Estudos cognitivos
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Estudos cognitivos
Estudos Cognitivos: Mapeando Tendências*1 Margarete Axt2 Buscando um fio condutor Questões relacionadas aos conteúdos, estrutura e funcionamento da mente, embora antigas, permaneceram até pouco tempo restritas ao pensamento filosófico. É, principalmente, neste século que tem ocorrido um crescente deslizamento dessas preocupações para o campo científico, de tal modo que se pode falar hoje em uma ciência cognitiva: são altamente contemporâneas e centrais à investigação científica sobre a mente cognitiva, indagações (antes essencialmente filosóficas) do tipo: como o ser humano é capaz de ter conhecimento? de consciência? Como é capaz de representar? de significar? Como é capaz de memória? de linguagem? de comunicação? Como sabe o que sabe e como sabe que sabe? Esta área dedicada à cognição tem-se mostrado extremamente produtiva e mapeá-Ia apresenta-se como uma tarefa complexa. Há diferentes formas de abordagem, como a cronológica, por exemplo, ou a voltada para a identificação dos fundamentos filosóficos das várias correntes, confrontando-as entre si. De acordo com uma abordagem cronológica, faríamos um inventário desde o final do século passado e o início deste século, quando a psicologia começou a se constituir como ciência, a partir principalmente da psicologia experimental e introspectiva de Wundt. Poderíamos mostrar como, em razão dos incontáveis novos problemas que iam sendo levantados, seguiu-se um número respeitável de estudos que foram ampliando o campo de observação da psicologia: psicologia animal, da criança, do adulto, da doença mental, etc.; ou poderíamos mostrar, também, como os diversos estudos foram demarcando posições de grupos segundo os * Originalmente publicado como: AXT, Margarete. Estudos Cognitivos: Mapeando Tendências. In: SILVA, Dinorah Fraga da, VIEIRA, Renata (orgs.). Ciências Cognitivas em Semiótica e Comunicação. São Leopoldo, Editora da UNISINOS, 1999. p. 67-92. 1 Texto que serviu de base para a palestra proferida no Encontro Estudos Cognitivos em Semiótica e Comunicação, promovido em agosto de 1998 pelo mestrado em Semiótica do Centro de Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio do Sinos (UNISINOS), RS. 2 Professora da Faculdade de Educação/UFRGS, com atuação no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU), no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) e no Curso de PósGraduação em Informática e Educação (CPGIE), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); pesquisadora do Laboratório de Estudos Cognitivos (LEC/IPSIUFRGS) e do Laboratório de Estudos e, Linguagem, Interação e Cognição (LELIC/FACED-UFGRS). E-mail: [email protected] 67 aspectos focalizados: a psicologia dos conteúdos mentais na Alemanha, da psicopatologia na França, das diferenças individuais e da hereditariedade na Inglaterra, da neurofisiologia na Rússia, da psicanálise na Áustria, do comportamento nos Estados Unidos, etc.; ou poderíamos identificar, ainda, como foram sendo criadas linhas teóricometodológicas diferenciadas de investigação, caracterizando uma diversidade razoável de escolas, como a do condutismo com todas as suas variantes, a da Gestalt, a da psicologia e epistemologia genéticas, a dos estudos psicanalíticos e da personalidade, as psicologias voltadas para o social-institucional... Já na segunda metade do século, diríamos que se daria o florescimento em especial da ciência cognitiva, abrindo fortemente para os estudos da mente-cérebro e da inteligência artificial, bem como reconheceríamos o avanço de conceitos como os da auto-organização, auto-regulação e ecologia cognitiva. Se entendêssemos este mapeamento a partir dos seus fundamentos mais filosóficos nos preocuparíamos principalmente em diferenciar as muitas correntes pela sua inserção em três paradigmas fundantes, sendo que dois deles – o empiricista e o inatista ou apriorista remontam à antigüidade grega com Aristóteles e Platão, embora sejam, desde então, nestes 25 séculos de história, continuamente retomados de diferentes maneiras por inúmeros pensadores - entre eles Locke e a tabula rasa, Leibniz e as mônadas, Kant e a razão pura ou a razão prática, e já neste século, inúmeros estruturalistas, cujas concepções organizam-se num continuum entre o inatismo / apriorismo e o empiricismo (dentre outros, por exemplo, a lingüística estruturalista de Saussure, a Gestalt de Köhler e Wertheimer, e, mais adiante, a psicanálise de Lacan, a Análise do Discurso de Pêcheux, a lingüística gerativa de Chomsky, a semântica interpretativa de Fodor); o paradigma da auto-organização - que emerge, particularmente neste século, tanto associado aos modelos propostos por biólogos (Bertalanffy, Piaget, Waddington, e mais recentemente, Maturana e Varela...), quanto aos modelos cibernéticos, físico-químicos e matemáticos (Wiener, Ashby, Shannon, Prigogine...) - começa a despontar com destaque, em especial a partir da década de 50. Mas, dedicar-se ao estudo da mente e dos seus processos de produção de significações e de conhecimento requer, também, lidar com alguns limites disciplinares, no sentido de definir as fronteiras deste campo de investigação – fronteiras que são sempre móveis e provisórias, necessitando ser continuamente reconfiguradas. O que se percebe é que os múltiplos movimentos de configuração destes limites têm continuamente se expressado 68 em tendências: tendências traduzidas em modelos que ajudam a pensar o funcionamento da mente e suas produções, segundo o conjunto de expectativas de cada época sobre o que seja o âmbito da psicologia cognitiva, o seu objeto de pesquisa, e as respostas que poderá dar às clássicas indagações sobre a consciência, o conhecimento e as relações entre organismo biológico, sujeito individual e coletividade social-cultural. A mente interdisciplinar: um link A partir da segunda metade deste século, em especial, parece que vai crescendo a certeza de que, mesmo que se estude a mente cognitiva em si, no interior de seus limites mais estritos, não se pode deixar de considerar os avanços nas disciplinas com as quais faz fronteira. Assim, já não podem ser desconsiderados, por exemplo, os estudos relativos à emoção e à vontade, e os seus entrelaçamentos possíveis e prováveis com a cognição. É Damásio (1996, p.lS), da neurobiologia, quem diz: Os sentimentos, juntamente com as emoções, que os originam (...) são precisamente tão cognitivos como qualquer outra percepção. São o resultado de uma curiosa organização fisiológica que transformou o cérebro no público cativo das atividades teatrais do corpo. J. Piaget (1970), um dos grandes estudiosos da cognição, diz que a toda conduta corresponde sempre uma estrutura, que é cognitiva, e um funcionamento regulatório, que se traduz por um investimento afetivo-energético; e que é a afetividade que faz funcionar as estruturas, acelerando ou retardando a sua formação.3 Saindo, no entanto, desses limites mais estritos da mente, a discussão relacionada à cognição, à construção do conhecimento, tem que se sustentar levando em conta seus dois extremos: no seu extremo mais exterior, precisa ser pensada a produção da mente na confluência com a cultura (entre o coletivo e o individual); e no extremo mais interno, precisa ser considerada a produção da mente na confluência com o organismo biológico, instalando-se aí a discussão relativa à interdependência mente-cérebro e de como o 3 Uma grande quantidade de estudos específicos na área da psicopatoIogia e da psicopedagogia, dos quais se podem, entre outros próximos a nós, citar, Henrique DeI Nero (Brasil), Leandro de Lajonquiere (Brasil), Alicia Fernandes e Sara Paim (Argentina), também procuram dar conta dessas intersecções. 69 processamento de sinais elétricos nas células cerebrais podem gerar formas onde vão encaixar-se as categorias mentais4. Entre dois mundos de naturezas diferentes, a mente funciona como um link, ou um elo, ligando entre si a organização bio-físico-química e a organização socioculturalinstitucional5: a mente - e a consciência,seu ponto máximo - são um misto de cérebro e de cultura (...) Espraiada pelo mundo, essa consciência constitui a cultura, que (por sua vez) retroage constantemente sobre cada um de nós (DeI Nero, op. cit., p.12). De natureza extremamente complexa, não há, ainda hoje, estudos definitivos sobre o que seja a mente; estudiosos das relações mente-cérebro-cultura, como DeI Nero, por exemplo, consideram, cada vez mais, que ela derive de uma confluência de fatores: A mente está situada na encruzilhada entre a natureza que selecionou o cérebro humano, a linguagem que permitiu a comunicação,a história pessoal que moldou o rosto de cada um e a história coletiva que nos dá padrões médios de ação e juízo (id. lb., p.21). A esta altura, pode-se perguntar, então, a cargo de quem estão os estudos da mente e da produção cognitiva? Pode-se pensar que os estudos que refletem sobre o campo específico das funções, das estruturações e dos processos cognitivos que levam à construção do conhecimento constituem um eixo agenciador e articulador de, pelo menos, três ou quatro grandes áreas do conhecimento: (a) as ciências humanas e as ciências sociais, que refletem sobre os produtos cognitivos da mente (linguagem, memória, conhecimento, etc., em relação, ou não, com outros produtos mentais como o psiquismo, etc...); e que refletem também sobre as relações interindividuais entre sujeitos cognoscentes, bem como sobre as relações de cada um com o coletivo social-culturalinstitucional no interior do campo mais abrangente da subjetividade de que a cognição é 4 Henrique S. DeI Nero (1997 5 Luis Claudio M. Figueiredo dá conta de que Wundt, no início do século, pioneiro da psicologia como ciência, chamou-a, já então, de "ciência intermediária". Para Wundt, de acordo com o referido autor, a psicologia não somente se inseria entre outras, mas essencialmente se constituía no entre outras ciências, nas suas relações com as ciências biológicas e, ao mesmo tempo, com a antropologia, linguagem etc. (Figueiredo, 1996). 70 uma parte6; (b) as ciências biológicas, aos cuidados de que se encontra o estudo do cérebro e do sistema nervoso como partes do organismo humano responsáveis, no seu conjunto, pela produção da mente7; (c) e as ciências exatas, pelos estudos relativos aos componentes físico-químicos do sistema nervoso no cérebro, responsáveis por carregar e coordenar a informação, integrá-Ia de modo a permitir a sua interpretação pelas funções mentais8; além dos estudos matemáticos e de engenharia e informática envolvidos com a Inteligência Artificial e a construção de protótipos e a formalização dos modelos para pensar a mente humana. Os modelos da mente: objetos para se pensar com Mas quais são atualmente as grandes tendências dos programas de pesquisa cognitiva? Espremidos, como referido, entre o limite mais interno da mente - das suas relações com o cérebro - e o seu limite mais exterior - das relações com a cultura e a subjetividade -, os cognitivistas enfrentam, no seu processo investigativo, duas questões, cujas respostas, de um ou outro modo, são cruciais para a saúde dos seus respectivos programas de pesquisa: de um lado, o que acontece no momento crítico de transformação da atividade cerebral em mental? Ou, como sinais elétricos se transformam em símbolos? De outro lado, o que acontece no momento crítico de transformação dos objetos da cultura em conhecimento do sujeito cognoscente, ou inversamente, o que ocorre no momento crítico em que o conhecimento privado se torna de domínio coletivo? Dos modelos contemporâneos para pensar estas respostas, alguns têm-se apresentado como sendo diretamente tributários da nova ciência da complexidade, antevista e proposta pelo biólogo Ludwig von Bertalanffy, já desde o final da década de 209, a partir do conceito, central nos dias de hoje, de sistemas abertos. À época, este cientista questionava, com relação aos sistemas vivos, a aplicação da segunda lei da termodinâmica de acordo com a qual os sistemas físicos isolados se encaminharão espontaneamente para a desordem crescente ou entropia, ao final do que o mundo 6 Ver Axt (1998); Axt & Maraschin (pre-print); Maraschin & Axt (aceito para publicação), para discussão desse argumento. 7 Damásio, op.cit 8 DeI Nero, op.cit 9 Capra (1996) 71 deverá parar10. Embora não pudesse resolver formalmente a contradição naquele momento (tal resolução só viria na década de 70 com TIya Prigogine11 e a sua teoria das estruturas dissipativas), o biólogo defendia a idéia de que os organismos vivos desdobram-se no sentido de uma ordem e de uma complexidade crescentes, constituindo sistemas abertos, auto-reguladores, que se alimentam continuamente de um fluxo de matéria e de energia extraídas de seu ambiente, ao mesmo tempo em que deixam, neste, matéria e energia do organismo. Inspirada nas idéias de Bertalanffy e nas tentativas decorrentes de desenvolver máquinas autodirigiveis e auto-reguladoras, a década de 50 viu a cibernética12 do matemático Norman Wiener florescer para tornar-se um poderoso movimento intelectual, cuja preocupação maior eram os padrões de comunicação e especialmente os laços fechados e as redes13. Nesta época, também, Claude Shannon elaborava a sua teoria da informação, agregando à fórmula de Bertalanffy, sobre as trocas do organismo com o meio ambiente, além dos conceitos de matéria e de energia, também o conceito de informação: A natureza tem que ser interpretada como matéria, energia e informação14. Surgiu assim, por analogia às mensagens dos genes, a idéia de informação como agente ativo, capaz de "informar" o mundo material: a informação passou a se expressar como um princípio universal, operante no mundo, dando forma ao informe, especificando o caráter peculiar das formas vivas e ajudando a determinar, por meio de códigos especiais, os modelos do pensamento humano15. A informação, que é uma medida da novidade, aumenta em lugar de diminuir no transcurso dos anos. (Campbell, 1992, p.112). De posse de uma ferramenta para pensar os processos cognitivos, surge, na esteira dos cálculos complexos, das máquinas cibernéticas e da teoria da informação, a então incipiente ciência cognitiva. E a inteligência artificial e a engenharia de protótipos (a máquina de Turing, etc.) que haviam sido idealizadas, inicialmente, com o objetivo de 10 Cf. Capra (1996); Campbell (1992). 11 Cf. Capra (19%); Campbell (1992). 12 Palavra derivada do grego para significar a ciência do controle e da comunicação no animal e na máquina (Capra, 1996). 13 Id., ib. Laços fechados constituem aqueles movimentos que levam à realimentação com reforço ou com correção. 14 Cf. consta em Campbell (1992). O grifo é meu. 15 Id.,ib. 72 simular o funcionamento da mente e tendo-a como modelo para que se pudesse entendêIa melhor, logo passaram elas a fornecer os modelos a partir dos quais era possível pensar a mente cognitiva e assuas relações com o cérebro. Sucederam-se, a essa primeira fase, novos modelos da mente calcados nos avanços concomitantes da Inteligência Artificial e da Neurociência, focalizando, preferencialmente, a conexão mentecérebro. Vejamos alguns dos grandes programas da pesquisa da mente cognitiva na atualidade, e os modelos explicativos que adotam, para responderem às perguntas formuladas de como emergem os símbolos na mente e de como o indivíduo se apropria da cultura. O modelo lógico do processamento simbólico O modelo da Inteligência Artificial Simbólica (IAS) busca o seu delineamento na lógica de mesmo nome; calcado no princípio discreto-digital (sim/não; aberto/fechado) propõe um processamento com base em regras (relações entre símbolos), segundo a teoria da informação e a concepção das máquinas Turing de von Neumann. Esse modelo, inspirado na cibernética da primeira fase16, tem fornecido elementos para pensar a lingüística gerativa de Chomsky17 e a semântica de Fodor18 até os dias de hoje. As regras operariam em dois planos distintos na mente, esta constituindo o software em relação à sua contraparte hard, o cérebro: na mente, o primeiro nível seria o da computação, tendo em vista a delimitação do problema a ser resolvido (nível propriamente sintático19, ou semântico, não-acessível à consciência); o segundo nível seria o do algoritmo ou das regras de manipulação simbólica necessárias para construir a cadeia de inferências que resolve o problema (o nível interpretativo20). Segundo Pozo (1998), o maior problema – metodológico - a ser enfrentado por essa abordagem não é explicar o processamento computacional e algorítmico dos componentes estruturais da língua e do significado semântico, mas explicar a origem 16 Uma diferença importante que caracteriza a cibernética da primeira fase é, nas palavras do neurologista Ross Ashby - o seu principal téorico nas décadas de 50 e 60 -, que ela trata de "sistemas que são abertos à energia, mas fechados à informação e ao controle, [são] impermeáveis à informação" (ap. Capra, 1996, p.66), ou seja, o módulo computacional de que trata a lingilistica gerativa seria encapsulado. 17 Cf. Chomsky (1965; 1975; 1981; 1993); Campbell (1992); Pozo (1998). 18 Cf. Fodor (1983); Pozo (1998); Feltes (1998). 19 Na lingüística gerativa, as estruturas P e S. 20 Na linguística gerativa, da interface lógica [FL], ou fonológica [FF]. 73 desses componentes estruturais - os símbolos - e das regras computacionais e de inferência, bem como a origem do "âmbito de convicções" que estaria no nasce douro da intencionalidade21. Agregue-se, ainda, a esta discussão, o problema das relações do sujeito capaz de linguagem, de significação e de comunicação com o grupo social e a cultura: se tudo se dá na interioridade da mente, como é possível que todos aprendam as mesmas regras, os mesmos princípios lingüísticos comuns a todas as línguas e os mesmos primitivos semânticos, origem de toda a significação? E como é possível que todos possam se referir às mesmas coisas22 e de se compreenderem, como podem comunicar-se? E por fim, como uma criança é capaz de aprender tanto estruturas e sistemas tempo?23 Estas questões abrem a porta para concepções inatistas! No contexto de uma política de oposição frontal às teorias da aprendizagem, calcadas no condutismo ou behaviorismo, a lingüística gerativa e a semântica das representações não poderiam recorrer às estratégias de aprendizagem existentes com base na modelagem das condutas, seja por condicionamento E->R, seja por associações. A solução metodológica veio na forma de um pressuposto inatista para os Universais lingüísticos no âmbito da lingüística gerativa; e, no âmbito da teoria representacional da mente, na forma de um projeto de naturalização do intencional (as propriedades intencionais, da referência, seriam causais, embora este fato, o de estar disponível no organismo, não significasse que a intencionalidade fosse causalmente independente da experiência, da 21 Ver nota 13. De! Nero (op. cit.) nos esclarece que tanto a Inteligência Artificial Simbólica (IAS) como a Conexionista (IAC) apostaram na noção de relação entre objetos - símbolos - para desvendar a mente. Na primeira, esta relação se daria mediante regras lógicas e, na segunda, mediante regularidades; mas, diz o autor, nenhuma delas tocou na emergência dos símbolos no cérebro humano, objetos sobre os quais se debruçariam as relações do tipo regras ou regularidades (p.ISO). 22 Feltes (1998) coloca, em relação a esta questão, que Fodor e colaboradores discutem, filosoficamente, a relação linguagem-mundo e que é este o ponto central do projeto atual de Fodor - uma teoria causal da referência. A semântica das representações mentais pretende então considerar que a compreensão do mundo passa pela construção de conceitos (os quais constituem representações ou símbolos mentais de algum tipo; e que a mente é constituída por um sistema de representações, o qual exibe intencionalidade - as representações mentais são sobre o mundo, de alguma maneira carregam informações sobre o mundo, o que é entendido como intencionalidade, aboutness. Está embutida aí a discussão sobre a questão Epônima ou problema da referência; a referência é a "principal relação entre símbolos e o que eles simbolizam, assim como é uma relação estritamente lógica. Ela [a referência] tem uma contraparte psicológica,[que é a capacidade de] referir,que é o contato intencional que o usuário de um símbolo faz por meio de símbolos como que os símbolos simbolizam. Ninguém tem uma boa idéia de como um sistema sob descrição física (computador) ou fisiológica (cérebro) pode fazer tal contato intencional com outros fora do sistema" (Macnamara, 1994,ap. Feltes, 1998). 23 Esta última interrogação resgata para a atualidade o paradoxo de Platão que se interrogava como um ser humano, cuja vida é tão breve, é capaz de saber tanto. 74 ativação do sensorium)24: As teorias de aprendizagem de conceitos pressupõem a disponibilidade da base conceptual de primitivos: elas não a explicam. Se, entretanto, a base primitiva é pressuposta em aprendizagem de conceitos, então não pode ela própria ser aprendida. Se não pode ser aprendida, presumivelmente é inata [...] O que quer que não seja definível deve ser inato (Fodor et alii, 1980, ap. Feltes, 1998. Os grifos são nossos). O modelo conexionista Outra concepção de processamento, por rede neural, inaugura um modelo rival para a mente computacional – o modelo da Inteligência Artificial Conexionista (IAC), em que as regras são substituídas por padrões e regularidades que se constituem por recorrência e freqüência25. Encontrar um padrão significa percorrer um espaço homogêneo que não diz nada, criando nele heterogeneidades aptas a separar o joio do trigo. E tudo isso graças ao ajuste de pesos e à conectividade, capazes de, pelas sucessivas interações e correções, aproximar-se da solução para o problema, normalmente descritível através de funções compostas (Dei Nero, op. cit.. O grifo é nosso). DeI Nero informa que a rede neural é capaz de aprender através de exemplos - ela vai aos poucos analisando o sinal de entrada e encontrando nele um padrão- e que, tendo aprendido, adquire capacidade de generalização que reconhece não apenas a situação típica, como também situações afins (como no caso das caricaturas, por exemplo)26. 24 Cf. Feltes (1998). Esta ressalva permite que se considere, no interior de cada módulo, um processamento de tipo de rede neural, com base em associações: em outras palavras admite um modelo lúbrido composto por rede neural e processamento simbólico; como veremos, a seguir, tal ressalva também parece importante para os estudos em aquisição da linguagem de base gerativista. 25 Cf. DeI Nero, op. cito 26 Observe-se que a capacidade de aprender, considerada inicialmente uma diferença essencial entre lAC e IAS, já não é mais verdade, pois também as arquiteturas simbólicas são agora capazes de aprender (DeI Nero, op.cit.). Segundo o mesmo autor, a grande diferença entre os dois modelos - IAS e IAC - também não reside no processamento digital (a rede neural perfaz tanto o digital quanto o analógico), mas na ausência de programa separado do nível de processamento, bem como na ausência de um processador central que controle os passos da 75 Este modelo é, assim, sensível ao input do ambiente! Nos estudos gerativistas relativos à aquisição da linguagem e da semântica interpretativa, por exemplo, esta característica não só pode ser levada em consideração e, mesmo otimizada, mediante a adoção de um modelo híbrido – uma solução intermediária, em que mecanismos conexionistas e dispositivos de manipulação simbólica trabalhariam lado a lado em um sistema cognitivo harmônico27-, mas contribui para reforçar a necessidade de experiência pela criança no seio da comunidade lingüística, o que funcionaria como um dispositivo para o desencadeamento do processo de aquisição. O modelo mecanicista da competição de MacWhinney (competition model), que favorece o tratamento dos dados da experiência (o input), apóia-se justamente sobre essa adaptabilidade do organismo frente aos dados externos. Como eles próprios afirmam, o conexionismo é particularmente importante para quem estiver interessado numa teoria de base biológica de aprendizagem da língua; mas não apenas a aquisição da linguagem dele se beneficia: também os estudos translinguísticos teriam vantagens com sua aplicação - e isso na medida em que o modelo prevê que o organismo pode adaptar-se à forma variável do input mediante conexões determinadas, em especial por indicadores de validade ou relevância (confiabilidade, disponibilidade e freqüência) e de peso, que funcionariam como detonadores dos princípios e parâmetros no interior da GU (Gramática Universal)28. A maior vantagem de propor um modelo híbrido estaria aparentemente no fato de poder, pelo menos em parte, explicar como surgem o símbolo e as regras de processamento como resultado dos padrões de regularidade derivados das ativações dos nós da rede. Fodor, na teoria representacional da mente, considera este modelo à guisa de explicação para a aprendizagem conceitual, no interior do paradigma inatista; nestes casos, o input, ativando a rede neural, funcionaria como um dispositivo para a ativação e instanciação dos primitivos semânticos, algo como: um sistema conexionista deve fornecer as bases neurológicas para a mente simbólica aparente29. Por outro lado, esta mesma característica de ser sensível ao input, mas agora associada rede e na presença de dados e memórias distribuídos pelas conexões e não estocados em endereços fixos. 27 Plunket (1997). 28 Bates & McWhinney (1988). 29 Pltm.ket, op.cit. 76 à possibilidade de treinamento (o que também é possível no modelo IAC), tem sido explorada pelos empiricistas, pois oferece uma nova explicação para a relação indivíduosociedade e a apropriação da cultura pelo sujeito. Kim Plunket (1997) esclarece-nos, no entanto, que as redes neurais, além de poderem ser concebidas a partir de ambas as perspectivas - inatista e empiricista - também podem, pelo fato de se mostrarem sensíveis à interatividade, ser concebidas desde a ótica dos modelos auto-organizativos.30 Na perspectiva de uma psicologia social voltada para a interatividade, Pierre Lévy (1994) propõe, no seu livro As tecnologias da Inteligência, uma ecologia das idéias ou cognitiva, baseada numa teoria das interfaces: Como na versão conexionista ou neuronal da inteligência, todo o conhecimento reside na articulação dos suportes, na arquitetura da rede, no agenciamento das interfaces. [...] O que é conhecer? Isto coloca em jogo dobras um pouco mais densas [...] redes conectando sem dúvida mais longamente seus trocadores e seus canais... Mas entre o curso do mundo tal como decorre no grande coletivo [...] e os processos cognitivos, não existe nenhuma diferença de natureza, talvez apenas uma fronteira imperceptível e flutuante (p. 184). Num modelo de inspiração cerebralista como o de DeI Nero, esta fronteira imperceptível e flutuante entre mente-cultura supõe necessariamente a dinâmica cerebral numa relação de indissociabilidade com a atividade mental tanto quanto com os processos sociaisculturais, o que nem sempre está posto nos modelos mentais: Assim, o cérebro humano, ao longo de sua história evolutiva (filogênese), foi criando códigos e oscilações que correspondiam ao ambiente e à progressiva estrutura da ação motora e intelectual sobre ele. Esses módulos passaram a representar o meio e as ações possíveis sobre ele. Esse meio, quando social, retroagiu sobre os cérebros, impingindo-lhes normas de redescrição valorada da ação através da linguagem. [...] a progressiva submersão do indivíduo na sociedade e na linguagem faz com que, 30 Id. ib. Segundo observações de DeI Nem (op.cit.), a diferença entre rede neural, num contexto ou de interpretação empiricista, ou de base inatista, de um lado, e de auto-organização, de outro lado, é que a última não contaria, nem com uma supervisão externa (e que, dizemos, promulga o empiricismo), nem com uma norma de organização interna dada previamente (como consideramos seja o caso do inatismo). 77 lentamente, vá aparecendo uma tela onde se vêem apenas gabaritos lingüístico-sociais e simbólicos. [...] Por isso a mente que dentro do cérebro é apenas gabarito de sincronizações parece ao indivíduo gabarito de linguagem e de sociedade. Aí está a articulação entre cérebro, mundo, sociedade e cultura na geração de uma impressão interna que se parece com o mundo, [...] mas que, na base,é apenas oscilação e gabarito virtual através de sincronizações dinâmicas. (p.391-2). Na sua crítica aos modelos de mente e de sua relação com o cérebro, DeI Nero (op.cit., p.179) observa que tais modelos costumam examinar as condições de conexão e de relação entre símbolos. Praticamente não há modelo de como os símbolos emergem no cérebro, senão pelas representações sensório-motoras. Para este autor, questionar a relação destes símbolos (mentais e lingüísticos em especial) com os sinais cerebrais (digitais ou analógicos), advindos de um ou vários neurônios, diz respeito a uma nova classe de modelos: os de cunho fortemente cerebral. Há, dessa maneira, uma complicada noção em jogo quando se pensa tanto nos tipos de objetos que a mente manipula como no tipo de ligações entre esses objetos. A visão da mente como um computador do tipo máquina de Turing supõe que haja símbolos (os objetos) e regras (as relações).A visão da mente como uma rede neural supõe que haja símbolos (os objetos) e regularidades e padrões entre eles (as relações). Duas questões devem ser levantadas ao se pensar na mente e na sua relação com o cérebro: qual a relação das regras e regularidades com o cérebro? Qual a relação dos objetos mentais, por ora entendidos como símbolos, com o cérebro? Este é o ponto fundamental, podendo levar a noção de símbolo a uma crise ou revisão (p.179). Os sistemas dinâmicos e os modelos de auto-organização Segundo DeI Nero (op.cit., p. 181), ambos os modelos anteriores, o de processamento simbólico e o conexionista, permaneceram ainda estritamente mentais, operando a dicotomia mente-cérebro, na medida em que propunham conectar símbolos dinâmicos, 78 mutáveis com o aprendizado e a experiência e submersos na linguagem e na intencionalidade. O autor esclarece que objetos mentais na forma de símbolos apresentam muitos problemas de tradução (logo de conexão) em linguagem cerebral, de modo que tiveram que deixar de ser digitalizados e envoltos pela linguagem, para se tomarem o resultado de padrões de oscilação de neurônios (código de barras, neurônios), enquanto a relação entre tais oscilações passou a ser de sincronização. DeI Nero enfatiza, ainda, que esta nova solução é compatível com os achados acerca da gênese da mente consciente. A partir de agora, então, deixam-se de lado os simulacros (redes neurais artificiais) para observar diretamente o cérebro em ação, através de equipamentos que permitem tanto captar sinais elétricos31 quanto imagens de funcionament032. No lugar da lógica, buscamse a matemática e a física como ferramenta para análise: a teoria do caos, das bifurcações, na teoria qualitativa dos sistemas dinâmicos, vêm em auxílio para encontrar a estrutura sob a aparente desordem de sinais e de padrões caóticos cheios de ruído, permitindo associar objeto e relações a determinadas distribuições de freqüências33. Fundamentalmente, pode-se dizer que há no cérebro oscilações e sincronização. Subindo-se um pouco na hierarquia, encontram-se regularidades em lugar de sincronização. Um pouco mais acima, vêem-se regras no lugar de regularidades. No plano dos símbolos, pelo concurso da linguagem, as oscilações e o sincronismo transmutam-se em intenções, proposições, etc. (id.ib., p.183-4)34. 31 Através de eletroencefalogramas e magnetoencefalogramas, cf. Dei Nero, op. cit. 32 Através de ressonâncias nucleares magnéticas funcionais e de tomografias por emissão de pósitron, id Ib. 33 Id. Ib., p.182. o autor, que vem nos servindo de base na exposição sobre os modelos cerebralistas, considera ainda que, embora inúmeros problemas da mente não sejam resolvidos com tais modelos, eles oferecem, contudo, um paradigma de ligação cérebro-mente; tais modelos, caracterizados pelas assim chamadas dinâmica cerebral clássica e dinâmica cerebral quântica diferem entre si, no sentido de que a primeira se define como um modelo determinista que trata o acaso como sendo sempre provisório, porquanto derivado da nossa ignorância para tratar com todas as possíveis variáveis implicadas no fenômeno (p.187). O autor defende a posição que a teoria dos sistemas dinâmicos, as bifurcações e a noção de caos são compatíveis com uma estrutura de ordem subjacente à aparente desordem. Ao mesmo tempo, esclarece que o segundo modelo - da dinâmica quântica - insere o acaso genuíno no cerne do processo (p. 187). DeI Nero não aceita este segundo ponto de vista, uma vez que, para ele, o acaso genuíno como parte integrante do sistema mental e da consciência implicaria aceitar que não haja determinação para nossos pensamentos e que a vontade não passe de "pulo do acaso" (p.l88). 34 Se DeI Nero propõe, na saída da atividade cerebral, padrões de regularidades dos quais derivam símbolos e regras, Damásio (op.cit.) propõe, de outra parte, imagens - as imagens criariam um sistema representacional a partir do sistema sensório-motor, no espaço-tempo, e a linguagem derivaria dessa capacidade narrativa não-verbal- a linguagem seria uma capacidade narrativa de segunda ordem. 79 Esses novos desenvolvimentos relacionados aos sistemas dinâmicos receberam especial impulso a partir da década de 70, apoiados nos estudos de TIya Prigogine sobre o que ele denominou de estruturas dissipativas, i.e., sistemas complexos físico-químicos, sujeitos a trocas de energia com o meio e distantes de seu ponto de equilíbrio (termodinâmico)35. Tem-se,a partir daí, uma nova forma de explicar os processos de organização de sistemas termo dinamicamente abertos, sujeitos a flutuações de energia e longe do equilíbrio - sejam eles fenômenos físico-químicos ou seres vivos -, e que em razão de perturbações geradas, ou no sistema ou de fora do sistema, acabam por gerar novas formas de organização: auto-organização devido à ausência de agente controlador, seja ele interno ou externo, que as gerem e coordenem36. Também na década de 70 desenvolvem-se os estudos sobre auto-organização (autopoiese) nos seres vivos, de Maturana e Varela, com essencialmente os mesmos pressupostos, mas agora ancorados em um modelo mais propriamente biológico37. DeI Nero (op. cit.) dá conta de que estudos sobre a mente-cérebro utilizando o paradigma da auto-organização, ao lado de noções matemáticas, particularmente a de caos, vêm-se desenvolvendo sob o nome de cinergética. Schnitmane Fuks (1996) sublinham o fato de que a teoria geral dos sistemas e a cibernética provaram ser também atraentes para a psicologia social interessada nas relações entre indivíduos e grupos humanos. Com base nos autores citados, pode-se sugerir que, a partir da década de 80, sob a influência da teoria das estruturas dissipativas e das bifurcações de Ilya Prigogine, bem como da organização biológica autopoiética criadora de novas formas no início da década de 70, o foco da psicologia social, que assentava em pautas de interação,em padrões e em estruturas, começou a ser ampliado para incluir a transversalidade da significação,a semiose social e a generatividade comunicacional na construção de marcos de sentido e práticas, abrindo assim as fronteiras dos sistemas (p. 245). O que isto significa? Significa que podemos falar, pelo menos em três fases da psicologia social ancorada na teoria geral dos sistemas: os primeiros modelos de auto-organização e 35 Cf. DeI Nero, op. cit.; Capra, op.cit.; Campbell, op. Cito Piaget, 1995. 36 Id.ib. 37 Maturana e Varela (1995). 80 auto-regulação dos sistemas, oriundos da biologia desde Bertalanffy, orientavam-se no sentido de priorizar a unidade sistêmica e a sua identidade mediante processos dinâmicos e complexos (conforme adequado para os organismos vivos, em oposição à noção de entropia); esta concepção começou, a partir das influências do modelo, também biológico, de Maturana e Varela, a sofrer reformulações, passando a incorporar a capacidade criativa dos organismos de produzir novas formas (autopoiese). Mas, já entre a década de 70 e a de 80, Schnitman e Fuks (op.cit.) destacam uma nova reformulação na dinâmica sistêmica, derivada da teoria das estruturas dissipativas afastadas do equilíbrio, que acentua o desvio, a diversidade, as flutuações como fontes potenciais de novas transformações: A crise e as mudanças foram entendidas em termos de patamares de instabilidade e uma passagem a novos regimes dinâmicos por uma ampliação de flutuações. Crise, instabilidade, mudança, novidade, esses eixos articuladores do pensamento (...) (p.245). Com relação aos estudos da mente cognitiva mais especificamente, se os modelos do processamento simbólico e do conexionismo tiveram (e têm) expressão máxima entre os autores cognitivistas americanos, o modelo da auto-organização criadora e dos sistemas dinâmicos encontrou, em Genebra, um de seus maiores expoentes. Contemporâneo de Bertalanffy, acompanhando os desenvolvimentos da teoria dos sistemas por quase 70 anos, Jean Piaget desenvolveu posições próprias referentes à formação e ao desenvolvimento da mente cognitiva, ainda hoje intrigantemente atuais. O seu trabalho investigativo, voltado para os estudos propriamente cognitivos, parte, no entanto, de alguns pressupostos ("pré-supostos") sobre possíveis relações entre cognição e o que agora chamamos de subjetividade, bem como sobre possíveis intersecções mentecérebro e possíveis articulações sujeito-coletividade-cultura, que, mesmo hoje, na década de 90, vem mostrando sintonia admirável com os modelos contemporâneos dos sistemas dinâmicos e autopoiéticos38. Encontramos, no âmbito de sua teoria39, formulações que o vinculam definitivamente a estes referidos modelos, em suas diferentes fases: 38 Não é por acaso que as comemorações relativas aos 100 anos do nascimento de Piaget pipocaram no mundo todo, durante todo o ano de 1997 (e da mesma forma, este ano, as homenagens à sua mais próxima colaboradora Barbel Inhelder), numa visível e incrível demonstração de vitalidade deste modelo interpretativo para os estudos da mente cognitiva. 39 Em especial, ver Piaget (1987; 1973; 1975; 1978a; 1978b; 1981; 1985; 1995). 81 (a) os sistemas vivos, embora sejam organizacionalmente fechados e energeticamente abertos, como já vinha sendo referido desde a cibernética da primeira fase, são, além disso, estruturalmente dinâmicos, portanto voltados para a contínua interação, com construções, da exterioridade-interioridade, ou seja há interação com construção de novas estruturas; (b) o mecanismo regulatório com proações integradas às retroações (ou realimentações) é essencial à criação de possibilidades do sistema na produção de novas estruturas e novos modos de funcionamento; (c) a realimentação constitui um mecanismo essencial para o processo de equilibração/regulação, mediante o estabelecimento de laços constitutivos ou ciclos; (d) os mecanismos cognitivos prolongam as regulações orgânicas, representando a resultante destas; por outro lado, estes mecanismos constituem órgãos especializados e diferenciados dessas regulações, nas interações com o exterior; (e) do ponto de vista da mente cogrútiva, a equilibração/regulação difere tanto do equilíbrio mecânico (que se conserva sem modificações), quanto do equilíbrio termodinâmico (que é um estado de repouso, ou entrópico, após a destruição das estruturas). [...] A equilibração é, ao contrário, mais vizinha dos estados estacionários (mas dinâmicos), no dizer de Prigogine, com trocas capazes de "construir e manter uma ordem funcional e estrutural num sistema aberto" e, sobretudo, a equilibração/regulação cognitiva é parente ainda mais próxima dos equilíbrios biológicos; (f) em sistemas abertos, as interações simultâneas de muitas variáveis geram padrões de organização característicos de rede, mediante uma interconexidade complexa não-linear; (g) um sistema é aberto precisamente no sentido de não conservara sua forma, senão através de fluxo contínuo de trocas com o meio40. No entender de Piaget, um sistema aberto - que não conserva a sua forma senão através do fluxo contínuo de trocas – é um sistema incessantemente ameaçado: o equilíbrio é 40 Meio no sentido biológico do conjunto dos estímulos que interessam à organização no seu ciclo fisiológico; e meio cognitivo, como conjunto de objetos que interessam ao conhecimento. 82 frágil e não resiste à irreversibilidade do ambiente a não ser por patamares momentâneos, de tal maneira que a evolução aparece como uma série de desequilíbrios acompanhados de sucessivas reequilibrações41. A analogia profunda entre o trabalho construtivo das operações intelectuais e as transformações orgânicas consiste, de acordo com Piaget, em que ambos têm continuamente de lutar contra a irreversibilidade dos acontecimentos e a degradação das energias e das informações. E ambos o conseguem pela elaboração de sistemas organizados, mas sem que haja nem externamente, nem internamente, um Regulador. O Regulador será o próprio sistema continuamente modificado pelos subsistemas, cujas construções ele regula. Tais construções também são sempre contínuas, em virtude dos desequilíbrios permanentes gerados pelas diferentes velocidades assumidas pelos subsistemas em seu desenvolvimento construtivo. Pois nenhuma forma de pensamento em qualquer nível que se a considere é capaz de reunir, simultaneamente, num todo coerente,a totalidade do Real, ou o Universo do Discurso. O fecho do sistema, então, constitui um limite constantemente procurado, mas nunca atingido. Neste sentido, pode-se pensar que há, quanto ao conhecimento, uma atividade construtiva febril e contínua que propicia que a mente cognitiva produza sistematicamente novas estruturas de conhecimento e cujo engendramento constante se deve exatamente pela situação de desequilíbrio que se cria na interação, tanto com os objetos de conhecimento como nas relações interindividuais - neste sentido tais estruturas se constituem como sistemas dinâmicos, por afastamento do ponto de equilíbrio e pela necessidade de continuamente procurar atingir tal equilíbrio; ao mesmo tempo, tais estruturas do conhecimento tendem a se conservar42 justamente pelo fluxo dinâmico e contínuo de trocas com o meio cognitivo, o qual se produz pela busca constante do ponto de equilíbrio. Para Piaget, as flutuações de Prigogine existentes no ambiente, ao desestabilizarem o sistema, obrigam-no à busca de novos equilíbrios; essa busca – os possíveis - autoorganizativa, corresponderia ao que Prigogine considera uma delicada interação entre 41 Piaget (1978). Prigogine diz que a irreversibilidade é o mecanismo que produz ordem a partir do caos, pois os processos irreversíveis desempenham um papel construtivo indispensável (Capra, op.dt). 42 Esta conservação poder-se-ia pensar em termos da organização lógico-matemática subjacente e comum, que suporta o processo de conceituação e a construção dos sistemas conceituais nas diferentes áreas do conhecimento, numa palavra, a conservação das estruturas do sujeito epistêmico. 83 acaso e necessidade, que levará, cedo ou tarde, à emergência de novas formas de ordem, ou estruturas: estruturas que possuem o caráter único, como diz Piaget, de integrar, nessa evolução contínua, sincronia e diacronia, ao mesmo tempo, e na medida em que, transformando-se, a nova estrutura integra a estrutura anterior a título de parte, sem que se perca a continuidade nem o poder anterior. No que concerne mais propriamente às relações interindividuais, Piaget diz: regulações cognitivas são as mesmas, num único cérebro ou num sistema de cooperações interindividuais/coletivas. Diz ainda que, no campo do conhecimento, o sujeito epistêmico que constrói a matemática e a lógica é, ao mesmo tempo, um indivíduo, mas descentrado relativamente ao seu "eu" particular, e o grupo social também descentrado, [...] sendo isto condição necessário para a formação do sujeito epistêmico descentrado. Para finalizar, direi que considero que esta concepção a respeito da mente cognitiva (descentrada), que flagramos em Piaget, encontra ressonâncias que cabem ser exploradas, seja na filosofia da diferença de Gilles Deleuze43, seja na psicologia social de Félix Guattari44, seja na ecologia cognitiva de Pierre Lévy (já referido); pois que, parafraseando Guattari, aposta no movimento de criação processual e auto-referencial da máquina autopoiética (no sentido de Maturana e Varela45), com sua cabeça ao mesmo tempo coletiva, institucional e individual46. Referências bibliográficas AXT, M. Linguagem e telemática: tecnologias para inventar-construir conhecimento. Educação, Subjetividade e Poder, 5(5), p.20-30, 1998. AXT,M. & MARASCHIN, C. Narrativasauto-avaliativas; categorias operativas autopoiéticas do conhecimento. Trabalho apresentado na ANPPEP/ 1998 (pré-print). CAMPBELL, J. El hombre gramatical; información, entrapía, lenguaje y vida. 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