licínio, a princípio abertamente favorável à integração dos diversos grupos de cristãos na vida religiosa do Império, buscara para si sempre mais o apoio de militantes anti-cristãos da pars Orientis. Tais querelas prolongaram-se por um decênio e não tardaram muito a irromper em uma 503 Paul JOHNSON. História do cristianismo. (Trad. Cristina de Assis Serra). Rio de Janeiro: Imago, 2001. pp. 106-107. 504 Id. Op. cit. p.107. 190 nova onda de violência generalizada.505 Vencido, “Licínio solicitou e aceitou o perdão de suas ofensas, prostrou sua própria pessoa aos pés de seu senhor e amo, foi erguido do solo com insultosa piedade, admitido no mesmo dia ao banquete imperial e enviado para Tessalônica, escolhida como local de seu confinamento.”506 Executado mais tarde não se sabe bem porque motivo, foi postumamente acusado e manter correspondência com os inimigos do Império; sua memória foi coberta de infâmia, “suas estátuas foram derrubadas e por um édito açodado, tão nocivo e tão tendencioso que teve de quase imediatamente ser corrigido, suas leis e todos os procedimentos legais de seu reinado foram de pronto abolidos.”507 Pouco depois da vitória sobre seu antigo correligionário, em setembro de 324, Constantino convocou os bispos diretamente submetidos à sua autoridade para um concílio, evento algo semelhante aos comitia das ordenações civis do Império.508 Já o havia feito antes no Ocidente para buscar resolver a questão donatista, convocando reuniões semelhantes em Roma (311) e em Arles (314). Lidou nestas ocasiões, entretanto, com assunto regionalmente circunscrito e de âmbito quase que exclusivamente administrativo e disciplinar. No Norte da África, Ceciliano e Donato envolveram-se em uma acre disputa sobre o comando da Igreja de Cartago. A maioria dos cristãos locais acreditava que as ordens da Igreja eram conferidas essencialmente a uma pessoa, ou seja, invalidadas por uma sua desonra, enquanto outros, mimetizando a posição da Igreja de Roma, que viria 505 Marcella FORLIN PATRUCCO. “Licínio”. In: VV. AA. Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. (Trad. Cristina Andrade; org. Angelo Di Berardino). Petrópolis / São Paulo: Vozes / Paulus, 2002. p. 831. 506 Edward GIBBON. Declínio e queda do Império Romano. (Org. e introd. Dero A. Saunders; Pref. Charles A. Robinson. Jr.; Trad. e notas suplem. José P. Paes). Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 234. 507 508 Id. Op. cit. p. cit. Sobre os sínodos, Edward Gibbon observou que já no fim do segundo século da Era Cristã os líderes das Igrejas da Grécia e da Ásia Menor haviam adotado o costume de se reunirem periodicamente, talvez tomando emprestado o modelo de um conselho representativo dos exemplos de sua própria história pátria, como os anfictiões, a liga acaia ou as assembléias das cidades jônicas. Suas deliberações eram assistidas pelo conselho de pensadores especialmente considerado e assistidas por crescente número de populares; seus decretos, chamados canons, eram regulamentos referentes a toda matéria de fé e disciplina e considerados inspirados na medida em que se impusesse “a crença de que uma generosa efusão do Espírito Santo se derramasse sobre a assembléia unida dos delegados da gente cristã.” Para o célebre historiador inglês, foi pelo estabelecimento de sínodos regulares e pela intensificação dos contatos entre estes encontros regionais que “a Igreja católica logo assumiu a forma e adquiriu a solidez de uma grande república federativa.” Cf. Ibid. Op. cit. p. 266. 191 a se tornar a ortodoxa, afirmavam todos os atos sacramentais como sempre e universalmente eficazes desde que administrados intra ecclesiam: esta divergência acabou por ocasionar a contestação da validade da sagração do novo pastor dos cartagineses. Reunidos em sínodo, cerca de oitenta bispos númidas declararam inválido o episcopado de Ceciliano pelo fato de a cerimônia que o conferiu ter sido conduzida por um bispo traditor, ou seja, que durante as perseguições renegara a sua fé e entregara peças do mobiliário litúrgico e livros sagrados cristãos para serem queimados pelos emissários governamentais, e elegeram para o seu cargo Donato. Ceciliano, entretanto, recusou-se a renunciar, alegando antes de qualquer outra coisa que uma boa de seus acusadores eram eles mesmos traditores. Ambos os partidos apelaram para Constantino, que já havia se mostrado tão favorável aos cristãos em seus domínios, e lhe pediram que os bispos da Gália arbitrassem a questão. O imperador consentiu e na Basílica do Latrão em Roma reuniram-se Ceciliano, Donato, bispos africanos simpáticos à causa de um e de outro, quinze bispos italianos e três gauleses, presididos pelo Papa Milcíades. Depois de muita investigação e hesitação, o conciliábulo reafirmou a legitimidade da eleição de Ceciliano, e tal decisão tornou-se a opinião oficial do Imperador. Os partidários de Donato, entretanto, rejeitaram tal resolução e encararam a ainda incipiente aliança entre a Igreja e o Estado constantiniano com horror; acidamente indagavam que tinha o imperador a ver com os seguidores de Cristo. Os donatistas exploraram pelo rigorismo religioso o nacionalismo púnico e o sentimento anti-romano e antiimperialista, e quando Ceciliano e seus adeptos tentaram efetivamente ocupar a Sé de Cartago enfrentaram a resistência, às vezes violenta, de forças bem-organizadas. O historiador inglês Paul Johnson fez um agudo diagnóstico da conjuntura que então se estabeleceu: “(...) A ortodoxia feroz e tradicional da igreja africana, fortalecida pela perseguição pagã, foi rotulada de um dia para outro como heresia – identificada e atacada pelo mesmo poder que perseguira anteriormente em nome de um Estado pagão. O que estava em jogo não era apenas o protesto de uma seita particularista, mas a sobrevivência de uma tradição provincial de cristianismo em um império universal e (para os africanos) parasítico. Constantino convidara o problema ao alinhar o império com a Igreja Católica universal; (...) os donatistas 192 avançavam e punham em risco os interesses do Estado tanto quanto os da 509 Igreja.” Basicamente idênticos aos cecilianos quanto ao ritual e à doutrina, os partidários de Donato eram uma igreja plenamente organizada, com mais de quinhentos bispos (a maioria dos quais, deve-se notar, chefiava pequenas e interioranas sedes episcopais). Os sacerdotes donatistas propositadamente retomaram algumas atitudes dos antigos Macabeus e dos zelotes e passaram a se organizar em “israéis”, pequenos grupos armados com bastões com os quais atacavam o clero pró-romano. Recrutaram bandos de homens sem terra e desesperados entre os “berberes selvagens e semicivilizados, submetidos a uma tradicional e flagrante exploração por parte dos proprietários rurais romanos, a maioria dos quais ausentes”510, e os constituíram em exércitos particulares – os “circunceliões” – que vivam nos cemitérios cristãos ou nas suas adjacências, guardando as relíquias dos mártires de preferência da facção e realizando de tempos em tempos incursões para vingá-los.511 Quando logravam capturar um edifício de culto “ortodoxo”, purificavam-no com baldes de cal antes de se reunirem ali para celebrarem seus próprios sacramentos. Os donatistas rejeitavam o mundo, em um sentido político e econômico, algo incompatível com o projeto constantiniano de um campo religioso pacificado, onde as crenças mais colaborativas não seriam apenas toleradas, mas favorecidas – e talvez controladas – por um Estado forte. Não era possível que consentir que continuassem a sua pregação, ganhassem ainda mais influência e se tornassem um fator de instabilidade no interior do Império Romano novamente unificado a duras penas trinta e sete anos depois de Diocleciano ter divido o poder e as províncias com o seu associado Maximiano.512 Como os donatistas rejeitavam a sentença de Milcíades sobre a problemática referente à Sé de Cartago e não aceitavam a interferência do clero 509 P. JOHSON. Op. cit. p. 103. 510 Id. Op. cit. p. cit. 511 O termo “circuncelião” surge da expressão latina circum cellas, literalmente “os que rondam celeiros”. Cf. Antonio Carlos Amaral do AZEVEDO. “Donatismo”. In: Antonio Carlos Amaral do AZEVEDO e Paulo GEIGER. In: Dicionário histórico de religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 134. 512 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. p. 103. 193 romano em um assunto que consideravam de interesse e jurisdição exclusivamente regional, o próprio Constantino condescendeu em reavaliar as suas reivindicações e convocar um novo sínodo para lidar com elas. No dia 1º de agosto de 314, grande número de bispos do Ocidente, expressamente convocado pelo Imperador, reuniu-se na cidade gaulesa de Arles, então chamada Constantina ou Constantia, onde no ano anterior havia sido estabelecida uma Casa da Moeda. Sob a presidência de Cresto, bispo de Siracusa, a questão donatista foi novamente examinada; diante dele se apresentou Ceciliano de Cartago e seus acusadores, que não lograram, entretanto, provar suas acusações. As decisões do sínodo de 311 foram assumidas pela maioria dos prelados reunidos em Arles, e os donatistas presentes foram expulsos ou presos. Após isto, as reuniões sinodais foram dedicadas às deliberações sobre numerosos pontos disciplinares importantes, e algumas de suas decisões mais relevantes são sintomáticas do novo modus vivendi que estava sendo então gestado entre Igreja e Império. As pretensões de Donato ao episcopado foram consideradas inválidas e a violência de “israéis” e “circunceliões” duramente condenada; rejeitou-se a opinião de Cipriano de Cartago de que o batismo conferido pelos hereges não era válido, e estabeleceu-se como correta a de Estevão de Roma, para quem um segundo batismo era tão desnecessário quanto absurdo (cânon 9); declarou-se que os traditores que se arrependessem deveriam, após cumprirem a adequada penitência, ser reintegrados sem mais no seio da comunidade cristã, e que os sacramentos que recebessem ou viessem a administrar daí em diante eram todos válidos (cânones 22 e 14); proibiu-se aos clérigos sob pena de deposição de seu ministério eclesial mudar de Igreja, viajar sem comunicar aos seus confrades e fazer empréstimos a juros (cânones 2, 21 e 13); recomendou-se a presença de sete bispos para realizar uma consagração episcopal, impondo-se um número mínimo de três prelados para que esta fosse considerada válida (cânon 20); regulamentou-se o estilo de redação e o uso das cartas de recomendação concedidas pelas autoridades civis e eclesiásticas aos sacerdotes itinerantes (cânon 10); reduziu-se a quantidade e a importância dos diáconos, a quem foi vedada a celebração da eucaristia (cânones 18 e 16); especificaram-se as condições para que se entrasse no catecumenato na iminência da morte (cânon 6); recomendou-se aos maridos abandonados ainda jovens pelas esposas que não contraíssem novo matrimônio enquanto ainda vivesse a adúltera (cânon 11); proibiu-se aos leigos que exercessem as profissões de auriga e de ator, 194 e negou-se que eles pudessem exercer funções no serviço público sem a estrita autorização e controle de um bispo (cânones 4, 5 e 7); e ameaçou-se de excomunhão os cristãos que recusassem ou desertassem do serviço militar (cânon 3).513 De maneira pouco surpreendente, dada a arraigada popularidade dos donatistas, a recepção das decisões de Arles na África do Norte foi fria. Os circunceliões cresciam em número e, autodenominados “Capitães dos Santos”, retomavam a tradição escatológica judeu-cristã mais militante para promover um ajuste de contas que precederia aquele do Dia do Juízo. Em um império em que o porte de lâminas era restrito para certas categorias privilegiadas de pessoas e, em termos estritos, ilegal, andavam insolentemente armados com as aduelas que utilizavam na colheita das azeitonas. Protegiam os camponeses nativos endividados e os escravos na medida em que aterrorizavam os credores e senhorios convertidos ao cristianismo pró-romano; queimavam todos os documentos escritos em latim, dentre os quais os relacionados aos escravos, e não raro providenciavam que o fogo se estendesse às safras e casas de seus “inimigos”. O espectro da dissensão religiosa aliada à revolução social continuou a assombrar os católicos ortodoxos da África do Norte até bem depois de Ceciliano de Cartago, Milcíades de Roma e Agostinho de Hipona, que mobilizou boa parte de sua genialidade para dar-lhes digno combate no plano das idéias; os donatistas de fato só desapareceram da África do Norte – aliás, literalmente e como a imensa maioria dos demais cristãos daquela área – trezentos anos depois, quando os muçulmanos invadiram aquela região do mundo.514 Importa-nos, contudo, considerar menos o destino dos partidários de Donato do que a resposta 513 Ulpia DIONISI et al.. “Roma”. In: VV. AA. Op. cit. p. 1230. Basilio STUDER. “Milcíades, papa”. In: Id. Op. cit. p. 936. Victor SAXER e Charles MUNIER. “Arles”. In: Ibid. Op. cit. pp. 160-161. 514 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. pp. 104-105. Este desaparecimento após quase quatro séculos de ininterrupta militância pontuada por períodos de extrema violência, deve ser visto com alguma desconfiança: não é provável que um movimento bem organizado e forjado justamente na perseguição tenha simplesmente perdido fôlego diante da ameaça que lhe poderia significar a nova ordem político-religiosa estruturada sob o domínio árabe. Talvez no rigorismo donatista e na intensa veneração que os seus adeptos prestavam aos mártires de seu movimento estejam as raízes do intrincado fenômeno do marabutismo, marcante na África do Norte até a contemporaneidade. Ver: A. C. A. AZEVEDO. “Marabutismo”. In: Op. cit. pp. 238-239. Também as referências sobre a religiosidade marroquina em: Clifford GEERTZ. Observando o Islã : o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. (Trad. de Plínio Dentzien). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. (Coleção “Antropologia Social”: dir. Gilberto Velho). 195 constantiniana ao desafio que eles lançavam. Eusébio de Cesaréia a registra nos capítulos quinto e sexto do décimo livro de sua História Eclesiástica, transcrevendo sucessivamente uma carta imperial a Milcíades, bispo de Roma, a Cresto, bispo de Siracusa, e a Ceciliano, bispo de Cartago. Na primeira delas somos informados de que Constantino tomou conhecimento da vetusta querela entre cecilianos e donatistas pelos informes de Anulino, procônsul da África, e que à Sua Majestade Augusta parecia “sumamente grave que nestas províncias, que a divina providência voluntariamente confiou a minha solicitude e nas quais é muito numerosa a população, encontre uma multidão persistindo no pior, como se estivesse dividida, e que entre os próprios bispos existam diferenças.”515 Na segunda, sabemos quais medidas tomou “quando alguns, com ânimo vil e perverso, começaram a dividirse acerca do culto e do santo e celestial poder e da religião católica”516: no intento de reprimir tais discussões, determinou que se cumprissem “umas disposições de tal natureza que, enviando alguns bispos da Gália aos das partes contrárias que lutavam entre si obstinada e ferozmente, e achando-se também presente o bispo de Roma, aquilo que parecia estar em litígio pudesse solucionar-se por efeito de sua presença unida a um cuidadoso exame.”517 Feito isto, entretanto, alguns “esquecendo-se de sua própria salvação e da veneração devida à santíssima religião, ainda hoje não cessam de prolongar suas peculiares inimizades e não querem conformar-se com a sentença já ditada (...); disto veio a resultar que os mesmos que deveriam ter uma concórdia fraterna e unânime, separaram-se uns dos outros vergonhosamente, e mais, abominavelmente, deram motivo de zombaria aos homens cujas almas são alheias à santíssima religião.”518 Assim sendo, Constantino convocou nova reunião para lidar com esta divergência e ordenou que a Cresto de Siracusa que, “mediante a tua firmeza”519, conduza-a de 515 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. (Trad. Wolfgang Fischer; rev. Maria Aparecida Salmeron). São Paulo: Fonte, 2005. Livro X : 5, 18. p. 339. 516 Id. Op. cit. Livro X : 5, 21. p. 340. 517 Ibid. Op. cit. Livro X : 5, 21. p. cit. 518 Ibid. Op. cit. Livro X : 5, 22. p. cit. 519 Ibid. Op. cit. Livro X : 5, 24. p. cit. 196 modo a encerrar esta “vergonhosa disputa entre companheiros [que] tem se mantido até agora de forma errada”.520 Na terceira carta transcrita por Eusébio – onde é mencionado pela primeira vez o nome de Ósio, bispo de Córdoba, relacionado ao de Constantino521 – o Imperador se dirige diretamente a Ceciliano, nomeando-o bispo de Cartago, e o informa de que outorgou uma considerável soma de recursos destinados a suprir “os gastos de alguns ministros da legítima e santíssima religião católica”.522 Solícito aos desígnios deste prelado, acrescenta que deu ordens a Heráclides, seu procurator rei privatæ – ou seja, o administrador de seus bens pessoais – “para que se preocupasse de pagar-te sem a menor vacilação, no caso de que tua firmeza lhe pedisse algum dinheiro.”523 Mais ainda, escreveu a Ceciliano que “(...) como tenho informes de que alguns homens de pensamento inconstante estão querendo afastar o povo da santíssima e católica Igreja com perverso engano, saiba que dei ordens semelhantes ao procônsul Anulino e também ao representante dos prefeitos, Patrício, que se achavam presentes, para que, além do mais, dediquem também a isto a devida preocupação e não se permitam descuidar deste assunto. Portanto, se virdes que alguns homens assim persistem nesta loucura, apela sem a menor vacilação aos juízes acima citados e apresenta-lhes este assunto para que eles, como lhes ordenei quando estavam presentes, os 524 convertam ao bom caminho.” Para Argimiro Velasco-Delgado, tradutor para o espanhol e comentador da História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, ver nesta última correspondência referida a inauguração da perseguição imperial aos donatistas é ir demasiado longe525, mas não se pode deixar de observar que, além de uma proximidade temporal, há uma coerência discursiva entre estas disposições comunicadas a Ceciliano e o posterior acréscimo que Constantino fez à excomunhão, única maneira que os bispos tinham para impor a disciplina eclesiástica ou manter a 520 Ibid. Op. cit. Livro X : 5, 24. p. cit. 521 Cf. Argimiro VELASCO-DELGADO. Nota n. 170 ao Livro X. In: EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiastica. (Texto bilíngüe; ver. espanhola, introd. e notas de Argimiro VelascoDelgado). (2ª ed. rev.). Madri: BAC, 1997. (2 vol.). p. 635, n. 170. 522 EUSÉBIO DE CESAREIA. Op. cit. Livro X : 6, 1. p. 341. O grifo é nosso. 523 Id. Op. cit. Livro X : 6, 3. p. cit. 524 Ibid. Op. cit. Livro X : 6, 4-5. p. cit. 525 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 636, n. 174. 197 uniformidade da doutrina antes da guinada histórica da segunda e terceira décadas do século IV. Em 317, o imperador ordenou a supressão dos donatistas por perturbarem a paz, mandou prender e exilar seus bispos, confiscou suas propriedades e entregou-as aos cecilianos . Sem dúvida, “(...) Foi um momento decisivo: pela primeira vez na história do movimento cristão, um governador cristão usava a violência da força para tentar subjugar um partido cristão discordante.”526 A isto seguiram-se vários anos de crescente violência de parte a parte, até que diante da determinação inabalável dos donatistas, do extraordinário incremento do número de seus fiéis (no final de 319 havia por volta de duzentos e cinqüenta bispos partidários de Donato a oeste do Nilo), e do constrangedor fato de que aqueles dentre eles que eram mortos imediata e ardentemente eram reverenciados como mártires, a administração constantiniana abandonou a política do porrete para lidar com esta situação já no ano de 321. Desde então, optou por uma solução de compromisso entre o Estado e os seguidores de Donato, e providenciou um substancial aumento do apoio financeiro do tesouro romano aos bispos e presbíteros que continuavam leais à causa de Ceciliano. A primeira preocupação de Constantino era então, explicitamente, a unidade da religião cristã, da qual esperava que integrasse – e não dividisse ainda mais! – os seus súditos, e a necessidade de obter uma solução moderada que não contradissesse as suas ações anteriores e não inflamasse ainda mais o ânimo dos muito populares e já agressivos donatistas o levou a mediar uma vez mais novas negociações entre uma parte e outra. De fato, as igrejas que seguiam Donato foram autorizadas oficiosamente a continuar ordenando clérigos à margem da explícita sanção imperial, o que do ponto de vista institucional conduziu à formação de duas igrejas paralelas, cujos sacerdotes “presidiam liturgias quase idênticas e celebravam quase os mesmos sacramentos. Seus edifícios sagrados e suas vestes eram as mesmas; [e] os arqueólogos e estudiosos ainda não conseguem distinguir as ruínas das suas igrejas umas das outras na região.”527 Concessões relevantes 526 Dale T. IRVIN e Scott W. SUNQUIST (orgs.). História do movimento cristão mundial. Vol. I : Do cristianismo primitivo a 1453. (Trad. José Raimundo Vidigal). São Paulo: Paulus, 2005. p. 217. Um sermão donatista desta época queixava-se de que “os juízes locais receberam ordens imperiosas para agir e colocar em movimento o poder secular; os [nossos] prédios foram cercados por tropas; nossos seguidores abastados ameaçados de proscrição e os sacramentos profanados; uma turba de pagãos atirou-se sobre nós e nossos edifícios sagrados tornaram-se cenários de festins profanos.” Citado em: P. JOHNSON. Op. cit. pp. 108-109. 527 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 218. 198 foram feitas à este duplo que também reivindicava – talvez até com mais propriedade que os cristãos pró-romanos – a herança espiritual de Tertuliano, Cipriano, Perpétua e Felicidade. Na segunda metade de 321, os donatistas ocuparam uma igreja recém-construída pelos paleortodoxos em Cirta (também chamada então de Constantina), e para evitar um novo motivo de confronto Constantino barganhou o abandono deste templo pela posse do amplo edifício da Alfândega da cidade. No mesmo período, resolveu-se validar a disposição do sínodo de 314 que determinava que quando a cátedra episcopal de uma área dividida entre os dois partidos ficasse vaga, o bispo seguinte na linha de precedência, já consagrado, fosse ele donatista ou pró-romano, iria assumir o posto. Isto realmente nunca funcionou muito bem, e estabeleceu no máximo um incômodo estado de coexistência entre as partes em litígio, mas o sistema degringolou-se de fato apenas depois da morte de Constantino em 337.528 No âmbito de nossa reflexão, o relevante disto tudo é a constatação de que já alguns antes da convocação de um grande sínodo para lidar com a problemática 528 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. ps. 103 e 108. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. pp. 216219. Em 346, quando faleceu o bispo de Cartago, o próprio Ceciliano apresentou-se para o cargo, amparado na determinação sinodal e imperial, já que era o próximo na linha de precedência. Constante, filho de Constantino, que era então imperador do Ocidente, entretanto, recusou-se a reconhecê-lo como válido ocupante do cargo e mandou uma delegação à África do Norte para rever a situação. No ano seguinte o governante exilou o idoso combatente eclesiástico e ordenou, sob a ameaça de tortura e exílio, que as igrejas se unissem sob a autoridade de Grato, o bispo recém-consagrado que tinha o seu favor. Mais martírios se seguiram, assim como retaliações violentas contra o clero e os fiéis pró-romanos e as autoridades e edifícios estatais. Passados alguns anos ficou novamente claro que não havia uma outra solução senão abandonar a perseguição – que só tinha feito consolidar nos donatistas a decisão de resistir aos católicos, identificados a um poder político perseguidor – e estabelecer algum tipo de trégua. A disputa original entre antigos partidários de Donato e os antigos seguidores de Ceciliano foi caindo no esquecimento à medida que classe, raça e nacionalidade cerravam fileiras de lado a lado, até o ponto de que passou a fazer parte quase que com naturalidade da vida diárias das pessoas nos centros urbanos do África do Norte. Durante o século IV e começo do século V periodicamente esta controvérsia degenerava em violência nas ruas, mas muito mais comum foi que ela se cristalizasse em rivalidades arraigadas e tão pequenas quanto incômodas provocações mútuas – lembremos daquele episódio dos tempos do episcopado de Agostinho quando os padeiros donatistas de mais de uma cidade simplesmente passaram a se recusar a vender pão aos próromanos. Relações mais cordiais só foram estabelecidas entre membros das duas facções depois da invasão da região pelos Vândalos (Hipona foi conquistada em 431 e Cartago em 439). Estes germânicos, que confessavam uma outra forma de cristianismo, estabeleceram um reino independente na África do Norte durante mais de um século (o imperador romano só recuperou o controle da região na metade da década de 530), e sob sua autoridade correligionários de Donato e de Ceciliano tiveram igualmente suas igrejas profanas e destruídas e foram às vezes enviados juntos para o exílio, o trabalho forçado nas minas ou o patíbulo. Na esteira destes danos é que houve uma moderação mútua das atitudes, e após os generais constantinopolitanos libertá-los de tal poder opressor os católicos começaram a permitir que os sacerdotes donatistas celebrassem os sacramentos em suas igrejas, ao passo que os donatistas passaram a convidar também os bispos católicos para participarem de suas ordenações. Cf. Id. Op. cit. pp. 218-219. P. JOHNSON. Op. cit. p. 103. 199 ariana Constantino não apenas favorecia abertamente um determinado grupo cristão – que antes chamamos de Grande Igreja –, mas agia como o seu provedor material, braço armado e grão-chanceler. De acordo com o que escreveu a Milcíades, estava dispensando à Igreja legítima um respeito tão grande que por nada no mundo permitiria que em seu seio se estabelecesse cisma ou divisão alguma529; incidentalmente assegurava a unidade religiosa no interior de seus domínios e lidava com aqueles inimigos da ortodoxia que também eram os de Roma. O mesmo tipo de atitude – talvez friamente manipulador, talvez genuinamente bem intencionado – é o que determinaria o seu curso de ação naquele outono de 324, quando convocou uma reunião de bispos em Ancira para tentar dirimir os litígios entre os bispos orientais que se digladiavam por causa de algumas especulações de um presbítero alexandrino sobre a natureza eterna de Deus. O cursus publicus – a rede de hospedagens, cavalos e navios estruturada para que pudessem transitar com rapidez pelos vastos domínios de Roma os oficiais do serviço público, os emissários imperiais, os mensageiros e suas mensagens – foi posto à disposição dos padres conciliares, e por motivos de comodidade a reunião foi transferida para a embelezada cidade de Nicéia, situada nas imediatas vizinhanças da residência imperial de Nicomédia (onde alguns prelados acabaram por se hospedarem, inclusive) e com um inverno e um verão mais toleráveis do que os da Anatólia Interior.530 “(...) Nicéia. Um nome bem conhecido de todos os cristãos, que, no entanto, dificilmente saberiam localizar essa cidade num mapa. Contudo, a localização é precisa: a maioria dos acontecimentos que agitam o século III se origina nesse pequeno pedaço de terra espremido entre a Europa e a Ásia. Nicéia é uma cidade situada a leste do estreito de Bósforo. Constantino escolherá estabelecer sua capital entre dois continentes e na passagem entre o Mediterrâneo e o Mar Negro. 529 530 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 5, 20. p. 339. Cf. Marcella FORLIN PATRUCCO e Charles KANNENGIESSER. “Nicéia”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 997-998. G. SUFFERT. Georges SUFFERT. Tu és Pedro : Santos, papas, profetas, mártires, guerreiros, bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. (Trad. Adalgisa Campos). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 74. Para mais informações sobre este uso cristo-constantiniano do cursus publicus – já antes utilizado pelos bispos, seus assessores e criados para chegar ao Concílio de Arles (cf. História Eclesiástica, Livro X : 5, 23) – ver o mais completo tratado redigido até o momento sobre o assunto: Denys GORCE. Les voyages, l’hospitalité et le port dês lettres dans le monde chrétien des IVe et Ve siècles. Paris / Wépion-sur-Meuse: A. Picard / Monastère du Mont-Vierge, 1925. 200 Será Constantinopla. Na abertura do concílio de Nicéia, a criação do que virá a 531 ser Bizâncio ainda é um simples sonho do imperador.” Será necessário que dediquemos à seção seguinte de nosso trabalho a uma mais ou menos minuciosa divagação revisando panoramicamente quais as principais questões que motivaram a convocação da reunião de Nicéia e como elas entraram na pauta do dia, ou, em outros termos, como se precipitou a constituição do Credo Niceno: neste esforço pretendemos pôr em relevo tanto o relacionamento de Constantino com a fé cristã quanto a postura pró-imperial de considerável número de prelados – assim como, na medida do possível, qual o significado história desta, o que ela efetivamente poderia representar. Antes de qualquer outra coisa, entretanto, é mister ressaltar, devemos deixar de lado as teorias conspiratórias à moda de Dan Brown, onde “Constantino e o Concílio de Nicéia (...) são postos como culpados por forjarem a Bíblia e declararem a divindade de Jesus (...) [algo] ‘fundamental para o funcionamento da Igreja e do Estado.’”532 Trabalhar com tais pressupostos é deixar-se guiar por uma ingenuidade sem tamanho. De acordo com suas crenças, entendimentos, necessidades e interesses contingentes, os eclesiásticos reunidos pelo Imperador em Nicéia – como os redatores da Torah e dos Evangelhos fizeram antes deles – recolheram uma tradição que lhes é anterior e a explicitaram, sintetizando-na em uma fórmula que tem a precisa eficácia de marcar quem está dentro e quem está fora da comunidade dos fiéis. É evidente que se lidava aí com uma questão eclesial mais relevante do que antes; Edward Gibbon observou isso já no século XVIII no seu Declínio e queda do Império Romano, fazendo-o, aliás, com bastante precisão: “(...) O cisma dos donatistas se confinou à África; [enquanto] os males mais difusos da controversa trinitária penetraram sucessivamente todas as partes do mundo cristão. Aquele era uma disputa acidental, ocasionada por abuso de liberdade; esta era um elevado e misterioso debate originado do desmando da filosofia.”533 Para a grande tristeza dos redatores de jornais, revistas e livros sensacionalistas, entretanto, a maior parte dos indícios e comentadores 531 G. SUFFERT. Op. cit. pp. 73-74. 532 Darrell L. BOCK. Quebrando o Código Da Vinci : Respostas às perguntas que todos estão fazendo. (Trad. Eduardo Rado). Osasco: Novo Século, 2004. pp. 112-113. 533 E. GIBBON. Op. cit. pp. 342-343. 201 apontam como quase certo que, ao menos em princípio, de fato “Constantino não estava preocupado com a verdade doutrinária.”534 534 P. JOHNSON. Op. cit. p. 107. 202 II. “Sobretudo, foi graças à crise ariana que a Igreja fixou o preciso conteúdo da fé. De agora em diante, está terminado o tempo das confusões. Há algo de fascinante em reler ou recitar esse símbolo dos apóstolos que o Credo passou a ser para todos os povos cristãos: vem das profundezas de nossa História; em 17 séculos, permaneceu intacto, e é em torno desse texto que a Igreja, como sociedade e como mistério, se constrói.” GEORGES SUFFERT, Tu és Pedro “(...) uma confusão e justaposição impenetrável do fervor teológico-dogmático, com intrigas na corte do imperador, de revoltas de monges e massas subversivas, ações e contra-ações de todo tipo, fizeram do Concílio de Nicéia um teste para provar a impossibilidade de separar, na realidade histórica, motivos e objetivos religiosos e políticos como dois âmbitos determináveis substancialmente.” CARL SCHMITT, Teologia Política (II, 6.5) Segundo uma interpretação mais liberal da história dos dogmas cristãos, o grupo dos crentes que viria a ter a sua fé identificada como a Ortodoxa teria formulado sua teologia trinitária hegemonicamente em termos subordinacionistas, ou seja, considerando o Pai como Deus por excelência, e subordinando ao Criador o Filho-Verbo e o Espírito Santo, tidos ao menos no início como realidades inferiores na essência, na potência e na divindade. Fundamentando esta tendência estariam as afirmações evangélicas nas quais o próprio Jesus Cristo nota sua inferioridade em relação ao Pai.535 De modo progressivo, esta linguagem triádica, que foi quando muito transcrição e paráfrase de algumas passagens representativas de um conjunto de narrativas evangélicas que certa tradição eclesiástica assumiu como canônicos, teria sido substituída por uma outra de cunho metafísico-trinitária, onde se garantia a transcendência e a imutabilidade do Pai considerando-se o Logos como um demiurgo, mediador entre Deus e o mundo, e o Pneuma (Espírito) como energia vital da Criação, inspirador das Escrituras divinas e fortalecedor-esclarecedor dos fiéis. Para Adolf von Harnack, estaria nesta compreensão se consumando o processo de helenização da crença cristã, ou seja, de sua incorporação de certos instrumentos lógicos e topoi 535 Cf. p. ex. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Coordenação editorial de José Bortolini; Tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002 (4ª impressão: 2006). João 14, 28. p. 1881. Marcos 10, 17-18 e 13, 32. ps. 1774 e 1780. 203 discursivos da filosofia (neo) platônica e pitagórica para a construção de uma narrativa auto-reflexiva. Isso teria se dado pela ação no cristianismo dos primeiros três séculos de influências extrínsecas ao monoteísmo estrito da primeira comunidade judeu-cristã, tais como a piedade popular oriunda de contextos politeístas, as crenças paleo-gnósticas e gnósticas e as antropologias e disciplinas de vida características das várias escolas filosóficas helenísticas com as quais estava em constante discussão.536 Em conflituoso diálogo com este “desvio” potencialmente tristeizante, gestado pelos pensadores cristãos situados na órbita de influência da Sé de Alexandria, é que se teria desenvolvido, nas comunidades eclesiais da Ásia, uma linguagem teológica monarquianista, sob forte influência do ebionitismo judeucristão. Este monarquianismo, que em suas últimas conseqüências lógicas levaria a uma teologia dual, desdobrou-se, por exemplo, tanto no adocianismo de Teódoto – para quem Jesus fora um homem, nascido de Virgem por vontade do Criador, que viveu como os outros homens até que o Espírito se uniu a ele no momento de seu batismo para fazê-lo Cristo, mais venerável das criaturas, mas nunca verdadeiro Deus – quanto no modalismo de Noeto – para quem o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram apenas três nomes ou máscaras do mesmo Deus, sendo que destas identidades apenas o Pai preexiste, encarnando-se no Filho e padecendo na cruz (patripassianismo). Na dupla contraposição aos modelos subordinacionistas e monarquianistas é que se teria originado uma formulação trinitária de meio-termo – como, por exemplo, a de Irineu de Lyon, que frisou a unidade divina frente às idéias da primeira corrente aqui referida, e insistiu na sua distinção real em pessoas frente à segunda –, que passo a passo foi tornando-se hegemônica e sendo aceita como ortodoxa.537 Tal explicação da problemática considerada, entretanto, não leva em conta os mais antigos fundamentos do trinitarismo considerado ortodoxo pelo Concílio 536 Cf. Fêlix Alexandre PASTOR. “Semântica do Mistério (Gênesis e tipologia da linguagem da ortodoxia trinitária) .” In: Carlos PALÁCIO (org.). Cristianismo e História. São Paulo: Loyola, 1982. (Col. “Fé e Realidade”, n. 10). pp. 173-175 e notas correspondentes. Manlio SIMONETTI. “Subordinacionismo”. In: VV. AA. Op. cit. p. 1315. 537 Cf. F. A. PASTOR. Op. cit. pp. 175-179 e notas correspondentes. Manlio SIMONETTI. “Monarquianos”. In: VV. AA. Op. cit. p. 955. Id. “Adocianismo”. In: Id. Op. cit. p. 43. Ibid. “Patripassianos”. In: Ibid. Op. cit. p. 1102. Basilio STUDER. “Trindade”. In: Ibid. Op. cit. pp. 1386-1390. 204 de Nicéia. Segundo os que sustentam a venerável antiguidade e primazia deste, tais bases podem ser encontrados já na mensagem apostólica do kerygma, nas profissões de fé neotestamentárias que associam ao Pai as missões do Filho e do Espírito Santo e nas fórmulas triádicas sobre a salvação do homem e a natureza de Deus, abundantemente utilizadas na catequese e nas liturgias de considerável número das comunidades cristãs de primeira hora, em anáforas eucarísticas, ritos batismais, hinos, exorcismos e orações de bênção, cartas pastorais, atos penitenciais e mesmo em inscrições mortuárias e epitáfios, especialmente os encontrados nos sepulcros dos mártires.538 De qualquer forma, desconsiderando aqui a questão de exatamente onde se situam as raízes da linguagem trinitária ortodoxa, a crise que levou à sua definitiva formulação foi a que se seguiu às proposições racionalistas do arianismo. Como um postulado teológico para salvaguardar em definitivo a natureza transcendental de Deus, Ário afirmou uma radical subordinação do Verbo em relação ao Pai, considerado o único unigênito, princípio eterno e imutável; o Filho, por sua vez, seria criatura, ainda que oriunda da eternidade e instrumento de Deus para a criação de todas as coisas visíveis e invisíveis, a mais importante e abençoada entre todas, essencialmente diverso do Criador, e divino não por geração, mas por participação na grandeza deste. Estas proposições tornaram-se bastante difundidas, mas acabaram sendo rejeitadas como heréticas (i.e., errôneas) pelo consenso niceno em seus anátemas e símbolo de fé. Os padres conciliares terminaram por distinguir a natureza divina (ousia) das suas três concretas formas de subsistência (hypostaseis), chegando à definição mia ousia treis hipostaseis (em latim una substantia in tribus personis), na qual Deus era caracterizado como simultaneamente uno e trino, dotado de uma única substância e três pessoas circunscritas por caracterizações distintivas (o Pai inasciado, o Filho encarnado e o Espírito Santo de divina procedência). Esta formulação nicena, composta, composta pelos teólogos cristãos através da apropriação de instrumentos semânticos oriundos tanto da linguagem técnica do judaísmo helenizado quanto da filosofia religiosa genuinamente greco-latina, afirmou a consubstancialidade do Pai e do Filho (homousia), como expressão da unidade na distinção constitutiva do Deus cristão, em contraposição tanto à distinção sem 538 Cf. F. A. PASTOR. Op. cit. p. cit. B. STUDER. Op. cit. pp. 1386-1387. 205 unidade (heteroousia) apregoada pelos arianos, quanto à unidade sem distinção real (tautousia) proclamada pelas diversas matizes de teólogos modalistas.539 Busquemos situar, pois, este complexo processo que mencionamos acima apenas do ponto de vista da história das idéias na carnadura concreta das tramas de poder político-religioso que antecederam, impuseram o tom e sucederam imediatamente a grande reunião convocada por Constantino naquela cidade próxima à sua própria residência. Antes do mais, deve-se ter em mente que há uma pré-história não-teológica do Concílio de Nicéia, que é a das tentativas prévias e prioritariamente intra-eclesiais de estabelecer algum tipo de concordância, algum acordo de cavalheiros entre Ário – sacerdote que afirmava que o Filho foi criado pelo Pai e deriva deste a sua divindade – e seu bispo e primeiro detrator Alexandre de Alexandria – que cria que o Filho é coeterno ao Pai e sua arché é ontológica, e já havia excomungado o articulado presbítero em um sínodo que reuniu uma centena de bispos oriundos da Líbia e das margens do Nilo. Registrou Edward Gibbon que Ário contava, “entre seus seguidores imediatos, dois bispos do Egito, sete presbíteros, doze diáconos e (o que pode parecer quase inacreditável) setecentas virgens”540; expulso de sua pátria, o clérigo de idéias polêmicas encontrou mais defensores no Oriente, dentre os quais o mais articulado era Eusébio de Nicomédia, “que adquirira a reputação de estadista sem perder a de santo.”541 Levando estas conversações preliminares a lugar nenhum, a violenta disputa das “duas orientações teológicas (políticas, portanto) antagônicas”542 ganhava fôlego e alastrava-se. Ósio de Córdoba, que já como bispo desta cidade havia tomado parte no Concílio de Elvira no ano 300, e que antes de abril de 313 muito possivelmente já fazia parte do corpo de conselheiros de Constantino Augusto, por ordem deste mesmo imperador tentou mediar algum tipo de compromisso entre as partes em litígio, não obtendo, entretanto, sucesso neste intento. Sob a presidência deste prelado, já feita a convocação da reunião em Ancira, um considerável número de 539 Cf. F. A. PASTOR. Op. cit. pp. 185-186 e notas correspondentes. 540 E. GIBBON. Op. cit. p. 347. 541 Id. Op. cit. p. cit. 542 Marilia Pacheco FIORILLO. O Deus exilado : Breve história de uma heresia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 129. 206 bispos orientais – provenientes da Palestina, Síria e Ásia Menor (a ata sinodal que se conservou possui 59 signatários, a imensa maioria de origem grega e siríaca) –, realizou entre o fim de 324 e o começo de 325 uma reunião para lidar com a inefável querela que se impunha. Ao que parece, a finalidade desta era compor um lobby, uma bancada regional forte o suficiente para influir de maneira eficaz no interior da assembléia reunida dos chefes dos cristãos, tornando-a tão mais breve quanto concordante com suas próprias opiniões. Neste encontro confirmou-se a condenação de Alexandre contra Ário, publicou-se uma fórmula de fé antiariana e suspendeu-se temporariamente de sua comunhão os bispos que se recusaram a assiná-la: Teódoto de Laodicéia e Narciso de Nerônias, pró-arianos de primeira hora, e Eusébio de Cesaréia, que jamais compartilhou do subordinacionismo radical de Ário, mas, explicitamente para estabelecer a concórdia entre as partes beligerantes, sustentou o quanto pode uma posição intermediária entre a deste e a de Alexandre.543 Em 20 de maio de 325 realizou-se a primeira sessão do Concílio de Nicéia, no dia seguinte do encerramento da grande festa que celebrou em Nicomédia a vitória do Imperador do Ocidente contra Licínio. Já uma ou duas semanas antes estavam presentes nas redondezas todos os padres conciliares, dentre os quais Ário e Alexandre: podemos apenas imaginar as obscuras controvérsias, correntes de sussurros e combates noturnos que se desenrolaram naqueles longos dias de espera passados na Bitínia. O próprio Constantino presidiu a grande assembléia reunida, sentado em um trono de ouro, de onde se reconheceu incapaz de lidar com tão complexas questões e, porque ainda não era batizado, recusou-se a participar dos debates e mesmo de pôr-se diante dos bispos. Alguns dos participantes haviam vivido o inferno da grande perseguição ordenada por Diocleciano e sustentada por alguns de seus sucessores imediatos, e não poucos destes traziam na carne as marcas causadas pelos torturadores romanos: mal podiam crer no singular espetáculo de um Imperador reverentemente postado no centro da Igreja reunida, a ensimesmar-se em suas problemáticas mais intestinas. O bispo de Roma, Silvestre, não compareceu pessoalmente, fazendo-se representar apenas por dois de seus legados, presbíteros de sua assistência: é 543 Cf. Manlio SIMONETTI. “Ario – Arianismo”. In: VV. Op. cit. pp. 149-150. A. VELASCODELGADO. Op. cit. p. 635, n. 170. Manlio SIMONETTI et al. “Antioquia da Síria”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 112-113. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. 207 anacrônico falar em cesaropapismo para descrever a atitude deste imperador que convoca e preside o primeiro Concílio Ecumênico – por meio de seu delegado Ósio de Córdoba na maior parte do tempo, mas também pessoalmente em algumas ocasiões – simplesmente porque não há neste período nenhum indício de que haja qualquer fenômeno que possa vir a ser caracterizado como papismo, este construto tão medieval que, desenvolvendo-se no segundo milênio, alcançará o seu ápice apenas na proclamação do Dogma da Infabilidade Papal no Concílio do Vaticano I (1869-1870). A grande verdade é que o Ocidente – que, grosso modo, já havia “adotado a formulação de Tertuliano de um só Deus subsistindo em três pessoas”544 – estava sub-representado nesta primeira reunião considerada como ecumênica pela tradição eclesiástica: há apenas quatro bispos, incluindo-se Ósio. Sem dúvidas muitos foram os que hesitaram diante da duração e dos eventuais perigos da viagem: mesmo com a especial anuência, proteção e providência do poder imperial a viagem da Bretanha ou de Trier até Nicéia deveria parecer realmente impressionante àquela época. Dois bispos de fora do Império também participaram da reunião: Jacó de Nísibis e um outro identificado apenas como João, bispo da Índia e da Pérsia – o que é uma jurisdição vasta e genérica demais para qualquer epíscopo de qualquer tempo. Pouco mais de três centenas de prelados se fizeram presentes.545 Falaram primeiro os representantes de Ário, depois de um breve discurso de boas-vindas do imperador, proferido em latim e transcrito em tradução grega por Eusébio de Cesaréia em sua Vida de Constantino. Propôs-se uma fórmula de fé que foi lida por Eusébio de Nicomédia, mas esta foi sumamente rejeitada. O bispo de Cesaréia apresentou também a fórmula de fé de sua diocese, a título de declaração pessoal. Tentava assim livrar-se da suspeita de heresia que sobre ele pesava com força desde a censura que havia recebido no sínodo de Antioquia, mas também, “(...) Percebendo talvez o sentido da reunião”546, buscava com sinceridade ajudar os padres conciliares a encontrarem uma definição de tipo “guarda-chuva”, que fosse conveniente a todos e encerasse com o máximo de rapidez possível o litígio; conseguiu apenas ser restituído à plena comunhão com 544 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 226. 545 Cf. G. SUFFERT. Op. cit. p. 74. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. 546 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. cit. 208 seus pares. Representava ele a imensa maioria dos indecisos, daqueles que “gostariam de reconciliar todo mundo.”547 Manifestou-se a seguir, Marcelo de Ancira, antiariano feroz que se aferrava ao princípio de uma monarquia divina, mas ele não logrou atrair a atenção dos sinodais para as suas idéias teológicas. Duas décadas e meia depois, o teimoso Atanásio de Alexandria narraria na carta De decretis Nicænæ Synodi que as discussões travadas em Nicéia foram longas, laboriosas e não raro quase chegaram às vias de fato.548 Incitados por singular odium theologicum, os partidos beligerantes não demoraram a acusar problemas disciplinares e falhas de caráter em seus opositores, e começou a vigorar entre eles uma sinistra Lei de Goebbels, estabelecendo que quanto maior a difamação, maior a mentira, e que verdadeiro era o que estava eficazmente a serviço do que era correto.549 À título de ilustração disto, recorramos a dois exemplos. Em primeiro lugar, um termo com que foram apelidados ofensivamente por Eustácio de Antioquia (e depois por Atanásio) os seguidores de Ário: ariomanitas. Tal vocábulo era um neologismo baseado na afinidade entre os nomes Ário e Ares, deus greco-latino da guerra e da fúria homicida, contíguo a um trocadilho que transformava areimanés (ou seja, “tomado pelo furor de Ares”) em areiomanítes (“tomados pelo furor de Ário”).550 Em segundo, uma carta redigida por Alexandre de Alexandria no princípio de 324 sobre Ário e os seus partidários, texto que ainda estava a circular entre os bispos durante as tempestuosas conversações em Nicéia e talvez tenha sido publicamente apresentado neste grande sínodo: “(...) Movidos pela avareza e ambição, esses tratantes estão constantemente conspirando para apropriar-se das dioceses mais ricas (...) são enlouquecidos pelo diabo que neles age (...) enganadores habilidosos (...) planejaram uma conspiração (...) propósitos vis (...) equiparam bandos de ladrões (...) organizaram uma quadrilha para combater Cristo (...) incitaram desordeiros contra nós (...) persuadem as pessoas a perseguirem-nos (...) suas mulheres imorais (...) as seguidores mais jovens correm pelas ruas em trajes indecentes e desacreditam o cristianismo (...).”551 547 G. SUFFERT. Op. cit. p. cit. 548 Cf. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. G. SUFFERT. Op. cit. p. cit. Charles. KANNENGIESSER. “Marcelo de Ancira”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 879-880. 549 Justamente o quê é o correto é que, entretanto, era problemática em questão. 550 Cf. Manlio SIMONETTI. “Ariomanitas”. In: Id. Op. cit. p. 153. 551 Citado em: P. JOHNSON. Op. cit. p. 67. 209 Não se sabe bem por que composição de forças, a grande maioria dos reunidos tornou-se pouco a pouco opositora das proposições arianas. Ao que parece, cerraram fileiras triteístas e monarquianistas moderados, dispostos com todas as suas forças a obterem uma condenação de Ário e suas doutrinas. O presbítero alexandrino tentou se defender e não conseguiu; prudentemente evocou as virtudes da humildade, caridade e moderação cristãs, “que, na fúria das dissensões civis e religiosas, raramente são praticadas ou sequer louvadas, a não ser pela parte mais fraca.”552 Seus defensores incitaram-no a fazerem concessões as mais liberais, propostas de tal modo que satisfizessem os adversários sem renunciar à integridade de seus próprios princípios, e repudiaram terminantemente o uso de quaisquer termos ou definições que não pudessem ser explicitamente localizados nas Sagradas Escrituras. A facção constituída por seus opositores, numerosos e bem-organizados, firmou posição e preparou cuidadosamente sua ofensiva: “recebeu todas as propostas deles com altaneira suspicácia e ansiosamente as esmiuçou em busca de algum sinal irreconciliável de discriminação cuja rejeição lograsse envolver os arianos no pecado e nas conseqüências da heresia.”553 Com a fadiga permeando o ambiente e se tornando quase palpável, propõese a elaboração e a votação do texto de uma profissão de fé. A estrutura do “resumo da Fé” lido por Eusébio de Cesaréia e as formas tradicionais do símbolo antiariano estabelecido nos sínodos de Alexandria e Antioquia foram retomadas e mais bem determinadas por sucessivos acréscimos, até que se inserisse nele o atributo homoousios (consubstancial) para qualificar a unidade de essência entre Pai e Filho.554 Não se sabe exatamente quem teve a iniciativa de propor o uso de 552 E. GIBBON. Op. cit. p. 348. 553 Id. Op. cit. p. cit. 554 Jacques Liébaert registrou que a confissão oferecida por Eusébio de Cesaréia aos padres conciliares era: “Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, e em um só Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus, Deus nascido de Deus, luz nascida da luz, vida nascida da vida. Filho único, unigênito de toda criatura, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, por quem tudo foi feito. Por nossa salvação Ele se encarnou e habitou entre nós. Sofreu a paixão, ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao Pai e voltará na sua glória para julgar os vivos e os mortos. Cremos também em um só Espírito Santo.” A profissão de fé nicena, por sua vez, ficou: “Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, e em um só Senhor Jesus Cristo, Filho único gerado pelo Pai, isto é, da substância do Pai, Deus nascido de Deus, luz nascida da luz, Deus verdadeiro nascido de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai, por quem tudo foi feito no céu e na terra. Por nós, homens, e por nossa salvação, ele desceu, Ele se fez carne e se fez homem. Sofreu a paixão, ressuscitou ao 210 tal vocábulo, palavra que não consta de nenhuma parte da Bíblia Cristã e que, mesmo retomada em sentido positivo nos debates que precederam imediatamente o concílio, ainda era assinalada com uma significativa restrição mental.555 Fonte na posteridade de inúmeros problemas doutrinais mesmo para aqueles que condenavam Ário, a dita palavra serviu para unir as várias matizes de antiarianos presentes em Nicéia: terceiro dia, subiu ao céu, de onde voltará para julgar os vivos e os mortos. É no Espírito Santo.” As fórmulas destacados em itálico são as que foram introduzidas com o específico fim de refutar as proposições de Ário. Tal profissão de fé era ainda blindada com a seguinte declaração: “Quanto aos que dizem: houve um tempo em que ele não era, ou: ele não era antes de ser gerado, ou então: Ele saiu do nada, ou que o Filho de Deus é de outra substância ou essência, ou que ele foi criado ou que não é imutável, mas sujeito à mudança, a Igreja os anatematiza.” Todas estas citações foram, como dito, extraídas de: Jacques LIÉBAERT. Os Padres da Igreja. (Trad. Nadyr de S. Penteado). (2ª ed.). São Paulo: Loyola, 2004 [2000]. (Volume I : Séculos I-IV). p. 141. Cabe registrar ainda que um dos pouquíssimos documentos autênticos que nos restam de Eusébio de Cesaréia sobre o Concílio de Nicéia é uma carta que este prelado teve de escrever aos seus diocesanos desde a reunião justificando porque subscreveu um credo diferente do de sua comunidade, modificado pela intervenção de bispos que sobre ela não tinham nenhum tipo de jurisdição. Nesta importante correspondência, indício da verdadeira paixão teológica que animava os cristãos orientais de então, Eusébio quase certamente supervalorizou o papel de sua proposição, além de ter afirmado que somente depois de muita resistência sua é que se pôde fazer nela algumas pequenas alterações que afastavam as mais radicais proposições de Ário, coisa concedida unicamente para que os padres conciliares não corressem o perigo de enveredar por proposições de cunho modalista. Trata-se de circunstância que não é atestada em nenhuma outra fonte. Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 29*. Para uma avaliação muito completa e autorizada acerca da “verdadeira origem”, significado histórico-teológico e uso do Credo de Nicéia, ver: J. N. D. KELLY. Primitivos credos cristianos. (Trad. Severiano T. Tovar). Salamanca: Secretariado Trinitario, 1980. pp. 247-313. 555 A história do termo homoousios pode ser definida no mínimo como confusa; de modo geral, serve bem para ilustrar a afirmação de Edward Gibbon de que “(...) Os mais doutos dos pais da Igreja, por uma condescendência assaz estranha, imprudentemente admitiram os sofismas dos gnósticos.” (Op. cit. p. 243). Já familiar às especulações religiosas dos platônicos, foi empregado no seu sentido mais estrito ( : “igual, o mesmo”; : “essência, substância”) por alguns grupos gnósticos, especialmente pelos valentinianos, para expressar a noção de que algo no espírito homem participa do divino, ou seja, que sua alma é consubstancial com Deus – da mesma forma que seu entendimento (psiqué) seria consubstancial com o Demiurgo, e sua matéria com o diabo. A primeira segura atestação do uso de seu uso para expressar uma noção acerca da Trindade consta na obra de Dionísio de Alexandria, que reconheceu a origem não-escriturística do termo e, no entanto, declarou-a válida de ser aceita no sentido genérico de “do mesmo gênero, do mesmo tipo”. Há uma notícia não muito segura de que em um sínodo reunido em Antioquia no ano de 268 os adversários de Paulo de Samósata o condenaram não apenas por seu comportamento tido como não aprovável, mas também por proclamar o Logos homoousios com o Pai. Seus adeptos, que constituíram uma seita à parte ainda viva por ocasião do Concílio de Nicéia, eram numericamente pouco significativos, mas uma incômoda lembrança do uso passado deste termo que se tornaria a pedra-de-toque da ortodoxia nicena. Existe também um informe sobre o seu uso tanto entre moderados origenistas da Pentápole, quanto entre os monarquianos asiáticos – cujo líder era Eustácio de Antioquia e o mais exaltado propagandista Marcelo de Ancira –, empenhados em negar à doutrina trinitária das três hipóstases, que tendiam a distinguir em Deus também três ousia (a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo). Cabe ressaltar que sempre tratou em meios cristãos ortodoxos de termo muito ambíguo, e não apenas por que não se tinha exatamente uma definição do que exatamente era ortodoxo (ou não), dado a polissemia de ousia, que podia apresentar significações demasiado materialistas e designar tanto uma substância genérica quanto uma caracterização individual. Cf. Manlio SIMONETTI. “Homoousios”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 695696. Id. “Paulo de Samósata”. In: Id. Op. cit. pp. 1116-1117. 211 “(...) O interesse da causa comum os levava a unir suas hostes e a esconder suas diferenças; a mútua animosidade foi abrandada pelos salutares ditames da tolerância e suas disputas suspensas pelo uso do misterioso Homoousiano, que cada um dos partidos tinha a liberdade de interpretar em conformidade com seus princípios privativos. (...) Dentro destes limites, permitia-se que o quase invisível e vacilante pêndulo da ortodoxia balouçasse com segurança. De ambos os lados, para além desse terreno consagrado, emboscavam-se os hereges e demônios para surpreender e devorar o desditoso andarilho. (...) A autoridade de um conselho ecumênico, a que os próprios arianos foram obrigados a submeter-se inscrevia nas bandeiras do partido ortodoxo as letras misteriosas da palavra ‘homoousiano’, a qual contribuía (...) para manter e perpetuar a unidade da fé, ou pelo menos da linguagem. Os consubstancialistas, que por seu triunfo mereceram e obtiveram o título de católicos [i.e., universais], exaltavam na simplicidade e firmeza de seu próprio credo e insultavam as repetidas variações de seus adversários, destituídos 556 de qualquer norma certa de fé.” Têm-se informes de que alguns padres conciliares intuíram logo os problemas que podia gerar – e gerou – a inclusão de tal expressão na basilar fórmula de fé do cristianismo, mas o cansaço e a ansiedade imperial pesaram fortemente para que rápido se chegasse a um texto aceitável. O concílio precisava se encerrar antes de 25 de julho do mesmo ano: nesse dia, Constantino festejaria o 20º aniversário de sua elevação a César, e o Imperador demonstrava vividamente que não iria tolerar que então continuassem a existir divisões entre os cristãos. Publicamente foi lida uma declaração de Eusébio de Nicomédia, patrono dos arianos, onde ele confessava de forma quase ingênua que a admissão do homoousios para expressar o mistério da Trindade era incompatível com os princípios de seu sistema filosófico. Este escrito foi ignominiosamente rasgado pelos exaltados padres consubstancialistas. Eusébio de Cesaréia, “o mais douto dos prelados cristãos”557, mostrava-se disposto a ceder, e seu exemplo conduzia muitos dos relutantes a fazerem o mesmo. Ao final dos debates, somente o presbítero Ário e dois bispos amigos seus, Segundo de Ptolemaida e Teonas de Marmárica, recusaram-se a subscrever o credo niceno. Os dois bispos foram depostos de suas Sés, e todos os três clérigos foram exiladas para a Ilíria; apenas três meses depois seriam enviados para as mais ermas regiões da Gália Teógnis de 556 E. GIBBON. Op. cit. pp. 349-350. O grifo é do autor. 557 Id. Op. cit. p. 347. 212 Nicéia e Eusébio de Nicomédia, que ocupava a cátedra episcopal da capital oriental de Constantino na época.558 Além de aplanar a questão ariana, o Concílio de Nicéia também elaborou alguns importantes decretos disciplinares, como o relativo à celebração da Páscoa, fixada segundo o uso romano e alexandrino no primeiro domingo imediatamente posterior ao aparecimento da lua cheia logo depois do equinócio da primavera (obviamente no Hemisfério Norte). O restante das definições, em número de vinte, versavam sobre as estruturas hierárquicas da Igreja e os seus fundamentos (cânones 4, 5, 6, 7, 15 e 16), sobre a disciplina do clero (cânones 1, 2, 3, 9, 10 e 17), sobre a penitência pública (cânones 11, 12, 13 e 14), sobre a readmissão dos cismáticos e dos hereges (cânon 19) e sobre a liturgia (cânones 18 e 20). Nestas, afirmou-se o conjunto do Novo Testamento que até a Contemporaneidade compõe a Bíblia Cristã, estabeleceram-se regras uniformes para a eleição dos bispos e o exercício de sua autoridade, e fez-se coincidir as fronteiras das jurisdições episcopais com as fronteiras administrativas civis e militares do Império. Com um faustoso banquete e uma magnânima oferta de presente aos prelados reunidos, Constantino encerrou pessoalmente o concílio559; para o autor da História Eclesiástica, este festim suntuoso “(...) Era sem dúvida uma imagem do reino de Jesus Cristo e parecia que estávamos sonhando.”560 Uma anônima Vitæ Constantinii, muito distinta da atribuída à Eusébio de Cesaréia e composta em um latim burocrático possivelmente na cidade de Constantinopla na segunda metade do século IX, preservada hoje em muitas versões que divergem ligeiramente umas das outras – dispomos de uma do século XI, outra do XII e mais de quatro dezenas dos séculos XIV e XV – afirma que o documento final desta solene reunião, após a expulsão de Ário e daqueles que permaneciam na perfídia de o apoiarem, recebeu precisamente trezentas e dezesseis assinaturas, uma vez que dos trezentos e dezoito padres conciliares que teriam apoiado a condenação do arianismo e a formulação do símbolo trinitário que informava que o Filho de Deus 558 Cf. G. SUFFERT. Op. cit. p. 95. E. GIBBON. Op. cit. p. cit. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. 559 Cf. M. FORLIN PATRUCCO e Ch. KANNENGIESSER. Op. cit. p. cit. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 226. 560 Citado em: Henri Irenée MARROU. “A Igreja no seio de uma civilização helenística e romana”. In: CONCILIUM : Revista internacional de teologia. Ed. em língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, v. 67, n. 7. 1971. p. 849. 213 era co-eterno, consubstancial e indivisível do Pai, todos capazes de operar prodígios e milagres, dois – de nomes Crisanto e Musônio – haviam falecido de morte natural antes do término de sua redação. Numa homenagem póstuma a estes homens que gastaram a sua última velhice refletindo sobre tão relevantes questões, o rolo de papiro que continha o Credo, antes de ser apresentado ao Imperador, foi selado e colocado durante a noite ao lado do túmulo dos dois santos. Ao amanhecer, quando o rolo foi desenrolado, constatou-se em seu verso a presença de uma mensagem da parte dos dois bispos falecidos e suas assinaturas junto das dos demais signatários.561 O homoousios niceno, entretanto, não aplacou os ânimos: estabelecido por um consenso antiariano que se mostrou demasiado efêmero, desagradou tanto aos partidários de Ário quanto a seus opositores demasiado moderados ou demasiado radicais, que parecem ter se desagradado da fórmula de fé que subscreveram ainda quando percorriam o caminho de volta para suas Sés. Depois de terminado o Concílio de Nicéia, também Constantino começou a ter dúvidas sérias sobre a correção e prudência da posição que havia tomado subscrevendo sem reservas a definição que afirmava que o divino Filho era homoousios do divino Pai. Mais do que isso: quase imediatamente o pêndulo político-teológico do Oriente grecolatino-cristão oscilou daquela inflexível posição que mais tarde seria personificada por Atanásio de Alexandria para um arianismo moderado. Dentro de pouco mais de um ano, a muitos dos que foram condenados e mandados para o exílio, incluindo Eusébio de Nicomédia, personagem a quem era afeiçoado o próprio Imperador, acenou-se com a possibilidade de negociarem suas posições teológicas mais controversas em troca do retorno a seus postos e funções eclesiásticas. Simultaneamente, por meio de emissários e cartas expressas, Constantino começou a pressionar todos os que haviam subscrito a profissão de fé de 325 para que fosse arranjada uma maneira de se restabelecer em plena comunhão os que se recusaram a aceitá-la, e ordenou que se buscasse uma maneira de reintegrar na Igreja o próprio Ário. Como nenhuma posição pode ser afirmada apenas pela força em matéria de religião – pensemos na obstinação dos donatistas que acima mencionamos –, é evidente que Constantino possuía uma ampla base de apoio 561 Cf. Id. Op. cit. p. cit. Celso TAVEIRA. O modelo político da autocracia bizantina : Fundamentos Ideológicos e Significado Histórico. 2002. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo (BR). ps. 161 e 164. 214 para alternar de tal maneira suas preferências. O consenso de que era proveitoso e bom que se chegasse a algum tipo de compromisso com a posição ariana, de fato, era bastante forte entre as principais igrejas do Oriente, e contava entre seus mais destacados defensores com o erudito Eusébio de Cesaréia, agora um elemento bem treinado na fina arte da intriga de corte e ligado à Augusta Pessoa por laços que bem podem ter sido de sincera amizade e admiração mútua. Pela intervenção do bispo palestino, de Constância, irmã de Constantino, e talvez de outros membros da família imperial com os quais ainda mantinha regular correspondência, em 328 Eusébio de Nicomédia foi chamado do exílio e reabilitado, sendo seguido pouco depois por Teógnis.562 A esta altura dos acontecimentos Constantino já estava mais do que convencido de que a paz e a unidade duradoura entre os cristãos só poderia ser obtida pela hegemonia de uma concentração de elementos moderados que, como tinham sido antes avessos ao radicalismo dos arianos, agora rejeitavam a exaltação de seus adversários mais contumazes. O que mais desejava era que a Igreja fosse universalista e inclusiva o mais possível. Desagradavam-lhe homens como Atanásio de Alexandria, que havia participado do Concílio de Nicéia como diácono de Alexandre e foi feito sucessor deste em 328, um personagem “violento, que chicoteava regularmente os clérigos novatos e aprisionava ou expulsava bispos”563, e – do ponto de vista imperial, pior do que tudo isto – inflexível, que se recusava a fazer qualquer concessão em matéria de fé e disciplina, não à toa comparado por Gregório Nazienzo em um panegírico a uma coluna de pedra.564 No ano em que este foi elevado ao episcopado, aliás, Constantino remeteu-lhe uma carta, que Atanásio mesmo atestava ter sido redigida de próprio punho pelo imperador, na qual alertava de forma ameaçadora: “(...) como você conhece meus desejos, ore para admitir livremente todos que desejarem ingressar na igreja. Caso chegue aos meus ouvidos a notícia de que 562 Cf. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. pp. 226-227. Cf. Manlio SIMONETTI. “Ario – Arianismo”. In: VV. AA. Op. cit. p. 150. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 31* e nota correspondente, n. 117. 563 P. JOHNSON. Op. cit. p. 107. 564 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 163. 215 você impediu alguém de tornar-se membro, imediatamente enviarei um oficial 565 para depô-lo e enviá-lo para o exílio.” Definitivamente não era o tipo de Igreja representado pelas proverbiais teimosia e exaltação do bispo de Alexandria o que desejava Constantino, para quem o cristianismo “(...) tinha de refletir o melhor do império – harmonia, serenidade, multiplicidade na unidade.”566 Constantino pode não ter influído significativamente no conteúdo dos debates do Concílio de Nicéia, mas não se escusou de assumir ali e sempre um papel de mediador entre os diversos cristãos contentores, evitando o máximo que pudesse que uma mínima divergência no tocante a uma minúcia teológica por demais sublime e abstrusa, ou uma rixa de outra ordem que fosse transposta para o plano dos debates eclesiásticos, se degenerasse em um conflito inflamado por uma irredutível oposição de princípios, e, caso isto fosse inevitável, providenciando uma solução para a problemática que fosse o máximo honrosa e agradável a todos os envolvidos. Consta que ele insistiu para que fosse incluído no credo niceno o homoousio, mas que o fez apenas para precipitar o fim da desgastante reunião. Em sua Vida de Constantino, Eusébio de Cesaréia afirma quanto à declaração final do Concílio de Nicéia que o Imperador “aconselhou todos os presentes a concordar e a subscrever seus artigos e assentirlhes, com a inserção da palavra ‘consubstancial’, que, além disso, ele mesmo interpretou.”567 Trata-se de um testemunho improvável, pois além de muito pouco verossímil – o mais provável é que Constantino não alimentasse nenhum tipo de simpatia pelos debates doutrinários cristãos, que em verdade não compreendia ou podia compreender inteiramente – é contradito por trecho anterior da mesma obra do referido autor, onde se atesta que a primeira reação de Constantino diante da controvérsia ariana foi afirmar que tratava-se de “um ponto de polêmica (...) sugerido pelo espírito contencioso e fomentado pelo lazer mal orientado (...) um mero exercício intelectual” sobre uma questão que quase certamente não se poderia definir com certeza e que, se pudesse ser estabelecida, estaria de qualquer forma muito além do entendimento da grande maioria das pessoas.568 Interessante 565 Citado em: P. JOHNSON. Op. cit. p. cit. 566 Id. Op. cit. p. cit. 567 Citado em: Ibid. Op. cit. p. 108. 568 As citações e o argumento foram extraídos de: Ibid. Op. cit. p. cit. 216 é notar que esta opinião que Eusébio de Cesaréia atribui ao Imperador no tocante ao arianismo, ao que tudo indica, também era a sua própria. Como faz na sua História Eclesiástica, também ao relatar esta problemática a apresentação que faz dos acontecimentos é prenhe de indícios da rede de juízos de valor pelos quais eles foram apreendidos pelo douto prelado. Não é nenhum acaso que tanto o bispo de Cesaréia quanto o primeiro imperador pró-cristão dos romanos segundo o bispo de Cesaréia usem o mesmo tom – irenista, conciliatório, urbano – para lidar com a crise ariana, os debates nicenos e os seus descontentes. A militância de Eusébio no pós-concílio, aliás, atesta o quanto subscrevia a postura de seu herói, com quem afirmou ter sido “honrado com a convivência íntima e social”.569 Já no final de 325, Eusébio interveio eficazmente a favor da deposição de Asclépio (ou Asclepas) de Gaza, um dos adversários de primeira hora de Ário, que havia excomungado o bispo de Cesaréia no concílio antioquieno que precedeu em alguns meses o de Nicéia. Sob a presidência do historiador – que o conduziu “com mais paixão e menos habilidade do que seria de esperar de sua erudição e de sua experiência”570 – e a aprovação do Imperador Constantino, no ano de 327 um sínodo reuniu-se em Antioquia da Síria para julgar o bispo local, Eustácio, intransigente opositor dos arianos. O motivo de sua acusação não está claro para os estudiosos modernos, ainda que seja certo de que, óbvio signatário de Nicéia, não tenha sido propriamente de cunho doutrinal – Manlio Simonetti especula que possa esta ter sido referente à imoralidade ou a um suposto excesso de poder. Não retrocedendo o cada vez mais confiante partido dos moderados nem diante de uma verdadeira tempestade de calúnias proferidas desde Alexandria e de algumas Sés do Ocidente mais inteiradas da questão, Eustácio foi condenado e deposto pelos clérigos reunidos, e, ato contínuo, exilado pelo poder secular na cidade de Trajanópolis, na Trácia. Dele os especialistas não registram mais notícia alguma. Eliminado este incômodo clérigo de uma das mais prestigiosas sedes diocesanas do Oriente – aquela onde os seguidores de Jesus receberam pela primeira vez o nome de cristãos –, Eusébio de Cesaréia viu-se enredado na espinhosa questão de determinar quem o iria suceder. Pode ser que tenha sido ele mesmo indicado de pronto sucessor de Eustácio, honraria da qual declinou em favor de um seu amigo, 569 Citado em: Ibid. Op. cit. p. 83. 570 E. GIBBON. Op. cit. p. 363. 217 Paulino de Tiro, que considerava tão mais apto quanto mais merecedor desta honraria, e que veio a morrer menos de seis meses depois de ocupar o posto. Uma considerável parte do povo cristão de Antioquia não estava nada satisfeito pela deposição de Eustácio e começou a se agitar, pedindo o retorno do bispo exilado. Há uma ou duas manifestações mais exaltadas que são de pronto reprimidas pela mão forte do Império, e sucede a Paulino, talvez como recurso de compromisso, um tal Eulálio, do qual sabemos muito pouco, dado que era desconhecido antes de ser feito bispo e faleceu muito pouco depois disto. O partido que rejeitava as decisões do sínodo presidido por Eusébio se fazia mais e mais forte, mas não só não concordava quanto a quem seria o seu próprio candidato à cátedra como ia contra o explícito parecer do Imperador. Este, por fim, insinuou que seria bom se o próprio Eusébio se transferisse para esta diocese, e mesmo entre os que apoiavam Eustácio parece haver tido certa aprovação a tal nome. O prelado conhecido por sua assombrosa erudição e inesgotável disposição em buscar conciliar todos com todos, já bastante famoso por sua História Eclesiástica, hesitou. Tal eleição representava sem sombra de dúvida o maior triunfo de sua carreira como homem de Igreja, ainda que fosse muitíssimo tensa a situação entre os cristãos de Antioquia. Reconheceu por fim os seus limites humanos – tal nomeação o afastaria de seus tão amados livros, o que não poderia suportar – e declinou deste encargo e prenda, apelando ao cânon 15 do Concílio de Nicéia. Constantino confirmou sua aceitação desta decisão em uma carta reproduzida no famoso panegírico escrito em sua honra pelo próprio Eusébio, juntamente com outras referentes ao assunto da aventura antioquena. Em meio ao tom extremamente laudatório do Imperador, emerge mal disfarçado o seu significativo desagrado pela atitude assumida pelo bispo de Cesaréia.571 Após o retorno de Eusébio de Nicomédia do exílio, sua influência cresceu junto ao imperador, e sua retórica conciliatória e fama de santidade acabaram por torná-lo uma verdadeira eminência parda nos círculos cortesãos. Mais militante do que o outro Eusébio, explicitamente promoveu uma campanha que visava desprestigiar e colocar às margens os mais conhecidos adversários de Ário, acusando-os junto a Constantino de diversas infrações às ordens civis e 571 Manlio SIMONETTI. “Eustácio de Antioquia”. In: VV. AA. Op. cit. p. 543. Id. “Asclepas de Gaza”. In: Id. Op. cit. p. 175. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. pp. 30*-31* e notas correspondentes, n. 115-126. 218 eclesiásticas, mas sem recolocar de pé, entretanto, a questão doutrinal que pessoalmente o opunha a estes prelados. Após conseguir que o piedoso Lúcio de Adrianópolis fosse retirado de sua casa preso em cadeias em pleno meio-dia, avançou contra Atanásio de Alexandria e Marcelo de Ancira. O primeiro, empenhado em lidar com os melicianos – facção rigorista cujo nome derivava do presbítero que a liderou, que tinha características comuns com os donatistas de Cartago e que recusava terminantemente a autoridade do bispo de Alexandria – foi vítima de um acordo entre estes e os bispos de Nicomédia e Cesaréia. Atanásio foi acusado junto ao imperador de corrupção, traição, violências e do assassinato do bispo meliciano Arsênio, que, no entanto, conseguiu fazer localizar escondido em um mosteiro do Alto Egito e apresentar vivo aos seus adversários. Convocado à Sé Titular da Palestina para ser julgado em um sínodo por este suposto assassinato, percebeu tratar-se de uma armadilha e recusou-se a comparecer; logo depois disto, uma comissão imperial apresentou um relatório acusando-o de ter incitado distúrbios civis em Mareótis e, por fim, de ter ameaçado interromper os abastecimentos de trigo do Egito para Roma. Uma nova reunião foi convocada em 335, na cidade de Tiro, e Atanásio foi obrigado a apresentar-se por ordem expressa de Constantino. Dela participaram cerca de sessenta bispos orientais e vários egípcios, vindo de suas dioceses para acompanharem o seu irascível patriarca, e o prelado que conduziu os trabalhos foi Flacilo de Antioquia, nomeado para esta diocese após a recusa de Eusébio de Cesaréia em assumir o seu governo. Foram apresentadas as acusações tanto dos melicianos quanto da comissão – formado por seis filoarianos – que havia acusado Atanásio diante do Imperador; os egípcios presentes protestaram contra a parcialidade das conclusões do debate, mas sem obter resultado. Antecipando que aquele sínodo era apenas uma forma de legitimar uma ordem de ação já estabelecida nos bastidores por seus inimigos, Atanásio saiu às escondidas da Fenícia e seguiu para Constantinopla, onde pretendia advogar sua causa diretamente junto da Augusta Pessoa. Encerrados os trabalhos em função desta escapada cinematográfica, por vontade de Constantino, os padres conciliares transferiram-se para Jerusalém, para ali celebrarem a festa da Dedicação da Basílica do Santo Sepulcro e também o trigésimo ano do governo imperial daquele especial “amigo de Deus”.572 572 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 9, 2. p. 346. 219 Antes do início da Divina Liturgia celebrada em torno do local onde se acredita ter sido sepultado Jesus Cristo, foi lida uma carta do Imperador – da qual possuímos um resumo feito pelo historiador grego Sozômeno, contemporâneo de Sócrates Escolástico (final do século IV ou começo do V) – onde este sustentava ter interrogado os arianos, atestado a sua ortodoxia (confirmada por uma profissão de fé anexa), e convidava os eclesiásticos ali reunidos a readmitirem Ário na Igreja, pedindo que lhes dessem provas de sua boa vontade e empenho em restabelecer a paz entre os cristãos. Os bispos reunidos obedeceram e remeteram no mesmo dia cartas às dioceses do Egito, da Líbia e da Pentápole comunicando a sua decisão; como concreto sinal disto, Ário receberia na manhã seguinte a comunhão das mãos do presente bispo da capital do Império. O polêmico presbítero, entretanto, não gozou de seu triunfo, vindo a falecer, segundo algumas notícias, ainda naquela noite. Fazendo referência a uma consideração de Edward Gibbon sobre o assunto, Marilia Fiorillo destaca o quanto as circunstâncias estranhas que envolveram a morte de Ário excitam a nossa desconfiança de que os santos ortodoxos contribuíram para livrar a Igreja do mais temível de seus inimigos com instrumentos bem mais mundanos – e eficazes – que suas preces. Há mesmo índicos de que suspeitas foram lançadas neste sentido especialmente pelos contemporâneos destes fatos que encaravam Ário como um homem inocente que fora vítima da má compreensão ou da inveja; Paulo de Constantinopla, importante prócer dos consubstancialistas, chegou a ser acusado, deposto e banido em função destas talvez caluniosas reticências cortesãs.573 Enquanto um clérigo alexandrino singrava o Mediterrâneo para defenderse diante de um César e outro era reabilitado por seus pares – e morria antes de poder com eles celebrar os mistérios de sua fé –, das profundezas do deserto egípcio o semi-lendário abade Antão teria escrito a Constantino em favor de Atanásio, mas ou esta correspondência nunca foi entregue ou ela não teve nenhuma eficácia. Em 30 de outubro de 335 o inflexível prelado apresentou-se diante de um determinado imperador, disposto a confrontá-lo. Mal disfarçando sua admiração por esta coluna da ortodoxia nicena, Gibbon escreveu que, como “(...) a solicitação de uma audiência poderia ter sido obstada ou burlada, Atanásio 573 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. p. 158. E. GIBBON. Op. cit. p. 355. Sobre o Credo subscrito pelos bispos participantes deste concílio dito da Dedicação (do Santo Sepulcro), ver: J. N. D. KELLY. Op. cit. pp. 315-328. 220 ocultou (...) sua chegada, ficou à espera do momento do retorno de Constantino de uma vila próxima e audazmente saiu ao encontro de seu irado soberano quando este passava a cavalo pela rua principal de Constantinopla.”574 Talvez assombrado com aquela coragem ou atrevimento inauditos, Constantino, depois de ter cedido ao “involuntário respeito”575, ouviu com “atenção imparcial e até mesmo benevolente as [suas] queixas”576, mas por fim confirmou as suas sucessivas condenações, pô-lo a ferros e mandou-o exilar em Trier. Distante o maior flagelo dos arianos, Marcelo de Ancira, duramente acusado por Eusébio de Cesaréia como herege – por suas afirmações poderem dar a entender que o Cristo era apenas uma forma de manifestar-se da eterna divindade do Pai – e como agitador – por supostamente semear a discórdia entre os cristãos –, pôde ser afastado sem maiores resistência por um sínodo reunido em Constantinopla no ano de 336.577 A morte de Constantino em 337, e, muito pouco depois, de Eusébio de Cesaréia578, o substancial alargamento dos horizontes da militância pró-ariana de Eusébio de Nicomédia para além das próprias fronteiras imperiais579, e a profunda modificação política ocasionada pela divisão do Império entre Constantino II, Constâncio e Constante, influíram significativamente no prosseguimento da controvérsia ariana, mas, de fato, já registramos aqui elementos mais do que suficientes para expor o nosso argumento de maneira conveniente. Eusébio de Cesaréia e seu admirado imperador, motivados por considerações diversas, mas convergentes, trabalharam juntos – talvez apenas de modo parcialmente consciente – para estabelecer uma determinada tônica desejável de ser mantida nos debates eclesiais – a ênfase na unidade vista como obrigatória concordância, o irenismo avesso a quaisquer formas de radicalismo, o argumento imparcial e seguro da erudição contra a invectiva apaixonada, a crença de que a Providência manifesta-se no consenso dos representantes reunidos dos cristãos – e, propositada e formalmente longe daqueles furiosos tempos em que se batiam 574 Id. Op. cit. p. 363. 575 Ibid. Op. cit. p. 364. 576 Ibid. Op. cit. p. cit. 577 Cf. J. LIÉBAERT. Op. cit. p. 165. Christopher George STEAD. “Atanásio”. In: VV. AA. Op. cit. p. 189. Manlio SIMONETTI et al. “Tiro”. In: Id. Op. cit. p. 1368. Carlo NARDI. “Dedicação (concílio da)”. In: Ibid. Op. cit. p. 386. M. SIMONETTI. “Ario – Arianismo”. Op. cit. p. cit. 578 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 35*. 579 Cf. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. pp. 229-231. 221 Pedro, Paulo e Tiago ou em que bradavam João Batista ou Tertuliano, criaram o ritual e o espetáculo da prática conciliar cristã, inclusive efetivamente “organizando cerimônias elaboradas, procissões e entradas dramáticas e serviços [de culto] esplêndidos.”580 Pela prática de uma miríade de clérigos e estadistas do século IV, entre os quais destacamos aqui apenas Constantino e Eusébio de Cesaréia, aquele grupo que a partir de determinado momento deste trabalho passamos a designar como a Grande Igreja, que havia conseguido estabelecer a sua versão da mensagem cristã como correta, ortodoxa – contra, as dos ofitas, novacianos, tomesinos e tantos outros –, revisitava a sua prática litúrgica para adaptá-la aos novos tempos: “(...) O cristianismo era, agora, uma religião com passado glorioso, bem como futuro ilimitado. (...) A estrutura básica da missa já existia em meados do século II, quando foi descrita por Justino Mártir. Consistia em leituras das memórias dos apóstolos e do Antigo Testamento; um sermão; uma oração, seguida do beijo da paz, e a distribuição do pão e água bentos. (...) Algumas das respostas da congregação também eram muito antigas. O efeito do processo de mudança (...) foi transformar uma cerimônia essencialmente simples em outra muito mais extensa e formal, envolvendo um elemento de grandeza. Os fragmentos das Escrituras tornaram-se mais longos e foram padronizados, com orações inseridas em intervalos fixos. (...) Alguns dos aspectos cerimoniais foram extraídos de cultos pagãos, outros, da prática cortesã, que ganhara muito em elaboração após a transferência para Constantinopla. O impulso para tornar a liturgia mais longa, impressionante, menos espontânea e, dessa forma, hierática, era, em essência, grego (...) verificou-se a explosão espetacular de cor nas vestimentas e tapeçarias, o uso de vasos de ouro e prata e elaboradas pias de mármore, dosséis de prata sobre o altar, uma miríade de velas de cera (...) e um elaborado incensamento. Tudo isso foi acompanhado por um embelezamento proposital dos procedimentos no altar e na procissão que para este ia e dele vinha (...) e tornou-se costumeiro velá-lo com cortinas. (...) a partir dessa época, ou pouco depois, encontra-se a prática de erguer uma tela ou iconóstase, cujo efeito era ocultar todas as operações no altar da congregação como um todo e aprofundar o abismo entre clero e leigos. Essas mudanças foram introduzidas, claro está, com consideráveis apreensões e em um contexto de crítica constante. Entretanto, eram populares: parte do processo pelo qual a Igreja estava conquistando a sociedade. (...) a Igreja [narrada e celebrada por Eusébio de Cesaréia] não apenas se tornara a religião oficial predominante do império romano, tendendo a ser considerada a oficial, como, na verdade, era a única. Ela havia, da mesma forma, adquirido muitas das características externas apropriadas de seu novo status: hierarquia e privilégios oficiais, integração com a hierarquia social e econômica, um cerimonial esplendoroso e sofisticado, elaborado para atrair as massas e salientar o apartamento da casta sacerdotal. Ela chegará lá. Foi bem lançada em sua carreira universalista. Tinha, por assim dizer, correspondido ao gesto de Constantino, e 580 P. JOHNSON. Op. cit. p. cit. 222 fora ao encontro do império na metade do caminho. O império se tornara cristão. 581 [Na primeira metade do século IV] (...) A Igreja tinha se tornado imperial.” As já indicadas mudanças na disciplina, na prática litúrgica e na eclesiologia decerto não seriam as únicas a serem demandadas por esta nova situação. 581 Id. Op. cit. ps. 121 – 123-125. Os grifos e interpolações entre colchetes são nossos. Cf. também: Hans KÜNG. Religiões do mundo : Em busca dos pontos comuns. (Trad. Carlos Almeida Pereira). Campinas: Verus, 2004. pp. 230-231. Richard SENNETT. Carne e pedra : O corpo e a cidade na civilização ocidental. (Trad. Marcos Aarão Reis). Rio de Janeiro: Record, 1997. pp. 124126. 223 III. “Se um trecho do metrô de Moscou não pode ser construído numa região do subsolo de Moscou, pior para o subsolo.” DITO STALINISTA Para prosseguirmos a bom termo, empreenderemos por via complementar o retorno a um tema tratado apenas muito rapidamente na primeira dezena e meia de linhas deste último capítulo de nosso trabalho. Em 1925, Shirley Jackson Case foi eleito presidente da American Society of Church History, e em seu discurso de posse, proferido no mesmo ano e publicado pouco depois, apresentou a tese de que as tentativas do imperador Diocleciano no sentido de utilizar a perseguição (303) para obrigar os cristãos a apoiarem de modo inequívoco o novo aparelho estatal romano que suas reformas haviam forjado, levadas adiante (305) por Galério, seu sucessor imediato, falharam porque em algum momento um pouco antes do início do século IV o movimento de Jesus tornara-se tão numeroso e amplamente aceito que cooptá-lo pela violência ou exterminá-lo tornou-se algo simplesmente inviável. O resultado disto, segundo Case, foi que já no ano 311 Galério César mudou de tática e fez cessar a violência estatal indiscriminada contra os seguidores do Cristo, reservando a brutalidade de seus emissários e torturadores para aqueles que teimavam em perpetuar em novas formas o radicalismo dos zelotes e pedindo aos demais apenas que rogassem “a seu Deus por nossa salvação, pela do Estado e por sua própria, com o fim de que, por todos os meios, o Estado se mantenha são e possam eles viver tranqüilos em seus próprios lares.”582 O edito de tolerância dito “de Milão”, promulgado apenas dois 582 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro VIII : 17, 10. p. 295. A argumentação de S. J. Case é impecável do ponto de vista do pragmatismo da cultura política latina, e tanto mais verossímil dado que não há formas de se confirmar – ou refutar – absolutamente a ligação que Eusébio de Cesaréia faz entre uma terrível doença que teria afligido César Galério por castigo divino e o fim da perseguição entre os cristãos (Cf. História Eclesiástica VIII : 16-17 e Apêndice ao Livro VIII, 1). Além disso, deve-se considerar também que se grandes problemas internas e externos afligiram o Império Romano enquanto Diocleciano e Galério faziam ameaçar, constranger, prender, torturar e executar cristãos, é bem provável que os imperadores – assim como Eusébio – tenham percebido tais circunstâncias como sinal de desagrado de potências de ordem divina. Tal coisa estaria absolutamente de acordo com tudo aquilo que sabemos da teoria e prática religiosas comuns do Império Romano. Verrius Flaccus, citado por Plínio, o Velho (História Natural, Livro XXVIII, cap. 2, parágrafos 18-19), afirmou que era muito comum que os romanos ao prepararem o cerco de uma cidade invocar a divindade que os locais criam protetora daquela área ou povo e suborná-la, 224 anos depois (transcrito na História Eclesiástica no Livro X : 5, 2-14), portanto, seria – ao menos inicialmente – apenas um prolongamento da política costumeira do Estado romano.583 Constantino e Licínio reuniram-se em Milão em fevereiro de 313 para celebrar o casamento da irmã do primeiro com o segundo, e nesta ocasião resolveram estabelecer uma política comum para lidar com os cristãos, cuja situação era tão diversa na parte ocidental e oriental do Império – de um lado, as medidas condescendentes dos últimos dias de Galério tinham permitido que em pouco tempo a Igreja se recuperasse e emergisse no cenário público como uma força importantíssima (lembremos, por exemplo, que o bispo Ósio de Córdoba muito possivelmente então já fazia parte da corte de Constantino); do outro, ainda que significativamente mais numerosos, os cristãos continuavam a ser acuados por uma cada vez mais sistemática ação de autoridades pró-pagãs, especialmente naquelas área sob a jurisdição de Maximino, “único sobrevivente dos inimigos da religião e que manifestou ser o pior de todos.”584 Pelo consenso dos dois cunhados redigiu-se e promulgou-se este que não é mais do que um re-escrito visivelmente baseado no edito de Galério sobre o mesmo tema, distinto deste essencialmente por esclarecer alguns conceitos e disposições antes ambíguas e suprimir certas condições restritivas de modo a fazê-lo mais favorável aos – membros de certa facção dos – cristãos.585 Como lembrou o sociólogo Rodney Stark em seu interessante ensaio sobre as taxas e padrões de crescimento do cristianismo nos seus primeiros três séculos, a avaliação feita por Case do edito de Licínio e Constantino de 313 – transformado em apenas de Constantino pelos prometendo maiores honras do que ela então recebia, para que, assim lisonjeada, ela traísse seus adeptos e favorecesse o esforço dos conquistadores, se não mais, apenas pela omissão de socorro aos seus velhos amigos. Para que os inimigos da República não pudessem de algum modo atrair os seus serviços é que o nome da divindade protetora de Roma era mantido sob o máximo sigilo, sendo a sua revelação considerada uma blasfêmia e uma traição condenáveis com a morte (acreditava-se que uma divindade não poderia ser contatada – e cortejada – a não ser que a ela se dirigissem nominalmente). Macróbio transmitiu-nos uma cópia desta fórmula ritual – usada, por exemplo, no sítio a Cartago – e diz tê-la extraído dos segredos coligidos por Samônico Sereno; o autor da História Natural afirmou que ela havia sido conservada até sua época, e que uma sua paráfrase constatava entre as orações do ritual de sagração dos bispos cristãos da capital do Império. Cf. David HUME. História natural da religião. (Trad., apres. e notas de Jaimir Conte). São Paulo: UNESP, 2005. pp. 75-76 (primeira nota). 583 Cf. Rodney STARK. O crescimento do cristianismo : Um sociólogo reconsidera a história. (Trad. Jonas P. dos Santos). São Paulo: Paulinas, 2006. (Col. “Repensando a religião”, n. 2). p. 20. 584 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro IX : 11, 1. p. 315. 585 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 625, n. 143. 225 desenvolvimentos políticos posteriores e a re-elaboração da memória que estes impuseram – ressaltou argutamente o impacto exercido pelo grande número e refinada organização dos cristãos nessa política. Afirmou o historiador norteamericano que “(...) Nesse documento, percebe-se muito claramente o verdadeiro fundamento da concessão de Constantino ao cristianismo. Em primeiro lugar, há a típica atitude de um imperador que está buscando apoio sobrenatural para o seu governo; em segundo lugar, existe um reconhecimento do fato de que o elemento cristão na população agora é tão amplo, e seu apoio a Constantino e a Licínio, em seu conflito com adversários que ainda se opunham ao cristianismo, é tão altamente apreciado, que os imperadores estão dispostos a creditar ao Deus cristão o exercício de uma medida de poder sobrenatural em pé de igualdade com outros 586 deuses do Estado.” Ao contrário do que às vezes ingenuamente somos levados a acreditar pela repetição acrítica de máximas do senso comum, conforme já mencionamos anteriormente, a legislação de 313, ainda que nitidamente mais favorável aos cristãos, não constitui o cristianismo como religião de Estado. Uma coisa é observar que Constantino passou muito cedo a agir como o grão-chanceler da Igreja e quis que esta “esposa de Cristo” contraísse um casamento de conveniência com o seu Império, fazendo-a uma vitalizante escora de seu patrimônio civilizacional; outra coisa é fazer remontar a estatização do cristianismo há uma década antes do Concílio de Nicéia. As palavras da disposição promulgada em Milão, registradas por Eusébio de Cesaréia, são bastante claras neste sentido: “(...) por um saudável e retíssimo arrazoamento que [nós, Constantino e Licínio] decidimos tomar esta nossa resolução: que a ninguém se negue em absoluto a faculdade de seguir e escolher a observância ou religião dos cristãos, e que a cada um se dê a faculdade de entregar sua própria mente à religião que creia se adapta a ele, a fim de que a divindade possa em todas as coisas outorgar-nos sua habitual 587 solicitude e benevolência.” 586 Shirley Jackson CASE. “The Acceptance of Christianity by the Roman Emperors”. In: Papers of the American Society of Church History. Nova Iorque: G. P. Putnam’s Sons, 1928. p. 62. Apud: R. STARK. Op. cit. p. 21. 587 EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 5, 5. p. 337. 226 A posição de tolerância imperial generalizada, entretanto, não se sustentou por muito tempo e talvez a grande verdade seja que não tenha havido lugar para o equilíbrio e o diálogo religioso no mundo antigo da maneira que esperamos que haja na contemporaneidade. À medida que se tornava menos liberal e exigia mais a empatia e a participação de seus súditos, o Império Romano achara difícil não perseguir os cristãos; agora, tendo aceitado favoravelmente determinado partido do movimento de Jesus disposto a com ele compactuar, ficava cada vez mais difícil não perseguir seus inimigos – externos também, mas principalmente internos. Segundo Edward Gibbon, “(...) de par com o conhecimento da verdade, o imperador [Constantino] assimilou as máximas da perseguição; e as seitas que dissentiam da Igreja católica eram importunadas e perseguidas pelo cristianismo triunfante (...) [ele] não tinha dificuldade em acreditar que os heréticos, os quais presumivelmente questionavam as suas opiniões ou se opunham às suas ordens, fossem culpados da mais absurda e criminosa obstinação, e que uma aplicação de medidas moderadamente austeras poderia salvar aqueles infelizes do risco de uma eterna 588 condenação.” O mesmo autor, entretanto, ressalta que então “a mente de Constantino ainda não fora corrompida de todo pelo espírito de fanatismo e intolerância.”589 O Imperador havia cerrado fileiras com uma determinada facção cristã que ao menos aparentemente reconheceu como depositária da única versão verdadeira desta fé, e posicionou-se contra os hereges e cismáticos sempre que assim o exigiam aqueles bispos que, na defesa da herança que haviam recebido dos apóstolos, aprovavam e aplaudiam a adaptação dos regulamentos persecutórios de Diocleciano – que outrora proporcionaram tanto sofrimento a eles mesmos – para lidar com estes pérfidos e indisciplinados desviantes. Tudo indica, deve-se ressaltar, que o propósito de Constantino era unir os seus súditos sob um único diadema e um único credo cristão, não importando muito em verdade qual fosse este. Em outros termos, não se tratava de um fanático religioso. Uma Igreja inclusiva, de debates regulados por canais estabelecidos, de ordenamentos unívocos, de hierarquias claras, que pudesse achar lugar em seu seio para todos aqueles dispostos a 588 E. GIBBON. Op. cit. p. 340. 589 Id. Op. cit. p. 341. 227 obedecer, um cristianismo, enfim, que fosse, como já mencionamos, um duplo de tudo aquilo que o Império Romano tinha de mais funcional e que convergisse explicitamente com as suas determinações era tudo o que podia haver de melhor na opinião do Imperador. Para que isto se viabilizasse, era necessário evitar os extremismos morais que degenerassem em ascetismo ou libertinagem e as paixões teológicas que fechassem as portas da comunhão eclesial ao invés de escancarálas. Deixar as portas abertas: foi exatamente o que Constantino fez em relação aos novacianos, diante da constatação de que suas divergências com os cristãos que ele favorecia de modo especial eram unicamente referentes a aspectos disciplinares internos, não doutrinários, e, tão importante quanto, sem nenhuma ressonância política. Insistindo na via da integração possível, isentou também a seus clérigos das penalidades gerais da lei, determinou que eles possuíssem sem inquietação seus próprios edifícios eclesiásticos, locais de enterro e demais propriedades adquiridas comunitariamente, respeitou as relíquias e milagres de seus santos, deu-lhes uma igreja no interior da cidade de Constantinopla e, antes disto, convidou o seu bispo, Acésio, para participar do Concílio de Nicéia. A igreja cismática a que seus inimigos atribuíam um nome derivado do de seu fundador, o sacerdote Novaciano, teve seu início em Roma na metade do século III e, divergente dos católicos também quanto à questão dos lapsi ou traditores, pode ser definida como a versão itálica do mesmo impulso que gerou os donatistas na África púnico-latina e os melicianos no Egito. Os novacianos negavam o perdão aos apóstatas, proclamando que ninguém a não ser Deus os podia perdoar, e, por um bem articulado movimento missionário junto aos descontentes com o que percebiam como sendo demasiado liberalismo da parte dos bispos estabelecidos, conseguiram constituir consideráveis enclaves de fiéis nas mais variadas regiões do Império: Roma – onde chegaram a eleger um antipapa –, Cartago e África do Norte – onde preparam a seara dos donatistas –, Gália, Hispânia, Alexandria, Síria, Anatólia – onde absorveram os remanescentes dos montanistas – e, mais tarde, Constantinopla. Ainda que em 390 Ambrósio de Milão tenha tido de escrever um De pænitentia contra os novacianos de sua diocese, o esforço de Constantino foi parcialmente bem sucedido, o que deve ter justificado em si mesmo a manutenção de sua política para com estes dissidentes 228 que não lhe pareciam muito incômodos: no Concílio de Nicéia, Acésio acatou sem problemas o homoousios, conduzindo consigo para dentro da ortodoxia que se constituía a maior parte das comunidades novacianas da Península Itálica centromeridional – incluindo a de Roma – e do Oriente.590 Favorecer os moderados e manter os canais de comunicação pelos quais se podiam construir a unidade: não deixa de ser uma tremenda ironia da História o fato de que a Igreja constantiniana tornou-se violenta justamente na tentativa de forçar encontros e promover fórmulas doutrinárias onde todos pudessem se acomodar. Sobre esta afirmação anterior, é necessária alguma explicação mais minuciosa. Em primeiro lugar, devemos observar que ainda se passariam mais de meio século antes que o cristianismo ortodoxo, tão favorecido por Constantino, viesse a se tornar efetivamente uma Igreja estatal e que os não-cristãos, assim como os cristãos errados, fossem legalmente proscritos. Para constatar isto, comparemos a natureza da intervenção do Imperador que convocou o Concílio de Nicéia tanto no referente às questões donatista, ariana e novaciana, sobre as quais já tecemos anteriormente demoradas considerações, assim como o texto do edito de 313, com os decretos religiosos do Imperador Teodósio, o Cunctos populos e o Nullus haereticus, promulgados respectivamente em 380 e 381, que viriam a integrar o corpus do chamado Código Theodosiano: “(...) Queremos que as diversas nações sujeitas à nossa Clemência e Moderação continuem professando a religião legada aos romanos pelo apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é presentemente observada pelo pontífice Dâmaso e por Pedro, bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De conformidade com a doutrina dos apóstolos e o ensino do Evangelho, creiamos, pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo em igual majestade e em Trindade santa. Autorizamos os seguidores desta lei a tomarem o título de Cristãos Católicos. Referentemente aos outros, que julgamos loucos cheios de tolices, que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida infringir-lhes. (...) Sejam absolutamente excluídos dos edifícios eclesiásticos, pois não estão autorizados a celebrar suas assembléias ilegais dentro dos povoados. Se tentarem qualquer distúrbio, ordenamos eliminar e expulsar das cidades a esses frenéticos, 590 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. p. 97. E. GIBBON. Op. cit. p. 342. Russel J. DE SIMONE. “Novacianos”. In: VV. AA. Op. cit.p. 1013. 229 de modo que as igrejas possam ser restauradas, no mundo inteiro, e recolocadas 591 em mãos dos bispos ortodoxos que confessam o credo de Nicéia.” Talvez não seja vão retomar aqui a afirmação de Paul Johnson de que esta ferocidade é menos fruto de uma disposição intolerante e totalitária do que de um elemento de progressiva exasperação – e concordar com ela.592 De fato, as atitudes dos imperadores romanos para com suas responsabilidades religiosas com o cristianismo tenderam a seguir desde Constantino um padrão regular: subestimando sempre a tenacidade com que alguns grupos de fiéis aferravam-se a algumas mínimas distinções que supostamente os fariam mais esclarecidos e mais santos do que seus vizinhos, tentavam ser mediadores privilegiados e porta-vozes autoconfiantes de um espírito ecumênico que quase invariavelmente degenerou em furiosa repressão. Até 1453 os imperadores romanos via de regra avaliaram que em matéria de disputa teológica deveriam apoiar o partido que parecesse mais inclusivo, capaz de deixar o máximo de satisfeitos com o mínimo de discussão, atribuindo-lhe um status oficial e buscando eliminar os demais simplesmente para manter a paz: foi assim, por exemplo, no Concílio de Nicéia e no momento que o seguiu imediatamente, assim como na chamada questão monotelista.593 Esta escolha de uma facção favorita, entretanto, nem sempre – e talvez nunca – se mostrou realmente previdente pelo fato de que a violência em suas diversas formas também é uma forma mentis, e não se pôde jamais impor a concórdia pela brutalidade da repressão. No fim das contas, o império não solucionou problema teológico algum, mas apenas abafou o coro dos descontentes na medida em que lhe foi possível fazer. Mais ainda: trocou um ritual de Estado já muito esvaziado por uma religiosidade dinâmica e paradoxal, sulcada de elementos que muito facilmente poderiam ser tomados como motivação para subverter a ordem estabelecida, que tinha um pendor para rejeitar o mundo e, no seu louvor da simplicidade, não aceitava nenhum tipo de definição fácil porque seu fundamento último era o Mistério infinito e insondável de um Deus eterno que se manifestou no tempo e no espaço. As controvérsias cristológicas que fascinaram o Oriente e o 591 Citados a partir de: Henry BETTENSON (sel., trad., introd. e notas). Documentos da Igreja Cristã. (Trad. Helmuth Alfredo Simon). São Paulo: ASTE, 1967. pp. 51-52. 592 593 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. p. 109. Sobre esta última problemática, ver: A. C. A. AZEVEDO. “Monotelismo”. In: Op. cit. pp. 263264. Manlio SIMONETTI. “Monoenergismo – Monotelismo”. In: VV. AA. Op. cit. p. 956. 230 Egito dos séculos IV, V e VI só fizeram criar mais divisões entre os seguidores de Jesus e azucrinar os imperadores, que não concebiam a Igreja como possível de subsistir fragmentada, assim como não aceitariam uma divisão qualquer no seu próprio poder soberano. Motivada pelo mais óbvio dos cálculos políticos – a discordância pode levar à divisão – e pelo mais elevado dos sentimentos eclesiais – Jesus não havia então rezado ainda sentado à mesa da sua última ceia que os seus discípulos deveriam ser “perfeitos na unidade”?594 –, a repressão do diferente no interior do cristianismo, entretanto, só fez arraigar como um hábito o descompasso entre a pregação das beatitudes e a imposição violenta de uma determinada crença.595 Não podemos, entretanto, cometer o anacronismo de interpretar estas intervenções do poder temporal em favor de certo ramo do movimento cristão à luz do comportamento dos Estados modernos e suas relações com as diversas religiões. Para não ser leviano neste ponto, é necessário ser bastante preciso. Um Imperador romano do século IV era um homem essencialmente religioso, preocupado antes de qualquer outra coisa com suas relações com o divino. Não havia, aliás, nada de novo em o soberano intervir em matéria de religião: boa parte das magistraturas dos romanos possuía funções exclusiva ou eminentemente cúlticas; os sacerdotes pagãos eram funcionários estatais pagos, que se reuniam em reuniões semanais como um ato de governo e freqüentavam o camarote imperial durante os jogos; o Imperador fora Pontifex Maximus e, em verdade, o culto ao soberano – que também é adoração da unidade sociológica (clã, etnia, Império ou Estado) a qual pertence ou se submete o fiel – é um fenômeno tão difundido, nas suas mais diversas formas, quanto é antigo, remetendo-nos àqueles momentos da aurora do mundo em que Homo Sapiens começou a edificar suas primeiras cidades.596 Como seus predecessores, por exemplo, Constantino e Teodósio viam no transcendente a fonte direta de seu poder, fazendo-o, entretanto, através de uma lente bastante diversa daqueles. No século IV de nossa Era, “(...) O 594 BÍBLIA. Ver. cit. João 17, 23. p. 1888. 595 Cf. P. JOHNSON. Op. cit. p. 109. 596 Cf. Id. Op. cit. p. 94. Christian DRÖGE. “Culto ao soberano”. In: Hans WALDENFELS (ed.) e Franz KÖNIG (org.). Léxico das religiões. (Trad. Luiz M. Sander et al.). Petrópolis: Vozes, 1998. A. C. A. AZEVEDO. “Culto imperial”. In: Op. cit. pp. 122-123. Id. “Romanos”. In: Op. cit. pp. 312-315. 231 Império Romano pensava, com alguma ilusão, ser uma monarquia universal [e] (...) O monoteísmo cristão fornecia-lhe naturalmente uma interpretação, uma legitimação teológica. Um só Deus, um só Logos, um só imperador Senhor do mundo!”597 Este se sente diretamente responsável pela salvação de seus súditos que se encontram fora da Igreja e, mais ainda, por guardar do erro e da divisão os cristãos que lhe foram confiados, já que, “senhor do mundo junto a Deus, é a ele que cabe garantir a boa marcha das instituições eclesiásticas.”598 Ao que parece, Constantino não adquiriu nenhum conhecimento mais profundo da teologia paulina mas, segundo Eusébio de Cesaréia, assimilou algumas das mais grandiosas idéias cristãs do século III e “secularizou-as”, vendo-se como instrumento divino. Esta conexão, o teólogo Hans Küng observou com argúcia, ao afirmar que “(...) Grandes teólogos, como os alexandrinos Clemente e Orígenes, criaram no terceiro século, um vínculo entre fé e ciência, teologia e filosofia, igreja e cultura. Esse vínculo constitui o pressuposto para uma associação entre cristianismo e império”.599 Considerando os relatos do autor da História Eclesiástica como verossímeis, assim como o peso de sua própria opinião, impossível de ser apartada dos eventos que narra, dos documentos que transcreve, das falas que registra, e, mais claramente, dos comentários introdutórios ou complementares que os acompanham, fica evidente que Constantino cria-se um importante agente no processo de salvação do mundo, pelo menos tanto quanto os apóstolos (isapostole). Daí ele ter feito edificar uma grandiosa Igreja dos Doze Apóstolos em Constantinopla, onde constavam treze monumentos funerários: dispostas as efígies e as relíquias de seis apóstolos de cada lado, seu ataúde deveria ser colocado no centro, tornando-o o décimo terceiro – e talvez o mais importante. – deles. Saindo com chave-de-ouro da vida, ainda veio a morrer em um Domingo de Pentecostes.600 Sua santificação não tem data definida, mas parece ter começado logo depois de sua morte, quando, segundo a expressão do historiador Filostórgio, foi o 597 H. I. MARROU. Op. cit. p. 848. 598 Id. Op. cit. p. cit. 599 H. KÜNG. Op. cit. pp. 222-223. 600 Cf. P. JOHSON. Op. cit. pp. 85-86. 232 objeto de “homenagens quase divinas” – curiosamente, mais pela espontânea ou muito sutilmente incitada devoção popular do que pelo aplauso agradecido do clero e seu explícito empenho em consagrar “a memória de um príncipe que lhe favoreceu as paixões e lhe promoveu os interesses.”601 Há indícios de que esta veneração, caracterizada por peregrinações ao seu túmulo, foi inicialmente sustentada pela adesão de fiéis filoarianos, versão do cristianismo que havia contado com especial proteção do Imperador nos seus últimos anos de vida. Superadas as controvérsias cristológicas dos séculos IV a VII, o culto a Constantino permaneceu na Igreja ortodoxa do Oriente, que, desconsiderando o seu estado privado de santidade, as ações moralmente dúbias de sua vida pública e sua bem conhecida associação com um partido que mais tarde seria consensual e inequivocamente circunscrito como herético, proporcionou ao primeiro Imperador cristão a apoteose antes restrita aos mártires, virgens e confessores. Relíquias de Lucas Evangelista, de Paulo Apóstolo e dos Doze foram descobertas ou providenciadas e transladadas para os lugares que lhes eram destinados no interior da grande igreja que Constantino fez edificar às margens do Bósforo; no tempo do Imperador Arcádio, uma inumerável procissão acompanhada por senadores e bispos trouxe até ali – segundo Jerônimo, desde a Palestina até o interior de Constantinopla! – as cinzas de Samuel, profeta e juiz de Israel, que significativamente foi quem ungiu o primeiro rei dos hebreus.602 A festa de São Constantino, celebrada pela Igreja Grega em 21 de maio, retoma temas de Eusébio de Cesaréia extraídos do Antigo e do Novo Testamento, e seu texto litúrgico apresenta-nos a figura do Imperador vinculada à de Moisés, de Davi, de Salomão e do Apóstolo dos Gentios, destacando que como este teria ele sido convertido diretamente por um apelo de Cristo, e não por uma preleção humana.603 601 E. GIBBON. Op. cit. p. 340. A expressão de Filostórgio foi citada em: C. TAVEIRA. p. 213. Não se pode deixar de esquecer que mesmo tendo favorecido desde muito cedo os cristãos e vindo ele mesmo a ser batizado – no leito de morte, possivelmente por Eusébio de Nicomédia – Constantino também foi considerado divino pelo Senado Romano após a sua morte e adorado com as honras habituais prestadas aos precedentes imperador-deuses. Trata-se de evidente demonstração de poder do sobrevivente culto imperial romano no qual ele ainda figurava, mas também sinal do quão polissêmica foi à pessoa de Constantino para seus contemporâneos. Cf. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. p. 212. E. GIBBON. Op. cit. p. 382. 602 603 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. Primeiro Livro de Samuel 16, 1-13. pp. 411-412. Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 212-215 e nota n. 69, p. 215. O cristianismo latino assumiu diante da santidade do primeiro imperador cristão uma atitude muito mais reservada do que sua contraparte grega. Gregório de Tours em sua Historia Francorum, por exemplo, mesmo tendo 233 Incitadas pelo exemplo que vinha do alto da estrutura da sociedade romana e por tudo aquilo que então as tornava mais fáceis e mais proveitosas, as conversões ao cristianismo ortodoxo se multiplicaram dia a dia, até o ponto em que esta versão da mensagem cristã chegou a cobrir quase a mesma realidade humana do Império. Com a Roma cristã – prolongada durante séculos naquilo que foi chamado com depreciação de Império Bizantino – apareceu o ideal de uma sociedade inteiramente sacral, onde, com a exceção de grupos quase insignificantes, todas as pessoas e instituições eram ao menos nominalmente cristãs, onde todas as técnicas se subordinariam ao ideal evangélico e tudo convergiria para facilitar a execução do propósito de a um só tempo salvar as almas e transfigurar o mundo.604 Tal processo teve ressonâncias no movimento cristão para muito além de sua composição étnica e de classe, de sua dimensão organizacional e do escopo de atuação de suas comunidades. O seu epicentro sacro deslocou-se de Jerusalém a Roma e, logo sem seguida, a Constantinopla, a nova capital imperial erguida à toque-de-caixa no lugar da antiga cidade grega de Bizâncio. O próprio fato de o cristianismo passar a ter um epicentro sacro, uma cidade ou território qualquer que lhe fosse de especial importância, aliás, já é algo bastante sintomático de como os tempos tinham mudado. Personagem de palavras ardentes, segundo nos contam os textos dos evangelhos intra-canônicos, Jesus afirmou que era preciso que os seus discípulos rompessem os laços emocionais com tudo o que os mantinha presos a certos espaços, negou a seus discípulos licença para que fizessem erguer monumentos utilizando tão amplamente a História Eclesiástica de Eusébio como fonte de informações e modelo estilístico, registra ainda no Livro I, lado a lado com o relato da descoberta da verdadeira cruz por Helena, mãe de Constantino, que este Imperador mandou executar seu filho Crispo e sua esposa Fausta – assuntos que o bispo de Cesaréia simplesmente optou por omitir em seus escritos. É por uma iluminação muito diversa – através da forjada “Doação de Constantino” – que sua pessoa será invocada a partir do século VIII pela diplomacia pontifícia. Nesta chave particular, seria instado a intervir repetidas vezes na história política da Europa medieval, tanto para sustentar a primazia eclesiástica do Papa, quanto suas pretensões de domínio temporal, frente aos monarcas cristãos de estirpe germânica e o imperador bizantino. É curioso notar que esta prerrogativa inventada nos dias do pontificado de Estevão II (752-757) ou Paulo I (757-767) foi usada mesmo no âmbito interno do Império Romano do Oriente – a saber, por Kinnamos, no tempo do governo de Manoel I Comneno, para criticar o uso da titulação imperial romana no Ocidente “bárbaro”, e, antes dele, por Miguel Cerulário ,para defender a sua autonomia em relação ao Estado, assim como pelo canonista Theodore Balsamon, para justificar as posturas deste prelado. Cf. Id. Op. cit. pp. 213-214. 604 Cf. H. I. MARROU. Op. cit. p. 849. 234 em sua homenagem e prometeu arrasar o Templo de Jerusalém.605 Desde uma geração após a sua morte até meados do século II, o local de culto cristão foi prioritariamente a casa dos fiéis, situação só consolidada pelas grandes perseguições romanas: “(...) entre quatro paredes, os crentes sentiam-se protegidos contra as agressões do Estado que proibia a prática pública da religião. (...) Ao abrigo do teto, sua jornada de fé começava na sala de jantar.”606 Conforme a religião se expandia e se arraigava, crescia o seu patrimônio, e ainda que os seus ministros nada ou muito pouco possuíssem individualmente, a instituição tornavase um poder econômico relevante no mundo mediterrâneo; sobre isto, destaca o autor de Declínio e queda do Império Romano que “(...) No tempo do imperador Décio, era opinião do magistrado de Roma que os cristãos possuíam riquezas consideráveis, que usavam vasos de ouro e prata em seu culto religioso, e que muitos de seus prosélitos haviam vendido suas terras e casas para aumentar as riquezas públicas da seita – em prejuízo certamente de sua infortunada prole, que se tornou mendiga porque seus pais tinham sido santos. (...) Quase no mesmo período, o bispo de Cartago, governante de uma comunidade menos opulenta que a de Roma, arrecadou 100 mil sestércios (mais de 850 libras esterlinas), numa súbita campanha de caridade para redimir os irmãos da Numídia, os quais haviam sido levados como cativos pelos bárbaros do 607 deserto.” O direito romano de muito determinava que nenhuma propriedade fundiária poderia ser doada ou legada a qualquer pessoa jurídica a não ser com anuência específica da parte do Senado – que certamente não estaria disposto a concedê-la a uma seita estrangeira que era alvo de desconfianças, ressentimentos e mesmo temores. Já no tempo de Alexandre Severo, entretanto, esta restrição foi suspensa ou burlada de tal maneira descarada e eficaz que criou um precedente forte o suficiente para que a infração emergisse à luz do dia como coisa normal; então a comunidade cristã de Roma já reivindicava a posse de terras no interior da própria capital imperial. Talvez realmente a tão intrincada quanto desordenada administração do Império tardio tenha contribuído “para afrouxar a severidade das leis; [de modo que] antes do fim do século III, consideráveis propriedades foram 605 E. GIBBON. Op. cit. p. 115. 606 Id. Op. cit. p. 119. 607 Ibid. Op. cit. p. 271. 235 outorgadas às opulentas Igrejas de Roma, Milão, Cartago, Antioquia, Alexandria e outras cidades da Itália e das províncias.”608 Além destas posses urbanas, quase sempre adquiridas por legado de conversos ou disposição testamentária de fiéis falecidos, os ecônomos das comunidades eclesiais também investiram na compra de terrenos extramuros para a construção de cemitérios e de antigos e semiabandonados edifícios públicos para a sua transformação em locais de encontro dos membros da nova religião. Subjazendo a esta transformação – que foi, deve-se assinalar, bem vagarosa e muito desigual de região para região –, talvez se encontrem motivos de ordem essencialmente prática, como a necessidade de frente ao aumento exponencial do número de fiéis participantes da Ceia Eucarística se instalar a mesa focal do rito em um lugar mais elevado e demolir as paredes das salas onde se realizava o ágape de modo que todos os congregantes pudessem avistar ao menos a Fracção do Pão consagrado. Muito possivelmente é nestas mudanças que se encontram os pressupostos para as já mencionadas grandes alterações ou complementações litúrgicas pós-nicenas. O caso é que ainda na primeira metade do século IV este processo assumiu extensão de tal monta que os locais de culto dos cristãos se tornaram mais e mais verdadeiros monumentos comemorativos à conversão e às atribuições salvíficas do Imperador.609 Não se deve esquecer, aliás, que de um ponto de vista jurídico os edifícios sagrados construídos no tempo de Constantino eram isso mesmo: financiados pelo tesouro estatal, “nasceram no terreno que fazia parte daquilo que estava à livre disposição do imperador, entre mansões e jardins, propriedades espremidas, todas ou quase todas nos limites da cidade.”610 No âmbito do mesmo processo de construção do que viria a ser a primeira Cristandade, o paradigma judeu-cristão daqueles seguidores de Jesus de Nazaré que com ele conviveram, já numericamente sobrepujado pelo cristianismo grecohelenístico nascido nas comunidades semeadas pela pregação de Paulo de Tarso, foi ferido de morte na região mediterrânica; há então um estiolamento que faz diminuir e cessar a ligação antes tão marcante que havia entre Sinagoga e Igreja e se aprofunda ainda mais a helenização das concepções helenistas de fé e normas 608 Ibid. Op. cit. pp. 271-272. 609 Cf. R. SENNETT. Op. cit. p. 126. 610 Apud: Id. Op. cit. p. 125 e nota correspondente, n. 34 ao cap. 4, p. 314. 236 de vida cristãs.611 Inquirir se o mundo greco-latino havia se tornado cristão ou se o cristianismo havia sido alterado pelo seu contato mais íntimo com o mundo grecolatino é persistir em uma falsa questão: nem do ponto de vista didático, analítico ou tipológico estes processos podem ser apartados, sob a pena de trabalharmos com quadros severamente deformados da consciência-experiência das pessoas que protagonizaram e vivenciaram este processo histórico. Deve-se ter necessariamente em mente que “(...) as igrejas puderam transformar as culturas e os ambientes políticos porque se tornaram parte deles. A cooptação foi um perigo sempre presente, mas o risco é inerente à prática da encarnação.”612 Também a orientação escatológica das comunidades cristãs sofreu uma inflexão e elas progressivamente não mais contaram com a iminente chegada do fim do mundo, admitindo a sua postergação para um futuro muito remoto. O esforço para antecipar, para concretizar o “Reino de Deus”, absorvendo energias e preocupações, é o baque que produz necessariamente este eco, que faz recuar para um segundo plano a ansiedade, o desejo, a expectativa e a esperança do Juízo sobre os vivos e os mortos.613 Nas palavras do teólogo Leonardo Boff, “(...) esta perspectiva terrena desencadeou por sua vez um vasto processo de eclesialização do Reino de Deus e de institucionalização da esperança cristã. O Reino de Deus é a própria Igreja na terra, dizia-se. Os sacramentos encarnam as forças do futuro e instauram a parusia presente. Os Padres Lactâncio, Eusébio, Cesário de Arles e outros viram no surgimento do Império cristão sob Constantino o aparecer da plenitude dos tempos. O Reino de Deus é pensado na linha da criação: com Cristo, com a Igreja e com o Sacro Império recebeu sua forma cabal. Criticar a Igreja e rebelar-se contra os atos do Sacro Império é 614 pecado contra Deus e o Seu Reino.” 611 Cf. H. KÜNG. Op. cit. p. 220. 612 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 198. 613 Cf. H. KÜNG. Op. cit. p. 221. H. I. MARROU. Op. cit. p. cit. 614 Leonardo BOFF. Vida para além da morte. O presente: seu futuro, sua festa, sua contestação. (22ª ed.). Petrópolis: Vozes, 2004 [1973]. (Col. “Teologia”, n. 5; coord. Arcângelo R. Buzzi e Leonardo Boff). p. 29. Logo em seguida, ainda na mesma página, o mesmo autor cita o teólogo Fulgêncio, que no seu De fide (r. 35) formulou como regra que “não somente os pagãos senão também todos os judeus, todos os hereges e cismáticos que morrerem fora da Igreja Católica, irão para o fogo eterno, preparado para o diabo com todos os seus anjos.” Para Leonardo Boff, a “inaudita ousadia” de afirmar tal coisa, querendo “saber os juízos de Deus”, é exemplo de um pensamento onde a identificação entre Reino de Deus-Igreja-Império foi levada ao seu extremo lógico. Id. Op. cit. p. cit. 237 Cada facção e etapa do movimento cristão privilegiaram uma figura de Jesus em torno do qual elaboraram uma espiritualidade própria: o profeta dos seguidores galileus; o Messias da comunidade dos adeptos de Jerusalém; o solitário dos tomesinos; o Filho de Deus que, por intermédio do Espírito, liberta o homem de suas limitações e o apresenta ao Pai, das comunidades judeuhelenistas; o logos dos filósofos convertidos e dos alexandrinos; o general e kýrios dos cristãos de Roma. Até o século IV, a filiação divina de Jesus – conforme atestam já os diferentes inícios dos quatro evangelhos recolhidos no cânone ortodoxo – foi compreendida de maneiras muito diversas: afirmou-se deste personagem extraordinário, por exemplo, que era um taumaturgo e um agitador, que tinha sido um judeu eleito por Deus para ser redentor de seu povo e luz para os gentios, que era um homem divinizado, filho adotivo ou natural de Deus, que era um éon da suprema Sabedoria e revelador do verdadeiro conhecimento da Fonte do Bem, que era o Filho preexistente, eternamente engendrado pelo Pai, igual ou subordinado a Ele, que era intermediário entre a Causa Primeira e o mundo criado, que era o modelo e protótipo de uma nova humanidade. Uma das coisas que ocorreu nos grandes concílios da era constantiniana foi a redução desta polissemia da pessoa de Jesus de Nazaré à unidade de uma formulação dogmática estabelecida pela autoridade eclesiástica e decretada pelo poder imperial. Definições complementares e aparentemente contraditórias sobre quem era – ou havia sido – aquele pregador galileu circulavam nas diversas comunidades judeucristãs e cristãs-pagãs, em tensões dinâmicas umas com as outras e com as concepções religiosas e opiniões sobre o Nazareno expressas por aqueles de fora do plural grupo de seus seguidores – até que o Concílio de Nicéia “impôs uma formulação dogmática exclusiva encouraçada de anátemas antiarianos.”615 Entendido como um membro pleno, mas distinto, da Trindade inefável, Jesus Cristo passou a ser cada vez mais definido e representado iconograficamente e em contextos litúrgicos como o Pantokrátor, o senhor universal, uma espécie de reflexo ampliado em seu poder ao infinito do autokrátor Constantino.616 Como 615 Richard BERGERON. Fora da Igreja também há salvação. (Trad. Maria Stela Gonçalves; rev. Iranildo B. Lopes). São Paulo: Loyola, 2009. p. 71. 616 Richard Senett mencionou no capítulo de seu livro Carne e Pedra sobre o “corpo cristão” um trabalho de Thomas Mathews que questiona o argumento que acima apresentamos e problematiza a conclusão fácil de que Cristo passou a ser compreendido apenas como um arquétipo ou pleonasmo de Imperador. Para este autor, a memória de Jesus como um mágico capaz de operar prodígios era forte demais para ser descartada e acabou garantindo que este permanecesse um 238 ressalta o historiador Celso Taveira, de fato “(...) Os mosaicos representando o Cristo Pantokrátor constituem um tema por excelência da iconografia imperial e religiosa bizantina.”617 Em um peculiar jogo de correspondências e analogias, a realeza divina passou a ser definida pelos cristãos cada vez mais pelos termos da vida político-administrativa romana, enquanto o imperador romano passou a ser visto como exercendo no microcosmo humano um governo equivalente ao que o Filho entronizado na Glória por Sua Ressurreição exerceria sobre o macrocosmo do universo. “(...) Temos aqui um formidável complexo de relações envolvendo governantes e governados, braço secular e braço eclesiástico na organização da cúpula do Estado [que viria a ser conhecido como] bizantino, onde a face de Cristo expressa magnificamente a dupla função de proteção e autoridade, ambas estabelecidas também duplamente: na massa física da imagem e no olhar que nunca contempla o espectador diretamente, dirigindo-se antes para algum ponto situado fora da esfera da representação. (...) Sabemos que o cerimonial e a etiqueta da côrte próprios das monarquias orientais mantinham o imperador isolado e distante para valorizar sua representação do divino, o mesmo se dando nos cerimoniais religiosos bizantinos da liturgia divina ou da coroação, com isolamento dos celebrantes e uma grave solenidade aportada pela arquitetura, pela rebuscada ornamentação interior (espaço privilegiado pela arquitetura religiosa bizantina, por oposição ao mundo exterior) e pelo ofício cantado. (...) Sabemos também da função pedagógica da arte na [Antigüidade Tardia e na] Idade Média, época duramente marcada pelo analfabetismo. Mas não podemos nos esquecer que esta foi sempre uma postura defendida pela elite intelectual (...). Henry Maguire chama a atenção para o fato de que os sermões e hinos da Igreja influenciavam diretamente os meios pelos quais os artistas bizantinos ilustravam as igrejas, o que dava a elas um papel privilegiado para desenvolver um tipo específico e ideológico de pedagogia. Além disto, as imagens existentes em livros eram pouco acessíveis, devido ao alto custo dos mesmos. É verdade que em Bizâncio os temas recomendados para a ornamentação das igrejas eram com freqüência próprios do catecismo: as vidas de santos, a anunciação, a natividade, o batismo, a vocação dos discípulos, os milagres, a traição de Judas, a crucificação, a deposição, a ressurreição e a metamorphosis (transfiguração). Mas os grandes espaços disponíveis nas cúpulas eram sempre reservados às representações da eternidade, estampadas na Virgem mãe de Deus (theotokos), ou da Virgem guia, personagem enigmático, intermediário entre o mundo cotidiano e o maravilhoso. Mathews defende que teria sido em virtude dos lugares em que o Deus cristão passara a ser reverenciado, agora publicamente, e do desenvolvimento da liturgia aí executada é que se pode compor um ícone de um Cristo superior por natureza dos demais homens, nascido para governar, quase indiferente à lida das pessoas comuns, que demandava ser adorado e apaziguado mais do que amado e seguido. Teria sido desta forma específica que o cristianismo teria sido lançado na órbita das velhas formas e comportamentos reverentes antes típicos do mundo pagão. Cf. R. SENNETT. Op. cit. p. 125. 617 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 89. 239 condutora (hodegetria), do Cristo Pantokrátor ou do casal imperial. São imagens 618 voltadas para evocar o sentimento da autoridade ou da consternação.” Deste modo a teologia, a prática cúltica e a arte cristãs da grande corrente chegaram a atuar mesmo em algumas ocasiões como um simples anexo do domínio estabelecido pelo poder político, militar e econômico e pelo costume, justificando e mesmo prescrevendo o governo do Imperador sobre o Estado Romano e a Igreja Cristã.619 Antes do término deste trabalho, teremos a ocasião de voltar a estes fundamentos religiosos que o cristianismo fornece ao Império Romano já no alvorecer do século IV. No difícil exercício da busca pela honestidade intelectual e na tentativa – de algum modo necessariamente fadada ao fracasso, mas nem por isso menos sincera – de tentar manter a compostura em nossa análise, identificando com o máximo possível de clareza os nossos partidarismos e buscando contê-los metodicamente, imprescindível é que designemos as coisas às quais nos referimos em termos inteligíveis e apresentemos sem mais os conceitos que estamos utilizando para estruturar a nossa reflexão. O modelo constantiniano de relacionamento harmônico entre o poder estatal e a Igreja Cristã afigura-se, de fato, uma submissão desta àquele, ou melhor, uma colaboração criativa entre estas instâncias, no âmbito de uma dinâmica ou jogo na qual a religião justifica e apóia as ações do Estado – mesmo às que se apresentam mais impiedosas e mesmo desumanas às nossas sensibilidades – e o Estado protege e privilegia – assim como tenta em quase tudo cooptar ou dominar – a religião. Devidamente assinaladas às mudanças de propósito e tônica que antes destacamos ao ressaltar um hiato entre os favores e as determinações eclesiais de Constantino e os decretos de Teodósio, foi dentro deste circuito auto-alimentado ou sob suas sombras que se desenvolveu a maior parte da vida cristã posterior ao século IV: indiretamente, ele subjaz ou ressoa nas diversas teologias imperiais, integristas e de conformismo político que se desenvolveram no Ocidente cristão620; 618 Id. Op. cit. pp. 87-89. 619 Cf. H. KÜNG. Op. cit. p. 223. 620 E estas se desenvolveram em quase toda a parte pelo menos até a Revolução Francesa de 1789 – e em não poucos locais, inclusive na própria França, também depois desta data. Não se justifica, portanto, a opinião daqueles que eventualmente acreditem que o relacionamento íntimo entre cristianismo e autoridade governamental, de acordo com um modelo constantiniano, tenha ficado 240 estritamente, tal modelo de relacionamento permaneceu vivo e funcional na Rússia Ortodoxa até a execução do último Czar pelos vitoriosos da Revolução de 1917.621 restrito no mundo ocidental ao cenário dos reinos germânicos recém-cristianizados da Alta Idade Média, às catolicíssimas monarquias ibéricas do tempo das Grandes Navegações e da primeira colonização européia das Américas, à Inglaterra de Henrique VIII e Elizabeth I, à França galicana dos Luizes, aos estados luteranos dos séculos XVI a XVIII, à Espanha de Francisco Franco e à Itália de Mussolini. Um exemplo bem pouco lembrado entre nós, talvez por ser bastante constrangedor para certos setores católicos de nosso país, é o do Brasil Imperial dos anos da Guerra do Paraguai. Este conflito foi deflagrado em um momento em que aumentava mais e mais a tensão entre o Estado brasileiro oficialmente católico e a Igreja Católica no Brasil. De um modo geral, os grandes problemas que iriam culminar na ruptura que passaria à história como “Questão religiosa” já estavam então mais ou menos dispostos nos mesmos termos que mais tarde levariam D. Vital a ser preso por lesa-majestade e condenado à trabalhos forçados, mas ainda assim o episcopado brasileiro apoiou entusiasticamente os esforços militares do Império do Brasil, fazendo-o em termos tão ou mais colaboracionistas que os usados por Eusébio em seus momentos de maior louvor a Constantino e seu papel supostamente providencial. De fato, “a Igreja abençoa os combatentes e participa da guerra. O arcebispo da Bahia dirigiu a todos os párocos uma circular onde pede aconselharem eles os seus paroquianos com mais de 18 e menos de 50 anos para que se alistem como voluntário, ‘no que fazem juntamente um serviço a Deus, visto como o amor da pátria é também um serviço religioso, gravado no coração do homem pelo dedo do Onipotente Senhor dos Exércitos e das vitórias’. Esta mesma atitude do metropolita foi seguida por quase todos os bispos do Brasil. É interessante como se desenvolve toda uma liturgia da paz através da vitória de nossas armas. O vigário capitular do Rio de Janeiro ordenou ‘que se fizessem preces por três dias em todas as matrizes e confrarias desta cidade a fim de a Providência Divina nos conceder a paz, tornando a vitória favorável às nossas armas nas guerras com o Uruguai e Paraguai’. E acrescentava D. Manuel Silveira que ‘se pedirmos bem... Ele nos há de livrar dos nossos inimigos... Sim! Que a vitória da guerra não está na multidão dos exércitos, mas do céu é que vem a fortaleza, e por isso devemos igualmente pelejar com as armas espirituais. A oração que o metropolita compôs para ser rezada pelos voluntários pedia ao Deus dos Exércitos: ‘Dignai-vos de nos livrar das mãos dos nossos inimigos, e injustos perseguidores: ponde-nos ao abrigo de sua malicia, enfraquecei e destruí os seus insidiosos planos e pérfidas obras contra nós’. Não ocorria o pensamento de uma paz que não fosse pela vitória sobre os inimigos.” João Fagundes HAUCK, Hugo FRAGOSO et al. História da Igreja no Brasil : Ensaio de interpretação a partir do povo. Segunda época : Século XIX. (4ª ed.). Petrópolis: Vozes, 2008. p. 252 e notas correspondentes, n.24-27, p. 253. O grifo é do autor. 621 Cf. Philip SERRARD. Bizâncio. (Trad. José Laurênio de Melo). Rio de Janeiro: José Olympio, 1974. (Col. “Biblioteca de História Universal”; ed. consul. Leonard Kriger). p. 170. Muito corretamente se associa o legado religioso da autocracia bizantina principalmente ao Império Russo Ortodoxo, mas é uma grande imprecisão histórica sustentar que ele simplesmente desapareceu daqueles territórios que antes estavam submetidos à dominação do Imperador Romano do Oriente. Quando os turco-otomanos tomaram Constantinopla em 1453, o trono patriarcal estava vago, já que o seu ocupante oficial, Gregório Mammas, havia fugido para Roma tão logo lhe foi possível. O Sultão Maomé II, que já havia decidido que política seguir em relação aos seus recém-adquiridos súditos não-islâmicos, reuniu todos os bispos que conseguiu encontrar e os incitou a eleger para a Sé Constantinopolitana Jorge Scolarius, que depois de alguma hesitação assumiu o cargo com o seu nome monástico de Genádio. O rito de entronização do novo Patriarca Ecumênico seguiu estritamente o antigo modelo bizantino: o sultão recebeu o novo patriarca em audiência pública, lhe entregou as insígnias do cargo, os paramentos, o báculo e a cruz peitoral (como esta havia sido perdida no saque da cidade ou indevidamente apropriada por Mammas, foi necessário que o governo otomano providenciasse uma nova peça). O campeão do Crescente saudou o alto prelado com a seguinte fórmula, especialmente criada para a ocasião e proferida em grego: “Sê patriarca, com boa sorte, e confia em nossa amizade, mantendo todos os privilégios que os patriarcas antes de ti desfrutaram.” Depois disto, Genádio montou um belo cavalo que também lhe foi dado, a título de oferta pessoal, por Maomé II, dirigiu-se à Igreja dos Santos Apóstolos – a segunda mais veneranda da cidade, preservada da pilhagem turca por expressa determinação do 241 Foi no âmbito desta duradoura estrutura de relacionamento entre Igreja e Império que, como já assinalamos de muitas formas antes, se desenvolveu o dogma cristão, com sua “pretensão de encerrar o mistério insondável numa fórmula objetiva, imutável, irreformável e infalível, imposta de maneira autoritária.”622 Não queremos aqui criar polêmica, ou enveredar por teorias conspiratórias – às quais já renunciamos explicitamente ainda na primeira seção deste capítulo final –, mas apenas destacar que a religião cristã recebeu a partir de sua adoção e favorecimento pelo Imperador romano certas ênfases e contornos que só são compreensíveis de modo adequado justamente se dimensionados dentro daquilo que enunciamos na expressão modelo constantiniano de relacionamento entre Igreja e Estado, o que também poderíamos denominar de primeira Cristandade. Não é vão afirmar também aqui o uso da noção de processo histórico, dentro de concretas relações sociais, e, portanto, de conflitos de poder, para lidar com um período onde se transformaram tanto o dogma cristão quanto o ethos da chamada Antigüidade Tardia. Aquele, tornado uma problemática de interesse estatal, necessitou ser definido o mais precisamente possível, para que se distinguisse com clareza entre os crentes e os hereges, que do ponto de vista do soberano em pouco seriam equivalentes a nada mais do que os seus partidários e os seus opositores e inimigos políticos – e isto não porque tal ou qual imperador sultão e destinada a ser igreja patriarcal, já que Santa Sophia fora transformada em mesquita –, foi aí consagrado, segundo o antigo costume, pelo Metropolita de Heracléia, celebrou a Divina Liturgia – na qual orou publicamente por seu novo benfeitor –, e percorreu a cidade em procissão antes de ir assumir sua nova residência. Entre sultão e patriarca criou-se um modus vivendi no qual o clero ficou isento dos impostos e serviços públicos e recebeu autorização para usar barba (seriam os únicos não-turcos a fazê-lo em Constantinopla até a década de 1920), as cortes eclesiásticas receberam o poder de julgar todos os litígios entre cristãos que tivessem algum significado religioso (casamento, divórcio, testamento e guarda de menores), o patriarca teve sua inviolabilidade pessoal garantida, em troca da manutenção da ameaça de excomunhão ou outras penalidades religiosas para aqueles seus seguidores que se recusassem a pagar os impostos ou que, de alguma outra forma, não obedecessem às regras do Estado. Mesmo sem um sucessor direto de Constantino ocupando o trono, as vigas mestras da cristandade constantiniana continuaram a subsistir em um estado não-cristão. Ao contrário de seus sucessores menos condescendentes, os primeiros sultões otomanos foram bem mais benevolentes do que poderiam esperar os cristãos orientais ortodoxos a eles submetidos, e inclusive agiram ativamente para livrar-lhes daqueles eclesiásticos pró-papistas. Considerando como exemplo o mesmo Maomé II, é bem evidente pela documentação da época que ele se via como herdeiro dos Imperadores Cristãos de Bizâncio “e, como tal, estava cônscio de seus deveres.” Steven RUNCIMAN. A Queda de Constantinopla : 1453. (Trad. Laura Rumchinsky). Rio de Janeiro: Imago, 2002. p. 134. (Todas as considerações anteriores são cf. Id. Op. cit. pp. 133-136). Na segunda metade do século XVIII, Voltaire registrou que os sultões otomanos usavam a seguinte fórmula para nomear os bispos de algumas das ilhas da Grécia: “Eu lhe ordeno que vá residir como bispo na ilha de Quios, segundo o antigo costume e seus cerimoniais inúteis.” VOLTAIRE (François-Marie Arouet). Tratado sobre a tolerância : Por ocasião da morte de Jean Calas. (Trad. William Lagos). Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 31. 622 R. BERGERON. Op. cit. p. 72. 242 estivesse “fortemente compreendido com (...) [alguma] opinião teológica particular no meio das várias disputas doutrinárias de seu tempo”623, mas antes pelo “anseio de que preces unidas se elevassem a Deus na sua intenção, acreditando que Deus não haveria de coroá-lo com vitórias se as igrejas estivessem desunidas pelo cisma.”624 Esta apropriação paternalista da fé cristã pelo Império ressoou muito além do seu próprio limes. Quando Constantino assumiu a responsabilidade de ser o defensor e o responsável pela unidade da fé cristã em todo o mundo – propósito muito de acordo com suas convicções de estar imbuído de uma missão imperial universal – certamente havia na base desta também um genuíno componente de preocupação com os cristãos para além de seus domínios, manifesta, entretanto, de modo um tanto quanto desastrado. O Imperador, por exemplo, ouviu falar que as províncias a leste das fronteiras romanas estavam repletas de cristãos e sentiu que deveria fazer algo por eles, de modo que redigiu uma carta a Shapur II, o Xá dos Xás da Pérsia, pedindo que – como ele mesmo o havia feito – reconhecesse e protegesse os cristãos. O resultado mais imediato disto foi que os seguidores persas de Jesus de Nazaré começaram a enfrentar pela primeira vez não só a oposição dos magos zoroastristas, que eram os sacerdotes da religião estatal, mas também questionamentos sobre sua lealdade ao Grão-Xá. Amigos do inimigo de Shapur, e, portanto, do Estado persa, os cristãos foram postos sob observação e afastados de todas as funções públicas que porventura eles ou seus simpatizantes ocupassem, tiveram de pagar uma dupla taxa para manterem as suas crenças, e seus edifícios de culto e reunião confiscados ou queimados. Em 339, determinouse que todos os cristãos da Pérsia – e em especial os convertidos de famílias zoroastristas – deveriam adorar o sol, um rito central da religião daquele Estado, e os que se recusaram a fazê-lo foram de pronto exilados ou mortos. Estima-se que dezenas de milhares de cristãos persas tenham sido assassinados por suas próprias autoridades civis, e a perseguição foi tão severa que Selêucia-Ctesifonte, então capital daquele Império, ficou várias décadas sem um bispo principal, pois cada eleição episcopal aí realizada ocasionava uma imediata execução. Enquanto os teólogos gregos e latinos estavam reunidos no Concílio de Calcedônia (451), o 623 D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. p. 209. 624 Id. Op. cit. p. cit. 243 patriarca persa de Selêucia-Ctesifonte, Dadieshu, ainda tinha de se ver com uma sociedade hostil que julgava os cristãos simpáticos aos seus inimigos romanos e com a perspectiva de tornar-se um mártir de uma hora para a outra.625 Mesmo no interior do Império Romano, a vinculação entre Estado e Igreja nunca foi aceita integralmente e com inteira tranqüilidade, mesmo entre os mais altos prelados da corrente cristã hegemônica – basta-nos evocar aqui o exemplo de João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla, do qual já pudemos tratar (ainda que tangencialmente, em uma nota de rodapé no primeiro capítulo deste trabalho). Retomemos uma ponta que propositadamente havíamos deixado meio solta e que merece mais uma consideração. A mais notável das muitas coisas notáveis que este relacionamento entre Igreja e Império, que hoje estamos demasiado de pronto dispostos a considerar de forma anacrônica como incestuoso626, propiciou foi que os cristãos buscassem interpretar cada vez mais minuciosamente, dentro das categorias intelectuais já assimiladas e re-significadas da física e da metafísica helênica, a sua crença em Jesus Cristo. De fato, a querela ariana foi apenas a primeira de tantas outras sobre esta mesma temática. Uma linguagem que visa a apreender e expor de maneira inteligível a arrasadora e irresistível experiência do sagrado, que engendra no homem emoções que ele não pode compreender e expressar de modo inteiramente adequado em palavras e conceitos627, a teologia desenvolve-se grandemente quando mobilizada na tarefa de Sísifo de definir com precisão sua crença e, com ela, uma identidade cristã – que também é a do Império Romano Cristão. Como todos os saberes, em todos os tempos, a teologia do cristianismo constantiniano alicerça-se então em certos pressupostos que são ao mesmo tempo seus limites e possibilidades de existência, e estes não só fundamentam como direcionam – e condicionam – seu desenvolvimento reflexivo específico.628 A necessidade de verbalizar, ou seja, de circunscrever, uma experiência necessariamente não-definível, de entender, 625 Cf. Ibid. Op. cit. pp. 248-250. 626 Cf. H. I. MARROU. Op. cit. p. 847. 627 Cf. Karen ARMSTRONG. Uma história de Deus : Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. (Trad. Marcos Santarrita; rev. da trad. Hildelgarda Feist e Wladimir Araújo). São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 60 e nota correspondente, n. 2 ao cap. 2, p. 501. 628 Cf. Rubem ALVES. Filosofia da ciência : Introdução ao jogo e suas regras. (11ª ed.). São Paulo: Loyola, 2006 [2000]. (Col. “Leituras filosóficas”, n. 7). ps. 31, 77, 93, 115-125, 129-132, 173-174, 206-217. 244 arranjar e expor conceitualmente aquilo que por definição é mistério, e de desenhar os contornos de uma ortodoxia a partir de tão abstratas bases envolveu os teólogos cristãos em problemas intelectuais quase insolúveis, mas que contudo clamavam por algum tipo de resposta a partir do momento em que foram vislumbrados – para o bem da Igreja Cristã e do Imperador e Império Cristãos. Sob o patrocínio de Constantino e seus sucessores do Oriente e do Ocidente, e visando antes de qualquer outra coisa a unidade dos crentes, a teologia especulativa cedo dividiu os pensadores cristãos e as comunidades eclesiais – e em um giro voltamos ao cerne de nosso argumento. As únicas soluções possíveis para as vetustas querelas sobre coisas que não podem ser empiricamente verificáveis por todos, nas quais passa a estar em jogo também a unidade do Império, são a aceitação indiferente da ruptura – foi o que, por exemplo, fez Juliano, dito o Apóstata629 - ou o estabelecimento a todo custo de um consenso – com sua eventual imposição pela autoridade e violência estatal à todos aqueles que, mais convictos de suas doutrinas, não estivessem dispostos a ceder aos que criam diferente.630 629 Cf. D. T. IRVIN e S. W. SUNQUIST. Op. cit. pp. 231-232. P. JOHNSON. Op. cit. pp. 105106. Maria Luisa ANGRISANI SANFILIPO. “Juliano o Apóstata”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 791792. 630 Cf. H. KÜNG. Op. cit. pp. 223-224. Sabendo que este argumento pode se prestar tão bem a especulações anti-católicas, é importante ressaltar e deixar bem claro aqui, uma vez mais, que não estamos nos referindo ao paradigma medieval do cristianismo, mas à circunstâncias e processos bem distintos. O desenvolvimento de uma estrutura monárquica de Igreja independente do Estado ou mesmo com pretensões de ter a ascendência sobre este, ou assumir-lhe algumas das funções, centrada na plenitudo potestatis do bispo de Roma, é por uma série de motivos políticos e teológicos, paralela e posterior à guinada constantiniana da fé cristã. Ainda na segunda metade do século IV e na primeira do seguinte o Ocidente cristão é apenas um apêndice da Cristandade grega do Império Romano Oriental. A estrutura eclesiástica encontrava-se então efetivamente organizada em torno não do sucessor de Pedro, mas de um César, que era quem fazia edificar e consagrar os templos cristãos, protegia e subsidiava seus clérigos dedicados em tempo integral ao serviço das coisas sacras e convocava desde Constantinopla os Concílios Ecumênicos que forjaram a fé da maior parte dos cristãos da posteridade ao deliberarem sobre a correta forma de crer e celebrar a crença em Jesus Cristo. Id. Op. cit. p. 232 (também pp. 233-237). 245 IV. “Os leopardos irrompem no templo e bebem o vinho dos cálices; isso acontece repetidamente; ao cabo prevê-se que acontecerá e se incorpora à cerimônia do templo.” FRANZ KAFKA Em 1935, foi publicado em Leipzig sob a edição de Jakob Hegner um tratado filológico e historiográfico, não muito amplo, de Erik Peterson, com o título de O monoteísmo como problema político : uma contribuição à história da Teologia Política no Império Romano. O título e o subtítulo indicam que o escrito limita-se a lidar com o monoteísmo e a monarquia nos primeiros séculos da Era Cristã, seu material são fontes literárias e atestados epigráficos dos séculos III a.C. a IV d.C., mas, nas suas páginas finais, é explicitamente anunciada como tese central da obra a resolução de toda a Teologia Política, conforme esta havia sido delimitada no texto homônimo da autoria de Carl Schmitt, publicado em Munique no ano de 1922: “(...) Fizemos, aqui, a tentativa de comprovar, com um exemplo concreto, a impossibilidade teológica de uma ‘Teologia Política’.”631 Este texto sobre a fórmula aclamatória e analógica Um Deus – um monarca, ao chamar seu monarca eventualmente de Führer (líder) foi sentido como uma alusão arguta e bem escamoteada à ascensão do Nazismo, ao sistema de um partido e ao totalitarismo, contendo em si um alerta de que o cristianismo era incompatível com o seguimento dos ídolos da raça, da nação e da guerra. Sua epígrafe contribuiu para tal entendimento: “era uma frase de Santo Agostinho que adverte quanto ao falso esforço de unidade surgido da ânsia mundial pelo poder.”632 Na obra de Peterson, Constantino é sutilmente comparado com Hitler e Stálin, coisa duramente criticada por Carl Schmitt no texto em que este pensador propôs a refutar as conclusões e a recepção acrítica de O monoteísmo como problema político: “(...) A atualidade do ano de 1935 comparada a paralelos históricos do ano de 325 nem é científica, nem teologicamente permitida; de toda forma, não sem uma explicação da exemplificação pretendida in concreto do 631 Carl SCHMITT. Teologia política. (Trad. Elisabeth Antoniuk; coord. e superv. Luiz Moreira). Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 68. 632 Id. Op. cit. p. 70. 246 material comprobatório.”633 O grande “vilão” de Peterson, entretanto, não é o Imperador Cristão, mas Eusébio de Cesaréia, tido como consciente, malintencionado e perigoso ideólogo do aparelho estatal romano, que teria tentado em toda a sua tão abrangente quanto erudita produção intelectual situar o Cristianismo como uma espécie de florescimento da filosofia judaico-helenística de Josefo e de Alexandria. Ao fazer tal coisa, o bispo historiador intentaria integrar a fé cristã à história romana de maneira servil, ao mesmo tempo em que pretendia legitimar a monarquia como uma resposta providencial aos riscos de fracionamento da comunidade política greco-latina, também ela determinada por expressa vontade de Deus. O autor da História Eclesiástica figura neste tratado de 1935 como o representante de uma inadmissível teologia política que pretende politizar a noção de Reino de Deus retorcendo-a de tal modo que a faz contrária mesmo à pregação de Jesus registrada nos quatro evangelhos canônicos. Mais do que isto, o bispo de Cesaréia é tomado como um protótipo geral de todos os pensadores que se dedicaram a afastar o potencial revolucionário do movimento cristão e o teorizar como uma religião completamente dócil aos desígnios políticos dos príncipes deste mundo. “(...) A Eusébio e ao arianismo que desenvolveram a noção de monarquia divina projetando nesse mundo temporal os modelos de paz e de monarquia cristã (que apenas podem se realizar em Deus), Peterson opôs o dogma trinitário, que para ele combate tal tendência ao situar a religião de Cristo precisamente além do Judaísmo. Á escatologia equivocada de Eusébio Peterson opôs a proclamação libertadora do Deus único e tríplice, libertada da importância do Império na história da salvação.”634 No seguir da referida obra, Gregório Nazienzo é valorizado contra Eusébio, por “elevar toda a reflexão a uma ordem real colocada além de toda desordem caracterizada pelos conceitos de anarquia, poliarquia e monarquia”635, e Gregório de Elvira é destacado como o mais eloqüente crítico das tentativas de realizar na terra a monarquia celeste ao comparar ao anticristo o que tentasse fazê 633 Ibid. Op. cit. p. 94. 634 C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 295-296. 635 Citado em: C. SCHMITT. Op. cit. p. 92. 247 lo. 636. Por fim, Peterson abandona o material comprobatório no qual se edifica o restante de sua obra para realizar uma confrontação tipológica entre as teologias de Eusébio de Cesaréia e Agostinho de Hipona, sobrelançando à estrutura científica que havia construído argumentativamente o juízo faccioso de que, sendo o primeiro um mero cortesão, uma versão cristã dos antigos sacerdotes pagãos, o segundo “com seu conceito cristão da ‘paz’, realizou o que os pais eclesiásticos gregos, especialmente Gregório de Naziano [i.e., Gregório Nazienzo], teriam realizado com seu conceito de Deus e a doutrina da trindade: a libertação da fé cristã ‘do acorrentamento do Império Romano’.”637 Além de todos os problemas destacados por Carl Schmitt em sua refutação a este texto – dentre os quais os mais graves certamente são o uso leviano do pensamento analógico para estruturar argumentos de raiz e o descompasso entre a tese apresentada e os materiais comprobatórios selecionados e analisados – podemos chamar a atenção para mais dois. Em primeiro lugar, como bem chamou a atenção Gilbert Dragon em seu livro Empereur et prêtre : Études sur le ‘césaropapisme’ byzantin (Paris, 1996), Erik Peterson alicerça seu discurso em uma confrontação preconceituosa entre um imaginário Ocidente que sabe bem dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, e por isto é capaz de preservar um núcleo religioso duro e independente, avesso à mácula dos interesses políticos, e um inventado Oriente secreta e naturalmente filoariano e totalitário, onde Império Bizantino, Autocracia Russa e Comunismo Stalinista se desdobrariam no processo histórico mais como continuidade e sucessão do que como ruptura e mudança. Faz, em outros termos, uma divisão valorativa muito clara entre cesaropapismo-totalitarismo oriental e a tipicamente ocidental separação agostiniana das duas cidades, que não passam, aliás, de quimeras por ele entusiasticamente nutridas.638 636 Cf. Id. Op. cit. p. 93. 637 Ibid. Op. cit. p. cit. 638 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. 296. É realmente uma pena que Edward Said, que tão astuciosamente percebeu e destacou as inúmeras construções preconceituosas do oriental – para ele, por excelência, o islâmico – na arte, na ciência, no pensamento geopolítico e geoestratégico, e mesmo, incidentalmente, na religião européia, não tenha se detido em seu admirável Orientalismo na visão de políticos e letrados da Europa sobre o Oriente cristão em si mesmo, e em como isto gera não só a sensação de estranheza e exotismo diante daquilo que deveria constituir o patrimônio comum de todas as culturas nutridas no legado greco-latino tardio, mas também desentendimentos mútuos e incompreensões dos auto-designados ocidentais sobre sua própria história anterior ao 248 Em segundo lugar, como viemos argumentando até agora, não é exatamente no conteúdo objetivo da teologia cristã – partindo do reverente pressuposto de que há algum –, mas na relação que com o seu desenvolvimento teve o Império Romano – demandando formulações e buscando constituir e impor consensos – e como isto ressoou no interior da instituição eclesial, conformando práticas cúlticas e imperativos éticos, normas disciplinares e gêneros discursivos, imagens do divino e formas de auto-compreensão – que se encontra o cerne da problemática da aliança entre Altar e Trono. Com uma paixão notável, Richard Bergeron, professor emérito da Faculdade de Teologia da Universidade de Montreal, fundador e ex-presidente do Centre d’Information sur les Nouvelles Religions, explicitamente engajado em reler a história do cristianismo para estabelecer as bases de uma espiritualidade do diálogo e do pluralismo religioso, afirmou que há uma relação necessária entre os dogmas, conforme eles foram formulados por Nicéia e pelos outros seis grandes Concílios Ecumênicos, e os anátemas, e que tanto das disputas de poder de ordem não-religiosa quanto destas formulações consensuais nascem os cismas e as ditas heresias, “as intermináveis querelas e as penosas excomunhões.”639 A formulação de fé de tipo conciliar, portanto, que devia assegurar o solo comum dos cristãos, a base de sua unidade, segundo o mesmo autor, graças à intervenção imperial, ter-se-ia degenerado em princípio e fator de divisão entre eles. Os parâmetros de cálculo da política seriam incompatíveis com os dos debates doutrinais, e a tentativa de direcionar o tom e o alcance destes para que tivessem um bom termo é justamente o que, de modo perverso, os tornaria inexauríveis minas de pedras-de-tropeço para a verdadeira concórdia e comunhão eclesial. Em verdade, é bastante interessante o argumento de Bergeron, baseado também em uma confrontação. Este autor opõe a busca da verdade que “(...) Não se ordena nem se força (...) [que] não conhece fronteiras e se recusa a qualquer compromisso caso sua liberdade e seu poder de libertação sejam entravados de algum modo (...) [que] se enraíza mais no maravilhamento do que na convenção, século V (ou XI-XIII, se tomarmos como marca de ruptura entre os mundos culturais provenientes dos dois lados do cristianismo mediterrânico as excomunhões mútuas de 1054 e a cruzada de 1204). Ver: Edward W. SAID. Orientalismo : O Oriente como invenção do Ocidente. (Trad. Rosaura Eichenberg). (2ª ed. rev.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 639 R. BERGERON. Op. cit. p. 72. 249 antes na atenção ao outro do que na pertinência erudita a uma comunidade bem definida”640 ao “reino da religião cristã imperial”641, no qual “(...) Todas as concepções de Deus e de Cristo não conformes à posição ortodoxa, tal como definida pelos concílios e defendida pelo Imperador, são desqualificadas e condenadas como heterodoxas, e seus defensores são perseguidos e excomungados.”642 Partindo deste contraste é que ele constatou que as relações entre o movimento cristão de primeira hora e o Império Romano são tão complexas e desconhecidas para nós como foram de fato os seus relacionamentos com os judaísmos e paganismos dos séculos I a III. Dispomos, de fato, de não muitos materiais para investigar tal problemática, e somos tão aferrados às nossas próprias posições ideológicas que acabamos tendo necessariamente uma compreensão absolutamente equivocada do que se passou.643 Talvez isto seja inevitável na medida em que a objetividade científica é apenas um ideal e não podemos escapar de nós mesmos para assumir as lentes de um observador tão imparcial quanto onisciente. Diante disto podemos cair na ironia do deixar estar ou então, nos angustiarmos com uma alma sensível como a de Simone Weil, pensadora de origem judaica que era fascinada pela figura e pelo ensinamento de Jesus de Nazaré, enquanto nos questionamos por que e como, depois de os cristãos serem perseguidos como ímpios e ateus por Roma, “(...) o império adotou o cristianismo como religião oficial? E em que condições? Que degradação teve ele de sofrer em troca? Como se realizou essa colusão entre a Igreja e a Besta? Pois a Besta do Apocalipse designava sem dúvida alguma o 644 império.” 640 Id. Op. cit. p. 11. 641 Ibid. Op. cit. p. 72. 642 Ibid. Op. cit. p. cit. 643 Edward Gibbon já observou esta variável de deformação na pesquisa sobre o cristianismo antigo há bem mais de duzentos anos atrás: “(...) A direção da Igreja tem sido amiúde o objeto bem como o prêmio das disputas religiosas. Os contentores hostis de Roma, de Paris, de Oxford e de Genebra forcejaram cada qual a seu modo por reduzir o primitivo modelo apostólico aos respectivos padrões de sua própria política.” E. GIBBON. Op. cit. p. 263. 644 Simone WEIL. Ouvres. Paris: Gallimard, 1999. (Col. “Quarto”). p. 1013. Apud: R. BERGERON. Op. cit. p. 73. 250 Por outro lado, também podemos enfrentar a nós mesmos e buscar prosseguir apesar das dificuldades. De algum modo, operou-se, talvez com a melhor das intenções, “um enrijecimento das estruturas nas quais a espiritualidade cristã encontrara seu lugar de inscrição até o começo do século IV (...) e o movimento cristão transformou-se em instituição sociopolítica solidamente ancorada no quadro jurídico do império.”645 Dado este a priori, podemos ir buscar materiais que nos ajudem a entender mais precisamente quais foram os caminhos trilhados por determinado ramo do movimento cristão para que seus interesses convergissem com os do Império, e a partir daí pensar de maneira mais esclarecedora a relação entre estas duas instituições. Talvez a mais importante coisa a se considerar neste trabalho é que ao favorecer a Igreja, sem, contudo, torná-la efetivamente religião de Estado, Constantino percebeu que um determinado cristianismo “já possuía muitas das características de uma religião imperial.”646 No decorrer das operações anticristãs promovidas em larga escala pelo Império Romano na segunda metade do século III, as autoridades governamentais foram forçadas a admitir que não estavam lidando com mais uma religião helenística da qual pudessem se livrar com uma sacudidela. As formas de ser cristão que se tornariam ortodoxas já haviam se adaptado muito bem à ordem romana, deixando de lado, por exemplo, aquelas aspirações nacionais tão características do judaísmo palestinense e assumindo uma postura a-política, levemente marcada de conformismo. Mais ainda, na longa batalha pela criação e manutenção da unidade e na codificação da doutrina em termos que favorecessem tanto o trabalho missionário quanto o duro trabalho de auto-compreensão, um ramo da Igreja havia se tornado uma imagem do próprio Império: “católico, universal, ecumênico, ordenado, internacional, multiracial e cada vez mais legalista (...) administrado por uma classe profissional de eruditos que, sob determinados aspectos, faziam as vezes de burocratas, e seus bispos, como governadores imperiais, legados ou prefeitos, detinham amplos poderes discricionários para interpretar a lei.”647 Os inequívocos sinais desta acomodação, talvez ditada inicialmente pela convicção de que o Fim estava muito próximo e 645 Id. Op. cit. p. cit. 646 P. JOHNSON. Op. cit. p. 94. O grifo é nosso. 647 Id. Op. cit. p. 93. 251 não havia tempo para mudar nada além de si mesmo – e nem necessidade disto, já que o Juízo corrigiria as injustiças ao exaltar os bons e eliminar os maus –, e candidamente confirmada pela simples necessidade de seguir vivendo em paz648, já estão presentes em documentos cristãos antigos – como o Novo Testamento – e fornecerão a mais sólida base da argumentação pró-imperial da Igreja Triunfante. Enquanto Paulo deu sinais de resistir a uma relação de patronato entre ele e a florescente comunidade cristã de Corinto – “(...) Paulo teria sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizado em nome de Paulo? Dou graças a Deus por não ter batizado ninguém de vós a não ser Crispo e Caio”649 – e insistia em tão constrangedoras quanto subversivas afirmações de igualdade radical entre os cristãos – “(...) Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós são um só em Cristo Jesus”650 –, seus sucessores na liderança das igrejas oriundas de sua pregação plasmaram os fundamentos mais sólidos daquilo que se tornaria o cristianismo ortodoxo. Nas cartas por eles redigidas, chamadas pelos especialistas de deutero-paulinas – como as Epístolas aos Colossenses e aos Efésios e as ditas “pastorais” (a Tito, a Filêmon e primeira e segunda a Timóteo) –, adaptaram sua fé à família patriarcal escravagista – “(...) Durante a instrução que a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Não permito que a mulher ensine ou domine o homem”651; “(...) Todos os que estão sob o jugo da escravidão devem considerar os próprios senhores como dignos de todo respeito; para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados”652 – e estabeleceram uma atitude geral diante dos debates religiosos – “(...) Evita controvérsias insensatas, genealogias, dissensões e debates sobre a Lei, porque para nada adiantam, e são fúteis. Depois de a primeira e da segunda admoestação, 648 Para a consideração adequada disto, pode ser útil lembrar um trecho de Edward Thompson, onde este historiador inglês escreveu que “(...) Muito raramente – e, neste caso, apenas por pouco tempo – uma classe dominante exerce, sem mediações, sua autoridade por meio da força militar e econômica direta. As pessoas vêm ao mundo em uma sociedade cujas formas e relações parecem tão fixas e imutáveis quanto o céu que nos protege. O ‘senso comum’ de uma época se faz saturado com uma ensurdecedora propaganda do status quo, mas o elemento mais forte dessa propaganda é simplesmente o fato da existência do existente.” Edward Palmer THOMPSON. “Folclore, Antropologia e História Social.” In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. (Org. e trad. Antonio L. Negro e Sergio Silva). Campinas: UNICAMP, 2001. p. 239. 649 BÍBLIA.Ver cit. Primeira Epístola aos Coríntios 1, 13b-14. p. 1994. 650 Id. Ver. cit. Epístola aos Gálatas 3, 28. p. 2035. 651 Ibid. Ver. cit. Primeira Epístola a Timóteo 2, 11-12a. p. 2070. 652 Ibid. Ver. cit. Primeira Epístola a Timóteo 6, 1. p. 2073. 252 nada mais tens a fazer com um homem faccioso, pois é sabido que o homem assim se perverteu e se entregou ao pecado, condenando-se a si mesmo.”653 A obra de dois volumes composta pelo Evangelho de Lucas e pelo Atos dos Apóstolos, embora ainda tenha representado o movimento cristão como uma alternativa ao Império Romano, o fez em uma perspectiva majoritariamente nãoconflitiva, o que vale dizer, “suaviza as implicações subversivas dos ensinamentos proféticos de Jesus e responsabiliza explicitamente os judeus por suas dificuldades, enquanto isenta os oficiais romanos”.654 O Evangelho de Mateus, mais contundente, culpa os judeus, ou pelo menos os seus dirigentes sacerdotais, pela morte de Jesus, apresentando ainda a destruição de Jerusalém e de seu Templo como castigo de Deus por esta perfídia. O texto dito de João, por fim, marca uma ruptura ainda mais profunda entre os espirituais cristãos e os politizados judeus, afirmando que estes são filhos do diabo655 e destacando que o reino de Jesus não é deste mundo.656 Além disto, a origem última do poder romano, personificada no hesitante Pôncio Pilatos, está não na astúcia dos Césares ou na força das suas legiões, mas em Deus: “(...) Não terias poder algum sobre mim, se não te fosse dado do alto”.657 Dentre estas antigas referências que podem ser tomadas como testemunho de que os cristãos nunca conceberam a autoridade do Imperador Romano como puramente secular – aliás, como os devotos das divindades olímpicas, os seguidores dos cultos de mistério, os judeus das mais diversas correntes, palestinenses ou da diáspora e os adeptos das escolas filosóficas da época helenística658 – duas podem ainda ser especialmente destacadas. De um lado temos um trecho que teria sido redigido por Pedro, a quem a tradição eclesiástica sempre atribuiu a primazia do colégio apostólico, onde o antes pescador teria apresentado, emoldurando uma prescrição de conduta associada à uma 653 Ibid. Ver. cit. Epístola a Tito 2, 9-11. pp. 2080-2081. 654 Richard HORSLEY. Jesus e o Império : O Reino de Deus e a nova desordem mundial. (Trad. Ecluides Luiz Calloni). São Paulo: Paulus, 2004. (Col. “Bíblia e Sociologia”, n. 16). p. 139. 655 Cf. BÍBLIA. Ver. cit. João 8, 44. p. 1866. 656 Cf. Id. Ver. cit. João 18, 36. pp. 1889-1890. 657 Ibid. Ver. cit. João 19, 11. p. 1890. 658 Cf. Ghislain LAFONT. História teológica da Igreja Católica : Itinerário e formas da teologia. (Trad. Mariana N. R. Echalar). São Paulo: Paulinas, 2000. (Col. “Pensamento teológico”). ps. 7172 e 91. 253 preocupação pastoral muito concreta, toda uma regra geral do relacionamento entre os cristãos e o status quo: “(...) Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor, seja ao rei, como soberano, seja aos governadores, como enviados seus para a punição dos malfeitores e para o louvor dos que fazem o bem, pois esta é a vontade de Deus que, fazendo o bem, tapeis a boca à ignorância dos insensatos. Comportai-vos como homens livres, não usando a liberdade como cobertura para o mal, mas como servos de Deus. Honrai a todos, amai os irmãos, temei a Deus, tributai honra ao rei.”659 Do outro, consta certa passagem de uma epístola na qual escreveu o Apóstolo dos Gentios aos cristãos da capital do Império que “(...) Cada um se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e às que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação. Os que governam incutem medo quando se pratica o mal, não quando se faz o bem. Queres então não ter medo da autoridade? Pratica o bem e dela receberás elogios, pois ela é instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porém, praticares o mal, teme, porque não é à toa que ela traz a espada: ela é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem pratica o mal. Por isso é necessário submeter-se não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência.”660 Como bem observou Celso Taveira sobre esta última passagem, “(...) Não deixa de surpreender a força psicológica desse existir e simultaneamente estar instituído”661, fator que será explorado pelos teólogos e estadistas até se tornar um sólido fundamento das prerrogativas de intervenção da autoridade governamental no âmbito da vida interna da Igreja. Nestes dois textos atribuídos às duas grandes colunas da Igreja e na célebre passagem em que segundo a narrativa do Evangelho de Mateus Jesus teria prescrito aos judeus seu interlocutores dar “o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus”662 é que encontramos os mais repetidamente 659 BÍBLIA. Ver. cit. Primeira Epístola de Pedro 2, 13-17. p. 2115. 660 Id. Ver. cit. Epístola de Paulo aos Romanos 13, 1-5. p. 1987. 661 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 65. 662 BÍBLIA. Ver. cit. Mateus 22, 21b. p. 1743. 254 invocados princípios básicos da fundamentação propriamente religiosa da lei e do poder do Império nas Sagradas Escrituras cristãs.663 É leviano afirmar pura e simplesmente, entretanto, que tinham os apóstolos, os evangelistas, seus secretários escribas ou seus seguidores imediatos a convicção de que era divino o poder dos imperadores romanos. Deve-se lembrar que, via de regra, os cristãos recusavam-se a cultuá-lo como entidade sobre-humana, e que seus escritos visavam primordialmente a organização das suas comunidades em formação, ameaçadas em sua própria sobrevivência pelas perseguições e pelas dissidências, sendo, por assim dizer, “testemunhos de uma época ainda indefinida na vida da Igreja”664 A valorização destas máximas conformistas do Novo Testamento teve início sobretudo a partir dos séculos III e IV, quando o movimento cristão, bastante transformado em muitos aspectos e sacudido por conflitos internos cada vez mais amplos e profundos, começou a ter um motivo concreto para aceitar a própria “intervenção imperial direta nos assuntos da Igreja, através da convocação dos concílios.”665 Mais ou menos contemporâneo à redação do quarto evangelho e das mais tardias epístolas incorporadas ao cânone neo-testamentário, é o texto da carta de Clemente de Roma aos Coríntios. Um dos sucessores de Pedro na chefia da comunidade cristã da capital do Império, Clemente escreveu oficialmente a seus 663 Uma exegese alternativa do trecho citado do Evangelho de Mateus – que também está presente na narrativa dita de Marcos –, que tem o mérito de situá-lo em seu contexto original de formulação (a Jerusalém da primeira metade do século I) e, deste modo, expõe o seu caráter retórico e de provocação política, consta em: Marcus J. BORG e John Dominic CROSSAN. A última semana : Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. (Trad. de Alves Calado). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. pp. 81-86. 664 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 66. O grifo é nosso. Alicerçado quase sobre o mesmo esteio argumentativo, o filósofo esloveno Slavoj Žižek escreveu a respeito de Paulo que “(...) O que lhe interessa não é Jesus como figura histórica, mas apenas a sua morte na cruz e a sua ressurreição de entre os mortos; uma vez estabelecida a morte e ressurreição de Jesus, dedica-se à sua verdadeira tarefa, um autêntico empreendimento leninista: a organização de um novo partido chamado comunidade cristã... São Paulo como leninista: não foi ele, como Lenine, o grande ‘organizador’ e, como tal, não foi caluniado pelos partidários do cristianismo-marxismo das origens? A temporalidade paulina – a do ‘já, mas não ainda’ – não corresponderá também à situação de Lenine entre a revolução de fevereiro e a da outubro de 1917? A revolução já ficou para trás, o antigo regime morreu, a liberdade foi conquistada, mas o verdadeiro trabalho ainda está por fazer.” Slavoj ŽIŽEK. A Marioneta e o Anão : O Cristianismo entre Perversão e Subversão. (Trad. Carlos C. M. de Oliveira). Lisboa: Relógio D’Água, 2006. (Col. “Argumentos”). pp. 14-15. Imaginamos que esta consideração e imagem aplicadas ao fariseu antes perseguidor dos cristãos podem ser genericamente estendidas ao grupo – ou à maior parte do grupo – dos Doze, assim como à quase todos os líderes de primeira hora do movimento dos seguidores de Jesus dos quais temos notícias, fosse entre os judeus da diáspora em meio aos gentios. 665 C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. 255 correligionários de Corinto, então assolados por um conflito intestino de tal ordem grave que levou a um surpreendente coup d’état: a deposição do epíscopo e presbíteros então instituídos e a indicação de substitutos para suas funções de guias da assembléia e presidentes da liturgia. Não havia então na Igreja de Corinto nenhum problema de ordem doutrinal, de modo que esta correspondência tratou apenas de questões de estrita ordem relacional / disciplinar. Neste antigo testemunho, há em primeiro lugar o vigoroso chamado à unidade e à ordem, onde Clemente apresenta aos coríntios inúmeros exemplos edificantes extraídos das Escrituras dos judeus e dos cristãos, e também da cultura greco-latina da época. Inclusive da cultura político-militar romana, deve-se observar: “(...) Reparemos nos soldados alistados sob as bandeiras de nossos imperadores, como cumprem as ordens com disciplina, prontidão e submissão. Nem todos são comandantes, nem todos tribunos, nem centuriões, nem prepostos a cinqüenta e assim por diante, mas cada qual em seu próprio posto cumpre as ordens dadas pelo chefe supremo e demais autoridades. Os grandes não podem sem os pequenos, nem os pequenos sem os grandes. Em tudo existe alguma mistura e nela está a vantagem.”666 Tal alusão é de especial relevo se considerarmos que este documento muito possivelmente foi escrito logo após o fim da grande perseguição promovida pelas ordens de Domiciano (anos 80-81). Recolocada em seu contexto, esta referência afigura-se ainda mais notável como símbolo de estruturas mentais já bastante arraigadas. Não bastasse isto, a carta se encerra com uma belíssima prece, talvez a mais antiga oração universal de que tenhamos notícias, direta antepassada das litanias logo depois incorporadas na liturgia cristã do Oriente e do Ocidente, na qual se expressa em pleonasmo a declaração neo-testamentária sobre a procedência do poder imperial: “(...) Torna-nos submissos a teu nome todo-poderoso e todo santo e aos que nos governam e dirigem sobre a terra. Tu, Senhor, lhes deste o poder da autoridade 666 CLEMENTE DE ROMA. Carta aos Coríntios. (Trad. do original, introd. e notas de Paulo Evaristo Arns). (3ª ed.). Petrópolis: Vozes, 1984 [1970]. c. 37, vs. 2-4. p. 45. A idéia da vida cristã como serviço militar e da Igreja como exército cujo general (cabeça) é Cristo depende diretamente dos escritos paulinos. Cf. p. ex. BÍBLIA. Ver. cit. Segunda Epístola aos Coríntios 10, 3-6. p. 2026. Epístola aos Efésios 4, 15. p. 2044. Epístola aos Colossenses 1, 24 e 2, 19. ps. 2055 e 2057. 256 por tua força magnífica e inefável, para que soubéssemos que por ti lhes foi dada a glória e honra, e a eles nos submetêssemos, em nada contrariando a tua vontade. Dai-lhes, pois, Senhor, saúde, paz, concórdia e estabilidade, a fim de que exerçam sem tropeços a soberania que lhes confiaste. Pois tu, Senhor dos céus, Rei dos Séculos, dás aos filhos dos homens glória, honra e poder sobre o que existe na terra. Tu, Senhor, dirige sua vontade no sentido do que é bom e agradável a teus olhos em tua presença, a fim de que exerçam a autoridade que lhes deste na paz e 667 mansidão, e obtenham tua graça!” Ao que tudo indica, a terminologia que os autores do Novo Testamento, e especialmente Paulo empregaram contra o próprio Império – quando este, por exemplo, afirmou que “o Senhor [Kýrios] é Jesus Cristo”668 efetivamente sustentava ao mesmo tempo que não o era o Imperador de Roma, designado entre os gregos pelo mesmo termo (Kýrios)669 – facilmente poderia ser revertida, se entendida em sentido seletivamente literal, de modo a apoiar a mesma instituição que havia sido, no mínimo, ironizada pelo Apóstolo. Em pouco, “Cristo se tornou não o Senhor e Salvador antiimperialista, mas o Rei imperial que autorizava o imperador e a ordem imperial”670 – ainda que, como já tivemos a ocasião de observar, esta imagem do Nazareno nunca tenha se tornado absolutamente consensual entre os fiéis de todas as áreas atingidas pela pregação cristã.671 Tal coisa se deu antes do Edito de Milão e dos decretos de Teodósio, ou seja, não foi parte de uma inescrupulosa negociação entre bispos e governantes para manter o povo alienado de sua opressão. Em retrospecto é fácil considerar a possibilidade de que, geração após geração, houve uma política deliberada, incansavelmente observada, pensada e executada unicamente para criar um sistema religioso autoritário baseado em uma classe clerical privilegiada e na violência estatal, mas isto não pode ser auferido das análises de nenhum dos documentos da Antigüidade cristã dos quais temos hoje conhecimento. Como bem observou Paul Johnson, “(...) Estes sugerem, pelo contrário, uma série de respostas ad hoc a 667 CLEMENTE DE ROMA. Op. cit. c. 60, vs. 1-4a. pp. 62-63. Sobre Clemente de Roma, ver: Paulo Evaristo Arns. “Introdução”. In: CLEMENTE DE ROMA. Op. cit.. Pier Franco BEATRICE. “Clemente Romano”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 305-306. Alfred STUIBER e Berthold ALTANER. Patrologia : Vida, Obras e Doutrina dos Padres da Igreja. (Trad. Monjas Beneditinas). (2ª ed.). São Paulo: Paulinas, 1988. (Col. “Patrologia”, n. 3). pp. 55-57. J. LIÉBAERT. Op. cit. pp. 22-23. 668 BÍBLIA. Ver. cit. Epístola aos Filipenses 2, 11a. p. 2050. 669 R. HORSLEY. Op. cit. p. 137. 670 Id. Op. cit. p. 139. 671 Cf. Ibid. Op. cit. p. 138 e notas correspondentes, n. 4-5. 257 situações reais e, então, uma tendência a lançar mão de tais respostas como precedentes ou plataformas sobre as quais erigir estruturas mais ambiciosas.”672 O caso parece ser que, antes de mais nada, “(...) a Igreja estava lutando por sua própria sobrevivência. E, em seu seio, havia uma luta contínua e multifacetada entre filosofias e sistemas antagônicas. (...) O ministério de Jesus foi conduzido em uma atmosfera de dissensão, debates irritados e espírito partidário; terminou em uma morte por meio de violência. O espírito da Igreja primitiva foi bem transmitido pelas epístolas de Paulo, que sugerem acridez doutrinária e controvérsias irresolutas; não houve um período de tranqüilidade na história da Igreja (...) [mas ela] sobreviveu e foi penetrando com perseverança todas as posições sociais ao longo de uma área imensa por meio da evitação ou absorção de extremos, da conciliação, do desenvolvimento de um temperamento urbano e da construção de estruturas análogas às seculares, a fim de preservar sua unidade e conduzir seus negócios. Houve, em conseqüência, uma perda da espiritualidade, ou, como Paulo teria dito, da liberdade. Ocorreu um ganho de estabilidade e força coletiva. No final do século III, o cristianismo (...) 673 estava se tornando o Doppelgänger do império.” Na obra de Eusébio de Cesaréia, por exemplo, encontramos já plena expressão desta afinidade entre a Igreja Cristã e o Império, compreendido também – ao menos na pessoa do Imperador Constantino – como uma instituição dotada de uma grandeza religiosa própria. A Vida de Constantino, um monumento em quatro livros ao Imperador que convocou o Concílio de Nicéia e haveria de se tornar amigo do bispo de Cesaréia, é um documento evidentemente comprometido com o modelo do panegírico, já totalmente inserido no contexto do cristianismo como uma religião efetivamente tornada de Estado. Bernard Altaner e Alfred Stuiber destacam que é quase certa a veracidade dos documentos aí transcritos, ainda que sua descrição “excessivamente enfática” do Imperador como protetor dos cristãos seja de “veracidade (...) fortemente discutida.”674 Os estudos do bizantinista belga Henri. Grégoire questionaram fortemente não a sua autenticidade, mas a sua autoria, e este especialista concluiu por fim “que, embora essa vida, tal como chegou até nós, contenha talvez um ‘núcleo eusebiano’, partes muito grandes são certamente de uma época posterior (...) [e ele bem pode ter sido 672 P. JOHNSON. Op. cit. p. 79. 673 Id. Op. cit. os. 79-80 e 93. O Doppelgänger é uma espécie de duplo fantasmagórico de um vivo. Cf. Ibid. Op. cit. p. 93 (nota). 674 A. STUIBER e B. ALTANER. Op. cit. p. 225. 258 redigido por] um compilador do fim do século IV ou do começo do século V.”675 Como antes já mencionado, os sete primeiros livros de sua História Eclesiástica foram publicados já antes de 303, sendo depois sucessivamente complementados e editados até alcançarem a sua forma final – que chegou até nós tanto em cópias gregas quanto através de traduções siríacas e armênias ainda do século IV – em algum momento entre a derrota de Licínio por Constantino e a ordem por este dada para que seu filho Crispo fosse assassinado. Considerando-se que eles não fazem nenhuma alusão à controvérsia ariana ou ao Concílio de Nicéia, não é leviano acreditar que antes destes eventos a História Eclesiástica tenha chegado à forma que mais tarde (em 403) Rufino traduziria, complementando a exposição até 395.676 Antes ou durante a intervenção de Constantino em matéria propriamente doutrinal, portanto, é que Eusébio redigiu linhas como as seguintes, nas quais narrou a batalha conhecida como sendo da “Ponte Mílvia” (final de outubro de 312): “(...) Constantino, que, como já dissemos anteriormente, é imperador filho de imperador e varão piedoso, filho de um pai piedoso e prudentíssimo em tudo, foi levantado contra os ímpios tiranos pelo Imperador supremo, o Deus do universo e Salvador. E quando determinou-se a lutar segundo a lei da guerra, combatendo como aliado dele, Deus da maneira mais extraordinária, Maxêncio caiu em Roma ao impacto de Constantino, enquanto o outro, sobrevivendo muito pouco tempo no Oriente, sucumbiu nas mãos de Licínio, que ainda não estava transtornado. Constantino foi o primeiro dos dois – primeiro também em honra e dignidade imperiais – que mostrou moderação com os oprimidos pelos tiranos em Roma. Depois de invocar como aliado em suas orações ao Deus do céu e a seu Verbo, e ainda ao próprio Salvador de todos, Jesus Cristo, avançou com todo o seu exército, tentando alcançar para os romanos sua liberdade ancestral. Maxêncio, sabemos, confiava mais nos artifícios da magia do que na benevolência dos súditos, e na verdade não se atrevia a dar um passo fora das portas da cidade, apesar de que, com a multidão de hoplitas e com as inumeráveis companhias de legionários, cobria todo lugar, toda região e toda cidade, todas as que tinha escravizadas, em torno de Roma e em toda a Itália. O imperador, aferrado à aliança de Deus, ataca o primeiro, o segundo e o terceiro exército do tirano, e depois de vencê-los a todos com facilidade, avança o mais que pode pela Itália até muito perto de Roma. 675 Paul LEMERLE. História de Bizâncio. (Trad. Marilene P. Michael). São Paulo: Martins Fontes, 1991. (Col. “Universidade hoje”, n. 30). p. 8. A interpolação entre colchetes é nossa, inserida para explicitar o sentido do texto aqui mutilado pelo nosso ato de extraí-lo de seu contexto original e transcrevê-lo. 676 Cf. A. STUIBER e B. ALTANER. Op. cit. p. 224. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. pp. 41*46*. No sexto versículo do nono capítulo do décimo Livro da História Eclesiástica, o último da obra, Crispo ainda era descrito como “imperador amado de Deus e semelhante em tudo ao pai”. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Op. cit. Livro X : 9, 6. p. 346. 259 Logo, para que não se visse forçado a lutar contra os romanos por causa do tirano, Deus mesmo arrastou o tirano, como em cadeias, o mais longe das portas. E o que já antigamente estava escrito nos sagrados livros contra os ímpios, incrível para a maioria como se se [sic] tratasse de contos de fábula, mas bem digno de fé por sua própria evidência, ao menos para os fiéis, para dizer pouco, fez-se crível para todos quantos, fiéis e infiéis, viram o prodígio com seus próprios olhos. Da mesma forma que, nos tempos de Moisés e da antiga piedosa nação dos hebreus, precipitou no mar os carros do faraó e seu exército, a flor de seus cavaleiros e capitães, – o mar Vermelho os tragou, o mar os cobriu, na profundeza como uma pedra quando, dando as costas ao exército que vinha da parte de Deus com Constantino, atravessava o rio que lhe cortava o caminho e que ele mesmo havia unido e bem pontoneado com barcas, construindo assim uma máquina de destruição contra si mesmo. Dele se poderia dizer: cavou um fosse e tirou-lhe a terra; e cairá na vala que fez. Seu trabalho se voltará contra sua cabeça, e sua injustiça recairá sobre sua moleira. Assim, pois, desfeita a ponte estendida sobre o rio, a passagem afunda e as barcas se precipitam de um golpe no abismo com todos seus homens; e ele mesmo em primeiro, o homem mais ímpio, e logo os escudeiros que o rodeavam afundaram como chumbo nas águas impetuosas, como já predisse o oráculo divino; de forma que, se não com palavras, como é natural, mas pelo menos com as obras, os que com a graça de Deus haviam se alçado à vitória, poderiam junto com os seguidores do grande servo Moisés entoar o mesmo hino que contra o ímpio tirano de então e dizer: Cantemos ao Senhor porque gloriosamente cobriu-se de glória. Cavalo e cavaleiro lançou ao mar. Minha ajuda e proteção, o Senhor; se fez meu salvador; e Quem como tu entre os deuses, Senhor? Quem como tu, 677 glorificado nos santos, admirável na glória, operador de maravilhas?” Trecho por demais significativo, cuja interpretação ocupa em nosso argumento um papel crucial. Nele podemos destacar elementos dos mais relevantes para comprovar a tese que antes de se estabelecer alguma forma de cesaropapismo havia cristãos que de fato encaravam como sendo de origem nitidamente divina o poder do Imperador Romano e com ele estavam dispostos a colaborar de bom grado. Em primeiro lugar, uma narrativa de base, recorrente com pequenas diferenças em Lactâncio, em Sexto Aurélio Vítor, em Eutrópio, em 677 Id. Op. cit. Livro IX : 9, 1-8. pp. 308-309. Argimiro Velasco-Delgado chama a atenção para o fato de a oração “Licínio, que ainda não estava transtornado” (IX : 9, 1) obviamente não consta nas edições da História Eclesiástica anteriores ao conflito aberto entre este personagem e Constantino, sendo de certo uma re-escritura depreciativa feita por Eusébio depois de 324. Edições anteriores à “damnatio memoriæ” que transformou Licínio de co-herói em vilão – como a que serviu de base a uma tradução siríaca do começo do século V, da qual há uma cópia, de abril de 462, guardada na Biblioteca de São Petesburgo – trazem em seu lugar “Licínio, que vinha depois dele [i.e., Constantino], honrado por sua inteligência e sua piedade.” Nesta mesma edição, o parágrafo continua, sem interrupção com o seguinte: “os suscitou o Salvador, e quando os dois amigos de Deus se lançaram contra os dois muito ímpios tiranos e se alinharam em ordem de batalha, segundo as leis da guerra, Deus combativa com eles como aliado...” Cf. A. VELASCODELGADO. Op. cit. ps. 62* e 574, n. 62. 260 Praxágoras e em Zósimo.678 Constantino saiu com suas tropas da Gália e venceu as guarnições fiéis a Maxêncio estacionadas nas imediações de Turim e de Bréscia e em Verona, o que deixou livre sua passagem pela chamada Via Flamínia até Saxa Rubra, localidade situada a menos de duas dezenas de quilômetros de Roma, onde lhe esperavam os legionários estacionados na própria capital do Império. Por algum motivo – segundo Lactâncio, um levantamento popular que ameaçou o próprio palácio imperial679 – Maxêncio abandonou a cidade e juntou-se ao acampamento militar, ficando nas intermediações da Ponte Mílvia, situada a meio caminho entre Saxa Rubra e os muros de Roma, distante o suficiente do conturbado interior da urbe para manter a segurança de sua Augusta Pessoa, mas próxima o bastante para permitir uma rápida retirada caso Constantino não pudesse ser detido. Além do mais, a ponte poderia ser destruída para impedir o acesso do inimigo ao refúgio fortificado de Maxêncio, com sorte afundando com seus destroços alguns dos soldados de Constantino, ou talvez o próprio; Eusébio afirma que uma outra passagem, de barcos amarrados uns aos outros sobre a correnteza, foi edificada, talvez com este explícito propósito. As tropas que avançavam, entretanto, o fizeram muito rápido, chegando ao acampamento inimigo antes do que era esperado, e logrando fazer os guerreiros leais a Maxêncio recuarem, empurrando-os, além do próprio, dentro do Rio Tibre, onde morrem afogados.680 Em segundo lugar, o destaque a uma motivação não ressaltada em nenhum documento da historiografia pagã sobre o episódio: Constantino teria lutado pelo interesse dos cristãos contra o tirano que os oprimia, mas não contra o povo romano e seu venerável legado, sua “ancestral liberdade”. Este, ao contrário, também se encontrava escravizado, e é por isto que Deus, contra a vontade de Maxêncio, o arrastou para fora da cidade, tornando-o vulnerável ao direto ataque do inimigo, ou seja, entregando-o à morte. Em terceiro lugar, a narrativa é construída como um explícito símile de um trecho bíblico que narra um evento da 678 Cf. Id. Op. cit. p. 574, n. 64. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 152-156. 679 Cf. A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 575, n. 71. 680 Na Vida de Constantino (1, 38), Eusébio – ou o pseudo-Eusébio – explica melhor a sua consideração sobre a ponte de barcas montada como uma armadilha contra Constantino e a derrota de Maxêncio, afirmando que ela providencialmente se rompeu antes do tempo, para prejuízo deste. Cf. Id. Op. cit. p. 576, n. 74. 261 história da saída dos hebreus do Egito, quando Iaweh fecha o Mar Vermelho exterminando “os carros e cavaleiros do Faraó”.681 Há pelo menos cinco citações explícitas ao Livro do Êxodo (15, 4-5; 15, 10; 14, 31; 15, 1-2; e 15, 11), e outras tantas analogias: “Maxêncio, que confia mais na magia” é talvez uma correspondência com o Faraó que confia nos encantamentos e sortilégios de seus magos mais do que nos prodígios realizados por Moisés (14, 11-12a); o assombroso portento de um Imperador derrotado por outro Imperador é um sinal “para todos quantos, fiéis ou infiéis”, o viram, assim como é um sinal da glória de Deus para os egípcios a saída dos israelitas de sua terra (7, 5); e daí por diante. Uma citação de um Salmo (7, 16-17) é usada como paráfrase dos eventos acontecidos, e tal coisa só confirma que estes são compreendidos como repetindo ou concretizando um padrão da qual a narrativa bíblica já apresentava o tipo ou a profecia. Em quarto lugar, há uma titulação de Constantino que indica não apenas ser ele um personagem especial por suas realizações pessoais, de cunho políticomilitar, mas por possuir um destacado papel no plano salvífico de Deus: não é apenas mais um César, mas um novo Moisés, “aferrado à aliança de Deus”, sinal da afeição e compromisso do “Deus do céu” e do “Salvador de todos, Jesus Cristo” com o seu povo; um estadista e legislador que não fala e age em seu próprio nome, mas em nome de Deus. No seu combate, “foi levantado contra os tiranos ímpios pelo Imperador supremo, o Deus do universo e salvador”, que milita como seu aliado. Seu exército vem até quase as portas de Roma combater Maxêncio não por cálculo político e estratégico ou simples ambição, mas “da parte de Deus” – o que de forma alguma é um juízo evidente: em sua Historia Nova Zósimo (segunda metade do século V ou início do século VI) afirmou que o derrotado era o único soberano legítimo e que o mesmo ímpeto desmedido que o levou a padecer seria aquele sob o qual mais tarde cairia Licínio.682 Para Eusébio, o heróico Constantino é menos um ator do que um instrumento, empregado por “Deus da maneira mais extraordinária”. No Bhagavad-Gita, encontramos um deus que incita um homem ao combate justamente porque este lhe deve ser 681 BÍBLIA. Ver. cit. Êxodo 14, 28. p. 122. 682 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. pp. 155-156. 262 indiferente683; aqui estamos em um plano radicalmente outro, onde o que combate o faz justamente por obediência a Deus, em favor da obra deste: é a obediência e a paixão que o movem, não a compreensão e a paz de espírito. No trecho acima transcrito da História Eclesiástica se pode ver um Deus triunfalista e imperial, pouco afim ao Jesus de Nazaré descrito em alguns trechos dos evangelhos canônicos como compassivo, amável com as crianças, com suas crateras de vinho, pássaros, lírios do campo e lágrimas de sangue; não lhe basta resistir o mal com o bem, oferecer a outra face, deixar-se entregar como vítima inocente: é necessário brandir a espada contra o ímpio, feri-lo, vencê-lo, proteger os seus pela força e pelo combate exaltar o Seu Nome. Para Karen Armstrong, este trecho acima transcrito seria mais um exemplo confirmatório de que “a sangrenta história do Êxodo continuaria inspirando perigosos conceitos do divino e uma teologia vingativa.”684 Segundo esta autora, o mito do Povo Eleito e da escolha divina, que um determinado ramo do movimento cristão assumiu ao considerar-se o legítimo herdeiro da história e da tradição de Israel – ver a este respeito a História Eclesiástica de Eusébio, Livro I : 2-4 e 6 (pp. 16-30), Livro II : 6 (pp. 53-54), 23 (pp. 69-72) e 26 (p. 74), e Livro III : 5-8 (pp. 80-88) – e que seria incorporado pela ortodoxia imperial em sua confissão de que há um só Igreja, identificada tanto com uma comunidade espiritual como com uma instituição sociopolítica, “tem inspirado teologias tacanhas, tribais, desde a época do deuteronomista até nossos dias, em que convivemos com o nefasto 683 KRISHNA. Bhagavad Gita : A Sublime Canção. (Trad. do original, introd. e notas de Huberto Rohden). São Paulo: Martin Claret, 2005. c. 2, vs. 1.11-18. pp. 20-22: “(...) Neste momento decisivo, ó Arjuna, por que te entregas a semelhante desânimo, indigno de um Ariano, e que te fechas os céus? (...) Andas triste por algo que a tristeza não merece – e tuas palavras carecem de sabedoria. O sábio, porém, não se entristece com nada, nem por causa dos mortos, nem por causa dos vivos. Nunca houve tempo em que eu não existisse, nem tu, nem algum desses príncipes – nem jamais haverá tempo em que algum de nós deixe de existir em seu Ser real. O verdadeiro Ser vive sempre. Assim como a alma incorporada experimenta a infância, maturidade e velhice dentro do mesmo corpo, assim passa também de corpo a corpo – sabem os iluminados e não se entristecem. Quando os sentidos estão identificados com objetos sensórios, experimentam sensações de calor e frio, de prazer e de sofrimento – essas coisas vêm e vão; são temporárias por sua própria natureza. Suporta-as com paciência! Mas quem permanece sereno e imperturbável no meio de prazer e sofrimento, somente esse é que atinge a imortalidade. O que é irreal não existe, e o que é real nunca deixa de existir. Os videntes da Verdade compreendem a íntima natureza tanto disto quanto daquilo, a diferença entre o Ser e o parecer. Compreende como certo, ó Arjuna, que indestrutível é aquilo que permeia o Universo todo; ninguém pode destruir o que é imperecível, a Realidade. Perecíveis são os corpos, esses templos do espírito – eterna, indestrutível, infinita é a alma que neles habita. Por isso, ó Arjuna, luta!” 684 K. ARMSTRONG. Op. cit. p. 35. 263 fundamentalismo de judeus, cristãos e muçulmanos.”685 Imaginamos que seja também algo tão relevante, e bem mais específico, que isso. Consideremos a tão particular questão das raízes ideológicas da autocracia de tipo bizantino. A conversão de Constantino, ou pelo menos o seu crescente interesse na fé cristã “além de obrigar a Igreja a unificar-se mais, abriu um problema temível: o que seria um Estado cristão?”686 Pregando um mundo ordenado desde fora e lidando com suas problemáticas doutrinárias baseada em um mecanismo que vincula de forma estreita tradição, eficácia e verdade, a facção cristã que viria a triunfar demandou a intervenção do Imperador como árbitro e conciliador em suas intermináveis querelas e assumiu a sua pessoa e função como símbolo na terra da ordem estabelecida por Deus, invocando em seu favor, devidamente relidos à luz da peculiar situação sociopolítica do mundo greco-latino da primeira metade do século IV, “elementos judaico-cristãos (Velho e Novo Testamento), helenísticos e romanos, embora numa dosagem muito difícil de ser estabelecida categoricamente quanto à efetiva contribuição de cada um deles.”687 A emanação divina do poder era um pressuposto incontestável dos modelos sociopolíticos da Mesopotâmia, da Pérsia, do Egito (onde o faraó era o próprio Deus), do antigo Israel, da Índia, da China, das grandes ilhas do Pacífico (entre as quais o Japão, Bali, Java e as do Havaí), dos Astecas e dos Incas, assim como nas arcaicas culturas da Grécia (o ânax) e de Roma (o rex). A introdução nestas duas últimas – e, mais tarde, em Bizâncio – de um fator jurídico que iria desenvolver-se grandemente, até tomar a forma de um aparato legal gigantesco de organização do mundo social – tanto a nível imperial (direito público e privado) quanto eclesiástico (direto canônico) –, entretanto, ocasionaria reflexões contestatórias de tal ordem, que levariam a concepções do poder como algo cheio de matizes e diferenciado em si mesmo, condições sine qua non de um sistema coletivo e constitucionalmente alicerçado de gestão do Estado. Buscando resolver seus problemas de relacionamento interno e externo e precisar qual o seu estatuto dentro do mundo cultural greco-latino, a Grande Igreja conferiu ao Imperador o 685 Id. Op. cit. p. cit. 686 Louis DUMONT. “Do Indivíduo-fora-do-Mundo ao Indivíduo-no-Mundo”. In: O individualismo : Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. (Trad. Álvaro Cabral). Rio de Janeiro. p. 53. 687 C. TAVEIRA. Op. cit. p. 65. 264 papel de instrumento e imagem de Deus, ao passo que, outra face de uma mesma moeda, não se pode negar que “(...) A adoção do Cristianismo [por Constantino] forneceu um instrumento novo e eficaz de aperfeiçoamento [no mundo cultural greco-latino] da concepção da origem divina do poder monárquico.”688 De fato, o ramo do movimento de Jesus privilegiado pelos soberanos “agiu ativamente na legitimação do poder imperial [romano-oriental ou bizantino] nos mecanismos de titulatura e também naqueles do cerimonial da coroação, das festas do calendário litúrgico e, após 1204, da unção.”689 688 Id. Op. cit. p. 71. 689 Ibid. Op. cit. p. 64. 265 V. “Não há história inocente. (...) Temos a história que merecemos.” THÉODORE TARCZYLO, “Da erudição lasciva à história das mentalidades” “O destino guia os predispostos e arrasta os que lhe resistem” SÊNECA, Epistulæ Morales (107,11) Como vimos acima, é entre os anos de 313 e 380 que devemos situar os dramas históricos que possibilitaram que a Igreja Cristã se acomodasse como uma instância jurídico-institucional legítima no interior do cosmos político romano, um Imperium in Imperium. No autêntico labirinto intelectual do mundo greco-latino deste período, os que escreveram a história, salvo exceções, produziram concepções universalistas que procuraram estabelecer algum tipo de coerência entre os diversos acontecimentos que recolhiam e testemunhavam, e, “(...) No caso [da maioria] dos autores cristãos, (...) [esta] ordenação do mundo [se deu] através da conjugação da monarquia divina com a monarquia terrestre.”690 Durante os primeiros três séculos do movimento cristão, os pensadores a ele filiado “introduziram não apenas um novo tipo de escrito portador de uma mensagem finalista e engajadas numa literatura de combate a posições contrárias, seja de autores pagãos que os perseguiram, seja em meio a suas muitas subdivisões, mas introduziram também, com Eusébio, o novo gênero da história eclesiástica enquanto história da salvação da humanidade”.691 Isto considerado, é significativo relembrar e deixar em evidência uma vez mais que no escrito realmente fundador desta nova vertente historiográfica, o bispo de Cesaréia afirmou uma Igreja, apresentando quase a contragosto as várias e diferentes interpretações da mensagem de Jesus de Nazaré que interagiam e se entrechocavam no período em que ele se detém.692 Mesmo tendo vivido e 690 Ibid. Op. cit. p. 131. 691 Ibid. Op. Cit. pp. 131-132. 692 Cf. Ibid. Op. cit. p. 140. E isto também no nível das fontes e documentos citados em sua obra. Argimiro Velasco-Delgado afirma “(...) Es de notar que Eusebio nunca utilizó a sabiendas como fuente un escrito apócrifo, herético, pagano o judío, si dicho escrito no coincidía con las fuentes de la tradición cristiana ortodoxa. Porque piensa que coinciden con ellas, cita a Filón y a Josefo. Lo 266 registrado as divisões políticas dos romanos, referiu-se sempre a um Império, e também selecionou o Constantino pro-christianos, isolando-o do representante típico do sincretismo religioso do mundo mediterrânico dos século III e início do século IV d.C., afeito ao henoteísmo pagão, ou seja, ao culto de um deus superior que preside um colegiado de deuses inferiores, que outras fontes contemporâneas nos indicam que tenha sido, e apresentou-o como uma personagem unívoca, sempre o mesmo “amado por Deus” em todos os momentos.693 Estas omissões são sintomáticas e indicam para o olhar experimentado do crítico a trilha de “estranhas e vastas praias de silêncio.”694 Com estes brancos podemos desenhar uma “geografia do esquecido”695 que nos permita compreender em sua grandeza e funcionalidade particular aquilo que está registrado nos caracteres do erudito tratado de Eusébio. O cristianismo constantiniano oscilou entre o trinitarismo e o arianismo neste período, mas aferrou-se ao projeto de aliar uma Igreja a um Estado e, para fazê-lo, ao de retomar o patrimônio conceitual político helênico da basileia, ainda que em uma chave muito distinta. A teoria platônica da necessidade dos Guardiães da República se uniu o imperativo apostólico da submissão ao Estado, testemunhado antes de todos os outros pelos apóstolos Pedro e Paulo e, segundo o Evangelho de João, pelo próprio Jesus de Nazaré em seu diálogo com o procurador romano na Judéia que o viria a condenar à morte. Ao ser fundada não mismo ocurre cuando apela a los historiadores ‘de fuera’ o paganos (…) ni siquiera al tratar la historia de los personajes o de los movimientos heréticos acude a los autores heréticos directamente, sino que utiliza los escritos de los que han combatido la herejía. Así, todo el material histórico que nos ofrece sobre el montanismo lo toma de los anti-montanistas Cayo, Apolinar de Hierápolis, Milcíades, Apolonio, Serapión y el Anónimo. Y para informarnos del gnosticismo acude a Ireneo, a Dionisio de Alejandría y a un tal de Agripa Castor. En general, Ireneo, Serapión, Clemente y Orígenes son los que le informan sobre las herejías.” A. VELASCO-DELGADO. Op. cit. p. 58*. 693 Cf. C. TAVEIRA. Op. cit. p. cit. A este respeito é significativo lembrar que na História Eclesiástica Eusébio de Cesaréia surpreendentemente não trata em momento algum da conversão de Constantino ao cristianismo, coisa sobre a qual o texto da Vida de Constantino dá uma grande ênfase, situando-a antes da vitória sobre Maxêncio e, em verdade, como imediata causa humana desta. No trecho acima transcrito em que o bispo historiador trata deste episódio na primeira obra (História Eclesiástica IV : 9), ele retrata o Imperador já como um cristão, que invoca antes da batalha “como aliado ao Deus do céu e seu Verbo, e ainda ao próprio Salvador de todos, Jesus Cristo” (IV : 9, 2). Cf. Id. Op. cit. pp. 196-197. 694 Jacques REVEL, Michel de CERTAU e Dominique JULIA. “A beleza do morto: o conceito de ‘cultura popular’.” In: J. REVEL. A invenção da sociedade. (Trad. Vanda Anastácio). Rio de Jsneiro / Lisboa: Bertrand / DIFEL, 1990. p. 67. 695 Id. Op. cit. p. cit. 267 no Plano das Idéias, mas na própria disposição da Inteligência Infinita que governa todas as coisas por sua Providência, a basileia adquire um novo conteúdo sob a pressão do entendimento cristão acerca do que precisamente seria. A pietas e a fides de Enéas são também re-significadas por serem tomadas à uma nova luz, e a memória romana adquire um novo sentido na medida em que ser cidadão do Império passou a significar ser partícipe não só de uma comunidade política, mas de uma comunidade eclesial que transcende as fronteiras da vida e da morte, ser não só súdito da majestade terrena, herdeira de Augusto, mas também do lugartenente de Deus entre os homens.696 De forma específica, Eusébio de Cesaréia é o mais sereno urdidor destas apropriações e re-significações: “(...) na relação entre o Pai e o Logos (...) descobre a imagem da relação entre o Logos-Cristo e o imperador, onde vê um laço entre a obra de Cristo, que prepara o Reino definitivo para o Pai, e a ação do imperador, que contribui para a expansão do Reino de Cristo na terra. O bispo de Cesaréia releva ainda que o Império romano realizou, desde sua fundação, uma função providencial em favor do cristianismo; realça também a continuidade entre Augusto e Constantino (...). Enfim, Eusébio está convencido de que o Império romano-cristão é ao mesmo tempo imagem da sociedade cristã celeste e imagem da Igreja peregrina, ou, por outra, que o Império, tornado reino de Cristo sobre a terra, e o cristianismo, 697 tornado de fato Igreja universal, dão azo a uma unidade substancial.” Levando-se em conta não apenas os interesses de Constantino, mas a aceitação e a demanda de um certo cristianismo de sua intervenção intra e pro ecclesiam, condições que antecedem a esta tanto na cronologia quanto a nível das motivações e princípios ideológicos da ação, o que estava em jogo era uma maneira de evitar a ruptura interna pelo apelo a uma instância de poder externa, uma manobra política análoga àquele artifício discursivo pelo qual Eusébio de Cesaréia invocava Flávio Josefo e miríades de outros autores cristãos e nãocristãos para alicerçar em uma autoridade que não a sua as opiniões que na narrativa que redigia expunha como corretas. Pensando o mais desapaixonadamente possível, podemos afirmar que se tratava de fazer da forma mais segura e rápida possível a transformação de minoria em maioria, de crença 696 Cf. G. LAFONT. Op. cit p. cit. Fernanda da S. M. SOARES. Mosaicos em procissão : A política de imagens de Justiniano em Ravena (527 – 565 a.D.). 2006. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Brasília, Brasília (BR). p. 3. 697 Paolo SINISCALCO. “Igreja e Império”. In: VV. AA. Op. cit. pp. 703-704. 268 quando muito permitida a organismo estatal, de fragmentos unidos apenas pelos instáveis laços do afeto e da comum profissão de fé em um esplendoroso edifício coerente ao qual se deveria olhar e obedecer. É verdade maior parte do trabalho havia sido feita gerações antes pelos combates discursivos que os Padres Apologistas travaram com o objetivo não apenas de desmascarar, mas de ferir fundo, decisivamente, os seus mais notáveis inimigos, mas em meados do século IV as coisas já haviam tomado proporções outras com o empenho dos recursos, da violência e da autoridade imperial em incessante apoio a uma determinada facção cristã.698 As preferências dos sucessores de Constantino entre um ou outro cristianismo iriam variar e gerar toda ordem de instabilidades, mas não deixaram de estar bem calcadas na convicção de que se uma facção estava certa, as demais estavam necessariamente emaranhadas no erro, no pecado, na desobediência, na indisciplina e em todas as conseqüências disto tudo, constituindo, portanto, ameaças potenciais ao bom andamento dos assuntos imperiais. Como escreveu o antropólogo Louis Dumont, “(...) Voluntariamente ou não, a Igreja estava colocada frente a frente com o mundo. (...) O Estado tinha, em suma, dado um passo para fora do mundo, na direção da Igreja, mas, ao mesmo tempo, a Igreja tornou-se mais mundana do que fora até aí. (...) Os conflitos não estavam excluídos, mas seriam doravante 699 internos, tanto para a Igreja quanto para o império.” Assumindo as questões de fé como problemas do Estado, e dada a simetria já ressaltada entre o Império e a facção do movimento cristão que o cativou, devese observar que, convergindo em tantas coisas, “(...) Os atritos que se produziram em seguida entre o imperador e a Igreja (...) envolveram principalmente pontos de doutrina (...) [porque] os imperadores, ciosos da unidade política, insistiam para que fossem proclamadas concessões mútuas, [enquanto] por seu lado a Igreja, seus concílios ecumênicos e [mais tarde] especialmente o Papa queriam definir a doutrina como fundamento da unidade ortodoxa e não viam com bons 698 Cf. M. P. FIORILLO. Op. cit. ps. 95-97 e 179-180. 699 L. DUMONT. Op. cit. p. 53. 269 olhos a intrusão de um príncipe nos domínios [que criam restritos à jurisdição] da autoridade eclesiástica.”700 Esta dificuldade entre aqueles prelados e intelectuais cristãos que afirmariam, como o Papa Gelásio, que as autoridades civis deveriam “curvar uma cabeça submissa perante os ministros das coisas divinas”701 e os Imperadores que, preocupados com a formação de um consenso em torno de sua autoridade e com a consolidação da ideologia que passou a ser o mais importante princípio de sustentação de seu poder, incitariam opiniões teológicas moderadas capazes de congregar diversos partidos inicialmente divergentes, constitui uma história ulterior para a qual apenas apontamos, já que está para além do âmbito de nosso presente trabalho. O que pretendemos demonstrar mais do que qualquer outra coisa é que se não fosse o esforço e a atuação mais ou menos explícita de pensadores e eclesiásticos como Eusébio de Cesaréia, motivado talvez pela previdência política apenas tanto quanto – ou muito menos que – por suas sinceras compreensões da mensagem de Jesus de Nazaré, nunca se poderia ter desenvolvido o cristianismo como uma religião imperial, com todas as implicações a que isto levou: a definição da crença dentro de um preciso conjunto de categorias jurídico-normativas; a mundanização do conceito de Reino de Deus; a estruturação de uma hierarquia férrea que concentra o poder eclesial, media o acesso ao mistério, organiza a devoção e assume o ônus da renúncia ao pecado e do testemunho da santidade; o anseio por uniformidade e regulamentação minuciosa; a crítica ao radicalismo que constrange ou subverte a ordem estabelecida; o afastamento da utopia para o além-túmulo; o elogio do conformismo e da erudição tomada como critério imparcial; a estruturação e manutenção de uma ortodoxia. Não se tratava apenas de fazer a peruca teológica do Imperador, mas de definir a identidade do movimento cristão frente à assustadora circunstância de um César que se quer fazer seguidor daquele que foi crucificado sob a autoridade de um outro César. No âmbito desta verdadeira batalha travada para se definir o que é o cristianismo – questão que é ao mesmo 700 Id. Op. cit. p. cit. Segundo Paolo Siniscalco, na auto-afirmação da Igreja do Ocidente contra o poder imperial – tema que irá conflituosa se fazer presente em quase toda a Idade Média e que irá dar origem à teoria dita “dos dois poderes” – encontram-se tanto “a influência de uma forma de judaísmo apocalíptico que opõe o rei ao profeta” como a viva lembrança “da crítica senatorial pagã ao culto do imperador”. P. SINISCALCO. Op. cit. p. 704. 701 L. DUMONT. Op. cit. p. 55. 270 tempo de identidade, de projeto, de incorporação e de exclusão – o relato histórico não foi nunca inocente (ou é). A análise dos conteúdos e delimitações da História Eclesiástica mostra que “nenhuma delas é indiferente, [já] que qualquer organização pressupõe uma repressão.”702 Humana, demasiado humana, esta obra traz, impregnada de estruturantes juízos de valores, uma visão do que foi o passado e do que deve ser o presente e o futuro, de como Deus atua na História e o que deve o fiel esperar Dele, e ainda que não se possa ignorar que um ato escrito não pode “pretender seriamente fundar um novo tipo de relação”703, suas páginas inspiraram e continuar a inspirar “el terror de lo que es muy antiguo y nos obligan a sentir el incalculable peso del Tiempo.”704 702 J. REVEL, M. CERTEAU e D. JULIA. Op. cit. p. 75. 703 Id. Op. cit. p. cit. 704 Jorge Luis BORGES. “Bhagavad-Gita, Poema de Gilgamesh”. In: Biblioteca personal (prólogos). Madri: Alianza, 1998. p. 101. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Rubem. Filosofia da ciência : Introdução ao jogo e suas regras. (11ª ed.). São Paulo: Loyola, 2006 [2000]. 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