Livro/Escola: Um Binômio Fantástico

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Livro/Escola: Um Binômio Fantástico
Livro/Escola: Um Binômio Fantástico
Beatriz Helena Robledo, Subdiretora de Leitura e Escritura do CERLALC
Beatriz Helena Robledo é a atual Subdiretora de Leitura e Escritura do CERLALC e Professora de Literatura
Infantil na Pontifícia Universidade Javeriana, Bogotá – Colômbia. Além do mais, é escritora e pesquisadora
nas áreas de Literatura Infantil e Juvenil e em processos de formação leitora com ampla experiência em
instituições como: Fundação Rafael Pombo, Fundalectura, Ministério da Educação Nacional da Colômbia,
Secretaria da Educação do Distrito Capital, Banco de la República, CERLALC, Ministério da Cultura da
Colômbia, entre outras.
Uma reflexão sobre o livro e a educação sugere muitos caminhos. É necessário escolher algum para olhálo de perto. Escolho o binômio: escola/livro. Parece óbvio. A escola tem sustentado historicamente seu
labor no livro. Aliás, o livro tem sido instrumento de poder por excelência no sistema escolar. Através dos
livros se doutrinaram às crianças durante a Colônia: missais, catecismos, livros de oração eram os meios
para garantir a salvação das almas dos pequenos. Biografias de santos, cadernos de orações, relação
de milagres, sermões, livros piedosos e edificantes. Os professores e sacerdotes administravam para
as crianças, os conteúdos destes livros. Como esvaziando um recipiente e enchendo outro, garantiam a
memorização de passagens inteiras dos alunos, procurando não somente doutriná-los e domesticá-los,
senão – e sobretudo – deixá-los na rota do caminho ao reino de Deus.
Durante o século XIX e - sobretudo na segunda metade – quando a consciência de nação se consolida,
o livro entra às escolas para gerar um sentimento pátrio. As crianças devem aprender os acontecimentos
históricos que permitiram a independência; os nomes e as datas das batalhas; a vida dos próceres, dos
heróis e suas façanhas.
Daí por diante, o livro se torna o meio por excelência para administrar o aprendizado. Os chamados textos
escolares que guiam ao docente e à criança e os guiam para não se perderem nesse mar de informação.
Resumos, quadros sinópticos, gráficos, perguntas, sínteses, exercícios, questionários, garantem o domínio de
uns conhecimentos e umas práticas, sem descuidar o controle do que se deve fazer com estes saberes.
De igual modo, tem sido através de um livro, aliás emblemático, que se tem ensinado a ler e a escrever a
um sem-número de gerações: a cartilha. É tão grande o vestígio deixado pelo livro na história leitora das
pessoas, que se torna referente de gerações: eu fui da época da Alegria de ler, dizem alguns; eu de Coquito,
dizem outros. E assim, erige-se novamente o livro como eixo central do aprendizado.
Então nos é difícil imaginar uma escola sem a presença do livro. Porém, quando pensamos não no livro em
singular, não no livro prisioneiro das mãos do adulto repressor, senão nos livros, livros livres circulando por
todos os espaços, generosos, entregues. Livros transformados em textos abertos, plurais, diversos, dife-
rentes, piscando para os leitores, procurando encontrar a esse leitor que dará sentido, cumprindo milhões
de funções, respondendo aos ‘por quês’ e aos ‘para quês’ e aos ‘comos’ desde a pluralidade, e quando
nosso binômio se transforma, assim inesperadamente, em um binômio fantástico.
Se recorrermos às escolas da Colômbia, poderemos entender o grau de fantasia de nosso binômio. Em
uma alta porcentagem de escolas, não há mais livros que o texto escolar e, em muitos lugares, somente
pode ser usado pelos docentes. As crianças olham estranhadas, sem entender o porquê dos livros serem
tão difíceis de se conseguir e por quê são tão alheios. Em outros lugares, os livros se erigem orgulhosos
em um armário com portas de cristal e uma luminosa chave dourada no escritório do diretor. Criança
alguma pode tocar estes misteriosos objetos que nunca foram abertos. Somente alguns professores podem
emprestá-los, com muitíssimo cuidado, para que não sejam danificados.
Os poucos meninos e meninas que puderam saborear a delícia de um conto, não entendem por que não
os dão mais, por que os proíbem entrar à biblioteca, quando existe uma, esse lugar escuro, onde os livros
estão detrás do mostrador devidamente protegidos, onde não é proibido falar e as paredes estão cheias
de cartazes pedindo silêncio, gritando cuidado e louvando com sentenças os múltiplos benefícios do livro.
Porque os únicos livros que têm valor para os adultos são aqueles maçantes, cheios de exercícios e lições
de casa, os quais devem ser “trabalhados” e dar conta de cada palavra.
Outras crianças nem sequer sabem o que estão perdendo. Não viveram a experiência deleitável de um
relato, no se acalentaram com a cadência de um poema, não se sobressaltaram com uma aventura, não
sofreram com as peripécias de um herói, nem sentiram o terror prazeroso produzido por um monstro peludo
e pegajoso. E mesmo que pareça difícil de acreditar, são muitos os meninos e as meninas colombianos
que jamais provaram um verso, que não conhecem uma charada, que não brincaram de trava-línguas, que
nem sequer contaram uma piada.
Para alguns jovens, a experiência tem sido desastrosa e associam livros com tédio, chatice, desassossego.
Em uma visita guiada a uma exposição sobre poetas e poemas, um grupo de estudantes expressou repulsão ao escutar o título do Nocturno de nosso querido poeta José Asunción Silva. Ao perguntar-lhes por
tão estranha reação, responderam que estavam entediados desse poema: tiveram que medi-lo, dissecá-lo,
cortá-lo em pedacinhos, memorizá-lo, representá-lo, dar conta do seu sentido, ou seja, já não queriam mais
saber nem desse poema nem outro algum. Talvez com boas intenções, mas com pouco conhecimento e,
sobretudo, com pouca experiência como leitores, pois o que muitos docentes fazem é vacinar aos jovens
contra a leitura e contra a grata relação com os livros. Muitos são os exemplos destas aberrações. Tive que
presenciar, em uma determinada ocasião, a um outro grupo de jovens à procura de gerúndios e particípios
em Cantar de Rolando; qualificando umas monografias de grau, descobri que a outro grupo de crianças
da quinta série os haviam submetido aplicando as estruturas de Greimas em uma bela lenda de Bécquer.
Outros compram aliviados, as famosas análises vendidas no mercado, como embutidos em série para
poder “passar” literatura. Isto é exatamente o que é pedido pelo professor.
Enquanto isso, os adultos se debatem sobre a importância do livro, discutem atemorizados sobre seu
próximo desaparecimento, fazem enquetes, estudos, análises sobre a necessidade dos livros estarem
nas escolas: os docentes se preocupam porque seus alunos não sabem ler, os pais de família recorrem
ao prêmio e ao castigo, desesperados porque seus filhos estão mal nos estudos e precisamente porque
não entendem o que estão lendo; as editoras fazem malabarismos para situarem os livros nas escolas e
nas bibliotecas. Todos, de alguma forma ou outra, disputam pelo poder do livro.
Não deixa de ser estranha esta relação. Por um lado, somos conscientes de seu valor e de sua importância, mas - por outro - apertamos o livro com temor a soltá-lo, impedimos-lhes sua circulação, tornando-os
livro-sagrado, em livro fetiche, livro instrumento. Talvez - no fundo - sabemos que os livros são poderosos,
revolucionários, questionadores, provocadores. Por acaso, temos medo de perder o controle?
O mais grave de tudo isto, não é só que as crianças se entediem ou se sintam tristes diante da dificuldade
de acessar aos livros, o preocupante é o dano que lhes estamos fazendo. A escassa relação das crianças
com os textos escritos está produzindo graves conseqüências no seu desenvolvimento. Pedro, estudante
de nove anos da escola de Juan Rey, não pode imaginar a lua com seus brincos; Miguel, jovem proveniente
da guerra, altera-se e se sente incômodo ao ver como se transformam os objetos em Cambios, isso é
impossível, diz. Isso não pode acontecer. A Camila e Juana, da terceira série de um colégio de classe média,
não lhes funcionou o conjuro para não tomar a sopa. Puseram-se realmente furiosas com a promotora de
leitura porque lhes havia mentido. Não foram capazes de brincar com as palavras mágicas. Quando John
teve a primeira vez tantos livros na sua frente, o único que pode fazer com eles, foi armar torres e torres
de livros, um encima do outro. À Mariana, de dez anos, devolveram-na ao pré-escolar porque não podia
escrever seu nome e a maioria das crianças da terceira série de outra escola, aferra-se aos livros recém
descobertos, copiando-os e calcando seus desenhos porque têm a necessidade de fazê-los seus. Magdalena, a qual mora em um lar de proteção, copia - com urgência - os poemas em seu caderno e dorme
cada noite com ele debaixo do seu travesseiro, para que ninguém o retire de si.
O que acontece com o desenvolvimento do pensamento simbólico destas crianças; o que acontece com
a sua capacidade de sonhar e imaginar; onde fica a possibilidade de inserção na cultura; onde fica a sua
capacidade de nomear e interpretar o mundo, a possibilidade de construir a sua identidade, de se olhar e
confrontar-se; onde está a oportunidade de ir configurando o sentido do mundo e da vida mesma; onde
está o direito de informar-se, de conhecer o mundo em que habitam, de responder às perguntas que têm,
de construir seu próprio conhecimento?
Isto é ainda mais grave do que parece: estamos criando gerações de crianças excluídas da leitura escrita.
Aliás, estamos abalando - em suas raízes - a cultura infantil de nossas crianças. Esta afirmação parece
uma redundância, mas não o é. Existe uma cultura da infância que tem a sua base em umas características
universais, por cima das diferenças geográficas e formais outorgadas por cada grupo social e cultural. Esta
cultura da infância se expressa através do jogo. Toda criança sadia é capaz de se fazer invisível, de recorrer
imensas pradarias em um cavalo-de-pau, de transformar-se em uma estátua e ficar imóvel durante séculos até que chegue um feiticeiro para liberá-lo; de voar numa vassoura e se elevar com um guarda-chuva
aberto na mão. Margareth Meek relaciona esta cultura da infância, primitiva e autêntica, com as formas da
literatura e com relação posterior das crianças com a cultura escrita:
“... Enquanto recitam, brincam, ameaçam, rogam, contam e evocam o poder das palavras, já seja como
uma arma contra a escuridão ou para formular impulsos proibidos, as crianças empregam muitos recursos
que logo encontrarão em formas literárias reconhecidas. A linguagem rompe os limites do sentido
O homem no terréu veio falar
De quantos morangos tem no mar
E as crianças aprendem a brincar com a sua língua materna, que dominam magistralmente, permitindolhes criar a realidade e a irrealidade. Colocam assim, as bases fundamentais da literatura, da linguagem
formal que - em nossos dias - é o texto escrito”. (Meek, Parapara, 2001, pág. 20).
O que será das gerações inteiras de meninos e meninas que estão sendo privados de sua capacidade de
imaginar? O que podemos esperar destes pequenos que, a duras penas, balbuciam porque lhes negamos
as palavras, as brincadeiras, o mistério, a rima, o ritmo, a musicalidade de um poema? Como pretendemos
que acedam à cultura da língua escrita, que sejam leitores e usem a escritura, se estamos violentando sua
própria cultura oral? Se nem se sequer lhes contamos contos, que são a base de toda a cultura infantil?
Os segredos da narrativa - diz Meek - em todas as culturas e subculturas, partem da tentativa das crianças
em compreender o mundo.
Não acredito que nós, adultos sérios e responsáveis, tenhamos razão alguma para negar às crianças, o
direito mínimo que possuem a um desenvolvimento sadio. Além do direito que elas têm à informação, à
participação, à brincadeira, à expressão, à leitura e à escritura.
É necessário que soltemos o poder do livro e o ponhamos a circular. Que circule em todos os espaços
e lugares, de todas as formas possíveis, em todos os suportes imagináveis para que os meninos e as
meninas tenham verdadeiramente acesso aos textos e possam encontra-se com eles. É o primeiro passo
para se tornarem em leitores.
E como o afirma acertadamente Roger Chartier: “... os autores não escrevem livros: não, escrevem textos
que se transformam em objetos escritos – manuscritos, gravados, impressos, e, hoje, informatizados -,
manejados de diversas maneiras por uns leitores de carne e osso, cujas maneiras de ler variam com arranjo
aos tempos, aos lugares e aos âmbitos”. (Chartier, 1998, pág. 17).
Antes de decretar a morte ou o desaparecimento do livro, devemos colocá-lo a circular. Devemos torná-lo
em texto e entregá-lo generosamente às crianças, em taças desbordantes, como dizia Pennac que fazia
a personagem de professor Puerros.
Unamos-nos todos aqueles que estamos a favor das crianças e dos livros e consigamos a chave dourada
do armário para abri-lo e deixemos que os livros enclausurados, prisioneiros durante tanto tempo, saiam à
procura dos leitores. Em canoas, ônibus, sacolas, bolsas, cestas, saquinhos, costais, burros, inundemos
as escolas e as bibliotecas com todos os textos possíveis. Permitamos às crianças a livre interpretação;
outorguemos-lhes o direito de opinar sobre as histórias e relatos; escutemo-los - pelo menos - uma vez
para saber o que gostariam de ler, que necessidades leitoras têm; permitamos o empréstimo de livros para
que os levem às suas casas, para compartilhar com seus pais e seus irmãos; aceitemos seus próprios
sistemas de escritura, sem desclassificá-los como “garranchos”; leiamos com eles em voz alta, de viva voz
e com afeto; ninemos sua solidão com o ritmo de um poema; sustemo-las por um momento, para que não
caiam na vertigem com a cadência de um relato.
Decretemos a livre circulação dos textos. Devolvamos ao livro seu caráter libertário e às crianças seus
direitos.
Nota: Apresentação realizada no Foro sobre a indústria editorial diante dos novos desafios da educação, XIX Feira
Internacional do Livro de Bogotá.
Citas:
(1) Cavallo, Guglielmo e Chartier, Roger. História da leitura no mundo ocidental. Taurus: Madri, 1998.
(2) Meek, Margaret. O que se considera evidência nas teorias sobre a literatura para crianças? Em um encontro com
a crítica e os livros para crianças. Parapara CLAVE, Banco do livro, Caracas: 2001.