Daqui... - História Oral

Transcrição

Daqui... - História Oral
HENRY MILLER
TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO
BIBLIOTECA VISÃO
Título: Trópico de Capricórnio
Título original: Tropic of Capricorn
Autor: Henry Miller
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Tradução cedida por Livros do Brasil
© 1961 by Greenleaf Classics
© 2000 BIBLIOTEX, S. L. para esta edição
© 2000 ABRIL/CONTROLJORNAL,
por acordo com Bibliotex, S. L. para esta edição
Editor: Bárbara Palia e Carmo
Capa: Carlos Bravo
Ilustração da capa: André Kano
Coordenação editorial: Camilo Fernandez Gonzalez
coma colaboração de M.” Eduarda Vasallo Pereira
e Ignacio Vazquez Diéguez
Revisão: José António Almeida
Produção gráfica: João Paulo Font
Impressão e encadernação:
Printer, Industria Gráfica, S. A. ,
Ctra. N-II, Km. 600 l
08620 Sant Vicenç dels Horts (Barcelona’
Impresso em Espanha f
Data de impressão: Junho de 2000
,’
Todos os direitos reservados \
ISBN: 972-611-638-4 ’i
Dep. Legal: B. 28.786-2000
Tiragem: 75 000 exemplares
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2795-116 Linda-a-Velha - Portugal
De venda conjunta e inseparável da revista Visão
HENRY MILLER
TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO
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Abril
Controljormal
Edipresse
BIBLIOTECA VISÃO
Introdução
UMA HISTÓRIA CALAMITATUM (A História dos Meus Infortúnios)
Muitas vezes o coração dos homens e das mulheres é excitado, assim como confortado, nos seus
desgostos, mais pelo exemplo do que pelas palavras. Portanto, porque também conheci algum
consolo graças a conversas tidas comalguém que foi disso testemunha, estou agora decidido a
escrever acerca dos sofrimentos originados pelos meus infortúnios, para os olhos de alguém que,
embora ausente, é em si mesmo e sempre um consolador. Faço-o para que, ao comparardes os
vossos desgostos comos meus, possais descobrir que, em verdade, os vossos não são nada, ou no
máximo são insignificantes, e assim consigais suportá-los mais facilmente.
PEDRO ABELARDO
No trolley ovariano
Uma vez entregada a alma, segue-se tudo comuma certeza infalível, mesmo no meio do caos. Desde
o princípio nunca foi outra coisa senão caos: era um fluido que me envolvia, que eu aspirava através
das guelras. Nos substratos, onde a Lua brilhava firme e opaca, o ambiente era suave e fecundante;
por cima disso, reinavam a selva e a desarmonia. Não tardei a ver em tudo o oposto, a contradição,
e entre o real e o irreal a ironia, o paradoxo. Era o meu próprio pior inimigo. Não havia nada que
desejasse fazer que me importasse de não fazer. Já em criança, quando não me faltava nada, queria
morrer: queria render-me porque não via sentido nenhum em lutar. Sentia que nada seria provado,
comprovado, acrescentado ou subtraído pelo facto de continuar uma existência que não pedira.
Todos quantos me cercavam eram falhados, ou, se não eram falhados, eram ridículos.
Especialmente os bem-sucedidos. Os bem-sucedidos chateavam-me ate às lágrimas. Era
cornpreensivo até ao exagero, mas não era a compreensão que assim me tornava. Era uma qualidade
puramente negativa, uma fraqueza que desabrochava à simples vista da miséria humana. Nunca
ajudava ninguém coma esperança de que isso servisse para alguma coisa; ajudava porque não era
capuz de proceder de outro modo. Querer mudar o estado das coisas parecia-me vão, inútil; estava
convencido de que nada mudaria, a não ser que se verificasse uma mudança de intenções, e quem
poderia modificar o coração dos homens? De vez em quando, um amigo convertia-se, o que me
causava vómitos. Tinha tanta necessidade de Deus como Ele de mini, e costumava dizer para
comigo que, se havia Deus, me encontraria comEle calmamente e Lhe cuspiria na cara.
O irritante era que, ao primeiro rubor, as pessoas costumavam tomar-me por born, amável,
generoso, leal e fiel. Talvez possuísse essas virtudes, mas se possuía era por ser indiferente: podiame dar ao luxo de ser born, amável, generoso, leal, etc., porque estava isento de inveja. A inveja era
a única
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coisa de que nunca tinha sido vítima. Nunca invejei nada nem ninguém. Pelo contrário, só senti
compaixão por tudo e todos.
Desde o princípio que me devo ter treinado para não querer nada commuita veemência. Desde o
princípio que fui independente, de uma maneira falsa. Não tinha necessidade de ninguém porque
queria ser livre, livre para fazer e para dar só de acordo comos meus caprichos. Mal esperavam ou
exigiam alguma coisa de mim, recusava e daí não arrancava. Foi essa a forma que a minha
independência assumiu. Por outras palavras, fui corrupto, fui corrupto desde o princípio. Dir-se-ia
que a minha mãe me dera um veneno como leite, um veneno que nunca me abandonou o
organismo, apesar de ter sido desmamado cedo. Parece que até mesmo quando ela me desmamou
me mostrei completamente indiferente. A maioria das crianças revoltam-se, ou fingem que se
revoltam, mas eu estive-me nas tintas. Ainda usava cueiros e já era filósofo. Era contra a vida por
princípio. Que princípio? O princípio da inutilidade. À minha volta toda a gente lutava e se debatia.
Pessoalmente, nunca fiz sequer um esforço. Se dava a impressão de que o fazia, era apenas para
agradar a alguém; no fundo, estava-me marimbando. E se forem capazes de me dizer porque era
assim, desmenti-los-ei, pois nasci comuma pecha má e nada a pode eliminar. Mais tarde, quando já
era crescido, ouvi dizer que tiveram um trabalhão para me tirar do útero. Compreendo perfeitamente
que assim fosse. Incomodar-me para quê? Para quê sair de um lugar agradável e quentinho, de um
nicho acolhedor, onde tudo me era oferecido gratuitamente? A minha mais antiga recordação é do
frio, da neve e do gelo nas valetas, da geada nos vidros das janelas e do suor gelado das paredes
verdes da cozinha. Porque vivem as pessoas em agrestes climas das zonas temperadas, como
erradamente lhes chamam? Porque são naturalmente idiotas, preguiçosas, naturalmente cobardes.
Até cerca dos dez anos nunca imaginei que existissem países «quentes», lugares onde não era
preciso suar para ganhar a vida nem tremer de frio e fingir que isso era tónico e revigorante. Onde
há frio há pessoas que se esfalfam a trabalhar e que, quando têm filhos, lhes pregam o evangelho do
trabalho - o que, no fundo, não é mais do que a doutrina da inércia. Os meus progenitores eram
inteiramente
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nórdicos, o que equivale a dizer idiotas. Perfilhavam todas as ideias erradas que jamais têm sido
expostas. Entre elas contava-se a doutrina do asseio, para já não falar da da honradez. Eram
penosamente asseados, mas por dentro fediam. Nunca, nem uma única vez, tinham aberto a porta
que conduz à alma; nunca, nem uma única vez, lhes passou pela cabeça dar um salto às cegas, no
escuro. Depois do jantar, os pratos eram imediatamente lavados e arrumados no armário; o jornal,
depois de lido, era muito bem dobrado e arrumado numa prateleira; a roupa, depois de lavada, era
passada a ferro, dobrada e guardada em gavetas. Preparava-se tudo para amanhã, mas o amanhã
nunca chegava. Õ presente era apenas uma ponte, e eles continuam a gemer, como o mundo geme, e
não há um idiota que se lembre de atirar a ponte pelos ares.
No meu azedume, procuro muitas vezes razões para os condenar, a fim de melhor me condenar.
Sim, porque eu também sou como eles, em muitas coisas. Durante muito tempo pensei que
escapara, mas à medida que o tempo passa verifico que não sou melhor, que sou até um bocadinho
pior, pois vejo mais claramente do que eles jamais viram e, contudo, sou impotente, incapaz de
modificar a minha vida. Quando olho para trás, para o já vivido, tenho a impressão de que nunca fiz
nada de minha livre vontade e sim, sempre, por pressão de outros. Ê costume considerarem-me um
tipo aventureiro, mas nada poderia estar mais longe da verdade. As minhas aventuras foram sempre
casuais, foram-me sempre impostas, foram sempre mais suportadas do que empreendidas. Sou da
própria essência desse altivo e fanfarrão povo nórdico que nunca teve a mínima noção da aventura,
mas que, não obstante, devastou a Terra, a virou do avesso, espalhando por toda a parte ruínas e
relíquias. Espíritos inquietos, mas não aventureiros. Espíritos atormentados, incapazes de viver no
presente. Vergonhosos cobardes todos eles, incluindo eu. Há apenas uma grande aventura. E essa é
para o interior, rumo ao eu, e para essa não contam tempo nem espaço, nem tão-pouco feitos.
Diversas vezes, de tantos em tantos anos, estive na iminência de fazer essa descoberta, mas,
caracteristicamente, consegui sempre fugir aos encartes. Quando tento encontrar uma boa desculpa
para isso, só consigo pensar no ambiente, nas
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ruas que conhecia e nas pessoas que as habitavam. Não sou capaz de me lembrar de nenhuma rua da
América, nem de nenhuma pessoa moradora em tal rua, que pudesse conduzir alguém à descoberta
do eu. Percorri as ruas de muitos países do mundo, mas em lado algum me senti tão degradado e
humilhado como na América. Penso em todas as ruas da América reunidas e formando uma imensa
cloaca, uma cloaca do espírito para a qual tudo é aspirado e levado na enxurrada para a merda
eterna. Sobre essa cloaca o espírito do trabalho agita uma vara mágica; irrompem lado a lado
palácios e fábricas, fábricas de munições e de produtos químicos, siderurgias e sanatórios, prisões e
manicómios. Todo o continente é um pesadelo que causa a maior miséria ao maior número. Fui um
deles, uma entidade isolada no meio da maior congregação de riqueza e de felicidade (riqueza
estatística e felicidade estatística), mas nunca conheci nenhum homem que fosse verdadeiramente
rico ou verdadeiramente feliz. Eu, pelo menos, sabia que era infeliz e pobre, que estava fora do
ritmo e da linha. Era essa a minha única consolação, a minha única alegria. Mas não chegava. Teria
sido melhor para a minha paz de espírito, para a minha alma, se tivesse manifestado a minha
rebelião abertamente, se tivesse ido para a cadeia por causa dela e se lá tivesse apodrecido e
morrido. Teria sido melhor se, como o louco Czolgosz, tivesse abatido a tiro algum born presidente
McKinley, alguma alma insignificante e bondosa como ele que nunca fizera o mínimo mal a
ninguém. Sim, porque no fundo do meu coração havia assassínio: queria ver a América destruída,
arrasada de alto a baixo. Queria ver isso acontecer por pura vingança, para castigo dos crimes
cometidos contra mim e contra outros como eu, que nunca foram capazes de erguer a voz e exprimir
o seu ódio, a sua rebelião, a sua legítima sede de sangue.
Era o produto maldito de um solo maldito. Se o eu não fosse imperceptível, o eu acerca do qual
escrevo há muito teria sido destruído. A alguns isto poderá parecer uma invenção, mas seja o que
for que eu imagine tenha acontecido, aconteceu realmente, pelo menos a mim. A história poderá
negá-lo, uma vez que não representei qualquer papel na história do meu povo, mas mesmo que tudo
quanto digo esteja errado e imbuído de preconceitos, de despeito e de male13
volência, mesmo que eu seja um mentiroso e um envenenador, mesmo assim é a verdade e terá de
ser engolida.
Quanto ao que aconteceu...
Tudo quanto acontece, desde que tenha significado, é por natureza contraditório. Até aquela para
quem isto é escrito aparecer, imaginei que algures no exterior, na vida, como dizem, se encontrava a
solução para todas as coisas. Quando a conheci, pensei que deitava as mãos à vida e a agarrava, que
agarrava qualquer coisa em que podia ferrar os dentes. Em vez disso, perdi por completo o domínio
da vida, fugiu-me das mãos. Estendi os braços à procura de qualquer coisa a que me pudesse
prender, e não encontrei nada. Mas, embora ao estender os braços, ao fazer o esforço para agarrar,
para me prender, ficasse tão sem nada como antes, embora isso acontecesse, o certo é que encontrei
qualquer coisa que não procurara: encontrei-me. Descobri que o que desejara a vida inteira não fora
viver - se o que os outros fazem se chama viver - e, sim, exprimir-me. Compreendi que nunca tivera
o mínimo interesse em viver, mas apenas nisto que estou a fazer agora, em qualquer coisa que é
paralela à vida, que, simultaneamente, faz parte da vida e a ultrapassa. O que é verdade pouco ou
nada me interessa, nem tão-pouco o que é real; só me interessa o que imagino ser, o que asfixiara
toda a vida a fim de poder viver. Se morrer hoje ou amanhã ser-me-á indiferente, sempre foi; o que
me incomoda, o que me ulcera, é que mesmo hoje, após anos de esforço, não possa dizer o que
penso e sinto. Desde a infância que só me vejo a seguir a pista desse espectro, sem gozar nem
desejar nada além desse poder, dessa faculdade. Tudo o mais é uma mentira - é uma mentira tudo
quanto jamais disse ou fiz fora dessa ambição... e procedi assim a maior parte da minha vida.
Era essencialmente uma contradição, como se costuma dizer. As pessoas consideravam-me sério e
magnânimo, ou alegre e estouvado, ou sincero e fervoroso, ou negligente e descuidado. Era todas
essas coisas ao mesmo tempo e, para além delas, era mais alguma coisa, alguma coisa de que
ninguém suspeitava e eu menos do que toda a gente. Aos seis ou sete anos costumava sentar-me à
bancada do meu avô e ler-lhe enquanto ele cosia. Lembro-me vivamente do meu avô nos momentos
em que, comprimindo o ferro quente contra a costura
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de um casaco, parava, de pé, comuma das mãos por cima da outra, na pega do ferro, e olhava pela
janela, sonhadoramente. Lembro-me melhor da expressão do seu rosto, quando sonhava assim, do
que do conteúdo dos livros que lia, das conversas que tínhamos ou das minhas brincadeiras na rua.
Costumava perguntar a mim mesmo que sonharia ele, que seria que o levava para fora de si próprio.
Por mim, ainda não aprendera a sonhar acordado, estava sempre lúcido, no momento presente e
todo inteiro. Mas o sonhar do meu avô fascinava-me. Sabia que ele não tinha qualquer relação como
que estava a fazer, que não dedicava o mínimo pensamento a nenhum de nós, que estava sozinho e,
estando sozinho, era livre. Eu nunca estava sozinho, principalmente quando não me encontrava
commais ninguém. Parecia-me estar sempre acompanhado: era como uma migalhinha de um grande
queijo - que era o mundo, suponho, embora nunca me detivesse a pensar nisso. Sei, porém, que
nunca existi separadamente, que, por assim dizer, nunca pensei em mim como sendo o grande
queijo. Por isso, até mesmo quando tinha motivos para me sentir triste, para protestar, para chorar,
tinha a ilusão de participar numa tristeza comum, universal. Quando chorava, o mundo inteiro
estava a chorar - ou, pelo menos, assim imaginava. Mas chorava raramente. A maior parte das vezes
sentia-me feliz, ria-me, divertia-me. Divertia-me porque, como já disse, estava-me realmente nas
tintas para tudo. Estava convencido de que, se as coisas me corriam mal, corriam mal a toda a gente.
E, de modo geral, as coisas só corriam mal quando lhes ligávamos demasiada importância. Adquiri
esta convicção muito novo. Lembro-me, por exemplo, do caso do meu amiguinho Jack Lawson.
Passou um ano inteiro na cama, a sofrer os maiores tormentos. Era o meu melhor amigo pelo menos
assim o diziam. Bem, ao princípio talvez tenha tido pena dele e talvez o visitasse de vez em quando
para saber como ia; mas passado um mês ou dois tornei-me verdadeiramente insensível ao seu
sofrimento. Disse para comigo que ele devia morrer e que quanto mais depressa morresse melhor e,
chegado a essa conclusão, tratei de agir em conformidade isto é, esqueci-o rapidamente, abandoneio ao seu destino. Tinha só doze anos, nessa altura, mas lembro-me de que me senti orgulhoso da
minha decisão. E também me lembro do
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funeral, da vergonha que foi. Lembro-me dos amigos e parentes todos reunidos à volta do caixão, a
gritarem como macacos doentes. A mãe, sobretudo, chateou-me a valer. Era uma criatura muito
rara, muito espiritual - cientista cristã, julgo -, e, embora não acreditasse na doença nem na morte,
fez tal escarcéu que o próprio Jesus Cristo se teria levantado da sepultura, se aquilo fosse comele.
Mas o seu adorado Jack não se levantou! Não, Jack continuou frio como gelo, rígido e cego e surdo
a todos os apelos. Estava morto e acabou-se. Eu sabia-o e sentia-me contente comisso. Não
desperdicei lágrimas por esse motivo. Não podia dizer que estivesse melhor assim porque, no fim
de contas, o «ele» desaparecera. Ele partira e levara consigo os sofrimentos que suportara e que,
inconscientemente, infligira aos outros. «Ámen», pensei e, ligeiramente histérico, dei um peido
sonoro, mesmo ao lado do caixão.
Lembro-me de que esta história de me importar demasiado só começou mais ou menos quando me
apaixonei pela primeira vez. Mas mesmo então não me importei o suficiente. Se me tivesse
importado deveras não estaria agora a escrever a esse respeito, teria morrido como coração
despedaçado ou ter-me-ia esforçado para conseguir o que queria. Foi uma experiência dolorosa,
pois ensinou-me a viver uma mentira. Ensinou-me a sorrir quando não me apetecia sorrir, a
trabalhar não acreditando no trabalho, a viver sem ter nenhuma razão para continuar vivo. Mesmo
depois de a perder fiquei como condão de fazer aquilo em que não acreditava.
Foi tudo um caos desde o princípio, como já disse. Mas por vezes estive tão perto do centro, do
próprio fulcro da confusão, que me espanta não ter rebentado tudo à minha volta.
É costume atirar comas culpas de tudo para cima da guerra. Pois eu digo que a guerra não teve nada
a ver comigo, coma minha vida. Numa época em que outros arranjavam lugares confortáveis, eu
arranjava um emprego miserável após outro, sem nunca ganhar o suficiente para me aguentar. Era
despedido quase tão depressa quanto era admitido. Não me faltava inteligência, mas inspirava
desconfiança. Aonde quer que fosse fomentava a discórdia, não por ser idealista ou coisa parecida,
mas porque era como um holofote a revelar a estupidez
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e a inutilidade de tudo. Além disso, não prestava como lambe-cus. Isso marcava-me, sem dúvida.
Quando pedia um emprego, as pessoas percebiam logo que tanto me fazia consegui-lo como não. E,
claro, geralmente não o conseguia. Mas passado algum tempo o simples procurar emprego tornouse uma actividade, um passatempo, por assim dizer. Apresentava-me e oferecia-me praticamente
para tudo. Tratava-se de uma maneira de matar tempo, uma maneira que, tanto quanto me parecia,
não era pior do que o próprio trabalho. Era patrão de mim mesmo e dispunha do meu tempo, mas,
ao contrário dos outros patrões, originava a minha própria ruína, a minha própria bancarrota. Não
era uma companhia, nem um trust, nem um estado, nem uma federação, nem uma política das
nações... Se me parecia comalguma coisa, era comDeus.
Isto foi assim mais ou menos desde o meio da guerra até... bem, até ao dia em que caí na armadilha.
Finalmente chegou uma altura em que desejei desesperadamente um emprego. Precisava dele.
Como não podia perder nem mais um minuto, decidi aceitar o mais reles emprego da terra, o de
boletineiro. Entrei na secção de empregos da companhia telegráfica - a Cosmodemonic Telegraph
Company - quase ao fim do dia, disposto a fazer o sacrifício. Tinha vindo da biblioteca pública e
levava debaixo do braço uns calhamaços volumosos acerca de economia e metafísica. Para meu
grande espanto, recusaram-me o emprego.
O tipo que me deu coma tampa era um meia-leca que tomava conta do telefone. Pareceu tomar-me
por estudante universitário, embora se visse perfeitamente pelo impresso que eu preenchera que
deixara de estudar havia muito tempo. Até me enfeitara, no impresso, comum doutoramento pela
Universidade de Columbia. Mas, aparentemente, o meia-leca que me recusou não reparou nisso, ou
então reparou e desconfiou. Senti-me furioso, tanto mais que, pela primeira vez na vida, tinha
verdadeiro empenho em me empregar. E não só por isso, mas também porque engolira o meu
orgulho, que , em certos aspectos peculiares é muito grande. Claro que a mi- \ nhã mulher acolheu
a notícia como habitual sorriso desde- l nhoso. Tinha pedido aquele emprego apenas como um
gesto, l declarou-me. Fui para a cama a pensar no assunto, ainda ma- j
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goado, e como passar da noite senti-me cada vez mais irritado. O facto de ter mulher e filha para
sustentar não me incomodava por aí além; já tinha percebido, e bem, que não se davam empregos
porque quem os pedia tinha família para sustentar. Não, o que me envenenava, me roía, era teremme recusado a mim, Henry V. Miller, um indivíduo competente e superior que solicitara o mais
baixo emprego do mundo. Isso consumia-me. Não me conseguia resignar. De manhã levantei-me
cedo, barbeei-me, vesti a melhor roupa que tinha e dirigi-me a toda a pressa para o metropolitano.
Fui imediatamente ao escritório principal da companhia telegráfica... subi ao vigésimo quinto andar,
ou lá o que era, onde o presidente e os vice-presidentes tinham os seus cubículos. Disse que
desejava falar como presidente. Claro que o presidente estava, ou fora da cidade, ou demasiado
ocupado para me receber, mas eu não me importava de falar como vice-presidente ou, de
preferência, como seu secretário. Falei como secretário do vice-presidente, um tipo de ar inteligente
e atencioso, e disse-lhe o que tinha a dizer. Falei correctamente, sem excessivo calor, mas dando-lhe
a entender que não correriam comigo comfacilidade.
Quando ele pegou no telefone e pediu que ligassem ao director-geral, pensei que era uma farsa, que
iam empurrar-me assim de uns para os outros até me fartar. Mas mal o ouvi falar mudei de opinião.
Quando cheguei ao gabinete do director-geral, que ficava noutro edifício na periferia, estavam à
minha espera. Sentei-me numa confortável poltrona de couro e aceitei um dos grandes charutos que
me ofereceram. O indivíduo pareceu-me vitalmente interessado no assunto e pediu-me que lhe
contasse tudo, até ao mínimo pormenor, de orelhas arrebitadas para captar o mais leve vestígio de
informação susceptível de justificar qualquer coisa que estava a ganhar forma dentro da sua carola.
Compreendi que, por inesperado acaso, lhe estava a prestar um favor. Consenti, por isso, que me
fosse caçando as palavras de acordo coma sua fantasia, mas sem deixar de estar atento ao lado de
que soprava o vento. À medida que a conversa prosseguia, percebi que o tipo se interessava cada
vez mais por mim. Finalmente alguém me demonstrava um pouco de confiança! Não precisei de
mais nada para me lançar numa das minhas vias preferidas. Sim,
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porque após anos de caça ao emprego tornara-me naturalmente perito: sabia não só o que não devia
dizer, mas também o que devia dar a entender, insinuar. O adjunto do director-geral não tardou a ser
chamado e convidado a escutar a minha história. Claro que, entretanto, eu já sabia qual era a
história. Tinha compreendido que Hymie - «o judeuzito», como o director-geral lhe chamava - não
tinha nada que se armar em gerente do pessoal. Hymie usurpara tal prerrogativa, até aí percebi eu.
Também percebi que Hymie era judeu e que os judeus não estavam nas boas graças do directorgeral - nem de Mr. Twilliger, o vice-presidente, que era uma fonte de aborrecimentos para o
director-geral.
Talvez Hymie, «o imundo judeuzinho», fosse o culpado da elevada percentagem de judeus da força
de boletineiros. Talvez fosse Hymie quem, na realidade, contratava o pessoal no escritório de
empregos - em Sunset Place, como diziam. Percebi tratar-se de uma excelente oportunidade para
Mr. Clancy, o director-geral, tirar do poleiro um tal Mr. Burns que, segundo me informou, era
gerente do pessoal havia cerca de trinta anos e, ao que parecia, estava a tornar-se indolente e
descuidado.
A conferência durou diversas horas. Antes de terminar, Mr. Clancy chamou-me de parte e
informou-me de que ia fazer de mim o chefe daquela história. Antes porém de me confiar o cargo
pedia-me como especial favor, e também para me servir de uma espécie de aprendizado que me
seria vantajoso, que trabalhasse uns tempos como boletineiro especial. Receberia o ordenado de
gerente do pessoal, o qual me seria pago por uma conta à parte. Em resumo, andaria de escritório
para escritório e observaria como as coisas eram dirigidas por toda a gente. Faria um relatoriozinho
comas minhas observações, de tempos a tempos, e uma vez por outra passaria por sua casa, à
socapa, e travaríamos uma pequena conversa acerca do modo como as coisas corriam nas cento e
uma sucursais que a Cosmodemonic Telegraph Company tinha na cidade de Nova Iorque. Por
outras palavras, seria espião durante uns meses e depois passaria a dirigir o pessoal. Talvez até me
nomeassem director-geral, um dia, ou vice-presidente... Era uma oferta tentadora, apesar de
embrulhada em muita merda. Aceitei.
Passados poucos meses estava sentado na Sunset Place
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a admitir e a despedir como um demónio. Assim Deus me ajude como aquilo era um verdadeiro
matadouro. Não fazia sentido absolutamente nenhum. Era um desperdício de homens, de material e
de esforço, uma farsa hedionda representada comum pano de fundo de suor e miséria. Mas, assim
como aceitara espiar, assim aceitei admitir e despedir, e tudo o mais que isso implicava. Dizia
«sim» a tudo. Se o vice-presidente decretava que não deviam ser admitidos aleijados, eu não
admitia aleijados. Se o vice-presidente dizia que todos os boletineiros commais de quarenta e cinco
anos deviam ser despedidos sem aviso prévio, eu despedia-os sem aviso prévio. Fazia tudo quanto
me mandavam fazer, mas de maneira que eles o pagassem. Quando havia greve, cruzava os braços e
esperava que terminasse, mas primeiro tratava de os fazer perder umas boas massas. Todo o sistema
estava tão podre e era tão desumano, tão irremediavelmente corrupto e complicado, que seria
preciso um génio para lhe insuflar um certo sentido ou uma certa ordem, para já não falar em
bondade ou consideração humanas. Tinha pela frente todo o sistema americano do trabalho, que
está podre por dentro e por fora. Era a quinta roda da carruagem e nenhum dos lados tinha qualquer
serventia para mim, a não ser para me explorar. Na realidade, toda a gente estava a ser explorada: o
presidente e a sua seita pelos poderes invisíveis, os empregados pelo público, etc., por aí fora,
através de toda a rede. Do meu poleirozinho em Sunset Place tinha uma vista geral de toda a
sociedade americana. Era como uma página tirada da lista telefónica. Alfabeticamente,
numericamente e estatisticamente, fazia sentido. Mas quando a olhávamos de perto, quando
examinávamos as páginas separadamente, ou os componentes separadamente, quando
examinávamos um só indivíduo e o que o constituía, o ar que respirava, a vida que levava e os
riscos que corria, então víamos algo tão sujo e degradante, tão baixo, tão miserável, tão
completamente desesperado e sem sentido, que era pior do que olhar para um vulcão. Via-se toda a
vida americana: economicamente, politicamente, moralmente, espiritualmente, artisticamente,
estatisticamente e patologicamente. Parecia um grande cancro sifilítico num caralho gasto. Na
realidade, parecia ainda pior do que isso, pois já nem se conseguia ver nada que se assemelhasse a
um caralho. Talvez no
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passado aquela coisa tivesse tido vida, produzido qualquer coisa, dado pelo menos um momento de
prazer, uma emoção momentânea. Mas vista de onde eu a via parecia mais podre do que o mais
bichado dos queijos. Só admirava que o pivete não os matasse... Tenho falado sempre no passado,
mas, claro, agora é o mesmo, ou talvez um pouco pior. Pelo menos agora o fedor não é sequer
disfarçado.
Quando Valeska entrou em cena já eu contratara diversos corpos de exército de boletineiros. O meu
escritório em Sunset Place era como um esgoto descoberto - e cheirava como tal. Enterrara-me na
trincheira da linha da frente e era alvejado de todos os lados ao mesmo tempo. Para começar, o
homem a quem tirara o lugar morreu como coração despedaçado poucas semanas depois da minha
chegada. Aguentou apenas o tempo suficiente para me introduzir nos meandros e depois esticou. As
coisas aconteciam tão depressa que eu não tinha sequer tempo para sentir remorsos. A partir do
momento em que chegava ao escritório, era um longo pandemónio pegado, sem uma interrupção.
Uma hora antes da minha chegada - chegava sempre atrasado - já o escritório estava cheio de
candidatos. Tinha de abrir caminho pela escada acima e de forçar literalmente a passagem, para
chegar à secretária. Antes de tirar o chapéu tinha de atender uma dúzia de telefonemas. Havia três
telefones na minha secretária e tocavam todos ao mesmo tempo. Arrasavam-me antes mesmo de me
poder sentar. Nem sequer havia tempo de ir ao cagatório antes das cinco ou seis horas da tarde. A
situação de Hymie ainda era pior do que a minha, pois estava preso ao telefone. Estava lá das oito
da manhã às seis da tarde, a movimentar «waybills». Um «waybill» era um boletineiro emprestado
por uma sucursal a outra durante um dia ou parte de um dia. Nenhuma das cento e uma sucursais
dispunha de pessoal completo. Nunca. Hymie tinha de jogar xadrez comos «waybills» enquanto eu
trabalhava como um doido para colmatar as brechas. Se um dia, por milagre, conseguia preencher
todas as vagas, na manhã seguinte a situação voltava exactamente ao mesmo, ou pior. Talvez vinte
por cento da força era fixa; o resto era madeira flutuante. Os fixos enxotavam os outros. Ganhavam
quarenta a cinquenta dólares por semana, às vezes sessenta ou setenta e s, cinco, e às vezes até
cem dólares por semana, o que equivale \
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a dizer que ganhavam muito mais do que os empregados e, não raro, até que os gerentes. Quanto
aos adventícios, tinham dificuldade em ganhar dez dólares por semana. Alguns trabalhavam uma
hora e iam-se embora, muitas vezes depois de terem deitado uma remessa de telegramas no caixote
do lixo ou pela pia abaixo. E quando se iam embora queriam receber imediatamente, o que era
impossível, pois coma complicada contabilidade vigente só se conseguia saber o que um boletineiro
ganhara ao fim de dez dias, pelo menos. Ao princípio, convidava o candidato a sentar-se a meu lado
e explicava-lhe tudo, pormenorizadamente. Fazia-o até perder a voz. Não tardei, porém, a aprender
a poupar as forças para as necessárias descomposturas. Para começar, quase todos os rapazes eram
mentirosos natos e às vezes vigaristas, ainda por cima. Muitos deles já tinham sido admitidos e
despedidos uma quantidade de vezes. Alguns consideravam aquele trabalho uma maneira de
arranjarem outro emprego, pois levava-os a centenas de escritórios onde, caso contrário, nunca
poriam os pés. Felizmente, McGovern, o ex-recluso que guardava a porta e distribuía os boletins de
inscrição, tinha olhar fotográfico. Havia também os grandes dossiers, atrás de mim, nos quais
estavam registados todos os que por ali tinham passado. Parecia um arquivo policial. As fichas
estavam cheias de observações a tinta vermelha, denunciadoras desta ou daquela delinquência. A
julgar pelo que saltava aos olhos, encontrava-me em maus lençóis. Nome sim, nome não, havia um
roubo, uma fraude, uma zaragata, ou demência, ou perversão, ou idiotice. «Cuidado, Fulano é
epiléptico!» «Não contrate este homem; é negro!» «Atenção, X esteve em Dannemora - ou em
SingSing.»
Se eu fosse dado a formalidades, não admitiria ninguém. Tinha de aprender depressa, e não através
dos cadastros nem dos que me rodeavam e, sim, pela experiência. Havia mil e um pormenores pelos
quais avaliar um candidato: eu precisava de entrar comtodos em linha de conta, num ápice, porque
num curto dia, mesmo que um tipo seja tão rápido como Jack Robinson, só se pode admitir um
certo número e não mais. E por muitos que eu admitisse nunca chegavam. No dia seguinte
recomeçava tudo do princípio. Sabia que alguns deles durariam apenas um dia, mas tinha de os
admitir mesmo assim. O sistema
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estava errado de ponta a ponta, mas não era a mim que cornpetia criticá-lo. O que me competia era
admitir e despedir. Encontrava-me no centro de um disco giratório que rodava tão velozmente que
nada se imobilizava. O que fazia falta era um mecânico, mas, segundo a lógica dos gajos
importantes de cima, não estava nada errado no mecanismo; pelo contrário, estava até tudo
porreirinho. Enfim, as coisas estavam fora da ordem apenas temporariamente, diziam. E o facto de
as coisas estarem temporariamente fora da ordem atraía epilepsia, roubo, vandalismo, perversão,
negros, judeus, putas e tudo o mais - e às vezes também greves e lockouts. Então, de acordo coma
tal lógica, pegava-se numa grande vassoura e limpava-se o estábulo à vassourada, ou pegava-se em
cacetes e armas e, à porrada, metia-se um bocado de senso na cabeça dos pobres idiotas que sofriam
da ilusão de que as coisas estavam fundamentalmente erradas. De vez em quando, era born falar de
Deus, ou arranjar umas palestras em comum - e, umas vezes por outras, podia até justificar-se um
bónus, quando as coisas estavam tão más, tão más, que não havia palavras que as justificassem.
Mas, de um modo geral, o importante era não parar de admitir e despedir: enquanto houvesse
homens e munições, a ordem era avançar, continuar a limpar as trincheiras. Entretanto, Hymie
continuava a tomar comprimidos catárticos - tantos que chegariam para lhe estoirar o traseiro se
isso fosse coisa que ele ainda tivesse, mas não tinha: imaginava apenas que estava a lascar,
imaginava apenas que cagava na pia. Na realidade, o pobre sacana vivia num transe. Havia que
pensar em cento e uma sucursais e cada uma tinha um quadro de boletineiros míticos, senão
hipotéticos, e quer os boletineiros fossem reais, quer não, Hymie tinha de os ir distribuindo de
manhã à noite, enquanto eu colmatava os buracos - o que também era imaginário, porque quando se
mandava um recruta para uma sucursal não se sabia se ele lá chegaria nesse dia, no seguinte ou
nunca. Uns perdiam-se no metropolitano ou nos labirintos debaixo dos arranha-céus; outros
passavam todo o dia no comboio aéreo, porque, uniformizados, o passeio era de borla e talvez eles
nunca tivessem tido o gosto de passear todo o dia no comboio aéreo. Uns punham-se a caminho de
Staten Island e iam parar a Canarsie, ou eram devolvidos à procedência, em estado de coma, por um
polícia;
Trópico de Capricórnio
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outros esqueciam-se onde moravam e desapareciam por cornpleto. Uns, que contratáramos para
Nova Iorque, apareciam em Filadélfia um mês depois, como se isso fosse a coisa mais natural deste
mundo; outros partiam para o seu destino, mas no caminho achavam que era mais fácil vender
jornais, e vendiam-nos, como uniforme que lhes déramos, até serem apanhados. Uns iam direitinhos
à sala de observações, levados por qualquer estranho instinto de conservação...
A primeira coisa que Hymie fazia, quando chegava de manhã, era afiar os lápis. Afiava-os
religiosamente, surdo aos telefones que tocavam, porque, conforme me explicou mais tarde, se não
os afiasse logo nunca os afiaria. A seguir, olhava pela janela, para ver como estava o tempo. Depois,
comum lápis recém-afiado, desenhava um quadrado ao alto da ardósia que tinha a seu lado e
escrevia lá o estado do tempo. Isso, segundo também me informou, podia muitas vezes transformarse num álibi útil. Se a neve tinha 30 cm de altura ou o chão estava coberto de granizo, até o próprio
Diabo podia ser desculpado por não movimentar os «waybills» mais depressa
- e o gerente do pessoal também podia ser desculpado se não preenchesse os buracos todos nesses
dias, não podia? No entanto, era um mistério para mim por que raio o tipo não ia lascar assim que
afiava os lápis, em vez de se apressurar todo como quadro dos telefones. Mas ele também me
explicou isso mais tarde. De qualquer maneira, o dia começava sempre comconfusão, queixas,
prisão de ventre e vagas. E também começava compeidos sonoros e fedorentos, mau hálito, nervos
esfrangalhados, epilepsia, meningite, ordenados baixos, pagamentos atrasados que já deviam ter
sido feitos, sapatos cambados, calos e joanetes, pés chatos, carteiras desaparecidas e canetas de tinta
permanente perdidas ou roubadas, telegramas a boiar no esgoto, ameaças do vice-presidente e
conselhos dos gerentes, brigas e zaragatas, trovoadas e fios telegráficos partidos, novos métodos de
eficiência e métodos antigos que tinham sido abandonados, esperança de melhores dias e uma prece
pelo bónus que nunca mais chegava. Os novos boletineiros saíam da trincheira e eram metralhados;
os antigos escavavam cada vez mais fundo, como ratos num queijo. Ninguém estava satisfeito, e
muito menos o público. Pelo telégrafo chegava-se a São Francisco em dez minutos, mas depois
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Henry Miller
era preciso um ano para fazer chegar o telegrama às mãos do destinatário. E também acontecia
nunca chegar.
A Y. M. C. A.1, sempre desejosa de melhorar o moral dos jovens trabalhadores de toda a América,
efectuava reuniões à hora do almoço: não gostaria de enviar alguns rapazes de ar desenxovalhado
para ouvirem William Carnegie Astenbit Júnior proferir uma palestra de cinco minutos acerca do
serviço? Mr. Mallory, da Liga do Bem-Estar, gostaria de saber se eu dispunha de alguns minutos
para me falar dos reclusos-modelo, em liberdade condicional, que gostariam de trabalhar em
qualquer coisa, até mesmo como boletineiros. Mrs. Guggenhoffer, da Caridade Judaica, ficaria
muito grata se a ajudasse a manter alguns lares desfeitos, que se tinham desfeito porque todos os
membros da família eram doentes, ou aleijados, ou incapacitados. Mr. Haggerty, do Lar-Abrigo
para Rapazes, estava certo de ter os jovens que me convinham, se lhes desse uma oportunidade;
todos eles tinham sido maltratados pelos padrastos ou pelas madrastas. O prefeito de Nova Iorque
agradecia que dispensasse a minha atenção pessoal ao portador da dita carta, por quem ele se
responsabilizava em todos os sentidos - mas por que raio não arranjava ele um emprego ao dito
portador era um mistério. Um homem inclina-se por cima do meu ombro e entrega-me um papel
onde acabou de escrever: «Mim compreender tudo, mas mim não ouvir as vozes.» Luther Winifried
está de pé ao lado dele, como casaco remendado preso por alfinetes-de-ama. Luther é dois sétimos
índio puro e cinco sétimos germano-americano, segundo explica. Do lado índio é um crow, um dos
Crows de Montana. O seu último emprego foi consertar gelosias de janelas, mas como não tem eu
nenhum dentro das calças envergonha-se de subir um escadote defronte de uma senhora. Saiu outro
dia do hospital, e por isso ainda está um bocadinho fraco, mas acha que não o está tanto que não
possa entregar telegramas.
Há também Ferdinand Mish. Como pude esquecê-lo? Passou a manhã na bicha à espera de falar
comigo. Nunca respondi às cartas que me escreveu. «Isso foi justo?», pergunta-me
1. Young Men’s Christian Association: Associação dos Jovens Cristãos. (N. da T.)
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suavemente. Claro que não foi. Lembro-me vagamente da última carta que me escreveu do Hospital
dos Cães e dos Gatos, aquando do Grande Concurso, onde foi servente. Dizia estar arrependido de
ter abandonado o emprego, mas fora por o pai ser demasiado rigoroso comele, não lhe permitindo
«qualquer recreio ou prazer no exterior». «Já tenho vinte e cinco anos», prosseguia, «e não devia
continuar a dormir como meu pai, não acha? Dizem que o senhor é um excelente cavalheiro e eu
agora sou independente, por isso espero...» McGovern, o velho ex-recluso bem comportado, está de
pé ao lado de Ferdinand, à espera do meu sinal. Quer correr comele, pois lembra-se de, há cinco
anos, Ferdinand se deitar no passeio defronte da sede, como uniforme, e ter um ataque epiléptico.
Mas, merda, não posso fazer isso! you dar uma oportunidade ao pobre sacana. Talvez o mande para
Chinatown, onde reina relativa calma. Entretanto, enquanto Ferdinand veste o uniforme na sala das
traseiras, ouço a conversa de um rapaz órfão que quer «ajudar a transformar a companhia num
êxito». Diz que, se lhe der uma oportunidade, rezará por mim todos os domingos quando for à
igreja, excepto naqueles em que tiver de se apresentar na Polícia, por causa da liberdade
condicional. Não fez nada, parece. Apenas empurrou o tipo, e o tipo caiu, bateu coma cabeça e
morreu. O seguinte: um ex-cônsul em Gibraltar. Tem uma caligrafia muito bonita, demasiado
bonita, mesmo. Peco-lhe que me procure no fim do dia; há qualquer coisa esquisita nele. Entretanto,
Ferdinand teve um ataque no vestiário. Que sorte! Se tivesse acontecido no metropolitano, fardado e
como número no boné e tudo, quem estaria lixado seria eu. O seguinte: um tipo só comum braço e
danado como um raio porque McGovern lhe aponta a porta. «comos diabos, sou forte e saudável,
não sou?», grita e, para o provar, pega numa cadeira como único braço e fá-la em fanicos. Volto à
secretária, onde encontro um telegrama à minha espera. Abro-o. É de George Blasini, ex-boletineiro
n.° 2459, do escritório de S. W. «Lamento ter tido de me despedir tão depressa, mas o trabalho não
era compatível coma indolência do meu carácter. Sou um verdadeiro amante do trabalho e da
frugalidade, mas muitas vezes somos incapazes de controlar ou dominar o nosso orgulho pessoal.»
Merda! Ao princípio sentia entusiasmo, apesar de tudo. Tinha ideias
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Henry Miller
e punha-as em prática, quer agradasse ao vice-presidente, quer não. De dez em dez dias, mais ou
menos, chamavam-me à pedra e pregavam-me um sermão por ter «um coração demasiado grande».
Nunca tinha dinheiro na algibeira, mas utilizava o dinheiro dos outros à vontade. Enquanto fosse o
chefe, tinha crédito. Dava dinheiro a torto e a direito, dava as minhas roupas exteriores e interiores,
dava os meus livros e tudo quanto era supérfluo. Se estivesse na minha mão, até teria dado a
companhia aos pobres diabos que não me largavam. Se me pediam dez cêntimos, dava meio dólar;
se me pediam um dólar, dava cinco. Estava-me cagando para o que dava, pois era mais fácil pedir
emprestado e dar do que negar ajuda aos desgraçados. Nunca vira um tal conjunto de miséria na
minha vida, e espero não o voltar a ver. Os homens são pobres em toda a parte, sempre o foram e
sê-lo-ão sempre. E debaixo da terrível pobreza há uma chama, geralmente tão fraca que se torna
quase invisível. Mas existe, e se um tipo tem a coragem de a soprar pode-se transformar num
incêndio. Estavam constantemente a recomendar-me que não fosse demasiado brando, que não
fosse demasiado sentimental, que não fosse demasiado caridoso. «Seja firme! Seja duro!»,
aconselhavam-me. «Vão-se foder comisso!», pensava. «Serei generoso, flexível, clemente,
tolerante, terno.» Ao princípio, ouvia todos os homens até ao fim; se não lhes podia dar trabalho,
dava-lhes dinheiro, e se não lhes podia dar dinheiro, dava-lhes cigarros ou dava-lhes coragem. Mas
dava! O efeito era inebriante. Ninguém pode avaliar os resultados de uma boa acção, de uma
palavra bondosa. Submergiam-me de gratidão, de votos de felicidade, de convites, de patéticos e
ternos presentezinhos. Se eu tivesse verdadeiro poder em vez de ser a quinta roda de uma
carruagem, sabe Deus o que poderia ter conseguido. Podia ter utilizado a Cosmodemonic Telegraph
Company of North America como base para aproximar toda a humanidade de Deus; podia ter
transformado a América do Norte e a do Sul, e também o domínio do Canadá. Tinha o segredo na
mão: ser generoso, ser bondoso, ser paciente. Fazia o trabalho de cinco homens e durante três anos
quase não dormi. Não tinha uma camisa em condições e muitas vezes tinha tanta vergonha de pedir
dinheiro emprestado à minha mulher, ou de roubar o mealheiro da miúda, que de manhã,
Trópico de Capricórnio
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a fim de pagar os transportes para o trabalho, intrujava o vendedor de jornais cego da estação do
metropolitano. Devia tanto dinheiro a toda a gente que nem que trabalhasse vinte anos o conseguiria
pagar. Pedia aos que tinham e dava aos que necessitavam, e assim é que estava bem. Voltaria a
fazer o mesmo, se voltasse a encontrar-me na mesma situação.
Até consegui o milagre de acabar coma louca carência crónica de pessoal, coisa que ninguém
ousara esperar. Mas, em vez de apoiarem os meus esforços, minaram-nos. Segundo a lógica dos
tipos de cima, a carência terminara porque os salários eram demasiado elevados. Por isso, toca a
reduzi-los. Foi como arrancar o fundo de um balde comum pontapé. Todo o edifício ruiu, se desfez
nas minhas mãos. E, como se nada tivesse acontecido, os tipos insistiram em que os buracos fossem
tapados imediatamente. A fim de adoçarem um bocadinho a pílula até insinuaram que podia
aumentar a percentagem de judeus, contratar um aleijado de quando em quando e, se ele fosse
capaz, fazer isto e aquilo, tudo coisas que anteriormente me tinham informado serem contra o
código. Fiquei tão furioso que admiti tudo e todos; teria admitido cavalos bravos e gorilas se me
fosse possível imbuí-los do mínimo de inteligência necessária para entregar telegramas. Alguns dias
antes, houvera apenas cinco ou seis vagas à hora de fechar; depois passou a haver trezentas,
quatrocentas, quinhentas... Escoavam-se como areia a correr por entre os dedos. Era maravilhoso.
Sentava-me à secretária e, sem uma pergunta, admitia-os às carradas: negros, judeus, paralíticos,
aleijados, ex-reclusos, putas, maníacos, pervertidos, idiotas, enfim, qualquer sacana do caraças
capaz de se aguentar nas duas pernas e segurar um telegrama na mão. Os gerentes das cento e uma
sucursais estavam transidos de medo. Eu ria-me. Ria-me o dia inteiro, só de pensar na grande
salgalhada que estava a arranjar. As queixas choviam, de todos os pontos da cidade. O serviço
estava manco, comprisão de ventre, estrangulado. Uma mula chegaria mais depressa ao destino do
que alguns dos idiotas que eu contratava.
A melhor coisa da nova era foi a admissão de mulheres, de boletineiras. Modificou por completo a
atmosfera da baiuca. Para Hymie, principalmente, foi uma dádiva do céu. Até virou o quadro
telefónico, enquanto fazia os seus malabarismos
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comos «waybills». Apesar do aumento de trabalho, o filho da mãe conseguia ter uma erecção
permanente. Chegava ao escritório a sorrir e sorria todo o dia. Estava no céu. À hora de fechar, eu
tinha sempre uma lista de cinco ou seis comas quais valia a pena tentar a sorte. O jogo consistia em
mante-las na expectativa, em prometer-lhes emprego mas obter uma foda grátis primeiro.
Geralmente, bastava pagar-lhes uma refeição para as levar à noite ao escritório e deitá-las na mesa
de tampo de zinco do vestiário. Se tinham um apartamento acolhedor, como por vezes acontecia,
levávamo-las a casa e acabávamos a festa na cama. Se gostavam de beber, Hymie levava uma
garrafa. Se prestavam para alguma coisa e precisavam realmente de massa, Hymie sacava do rolo
das notas e esmifrava cinco ou dez dólares, conforme os casos. Sinto água na boca quando penso no
maço de notas que ele trazia consigo. Nunca descobri como o arranjava, pois era o homem mais mal
pago do escritório, mas a verdade é que ele o tinha e eu obtinha fosse o que fosse que lhe pedisse.
Uma vez recebemos um bónus e eu paguei tudo, tudo, ao Hymie, que ficou tão banzado que me
levou ao Delmonico’s, nessa noite, e gastou uma fortuna comigo. E, como se isso não chegasse, no
dia seguinte insistiu em comprar-me um chapéu, camisas e luvas. Até insinuou que podia ir a sua
casa e foder-lhe a mulher, se me agradasse, embora me avisasse que ela andava comuns
problemazinhos ováricos.
Além de Hymie e McGovern tinha como ajudantes um par de bonitas louras, que iam
frequentemente jantar connosco. E havia O’Mara, um velho amigo meu recém-chegado das
Filipinas e que nomeei meu principal ajudante. E Steve Romero, um autêntico touro que mantinha
no escritório para o caso de haver algum sarilho. E O’Rourke, o detective da cornpanhia, que se me
apresentava no fim do dia, quando pegava ao trabalho. Por fim, juntei outro homem ao quadro do
pessoal: Kronski, um jovem estudante de medicina diabolicamente interessado nos casos
patológicos que não nos faltavam nunca. Éramos um grupo alegre, unidos no desejo comum de
foder a companhia custasse o que custasse. E enquanto fodíamos a companhia íamos fodendo
quanto aparecia a jeito - todos excepto O’Rourke, que precisava de manter uma certa dignidade e,
além disso, tinha problemas coma próstata
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e perdera todo o interesse em foder. Mas O’Rourke era um príncipe, uma pérola de homem, e
indizivelmente generoso. Era O’Rourke que nos convidava frequentemente para jantar, à noite, e
era a O’Rourke que recorríamos quando estávamos em apuros.
Era neste pé que as coisas se encontravam em Sunset Place, depois de decorrido um par de anos. Eu
estava saturado de humanidade, de experiências de um tipo ou doutro. Nos meus momentos mais
sérios, tomava apontamentos de que tencionava servir-me mais tarde, se alguma vez tivesse a
oportunidade de contar as minhas experiências. Esperava por uma aberta, por um momento para
tomar fôlego. Até que um dia, por mero acaso, quando fui chamado à pedra por causa de uma
negligência intencional qualquer, o vice-presidente disse uma frase que se me encasquetou na tola.
Disse que gostaria de ver alguém escrever uma espécie de Livro de Horatio Alger dos boletineiros;
insinuou que talvez eu fosse a pessoa indicada para isso. A idiotice do gajo enfureceu-me, mas ao
mesmo tempo encantou-me secretamente, pois estava em pulgas para deitar cá para fora tudo
quanto vira... «Espera-lhe pela pancada, dar-te-ei o teu Livro de Horatio Alger...» Quando saí do
gabinete a cabeça andava-me à roda. Vi o exército de homens, mulheres e crianças que me tinham
passado pelas mãos, vi-os chorando, suplicando, humilhando-se, implorando, praguejando,
cuspindo, barafustando, ameaçando... Vi os rastos que deixavam nas auto-estradas, os comboios de
mercadorias virados, os pais esfarrapados, o caixote do carvão vazio, a pia a deitar por fora, as
paredes a ressumar humidade e, entre as gotas do frio suor que transpiravam, as baratas às
corridinhas loucas; vi-os manquejando como gnomos torcidos, ou caindo para trás no frenesi
epiléptico, de boca sacudida por espasmos, saliva a escorrer dos lábios e membros aos estremeções;
vi as paredes cederem e a praga espalhar-se como um fluido alado, enquanto os gajos de cima,
coma sua lógica de ferro, esperavam que passasse o mau tempo, esperavam que tudo se remediasse,
esperavam regaladamente, manhosamente, comgrandes charutos na boca e os pés em cima da
secretária, dizendo que as coisas estavam temporariamente fora da ordem, apenas. Vi o herói do
Horatio Alger, o sonho de uma América doente, sempre a subir, primeiro boletineiro,
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Henry Miller
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depois operador, depois gerente, depois chefe, depois superintendente, depois vice-presidente,
depois presidente, depois magnata de trust, depois barão da cerveja, depois Senhor de todas as
Americas, o deus do dinheiro, o deus dos deuses, o barro do barro, alta nulidade, zero comnoventa e
sete mil decimais à esquerda e à direita... «Seus merdas», pensei, «dar-vos-ei a imagem de doze
homenzinhos, zeros sem decimais, cifras, dígitos, os doze inesmagáveis vermes que estão a minar a
base do vosso podre edifício. Dar-vos-ei Horatio Alger como seu aspecto do dia após o Apocalipse,
quando todo o fedor se dissipou.»
Tinham vindo a mim de toda a Terra para serem socorridos. Tirando as primitivas, praticamente não
havia uma raça que não estivesse representada na força. Tirando os Ainos, os Maoris, os Papuas, os
Vedas, os Lapões, os Zulos, os Patagónios, os Igorotes, os Hotentotes e os Tuaregues, tirando os
desaparecidos Tasmanianos, os desaparecidos homens de Grimaldi e os desaparecidos Atlantas,
tinha um representante de quase todas as raças que o Sol cobre. Tinha dois irmãos que ainda eram
adoradores do Sol, dois nestonanos do antigo mundo assírio; tinha dois gémeos malteses e um
descendente dos Maias do lucatão; tinha alguns dos nossos irmãozinhos acastanhados das Filipinas
e alguns etíopes da Abissínia; tinha homens das pampas da Argentina e cowboys tresmalhados de
Montana; tinha gregos, letões, polacos, croatas, eslovenos, rutenos, checos, espanhóis, galeses,
finlandeses, suecos, russos, dinamarqueses, mexicanos, porto-riquenhos, cubanos, uruguaios,
brasileiros, australianos, persas, japoneses, chineses, javaneses, egípcios, africanos da Costa do
Ouro e da Costa do Marfim, hindus, arménios, turcos, árabes, alemães, irlandeses, ingleses,
canadianos e muitos italianos e muitos judeus. Que me lembre, só tive um francês, e mesmo esse
durou apenas três horas, mais ou menos. Tive alguns índios americanos - principalmente cheroquis , mas não tive tibetanos nem esquimós. Vi nomes que jamais imaginara existissem e caligrafias que
iam do cuneiforme à escrita sofisticada e espantosamente bonita dos Chineses. Ouvi pedirem-me
trabalho homens que tinham sido egiptólogos, botânicos, cirurgiões, mineiros de ouro, professores
de línguas orientais, músicos, engenheiros, médicos, astrónomos, antropólogos, químicos,
matemáticos,
prefeitos de cidades e governadores de estados, directores prisionais, vaqueiros, lenhadores,
marinheiros, pescadores de ostras, estivadores, rebitadores, dentistas, pintores, escultores,
canalizadores, arquitectos, vendedores de droga, abortadores, traficantes de carne branca,
mergulhadores, limpa-chaminés, lavradores, vendedores de fatos, armadilheiros, guardas de faróis,
proxenetas, vereadores, senadores, enfim, todas as profissões existentes sob o Sol, e todos eles a
suplicar trabalho, cigarros, dinheiro para os transportes, uma oportunidade, Cristo Todo-Poderoso,
só mais uma oportunidade! Vi, e aprendi a conhecer, homens que eram santos, se há santos neste
mundo; vi e falei comsábios, crapulosos e não crapulosos, escutei homens que tinham o fogo divino
nas entranhas, que seriam capazes de convencer Deus Todo-Poderoso de que eram dignos de outra
oportunidade, mas não conseguiam convencer o vice-presidente do Cosmococcic Telegraph
Company. Imóvel, sentado à secretária, viajei pelo mundo fora à velocidade da luz e aprendi que
em toda a parte existe e acontece a mesma coisa: fome, humilhação, ignorância, vício, ganância,
extorsão, chicana, tortura, despotismo; a desumanidade do homem para como homem; as grilhetas,
o jugo, o cabresto, as rédeas, o chicote e as esporas. Quanto melhor é o calibre, pior está o homem.
Calcorreavam as ruas de Nova Iorque, naquele maldito e degradante uniforme, o mais desprezado e
o mais vil dos vis, homens que caminhavam como alças, como pinguins, como bois, como focas
amestradas, como burros pacientes, como grandes machos, como gorilas loucos, como maníacos
dóceis atrás de uma isca pendurada à sua frente, como ratos valsadores, como cobaias, como
esquilos, como coelhos, caminhavam assim e muitos e muitos deles eram capazes de governar o
mundo ou de escrever o mais grandioso dos livros. Quando penso em alguns dos persas, dos hindus
e dos árabes que conheci, quando penso no carácter que revelaram, na sua graça, na sua delicadeza,
na sua inteligência e na sua santidade, cuspo nos conquistadores brancos do Mundo, nos
degenerados Ingleses, nos teimosos Alemães, nos presumidos e enfatuados Franceses. A Terra é um
grande ser sensível, um planeta saturado e ressaturado de homens, um planeta vivo que se exprime
hesitante e tartamudeantemente; não é a pátria da raça branca, ou da raça negra, ou da
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Henry Miller
raça amarela, ou da desaparecida raça azul e, sim, a pátria do Homem, e todos os homens são iguais
perante Deus e terão a sua oportunidade, se não agora, daqui a um milhão de anos. Os irmãozmhos
acastanhados das Filipinas podem voltar a ter o vigor perdido, um dia, e os índios assassinados das
Americas do Norte e do Sul podem também ressuscitar, um dia, e cavalgar pelas planícies onde
agora se erguem cidades que vomitam fogo e pestilência. Quem tem a última palavra? O Homem! A
Terra é dele, porque ele é a Terra, o seu fogo, a sua água, o seu ar, a sua matéria mineral e vegetal, o
seu espírito que é cósmico, que é imperecível, que é o espírito de todos os planetas, que se
transforma através dele, através de infindáveis sinais e símbolos, de infindáveis manifestações.
Esperem, seus merdas cosmocócicos telegráficos, seus demónios que aguardam lá em cima que
consertem a canalização; esperem, seus imundos conquistadores brancos que macularam a Terra
comos seus pés de bode, os seus instrumentos, as suas armas, os seus germes de doenças; esperem,
todos quantos estão ao abrigo a contar as massas, esperem que ainda não é o fim. O último homem
dirá o que tem a dizer, antes de tudo acabar. Deve fazer-se justiça até à mais ínfima molécula
sensível, e justiça será feita! Ninguém ficará impune seja pelo que for que tiver feito, e muito
menos os merdas cosmocócicos da América do Norte.
Quando chegou a altura das minhas férias - em três anos não as tivera, tão ansioso estava por
contribuir para o êxito da companhia! , pedi três semanas em vez de duas e escrevi o livro acerca
dos doze homenzinhos. Escrevi-o de uma assentada, cinco mil, sete mil e às vezes até oito mil
palavras por dia. Pensava que um homem, para ser escritor, devia escrever pelo menos cinco mil
palavras por dia. Pensava que devia dizer tudo de uma vez - num só livro - e depois cair. Não sabia |
nada acerca de escrever. Estava cagado de medo. Mas estava ’ também decidido a apagar Horatio
Alger da consciência norte-americana. Suponho que foi o pior livro, jamais escrito por homem
algum. Era um volume colossal e imperfeito do princípio ao fim. Mas era o meu primeiro livro, e eu
estava apai- ; xonado por ele. Se tivesse tido dinheiro, como Gide, tê-lo-ia publicado por minha
conta. Se tivesse tido a coragem que Whitman teve, tê-lo-ia vendido de porta em porta. Todas as |
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pessoas a quem o mostrava diziam que era pavoroso. Aconselharam-me a abandonar a ideia de
escrever. Tinha de aprender, como Balzac aprendera, que um homem devia escrever volumes e
volumes antes de assinar como seu verdadeiro nome. Tinha de aprender, e não tardei a aprender,
que um homem tinha de desistir de tudo e não fazer mais nada senão escrever, que tinha de
escrever, e escrever, e escrever, mesmo que toda a gente o desaconselhasse, mesmo que ninguém
acreditasse nas suas possibilidades. Talvez consigamos escrever precisamente porque ninguém
acredita na nossa capacidade para tal, talvez o verdadeiro segredo resida em fazer as pessoas
acreditar. O facto de o livro ser impróprio, imperfeito, mau, pavoroso, como diziam, era natural.
Pretendi começar pelo que um homem de génio só empreenderia no fim. Quis dizer a última palavra
no princípio. Foi absurdo e patético. Foi uma derrota esmagadora, mas reforçou-me a espinha
comferro e pôs-me enxofre no sangue. Sabia finalmente o que era falhar. Sabia o que era tentar algo
grande. Hoje, quando penso nas circunstâncias em que escrevi aquele livro, quando penso na
espantosa quantidade de material que tentei utilizar, quando penso no que esperei abarcar, dou uma
palmadinha nas próprias costas e acho que mereci um vinte. Sinto-me orgulhoso por o livro ter sido
um fracasso tão estrondoso; se tivesse sido um êxito, eu seria um monstro. Às vezes, quando dou
uma vista de olhos aos meus livros de apontamentos, quando olho só para os nomes daqueles acerca
dos quais quis escrever, sinto vertigens. Cada um daqueles homens me procurara comum mundo
seu; procurara-me e descarregara-o na minha secretária, esperando que eu o apanhasse e o colocasse
nos meus ombros. Não tinha tempo para criar um mundo meu: tinha de estar imobilizado como
Atlas, comos pés nas costas do elefante, e o elefante em cima das costas da tartaruga. Tentar saber
em cima do que estava a tartaruga teria sido enlouquecer.
Não ousei pensar em nada, então, a não ser nos «factos». Para alcançar o que existia sob os factos
precisaria de ser um artista, e um tipo não se torna artista da noite para o dia. Primeiro precisa de ser
esmagado, de que os seus contraditórios pontos de vista sejam aniquilados. Precisa de ser apagado
do mapa como ser humano para renascer como indivíduo. Precisa
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Henry Miller
de ser carbonizado e mineralizado, a fim de emergir do último denominador comum do eu. Precisa
de ultrapassar a compaixão, a fim de sentir a partir das próprias raízes do ser. Não se podem fazer
uma nova terra e um novo céu com«factos». Não há «factos»; há apenas o facto de que o homem,
todo o homem em toda a parte do mundo, vai a caminho da ordenação. Uns enveredam pelo
caminho mais longo e outros pelo caminho mais curto. Todo o homem está a elaborar o seu destino
à sua própria maneira, e ninguém o pode ajudar, a não ser sendo amável, generoso e paciente. No
meu entusiasmo, achava então inexplicáveis certas coisas que hoje acho claras. Estou a pensar, por
exemplo, em Carnahan, um dos doze homenzinhos acerca dos quais decidira escrever. Era o que se
chama um boletineiro modelo. Formado por uma universidade importante, tinha uma inteligência sã
e um carácter exemplar. Trabalhava dezoito e vinte horas por dia e ganhava mais do que qualquer
boletineiro da força. Os clientes que servia escreviam cartas a elogiá-lo, a pô-lo, como se costuma
dizer, nos cornos da Lua; ofereciam-lhe bons empregos, que recusava por um motivo ou outro.
Vivia frugalmente e mandava a maior parte do que ganhava à mulher e aos filhos, que residiam
noutra cidade. Tinha dois vícios: beber e a ambição de ser bem-sucedido. Era capaz de passar um
ano sem beber, mas se levava uma gota aos lábios estava tramado. Ganhara born dinheiro na Wall
Street, por duas vezes, e, contudo, antes de me procurar a pedir emprego não conseguira mais do
que ser sacristão na igreja de uma pequena cidade qualquer - emprego de que fora despedido porque
bebera o vinho sacramental e tocara os sinos toda a noite. Era honesto, sincero, zeloso. Eu
depositava implícita confiança nele, e a minha confiança era justificada pela sua folha de serviços
sem mácula. No entanto, abriu fogo contra a mulher e os filhos a sangue-frio e depois disparou
contra si mesmo. Felizmente nenhum deles morreu; foram todos internados juntos e refizeram-se
todos. Fui visitar a mulher, depois de o terem transferido para a cadeia, a fim de que o ajudasse.
Recusou categoricamente, afirmando que ele era o filho da puta mais desprezível e mais cruel que
jamais existira. Só desejava vê-lo enforcado. Instei comela durante dois dias, supliquei-lhe, mas
mostrou-se inabalável. Fui à cadeia e falei comele através da rede. Descobri que já se tornara
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popular entre as autoridades e já conseguira privilégios especiais. Não estava nada desanimado.
Pelo contrário, resolvera tirar todo o proveito possível do tempo que passasse na prisão,
«estudando» a arte de vender. Seria o melhor vendedor da América, quando o libertassem. Quase
posso dizer que parecia feliz. Pediu-me que não me preocupasse comele, que se havia de safar bem.
Afirmou que eram todos porreiros e não tinha nenhuma razão de queixa. Vim-me embora meio
atordoado. Fui a uma praia próxima e resolvi dar um mergulho. Vi tudo comnovos olhos e quase me
esqueci de regressar a casa, de tal maneira me deixei absorver pelas especulações acerca do
indivíduo. Quem poderia dizer que tudo quanto lhe sucedera não tinha sido pelo melhor? Talvez
saísse da prisão transformado num evangelista perfeito, em vez de num vendedor. Ninguém poderia
prever o que ele faria. E também ninguém o poderia ajudar, porque ele estava a elaborar o seu
destino à sua maneira especial.
Havia outro tipo, um hindu chamado Guptal. Não era apenas um modelo de born comportamento:
era um santo. Tinha uma paixão pela flauta, que tocava sozinho no seu miserável quartinho. Um dia
foi encontrado nu, na cama, coma garganta aberta de orelha a orelha e a flauta ao lado.
Acompanharam o funeral umas doze mulheres que verteram lágrimas apaixonadas e, entre elas, a
mulher do porteiro que o assassinara. Seria capaz de escrever um livro acerca deste jovem, que foi o
homem mais delicado e mais santo que jamais conheci, que nunca ofendeu ninguém e nunca tirou
nada a ninguém, mas cometeu o erro capital de vir para a América a fim de pregar a paz e o amor.
Havia também Dave Olinski, outro fiel e afadigado boletineiro que só pensava em trabalho e mais
nada. Tinha uma fraqueza fatal: falava de mais. Quando me procurou já dera a volta ao Globo
diversas vezes e o que não fizera para ganhar a vida fora tão pouco que nem vale a pena mencionálo. Sabia umas doze línguas e orgulhava-se muito da sua aptidão linguística. Tratava-se de um
daqueles homens cuja boa vontade e cujo entusiasmo eram a sua perda. Queria ajudar toda a gente,
mostrar a toda a gente como ter êxito. Queria mais trabalho do que lhe podíamos dar; era um glutão
por trabalho. Talvez o devesse ter avisado, quando o mandei para o escritório
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Henry Miller
do East Side, de que ia trabalhar numa zona perigosa. Mas ele dizia saber tanto e insistira de tal
maneira em trabalhar naquela localidade (por causa da sua aptidão linguística), que não lhe disse
nada. Pensei para comigo que não tardaria a aprender à sua custa. E na verdade pouco depois estava
em apuros. Um dia, um jovem judeu, dos duros, morador nas imediações, entrou e pediu um
impresso de inscrição. Dave, o boletineiro, estava sentado à secretária e não gostou da maneira
como o outro pediu o impresso. Disse-lhe que devia ser mais delicado, o que lhe valeu uma caldaça
nas orelhas. Isso desatou-lhe ainda mais a língua, do que resultou levar tal tareia que engoliu alguns
dentes e ficou como queixo partido em três pontos. Mas nem mesmo assim teve o born senso de
calar a boca. Como o grandíssimo idiota que era, foi à esquadra e apresentou queixa. Uma semana
depois, quando estava sentado num banco a dormitar, uma quadrilha de valentaços entrou no
escritório e fê-lo em papas. Deixaram-lhe a cabeça de tal maneira que os miolos pareciam uma
omeleta. E, já que estavam coma mão na massa, despejaram o cofre e viraram-no de pernas para o
ar. Dave morreu a caminho do hospital. Encontraram-lhe quinhentos dólares escondidos numa
peúga... Havia também Clausen e a mulher, Lena. Apresentaram-se juntos, quando ele foi pedir
emprego. Lena tinha um bebé ao colo e ele dava a mão a dois garotinhos. Foram-me enviados por
uma obra de assistência qualquer. Admiti-o como boletineiro nocturno, pois assim teria um salário
fixo. Poucos dias depois, recebi uma carta maluca em que me pedia lhe desculpasse a ausência, mas
tinha de se apresentar ao responsável pela sua liberdade. Depois chegou outra carta a dizer que a
mulher se recusava a dormir comele porque não queria ter mais filhos e a pedir-me o favor de os
visitar e tentar persuadi-la a dormir comele. Fui a casa deles, uma cave no bairro italiano. Parecia
um manicómio. Lena estava outra vez grávida, já quase de sete meses, e à beira da idiotia. Passara a
dormir no telhado, porque estava muito calor na cave e também porque não queria que ele lhe
voltasse a tocar. Quando lhe disse que, no estado em que se encontrava, não faria diferença
nenhuma, limitou-se a olhar-me e a sorrir. Clausen estivera na guerra e talvez os gases o tivessem
deixado um pouco apatetado - pelo í menos naquela altura espumava pela boca. Disse que lhe esTrópico de Capricórnio
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toiraria a cabeça se não saísse do telhado e insinuou que Lena dormia lá em cima para se entender
como carvoeiro que morava no sótão. Ao ouvir tais palavras, Lena sorriu de novo, como seu sorriso
batraquiano e sem alegria. Clausen perdeu a tramontana e deu-lhe um pontapé no eu, o que a levou
a sair, toda arrufada, comos fedelhos. Clausen gritou-lhe que escusava de voltar, abriu a gaveta e
tirou um grande Colt. Tinha-o guardado para o caso de vir a precisar dele, disse. Mostrou-me
também algumas facas e uma espécie de cassetete que ele próprio fizera. Depois começou a chorar.
A mulher andava a fazer dele parvo, queixou-se. Estava farto, esfalfava-se a trabalhar para ela e ela
dormia comtoda a gente da vizinhança. Os miúdos não eram dele; já não era capaz de fazer um
miúdo mesmo que quisesse. No dia seguinte, quando Lena saiu para fazer compras, Clausen levou
os garotos para o telhado e estoirou-lhes os miolos como cassetete que me mostrara. Depois atirouse para a rua, de cabeça. Quando chegou a casa e viu o que acontecera, Lena perdeu por completo o
juízo. Tiveram de lhe vestir um colete-de-forças e chamar uma ambulância... Havia também
Schuldig, o desgraçado que passara vinte anos preso por um crime que não cometera. Tinha sido
espancado quase até à morte antes de confessar; depois, incomunicabilidade, fome, tortura,
perversão e droga. Quando finalmente o libertaram, deixara de ser um ser humano. Uma noite,
falou-me dos últimos trinta dias que passara na prisão, na angústia de esperar que o libertassem.
Nunca ouvi nada semelhante e nunca imaginara que um ser humano pudesse sobreviver a tal
agonia. Em liberdade, era perseguido pelo medo de ser obrigado a cometer um crime e ir de novo
para a prisão. Queixava-se de que o seguiam e espiavam constantemente. Dizia que «eles» o
tentavam, para que fizesse coisas que não tinha desejo nenhum de fazer. «Eles» eram os detectives
que lhe andavam no encalço e a quem pagavam para o levarem de novo para a cadeia. À noite,
quando dormia, segredavam-lhe ao ouvido. Era impotente contra eles, porque primeiro o
hipnotizavam. Às vezes punham-lhe droga debaixo da almofada e, coma droga, um revólver ou uma
faca. Queriam que matasse uma pessoa inocente qualquer, para desta vez terem uma acusação de
pedra e cal contra ele. como tempo, foi-se tornando cada vez pior. Uma noite, depois de ter
vagueado
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Henry Miller
durante horas comum maço de telegramas na algibeira, foi direito a um polícia e pediu-lhe que o
prendesse. Não se lembrava do nome nem da morada, nem mesmo do escritório para o qual
trabalhava. Perdera por completo a identidade. Repetia e tornava a repetir, incessantemente: «Estou
inocente... estou inocente...» Voltaram a aplicar-lhe o terceiro grau. De súbito, levantou-se de um
salto e gritou, como um louco: «Eu confesso! Eu confesso!» E desatou a desfiar um crime após
outro, durante três horas. Até que, no meio de uma angustiosa confissão, se calou bruscamente,
olhou à sua volta como quem acorda de repente e, coma rapidez e a força de que só um louco é
capaz, deu um salto tremendo através da sala e esmagou a cabeça contra a parede de pedra... Relato
estes incidentes resumida e apressadamente, à medida que me ocorrem; a minha memória está
congestionada commilhares de casos semelhantes, comuma miríade de rostos, gestos, histórias e
confissões, todas entrosadas e entrelaçadas como a fachada estupenda e inebriante de um templo
hindu feito, não de pedra, mas sim da experiência da carne humana, de um monstruoso edifício de
sonho construído inteiramente de realidade sem contudo ser realidade, sendo apenas o vaso em que
está contido o mistério do ser humano. A minha mente conduz-me à clínica onde, na ignorância e
na boa fé, levei alguns dos mais novos, para que os curassem. Não me ocorre, para dar uma ideia da
atmosfera do lugar, nenhuma imagem mais sugestiva do que o quadro de Hieronymus Bosch em
que o mágico, como um dentista extraindo um nervo vivo, é representado a libertar a insanidade.
Toda a parlapatice e charlatanice dos nossos especialistas na matéria atinge a apoteose na pessoa do
suave sádico que dirigia a clínica, comtoda a colaboração e conivência das autoridades. Para ser
outro Cagliari só lhe faltavam as orelhas de burro. Fingindo cornpreender os mecanismos secretos
das glândulas, investido como poder de um monarca medieval, sem ligar importância à dor que
infligia e ignorando tudo quanto não fosse o seu conhecimento médico, desatava a trabalhar no
organismo humano como um canalizador se lança ao trabalho nos canos de esgoto subterrâneos.
Além dos venenos que introduzia no organismo do paciente, recorria aos punhos ou aos joelhos,
conforme fosse mais conveniente. Uma «reacção» justificava |
Trópico de Capricórnio
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tudo. Se a vítima se mostrava letárgica, gritava-lhe, esbofeteava-a, beliscava-lhe um braço, dava-lhe
um caldo ou aplicava-lhe um pontapé. Se, pelo contrário, a vítima se mostrava excessivamente
enérgica, empregava os mesmos métodos, mas comredobrado afã. Os sentimentos do paciente não
lhe importavam para nada; fosse qual fosse, a reacção que conseguia obter era apenas uma
manifestação ou uma demonstração das leis que regulavam o funcionamento das glândulas de
secreção interna. O objectivo do seu tratamento era tornar o sujeito apto a viver em sociedade. Mas
por muito depressa que trabalhasse, e quer tivesse êxito, quer falhasse, a sociedade era ainda mais
rápida e cada vez rejeitava mais inadaptados. Alguns eram-no tão maravilhosamente que quando
ele, para obter a proverbial reacção, os esbofeteava vigorosamente, reagiam comum uppercut ou um
pontapé nos tomates. É verdade, porém, que a maioria dos seus pacientes eram exactamente aquilo
que ele diagnosticava: criminosos incipientes. Todo o continente estava a descambar - e ainda está , e não eram só as glândulas que precisavam de ser afinadas: eram também os rolamentos de
esferas, a armação, a estrutura esquelética, o cérebro, o cerebelo, o cóccix, a laringe, o pâncreas, o
fígado, o intestino grosso e o intestino delgado, o coração, os rins, os testículos, o útero, as trompas
de Falópio, enfim, toda a tralha. O país inteiro é desrespeitador das leis, violento, explosivo,
demoníaco. E uma coisa que está no ar, no clima, na ultragrandiosidade da paisagem, nas florestas
petrificadas que jazem na horizontal, nos rios torrenciais que abrem caminho através dos
desfiladeiros rochosos, nas distâncias supranormais, nos sublimes desertos áridos, nas colheitas
excepcionais, nos frutos monstruosos, na mistura de sangues quixotescos, na miscelânea de cultos,
seitas e crenças, na oposição de leis e línguas e na contraditatoriedade de temperamentos,
princípios, necessidades e exigências. O continente está pletórico de violência enterrada, de ossos
de monstros antediluvianos e de raças desaparecidas, de mistérios envoltos em perdição. Por vezes a
atmosfera torna-se tão eléctrica que a alma é atraída para fora do corpo e anda à toa, louca. Como a
chuva, vem tudo a potes - ou não vem. Todo o continente é um imenso vulcão cuja cratera está
temporariamente oculta por um panorama móvel que é parte sonho, parte
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medo e parte desespero. Do Alasca ao lucatão, a história é a mesma. A Natureza domina. A
Natureza vence. Existe em toda a parte a mesma ânsia fundamental para chacinar, para destruir,
para pilhar. Exteriormente, parece um povo excelente e honesto: saudável, optimista e corajoso.
Interiormente, está cheio de vermes. Uma centelhazinha e explode.
Acontecia muitas vezes, como na Rússia, um homem chegar amuado. Acordara assim, como que
assarapantado por uma monção. Nove vezes em dez era born tipo, toda a gente gostava dele. Mas
quando a cólera irrompia nada o conseguia deter. Era como um cavalo comos vagados, e a melhor
coisa que se poderia fazer por ele seria abatê-lo logo. Acontece sempre assim comas pessoas
pacíficas. Um dia ficam amoque. Na América estão constantemente a ficar amoque. Do que
precisam é de um escape para a sua energia, para a sua sede de sangue. A Europa é sangrada
regularmente pela guerra. A América é pacifista e canibalista. Exteriormente, parece um belo favo
de mel, comos zangãos a amarinharem uns por cima dos outros, num frenesi de trabalho;
interiormente, é um matadouro, comcada homem a matar o vizinho e a chupar-Ihe o tutano dos
ossos. Superficialmente, parece um mundo ousado, viril; na realidade, é um bordel dirigido por
mulheres, comos nativos a actuarem como alcaiotes e os malditos estrangeiros a venderem a sua
carne. Ninguém sabe o que é sentar o eu e estar satisfeito. Isso só acontece nos filmes, onde tudo é
forjado, até os fogos do Inferno. Todo o continente dorme profundamente, e nesse sono desenrolase um grande pesadelo.
Ninguém seria capaz de dormir mais profundamente do que eu no meio desse pesadelo. A guerra,
quando chegou, só produziu um estrondear distante e abafado aos meus ouvidos. Como os meus
compatriotas, era pacifista e canibalista. Os milhões devorados pela carnificina passaram como uma
nuvem, do mesmo modo que passaram os Astecas, e os Inças, e os Peles-Vermelhas, e os búfalos.
As pessoas fingiam-se profundamente emocionadas, mas não estavam. Limitavam-se a mexer-se
espasmodicamente no sono. Ninguém perdeu o apetite, ninguém se levantou e tocou o alarme de
fogo. Quan- ,; do tive pela primeira vez consciência de que houvera uma guerra, já se assinara o
armistício havia uns seis meses. Ia num }
Trópico de Capricórnio
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eléctrico na Rua 14. Um dos nossos heróis, um rapaz do Texas comuma enfiada de medalhas
através do peito, viu um oficial a passar e ficou furioso. Ele era sargento e provavelmente tinha boas
razões para se sentir magoado. Fosse como fosse, o facto de ver o oficial enraiveceu-o tanto que se
levantou do lugar e desatou a berrar contra o Governo, o Exército, os civis, os passageiros do
eléctrico, tudo e todos. Disse que, se houvesse outra guerra, nem comuma parelha de vinte muares o
conseguiriam arrastar para ela. Disse que primeiro veria todos os filhos da puta mortos, antes de ele
próprio ir. Disse que se estava cagando para as medalhas que lhe tinham dado e, para demonstrar
que falava a sério, arrancou-as do peito e atirou-as pela janela fora. Disse que, se voltasse a estar
numa trincheira comum oficial, o mataria comum tiro nas costas, como a um cão imundo, e que isso
se aplicava ao general Pershing ou a qualquer outro general. Disse mais uma quantidade de coisas,
comalgumas palavras feias que por lá aprendera à mistura, e ninguém abriu a boca para o
contradizer. Quando acabou, senti pela primeira vez que houvera realmente uma guerra, que o
homem que ouvira andara nela, que apesar da sua bravura a guerra fizera dele um cobarde e que, se
voltasse a matar, seria completamente acordado e a sangue-frio, mas ninguém teria a coragem de o
mandar para a cadeira eléctrica porque ele cumprira o seu dever para comos seus concidadãos dever que era ignorar todos os seus próprios instintos sagrados - e, portanto, estava tudo certo e era
tudo justo, porque um crime lavava o outro em nome de Deus, pátria e humanidade, a paz seja
comtodos vós... A segunda vez que experimentei a realidade da guerra foi quando o ex-sargento
Griswold, um dos nossos boletineiros nocturnos, perdeu os trambelhos e fez o escritório em fanicos,
numa das estações de caminhos-de-ferro. Mandaram-mo, para que o pusesse na rua, mas não tive
coragem de o despedir. O tipo executara um acto de destruição tão belo que senti mais vontade de o
abraçar do que de outra coisa. Só desejava que ele fosse ao vigésimo quinto andar, ou onde diabo o
presidente e os vice-presidentes tinham os seus gabinetes, e fizesse uma limpeza à maldita
quadrilha. Mas, em nome da disciplina e de acordo coma maldita farsa que tudo aquilo era, tinha de
fazer qualquer coisa para o castigar, se não queria ser castigado eu, e por
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Trópico de Capricórnio
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isso, sem saber que menos poderia fazer, tirei-o do trabalho à comissão e repu-lo numa base
salarial. O tipo levou a coisa muito a mal, sem compreender qual era exactamente a minha posição,
se era por ele se contra ele, e por isso não tardei a receber uma carta sua, a dizer que me faria uma
visitinha dentro de um ou dois dias e que estivesse preparado, pois ia-se vingar: no meu couro.
Acrescentava que apareceria depois das horas de serviço e dizia que, se tivesse medo, seria melhor
ter alguns calmeirões a proteger-me. Compreendi que falava muitíssimo a sério e senti-me muito
fraco das canetas quando acabei de ler a carta. No entanto, esperei-o sozinho, pois parecia-me que
ainda seria mais cobarde pedir protecção. Foi uma estranha experiência. Ele deve ter compreendido,
no momento em que pôs os olhos em mim, que eu era um filho da puta e um hipócrita mentiroso e
fedorento, como me chamava na sua carta. Mas eu era isso apenas porque ele era o que era, isto é,
pouco ou nada melhor do que eu. Deve ter compreendido imediatamente que estávamos ambos no
mesmo bote e que o maldito metia água assustadoramente. Vi que se passava algo desse género no
seu íntimo quando ele avançou, exteriormente ainda furioso, ainda a espumar pela boca, mas
interiormente já extinto, já todo mole e fofo. Quanto a mim, o medo que tinha dissipou-se no
momento em que o vi entrar. O simples facto de estar ali calmo e sozinho, e de ser menos fone,
menos capaz de me defender, dava-me ascendente sobre ele. Não que me interessasse ter
ascendente sobre ele, porém. Mas acontecera assim e, naturalmente, tirei partido disso. Mal
Griswold se sentou, tornou-se macio como papas. Já não era um homem, era apenas uma criança
grande. Deve ter havido milhões como ele, crianças grandes commetralhadoras, capazes de dizimar
regimentos inteiros sem pestanejar. Mas de regresso às trincheiras do trabalho, sem uma arma, sem
um inimigo claro e visível, tornavam-se impotentes como formigas. Girava tudo à volta da questão
da comida. A comida e a renda da casa, era só por isso que se tinha de lutar. Mas não havia
nenhuma maneira, nenhuma maneira visível e clara, de lutar por essas coisas. Era como ver um
exército forte e bem equipado, capaz de vencer fosse o que fosse que lhe surgisse pela frente, mas
ao qual se ordenava todos os dias que recuasse, que recuasse, e recuasse, e recuasse, porque a
estratégia assim
o mandava, mesmo que isso significasse perder terreno, perder armas, perder munições, perder
comida, perder sono, perder coragem e finalmente perder a própria vida. Onde quer que houvesse
homens a lutar pela comida e pela renda havia essa retirada no nevoeiro, na noite, por nenhuma
razão lógica, a não ser a da estratégia. E isso devorava-lhe o coração. Lutar era fácil, mas lutar pela
comida e pela renda da casa era como lutar contra um exército de fantasmas. A única coisa que se
podia fazer era recuar, e enquanto se recuava viam-se os próprios irmãos cair, um após outro,
silenciosamente, misteriosamente, no nevoeiro, no escuro, e não se podia fazer nada para o evitar,
absolutamente nada. O tipo estava tão confuso, tão perplexo, tão desesperadamente desnorteado e
vencido, que apoiou a cabeça nos braços e chorou na minha secretária. E enquanto ele soluçava o
telefone tocou de repente, e era do gabinete do vice-presidente - nunca era o próprio presidente; era
sempre o seu gabinete -, queriam Griswold imediatamente despedido, e eu disse: «Sim, senhor!», e
desliguei. Não disse nada a Griswold a esse respeito, acompanhei-o a casa e jantei comele e coma
mulher e os filhos. E quando o deixei disse para comigo que se tivesse de despedir o tipo alguém
iria pagá-lo, e além disso queria saber primeiro de onde viera a ordem e porquê. Furioso e
impetuoso, fui direito ao gabinete do vice-presidente, logo de manhã, disse que queria falar como
vice-presidente em pessoa e perguntei-lhe se dera a ordem, e porquê? E antes que ele tivesse tempo
de negar, ou de explicar por que razão o fizera, falei-lhe um bocado da guerra, de improviso. Se ele
não gostasse e não pudesse aceitá-lo... «E se não gosta, Mr. Will Twilldilliger, pode ficar como
lugar, pode ficar como meu lugar e o dele e enfiá-los pelo eu acima...» E virei-lhe as costas. Voltei
para o matadouro e entreguei-me ao meu trabalho, como de costume. Claro que esperava ser
despedido antes de o dia terminar. Mas não aconteceu nada de semelhante. Para espanto meu, recebi
um telefonema do director-geral a recomendar-me que tivesse calma, que serenasse um pouco, sim,
acalme-se, não faça nada precipitado, nós estudaremos o assunto, etc. Creio que ainda estão a
estudar o assunto, visto Griswold continuar a trabalhar - até o promoveram a escriturário, o que foi
um golpe baixo, pois como escriturário ele ganha menos do que como boletineiro, mas
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a promoção salvou-lhe o orgulho... e, sem dúvida, tirou-lhe mais um bocado de genica, também.
Mas isso é o que acontece a um tipo quando ele é um herói apenas a dormir. A não ser que o
pesadelo seja suficientemente forte para nos acordar, continuamos a recuar e ou acabamos sentados
a uma secretária, ou então vice-presidentes. É tudo a mesma coisa, uma maldita confusão do
caraças, uma farsa, um fiasco do princípio ao fim. Sei que é assim porque acordei. E quando acordei
virei as costas a tudo. Saí pela mesma porta por onde entrara, sem um «comsua licença, senhor»,
sequer. ,
As coisas acontecem instantaneamente, mas primeiro pas- \ sa-se por um longo processo. O que
sentimos quando aconte- ; cê alguma coisa é apenas a explosão e, um segundo antes, a ! centelha.
Mas acontece tudo de acordo coma lei e como in- j teiro consentimento e a colaboração do cosmos.
Antes porém í de me poder levantar e explodir, a bomba teve de ser devida- j mente preparada,
devidamente escorvada. Depois de pôr as j coisas em ordem para os sacanas de cima, tive de ser
apeado do meu alto cavalo, tive de ser pontapeado como uma bola de \ futebol, tive de ser pisado,
esborrachado, humilhado, acorrentado, algemado, tornado impotente como uma medusa. Nunca na
minha vida tive falta de amigos, mas neste período especial eles pareciam brotar à minha volta
como cogumelos. ! Nunca dispunha de um momento só para mim. Se ia para casa à noite, na
esperança de descansar, estava lá alguém à minha espera, para falar comigo. Às vezes estava lá até
um grupo completo, e parecia nem fazer muita diferença que eu chegasse ou não. Cada grupo de
amigos que arranjava desprezava o outro grupo. Stanley, por exemplo, desprezava-os a todos. Ulric
também desdenhava muito dos outros. Tinha acabado de regressar da Europa,-após uma ausência de
vários anos. Não nos víramos muito, desde rapazes, e um dia, por puro acaso, encontrámo-nos na
rua. Esse dia foi importante na mi- ; nhã vida, porque me abriu um novo mundo, um mundo como
qual sonhara muitas vezes, mas que nunca esperara ver. Lembro-me perfeitamente de que parámos
à esquina da 6.a Avenida coma Rua 49, ao lusco-fusco. Lembro-me porque me pareceu
absolutamente incongruente estar a ouvir um homem falar do monte Etna, do Vesúvio, de Capri, de
Pompeia, de Marrocos e de Paris à esquina da 6.a Avenida coma Rua 49,
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em Manhattan. Lembro-me da maneira como ele olhava em seu redor, enquanto falava, como um
homem que ainda não compreendera bem o que o esperava, mas pressentia vagamente que
cometera um erro horrível ao regressar. Os seus olhos pareciam dizer, constantemente: isto não tem
valor, não tem valor absolutamente nenhum. No entanto, não foi isso que disse, e sim,
repetidamente: «Tenho a certeza de que gostarias. Estou certo de que é o lugar que te convém.»
Quando me deixou, sentia-me num atordoamento, e enquanto não o voltei a encontrar não
descansei. Queria ouvi-lo contar outra vez tudo, minuciosamente. Nada do que lera acerca da
Europa parecia comparar-se como cintilante relato feito pelos próprios lábios do meu amigo.
Parecia-me ainda mais miraculoso por provirmos ambos do mesmo ambiente. Ele conseguira-o
porque tinha amigos ricos - e porque sabia poupar o seu dinheiro. Eu nunca conhecera ninguém que
fosse rico, que tivesse viajado, que tivesse dinheiro no banco. Todos os meus amigos eram como eu,
iam vivendo o dia-a-dia, sem um único pensamento para o futuro. O’Mara viajara um bocado, quase
por todo o mundo... mas como vagabundo ou então no Exército, o que ainda era pior do que ser
vagabundo. O meu amigo Ulric era o primeiro conhecido meu que podia realmente dizer que
viajara. E sabia falar das suas experiências.
Em consequência desse encontro casual na rua, passámos a encontrar-nos frequentemente, durante
vários meses. Ele costumava ir-me procurar à noite, depois do jantar, e atravessávamos o parque,
que ficava próximo. Que sede eu tinha! Fascinavam-me todos os pormenores acerca do mundo que
ele visitara, por ínfimos que fossem. Ainda hoje, volvidos anos e anos, ainda hoje que conheço Paris
como um livro, a imagem que ele me revelou dessa cidade continua diante dos meus olhos, ainda
viva, ainda real. Às vezes, depois de uma chuvada, ao atravessar rapidamente a cidade de táxi, capto
vislumbres fugidios da Paris que ele me descreveu: quadros momentâneos ao passar, talvez, pelas
Tulherias, ou um relance de Montmartre, do Sacré Coeur, através da rue Laffitte, no último
resplendor do crepúsculo. Um simples rapaz de Brooklyn! Empregava por vezes esta expressão,
quando se envergonhava da sua incapacidade para se exprimir mais
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adequadamente. E eu também era um simples rapaz de Brooklyn, o que equivale a dizer um dos
últimos e mais insignificantes dos homens. Mas à medida que you vagueando, roçando por assim
dizer os cotovelos pelo mundo, raro en- ; contro alguém capaz de descrever comtanto amor e tanta
fidelidade o que viu e sentiu. Essas noites no Prospect Park, como meu amigo Ulnc, são, mais do
que qualquer outra coi- ; sã, responsáveis pela minha presença aqui, hoje. Ainda me falta ver muitos
dos lugares que ele me descreveu, e provavelmente a alguns nunca os verei. Mas vivem dentro de
mini, cheios de calor e animação, tal qual como ele os criou durante os nossos passeios pelo parque.
Entretecidos nestas conversas acerca do mundo exterior encontravam-se todo o corpo e toda a
textura da obra de Lawrence. Muitas vezes, depois de o parque já se encontrar deserto havia muito,
ainda discutíamos, sentados num banco, a natureza dos ideias de Lawrence. Ao recordar agora essas
discussões, compreendo como estava confuso, como era tristemente ignorante do verdadeiro
significado das palavras de Lawrence. Se tivesse realmente compreendido, nunca a minha vida teria
seguido o curso que seguiu. Muitos de nós vivemos a maior parte da nossa vida submersos. No meu
caso, posso afirmar que só depois de deixar a América emergi à superfície. Talvez a América não
tivesse nada a ver comisso, mas mantém-se, mesmo assim, o facto de que só abri total e claramente
os olhos quando cheguei a Paris. E possível que isso acontecesse apenas porque renunciei à
América, porque renunciei ao meu passado.
O meu amigo Kronski costumava troçar de mim por causa das minhas «euforias». Era a sua
maneira ardilosa de me recordar, quando me via extraordinariamente alegre, que no dia seguinte
estaria deprimido. E tinha razão. A minha vida cornpunha-se somente de altos e baixos. Longos
períodos de tristeza e melancolia seguidos por extravagantes erupções de alegria, de inspiração, que
tinham semelhanças comtranse. Nunca atingia um plano em que fosse eu próprio. Parece-me
estranho dizê-lo, mas a verdade é que nunca era eu próprio. Ou era anónimo, ou a pessoa chamada
Henry Miller elevada à máxima potência. Quando me encontrava no segundo estado de espírito, por
exemplo, era capaz de inventar um livro
inteirinho e contá-lo a Hymie, enquanto íamos no eléctrico - a Hymie, que nunca suspeitou que eu
fosse algo mais do que um born gerente de pessoal. Parece que estou a ver os seus olhos, quando
me fitou numa noite em que estava num dos meus estados de «euforia». Entráramos no eléctrico na
Ponte de Brooklyn, para irmos a um apartamento de Greenpoint, onde nos esperavam duas
galdérias, Hymie começara a falar-me, como de costume, dos ovários da mulher. Para começar, não
sabia o que eram precisamente os ovários e, por isso, tratei de lho explicar de modo cru e simples.
No meio da explicação pareceu-me, de súbito, tão profundamente trágico e ridículo que Hymie não
soubesse o que eram os ovários que fiquei bêbedo, tão bêbedo como se tivesse uma garrafa de
uísque no bucho. A partir da ideia de ovários doentes germinou, como que num relâmpago, uma
espécie de vegetação tropical, constituída pela mais heterogénea miscelânea, no meio da qual se
encontravam bem aninhados, tenazmente aninhados, Dante e Shakespeare. Ao mesmo tempo,
recordei também subitamente a minha própria sequência de ideias, iniciada mais ou menos a meio
da Ponte de Brooklyn e bruscamente interrompida pela palavra «ovários». Compreendi que tudo
quanto Hymie dissera até à palavra «ovários» se coara através de mim como areia. A sequência de
ideias que iniciara no meio da Ponte de Brooklyn fora a mesma que iniciara vezes sem conta, no
passado, geralmente quando me dirigia a pé à oficina do meu pai, coisa que fazia diariamente, como
num transe. Em resumo, o que iniciara fora um livro de horas, do tédio e da monotonia da minha
vida no meio de uma actividade feroz. Havia anos que não pensava nesse livro que costumava
escrever todos os dias, no trajecto da Delancey Street para Murray Hill. Mas ao passar pela ponte,
como Sol a pôr-se e os arranha-céus a brilhar como cadáveres fosforescentes, a recordação do
passado impôs-se... recordação de andar para trás e para diante na ponte, de ir para um emprego
pior do que a morte e de regressar a um lar que era uma morgue, rememorando Fausto, a olhar para
baixo, para o cemitério, a cuspir para o cemitério do comboio aéreo... o mesmo guarda na
plataforma todas as manhãs, um imbecil... os outros imbecis a lerem o jornal, arranha-céus novos a
subir, novos túmulos para neles se trabalhar e morrer... os barcos a passarem em baixo, a Fali
^li
48
Henry Miller
River Line, a Albany Day Line... porque you para o trabalho, que farei esta noite, a cona quente a
meu lado, posso fugir-lhe e tornar-me cowboy, experimentar o Alasca, as minas de ouro, safar-me,
dar umas voltas, não morrer ainda, esperar mais um dia, um golpe de sorte, acabar tudo, descer,
descer, como um saca-rolhas, cabeça e ombros na lama e pernas livres, os peixes morderão, amanhã
uma vida nova, onde, em qualquer lado, para quê recomeçar, a mesma coisa em toda a pane, morte,
a morte é a solução, mas não morras ainda, espera mais um dia, um golpe de sorte, uma cara nova,
um novo amigo, milhões de oportunidades, ainda és muito jovem, estás melancólico, não morras
ainda, espera outro dia, um golpe de sorte, vai fodendo... e assim ao longo da ponte até ao abrigo
envidraçado, todos amalgamados, colados uns aos outros, vermes, formigas a saírem rastejantes de
uma árvore morta, e os seus pensamentos a rastejarem do mesmo modo... Talvez ao encontrar-me
ali em cima entre as duas margens, suspenso acima do trânsito, acima da vida e da morte, tendo de
cada lado os altos túmulos esbraseados pelo Sol moribundo, o rio a correr sem destino, a correr
como o próprio tempo, talvez todas as vezes que passava ali em cima qualquer coisa me
espicaçasse, me instigasse a aproveitar, a anunciar-me. Fosse como fosse, todas as vezes que
passava lá em cima encontrava-me verdadeiramente só, e sempre que isso acontecia o livro
começava a escrever-se, a gritar as coisas que eu nunca murmurava sequer, os pensamentos que
nunca proferia, as conversas que nunca travava, as esperanças, os sonhos e as ilusões que nunca
admitia. Se era esse o verdadeiro eu, então era maravilhoso - e, mais importante ainda, parecia
nunca mudar, recomeçar sempre onde parara na vez anterior, continuar a explorar o mesmo filão,
um filão que descobrira quando era pequeno, fora à rua sozinho pela primeira vez e encontrara um
gato morto, enregelado, no gelo sujo da valeta - a primeira vez que olhara para a morte e apreendera
o seu significado. A partir desse momento, compreendi o que era estar isolado: cada objecto, cada
coisa viva e cada coisa morta, tinha a sua existência independente. Os meus pensamentos também
tinham uma existência independente. De súbito, ao olhar para Hymie e pensar naquela estranha
palavra «ovários», naquele momento mais estranha do que qualquer outra palavra de todo o meu
Trópico de Capricórnio
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vocabulário, invadiu-me essa sensação de isolamento gelado e Hymie, sentado a meu lado, era uma
rã, absolutamente uma rã e mais nada. Sentia-me saltar da ponte de cabeça, para o lodo primevo,
comas pernas livres e à espera de serem mordidas - como Satanás mergulhava através dos céus,
através da sólida crosta da Terra, de cabeça, a abrir caminho como um aríete, direito ao próprio
cerne da Terra, ao mais negro, mais denso e mais quente poço do Inferno. Caminhava pelo deserto
Mojave e o homem que estava a meu lado esperava que caísse a noite para se atirar a mim e
chacinar-me. Percorria de novo a Terra do Sonho e um homem caminhava no arame por cima de
mim e, por cima dele, num avião, outro homem escrevia letras de fumo no céu. A mulher que me
dava o braço estava grávida, e dentro de seis ou sete anos a coisa que transportava dentro dela seria
capaz de ler as letras no céu, e ele ou ela, ou a coisa, saberia o que era um cigarro, e mais tarde
fumaria o cigarro, talvez um maço inteiro por dia. No útero, formavam-se unhas em cada dedo dos
pés e das mãos. Podíamos parar aí, numa unha dos pés, a mais minúscula unha imaginável, e dar
cabo do juízo a pensar nela, a tentar compreendê-la. Numa das colunas do Razão estão os livros que
o homem escreveu, contendo uma tal embrulhada de sabedoria e idiotice, de verdade e mentira, que
nem que se vivesse tantos anos como Matusalém seria possível encontrar o fio da meada; na outra
coluna do Razão estão coisas como unhas dos pés, cabelo, dentes, sangue, ovários - se quiserem -,
tudo incalculável e tudo escrito como outra espécie de tinta, comoutro tipo de caligrafia
incompreensível e indecifrável. Os olhos da rã estavam fixos em mim como dois botões de
colarinho enterrados em gordura congelada; estavam cravados no suor frio do lodo primevo. Cada
botão de colarinho era um ovário que se descolara, uma ilustração tirada do dicionário sem o
benefício da lucubração; sem brilho na fria gordura amarela do globo ocular, cada ovário abotoado
produzia um arrepio subterrâneo, o rinque de patinagem do Inferno onde os homens se encontravam
de cabeça para baixo, comas pernas livres à espera de serem mordidas. Dante andava por aí
desacompanhado, vergado sob o peso da sua visão, e subia gradualmente para o céu por meio de
círculos infinitos, para ser entronizado na sua obra. Aí, coma fronte lisa, Shakespeare
50
Henry Miller
caía. no insondável devanear da raiva, para emergir em elegantes brochuras e insinuações. Rajadas
de riso varriam uma glauca geada de incompreensão. Do centro do olho da rã emanavam raios
brancos e limpos de pura lucidez que não deveria ser anotada nem categorizada, que não deveria ser
numerada nem definida, que girava, cega, em calidoscópica mutação. Hymie, a rã, era um tumor
ovárico gerado na elevada passagem entre duas margens: para ele se tinham erguido os arranhacéus, desbravado os desertos, chacinado os índios e exterminado os búfalos; para ele se tinham
unido as cidades gémeas pela Ponte de Brooklyn, afundado os caixões, esticado os cabos de torre
para torre; para ele se sentavam homens no céu, de cabeça para baixo, a escrever palavras de fogo e
fumo; para ele se tinham inventado os anestésicos, e os fórcipes, e o Grande Berta, que podia
destruir o que os olhos não podiam ver; para ele se domara a molécula e o átomo se revelara sem
substância; para ele as estrelas eram todas as noites sondadas comtelescópios e fotografavam-se
mundos no acto de gestação; para ele se derrubavam barreiras de tempo e espaço e todo o
movimento, fosse o voo das aves ou a revolução dos planetas, era irrefutável e incontestavelmente
explanado pelos supremos sacerdotes do desapossado cosmos... Então, como no meio da ponte, no
meio de um passeio, sempre no meio, quer de um livro, quer de uma conversa, quer do acto do
amor, então eu tomava de novo consciência de que nunca fizera o que queria fazer, e desse não
fazer o que queria fazer crescia em mim esta criação que não era mais do que uma planta obsessiva,
uma espécie de coral que expropriava tudo, incluindo a própria vida, até a própria vida se tornar o
que era negado mas que constantemente se impunha, dando vida e matando vida ao mesmo tempo.
Via isso continuar depois da morte, como o cabelo a crescer num cadáver, as pessoas a dizerem
«morte» mas o cabelo a provar a existência de vida, até não haver nenhuma morte e sim essa vida
de cabelo e unhas, desaparecido o corpo, extinguido o espírito, mas na morte algo ainda vivo,
expropriando espaço, originando tempo, criando infinito movimento. Isso podia acontecer através
do amor, ou da mágoa, ou de nascer comum pé boto; a causa, nada; o acontecimento, tudo. No
princípio era o Verbo... O que quer que fosse o Verbo, doença ou criação, ainda andaTropico de Capricórnio
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vá à solta; e continuaria infinitamente, ultrapassando tempo e espaço, sobrevivendo aos anjos,
destronando Deus e soltando o universo. Qualquer palavra continha todas as palavras para aquele
que fora separado através do amor, ou da mágoa, ou fosse de que causa fosse. Em todas as palavras
a corrente regressava ao princípio que se perdera e nunca mais se reencontraria, pois não havia
princípio nem fim, mas somente aquilo que se exprimia em princípio e fim. Por isso no eléctrico
ovárico decorria aquela viagem de homem e rã compostos de matéria idêntica, nem melhores nem
piores que Dante, mas infinitamente diferentes, um sem saber precisamente o significado de nada, o
outro sabendo demasiado precisamente o significado de tudo - donde, ambos perdidos e confusos
através de princípios e fins, para acabarem por ser depositados na Rua de Java ou da índia, em
Greenpoint, onde regressariam à chamada corrente da vida por intermédio de um par de bonecas de
serradura comovários estremecentes da conhecida classe dos gastrópodes.
O que se apresenta agora como a mais maravilhosa prova da minha aptidão, ou inaptidão, para a
época é o facto de nada acerca do que as pessoas diziam ou escreviam ter tido qualquer verdadeiro
interesse para mim. Só o objecto me perseguia, a coisa separada, destacada, insignificante. Podia
ser uma parte do corpo humano ou uma escada numa casa de vaudeville, podia ser uma chaminé ou
um botão achado na valeta. Fosse o que fosse, permitia-me desabafar, render-me, apor a minha
assinatura. E não podia apor a minha assinatura à vida que me cercava, às pessoas que compunham
o mundo que conhecia. Estava definitivamente fora do seu mundo, como um canibal está fora das
fronteiras da sociedade civilizada. Estava cheio de um amor perverso pela coisa em si - não se
tratava de um afecto filosófico, mas sim de uma fome apaixonada, desesperadamente apaixonada,
como se nessa coisa abandonada, sem valor, ignorada por todos, se contivesse o segredo da minha
própria regeneração.
Vivendo num mundo caracterizado por uma pletora do novo, eu prendia-me ao velho. Em cada
objecto havia uma partícula minúscula que exigia especialmente a minha atenção. Sentia-me dotado
de um olho microscópico para a mácula, para o grão de fealdade que, para mim, constituía
52
Henry Miller
a única beleza do objecto. Fosse o que fosse que colocasse o objecto à parte, ou o tornasse
imprestável, ou o datasse, atraía-me e tornava-mo querido. Se isso era perverso, também era
saudável, se considerarmos que eu não estava destinado a pertencer ao mundo que irrompia à minha
volta. Em breve eu próprio me tornaria igualmente como esses objectos que venerava, uma coisa à
parte, um membro inútil da sociedade. Estava definitivamente datado, a esse respeito não existiam
dúvidas. E todavia era capaz de divertir, de instruir, de nutrir. Mas nunca de ser aceite, de modo
genuíno. Quando o desejava, quando sentia, digamos, a brotoeja, podia escolher qualquer homem,
em qualquer estrato da sociedade, e fazê-lo ouvir-me. Podia fasciná-lo, se quisesse, mas, como um
mágico ou um feiticeiro, somente enquanto o espírito permanecesse em mim. No fundo, pressentia
nos outros uma desconfiança, uma intranquilidade, um antagonismo que, por ser instintivo, ’ era
irremediável. Devia ter sido um palhaço; isso ter-me-ia proporcionado o mais vasto campo de
expressão. Mas subestimava a profissão. Se me tivesse tornado palhaço, ou até actor de vaudeville,
teria sido famoso. As pessoas ter-me-iam apreciado porque não me teriam compreendido; mas
teriam cornpreendido que eu não era para ser compreendido. Isso pelo menos teria sido um alívio.
Sempre me causou grande espanto a facilidade comque as pessoas se podiam irritar, só por me
ouvirem falar. Talvez a minha linguagem fosse um tanto ou quanto extravagante, embora elas se
irritassem comfrequência precisamente quando eu fazia todos os esforços para me dominar. O
arredondar de uma frase, a escolha infeliz de um adjectivo, a facilidade comque as palavras me
assomavam aos lábios, as alusões a assuntos considerados tabus, tudo isso conspirava para me
assinalar como um fora-da-lei, como um inimigo da sociedade. Por \ muito bem que as coisas
começassem, mais cedo ou mais tarde estava o caldo entornado. Se queria ser modesto e humilde,
por exemplo, tornava-me excessivamente modesto e excessivamente humilde. Se pretendia ser
alegre e espontâneo, atrevido e estouvado, tornava-me excessivamente atrevido, excessivamente
alegre. Nunca conseguia pôr-me an point como indivíduo comquem calhava falar. Ainda que não
fosse uma questão de vida ou de morte - e para mim, então, era tudo
Trópico de Capricórnio
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uma questão de vida ou de morte -, ainda que se tratasse apenas de passar um serão agradável em
casa de algum conhecido, acontecia o mesmo. Emanavam de mim vibrações, sobretons e subtons,
que carregavam desagradavelmente a atmosfera. Podiam-se ter divertido toda a noite comas minhas
histórias, podiam-se ter rido dos meus ditos, como tantas vezes acontecia, e os augúrios podiam
parecer os melhores possíveis. Mas, tão certo como é certo o destino, acontecia qualquer coisa antes
de a noite findar, havia qualquer vibração que se soltava e fazia tilintar o lustre ou recordava a
alguma alma sensível o penico debaixo da cama. Ainda o riso lhes morria nos lábios e já o veneno
começava a fazer sentir os seus efeitos. «Espero voltar a vê-lo em breve», diziam, mas a mão mole
e húmida que me estendiam desmentia as palavras.
Persona non grata! Jesus, como tudo isso me parece agora claro! Não havia escolha possível: tinha
de aceitar o que estava à mão e de aprender a gostar dele. Tinha de aprender a viver coma
escumalha, a nadar como um rato do cano ou morrer afogado. Quando resolvemos juntar-nos à
manada ficamos imunizados. Para sermos aceites e apreciados temos de nos anular, de nos tornar
indistinguíveis da manada. Podemos sonhar, se sonharmos como ela. Mas se sonhamos qualquer
coisa diferente não estamos na América, não somos americanos da América e sim um hotentote em
África, ou um calmuco, ou um chimpanzé. No momento em que temos em pensamento «diferente»,
deixamos de ser americanos. E no momento em que nos tornamos algo diferente encontramo-nos no
Alasca, ou na ilha da Páscoa, ou na Islândia.
Estou a dizer isto comrancor, cominveja, commalícia? Talvez. Talvez lamente não ter sido capaz de
me tornar um americano. Talvez. No meu zelo de agora, que é novamente americano, estou prestes
a dar vida a um edifício monstruoso, a um arranha-céus que durará sem dúvida muito para além de
os outros arranha-céus terem desaparecido, mas que também desaparecerá quando o que o gerou
desaparecer. Tudo quanto é americano desaparecerá um dia, mais completamente do que o que é
grego, ou romano, ou egípcio. Esta foi uma das ideias que me expulsou da morna e confortável
corrente sanguínea onde, todos búfalos, em tempos pastámos em paz. Uma ideia que me tem
causado mágoa infinita, pois não per-
Jt.
54
Henry Miller
tencer a algo duradouro é a maior das agonias. Mas não sou búfalo, nem tenho desejo nenhum de o
ser; não sou sequer um búfalo espiritual. Afastei-me para me reunir a uma corrente de consciência
mais antiga, a uma raça anterior à dos búfalos, a uma raça que sobreviverá ao búfalo.
Todas as coisas, todos os objectos animados ou inanimados diferentes, possuem características
inerradicáveis. O que eu sou é inerradicável, porque é diferente. Isto é um arranha-céus, como disse,
mas é diferente dos arranha-céus comuns, à 1’américaine. Neste arranha-céus não há elevadores
nem janelas de 73.° andar para delas se saltar. Se nos cansamos a subir, estamos quilhados. Não há
nenhuma lista de inquilinos no átrio. Se procura alguém, tem mesmo de procurar. Se quer uma
bebida, tem de sair e ir buscá-la; não há lojas de refrescos neste edifício, nem tabacarias, nem
cabinas telefónicas. Todos os outros arranha-céus têm o que você quer; este só tem o que eu quero,
o que eu gosto. E algures neste arranha-céus existe Valeska, e a ela chegaremos quando me der na
gana. Por en- ; quanto Valeska está bem, atendendo a que se encontra 1,80 m J debaixo da terra e
talvez até já esteja limpa pelos vermes. \ Quando existia em carne e osso também foi limpa pelos
ver- j mês humanos, que não respeitam nada que tenha uma tonali- j dade diferente, um odor
diferente.
O que havia de triste em Valeska era possuir sangue negro i nas veias. Era deprimente para quantos
a rodeavam. Tornava- | -nos conscientes disso, quer quiséssemos, quer não. O sangue j negro, como
disse, e o facto de a mãe ser uma relaxada. A mãe | era branca, claro. Quem era o pai ninguém
sabia, nem a pró- j pria Valeska. j
Correu tudo muito bem até ao dia em que um serviçal ju- j deuzinho do gabinete do vice-presidente
a observou. Ficou horrorizado, segundo me informou confidencialmente, por pensar que eu
contratara uma pessoa de cor como minha se- ! cretária. Falou como se ela pudesse contaminar os
boletineiros. No dia seguinte fui chamado à pedra. Tal qual como se tivesse cometido um sacrilégio.
Claro que fingi não ter notado nada de especial nela, a não ser que era muitíssimo inteligente e
muitíssimo competente. Por fim, o próprio presidente me- i teu a colherada. Teve uma breve
entrevista comValeska, du- j rante a qual lhe propôs, muito diplomaticamente, um lugar j
Trópico de Capricórnio
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melhor em Havana. Nenhuma alusão à mácula do sangue. Falou-se simplesmente no facto de os
seus serviços terem sido extraordinários e de desejarem promovê-la... para Havana. Valeska voltou
ao escritório furiosa. Era magnífica, quando estava zangada. Declarou que não sairia dali. Steve
Romero e Hymie estavam presentes, nessa altura, e fomos todos jantar juntos. Durante a noite
ficámos um bocadinho entornados e a língua de Valeska desatou-se. A caminho de casa, informoume de que ia lutar e desejava saber se isso poria o meu emprego em perigo. Respondi-lhe que se ela
fosse despedida eu também sairia. Ao princípio, fingiu não acreditar. Afirmei-lhe que falava a sério,
que não me interessava o que acontecesse. Pareceu excessivamente impressionada. Agarrou-me as
duas mãos e apertou-as devagarinho, comas lágrimas a correr pelas faces.
Foi assim que as coisas começaram. Creio que logo no dia seguinte lhe passei um bilhetinho a dizer
que estava doido por ela. Leu-o sentada defronte de mim e quando acabou olhou-me a direito, nos
olhos, e afirmou não acreditar. Mas nessa noite fomos outra vez jantar juntos, bebemos e dançámos,
e enquanto dançávamos ela apertou-se lascivamente contra mim. Nem de propósito, foi
precisamente na altura em que a minha mulher se preparava para fazer outro aborto. Falei disso a
Valeska, enquanto dançávamos. A caminho de casa, perguntou, de súbito: «Porque não me deixas
emprestar-te cem dólares?» Na noite seguinte levei-a a jantar em minha casa e deixei-a entregar os
cem dólares à minha mulher. Espantou-me como se entenderam bem as duas. Antes de o serão
acabar já estava combinado que Valeska iria lá para casa no dia do aborto e tomaria conta da miúda.
O dia chegou e eu dispensei Valeska durante a tarde. Cerca de uma hora depois de ela sair, resolvi
subitamente folgar também naquela tarde. Pus-me a caminho do teatro burlesco da Rua 14. Mas
mudei de repente de ideias, a um quarteirão do teatro. Mudei de ideias porque me lembrei de que, se
alguma coisa corresse mal - se a patroa esticasse o pernil -, não me sentiria muito bem comigo
próprio por ter passado a tarde no teatro. Dei umas voltas pelas arcadas onde se vendem objectos
baratos e depois fui para
casa.
E estranho como as coisas acontecem. Ao tentar entreter
*
56
Henry Miller
a miúda lembrei-me, de súbito, de um truque que o meu avô me ensinara, quando era garoto.
Pegava-se nas pedras do dominó e faziam-se comelas barcos de guerra altos; depois puxava-se
devagarinho a toalha da mesa onde eles navegavam e, quando chegavam à borda da mesa, dava-se
um puxão brusco e iam parar ao chão: afundavam-se. Fizemo-lo diversas vezes, os três, até que a
garota se encheu de sono e adormeceu na sala ao lado. As pedras do dominó estavam espalhadas
pelo chão, onde também se encontrava a toalha. De súbito, não sei como, Valeska estava encostada
à mesa, coma língua enfiada pela minha boca abaixo e a minha mão entre as pernas. Quando a
deitei para trás, em cima da mesa, enroscou as pernas no meu corpo. Senti um dos dominós debaixo
dos pés - pane da esquadra que destruíramos uma dúzia de vezes ou mais. Pensei no meu avô
sentado no banco, a avisar a minha mãe de que , eu era novo de mais para ler tanto e coma tal
expressão só- j nhadora nos olhos, enquanto encostava o ferro quente à cos- j tura humedecida de
um casaco; pensei no ataque dos Rough j Riders a San Juan Hill e no quadro que representava
Teddy a atacar, à frente dos seus voluntários, e que vinha no grande , livro que eu costumava ler ao
lado da bancada de trabalho; ; pensei no couraçado «Maine», que navegava por cima da minha
cabeça no quartinho de janela gradeada, e no almirante ’ Dewey, em Schley e em Sampson; pensei
na visita que nunca fizera ao Estaleiro da Marinha, porque no caminho o meu pai se lembrara
subitamente de que tinha de ir ao médico - e quando saí do consultório já não tinha amígdalas nem
fé algu- i ma nos seres humanos... Mal acabáramos quando a campai- ; nhã tocou. Era a minha
mulher que regressava do matadouro. ; Atravessei o vestíbulo, para abrir a porta, ainda a abotoar a
braguilha. Vinha branca como a cal, como se não fosse capaz de fazer mais nenhum. Metemo-la na
cama e depois apanhámos as pedras do dominó e pusemos a toalha na mesa. Uma noite destas, num
bistro, quando ia para a retrete, passei por dois velhotes que jogavam dominó. Tive de parar e pegar
numa pedra. O contacto recordou-me imediatamente os barcos de guerra e o barulho que faziam ao
cair no chão. E com i os barcos de guerra lá veio também a recordação das amígdalas cortadas e da
fé perdida nos seres humanos. Todas as vezes que passava pela Ponte de Brooklyn e olhava para
baixo, na
Troptco de Capricórnio
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direcção do Estaleiro da Marinha, era como se as tripas me caíssem. Lá muito em cima, suspenso
entre duas margens, sentia-me sempre como se pairasse sobre um vácuo; lá em cima, tudo quanto
jamais me acontecera parecia irreal e, pior do que irreal, desnecessário. Em vez de me reunir à vida,
aos homens, à actividade dos homens, a ponte parecia cortar todas as ligações. Quer me dirigisse
para uma das margens, quer para a outra, não fazia diferença: de ambos os lados era o Inferno. Não
sei como, conseguira cortar a minha ligação como mundo que mãos humanas e cérebros humanos
estavam a criar. Talvez o meu avô tivesse razão, talvez me tivesse estragado em botão, por causa
dos livros que lera. Há séculos, porém, que os livros não me reclamam. Deixei praticamente de ler,
há muito tempo. Mas a mácula permanece. Agora as pessoas são livros para mim. Leio-as de capa a
capa e ponho-as de parte. Devoro-as, uma após outra. E quanto mais leio mais insaciável me torno.
Não há limites para a minha fome. Até que começou a formar-se dentro de mim uma ponte que me
juntou de novo à corrente da vida, da qual me tinham separado em criança.
Um terrível sentimento de desolação. Pairou sobre mim durante anos. Se acreditasse nas estrelas,
teria de acreditar que me encontrava totalmente sob a influência de Saturno. Tudo quanto me
acontecia, acontecia demasiado tarde, para ter algum significado para mim. Até como meu
nascimento foi assim. Previsto para o Natal, nasci atrasado meia hora. Pareceu-me sempre ser a
espécie de indivíduo que é o que é em virtude de ter nascido em 25 de Dezembro. O almirante
Dewey nasceu nesse dia e Jesus Cristo também... E, sei lá, talvez Crixnamurti também. De qualquer
modo, era esse tipo de indivíduo que eu estava destinado a ser. Mas, devido ao facto de a minha
mãe ter um útero preensor, de me ter agarrado como um octópode, saí cá para fora comoutra
configuração - por outras palavras, commá sorte. Dizem - refiro-me aos astrólogos que as coisas
irão melhorando para mim à medida que o tempo for passando; que o futuro será, na verdade,
glorioso. Mas que me importa a mim o futuro? Teria sido melhor se a minha mãe tivesse tropeçado
na escada, na manhã de 25 de Dezembro, e partido o pescoço: isso ter-me-ia proporcionado um
começo mais justo! Quando tento pensar no momento em
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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que a ruptura ocorreu, you recuando, até não a poder atribuir a outra coisa senão ao atraso no
nascimento. Até a minha mãe, coma sua língua cáustica, parecia compreendê-lo, de certo modo:
«Sempre a ficar para trás, como o rabo de uma vaca.» Era assim que me definia. Mas terei culpa de
ela me ter conservado fechado dentro de si até a hora passar? O destino pré- i parara-me para ser tal
e tal pessoa; as estrelas estavam na devi- ; da conjunção e eu estava de acordo comelas e mortinho
por sair. Mas não fui metido nem achado na escolha da mãe que deveria parir-me. Talvez tenha tido
sorte em não nascer idiota, dadas todas as circunstâncias. Uma coisa parece no entanto evidente - e
isso é uma espécie de ressaca do dia 25: nasci comum complexo de crucificação. Isto é, para ser
mais preciso: nasci fanático. Fanático! Lembro-me de me arremessarem essa palavra, desde a
infância. Especialmente os meus pais. Que é fanático? É uma pessoa que acredita apaixonadamente
e actua desesperadamente de acordo comaquilo em que acredita. Passei a vida a acreditar em
qualquer coisa e, consequen- > temente, a meter-me em trabalhos. Quanto mais palmadas me
davam nas mãos, mais firmemente acreditava. Eu acreditava e o resto do mundo não! Se fosse só
uma questão de suportar castigos, uma pessoa poderia ir acreditando até ao fim. Mas o mundo é
mais insidioso do que isso. Em vez de sermos casti- ’ gados, somos minados, escavados, tiram-nos
o chão debaixo dos pés. Nem sequer estou a pensar em traição. A traição é compreensível e
combatível. Não, trata-se de algo pior, de , algo inferior à traição. É um negativismo que nos leva a
exce- ’ der-nos, que nos obriga a consumir perpetuamente a nossa ; energia no acto de nos
equilibrarmos. Somos tomados por uma espécie de vertigem espiritual, cambaleamos na beira do
abismo, o nosso cabelo põe-se em pé e não podemos acreditar que debaixo dos nossos pés se está a
abrir um abismo incomensurável. Isso resulta de excesso de entusiasmo, do desejo ] apaixonado de
abraçar as pessoas, de lhes demonstrar o nosso amor. Quanto mais estendemos os braços para o
mundo, mais ele recua. Ninguém quer amor autêntico, ódio autêntico. Ninguém quer que ponhamos
a nossa mão nas suas sagradas entranhas - isso é só para o padre na hora do sacrifício. Enquanto
vivermos, enquanto o sangue ainda estiver quente, teremos de fingir que sangue é coisa que não
existe, que um
esqueleto sob a cobertura da carne é coisa que não há. Não pise a relva! É obedecendo a este lema
que as pessoas vivem.
Se prolongarmos durante tempo suficiente o equilíbrio à beira do abismo, tornamo-nos peritos na
matéria: seja para que lado for que nos empurrem, endireitamo-nos sempre. O equilíbrio constante
desenvolve em nós uma alegria feroz uma alegria que não é natural, deveria dizer. Hoje há só dois
povos no mundo que compreendem o significado de tal declaração: os Judeus e os Chineses. Se não
pertencemos a um nem a outro, estamos numa estranha situação. Rimo-nos sempre no momento
errado e somos considerados cruéis e sem coração, quando na realidade somos apenas duros e
resistentes. Mas, se nos ríssemos quando os outros se riem e chorássemos quando os outros choram,
então deveríamos preparar-nos para morrer como eles morrem e viver como eles vivem. Isto
significa estar certo e ficar a perder ao mesmo tempo. Significa estar morto quando se está vivo e
estar vivo só quando se está morto. Em semelhante companhia, o mundo apresenta sempre um
aspecto normal, mesmo nas condições mais anormais. Nada está certo ou errado, mas pensar torna
as coisas certas ou erradas. Deixamos de acreditar na realidade e passamos a acreditar no
pensamento. E quando somos empurrados da beira do abismo, os nossos pensamentos
acompanham-nos e não nos servem de nada.
Em certo sentido quero dizer, num sentido profundo , Cristo nunca foi empurrado da beira do
abismo. No momento em que cambaleava e oscilava, a contra-corrente negativa, num grande
ressalto, recuou e suspendeu-lhe a morte. Todo o impulso negativo de humanidade pareceu enrolarse numa monstruosa massa inerte, para criar a inteireza humana, o número um, uno e indivisível.
Houve uma ressurreição que é inexplicável se não aceitarmos o facto de que os homens sempre
estiveram dispostos a negar o seu próprio destino. A Terra gira, as estrelas giram, mas os homens, o
grande corpo de homens que faz o mundo, estão presos na imagem de um e só um.
Se não somos crucificados, como Cristo, se conseguimos sobreviver, continuar a viver acima e para
além do sentimento de desespero e futilidade, então acontece outra coisa curiosa. É como se
tivéssemos realmente morrido e realmente sido
60
Henry Miller
. J
ressuscitados; vivemos uma vida supernormal, como os Chi-1 neses. Quero dizer, somos
anormalmente alegres, anormalmente saudáveis, anormalmente diferentes. O sentimento do trágico
desaparece: vivemos como uma flor, uma pedra ou uma árvore, em comunhão coma Natureza e
contra a Natureza, ao mesmo tempo. Se o nosso melhor amigo morre, nem j sequer nos damos ao
trabalho de ir ao funeral; se um homem í é atropelado por um carro mesmo debaixo dos nossos
olhos, j continuamos o nosso caminho como se nada tivesse aconteci- i do; se rebenta uma guerra,
deixamos os nossos amigos irem l para a frente, mas nós não experimentamos interesse algum l
pela carnificina. E, etc., etc. A vida torna-se um espectáculo e, j se por acaso somos artistas,
registamos o espectáculo que vai J passando. A solidão é abolida, porque todos os valores, in- l
clumdo o nosso próprio valor, são destruídos. Só a simpatia i floresce, mas não se trata de uma
simpatia humana, limitada: é l algo monstruoso e diabólico. Importamo-nos tão pouco coml tudo
que nos podemos dar ao luxo de nos sacrificar por ai- l guém ou por alguma coisa. Ao mesmo
tempo, o nosso inte- J resse, a nossa curiosidade, desenvolvem-se a um ritmo escan- 1 daloso. Isso
também é suspeito, pois tanto nos pode prender a l um botão de colarinho como a uma causa. Não
existe nenhu- l ma diferença fundamental, inalterável, entre as coisas: tudo f flui, é tudo perecível.
A superfície do nosso ser está constan- i temente a ruir, mas por dentro tornamo-nos duros como
dia- j mante. E talvez seja esse âmago duro e magnético do nosso j interior que atrai os outros para
nós, quer queiram, quer não. B Uma coisa é certa: quando morremos e somos ressuscitados B
pertencemos à terra, e o que quer que seja da terra é inaltera- B velmente nosso. Tornamo-nos uma
anomalia da Natureza, l um ser sem sombra; nunca mais voltaremos a morrer, desapa- l recemos
apenas como os fenómenos que nos cercam. I
Nada do que estou agora a contar era do meu conhecimento quando passei pela grande mudança.
Tudo quanto su- l portei foi como que uma preparação para o momento em que, « depois de pôr o
chapéu na cabeça, uma noite, saí do escritorio, saí da minha até então vida particular e procurei a
mulher ,| que me libertaria de uma morte viva. A essa luz recordo agorã as minhas vagueações
nocturnas pelas ruas de Nova lor- i que, as noites brancas em que caminhei como um sonâmbulo m
Trópico de Capricórnio
61
e vi a cidade em que nascera como se vêem coisas numa miragem. Muitas vezes era O’Rourke, o
detective da companhia, quem me acompanhava através das ruas silenciosas. Muitas vezes o chão
estava coberto de neve e o ar frio, gélido. E O’Rourke falava interminavelmente de roubos, de
assassínios, de amor, da natureza humana, da Idade do Ouro. Quando estava bem lançado num
assunto tinha o hábito de parar de repente no meio da rua e colocar o pé pesado entre os meus, de
modo que não me podia mexer. Depois, agarrando-me pelas bandas do casaco, aproximava o rosto
do meu e falava-me para os olhos, cada palavra sua a penetrar-me como uma volta de verruma.
Ainda nos estou a ver aos dois no meio de uma rua às quatro da manhã, como vento a assobiar, a
neve a cair e O’Rourke alheio a tudo menos à história que tinha de deitar cá para fora. Lembro-me
de que, enquanto ele falava, eu tinha o hábito de observar as redondezas pelo canto do olho,
consciente, não do que ele dizia, mas sim de nós dois parados em Yorkville, ou na Allen Street, ou
na Broadway. Parecia-me sempre um pouco louca a seriedade comque recontava as suas banais
histórias de assassínio no meio da maior confusão arquitectónica que o homem jamais criara.
Enquanto ele falava de impressões digitais eu podia estar a observar a cimalha ou a cornija de um
pequeno edifício de tijolo vermelho, atrás do seu chapéu preto. Pensava no dia em que a cornija fora
colocada, em quem teria sido o homem que a desenhara e porque a fizera tão feia, tão semelhante a
todas as outras feias e desairosas cornijas por que passáramos do East Side até ao Harlém e para lá
do Harlém, e por que passaríamos se quiséssemos prosseguir para além de Nova Iorque, para além
do Mississipi, para além do Grand Canyon, para além do deserto Mojave, que encontraríamos em
todos os pontos da América onde há edifícios para homens e mulheres. Parecia-me absolutamente
louco que tivesse de passar todos os dias da minha vida a ouvir as histórias de outras pessoas,
tragédias banais de pobreza e angústia, de amor e morte, de anseio e desilusão. Se, como acontecia,
todos os dias me procuravam pelo menos cinquenta homens, cada um contando a sua história
dolorosa, e se, comcada um, tinha de ficar calado e «receber», era muito natural que em
determinado ponto do percurso tivesse de fechar as orelhas e endurecer o coração. A mais
pequenina
’IÍÍÍ
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Trópico í/e Capricórnio
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migalha me bastava; era capaz de levar dias e até semanas a mastigá-la e a digeri-la. No entanto,
tinha de continuar ali sentado, a ser inundado, tinha de sair à noite e ouvir mais, de , dormir a ouvir,
de sonhar a ouvir. Vinham em caudais de to- J das as partes do mundo, de todos os estratos da
sociedade, falando mil línguas diferentes, adorando deuses diferentes, respeitando leis e costumes
diferentes. A história do mais pobre deles todos era um volume imenso e, no entanto, se todas elas
fossem escritas em pormenor, poderiam ser todas comprimidas no tamanho dos Dez Mandamentos,
poderiam ser todas escritas nas costas de um selo de correio, como o Pai-Nosso. Esticavam-me
tanto, todos os dias, que a minha pele parecia ( cobrir o mundo inteiro; e quando ficava só, quando
já não era \ obrigado a ouvir, encolhia até ficar do tamanho de um bico de ; alfinete. A maior
delícia, mas rara, era percorrer as ruas sozinho... percorrer as ruas à noite, quando estavam todos
recolhidos, e reflectir no silêncio que me cercava. Milhões deitados s de costas, mortos para o
mundo, de bocas escancaradas a ressonar, sem emitirem mais nenhum som. Caminhar pelo meio da
mais louca arquitectura jamais inventada, perguntando-me porquê e comque fim, se todos os dias
tinha de sair daqueles miseráveis tugúrios ou daqueles magníficos palácios um exército de homens
desejosos de desbobinar a sua história de miséria. Num ano, calculando por baixo, ouvia vinte e
cinco mil j histórias; em dois anos, cinquenta mil; em quatro anos seriam , cem mil, e em dez anos
estaria louco varrido. Já conhecia gen- i te suficiente para povoar uma cidade de born tamanho. E
que cidade seria, se eles se pudessem reunir todos! Quereriam arranha-céus? Quereriam museus?
Quereriam bibliotecas? Também construiriam esgotos, e pontes, e carris, e fábricas? Fariam as
mesmas cornijazinhas de folha, todas iguais, uma após outra, ad mfinitum, de Battery Park a Golden
Bay? Duvido. Só o látego da fome seria capaz de os fazer mexerem-se. A barriga vazia, a expressão
louca do olhar, o medo, o medo do pior a espicaçá-los, a incitá-los. Um após outro, todos iguais,
todos levados ao desespero, a construírem, sob o látego da fome, os mais altos arranha-céus e os
mais temíveis couraçados, a fazerem o melhor aço, a mais fina das rendas, o mais delicado dos
vidros. Caminhar comO’Rourke a ouvir falar apenas de roubo, fogo posto, estupro e homicídio, era
j
como um pequeno tema de uma grande sinfonia. E assim como podemos assobiar uma ária de Bach
e pensar numa mulher comquem desejaríamos dormir, assim também, ao escutar O’Rourke, eu
pensava no momento em que ele pararia e me perguntaria: «Que queres comer?» No meio do mais
cruento assassínio, eu pensava então sem dificuldade no lombo de porco que certamente haveria em
certo restaurante um pouco adiante, e perguntava-me comque género de vegetais o acompanharia e
se, para a sobremesa, pediria torta ou um pudim de custarda. Acontecia o mesmo quando dormia
coma minha mulher, de vez em quando. Enquanto ela gemia e murmurava idiotices, eu era capaz de
pensar se ela teria despejado as borras da cafeteira do café, porque a fulana tinha o mau hábito de
deixar as coisas correr, desleixadamente. As coisas importantes, note-se. Café feito de fresco era
importante - e bacon comovos também. Se ela engravidasse outra vez seria mau, seria mesmo sério,
em certo sentido, mas mais importante do que isso era o café fresco, de manhã, e o cheiro do bacon
comovos. Era capaz de suportar os corações despedaçados, e os abortos, e os romances terminados,
mas para isso precisava de ter qualquer coisa no bandulho, e queria que esse qualquer coisa fosse
nutritivo, saboroso. Sentia exactamente como Jesus Cristo teria sentido se tivesse sido descido da
cruz e não lhe permitissem morrer na carne. Tenho a certeza de que o abalo da crucificação teria
sido tão grande que ele sofreria uma amnésia total no que respeita à Humanidade. Tenho a certeza
de que, depois de as suas feridas sararem, se estaria nas tintas para as atribulações da Humanidade e
se atiraria, como maior apetite, a uma chávena de café acabado de fazer e a uma fatia de torrada,
presumindo que havia dessas coisas.
Quem, por causa de um amor demasiado grande - o que é monstruoso, no fim de contas -, morre de
sofrimento, não renasce para conhecer amor nem ódio e, sim, para gozar. E esta alegria de viver, em
virtude de não ser naturalmente adquirida, é um veneno que acaba por viciar o mundo inteiro. O que
quer que seja criado para além dos limites normais do sofrimento humano actua como um
boomerang e provoca destruição. À noite, as ruas de Nova Iorque reflectem a crucificação e a morte
de Cristo. Quando a neve cobre o chão
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Trópico de Capricórnio
65
*
e reina o máximo silêncio, escoa-se dos horríveis edifícios de Nova Iorque uma música de tão
sombrio desespero e desti- ’ tuição que a carne mingua. Nenhuma pedra foi colocada sobre outra
comamor ou reverência; nenhuma rua foi feita para j dançar ou folgar. Acrescentou-se uma coisa a
outra numa la- j buta louca e furiosa, para encher a barriga, e as ruas cheiram a ! barrigas vazias, a
barrigas cheias e a barrigas meio-cheias. As j ruas cheiram à barriga que é insaciável e às
realizações da bar- j riga vazia, que são nulas e vazias. j
Nessa nulidade e nesse vazio, nessa brancura de zero, aprendi a saborear uma sanduíche, a apreciar
qualquer baga- ; tela. Era capaz de estudar uma cornija ou uma cimalha coma , maior curiosidade,
enquanto fingia escutar uma história dolorosa. Lembro-me das datas gravadas em certos edifícios e
dos nomes dos arquitectos que os conceberam. Lembro-me da j temperatura e da velocidade do
vento, quando me encontrava l parado em certa esquina; a história que ouvi nesse momento i
varreu-se-me da memória. Lembro-me de que nesse próprio l momento estava a recordar qualquer
outra coisa, e podia di- | zer o que recordava. Mas para quê? Havia em mini um ho- l mem que
morrera e tudo quanto restava eram as suas recor- l dações; havia outro homem que estava vivo, e
supunha-se que I esse homem era eu, mas ele só estava vivo como uma árvore l está viva, ou uma
pedra, ou um animal no campo. Assim j como a própria cidade se transformara num imenso túmulo
em que os homens lutavam para merecerem uma morte decente, assim também a minha própria
vida acabara por se assemelhar a um túmulo que eu estava a construir a partir da minha própria
morte. Andava às voltas numa floresta de pé- i dra, cujo centro era o caos. Às vezes, no próprio
centro, no próprio coração do caos, dançava ou bebia até ficar pateta, ou fazia amor, ou travava
amizade comalguém, ou planeava uma vida nova. Mas era tudo caos, tudo pedra, era tudo
desesperado e desconcertante. Até encontrar uma força suficientemente grande para me atirar para
fora dessa louca floresta de pedra, nenhuma vida me seria possível, não poderia ser escrita nenhuma
página que tivesse qualquer significado. Talvez quem ler isto ainda tenha uma impressão de caos,
mas isto está a ser escrito de um centro vivo, e o que é caótico não pássã aqui de periférico, não
passa por assim dizer das partículas ]
tangenciais de um mundo que já não me diz respeito. Há poucos meses, encontrei-me parado nas
ruas de Nova Iorque, a olhar em meu redor como olhara anos atrás. E de novo dei comigo a estudar
a arquitectura, a observar os minúsculos pormenores que só um olhar perturbado capta. Mas desta
vez era como se tivesse vindo de Marte. Que raça de homens é esta? perguntei a mim próprio. Que
significa? Não havia nenhuma recordação de sofrimento, nem da vida extinta na valeta; acontecia
apenas que estava a olhar para um mundo estranho e incompreensível, para um mundo tão distante
de mim que eu tinha a sensação de pertencer a outro planeta. Uma noite, olhei do alto do Empire
State Building para a cidade que conhecia tão bem, vista de baixo: lá estavam, na sua verdadeira
perspectiva, as formigas humanas entre as quais rastejara, os piolhos humanos comos quais lutara.
Moviam-se a passo de caracol, cada um a cumprir, sem dúvida, o seu microcósmico destino. No seu
infrutífero desespero tinham erguido aquele colossal edifício que era o seu orgulho e a sua
vanglória. E do tecto mais alto desse colossal edifício tinham dependurado uma enfiada de gaiolas
nas quais os canários prisioneiros cantavam o seu canto absurdo. No próprio cume da sua ambição
havia essas pequenas manchas de seres trinando à toa. Dentro de cem anos, pensei, talvez
engaiolassem seres humanos vivos, alegres, dementados, que cantariam acerca do mundo que viria.
Talvez criassem uma raça de chilreadores que chilreassem enquanto os outros trabalhavam. Talvez
em cada gaiola houvesse um poeta ou um músico, para que, em baixo, a vida pudesse fluir sem
entraves, una coma pedra e coma floresta, um caos ondulante e rangedor de nada e vazio. Dentro de
mil anos, talvez estivessem todos dementes, tanto trabalhadores como poetas, e caísse tudo em
ruínas, como já tem acontecido tantas vezes. Dali a mais mil anos, ou cinco mil anos, ou dez mil
anos, exactamente no ponto onde me encontrava a abarcar a cena, um rapazinho poderia abrir um
livro, escrito numa língua ainda desconhecida e acerca desta vida que passa agora, uma vida que o
autor do livro nunca experimentara, uma vida comforma e ritmo diminuídos, comprincípio e fim, e
ao fechar o livro talvez o rapaz pensasse que grande raça os Americanos tinham sido, que
maravilhosa vida houvera outrora neste continente que ele habitava. Mas
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Henry Miller
nenhuma raça futura, a não ser talvez a dos poetas cegos, poderá jamais imaginar o fervilhante caos
do qual se compôs essa história futura.
Caos! Um caos horrível! Não é necessário escolher um dia especial. Qualquer dia da minha vida - lá
- serviria. Qualquer dia da minha vida, da minha minúscula e microcósmica vida, era um reflexo do
caos exterior. Deixem-me recordar... O despertador toca às sete e meia. Mas eu não me levanto
logo, deixo-me ficar até às oito e meia, a tentar dormir mais um bocadinho. Dormir... Como posso
dormir? No meu cérebro há uma imagem do escritório onde já me devia encontrar. Vejo Hymie
chegar às oito em ponto, já comos telefones a tocar, ansiosos por transmitir pedidos de socorro, os
candidatos a subir a larga escada de madeira e o cheiro a cânfora a coar-se do vestiário. Para quê
levantar-me e repetir os gestos de ontem? Vão-se embora coma mesma rapidez comque os contrato.
Gasto os tomates nesta dança e nem sequer tenho uma camisa lavada para vestir. Às segundas-feiras
recebo a semanada que a minha mulher me dá, para os transportes e o almoço. Estou sempre
endividado comela, assim como ela está sempre endividada como merceeiro, o talho, o senhorio,
etc. Não me dou ao trabalho de fazer a barba; o tempo não chega. Visto a camisa rota, emborco o
pequeno-almoço a correr e peço um níquel emprestado para o metropolitano. Se ela está mal
humorada, intrujo o vendedor de jornais da estação do metro. Chego ao escritório sem fôlego, uma
hora atrasado e comuma dúzia de telefonemas a fazer e a atender antes mesmo de falar comalgum
dos candidatos. Enquanto atendo um telefonema, há outros três à minha espera. Utilizo dois
telefones ao mesmo tempo. O P. B. X. não pára de zumbir. Hymie afia os lápis entre chamadas.
McGovern, o porteiro, coloca-se a meu lado, para me dar uma palavrinha de aviso acerca de um dos
candidatos, provavelmente algum vigarista que tenta infiltrar-se comnome falso. Atrás de mim, as
fichas e os dossiers comos nomes de todos os candidatos que já passaram pela máquina. Os maus
estão assinalados comum asterisco a tinta encarnada; alguns têm seis nomes supostos, à frente do
verdadeiro. Entretanto, a sala enche-se como uma colmeia. Tresan^ da a suor, a pés sujos, a
uniformes velhos, a cânfora, a lisol c jH mau hálito. Metade dos candidatos terão de ser corridos nãfl
Trópico de Capricórnio
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porque não precisemos deles, mas porque não os poderíamos aceitar nem mesmo nas piores
circunstâncias. O homem parado à frente da minha secretária, commãos de paralítico e olhos
remelosos, é um ex-prefeito da cidade de Nova Iorque. Tem setenta anos e de born grado aceitaria
qualquer coisa. Traz maravilhosas cartas de recomendação, mas nós não podemos aceitar ninguém
commais de quarenta e cinco anos. Quarenta e cinco anos é o limite, em Nova Iorque. O telefone
toca. É um melífluo secretário da Y. M. C. A. a perguntar-me se não posso abrir uma excepção para
um rapaz que acaba de lhe aparecer no escritório - um rapaz que passou cerca de um ano num
reformatóno. Que fez ele? Tentou violentar a irmã. Italiano, claro. O’Mara, o meu ajudante, aplica o
terceiro grau a um candidato suspeito de ser epiléptico. Por fim consegue os seus intentos e, para
que não restem dúvidas, o homem tem um ataque ali mesmo, no escritório. Uma das mulheres
desmaia. Outra, bonita e comuma bela pele aconchegada ao pescoço, tenta persuadir-me a aceitá-la.
Vê-se perfeitamente que é puta batida e eu sei que estarei lixado, se a admitir. Quer trabalhar em
certo escritório da periferia, segundo diz por ser mais perto de casa. Ao aproximar-se a hora do
almoço começam a chegar alguns compinchas. Sentam-se a ver-me trabalhar. Quando Kronski, o
estudante de medicina, chega, diz que um dos rapazes acabado de contratar por mim tem a doença
de Parkinson. Estive tão ocupado que ainda nem tive tempo de ir à pia. Segundo O’Rourke, todos os
telegrafistas e todos os gerentes sofrem de hemorróidas. Anda a levar massagens eléctricas há dois
anos, mas nada dá resultado. À hora do almoço somos seis à mesa. Alguém terá de pagar por mim,
como de costume. Devoramos a comida à pressa e voltamos. Mais chamadas a fazer, mais
candidatos a entrevistar. O vice-presidente pinta a manta porque não conseguimos manter a força no
normal. Todos os jornais de Nova Iorque e de trinta quilómetros em redor publicam anúncios a
pedir pessoal. Procurámos boletineiros em part-time em todas as escolas, recorremos a todas as
instituições de caridade e auxílio. Mas os que se arranjam caem como moscas. Alguns nem uma
hora duram. É um moinho humano. E o mais triste é ser totalmente desnecessário. Mas isso não me
diz respeito. O que me diz respeito é fazer ou morrer, como disse Kipling. Avanço de
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vítima para vítima, enquanto o telefone toca desalmadamente, a sala tresanda cada vez mais e os
buracos aumentam. Cada uma daquelas pessoas é um ser humano a pedir uma côdea de pão. Tomo
nota da sua altura, do seu peso, da sua cor, da sua religião, das suas habilitações, da sua experiência,
etc. Todos os dados serão registados e arquivados, primeiro por ordem alfabética e depois por
ordem cronológica. Nomes e datas. E impressões digitais também, se tivéssemos tempo para isso. E
para quê? Para que os Americanos possam aproveitar a mais rápida forma de comunicação
conhecida pelo homem; para que possam vender as suas mercadorias mais depressa; para que,
quando um tipo cair morto na rua, os seus parentes mais chegados sejam avisados imediatamente isto é, dentro de í uma hora, a não ser que o boletineiro a quem for confiado o i telegrama decida
abandonar o emprego e deitar os telegramas 1 todos no latão do lixo. Vinte milhões de impressos de
boas- j -festas, todos a desejarem Alegre Natal e Feliz Ano Novo, j dos directores e dos presidente e
vice-presidente da Cosmo- l demonic Telegraph Company. Talvez o telegrama dissesse: «Mãe a
morrer, vem imediatamente», mas o funcionário estava demasiado atarefado e não reparou, e se o
lesado intentar uma acção por danos - danos espirituais -, há um departamento jurídico treinado
expressamente para tais emergências l e pode ter a certeza de que a sua mãe morrerá, o que não o
im- j pedirá de ter um Alegre Natal e Feliz Ano Novo do mesmo \ modo. Claro que o funcionário
será despedido e um mês de- j pois aparecerá a pedir um emprego de boletineiro, e será aceite e
colocado no turno da noite, perto das docas, onde ninguém o reconhecerá, e a mulher aparecerá
comos fedelhos para agradecer ao gerente do pessoal, ou talvez ao próprio vice-presidente, a
bondade e a consideração demonstradas. E : um dia toda a gente ficará muito surpreendida ao
descobrir que o dito boletineiro roubou a caixa, e O’Rourke meter-se-á no comboio nocturno para
Cleveland ou Detroit, a fim de o apanhar, nem que isso custe dez mil dólares. E depois o vicepresidente emitirá uma ordem a proibir que sejam admitidos mais judeus, mas passados três ou
quatro dias afrouxará um i pouco, pois só aparecem judeus a oferecer-se. E como as coi- ’ sãs se
estão a tornar tão feias e o material de escolha tão escasso, | estive prestes a contratar um anão do
circo, e provavelmente ’
tê-lo-ia contratado mesmo se não se tivesse ido abaixo e confessado que era uma anã. Para
complicar ainda mais as coisas, Valeska acolhe-«a» sob a asa e leva-«a» para casa onde, a pretexto
de compaixão, a submete a um exame minucioso, incluindo uma exploração vaginal como
indicador da mão direita. E a anã torna-se muito amorosa e, por fim, muito ciumenta. Um dia
extenuante. A caminho de casa, encontro a irmã de um dos meus amigos, que insiste em me
oferecer de jantar. Depois de comermos vamos ao cinema e, às escuras, começamos a brincar um
como outro, até que as coisas chegam a tal ponto que temos de sair. Voltamos ao escritório e deito-a
na mesa de tampo de zinco. Quando chego a casa, pouco depois da meia-noite, Valeska telefona:
quer que corra para o metropolitano e vá a sua casa; é muito urgente. É uma hora de caminho e eu
estou arrombado, mas ela disse que era urgente e, por isso, lá you. Quando chego encontro a prima,
uma jovem muito atraente que, segundo ela própria conta, acaba de ter relações comum
desconhecido, por estar farta de ser virgem. Mas qual era afinal a urgência? Bem, na pressa
esquecera-se de tomar as precauções habituais e talvez estivesse grávida. E depois? Queriam saber
o que, na minha opinião, deviam fazer, e eu respondi: Nada. Então Valeska chamou-me de lado e
perguntou-me se não me importava de dormir coma prima, assim a modos que para a domar, a fim
de aquela história não se repetir.
Uma história completamente chalada e por isso desatámos todos a rir histericamente e depois
começámos a beber
- a única coisa que tinham em casa era kummel e não foi preciso muito para ficarmos meioborrachos. As coisas tornaram-se ainda mais chaladas porque começaram as duas a apalpar-me e
nenhuma deixava a outra fazer nada. Para resolver o assunto, despi-as a ambas e meti-as na cama.
Adormeceram nos braços uma da outra. Quando saí, cerca das cinco da manhã, descobri que não
tinha nem um cêntimo. Tentei ficar a dever um níquel a um motorista de táxi, mas nada feito e, por
isso, acabei por despir o sobretudo forrado de pele e por lho dar - em troca de um níquel. Quando
cheguei a casa a minha mulher estava acordada e pior do que uma barata por me ter demorado
tanto. Tivemos uma discussão acalorada e eu acabei por perder os trambelhos e pré-
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guei-lhe um estalo, ela caiu ao chão e começou a chorar e a soluçar, e a miúda acordou e, ao ouvir a
mãe chorar, assustou-se tanto que desatou a berrar comtoda a força dos seus pulmões. A rapariga do
andar de cima veio a correr saber o que se passava. Vinha de roupão e como cabelo caído pelas
costas abaixo. Chegou-se a mim, na confusão, e as coisas aconteceram sem nenhum de nós
pretender que acontecessem. Metemos a patroa na cama comuma toalha fria na testa, e quando a
rapariga do andar de cima se debruçou para ela, aproximei-me por trás, levantei-lhe o roupão e
enfieilha, e ela ficou muito tempo inclinada, a dizer uma série de tolices tranquilizadoras. Por fim
meti-me na cama coma patroa e, para meu grande espanto, ela começou a aninhar-se e, sem
dizermos uma palavra, enlaçámos os galhos e ficámos assim até ao alvorecer. Apesar de extenuado,
não consegui adormecer e, deitado ao lado dela, planeei pedir folga no dia seguinte e procurar a
puta da bonita gola de pele comquem falara de dia. Depois disso comecei a pensar noutra tipa,
mulher de um dos meus amigos, que estava sempre a entrar comigo por causa da minha indiferença.
E a seguir comecei a pensar, uma por uma, em todas aquelas que tinha passado em branco, por uma
razão ou por outra, até que adormeci profundamente, e no meio do sono tive um sonho húmido. O
despertador tocou às sete e meia, como de costume, eu olhei para a camisa rota pendurada na
cadeira, disse para comigo que não valia a pena e virei-me para o outro lado. O telefone tocou às
oito horas. Era Hymie a dizer-me que fosse depressa, pois havia greve. E era assim que as coisas se
passavam, dia após dia, sem que houvesse nenhuma razão para isso. O país inteiro estava doido e o
que relatei acontecia em toda a parte, em maior ou menor escala, acontecia em toda a parte, porque
em toda a parte reinavam o caos e a insensatez.
Continuou assim, dia após dia, durante quase cinco anos inteirinhos. O próprio continente era
constantemente assolado por ciclones, tornados, macaréus, cheias, secas, nevões, vagas de calor,
epidemias, greves, assaltos, assassínios, suicídios... enfim, uma febre e um tormento constantes,
uma explosão, um vórtice. Eu era como um homem sentado num farol: debaixo de mim, as ondas
alterosas, os rochedos, os
escolhos, os destroços de frotas afundadas. Podia dar o sinal de perigo, mas era incapaz de evitar a
catástrofe. Respirava perigo e catástrofe. Às vezes a sensação de perigo e de catástrofe era tão forte
que me saía como lufadas de fogo pelas narinas. Ansiava por me libertar de tudo aquilo, mas ao
mesmo tempo sentia-me fortemente atraído. Era simultaneamente violento e fleumático, era como o
próprio farol: seguro no meio do mar mais turbulento. Debaixo de mim havia rocha sólida, a mesma
camada de rocha sobre a qual os grandes arranha-céus se erguiam. Os meus alicerces penetravam
profundamente na terra e a estrutura do meu corpo era de aço, unido por rebites em brasa. Acima de
tudo era um olho, um enorme holofote que procurava incessantemente, que girava sem cessar,
implacavelmente. Esse olho tão aberto, tão acordado, parecia ter colocado todas as minhas outras
faculdades em estado de letargia. Exauria todas as minhas aptidões no esforço que fazia para ver,
para apreender o drama do mundo.
Se ansiava pela destruição, era só para que esse olho se extinguisse. Desejava um terramoto,
qualquer cataclismo natural que mergulhasse o farol no mar. Queria uma metamorfose, uma
mudança para peixe, para leviatã, para destróier. Queria que a terra se abrisse e engolisse tudo num
bocejo hiante. Queria ver a cidade afundada muitas braças, nas profundezas do mar. Queria sentarme numa caverna e ler à luz de uma vela. Queria que o olho se extinguisse, para ter a oportunidade
de conhecer o meu próprio corpo, os meus próprios desejos. Queria estar sozinho durante mil anos,
a fim de reflectir no que vira e ouvira - e a. fim de esquecer. Queria da terra qualquer coisa que não
fosse obra humana, qualquer coisa absolutamente divorciada do humano de que estava
empanzinado. Queria qualquer coisa puramente terrestre e absolutamente despida de ideia. Queria
sentir o sangue correr-me nas veias, mesmo expondo-me ao risco do aniquilamento. Queria
expulsar a pedra e a luz do meu organismo. Queria a fecundidade escura da Natureza, o poço fundo
do útero, silêncio, ou então o lamber das águas pretas da morte. Queria ser essa noite que o olho
implacável iluminava, uma noite constelada de estrelas e longos cometas. Ser como a noite, tão
assustadoramente silenciosa, tão absoluta-
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mente incompreensível e eloquente ao mesmo tempo. Nunca mais falar, ou escutar, ou pensar. Ser
englobado e abarcado e englobar e abarcar ao mesmo tempo. Não mais compaixão, não mais
ternura. Ser humano apenas terrenamente, como’ uma planta, ou um verme, ou um ribeiro. Ser
descomposto, despojado de luz e pedra, variável como a molécula, resisten-L te como o átomo,
implacável como a própria terra. f
Henry Miller
Conheci Mara cerca de uma semana antes de Valeska se suicidar. A semana ou duas que precedeu
esse acontecimento foi um verdadeiro pesadelo. Uma série de mortes súbitas e estranhos encontros
commulheres. A primeira foi Pauline Janowski, uma judiazmha de dezasseis ou dezassete anos, sem
lar, sem amigos e sem família. Foi ao escritório pedir emprego. Eram quase horas de fechar e não
tive coragem para a mandar embora sem mais nem menos. Não sei porquê, meteu-se-me na cabeça
levá-la a casa para jantar e, se possível, tentar persuadir a minha mulher a deixá-la ficar uns dias. O
que me atraiu nela foi a sua paixão por Balzac. Durante todo o caminho para casa falou-me das
Ilusões Perdidas. A carruagem estava tão cheia e nós íamos tão comprimidos um contra o outro que
não importava aquilo de que falávamos, porque pensávamos ambos só numa coisa. Claro que a
minha mulher ficou estupefacta quando me viu à porta coma jovem. Mostrou-se educada e cortês, à
sua maneira frígida, mas eu percebi imediatamente que não valeria a pena pedir-lhe que deixasse
ficar a rapariga. Só comdificuldade conseguiu permanecer à mesa connosco, durante o jantar. Assim
que acabámos, desculpou-se e foi ao cinema. A rapariga começou a chorar. Ainda estávamos à
mesa, comos pratos empilhados à nossa frente. Aproximei-me e envolvi-a nos braços. Tinha sincera
pena dela e não sabia que fazer para a ajudar. De súbito, lançou-me os braços ao pescoço e beijoume apaixonadamente. Ficámos assim abraçados durante muito tempo, e depois eu disse para
comigo que não, que era um crime, e que além disso talvez a patroa não tivesse ido ao cinema,
talvez voltasse para casa de um momento para o outro. Disse à rapariga que se acalmasse, que
íamos dar um passeio de eléctrico a qualquer lado. Vi o mealheiro da miúda na consola da chaminé,
levei-o para a casa de banho e despejei-o silenciosamente. Tinha cerca de setenta e cinco centimes.
Metemo-nos no eléctrico e fomos à praia. Encontrámos um recanto deserto e deitámo-nos na areia.
Ela
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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mostrou-se histericamente apaixonada e não tive outro remédio senão seguir para a frente. Pensei
que, depois, me censuraria, mas não censurou. Deixámo-nos ficar um bocado e ela recomeçou a
falar de Balzac. Parece que tinha a ambição de ser escritora. Perguntei-lhe o que ia fazer e
respondeu-me que não fazia a mínima ideia. Quando nos levantámos, pediu-me que a deixasse na
auto-estrada. Disse que iria para Cleveland ou qualquer outro lado. Passava da meia-noite quando a
deixei defronte de uma bomba de gasolina, comtrinta e cinco centimes na algibeira. Ao pôr-me a
caminho de casa amaldiçoei a minha mulher, a miserável cadela. Gostaria que fosse ela que tivesse
ficado na auto-estrada, sem ter para onde ir. Sabia que quando chegasse a casa ela não mencionaria
sequer o nome da rapariga.
Quando cheguei, estava a pé, à minha espera. Pensei que íamos ter outra vez discussão. Mas não,
esperara apenas para me dar um recado urgente de O’Rourke: devia telefonar-lhe assim que
chegasse a casa. No entanto, resolvi não telefonar. Resolvi despir-me e meter-me na cama.
Precisamente quando acabava de me instalar entre lençóis, o telefone tocou. Era O’Rourke. Havia
um telegrama para mini no escritório e ele queria saber se podia abri-lo e ler-mo. Respondi que sim,
claro. O telegrama estava assinado por Mónica e vinha de Búfalo. Dizia que ela chegaria de manhã
à Grand Central, como corpo da mãe. Agradeci a O’Rourke e voltei para a cama. A minha mulher
não fez perguntas. Fiquei deitado, a pensar no que devia fazer. Se acedesse ao pedido, isso
equivaleria a recomeçar tudo, precisamente quando acabara de agradecer às minhas estrelas ter-me
livrado de Mónica. E agora ela voltava como corpo da mãe. Lágrimas e reconciliação. Não, a
perspectiva não me agradava nada. E se não aparecesse? Havia sempre alguém disposto a tomar
conta de um corpo. Sobretudo se a enlutada era uma jovem loura atraente e de olhos cintilantes.
Perguntei a mim próprio se ela voltaria para o emprego no restaurante. Se Mónica não soubesse
grego e latim nunca me teria metido comela. Mas a minha curiosidade levara a melhor. E, além
disso, ela era tão pobre que esse pormenor também me ajudara a cair. Talvez não tivesse sido tão
desagradável se as suas mãos não cheirassem a gordura. As mãos engorduradas é que estragavam
tudo. Lembro-me da noite
em que a conheci e em que passeámos pelo parque. Era encantadora de aspecto, e viva e inteligente.
Foi na época em que as mulheres usavam saia curta, e a ela ficava-lhe bem. Passei a ir ao
restaurante noite após noite só para a ver andar de um lado para o outro, inclinar-se para servir um
cliente ou apanhar um garfo. E comas belas pernas e os olhos tentadores, uma maravilhosa frase de
Homero; coma carne de porco e o charuto, um verso de Safo, as conjugações latinas e as odes de
Píndaro; coma sobremesa, talvez Rubaiayt ou Cynara... Mas as mãos engorduradas e a cama
desleixada na pensão defronte da praça... Não, não tinha estômago para isso. Quanto mais a repelia,
mais pegadiça se tornava. Cartas de dez páginas acerca de amor, comnotas de rodapé sobre Assim
Falou Zaratustra. E, de súbito, silêncio, e eu a felicitar-me, todo contente. Não, não era capaz de ir
à Grand Central, de manhã. Virei-me e adormeci profundamente. Quando acordasse pediria à minha
mulher que telefonasse para o escritório a dizer que eu estava doente. Já não estava doente havia
mais de uma semana... era tempo de adoecer.
Ao meio-dia encontrei Kronski à minha espera, à porta do escritório. Queria que almoçasse
comele... desejava apresentar-me uma pequena egípcia. A pequena, afinal, era judia, mas provinha
do Egipto e parecia egípcia. Muito quente, tão quente que começámos logo os dois a trabalhá-la.
Como dissera que estava doente, decidi não regressar ao escritório e dar uma volta pelo East Side.
Kronski voltava, para me substituir. Apertámos a mão à rapariga e seguiu cada qual o seu caminho.
Eu segui na direcção do rio, onde estava mais fresco, e esqueci a rapariga quase imediatamente.
Sentei-me no cais, comas pernas a balouçar, penduradas por cima da corda. Passou uma barcaça
carregada de tijolos vermelhos e, de súbito, lembrei-me de Mónica. Mónica a chegar à Grand
Central comum cadáver. Um cadáver FOB Nova Iorque! Parecia tão incongruente e tão ridículo que
desatei a rir. Que teria feito dele? Tê-lo-ia despachado ou tê-lo-ia deixado num desvio? Devia estar
a amaldiçoar-me veementemente. Que pensaria, se me visse ali sentado na doca, a balouçar as
pernas por cima da corda? Estava quente e abafado, apesar da brisa que soprava do rio. Comecei a
cabecear e lembrei-me de Pauline. Imaginei-a a caminhar pela auto-estrada, de mão levantada. Sim,
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Henry Miller
uma rapariga corajosa, sem dúvida nenhuma. Era estranho que não parecesse preocupar-se coma
possibilidade de engravidar. Talvez estivesse tão desesperada que não se importava. E Balzac! Isso
também era incongruente. Porquê Balzac? Bem, era lá comela. De qualquer maneira, teria o
suficiente para comer qualquer coisa, até encontrar outro tipo. Mas uma i garota daquelas a pensar
vir a ser escritora! E porque não? ! Toda a gente tinha ilusões, de uma espécie ou de outra. Móni- j
ca também queria ser escritora. Estavam todas a tornar-se es- \ critoras. Escritor! Jesus, como
parecia fútil!
Dormitei... Quando acordei tinha uma erecção. O sol parecia estar a brilhar em cheio na minha
braguilha. Levantei-me e lavei a cara no chafariz. Continuava quente e abafado, o asfalto estava
mole como papas, as moscas picavam e o lixo apodrecia na valeta. Passei por entre os carros de
mão, a olhar vagamente para tudo. Tinha uma daquelas tesões teimosas, ( mas sem nenhum objecto
definido em vista. Só quando voltei à 2.a Avenida é que me lembrei, de súbito, da judia egípcia do
almoço. Lembrei-me de a ter ouvido dizer que morava por cima do restaurante russo, perto da Rua
12. No entanto, con- , tinuava sem nenhuma ideia definida do que ia fazer. Limitava-me a flanar, a
matar tempo. Mas os meus pés iam-me levando para norte, na direcção da Rua 12. Quando cheguei
defronte do restaurante russo parei um momento e depois subi a escada a três e três. A porta do
vestíbulo estava aberta. Subi dois lanços, a ler os nomes escritos nas portas. Ela morava no último
andar e debaixo do seu nome havia um nome de homem. Bati devagarinho. Ninguém respondeu.
Bati de novo, com j um pouco mais de força. Desta vez ouvi ruído de gente, no in- ’ terior, e
depois uma voz a perguntar quem era, junto da porta, ao mesmo tempo que o puxador girava.
Empurrei a porta e entrei às cegas na sala às escuras. Caí direitinho nos braços dela e senti-a nua
debaixo do roupão meio aberto. Devia ter acordado de um sono profundo e só vagamente teria
consciência de quem a abraçava. Quando compreendeu que era eu, tentou libertar-se, mas eu
apertei-a e comecei a beijá-la apaixonadamente e ao mesmo tempo a empurrá-la, de costas, para o
sofá que estava perto da janela. Murmurou qualquer coisa acerca da porta estar aberta, mas eu não
quis correr o , risco de a deixar safar-se-me dos braços. Por isso, fiz um pé- ’
Trópico de Capricórnio
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queno desvio e, pouco a pouco, empurrei-a para a porta, obrigando-a a fechá-la como eu. Dei a
volta à chave, coma mão livre, conduzi-a para o meio da sala e, coma mesma mão livre, desabotoei
a braguilha e pus a picha em posição. A rapariga estava tão bêbeda de sono que era como entreterme comum autómato. No entanto, percebi que lhe agradava a ideia de ser fodida meio a dormir. Ô
pior é que cada vez que eu mergulhava, ela acordava mais um bocadinho. E à medida que ficava
mais consciente ficava também mais assustada. Era difícil saber como adormecê-la de novo sem
perder uma boa foda. Consegui atirá-la para cima do sofá sem perder terreno, enquanto ela se
tornava cada vez mais desejosa e começava a torcer-se e a contorcer-se como uma enguia. Não
creio que tivesse aberto os olhos uma única vez, desde que começara a agarrá-la. Dizia a mim
mesmo, repetidamente: «Uma foda egípcia... uma foda egípcia...», e, para não me vir
imediatamente, comecei a pensar no cadáver que Mónica trouxera consigo para a Grand Central
Station e nos trinta e cinco cêntimos que deixara a Pauline, na auto-estrada. De súbito, zás! Batem à
porta, comforça, e ela arregala os olhos e fita-me cheia de terror. Comecei a tirar-me rapidamente,
mas, para minha surpresa, prendeu-me e segredou-me ao ouvido: «Não te mexas! Espera!» Bateram
de novo e a seguir ouvi a voz de Kronski dizer: «Sou eu, Thelma... sou eu, Izzy.» Quase rebentei a
rir. Recaímos numa posição natural e, como ela fechasse de novo os olhos, movimentei-me dentro
dela devagarinho, para não a reacordar. Foi uma das fodas mais maravilhosas da minha vida.
Parecia que ia durar eternamente. Sempre que me sentia em perigo de disparar, deixava de me
mexer e pensava - pensava por exemplo onde gostaria de passar as férias, se as tivesse, ou nas
camisas que estavam na gaveta da cómoda, ou na mancha da alcatifa do quarto, mesmo aos pés da
cama. Kronski ainda estava à porta e eu ouvia-o mudar de posição. Todas as vezes que tinha
consciência da sua presença enfiava-lha commais força, à cautela, e, no seu meio-sono, ela
respondia comicamente, como se compreendesse o que eu queria dizer comaquela linguagem de
mete-e-tira. Não ousava imaginar o que ela estaria a pensar, senão vir-me-ia imediatamente. Às
vezes aproximava-me perigosamente do desfecho, mas o truque que me salvava sempre era lem-
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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brar-me de Mónica e do cadáver na Grand Central. O cómico J de tal situação actuava em mim
como um duche frio.
Quando acabou, ela abriu bem os olhos e fitou-me, como se me visse pela primeira vez. Não
encontrei uma única palavra para lhe dizer; só pensava em sair dali o mais depressa possível.
Enquanto nos lavávamos, reparei num bilhete que estava ’ no chão, junto da porta. Era de Kronski.
A mulher acabava de ser internada e Kronski queria que ela fosse ter comele ao | hospital. Que
alívio! Assim podia-me ir embora sem desper- l diçar palavras. ;
No dia seguinte, Kronski telefonou-me. A mulher morre- í rã na mesa de operações. À noite fui
jantar a casa e ainda está- ] vamos à mesa quando a campainha tocou. Kronski estava à ! porta,
comum ar abatidíssimo. É-me sempre difícil dizer palavras de condolência, mas comele foi-me
impossível. Ouvi a i minha mulher proferir as frases banais da ocasião e senti-me j mais enojado
dela do que nunca. ,1
- Vamos sair - propus. l
Caminhámos em absoluto silêncio, durante um bocado, l Entrámos no parque e seguimos na
direcção dos prados. Uma B névoa espessa não deixava ver nada a um metro de distância. . De
súbito, ele desatou a soluçar. Parei e virei a cabeça para o lado. Quando calculei que acabara, virei
de novo a cabeça e B surpreendi-o a fitar-me comum estranho sorriso. «Parece in- m crível como é
difícil aceitar a morte», comentou. Sorri tam- m bem e pus-lhe a mão no ombro. «Continua, fala à
vontade, l Desabafa.» Recomeçámos a andar para trás e para diante nos prados, como se
caminhássemos debaixo do mar. A névoa tornara-se tão densa que mal me permitia distinguir as
feições B de Kronski, que falava serena e loucamente. «Eu sabia que B isto aconteceria», dizia.
«Era demasiado belo para durar.» Na B noite antes de a mulher adoecer ele tivera um sonho,
sonhara B que perdera a sua identidade. «Tropeçava no escuro, a chamar B pelo meu próprio nome.
Lembro-me de chegar a uma ponte, fl cair de cabeça, e, quando vim à superfície, vi Yetta a flutuar
H debaixo da ponte. Estava morta.» E acrescentou, de súbito: B «Estavas lá ontem quando eu bati à
porta, não estavas? Percebi m que estavas lá e custou-me ir embora. Também sabia que Yet- B ta
estava a morrer e queria estar comela, mas tinha medo de ir B sozinho.» Continuei calado e ele
prosseguiu: «A primeira rã- |
pariga que amei morreu da mesma maneira. Nessa altura era muito novo e não me conseguia
conformar. Ia todas as noites ao cemitério e sentava-me junto da sepultura. As pessoas pensavam
que eu estava chalupa. E creio que estava. Ontem, quando estive à porta, recordei-me de tudo. Vime de novo em Trenton, na sepultura, coma irmã da rapariga que amara sentada ao meu lado. Ela
dizia-me que não podia continuar assim muito mais tempo, que enlouqueceria. Pensei que já estava
realmente louco, e para o provar a mim próprio decidi fazer qualquer coisa maluca e, por isso, disse
à rapariga: ”Não é a ela que amo, é a ti, ” E puxei-a para cima de mim, beijámo-nos e finalmente
fodi-a, mesmo ao lado da sepultura. Creio que isso me curou, pois nunca mais voltei ao cemitério e
nunca mais pensei nela... até ontem, parado à porta. Se te tivesse deitado as mãos, ontem, ter-te-ia
estrangulado. Não sei porque senti vontade disso, mas parecia-me que tinhas aberto um túmulo, que
estavas a violar o cadáver da rapariga que eu amara. É chalado, não é? E porque fui a tua casa esta
noite? Talvez por me seres absolutamente indiferente... por não seres judeu e eu poder falar
contigo... porque te estás nas tintas e tens toda a razão... Leste A Revolta dos Anjos}»
Acabávamos de chegar ao caminho para bicicletas que contorna o parque. As luzes do boulevard
nadavam na neblina. Olhei-o bem e percebi que não estava born da cabeça. Perguntei a mim mesmo
se conseguiria fazê-lo rir, embora receasse que, se começasse a rir, nunca mais acabasse. Por isso
desatei a falar à toa, primeiro acerca de Anatole France e depois acerca de outros escritores e, por
fim, quando pressenti que o estava a perder, falei repentinamente do general Ivolgin, e então ele
começou a rir, mas comum riso que era um cacarejo, um cacarejo horrível, como o de um galo
coma cabeça debaixo do cutelo. Foi um ataque tão violento que teve de parar e agarrar a barriga
comas mãos, de lágrimas a escorrer pelas faces. Entre os cacarejes soltava os mais terríveis e
dilacerantes soluços. «Sabia que me farias bem», tartamudeou, quando a última gargalhada se
extinguiu. «Sempre disse que eras um filho da puta maluco... Também és um pulha judeu, mas não
o sabes... Agora conta-me cá, meu sacana, que tal foi aquilo ontem? Conseguiste enfiar-lha? Não te
disse que era uma gaja boa? Sabes comquem vive? Jesus, tiveste sorte em
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Henry Millet
não ser apanhado! Vive comum poeta russo, tu conheces o tipo. Apresentei-to uma vez, no Café
Royal. Será melhor que ele não desconfie, pois se desconfiar é capaz de te estoirar os miolos à
porrada... e depois escreverá um belo poema a esse respeito e mandar-lho-á, a ela, comum ramo de
rosas. Conheci-o em Stelton, na colónia anarquista. O velho dela é niilista. Toda a família é chalada.
A propósito, é melhor teres cuidado contigo. Já tencionava dizer-to outro dia, mas não imaginei que
actuasses tão depressa. E possível que ela tenha sífilis. Não estou a tentar assustar-te, estou apenas a
informar-te, para teu próprio bem...»
Esta última tirada pareceu acalmá-lo, realmente. Estava a tentar dizer-me, à sua retorcida maneira
judaica, que gostava de mim. Para isso precisava primeiro de destruir tudo quanto me cercava: a
mulher, o emprego, os meus amigos, a «moça negra», como chamava a Valeska, etc. «Creio que um
dia serás um grande escritor.» Acrescentou, porém, perversamente: «Mas antes terás de sofrer um
bocado. Refiro-me a sofrer realmente, pois ainda não sabes o que a palavra significa. Julgas que
sofreste... Para isso precisarás de te apaixonar primeiro. Essa moça negra... não pensas que estás
realmente apaixonado por ela, pois não? Alguma vez lhe reparaste bem no eu?... Quero dizer, como
alarga? Dentro de cinco anos parecerá a tia Jemima. Farão um lindo par a descer a avenida,
comuma enfiada de pigmeus atrás. Jesus, preferia ver-te casar comuma rapariga judia. Não a
apreciarias, claro, mas seria born para ti. Andas a desbaratar as energias. Escuta, porque perdes
tempo comesses sacanas estúpidos que arranjas? Pareces ter um talento especial para escolher as
pessoas que não te convêm. Porque não te dedicas a qualquer coisa útil? Aquele emprego não presta
para ti, podias ser um grande tipo importante noutro lado qualquer. Talvez um líder laborai... Não
sei exactamente o quê. Mas primeiro tens de te livrar da cara de pau da tua mulher. Brr! Quando
olho para ela apetece-me cuspir-lhe na fuça. Não percebo como um gajo como tu foi capaz de casar
comuma cabra daquelas. Que te levou a isso? Um par de j ovários em ebulição? Ô teu mal é esse,
não tens nada, a não ser sexo, na cabeça... Não, não era isso que queria dizer. Tens ; miolos e tens
paixão e entusiasmo... Mas pareces estar-te nas tintas para o que fazes ou para o que te acontece. Se
não fos- k
Trópico de Capricórnio
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sés um sacana tão romântico quase juraria que eras judeu. Comigo é diferente... nunca pude aspirar
a nada. Mas tu tens qualquer coisa dentro de ti... só é pena que sejas tão preguiçoso que não a tires
cá para fora. Às vezes, quando te ouço falar, digo para comigo: ”Se aquele tipo passasse o que diz
ao papel!” comos diabos, serias capaz de escrever um livro que faria baixar a cabeça a um gajo
como Dreiser. Es diferente dos americanos que conheço; é como se não tivesses nada a ver comeles.
O que é excelente. E também és um bocadinho chalado... suponho que sabes. Mas no born sentido.
Há bocado, se fosse outro tipo que me falasse como tu falaste, tê-lo-ia assassinado. Creio que ainda
te aprecio mais porque não tentas mostrar-me compaixão. É coisa que não espero de ti. Se tivesses
dito uma palavra errada, esta noite, teria enlouquecido, verdadeiramente. Sei que teria. Estive
mesmo, mesmo, à beira disso. Quando começaste a falar do general Ivolgin pensei, por momentos,
que estava tudo bem comigo. É por isso que digo que tens qualquer coisa... Foi realmente bem
achada! E agora deixa-me dizer-te uma coisa... Se não tomas juízo depressa, dás em chalupa. Há
dentro de ti qualquer coisa que te devora. Não sei o que é, mas não me enganas. Conheço-te do
avesso e do direito. Sei que há qualquer coisa a devorar-te... e não é apenas a tua mulher, nem o
emprego, nem sequer a moça negra por quem julgas estar apaixonado. Às vezes penso que nasceste
na época errada. Escuta, não quero que julgues que te estou a transformar num ídolo, mas há uma
certa verdade no que te digo... Se fosses capaz de ter um bocadinho mais de confiança em ti
poderias ser o maior homem do mundo. Nem sequer terias de ser escritor. Acho que até te poderias
tornar outro Jesus Cristo. Não te rias, estou a falar a sério. Não fazes a mínima ideia das tuas
próprias possibilidades... estás absolutamente cego a tudo, menos aos teus desejos. Não sabes o que
queres. Não sabes porque nunca te deténs a pensar. Consentes que se sirvam de ti. Es um
grandíssimo parvo, um idiota. Se eu tivesse um décimo do que tu tens, viraria o mundo de pernas
para o ar. Achas que estou a dizer parvoíces, não achas? Pois bem, fica sabendo que nunca na vida
me senti commais juízo. Quando fui a tua casa, esta noite, pensava que estava à beira do suicídio.
Pouca diferença faz que me suicide ou não, embora eu não veja grande
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Henry Miller
utilidade em suicidar-me. Isso não ma devolverá. Nasci comazar. Pareço levar a tragédia aonde quer
que you. Mas ainda não quero arrumar as botas... Primeiro quero fazer algum bem no mundo. Isto
pode parecer-te idiota, mas é verdadeiro. Gostaria de fazer qualquer coisa pelos outros...»
Calou-se bruscamente e olhou-me de novo, comaquele estranho sorriso triste. A sua expressão era a
do judeu desesperado em quem como em toda a sua raça - o instinto de viver é tão forte que,
mesmo não existindo a mínima esperança, não é capaz de se matar. Aquele desespero absoluto erame estranho. «Se ao menos pudéssemos trocar a pele de um pela do outro!», pensei. Eu seria capaz
de me matar por uma bagatela! O que me irritava mais era pensar que ele nem apreciaria o funeral
da mulher - o funeral da própria mulher! Deus sabia que os nossos funerais tinham sido tristes, mas
depois houvera sempre uns comes e bebes, umas alegres piadas obscenas e umas boas gargalhadas.
Talvez eu fosse demasiado novo para apreciar os aspectos tristes, embora visse perfeitamente como
berravam e choravam. Mas isso nunca significava grande coisa para mim porque, depois do funeral,
na esplanada da cervejaria próxima do cemitério, reinava sempre uma atmosfera de alegria, apesar
dos fatos pretos, dos crepes e das coroas. À minha mentalidade de garoto afigurava-se que estavam
na realidade a tentar estabelecer qualquer espécie de comunhão como morto - algo de natureza
quase egípcia, parece-me agora. Tempos houve em que pensei não passarem de uma corja de
hipócritas. Mas não tinha razão. Eram apenas alemães estúpidos e saudáveis, comgula de vida. A
morte era uma coisa alheia ao seu conhecimento, apesar de, se nos guiarmos apenas pelo que
diziam, parecer ocupar uma boa parte dos seus pensamentos. Mas a verdade é que não a apreendiam
- pelo menos da maneira como os Judeus apreendem. Falavam da outra vida depois desta, mas
nunca acreditaram realmente nela. E se algum se sentia pesaroso ao ponto de se consumir de
desgosto, encaravam-no comdesconfiança, como a uma pessoa demente. Havia limites para o
sofrimento, assim como havia limites para a alegria: era essa a impressão que me davam. E nos
limites extremos lá estava sempre o estômago para encher comsanduíches de queijo picante, e
cerveja, e kiimmel, e pernas de peru, se as havia. Choravam para dentro da cerveja
Trópico de Capricórnio
83
como crianças. E logo a seguir riam-se, riam-se de qualquer curioso aspecto do carácter do defunto.
Até o modo como usavam o pretérito exercia sobre mim um efeito curioso. Mal decorrera uma hora
depois do enterramento, já diziam do defunto: «Estava sempre tão bem-disposto!», como se o tipo
em questão estivesse morto havia mil anos, fosse uma personagem da história ou dos
Nibelungenlied. O caso é que estava morto, definitivamente morto para sempre, e eles, os vivos,
estavam definitivamente e para sempre separados dele, e o dia de hoje, assim como o de amanhã,
tinha de ser vivido, a roupa tinha de ser lavada e o jantar tinha de ser preparado. E, quando chegasse
a vez do próximo, haveria um caixão para escolher e uma discussão por causa do testamento, mas
isso fazia tudo parte da rotina diária, e perder tempo comlamentações e desgosto era pecado, porque
Deus, se havia Deus, decretara que fosse assim, e nós, na Terra, não tínhamos nada a dizer a tal
respeito. Ultrapassar os limites estabelecidos da alegria ou do desgosto era perverso. A ameaça de
loucura era o pior dos pecados. Tinham uma tremenda noção animal da justa medida, maravilhosa
de contemplar se fosse verdadeiramente animal, mas horrível de testemunhar quando
compreendíamos que não passava de lerdo torpor germânico, de insensibilidade. E, no entanto, eu
preferia esses estômagos animados ao desgosto de cabeça de hidra dos Judeus. No fundo, não era
capaz de ter pena de Kronski: teria de sentir pena de toda a sua tribo. A morte da mulher dele era
apenas uma parcela, uma insignificância na história das suas calamidades. Como ele próprio
dissera, nascera comazar. Nascera para ver as coisas correrem mal, porque havia cinco mil anos que
elas corriam mal no sangue da raça. Vinham ao mundo comaquele esgar abatido e desesperançado
na cara, e abandonavam o mundo do mesmo modo. Deixavam atrás de si um pivete um veneno, um
vómito de desgosto. O fedor de que tentavam libertar o mundo era o mesmo que eles tinham trazido
para o mundo. Reflecti em tudo isto enquanto o escutava. Sentia-me tão bem e tão limpo por dentro
que, depois de nos separarmos e de meter por uma transversal, comecei a assobiar e a cantarolar
baixinho. Assaltou-me então uma sede terrível e eu disse para comigo, como meu melhor sotaque
irlandês: «É de uma bebida que estás a precisar, meu rapaz», e mal o disse tro-
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Henry Miller
pecei num buraco na parede e pedi uma grande caneca de espumosa cerveja e uma sanduíche
hamburguesa bem aviada e commuita cebola. Bebi outra cerveja e depois um golinho de brande, e
pensei, à minha maneira insensível: «Se o pobre sacana não tem miolos suficientes para apreciar o
funeral da mulher, apreciá-lo-ei eu por ele.» E quanto mais pensava no assunto mais feliz me sentia,
e se havia em mim a mais pequenina parcela de desgosto ou inveja era só por não poder trocar o
meu lugar pelo dela, pelo da pobre judia morta, pois a morte era algo que ultrapassava a
compreensão de um goy estúpido como eu, e era uma pena desperdiçá-la em tipos como eles, que
sabiam tudo a seu respeito e não precisavam dela para nada. A ideia de morrer embriagou-me de tal
modo que, no torpor causado pela bebida, pedi entarameladamente ao Deus de cima que me
matasse naquela noite: mata-me, Deus, e deixa-me saber do que se trata, afinal. Esforcei-me o mais
possível para imaginar o que era esticar o pernil, mas perdi o meu tempo. O mais que consegui foi
imitar um estertor, mas ao fazê-lo quase sufoquei, o que me assustou de tal maneira que por pouco
não caguei nas calças. De qualquer modo, isso não era a morte. Era sufocar, apenas. A morte
assemelhava-se mais ao que se passara no parque: duas pessoas caminhando lado a lado no
nevoeiro, roçando por árvores e arbustos e não trocando uma palavra. Era algo mais vazio ainda do
que o próprio nome de morte e, contudo, certo e sereno - digno, se quiserem. Não era uma
continuação da vida e, sim, um salto no escuro sem nenhuma possibilidade de regressar, nunca, nem
sequer como um grão de pó. E isso estava certo e era belo, disse para comigo, pois para que
quereria uma pessoa regressar? Prová-la uma vez era prová-la para sempre - a vida ou a morte.
Fosse para que lado fosse que a moeda caísse estaria certo, desde que não se fizessem apostas.
Claro que é duro sufocar no próprio cuspo - mais do que qualquer outra coisa, é desagradável.
Aliás, nem sempre se morre sufocado. Às vezes parte-se durante o sono, calma e serenamente,
como um cordeirinho. O Senhor chega e recolhe-te no redil, como dizem. Seja como for, deixamos
de respirar. E por que raio havíamos de querer continuar eternamente a respirar? Uma coisa que
tivesse de ser feita interminavelmente seria uma tortura. Os pobres diabos humanos que somos
deviam sentir-se
Trópico de Capricórnio
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gratos por alguém ter idealizado uma saída. Não protestamos quando adormecemos, e
desperdiçamos um terço da nossa vida a ressonar, como ratos bêbedos. Que me dizem a isso? Não é
trágico? Pois bem, em vez de um terço são três terços de sono de ratos bêbedos. Jesus, se
tivéssemos ponta de senso dançaríamos de alegria só de pensar nisso! Poderíamos morrer todos na
cama, amanhã, sem dor nem sofrimento, se tivéssemos o born senso de tirar partido dos nossos
remédios. O nosso mal é não querermos morrer. É por isso que existe Deus e toda a restante
patacoada nos nossos sótãos. General Ivolgin! Isso arrancou-lhe um riso cacarejado e alguns
soluços secos. Também podia ter dito queijo picante. Mas o general Ivolgin significa qualquer coisa
para ele, qualquer coisa chalada. Queijo picante seria demasiado sóbrio, demasiado banal. No
entanto, é tudo queijo picante, incluindo o pobre bêbedo do general Ivolgin. O general Ivolgin
proveio do queijo picante de Dostoievski, da sua marca especial. Isso significa um certo sabor, um
certo rótulo. Para que as pessoas o reconheçam quando o cheiram ou provam. Mas de que era feito
este queijo picante do general Ivolgin? Bem, do que quer que é feito o queijo picante, é x e. portanto
incognoscível. E portanto...? E portanto, nada... absolutamente nada. Ponto final... ou antes um salto
no escuro, sem regresso.
Quando despia as calças, lembrei-me de repente do que o pulha me dissera. Olhei para a picha e
achei-a tão inocente como sempre. «Não me digas que apanhaste a sífilis...», murmurei, agarrando-a
e espremendo-a um bocadinho, para ver se saía algum pus. Não, não havia muitas possibilidades de
ter apanhado a sífilis. Não nascera sob esse tipo de estrela. Um esquentamento, sim, isso era
possível. Toda a gente apanhava um esquentamento, numa ocasião ou noutra. Mas a sífilis, não!
Sabia que ele ma faria ter, se pudesse, só para que eu compreendesse o que era o sofrimento. Mas
não estava disposto a fazer-lhe a vontade. Era um goy que nascera estúpido, mas comsorte. Bocejei.
Era tudo tão queijo picante, pensei, que comsífilis ou sem sífilis ainda iria à minha mulher, se ela
estivesse para aí virada, e depois dana o dia por findo. Mas ela não estava para aí virada,
evidentemente. Voltava-me o eu. Por isso deixei-me ficar coma picha tesa encostada ao seu traseiro
e fui-lhe por telepatia mental.
86
Henry Mille,
E, Jesus, ela deve ter recebido o recado, apesar de dormir profundamente, pois não tive dificuldade
nenhuma em entrar pela porta da estrebaria - e, além disso, não precisei de lhe olhar para a cara, o
que foi um grandíssimo alívio. «Meu rapaz», disse para comigo, quando acabei, «é tudo queijo
picante e agora podes virar-te e ressonar...»
Dir-se-ia que o canto do sexo e da morte se prolongaria eternamente. Na tarde seguinte, a minha
mulher telefonou-me para o escritório a dizer que a sua amiga Arline acabava de ser levada para um
manicómio. Eram amigas desde a escola conventual, no Canadá, onde tinham ambas estudado
música e a arte da masturbação. Conhecera a ranchada toda, pouco a pouco, incluindo a irmã
Antolina, que era quebrada e, aparentemente, a suprema-sacerdotiza do culto do onanismo. Tinham
todas tido uma paixoneta pela irmã Antolina, numa época ou noutra. E Arline, coma fronha de
éclair de chocolate, não era a primeira do grupinho a ir parar ao manicómio. Não digo que fosse a
masturbação que para lá as atirasse, mas a atmosfera do convento tinha comcerteza alguma coisa a
ver como assunto. Eram todas avariadas do toutiço. Antes de a tarde terminar, apareceu o meu
velho amigo MacGregor. Chegou carrancudo como sempre e a queixar-se do advento da velhice,
embora pouco passasse dos trinta anos. Quando lhe falei do que acontecera a Arline animou-se um
pouco. Sempre soubera, afirmou, que havia nela qualquer coisa que não batia certa. Porquê? Porque
quando tentara forçá-la, uma noite, ela desatara a chorar histericamente. O pior, no entanto, não fora
o choro e, sim, o que dissera: pecara contra o Espírito Santo e, por isso, teria de levar uma vida de
continência. Ao recordar o incidente, MacGregor começou a rir, como seu riso sem alegria. «Disselhe: ”Bem, não precisas de fazer, se não queres... Basta que o segures na tua mão.”» Jesus, quando
ouviu issoí pareceu perder por completo o juízo. Disse que eu estava 31 tentar macular-lhe a
inocência. Assim mesmo, por estas pala*; vras. Mas ao mesmo tempo pegou-lhe e apertou-o tanto
que quase desmaiei. E sem deixar de chorar e de falar do Espírito» Santo e da sua «inocência».
Lembrei-me do que me tinhas^ dito, uma vez, e apliquei-lhe uma boa bofetada. Foi como um truque
mágico! Serenou um bocado, o suficiente para me: deixar enfiar-lho, e então começou a paródia a
valer. Alguma1
Trópico de Capricórnio
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vez fodeste uma gaja doida? Vale a pena experimentar. A partir do momento em que lho enfiei,
começou a falar à toa. Não sou capaz de te descrever exactamente como foi, mas quase se diria que
ela não sabia que a estava a foder. Não sei se alguma vez tiveste uma mulher que comesse uma
maçã enquanto lhe ias... bem, podes imaginar como isso afecta um tipo. Esta foi mil vezes pior.
Buliu-me de tal maneira comos nervos que comecei a pensar que também era um pouco esquisito...
E agora vais ouvir uma coisa em que te custará a acreditar, mas estou a dizer a verdade. Sabes o que
ela fez quando acabámos? Envolveu-me nos braços e agradeceu-me... Espera, há mais. Depois
saltou da cama, ajoelhou-se e disse uma oração pela minha alma. Jesus, lembro-me tão bem! «Por
favor, fazei de Mac melhor cristão», pediu. E eu deitado, de caralho murcho, a ouvi-la. Nem sabia
se estava a sonhar, se acordado. «Por favor, fazei de Mac melhor cristão!» Haverá alguma coisa que
bata isto?
E depois mudou de conversa e perguntou-me alegremente:
- Que vais fazer esta noite?
- Nada de especial.
- Então vem comigo. Quero que conheças uma garota que arranjei... Laura. Arranjei-a no Roseland,
há algumas noites atrás. Não é doida: é apenas ninfomaníaca. Quero ver-te dançar comela. Será um
mimo vê-los! Se não te esporrares todo nas calças quando ela se começar a menear... bem, se isso
não acontecer, serei um filho da puta. Vá, fecha a loja. Que ganhas em estar para aqui a peidar-te?
Como ainda era preciso matar muito tempo antes de irmos ao Roseland, entrámos num buraquinho
da parede que havia perto da 7.a Avenida. Antes da guerra era um estabelecimento francês; agora
era um botequim clandestino dirigido por um casal de imigrantes italianos. Havia um barzinho junto
da porta e ao fundo uma sala pequena, comserradura no chão e uma máquina de música automática.
A ideia era tomarmos duas bebidas e depois jantarmos. Essa era a ideia. Mas conhecendo-o como o
conhecia, não estava certo de que fôssemos ao Roseland juntos. Se aparecesse uma mulher que
agradasse à sua fantasia - e para isso não precisava de ser bonita nem escorreita de espírito ou corpo
-, MacGregor deixar-me-ia em apuros e pirar-se-ia. A única coisa que me preocu-
Henry Miller
pava, quando estava comele, era certificar-me de antemão de que o tipo tinha dinheiro suficiente
para pagar as bebidas que pedíamos. E, claro, nunca o perder de vista enquanto a conta não estava
paga.
Os dois primeiros copos mergulhavam-no sempre em reminiscências. Reminiscências de conas,
evidentemente. As suas reminiscências lembravam uma história que me contara J em tempos e que
produzira em mim uma impressão indelével, ji Era a respeito de um escocês no seu leito de morte.
Ao vê-lo ji esforçar-se para dizer qualquer coisa, quando estava mesmo a ; l ir desta para melhor, a
mulher debruçou-se ternamente para í l ele e perguntou-lhe: «O que é, Jock, que estás a tentar
dizer?» | E Jock, num derradeiro esforço, soergueu-se, exausto, e mur- J murou: «Apenas cona...
cona... cona.» m
comMacGregor, esse era sempre o tema de abertura. E de l encerramento. Era a sua maneira de
dizer futilidade. O leitmotw era a doença, pois entre fodas, por assim fizer, MacGregor matava a
cabeça a pensar em doenças. Para ele, era a coisa mais natural deste mundo dizer, no fim de um
serão: «Vamos B lá acima num instantinho; quero mostrar-te o meu caralho.» Claro que, em virtude
de o tirar, olhar, lavar e esfregar uma l dúzia de vezes por dia, o dito estava sempre inchado e inflal mado. De vez em quando, ia ao médico, que lhe fazia uma jl sondagem. Ou então, apenas para o
sossegar, receitava-lhe uma caixinha de pomada e dizia-lhe que não bebesse muito. Isso dava
origem a debates intermináveis, durante os quais me fl perguntava: «Se a pomada presta para
alguma coisa, porque B tenho de deixar de beber?» Ou: «Se deixasse completamente m de beber,
achas que teria necessidade de usar a pomada?» Cia- B ro que a minha recomendação, fosse ela
qual fosse, entrava por um ouvido e saía pelo outro. Tinha de se preocupar comqualquer coisa, e o
pénis era, sem dúvida, um born motivo de preocupação. Às vezes preocupava-se como couro
cabeludo. Tinha caspa, como quase toda a gente, e quando o caralho estava born esquecia-se dele e
preocupava-se como couro cabeludo. Ou então como peito. Assim que pensava no peito desatava a
tossir. E que tosse! Dir-se-ia que estava tísico em B último grau. Quando perseguia uma mulher
andava tão nervoso e irritável como um gato. Tinha uma pressa danada de a apanhar, mas mal a
apanhava começava a preocupar-se com |
Trópico de Capricórnio
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a maneira de se ver livre dela. Tinham todas algo errado, geralmente qualquer insignificância banal
que lhe tirava o gume ao apetite.
Voltou à carga comtodas essas coisas quando nos sentámos na penumbra da sala do fundo. Depois
do segundo copo, levantou-se, como de costume, para ir à casa de banho e, de caminho, meteu uma
moeda na máquina. A música começou a tocar, o que o animou. Apontou para os copos e disse:
«Pede outra rodada.» Voltou da casa de banho comum olhar extraordinariamente complacente, não
sei se por ter aliviado a bexiga, se por ter encontrado alguma rapariga no corredor. Fosse como
fosse, mudou de assunto, muito composto e muito sereno, quase como um filósofo: «Sabes, Henry,
estamos a ficar entrados em anos. Tu e eu não devíamos desperdiçar o nosso tempo desta maneira.
Se queremos vir a ser alguém, é mais do que altura de começarmos...» Havia anos que lhe ouvia
aquela história e já sabia qual seria o final. Tratava-se apenas de um pequeno parêntesis, enquanto
ele olhava calmamente à volta da sala, a ver qual das pêssegas tinha menos ar de idiota. Enquanto
falava do miserável fracasso das nossas vidas, os seus pés batiam o compasso da música e os seus
olhos tornavam-se cada vez mais brilhantes. Aconteceria como acontecia sempre. Quanto dissesse:
«Repara no Woodruff, por exemplo. Nunca vencerá porque não passa de um filho da puta
naturalmente mesquinho e pedinchão...», aconteceria que, precisamente quando dissesse isso,
passaria alguma vaca bêbeda que lhe atrairia a atenção e, sem a mínima pausa, ele interromperia a
narrativa para convidar: «Olá, pequena! Porque não te sentas e não bebes um copo connosco?» E
como as vacas bêbedas daquele género nunca viajam sozinhas, e sim aos pares, ela responderia:
«comcerteza. Posso ir buscar a minha amiga?» E MacGregor redarguiria, como se fosse o tipo mais
galante do mundo: «Claro, porque não? Como se chama ela?» Depois puxar-me-ia pela manga,
inclinar-se-ia e murmuraria: «Não te ponhas na alheta, estás a ouvir? Pagamos-lhes uma bebida e
livramo-nos delas, percebes?»
E, como sempre acontecia também, uma bebida levava a outra, e a conta começava a ficar muito
puxada, e ele achava que não tinha obrigação de desperdiçar o seu dinheiro comduas vadias, por
isso vai tu à frente, Henry, finge que vais
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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comprar um remédio, e eu seguir-te-ei dentro de momentos...’, mas espera por mim, filho da mãe,
não me deixes a ver navios como da última vez. E, como sempre fazia, mal me encontrei na rua,
afastei-me o mais depressa que pude, a rir para í comigo e a agradecer à minha boa estrela ter
podido livrar-me ’ dele comtanta facilidade. comtodas aquelas bebidas no ban- ’ dulho pouco
importava para onde os pés me arrastassem. , A Broadway estava loucamente iluminada como
sempre e a multidão espessa como melaço. Atira-te para o meio dela como uma formiga e deixa-te
levar. Toda a gente faz o mesmo, uns por uma boa razão e outros sem razão nenhuma. Todo este
empurrar, todo este movimento, representa acção, êxito, avanço. Pára e olha para os sapatos ou para
as camisas bonitas, para o novo tipo de sobretudo para o Outono, para as alianças de casamento a
noventa e oito centimes cada uma. f Loja sim, loja não, há um empório de comes.
Todas as vezes que ia parar àquelas bandas, cerca da hora do jantar, apoderava-se de mim uma
febre de expectativa. São apenas alguns quarteirões, da Times Square à Quinta Rua, pó- t rém
quando dizemos Broadway é a isso que realmente nos ré- j ferimos, a uma insignificância, um salto;
mas às sete horas da l tarde, quando toda a gente vai em busca de uma mesa, vibra j no ar uma
espécie de crepitação eléctrica, o nosso cabelo fica * em pé como antenas e, se somos receptivos,
não só captamos j todos os clarões e centelhas, como também a comichão esta- ”i tística, o quid
pro quo do quantum interactivo, intersticial e ’{ ectoplásmico dos corpos que chocam no espaço
como as es- í trelas que compõem a Via Láctea, coma diferença de que esta 1 é a Alegre Via
Branca, o topo do mundo sem telhado por cima [ e sem uma fenda ou um buraco que seja debaixo
dos pés, para por ele cairmos e dizermos que é mentira. A sua absoluta impessoalidade provoca-nos
um ardente e extremo delírio hu- ’ mano, que nos impele a seguir para a frente como uma pileca
cega e a agitar as orelhas delirantes. Cada pessoa deixa de ser tão absolutamente ela própria que se
torna automaticamente a > personificação de toda a espécie humana, apertando a mão a ^ mil mãos
humanas, tagarelando commil diferentes línguas humanas, amaldiçoando, aplaudindo, assobiando,
sussurrando, soliloquiziando, orando, gesticulando, urinando, fecundando, bajulando,
choramingando, comerciando, proxenetando, guinchando, etc., por aí fora. Somos todos os homens que jamais viveram de Moisés para cá,
e além disso somos uma mulher a comprar um chapéu, ou uma gaiola, ou apenas uma ratoeira.
Podemos esperar de atalaia numa montra, como um anel de ouro de catorze quilates, ou subir pelo
lado de um edifício como uma mosca humana, mas nada do que fizermos deterá a procissão: nem
sombrinhas voando à velocidade da luz, nem morsas de dois andares calmamente a caminho dos
bancos de ostras. A Broadway, conforme a vejo e a tenho visto há vinte e cinco anos, é uma rampa
que foi concebida por São Tomás de Aquino enquanto ainda estava no útero. Inicialmente destinouse a ser usada apenas por serpentes e lagartos, pelo sapo cornudo e pela garça vermelha, mas,
quando a Invencível Armada se afundou, a espécie humana saiu dos brigues e trasbordou, criando,
devido a uma espécie de imundo e ignominioso contorcer e serpentear, a racha coniforme que vai
de Battery, a sul dos campos de golfe, para norte, através do morto e verminoso centro da ilha de
Manhattan. Da Times Square à Quinta Rua, está incluído tudo quanto São Tomás de Aquino se
esqueceu de incluir no seu magnum opus, ou seja, entre outras coisas, sanduíches hamburguesas,
botões de colarinho, cães d’agua, máquinas caça-moedas, chapéus de coco cinzentos, fitas de
máquinas de escrever, tacos de laranjeira, casas de banho grátis, pensos higiénicos, pastilhas de
hortelã-pimenta, bolas de bilhar, cebolas picadas, pratinhos de cartão amarrotados, sarjetas,
sidecars, celofane, corda, pneus, magnetos, linimento para cavalos, gotas para a tosse e a opacidade
felina do eunuco histericamente dotado que caminha para o balcão dos refrescos comuma
espingarda de canos cortados entre as pernas. A atmosfera pré-prandial, a mescla de patchuli,
pechblenda quente, electricidade gelada, suor açucarado e urina pulverizada, provoca-nos uma febre
de delirante expectativa. Cristo nunca mais voltará à Terra, nem haverá nenhum novo legislador,
nem cessarão o assassínio, o roubo e o estupro, e contudo esperamos qualquer coisa, qualquer coisa
assustadoramente maravilhosa e absurda, talvez uma lagosta fria commaionese servida
gratuitamente, talvez uma invenção como a luz eléctrica ou a televisão, mas mais devastadora, mais
arrebatadora, uma invenção impensável que trará consigo uma calma e um vazio abaladores - não
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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a calma e o vazio da morte e sim da vida, como os monges sonharam, como ainda se sonha nos
Himalaias, no Tibete, em Lahore, nas Aleútes, na Polinésia e na ilha da Páscoa, o sonho dos homens
antes do Dilúvio, antes de a palavra ser escrita, o sonho dos homens das cavernas e dos
antropófagos, dos possuidores de sexo duplo e cauda curta, dos que são classificados de doidos e
não têm possibilidade de se defender, devido à superioridade numérica dos que não são doidos.
Energia fria aprisionada por brutos astuciosos e depois libertada como foguetes explosivos; rodas
complicadamente entrosadas para darem a impressão de força e velocidade - umas para produzirem
luz, outras energia e outras movimento -; palavras unidas por maníacos e montadas como dentes
postiços, perfeitas, repulsivas como leprosos; movimento cativante, suave, escorregadio e absurdo,
vertical, horizontal, circular, entre paredes e através de paredes, para prazer, para negócio, para
crime e para sexo; toda a luz, todo o movimento e toda a energia impessoalmente concebidos,
gerados e distribuídos através de uma racha congestionada e conifqrme, destinada a ofuscar e
embasbacar o selvagem, o labrego e o estrangeiro, mas sem que se veja ninguém ofuscado ou
embasbacado: este esfaimado, aquele lúbrico, todos um e o mesmo e nenhum diferente do
selvagem, do labrego, do estrangeiro, a não ser em insignificâncias, bricabraque, na espuma do
pensamento, na serradura da mente. Na mesma racha coniforme, aprisionados mas não ofuscados,
caminharam milhões antes de mim e entre eles um, Blaise Cendrars, que depois voou para a Lua e
daí de novo para a Terra e pelo Orinoco acima, fingindo ser um homem selvagem, mas sendo na
realidade são como um pêro, embora já não vulnerável, já não mortal, magnífico naco de poema
dedicado ao arquipélago da insónia. Dos possuídos de febre poucos eclodidos, e entre eles eu
próprio ainda por eclodir, mas pérvio e maculado, conhecendo comcalma ferocidade o tédio do
vogar e do movimento constantes. Antes do j jantar o entrechocar e o tinido da luz do céu escoandose docemente através da cúpula cinzenta, os hemisférios errantes germinando de núcleos azul-ovo
coagulando, ramificando, num cesto lagostas, no outro a germinação de um mundo antisepticamente pessoal e absoluto. Fora das sarjetas, tornados cinzentos pela vida subterrânea,
homens do mundo futuro \
saturados de merda, a electricidade gelada a mordê-los como ratos, o dia acabado e a escuridão
chegando como as frias e refrescantes sombras dos esgotos. Como um caralho mole a escorregar de
uma cona sobreaquecida, eu, o ainda não eclodido, esboço algumas contorções abortivas, mas, ou
não morto e suficientemente mole, ou livre de esperma e patinando ad astra, pois ainda não são
horas de jantar e um frenesi peristáltico apodera-se do intestino grosso, da região hipogástrica, da
zona umbilical e do lobo pós-pineal. Cozidas vivas, as lagostas nadam em gelo, sem dar nem pedir
quartel, simplesmente imóveis e sem motivação no tédio aquoso e gelado da morte, vida escorrendo
pela montra abafada em desolação, um escorbuto triste devorado por ptomaína, o vidro gelado da
montra cortando como uma navalha, comlimpeza e sem
deixar rasto.
Vida escorrendo pela montra... Eu fazendo tanto parte da vida como a lagosta, o anel de catorze
quilates e o linimento para cavalos, mas muito difícil de estabelecer esse facto, sendo a verdade que
a vida é mercadoria comum conhecimento de carga apenso, que o que escolho para comer é mais
importante do que eu, o comedor, cada um comendo o outro e consequentemente comendo, o verbo,
rei do poleiro. No acto de comer o hospedeiro é violado e a justiça temporariamente derrotada. O
prato e o que contém, através do poder predatório do aparelho digestivo, exige atenção e unifica o
espírito, hipnotizando-o primeiro, engolindo-o depois lentamente, e por fim digerindo-o e
absorvendo-o. A parte espiritual do ser passa como uma espuma, sem deixar absolutamente nenhum
vestígio ou evidência da sua passagem, desaparece, desaparece ainda mais completamente do que
um ponto no espaço após um discurso matemático. A febre, que pode voltar amanhã, está na mesma
relação, para a vida, que o mercúrio de um termómetro está para o calor. A febre não produzirá o
calor da vida, e isso é o que tem de ser provado, e assim consagra as almôndegas de carne e o
esparguete. Mastigar enquanto milhares mastigam, sendo cada mastigação um acto de assassínio, dá
o necessário aspecto social a partir do qual se olha pela montra e se vê que até a espécie humana
pode ser justamente chacinada, ou mutilada, ou morta à fome, ou torturada, porque, enquanto se
mastiga, a mera vantagem de estar sentado
94
Henry Miller
numa cadeira, vestido e a limpar a boca a um guardanapo, permite compreender o que os mais
sábios dos homens jamais foram capazes de compreender, ou seja, que não há outra maneira de vida
possível desdenhando muitas vezes os ditos sábios de usar cadeira, roupa ou guardanapo. Assim, os
homens que se apressam pela racha coniforme de uma rua chamada Broadway, todos os dias e a
horas regulares, em busca disto ou daquilo, tendem a estabelecer isto e aquilo, que é exactamente o
método usado por matemáticos, lógicos, físicos, astrónomos e quejandos. A prova é o facto e o
facto não tem outro significado que não seja o que lhe é dado pelos que estabelecem os factos.
Devoradas as almôndegas de carne, atirado cuidadosamente para o chão o guardanapo de papel,
arrotando um pouco e não sabendo porquê nem para onde, saio para a cintilação de vinte e quatro
quilates e junto-me à turba dos teatros. Desta vez vagueio pelas ruas transversais, atrás de um cego
comum acordeão. De quando em quando, sento-me num degrau e ouço uma ária. Na ópera a música
não faz sentido; aqui, na rua, tem o toque dementado certo, exacto, para a impregnar de pungência.
A mulher que acompanha o cego segura um púcaro de folha. Ele também faz parte da vida, como o
púcaro de folha, como a música de Verdi, como a Metropolitan Opera House. Toda a gente e tudo
faz parte da vida, mas mesmo depois de todas as partes juntas a vida não é, de certa modo, vida.
Quando é vida, pergunto-me, e porque não iigofj rã? O cego afasta-se e eu continuo sentado no
degrau. A» almôndegas de carne estavam podres e o café era ordinário e ajj manteiga rançosa. Tudo
aquilo que vejo é podre, ordinário J rançoso. A rua é como um mau hálito; a rua seguinte é o mesiM
mo, e a outra, e a outra. O cego volta a parar à esquina e tocai «Home to our Montains». Encontro
uma pastilha-elástica nBJ algibeira e mastigo-a por mastigar. Não posso fazer absolutaijH mente
nada melhor - a não ser tomar uma decisão, o que «j impossível. O degrau é confortável e ninguém
me chateia» Faço parte do mundo, da vida, como dizem, pertenço e nãdH pertenço. In
Permaneço cerca de uma hora sentado no degrau, a diva» gar. Chego à mesma conclusão a que
chego sempre que tenhdH um minuto para pensar em mim: ou you imediatamente parjJJ’
Trópico de Capricórnio
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casa e começo a escrever, ou fujo e inicio uma vida inteiramente nova. A ideia de começar um livro
aterra-me: há tanto que dizer que não sei por onde começar nem como. A ideia de fugir e começar
de novo é igualmente aterradora: significa trabalhar como um negro para me manter vivo. Para um
homem do meu temperamento e sendo o mundo o que é, não há absolutamente nenhuma esperança,
nenhuma solução. Mesmo que pudesse escrever o livro que quero escrever, ninguém lhe pegaria:
conheço muito bem os meus compatriotas. Mesmo que pudesse começar de novo, seria inútil,
porque fundamentalmente não tenho desejo nenhum de trabalhar nem de me tornar um membro útil
da sociedade. Permaneço sentado a olhar para a casa do outro lado da rua. Além de parecer feia e
sem sentido, como todas as outras casas da rua, pelo facto de a fitar tão atentamente torna-se de
súbito absurda. A ideia de construir um abrigo daquele modo especial afigura-se-me absolutamente
insana. A própria cidade me parece um exemplo da mais alta insanidade - tudo nela: esgotos, linhas
de cornboio aéreo, máquinas caça-moedas, jornais, telefones, polícias, puxadores de portas, bordéis,
papel higiénico, tudo. Não fana diferença alguma se nenhuma dessas coisas existisse; além de não
se perder nada, ganhava-se um universo inteiro. Olho para as pessoas que passam por mim para ver
se uma delas concordará, por acaso, comigo. E se interceptasse uma e lhe fizesse uma simples
pergunta? E se lhe perguntasse, apenas: Porque continua a viver da maneira que vive?
Provavelmente chamaria um polícia. Pergunto a mim próprio; alguém falará consigo mesmo como
eu falo comigo? Pergunto-me se haverá alguma coisa errada em mim. A única conclusão a que
chego é que sou diferente. E isso é uma coisa muito grave, seja qual for a perspectiva de que a
vejamos. Henry, digo para comigo levantando-me vagarosamente do degrau, espreguiçando-me,
sacudindo as calças e cuspindo a pastilha-elástica, Henry, ainda és novo, és um franganote, e se
consentes que te agarrem pelos tomates és um idiota, pois és melhor homem do que qualquer deles
e só precisas de te libertar das tuas falsas ideias acerca de humanidade. Tens de compreender,
Henry, meu rapaz, que estás a lidar comassassinos sanguinários, comcanibais, eles apresentam-se
bem aperaltados, barbeados e perfumados, mas é isso que são: assassinos sanguiná-
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Henry Miller
rios e cambais. O melhor que tens a fazer agora, Henry, é ir tomar um chocolate gelado, e quando te
sentares ao balcão conserva os olhos bem abertos e esquece o destino do homem, pois talvez ainda
encontres uma gaja boa, e uma gaja boa limpar-te-á os rolamentos de esferas e deixar-te-á um gosto
agradável na boca, ao passo que essas histórias só te causarão dispepsia, caspa, halitose, encefalite...
Enquanto me apaziguo assim, aproxima-se um tipo e pede-me dez cêntimos. Dou-lhe um quarto de
dólar, pelo seguro, e penso que se tivesse mais juízo teria comido uma suculenta costeleta de porco,
comaquilo, em vez da porcaria das almôndegas, mas que diferença faz isso agora, é tudo comida, e
a comida gera energia, e é a energia que faz girar o mundo. Em vez do chocolate gelado começo a
andar, e em breve encontro-me exac-; tamente onde tencionava ir desde o princípio: defronte da bi-’
lheteira do Roseland. E agora, Henry, digo para comigo, se tiveres sorte o teu velho compincha
MacGregor estará aqui e a primeira coisa que fará será dar-te uma sarabanda por te teres pirado,
mas depois emprestar-te-á cinco dólares, e se contiveres a respiração enquanto subires a escada
talvez vejas também a ninfomaníaca e consigas uma foda seca. Entra comtoda a calma, Henry, e
conserva os olhos bem abertos!... E entro compezinhos de lã, obedecendo às instruções, entrego o ’
chapéu no vestiário e faço uma mijinha, comtoda a naturalidade. Depois volto a descer a escada e
avalio as taxi girls, todas diafanamente vestidas, empoadas e perfumadas, parecendo frescas e vivas,
mas provavelmente chateadíssimas e cansadas das pernas. Fodo imaginariamente todas e cada uma
, delas, ao passar. A casa está literalmente superlotada de conas, I e é por isso que estou
razoavelmente convencido de que l encontrarei o meu amigo MacGregor. Deixo de pensar no es- l
tado do mundo, o que é maravilhoso. Menciono o assunto l porque, momentaneamente, enquanto
admirava um eu sucu- i lento, tive uma recaída e quase entrei de novo em transe. Pensei, valha-me
Cristo, que talvez fosse melhor ir para casa e começar o livro. Assustador pensamento! Uma vez,
passei uma noite inteirinha sentado numa cadeira, sem ver nem ouvir nada. Devo ter escrito um
livro de born tamanho, antes de acordar. O melhor é não me sentar. O melhor é continuar a circular.
Henry, devias vir aqui qualquer dia, comuma quanTróptco de Capricórnio
97
tidade de massa, e ver até onde te levava. Refiro-me a cem ou duzentos dólares. Gastá-los-ias como
se fossem água e dirias sim a tudo. Aquela de aspecto altivo e figura de estátua, vês? Aposto que se
contorceria como uma enguia se lhe untasses bem as mãos. Supondo que ela dizia vinte dólares e tu
podias responder comcerteza!... Suponho que podias dizer: escuta, tenho um carro lá em baixo.
Vamos passar uns dias a Atlantic City. Henry, não tens carro nenhum nem, sequer, vinte dólares.
Não te sentes... continua a circular.
Paro junto do parapeito que separa a pista de dança e fico a vê-las navegar. Isto não é recreação
inofensiva... isto é um assunto sério. Em cada lado da pista há um letreiro que diz: «Não E
Permitido Dançar Indecorosamente.» Muito bem. Não há mal nenhum em colocar um letreiro em
cada lado da pista. Em Pompeia talvez pendurassem um falo. Esta é a maneira americana, mas quer
dizer a mesma coisa. Não devo pensar em Pompeia, pois de contrário sento-me e volto a escrever
um livro. Continua a circular, Henry. Presta atenção à música. Esforço-me para imaginar quanto
me divertiria se tivesse o dinheiro necessário para uma série de bilhetes, mas quanto mais me
esforço, mais perco a mão em mim. Por fim encontro-me enterrado em lava até aos joelhos e o gás
sufoca-me. Não foi a lava que matou os Pompeianos: foi o gás venenoso expelido pela erupção. Foi
por isso que a lava os surpreendeu em posições tão esquisitas, por assim dizer de calças arriadas. Se,
de súbito, Nova Iorque fosse surpreendida do mesmo modo, que museu daria! O meu amigo
MacGregor, junto do lavatório, a lavar o caralho... os abortadores apanhados coma mão na massa...
as freiras deitadas a masturbarem-se umas às outras... o leiloeiro comum despertador na mão... as
telefonistas nos seus postos... J. P. Morganana sentado na pia a limpar placidamente o eu... chuis a
aplicar o terceiro grau commangueiras de borracha... artistas a fazer o último striptease...
Enterrado na lava até aos joelhos e comos olhos atafulhados de esperma: J. P. Morganana a limpar
placidamente o eu enquanto as telefonistas enfiam as fichas, enquanto os chuis aphcam o terceiro
grau commangueiras de borracha, enquanto o meu velho amigo MacGregor lava os germes do
caralho, e o enxuga cuidadosamente, e o examina ao microscópio...
98
Henry Miller
Trópico de Capricórnio
99
Toda a gente apanhada de calças arriadas, incluindo as stripteasers que não usam calça, nem barbas,
nem bigodes, que usam apenas um triangulozinho de pano a cobrir as coninhas cintilantes. A irmã
Antolina deitada na cama do convento, comas tripas amparadas pela cinta e as mãos nos quadris, à
espera da Ressurreição, esperando, esperando por uma vidaJj sem hérnia, sem relações sexuais, sem
pecado e sem mal, en-1 quanto vai petiscando uns biscoitos animais, um pimento,:! umas
azeitonitas e um bocadinho de queijo de miolos. Os rã- f pazes judeus do East Side, do Harlem, do
Bronx, de Canarsie I e de Brownsville a abrirem e a fecharem os alçapões, a arran-1 carem braços e
pernas, a accionarem a máquina das salsichas, J a entupirem os canos, a trabalharem furiosamente
por dinhei- l ro, e quem abrisse bico estava quilhado. commil e cem bilhe- l tes na algibeira e um
Rolls Royce à espera, lá em baixo, pode- i ria passar o mais penosamente maravilhoso dos bocados,!
fodendo todas e cada uma, sem olhar a idade, sexo, raça, religião, nacionalidade, nascimento ou
educação. Não há nenhuma solução para um homem como eu, sendo eu o que sou e sendo o mundo
que é. O mundo está dividido em três partes, das quais duas são almôndegas de carne e esparguete e
a outra um imenso cancro sifilítico. A altiva, comfigura de estátua, provavelmente é fria, uma
espécie de con anonyme forrada de ouro laminado e folha de estanho. Para lá do desespero e da
desilusão há sempre a ausência de coisas piores e os emolu- ^ mentos do tédio. Não há nada mais
reles e vazio do que o i meio da alegria viva captado pelo olho mecânico da época m mecânica, a
vida a amadurecer numa caixa preta, um negativo l titilado comácido e produzindo um momentâneo
simulacro M de nada. No limite extremo desse momentâneo nada chega o l meu amigo MacGregor,
que se coloca a meu lado e traz consi- l go aquela de quem me falara, a ninfomaníaca chamada
Laura, i Ela tem os gestos soltos, graciosos e ondulantes do sexo de* dois canos, todos os seus
movimentos irradiam da região pel-1 viça, está sempre em equilíbrio, sempre pronta para fluir, para
B serpentear, para agarrar, os olhos sem descanso, os dedos dosJ pés a estremecer e a cintilar, a
carne sacudida por frémitosjB por ondinhas, como a superfície de um lago enrugada pelaM brisa. E
a encarnação da alucinação do sexo, a ninfa marinhaH contorcendo-se nos braços do maníaco.
Observo os dois,M
a moverem-se espasmodicamente, centímetro a centímetro, na pista. Movimentam-se como um
polvo comcio. Entre os tentáculos pendentes a música brilha e cintila, ora se desfaz numa cascata de
esperma e água de rosas, ora forma um jacto oleoso, uma coluna que se conserva erecta, sem pés,
para cair de novo como giz, deixando a parte de cima da perna fosforescente, uma zebra numa poça,
de geleia dourada, comuma perna às riscas e a outra derretida. Um polvo de geleia dourada
comarticulações de borracha e cascos derretidos, o sexo desfeito e atado num nó. No leito do mar as
ostras estão atacadas pela Dança de S. Vito, umas comtrismo e outras comjoelhos de juntas duplas.
A música está salpicada de veneno de ratos, peçonha de cascavel, hálito fétido de gardenia, saliva
de iaque sagrado, suor de rato almiscarado e nostalgia coberta de açúcar de leproso. A música é
uma diarreia, um lago de gasolina estagnada combaratas e mijo velho de cavalo. As notas que
escorrem são a espuma e a baba do epiléptico, o suor nocturno” do negro fornicador. Toda a
América está na mancha do trombone, naquele guincho esfarrapado e desanimado das vacasmarinhas gangrenadas paradas ao largo de Point Loma, Pawtucket, cabo Hatteras, Labrador,
Canarsie e pontos intermédios. O polvo dança como uma picha de borracha - a rumba de Spuyten
Dnyvil, inédit. Laura, a ninfa, dança a rumba, como sexo esfoliado e torcido como o rabo de uma
vaca. Na barriga do trombone jaz a alma americana a peidar-se de contentamento. Nada se perde,
nem a mínima humidade de um peido. No sonho de felicidade de geleia dourada, na dança do mijo
velho e da gasolina, a grande alma do continente americano galopa como um polvo, comtodas as
velas desfraldadas, as escotilhas descidas e o motor a vibrar como um dínamo. A grande alma
dinâmica apanhada no clique do olho da câmara, no calor do cio, exangue como um peixe,
escorregadia como muco, a alma do povo miscegenando no leito do mar, de olhos arregalados de
desejo, espicaçada pela luxúria. O baile de sábado à noite, de cantalupos a apodrecer no caixote do
lixo, de ranho fresco e verde e unguentos viscosos para as partes delicadas. O baile das máquinas de
caçar moedas e dos monstros que as inventam. O baile do revólver e das balas que os usam. O baile
do porrete e dos tipos que espancam cabeças até as transformarem numa polpa poliposa. O baile do
mundo
100
Henry Miller
do magneto, a centelha que não chispa, o vibrar suave do perfeito mecanismo, a corrida de
velocidade numa plataforma giratória, o dólar ao par e as florestas mortas e mutiladas. A noite de
sábado do baile oco da alma, cada dançarinho pulador uma unidade funcional da Dança de S. Vito
do sonho da tinha. Laura, a ninfo, brandindo a cona, os doces lábios de pétalas rosadas crivados de
garras de rolamentos de esferas. Centímetro a centímetro, milímetro a milímetro, fazem girar o
cadáver copulador. E depois, zás! Como se desligassem uma tomada a música pára subitamente, e,
coma paragem, os pares separam-se, comas pernas e os braços intactos, como folhas de chá a cair
para o fundo da chávena. Agora o ar está azul de palavras, rechina lentamente, como peixe na
grelha. A moinha da alma vazia a subir como chiadeira de macacos nos ramos mais altos das
árvores. O ar azul compalavras que passam através dos ventiladores, que regressam adormecidas
através de funis canelados e de chaminés, aladas como o antílope, listradas como a zebra, ora
inertes como moluscos, ora cuspindo chamas. Laura, a ninfo, fria como uma estátua, comas partes
devoradas, o cabelo musicalmente arrebatado. À beira do sono, Laura ergue-se comlábios mudos, as
palavras a caírem como pólen através de um nevoeiro. A Laura de Petrarca sentada num táxi, cada
palavra a tilintar através da caixa registadora, depois esterilizada e depois cauterizada. Laura, a
basilisgi ca, inteiramente feita de amianto, a caminhar para a fogueiilH ígnea coma boca cheia de
goma. Uma palavra misteriosa nofl lábios. Os lábios canelados e pesados do molusco, os lábiajl de
Laura, os lábios do perdido amor uraniano. Tudo a flutuasji na direcção das sombras no nevoeiro
em ladeira. Os últimoJI detritos murmurantes de lábios como os dos moluscos escorH rendo da
costa do Labrador, borbotando para leste comall marés de lodo, dirigindo-se para as estrelas na
corrente iodai] da. Perdida Laura, última dos Petrarcas, desvanecendo-se lenlj tamente à beira do
sono. Um mundo não cinzento, mas baçoj o sono de bambu leve da inocência de costas de colher.
m E isto deixa, no nada negro e frenético do oco da ausêncislB um sombrio sentimento de saturado
desânimo, de cerM modo parecido coma mais alta ponta de desespero que é apíiB nas o alegre
verme juvenil da exótica ruptura da morte corn« vida. Deste cone invertido de êxtase erguer-se-á de
novíM
Trópico de Capricórnio
101
a vida em prosaica eminência de arranha-céus, arrastando-me pelo cabelo e pelos dentes,
trasbordante de alegria uivante e va/ia, feto animado do verme não nascido da morte à espera da
decomposição e da putrefacção.
O telefone acorda-me, no domingo de manhã. É o meu amigo Maxie Schnadig a anunciar-me a
morte do nosso amigo Luke Ralston. Maxie assume um torn de voz de verdadeiro desgosto que roça
por mim a contrapelo. Diz que Luke era um tipo formidável, o que também me soa a falso, porque
Luke era um tipo normal, apenas assim-assim, e não precisamente o que se chama um tipo
formidável. Luke era um panasca introvertido e, quando aprendi a conhecê-lo bem, um grande
chato. Disse isso mesmo a Maxie, pelo telefone, e compreendi, pelo modo como me respondeu, que
não gostou muito. Afirmou que Luke fora sempre um amigo para mim. Era verdade, mas não
chegava. A verdade verdadeira é que me sentia realmente satisfeito por Luke ter esticado no
momento oportuno: assim podia esquecer os cento e cinquenta dólares que lhe devia. Para ser
franco, quando desliguei sentia-me jubiloso. Era um tremendo alívio não ter de pagar essa dívida.
Quanto ao passamento de Luke, não me perturbava absolutamente nada. Pelo contrário, permitiame visitar a sua irmã, Lottie, que sempre desejara foder sem nunca o conseguir, por uma razão ou
por outra. Já estava a ver-me a ir lá a casa, em pleno dia, e a apresentar-lhe as minhas condolências.
O marido estaria no escritório e não haveria nada que interferisse. Via-me a envolvê-la nos braços e
a confortá-la. Não há nada como atacar uma mulher quando ela está desgostosa. Via-a a abrir muito
os olhos - tinha grandes e bonitos olhos cinzentos -, enquanto eu a conduzia para o sofá. Pertencia
ao tipo de mulher que concede uma foda enquanto finge falar de música ou de qualquer coisa do
género. Não gostava da realidade, dos factos nus, por assim dizer. O que não a impediria de meter
uma toalha debaixo dela, para não manchar o sofá. Conhecia-a por dentro e por fora. Sabia que o
melhor momento de a apanhar era agora, agora que estava comuma febrezita de emoção pela morte
do querido Luke - que não tivera em grande conta, diga-se de passagem. Infelizmente era domingo
e o marido estaria comcerteza em casa. Voltei para a cama
102
Henry Miller
Trópico de Capricórnio
103
e fiquei deitado a pensar primeiro em Luke e em tudo quanto fizera por mim, e depois nela, em
Lottie. Lottie Somers era o seu nome, que sempre me parecera bonito. Condizia perfeitamente
comela. Luke era teso como um pau, comum rosto todo crânio e ossos, impecável e impossível de
descrever por palavras. Ela era o contrário: macia e roliça, falava em voz arrastada, a acariciar as
palavras, movia-se languidamente e sabia utilizar os olhos comtoda a eficácia. Ninguém os tomaria
por irmãos. Excitei-me de tal maneira a pensar nela que tentei contentar-me coma minha mulher.
Mas a pobre sacana, como seu complexo de puntamsmo, fingiu-se horrorizada. Gostava de Luke.
Não foi ao ponto de dizer que era um tipo formidável, porque isso não estava no seu feitio, mas
afirmou que era sincero, leal, um verdadeiro amigo, etc. Eu tinha tantos amigos sinceros, leais e
verdadeiros que tudo aquilo não passava de conversa fiada para mim. Por fim travámos tal
discussão por causa de Luke que ela teve um ataque de histerismo e desatou a chorar e a soluçar na cama, notem. Isso enfureceu-me. A ideia de chorar antes do pequeno-almoço parecia-me
monstruosa. Desci a escada e preparei um delicioso pequeno-almoço, e enquanto o saboreei ri-me
sozinho, por causa de Luke, por causa dos cento e cinquenta dólares que a sua morte súbita apagara
da ardósia, por causa de Lottie e do modo como ela olharia para mim quando o momento
chegasse... e por fim, absurdamente, pensei em Maxie, em Maxie Schanadig, o fiel amigo de Luke,
junto da sepultura comuma grande coroa e talvez a atirar um punhado de terral para cima do caixão,
enquanto o desciam. Não sei porquê, pa-1 recia-me uma coisa indizivelmente estúpida. Não sei
porque! havia de me parecer ridícula, mas parecia. Maxie era um pate-< ta. Tolerava-o apenas
porque, de vez em quando, lhe podia dar um encosto. E havia também a sua irmã, Rita. Deixava-o”
convidar-me a ir a sua casa, de quando em quando, fingindo que me interessava pelo irmão, que era
demente. Isso traduzia-se sempre por uma boa refeição, independentemente do facto de o idiota ser
divertido. Parecia um chimpanzé e falava como se o fosse. Maxie era tão simplório que não
compreendia que eu me estava apenas a divertir; julgava que me interes-1 sava genuinamente pelo
irmão.
Estava um bonito domingo e, como de costume, eu tinha|
rã j
cerca de um quarto de dólar na algibeira. Saí, a pensar a quem poderia dar um encosto. Não que
fosse difícil conseguir umas massas, não era; o difícil era arranjar as massas e safar-me sem me
aborrecer mortalmente. Lembrei-me de uma dúzia de tipos mesmo ali nas imediações, tipos que
esmifrariam o cacau sem um murmúrio. Mas, depois, isso custar-me-ia uma longa conversa acerca
de arte, religião ou política. Outra coisa que podia fazer, e que já tinha feito sei lá quantas vezes,
num aperto, era visitar os escritórios da companhia, a fingir que fazia uma visita de inspecção
amigável, e no último momento sugerir-lhes que vissem se não havia um dólar ou coisa parecida na
caixa, até ao dia seguinte. Mas isso exigiria tempo e mais conversa, e conversa de pior género.
Pensando fria e calculadoramente, achei que o indicado era o meu amiguinho Curley, de Harlém. Se
Curley não tivesse o dinheiro de que precisava, faná-lo-ia da bolsa da mãe. Sabia que podia contar
comele. Claro que quereria acompanhar-me, mas eu arranjaria maneira de me livrar dele antes de a
noite terminar. Não passava de um miúdo e eu não precisava de estar comgrandes delicadezas
comele.
O que me agradava em Curley era o facto de, apesar de ser um miúdo de dezassete anos apenas, não
ter absolutamente nenhuma noção de moral, nem escrúpulos, nem vergonha. Procurara-me quando
tinha catorze anos, a pedir emprego como boletineiro. Os pais, que então se encontravam na
América do Sul, tinham-no mandado para Nova Iorque ao cuidado de uma tia que o seduzira quase
imediatamente. Nunca andara na escola porque os pais estavam sempre a viajar, eram uma espécie
de saltimbancos. O pai estivera preso diversas vezes e, diga-se de passagem, não era o seu pai
verdadeiro. Enfim, Curley procurou-me como um simples garoto precisado de auxílio, precisado,
sobretudo, de um amigo. Ao princípio pensei que poderia fazer qualquer coisa em seu favor. Todos
simpatizaram logo comele, em especial as mulheres, e tornou-se o menino bonito do escritório. Não
tardei, porém, a compreender que era incorrigível, que na melhor das hipóteses possuía os
ingredientes para se tornar um delinquente esperto. Mas gostava dele e continuei a ajudá-lo no que
podia, sem no entanto o perder de vista. Creio que gostava dele principalmente porque não tinha
noção de honra
104
Henry Miller
absolutamente nenhuma. Seria capaz de fazer tudo no mund< por mim e, ao mesmo tempo, de me
atraiçoar. Não o podi censurar por isso... divertia-me. Divertia-me sobretudo por que era franco a
esse respeito. Não estava na sua mão proce der de outro modo, mais nada. O caso da sua tia Sofia,
pá exemplo. Ele dizia que ela o seduzira. Sem dúvida, mas o eurioso era que ele se deixara seduzir
enquanto liam a Bíbli; juntos. Apesar de muito novo, parecera compreender que a tia Sofia tinha
necessidade dele nesse aspecto. Por isso deixara-se seduzir, como dizia, e depois fora ao ponto de
exercei chantagem sobre ela. Quando precisava muito de dinheiro ií ter coma tia e apanhava-lho,
commanhosas ameaças de dês* mascaramento. Feitas por certo como rosto mais inocente desta
vida. Parecia-se extraordinariamente comum anjo, com1 os seus grandes olhos líquidos, que dir-seiam trasbordar franqueza e sinceridade. Sempre pronto a fazer coisas por nós, quase como um cão
fiel. Mas depois de conquistado o nosso favor obrigava-nos astuciosamente a satisfazer-lhe os
caprichozinhos. Ainda por cima, inteligentíssimo. Possuidor da inteligência astuta da raposa e da
absoluta impiedade do ; chacal. j
Por isso, nessa tarde, não me surpreendeu nada saber que andara metido comValeska. Depois de
Valeska fora a vez da prima, que já tinha sido desflorada e precisava de um macho em que pudesse
confiar, e para terminar fora a anã, que soubera arranjar um born mnhozinho em casa de Valeska. A
anã interessava-o porque tinha uma cona perfeitamente normal, i Não tencionara fazer nada comela
porque, segundo dizia, era, uma lesbicazinha repugnante, mas um dia encontrara-a a to-; mar banho
e as coisas tinham começado assim. Estava a tornar-se demasiado para ele, confessava, pois as três
não lhe da-; vam quartel. De quem gostava mais era da prima, que tinha algum dinheiro e não era
agarrada. Valeska era muito sabida e, além disso, tinha um cheiro um bocado forte. Na realidade,
começava a estar farto de mulheres. A culpa era da tia Sofia, que o fizera ter um mau começo.
Enquanto conta estas peripécias vai revistando as gavetas da cómoda. O pai é um filho da puta
miserável que merece ser enforcado, declara, ainda sem encontrar nada. Mostra-me um revólver
comcabo de madrepérola... Quanto renderia? Uma arma era coisa demasiado
Trópico de Capricórnio
105
boa para matar o velho... comdinamite é que gostaria de o liquidar. Ao tentar descobrir porque
odiava tanto o velho, percebi que o rapaz gostava verdadeiramente da mãe e não podia suportar a
ideia de o pai se deitar comela. Não queres dizer que tens ciúmes do teu velho? Tem, tem ciúmes. A
verdade é que não se importaria nada de dormir coma mãe. Porque não? Fora por isso que deixara a
tia Sofia seduzi-lo... pensara o tempo todo na mãe. Mas não te sentes mal contigo mesmo ao ires-lhe
ao porta-moedas? - perguntei. Riu-se. Não é o dinheiro dela, é o dele. E, de resto, que fizeram eles
por mim? Têm passado a vida a correr comigo, e a primeira coisa que me ensinaram foi a vigarizar
as pessoas. Que rica maneira de criar um filho!...
Não há um único centime em casa. Curley sugere que o acompanhe ao escritório onde trabalha:
enquanto eu converso como gerente, ele vai ao vestiário e «limpa» todos os trocos que encontrar.
Ou então, se eu não tiver medo de correr o risco, «limpa» a gaveta do dinheiro. Nunca suspeitariam
de nós, afirma. Já fizera isso alguma vez? Claro... uma dúzia de vezes ou mais, mesmo debaixo do
nariz do gerente. E não houvera barulho? Claro que houvera... tinham despedido alguns
escriturários. Pergunto-lhe porque não pede qualquer coisa emprestado à tia Sofia. Seria fácil, mas
para isso teria de lhe fazer umas cócegas e já não quer fazer cócegas à tia Sofia. Ela fede. Ela fede?
Que queres dizer comisso?... Quero dizer exactamente que cheira mal... não se lava regularmente...
Porquê, que tem ela?... Nada, é só por ser religiosa. E ao mesmo tempo está a ficar gorda e sebosa...
Mas continua a gostar que lhe façam cócegas?... Se gosta! É mais doida do que nunca pela coisa.
Mete nojo. É como ir para a cama comuma porca... Que pensa dela a tua mãe?... Oh, está danada
comela como uma bicha! Pensa que a tia Sofia tenta seduzir o velho... e talvez tente! Mas não, o
velho tem outra coisa. Apanhei-o uma vez em flagrante, no cinema, todo enroscado numa rapariga
nova, manicura no Astor Hotel. Provavelmente anda a ver se lhe apanha algumas massas. É essa a
única razão por que caça uma mulher. É um filho da puta imundo e miserável e gostana de o ver na
cadeira eléctrica, um dia!... Tu é que vais parar a cadeira eléctrica, se não te acautelas. Quem, eu?
Eu, não! Sou demasiado esperto... Lá esperto és, mas não tens tento na
106
Henry Miller
língua. No teu lugar, daria menos à língua. Sabes - acrescen-i tei, para lhe meter medo -, o
O’Rourke já desconfia de ti. Se alguma vez cais em desgraça, comele, estás liquidado... Por* que
não diz ele nada, se sabe alguma coisa? Não te acredito, Explico-lhe, comcerta minúcia, que
O’Rourke é uma da-| quelas pessoas - que são pouquíssimas - que preferem não\ arranjar sarilhos a
ninguém, se está na sua mão evitá-lo, l O’Rourke possui o instinto do detective, mas só até ao ponto
] de gostar de saber o que se passa em seu redor. Estuda o ca- j rácter das pessoas e arquiva-o
permanentemente no cérebro*! da mesma maneira que os chefes militares registam mental-, mente
o terreno inimigo. As pessoas pensam que O’Rourke bisbilhota e espia para a companhia e que
sente um prazer especial em fazer esse trabalho sujo. Mas não é assim. O’Rourke; é um estudioso
nato da natureza humana. Toma conhecimento das coisas sem esforço, devido certamente à sua
maneira pé-; culiar de ver o mundo... Por exemplo, tenho a certeza de que: ele sabe tudo a teu
respeito. Nunca lho perguntei, confesso, mas presumo que é assim por causa das perguntas que me
faz, de vez em quando. Talvez te esteja apenas a dar corda. Uma noite destas, encontrar-te-á
acidentalmente e talvez te convide para ires petiscar comele a qualquer lado. De repente, é capaz de
se sair comuma destas: Lembras-te, Curley, daquele escriturariozinho judeu ter sido despedido por
roubar a caixa, quando trabalhavas no escritório SÁ? Creio que fizeste serão nessa noite, não
fizeste? Interessante caso, esse. Sabes, nunca descobriram se o escriturário roubou ou não o
dinheiro. Tiveram de o despedir por negligência, claro, mas não podemoaB garantir que tenha
tirado o dinheiro. Há algum tempo qu« ando a pensar nessa história. Tenho um palpite quanto ai
quem roubou de facto o dinheiro, mas não tenho a certeza ab-« soluta... E depois talvez te fite uns
momentos e mude bruscamente de conversa. Talvez te conte a história de um patifezi- m nho que
conheceu, o qual se julgava muito esperto e capaz de i se safar sempre. Levará que tempos a contar
essa história, coml milhentos pormenores, até teres a sensação de estar sentado i em cima de
carvões acesos. Estarás desejoso de te pôr a andar, j| e quando te parece que vais consegui-lo ele
lembra-se, de sú-H bito, de outro caso muito interessante e pede-te que esperesH mais um
bocadinho, enquanto encomenda outra sobremesa. J
Trópico de Capricórnio
107
É capaz de passar assim três ou quatro horas de uma assentada, sem nunca fazer a mínima
insinuação clara, mas sempre a estudar-te atentamente. Por fim, quando te julgas livre, quando lhe
apertas a mão e soltas um suspiro de alívio, pára na tua frente, mete o grande pé entre as tuas
pernas, agarra-te pelas bandas do casco e, olhando através de ti, pergunta, em voz suave e cativante:
Então, meu rapaz, não achas que é melhor dizeres tudo? E se pensares que está apenas a pretender
assustar-te e que podes fingir inocência e ir-te embora, estás enganado. Porque nessa altura, quando
te pede que digas tudo, fala muito a sério e nada no mundo o deterá. Quando chegar a esse ponto,
aconselho-te a contares tudo, até ao último cêntimo. Não me pedirá que te despeça, nem te
ameaçará coma cadeia. Sugerir-te-á apenas, calmamente, que poupes umas moedas todas as
semanas e lhas entregues. Ninguém saberá de nada. Provavelmente nem a mim próprio contará o
que se passar. É muito delicado a respeito dessas coisas, verás. Curley pergunta-me, de repente:
- E se eu lhe disser que roubei o dinheiro para te ajudar? Desata a rir histericamente. - Que
acontecerá então?
- Não creio que O’Rourke te acreditasse - respondo, comtoda a calma. - Podes tentar, claro, se
julgas que assim te safas. Eu acho, porém, que o efeito te será prejudicial. O’Rourke conhece-me...
sabe que não te deixaria fazer uma coisa dessas.
- Mas deixaste!
- Não te disse que o fizesses. Tu fizeste-o sem meu conhecimento, o que é diferente. De resto, podes
provar que aceitei dinheiro teu? Não será um pouco ridículo acusares-me, a mim que tenho sido teu
amigo, de te incitar a fazer uma coisa dessas? Quem te acreditaria? O O’Rourke, não, comcerteza.
Além disso, ele ainda não te caçou. Não há necessidade de te preocupares antecipadamente. Talvez
possas começar a repor o dinheiro pouco a pouco, antes de ele te descobrir. Podes fazê-lo
anonimamente.
Entretanto, Curley já estava chateado e cansado. Havia um pouco de schnapps no aparador, que o
velho tinha de reserva, e eu sugeri que bebêssemos uma pinga, para nos animar. Enquanto
bebíamos, lembrei-me, de súbito, que Maxie dissera que estaria em casa de Luke, a render a sua
homenagem. Era o momento oportuno para lhe dar um encosto. Ele
108
Henry Miller
Trópico de Capricórnio
109
estaria cheio de sentimentos piegas e eu poderia contar-lhe ai história que me viesse à cabeça.
Poderia dizer-lhe que lhe falara tão insensivelmente pelo telefone porque estava desesperado,
porque não sabia para que lado me virar para arranjar os, dez dólares de que precisava tanto. Ao
mesmo tempo, talvez pudesse marcar um encontro comLottie. Comecei a sorrir, só de pensar nisso.
Se Luke pudesse ver o amigo que tinha em mim! O mais difícil seria aproximar-me do caixão e
olhá-lo: comar pesaroso. Não me rir!
Expus a ideia a Curley, que se riu tanto que as lágrimas lhe correram pelas faces - o que me
convenceu de que seria mais seguro deixá-lo cá em baixo, à espera, enquanto desse o en- : costo.
Estava decidido. \
Estavam a sentar-se para jantar quando entrei, como ar í mais triste de que fui capaz. Maxie quase
se engasgou como l meu súbito aparecimento. Lottie já se fora embora, o que me ajudou a manter a
expressão triste. Pedi para ficar sozinho , comLuke alguns minutos, mas Maxie insistiu em
acompanhar-me. Suponho que os outros se sentiram aliviados corn’, isso, pois deviam ter passado a
tarde a conduzir visitantes junto do caixão. E como bons alemães que eram não gostavam de
interromper o jantar. Enquanto olhava para Luke, ainda com, a expressão pesarosa que afivelara,
percebi que os olhos de Maxie estavam fixos em mim, interrogadoramente. Levantei a cabeça e
sorri-lhe, à minha maneira habitual. Não se pertur- i bou absolutamente nada. «Escuta, Maxie, tens
a certeza de que não nos ouvem?» pareceu ainda mais intrigado e ofendi- ’ do, mas acenou coma
cabeça, tranquilizadoramente. «Trata-se do seguinte, Maxie... Vim aqui de propósito para falar
contigo... para te pedir uns dólares. Parece uma indignidade, bem sei, mas podes imaginar como
estou desesperado, para fazer uma coisa destas.» Começou a abanar a cabeça solenemente,
enquanto eu falava, coma boca a formar um grande «O», como se tentasse afugentar os espíritos.
«Escuta, Maxie», prossegui depressa e tentando conservar a voz baixa e triste -, «o momento não é
apropriado para me pregares um sermão. Se queres fazer alguma coisa por mim empresta-me dez
dólares agora, imediatamente... passa-mos para a mão aqui mês- f mo, enquanto eu olho para o
Luke. Gostava verdadeiramente j dele, sabes? Nada do que te disse pelo telefone foi comin- ]
tenção... Apanhaste-me num mau momento, a patroa arrepelava os cabelos... Estamos metidos nuns
grandes assados, Maxie, e conto contigo para fazeres qualquer coisa...» Como eu previra, Maxie
não poderia sair comigo. Não queria que supusessem que os abandonava num momento daqueles...
«Vá, dá-me agora o dinheiro», continuei, quase brutalmente. «Amanhã explico-te tudo, almoçarei
contigo...»
Maxie levou a mão ao bolso, embaraçado coma ideia de ser apanhado comum maço de notas nas
unhas num momento daqueles. «Escuta, Henry, não me importo de te dar o dinheiro... mas não
podias ter arranjado outra maneira de falar comigo? Não é por causa do Luke... é que...» Começou a
gaguejar, sem saber realmente o que queria dizer, e eu inclinei-me mais para Luke, para que se
alguém entrasse não desconfiasse do que me levara ali. «Pelo amor de Deus, não discutas agora...
passa-me o dinheiro e acaba comisto... Estou desesperado, estás a ouvir?»
Maxie estava tão confuso e atrapalhado que não conseguiu tirar uma nota sem sacar o maço todo da
algibeira. Reverentemente debruçado para o caixão, pesquei a nota de cima, sem ver se era de um
dólar, se de dez. Guardei-a o mais depressa possível, sem a olhar sequer, e endireitei-me. Depois dei
o braço a Maxie e conduzi-o à cozinha, onde a família comia solenemente, mas comapetite.
Convidaram-me para ficar, para petiscar qualquer coisa, e embora me fosse difícil recusar, numa
altura daquelas, recusei o melhor que pude e safei-me, já coma cara a tremer de riso histérico.
Curley esperava por mini à esquina, junto do candeeiro. Não me pude conter mais. Agarrei no braço
do rapaz e meti pela rua abaixo a rir, a rir como raras vezes tenho rido na minha vida. Julguei que
nunca mais conseguia parar. Todas as vezes que abria a boca para começar a contar o que se
passara, tinha um ataque de gargalhada... Por fim até me assustei, tive medo de morrer a rir. Quando
consegui dominar-me um pouco, e após um breve e pesado silêncio, Curley perguntou, de súbito:
Conseguiste? Foi o bastante para desencadear outro ataque, ainda mais violento do que os
anteriores. Tive de me encostar a um gradeamento e agarrar a barriga. Tinha uma dor danada nas
tripas, mas agradável.
O que mais me aliviou foi ver a nota que tirara do maço de
Maxie: vinte dólares! Tanto bastou para me curar imediatamente do riso. E ao mesmo tempo
enfureceu-me um pouco. Enfureceu-me pensar que na algibeira daquele idiota do Maxie havia mais
notas, provavelmente mais notas de vinte, de dez e de cinco dólares. Se ele tivesse saído comigo,
como lhe sugerira, e se eu tivesse visto bem o maço, tê-lo-ia assaltado sem sentir quaisquer
remorsos. Não sei a que atribuí-lo, mas fiquei furioso. O meu pensamento mais imediato foi livrarme de Curley o mais depressa possível - uma nota de cinco calá-lo-ia - e depois fazer uma
festazinha. O que desejava especialmente era encontrar uma gaja degradada e imunda, sem sombra
de decência... Onde encontrar uma assim... exactamente assim”? Bem, começa por te livrar de
Curley... Que ficou magoado, evidentemente. Esperara ficar comigo. Fingiu não querer os cinco
dólares, mas quando viu que me preparava para os guardar arrebatou-os logo.
De novo a noite, a noite incalculavelmente deserta, fria e mecânica de Nova Iorque, na qual não há
paz, nem refúgio, nem intimidade. A imensa solidão gelada da turba comum milhão de pés, o fogo
frio e desperdiçado dos letreiros eléctricos, a espantosa falta de significado da perfeição da fêmea
que, através da perfeição, cruzou a fronteria do sexo e entrou no negativo, no vermelho, como a
electricidade, como a energia neutral dos machos, como os planetas sem aspecto, como os
programas de paz, como o amor pela rádio. Termos dinheiro na algibeira no meio de energia
branca, neutral; caminharmos sem sentido e infecundados através do brilho vivo das ruas
calcinadas; pensarmos alto em absoluta solidão, à beira da loucura; sermos de uma cidade, de uma
grande cidade; sermos do último momento de tempo na maior cidade do mundo e não nos sentirmos
parte dela, é tornarmo-nos nós próprios uma cidade, um mundo de pedra morta, de luz esbanjada, de
movimento ininteligível, de imponderáveis e incalculáveis, da secreta perfeição de tudo o que é
negativo. Caminhar comdinheiro através da multidão nocturna, protegidos pelo dinheiro, embalados
pelo dinheiro, entorpecidos pelo dinheiro, a própria multidão transformada em dinheiro, a
respiração dinheiro, todos os objectos em toda a parte dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro em toda
a parte e mesmo assim insuficiente, e depois não termos dinheiro, ou termos pouco dinheiro,
ou menos dinheiro, ou mais dinheiro, mas dinheiro, sempre dinheiro, e quer tenhamos dinheiro quer
não, é o dinheiro que conta, é o dinheiro que faz dinheiro, mas o que faz o dinheiro fazer dinheiro!
Outra vez o salão de baile, o ritmo do dinheiro, o amor pela rádio, o contacto impessoal, sem asas,
da multidão. Um desespero que chega às próprias solas dos sapatos, um tédio, um desespero.
Dançar sem alegria no meio da maior perfeição ’mecânica, estar desesperadamente só, ser quase
desumano por ser humano. Se houvesse vida na Lua, que prova mais quase-perfeita, que prova mais
triste, poderia haver do que isto? Se viajar afastando-nos do Sol é chegar a gélida idiotia da Lua,
então chegamos à meta e a vida não é mais do que a fria incandescência lunar do Sol. Este é o baile
da vida gelada no vazio de um átomo, e quanto mais dançamos maior é o frio.
Por isso dançamos a um frenético ritmo gelado, ao cornpasso de ondas curtas e ondas longas, um
dançar no interior da taça do nada, cada centímetro de lubricidade medido em dólares e centimes.
Passamos de uma fêmea perfeita para outra em busca do defeito vulnerável, mas elas são
impecáveis e impermeáveis na sua irrepreensível consistência lunar. Este é o branco e gelado hímen
da lógica do amor, o rendilhado da maré vazia, a orla da vacuidade absoluta. E nessa orla da lógica
virginal da perfeição danço a dança de desespero branco da alma, o último homem branco premindo
o gatilho contra a última emoção, o gorila do desespero a bater no peito comimaculadas patas
enluvadas. Sou o gorila que sente as asas crescer, um gorila tonto no centro de um vazio acetinado;
a noite também cresce como uma planta eléctrica, lançando rebentos branco-ígneo para o espaço de
veludo preto. Sou o espaço preto da noite em que os rebentos desabrocham de angústia, uma
estrela-do-mar nadando no orvalho gelado da Lua. Sou o germe de uma nova insanidade, uma
aberração ornada de linguagem inteligível, um soluço enterrado como um espinho no âmago da
alma. Danço a dança muito sensata e muito encantadora do gorila angélico. Estes são os meus
irmãos e as minhas irmãs, que não são sensatos nem angélicos. Dançamos no vazio da taça do nada.
Somos da mesma carne, mas separados como estrelas.
De momento tudo é claro para mim, é claro que nesta lógica
112
Henry Miller
não há redenção, claro que a própria cidade é a forma mais elevada de loucura e todas e cada uma
das suas partes, orgânicas ou inorgânicas, são uma expressão dessa mesma loucura.1 Sinto-me
absurda e humildemente grande, não como um megalómano, mas como um esporo humano, como a
esponja’ morta da vida inchada até à saturação. Já não olho para os olhos da mulher que seguro nos
braços, nado através deles, cabeça e braços e pernas, e vejo que atrás das órbitas há uma ré- J gião
inexplorada, o mundo da futuridade onde não há lógica l de qualquer espécie, onde há apenas a
quieta germinação de J eventos não interrompidos pela cadência do dia e da noite, l pelo ontem e
pelo amanhã. Os olhos, habituados a concentra- l rem-se em pontos no espaço, concentram-se agora
em pontos J no tempo; os olhos vêem para a frente e para trás, conforme J lhes apetece. O olho que
era o eu do eu já não existe; este olho l sem eu não revela nem ilumina. Viaja ao longo da linha do
ho- J rizonte, viajante incansável e desinformado. Ao tentar reter o l corpo perdido cresço em lógica
como a cidade, torno-me um l ponto na anatomia da perfeição. Cresço para além da minha i própria
morte, espiritualmente brilhante e duro. Fui dividido i em intermináveis ontens, em intermináveis
amanhãs, repou- l sando apenas na cúspide do acontecimento, uma parede comi muitas janelas, mas
já sem a casa. Tenho de despedaçar as pare- I dês e as janelas, o derradeiro invólucro do corpo
perdido, se i quero regressar ao presente. É por isso que já não olho para os J olhos ou através dos
olhos, mas, pela prestidigitação da vonta- j de, nado através dos olhos, cabeça e braços e pernas,
para ex- I piorar a curva da visão. Vejo à volta de mim mesmo como a mãe que me trouxe no ventre
viu à roda das esquinas do tem- l pó. Quebrei a parede criada pelo nascimento e a linha da via- l
gem é redonda e ininterrupta, plana como o umbigo. Nenhu- l ma forma, nenhuma imagem,
nenhuma arquitectura; só voos l concêntricos de pura demência. Sou a seta da substancialidade do
sonho. Confirmo pelo voo. Anulo caindo na Terra. m
Assim passam momentos, momentos verídicos de tempo <jl sem espaço em que sei tudo, e sabendo
tudo caio sob a abobada do sonho despersonalizado.
Entre esses momentos, nos interstícios do sonho, a vida H tenta em vão construir-se, mas o andaime
da lógica louca da fl cidade não é apoio que sirva. Como indivíduo, como carne j^
Trópico de Capricórnio
113
e sangue, todos os dias sou arrasado para fazer a cidade sem carne nem sangue cuja perfeição é a
soma de toda a lógica e a morte do sonho. Debato-me contra uma morte oceânica em que a minha
própria morte é apenas uma gota de água a evaporar-se. Para erguer a minha própria vida
individual, nem que seja uma fracção de centímetro acima deste mar de morte que se afunda,
preciso de uma fé maior do que a fé de Cristo, de um saber mais profundo do que o saber do maior
profeta. Preciso de ter aptidão e paciência para formular o que não está contido na linguagem do
nosso tempo, pois o que é agora inteligível não tem significado. Os meus olhos são inúteis, visto só
me devolverem a imagem do conhecido. Todo o meu ser tem de se tornar um constante feixe de luz,
a avançar comvelocidade sempre crescente, sem nunca parar, sem nunca olhar para trás, sem nunca
hesitar. A cidade cresce como um cancro; eu tenho de crescer como um sol. A cidade devora cada
vez mais profundamente o vermelho; é um insaciável piolho branco que morrerá eventualmente de
inanição. you matar à fome o piolho branco que me devora. you morrer como cidade, a fim de me
tornar de novo um homem. Portanto, cerro os ouvidos, os olhos e a boca.
Antes de voltar a ser completamente um homem talvez exista como um parque, uma espécie de
parque natural onde as pessoas vão descansar, passar o tempo. O que disserem ou fizerem será de
pouca importância, pois só trarão a sua fadiga, o seu tédio e o seu desespero. Serei um tampão entre
o piolho branco e o glóbulo vermelho. Serei um ventilador para remover os venenos acumulados
através do esforço para aperfeiçoar o que é imperfectível. Serei lei e ordem como elas existem na
Natureza e como se projectam no sonho. Serei o parque selvagem no meio do pesadelo da
perfeição, o sonho imóvel, inabalável, no meio da actividade frenética, a tacada ao acaso na branca
mesa de bilhar da lógica, não saberei chorar nem protestar, mas estarei sempre presente, em
absoluto silêncio, para receber e restaurar. Não direi nada até chegar a altura de ser de novo homem.
Não farei nenhum esforço para preservar nem para destruir. Não julgarei nem criticarei. Os que
tiverem tido o suficiente irão até mim para reflectir e meditar; os que não tiverem tido o suficiente
morrerão como viveram, na desordem, no desespero,
Klk.
114 Henry Miller
na ignorância da verdade da redenção. Se um me disser que devo ser religioso, não responderei. Se
um me disser não tenho tempo agora, está uma cona à minha espera, não responderei. Mesmo que
se projecte uma revolução, não responderei. Haverá sempre uma cona ou uma revolução ao dobrar
da esquina, mas a mãe que me trouxe no ventre dobrou muitas esquinas e não respondeu, e
finalmente virou-se do avesso e eu sou a resposta.
De uma mania tão selvagem de perfeição ninguém esperaria, naturalmente, uma evolução para um
parque selvagem, nem mesmo eu próprio, mas enquanto se espera a morte é infinitamente melhor
viver num estado de graça e confusão natural. Enquanto a vida avança para uma perfeição mortal, é
infinitamente melhor ser um pouco de espaço para respirar, uma extensão verde, um pouco de ar
puro, uma poça de água. Também é melhor receber os homens silenciosamente e abraçá-los, pois
não há resposta nenhuma a dar enquanto eles ainda correm freneticamente para virar a esquina.
Estou a pensar na luta à pedrada de uma tarde de Verão há muito, muito tempo, quando eu estava
em casa da minha tia J Carolina, perto de Hell Gate. O meu primo Gene e eu tinha- l mós sido
encurralados por um grupo de rapazes, quando l brincávamos no parque. Não sabíamos a favor de
que lado lu- -| távamos, mas lutávamos comtodo o afã no meio do monte de l pedras, junto da
margem do rio. Tínhamos de mostrar ainda mais coragem do que os outros rapazes, pois
suspeitavam que éramos mariquinhas. Foi assim que matámos um rapaz do grupo rival. Quando nos
atacavam, o meu primo Gene atirou uma pedra de born tamanho ao chefe do grupo e acertou-lhe
numa têmpora e ele caiu - e caiu de vez, sem dizer pio. Os polícias chegaram pouco depois e o
rapaz estava morto. Tinha oito ou nove anos, como nós. Não sei o que nos teriam feito se nos
tivessem apanhado. Mas nós, para não levantarmos suspeitas, apressámo-nos a ir para casa e, no
caminho, sacudi^_nr,<: nm bocado e penteámo-nos. Chegámos quase tão
i i
casa, na grande sala da frente de persianas corridas, a jogar ao berlinde como nosso amiguinho Joey
Kasselbaum. Joey tinha fama de ser um bocadinho atrasado e, habitualmente, limpávamo-lo, mas
naquela tarde, por uma espécie de entendimento tácito, Gene e eu deixámo-lo ganhar tudo quanto
tínhamos. Joey ficou tão contente que mais tarde nos levou à sua cave e obrigou a irmã a levantar a
saia e mostrar-nos o que tinha por baixo. Chamavam-lhe Weesie, e lembro-me de que ela
simpatizou instantaneamente comigo. Eu era de outra parte da cidade, tão distante, parecia-lhes, que
era quase como se tivesse vindo de outro país. Até acharam que falava de modo diferente deles.
Enquanto os outros garotos tinham de pagar se queriam que Weesie levantasse a saia, para nós
levantava-a comamor. Passado algum tempo, conseguimos mesmo convencê-la a não a levantar
mais para os outros rapazes - estávamos apaixonados por ela e queríamos que se portasse
bem.
Deixei o meu primo no fim do Verão e não o voltei a ver durante vinte anos ou mais. Quando nos
encontrámos, o que mais profundamente me impressionou foi o seu ar de inocência: a mesma
expressão do dia do combate à pedrada. Quando lhe falei dessa luta fiquei ainda mais estupefacto ao
descobrir que ele se esquecera de que fôramos nós quem matáramos c rapaz; lembrava-se do caso,
mas referia-se-lhe como se nerr ele nem eu tivéssemos tido qualquer participação no acidente
Quando mencionei o nome de Weesie, teve dificuldade en identificá-la. Não te lembras da cave ao
lado... Joey Kassel vaum? Ao ouvir o nome perpassou-lhe pelo rosto um lev sorriso. Achava
extraordinário que eu me lembrasse de ta j
coisas. Já era casado e pai, e trabalhava numa
fábrica de este l
jos de fantasia para cachimbos. Achava extraordinário reco l
dar coisas
que tinham acontecido numa época tão distante c
l
passado.
||L Quando o deixei, nessa noite, sentia-me terrivelmente d
IHk sanimado. Tinha a impressão de que o meu primo tentí ^^i irradicar uma parte preciosa da
minha vida, e ele próprio ju
’”«^.-p^arlo oelos peixes tro
até momentos em que o gosto da grande fatia de pão de cen- , teio que a mãe dele me deu, nessa
tarde, é mais forte na minha j boca do que seja o que for que esteja a comer. E a imagem da ,
passarinha de Weesie quase mais forte do que o contacto do ’< que tenho na mão. A maneira como
o rapaz ficou caído, depois de o derrubarmos, muito, muito mais impressionante do que a história
da Guerra Mundial. Na realidade, todo o Verão me parece um idílio retirado das lendas arturianas.
Pergunto-me muitas vezes que terá havido de tão especial nesse Verão que o torna de tal maneira
vivo na minha memória. Basta-me fechar os olhos um momento para ser capaz de reviver cada um
dos seus dias. A morte do rapaz não me causou angústia alguma; estava esquecida antes de decorrer
uma semana. A imagem de Weesie, na penumbra da cave, coma saia levantada, também esqueceu
depressa. Estranhamente, a grossa fatia j de pão de centeio que a mãe dele me dava todos os dias
pare- i cê ter mais potência do que qualquer outra imagem desse período. Penso nisso... penso
profundamente. Talvez seja por- j que ela me dava sempre o pão comuma ternura e uma l simpatia
nunca antes conhecidas. A minha tia Carolina não j era nada bonita e tinha a cara picada das
bexigas, mas o seu l rosto era tão bondoso e tão cativante que nada o poderia dês- ] figurar. Era
robustíssima e tinha uma voz muito suave, muito j acariciadora. Quando se me dirigia parecia
prestar-me ainda j mais atenção e falar-me ainda commais consideração do qua« ao próprio filho.
Gostaria de ter ficado sempre comela: tê-la-B -ia escolhido para mãe, se tal me fosse permitido.
Lembro-meB perfeitamente como a minha mãe pareceu abespinhada ao verH como estava contente
coma minha nova vida, quando um dial me foi visitar. Disse até que eu era ingrato, observação que
l nunca esqueci, pois nessa altura compreendi pela primeira vez i que ser ingrato talvez fosse
necessário e born para uma pés- l soa. Se fecho agora os olhos e penso na fatia de pão, acode-me l
imediatamente ao espírito que naquela casa nunca soube o J que era ser repreendido. Creio que se
tivesse contado à minha J tia que matara o rapaz, se lhe tivesse dito como acontecera, ela* me
envolveria nos braços e me perdoaria. Imediatamente. Tal-B vez seja por isso que aquele Verão se
tornou tão precioso paraB mim. Foi um Verão de tácita e completa absolvição. É por issoH que
também não posso esquecer Weesie. Era uma criança |
cheia de bondade natural, que estava apaixonada por mim e não fazia quaisquer censuras. Foi a
primeira representante do outro sexo a admirar-me por eu ser diferente. Depois de Weesie, as coisas
passaram a acontecer ao contrário. Depois dela, tenho sido amado, mas também tenho sido odiado,
por ser o que sou. Weesie fez um esforço para compreender. O próprio facto de eu provir de um
país estranho e falar outra língua a prendia a mim. Nunca esquecerei como os seus olhos brilhavam
quando me apresentava às suas amiguinhas. Os seus olhos pareciam querer rebentar de amor e
admiração. Às vezes, ao fim da tarde, íamos os três até à beira do rio, sentávamo-nos e
conversávamos como as crianças conversam quando estão fora das vistas dos mais velhos.
Falávamos então sei-o muito bem, agora - mais sensata e profundamente do que os nossos pais.
Para nos darem aquela grossa fatia de pão todos os dias os pais tinham de pagar pesada pena. A pior
pena que pagavam era a de se afastarem de nós. Sim, porque a cada fatia de pão que nos davam nós
tornávamo-nos, não só mais indiferentes a eles, mas também mais e mais superiores. Na nossa
ingratidão estavam a nossa força e a nossa beleza. Não sendo devotados, estávamos inocentes de
todo o crime. O rapaz que vi cair morto, ficar imóvel e sem emitir o mais leve som ou gemido, a
morte desse rapaz parece quase um acto limpo e saudável. A luta pela comida, pelo contrário,
parece suja e degradante, e quando estávamos na presença dos nossos pais pressentíamos que
tinham vindo ate nós impuros e não lhes podíamos perdoar isso. A grossa fatia de pão, à tarde,
sabia-nos deliciosamente, o que se devia precisamente a não ter sido ganha. Nunca mais o pão
voltará a saber assim. Nunca mais nos será dado do mesmo modo. No dia do assassínio pareceu
ainda mais gostoso. Possuía um ligeiro travo a terror, que nunca mais teve. E foi recebido coma
absolvição tácita, mas completa, da tia Carolina.
Há um não-sei-quê no pão de centeio que tento descobrir, algo vagamente delicioso, atemorizador e
libertador, algo associado comas primeiras descobertas. Estou a pensar noutra fatia de pão de
centeio relacionada comum período ainda anterior, quando o meu amiguinho Stanley e eu
costumávamos fazer uma razia ao frigorífico. Esse era pão roubado e consequentemente ainda mais
agradável ao paladar do que o pão
í
dado comamor. Mas era no acto de comer pão de centeio, de caminhar comele na mão e falar ao
mesmo tempo, era nisso que acontecia algo da natureza de uma revelação. Era como j um estado de
graça, um estado de completa ignorância, de abnegação. Parece que retive, intacto, tudo quanto me
foi comunicado nesses momentos, e não há o perigo de jamais perder o \ conhecimento que foi
ganho. Talvez isso se deva ao facto de não ser conhecimento do género em que geralmente pensa- ’
mós. Era quase como receber uma verdade, embora a verdade seja uma palavra excessivamente
precisa para o descrever. O i importante nas discussões do pão de centeio era realizarem-se j sempre
longe de casa, longe dos olhos dos nossos pais, que te- ,] miamos mas nunca respeitámos. Sozinhos,
não havia limites l para o que podíamos imaginar. Os factos tinham pouca im- j portância para nós:
o que pedíamos a um assunto era que nosÉl concedesse a oportunidade de o expandir. O que me
surpreen-1 de, quando recordo tudo isso, é o bem que nos compreenJ díamos um ao outro, o bem
que penetrávamos no carácterí essencial de todos, jovens ou velhos. Aos-sete anos de idadeB
sabíamos comperfeita certeza, por exemplo, que determinado indivíduo acabaria na prisão, que
outro seria um burro de carga, outro um não-presta-para-nada, etc. Éramos absolutamente correctos
nos nossos diagnósticos, muito mais correctos, por exemplo, do que os nossos pais, ou os nossos
professores, mais correctos, até, do que os chamados psicólogos. Alfie Betcha acabou por ser um
absoluto vadio; Johnny Gerhardt foi para a penitenciária; Bob Kunst tornou-se um burro de carga.
Predições infalíveis. Os ensinamentos que recebemos tenderam apenas a obscurecer-nos a visão. Â
partir do dia em que fomos para a escola não aprendemos nada; pelo contrário, tornaram-nos
obtusos, envolveram-nos num nevoeiro de palavras e abstracções.
como pão de centeio, o mundo era o que é essencialmente, um mundo primitivo dominado pela
magia, um mundo em que o medo desempenha o papel mais importante. O rapaz que conseguia
inspirar mais medo era o chefe, respeitado enquanto era capaz de conservar o seu poder. Havia
outros rapazes que eram rebeldes e, como tal, admirados, mas nunca se tornavam chefes. A maioria
era barro nas mãos dos destemidos; podia-se depender de alguns, mas não da maioria. O ar
estava cheio de tensão, não se podia predizer nada para amanhã. Este vago e primitivo núcleo de
sociedade criava apetites agudos, emoções agudas e curiosidade aguda. Não se tomava nada por
certo; cada dia exigia uma nova prova de poder, uma nova noção de força ou de falta de força. E
assim, até aos nove ou dez anos, provámos verdadeiramente a vida; fomos independentes. Refirome, claro, àqueles que tiveram a sorte de não serem estragados pelos pais, àqueles que tiveram a
liberdade de correr pelas ruas à noite e de descobrir coisas comos próprios olhos.
No que estou a pensar, comuma certa dose de mágoa e saudade, é que a vida completamente restrita
da infância pareceu um universo ilimitado, e a vida que se seguiu, a vida do adulto, um reino a
diminuir constantemente. A partir do momento em que nos metem na escola estamos perdidos;
ficamos coma sensação de ter um cabresto à roda do pescoço. O pão perde o gosto, e a vida
também. Obter o pão torna-se mais importante do que comê-lo. É tudo calculado e tudo tem o seu
preço.
O meu primo Gene tornou-se uma nulidade absoluta; Stanley, um falhado de primeira. Além destes
dois rapazes pelos quais tive a maior afeição, houve outro, Joey, que mais tarde se tornou carteiro.
Sinto vontade de chorar quando penso no que a vida fez deles. Quando rapazes, eram perfeitos - o
Stanley era o menos perfeito, por ser o mais temperamental. Tinha cóleras violentas, de vez em
quando, e nunca sabíamos em que pé estávamos comele, no dia-a-dia. Mas Joey e Gene eram a
essência da bondade, eram amigos no antigo significado da palavra. Penso muitas vezes em Joey
quando you para o campo, porque ele era o que se chama um rapaz do campo. Isso significava,
desde logo, que era mais leal, mais sincero e mais terno do que os rapazes que conhecíamos. Ainda
estou a vê-lo correr para mim, sempre de braços abertos e pronto para me abraçar, sempre ofegante
no afã de me contar as aventuras que planeava coma minha participação, sempre carregado de
presentes que fora guardando para a minha chegada. Joey recebia-me como os monarcas de
antigamente recebiam os seus convidados. Tudo quanto olhava era meu. Tínhamos inúmeras coisas
que dizer um ao outro e nenhuma delas era enfadonha ou maçadora. A diferença entre os nossos
respecti-
120
Henry Miller
vos mundos era enorme. Embora eu também fosse da cidade, quando visitava o meu primo Gene
tinha consciência de uma cidade ainda maior, de uma verdadeira cidade de Nova Iorque em que a
minha sofisticação era insignificante. Stanley não fazia excursões para fora do seu bairro, mas
Stanley viera de uma terra estranha do outro lado do mar, viera da Polónia, e entre nós havia sempre
a marca dessa viagem. O facto de falar outra língua também aumentava a nossa admiração por ele.
Rodeava cada um de nós uma aura característica, uma identidade bem definida que se conservava
inviolada. coma entrada na vida, essas peculiaridades, essa diferenciação, esbateram-se, apagaramse, e tornámo-nos todos mais ou menos iguais e, evidentemente, muito diferentes da nossa própria
personalidade. E esta perda do eu peculiar, da individualidade quiçá não importante, é esta perda
que me entristece e põe em extraordinário relevo o pão de centeio. O maravilhoso pão de centeio
participou na feitura das nossas personalidades individuais; era como o pão da comunhão, que todos
compartilham, mas do qual cada um recebe apenas de acordo como seu estado de graça especial.
Agora comemos do mesmo pão, mas sem o benefício da comunhão, sem graça. Comemos para
encher a barriga e o nosso coração, sem graça. Comemos para encher a barriga e o nosso coração
está gelado e vazio. Estamos separados, mas não somos indivíduos.
Havia outra coisa que caracterizava o pão de centeio: muitas vezes acompanhávamo-lo comuma
cebola crua. Lembro-me de estar comStanley, à tarde, comuma sanduíche na mão, defronte da casa
do veterinário, que ficava mesmo defronte ’ da minha. Dir-se-ia ser sempre ao fim da tarde que o
doutor McKinney decidia castrar um garanhão, operação feita em público e que atraía sempre uma
pequena multidão. Lembro-me do cheiro do ferro quente e do tremor das pernas do cavalo, l da
barbicha do doutor McKinney, do gosto da cebola crua e l do cheiro do gás, proveniente de uma
nova conduta que esta-jH vam a colocar mesmo atrás de nós. Era uma performance^ completamente
indolor. Desconhecendo o motivo da opeJB ração, travávamos depois longas discussões, que
geralmentaM terminavam em briga. Também ninguém gostava do doutoçM McKinney, como seu
eterno cheiro a iodofórmio e a mijí^B velho de cavalo. Às vezes a valeta defronte da sua casa
enchia-seJB
Trópico de Capricórnio
121
de sangue e, no Inverno, o sangue transformava-se em. gelo e dava um estranho aspecto ao seu
passeio. De quando em quando, aparecia a fedorenta e grande carroça aberta de duas rodas, na qual
carregavam um cavalo morto. A carcaça era içada por meio de uma corrente comprida, que
produzia um ruído como o do descer de uma âncora. O cheiro de um cavalo morto e inchado é
pestilencial, e a nossa rua estava cheia de cheiros pestilenciais. A esquina ficava a loja de Paul
Sauer, que empilhava na rua peles cruas e curtidas, as quais também cheiravam pavorosamente mal.
E havia o cheiro acre que vinha da fábrica da folha, atrás da casa - um cheiro semelhante ao do
progresso moderno. O cheiro de um cavalo morto, apesar de quase insuportável, é mil vezes melhor
do que o cheiro de substâncias químicas em combustão. E o espectáculo de um cavalo morto,
comum orifício de bala na têmpora, a cabeça numa poça de sangue e o buraco do eu a rebentar
coma última evacuação espasmódica, é preferível ao espectáculo de um grupo de homens de avental
azul, saindo da porta em arco da fábrica comcarros de mão atestados de folha acabada de fazer.
Felizmente para nós, havia uma padaria defronte da fábrica, e pelo gradeamento das traseiras
podíamos ver os padeiros a trabalhar e aspirar o cheiro doce e irresistível do pão e dos bolos. E se,
como disse, estavam a colocar canos de gás, havia ainda outra estranha mistura de cheiros: o cheiro
da terra acabada de revolver, dos canos de ferro podres, do gás e das sanduíches de cebola que os
trabalhadores italianos comiam encostados aos montes de terra. Claro que havia mais cheiros, mas
menos impressionantes - como, por exemplo, o cheiro da alfaiataria de Silverstein, onde passavam
muito a ferro. Era um cheiro quente e fétido, que se identifica melhor se imaginarmos Silverstein,
um judeu magro e ele próprio fedorento, a limpar como ferro quente os peidos que os seus clientes
deixavam nas calças. Na porta ao lado era a papelaria e loja de rebuçados de duas velhas malucas e
beatas. Aí reinava o cheiro adocicado e enjoativo dos chupa-chupas, dos amendoins espanhóis, das
pastilhas de jujuba e Sen-Sen e dos cigarros Sweet Caporal. A papelaria era como uma bela caverna,
sempre fresca e cheia de objectos curiosos: junto da máquina da soda, da qual se desprendia outro
odor característico, havia urna grossa placa de mármore cujo cheiro a azedo, no Verão,
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Trópico de Capricórnio
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m
se misturava agradavelmente como cheiro seco e coceguento da água carbonada esguichada para os
copos de sorvete.
comos refinamentos próprios da maturidade, os cheiros desvanecem-se e são substituídos por um
único cheiro também caracteristicamente recordável e agradável: o cheiro a cona. Muito
especialmente o cheiro que nos fica nos dedos depois de brincarmos comuma mulher: este cheiro,
se não se deu por ele antes, é ainda mais agradável, talvez porque já tem consigo o perfume do
passado, do que o odor da própria cona. Mas, comparado comos odores característicos da infância,
este, que pertence à maturidade, é um cheiro ténue. É um cheiro que se dissipa quase tão depressa
na imaginação como na realidade. Podemos recordar muitas coisas acerca da mulher que amámos,
mas é difícil recordar o cheiro da sua cona - isto é, recordá-lo comalgo semelhante a uma certeza.
Por outro lado, o cheiro a cabelo molhado - cabelo de mulher molhado é muito mais potente e
duradouro, não sei porquê. Ainda hoje, passados quase quarenta anos, me lembro do cheiro do
cabelo da minha tia Tillie, depois de ela lavar a cabeça. Essa lavagem era feita na cozinha, que
estava sempre só- j breaquecida. Geralmente ocorria ao fim de uma tarde de sá-jj bado, como
preparativo para um baile, o que significava outrM coisa singular: que apareceria um sargento de
cavalaria conH divisas amarelas muito bonitas, um sargento muito desempeM nado e escorreito,
que até aos meus olhos parecia excessivaS mente gracioso, viril e inteligente para uma imbecil
como minha tia Tillie. Mas, como ia dizendo, ela sentava-se nunH banquinho, junto da mesa da
cozinha, a enxugar o cabel(M comuma toalha. A seu lado havia um candeeiro coma chamiM né suja
de fumo e ao lado do candeeiro dois ferros de frisaiH cuja simples presença me enchia de
inexplicável aversão. GeS ralmente, tinha um espelho inclinado, em cima da mesa. Pare^H ce-me
que estou a vê-la fazer caretas, ao espelho, enquanto esjH premia os pontos negros do nariz. Era
uma criatura imbecilH feia e escanzelada, comduas enormes dentuças que lhe davanH uma
expressão cavalar sempre que arreganhava os lábios par^l sorrir. Cheirava a suor, até depois de
tomar banho. Mas cH cheiro do seu cabelo... a esse nunca o poderei esquecer, poi^B associa-se de
certo modo ao meu ódio e desprezo por claH Esse cheiro, quando o cabelo começava a secar,
lembrava^
o fedor que vem do fundo de um pântano. Havia dois cheiros: um do cabelo molhado e outro do
mesmo cabelo, que ela atirava para o fogão e explodia em chamas. Havia sempre rolinhos de cabelo
caídos do seu pente e misturados comcaspa e como cheiro a suor do seu couro cabeludo gorduroso e
sujo. Costumava colocar-me ao lado dela e observá-la, a perguntar a mim mesmo como seria o baile
e como se comportaria ela. Quando acabava de se ataviar perguntava-me se estava bonita e se
gostava dela e, claro, eu respondia que sim. Mas mais tarde sentava-me na casa de banho, que
ficava no vestíbulo logo a seguir à cozinha, e à luz trémula da vela que ardia no parapeito da janela
dizia para comigo que a minha tia parecia doida. Quando se ia embora, pegava nos ferros de frisar e
cheirava-os e apertava-os. Eram repugnantes e fascinantes ao mesmo tempo, como aranhas. Tudo
naquela cozinha era fascinante para mim. Familiar como me era, nunca consegui conquistá-la,
talvez por ser simultaneamente tão pública e tão íntima. Ali me davam o meu banho na grande tina
de folha, aos sábados. Ali se lavavam e ataviavam as três irmãs. Ali se lavava o meu avô da cintura
para cima, no lavatório, e depois me dava os sapatos, para engraxar. Ali me punha à janela, no
Inverno, e via a neve cair, via-a cair entorpecidamente, vagamente, como se estivesse no útero e
ouvisse correr a água quando a minha mãe se sentava na retrete. Era na cozinha que se
desenrolavam as confabulações secretas, sessões assustadoras e odiosas, que os deixavam a todos
graves e carrancudos ou comos olhos vermelhos de chorar. Confesso que não sei porque corriam
para a cozinha. Mas era muitas vezes enquanto estavam nessas conferências secretas, a discutir um
testamento ou a decidir como livrarem-se de algum parente pobre, era nessas alturas que a porta se
abria de súbito e entrava um visitante, o que modificava logo a atmosfera. Quero dizer, modificavaa violentamente, como se eles se sentissem aliviados pela intervenção de uma força externa que lhes
poupava os horrores de uma prolongada sessão secreta. Lembro-me agora de que, ao ver a porta
abrir-se e surgir o rosto de um visitante inesperado, o meu coração saltava de alegria. Pouco depois
davam-me um grande jarro de vidro e mandavam-me à taberna da esquina, onde entregava o jarro,
através da janelinha da porta da família, e esperava que mo devolvessem
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Trópico de Capricórnio
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a trasbordar de espumosa cerveja. A pequena corrida até à eaj quina, para comprar um jarro de
cerveja, era uma excursai de proporções absolutamente incalculáveis. Primeiro havia B barbearia,
mesmo debaixo de nós, onde o pai de Stanley exeM cia a sua profissão. Muitas vezes, quando
descia para ir buscaB qualquer coisa, via o pai de Stanley a dar-lhe uma sova coml correia de afiar
as navalhas, espectáculo que me deixava o sarjl gue a ferver. Stanley era o meu melhor amigo e o
pai dele nãl passava de um polaco bêbedo. Uma tarde, porém, ao descel| como jarro, tive o intenso
prazer de ver outro polaco atirar-se ao pai de Stanley comuma navalha. Vi o velho sair pela porta às
arrecuas, como sangue a correr-lhe pelo pescoço abaixo e branco como um lençol. Caiu no passeio
defronte da barbearia, a estremecer e a gemer, e lembro-me de que olhei para ele um minuto ou dois
e depois me afastei comuma grande sensação de contentamento e felicidade. Stanley pisgara-se
durante a briga e acompanhou-me à porta da taberna. Também estava contente, embora se sentisse
um bocadinho assustado. Quando voltámos, a ambulância estava parada defronte da porta e
levantavam-np na maca, coma cara e o pescoço cobertos por um lençol. Às vezes sucedia o menino
do coro preferido do padre Carroll passar por ali precisamente quando eu chegava à rua, o que
constituía acontecimento de primeira importância. O rapaz era mais velho do que qualquer de nós e
um mariquinhas, um panasca em preparação. A própria maneira como andava nos enfurecia. Assim
que algum de nós o via, a notícia corria em todas as direcções, e antes que ele chegasse à esquina
era rodeado por um grupo de rapazes, todos muito mais pequenos do que ele, que o provocavam e
imitavam até desatar a chorar. Depois caíamos-lhe em cima como uma alcateia de lobos, atirávamolo ao chão e rasgávamos-lhe a roupa. Não estava certo, mas causava-nos uma sensação agradável.
Ainda ninguém sabia o que era um maricas, mas já todos éramos contra isso, fosse lá o que fosse.
Assim como éramos contra os chineses. Havia um chinês, da lavandaria do cimo da rua, que
passava por ali frequentemente e que, como o mariquinhas do padre Carroll, se tinha de avir
connosco. Era exactamente como os desenhos de coolies que vêm nos livros. Usava uma espécie de
casaco de alpaca preta comas casas dos botões entrançadas, sapatos silenciosos, sem
saltos, e rabicho. Geralmente caminhava comas mãos enfiadas nas mangas. É do seu andar que me
lembro melhor, uma espécie de andar furtivo, miudinho e feminino, absolutamente estranho e
ameaçador para nós. Tínhamos um medo terrível dele e odiávamo-lo porque as nossas zombarias o
deixavam completamente indiferente. Pensávamos que era tão ignorante que nem percebia os
nossos insultos. Até que um dia entrámos na lavandaria e ele fez-nos uma pequena surpresa.
Primeiro entregou-nos o embrulho da roupa lavada; depois meteu a mão debaixo do balcão e tirou
um punhado de nozes de um grande cartucho. Sorria quando saiu de trás do balcão para abrir a
porta, e continuava a sorrir quando agarrou Alfie Betcha e lhe puxou as orelhas; puxou as orelhas a
todos nós, um de cada vez, sem deixar de sorrir. Por fim, fez uma careta feroz e, rápido como um
gato, correu para trás do balcão, pegou numa faca comprida e feia e brandiu-a na nossa direcção.
Saímos aos tropeções uns nos outros. Quando chegámos à esquina e olhámos para trás, vimo-lo à
porta comum ferro na mão e um ar muito calmo e pacífico. Depois desse incidente nunca mais
nenhum de nós quis ir à lavandaria; tínhamos de pagar todas as semanas um níquel ao pequeno Luís
Pirossa para nos ir buscar a roupa. O pai de Luís era dono do lugar de fruta da esquina e costumava
dar-nos bananas podres, como sinal de afeição. Stanley gostava muito das bananas podres, pois a tia
fritava-lhas. As bananas fritas eram consideradas uma guloseima fina em casa de Stanley. Uma vez,
nos anos dele, houve uma festa para a qual foi convidada toda a vizinhança. Correu tudo muito bem
até chegarem as bananas fritas. Aconteceu então que ninguém lhes quis tocar, pois tratava-se de um
prato conhecido apenas por polacos, como os pais de Stanley. Considerava-se repugnante comer
bananas fritas. No meio do embaraço geral, um garoto vivaço sugeriu que se dessem as bananas ao
maluco Willie Maine. Willie Maine era mais velho do que qualquer de nós, mas não sabia falar. A
única coisa que dizia, a propósito de tudo, era Bjork! Bjork! Por isso, quando lhe passaram as
bananas, disse Bjork!, e estendeu as duas mãos para elas. Mas George, o irmão, estava presente e
sentiu-se insultado por quererem dar as bananas podres ao pateta do irmão. Desatou à pancada, e
Willie, vendo o irmão atacado, entrou na refega, a gritar Bjork! Bjork!
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Não contente combater nos outros rapazes, atirou-se também às raparigas, o que ocasionou um
pandemónio. Por fim, ouvindo o barulho, o pai de Stanley veio da barbearia coma correia de afiar as
navalhas na mão. Agarrou o maluco do Willie pelo cogote e desatou a dar-lhe correadas. Entretanto,
George esgueirara-se e fora chamar o pai. Este, que também gostava da pinga, chegou em mangas
de camisa, e ao ver o pobre Willie a ser espancado pelo bêbedo do barbeiro atirou-se a ele comos
dois fortes punhos em riste e deu-lhe sem dó nem piedade. Wilhe, que conseguira livrar-se do
apuro, estava de gatas a devorar as bananas fritas que tinham caído ao chão. Devorava-as como um
bode, assim que as encontrava. Quando o velho o viu a empanturrar-se assim, como um bode, ficou
furioso, apanhou a correia e correu para Willie, disposto a desancá-lo. Wilhe desatou a berrar Bjork! Bjork! e, de repente, começou toda a gente a rir. Isso serenou Mr. Maine; que , se sentou e a
quem a tia de Stanley levou um copo de vinho. Ao ] ouvir o barulho tinham acorrido mais vizinhos,
e houve mais l distribuição de vinho, e depois de cerveja, e depois de aguar- j dente, e em breve
estavam todos felizes e a cantar e a assobiar, l e até os miúdos se empielaram. O Willie maluco não
escapou | à bebedeira e voltou a pôr-se de gatas como um bode e a gritar Bjork! Bjork! Alfie Betcha,
que estava muito bêbedo, ape- J sar de ter só oito anos, deu uma dentada no traseiro de Willie, ! e
depois Willie mordeu-o também, e depois desatámos todos , a morder-nos uns aos outros, enquanto
os pais observavam e ; riam e guinchavam de alegria. Foi muito divertido, houve mais bananas
fritas, e desta vez toda a gente as comeu. Depois ’ houve discursos e mais copázios, e o maluco do
Willie tentou 5 cantar para nós, mas só conseguiu dizer Bjork! Bjork! A festa J de anos foi um êxito
tremendo, e durante uma semana ou J mais não se falou noutra coisa, e toda a gente dizia que os
pais \ de Stanley eram uns bons polacos. As bananas fritas também { foram um êxito, e durante uns
tempos foi difícil apanhá-las ao j pai de Luís Pirossa, pois tinham muita procura. Depois acon- ;
teceu uma coisa que entristeceu toda a vizinhança: a derrota | de Joe Gerhardt às mãos de Joey
Silverstein. O último era fi- \ lho do alfaiate, rapaz de dezasseis anos, de ar pacato e estu- | dioso,
de quem os outros rapazes mais velhos se afastavam i por ele ser judeu. Um dia, quando ia entregar
um par de calças j
Trópico de Capricórnio
127
à Fillmore Place, foi abordado por Joey Gerhardt, que tinha mais ou menos a mesma idade e se
considerava um ser muito superior. Houve uma troca de palavras e Joe Gerhardt arrancou as calças
das mãos do outro e atirou-as para a valeta. Ninguém imaginaria que o jovem Silverstein reagiria a
tal insulto recorrendo aos punhos, e por isso ’quando ele se atirou a Joe Gerhardt e lhe acertou em
cheio no queixo ficaram todos muito surpreendidos - principalmente o próprio Joe Gerhardt. Houve
uma luta que durou cerca de vinte minutos e no fim da qual Joe Gerhardt ficou estendido no
passeio, incapaz de se levantar. Depois disso, o jovem Silverstein apanhou o par de calças e
regressou calma e orgulhosamente à oficina do pai. Ninguém lhe disse uma palavra, mas o caso foi
considerado uma calamidade. Onde já se vira um judeu espancar um gentio? Era inconcebível, mas
acontecera, e acontecera ali mesmo, diante dos olhos de toda a gente. Noite após noite, sentávamonos no passeio, como era costume, e discutíamos a situação de todos os ângulos, mas sem encontrar
qualquer solução. Até que... bem, até o irmão mais novo de Joe Gerhardt, Johnny, se chatear tanto
como assunto que decidiu arrumá-lo ele próprio. Embora mais novo e mais pequeno do que o
irmão, Johnny era duro e invencível como um jovem puma, exemplo típico dos irlandeses da
vizinhança. A maneira como resolveu ajustar contas como filho do alfaiate foi esperá-lo uma noite,
escondido, e meter-lhe uma rasteira, quando Silvertein saiu da loja. Ao meter-lhe a rasteira, nessa
noite, estava prevenido comduas pequenas pedras, escondidas nas mãos, e quando o pobre
Silverstein caiu atirou-se a ele e bateu-lhe nas têmporas comas pedras. Para seu espanto, Silverstein
não ofereceu qualquer resistência; nem mesmo quando se levantou e lhe deu uma oportunidade de
se levantar também. Silverstein nem se mexeu. Então Johnny assustou-se e fugiu. O medo devia ser
tanto que nunca mais voltou, quando se ouviu falar novamente dele tinha sido apanhado, algures no
Oeste, e mandado para um reformatório. A mãe, que era uma irlandesa relaxada e jovial, disse que
era muito bem feito e que esperava nunca mais lhe voltar a pôr os olhos em cima. Quando
Silverstein se refez da pancada, não voltou a ser o mesmo. As pessoas diziam que a agressão lhe
afectara o cérebro e o deixara um pouco pateta. Joe Gerhardt, por outro lado, vol-
128
Henry Miller
tou a brilhar. Parece que foi ver Silverstein, enquanto ele estava de cama, e lhe apresentou sinceras
desculpas. Isso era urna coisa que também nunca se ouvira, um procedimento tão estranho, tão
invulgar, que Joe Gerhardt foi considerado quase como um cavaleiro andante. Embora ninguém
aprovasse o modo como Johnny se comportara, ninguém se lembraria de ir pedir desculpa ao jovem
Silverstein. Foi urn gesto de tamanha delicadeza, de tamanha elegância, que Joe Gerhardt passou a
ser olhado como um verdadeiro cavalheiro - o pri-í meiro e único cavalheiro da vizinhança.
Cavalheiro era pala-- vra que nunca fora usada entre nós, mas passou a andar nos! lábios de todos e
ser um cavalheiro tornou-se uma distinção.! Lembro-me de que a súbita transformação do derrotado
Joe: Gerhardt em cavalheiro produziu em mim profunda impressão. Alguns anos mais tarde, quando
me mudei para ou-í tro bairro e conheci Claude de Lorraine, um rapaz francês, estava preparado
para compreender e aceitar «um cavalhei| ro». Nunca pusera os olhos num rapaz que se parecesse
conl o tal Claude. No antigo bairro, teria sido considerado um mal riquinhas, por várias razões:
falava demasiado bem, demasia! do correcta e cortesmente, e era demasiado atencioso, demal siado
delicado e galante. Além disso, ouvi-lo, enquantJ brincávamos comele, mudar facilmente de inglês
pari francês, se a mãe ou o pai apareciam, deixava-nos embasbacai dos. Alemão já ouvíramos falar
e considerávamos essa língul uma transgressão permissível, mas francês! Falar francês, oil até
mesmo compreendê-lo, apenas, era ser completamente esl trangeiro, completamente aristocrata,
detestável, distmguM No entanto, Claude era um dos nossos, tão born como nól em todos os
sentidos - e até uma bocadinho melhor, comei éramos forçados a admitir secretamente. Mas havia
um senão: í o seu francês! Isso hostilizava-nos. Ele não tinha direito nenhum de viver no nosso
bairro, direito nenhum de ser tão ca-i paz e viril como era. Muitas vezes, quando a mãe o chamava d
nos despedíamos dele, juntávamo-nos no jardim e discutíamos a família Lorraine de trás para a
frente e da frente para trás. Tínhamos curiosidade em saber, por exemplo, o que comiam, pois pelo
facto de serem franceses deviam ter costumes diferentes dos nossos. Também nunca ninguém
pusera os pés em casa de Claude de Lorraine, o que era outro facto suspeito
I
âl
Trópico de Capricórnio
129
e desagradável. Porquê? Que escondiam? No entanto, quando passavam por nós na rua eram sempre
muito cordiais, sorriam e falavam sempre em inglês - e num inglês muito excelente. Faziam-nos
sentir um bocado envergonhados de nós próprios; eram superiores, aí é que estava. E havia ainda
outra questão intrigante: uma pergunta directa feita aos outros rapazes obtinha sempre uma resposta
directa, mas comClaude de Lorraine não havia nunca respostas directas. Sorria sempre commuito
encanto antes de responder e mostrava-se muito calmo, muito senhor de si, comuma ironia que nos
ultrapassava, que não entendíamos. Claude Lorraine era um espinho cravado na nossa carne e, por
isso, quando deixou o bairro soltámos todos um suspiro de alívio. Quanto a mim, só passados dez
ou quinze anos é que voltei a pensar nesse rapaz e no seu estranho e elegante comportamento. E foi
então que tive consciência de que cometera um erro grave. Um dia, de súbito, lembrei-me de que,
em certa ocasião, Claude de Lorraine me abordara coma intenção evidente de conquistar a minha
amizade e eu o tratara comsobranceria. Quando pensei nesse incidente, percebi que Claude devia ter
visto algo diferente em mim e quisera honrar-me, estendendo-me a mão da amizade. Mas nessa
altura eu tinha um código de honra - mau ou born, tinha-o -, e esse código de honra mandava-me
andar coma manada. Se me tornasse amigo íntimo de Claude de Lorraine, atraiçoaria os outros
rapazes. Fossem quais fossem as vantagens que essa amizade pudesse oferecer-me, não tinha direito
a elas; pertencia ao grupo, e o meu dever era permanecer afastado de tipos como Claude de
Lorraine. Voltei a recordar esse incidente depois de um intervalo ainda maior do que o primeiro depois de estar em França havia alguns meses e de a palavra raisonahle ter adquirido um sentido
inteiramente novo para mim. Um dia, de repente, ao ouvi-la, pensei nas tentativas feitas por Claude
de Lorraine na rua, defronte da sua casa. Lembrei-me perfeitamente de que ele empregara a palavra
razoável. Provavelmente pedira-me que fosse razoável, expressão que então nunca me saía dos
lábios, pois não tinha necessidade dela no meu vocabulário. Era, como «cavalheiro», uma palavra
raras vezes empregada, e mesmo nessas raras vezes comgrande reserva e circunspecção. Era uma
Palavra que podia levar os outros a rirem-se de nós. Havia
130
Henry Miller
muitas palavras assim. Realmente, por exemplo, era uma delas. Nunca nenhum dos meus
conhecidos usara a palavra realmente até Jack Lawson aparecer em cena. Ele empregava-a porque
os seus pais eram ingleses e, por isso, embora o gozássemos, desculpávamo-lo. Realmente era uma
palavra que me lembrava, acto contínuo, o pequeno Carl Ragner, do antigo bairro. Cari Ragner era
filho único de um político que morava na distinta ruazinha conhecida por Fillmore Place. Morava
quase ao fundo da rua, numa pequena casa de tijolo vermelho sempre muito bem tratada. Lembrome da casa porque, ao passar por ela a caminho da escola, reparava no brilho dos reluzentes
puxadores de latão que ornamentavam a porta. Mais ninguém tinha puxadores de latão nas portas.
De qualquer maneira, Cari Ragner era um daqueles rapazes a quem não permitiam que se associasse
comos outros rapazes. Por sinal, raramente o víamos. Regra geral, só ao domingo lhe púnhamos a
vista em cima, a passear como pai. Não fosse este uma personagem poderosa no bairro e Cari teria
sido morto à pedrada. Era realmente impossível, coma sua fatiota domingueira. Como se não lhe
bastasse usar calças compridas e sapatos de verniz, ainda ostentava chapéu de coco e bengala.
Segundo a opinião unânime, um rapaz que se deixava vestir assim, aos seis anos, era um idiota.
Havia quem dissesse que a sua saúde era fraca, como se isso fosse desculpa para a excentricidade
do seu vestuário. O estranho é que não o ouvi falar nem uma vez. Era tão elegante, tão refinado, que
talvez considerasse falar em público sinal de má educação. De qualquer maneira, costumava pôr-me
de tocaia aos domingos de manhã, só para o ver passar como seu velho. Observava-o coma mesma
ávida curiosidade comque observava os bornbeiros a limparem os carros da bomba, no quartel. Às
vezes, ao regressar a casa, levava uma caixinha de gelado, a mais pequena que se vendia,
provavelmente o suficiente, apenas, para a sua sobremesa. «Sobremesa» era outra palavra que se
nos tornara familiar e que utilizávamos depreciativamente, quando nos referíamos aos da igualha do
pequeno Cari Ragner e da sua família. Éramos capazes de passar horas a imaginar o que semelhante
gente comia à sobremesa, encontrando especial prazer em repetir o mais possível a recémdescoberta palavra sobremesa, que provavelmente fora contrabandeada da
JLTrópico de Capricórnio
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casa dos Ragners. Deve ter sido mais ou menos por essa altura que Santos Dumont se tornou
famoso. Para nós, havia algo grotesco no nome Santos Dumont. comas suas façanhas pouco nos
importávamos; só o nome é que interessava. À maioria do grupo cheirava a açúcar, a plantações
cubanas, à estranha bandeira cubana comuma estrela a um canto e muito considerada pelos que
coleccionavam os cartõezinhos que acompanhavam os cigarros Sweet Caporal e que representavam
as bandeiras das diferentes nações, ou as principais soubrettes do palco, ou os pugilistas famosos.
Santos Dumont era, então, algo deliciosamente estrangeiro, em contraste comas habituais pessoas
ou objectos estrangeiros, como a lavandaria chinesa ou a altiva família francesa de Claude de
Lorraine. Santos Dumont era uma expressão mágica que sugeria um belo bigode ondulante, um
sombrero^, esporas, algo descuidado, gracioso, delicado e quixotesco. Às vezes lembrava o cheiro
de grãos de café ou esteiras de palha, ou então, dado o seu carácter tão bizarro e quixotesco,
provocava uma discussão acerca da vida dos Hotentotes. Sim, porque havia entre nós rapazes mais
crescidos, que começavam a ler e nos entretinham horas a fio comhistórias que tinham ido buscar a
livros como Ayesha ou Sob Bandeiras, de Ouida. O verdadeiro sabor do conhecimento está
definitivamente associado no meu espírito ao terreno vago do fim do bairro para onde fui
transplantado comcerca de dez anos. Aí, quando chegavam os dias outonais e nos sentávamos à
volta de uma fogueira a assar pássaros e batatas nas latinhas que trazíamos connosco, surgiu um
novo tipo de discussão diferente das antigas discussões, pois as suas origens eram sempre livrescas.
Alguém acabara de ler um livro de aventuras, ou um livro científico, e toda a rua se tornava
animada ao tomar conhecimento de um assunto até então desconhecido. Um desses rapazes podia,
por exemplo, ter acabado de descobrir que existia uma coisa corno a corrente do Japão, e vá de
tentar explicar-nos como e’a aparecera e qual era o seu objectivo. Era essa a única maneira como
aprendíamos qualquer coisa - por assim dizer clandestinamente e a assar pássaros e batatas. Esses
fragmentos de conhecimentos instalavam-se profundamente dentro de nós - tão profundamente, até,
que mais tarde, quando confrontados comum saber mais exacto, era difícil desalojar
132
Henry Miller
o antigo. Assim nos foi explicado um dia, por um rapaz mais velho, que os antigos Egípcios já
conheciam a circulação do sangue, coisa que nos pareceu tão natural que, mais tarde, tiveram
dificuldade em nos fazer engolir a história da descoberta da circulação sanguínea por um inglês
chamado Harvey. Também não me parece estranho, agora, que nesse tempo a maioria das nossas
conversas fosse acerca de terras remotas como a China, o Peru, o Egipto, a África, a Islândia e a
Gronelândia. Falávamos de fantasmas, de Deus, da transmigração das almas, do Inferno, de
astronomia, de aves e peixes estranhos, da formação de pedras preciosas, de plantações de borracha,
de métodos de tortura, dos Astecas e dos Inças, da vida marinha, de vulcões e tremores de terra, de
ritos fúnebres e cerimónias nupciais em várias partes do mundo, de línguas, da origem do índio
americano, do desaparecimento dos búfalos, de doenças estranhas, de canibalismo, de bruxaria, de
viagens à Lua e de como as coisas eram por lá, de assassinos e ladrões de estrada, dos milagres
mencionados na Bíblia, de cerâmica, enfim, de mil e urna coisas que nunca ninguém mencionava
em casa ou na escola e que para nós eram vitais porque estávamos famintos e o mundo estava
repleto de maravilha e mistério, e só quando tremíamos de frio no love vago é que falávamos
seriamente e sentíamos uma necessidade de comunicação ao mesmo tempo agradável e aterradora.
A maravilha e o mistério da vida, que são sufocadas em nós quando nos tornamos membros
responsáveis da sociedade! Até sermos empurrados para o trabalho, o mundo era muito pequeno e
nós vivíamos na sua orla, por assim dizer na fronteira do desconhecido. Um pequeno mundo grego,
apesar de tudo suficientemente profundo para nos proporcionar toda a espécie de variedades, toda a
espécie de aventura e especulação. Mas também não era tão pequeno como isso, pois tinha de
reserva as mais ilimitadas potencialidades. Não ganhei nada como alargamento do meu mundo; pelo
contrário, perdi. Desejo tornar-me cada vez mais infantil e passar para além da infância na direcção
oposta. Quero seguir exactamente ao contrário da linha normal de desenvolvimento, passar para um
estado de ser superinfantil, que será absolutamente louco e caótico, mas não louco e caótico como o
mundo que
Trópico de Capricórnio
133
me rodeia. Fui adulto, e pai, e membro responsável da sociedade. Ganhei o pão de cada dia.
Adaptei-me a um mundo que nunca foi o meu. Quero abrir caminho através desse mundo alargado e
encontrar-me de novo na fronteira de um mundo desconhecido, que mergulhará em sombra este
mundo pálido e unilateral. Quero passar da responsabilidade da paternidade para a
irresponsabilidade do homem anárquico que não pode ser coagido, nem adulado, nem persuadido,
nem caluniado. Quero escolher como guia Oberom, o cavaleiro nocturno que, sob o pálio das suas
asas negras, elimina tanto a beleza como o horror do passado; quero correr para uma alvorada
perpétua comuma velocidade e uma implacabilidade que não deixem campo para remorso, pesar ou
arrependimento. Quero ultrapassar o homem inventivo que é uma maldição para a Terra, a fim de
me encontrar de novo perante o abismo intransponível que nem as asas mais fortes me permitirão
vencer. Mesmo que me torne um parque natural e selvagem habitado apenas por sonhadores
indolentes, não me quero deter a descansar aqui, na fatuidade ordenada da vida adulta, responsável.
Quero fazê-lo em memória de uma vida sem comparação alguma coma vida que me foi prometida,
em memória da vida de uma criança que foi estrangulada e reprimida pelo consentimento mútuo
daqueles que se tinham rendido. Renego tudo quanto os pais e as mães criaram. you regressar a um
mundo ainda mais pequeno do que o antigo mundo helénico, regressar a um mundo que poderei
sempre tocar se estender os braços, ao mundo do que sei, e vejo, e reconheço de momento a
momento. Qualquer mundo é absurdo para mini, absurdo, e estranho, e hostil. Ao reatravessar o
primeiro mundo luminoso que conheci em criança, não desejo parar lá e, sim, forçar a passagem
para um mundo ainda mais luminoso, do qual devo ter vindo. Ignoro como esse mundo é e nem
sequer tenho a certeza de o encontrar, mas é o meu mundo e nada mais me preocupa.
O primeiro vislumbre e a primeira noção desse novo mundo luminoso tive-os através do
conhecimento de Roy Hamilton. Estava no meu vigésimo primeiro ano, provavelmente o pior ano
de toda a minha vida. Encontrava-me num tal estado de desespero que decidira sair de casa. Só
pensava na Califórnia e só ralava da Califórnia, para onde tencionava ir começar
134
Henry Miller
uma nova vida. Sonhava tão violentamente comessa nova terra prometida que, mais tarde, quando
de lá regressei, mal me lembrava da Califórnia que vira e só pensava e falava na Califórnia que
conhecera nos meus sonhos. Conheci Hamilton pouco antes de partir. Era um duvidoso meio-irmão
do meu velho amigo MacGregor e tinham-se conhecido recentemente, pois Roy, que vivera a maior
parte da sua vida na Califórnia, tivera sempre a impressão de que o seu verdadeiro pai era Mr.
Hamilton e não Mr. MacGregor. Na verdade, tinha sido a fim de dissipar o mistério que envolvia a
sua ascendência que viera ao Leste. Aparentemente, a vida comos MacGregror não o ajudara a
encontrar uma solução esclarecedora. Depois de ter travado conhecimento como homem que julgara
dever ser o seu legítimo progenitor parecia ainda mais perplexo do que nunca. Sentia-se perplexo,
conforme me confessaria mais tarde, porque não encontrava em nenhum dos homens qualquer
semelhança como homem que julgava ser. Talvez tivesse sido esse tormentoso problema de decidir
a quem aceitar por pai que estimulara o desenvolvimento do seu próprio carácter. Digo isto porque,
imediatamente após ter-lhe sido apresentado, senti-me na presença de um ser como jamais
conhecera. Pela descrição que MacGregor fizera dele, estava preparado para travar conhecimento
comum indivíduo «estranho» - sendo «estranho», na boca de MacGregor, sinónimo de ligeiramente
chalado. Estranho era, na realidade, mas tão extraordinariamente são de espírito que me senti logo
exaltado. Pela primeira vez falava comum homem que aprofundava o significado das palavras e a
própria essência das coisas. Era como se falasse comum filósofo, não comum filósofo como os que
conhecera através dos livros, mas sim comum homem que filosofava constantemente e que vivia a
filosofia que expendia. Quer dizer, não tinha teoria absolutamente nenhuma, a não ser a de penetrar
na própria essência das coisas e, à luz de cada nova revelação, viver a sua vida de tal modo que
houvesse uma desarmonia mínima entre as verdades que lhe eram reveladas e a exemplificação
dessas verdades pela acção. Naturalmente, o seu comportamento parecia estranho aos que o
rodeavam. Mas não o fora para os que o conheciam na costa onde, conforme dizia, estava no seu
elemento. Aí era, aparentemente, considerado um ser superior
Trópico de Capricórnio
135
e escutado como máximo respeito, até mesmo comreverência.
Conheci-o no meio de uma luta cujo verdadeiro significado só avaliei passados muitos anos. Na
altura, não cornpreendia porque atribuía tanta importância a encontrar o verdadeiro pai. Por sinal,
até costumava troçar a tal respeito, visto o papel do pai significar tão pouco para mim - o de pai ou
o de mãe, pela mesma ordem de ideias. Via em Roy Hamilton a luta irónica de um homem que,
apesar de já se ter emancipado, procurava estabelecer um sólido vínculo biológico do qual não tinha
necessidade absolutamente nenhuma. Por paradoxal que pareça, esse conflito acerca do verdadeiro
pai fizera dele um superpai. Era um mestre e um exemplo. Bastava-lhe abrir a boca para eu
compreender que escutava uma sabedoria totalmente diferente de tudo quanto até aí associara a essa
palavra. Seria fácil renegá-lo como místico, pois místico era, indubitavelmente; mas era também o
primeiro místico que encontrava que sabia conservar os pés assentes no chão. Era um místico que
sabia inventar coisas práticas, como, por exemplo, uma perfuradora muito necessária para a
indústria petrolífera e que mais tarde lhe granjeou uma fortuna. No entanto, devido à sua estranha
maneira metafísica de falar, na altura ninguém ligou muita importância ao seu invento prático.
Consideraram-no mais uma das suas ideias chaladas.
Falava constantemente de si próprio e da sua relação como mundo que o cercava, característica que
criava a infeliz impressão de que não passava de um egotista espalhafatoso. Dizia-se até, e em certa
medida comrazão, parecer mais preocupado coma verdade da paternidade de Mr. MacGregor do
que comMr. MacGregor, o pai. comisso se implicava que não sentia verdadeiro amor pelo recémencontrado pai e sim, apenas, uma forte satisfação pessoal decorrente da verdade da descoberta,
além de que explorava essa descoberta à sua habitual maneira auto-engrandecedora. Era
profundamente verdade, claro, porque Mr. MacGregor, em carne e osso, era infinitamente inferior a
Mr. MacGregor como símbolo do pai desaparecido. Mas os MacGregor não percebiam nada de
símbolos nem nunca perceberiam, mesmo que lho explicassem. Faziam um esforço contraditório
para, ao mesmo tem-
136
Henry Miller
po, acolherem o filho havia muito perdido e reduzirem-no a| um nível compreensível, em que
pudessem entendê-lo, nãol como «o havia muito perdido», mas simplesmente como o fí-l lho.
Tornava-se porém evidente para quem possuísse um mí-J nimo de inteligência não ser aquele filho,
de modo algum, uni filho e sim uma espécie de pai espiritual. Diria mesmo uma espécie de Cristo,
que fazia um esforço muito corajoso para aceitar como sangue e carne aquilo de que tudo indicava
já se ter libertado havia muito.
Senti-me portanto surpreendido e lisonjeado quando esse; estranho indivíduo, que me merecia a
mais calorosa admiração, me escolheu para confidente. Comparado comele, eu’ era muito dado aos
livros, muito intelectual e mundano num sentido errado. Mas, acto contínuo, libertei-me dessa
faceta da minha natureza e deliciei-me coma luz quente e imediata1’ criada pela sua intuição
profunda e natural das coisas. Estar’ na presença dele dava-me a sensação de ser despido, ou
melhor, descascado, pois era muito mais do que simples nudez o,| que ele exigia da pessoa
comquem falava. Ao falar comigo, < dirigia-se a um eu de cuja existência só vagamente suspeitara,;
o eu que emergia, por exemplo, quando subitamente, ao ler : um livro, verificava que estivera a
sonhar. Poucos livros tinham esse dom de me pôr em transe, nesse transe de absoluta , lucidez em
que, sem o sabermos, tomamos as mais profundas resoluções. A conversação de Roy Hamilton
tinha esse condão. Tornava-me mais do que nunca atento, preternaturalmente atento, sem no entanto
desfazer o tecido do sonho. Por outras palavras, apelava para o germe do eu, para o ser que
eventualmente se sobreporia à personalidade nua, à individualidade sintética, e deixava-me
verdadeiramente só e soli- ! tário, para que pudesse elaborar o meu próprio destino.
A nossa conversa era como uma linguagem secreta no meio da qual os outros adormeciam ou se
esbatiam como fantasmas. Isso, para o meu amigo MacGregor, era desconcertante e irritante;
conhecia-me mais intimamente do que qualquer | dos outros tipos, mas nunca encontrara em mim
nada que correspondesse ao carácter que lhe mostrava agora. Referia-se a Roy Hamilton como uma
má influência, o que, mais uma vez, era profundamente verdade, pois aquele inesperado co- ,
nhecimento como seu meio-irmão servia sobretudo para nos
Trópico de Capricórnio
137
alienar. Hamilton abriu-me os olhos e deu-me novos valores, e, embora mais tarde viesse a perder a
nova visão de que me dotara, o certo é que nunca mais consegui ver o mundo, nem os meus amigos,
como os vira antes da sua chegada. Hamilton modificou-me profundamente, como só um livro raro,
uma personalidade rara ou uma experiência rara podem modificar uma pessoa. Pela primeira vez na
minha vida compreendi o que era ter uma amizade vital e, no entanto, não me sentir escravizado ou
preso por causa dela. Depois de nos separarmos nunca senti a necessidade da sua presença real; ele
dera-se completamente e eu possuía-o sem ser possuído. Foi a minha primeira experiência pura e
integral de amizade e nunca mais se repetiu comqualquer outro amigo. Hamilton era mais a própria
amizade do que um amigo. Era o símbolo personificado, e por consequência inteiramente
satisfatório, e por consequência desnecessário. Ele próprio o compreendia perfeitamente. Talvez
fosse o facto de não ter pai que o impelia para a descoberta do eu, que é o processo final de
identificação como mundo e, consequentemente, a compreensão da inutilidade dos vínculos. No
estado em que então se encontrava, na plenitude da compreensão de si mesmo, ninguém lhe era,
comcerteza, necessário, e muito menos o pai de carne e sangue que em vão procurava em Mr.
MacGregor. A sua vinda ao Leste e a busca do pai verdadeiro devem ter-se revestido da natureza de
um teste final, para ele, pois quando disse adeus, quando renunciou a Mr. MacGregor e também a
Mr. Hamilton, foi como um homem que se tivesse purificado de todas as impurezas. Nunca vi um
homem parecer tão isolado, tão absolutamente só, e vivo, e confiante no futuro, como Roy
Hamilton quando se despediu. E também nunca vi tanta confusão e má interpretação como as que
deixou atrás de si na família MacGregor. Era como si tivesse morrido no meio deles, ressuscitasse e
os deixasse, na pele de um indivíduo inteiramente novo e desconhecido. Ainda os estou a ver no
passeio, de mãos pateticamente, desesperadamente vazias, a chorarem sem saber porquê, a não ser
que fosse por se sentirem despojados de algo que nunca tinham possuído. Gosto de pensar que foi
assim. Sentiam-se perplexos e despojados - e vagamente, muito vagamente conscientes de que lhes
fora oferecida uma grande oportunidade que não tinham tido a força ou a imaginação
138
Henry Miller
suficientes para aproveitar. Era isso que o tremer das sua^ mãos pateticamente vazias me sugeria;
não posso imaginar nenhum gesto mais doloroso de observar. Mostrava-me a terrível inaptidão do
mundo quando posto cara a cara coma verdade, dava-me consciência da estupidez dos laços de
sangue e do amor que não é espiritualmente inspirado.
Olho rapidamente para trás e revejo-me na Califórnia. Estou só e trabalho como um escravo no
laranjal de Chula Vista. Estou a obter aquilo a que tenho direito? Creio que não. Sou uma pessoa
muito triste, muito infeliz, muito desgraçada. Pareço ter perdido tudo. Na realidade, sou mais um
animal do que uma pessoa. Passo o dia parado ou a andar atrás dos dois burros atrelados ao meu
trenó. Não tenho pensamentos, nem sonhos, nem desejos. Estou absolutamente saudável e vazio.
Sou uma nulidade. Sinto-me tão completamente vivo e saudável que sou como os frutos
enganosamente saborosos que pendem das árvores californianas. Mais um raio de sol e estarei
podre. «Poum avant d’etre muri!»
Sou realmente eu que estou a apodrecer neste luminoso sol californiano? Não resta nada de mim, de
tudo o que fui até este momento? Deixem-me pensar um pouco... Houve o Arizona. Lembro-me
agora de que já era noite quando pus pela primeira vez os pés no solo do Arizona. Havia apenas luz
suficiente para captar um último vislumbre de um planalto que se esbatia. Caminho pela rua
principal de uma cidadezinha cujo nome se perdeu. Que faço aqui nesta rua, nesta cidade? Estou
apaixonado pelo Arizona, por um Arizona da mente, que procuro em vão como meu par de olhos.
No comboio ainda me acompanhava o Arizona que trouxera comigo de Nova Iorque - até mesmo
depois de termos atravessado a fronteira do estado. Não houvera uma ponte sobre um desfiladeiro
que me arrancara em sobressalto do devanear? Uma ponte como nunca vira outra, uma ponte
natural, criada por uma erupção cataclísmica havia milhares de anos? E vira um homem que parecia
um índio e montava um cavalo comum alforje comprido pendendo ao lado do estribo. Uma ponte
milenária natural, que à luz do poente e como ar tão límpido parecera a mais jovem, a mais nova
das pontes imagináveis. E por essa ponte tão forte, tão duradoura, passava, Deus fosse louvado,
apenas um homem e um cavalo, mais nada. Aquilo
Trafico de Capricórnio
139
era, então, o Arizona, e o Arizona não era um invento da imaginação, mas a própria imaginação
disfarçada de cavalo e cavaleiro. E isso era até mais do que a própria imaginação, pois não havia
nenhuma aura de ambiguidade, mas apenas, nítida e clara, a coisa que era o sonho e o próprio
sonhador montado a cavalo. E, quando o comboio pára, desço, e o meu pé abre um buraco profundo
no sonho; estou na cidade do Arizona indicada no horário do comboio, e é apenas o Arizona
geográfico que qualquer pessoa que tenha dinheiro para isso pode visitar. Caminho pela rua
principal comuma mala na mão e vejo lojas de venda de sanduíches hamburguesas e escritórios de
bens imobiliários. Sinto-me tão terrivelmente decepcionado que começo a chorar. Escureceu,
entretanto, e estou parado no fim de uma rua, onde o deserto começa, e choro como um idiota. Que
eu está a chorar? É o novo e pequeno eu que começou a germinar em Brooklyn e se encontra agora
no meio de um imenso deserto e condenado a perecer. Agora,, Roy Hamilton, preciso de ti! Preciso
de ti por um momento, só por um momentinho, enquanto me desfaço. Preciso de ti porque ainda
não estava preparado para fazer o que fiz. E lembro-me de me dizeres que era desnecessário fazer a
viagem, mas que a fizesse, se queria fazê-la. Porque não me persuadiste a não a fazer? Ah,
persuadir nunca foi o teu modo de proceder! E pedir conselho nunca foi o meu. Por isso aqui estou,
falido no deserto, e a ponte que era real ficou para trás de mim e o que é irreal está à minha frente, e
só Cristo sabe que estou tão confuso e perplexo que se pudesse enterrar-me na terra e desaparecer o
faria.
Olho rapidamente para trás e vejo outro homem que foi abandonado e deixado perecer serenamente
no seio da sua família: o meu pai. Compreendo melhor o que lhe aconteceu se retroceder muito,
muito, e pensar em ruas como Maujer, Conselyea, Humboldt... especialmente Humboldt. Estas ruas
eram de um bairro que não ficava muito distante do nosso, mas que era diferente, mais fascinante,
mais misterioso. Estive na Humboldt Street apenas uma vez, em criança, e já não me lembro da
razão por que lá fui, a não ser que tenha sido para visitar algum familiar doente, que enlanguescia
num hospital alemão. Mas a própria rua produziu em mim uma impressão duradoura, embora não
faça a mínima ideia porquê. Permane-
140
Henry Miller
ce na minha memória como a rua mais misteriosa e mais prometedora que jamais vi. Talvez que,
quando nos preparávamos para ir, a minha mãe me tenha, como de costume, prometido qualquer
coisa de espectacular, como recompensa para a acompanhar. Estavam-me sempre a prometer coisas
que nunca se materializavam. Talvez depois, quando cheguei à Humboldt Street e admirei, cheio de
espanto, aquele novo mundo, me tenha esquecido por completo do que me fora prometido e a
própria rua se haja tornado a recompensa. Lembro-me de que era muito larga e de que havia lanços
de degraus altos, como nunca vira, de ambos os lados. Lembro-me também de que numa loja de
costureira, no rés-do-chão de uma daquelas estranhas casas, estava na montra um busto comuma fita
métrica pendente do pescoço, o que me impressionou muito. Havia neve no chão, mas o sol
brilhava comforça e lembro-me perfeitamente de que, à volta do fundo dos latões de cinzas, havia
uma poçazinha de água, deixada pela neve derretida. Toda a rua parecia estar a fundir-se sob o
radioso sol de Inverno. Nos corrimãos dos altos lanços de degraus os montes de neve, que tinham
formado almofadas brancas tão bonitas, começavam a escorregar, a desintegrar-se, deixando
manchas escuras do arenito então muito em voga. Os pequenos letreiros de vidro dos dentistas e dos
médicos, aninhados aos cantos das janelas, cintilavam ao sol do meio-dia e, pela primeira vez na
minha vida, davam-me a impressão de que esses consultórios talvez não fossem as câmaras de
tortura que supunha. Imaginei, à minha maneira infantil, que ali, naquele bairro, especialmente
naquela rua, as pessoas eram mais cordiais, mais expansivas e, claro, infinitamente mais ricas. Devo
ter-me expandido muito, embora não passasse de um pirralho, porque via pela primeira vez uma rua
que me parecia desprovida de terror. Era uma daquelas ruas amplas, sumptuosas, reluzentes e a
derreter-se que, mais tarde, quando comecei a ler Dostoievski, associei aos degelos de
Sampetersburgo. Até as suas igrejas eram de um estilo de arquitectura diferente, tinham algo de
semioriental, algo de grandioso e cálido ao mesmo tempo, que me assustava e intrigava. Reparei
que, naquela rua larga e espaçosa, as casas ficavam muito para trás, no passeio, e repousavam em
sossego e dignamente, sem terem a maculá-las o intercalado de lojas, fábricas e estábulos
Trópico de Capricórnio
141
de veterinários. Vi uma rua composta apenas por residências e fiquei cheio de reverência e
admiração. Lembro-me de tudo isso e tudo isso me influenciou grandemente, sem dúvida, mas não
o suficiente, comcerteza, para justificar o estranho poder e a estranha atracção que o simples nome
da Humboldt Street ainda evoca em mim. Alguns anos mais tarde voltei lá de noite, para a rever, e
fiquei ainda mais impressionado do que da primeira vez. O aspecto da rua modificara-se, claro, mas
era de noite, e a noite é sempre menos cruel do que o dia. Voltei a experimentar o estranho deleite
do espaço e do luxo, já um pouco esbatidos mas ainda presentes, ainda positivos, impondo-se como
outrora se tinham imposto os corrimãos de arenito, a espreitarem através da neve em fusão. Mas o
mais característico de tudo foi a sensação quase voluptuosa de estar à beira de uma descoberta.
Voltei a ter a consciência forte da presença da minha mãe, das grandes mangas tufadas do seu
casaco de peles, da rapidez cruel comque me puxara pela rua fora, anos atrás, e da obstinação tenaz
comque eu regalara os olhos em tudo quanto era novo e estranho para mim. Aquando da segunda
visita, recordei vagamente outra personagem da minha infância, a velha governanta a quem
tratavam pelo esquisito nome de Mrs. Kicking. Não me lembrava de ela ter adoecido, mas parecia
recordar o facto de a termos visitado no hospital onde estava a morrer e de esse hospital ficar nas
imediações da Humboldt Street que, longe de estar a morrer, se apresentava radiante na neve que se
fundia sob o sol de Inverno. Mas que me teria prometido a minha mãe e de que nunca mais me
consegui lembrar? Capaz como era de prometer tudo, talvez nesse dia, distraída, tivesse prometido
algo tão ridículo que nem mesmo eu, apesar de toda a minha credulidade infantil, pudera engolir. E,
no entanto, mesmo que me tivesse prometido a Lua e eu soubesse que isso estava fora de questão,
esforçar-me-ia para revestir a sua promessa de um grão de verdade. Queria desesperadamente tudo
quanto me era prometido e se, depois de reflectir, compreendia ser impossível, mesmo assim
tentava, a meu modo, encontrar uma maneira de tornar tais promessas realizáveis. Era inimaginável,
para mim, que as pessoas pudessem fazer promessas sem terem a mínima intenção de as cumprir.
Mesmo quando sofria decepções cruéis, continuava a acreditar; acreditava que acon-
JL
142
Henry Miller
tecera algo extraordinário e superior à vontade da outra pessoa, e que fora isso que tornara a
promessa nula e vazia.
Esta questão da crença, esta velha promessa nunca cumprida, é que me faz pensar no meu pai, que
foi abandonado no seu momento de maior necessidade. Até à altura da sua doença, nem o meu pai
nem a minha mãe tinham evidenciado quaisquer tendências religiosas. Embora defendessem sempre
a igreja na presença dos outros, eles próprios não voltaram a pôr lá os pés depois de se casarem.
Consideravam um pouco idiotas os que frequentavam a igreja comexcessiva regularidade. A própria
maneira como diziam: «Fulano é religioso», bastava para denunciar o desdém, ou então a piedade,
que tais indivíduos lhes inspiravam. Se, de vez em quando, o pastor passava inesperadamente lá por
casa, por causa de nós, as crianças, tratavam-no como uma pessoa a quem eram obrigados a mostrar
deferência, por simples cortesia, mas coma qual não tinham nada em comum e de quem, na
realidade, até suspeitavam um pouco, em virtude de representar uma espécie que ficava entre o
idiota e o charlatão. A nós, por exemplo, diziam que era «um homem encantador», mas quando os
seus amigos apareciam e desatavam a tagarelar, então ouvíamos comentários muito diferentes,
geralmente sublinhados por gargalhadas desdenhosas e imitações trocistas.
O meu pai adoeceu mortalmente em consequência de ter deixado de beber muito bruscamente. Toda
a sua vida fora um tipo alegre e bem recebido: ganhara uma barriguinha que lhe ficava bem, tinha
as faces cheias e vermelhas como uma beterraba, as suas maneiras eram cordiais e indolentes e
parecia destinado a viver muitos anos, lúcido e são como um pêro. Mas sob esse exterior saudável e
alegre as coisas não corriam nada bem. Os seus negócios iam de mal a pior, as dívidas
acumulavam-se, e alguns dos seus mais velhos amigos começavam a abandoná-lo. O que mais o
preocupava era a atitude da minha mãe, que via tudo muito negro e não se dava ao trabalho de o
disfarçar. De vez em quando perdia a tramontana e atirava-se a ele sem dó nem piedade, chamandolhe os piores nomes, partindo a louça e ameaçando deixá-lo. Como consequência disso, o velho
levantou-se uma manhã decidido a nunca mais beber uma gota que fosse. Ninguém acreditou na
seriedade da sua determinação; houvera outros na família que
Trópico de Capricórnio
143
tinham feito o mesmo, que tinham passado para a carroça da água, como diziam, mas que pouco
tempo decorrido se tinham apeado. Embora todos o tivessem tentado em diversas ocasiões,
ninguém na família conseguira tornar-se verdadeiramente abstémio. Mas como meu velho foi
diferente. Onde ou como arranjou a força para se manter fiel à sua resolução, só Deus sabe. A mim
parece-me incrível, pois se me encontrasse na situação em que ele se encontrava, teria bebido até
rebentar. Mas o velho, não. Foi a primeira vez na vida que mostrou resolução acerca de uma coisa.
A minha mãe ficou tão pasmada que, a grande idiota, começou a troçar dele, a zombar da sua força
de vontade que até então fora tão lamentavelmente fraca. Mas ele manteve-se firme. Os seus
compinchas dos copos deixaram de aparecer num instante. Em resumo, não tardou a encontrar-se
quase totalmente isolado. Isso deve tê-lo atingido em cheio, deve tê-lo ferido profundamente, pois
decorridas poucas semanas adoeceu comgravidade e teve de se chamar o médico. Refez-se um
pouco, o suficiente para se levantar da cama e andar por ali, mas continuou sempre muito doente.
Supunha-se que sofria de úlceras do estômago, embora ninguém tivesse a certeza de qual era o seu
mal. Toda a gente compreendeu, porém, que ele cometera um erro ao deixar de beber tão
bruscamente. Mas já era tarde para regressar a um modo de vida moderado. O seu estômago estava
tão fraco que nem um prato de sopa aguentava. Em cerca de dois meses ficou quase transformado
num esqueleto. E num velho. Parecia Lázaro saído do túmulo.
Um dia a minha mãe chamou-me de parte e, comlágrimas nos olhos, suplicou-me que fosse ter
como médico de família e lhe perguntasse a verdade acerca do estado do meu pai. O doutor Rausch
era o médico da família havia anos. «Teutão» típico da velha escola, a longa prática tornara-o cínico
e irritadiço, embora não lhe permitisse alhear-se por completo dos seus doentes. À sua estúpida
maneira teutónica tentava correr comos doentes menos graves, obrigá-los, por assim dizer, a terem
saúde. Quando entrávamos no seu consultório nem sequer se dava ao trabalho de levantar a cabeça;
continuava a escrever, ou a fazer o que estava a fazer, enquanto ia atirando perguntas ao acaso, por
vezes de modo insultuoso. Comportava-se comtanta grosseria e desconfiança que, por ridículo
144
Henry Miller
que possa parecer, quase parecia esperar que os doentes levas J sem, não só os seus padecimentos,
mas também aprova des-1 sés mesmos padecimentos. Dava-nos a impressão de que não era apenas
fisicamente que tínhamos algo errado: era também j mentalmente. «Isso é só imaginação»: eis a sua
frase favorita,’ que atirava em torn e comexpressão de escárnio. Conhe- j cendo-o como conhecia, e
detestando-o profundamente, fui { preparado, isto é, levei o resultado da análise laboratorial’ das
fezes do meu pai. Levava também o resultado da análise j da sua urina, na algibeira do sobretudo, se
ele exigisse mais 1 provas. \
Quando eu era rapaz, o doutor Rausch demonstrara-me ] uma certa afeição, mas desde o dia em que
lhe aparecera com\ um esquentamento perdera toda a confiança em mim e mos- ] trava-me umas
grandes trombas mal me via entrar no cônsul- : tono. Tal pai, tal filho, era a frase comque me
acolhia, e por j isso não fiquei nada surpreendido quando, em vez de me dar a <j informação que lhe
pedia, começou a verberar-me, e ao meu ! velho ao mesmo tempo, pela vida que levávamos. «Não
se ”; pode proceder contra a Natureza», sentenciou solenemente, } sem olhar para mim, enquanto
fazia qualquer anotação inútil \ no grande calhamaço que tinha à frente. Aproximei-me tran- ^
quilamente da secretária, parei um momento a seu lado, sem abrir a boca, e quando ele levantou a
cabeça, coma habitual expressão ofendida e irritada, disse-lhe: «Não vim cá para ouvir , lições de
moral. Quero saber o que se passa como meu pai.» Ao ouvir tais palavras, levantou-se de repelão,
fitou-me como ’ seu olhar mais severo e declarou, como o teutão estúpido e \ brutal que era: «O teu
pai não tem a mínima possibilidade de se curar; em menos de seis meses estará morto.» Respondilhe, já a caminho da porta: «Obrigado, era só isso que queria saber.» Então, como se tomasse
consciência de que fizera asneira, , foi atrás de mim, pesadamente, pôs a mão no meu ombro e, a
gaguejar, tentou modificar as suas palavras, afirmando não ter ’ sido exactamente isso que quisera
dizer, etc. Mas eu cortei-lhe ’ a palavra, abrindo a porta e gritando comtoda a força, para que os
doentes ouvissem na sala de espera: «Considero-o um velho idiota e espero que rebente! Boas
noites.» ’,
Quando cheguei a casa modifiquei um tanto ou quanto a afirmação do médico e disse que, embora o
estado do meu pai
Trópico de Capricórnio
145
fosse muito grave, ele poderia refazer-se tivesse o máximo cuidado consigo. Isso pareceu animar
muito o velho. Por sua própria iniciativa adoptou uma dieta de leite e torradas que, quer fosse quer
não o que melhor lhe convinha, mal não lhe fez. Manteve-se uma espécie de semidoente durante
cerca de um ano, tornando-se interiormente mais calmo, à medida que o tempo passava, e
mostrando-se disposto a não consentir que nada perturbasse a sua paz de espírito mas nada,
absolutamente nada, por muito mal que as coisas corressem. Assim que se sentiu um pouco mais
forte começou a dar um passeio diário até ao cemitério próximo, onde se sentava num banco, ao sol,
a ver as pessoas idosas arranjarem as campas. A proximidade da sepultura parecia animá-lo, em vez
de o tornar mórbido. Dir-se-ia que se habituara à ideia de uma morte eventual, facto que até então se
recusara a encarar de frente. Regressava muitas vezes a casa comflores que colhera no cemitério e o
rosto inundado de serena alegria. Sentava-se então na poltrona e contava a conversa que tivera nessa
manhã comum dos outros hipocondríacos que frequentavam o campo santo. Passado algum tempo,
tornou-se evidente que o isolamento em que vivia lhe dava prazer - ou melhor, que tirava proveito
profundo da experiência, de uma maneira que a inteligência da minha mãe não podia avaliar. Estava
a tornar-se indolente, como ela dizia. Às vezes ia ainda mais longe e, ao referir-se ao meu pai,
levava o indicador à testa, mas não dizia francamente o que pensava por causa da minha irmã, pois
essa era, sem dúvida nenhuma, um pouco desarranjada da cabeça.
Até que um dia, por gentileza de uma viúva idosa que visitava diariamente a campa do filho e era,
como a minha mãe diria, «religiosa», o meu pai travou conhecimento como pastor de uma das
igrejas vizinhas. Foi um acontecimento importante na vida do velho. De súbito, foi como se
desabrochasse e a esponj azinha da sua alma, que quase se atrofiara por cornpleto à míngua de
alimento, adquiriu tais proporções que o tornou praticamente irreconhecível. O responsável por essa
extraordinária mudança operada no velho não tinha nada de extraordinário, porém; era um pastor
congregacionalista de uma modesta paróquia vizinha do nosso bairro. A sua única virtude consistia
em manter a religião em segundo plano.
146
Henry Miller
O meu pai não tardou a sentir por ele uma espécie de idolatria de garoto; só falava desse pastor que
considerava seu amigo. Como nunca olhara para a Bíblia em toda a sua vida - aliás nunca olhara
para nenhum livro -, foi pelo menos comcerto espanto que passámos a ouvi-lo murmurar uma
pequena prece antes de comer. Executava essa cerimoniazinha de uma maneira estranha, como
quem toma um tónico, por exemplo. Se me recomendava a leitura de certo capítulo da Bíblia,
acrescentava, muito sério: «Far-te-á bem.» Era um remédio novo que descobrira, uma espécie de
mezinha de curandeiro para curar todas as doenças e que também podíamos tomar mesmo que não
tivéssemos doença nenhuma, pois de qualquer maneira mal não nos faria. Assistia a todos os
serviços religiosos e, nos intervalos, quando ia, por exemplo, dar um passeio, passava por casa do
pastor, para dois dedos de conversa comele. Se o sacerdote dissesse que o presidente era uma boa
alma e devia ser reeleito, o velho repetiria a toda a gente o que o pastor dissera, textualmente, e
aconselharia as pessoas a votarem para que o presidente fosse reeleito. Fosse o que fosse que o
pastor dissesse, era certo e justo e ninguém o poderia contradizer. Não há dúvida de que foi uma
educação nova para o velho. Se o pastor mencionava as pirâmides durante o sermão, o velho tratava
logo de se informar acerca das pirâmides. Falava como se toda a gente tivesse o dever de se
familiarizar como assunto. O pastor dissera que as pirâmides eram uma das maiores glórias do
Homem, ergo, não estar informado acerca das pirâmides era ser vergonhosamente ignorante, quase
pecador. Por sorte o pastor não falava muito de pecado; pertencia ao tipo de pregador moderno que
se impunha ao seu rebanho mais por lhe despertar a curiosidade do que por apelar para a sua
consciência. Os seus sermões eram mais uma espécie de prolongamento de curso nocturno do que
outra coisa e, portanto, para os tipos como o meu velho, muito interessantes e estimulantes. De vez
em quando, os membros do sexo masculino da congregação eram convidados para urna festança
destinada a demonstrar que o born do pastor era apenas um homem vulgar, como eles próprios, e de
vez em quando apreciava uma boa refeição e mesmo um copo de cerveja. E até cantava, imagine-se
não hinos religiosos e, sim, cançonetazinhas alegres, tipo popular. Somando dois e dois,
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podia-se inferir de tão alegre comportamento que, de vez em quando, também não fazia cara a uma
boca lasca - sempre commoderação, evidentemente. «Moderação»: eis a palavra balsâmica para a
alma lacerada do meu velho. Foi como descobrir um novo signo do zodíaco. E embora ele ainda
estivesse tão doente que não podia tentar, sequer, regressar a um modo de vida moderado, essa
palavra fazia-lhe bem à alma. Por isso, quando o tio Ned, que estava constantemente a passar para a
carroça da água e a apear-se dela, lá apareceu em casa, uma noite, o meu velho pregou-lhe um
pequeno sermão acerca da virtude da moderação. Como o tio Ned viajava, nesse momento, na
carroça da água, quando o velho, emocionado pelas próprias palavras, foi subitamente ao aparador
buscar uma garrafa de vinho e um copo, ficou toda a gente escandalizada. Jamais alguém ousara
oferecer uma bebida ao tio Ned quando ele «deixava» de beber; atrever-se a semelhante coisa
constituía uma grave falta de lealdade. Mas o velho fê-lo comtal convicção que ninguém se
ofendeu, apesar de se escandalizarem, e como consequência disso o tio Ned bebeu um copinho de
vinho e foi para casa sem parar numa taberna para matar a sede. Foi um acontecimento
extraordinário e muito falado nos dias que se seguiram. Na realidade, o tio Ned começou a proceder
de urna maneira um bocado esquisita, a partir dessa altura. Parece que, no dia seguinte, foi à loja e
comprou uma garrafa de xerez, que despejou no licoreiro. Colocou o licoreiro no aparador, como
vira o meu velho fazer, e, em vez de o despejar de uma assentada, contentou-se comum copo de
cada vez - «um dedalzito», como dizia. O seu comportamento foi tão extraordinário que a minha tia,
incapaz de acreditar nos próprios olhos, nos visitou e teve uma longa conversa como velho. Pediulhe, entre outras coisas, que convidasse o pastor a visitá-los, para que o tio Ned pudesse ter a
oportunidade de cair sob a sua benéfica influência. Em resumo, às duas por três o tio Ned foi
recolhido no redil e, como o meu velho, pareceu dar-se às mil maravilhas. As coisas correram muito
bem até ao dia do piquenique. Infelizmente, esse dia esteve muitíssimo quente e, comas
brincadeiras, a excitação e a hilaridade, o tio Ned arranjou uma sede dos diabos. Só quando já
estava comas velas quase todas desfraldadas é que alguém reparou na regularidade e na
frequência das suas idas ao barril da cerveja. Tarde de mais. Uma vez em semelhante estado, não
era possível ter mão nele. Nem o pastor o conseguiu. Ned abandonou o piquenique e iniciou uma
farrazinha que durou três dias e três noites. Ê talvez tivesse durado mais se ele não houvesse andado
ao soco na beira-rio, onde o guarda-nocturno o encontrou inconsciente. Foi levado para o hospital,
comum traumatismo cerebral de que nunca se refez. Ao regressar do hospital, o meu velho disse, de
olhos secos: «O Ned não sabia o que era ser moderado. A culpa foi dele. De qualquer maneira,
agora está melhor...»
E, como se quisesse provar ao pastor que não era feito da mesma massa do tio Ned, tornou-se ainda
mais assíduo no cumprimento dos seus deveres religiosos. Foi até promovido a «assessor», cargo de
que muito se orgulhava e graças ao qual era autorizado a ajudar na recolha de contribuições, nos
serviços dominicais. Imaginar o meu velho a atravessar a nave de uma igreja congregacionalista
comuma caixa de esmolas na mão, imaginá-lo reverentemente diante do altar, coma caixa, enquanto
o pastor benzia as oferendas, parece-me agora tão incrível que nem sei que dizer a tal respeito. Em
contrapartida, gosto de pensar no homem que ele era quando, ao meio-dia de sábado, o ia esperar à
casa do ferry, em garoto. Cercavam a entrada da casa do ferry três tabernas que, nas tardes de
sábado, se enchiam de homens que iam petiscar qualquer coisa ao balcão e beber uma caneca de
cerveja. Ele tinha então trinta anos, e ainda me parece que estou a vê-lo, um tipo saudável e alegre,
comum sorriso para toda a gente e um gracejo para ajudar a passar o tempo. Vejo-o como braço
apoiado no balcão, o chapéu de palha inclinado para trás e a mão esquerda levantada, a preparar-se
para beber a cerveja espumosa. Os meus olhos ficavam mais ou menos ao nível da pesada corrente
de ouro que lhe atravessava o colete. Lembro-me do fato de xadrez preto e branco que ele usava no
Verão e da distinção que lhe conferia entre os outros homens, que não tinham tido a sorte de haver
nascido alfaiates. Lembro-me da maneira como enfiava a mão no grande frasco de vidro que estava
em cima do balcão, tirava alguns biscoitos salgados e mós dava, dizendo-me ao mesmo tempo que
fosse dar uma vista de olhos à tabela de resultados do Brooklyn Times, que ficava
perto. E quando eu saía a correr da taberna para ver quem estava a ganhar, talvez passasse uma
enfiada de ciclistas rente ao passeio, na pequena faixa de asfalto ali colocada expressamente para
eles. Talvez o ferry estivesse a atracar e eu parasse um instante a ver os homens fardados accionar
as grandes rodas de madeira a que estavam presas as correntes. Quando a porta se abria e se
colocavam as pranchas, saía uma multidão que se dirigia para as tabernas das esquinas mais
próximas. Nesse tempo o meu velho sabia o significado da palavra «moderação», bebia porque
tinha verdadeiramente sede e porque emborcar uma caneca de cerveja junto da casa do ferry era
prerrogativa de homem. Então era como Melville tão bem dissera: «Alimenta todas as coisas como
alimento conveniente para elas - isto é, se o alimento for obtenível. O alimento da tua alma é luz e
espaço; alimenta-a de luz e espaço. Mas o alimento do corpo é champanhe e ostras; ahmenta-o pois
de champanhe e ostras; e que ele mereça assim uma alegre ressurreição, se alguma houver.» Sim,
parece-me que então a alma do meu velho ainda não tinha mirrado, que não lhe faltava luz e espaço,
e que o seu corpo, sem se preocupar coma ressurreição, se alimentava de tudo quanto era
conveniente e obtenível se não champanhe e ostras, pelo menos boa cerveja e biscoitos salgados.
Então o seu corpo não estava condenado, nem o seu modo de viver, nem a sua ausência de fé. Tãopouco estava ainda cercado por abutres, mas sim apenas por bons camaradas, por simples mortais
como ele, que não olhavam para cima nem para baixo e sim a direito, em frente, comos olhos
sempre fixos no horizonte e contentes como que lá viam.
E depois, transformado num destroço, fez-se assessor da igreja e passou a parar diante do altar,
grisalho, curvado e mirrado, enquanto o pastor benzia os míseros fundos recolhidos e destinados a
uma nova sala de boliche. Talvez se lhe tivesse tornado necessário sentir o nascimento da alma,
alimentar esse tumor esponjiforme coma luz e o espaço que a Igreja Congregacional oferecia. Mas
que fraco substituto isso era para um homem que conhecera as alegrias do alimento ansiado pelo
corpo e que, sem rebates de consciência, inundara até a sua esponjiforme alma comuma luz e um
espaço que não seriam religiosos, mas eram radiantes e terrenos. Recordo ainda
a pançazinha sobre a qual a grossa corrente de ouro repousava e penso que, coma morte da
pançazinha, só sobreviveu a alma-esponja, uma espécie de apêndice da própria morte do corpo.
Penso no pastor que o engolira como uma espécie de comedor de esponjas desumano, guarda de
uma tenda cheia de escalpes espirituais. Penso no que subsequentemente aconteceu como uma
espécie de tragédia esponjai, pois, embora ele prometesse luz e espaço, mal desapareceu da vida do
meu pai, todo o arejado edifício ruiu.
Passou-se tudo da maneira mais banal desta vida. Uma noite, depois da habitual reunião, o meu
velho chegou a casa comaspecto desgostoso. Tinham sido informados de que o pastor os ia deixar.
Fora-lhe oferecido um lugar mais vantajoso na municipalidade de New Rochelle e, apesar da grande
relutância que sentia em abandonar o seu rebanho, decidira aceitar. Claro que só aceitara após longa
meditação - por outras palavras, como um dever. Ganharia mais, sem dúvida, mas isso não era nada
comparado comas graves responsabilidades que assumiria. Precisavam dele em Néw Rochelle e ele
obedecia à voz da sua consciência. O velho relatou tudo isto coma mesma untuosidade usada pelo
pastor ao comunicar-Ihes a notícia. Mas tornou-se imediatamente aparente que se sentia magoado.
Não compreendia por que motivo não podia New Rochelle arranjar outro pastor. Não estava certo,
declarou, tentar o pastor comum ordenado maior. Precisamos dele aqui, afirmou comtal tristeza que
quase tive vontade de chorar. Acrescentou que ia ter uma conversa franca como pastor, que se havia
alguém capaz de o persuadir a ficar esse alguém era ele. Nos dias que se seguiram fez, de facto,
todos os possíveis, certamente comgrande contrariedade do pastor. Confrangia ver a expressão
vazia do seu olhar, quando regressava dessas conferências. Era a expressão de um homem que
tentava agarrar-se a uma palha para não se afogar. Naturalmente, o pastor manteve-se irredutível.
Nem sequer o facto de o velho perder a coragem e chorar na sua presença o comoveu e fez mudar
de ideias. Esse foi o ponto de viragem. A partir desse momento, o meu velho sofreu uma mudança
radical. Pareceu tornar-se mais azedo e rezingão. Não só deixou de rezar à mesa, como também se
absteve de frequentar a igreja. Reatou o antigo hábito de ir para o cemitério e apanhar sol, sentado
num banco. Tornou-se sombrio, depois melancólico e depois fixou-se na sua cara uma expressão de
permanente tristeza, de uma tristeza eivada de desilusão, de desespero, de inutilidade. Nunca mais
mencionou o nome do indivíduo, nem a igreja, nem nenhum dos outros assessores comquem se
dera. Se por acaso passava por eles na rua, dava-lhes os bons-dias, mas não parava para lhes apertar
a mão. Lia o jornal diligentemente, de ponta a ponta, sem fazer quaisquer comentários. Até os
anúncios lia, todos, como se tentasse colmatar um grande buraco que se escancarava
constantemente diante dos seus olhos. Nunca mais o ouvi rir-se. Quando muito, esboçava um
sorriso fatigado, sem esperança, um sorriso que se desvanecia instantaneamente e nos deixava como
espectáculo de uma vida extinta. Era uma cratera morta, morta e sem esperança alguma de
ressurreição. Nem mesmo que lhe tivessem dado um estômago novo, ou um novo e resistente tracto
intestinal, teria sido possível restituí-lo à vida. Já deixara para trás a atracção do champanhe e das
ostras, a necessidade de luz e espaço. Era como o dodó que enterra a cabeça na areia e assobia
através do buraco do eu. Quando adormecia na cadeira de balanço, o seu queixo pendia como um
gonzo solto. Sempre ressonara, mas passou a ressonar mais ruidosamente do que nunca, como um
homem que estava na verdade morto para o mundo. O seu ressonar assemelhava-se muito ao
estertor, coma diferença de que era entrecortado por um intermitente e longo assobio. Quando
ressonava parecia estar a espatifar todo o Universo, para que nós, que lhe sucederíamos, tivéssemos
lenha suficiente para nos durar a vida inteira. Era o ressonar mais horrível e fascinante que jamais
ouvi: estertoroso e estentório, mórbido e grotesco; umas vezes lembrava um acordeão a esvaziar-se,
outras uma rã a coaxar nos pântanos. Após um assobio prolongado seguia-se por vezes uma terrível
farfalheira, como se estivesse a entregar a alma, mas mudava logo para um subir e descer regular,
para um rachar cavo e firme, como se estivesse nu da cintura para cima, comum machado na mão,
perante a loucura acumulada de todo o bricabraque deste mundo. O que revestia o espectáculo de
uma característica ligeiramente louca era a expressão de múmia do rosto, no qual só os grandes
lábios gordos pareciam ter vida eram como as guelras de um tubarão a dormitar no leito do calmo
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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oceano. Ressonava regaladamente no fundo do abismo, senjt nunca ser perturbado por um sonho ou
pelo arrastar de uma rede, num sono profundo, sem o tormento de um desejo insatisfeito. Quando
fechava os olhos e adormecia, o mundo desaparecia e ele ficava só como antes do nascimento, era
um cosmos a desintegrar-se. Sentava-se na sua cadeira de balanço como Jonas se deve ter sentado
dentro do corpo da baleia, seguro no derradeiro refúgio de um buraco preto, sem esperar nada, sem
desejar nada, não morto mas enterrado vivo, engolido inteiro e intacto, comos grandes lábios gordos
a estremecer como fluxo e o refluxo do vazio da respiração. Estava na terra do sono à procura de
Caim e Abel, mas não encontrava vivalma, nem qualquer palavra ou sinal. Viajava coma baleia e
raspava o fundo negro e gelado; percorria milhas à velocidade máxima, guiado apenas pelas jubas
flocosas de animais submarinos. Era o fumo que saía, enovelado, das chaminés, as densas camadas
de nuvens que obscureciam a Lua, o lodo espesso que constituía o chão de oleado escorregadio dos
abismo oceânicos. Estava mais morto do que morto, porque vivo e vazio; para além de toda a
esperança de ressurreição, porque viajava para além dos limites da luz e do espaço e se aninhava
comsegurança no buraco negro do nada. Inspirava mais inveja do que compaixão, pois o seu sono
não era uma acalmia ou um intervalo, mas sim o próprio sono, que é a profundidade, e por isso,
dormindo, descia cada vez mais profundamente às profundezas do mais profundo sono, à mais
profunda profundidade do sono total, no mais fundo e profundo do doce sono. Dormia. Dorme.
Dormirá. Sono. Sono. Pai, dorme, rogo-te, pois os que estão acordados fervem em horror...
como mundo a desvanecer-se nas asas de um ressonar cavo, vejo a porta abrir-se e entrar Grover
Watrous. «Cristo seja convosco!», saúda, arrastando consigo o pé boto. Já está um homem e
encontrou Deus. Só há um Deus e Grover Watrous encontrou-o, e por isso não há mais nada a dizer
a não ser que tem de ser tudo dito de novo na nova linguagem religiosa de Grover Watrous. Essa
nova e cintilante linguagem que Deus inventou especialmente para Grover Watrous intriga-me
enormemente, primeiro porque sempre considerei Grover um asno sem remédio, e segundo porque
reparo que j já não se vêem manchas de tabaco nos seus dedos ágeis.l
Quando éramos rapazes, Grover era nosso vizinho do lado. Visitavame de tempos a tempos, para
fazer um dueto comigo, e, embora nessa altura tivesse apenas catorze ou quinze anos, já fumava
como um desalmado. A mãe não podia fazer nada para o evitar, pois Grover era um génio, e um
génio precisa de uma certa liberdade, sobretudo quando teve o azar de nascer comum pé boto.
Grover pertencia ao tipo de génio que viceja na porcaria. Além das manchas de nicotina, também
tinha as unhas pretas de sujidade, unhas que se partiam ao longo das intermináveis horas de prática
e impunham ao jovem Grover a deliciosa obrigação de as arrancar comos dentes. Grover costumava
cuspir as unhas partidas compartículas de tabaco que lhe tinham ficado presas aos dentes. Era
delicioso e estimulante. Os cigarros abriam buracos no piano e, como a minha mãe observava em
torn crítico, embaçavam as teclas. Quando Grover se ia embora, a nossa sala fedia como a das
traseiras de um estabelecimento de cangalheiro. Tresandava a cigarros apagados, a suor, a roupa
suja, às pragas de Grover e ao calor deixado pelas notas moribundas de Weber, Berlioz, Liszt & C.a
Também tresandava ao ouvido purulento de Grover e aos seus dentes podres. Tresandava às
pieguices e às mimalhices da mãe. A casa dele era um estábulo divinamente adequado para o seu
génio, mas a sala da nossa casa era como a sala de espera de um agente funerário, e Grover não
passava de uma besta que nem tinha inteligência suficiente para limpar os pés. No Inverno, o seu
nariz escorria como um esgoto e, mergulhado na música, Grover deixava o ranho frio escorrer até
aos lábios, onde era aspirado por uma língua branca e muito comprida. Isso adicionava um certo
molho picante à música flatulenta de Weber, Berlioz, Liszt & C.a, o que tornava toleráveis esses
demónios ocos. Palavra sim, palavra não, saía da boca de Grover uma praga. A sua expressão
favorita era: «O caraças desta coisa não me sai bem!» Por vezes irritava-se tanto que cerrava os
punhos e batia no piano como um louco. Era o seu génio a manifestar-se pela via errada. Na
realidade, a mãe costumava atribuir grande importância a esses ataques de cólera; convenciam-na
de que ele tinha qualquer coisa dentro de si. Outras pessoas diziam apenas que Grover era
impossível. Mesmo assim, muito se lhe perdoava por causa do seu pé boto. Grover era suficiente-
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Henry Miller
mente manhoso para explorar esse defeito; sempre que desejava muito qualquer coisa, tinha dores
no pé. Só o piano parecia não sentir o mínimo respeito pela sua deformidade. Por isso, era um
objecto que merecia pragas, patadas e murros. Se, no entanto, se sentia em boa forma, Grover
permanecia ao piano horas a fio, era mesmo impossível arrancá-lo de lá. Em tais ocasiões, a mãe ia
para o relvado fronteiro à casa e saía ao caminho dos vizinhos, para lhes arrancar algumas palavras
de elogio ao rebento. Deixava-se arrebatar de tal maneira pela arte «divina» do filho que se esquecia
de fazer o jantar. O marido, que trabalhava nos esgotos, costumava chegar a casa irritadiço e
esfaimado. Às vezes, ia direitinho à sala, no primeiro andar, e arrancava Grover do banco do piano.
Também tinha um vocabulário imundo e quando desatava a língua contra o génio do filho pouco
ficava a Grover para o rebater. Na opinião do pai, Grover não passava de um filho da mãe
indolente, capaz de fazer muito barulho. De vez em quando, ameaçava atirar o caraças do piano
pela janela fora - e Grover comele. Se a mulher tinha o atrevimento de interferir durante essas
cenas, dava-lhe uma caldaça e mandava-a mijar pela ponta de uma corda acima. Claro que também
tinha os seus momentos de fraqueza, durante os quais era capaz de perguntar a Grover que diabo
estava para ali a martelar, e se o filho respondia, por exemplo, que era «a sonata Pathétique», o
velho resmungava: «Que raio quer isso dizer? Porque não escrevem as coisas em simples inglês?»
Grover ainda tinha mais dificuldade em suportar a ignorância do pai do que a sua brutalidade.
Envergonhava-se sinceramente dele e ridicularizavao implacavelmente, pelas costas. Quando se
tornou um pouco mais velho, passou a insinuar que não teria nascido como pé boto se o pai não
fosse um pulha tão grande. E acrescentava desconfiar de que ele dera um pontapé na barriga da
mãe, quando ela estava grávida. O alegado pontapé na barriga devia tê-lo afectado de vários modos,
pois quando se tornou um homenzinho agarrou-se repentinamente a Deus comtal paixão que
ninguém se atrevia a assoar o nariz à sua frente sem primeiro pedir licença a Nosso Senhor.
A conversão de Grover verificou-se logo após a deflação do meu velho, e foi por isso que me
lembrei dela. Ninguém via os Watrouses havia anos e, de repente, poder-se-ia até dizer no
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meio de um maldito ressonar, Grover entrou-nos pela casa dentro a esbanjar bênçãos e a invocar
Deus como sua testemunha, enquanto arregaçava as mangas para nos livrar do mal. O que primeiro
notei foi a mudança operada na sua aparência pessoal. Fora lavado e purificado no sangue do
Cordeiro. Na realidade, apresentava-se tão imaculado que até parecia emanar dele um perfume. O
seu modo de falar também fora purificado: em vez de pragas brutais, agora só lhe saíam dos lábios
bênçãos e invocações. Não foi uma conversa que travou connosco: foi um monólogo em que, se
perguntas houve, ele próprio lhes respondeu. Ao aceitar a cadeira que lhe oferecemos declarou,
coma agilidade de um coelho, que Deus dera o Seu único e amado Filho para que nós pudéssemos
desfrutar da vida eterna. Queríamos realmente essa vida eterna ou preferíamos refocilar nas alegrias
da carne e morrer sem conhecer a salvação? Não teve, comcerteza, consciência do contra-senso de
falar das «alegrias da carne» a um casal idoso, um dos membros do qual dormia profundamente e
ressonava, a confirmá-lo. Estava tão animado e jubiloso naquele primeiro transporte da graça
misericordiosa de Deus que se deve ter esquecido de que a minha irmã era apatetada, pois, sem
perguntar sequer como ela passava, desatou a arengá-la naquele palavreado espiritual recémdescoberto, ao qual ela permaneceu absolutamente impenetrável, visto, como já disse, faltarem-lhe
tantos botões que se ele lhe falasse de espinafres picados perceberia o mesmo. Uma frase como «os
prazeres da carne» significava para ela algo parecido comum bonito dia e uma sombrinha vermelha.
Percebi, pela maneira como se sentava na borda da cadeira e acenava coma cabeça, que esperava
apenas que ele parasse, a fim de tomar fôlego, para o informar de que o pastor
- o pastor dela, que era um episcopaliano - acabava de regressar da Europa e iam fazer uma feira na
cave da igreja, onde ela teria uma barraca compratinhos de pôr debaixo dos copos, do armazém de
cinco e dez cêntimos. Efectivamente, mal ele fez uma pausa ela disparou, em fogo cerrado, e falou
dos canais de Veneza, da neve dos Alpes, dos carros de cães de Bruxelas e do maravilhoso chouriço
de fígado de Munique. A minha irmã não era apenas religiosa: era completamente maluca. Grover
começara a falar acerca de ter visto um novo Céu e uma nova Terra. ..pois o primeiro Céu e a
primeira Terra tinham deixado
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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de existir, declarou, mastigando as palavras numa espécie de glissando histérico, a fim de tirar de
cima de si o peso de uma mensagem oracular a respeito da Nova Jerusalém que Deus criara na
Terra e em que ele, Grover Watrous, outrora porco de língua e deformado por um pé boto,
encontrara a paz e o sossego dos justos. «Não haverá mais morte...», começou a gritar quando a
minha irmã se inclinou para a frente e lhe perguntou muito inocentemente se gostava de jogar
boliche; o pastor acabava de instalar uma nova e linda sala de boliche na cave da igreja e ela sabia
que ele gostaria de ver Grover, pois era um homem encantador e bondoso para os pobres. Grover
declarou ser pecado jogar boliche e afirmou não pertencer a nenhuma igreja, pois as igrejas eram
ímpias; deixara até de tocar piano, porque Deus precisava dele para coisas mais elevadas «Aquele
que se domina herdará todas as coisas», acrescentou. «e eu serei o seu Deus e ele será meu filho.»
Fez nova paus. para se assoar a um belo lenço branco, e a minha irmã aproveitou a ocasião para lhe
recordar que, antigamente, andava sempre ranhoso e nunca se assoava. Grover escutou-a
solenemente e depois declarou que se curara de muitos maus procedimentos. Nessa altura o meu
velho acordou. Vendo Grovei sentado a seu lado em carne e osso, assustou-se e, por momentos,
pareceu não ter a certeza se ele era um fenómeno onírica mórbido ou uma alucinação, mas a visão
do lenço limpo devolveu-lhe a lucidez. «Ah, és tu!», exclamou. «O rapaz dos Watrouses, não és?
Mas, em nome de tudo quanto é sagrado, que fazes aqui?»
E Grover respondeu-lhe, imperturbável: «Vim em nome do Santo dos Santos. Fui purificado pela
morte no Calvário e estou aqui em nome de Cristo, para que vós possais ser redimidos e caminhar
na luz, no poder e na glória.»
O meu velho pareceu atordoado. «Que bicho te mordeu?», perguntou, envolvendo Grover num
fraco olhar consolador. Minha mãe, que chegara da cozinha e se colocara atrás da cadeira de
Grover, tentou dar a entender ao meu pai, comuma careta, que o rapaz estava chalado. Até a minha
irmã pareceu compreender que havia algo errado no visitante, sobretudo quando ele recusou ir ver a
nova sala de boliche que o seu encantador ministro instalara expressamente para jovens como
Grover e outros que tais.
Que se passava comGrover? Nada. Acontecia apenas que os seus pés estavam firmemente apoiados
no quinto alicerce da grande muralha da Cidade Santa de Jerusalém, quinto alicerce esse feito
inteiramente de sardónix e do qual ele abarcava o panorama de um rio puro de água da vida
brotando do trono de Deus. E a visão de tal rio da vida era para Grover como a picada de mil pulgas
no intestino delgado. Só depois de ter contornado pelo menos sete vezes a Terra seria capaz de se
sentar tranquilamente e observar a cegueira e a indiferença dos homens comalgo semelhante a
equanimidade. Estava vivo e purificado, e, embora aos olhos dos lerdos e sórdidos espíritos sãos
parecesse «chalado», a mim parecia-me infinitamente melhor assim do que antes. Era um insecto
inofensivo. Quem o ouvisse tempo bastante ficava também mais ou menos purificado, embora
talvez não convencido. A linguagem viva de Grover apanhava-me sempre de surpresa e, por meio
de gargalhadas incontáveis, limpava-me do sedimento acumulado pela lerda sanidade que me
rodeava. Estava vivo como Ponce de León desejara estar vivo, vivo como apenas alguns homens
jamais tinham conseguido estar. E, como estava sobrenaturalmente vivo, não se importava nada que
lhe rissem na cara, assim como não se teria importado nada se lhe roubassem as poucas coisas que
possuía. Estava vivo e vazio, coisa tão próxima da divindade que é loucura.
comos pés solidamente apoiados na grande muralha da Nova Jerusalém, Grover conhecia uma
ventura incomensurável. Talvez não tivesse conhecido essa incrível ventura se não houvesse
nascido comum pé boto. Talvez tivesse sido uma sorte o pai ter dado um pontapé na barriga da mãe,
quando ele ainda estava no útero. Talvez tivesse sido esse pontapé na barriga que atirara Grover
pelos ares, que o fizera tão cornpletamente vivo e desperto que até a dormir transmitia mensagens
de Deus. Quanto mais trabalhava, menos cansado se sentia. Já não tinha preocupações, nem
desgostos, nem recordações tormentosas. Não reconhecia deveres nem obrigações, a não ser para
comDeus. E que esperava Deus dele? Nada, nada... a não ser que Lhe entoasse louvores. Deus só
pedia a Grover Watrous que se revelasse vivo, na carne. Só lhe pedia que fosse cada vez mais vivo.
E, quando completamente vivo, Wover seria uma voz, e essa voz seria um mar que transfer158
Henry Miller
maria todas as coisas vivas num caos, e esse caos tornar-se-ia por sua vez a boca do mundo, em
cujo centro se encontrava o verbo ser. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava comDeus e o
Verbo era Deus. Portanto, Deus era esse estranho e pequeno infinitivo que é tudo quanto há - e não
chega? Para Grover era mais do que suficiente: era tudo. Partindo desse verbo, que diferença fazia a
estrada por que viajasse? Abandonar o verbo era afastar-se do centro, erigir uma Babel. Talvez
Deus tivesse estropiado propositadamente Grover Watrous, a fim de o prender ao centro, ao verbo.
Mediante uma corda invisível, Deus conservava Grover Watrous preso à estaca que atravessava o
coração do mundo e Grover tornara-se a galinha gorda que punha todos os dias um ovo de ouro...
Porque escrevo acerca de Grover Watrous?, porque conheci milhares de pessoas e nenhuma estava
viva da maneira como Grover estava vivo. Na sua maioria eram inteligentes, muitas delas eram
brilhantes e algumas delas até eram famosas, mas nenhuma estava viva e vazia como Grover.
Grover era inexaurível. Era como um pedaço de rádio que, mesmo enterrado debaixo de uma
montanha, não perde a sua capacidade de emitir energia. Antes dele, conhecera muitas das
chamadas pessoas enérgicas - não está a América cheia delas? -, mas nunca encontrara um
reservatório de energia sob a forma de um ser humano. E que criava esse inexaurível reservatório de
energia? Uma iluminação. Sim, acontecera tudo num abrir e fechar de olhos, que é a única maneira
como as coisas importantes acontecem. Da noite para o dia, todos os valores preconcebidos de
Grover foram atirados pela borda fora. De súbito, dessa maneira, deixou de se movimentar como as
outras pessoas se movimentam. Meteu travões e continuou como motor a trabalhar. Se, outrora,
como toda a gente, pensara ser necessário chegar a algum lugar, agora sabia que algum lugar era
todo o lugar e, portanto, o sítio onde estava - e, por isso, para quê mover-se? Porque não estacionar
o carro e deixar o motor a trabalhar? Entretanto, a própria Terra girava, e Grover sabia que ela
girava e que ele girava comela. Chegava a Terra a algum lugar? É mais que certo que Grover fez a
si próprio essa pergunta, e é mais que certo que chegou à conclusão de que não estava a chegar a
lugar nenhum. Quem, então, dissera que devíamos chegar a algum lugar? Grover
Tráfico de Capricórnio
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perguntaria por certo a este e àquele para onde iam e o estranho é que, embora se dirigissem todos
para o seu destino individual, nenhum jamais se detinha a reflectir que o único destino inevitável
para todos era a sepultura. Isso intrigava Grover, pois ninguém o conseguiria convencer de que a
morte não era uma certeza, ao passo que toda a gente podia convencer toda a gente de que qualquer
outro destino era uma incerteza. Convencido da absoluta certeza da morte, Grover tornou-se, de
súbito, tremenda e avassaladoramente vivo. Pela primeira vez na sua vida começou a viver e, ao
mesmo tempo, o pé boto apagou-se por completo da sua consciência. Pensando bem, isto também é
estranho, pois o pé boto, tal como a morte, era outro facto invencível. No entanto, o pé boto saiu do
pensamento - ou, o que é mais importante ainda, saiu tudo quanto se relacionara como pé boto. Pela
mesma ordem de ideias, a morte, uma vez aceite por ele, saiu do pensamento de Grover.
Convencido da certeza única da morte, todas as incertezas desapareceram. O resto do mundo
passara a coxear, comincertezas mancas, e só Grover Watrous estava livre e desembaraçado dessa
manqueira. Grover Watrous era a personificação da certeza. Podia estar errado, mas tinha a certeza.
E para que serve ter razão, se temos de claudicar comum pé boto? Só um pequeno punhado de
homens compreendeu jamais esta verdade e os seus nomes tornaram-se muito grandes. Grover
Watrous provavelmente nunca virá a ser conhecido, mas mesmo assim é muito grande. Talvez seja
por essa razão que escrevo a respeito dele, pelo simples facto de ter tido lucidez suficiente para
compreender que Grover se guindara à grandeza, mesmo que mais ninguém o admita. Na altura,
pensei apenas que Grover era um fanático inofensivo, sim, um bocadinho «chalado», como a minha
mãe insinuara. Mas todos os homens que aprenderam a verdade da certeza foram um pouco
chalados, e esses homens foram os únicos a fazer qualquer coisa pelo mundo. Outros homens,
outros grandes homens, destruíram um bocadinho aqui e outro bocadinho ali, mas estes poucos de
que falo, e entre os quais incluo Grover Watrous, seriam capazes de destruir tudo para que a
verdade pudesse viver. Geralmente tais homens nascem comuma desvantagem - comum pé boto,
por assim dizer - e, por estranha ironia, é só essa desvantagem - só o pé boto - que os
160
Henry Miller
homens recordam. Se um homem como Grover se despoja do seu pé boto, o mundo diz que ele se
tornou «possesso». E esta a lógica da incerteza e o seu fruto é a desventura. Grover foi o único ser
verdadeiramente venturoso que jamais conheci na minha vida, e isto, portanto, é um pequeno
monumento que ergo em sua memória, em memória da sua venturosa certeza. É pena que tenha sido
obrigado a usar Cristo como muleta, mas, no fim de contas, que importa a maneira como chegamos
à verdade, desde que nos atiremos a ela e vivamos de acordo comela?
Interlúdio
Confusão é uma palavra que inventámos para descrever uma ordem que não compreendemos. Gosto
de me deter no período em que as coisas assumiam forma, porque a ordem, se tivesse sido
compreendida, deveria ter sido ofuscante. Em primeiro lugar havia Hymie - Hymie, a rã , e havia
também os ovários da mulher dele, que apodreciam havia muito tempo. Eram o tópico quotidiano
da conversa, tinham precedência sobre os comprimidos catárticos e a língua saburrosa. Hymie
desfazia-se em «provérbios sexuais», como lhes chamava. Tudo quanto dizia começava pelos
ovários ou a eles conduzia. No entanto, continuava a engatar-se coma mulher - prolongadas
copulações de cobra, durante as quais fumava um cigarro ou dois antes de desengatar. Tentava
explicar-me como o pus dos ovários em putrefacção a enchia de cio. Sempre fora boa para a foda,
mas agora estava melhor do que nunca. Quando lhe fossem extirpados os ovários, não se sabia
como reagiria. E ela parecia ter consciência disso, também. Ergo, toca a foder! Todas as noites,
depois de lavada a louça do jantar, despiam-se no seu apartamentozinho de boneca e deitavam-se
como um casal de cobras. Tentou descrever-me numerosas vezes como ela fodia. Por dentro era
como uma ostra, uma ostra comdentes macios que o mordiscavam. Às vezes até parecia que estava
mesmo dentro do útero dela, tão mole e fofo aquilo era, e os dentes macios iam-lhe mordiscando a
gaita e tornando-o delirante. Costumavam deitar-se à maneira de tesoura, a olhar para o tecto. Para
evitar vir-se, ele pensava no escritório e nas pequenas preocupações que o atormentavam e lhe
davam um nó nos intestinos. Entre orgasmos, pensava noutra pessoa para, quando ela voltava à
carga, poder imaginar que se tratava de uma foda novinha em folha, comuma cona novinha em
folha. Costumava arranjar as coisas de
162
Henry Miller
maneira a poder olhar pela janela, enquanto ia fodendo. Tornara-se de tal modo perito que era capaz
de despir uma mulher no boulevard, debaixo da sua janela, e transportá-la para a cama. E não
apenas isso: conseguia fazê-la mudar de lugar coma mulher, tudo sem desengatar. Às vezes fodia
assim um par de horas e nem sequer se dava ao trabalho de ejacular. Para quê desperdiçar?
Steve Romero, em contrapartida, via-se aflito para se conter. Steve parecia um touro e desbaratava
semente à toa. Às vezes fazíamos comparações, sentados no restaurante especializado em chop
suey, na esquina a seguir ao escritório. Era uma estranha atmosfera. Talvez por não haver vinho.
Talvez por causa dos engraçados cogumelozinhos que nos serviam. Fosse lá pelo que fosse, não era
difícil lançarmo-nos no assunto. Quando Steve se nos reunia já tinha feito o seu exercício, tomado
duche e levado uma massagem. Vinha limpo por dentro e por fora. Era quase um espécime de
homem perfeito. Não seria muito inteligente, lá isso não, mas era born tipo, um compincha. Hymie,
por outro lado, lembrava um sapo. Parecia ir para a mesa directamente dos pântanos, onde passara o
dia no lodo. Escorria-lhe imundície dos beiços, como mel. Na realidade, no seu caso, não se lhe
podia chamar imundície, pois não era possível compará-la comqualquer outro ingrediente. Era tudo
uma substância viscosa, peganhenta, feita inteiramente de sexo. Quando olhava para a comida, via-a
como esperma potencial; se o tempo estava quente, dizia que estava born para os tomates; se
viajava de eléctrico, sabia de antemão que o movimento rítmico do veículo lhe estimularia o apetite,
lhe provocaria uma tesão lenta e «pessoal», como dizia. Nunca percebi porque lhe chamava
«pessoal», mas essa era a expressão que usava. Gostava de sair connosco porque havia uma certeza
razoável de arranjarmos qualquer coisa decente. Sozinho, não se safava muito bem; connosco, tinha
esperança de mudar de carne - cona gentia, como lhe chamava. Gostava de cona gentia. Tinha um
cheiro mais agradável. E as gentias riam-se mais facilmente, também... Às vezes mesmo no meio da
coisa. O que não tolerava era carne escura. Ver-me andar comValeska enchia-o de espanto e nojo.
Uma vez perguntou-me se ela não tinha um cheiro extraforte. Respondi-Ihe que gostava assim, forte
e cheirosa, commuito molho à
Trópico de Capricórnio
163
volta. Quase corou ao ouvir-me. Era espantoso como às vezes se mostrava delicado. Acerca da
comida, por exemplo, era muito esquisito. Talvez fosse uma característica racial. E imaculado na
sua pessoa. Não podia tolerar uma nodoazinha nos punhos lavados. Estava constantemente a
sacudir-se e a tirar o espelho da algibeira, para ver se tinha alguma comida entre os dentes. Se via
uma migalhinha, ocultava a cara atrás do guardanapo e usava o seu palito comcabo de madrepérola.
Claro que aos ovários não os podia ver. Nem cheirar, porque a mulher também era uma gaja
imaculada. Passava o dia a lavar-se e a dar irrigações, a preparar-se para as núpcias nocturnas. Era
trágica a importância que atribuía aos ovários.
Até ao dia em que a levaram para o hospital, foi uma autêntica máquina de foder. O medo de nunca
mais poder voltar a foder enlouquecia-a. Claro que Hymie lhe garantia que não faria diferença
nenhuma para ele, de uma maneira ou de outra. Colado a ela como uma cobra, comum cigarro na
boca e as pequenas a passarem em baixo, no boulevard, eralhe impossível imaginar uma mulher
incapaz de foder. Tinha a certeza de que a operação seria um êxito. Um êxito! Isso significava que
ela ainda foderia melhor do que anteriormente. Costumava dizer-lho, deitado de costas e a olhar
para o tecto. «Sabes que sempre te amarei», dizia. «Desvia-te só um bocadinho, sim?... Isso, isso
mesmo. Que estava eu a dizer? Ah, sim!... Porque te hás-de preocupar comcoisas dessas? Claro que
te serei fiel. Escuta, deixa sair um nadinha... isso, está óptimo assim.» Contava-nos tudo no
restaurante do chop suey. Steve, que era incapaz de fazer semelhante coisa, quase rebentava a rir.
Era demasiado franco, principalmente comas mulheres. Por isso nunca tinha sorte. O pequeno
Curley, por exemplo - Steve odiava Curley -, conseguia sempre o que queria... Era um mentiroso
nato, um intrujão nato. Hymie também não gostava muito de Curley. Dizia que era desonesto,
referindo-se, evidentemente, a desonestidade em matéria de dinheiro. A esse respeito, Hymie era
escrupuloso. Desagradava-lhe sobretudo a maneira como Curley falava da tia. Na opinião de
Hymie, já era mau ele andar a fornicar coma irmã da própria mãe, mas falar dela como de um
bocado de Queijo cediço, isso passava as marcas. Devia-se ter um certo respeito por uma mulher, a
não ser que se tratasse de uma
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Henry Miller
puta. Se se tratava de uma puta, era diferente. As putas não eram mulheres: eram putas. Assim via
Hymie as coisas.
Mas a principal razão da sua antipatia residia no facto de, quando saíam juntos, Curley apanhar
sempre o melhor bocado. E, ainda por cima, era quase sempre como dinheiro de Hymie que o
conseguia. Até a maneira como o rapaz pedia dinheiro o irritava. Era como uma extorsão, afirmava.
Achava que a culpa me cabia, em parte, pois tratava o rapaz comexcessiva brandura. «Ele não tem
carácter moral», declarava Hymie, e eu perguntava-lhe: «E tu, onde está o teu carácter moral?» A
resposta não falhava: «Eu? Ora merda, já sou demasiado velho para ter carácter moral. Mas Curley
é apenas um garoto.»
Steve metia-se na conversa: «O que tens é inveja!» «Eu? Eu ter inveja í/e/e?» E tentava sufocar a
ideia comuma gargaIhadmha desdenhosa. Mas uma alfinetada desse género doía-Ihe. Voltava-se
então para mim e perguntava: «Alguma vez me mostrei invejoso para contigo? Não te cedo sempre
uma pequena, se ma pedes? Lembras-te daquela ruiva do escritório SU... aquela comas grandes
tetas? Não era um rico naco, para a ceder assim a um amigo? Mas eu cedi-ta, não cedi? Cedi-ta
porque disseste que gostavas de mamas grandes. Mas não a teria cedido ao Curley. Ê um
patifezinho. Ele que cace, se quiser.»
Na realidade, Curley não fazia outra coisa. Pelo que pude deduzir, em certa altura deve ter tido
cinco ou seis de uma vez. Havia a Valeska, por exemplo, junto da qual se instalou muito bem. Ela
sentia-se tão contente por ter alguém que a fodia sem corar que quando se tratou de o compartilhar
coma prima e, depois, coma anã, não levantou a mínima objecção. Do que mais gostava era de se
meter na banheira e deixá-lo fodê-la debaixo de água. Foi tudo muito bem até a anã perceber o jogo.
Então houve chinfrim, mas as coisas compuserarn-se no chão da sala. Pelo que ele dizia, fazia tudo
menos amarinhar pelos lustres. E tinha sempre a algibeira bem recheada. Valeska era generosa, mas
a prima, essa, era uma andarilha. Bastava-lhe sentir uma picha tesa a trinta centímetros de distância
para ficar mole como papas e ser possível fazer tudo dela. Uma braguilha desabotoada era o
bastante para a deixar em transe. Era quase vergonhoso as coisas que Curley a obriTroptco de Capricórnio
165
gava a fazer. Tinha prazer em degradá-la. Mas ela era tão não-me-toques, tão presumida, nas suas
roupas de sair, que eu não o podia censurar. Quem a visse na rua até seria capaz de julgar que não
tinha pássara. Naturalmente, quando ele a apanhava sozinha, fazia-a pagar os seus ares importantes.
Curley procedia como maior sangue-frio. «Tira-o para fora!», ordenava, desabotoando um
bocadinho a braguilha. «Tira-o para fora coma língua!» (Tratava a trempe do mesmo modo, pois,
segundo dizia, elas lambiam-se umas às outras nas suas costas.) Assim que ela lhe tomava o gosto,
na boca, tornava-se possível obrigá-la a fazer tudo e mais alguma coisa. Às vezes obrigava-a a
apoiar-se nas mãos e empurrava-a assim pelo quarto, como um carrinho de mão. Ou então ia-lhe à
cão e enquanto ela gemia e se torcia toda acendia despreocupadamente um cigarro e soprava-lhe o
fumo para entre as pernas. Uma vez pregou-lhe uma partida suja, ao ir-lhe desse modo. Excitara-a
de tal maneira que a deixara fora de si. Depois de lhe pôr o eu quase em brasa, tirou a picha para
fora, como se quisesse arrefecê-la, e, lenta e suavemente, enfiou-lhe uma grande e cornprida
cenoura pela rata acima. «Isso, Miss Abercrombie, é uma espécie de Doppelgánger do meu
caralho», declarou e, sem cerimónias, desatrelou-se e puxou as calças para cima. A prima
Abercrombie ficou tão estupefacta que deu um grandíssimo peido e a cenoura caiu. Pelo menos foi
o que Curley me contou. Claro que ele era um mentiroso descarado e é possível que a história não
tivesse um grão de verdade. No entanto, era inegável que possuía uma habilidade especial para
partidas desse género. Quanto a Miss Abercrombie e aos seus ares importantes, enfim, comuma
gaja dessas pode-se sempre imaginar o pior. Comparado comCurley, Hymie era um purista. Não sei
como, mas Hymie e a sua gaita gorda e circuncidada eram duas coisas diferentes. Quando tinha uma
tesão pessoal, como dizia, isso significava, na realidade, que se tornava irresponsável. Queria dizer
que a Natureza se impunha através da gaita gorda e circuncidada de Hymie Laubscher. Acontecia o
mesmo coma cona da mulher, que era uma coisa que ela usava entre as pernas, como um
ornamento. Era uma Parte de Mrs. Laubscher, mas não era a própria Mrs. Laubscher, se percebem o
que quero dizer.
Enfim, mas tudo isto veio à colação para falar da confusão
166
Henry Miller
sexual geral que prevalecia na época. Era como alugar um andar na Terra da Foda. A rapariga do
andar de cima, por exem^l pio... Uma vez por outra, quando a minha mulher dava uni recital, ia lá
para casa, a fim de tomar conta da miúda. Era unJ idiota tão chapada que ao princípio nem reparei
nela. Masfl como todas as outras, também tinha uma cona, uma espécie de] cona impessoal de que
estava inconscientemente consciente. ’t Quanto mais vezes lá ia a casa, mais consciente se tornava,
à! sua maneira inconsciente. Uma noite, como se demorasse sus- j peitosamente na casa de banho,
começou a dar-me que pen-ffl sar. Resolvi dar uma espreitadela pelo buraco da fechadura m ver
comos meus olhos o que se passava. Juro que estava dian-B te do espelho, a acariciar e a alisar a
passarinha! Quase falavJ comela. Fiquei tão excitado que ao princípio nem soube qufl fazer. Voltei
para a sala, apaguei a luz e deitei-me no sofá, à es-B pêra que ela saísse. Deitado, continuei a verlhe a cona peluda e os dedos que pareciam tamborilar nela. Desabotoei a bra-1 guilha e deixei a
picha estremecer na frescura da escuridãol Tentei hipnotizá-la do sofá - ou, pelo menos, tentei levar
M minha picha a hipnotizá-la. «Vem cá, cadelinha», fui dizendcB para comigo, «Vem cá e
esparrama essa cona em cima dal mim.» Ela deve ter captado imediatamente a mensagem, poi«
num instante abriu a porta e começou a tactear no escuro, di-I reita ao sofá. Pela minha parte, não
disse uma palavra nem & um movimento; limitei-me a fixar o pensamento na cona qucl avançava
no escuro, como um caranguejo. Por fim, ela estava! de pé ao lado do sofá. Como eu, também não
disse uma pa-B lavra, e quando lhe enfiei a mão pelas pernas acima desvioul um bocadinho um pé,
para as abrir mais. Não me lembro dei ter levado a mão a cona tão sumarenta em toda a minha vida
J Era como cola a escorrer-lhe pelas pernas abaixo, e se houves-l se por ali cartazes poderia ter
colado uma dúzia ou mais. Pas-fl sados momentos, comtanta naturalidade como uma vaca queB
baixa a cabeça para pastar, inclinou-se e meteu-o na boca. Pelai minha parte, tinha quatro dedos
enfiados nela, a bater todol aquele sumo em castelo. A sua boca estava cheia e o suco con-l tinuava
a correr-lhe pelas pernas abaixo. Nenhum de nós di-l zia palavra. Éramos dois maníacos mudos, a
trabalhar às escu-l rãs como coveiros. Era um paraíso da foda, e eu sabia-o, ei estava disposto a
foder até rebentar os miolos, se fosse neces-1
Trópico de Capricórnio
167
sário. Ela foi talvez a melhor foda que já tive. Não abriu uma única vez a boca - nem naquela noite,
nem na noite seguinte, nem em qualquer outra noite. Aparecia sorrateiramente, às escuras, assim
que lhe cheirava que eu estava sozinho, e esparramava a cona toda por cima de mim. E era uma
grande cona, agora que penso nisso. Um labirinto escuro e subterrâneo, adornado comdivãs e cantos
aconchegados, dentes de borracha e lilases, ninhos macios, penugem e folhas de amoreira. Eu
costumava introduzir-me como a bicha solitária, enterrar-me numa fendazinha onde o silêncio era
absoluto e a maciez extrema, e deixar-me ficar, repoltreado como um golfinho num banco de ostras.
Um leve estremecimento e estava numa Pullman a ler o jornal, ou então num beco onde havia
pedras musgosas e redondas e cancelazinhas de vime que abriam e fechavam automaticamente. Às
vezes era como dar um mergulho fundo, sentia uma chuva de caranguejos mordiscantes, os juncos a
agitarem-se febrilmente e as guelras de peixes minúsculos a tocarem-me como chaves de
harmónica. Na imensa gruta preta havia um órgão de seda-e-sabão a tocar uma rapinante música
negra. Quando ela atingia os cumes, quando abria ao máximo a torneira dos sumos, surgia uma
mancha purpúrea-violácea, uma nódoa de amora retinta como crepúsculo, como o crepúsculo
ventriloquial que as anãs e as cretinas apreciam quando menstruam. Fazia-me pensar em canibais
mastigando flores, em bantos correndo amoque, em unicórnios selvagens acasalando em canteiros e
rododendros. Era tudo anónimo e não formulado, John Doe e a sua esposa, Emmy Doe. Por cima de
nós as cisternas de gás e debaixo de nós a vida marinha. Da cintura para cima, como disse, era
chalada. Sim, absolutamente maluca. Talvez fosse isso que lhe tornava a cona tão
maravilhosamente impessoal. Era uma cona num milhão, uma autêntica Pérola das Antilhas, como
Dick Osborn descobriu ao ler Joseph Conrad. No largo Pacífico do sexo jazia cintilante recife de
prata rodeado de anémonas humanas, de estrelas-do-mar humanas, de madréporas humanas. Só um
Osborn a poderia ter descoberto, lhe poderia ter dado a devida latitude e longitude de cona.
Encontrá-la de dia, vê-la andar imbecilmente de um lado para o outro, era como apanhar uma
doninha numa armadilha quando a noite chegava. Bastava-me deitar às escuras de braguilha
desabotoada
168
Henry Miller
e esperar. Era como Ofélia subitamente ressuscitada entre os Cafires. Não se conseguia lembrar de
uma única palavra em qualquer língua, e muito menos em inglês. Era uma surda-muda que perdera
a memória e, coma perda da memória, o frigorífico, os ferros de frisar, a pinça e a malinha de mão.
Tirando o tufo de cabelos entre as pernas, estava ainda mais nua do que um peixe. E era ainda mais
escorregadia do que um peixe, pois, no fim de contas, um peixe tem escamas e ela não tinha. As
vezes não sabia ao certo se era eu que estava dentro dela, se ela que estava dentro de mini. Era uma
guerra aberta, um pancrácio moderno em que cada um mordia o próprio eu. Amor sem género e
sem lisol. Amor incubacional, como os carcajus praticam acima da linha do arvoredo. De um lado,
o oceano Árctico; do outro, o golfo do México. E embora nunca o mencionássemos abertamente,
King Kong estava sempre connosco: King Kong a dormir no casco destroçado do Titanic, entre os
ossos fosforescentes de milionários e lampreias. Nenhuma lógica poderia expulsar King Kong. Era
a cinta gigante que sustém a angústia fugaz da alma. Era o bolo de casamento compernas peludas e
braços de um quilómetro de comprimento. Era o écran giratório em que as notícias desaparecem.
Era o cano do revólver que nunca dispara, o leproso armado de gonococos de canos serrados.
Era ali, no vazio da hérnia, que me entregava a todo o meu calmo pensar via pénis. Havia antes de
mais nada o teorema binómio, uma frase que sempre me intrigara: punha-o debaixo da lente e
estudava-o de X a Z. Havia Logos, que, não sei porquê, identificara sempre comrespiração: descobri
que, pelo contrário, era uma espécie de êxtase obsessivo, uma máquina que continuava a moer
cereal, muito tempo depois de os silos estarem cheios e os Judeus terem sido expulsos do Egipto.
Havia Bucéfalo, talvez mais fascinante para mim do que qualquer outra palavra do meu
vocabulário: trotava nele sempre que me encontrava num dilema, e levando comele, evidentemente,
Alexandre e todo o seu purpúreo séquito. Que cavalo! Procriado no oceano Índico, o último da
linhagem e nem uma única vez acasalado, excepto coma rainha das amazonas durante a aventura
mesopotâmica. Havia o gambito escocês! Extraordinária expressão que não tinha nada a ver
comxadrez. Surgia-me sempre sob a forma de um homem
Trópico de Capricórnio
169
empoleirado em andas, página 2498 do Dicionário Completo de Funk e Wagnall. Um ganbito era
uma espécie de salto no escuro comgâmbias mecânicas. Um salto sem nenhum objectivo - donde,
gambito! Claro como água e absolutamente simples, uma vez apreendido o sentido. E depois havia
Andrómeda, e a górgona Medusa, e Castor e Pólux de origem celestial, gémeos mitológicos,
eternamente fixos na efémera poalha de estrelas. Havia lucubração, palavra distintamente sexual e,
contudo, sugerindo tais conotações cerebrais que me inquietava. Sempre «lucubrações da meianoite», sendo a «meia-noite» ominosamente significativa. E depois havia arras. Alguém fora, em
certa ocasião, apunhalado «atrás do arras». Via uma toalha de altar feita de amianto e nela uma
laceração atroz, como o próprio César poderia ter feito.
Era um pensar muito sereno, como já disse, o género de pensar a que se devem ter entregado os
homens do Paleolítico. As coisas não eram absurdas nem explicáveis. Era um quebra-cabeças que
podíamos empurrar comos dois pés, quando nos cansávamos. Aliás, podia-se afastar facilmente
tudo, até os Himalaias. Era precisamente o tipo de pensar oposto ao de Maomet. Não conduzia
absolutamente a nada e, por consequência, era agradável. O grande edifício que se podia construir
ao longo de uma longa foda também podia ruir num abrir e fechar de olhos. O que contava era a
foda e não o trabalho de construção. Era como viver na Arca durante o Dilúvio: havia tudo à
disposição, desde o mais complicado até uma chave de parafusos. Para quê cometer assassínio,
estupro ou incesto quanto tudo quanto nos pediam era que matássemos tempo? Chuva, chuva,
chuva, mas dentro da Arca tudo sequinho e quentinho, um par de cada espécie e na despensa belos
presuntos vestefalianos, ovos frescos, azeitonas, cebolas de conserva, molho do Worcesterhire e
outros acepipes. Deus escolhera-me a mim, Noé, para criar um novo céu e uma nova terra. Dera-me
um barco robusto, comtodas as fendas betumadas e bem seco. Dera-me também os conhecimentos
necessários para navegar em mares tormentosos. Talvez quando parasse de chover fosse necessário
adquirir outro tipo de conhecimentos, mas de momento bastavam os conhecimentos náuticos. O
resto era xadrez no Café Royal, Segunda Avenida, coma diferença de que eu tinha de imaginar um
parceiro,
170
Henry Miller
um inteligente cérebro judeu que fizesse render o jogo até a chuva parar. Mas, como já disse atrás,
não tinha tempo para me aborrecer. Havia os meus velhos amigos Logos, Bucéfalo, arras,
lucubração, etc. Para quê jogar xadrez?
Fechado assim dias e noites a fio, comecei a compreender que pensar, quando não é masturbador, é
lenitivo, curativo, agradável. O pensar que não nos leva a lado nenhum leva-nos a todo o lado; todo
o outro pensar é feito sobre trilhos e, por muito longo que seja o percurso, no fim ergue-se sempre o
depósito ou a rotunda de recolha. No fim há sempre uma lanterna vermelha que diz: PARE! Mas
quando o pénis desata a pensar não há nenhum sinal de paragem nem nada que o impeça: é um
feriado perpétuo, comisca fresca e o peixe sempre a mordiscar. Isto faz-me lembrar outra gaja,
chamada Verónica ou coisa parecida, que me fazia pensar em sentido errado. comVerónica havia
sempre uma refrega no vestíbulo. Na pista de dança, dir-se-ia que nos ia fazer uma doação perpétua
dos ovários, mas assim que saía do salão começava a pensar em coisas como o chapéu, a malinha, a
tia que estava a pé à sua espera, a carta que se esquecera de meter no correio, o emprego que ia
perder - enfim, pensava numa série de coisas loucas e insignificantes que não tinham nada a ver
coma questão em causa. Era como se, de repente, tivesse ligado o cérebro para a cona - a cona mais
atenta e astuta que se possa imaginar. Era quase uma cona metafísica, por assim dizer. Não se
contentava comsolucionar problemas; também pensava de uma maneira muito especial, comum
metrónomo a funcionar. Era essencial uma luz velada peculiar, para esse tipo de despropositada
lucubração rítmica. Tinha de haver escuridão suficiente para um morcego e, ao mesmo tempo,
claridade que chegasse para encontrar um botão, se algum se soltasse e caísse no chão do vestíbulo.
Estão a perceber o que quero dizer. Uma precisão vaga mas meticulosa, uma atenção firme, mas
que simulava distracção. E uma excitação e uma casualidade ao mesmo tempo, de modo que nunca
se sabia se era peixe ou carne. Que é isto que tenho na mão? Fino ou superfino? Era sempre canja.
Se lhe agarrávamos pelas tetas, gritava como um papagaio; se lhe metíamos a mão debaixo do
vestido, torcia-se como uma enguia; se a apertávamos comdemasiada força, mordia como um furão.
Atrasava, e atrasava, e atrasaTrópico de Capricórnio
171
va. Porquê? Que pretendia? Cederia passada uma hora ou duas? Não havia uma probabilidade disso
num milhão. Era como um pombo a tentar voar comas pernas presas numa armadilha de aço: fingia
que não tinha pernas. Mas, se fazíamos menção de o soltar, ameaçava encher-nos de penas.
Como tinha um eu tão maravilhoso e tão estuporadamente inacessível, costumava pensar nela como
a Pons Asinorum. Todos os garotos da escola sabem que a Pons Asinorum só pode ser atravessada
por dois burros brancos conduzidos por um homem cego. Não sei porque é assim, mas foi essa a
regra estabelecida pelo velho Euclides. Era um tipo tão cheio de saber, o velhadas, que um dia apenas para se divertir, creio construiu uma ponte que nenhum mortal poderia jamais atravessar.
Chamou-lhe Pons Asinorum, porque possuía dois belos burros brancos dos quais gostava tanto que
não permitia a ninguém apoderar-se deles. E assim conjurou um sonho em que ele, o cego,
conduziria um dia os burros através da ponte, para os felizes terrenos de caça dos burros. Bem,
comVerónica podia-se dizer que acontecia o mesmo. Gostava tanto do seu bonito eu branco que não
se separaria dele por nada deste mundo. Queria levá-lo consigo para o Paraíso, quando chegasse o
momento. Quanto à sua cona - à qual, diga-se de passagem, nunca se referia -, bem, a cona era
apenas um acessório que a acompanhava. Na luz penumbrenta do vestíbulo conseguia tornar-nos
desagradavelmente conscientes dos seus dois problemas, embora nunca se lhes referisse
abertamente. Tornava-nos conscientes deles à maneira de um prestidigitador. Tínhamos de olhar ou
tocar só para sermos definitivamente iludidos, só para nos ser demonstrado que não tínhamos visto
nem tocado. Era uma álgebra sexual muito subtil, a lucubração da meia-noite, que podia valer um
18 ou um 20 no dia seguinte, mas mais nada. Ficava-se bem no exame, recebia-se o diploma e
depois era-se abandonado. E entretanto usava-se o eu para o sentar e a cona para verter águas. Entre
o livro de estudo e a retrete havia uma zona intermédia em que nunca se penetrava, pois estava
rotulada como a palavra «foda». Podia-se tocar e mijar, mas não se podia foder. A luz nunca se
dissipava por completo, o sol nunca entrava a jorros. Havia sempre luz suficiente para orientar um
morcego. E era essa luz fraca que mantinha a mente alerta, por assim dizer de
172
Henry Mille;
Trópico de Capricórnio
173
atalaia, atenta a malinhas, lápis, botões, chaves, etc. Não se podia pensar, verdadeiramente, porque
o cérebro já estava ocupado. A mente estava à disposição, como um lugar vago num teatro onde o
dono deixou o chapéu.
Verónica tinha, como disse, uma cona falante, o que era mau porque a sua única função parecia ser
dissuadir-nos de uma foda. Evelyn, por outro lado, tinha uma cona que ria. Também vivia no andar
de cima, mas noutra casa. Aparecia \ constantemente às horas das refeições, para nos contar uma />
anedota nova. Comediante de primeira água, a única mulher’’ realmente divertida que conheci na
minha vida. Para ela era tudo uma brincadeira, incluindo foder. Até era capaz de fazer rir um
caralho teso, o que não é nada fácil. Dizem que um caralho teso não tem consciência, mas um
caralho teso que ri também é fenomenal. Só posso descrever o que se passava dizendo que, quando
estava comcio, Evelyn fazia uma cena de ventriloquismo coma cona. Estávamos prontos para entrar
e, de repente, o palhaço que ela tinha entre as pernas soltava uma gargalhada. Ao mesmo tempo,
estendia-nos por assim dizer os braços e dava-nos um apertãozinho galhofeiro. E também era capaz
de cantar, esse palhaço dessa cona. Na realidade, comportava-se exactamente como uma foca
amestrada.
Não há nada mais difícil do que fazer amor num circo. A exibição constante do número da foca
tornava-a tão inacessível como se estivesse protegida por grades de ferro. Conseguia desfazer a
tesão mais «pessoal» do mundo. Desfazê-la e rir. No entanto, não era tão humilhante como se
poderá supor. Havia algo de compreensivo e simpático naquele riso vaginal. O mundo inteiro
parecia desbobinar-se como um filme pornográfico cujo tema trágico fosse a impotência. Podíamonos visualizar a nós próprios como um cão, ou uma doninha, ou um coelho branco. O amor era algo
à parte, digamos, um prato de caviar ou um helicóptero de cera. Podíamos ver o ventríloquo que
existia em nós falar de caviar ou heliotrópios, mas a pessoa verdadeira era sempre uma doninha ou
um coelho branco. Evelyn estava sempre deitada no canteiro das couves, de pernas abertas e a
oferecer uma folha verdinha ao primeiro que chegasse. Mas se esboçávamos um gesto para
mordiscar a folha, todo o couval explodia numa gargalhada,
numa luminosa e orvalhada gargalhada vaginal como Jesus H. Cristo e Manuel Pés-de-Lã Kant
nunca sonharam, pois se tivessem sonhado o mundo não seria o que hoje é e, além disso, não teria
havido nenhum Kant nem nenhum Cristo Todo-Poderoso. A fêmea raramente ri, mas quando ri é
vulcanicamente. Quando a fêmea ri, o melhor que o macho tem a fazer é recolher-se a toda a pressa
à caverna do ciclone. Nada resiste a essa casquinada vaginal, nem mesmo cimento armado
reforçado comferro. A fêmea, uma vez despertado o riso, é capaz de levar a palma, a rir, à hiena, ou
ao chacal, ou ao gato selvagem. De vez em quando ouve-se um riso assim numa reunião de
linchadores, por exemplo. Significa que a tampa foi pelos ares, que vale tudo. Significa que ela
caçará para si própria - e cuidado, não nos arranquem os tomates! Significa que se vem aí a peste,
ELA chegará primeiro e comenormes correias ferradas arrancar-nos-á o couro. Significa que não se
deitará só comtorn, Dick e Harry, mas também comCólera, Meningite e Lepra; significa que se
deitará no altar como uma égua comcio e receberá todos quantos vierem, incluindo o Espírito Santo.
Significa que será destruído numa noite o que o pobre macho, coma sua astúcia logarítmica, levou
cinco mil, dez mil, vinte mil anos a construir. Quando começar a rir a sério, ela destruirá tudo e
mijar-lhe-á em cima e ninguém a deterá. Disse, a respeito de Evelyn, que o seu riso desfaria a tesão
mais «pessoal» que se possa imaginar, e falei a sério: ela desfaria a tesão pessoal e substituí-la-ia
por uma impessoal que seria como uma vareta em brasa. Podíamos não ir muito longe coma própria
Evelyn, mas era possível fazer uma grande viagem como que ela tinha para dar. Mal nos
aproximávamos, era como se tomássemos uma superdose de cantárida espanhola. Nada neste
mundo nos murchava a picha, a não ser que a metêssemos debaixo de um malho.
Isto acontecia constantemente, mesmo que todas as palavras que digo sejam mentira. Era uma
viagem pessoal no mundo impessoal, um homem munido de uma pequena pá a abrir um túnel
através da Terra, para chegar ao outro lado. A intenção era ir escavando até encontrar finalmente a
garganta de Culebra, o ne plus ultra da lua-de-mel da carne. E, claro, a escavação não tinha fim. O
mais que podia esperar era ficar encalhado no próprio centro da Terra, onde a pressão era mais
t!
forte e mais regular, ficar lá encalhado para sempre. Isso dar-me-ia a sensação de ser Ixião
amarrado à roda, o que é uma espécie de salvação e não merece de todo em todo ser desdenhado.
Por outro lado, eu era um metafísico do tipo instintivo: era-me impossível ficar encalhado fosse
onde fosse, nem mesmo no próprio centro da Terra. Era imperativo, muito imperativo, descobrir e
gozar a foda metafísica, e para isso seria obrigado a emergir num planalto inteiramente novo, num
planalto de doce alfafa e monólitos polidos, onde as águias e os abutres voavam à toa.
Às vezes, sentado à noite no parque sobretudo num parque cheio de papéis e restos de comida -, via
passar uma, uma que parecia a caminho do Tibete, e seguia-a como olhar arregalado, na esperança
de que desatasse de súbito a voar, pois se o fizesse, se desatasse a voar, eu saberia que também
podia voar, e isso significaria o fim da escavação e da chafurdice. Às vezes, devido ao crepúsculo
ou a outras perturbações do género, parecia-me que ela voava realmente, ao transpor uma esquina.
Isto é, era subitamente levantada do chão pelo espaço de alguns passos, como um avião
excessivamente carregado; mas essa súbita e involuntária elevação, real ou imaginária - não
importava , dava-me esperança, dava-me a coragem para manter os olhos arregalados fixos no local.
No interior havia megafones que gritavam: «Vamos, continua a avançar, não esmoreças», e tolices
do género. Mas porquê? comque fim? Para onde? Regulava o despertador para me levantar a certa
hora, mas levantar-me porquê? Sim, porquê levantar-me? comaquela pequena pá na mão trabalhava
como um escravo nas galés, sem a mínima esperança de recompensa. Se continuasse a direito
abriria o buraco mais fundo jamais aberto por qualquer homem. No entanto, se quisesse realmente
chegar ao outro lado da Terra, não teria sido muito mais simples atirar a pá fora e meter-me num
avião para a China? Mas o corpo segue a mente. O que é mais simples para o corpo nem sempre é
fácil para a mente. E as coisas tornam-se particularmente difíceis e embaraçosas no momento em
que cada qual envereda por direcções opostas.
Trabalhar coma pá era uma delícia: deixava a mente cornpletamente livre, sem no entanto haver o
mínimo perigo de mente e corpo se separarem. Se o animal-fêmea começava subitamente a gemer de prazer; se o animal-fêmea tinha subitamente um ataque de raiva, comas
mandíbulas a moverem-se como atacadores velhos, o peito a ofegar e as costelas a estalar; se o
animal-fêmea desatava de súbito a desintegrar-se no chão, para colapso da alegria e da
sobreexasperação, precisamente nesse momento, nem um segundo antes nem depois, o prometido
planalto surgia à vista como um navio a emergir do nevoeiro e só restava cravar-lhe a bandeira das
estrelas e das listas e reclamá-lo em nome do Tio Sam e de tudo quanto é sagrado. Estas
desventuras aconteciam comtanta frequência que era impossível não acreditar na realidade de um
reino chamado Foda, pois esse era o único nome que lhe podia ser dado, embora fosse mais do que
foda, e fodendo não conseguíamos mais do que começar a aproximarmo-nos dele. Numa ocasião ou
noutra, toda a gente cravava a bandeira nesse território e, todavia, ninguém o poderia reclamar
permanentemente. Desaparecia da noite para o dia, às vezes até num abrir e fechar de olhos. Era
terra de ninguém e tresandava ao refugo de mortes invisíveis. Se era declarada uma trégua, os
contendores encontravam-se nesse terreno e apertavam a mão e trocavam tabaco. Mas as tréguas
nunca duravam muito tempo. A única coisa que parecia revestir-se de permanência era a ideia de
«zona intermédia». Ali as balas voavam e os cadáveres amontoavam-se; depois chovia, e por fim
não restava mais do que o fedor.
Isto é tudo uma maneira figurada de falar acerca do que não é mencionável. Não mencionáveis são
a foda pura e a cona pura: só devem ser mencionadas em edições de luxo, pois de contrário o
mundo desintegrar-se-á. O que mantém o mundo inteiro, como aprendi pela amarga experiência,
são as relações sexuais. Mas foda, o artigo genuíno, e cona, o artigo genuíno, parecem conter
qualquer elemento inidentificado mais perigoso do que a nitroglicerina. Para se fazer uma ideia do
que é o artigo genuíno deve-se consultar um catálogo da Sears Roebuck, avalizado pela Igreja
Anglicana. Na página vinte e três encontra-se uma imagem de Príapo a equilibrar um saca-rolhas na
ponta da pichota. Está de pé à sombra do Pártenon, por engano, e cobre-lhe a nudez apenas uma
faixa perfurada, emprestada para a ocasião pelos Holy Rollers do Orégão e de Saskatchewan. A
interurbana está ao telefone,
176
Henry Miller
a perguntar se deve vender a longo ou a curto prazo. Ele responde vai-te foder e desliga. Ao fundo,
Rembrandt estuda a anatomia de Nosso Senhor Jesus Cristo que, se não vos esquecestes, foi
crucificado pelos Judeus e depois levado para a Abissínia para ser triturado comdiscos e outros
objectos. O tempo parece estar agradável e quente, como de costume, tirando uma leve neblina que
sobe do Jónio e que é o suor dos tomates de Neptuno, castrado pelos primeiros monges ou talvez
pelos Maniqueus, no tempo da peste pentecostal. Secam, penduradas, compridas tiras de carne de
cavalo e há moscas por toda a parte, exactamente como Homero descreveu, nos tempos antigos.
Perto está uma debulhadora McCormick, uma segadora e enfardadeira commotor de trinta e seis
cavalos e sem comutador. A colheita está feita e os trabalhadores contam o salário nos campos
distantes. Rompe a aurora do primeiro dia das relações sexuais no velho mundo helénico, agora
reproduzido para nós a cores graças aos irmãos Zeiss e a outros pacientes fanáticos da indústria.
Mas não foi este o aspecto que apresentou aos homens do tempo de Homero, que estavam in loco.
Ninguém sabe qual era o aspecto do deus Príapo quando foi reduzido à ignomínia de equilibrar um
saca-rolhas na ponta da pichota. Assim encostado à sombra do Pártenon, deve comcerteza ter
começado a sonhar comcona distante; deve ter perdido consciência do saca-rolhas e da debulhadora
e enfardadeira; deve ter-se tornado muito silencioso dentro de si mesmo, e por fim deve ter perdido
até o desejo de sonhar. Na minha ideia, estou evidentemente disposto a corrigir se me
demonstrarem que me engano, quando estava assim parado na neblina que subia ouviu subitamente
o Angelus e, maravilha das maravilhas, apareceu diante dos seus olhos um deslumbrante pântano
verde no qual os Choctaws se divertiam comos Navajos; em cima, no ar, pairavam condores
brancos commalmequeres a enfeitarem-lhes as penas do pescoço. Viu também uma ardósia enorme
na qual estavam escritos o corpo de Cristo, o corpo de Absalão e o pecado que é a luxúria. Viu a
esponja embebida em sangue de rãs, os olhos que Agostinho cosera na pele e o manto que não era
suficientemente grande para cobrir as nossas iniquidades. Viu essas coisas no momento que
antecedeu aquele em que os Choctaws e os Navajos se começaram a divertir, e foi de tal
Trópico de Capricórnio
177
maneira apanhado de surpresa que, de súbito, lhe irrompeu uma voz de entre as pernas, a mais
inspirada, a mais aguda e penetrante, a mais jubilosa, feroz e cachinante das vozes que jamais
subiram das profundezas. Começou a cantar através da comprida picha comtal divina graça e
elegância que os condores brancos desceram do céu e cagaram enormes ovos purpúreos por todo o
verde pântano. Nosso Senhor Jesus Cristo levantou-se do leito de pedra e, embora marcado pelos
discos, dançou como uma cabra montês. Os feias saíram do Egipto, agrilhoados, seguidos pelos
belicosos Igorrotes e pelos comedores de caracóis de Zanzibar.
Era neste pé que estavam as coisas no primeiro dia de relações sexuais do antigo mundo helénico.
Depois disso tudo mudou muito. Já não é delicado cantar através da pichota e nem sequer é
permitido aos condores cagarem ovos purpúreos por toda a parte. Tudo isso é escatólico,
escatológico e ecuménico. E proibido. Verboten. E assim a Terra da Foda torna-se ainda mais
recuada, torna-se mitológica. Portanto, vejo-me constrangido a falar mitologicamente. Falo
comextrema unção, e também compreciosos unguentos. Ponho de parte os retumbantes címbalos, as
tubas, os malmequeres brancos, os oleandros e os rododendros. Vivam os espinhos e as algemas!
Cristo está morto e lacerado. Os feias embranquecem nas areias do Egipto, comgrilhões largos nos
pulsos. Os abutres devoraram todos os bocadinhos de carne em decomposição. Está tudo silencioso,
um milhão de ratos dourados mordiscam o queijo invisível. A Lua nasceu e o Nilo rumina nas suas
devastações marginais. A Terra arrota silenciosamente, as estrelas tremeluzem e balem, os rios
escapam-se das margens. É assim... Há conas que riem e conas que falam; há conas malucas,
histéricas e ocariniformes e há conas planturosas, sismográficas, que registam a subida e a descida
da seiva; há conas canibais, que se escancaram como as mandíbulas da baleia e engolem a presa
viva; também há conas masoquistas, que se fecham como a ostra e têm a casca dura e talvez uma ou
duas pérolas no interior; há conas ditirâmbicas, que dançam só coma aproximação do pénis e se
encharcam todas, de êxtase; há conas tipo porco-espinho, que estendem os espinhos e acenam
combandeirinhas na época do Natal; há conas telegráficas, que executam o código Morse
178
Henry Miller
e deixam a mente cheia de pontos e traços; há conas políticas, que estão saturadas de ideologia e até
negam a menopausa; há conas vegetativas, que não reagem a não ser que as arranquemos pela raiz;
há conas religiosas, que cheiram como Adventistas do Sétimo Dia e estão cheias de contas, vermes,
cascas de marisco, caganitas de ovelha e, de vez em quando, migalhas de pão duro; há conas
mamíferas, que são forradas de pele de lontra e hibernam durante o longo Inverno; há conas de
cruzeiro, equipadas como iates e boas para solitários e epilépticos; há conas glaciais, nas quais
podemos lançar estrelas cadentes sem provocar uma centelha sequer; há conas multifárias, que
desafiam a categorização e a descrição, em que tropeçamos uma vez na vida e que nos deixam
cauterizados e marcados; há conas feitas de pura alegria, que não têm nome nem antecedentes e são
as melhores de todas, mas para onde fugiram?
E, finalmente, há uma cona que é tudo e a que chamaremos supercona, pois não é desta terra e sim
daquele luminoso país para o qual há muito nos convidaram que voássemos. Aí o rocio cintila
sempre e os juncos dobram-se ao vento. É aí que habita o grande pai da fornicação, o Pari Ápis, o
touro que, à cornada, abriu caminho para o céu e destronou as divindades castradas do certo e do
errado. De Ápis proveio a raça dos unicórnios, essa fera ridícula dos escritos antigos cuja erudita
fronte se prolongou num falo reluzente, e do unicórnio proveio, por estádios graduais, o homem de
que Oswald Spengler fala. E do caralho morto deste triste espécime nasceu o gigante arranha-céus
comos seus elevadores directos e as suas torres de observação. Somos a última vírgula decimal do
cálculo sexual; o mundo gira como um ovo podre nas suas camas de palha. Falemos agora das asas
de alumínio para voarmos para esse lugar distante, para esse luminoso país onde Ápis, o pai da
fornicação, habita. Funciona tudo como relógios lubrificados, para cada minuto do mostrador há um
milhão de relógios silenciosos que vão marcando as fatias de tempo. Viajamos mais depressa do
que a luz, mais depressa do que o mágico consegue pensar. Cada segundo é um universo de tempo.
E cada universo de tempo é apenas um pestanejo de sono na cosmogonia da velocidade. Quando a
velocidade chegar ao fim estaremos lá, pontuais como sempre e abençoaTropico de Capricórnio
damente indenominados. Largaremos as nossas asas, os nossos relógios e as nossas consolas de
chaminé para nos encostarmos. Erguer-nos-emos, plumosos e jubilosos, como uma coluna de
sangue, e não haverá memória, não haverá recordação alguma que nos arraste outra vez para baixo.
Desta vez chamo-lhe o reino da supercona, porque desafia a velocidade, o cálculo ou a imaginação.
Tão-pouco o pénis tem um tamanho ou um peso conhecidos. Há apenas sensação constante de foda,
o fugitivo em plena fuga, o pesadelo a fumar o seu tranquilo cachimbo. O pequeno Nemo anda por
ali comuma tesão de sete dias e um maravilhoso par de colhões azuis doados pela Dona
Generosidade. É domingo de manhã para lá da esquina do Cemitério Sempre-Verde.
É domingo de manhã e eu estou deliciosamente deitado, morto para o mundo, na minha cama de
cimento armado. Para lá da esquina fica o cemitério, o que equivale a dizer o mundo das relações
sexuais. Os tomates doem-me da fodição que não pára, mas passa-se tudo debaixo da minha janela,
no boulevard onde Hymie tem o seu ninho de copulação. Penso numa mulher, e o resto é vago.
Disse que penso nela, mas a verdade é que morro uma morte estelar. Estou deitado como uma
estrela doente, à espera que a luz se extinga. Há anos, estive deitado nesta mesma cama e esperei,
esperei, por nascer. Não aconteceu nada. A não ser o facto de a minha mãe, na sua cólera luterana,
me ter despejado um balde de água em cima. A minha mãe, pobre imbecil, pensava que eu era
preguiçoso. Não sabia que tinha sido apanhado na deriva estelar, que estava a ser pulverizado,
condenado a uma extinção negra na mais distante fronteira do Universo. Julgava que era pura
preguiça que me mantinha preso à cama. Despejou-me um balde de água em cima: encolhi-me e
tremi um pouco, mas continuei deitado no meu leito de cimento armado. Era amovível. Era um
meteoro extinto à deriva algures nas imediações de Vega.
E agora estou na mesma cama e a luz que existe em mim recusa-se a extinguir-se. O mundo de
homens e mulheres diverte-se no recinto do cemitério. Estão a ter relações sexuais, benza-os Deus,
e eu estou sozinho na Terra da Foda. Parece-me ouvir o clangor de uma grande máquina, as
matrizes do linótiPO a passarem pelo torcedor do sexo. Hymie e a ninfomaníaca da mulher estão
deitados ao mesmo nível que eu, mas do outro
-^.
./
180
Henry Miller
lado do rio. O rio chama-se Morte e tem um sabor amargo. Vadeei-o muitas vezes até os quadris,
mas, fosse lá pelo que fosse, não fiquei petrificado nem fui imortalizado. Ainda ardo vivamente por
dentro, embora exteriormente esteja morto como um planeta. Desta cama me levantei para dançar,
não uma, mas sim centenas, milhares de vezes. E de todas as vezes que voltei tive a convicção de
que dançara a dança do esqueleto num terrain vague. Talvez tivesse desperdiçado demasiada da
minha substância a sofrer; talvez tivesse a louca ideia de que seria a primeira floração metalúrgica
da espécie humana; talvez estivesse convencido de que era, simultaneamente, um subgorila e um
superdeus. Nesta cama de cimento armado lembro-me de tudo, e é tudo de cristal de rocha. Nunca
há animais e, sim, apenas milhares e milhares de seres humanos todos a falar ao mesmo tempo, e
para cada palavra que proferem tenho imediatamente uma resposta, às vezes até antes de a palavra
lhes sair da boca. Há muita matança, nas não há sangue. Os assassínios são perpetrados comlimpeza
e sempre em silêncio. Mas mesmo que todos fossem mortos continuaria a haver conversa, e a
conversa seria simultaneamente complicada e fácil de acompanhar. Porque sou eu que a crio! Sei
que sou, e é por isso que não me enlouquece. Travo conversas que podem ter lugar só daqui a vinte
anos, quando encontrar a pessoa adequada, a pessoa que criarei, digamos, quando o momento
propício surgir. Todas estas conversas decorrem num terreno vago que está preso à minha cama
como um colchão. Uma vez, dei um nome a esse terrain vague: chamei-lhe Ubiguchi; mas, não sei
porquê, Ubiguchi nunca me satisfez, parecia-me demasiado inteligível, demasiado cheio de
significado. Seria melhor conservar apenas o terrain vague, e é isso que tenciono fazer. As pessoas
julgam que a vacuidade é nada, mas enganam-se. A vacuidade é uma repleção discordante, um
mundo fantasmagórico congestionado, aonde a alma vai em reconhecimento. Lembro-me de, em
rapaz, me encontrar no terreno vago como se fosse uma alma muito viva, nua num par de sapatos. O
corpo fora-me roubado porque não tinha nenhuma necessidade especial dele. Então, podia existir
comou sem corpo. Se matava um pássaro e o assava na fogueira e comia, não era por ter fome e,
sim, porque queria saber como eram as coisas em Timbuktu ou na Tierra dei Fuego. Tinha de ir
para ô terreno vago e comer pásTropico de Capricórnio
181
saros para originar um desejo por aquela terra luminosa em que mais tarde viveria sozinho e que
povoaria de nostalgia. Esperava coisas extremas desse lugar, mas fui deploravelmente enganado.
Fui tão longe quanto era possível ir num estado de morte completo, mas depois, devido a uma lei talvez a lei da criação, suponho -, comecei subitamente a viver inexaurivelmente, como uma estrela
de luz inextinguível. Aí começaram as verdadeiras excursões canibalísticas que tanto significaram
para mim: não mais pássaros mortos assados na fogueira, mas carne humana viva, tenra e suculenta,
segredos como fígados frescos e ensanguentados, confidências como tumores inchados conservados
em gelo... Aprendi a não esperar que a minha vítima morresse e a comê-la enquanto ainda falava
comigo. Às vezes, quando me afastava de uma refeição inacabada, descobria que não era mais do
que um velho amigo sem um braço ou uma perna. Outras abandonava-o, reduzido a um tronco
cheio de intestinos fedorentos.
Como era da cidade, da única cidade do mundo, e como não havia em parte alguma lugar como a
Broadway, costumava andar de um lado para o outro a olhar para os presuntos todos iluminados e
para outras iguarias. Era um esquizerino da sola dos sapatos às pontas do cabelo. Vivia
exclusivamente no gerúndio, que só compreendia em latim. Muito antes de ter lido a seu respeito no
Livro Negro já coabitava comHilda, a couve-flor gigante dos meus sonhos. Atravessámos juntos
todas as doenças morganáticas e algumas que eram ex cathedra. Habitávamos na carcaça dos
instintos e éramos alimentados por recordações gangliónicas. Não havia nunca um universo e sim
milhões e biliões de universos, os quais todos juntos não eram maiores do que a cabeça de um
alfinete. Era um sono vegetal na selva do espírito. Era o passado, a única coisa que abrange a
eternidade. No meio da fauna e da flora dos meus sonhos ouvia a interurbana chamar. Aleijados e
epilépticos deixavam-me telegramas em cima da mesa. Hans Castorp aparecia, de vez em quando, e
cometíamos juntos crimes inocentes. Ou, se estava um dia claro e gélido, eu dava uma volta pelo
velódromo na minha bicicleta Presto, de Chemnitz, Boémia.
O melhor de tudo era a dança do esqueleto. Antes de mais nada, lavava-me todo no lavatório,
mudava de roupa, barbea-
É ^fc.
182
Henry Miller
fl
va-me, polvilhava-me, penteava-me e calçava os sapatos de dançar. Sentindo-me anormalmente
leve por dentro e por fora, passeava durante algum tempo pelo meio da multidão, para captar o
devido ritmo humano, o peso e a substância da carne. Depois ia direitinho à pista de dança, agarrava
um naco de carne leviana e iniciava a pirueta outonal. Foi assim que, unia noite, entrei no
estabelecimento do grego cabeludo e dei de caras comela. Parecia negro-azulada, branca como cal,
sem idade. Não havia apenas o fluxo, para trás e para diante, havia também a queda infinita, a
voluptuosidade do desassossego intrínseco. Ela era mercurial, e ao mesmo tempo de um peso
agradável. Tinha o olhar marmóreo de um fauno embebido em lava. Chegara a altura, pensei, de
sair da periferia. Dei um passo para o centro, mas senti o chão fugir-me. A terra deslizava
rapidamente debaixo dos meus perplexos pés. Saí de novo da faixa e olhei: as minhas mãos estavam
cheias de flores meteóricas. Estendi para ela duas mãos flamejantes, mas ela era mais esquiva do
que areia. Pensei nos meus pesadelos favoritos, mas ela era diferente de tudo quanto jamais me
fizera suar e tartamudear. No meu delírio comecei a empinar-me e a relinchar. Comprei rãs e
acasalei-as comsapos. Pensei na coisa mais simples de fazer - morrer -, mas não fiz nada. Permaneci
imóvel e comecei a petrificar-me pelas extremidades. Isso causava uma sensação tão maravilhosa,
tão cicatrizadora, tão eminentemente perceptível que comecei a rir por dentro, nas vísceras, como
uma hiena louca de cio. Talvez me transformasse numa pedra de Roseta! Deixei-me ficar quieto, à
espera. Chegou a Primavera, o Outono e o Inverno. Renovei automaticamente a minha apólice de
seguro. Comi erva e raízes de decíduas. Passei dias a fio a ver o mesmo filme. De vez em quando
lavava os dentes. Se disparavam uma automática contra mim, as balas ressaltavam-me do corpo e
ricocheteavam nas paredes, comum estranho tá-tá-tá. Uma vez, numa rua escura, derrubado por um
rufião, senti uma faca traspassar-me. Causou-me a sensação de um banho de agulheta. Por estranho
que pareça, a faca não me deixou quaisquer buracos na pele. A experiência foi tão extraordinária,
tão nova, que fui para casa e cravei facas em todas as partes do corpo. Mais banhos de agulheta.
Sentei-me, retirei todas as facas e mais uma vez me maravilhei como facto de não haver vestígios
de
Trópico de Capricórnio
183
sangue, nem buracos, nem dor. Preparava-me para dar uma dentada num braço quando o telefone
tocou. Nunca soube quem fazia as chamadas, porque nunca ninguém falava. Mas, voltando à dança
do esqueleto...
A vida escorre pela montra. Estou lá deitado como um presunto banhado de luz, à espera que o
cutelo caia. Na realidade, não há nada a recear, pois é tudo muito bem cortado em fatias fminhas e
embrulhado em celofane. De súbito, todas as luzes da cidade se apagam e as sereias fazem ouvir o
seu aviso lúgubre. A cidade está envolta em gás venenoso, rebentam bombas, voam corpos
mutilados... Há electricidade por todo o lado, e sangue, e estilhaços, e altifalantes. Os homens que
se encontram no ar estão cheios de contentamento; os que se encontram em baixo gritam e berram.
Quando o gás e as chamas acabarem de devorar toda a carne, começará a dança do esqueleto.
Observo da montra, que está agora às escuras. E melhor do que o saque de Roma, pois há mais para
destruir.
Pergunto a mim mesmo por que dançam os esqueletos comtamanho êxtase. Será a queda do
Mundo? Será a dança da morte tantas vezes anunciada? Ver milhões de esqueletos dançar na neve
enquanto a cidade soçobra é um espectáculo aterrador. Voltará alguma coisa a crescer, jamais?
Sairão bebés do útero? Haverá comida e vinho? São homens que estão no ar, sem dúvida. Descerão
para saquear. Grassarão a cólera e a desinteria e os que estiveram lá em cima, triunfantes, perecerão
como os outros. Tenho a sensação viva, firme, de que serei o último homem da Terra. Emergirei da
montra quando tudo estiver acabado e caminharei calmamente por entre as ruínas. Terei toda a
Terra para mim!
Interurbana! Para me informar de que não estou absolutamente só. Então a destruição não foi
completa? É desencorajante. O homem nem sequer é capaz de se destruir; só é capaz de destruir os
outros. Sinto-me enojado. Que perverso aleijão! Que cruéis ilusões! Afinal, sobreviveram mais
exemplares da espécie, que limparão o chiqueiro e começarão de novo! Deus descerá novamente
em carne e sangue e assumirá
0 fardo da culpa. Escreverão música, construirão coisas de pedra e registarão tudo em livrinhos. Ora
bolas! Que cega tenacidade, que desastradas ambições!
184
Henry Miller
Estou novamente na cama. O antigo mundo grego, a aurora das relações sexuais - e Hymie! Hymie
Laubscher sempre ao mesmo nível, a olhar para o boulevard através do rio. Há uma acalmia no
banquete nupcial e servem-se os fritos de amêijoa. Desvia-te um bocadinho, diz ele. Isso, assim
mesmo! Ouço rãs coaxar no charco do lado de fora da minha janela. Grandes rãs de cemitério
alimentadas pelos mortos. Estão todas enganchadas em relações sexuais; coaxam comalegria
sexual.
Compreendo agora como Hymie foi concebido e trazido à vida. Hymie, a rã! A mãe estava no
fundo da molhada e Hymie, na altura um embrião, escondido na bolsa da mãe. Corriam os
primeiros dias das relações sexuais e não havia regras do marquês de Queensbury para atrapalhar.
Era foder e ser fodido, e o resto que se lixasse. Tem sido assim desde os Gregos: uma foda cega na
lama, depois uma desova rápida e depois a morte. As pessoas fodem a níveis diferentes, mas sempre
num pântano, e a ninhada está sempre destinada ao mesmo fim. Quando a casa é deitada abaixo, a
cama fica de pé: o altar cosmossexual.
Estava a poluir a cama comsonhos. Estendido, tenso, no cimento armado, a minha alma deixava o
corpo e vagueava de lugar para lugar num carrinho eléctrico, como o que se usa nos armazéns para
fazer os trocos. Fazia trocos ideológicos e excursões; era um vagabundo no país do cérebro.
Apresentava-se-me tudo absolutamente claro, porque feito de cristal de rocha. Em todas as saídas
estava escrito em grandes letras: ANIQUILAÇÃO. O medo da extinção petrificava-me; o corpo
transformava-se num bocado de cimento armado. Ornamentado por uma erecção permanente, do
melhor gosto. Atingira aquele estado de vacuidade tão ansiosamente desejado por certos membros
devotos de cultos esotéricos. Já não era. Não era sequer uma tesão pessoal.
Foi mais ou menos por essa altura que, adoptando o pseudónimo de Samsom Lackawana, comecei
as minhas depredações. O instinto criminal existente em mim levara a melhor. Eu, que até então
fora apenas uma alma errante, uma espécie de Dybbuk gentio, tornei-me um fantasma coberto de
carne. Adoptara o nome que me agradava e bastava-me agir instintivamente. Em Hong-Kong, por
exemplo, estreei-me como vendedor de livros. Transportava uma bolsa de couro cheia de
Tráfico de Capricórnio
185
dólares mexicanos e visitava religiosamente todos os chineses que precisavam de mais instrução.
No hotel pedia mulheres pelo telefone como quem pede uísque comsoda. De manhã estudava
tibetano, a fim de preparar a minha viagem a Lassa. Já falava fluentemente yiddish. E hebraico
também. Era capaz de somar duas filas de algarismos ao mesmo tempo. Achava tão fácil intrujar os
Chineses que voltei para Manila, desgostoso. Aí tomei um tal Mr. Rico sob a minha protecção e
ensinei-lhe a arte de vender livros sem despesas extra. Os lucros provinham exclusivamente das
taxas de frete marítimo, mas chegavam para me manter no luxo.
A respiração tornara-se um truque, como respirar. As coisas não eram apenas duplas: eram
múltiplas. Transformara-me numa gaiola de espelhos que reflectiam a vacuidade. Mas uma vez
solidamente, pressuposta a vacuidade, encontravame no meu ambiente, e o que se chama criação
era meramente uma questão de encher buracos. O carrinho eléctrico levava-me convenientemente
de lugar em lugar e eu lançava em cada bolsinha lateral de grande vácuo uma tonelada de poemas,
para apagar a ideia da aniquilação. Tinha sempre diante de mim paisagens ilimitadas. Comecei a
viver na paisagem, como um pontinho microscópico na lente de um telescópio gigante. Não havia
noite em que repousar; a luz estrelar brilhava perpetuamente na superfície árida de planetas mortos.
De vez em quando, um lago preto como mármore negro, no qual me via caminhar entre brilhantes
orbes de luz. As estrelas pairavam tão baixo e era tão ofuscante a luz que irradiavam, que dir-se-ia
estar o Universo somente prestes a nascer. O que tornava essa impressão mais forte era o facto de
me encontrar sozinho; além de não existirem animais, nem árvores, nem outros seres, também não
havia sequer uma folha de erva, ao menos uma raiz morta. Nessa incandescente luz violeta, que
nem mesmo tinha a sugestão de uma sombra, o próprio movimento parecia ausente. Era como um
clarão de pura percepção, o pensamento tornava-se Deus. E Deus, pela primeira vez no meu
conhecimento, apresentava-se nítido. E eu igualmente nítido, impecável, extremamente exacto. Via
a minha imagem nos lagos de mármore preto, uma imagem cravejada de estrelas. Estrelas, estrelas...
Sentia como que uma pancada entre °s olhos e toda a recordação se extinguia rapidamente. Era
186
Henry Miller
Samson, e era Lackawana, e estava a morrer como um ser no êxtase da total percepção.
E aqui estou agora, descendo o rio na minha pequena canoa. Farei tudo quanto quiserem que faça.
Grátis. Esta é a Terra da Foda, na qual não há animais, nem árvores, nem estrelas, nem problemas.
Aqui reina, supremo, o espermatozóide. Nada é determinado antecipadamente, o futuro é uma
incógnita absoluta e o passado inexistente. Por cada milhão que nasce, 999 999 estão condenados a
morrer e a nunca mais renascer. Mas o que se safa e chega ao destino tem a vida eterna garantida. A
vida é espremida numa semente, que é uma alma. Tudo tem alma, incluindo os minerais, as plantas,
os lagos, as montanhas e os rochedos. Tudo sente, até mesmo no mais baixo estádio de percepção.
Uma vez apreendido este facto, não pode haver mais desespero. Até no fundo da escada, chez lês
espermatozóides, há o mesmo estado de beatitude que no topo, chez Deus. Deus é a soma de todos
os espermatozóides, atingida a percepção total. Entre o fundo e o topo não há paragem, não há
nenhuma estação intermédia. O rio nasce algures nas montanhas e corre para o mar. Nesse rio que
conduz a Deus, a pequena canoa serve de tanto como um grande navio de guerra. Desde o princípio
que a viagem se faz rumo à pátria.
Navegando pelo rio abaixo... lento como o ancilóstomo, mas suficientemente pequeno para dobrar
todas as curvas. E ainda por cima tão escorregadio como uma enguia. Como te chamas? - grita
alguém. Como me chamo? Bem, podes chamar-me Deus... Deus, o embrião. Continuo a navegar.
Alguém gostaria de me comprar um chapéu. Que tamanho usas, imbecil?! - grita-me. Que
tamanho? Bem, tamanho X! (Porque estarão sempre a gritar comigo? Julgarão que sou surdo?) O
chapéu perde-se na catarata seguinte. Tantpis - para o chapéu. Deus precisa de chapéu? Deus
precisa apenas de se tornar Deus, mais e mais Deus. Todo este viajar, todas estas armadilhas, o
tempo que passa, o cenário e, contra o cenário, o homem, triliões e triliões de coisas chamadas
homem, como sementes de mostarda. Nem mesmo em embrião Deus tem memória. O pano de
fundo da percepção é composto por gânglios infinitesimamente minúsculos, um revestimento de
cabelo macio como lã. A cabra montês ergue-se sozinha entre
Trópico de Capricórnio
187
os Himalaias; não pergunta como chegou ao cume. Pasta tranquilamente entre o décor; quando
chega a altura, volta a descer. Mantém o focinho rente ao solo, para não deixar perder o escasso
alimento que os cumes montanhosos proporcionam. Neste estranho estado capricorniano de
embriose, Deus, o bode, rumina, comimpassível beatitude, entre os cumes montanhosos. As
elevadas altitudes alimentam o germe de separação que um dia o afastará completamente da alma
do homem, que fará dele um pai desolado e pétreo, vivendo para sempre à parte, num vazio
inimaginável. Mas primeiro vêm as doenças morganáticas, de que devemos agora falar...
Há um estado de sofrimento irremediável, em virtude de a sua origem se perder na obscuridade.
Bloomingdale’s, por exemplo, pode causar esse estado. Todos os armazéns são símbolos de doença
e vazio, mas Bloomingdale’s é a minha doença especial, a minha enfermidade incurável e obscura.
No caos de Bloomingdale’s há uma ordem, mas uma ordem que considero absolutamente louca: é a
ordem que encontraria na cabeça de um alfinete se a observasse ao microscópio. E a ordem de uma
acidental série de acidentes acidentalmente concebidos. Esta ordem tem, sobretudo, um odor: e é o
odor de Bloomingdale’s que me enche o coração de terror. No Bloomingdale’s desintegro-me por
completo, escorro para o chão num chiqueiro desgraçado de tripas, ossos e cartilagem. Há um
cheiro não de decomposição, mas sim de aliança desigual. O homem, esse miserável alquimista,
uniu, num milhão de formas e feitios, substâncias e essências que não têm nada em comum. Porque
na sua mente existe um tumor que o vai devorando insaciavelmente; abandonou a canoazinha que o
levava beatificamente pelo rio abaixo, a fim de construir um barco maior e mais seguro, no qual
haja espaço para todos. Mas os seus labores levaram-no tão longe que se esqueceu por completo do
motivo por que saiu da canoazinha. A arca está tão cheia de bricabraque que se transformou num
edifício estacionário por cima de uma passagem subterrânea, num edifício em que prevalece e
predomina o cheiro do linóleo. Reunam todo o significado oculto na intersticial miscelânea do
Bloomingdale’s e ponham-no em cima da cabeça de um alfinete e terão um universo em que as
grandes constelações se movem sem o mínimo perigo de colisão. E este caos micros-
188
Henry Miller
cópico que provoca todas as minhas indisposições morganáticas. Na rua, desato a apunhalar cavalos
à toa, ou levanto uma saia aqui e ali à procura de uma caixa de correio, ou ponho um selo postal
numa boca, num olho ou numa vagina. Ou então decido subitamente escalar um edifício alto, como
uma mosca, e quando chego ao telhado voo comasas a sério, e voo, e voo, e voo, percorrendo, num
abrir e fechar de olhos, cidades como Weehawken, Hoboken, Hackensack, Canarsie e Bergen
Beach. Quando nos tornamos um verdadeiro esquizerino, voar é a coisa mais fácil do mundo. O
truque consiste em voar como corpo etéreo e deixar no Bloomingdale’s o saco de ossos, tripas,
sangue e cartilagem; em voar apenas como eu imutável que, se nos detivermos um instante a
reflectir, está sempre munido de asas. Voar deste modo, em plena luz do dia, tem vantagens sobre
os vulgares voos nocturnos a que toda a gente se entrega. Pode-se levantar voo de momento para
momento, tão rápida e decisivamente como se pisássemos um travão. Não há dificuldade em
encontrar o nosso outro eu, porque no momento em que descolamos somos o nosso outro eu, o que
equivale a dizer que somos o chamado eu integral. Simplesmente, como a experiência do
Bloomingdale’s prova, esse eu integral, acerca do qual tanto se tem alardeado, desintegra-se
commuita facilidade. Por qualquer estranha razão, o cheiro do linóleo far-me-á sempre desintegrar
e cair no chão. É o cheiro de todas as coisas inaturais que foram aglutinadas em mim, que foram
reunidas, por assim dizer, por consentimento negativo.
Só depois da terceira refeição é que as dádivas matinais, doadas pela falsa aliança dos antepassados,
começam a afastar-se e a verdadeira rocha do eu, a feliz rocha do eu, emerge do lodo da alma. como
cair da noite, o universo da cabeça de alfinete começa a expandir-se. Expande-se organicamente, a
partir de um ponto nuclear infinitesimal, do mesmo modo como se formam os minerais e as
constelações. Vai devorando o caos circundante, como um rato a abrir caminho através de um
queijo. Todo o caos pode ser contido numa cabeça de alfinete, mas o eu, microscópico à partida,
expande-se e forma um universo a partir de qualquer ponto no espaço. Este ett não é aquele acerca
do qual se escrevem livros; é o eu, perene, sem idade, que tem sido cedido aos homens comnomes e
daTropico de Capricórnio
189
tas através de eras milenárias, o eu que começa e acaba como um verme, que é o verme do queijo
chamado mundo. Assim como a mais leve brisa pode pôr uma imensa floresta em movimento,
assim também, mediante um insondável impulso partido do interior, o pétreo eu pode começar a
crescer, sem que nada possa impedir ou deter tal crescimento. É como se o mundo fosse uma
vidraça e a geada entrasse em acção. Nenhuma sugestão de labor, nenhum som, nenhuma luta,
nenhum repouso; implacável, inexorável, incansável, o crescimento do eu prossegue. Há só duas
coisas na lista: o eu e o não-eu. E uma eternidade para o conseguir. Nesta eternidade, que não tem
nada a ver comtempo ou espaço, há interlúdios em que se verifica algo parecido comum degelo. A
forma do eu desintegra-se, mas o eu, como o clima, permanece. De noite, a matéria amorfa do eu
assume as formas mais fugazes; o erro infiltra-se pelas vigias e o viandante é solto da sua porta.
Esta porta que o corpo usa, se aberta para o mundo, conduz à aniquilação. É a porta existente em
todas as fábulas e da qual o mágico sai; nunca se leu em parte alguma que ele regressasse através da
mesma dita porta. Se aberta para dentro, revela portas infinitas, todas semelhantes a alçapões: não
se vêem horizontes, nem linhas aéreas, nem nos, nem mapas, nem bilhetes. Cada couche é uma
paragem apenas para a noite, seja de cinco minutos, seja de dez mil anos. As portas não têm
puxadores e nunca se gastam. Mais importante ainda: não há nenhum fim à vista. Todas as paragens
para passar a noite são, por assim dizer, explorações abortadas de um mito. Podemos tactear o
caminho, orientar-nos, observar fenómenos passageiros; podemos até sentir-nos em casa. Mas não
ganhamos raízes. Precisamente quando nos começamos a sentir «fixados», todo o terreno abate, o
solo debaixo dos pés fica à deriva, as constelações soltam-se dos seus ancoradouros, todo o
universo conhecido, incluindo o eu imperecível, começa a mover-se silenciosamente,
ominosamente, arrepiantemente sereno e indiferente, a mover-se para um destino desconhecido e
invisível. Todas as portas parecem abrir-se ao mesmo tempo; a pressão é tão grande que se verifica
uma implosão e, no mergulho rápido, o esqueleto estoira. Deve ter sido um colapso gigantesco deste
género que Dante experimentou ao situar-se no Inferno; não foi num fundo que tocou e, sim, num
cerne,
num centro a partir do qual o próprio tempo é contado. Aí começa a comédia, a partir daí parece
divina.
Tudo isto para dizer que certa noite, há doze ou catorze anos, ao transpor a porta giratória do
Amarillo Dance Hall, ocorreu o grande acontecimento. O interlúdio a que chamo Terra da Foda, um
reino mais de tempo do que de espaço, é para mim o equivalente ao Purgatório que Dante descreveu
comtanto pormenor. Quando agarrei o puxador de latão da porta giratória, para sair do Amarillo
Dance Hall, tudo quanto fora previamente, era, e estava prestes a ser, desmoronou-se. Não houve
nada de irreal nisso; o próprio tempo em que nascera passou, arrastado por uma corrente mais forte.
Assim como fora previamente atirado para fora do útero, assim também era agora devolvido a
qualquer vector infinito, onde o processo de crescimento se mantinha à distância. Passei para o
mundo dos efeitos. Não tinha medo; experimentava apenas um sentimento de fatalidade. A minha
espinha estava hirta; tinha pela frente o cóccix de um novo mundo implacável. No mergulho, o
esqueleto explodiu, deixando o ego imutável tão indefeso como um piolho esborrachado.
Se não começo a partir deste ponto, é porque não há começo algum. Se não voo imediatamente para
a terra luminosa, é porque as asas não servem para nada. É a hora zero e a Lua está no nadir...
Não sei porque me lembro de Maxie Schnadig; a não ser que seja por causa de Dostoievski. A noite
em que me sentei a ler Dostoievski pela primeira vez foi um acontecimento muito importante na
minha vida, mais importante ainda do que o meu primeiro amor. Foi o primeiro acto deliberado e
consciente que teve significado para mim; mudou por completo a face do mundo. Já não sei se é
verdade que o relógio parou no momento em que levantei a cabeça, depois do primeiro grande
trago. Mas sei que o mundo parou, se imobilizou um instante. Foi o primeiro vislumbre que tive da
alma de um homem. Ou deverei dizer, simplesmente, que Dostoievski foi o primeiro homem a
revelar-me a alma? Talvez eu já fosse um bocadinho estranho antes disso, sem me aperceber, mas a
partir do momento em que mergulhei em Dostoievski tornei-me definitiva, irrevogável e
regaladamente estranho. O mundo
vulgar, o mundo de vigília e trabalho, estava acabado para mim. Morreu igualmente - e por muito
tempo - qualquer ambição ou desejo de escrever existente em mini. Era como aqueles homens que
passaram muito tempo nas trincheiras, que estiveram muito tempo debaixo de fogo. Vulgar
sofrimento humano, vulgar inveja humana, vulgares ambições humanas, tudo isso era merda para
mim.
Avalio melhor o meu estado quando penso nas minhas relações comMaxie e a sua irmã, Rita.
Lembro-me bem de que, nesse tempo, Maxie e eu íamos nadar juntos, commuita frequência. Muitas
vezes passávamos todo o dia e toda a noite na praia. Só vira a irmã de Maxie uma ou duas vezes;
sempre que mencionava o nome dela, Maxie mudava apressadamente de assunto. Isso aborreciame, pois a verdade é que estava chateadíssimo coma companhia dele e só o tolerava porque me
emprestava facilmente dinheiro e me comprava coisas de que eu precisava. Todas as vezes que me
punha a caminho da praia, tinha esperança de que a irmã dele aparecesse inesperadamente. Mas
não, ele conseguia sempre mante-la afastada. Um dia, quando nos despíamos na barraca e ele me
mostrava o excelente e firme escroto que tinha, disse-lhe, sem cerimónias: «Escuta, Maxie, os teus
tomates são porreiros, não há motivos nenhuns para preocupação, mas onde diabo se mete a Rita,
por que raio não a trazes e não me deixas dar uma boa olhadela à sua quimt... Sim, quim, sabes
muito bem o que quero dizer.» Judeu de Odessa, Maxie nunca tinha ouvido a palavra quim. Ficou
profundamente escandalizado comas minhas palavras - escandalizado e, ao mesmo tempo, intrigado
como novo vocábulo. Redarguiu-me, numa espécie de atordoamento: «Jesus, Henry, não me devias
dizer uma coisa dessas!» «Porque não? A tua irmã tem cona, não tem?» Preparava-me para
acrescentar mais qualquer coisa, mas ele teve um tremendo ataque de riso, o que salvou a situação,
de momento. No fundo, porém, Maxie não gostou nada da ideia. Incomodou-o durante todo o dia,
embora ele não fizesse qualquer alusão à nossa conversa. Manteve-se muito calado. A única forma
de vingança de que se conseguiu lembrar foi mcitar-me a nadar muito para além da zona de
segurança, esperançado em que me cansasse e afogasse. Percebi tão claramente o que se passava no
seu espírito que me senti possesso
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
193
da força de dez homens. Diabos me levassem se me ia deixar ’’’ afogar só porque, como todas as
mulheres, a irmã dele tinha cona!
Isto passou-se em Far Rockaway. Depois de nos vestirmos; e comermos, resolvi, de súbito, que me
apetecia estar só e, por isso, à esquina de uma rua, apertei-lhe bruscamente a mão e ’ despedi-me. E
pronto! Quase no mesmo instante, senti-me só ; no mundo, só como nos sentimos em momentos de
extrema angústia. Creio que palitava distraidamente os dentes quando essa vaga de solidão me
acertou em cheio, como um tornado. Fiquei parado à esquina da rua e apalpei-me todo, para ver se
tinha sido atingido por alguma coisa. Era inexplicável e, ao mesmo tempo, muito maravilhoso e
divertido, como um to- j nico reforçado. Quando digo que estava em Far Rockaway quero dizer que
estava no fim da Terra, num lugar chamado í Xanto, se tal lugar existe, e comcerteza há tal palavra,
embo- \ rã possa não se referir a nenhum lugar. Creio que se Rita ti- j vesse aparecido naquele
momento, não a teria reconhecido. Tornara-me um estranho absoluto no meio da minha própria |
gente. Pareciam-me todos doidos, comas caras acabadas de | queimar pelo sol, as calças de flanela e
as peúgas coloridas. Ti-’ nham estado a tomar banho como eu, porque isso era um recreio agradável
e salutar, e, também como eu, sentiam-se < cheios de sol, coma barriga atestada e um pouco
pesados de ! fadiga. Até aquela vaga de solidão me atingir também estava ; um pouco cansado, mas
de súbito, ali parado completamente isolado do mundo, despertei comum sobressalto. Sentia-me de
tal maneira electrizado que não ousava mexer-me, commedo de arremeter como um touro, ou
começar a trepar por um edifício, ou dançar e gritar. Compreendi de repente que tudo aquilo
acontecia porque era realmente um irmão de Dostoievski, porque era, talvez, o único homem de
toda a América que sabia o que ele quisera dizer ao escrever os seus livros. Mas não se tratava
apenas disso; também sentia germi- í narem dentro de mim todos os livros que eu próprio
escreveria, um dia: rebentavam no meu interior como casulos amadurecidos. E, como até àquele
momento não escrevera mais do que cartas diabolicamente compridas acerca de tudo e de nada, erame difícil compreender que chegaria um momento em que começaria, em que escreveria a primeira
palavra, apnmeira palavra autêntica. E esse momento chegara! Foi disso que me apercebi.
Há pouco empreguei a palavra Xanto. Não sei se existe ou não alguma Xanto e, para ser franco,
tanto se me dá como se me deu, mas deve haver um lugar na Terra - talvez nas ilhas gregas onde
chegamos ao fim do mundo conhecido e estamos absolutamente sós e, contudo, não nos sentimos
assustados: pelo contrário, rejubilamos, porque nesse lugar extremo podemos sentir o velho mundo
ancestral que é eternamente jovem, e novo, e fecundante. Paramos aí, nesse lugar, como um pinto
acabado de nascer ao lado da casca de ovo. Esse lugar é Xanto ou, como aconteceu no meu caso,
Far Rockaway.
Ali estava eu! Escureceu, levantou-se vento, as ruas tornaram-se desertas e, finalmente, começou a
chover a potes. Jesus, isso foi o fim! Quando a chuva me bateu em cheio no rosto virado para o céu,
desatei, de repente, a berrar de alegria. Ri-me, ri-me, n-me, exactamente como um doido. E nem
sequer sabia de que estava a rir. Não pensava em nada. Sentia-me apenas avassalado pela alegria,
doido como prazer de me encontrar absolutamente só. Não teria pestanejado, sequer, se naquele
momento me apresentassem numa bandeja uma bela e sumarenta qmm, ou até todas as qmms do
mundo, para escolher. Tinha o que nenhuma qmm me poderia dar. E foi nessa altura que,
completamente encharcado mas ainda exultante, me lembrei da coisa mais insignificante do mundo:
dinheiro para os transportes! Jesus, o sacana do Maxie fora-se embora sem me deixar cheta! Ali
estava eu no meu belo mundo antigo a desabrochar, e sem uma moeda na algibeira. Herr
Dostoievski Júnior teve de começar a ir a butes aqui e ali, a olhar para caras amigas e nem por isso,
para ver se conseguia apanhar uns cobres. Foi de uma ponta de Far Rockaway à outra, mas
pareceram estar-se todos nas tintas no que tocava a esmifrar dinheiro para transportes. Enquanto
caminhava, invadido pelo pesado torpor animal que resulta de pedinchar, comecei a pensar em
Maxie, o decorador de montras, e na primeira vez em que o vira, de pé numa montra, a vestir um
manequim. Passados minutos, passei para Dostoievski, depois o mundo imobilizou-se e depois,
como uma grande rosa a abrir na noite, pensei na carne quente e aveludada de Rita.
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Henry Miller
O que é estranho é o seguinte... Poucos minutos depois de pensar em Rita e na sua íntima e
extraordinária quim, ia no comboio a caminho de Nova Iorque, a dormitar e comurna maravilhosa e
lânguida erecção. O mais estranho ainda é que, depois de me apear do comboio e percorrer apenas
um ou dois quarteirões, ao dobrar uma esquina dei de caras precisamente corn... a própria Rita. E,
como se tivesse sido telepaticamente informada do que se passava no meu cérebro, ela também
estava quente... Instantes depois estávamos sentados num restaurante chinês, lado a lado num
pequeno cubículo, comportando-nos exactamente como um casal de coelhos comcio. Na pista de
dança quase não nos mexemos. Estávamos colados um ao outro e assim continuámos, deixando os
outros empurrar-nos à vontade. Podia tê-la levado para minha casa, pois nessa altura estava só, mas
não, o que me tentava era levá-la para sua casa, encostá-la à parede do vestíbulo e fodê-la ali
mesmo, debaixo das ventas de Maxie - e foi isso que fiz. No meio do acto, voltei a pensar no
manequim da montra e na maneira como ele se rira nessa tarde quando eu dissera a palavra quim.
Estava quase a desatar também a rir, quando senti que ela se vinha, num daqueles orgasmos
prolongados que de vez em quando provocamos numa cona judia. Tinha as minhas mãos sob as
suas nádegas, comas pontas dos dedos à entrada da cona, por assim dizer no forro. Quando ela
começou a estremecer levantei-a do chão e fi-la subir e descer devagarinho na ponta do caralho.
Receei que desse completamente em maluca, pela maneira como começou a comportar-se. Deve ter
tido quatro ou cinco orgasmos assim, no ar, antes de lhe voltar a assentar os pés no chão. Tirei-o
sem entornar uma gotinha sequer e mandei-a deitar-se no vestíbulo. O chapéu rebolou-lhe para um
canto e a mala abriu-se e deixou escapar algumas moedas. Menciono o pormenor porque, momentos
antes de lhe dar o que tinha a dar, comtodos os matadores, decidi mentalmente empochar algumas
moedas, para os transportes. Enfim, poucas horas tinham decorrido desde que dissera a Maxie, na
barraca da praia, que gostaria de dar uma boa olhadela à quim da irmã, e ali estava ela agora colada
a mim, a escorrer e sem parar de esguichar. Se tinha sido fodida antes, nunca o fora
convenientemente. Disso estava certo. E eu próprio nunca me sentira comuma
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disposição de espírito tão fria e científica como ali no chão do vestíbulo, mesmo debaixo das ventas
de Maxie, a bombear a íntima, sagrada e extraordinária quim da sua mana, Rita. Podia ter-me
contido indefinidamente - era incrível como me sentia desprendido, embora completamente
consciente de cada estremeção que a sacudia. Mas alguém tinha de pagar por ter sido obrigado a
andar debaixo de chuva a pedinchar uns cobres. Alguém tinha de comprovar a autenticidade
daquela cona íntima e secreta que me atormentara durante semanas, durante meses. E haveria
alguém melhor qualificado do que eu? Pensei tanto e tão rapidamente, entre orgasmos, que o
caralho me deve ter crescido uns três a cinco centímetros. Por fim, decidi acabar comaquilo pela
porta das traseiras e disse-Ihe que se virasse. Ao princípio recalcitrou um bocado, mas quando
sentiu a coisa escorregar dela para fora quase enlouqueceu. «Oh, sim, oh, sim, faz, faz!», gemeu, e
isso excitou-me a valer. De tal maneira que mal lho enfiara me senti vir, numa daquelas
esguichadelas prolongadas e angustiosas, saídas da ponta da medula espinal. Enterrei-o tão
profundamente que tive a sensação de que qualquer coisa dava de si. Caímos um para cada lado,
exaustos e a ofegar como cães. Ao mesmo tempo, porém, tive a presença de espírito necessária para
tactear à minha volta, à caça de umas moedas. Não que precisasse realmente delas, pois ela já me
emprestara alguns dólares, mas para me vingar do que me faltara para os transportes em Far
Rockaway. Mas, Jesus, ainda não acabara. Não tardei a senti-la às apalpadelas, primeiro comas
mãos e depois coma boca. Eu continuava comuma espécie de meia-tesão. Enfiou-o na boca e
começou a acariciá-lo coma língua. Vi estrelas. Quando dei por mim, ela tinha os pés à roda do meu
pescoço e a minha língua estava enfiada pela sua racha acima. E depois tive de a montar outra vez e
de o enterrar até aos coPOS. Contorceu-se como uma enguia, palavra. E começou a vir-se de novo,
em orgasmos longos, intermináveis, no meio de gemidos e balbuciações alucinantes. Por fim, tive
de o tirar e de lhe dizer que acabasse comaquilo. Que quim\ E eu só Pedira para lhe dar uma
olhadela!
Maxie, comas suas conversas acerca de Odessa, reavivara a’go que eu perdera em criança. Embora
nunca tivesse tido urna visão muito clara de Odessa, a sua aura era como a do
A..
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Henry Miller
pequeno bairro de Brooklyn que tanto significara para mim e de onde me haviam arrancado tão
cedo. Sempre que vejo um quadro italiano sem perspectiva, tenho uma sensação muito viva desse
bairro. Se é, por exemplo, a representação de um cortejo fúnebre, trata-se exactamente do tipo de
experiência que conheci em criança, uma experiência de proximidade intensa. Se se trata da pintura
de uma rua, as mulheres sentadas à janela estão sentadas na rua e não acima ou fora da rua. Tudo
quanto acontece é, acto contínuo, conhecido por toda a gente, tal qual como entre povos primitivos.
O assassínio anda no ar, o acaso domina.
Assim como esta perspectiva falta nos primitivos italianos, assim também, no velho bairrozinho de
onde fui desenraizado em criança, havia planos verticais paralelos, nos quais tudo acontecia e
através dos quais, de camada em camada, tudo era comunicado, como que por osmose. As
fronteiras eram vivas, claramente definidas, mas não intransponíveis. Eu vivia então, em rapaz,
perto da fronteira entre o lado norte e o lado sul: só um nadinha mais para o none, a poucos passos
de uma larga artéria chamada North Second Street, a qual era para mim a verdadeira linha divisória
entre os dois lados. Na realidade, a linha divisória era a Grand Street, que levava a Broadway Ferry,
mas essa rua não significava nada para mim, a não ser pelo facto de já estar a encher-se de judeus.
Não, a North Second Street era a rua misteriosa, a fronteira entre dois mundos. Vivia, portanto,
entre duas fronteiras, uma real e outra imaginária - como vivi toda a minha vida. Havia uma
ruazinha apenas comum quarteirão de comprimento entre a Grand Street e a North Second Street e
chamada Fillmore Place. Essa ruazinha ficava obliquamente oposta à casa do meu avô, onde
morávamos. Foi a rua mais fascinante que conheci em toda a minha vida. Era uma rua ideal para um
rapaz, um amante, um maníaco, um bêbedo, um vigarista, um libertino, um rufião, um astrónomo,
um músico, um alfaiate, um sapateiro ou um político. Na realidade, era mesmo assim, continha
exactamente esses representantes da espécie humana, cada qual um mundo em si mesmo e vivendo
juntos harmoniosa e desarmoniosamente, mas juntos, formando uma corporação sólida, um esporo
humano coeso que não poderia desintegrar-se, a não ser que a própria rua se desintegrasse.
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Pelo menos assim parecia. Até que a Ponte Williamsburg foi aberta e começou a invasão dos judeus
da Delancey Street, Nova Iorque. Isso provocou a desintegração do nosso pequeno mundo, da
ruazinha chamada Fillmore Place que, como o próprio nome indicava, era uma rua de mérito, de
dignidade, de luz e de surpresas. Os judeus chegaram, como disse, e, como traças, começaram a
devorar o tecido das nossas vidas, até não haver mais nada a não ser essa presença de traças, que
levavam para toda a parte. Em breve a rua começou a cheirar mal, em breve as pessoas verdadeiras
começaram a mudar-se, em breve as casas começaram a deteriorar-se e os próprios alpendres a cair,
como a tinta. Em breve a rua parecia uma boca repugnante em que faltavam os dentes principais,
comraízes negras e feias aqui e ali, os lábios a apodrecer e o palato desaparecido. Em breve o lixo
chegava aos joelhos e as valetas e as escadas de incêndio estavam cheias de restos inchados de
roupa de cama, de baratas e de sangue seco. Em breve apareceram letreiros de «comida kosher» nas
montras das lojas e havia por toda a parte criação, salmão fumado, pickles e enormes pães. Em
breve havia carrinhos de bebé em todas as travessas, nos alpendres, nos quintalinhos e defronte dos
estabelecimentos. E, coma mudança, a língua inglesa também desapareceu: só se ouvia yiddish, só
se ouvia essa língua sibilante, crepitante e sufocante em que Deus e hortaliça podre têm o mesmo
som - e significam o mesmo.
Contámo-nos entre as primeiras famílias que se mudaram, após a invasão. Mesmo assim, voltava ao
velho bairro duas ou três vezes por ano, para festejar um aniversário, ou o Natal, ou o Dia de Acção
de Graças. Em cada visita verificava a perda de qualquer coisa que me fora querida. Era como um
sonho mau. Ia de mal a pior. A casa onde os meus parentes ainda moravam lembrava uma fortaleza
que começava a cair em ruínas. Eles estavam isolados numa das salas da fortaleza, onde levavam
uma vida triste, insular, e começavam mesmo a parecer humildes, perseguidos, degradados.
Começaram até a fazer distinções entre os seus vizinhos judeus, considerando alguns deles
humanos, decentes, asseados, amáveis, compreensivos, caridosos, etc., etc. Para mim, era de cortar
o coração. Teria sido capaz de pegar numa metralhadora e dizimar toda a gente, judeus e gentios ao
mesmo tempo.
198
Henry Miller
Foi mais ou menos na altura da invasão que as autoridades resolveram mudar para Metropolitan
Avenue o nome da North Second Street. Essa rua, que fora para os gentios o caminho para os
cemitérios, tornou-se aquilo que se chama urna artéria de trânsito, um elo entre dois guetos. Do lado
de Nova Iorque, a zona ribeirinha transformava-se rapidamente, devido à construção dos arranhacéus. Do nosso lado - o lado de Brooklyn -, os armazéns multiplicavam-se e os acessos às várias
pontes davam origem a sentinas, mercados, salas de bilhar, papelarias, sorveterias, restaurantes,
lojas de vestuário, casas de prego, etc. Em resumo, estava tudo a tornar-se metropolitano, no sentido
odioso da palavra.
Enquanto morámos no velho bairro, nunca nos referimos à Metropolitan Avenue: continuou a ser a
North Second Street, apesar da mudança oficial de nome. Só devo ter cornpreendido que a North
Second Street já não existia decorridos uns oito ou dez anos, num dia de Inverno em que parei à
esquina da rua, virado para o rio, e reparei pela primeira vez na grande torre do Metropolitan Lie
Insurance Building. O meu olhar espraiava-se então muito para além dos cemitérios, muito para
além dos nos, muito para além da cidade de Nova Iorque ou do estado de Nova Iorque, muito para
além de todos os Estados Unidos, até. Em Point Loma, na Califórnia, olhara para o largo Pacífico e
pressentira qualquer coisa que me obrigava a virar permanentemente a cara noutra direcção.
Lembro-me de que uma noite voltei ao velho bairro como meu amigo Stanley, que acabava de sair
da tropa, e percorremos as ruas triste e melancolicamente. Um europeu, a bem dizer, não pode saber
o que significa tal sensação. Na Europa, mesmo quando uma cidade é modernizada, ficam sempre
vestígios da cidade antiga. Na América, mesmo que existam vestígios, são apagados, riscados da
consciência, espezinhados, obliterados, anulados pelo que é novo. O novo é, de dia para dia, uma
traça que vai devorando o tecido da vida, acabando por deixar apenas um grande buraco. Stanley e
eu caminhámos através desse aterrador buraco. Nem uma guerra causa tal género de desolação e
destruição. Por meio da guerra, uma cidade pode ser reduzida a cinzas e toda a sua população
dizimada, mas o que volta a nascer depois assemelha-se ao antigo. A morte é fecundante, tanto para
o solo como para o espírito.
Trópico de Capricórnio
199
Na América, a destruição é completa, aniquiladora. Não há renascimento, há apenas um tumor
canceroso, camada sobre camada de tecido novo, venenoso, cada uma dela mais horrenda do que a
anterior.
Caminhámos através desse enorme buraco, como disse, e estava uma noite de Inverno clara, gélida,
tonificante. Ao passarmos pelo lado sul, a caminho da linha divisória, saudámos todas as antigas
relíquias ou os lugares onde outrora tinham existido coisas, onde houvera algo de nós. Ao
aproximarmo-nos da North Second Street, entre Fillmore Place e a North Street - uma distância de
poucos metros, apenas, e contudo uma área do Globo tão cheia, tão rica -, diante da barraca de Mrs.
O’Melio, parei e olhei para cima, para a casa onde soubera o que era realmente ter um ser. Tudo
mirrava agora, tudo se reduzira a proporções diminutas, incluindo o mundo que ficava para além da
linha divisória, o mundo que fora para mim tão misterioso e tão assustadoramente grande, tão
delimitado. Ali parado, em transe, recordei de súbito um sonho que tenho tido repetidas vezes, que
ainda tenho de vez em quando e que espero sonhar enquanto viver; o sonho de transpor a linha
divisória. Como em todos os sonhos, o extraordinário é a vividez da realidade, o facto de sermos na
realidade e não a sonhar. Do outro lado da linha divisória sou desconhecido e encontro-me
completamente só. Até a língua é diferente. Na verdade, sou sempre olhado como um estranho, um
estrangeiro. Disponho de tempo ilimitado e comprazo-me em vaguear pelas ruas. Devo dizer que há
só uma rua: a continuação daquela onde morei. Chego finalmente a uma ponte metálica, por cima
do caminho-de-ferro. Está sempre a anoitecer quando chego à ponte, embora ela fique a pouca
distância da linha divisória. Olho para baixo, para a teia dos carris, para as estações de comboios de
mercadorias, para os tenders, para os depósitos, e enquanto olho para esse aglomerado de estranhas
substâncias em movimento ocorre uma metamorfose, tal qual como num sonho. coma
transformação e a deformação, torno-me consciente de que se trata do velho sonho tantas vezes
sonhado. Sinto um medo terrível de acordar e, na verdade, sei que acordarei em breve, precisamente
no momento em que, no meio de um grande espaço descamPado, estou prestes a entrar na casa que
contém algo da máxima
200
Henry Miller
importância para mim. Quando me dirijo para essa casa, o terreno onde me encontro começa a
tornar-se vago nas extremidades, a dissolver-se, a desaparecer. O espaço envolve-me e engole-me e,
comigo, a casa em que nunca consigo entrar.
Não há absolutamente nenhuma transição deste sonho, o mais agradável que conheço, para o âmago
de um livro chamado Evolução Criadora. Neste livro de Henry Bergson, ao qual chego tão
naturalmente como ao sonho da terra existente para além da linha divisória, encontro-me de novo
completamente só, sou de novo um estrangeiro, um homem de idade indeterminada parado numa
ponte metálica a observar uma metamorfose peculiar, externa e interna. Se esse livro não me tivesse
vindo parar às mãos no preciso momento em que veio, talvez eu tivesse endoidecido. Chegou numa
altura em que outro enorme mundo se desmoronava nas minhas mãos. Mesmo que não tenha
percebido nada do que está escrito nesse livro, mesmo que tenha conservado apenas a recordação de
uma única palavra - criadora -, foi suficiente. Essa palavra tornou-se o meu talismã. comela pude
desafiar o mundo inteiro e especialmente os meus amigos.
Há ocasiões em que temos de romper comos nossos amigos a fim de compreendermos o significado
da amizade. Pode parecer estranho que o diga, mas a descoberta desse livro equivaleu à descoberta
de uma arma, 4e uma ferramenta coma qual se me tornava possível ceifar todos os amigos que me
rodeavam e que já não significavam nada para mim. Esse livro tornou-se meu amigo porque me
ensinou que eu não tinha necessidade nenhuma de amigos. Deu-me a coragem de ficar só, e
permitiu-me apreciar a solidão. Nunca compreendi o livro; houve ocasiões em que me pareceu estar
à beira da compreensão, mas nunca o compreendi, verdadeiramente. Foi mais importante para mim
não compreender. comesse livro nas mãos, lendo alto para os meus amigos, interrogando-os,
explicando-lho, foi-me dado compreender claramente que não tinha amigos, que estava só no
mundo. Pelo facto de nem eu nem os meus amigos cornpreendermos o significado das palavras,
uma coisa se tornou muito clara: há maneiras de não compreender, e a diferença entre o não
compreender de um indivíduo e o não compreender de outro cria um mundo de terra firme ainda
mais sólido do que as diferenças de compreensão. Tudo quanto outrora julgara
Trópico de Capricórnio
201
ter compreendido ruiu e pude partir do zero. Os meus amigos, pelo seu lado, entrincheiraram-se
mais solidamente na pequena vala de compreensão que tinham escavado para si próprios. Morreram
confortavelmente no seu leitozinho de compreensão, para se tornarem úteis cidadãos do mundo.
Lamentei-os e, a breve trecho, abandonei-os um após outro, sem o mínimo desgosto.
Mas que existia nesse livro capaz de significar tanto para mim e, contudo, permanecer obscuro?
Volto à palavra criadora. Tenho a certeza de que todo o mistério reside na compreensão do
significado dessa palavra. Quando penso, agora, no livro e no modo como o abordei, penso num
homem a submeter-se aos ritos da iniciação. A desorientação e a reorientação inerentes à iniciação
em qualquer mistério são a experiência mais maravilhosa que é possível ter. Tudo quanto o cérebro
se esforçou durante uma vida inteira para assimilar, categorizar e sintetizar tem de ser desintegrado
e reorganizado. Dia de mudança para a alma! E, claro, não se trata de coisa que dure um dia, mas
sim semanas e meses. Encontramos um amigo na rua, por acaso, um amigo que não víamos havia
semanas, e verificamos que ele se tornou um completo estranho para nós. Transmitimos-lhe alguns
sinais do nosso novo poleiro e se ele não percebe passamos adiante definitivamente. É tal qual
como limpar um campo de batalha: todos aqueles que estão irremediavelmente incapacitados e
agonizantes são despachados comuma cacetada rápida. Seguimos para a frente, para novos campos
de batalha, para vitórias ou derrotas. Mas avançamos! E o mundo avança connosco, comuma
precisão aterradora. Procuramos novos campos de operação, novos exemplares da espécie humana
que instruímos Cadentemente e a quem equipamos comos novos símbolos. As vezes escolhemos
espécimes para os quais antes nunca teríamos olhado. Tentamos tudo e todos quantos estiverem ao
nosso alcance, desde que ignorem a revelação.
Foi desta maneira que me encontrei sentado na sala de remendos da loja do meu pai, a ler em voz
alta para os judeus que lá trabalhavam. A ler-lhes da nova bíblia, do mesmo modo que Paulo deve
ter falado aos discípulos. coma desvantagem, claro, de que estes pobres judeus não sabiam ler a
língua inglesa. Dirigia-me principalmente a Bunchek, o talhador, que tinha uma mente rabínica. Abria o livro, escolhia uma passagem ao acaso e lia-a,
transpondo-a para um inglês primitivo, macarrónico. Depois tentava explicar o que lera, escolhendo
como exemplo e analogia coisas comas quais estavam familiarizados. Era surpreendente para mim
verificar como compreendiam bem, como compreendiam muito melhor, digamos, do que um
professor universitário, ou um literato, ou qualquer homem instruído. Naturalmente que, em última
análise, o que eles compreendiam não tinha nada a ver como livro de Bergson como livro. Mas não
seria esse o objectivo de um livro de tal género? A minha maneira de compreender um livro é que
este desaparece da vista, é mastigado vivo, digerido e incorporado no sistema como carne e sangue,
que, por sua vez, criam novo espírito e remodelam o mundo. Era um grande banquete de comunhão
que cornpartilhávamos na leitura daquele livro, que tinha como característica mais importante o
capítulo acerca de «Desordem», o qual, havendo penetrado completamente em mim, me dotou de
uma noção de ordem tão maravilhosa que, se um cometa chocasse subitamente coma Terra e tirasse
tudo dos seus lugares, virasse tudo de pernas para o ar e do avesso, se isso acontecesse eu seria
capaz de me orientar na nova ordem num abrir e fechar de olhos. Já não tenho medo da desordem,
nem ilusões a seu respeito, do mesmo modo que não tenho uma coisa nem outra acerca da morte. O
labirinto é o meu terreno de caça preferido, e quanto mais penetro na confusão melhor me oriento.
coma Evolução Criadora debaixo do braço, meto-me no comboio aéreo na Ponte de Brooklyn,
depois do trabalho, e inicio a viagem para casa, para o cemitério. As vezes entro na estação de
Delancey Street, no próprio coração do gueto, depois de uma longa caminhada pelas ruas
apinhadas. Entro na linha do comboio aéreo pela via subterrânea, como um verme a ser empurrado
através dos intestinos. Todas as vezes que ocupo o meu lugar entre a multidão que enche o cais, sei
que sou o indivíduo mais especial, mais único que ali se encontra. Observo tudo quanto se passa à
minha volta como um espectador de outro planeta. A minha língua, o meu mundo, estão debaixo do
meu braço. Sou o guardião de um grande segredo; se abrisse a boca e falasse causaria um
engarrafamento de
Trópico de Capricórnio
203
trânsito. O que tenho para dizer, e o que guardo para mim, todas as noites, nesta viagem do
escritório para casa, é absoluto dinamite. Ainda não estou preparado para arremessar o meu
cartucho de dinamite. Mordisco-o meditativamente, ruminantemente, irresistivelmente. Mais cinco
anos, talvez mais dez anos, e varrerei toda esta gente. Se, ao descrever uma curva, o comboio dá um
sacão violento, digo para comigo: Óptimo! Descarrila, aniquila-os! Nunca penso que eu correria
perigo se o comboio descarrilasse. Estamos comprimidos como sardinhas em lata e toda a carne
quente que se aperta contra mim me distrai os pensamentos. Tomo consciência de um par de pernas
enlaçadas nas minhas. Olho para a jovem sentada à minha frente, olho-a nos olhos, e comprimo
ainda mais os joelhos entre as suas pernas. Fica inquieta, mexe-se no lugar e, por fim, volta-se para
a rapariga sentada a seu lado e diz-lhe que a estou a molestar. As pessoas próximas olham-me
comhostilidade. Continuo a olhar tranquilamente pela janela e finjo não ter ouvido nada. Mesmo
que quisesse, não poderia retirar as pernas. Mas a rapariga, pouco a pouco e compuxões e
contorções violentas, consegue desenlaçar as suas das minhas. Encontro-me quase na mesma
situação coma que vai sentada a seu lado, aquela a quem ela se queixou. Quase no mesmo instante,
sinto um contacto compreensivo e a seguir, comgrande surpresa, ouço-a dizer à outra rapariga que
não se podem evitar semelhantes coisas, que a culpa não é minha, é, sim, da companhia, que nos
transporta como gado. E sinto de novo o estremecer das suas pernas contra as minhas, uma pressão
quente, humana, como um apertar de mãos. coma mão livre, consigo abrir o livro. O meu objectivo
é duplo: primeiro, quero que ela veja a espécie de livro que leio; segundo, quero continuar coma
linguagem das pernas sem dar nas vistas. Funciona às mil maravilhas. Quando o comboio se
despeja um pouco, tenho possibilidade de me sentar a seu lado e de conversar comela - acerca do
livro, naturalmente. É uma judia voluptuosa, comenormes olhos líquidos e a franqueza inerente à
sensualidade. Quando chega a altura de nos apearmos, caminhamos de braço dado pelas ruas, a
caminho da sua casa. Estou quase nos confins do velho bairro. Tudo me é familiar e, todavia,
repulsivamente estranho. Há anos que não caminho por estas ruas e agora percorro-as comuma
rapariga
204
Henry Milter
Trópico de Capricórnio
205
judia do gueto, uma bonita rapariga comforte sotaque judaico. Pareço deslocado ao lado dela. Sinto
que as pessoas nos olham, pelas costas. Sou o intruso, o goy que veio ao bairro para escolher uma
rica cona madura. Ela, pelo seu lado, parece orgulhosa da conquista; exibe-me às amigas. Olhem,
vejam o que arranjei no comboio, um goy instruído, sofisticado! Quase ouço os seus pensamentos.
Enquanto caminho lentamente, you reconhecendo o terreno, fixando todos os pormenores práticos
que decidirão se a procuro ou não depois do jantar. Não me passa pela cabeça convidá-la para
jantar. É tudo uma questão das horas a que, onde e como, porque, segundo me informa um
momento antes de chegarmos à sua porta, é casada comum caixeiro viajante - e, por isso, precisa de
ter cuidado. Concordo em voltar e encontrar-me comela à esquina, defronte da doçaria, a
determinada hora. Se quiser levar um amigo, ela levará uma amiga. Não, decido vê-la sozinho. Está
combinado. Dá-me um aperto de mão e desaparece rapidamente num corredor sujo. Regresso,
apressado, à estação, a fim de chegar a casa depressa e despachar o jantar.
Está uma noite de Verão e tudo se escancara. Ao regressar para me encontrar comela, todo o
passado desfila, caleidoscopicamente. Desta vez deixei o livro em casa. É de cona que you à
procura e não penso sequer no livro. Estou de novo deste lado da fronteira, cada estação que passa
torna o meu mundo mais pequeno. Sou quase criança quando chego ao meu destino - uma criança
horrorizada coma metamorfose que se operou. Que me aconteceu, a mim, homem do 14.° Bairro,
para estar a descer nesta estação, em busca de uma gaja judia? Suponhamos que lhe dou uma foda, e
depois? Que tenho eu a dizer a uma rapariga como esta? Que é uma foda quando o que quero é
amor? De súbito, desaba tudo sobre mim como um tornado... Una, a rapariga que amei, a rapariga
que morava aqui, neste bairro, Una a dos grandes olhos azuis e cabelo de linho, Una, que me fazia
tremer só de olhar para ela, Una, a quem tinha medo de beijar ou até de tocar na mão... Onde está
Una? Sim, essa é a pergunta escaldante: Onde está Una? Em dois segundos, fico completamente
desencorajado, completamente perdido, desolado, na mais horrível angústia e no pior dos
desesperos. Como pude deixá-la partir? Porquê? Que aconteceu? Quando aconteceu? Pensava
nela noite e dia, ano após ano, e de repente, sem dar sequer por isso, fugiu-me do pensamento, sem
mais nem menos, como uma moeda que cai por um buraco da algibeira. Incrível, monstruoso,
louco. Se teria bastado pedir-lhe que casasse comigo, pedir-lhe a mão! Se lho tivesse pedido, ela
teria respondido sim, imediatamente. Amava-me, amava-me desesperadamente. Agora lembro-me,
lembro-me do seu aspecto na última vez que nos vimos. Tinha-lhe ido dizer adeus porque partia
nessa noite para a Califórnia, porque, abandonava tudo e todos para iniciar uma nova vida. E nunca
tive intenção nenhuma de levar uma nova vida. Tencionara pedir-lhe que casasse comigo, mas a
história que inventara saiu-me tão naturalmente dos lábios que eu próprio a acreditei e, por isso,
disse adeus e afastei-me, e ela ficou parada a olhar-me, senti os seus olhos traspassarem-me, ouvi as
suas entranhas rugir, mas continuei a andar como um autómato e, por fim, dobrei a esquina e
acabou-se. Adeus! Assim, sem mais nada. Como num coma. E tencionara dizer-lhe vem comigo!
Vem comigo porque não posso viver mais sem ti!
Sinto-me tão fraco, tão pesado, que mal posso descer a escada do comboio aéreo. Agora sei o que
aconteceu: transpus a linha divisória! Esta bíblia que tenho trazido comigo destina-se a instruir-me,
a iniciar-me num novo modo de vida. O mundo que conheci já não existe, morreu, acabou-se. E
tudo quanto fui acabou-se comele. Sou uma carcaça a levar uma injecção de vida nova. Sinto-me
luminoso, cintilante, ferviIhante de novas descobertas, mas o centro ainda é chumbo, escórias.
Desato a chorar, ali mesmo, na escada do comboio aéreo. Soluço alto, como uma criança. Uma
coisa se me apresenta, comtoda a clareza: estás só no mundo. Estás só... só... só. É triste estar só...
triste, triste, triste, triste. É uma coisa sem fim, inconsolável, mas é a sorte de todos os homens da
Terra, e especialmente a minha... especialmente a minha. De novo a metamorfose. De novo tudo
cambaleia e se inclina. Estou novamente no sonho, no sonho doloroso, delirante, agradável e
enlouquecedor de além da linha divisória. Estou de pé no meio do terreno vago, mas não vejo a
minha casa. Não tenho casa. O sonho foi uma miragem. Nunca existiu nenhuma casa no meio do
terreno vago. Foi por isso que nunca pude entrar nela. A minha casa não é neste mundo, nem no
fl^l
206
Henry Miller
Trópico de Capricórnio
207
outro. Sou um homem sem casa, sem um amigo, sem mulher. Sou um monstro que pertence a uma
realidade que ainda não existe. Ah, mas existe, existirá, tenho a certeza disso! Agora caminho
rapidamente, de cabeça baixa, a falar sozinho. Esqueci o encontro tão completamente que nem
reparei se passei por ela ou não. Provavelmente, passei. Provavelmente, olho-a de frente e não a
reconheço. Provavelmente, ela também não me reconhece. Estou louco, louco de dor, louco de
angústia. Estou desesperado. Mas não estou perdido. Não, há uma realidade a que pertenço. Fica
longe, muito longe. Posso caminhar até ao Dia de Juízo, de cabeça baixa, sem nunca a encontrar.
Mas existe, tenho a certeza disso. Olho para as pessoas sanguinariamente. Se pudesse atirar uma
bomba e fazer todo o bairro em fanicos, atirá-la-ia. Sentir-me-ia feliz ao vê-los atirados pelo ar,
estropiados, gritando, lacerados, aniquilados. Quero aniquilar a Terra inteira. Não faço parte dela. É
uma loucura do princípio ao fim. É um enorme pedaço de queijo velho comvermes a banquetearemse no seu interior. Lixa-a! Fá-la em fanicos! Mata, mata, mata: mata-os a todos, judeus e gentios,
novos e velhos, bons e maus...
Torno-me leve, leve como uma pena, e o meu andar fica mais firme, mais calmo, mais regular. Que
bela noite está! As estrelas brilham tão vivamente, tão serenamente, tão longinquamente! Não se
pode dizer que trocem de mim, mas recordam-me a futilidade de tudo. Quem és tu, jovem, para
falares da Terra e de fazeres tudo em fanicos? Jovem, estamos aqui suspensas há milhões, há biliões
de anos. Vimos tudo, tudo, apesar disso continuamos a brilhar pacificamente todas as noites, a
iluminar o caminho, a acalmar o coração. Olha à tua volta, jovem, vê como é tudo sereno e belo.
Repara, até o lixo das valetas parece belo, a esta luz. Apanha essa folhinha de couve, pega-lhe
comcuidado... Inclino-me e apanho a folha de couve caída na valeta. Parece-me absolutamente
nova, um universo em si mesma. Parto-lhe um bocadinho e examino-o. Continua a ser um universo.
Continua a ser indizivelmente bela e misteriosa. Quase sinto vergonha de a atirar de novo para a
valeta. Inclino-me e deposito-a, cuidadosamente, junto do restante lixo. Fico muito pensativo,
muito, muito calmo. Amo toda a gente. Sei que algures, neste próprio momento, está uma mulher à
minha espera e que se proceder muito cal-
l
niamente, muito suavemente, muito lentamente, chegarei junto dela. Estará talvez à espera numa
esquina e, quando eu aparecer, reconhecer-me-á. Reconhecer-me-á imediatamente. Acredito nisso,
assim Deus me ajude como acredito! Acredito que tudo é justo e foi tudo determinado. A minha
casa? Ora, é o mundo, o mundo inteiro! Estou em casa em toda a parte; agora sei-o, mas não o
sabia. Já não há nenhuma linha divisória. Nunca houve nenhuma linha divisória: eu é que a
inventei. Caminho lenta e deleitosamente pelas ruas. Pelas amadas ruas. Onde toda a gente caminha
e toda a gente sofre sem o demonstrar. Quando paro e me encosto a um candeeiro para acender um
cigarro, até o candeeiro me parece amigo. Não é uma simples coisa de ferro: é uma criação da
mente humana, comcerto feitio, dobrada e formada por mãos humanas, soprada por hálito humano,
colocada por mãos e pés humanos. Viro-me e passo a mão pela superfície de ferro. Quase parece
falar-me. É um candeeiro humano. Pertence, como a folha de couve, como as peúgas rotas, como o
colchão, como a pia da cozinha. Ocupa tudo uma certa posição, num certo lugar, como a nossa
mente em relação a Deus. O mundo, na sua substância visível, tangível, é um mapa do nosso amor.
A vida,, e não Deus, é amor, amor, amor. E, no seu meio mais meio, no meio do seu meio, caminha
este jovem, eu próprio, que não é outro senão Gottlieb Leberecht Múller.
Gottlieb Leberecht Múller! Este é o nome de um homem que perdeu a sua identidade. Ninguém lhe
sabia dizer quem era, de onde viera ou o que lhe acontecera. Nas fitas, onde travara conhecimento
como indivíduo, presumia-se que tivera um acidente na guerra. Mas, quando me reconheci a mim
próprio na tela, sabendo que nunca estivera na guerra, percebi que o autor inventara essa pequena
ficção a fim de não me desmascarar. Esqueço-me frequentemente de qual é o verdadeiro eu.
Frequentemente, nos meus sonhos, tomo a poção do esquecimento, como se diz, e vagueio triste e
desesperado, à procura do corpo e do nome que são meus. E, às vezes, entre o sonho e a realidade
existe apenas a mais ténue das fronteiras. Às vezes, enquanto uma pessoa fala comigo, saio dos
meus sapatos e, como uma planta a vogar coma corrente, inicio a viagem do meu eu desarraigado.
Em semelhante estado, sou perfeitamente capaz de desempenhar as exigências
correntes da vida: encontrar mulher, tornar-me pai, manter a família, receber amigos, ler livros,
pagar impostos, cumprir o serviço militar, etc., por aí fora. Em semelhante estado sou capaz, se
necessário for, de matar a sangue-frio por amor da minha família ou para proteger o meu país, ou
seja lá pelo que for. Sou o cidadão vulgar, rotineiro, que responde quando o chamam por
determinado nome e a quem é dado um número no passaporte. Sou absolutamente irresponsável
pelo meu destino. Até que um dia, sem o mais pequeno aviso, desperto e, ao olhar em meu redor,
não compreendo absolutamente nada do que se passa à minha volta, nem o meu próprio
comportamento, nem o comportamento dos meus vizinhos, nem por que motivo os governos estão
em guerra ou em paz, conforme seja o caso. Em tais momentos nasço de novo, nasço e sou
baptizado como meu verdadeiro nome: Gottlieb Leberecht Múller! Tudo quanto faço sob o meu
verdadeiro nome é considerado louco. As pessoas esboçam sinais furtivos pelas minhas costas, e às
vezes até na minha cara. Sou obrigado a romper comos amigos, a família e os entes queridos. Sou
obrigado a levantar o acampamento. E assim, tão naturalmente como a sonhar, encontro-me mais
uma vez a vogar coma corrente, geralmente a caminhar por uma estrada fora, de rosto voltado para
o Sol no poente. Então todas as minhas faculdades se aguçam. Sou o animal mais suave, mais
furtivo, mais astuto - e sou ao mesmo tempo o que se poderia chamar um homem santo. Sei
arranjar-me sozinho. Sei como evitar trabalhar, como evitar relações embaraçosas, como evitar
cornpaixão, compreensão, coragem e todas as outras armadilhas. Permaneço num lugar ou comuma
pessoa apenas o tempo suficiente para obter o que necessito, e depois parto de novo. Não tenho
nenhuma meta: o vaguear sem destino é suficiente em si mesmo. Sou livre como um pássaro, firme
como um equilibrista. Cai maná do céu e eu tenho apenas de estender as mãos para o receber. E
deixo em toda a parte o mais agradável dos sentimentos, como se, ao aceitar as dádivas comque me
cumulam, fizesse um verdadeiro favor aos outros. Mãos amoráveis até da minha roupa suja se
encarregam. Porque toda a gente ama um homem que vive como deve ser! Gottlieb! Que belo
nome! Gottlieb! Repito-o para comigo, muitas vezes. Gottlieb Leberecht Múller!
Neste estado, tenho sempre ido parar ao meio de ladrões, vadios e assassinos. Mas como têm sido
bondosos e brandos comigo! Como se fossem meus irmãos. E não o são, deveras? Não tenho sido
culpado de todos os crimes e sofrido por isso? E não é precisamente por causa dos meus crimes que
estou tão estreitamente unido ao meu semelhante? Tenho consciência deste laço secreto sempre que
vejo um brilho de reconhecimento nos olhos da outra pessoa. Só os olhos dos justos nunca se
iluminam. Só os justos nunca conheceram o segredo da camaradagem humana. São os justos que
cometem os crimes contra o Homem, são os justos os verdadeiros monstros. São os justos que
exigem as nossas impressões digitais, que nos provam que morremos mesmo quando nos
encontramos diante deles em carne e sangue. São os justos que nos impõem nomes arbitrários,
nomes falsos, que inscrevem datas falsas no registo e nos enterram vivos. Prefiro os ladrões, os
vadios, os assassinos, a não ser que consiga encontrar um homem da minha estatura, da minha
qualidade.
Mas nunca encontrei tal homem! Nunca encontrei um homem tão generoso, tão clemente, tão
tolerante, tão descuidado, tão temerário, tão limpo de coração como eu. Perdoo-me todos os crimes
que cometi. Faço-o em nome da humanidade. Sei o que significa ser humano, a fraqueza e a força
que isso implica. Esse saber faz-me sofrer e delicia-me, ao mesmo tempo. Se tivesse a possibilidade
de ser Deus, recusá-la-ia. Se tivesse a possibilidade de ser uma estrela, recusá-la-ia. A oportunidade
mais maravilhosa que a vida oferece é a de ser humano. Isso abarca todo o Universo. Inclui o
conhecimento da morte, de que nem mesmo Deus desfruta.
No ponto a partir do qual este livro é escrito, sou o homem que se baptizou de novo. Isso aconteceu
há tantos anos, e sucederam tantas coisas entretanto, que é difícil voltar a esse momento e descrever
a viagem de Gottlieb Leberecht Múller. No entanto, talvez possa fornecer uma pista se disser que o
homem que sou agora nasceu de uma ferida. Essa ferida atingiu-o no coração. Segundo toda a
lógica feita pelo homem, devia estar morto. Fui, de facto, dado por morto por todos quantos outrora
me conheceram; caminhei como um fantasma no meio deles. Usavam o passado ao referir-se-me,
lamentavam-me, enterravam-me cada vez mais profundamente. No
210
Henry Miller
entanto, lembro-me como costumava rir-me então corno sempre -, como fazia amor comoutras
mulheres, como saboreava o que comia e bebia e a cama macia a que me agarrava como um
demónio. Algo me matara e, todavia, estava vivo. Mas estava vivo sem uma memória, sem um
nome; estava isolado da esperança, cortara comela assim como como remorso e o desgosto. Não
tinha passado, e provavelmente não teria futuro; estava enterrado vivo num vácuo que era a ferida
que me tinham desferido. Era a própria ferida.
Tenho um amigo que de vez em quando me fala do Milagre do Gólgota, do qual não percebo nada.
Mas sei alguma coisa acerca da ferida miraculosa que recebi, da ferida que me matou aos olhos do
mundo e da qual renasci e fui rebaptizado. Sei alguma coisa do milagre dessa ferida que vivi e que
cicatrizou coma minha morte. Digo isto como se se tivesse passado há muito tempo, mas está
sempre comigo. É tudo passado distante e aparentemente invisível, como uma constelação para
sempre afundada abaixo do horizonte.
O que me fascina é que uma coisa tão morta e enterrada como eu pudesse ressuscitar, e não apenas
uma vez, mas sim inúmeras vezes. E mais: cada vez que me extingui, mergulhei mais
profundamente no vazio, de modo que a cada ressuscitação o milagre se tornou maior. E nunca
estigma algum! O homem que renasce é sempre o mesmo homem, mais e mais ele a cada
renascimento. Cada vez que morre larga apenas a pele e, comela, os seus pecados. O homem que
Deus ama é verdadeiramente um homem que vive como deve ser. O homem que Deus ama é a
cebola comum milhão de peles. Largar a primeira pele é indizivelmente doloroso; a segunda, é
menos doloroso; a seguinte ainda menos, e finalmente a dor torna-se agradável, cada vez mais
agradável, um deleite, um êxtase. E depois não há nem prazer nem dor, há simplesmente a
escuridão que cede perante a luz. E, à medida que a escuridão cede, a ferida sai do seu esconderijo:
a fenda que é homem, que é amor de homem, fica banhada de luz. A identidade que estava perdida
recupera-se. O homem sai da sua ferida aberta, da sepultura que trouxe consigo tanto tempo.
No túmulo que é a minha memória vejo-a agora sepultada aquela que amei melhor do que tudo o
mais, melhor do que o mundo, melhor do que Deus, melhor do que a minha própria
Trópico de Capricórnio
211
carne e o meu próprio sangue. Vejo-a apodrecer nessa sangrenta ferida de amor, tão chegada a mim
que não a conseguia distinguir da própria ferida. Vejo-a lutar para se libertar, para se purificar da
dor do amor, e recair na ferida a cada tentativa, atolada, sufocada, debatendo-se em sangue. Vejo a
terrível expressão dos seus olhos, a comovente agonia muda, o olhar de fera encurralada. Vejo-a
abrir as pernas para se libertar e cada orgasmo transformar-se num gemido de angústia. Ouço as
paredes cair, as paredes abaterem-se sobre nós e a casa explodir em chamas. Ouço-os chamaremnos da rua, o chamamento para o trabalho e o chamamento às armas, mas estamos pregados ao chão
e os ratos mordem-nos. O túmulo e útero de amor sepultando-nos, a noite enchendo-nos as vísceras
e as estrelas cintilando no lago preto sem fundo. Perco a memória das palavras, e até do nome dela,
que pronuncio como um monomaníaco. Esqueci como ela era, que sensação causava o seu contacto,
a que cheirava, como fodia, enterrando-me mais e mais profundamente na noite da insondável
caverna. Seguia ao buraco mais fundo do seu ser, ao cemitério da sua alma, ao sopro que ainda não
expirou nos seus lábios. Procurei incansavelmente aquela cujo nome não estava-escrito em parte
nenhuma, penetrei até ao próprio altar... e não encontrei nada. Enrolei-me nessa casca oca de nada,
como uma serpente de anéis ardentes. Permaneci imóvel durante seis séculos, sem respirar,
enquanto os acontecimentos do Mundo se coavam e formavam no fundo um leito de muco viscoso.
Vi as constelações girarem à volta do imenso buraco do tecto do Universo; vi os planetas exteriores
e a estrela preta que me libertaria. Vi o Dragão libertar-se de dharma e karma, vi a nova raça de
homens fervilhar na gema da futuridade. Vi tudo, até ao último sinal e símbolo, mas não pude ler a
cara dela. Vi apenas os seus olhos brilharem, imensos, carnudos, luminosos, como se eu nadasse
por trás deles, nos eflúvios eléctricos da sua visão. Como se expandira ela assim, para lá de quanto
está ao alcance da percepção? Por que lei monstruosa alastrara assim pela face do mundo, revelando
tudo e, todavia, escondendo-se a si própria? Estava escondida na face do Sol, como a Lua em
eclipse; era um espelho que perdera o estanho, um espelho que devolvia tanto a imagem como o
horror. Olhando para dentro do fundo dos seus olhos, para dentro da carne polposa
212
Henry Miller
Trópico de Capricórnio
213
e translúcida, vi a estrutura cerebral de todas as formações, de P todas as relações, de toda a
evanescência. Vi o cérebro dentro l* do cérebro, a máquina infinita girando infinitamente, a pala- 4
vra Esperança rolando num espeto, assando, pingando gor- * dura, rolando incessantemente na
cavidade do terceiro olho. Ouvi os seus sonhos murmurados em línguas desaparecidas, os gritos
abafados ecoando em minúsculas fendas, os arquejos, os gemidos, os suspiros de prazer, o silvar de
chicotes brandidos. Ouvi-a chamar o meu próprio nome por mim ain- , da não proferido, ouvi-a
amaldiçoar e guinchar de raiva. Ouvi tudo amplificado mil vezes, como um homúnculo aprisiona1 do no ventre de um órgão. Captei a respiração abafada do Mundo, como se estivesse imobilizado
na própria encruzilhada do som.
Assim caminhámos, e dormimos, e comemos juntos, gémeos siameses que o Amor unira e que só a
Morte podia separar.
Caminhámos de pernas para o ar, de mãos dadas, no gargalo da garrafa. Ela quase exclusivamente
vestida de preto, exceptuando manchas purpúreas de quando em quando. Não usava roupa interior,
apenas um simples vestido de veludo ( preto saturado de um perfume diabólico, íamos para a cama
ao alvorecer e levantávamo-nos quando começava a escurecer. Vivíamos em buracos pretos comas
cortinas cerradas, comia- . mós em pratos pretos, líamos livros pretos. Olhávamos do buraco preto
da nossa vida para o buraco preto do mundo. O Sol estava permanentemente escurecido, como para
nos ajudar na nossa contínua luta mortal. Em vez de Sol tínhamos Marte, em vez de Lua, Saturno;
vivíamos permanentemente no zénite do mundo subterrâneo. A Terra deixara de girar e através do
buraco do céu, por cima de nós, pendia a estrela preta que nunca cintilava. De vez em quando,
tínhamos acessos de riso, dávamos gargalhadas loucas e batraquianas que faziam os vizinhos
estremecer. De vez em quando, cantávamos, delirantes, desafinados, tremolo. Estávamos fechados
durante a longa noite escura da alma, um período de tempo incomensurável que começava e
acabava como um eclipse. Girávamos à roda dos nossos próprios egos, como satélites fantasmas.
Estávamos bêbedos da nossa própria imagem, que víamos quando fitávamos os olhos um do outro.
Como parecíamos então aos outros? Como a fera parece à planta, como as estrelas parecem à fera. Ou como
Deus pareceria ao homem, se o Demónio lhe tivesse dado asas. E comtudo isso, na fixa e estreita
intimidade de uma noite sem fim, ela era radiante, jubilosa, emanava uma jubilação ultrapreta,
como um contínuo jorro de esperma do Touro Mitraico. Tinha dois canos como uma caçadeira, era
um touro-fêmea comum maçarico a acetileno no útero. No cio, fitava o grande cosmocrator,
revirava os olhos, babava-se. No buraco cego do sexo valsava como um rato amestrado, de
mandíbulas desencaixadas como uma serpente e pele horripilante, toda de plumas farpadas. Tinha a
lascívia insaciável de um unicórnio. Até o buraco do céu através do qual brilhava a estrela preta era
engolido pela sua fúria.
Vivíamos colados ao tecto, comas emanações quentes e rançosas da vida de todos os dias a subirem
e a suíocarem-nos. Vivíamos ao calor do mármore, como clarão ascendente da carne humana a
aquecer os anéis serpentiformes em que nos enroscávamos. Vivíamos presos nos abismos mais
fundos, comos fumos da paixão mundana a deixar-nos a pele da cor de cinza de charuto. Como duas
cabeças espetadas nos piques dos nossos executores, girávamos lenta e fixamente sobre as cabeças e
os ombros do Mundo que ficava em baixo. Que era a vida na terra sólida para nós, que estávamos
decapitados e para sempre unidos pelos órgãos genitais? Éramos as serpentes gémeas do Paraíso,
lúcidas no cio e frias como o próprio caos. A vida era um perpétuo foder preto à volta de um pólo
fixo de insónia. A vida era Escorpião em conjunção comMarte, em conjunção comMercúrio, em
conjunção comVénus, em conjunção comSaturno, em conjunção comPlutão, em conjunção
comUrano, em conjunção commercúrio, láudano, rádio, bismuto... A grande conjunção era sempre
a noite de sábado, o Leão a fornicar como Drago na casa do irmão e da irmã. O grande malheur era
um raio de sol filtrando-se pelas cortinas. A grande praga era Júpiter, o rei dos peixes, que podia
lançar um olhar benévolo.
A razão por que é difícil contar deve-se ao facto de eu lembrar demasiado. Lembro-me de tudo, mas
como um boneco sentado no colo de um ventríloquo. Tenho a sensação de que, durante o longo e
ininterrupto solstício conubial, estive
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Henry Miller
sentado no colo dela (mesmo quando ela estava de pé) e disse as palavras que me ensinou. Tenho a
sensação de que ela deve ter ordenado ao principal canalizador de Deus que mantivesse a estrela
preta a brilhar através do buraco do tecto, lhe deve ter ordenado que lançasse para baixo uma noite
perpétua e, comela, todos os tormentos rastejantes que se movem silenciosamente no escuro, de
modo que a mente se transforma numa sovela giratória, a furar freneticamente no nada preto.
Imaginarei apenas que ela falava incessantemente, ou ter-meia tornado um boneco tão
maravilhosamente treinado que interpretava o pensamento antes de ele chegar aos lábios? Os lábios
estavam finamente entreabertos, alisados por uma pasta espessa de sangue escuro; observava-os a
abrirem-se e a fecharem-se comextrema fascinação, quer sibilassem um ódio de víbora, quer
arrulhassem como uma rola. Estavam sempre em close up, como nos cartazes dos filmes, de modo
que eu conhecia todas as suas fendas, todos os seus poros e, quando a baba histérica começava, viaa espumar, desfazer-se em vapor, como se estivesse sentado numa cadeira de balanço debaixo das
cataratas do Niagara. Aprendi o que devia fazer como se fosse uma parte do seu organismo; era
melhor do que o boneco de um ventríloquo, pois actuava sem precisar de ser violentamente
sacudido por cordas. De quando em quando, fazia coisas de improviso, e isso às vezes agradava-lhe
enormemente. Ela fingia, claro, não dar por tais irrupções, mas eu percebia sempre quando ficava
satisfeita, pelo modo como se envaidecia. Tinha o dom da transformação, era quase tão rápida e
subtil como o próprio Diabo. Depois da pantera e do jaguar, no que melhor se transformava era em
ave: a garça selvagem, o íbis, o flamingo, o cisne comcio... Tinha uma maneira especial de descer a
pique, subitamente, quando localizava uma carcaça podre, de ir direita aos intestinos, de se atirar
imediatamente aos petiscos - coração, fígado ou ovários - e de levantar de novo voo, num abrir e
fechar de olhos. Se alguém a via, ficava imóvel na base de uma árvore, comos olhos não
completamente fechados, mas coma fixidez do basilisco. Se a espicaçavam um pouco,
transformava-se numa rosa, numa rosa negra comas pétalas mais aveludadas que se possa imaginar
e emanando um perfume avassalador. E espantosa a maneira como aprendi a conhecer a deixa. Por
muito rápida que
Trópico de Capricórnio
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fosse a metamorfose, estava sempre no seu colo, fosse ele colo de ave ou de animal, de serpente ou
de rosa: o colo dos colos, o lábio dos lábios, bico combico, pena compena, a gema no ovo, a pérola
na ostra, uma garra de cancro, uma tintura de esperma e cantáridas. A vida era Escorpião em
conjunção comMarte, em conjunção comVénus, Saturno, Urano, etc.; o amor era conjuntivite de
mandíbulas, agarra isto, agarra aquilo, agarra, agarra, o agarrar mandibular da roda da luxúria.
Chegada a hora da refeição, ouvia-a descascar os ovos e, dentro do ovo, chip-chip, abençoado
augúrio da próxima refeição. Comia como um monomaníaco: coma prolongada e sonhadora
voracidade de um homem que quebra triplamente o jejum. E enquanto eu comia ela ronronava,
como ronronar ritmado e predador do súcubo a devorar as crias. Que maravilhosa noite de amor!
Saliva, esperma, sucubação, esfincterite, tudo ao mesmo tempo: a orgia conjugal no Buraco Preto
de Calcutá.
Lá onde a estrela preta pendia, um silêncio pan-islâmico, como no mundo cavernículo onde até o
vento é silenciado. Lá, se ousasse meditar nisso, a quietude espectral da insanidade, o mundo dos
homens embalados, exaustos por séculos de carnificina incessante. Lá, uma membrana
ensanguentada e circundante dentro da qual tinha lugar toda a actividade, o mundo-herói de
lunáticos e maníacos que tinham apagado a luz do céu comsangue. Como era pacífica a nossa
vidinha de pomba-abutre no escuro! Carne para nela cravar dentes ou pénis, carne abundante e
odorosa sem nenhuma marca de faca ou tesoura, sem nenhuma cicatriz de estilhaços de explosão,
sem queimaduras de gás de mostarda, sem pulmões escaldados. Tirando o alucinante buraco no
tecto, uma vida uterina quase perfeita. Mas o buraco estava lá - como uma fissura na bexiga - e não
havia algodão que conseguisse tapá-lo permanentemente, não havia urina que conseguisse passar
comum sorriso. Mijar à larga e livremente, sim, mas como esquecer a fenda no campanário, o
silêncio inatural, a iminência, o terror, a condenação do «outro» mundo? Comer uma barrigada,
sim, e amanhã outra barrigada, e amanhã, e amanhã... mas finalmente, o quê? Finalmente! O que
era finalmente? Uma mudança de ventríloquo, uma mudança de colo, uma mudança do eixo, outra
fenda na abóbada... o quê”! O quê? Eu lhes
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Henry Miller
digo... Sentado no colo dela, petrificado pelos raios imóveis e forcados da estrela preta, dobrado,
freado, atrelado e trepanado pela acuidade telepática da nossa agitação interactiva, não pensava em
nada, absolutamente em nada, que fosse exterior à cela que habitávamos, nem sequer pensava numa
migalha numa toalha de mesa branca. Pensava puramente dentro das paredes da nossa vida
amébica, pensava só o pensamento puro que Manuel Pés-de-lã Kant nos deu e que só uma boneca
de ventríloquo podia reproduzir. Estudava todas as teorias científicas, todas as teorias de arte, todos
os grãos de verdade de todos os malucos sistemas de salvação. Calculava tudo até à expressão de
um pontinho de alfinete, comdecimais gnósticos e tudo, como primes que um bêbedo distribui no
fim de uma corrida de seis dias. Mas era tudo calculado para outra vida que outra pessoa qualquer
viveria um dia - talvez. Estávamos mesmo no gargalo da garrafa, ela e eu, mas o gargalo da garrafa
fora partido e a garrafa era apenas uma ficção.
Lembro-me de que, na segunda vez que a encontrei, me disse que não esperara voltar a ver-me, e
quando a vi na vez seguinte pensou que eu era um viciado em droga, e na seguinte chamou-me
deus, e depois disso tentou cometer suicídio, e depois tentei eu, e depois tentou ela outra vez, e não
deu resultado nenhum a não ser unir-nos mais, unir-nos tanto que nos interpenetrámos, trocámos
personalidades, nomes, identidades, religiões, pais, mães e irmãs. Até o seu corpo sofreu uma
mudança radical, não apenas uma vez, mas sim diversas vezes. Ao princípio era grande e aveludada
como o jaguar, coma força sedosa e enganosa dos felinos, encolhendo-se e saltando como eles.
Depois tornou-se emaciada, frágil, delicada, quase como uma centáurea-azul, e a cada mudança que
em seguida se operou passou pelas mais subtis modulações - de pele, musculatura, cor, postura,
odor, andar, gestos, etc. Mudava como um camaleão. Ninguém sabia dizer como ela era realmente,
pois a cada mudança tornava-se uma pessoa inteiramente diferente. Passado algum tempo, nem ela
própria sabia como era. Iniciara esse processo de metamorfose antes de eu a conhecer, como mais
tarde vim a descobrir. Como tantas mulheres que se julgam feias, decidira tornar-se bonita,
estonteantemente bonita. Para isso começara por renunciar ao nome e depois à família, aos amigos e
a tudo quanto pudesse
Trópico de Capricórnio
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ligá-la ao passado. Dedicara-se, comtoda a inteligência e todas as faculdades, ao cultivo da sua
beleza, do seu encanto, os quais já possuía em alto grau, mas que fora levada a crer serem
inexistentes. Passava a vida diante do espelho, a estudar todos os movimentos, todos os gestos, a
mínima careta. Modificou por completo o modo de falar, a dicção, a entoação, o sotaque e a
fraseologia. Fazia tudo isso comtanta perícia que era impossível abordar, sequer, o assunto das
origens. Estava constantemente na defensiva, até quando dormia. E, como um born general, não
tardou a descobrir que a melhor defesa era o ataque. Nunca deixava uma única posição desocupada;
tinha postos avançados, batedores e sentinelas em toda a parte. A sua mente era um holofote
giratório, cuja luz nunca diminuía. Cega para a própria beleza, para o próprio encanto e para a
própria personalidade, para já não falar da identidade, empenhou todas as faculdades na criação de
uma criatura mítica, uma Helena ou uma Juno a cujos encantos nem homem nem mulher saberiam
resistir. Automaticamente, sem o mínimo conhecimento da lenda, começou a criar pouco a pouco os
antecedentes ontológicos, a sequência de acontecimentos mítica precedente ao nascimento
consciente. Não precisava de se lembrar das suas mentiras, das suas ficções; bastava-lhe não se
esquecer do seu papel. Não havia, para ela, mentira demasiado monstruosa, pois no papel que
adoptara era absolutamente fiel a si mesma. Não tinha de inventar um passado: lembrava-se do
passado que lhe pertencia. Nunca era flanqueada por uma pergunta directa, pois nunca se
apresentava a um adversário a não ser obliquamente. Apresentava somente os ângulos das facetas
em constante mutação, os prismas ofuscantes de luz que mantinha em movimento contínuo. Não era
nunca um ser que pudesse ser surpreendido em repouso; era um mecanismo, o mecanismo que
punha incansavelmente em funcionamento a miríade de espelhos destinados a reflectir o mito que
ela criara. Não tinha «pose» absolutamente nenhuma; encontrava-se eternamente acima das suas
múltiplas identidades, no vácuo do eu. Não pretendera transformar-se numa figura lendária; quisera
meramente que a sua beleza fosse reconhecida. Mas, na procura da beleza, não tardou a esquecer
por completo o que perseguia e a tornar-se vítima da sua própria criação. Tornou-se tão
espantosamente bela que
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Henry Miller
umas vezes era assustadora e outras positivamente mais feia do que a mulher mais feia do Mundo.
Conseguia inspirar horror e medo, principalmente quando o seu encanto atingia o apogeu. Era como
se a verdade, cega e incontrolável, brilhasse através da criação, revelando o monstro que é.
Na escuridão, fechado no buraco negro sem mundo nenhum a observar, sem nenhum adversário
nem nenhum rival, o ofuscante dinamismo da vontade desacelerava um pouco, dava-lhe um brilho
acobreado, comas palavras a saírem-lhe da boca como lava, a carne a procurar vorazmente onde se
agarrar, um poleiro sólido e substancial, qualquer coisa em que se pudesse reintegrar e repousar
alguns momentos. Era como uma frenética chamada de longa distância, um S. O. S. de um navio a
afundar-se. Ao princípio, interpretei isso erradamente por paixão, pelo êxtase produzido pelo roçar
de carne contra carne. Pensei que encontrara um vulcão vivo, um vesúvio. Nunca me passou pela
cabeça a ideia de um barco humano a afundar-se num oceano de desespero, num mar de sargaços de
impotência. Agora penso na estrela preta que brilhava através do buraco do tecto, na estrela fixa
suspensa sobre a nossa cela conjugal, mais fixa e mais remota do que o Absoluto, penso nisso e sei
que era ela, vazia de tudo quanto era verdadeiramente ela própria: um morto sol preto sem aspecto.
Sei que conjugávamos o verbo amar como dois maníacos tentando foder-se através de um portão de
ferro. Disse que, no frenético corpo a corpo travado no escuro, algumas vezes lhe esqueci o nome,
como ela era, quem era. É verdade. Ultrapassava-me no escuro. Saía dos carris da carne para o
infinito espaço do sexo, para as órbitas sulcais estabelecidas por esta ou por aquela: Georgiana, por
exemplo, apenas durante uma breve tarde; Thelma, a meretriz egípcia; Carlota; Anallah; Una;
Mona; Magda; rapariguinhas de seis ou sete anos; crianças abandonadas; fogos-fátuos; rostos;
corpos; coxas; um sonho, uma recordação; um desejo; uma saudade. Podia começar pela Georgiana
de uma tarde de domingo perto da via férrea, como seu vestido suíço às pintas, as suas ancas
ondulantes, a sua arrastada fala sulista, a sua boca lasciva e os seus seios em fusão; podia começar
pela Georgiana, o candelabro sexual comuma miríade de braços, podia começar por ela e seguir
para a esquerda, para a direita, para cima e para
Trópico de Capricórnio
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baixo, através da ramificação de conas até à enésima dimensão do sexo, mundo sem fim. Georgiana
era como a membrana do minúsculo ouvido de um monstro inacabado chamado sexo. Estava
transparentemente viva e respirando, à luz da recordação de uma breve tarde na avenida, o primeiro
odor e a primeira substância tangíveis do mundo da foda, que é em si mesmo um mundo ilimitado e
indefinível, como o nosso mundo é o mundo. Todo o mundo da foda até à sempre crescente
membrana do animal a que chamamos sexo, que é como outro ser crescendo no nosso próprio ser e
desalojando-o gradualmente, de modo que, a certa altura, o mundo humano passa a ser apenas uma
vaga recordação desse novo ser todo-inclusivo e todo-procriativo que dá à luz a si próprio.
Foi precisamente essa copulação serpentiforme no escuro, foram essas relações desarticuladas e
loucas que me meteram no colete-de-forças da dúvida, do ciúme, do medo e da solidão. Se
começava o meu ponto aberto por Georgiana e pelo candelabro sexual comuma miríade de braços,
tinha a certeza de que ela também se deitava ao trabalho a fazer membranas, orelhas, olhos, dedos,
escalpo, e sei lá que mais, do sexo. Começaria pelo monstro que a violentou, presumindo que havia
alguma verdade nessa história; de qualquer modo também começaria algures, num trilho paralelo,
trabalhando para cima e para os lados, através desse ser multiforme e destruído por intermédio de
cujo corpo tentávamos ambos desesperadamente encontrar-nos. Conhecendo apenas uma fracção da
sua vida; possuindo somente um saco de mentiras, de invenções, de imaginações, de obsessões e
ilusões; reunindo pontas soltas, sonhos de cocaína, devaneios, frases incompletas, um amontoado de
palavras oníricas, delírios histéricos, fantasias mal disfarçadas e desejos mórbidos; encontrando de
quando em quando um nome tornado carne; ouvindo pedaços soltos de conversas; observando
olhares disfarçados e gestos interrompidos; conhecendo, possuindo, reunindo, encontrando, ouvindo
e observando apenas isso e tudo isso, fácil me era acreditá-la comum panteão de deuses
fornicadores próprios, de criaturas bem vivas de carne e sangue, de homens talvez daquela mesma
tarde, ou talvez de apenas uma hora atrás, fácil me era imaginar-lhe a cona atafulhada do esperma
da última foda. Quanto mais submissa se mostrava, quanto mais
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Henry Miller
apaixonadamente se comportava, quanto mais parecia abandonar-se, tanto mais incerto, duvidoso,
me tornava. Não havia nenhum princípio, nenhum ponto de partida pessoal, individual;
encontrávamo-nos como espadachins experientes no campo da honra, ora apinhado comos
fantasmas de vitória e derrota. Estávamos atentos e reagíamos ao mínimo ataque, como só os
experimentados sabem fazer.
Reuníamo-nos ao abrigo das trevas, comos nossos exércitos e, vindos de lados opostos, forçávamos
as portas da cidadela. Nada resistia à nossa obra sanguinária; não pedíamos nem dávamos quartel.
Reuníamo-nos a nadar em sangue, era uma ensanguentada e glauca reunião na noite, comtodas as
estrelas apagadas, excepto a estrela preta fixa, suspensa como um escalpo por cima do buraco do
tecto. Se estava devidamente drogada, vomitava como um oráculo, vomitava tudo quanto lhe
acontecera durante o dia, ontem, anteontem, havia dois anos, vomitava tudo, até ao dia em que
nascera. E nem uma palavra era verdade, nem um único pormenor. Não parava um momento, pois
se parasse o vácuo que criara na sua fuga provocaria uma explosão capaz de rebentar o Mundo. Era
a máquina mundial de mentir em microcosmos, accionada pelo mesmo medo infinito e devastador
que permite aos homens empenhar todas as suas energias na criação do aparelho da morte. Quem
olhasse para ela julgá-la-ia destemida, julgá-la-ia a personificação da coragem. E era-o, desde que
não tivesse de retroceder sobre os próprios passos. Atrás dela encontrava-se o facto sereno da
realidade, um colosso que fintava todos os seus passos. Todos os dias essa colossal realidade
adquiria novas proporções, todos os dias se tornava mais aterradora, mais paralisante. Todos os dias
ela precisava de asas mais rápidas, de dentes mais aguçados, de olhos mais penetrantes e hipnóticos.
Era uma corrida para os extremos limites do Mundo, uma corrida perdida desde o princípio e sem
nada que pudesse detê-la. Na orla do vácuo encontrava-se a Verdade, preparada para recuperar o
terreno roubado num gesto rápido como o relâmpago. Isso era tão simples e óbvio que a
enlouquecia. Mesmo que pudesse comandar mil personalidades, ter sob a sua direcção os maiores
canhões, enganar os maiores cérebros e meter pelos mais longos atalhos, mesmo assim o fim seria a
derrota. No encontro final estava
Trópico de Capricórnio
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tudo destinado a ruir - a astúcia, a perícia, a força: tudo. Seria um grão de areia na costa do maior
dos oceanos e, pior ainda, assemelhar-se-ia a todos os outros grãos de areia dessa costa. Seria
condenada a reconhecer o seu eu único em toda a parte, até ao fim do tempo. Que destino escolhera!
Que a sua singularidade tivesse de ser avassalada pelo universal! Que a sua força, o seu poder,
tivessem de ser reduzidos ao máximo da passividade! Era enlouquecedor, alucinante. Não podia
ser! Não devia ser! Em frente! Como as legiões negras. Em frente! Através de todos os graus do
círculo sempre a alargar. Em frente e para longe do eu, até a última partícula de substância da alma
ser esticada até ao infinito. No pânico da sua fuga, parecia levar o Mundo inteiro no útero.
Estávamos a ser repelidos dos confins do Universo para uma nebulosa que nenhum instrumento
permitia visualizar. Estávamos a ser impelidos para uma pausa tão parada, tão prolongada, que a
morte, comparada comela, parece uma louca bacanal de bruxas.
De manhã, olhava para a cratera exangue da sua cara. Nem um vinco, nem uma ruga, nem uma
única mácula! A expressão do anjo nos braços do Criador. Quem matou Cock Robin? Quem
chacinou os Iroqueses? Eu não fui, podia responder o meu anjo encantador, e quem seria capaz de
duvidar dela, ao ver-lhe aquele rosto puro e inocente? Quem seria capaz de ver naquele sono de
inocência que metade do rosto pertencia a Deus e a outra metade a Satanás? A máscara era suave
como a morte, calma, deliciosa ao contacto, cerácea, uma pétala oferecida à mais doce das brisas.
Era tão sedutoramente calma e sincera que uma pessoa se podia afogar nela, como corpo e tudo,
como um mergulhador, e nunca mais voltar. Até os olhos se abrirem para o mundo jazia assim,
totalmente extinta e brilhando comuma luz reflectida, como a Lua. Fascinava ainda mais naquele
transe de inocência que se assemelhava à morte; os seus crimes dissolviam-se, esvaíam-se através
dos poros, jazia enrolada como uma serpente adormecida presa à terra. O corpo forte, flexível,
musculoso, parecia possuidor de um peso sobrenatural; tinha uma gravidade mais do que humana, a
gravidade, quase se poderia dizer, de um cadáver morno. Era como podíamos imaginar que fora a
bela Nefertite após os primeiros mil anos de mumificação, uma maravilha de perfeição mortuária,
um sonho de carne preser-
vada da mortal decomposição. Jazia enrolada na base de urna pirâmide oca, entesourada no vácuo
por ela própria criado como uma sagrada relíquia do passado. Até a respiração parecia parada, tão
profundo era o seu sono. Caíra abaixo da esfera humana, abaixo da esfera animal, abaixo até da
esfera vegetativa: descera ao nível do mundo mineral, onde a animação está apenas uma marca
acima da morte. Dominara tão bem a arte do engano que nem o sonho era capaz de a trair.
Aprendera a não sonhar; quando se enroscava a dormir, desligava automaticamente a corrente. Se
fosse possível apanhá-la assim e abrir-lhe o crânio, este seria encontrado completamente vazio. Não
guardava quaisquer segredos perturbantes; tudo quanto podia ser humanamente mono, era morto.
Podia viver assim interminavelmente, como a Lua, como qualquer planeta morto, irradiando uma
efulgência hipnótica, criando marés de paixão, mergulhando o Mundo em loucura, descolorando
todas as substâncias terrestres comos seus magnéticos raios metálicos. Semeando a própria morte,
tornava febris quantos a rodeavam. Na horrível imobilidade do seu sono renovava a própria morte
magnética pela união como magma frio dos mundos planetários sem vida. Estava magicamente
intacta. O seu olhar fitava-nos comuma fixidez traspassadora: era o olhar-lua através do qual o
dragão morto da vida exalava um fogo frio. Um olho era castanho-quente, da cor de uma folha
outonal; o outro tinha um torn de avelã, era um olho magnético que tremeluzia como a agulha de
uma bússola. Até a dormir esse olho continuava a tremeluzir sob a protecção da pálpebra; era o seu
único sinal aparente de vida.
Assim que abria os olhos ficava completamente acordada. Despertava comum sobressalto violento,
como se o espectáculo do Mundo e da sua parafernais humana fosse um choque para ela. Lançavase acto contínuo em grande actividade, investindo para um lado e para o outro como uma grande
pitão. O que a perturbava era a luz! Acordava a amaldiçoar o sol, a amaldiçoar o clarão da
realidade. O quarto tinha de ser escurecido, as velas acesas e as janelas hermeticamente fechadas,
para impedirem a entrada aos ruídos da rua. Andava de um lado para o outro, nua, comum cigarro
pendente do canto da boca. Os seus arranjos pessoais eram motivo de grande preocupação; havia
que ter em conta mil pormenores insignificantes, antes que pudesse enfiar um roupão que fosse. Era como um atleta a preparar-se para a grande
prova do dia. Desde as raízes dos cabelos, que estudava comviva atenção, até à forma e ao
comprimento das unhas dos pés, toda a sua anatomia era minuciosamente inspeccionada, antes de se
sentar para tomar o pequeno-almoço. Disse que era como um atleta, mas na realidade era mais
como um mecânico a vistoriar um avião veloz, para um voo experimental. Uma vez enfiado o
vestido, estava lançada para o dia, para o voo que talvez terminasse em Irkutsk ou em Teerão. Ao
pequeno-almoço metia combustível suficiente para todo o voo. O pequeno-almoço era uma coisa
prolongada, a única cerimónia do dia em que se demorava. Era mesmo exasperantemente
prolongado. Uma pessoa até perguntava a si mesma se ela alguma vez levantaria voo, se teria
esquecido a grande missão que jurara cumprir todos os dias. Talvez estivesse a sonhar como
itinerário, ou talvez não estivesse a sonhar, sequer, e sim a dar à sua maravilhosa máquina o tempo
necessário para se preparar, a fim de que, uma vez iniciada a viagem, não precisasse de voltar para
trás. Mostrava-se muito calma e senhora de si a essa hora do dia; era como uma grande ave
empoleirada num penhasco montanhoso, a observar sonhadoramente o terreno que ficava em baixo.
Não era da mesa do pequeno-almoço que levantava bruscamente voo, para se lançar a pique sobre a
sua presa. Não. Do poleiro matinal levantava voo lenta e majestosamente, sincronizando todos os
movimentos como pulsar do motor. Todo o espaço se abria à sua frente; só o capricho lhe ditava a
direcção. Seria quase a imagem da liberdade, não fora o peso saturniano do seu corpo e a anormal
envergadura das suas asas. Por muito serena que parecesse, principalmente na descolagem,
pressentia-se o terror que motivava o voo diário. Ao mesmo tempo que obedecia ao seu destino,
sentia uma vontade frenética de o vencer. Todas as manhãs levantava voo do seu poleiro, como de
qualquer pico dos Himalaias; parecia sempre dirigir o seu voo para qualquer região que os mapas
não registavam e na qual, se tudo corresse bem, desapareceria Para sempre. Cada manhã parecia
levar consigo, para o ar, essa esperança desesperada, de último minuto; despedia-se comuma
dignidade calma e grave, como quem se prepara para descer à sepultura. Nem uma vez descrevia
círculos so.,áá-*^
224
Henry Miller
bre o campo de voo, nem uma vez lançava uni olhar para trás para aqueles que abandonava. Tãopouco deixava atrás de si a mínima migalhinha de personalidade; fazia-se ao ar comtodos os seus
pertences, comtudo quanto pudesse constituir prova do facto da sua existência. Nem sequer deixava
o sopro de um suspiro, um pedaço de unha que fosse. Era uma saída total, como o próprio Demónio
poderia fazer por razões que só a ele diziam respeito. Ficávamos comum grande vazio nas mãos.
Ficávamos abandonados, e não só abandonados, mas também traídos, desumanamente traídos. Não
sentíamos desejo nenhum de a deter nem de lhe gritar que voltasse para trás; ficávamos comuma
praga nos lábios, comum ódio negro que obscurecia o dia inteiro. Mais tarde, ao andarmos pela
cidade, ao movermo-nos coma lentidão característica do pedestre, ao rastejarmos como o verme,
captávamos rumores do seu voo espectacular: tinha sido vista a sobrevoar certo ponto, descera a
pique aqui ou ali por razões só dela conhecidas, fizera um parafuso acolá, passara como um cometa,
desenhara letras de fumo no céu, etc., por aí fora. Tudo quanto fizera era enigmático e exasperante,
aparentemente feito sem qualquer objectivo. Era como um comentário simbólico e irónico à vida
humana, ao comportamento da formiga-homem vista de outra dimensão.
Entre o momento da sua partida e o do seu regresso, eu vivia a vida de um esquizerino completo.
Não era uma eternidade que decorria, pois, não sei porquê, a eternidade relaciona-se compaz e
vitória, é algo feito pelo homem, algo conquistado; não, aquilo por que eu passava era por uma
espécie de intervalo durante o qual o cabelo embranquece até às raízes e cada milímetro de pele
arde e queima até todo o corpo se transformar numa chaga purulenta. Vejo-me sentado à mesa, às
escuras, comas mãos e os pés a crescerem e tornarem-se enormes, como se estivesse atacado de
elefantíase galopante. Ouço o sangue esguichar para o cérebro e ressoar nos tímpanos, como
demónios dos Himalaias a brandirem malhos: ouço-a a bater as asas imensas, até mesmo em
Irkutsk, e sei que avança sempre, que fica cada vez mais longe» mais e mais inacessível. O quarto
está tão silencioso e tão assustadoramente vazio que guincho e uivo, só para produzir um pequeno
ruído, um pequeno som humano. Tento levanTrópico de Capricórnio
225
tar-me da mesa, mas os meus pés estão demasiado pesados e as minhas mãos transformaram-se nas
patas informes de um rinoceronte. Quanto mais pesado fica o meu corpo, mais leve se torna a
atmosfera do quarto. you inchar, inchar, até encher o quarto comuma massa sólida de geleia dura.
Colmatarei até as fendas da parede, crescerei através da parede como uma planta parasita,
alastrando, alastrando, até toda a casa ser uma massa indescritível de carne, cabelo e unhas. Sei que
isto é a morte, mas sou incapaz de matar esse conhecimento - ou o conhecedor. Há qualquer
minúscula partícula de mini que continua viva, qualquer pinta de percepção que persiste, e, à
medida que a carcaça inerte se expande, essa centelha de vida torna-se mais e mais viva, brilha
dentro de mim como o fogo frio de uma pedra preciosa. Ilumina toda a massa glutinosa de polpa, de
modo que sou como um mergulhador comuma lanterna no corpo de um monstro marinho morto.
Através de qualquer fino filamento oculto, continuo ligado à vida acima da superfície do abismo,
mas o mundo superior fica tão longe, e o peso do cadáver é tão grande, que, mesmo que tal fosse
possível, seriam precisos anos para chegar à superfície. Movimento-me no meu próprio corpo
morto, explorando cada nicho e cada fenda da sua imensa e informe massa. É uma exploração
interminável, pois como crescimento incessante toda a topografia se modifica, escorrega e deriva
como o magma quente da Terra. Nem por um minuto há terra firme, nem por um minuto algo
permanece imóvel e reconhecível: é um crescimento sem fronteiras, uma viagem em que o destino
muda a cada mínimo movimento ou estremecimento. É este interminável encher de espaço que
mata toda a noção de espaço ou de tempo; quanto mais o corpo se expande, tanto mais o Mundo se
torna pequeno, até acabar por me dar a sensação de que se concentra tudo na cabeça de um alfinete.
Apesar do alastramento da enorme massa morta em que me tornei, o que a sustém, sinto, o mundo
do qual cresce, não é maior do que uma cabeça de alfinete. No meio da poluição, Por assim dizer no
próprio coração e nas próprias entranhas da morte, pressinto a semente, a alavanca miraculosa e
infinitesimal que equilibra o Mundo. Entornei o Mundo como um xarope e o seu vazio é aterrador,
mas nada consegue desalojar a semente; a semente tornou-se um pequeno núcleo de fogo
226
Henry Miller
frio que ruge como um sol no côncavo imenso da carcaça morta.
Quando a grande ave saqueadora regressar, exausta, do seu voo, encontrar-me-á aqui no meio do
seu nada, a mini, o imperecível esquezerino, uma semente chamejante escondida no coração da
morte. Todos os dias ela julga encontrar outro meio de subsistência, mas não há mais nenhum além
desta eterna semente de luz que, morrendo cada dia, redescubro para ela. Voa, ó ave devoradora,
voa para os limites do Universo! Aqui está o teu alimentp, a brilhar no repugnante vazio que criaste!
Voltarás para pereceres uma vez mais no buraco negro; voltarás sempre e sempre, porque não tens
asas que te levem para fora do Mundo. Este é o único mundo que podes habitar, este túmulo da
serpente onde a escuridão reina.
E, de súbito, sem nenhuma razão, quando penso no regresso dela ao seu ninho, lembro-me das
manhãs de domingo na velha casinha perto do cemitério. Lembro-me de me sentar ao piano em
camisa de dormir, de accionar os pedais comos pés descalços e de as pessoas deitadas na cama
brindarem, no quarto ao lado. Os quartos davam uns para os outros, telescopicamente, no born
velho estilo americano. Ao domingo ficávamos na cama até nos apetecer guinchar de bem-estar.
Mais ou menos cerca das onze horas, batiam na parede do meu quarto, para que fosse tocar para
eles. Entrava na sala a dançar comos Fratellini Brothers, tão cheio de chama e penas que seria capaz
de me içar, como um guindaste, para o ramo mais alto da árvore do céu. Era capaz de fazer tudo e
mais alguma coisa sozinho e dir-se-ia que as minhas articulações funcionavam para qualquer dos
lados. O velho chamava-me «Sunny Jim», porque eu estava cheio de «Força», cheio de genica e
vigor. Primeiro fazia algumas cabriolas, para eles verem, na carpete defronte da cama; depois
cantava em falsete, a tentar imitar um boneco de ventríloquo; depois dava alguns passos de dança
fantásticos, para lhe mostrar de que lado soprava o vento, e por fim, como uma brisa, sentava-me ao
piano e lançava-me num exercício de velocidade. Começava sempre por Czerny, a fim de me
desentorpecer para a. performance. O velho detestava Czerny, e eu também, mas Czerny era o plat
du jour da ementa e, por isso, era Czerny que marchava, ate as minhas articulações ficarem como
borracha. De certa maneira
Trópico de Capricórnio
227
vaga, Czerny recorda-me o grande vazio que mais tarde se abateu sobre mini. Que velocidade
alcançava, preso ao banco do piano! Era como beber um frasco de tónico de uma vez e depois
amarrarem-me à cama. Ao fim de uns noventa e oito exercícios estava preparado para um pouco de
improvisação. Martelava as teclas de uma ponta à outra e depois modulava para «O Incêndio de
Roma» ou «A Corrida de Carros de Ben Hur», de que toda a gente gostava porque era barulho
inteligível. Muito antes de ler o Tractatus Logico-Pbilosophicus, de Wittgenstein, já compunha
música de acordo comele, no estilo de sassafras. Era versado, então, em ciência e filosofia, na
história das religiões, em lógica indutiva e dedutiva, no peso e na forma dos crânios, em
farmacopeia e metalurgia e em todos os inúteis ramos do saber que nos causam indigestão e
melancolia antes do tempo. Este vómito de quinquilharia sabichona fervilhava-me nas tripas toda a
semana, à espera de que chegasse o domingo, para poder ser traduzido em música. Entre «O Alarme
de Fogo da Meia-Noite» e a «Marcha Militar» arranjava a minha inspiração, que consistia em
destruir todas as formas existentes de harmonia e criar a minha própria cacofonia. Imaginem Urano
em boa fase relativamente a Marte, a Mercúrio, à Lua, a Júpiter e a Vénus. É difícil imaginar, claro,
porque Urano funciona melhor quando está em má fase, quando está «angustiado», por assim dizer.
No entanto, a música que eu produzia nas manhãs dominicais, uma música de bem-estar e de bem
alimentado desespero, nascia de um Urano ilogicamente em boa fase e firmemente ancorado na
Sétima Casa. Mas eu não o sabia então, nem sequer sabia que Urano existia, e tal ignorância era
uma sorte. Mas compreendo-o agora, porque se tratava de uma alegria caprichosa, de um falso bemestar, de uma espécie destrutiva de criação ardente. Quanto maior a minha euforia, tanto maior a
tranquilidade da família. Até a minha irmã, que era maluca, se tornaya calma e serena. Os vizinhos
paravam do lado de fora da janela, a ouvir, e de vez em quando brindavam-me comuma explosão de
aplausos. Então - zás! - lá me lançava outra vez como um foguete: Exercício de Velocidade n.°
947,5. Se por acaso via uma barata a amarinhar pela parede acima, ficava deleitado: isso levava-me,
sem a mínima modulação, ao Opus Izzit do meu tristemente engelhado clavicórdio. Um domingo,
228
Henry Miller
sem mais nem menos, compus um dos scherzi mais encantadores que se possa imaginar. A um
piolho. Era Primavera e estávamos todos a receber tratamento de enxofre. Eu levara toda a semana
às voltas como Inferno de Dante, em inglês. O domingo chegou como um degelo, os pássaros
estavam tão bêbedos como súbito calor que entravam e saíam pela janela imunes à música. Tinha
acabado de chegar uma parente alemã, uma tia solteirona, parecida comum granadeiro e vinda de
Hamburgo ou de Brema. A sua simples proximidade bastava para me causar um ataque de raiva.
Costumava dar-me palmadinhas na cabeça e dizer que eu viria a ser outro Mozart. Mas eu detestava
Mozart, e ainda detesto, e para me vingar dela tocava mal, tocava todas as notas erradas que
conhecia. E depois apareceu o piolhinho, como ia dizendo, um piolho verdadeiro que se enterrara na
minha roupa interior de Inverno. Tirei-o de lá e pu-lo ternamente na ponta de uma tecla preta.
Depois comecei a tocar à volta dele coma mão direita. O ruído deve tê-lo ensurdecido. Parecia
hipnotizado coma minha ágil pirotecnia. Finalmente, a sua imobilidade extática buliu-me comos
nervos e resolvi introduzir uma escala cromática, caindo sobre ele comtoda a força, como dedo
médio. Acertei-lhe em cheio, mas comtal força que ficou colado à ponta do meu dedo. Isso
provocou-me uma espécie de Dança de S. Vito. A partir daí, o scherzo começou. Foi um pot-pourri
de melodias esquecidas, condimentadas comaloés e como sumo de porcos-espinhos, tocado às vezes
em três tonalidades ao mesmo tempo e girando sempre, como um rato valsador, à volta da
imaculada conceição. Mais tarde, quando ouvi Prokofiev, compreendi o que lhe acontecia;
compreendi Whitehead e Russell, e Jeans e Eddington, e Rudolf Euken, Frobenius e Link Gillespie;
compreendi por que motivo o homem inventaria o teorema binómio, se ele nunca tivesse existido;
compreendi o porquê da electricidade e do ar comprimido, para já não falar de banhos Sprudel e
outras coisas que tais. Compreendi muito claramente, devo dizê-lo, que o homem tem um piolho
morto no sangue e que, quando nos dão uma sinfonia, ou um fresco, ou um explosivo forte, nos
estão realmente a dar uma reacção de ipeca que não fazia parte da lista predestinada. Compreendi
também porque falhara e não me tornara o músico que era. Todas as composições que
Trópico de Capricórnio
229
criara na minha cabeça, todas essas audições privadas e artísticas que me foram permitidas, graças a
Santa Hildegarda, ou a Santa Erigida, ou a João da Cruz, ou sabe Deus a quem, foram escritas para
uma era futura, para uma era commenos instrumentos e antenas mais fortes - e tímpanos mais
fortes, também. Tem de se experimentar uma espécie de sofrimento diferente antes de tal música
poder ser apreciada. Beethoven demarcou território novo temos consciência da sua presença
quando ele irrompe impetuosamente, quando sucumbe no próprio âmago do seu silêncio. É um
reino de novas vibrações - para nós não passa de uma nebulosa, pois ainda não ultrapassámos a
nossa concepção de sofrimento. Ainda temos de ingerir esse mundo nebuloso, o seu trabalho e a sua
orientação. Foi-me permitido ouvir uma música incrível, deitado e indiferente ao sofrimento que me
cercava. Ouvi a gestação do novo mundo, o som de rios torrenciais escolhendo o seu curso, o som
de estrelas triturando e moendo, de fontes coaguladas, de chamejantes pedras preciosas. A música
ainda é toda governada pela antiga astronomia, produto de estufa, uma panaceia para Weltschmerz.
A música é ainda o antídoto do inominável, mas isso ainda não é música. A música é fogo
planetário, um irredutível todo-suficiente; é a escrita na ardósia dos deuses, a abracadabra coma
qual nem eruditos nem ignorantes sabem lidar, porque o eixo foi desenganchado. Olhai para as
entranhas, para o inconsolável e para o inevitável. Nada está determinado, nada está decidido ou
resolvido. Tudo quanto se está a passar, toda a música, toda a arquitectura, toda a lei, todo o
governo, toda a invenção e toda a descoberta, tudo isso são exercícios de velocidade feitos no
escuro, Czerney comum Z maiúsculo montando um louco cavalo branco numa garrafa de
mucilagem.
Uma das razões por que nunca cheguei a lado nenhum coma maldita música foi o facto de se
misturar sempre comsexo. Assim que fui capaz de tocar uma melodia, as conas rodearam-me como
moscas. Para começar, a culpa foi em grande parte de Lola. Lola foi a minha primeira professora de
piano. Lola Niessen. Era um nome ridículo e típico do bairro onde morávamos, então. Soava a
arenque salgado malcheiroso °u a cona bichosa. Para dizer a verdade, Lola não era exactamente
uma beleza. Parecia-se um pouco comum calmuco ou
230
Henry Miller
um chinuque, compele baça e olhos biliosos. Tinha algumas verrugas e alguns quistos, para não
falar do bigode. O que me excitava, porém, era o seu hirsutismo. Tinha cabelo preto
maravilhosamente comprido, que dispunha em rolos ascendentes e descendentes no crânio mongol.
Na nuca, enrolava-o num carrapito serpentiforme. Vinha sempre atrasada, pois era uma idiota
conscienciosa, e quanto ela chegava eu estava sempre um bocado debilitado de me masturbar. No
entanto, assim que se sentava no tamborete a meu lado ficava novamente excitado, por causa do
fétido perfume comque encharcava as axilas. No Verão usava mangas largas e soltas, que deixavam
ver os tufos de pêlos debaixo dos braços. A visão enlouquecia-me. Imaginava-a compêlos no corpo
todo, até no umbigo. E o que desejava fazer era enrolar-me neles, cravar os dentes neles. Teria sido
capaz de comer a pilosidade de Lola como um petisco, se tivesse alguma carne agarrada. Enfim, era
peluda, aí está aonde eu queria chegar, e o facto de ser peluda como um gorila desviava-me o
pensamento da música para a sua cona. Andava tão doido por ver essa cona que, um dia, subornei o
irmãozito dela, para me deixar espreitá-la quando estava na casa de banho. Era ainda mais
maravilhosa do que imaginara: tinha uma guedelha que lhe ia do umbigo à zona genital, um enorme
e denso tufo, uma bolsa escocesa rica como um tapete feito à mão. Quando lhe começou às
pancadinhas coma borla do pó, julguei que desmaiava. Da próxima vez que ela me foi dar lição,
deixei dois botões da braguilha desabotoados. Pareceu não reparar em nada. Na lição seguinte,
deixei a braguilha toda desabotoada. Dessa vez, não lhe escapou. «Creio que te esqueceste de
qualquer coisa, Henry», disse-me. Olhei para ela, encarnado como um tomate, mas perguntei
brandamente: Do quê? Fingiu olhar para o lado, enquanto apontava coma mão esquerda. A mão
estava tão próxima que não resisti a agarrá-la e metê-la na braguilha. Levantou-se muito depressa,
pálida e assustada. Nessa altura já a minha picha estava ao léu, a estremecer de deleite. Atirei-me a
ela e enfiei-lhe a mão pelo vestido acima, para chegar ao tapete denso e fofo que vira pelo buraco da
fechadura. De súbito, levei um valente caldo nas orelhas, a seguir outro, e depois ela agarrou-me
por uma orelha e levou-me para um canto, virado para a parede. «Agora abotoa
Trópico de Capricórnio
231
a braguilha, idiota!», ordenou-me. Instantes depois voltámos para o piano - para Czerny e para os
exercícios de velocidade. Tá não era capaz de distinguir um sustenido de um bemol, mas continuei a
tocar, commedo de que ela contasse o incidente à minha mãe. Felizmente, não era coisa fácil de
dizer a uma
mãe.
O incidente, apesar de embaraçoso, assinalou uma mudança decidida nas nossas relações. Pensei
que na lição seguinte ela se mostraria severa comigo, mas, pelo contrário, pareceu ter-se
embonecado, vinha mais encharcada de perfume do que nunca e parecia até um bocado alegre, o
que era raro em Lola, que pertencia ao tipo melancólico e retraído. Não me voltei a atrever a
desabotoar a braguilha, mas arranjava uma erecção e aguentava-a até ao fim da lição - e ela devia
gostar, pois estava constantemente a lançar olhares disfarçados nessa direcção. Eu tinha apenas
quinze anos, nessa altura, e ela teria à vontade vinte e cinco ou vinte e oito. Era-me difícil saber o
que fazer, a não ser derrubá-la deliberadamente, num dia em que a minha mãe saísse. Durante
algum tempo, cheguei a segui-la, de noite, quando ela saía sozinha. Tinha o hábito de dar longos
passeios nocturnos solitários. E eu ia-lhe no encalço, esperançado em que chegasse a algum lugar
solitário, perto do cemitério, onde pudesse empregar certas tácticas violentas. Às vezes tinha a
impressão de que ela sabia que a seguia e isso lhe agradava. Creio que esperava lhe saísse ao
caminho, que era isso que queria. Uma noite, deitei-me na erva perto da via férrea; estava uma
sufocante noite de Verão e havia gente deitada por toda a parte, como cães ofegantes. Não pensava
de modo nenhum em Lola; estava apenas para ali espapaçado, pois o calor era tanto que não
permitia pensar em nada. De súbito, vi uma mulher aproximar-se pelo caminho estreito. Como
disse, estava estendido no aterro e não via ninguém nas imediações. A mulher aproximava-se
devagar e de cabeça baixa, como se sonhasse. Quando chegou junto de niim, reconheci-a. «Lola!»,
chamei. «Lola!» Pareceu sinceramente surpreendida por me ver ali. «Que fazes aqui?», perguntoume, ao mesmo tempo que se sentava a meu lado, no aterro. Não me dei ao trabalho de lhe
responder, não lhe disse uma palavra: limitei-me a amarinhar para cima dela e a obrigá-la a
estender-se. «Aqui não, por favor», pediu, mas
232
Henry Miller
não lhe prestei atenção. A mão que meti entre as suas pernas ficou toda emaranhada no denso
matagal. E encontrei-a encharcada como um cavalo a babar-se. Era a minha primeira foda e, Jesus,
tinha de passar um comboio e deitar para cima de nós uma chuva de faúlhas! Lola ficou
aterrorizada. Creio que também era a sua primeira foda e que provavelmente ainda estava mais
precisada dela do que eu, mas quando sentiu as faúlhas quis levantar-se. Foi como tentar aquietar
uma égua brava. Não consegui mante-la deitada, por muito que lutasse comela. Levantou-se,
sacudiu a roupa e ajeitou o carrapito na nuca. «Deves ir para casa», disse-me. «Não you para casa»,
respondi-lhe, ao mesmo tempo que lhe dava o braço e começava a andar. Caminhámos num silêncio
absoluto, durante um born bocado. Nenhum de nós parecia reparar para onde íamos. Por fim,
chegámos à estrada. Por cima de nós ficavam os reservatórios e perto deles havia uma lagoa.
Instintivamente, segui na direcção da lagoa. Tivemos de passar sob árvores de ramos baixos.
Ajudava Lola a baixar-se quando, de súbito, escorregou e me arrastou consigo. Não fez esforço
nenhum para se levantar; em vez disso, agarrou-me e apertou-se contra mim e, para meu completo
espanto, enfiou a mão na minha braguilha. Acariciou-me tão maravilhosamente que me vim na sua
mão, num abrir e fechar de olhos. Depois agarrou na minha mão e meteu-a entre as pernas. Deitouse para trás, completamente descontraída, e abriu bem as pernas. Inclinei-me e beijei-lhe todos os
pêlos da cona; passei-lhe a língua pelo umbigo e lambi-o, até ficar limpinho. Depois meti a cabeça
entre as suas pernas e lambi a baba que escorria dela. Gemia e agarrava-me desesperadamente; o
cabelo soltara-se-lhe por completo e cobria-lhe o abdome nu. Resumindo, enfiei-lho e aguentei
muito tempo, pelo que me deve ter ficado gratíssima, pois veio-se não sei quantas vezes - foi como
um punhado de estalinhos a estoirar, um após outro -, mordeu-me, esmagou-me os lábios, arranhoume, rasgou-me a camisa e sei lá que mais. Quando cheguei a casa e me vi ao espelho estava todo
marcado, como um vitelo.
Foi maravilhoso enquanto durou, mas não durou muito tempo. Passado um mês, os Niessens
mudaram-se para outra cidade e nunca mais voltei a ver Lola. Mas era como se tivesse o seu
matagal pendurado sobre a minha cama e rezava-lhe toTrópico de Capricórnio
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das as noites. E sempre que atacava a treta do Czerny ficava comuma tesão de pensar em Lola
deitada na relva, de pensar no seu comprido cabelo preto, no carrapito na nuca, nos gemidos que
soltava e no sumo que escorria dela. Para mim, tocar piano era apenas o substituto de uma longa
foda. Tive de esperar mais dois anos antes de voltar a enfiá-la, como se costuma dizer, e então as
coisas não correram muito bem, pois arranjei um lindo esquentamento - e, além disso, não foi na
relva nem no Verão e faltou-lhe calor, foi apenas uma fria foda mecânica a troco de um dólar, num
imundo quartinho de hotel, coma sacana a fingir que se vinha e a vir-se tanto como sei lá o quê. No
entanto, talvez não tenha sido ela que me pegou o esquentamento e, sim, a sua compincha do quarto
ao lado, que se deitou como meu amigo Simmons. As coisas passaram-se assim... Acabei tão
depressa a minha foda mecânica que pensei ir ver como as coisas corriam como meu amigo
Simmons. Imaginem, ainda não tinham acabado e estavam todos fogosos. A rapariga era checa e
um pouco pateta. Estava na vida havia pouco tempo, ao que parecia, e costumava esquecer-se e
gozar a coisa. Ao ver como se desempenhava do papel, decidi esperar e experimentá-la também. E
assim fiz. Antes de a semana acabar apareceu-me corrimento e seguiu-se o costume.
Passado um ano, eu próprio dava lições e, nem por sorte, a mãe da rapariga a quem ensinava era
uma relaxada e uma vagabunda como as que o são. Mais tarde descobri que vivia comum negro.
Parece que não conseguia encontrar uma picha suficientemente grande para a satisfazer. Enfim,
todas as vezes que me preparava para regressar a casa agarrava-me à porta e esfregava-se toda
contra mim. Tinha medo de começar qualquer coisa comela porque constava que tinha sífilis, mas
que diabo pode um gajo fazer quando uma cadela daquele género esfrega a cona contra ele e lhe
enfia a língua pela garganta abaixo? Comecei a fodê-la de pé, no vestíbulo, o que não tinha grande
dificuldade porque ela era leve e eu podia agarrá-la como uma boneca. Estava a agarrá-la assim
uma noite quando, subitamente, ouvi meter uma chave na fechadura. Ela também ouviu e ficou
transida de medo. Não havia Para onde ir. Felizmente a porta tinha um reposteiro e eu escondi-me
atrás dele. Logo a seguir ouvi o garanhão negro bei-
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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já-la e perguntar-lhe como tás, jóia, e ela responder-lhe que tinha estado à sua espera e que era
melhor irem já para o quarto, porque não podia esperar, e etc. e tal. Quando os degraus da escada
que levava ao quarto deixaram de gemer, abri devagarinho a porta e pirei-me. Jesus, apanhei um
cagaço dos grandes, pois se o garanhão negro descobrisse o que se passava abrir-me-ia as goelas,
disso podia ter a certeza. Deixei de lá ir dar lições, mas a filha da tipa, que tinha dezasseis anos,
desatou a perseguir-me, a pedir-me que lhe desse lições em casa de uma amiga. Recomeçámos os
exercícios Czerny, comfaúIhas e tudo. Foi a primeira vez que cheirei cona jovem e achei-a
maravilhosa, como feno acabado de cortar. Podíamos ao longo das lições, uma após outra, e nos
intervalos entre as lições iam umas fodazitas extra. Até que um dia se repetiu a velha e triste
história: estava grávida, que fazer? Tive de procurar um rapaz judeu para me safar, mas ele queria
vinte e cinco dólares pelo trabalho e eu nunca tinha visto vinte e cinco dólares na minha vida. Além
disso, ela era menor. Além disso, podia arranjar uma infecção. Dei ao gajo cinco dólares por conta e
cavei para os Adirondacks, durante umas semanas. Nos Adirondacks conheci uma professora
primária que estava mortinha por receber lições. Mais exercícios de velocidade, mais camisas-devénus e complicações. Todas as vezes que mexia num piano parecia pôr uma cona à solta.
Se havia uma festa, tinha de levar o caraças do rolo da música, o que para mim equivalia a enrolar o
pénis num lenço e metê-lo debaixo do braço. Em tempo de férias, numa casa de campo ou numa
estalagem, onde havia sempre um excesso de conas, a música produzia um efeito extraordinário. O
tempo de férias era um período por que ansiava durante todo o ano, menos por causa das conas do
que por significar que não havia trabalho. Uma vez liberto da canga, tornava-me um palhaço.
Sentia-me tão atestado de energia que me apetecia saltar para fora da pele. Lembro-me de conhecer
num Verão, nos Catskills, uma rapariga chamada Francie. Era bonita e lasciva, comrobustas tetas
escocesas e uma ofuscante fieira de dentes brancos e regulares. Começou no rio, onde nadávamos.
Estávamos agarrados ao barco e uma das suas mamocas saiu fora dos limites. Tirei-lhe também a
outra para fora e depois soltei-lhe as alças do fato de banho. Meteu-se recatadamente debaixo do barco e eu segui-a e, quando voltou à superfície para meter ar, puxei-lhe o maldito fato de
banho: ficou a flutuar como uma sereia, comar, fortes tetas a subir e a descer na corrente, como dois
bocados de cortiça saturados de água. Despi os calções e começámos a brincar como golfinhos sob
o costado do barco. Pouco depois, a amiga dela apareceu numa canoa. Era uma rapariga robusta,
uma loura cheia de sardas e comolhos cor de ágata. Ficou escandalizada ao ver-nos em pêlo, mas
não tardámos a arrancá-la da canoa e a despi-la também. E depois começámos os três a brincar ao
agarra debaixo de água, mas era difícil conseguir alguma coisa delas, pois escorregavam como
enguias. Quando nos fartámos, corremos para uma barraquinha que existia no campo e parecia uma
sentina abandonada. Levámos a roupa para nos vestirmos, os três, na barraquinha. O tempo estava
muitíssimo quente e abafado e estavam a acastelar-se nuvens de tempestade. Agnes - a amiga de
Francie - tinha pressa de se vestir. Começava a envergonhar-se de estar nua à nossa frente. Francie,
pelo contrário, parecia perfeitamente à vontade, sentada num banco, de pernas cruzadas, a fumar um
cigarro. No momento em que Agnes se preparava para enfiar a camisa, brilhou um relâmpago e,
logo a seguir, ribombou um trovão assustador. Agnes deu um grito e largou a camisa. Brilhou outro
relâmpago, passados segundos, e ribombou novo trovão, assustadoramente próximo. O ar à nossa
volta tornou-se azulado, as moscas começaram a picar e nós sentimo-nos nervosos, comcomichão e
um bocadinho assustados, também. Especialmente Agnes, que tinha medo dos relâmpagos e mais
ainda de ser encontrada morta ou de sermos encontrados os três todos nus. Só queria vestir-se e
correr para casa, afirmou, e no instante em que teve esse desabafo desatou a chover. A potes.
Pensámos que parana em poucos minutos e, por isso, sempre nus, parámos a olhar para o rio
fervilhante, através da porta entreaberta. Mas a chuva continuava, forte, e os relâmpagos brilhavam
incessantemente em nosso redor. Já estávamos todos assustadíssimos e sem saber que fazer. Agnes
torcia as mãos e rezava em YOZ alta; parecia um idiota de George Grosz, uma daquelas cabras
assimétricas comum rosário à volta do pescoço e, ainda por cima, icterícia. Pensei que ia desmaiar
para ali, ou coisa Parecida. De súbito, tive a brilhante ideia de dançar uma dança
236
Henry Miller
de guerra, à chuva, para as distrair. No momento em que saltei para fora da barraca, para iniciar o
saracoteio, uma faísca abriu uma árvore de alto a baixo, não muito longe dali. Fiquei tão assustado
que perdi a tramontana. Quando estou assustado, tenho o costume de rir, sempre. Por isso ri, soltei
urna gargalhada louca, de gelar o sangue, que fez as pequenas gritar. Não sei porquê, quando as
ouvi gritar pensei nos exercícios de velocidade, ao mesmo tempo que me senti de pé num vácuo,
comtudo azul à minha volta e a chuva a tamborilar, quente-e-fria, na minha carne delicada. Todas as
minhas sensações se reuniram à superfície da pele, sob a qual eu estava vazio e leve como uma
pena, mais leve do que o ar, ou o fumo, ou o talco, ou o magnésio, ou o raio que me partisse. De
súbito, senti-me um cbippewa, perdi a tramontana e estive-me nas tintas para o facto de as pequenas
gritarem, ou desmaiarem, ou cagarem nas cuecas - que aliás não tinham vestidas. Ao olhar para a
enlouquecida Agnes como rosário à volta do pescoço e a peida azul de medo, acudiu-me a ideia de
executar uma dança sacrílega, comuma das mãos a amparar os tomates e a outra a achatar o nariz
aos trovões e aos relâmpagos. A chuva era quente e fria e a erva parecia cheia de libélulas. Desatei
aos saltos como um canguru e a gritar comtoda a força dos meus pulmões: «Ó pai, tempestuoso
filho da puta, acaba comesses relâmpagos do caraças, senão a Agnes deixa de acreditar em ti! Estás
a ouvir, velho chalado? Deixa-te de parvoíces... estás a endoidecer a Agnes. És surdo ou quê, velho
pulha?» E, comum contínuo disparar de tolices, pus-me a dançar à volta da barraca, a saltar e a
pular como uma gazela e a empregar o palavreado mais sujo que me vinha à boca. Quando o
relâmpago brilhava, saltava ainda mais alto, e quanto o trovão ribombava, rugia como um leão,
rebolava-me pela erva como um cachorrinho, enchia a boca de erva e cuspia-a, batia no peito como
um gorila e, durante o tempo todo, via os exercícios de Czerny em cima do piano e a página branca
cheia de bemóis e sustenidos, e pensava: «Idiota do caraças, convencido de que é assim que se
aprende a manipular o clavicórdio!» De súbito, pensei que Czerny devia estar no céu e a ver-me
naquela figura, e por isso cuspi para cima o mais alto que pude, e quando o trovão soou de novo
gritei, comtoda a minha força: «Eh, Czerny, meu sacana que estás ai
Trópico de Capricórnio
237
em cima, que os relâmpagos te arranquem os tomates... que engulas a própria cauda torcida e que
ela te asfixie... Estás a ouvir-me, velho doido?»
Mas, apesar de todos os meus bons esforços, Agnes tornava-se cada vez mais delirante. Era uma
estúpida católica irlandesa e nunca ouvira falar a Deus daquela maneira. De súbito, enquanto eu
dançava atrás da barraca, desatou a correr para o rio. Ouvi Francis gritar: «Vai buscá-la, ela afogase! Vai buscá-la!» Corri atrás dela, coma chuva a fustigar-me desalmadamente, e gritei-lhe que
voltasse para trás. Mas ela corria às cegas, como se estivesse possessa do demónio, e ao chegar ao
rio meteu pela água dentro, direita ao barco. Nadei no seu encalço, e quando chegámos ao barco,
que receava se virasse, enlacei-a pela cintura, comum dos braços, e comecei a falar-Ihe calma e
apaziguadoramente, como se falasse comuma criança. «Larga-me!», gritou. «És um ateu!» Fiquei
aparvalhado ao ouvir aquilo. Era então por isso? Todo aquele histerismo era por eu estar a insultar
Deus Todo-Poderoso? Apeteceu-me dar-lhe um soco num olho, para a chamar à razão. Mas
estávamos fora de pé e eu receava que fizesse qualquer loucura - como virar o barco por cima das
nossas cabeças -, se não lidasse comela como devia ser. Por isso fingi-me arrependidíssimo e
afirmei que não sentira uma única palavra do que dissera, que falara assim por estar cheio de medo,
etc., por ali fora, e enquanto lhe ia falando docemente, apaziguadoramente, deixei escorregar a mão
que lhe segurava a cintura e afaguei-lhe devagarinho o eu. Era isso mesmo que ela queria. Começou
a falar atabalhoadamente acerca da boa católica que era, de como se esforçava para não pecar... e
talvez estivesse tão absorta no que dizia que não dava pelo que eu fazia, mas o certo é que quando
lhe meti a mão entre as pernas e comecei a dizer todas as coisas bonitas que me vinham à cabeça,
acerca de Deus, do amor, de ir à igreja, da confissão e de toda essa treta, o certo é que deve ter
sentido qualquer coisa, pois eu tinha nada menos de três dedos dentro dela e mexia-os bem. «Põe os
braços à volta do meu corpo, Agnes», pedi docemente, enquanto tirava a mão e a puxava para mim,
a fim de poder meter as pernas entre as dela... «Isso mesmo... Agora tem calma... não tarda a
acabar.» E, sempre a falar-lhe da igreja, do confessionário, de Deus, do amor e de todo o resto,
consegui
238
Henry Mille’,
enfiar-lho. «És muito born para mim», declarou, como se não soubesse que a minha picha estava
dentro dela. «Lamento ter procedido como uma idiota.» «Eu sei, Agnes, não tem importância...
Olha, agarra-me commais força... isso mesmo.» «Receio que o barco se vire», disse, esforçando-se
por manter o eu em posição e remando coma mão direita. «Sim, é melhor voltarmos para terra»,
concordei, e comecei a desengatar-me. «Oh, não me deixes!», gritou, apertando-me commais força.
«Não me deixes, morro afogada!» Nesse momento, Francie desatou a correr também para a água.
«Depressa», pediu Agnes. «Depressa... morro afogada.»
Devo dizer que Francie era boa rapariga. Não era católica, comcerteza, e se tinha alguma moral era
do género reptilário. Tratava-se de uma daquelas raparigas que nascem para foder. Não tinha
ambições nem grandes desejos, não evidenciava ciúme, não era de reservas, estava sempre alegre e
não era estúpida. À noite, quando nos sentávamos no alpendre às escuras a falar comos hóspedes,
sentava-se no meu colo, nua em pêlo debaixo do vestido, e eu enfiava-lho enquanto ela ria e falava
comos outros. Creio que se teria atrevido a fazê-lo diante do Papa, se tivesse oportunidade para isso.
Na cidade, quando ia visitá-la a casa, fazia exactamente a mesma coisa diante da mãe, cuja vista,
por sorte, começava a deixar muito a desejar. Se íamos dançar e começava a sentir-se demasiado
quente, arrastava-me para uma cabina telefónica e - estranha rapariga! - ligava efectivamente para
qualquer pessoa, como por exemplo para a Agnes, enquanto eu lhe ia. Parecia sentir um prazer
especial em fazer a coisa debaixo das ventas das pessoas; dizia que era mais divertido quando não
pensávamos demasiado no que estávamos a fazer. No metropolitano apinhado, ao regressarmos da
praia, por exemplo, virava a saia, de modo que a abertura ficasse à frente, pegava-me na mão e
punha-a na cona. Se o comboio estava mesmo apinhado e nós ficávamos entalados num canto, em
segurança, tirava-me a picha para fora e agarrava-a comas duas mãos, como se fosse um pássaro.
Às vezes armava em brincalhona e transformava-a em cabide da mala, como se quisesse provar que
não havia o mínimo perigo. Uma outra característica sua consistia em não fingir que eu era o único
tipo comquem andava. Não sei se me dizia tudo, mas dizia-me o bastante. Falava-me,
Trópico de Capricórnio
239
toda risonha, dos seus romances, enquanto me montava, ou quando eu lho enfiava, ou precisamente
quando estava quase a vir-me. Dizia-me como faziam, se eram grandes ou pequenos, o que diziam
quando se excitavam, etc., comtodos os pormenores possíveis, como se eu fosse escrever um
manual acerca do assunto. Dir-se-ia não haver nada sagrado no seu corpo, ou nos seus sentimentos,
ou fosse no que fosse que comele se relacionava. «Francie, fodidora do diabo, tens a moral de uma
amêijoa!», costumava dizer-lhe. «Mas tu gostas de mim, não gostas?», replicava-me. «Os homens
gostam de foder e algumas mulheres também. Não faz mal a ninguém e não é obrigatório amar
todas as pessoas comquem iodemos, pois não? Não queria por nada deste mundo estar apaixonada.
Deve ser terrível ter de foder sempre como mesmo homem, não achas? Se fedesses sempre comigo,
cansavas-te depressa de mim, não cansavas ? Às vezes é agradável ser fodida por alguém que nem
se conhece. Sim, acho até que é a melhor maneira», acrescentava. «Não há complicações, nem
números de telefone, nem cartas de amor, nem brigas... Uma vez, tentei levar o meu irmão a foderme. Sabes como ele é maricas, como chateia toda a gente... Já não me lembro exactamente como as
coisas se passaram, mas estávamos em casa sozinhos e eu sentia-me desejosa. Ele entrou no meu
quarto para me pedir qualquer coisa e eu estava deitada como vestido levantado, a pensar na coisa e
a desejá-la tremendamente, e quando ele entrou não quis saber para nada que fosse meu irmão, só
pensei nele como homem, e por isso deixei-me ficar coma saia levantada e disse-lhe que não me
sentia bem, que tinha uma grande dor de barriga. Quis sair logo, para me ir buscar qualquer coisa,
mas eu respondi-lhe que não, que me esfregasse um bocadinho a barriga, pois isso far-me-ia bem. E
obriguei-o a massajar a minha pele nua. O grande idiota crayou os olhos na parede e tentou
massajar-me como se eu fosse um bocado de madeira. ”Não é aí, grande parvo, é mais abaixo... De
que raio tens medo?”, disse-lhe e fingi que estava num grande sofrimento. Por fim, ele tocou-me
acidentalmente. ”E aí mesmo!”, gritei. ”Oh, massaja-me, sabe tão bem!”. Queres crer que o
grandíssimo idiota me massajou cinco minutos inteirinhos sem perceber que era tudo fita? Senti-me
tão exasperada comele que lhe disse que se fosse embora e me
240
Henry Miller
Trópico de Capricórnio
241
deixasse em paz. ”És um eunuco!”, gritei-lhe, mas ele era tão parvo que não devia saber o que a
palavra significava.» Riu-se, a pensar na idiotice do irmão, e disse que provavelmente ele ainda era
virgem. Mas que pensava eu, achava que fizera uma coisa muito má? Sabia, claro, que eu não
pensaria nada de semelhante. «Escuta, Francie, alguma vez contaste essa história ao chui comquem
andas embrulhada?» Pareceu-lhe que não. «A mim também me parece que não», observei. «Se ele a
ouvisse desancava-te.» «Uma vez deu-me um soco», declarou prontamente. «O quê? Consentes que
te bata?» «Não lho peço, claro, mas sabes como tem mau génio. Não deixo mais ninguém bater-me,
mas ele não me importo muito, não sei porquê. Às vezes faz-me sentir bem cá por dentro... Não sei,
talvez faça bem a uma mulher levar porrada de vez em quando... Não dói muito, se realmente
gostamos de um tipo. E ele depois mostra-se tão meigo... Quase tenho vergonha de mim própria...»
Não é frequente encontrarmos uma gaja que admita tais coisas - refiro-me a uma gaja autêntica e
não a uma idiota. Estou a lembrar-me de Trix Miranda, por exemplo, e da sua irmã, Mrs. Costello.
Que grande parelha formavam! Trix, que andava embrulhada como meu amigo MacGregor, tentava
convencer a própria irmã, comquem vivia, que não tinha relações sexuais nenhumas
comMacGregor. E a irmã dizia a toda a gente que era frígida, que não poderia ter relações comum
homem, mesmo que quisesse, por ser «por constituição demasiado pequena». E, entretanto, o meu
amigo MacGregor ia-as fodendo, às duas, e ambas sabiam uma da outra, mas continuavam a
enganar-se. Porquê? Nunca consegui perceber. A Costello era histérica; quando lhe parecia que não
estava a obter uma percentagem justa das fodas que MacGregor distribuía, tinha um pseudo-ataque
epiléptico. Isso significava que era preciso pôr-lhe toalhas molhadas na testa, dar-lhe palmadinhas
nos pulsos, desabotoar-lhe o vestido, esfregar-lhe as pernas e, finalmente, carregar comela para a
cama, no primeiro andar, onde o meu amigo a «tratava» assim que a outra adormecia. Às vezes, de
tarde, as duas irmãs deitavam-se juntas, para dormir a sesta, e se MacGregor lá estava deitava-se no
meio delas. Segundo me explicava, a rir, o truque consistia em fingir que adormecia. Respirava
profundamente e ora
abria um olho, ora o outro, para ver qual delas estava realmente a dormir. Assim que adquiria a
certeza de que uma adormecera, atirava-se à outra. Em tais ocasiões, parecia preferir a histérica,
Mrs. Costello, cujo marido a visitava mais ou menos uma vez de seis em seis meses. Quanto maior
era o risco, mais prazer lhe causava, dizia. Se fazia a coisa coma outra irmã, Trix, a quem
supostamente namorava, tinha de fingir que seria terrível se a outra os surpreendesse; ao mesmo
tempo, porém, confessava-me, estava sempre esperançado em que a outra acordasse e os apanhasse.
Mas a irmã casada, a de «constituição muito pequena», como ela costumava dizer, era manhosa e,
além disso, sentia-se culpada para coma irmã. Se esta a apanhasse em flagrante, fingiria que estava
a ter um ataque e não sabia o que fazia. Nada no mundo a levaria a admitir que estava realmente a
permitir-se o prazer de ser fodida por um homem.
Eu conhecia-a bem porque lhe dei lições durante algum tempo e fiz todos os possíveis para a
obrigar a admitir que tinha uma cona normal e gostaria de uma boa foda de vez em quando, se a
pudesse ter. Costumava contar-lhe histórias malucas, que na realidade eram relatos mal disfarçados
das suas próprias façanhas, mas mesmo assim mantinha-se obstinada, irredutível. Um dia - e isso
bate todos os recordes -, até consegui que me deixasse meter os dedos dentro dela. Pensei para
comigo que a coisa estava feita. É verdade que a achei seca e um bocado apertada, mas atribuí isso
à sua histeria. Imaginem conseguir ir tão longe comuma gaja e depois ouvi-la dizer-nos na cara,
puxando violentamente o vestido para baixo:
- Bem lhe disse que a minha constituição não era apropriada!
- Não notei semelhante coisa - repliquei, furioso. - Mas que espera que faça? Que use um
microscópio?
- Que lindas palavras! - exclamou, fingindo-se ofendida.
- Que maneira de me falar!
- Sabe muito bem que mente - prossegui. - Porque mente dessa maneira? Não acha que é humano
ter uma cona e usá-la, de vez em quando? Quer que ela murche?
- Que linguagem! - protestou, a morder o lábio inferior e corada como um tomate. - Sempre o
julguei um cavalheiro.
- Bem, você não é uma senhora, pois até uma senhora
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Henry Miller
admite que fode de vez em quando. Além disso, as senhoras não pedem aos cavalheiros que metam
os dedos por elas acima, para verem como são apertadas.
- Eu nunca lhe pedi que me tocasse! Jamais pensaria em pedir-lhe que me pusesse as mãos, pelo
menos nos meus órgãos íntimos.
- Talvez julgasse que lhe ia limpar o ouvido, não?
- Nessa ocasião pensei em você como se fosse um médico - redarguiu, toda empertigada, tentando
calar-me coma sua frieza.
- Escute - resolvi arriscar -, finjamos que foi tudo um erro, que não aconteceu nada, absolutamente
nada. Conheço-a demasiado bem para pensar em insultá-la dessa maneira. Jamais me passaria pela
cabeça fazer-lhe semelhante coisa, oh, não! Pensei apenas que talvez não tivesse razão no que dizia,
que talvez não fosse de constituição demasiado pequena. Aconteceu tudo tão depressa que não sei
realmente o que senti... Creio que nem meti o dedo dentro de si. Devo ter tocado apenas no exterior.
Olhe, sente-se aqui no sofá... voltemos a ser amigos.
Puxei-a para o meu lado - estava a degelar visivelmente - e enlacei-a pela cintura, como que para a
consolar mais ternamente.
Foi sempre assim? perguntei, inocente, e quase desatei a rir ao compreender a idiotice da pergunta.
Deixou pender a cabeça, timidamente, comse tocássemos numa daquelas tragédias não
mencionáveis. - Se se sentasse no meu colo, talvez... - E levantei-a docemente para o meu colo, ao
mesmo tempo que, comigual suavidade, lhe metia a mão debaixo do vestido e lha pousava ao de
leve no joelho. - Talvez se sentisse melhor se se sentasse um bocadinho assim... isso mesmo,
aninhe-se nos meus braços... Sente-se melhor?
Não respondeu, mas também não resistiu; aninhou-se, mole, e fechou os olhos. Pouco a pouco,
muito suave e lentamente, fui subindo a mão pela sua perna acima, sem deixar de lhe falar em voz
baixa e apaziguadora. Quando lhe cheguei às virilhas e abri os labiozinhos, estava tão molhada
como um pano da casa. Massajei-lha docemente, abrindo-a cada vez mais, e sempre coma conversa
de que as mulheres às vezes se enganavam a seu respeito, pensavam que eram muito pequeTropico de Capricórnio
243
nas e, na realidade, eram absolutamente normais, e quanto mais falava, tanto mais sumarenta se
tornava e tanto mais se abria. Já tinha quatro dedos dentro dela e ainda havia espaço para mais, se
mais tivesse para lá meter. Tinha uma cona enorme, e pelos vistos fora bem vasculhada. Olhei-a,
para ver se continuava comos olhos fechados. Tinha a boca aberta e ofegava, mas os olhos estavam
bem fechados, como se dissesse a si mesma que tudo aquilo era apenas um sonho. Agora já a podia
manejar sem delicadezas, pois não havia o perigo de que esboçasse o mínimo protesto. Talvez por
maldade, sacudi-a comrudeza desnecessária, para ver se acordava. Estava mole como uma almofada
de penas, e nem mesmo quando bateu coma cabeça no braço do sofá evidenciou qualquer irritação.
Era como se se tivesse anestesiado para uma foda gratuita. Despi-a toda e atirei a roupa para o chão,
e depois de a preparar um bocado no sofá tirei a picha de dentro dela e deitei-a no chão, em cima da
roupa. Enfiei-lha outra vez e ela agarrou-a bem, comaquela ventosa que sabia utilizar tão
habilmente, apesar do aspecto exterior de coma.
Parece-me estranho que a música degenerasse sempre em sexo. À noite, se saía sozinho para dar um
passeio, tinha a certeza de que arranjaria alguém - uma enfermeira, uma rapariga saída de um salão
de baile, uma caixeira, fosse o que fosse que usasse saia. Se saía como meu amigo MacGregor, no
seu carro só uma saltadinha até à praia, como ele dizia , cerca da meia-noite dava comigo numa sala
estranha qualquer, de qualquer bairro estranho, comuma rapariga no colo - e geralmente uma
rapariga para a qual me estava nas tintas, pois MacGregor ainda era menos exigente do que eu. Não
raro, ao entrar no automóvel, dizia-lhe: «Escuta, nada de gajas esta noite, hem?» E ele respondia:
«Jesus, não, estou farto... Só um passeiozinho a qualquer lado... talvez até Sheepshead Bay, que
dizes?» Ainda não tínhamos percorrido um quilómetro, porém, quando ele encostava ao passeio e
me acotovelava: «Olha-me para aquilo!», dizia, a apontar para uma rapariga que seguia o seu
caminho. «Jesus, que pernas!» Ou então: «E se a convidássemos a vir connosco? Que dizes, hem?
Talvez ela arranje uma amiga.» E, sem me dar tempo para abrir a boca, chamava a pequena e
pregava-lhe coma conversa do costume, que era a mesma para
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Henry Miller
todas. Nove vezes em cada dez, a rapariga aceitava. Um pouco adiante, enquanto a apalpava coma
mão livre, perguntava-lhe se não arranjava uma amiga para nos fazer companhia. E se ela
protestava, se não gostava de ser apalpada logo às primeiras, dizia-lhe: «Muito bem, então pira-te...
Não podemos perder tempo comtipas como tu!» E toca de afrouxar e de a empurrar para fora do
carro. «Não estamos para nos chatear comgajas como aquela, pois não, Henry?», perguntava-me, a
rir docemente. «Tem calma, prometo-te qualquer coisa de born antes de a noite acabar.» Se lhe
recordava que naquela noite combináramos que não haveria gajas, redarguia-me: «Está bem, como
queiras... Pretendia apenas tornar-te as coisas mais agradáveis.» E, de súbito, metia travões a fundo
e dizia a qualquer vulto idiota que emergia do escuro: «Olá, miúda! Que andas a fazer? A dar um
passeiozinho?» Talvez dessa vez fosse algo excitante, alguma cadelinha que não tinha mais nada
que fazer senão levantar a saia e oferecê-la. Talvez nem sequer precisássemos de lhe pagar uma
bebida, talvez bastasse parar o carro algures, numa transversal, e ala que se faz tarde, um depois do
outro, no automóvel. E se ela era uma patetinha, como tantas vezes acontecia, MacGregor nem
sequer se dava ao trabalho de a levar a casa: «Não vamos para esse lado», dizia o pulha. «E melhor
saíres aqui.» E vá de abrir a porta, e toca comela. Claro que o seu pensamento seguinte era se ela
não estaria contaminada. Isso ocupava-lhe o espírito durante todo o caminho de regresso. «Jesus,
devíamos ser mais cuidadosos! Nem sabemos em que os metemos, ao escolhê-las assim. Desde a
última - aquela que encontrámos na Drive, lembras-te? -, tenho andado comuma comichão do
caneco. Talvez seja apenas nervosismo... penso demasiado no risco. Por que raio não pode um gajo
contentar-se comuma cona, hem Henry? A Trix, por exemplo, é boa rapariga, como sabes, e eu até
gosto dela, de certa maneira, mas... merda, de que vale falar do assunto? Conheces-me... sou um
glutão. Estou a ficar de tal modo que às vezes saio para ir ao encontro de uma pequena, uma
rapariga que quero foder e comquem combinei tudo... mas you a guiar e, pelo canto do olho, vejo,
por exemplo, um belo pernao a atravessar a rua. Quando dou por mim, tenho-a no carro e a outra
que se lixe. Devo estar encenado... Que te parece? Não me digas», acrescentava muito depressa.
«Conheço-te, rneu
Trópico de Capricórnio
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ladrão, eras capaz de me dizer o pior.» E após uma pausa: «És uni tipo esquisito, sabes? Nunca te
vejo recusar nada, mas também não dás a impressão de estar sempre a pensar no mesmo. Às vezes
até me parece que te é indiferente, de uma maneira ou de outra. E és um pulha fiel... quase um
monogâmico. Palavra que não percebo como te podes aguentar tanto tempo comuma mulher. Não te
chateias comelas? Jesus, eu sei tão bem o que as gajas vão dizer!... Às vezes apetece-me dizer-lhes
apenas: ”Escuta, pequena, não digas uma palavra. Basta que o tires para fora e abras bem as
pernas.”» E ria-se, bem-disposto. «És capaz de imaginar a expressão da Trix se lhe dissesse uma
coisa destas? Palavra, uma vez estive mesmo quase, quase! Não tirei o chapéu nem o casaco. Eh,
pá, ficou fula! como casaco não se importou muito, mas o chapéu! Disse-lhe que tinha medo de
apanhar uma corrente de ar... A verdade é que estava tão impaciente por me pôr a andar que pensei
que me despacharia mais depressa se não tirasse o chapéu. Mas, em vez disso, passei a noite inteira
comela. Levantou tal escarcéu que me vi aflito para a acalmar... Mas isso não foi nada. Uma vez,
tive uma cabra irlandesa bêbeda, que tinha certas ideias esquisitas. Em primeiro lugar, nunca queria
a coisa na cama... era sempre em cima da mesa. De vez em quando, isso está muito bem, mas
sempre perde o interesse. Uma noite - creio que estava um bocadinho toldado -, disse-lhe: ”Não,
nada feito, minha grande bêbeda... Esta noite vais para a cama comigo. Quero uma foda a sério, na
cama.” Pois imagina que tive de discutir coma gaja quase uma hora, antes de a persuadir a ir para a
cama comigo, e mesmo assim tive de lhe prometer que não tiraria o chapéu! Estás a ver-me montar
aquela gaja de chapéu na cabeça? E ainda por cima em pelota! Sabes o que me respondeu quando
lhe perguntei porque não queria que tirasse o chapéu? Pois ouve lá esta: respondeu-me que parecia
mais fino! Estás a ver a mentalidade daquela gaja? Cheguei a detestar-me por andar coma grande
cabra. Claro que nunca a procurava sóbrio. Precisava de me atestar bem primeiro e de ficar meio
cego e chalado... tu sabes como às vezes fico...»
Sabia muito bem. Era um dos meus mais velhos amigos e um dos sacanas mais briguentos que
jamais conheci. Teimoso não era palavra que chegasse para o descrever. Era como uma mula, um
escocês obstinado e cabeçudo. E o velho dele ainda
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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lhe levava a palma. Quando os dois se irritavam, era um espectáculo. O velho costumava dançar,
dançar positivamente, de raiva. E se a velhota se metia, levava um soco num olho. Costumavam pôr
MacGregor fora de casa, comregularidade. E lá ia ele para a rua comtodas as suas coisas, incluindo
a mobília e o piano. Passado um mês, mais ou menos, voltava, porque em casa lhe davam sempre
crédito. Até que uma noite regressava bêbedo e comuma mulher que arranjara em qualquer lado, e
lá começava outra vez a fita. Parece que não se importavam muito que ele levasse para casa uma
rapariga e ficasse comela toda a noite; do que não gostavam era do seu descaramento, ao querer que
a mãe lhes servisse o pequeno- almoço na cama. Se a mãe tentava chamá-lo à razão, calava-a sempre comas mesmas palavras:
«Que pretende dizer-me? Ainda hoje não estaria casada se não tivesse engravidado.» A velha torcia
as mãos e lamentava-se: «Que filho! Que filho! Valha-me Deus, que fiz eu para merecer tal sorte?»
Ao que ele replicava: «Deixe-se disso! Não passa de uma velha ameixa seca!» De vez em quando, a
irmã aparecia e tentava deitar água na fervura: «Jesus, Wallie, não tenho nada como que fazes, mas
não podes falar à mãe mais respeitosamente?» Então MacGregor sentava a irmã na cama e tentava
convencê-la a servir-lhes o pequeno-almoço. Às vezes tinha de perguntar à companheira de cama
como se chamava, para a apresentar à irmã. «Não é má pequena», costumava dizer, referindo-se à
irmã. «É a única pessoa decente da família... Escuta, mana, traz-nos qualquer coisa que se coma,
sim? Um belo baconzinho comovos, hem, que dizes? O velho está em casa? Que tal a sua
disposição? Queria pedir-lhe dois dólares emprestados... Experimenta tu ver se lhos apanhas, sim?
Dou-te uma prenda bonita no Natal.» Depois, como se estivesse tudo resolvido, empurrava a roupa
para trás e mostrava a pêssega deitada a seu lado. «Olha para ela, mana, não é bonita? Repara-me
nestas pernas! Escuta, devias arranjar um homem... estás muito escanzelada. Aqui a Pat aposto que
não precisa de andar a pedinchá-lo, hem, Pat?» E, toca, uma valente palmada na garupa da Pat.
«Agora pira-te, mana. Quero café... é, não te esqueças, o bacon que venha estaladiço! Não mo
tragas como esse que já está aí velho em casa... arranja qualquer coisa especial. E depressinha!»
O que me agradava nele eram as suas fraquezas. Como qualquer homem que arma em valentaço,
era absolutamente frouxo por dentro. Não havia nada que não fizesse - por fraqueza. Estava sempre
muito atarefado, e na realidade nunca fazia nada. E andava sempre a estudar qualquer coisa, a tentar
aperfeiçoar os seus conhecimentos. Por exemplo, arrancava uma folha ao dicionário, todos os dias,
e lia-a religiosamente, à ida para o escritório e à vinda. Estava atestado de factos, e quanto mais
absurdos e incongruentes eles eram, tanto mais prazer lhe proporcionavam. Parecia apostado em
provar a toda a gente que a vida era uma farsa, que não valia a pena, que uma coisa anulava outra,
etc. Tinha sido criado no North Side, não muito longe do bairro onde passei a minha infância.
Produto autêntico do North Side, e essa era também uma das razões por que gostava dele. A
maneira como falava pelo canto da boca, o ar duro que assumia quando se dirigia a um polícia, as
cuspidelas de repugnância, os palavrões especiais que empregava, o sentimentalismo, o horizonte
limitado, a paixão pelo bilhar e pelos dados, as noites passadas em claro a contar histórias, o
desprezo pelos ricos, o torn tu cá, tu lá comque falava dos políticos, a curiosidade por coisas inúteis,
o respeito pelo saber, o fascínio pelo salão de baile, pela taberna e pelo teatro burlesco, a mania de
falar constantemente em ver o mundo e nunca sair da cidade, a idolatria fosse por quem fosse desde
que a pessoa em questão mostrasse «genica» - mil e uma pequenas características ou peculiaridades
deste género tornavam-mo querido, porque eram precisamente essas idiossincrasias que
caracterizavam os tipos que eu conhecera em miúdo. Segundo parecia, no bairro só havia falhados
simpáticos. Os adultos comportavam-se como crianças e as crianças eram incorrigíveis. Ninguém
podia subir muito acima do vizinho, se não queria ser linchado. Era até surpreendente que alguns
indivíduos conseguissem tornar-se médicos ou advogados. Mesmo assim, tipo que lograsse essa
proeza tinha de ser fixe, tinha de fingir que falava como todos os outros e tinha de votar nos
democratas. Ouvir MacGregor falar aos compinchas de Platão ou Nietzsche, por exemplo, era uma
coisa que nunca se esquecia. Em primeiro lugar, para conseguir permissão para falar de coisas como
Platão ou Nietzsche aos compinchas tinha de fingir que só por acaso descobrira os
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Henry Miller
seus nomes - ou talvez dissesse que, certa noite, conhecera um bêbedo interessante, na sala dos
fundos de uma taberna, e esse bêbedo começara a falar dos tipos, de Nietzsche e Platão. Fingia até
nem saber bem como os nomes se pronunciavam. Platão não era nada parvo, dizia em torn
apologético. Tinha uma ou duas ideias no toutiço, sim senhor, sissenhor. Gostaria de ver um dos
estúpidos políticos de Washington discutir comum gajo como Platão. E continuava, no mesmo torn
despretensioso e circunloquial, a explicar aos seus compinchas do jogo de dados que pássaro
esperto fora Platão no seu tempo, e como pedira meças a outros homens de outros tempos. Claro
que provavelmente tinha sido um eunuco, acrescentava, para deitar um pouco de água fria na
fervura da sua erudição. Naqueles tempos, explicava lesto, era frequente cortarem os tomates aos
gajos superiores, aos filósofos - era um facto! -, para os afastarem de todas as tentações. O outro
gajo, o tal Nietzsche, esse era chalado, estava mesmo a pedir manicómio. Dizia-se que estivera
apaixonado pela irmã. Era a modos que hipersensitivo. Tinha de viver num clima especial - supunha
que em Nice. Regra geral, não gostava muito dos Alemães, mas aquele gajo, o Nietzsche, era
diferente. Nietzsche até odiava os Alemães e alegava ser polaco ou coisa parecida. E topava-os
bem, isso é que topava. Dizia que eram estúpidos e cevados e, por deus, sabia do que estava a falar!
De qualquer maneira, desmascarara-os. Em resumo, dizia que estavam cheios de merda, e tinha
razão, não tinha? Tinham visto a maneira como os sacanas haviam dado a volta ao cavalo quando
tiveram de tomar uma dose do seu próprio remédio? «Conheço um tipo que limpou um ninho deles
na região de Argonne. Disse que estavam tão em baixo que não cagaria neles, nem tão-pouco
gastaria uma bala comeles! Limitou-se a meter-lhes a mona dentro comum cacete. Não me lembro
do nome do gajo, mas ele disse-me que viu muitos nos poucos meses que lá esteve. O que mais
gramou de todo o caraças daquela história, afirmou, foi mandar o seu próprio major desta para
melhor. Não tinha nada de especial contra ele, mas não gramava a sua fronha. Não gostava da
maneira como o gajo dava ordens. Muitos dos oficiais que morreram foram atingidos pelas costas,
segundo disse. E os empertigados não estavam a pedir outra coisa! É um rapaz do North Side e
creio
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que dirige agora uma casa de bilhar perto de Wallabout Market. Um tipo sossegado, que só se mete
na sua vida. Mas se começam a falar-lhe da guerra perde a tramontana. Diz que assassinaria o
presidente dos Estados Unidos se tentassem desencadear outra guerra. E seria homem para o fazer,
garanto-Ihes... Mas, merda, que queria eu dizer-lhes a respeito de Platão?... Ah, sim...»
Depois de os outros saírem, porém, engrenava noutra velocidade:
- Não achas bem que se fale assim, pois não? - perguntava, e eu tinha de admitir que não achava, de
facto. - Estás enganado. Temos de nos conservar de bem comas pessoas, nunca sabemos quando
podemos precisar de um destes tipos. Partes do princípio de que és livre, independente! Procedes
como se fosses superior a esta gente. É aí que cometes um grande erro. Como sabes o que serás
daqui a cinco anos, ou mesmo daqui a seis meses, apenas? Podes estar cego, podes ser atropelado
por um camião, podes ser metido no manicómio... Não sabes o que te vai acontecer. Ninguém sabe.
Podes estar tão indefeso como uma criança...
-E depois?
- Bem, não achas que será born teres um amigo quando precisares dele? Podes encontrar-te de tal
maneira que até precises que te ajudem a atravessar uma rua. Pensas que estes gajos são inúteis,
desprezíveis, e que desperdiço o meu tempo comeles. Nunca se sabe o que um homem poderá fazer
por nós, um dia. Ninguém chega a lado nenhum sozinho...
Melindrava-o a minha independência, aquilo a que chamava a minha indiferença. Se me via
obrigado a pedir-lhe umas massas, ficava encantado, pois isso proporcionava-lhe ensejo para me
pregar um sermão acerca da amizade: «Então também precisas de ter dinheiro?», perguntava,
comum grande sorriso de satisfação a alastrar-lhe pela cara toda. «Então o poeta também tem de
comer? Bem, bem... É uma sorte poderes recorrer a mim, Henry, meu rapaz, pois eu sou brando
contigo, conheço-te, meu filho da mãe sem coração. De quanto precisas? Não tenho muito, mas
reparto o que tenho contigo. É justo, não é? Ou achas, meu sacana, que te devo dar tudo quanto
tenho e ir pedir emprestado a outro para mim? Suponho que te está a apetecer uma boa refeição,
hem? Pré-
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Trópico de Capricórnio
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sunto comovos não seria suficientemente born, pois não? £ se calhar também gostavas que te
levasse de automóvel ao restaurante, hem? Olha, meu menino, levanta-te um bocadinho dessa
cadeira, para te meter uma almofada debaixo do eu. Sim senhor, estás falido! Jesus, falido estás tu
sempre. Não me’ lembro de te ter visto, nunca, comdinheiro na algibeira. Ouve cá, alguma vez
sentes vergonha de ti mesmo? Falas desses vadios comquem ando... Pois fica sabendo que esses
vadios nunca me vêm pedinchar dinheiro como tu. Têm mais orgulho do que tu, prefeririam roubálo a vir pedinchar-mo. Mas tu, merda, tu estás cheio de ideias bombásticas, tu queres modificar o
mundo e toda essa conversa... não queres trabalhar por dinheiro, oh, não, isso não é para ti! Mas
esperas que alguém to dê numa bandeja de prata. Felizmente há tipos como eu, que te
compreendem. Precisas de te compreender a ti mesmo, Henry. Andas a sonhar. Toda a gente precisa
de comer, ou não sabias? A maioria das pessoas está disposta a trabalhar para se sustentar, não fica
na cama todo o dia como tu, que de repente enfias as calças e corres a pedir auxílio ao primeiro
amigo que encontras. Supõe que não me encontravas. Que farias? Não respondas... sei o que vais
dizer. Mas, escuta, não podes continuar toda a tua vida assim. Claro que falas bem e é um prazer
ouvir-te. És o único tipo que conheço comquem gosto realmente de falar. Mas aonde te conduzirá
isso? Um destes dias filam-te por vadiagem. Sabes que não passas de um vadio, não sabes? Nem
sequer chegas aos calcanhares dos outros vadios contra os quais pregas. Onde estás quando eu estou
em apuros ? Ninguém te encontra. Não respondes às minhas cartas, não atendes o telefone, e às
vezes até te escondes quando te you visitar. Escuta, eu sei... não precisas de me explicar. Sei que
não estás interessado em ouvir as minhas histórias a toda a hora. Mas, merda, às vezes preciso
realmente de falar contigo. Tu bem te importas, porém. Desde que estejas protegido da chuva e a
meter outra refeição no papo, sentes-te feliz. Não pensas nos teus amigos, a não ser quando estás
desesperado. Isso não é maneira de um gajo proceder, pois não? Diz que não e dar-te-ei um dólar.
Chiça, Henry, és o único verdadeiro amigo que tenho, mas também és um grandíssimo interesseiro.
És um filho da puta de um não-presta-para-nada nato. Preferes morrer de fome a deitar a mão a
qualquer coisa útil.»»
l
Eu ria-me, naturalmente, e estendia a mão para o dólar prometido. Isso irritava-o de novo: «Estás
pronto a dizer seja o que for, não estás, desde que te dê o dólar que te prometi? Que gajo! E ainda
me vens comconversas de moral... Jesus, tens a moral de uma cascavel! Não, ainda não to you dar,
commil raios! Primeiro quero torturar-te mais um bocadinho, quero fazer comque ganhes este
dinheiro, se puder. Olha, e se me engraxasses os sapatos? Fazes-me isso? Nunca serão engraxados
se não os engraxares agora.» Pego nos sapatos e peco-lhe a escova. Não me importo absolutamente
nada de lhe engraxar os sapatos. Mas isso também parece enfurecê-lo: «Vais engraxá-los, não vais?
Isso é o máximo, Jesus! Onde está o teu orgulho? Não tens nenhum? E és tu o tipo que sabe tudo. É
espantoso! Sabes tanto que tens de engraxar os sapatos de um amigo para lhe apanhar uma refeição!
Toma, sacana, aqui tens a escova! E, já que estás coma mão na massa, engraxa também o outro
par!»
Uma pausa. MacGregor está a lavar-se e a cantarolar baixinho. De súbito, recomeça a falar, em torn
animado e alegre: «Como está o tempo lá fora, Henry? Está sol? Escuta, lembrei-me do lugar ideal
para ti. Que dizes a escalopes e bacon, comum pouco de molho tártaro? Trata-se de um
restaurantezinho que fica perto da baía. Um dia como o de hoje está mesmo a pedir escalopes e
bacon, hem, Henry? Não me digas que tens que fazer... Sabes que se te levar lá terás de passar um
bocado comigo, não sabes? Jesus, quem me dera ter o teu feitio! Limitas-te a seguir à deriva, de
minuto para minuto. Às vezes até penso que a levas muito melhor do que qualquer de nós, apesar de
seres um nojento filho da mãe, um traidor e um ladrão. Quando estou contigo, o dia parece passar
como um sonho. Não compreendes o que quero dizer quando declaro que tenho de te ver, uma vez
por outra? Se estiver sempre sozinho comigo próprio dou em chalado. Porque ando tanto à caça de
cona? Porque jogo às cartas toda a noite? Porque aturo aqueles vadios da Point? Porque há-de ser?
Porque preciso de falar comalguém.»
Um pouco mais tarde, na baía, sentado à beira-d’agua, comuma pinga de uísque no bucho e à espera
que os mariscos sejam servidos: «A vida não é assim tão má quando podemos fazer o que nos
apetece, pois não, Henry? Se conseguir ga-
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nhar umas massas farei uma viagem à volta do Mundo... e tu irás comigo. Sim, embora não o
mereças, ainda um dia gastarei dinheiro grosso contigo. Quero ver como procedes se te der bastante
corda. Dar-te-ei o dinheiro, compreendes? Não fingirei que to empresto. Veremos o que acontece às
tuas belas ideias quando tiveres alguma massa na algibeira. Escuta, outro dia, quando estive a falar
de Platão, queria perguntar-te uma coisa: queria perguntar-te se tinhas lido aquela sua história
acerca da Atlântida. Leste? Leste, hem? E que te parece? Pensas que se trata apenas de uma história
ou achas que pode ter existido, de facto, um lugar como esse?»
Não me atrevi a confiar-lhe as minhas suspeitas de que havia centenas ou talvez milhares de
continentes cuja existência passada ou futura ainda não nos passara sequer pela cabeça. Por isso
limitei-me a dizer-lhe ser muito possível que um lugar como a Atlântida tivesse existido, outrora.
«Bem, suponho que não tem muita importância, de uma maneira ou de outra, mas vou-te dizer o
que penso. Penso que, outrora, deve ter havido um tempo assim, um tempo em que os homens eram
diferentes. Não posso acreditar que tenham sido sempre os porcos que são agora, que têm sido nos
últimos milénios. Considero possível que tenha havido um tempo em que os homens sabiam viver,
em que sabiam fazer as coisas comcalma e gozar a vida. Sabes o que dá comigo em maluco? É
olhar para o meu velho. Desde que se reformou que passa o dia inteiro diante da lareira,
embasbacado. Foi para isso que mourejou durante toda a vida, para estar para ali sentado como um
gorila domesticado. Merda, se pensasse que me aconteceria a mesma coisa, um dia, estoiraria os
miolos, agora mesmo. Olha à tua volta... olha para as pessoas que conhecemos. Conheces alguma
que valha a pena? Para que é toda a fossanguice, gostaria de saber? Temos de viver, dizem. Porquê?
Também gostaria de saber. Estariam todos muito melhor mortos. Não passam de esterco. Quando a
guerra rebentou e os vi partir para as trincheiras, disse para comigo: Óptimo, talvez voltem comum
pouco mais de senso! Claro que muitos deles não voltaram, sequer. Mas os outros... Julgas que se
tornaram mais humanos, mais ponderados? De modo nenhum! No fundo, são todos carniceiros, e
quando as coisas correm para o torto guincham. Metem-me nojo, todos eles.
Vejo como são, ao pô-los em liberdade todos os dias. Vejo-o de ambos os lados da vedação, por
assim dizer. Do outro lado o pivete ainda é maior. Se te contasse algumas das coisas que sei acerca
dos juizes que condenam esses pobres diabos... Basta olhar-lhes para a cara. Sim, Henry, gostaria de
pensar que existiu um tempo em que as coisas foram diferentes. Ainda não vimos nada a que se
possa chamar vida verdadeira... nem veremos. Quanto a mim, isto vai durar mais uns milhares de
anos. Achas que sou mercenário. Pensas que sou chalado, por querer ganhar uma quantidade de
dinheiro, não pensas? Pois fica sabendo que quero ganhar umas massas para poder tirar os pés deste
lodaçal. Se conseguir libertar-me desta atmosfera, partirei e irei viver comuma negra. Tenho-me
esfalfado, tenho batido comeles numa laje para chegar onde cheguei... e não foi longe. Não acredito
mais no trabalho do que tu, mas fui educado de maneira diferente... Se conseguisse apanhar umas
massas boas a um dos imundos sacanas comquem lido, fá-lo-ia coma consciência absolutamente
tranquila. O meu mal é saber um bocadinho mais do que o necessário acerca de leis... Mas ainda os
intrujarei, vais ver! E quando o fizer será em grande escala...»
Mais uma golada de uísque, enquanto servem os mariscos, e recomeça: «Falei a sério quando disse
que te levaria numa viagem comigo. Estou a pensar seriamente no assunto. Responder-me-ás,
suponho, que tens mulher e filha a sustentar... A propósito, quando é que te livras da tua megera?
Não sabes que tens de a largar?» Começa a rir suavemente. «Ah, ah! Quando penso que fui eu que a
escolhi para ti! Achas que me passou pela cabeça que serias suficientemente parvo para te atrelares
a ela? Pensei apenas que te estava a recomendar uma bela lasca e tu, pobre idiota, casaste comela!
Ah, ah! Escuta-me, Henry, enquanto ainda te resta algum juízo: não consintas que essa gata
assanhada te destrua a vida, ouviste? Não me importa o que faças nem para onde vás. Custar-me-ia
ver-te sair da cidade... digo-te francamente que sentiria a tua falta, mas, Jesus, mesmo que tenhas de
ir para a África, pira-te, solta-te das suas garras, ela não presta para ti. Às vezes, quando arranjo
uma gaja cheia de linha, digo para comigo: aqui está uma coisa que seria agradável para o Henry...
Decido apresentar-ta e tudo o mais, mas depois esqueço-me, claro. No
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Henry Miller
entanto, Jesus, há milhares de gajas no Mundo comas quais te poderias entender bem. Pensar que
tinhas de escolher urna cabra miserável como aquela... Queres mais bacon? Come agora o que te
apetecer, pois mais tarde não haverá massa bem sabes. Outro copo, hem? Escuta, se hoje tentares
fugir dê mini, juro-te que nunca mais te emprestarei nem um cêntimo... Mas que estava eu a dizer?
Ah, sim, falava da cabra miserável comquem casaste. Vais deixá-la ou não? Sempre que te vejo
dizes que te vais pirar, mas nunca o fazes. Não pensas que a estás a manter, pois não? Ela não
precisa de ti, idiota, ainda não percebeste isso? Só quer torturar-te. Quanto à miúda... Merda, se
estivesse no teu lugar, afogava-a. Parece indecente, bem sei, mas sabes muito bem o que quero
dizer. Não és um pai. Para ser franco, não sei que diabo és... mas sei que és um tipo demasiado born
para desperdiçares a tua vida por causa delas. Porque não tentas fazer qualquer coisa de ti próprio?
Ainda és novo e tens boa aparência. Parte para qualquer lado, para longe, e recomeça tudo de novo.
Se precisares de um dinheirito, eu arranjá-lo-ei. Será como deitá-lo por um esgoto abaixo, bem sei,
mas mesmo assim estou disposto a isso. A verdade, Henry, é que gosto a valer de ti. Tenho-te
tolerado mais do que toleraria fosse a quem fosse. Creio que ternos muito em comum, por
provirmos do velho bairro... Imagina, não te ter conhecido nesse tempo! Merda, estou a tornar-me
sentimental...»
O dia foi passando assim, commuitos comes e bebes, sol quente, carro para nos passear, charutos
nos intervalos, umas sonecazitas na praia, ver passar as gajas, conversar, rir, cantar um bocadinho,
também... enfim, foi um dos muitos, muitos dias semelhantes que passei como MacGregor. Dias
assim pareciam fazer realmente a roda parar. Superficialmente, eram agradáveis, alegres, como
tempo a passar como um sonho doce. Mas, no fundo, havia neles algo de fatalista, de premonitório,
faziam comque no dia seguinte andasse melancólico e desassossegado. Sabia muito bem que, um
dia, teria de acabar comaquilo tudo, sabia muito bem que estava a desperdiçar o meu tempo. Mas
também sabia que não podia fazer nada por enquanto. Primeiro teria de acontecer qualquer coisa
grande, algo que me deixasse fora de mim. Só precisava de um empurrão, mas tinha a certeza de
que esse empurrão, o ernTróptco de Capricórnio
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purrão certo, só me poderia ser dado por uma força exterior ao meu mundo. Não podia sofrer,
atormentar-me, porque isso não estava na minha maneira de ser. Toda a minha vida as coisas têm
acabado por correr bem - no fim. Não estava previsto que me esforçasse. Tem de se deixar algo ao
cuidado da Providência - no meu caso, esse algo era muito, era praticamente tudo. Apesar de todas
as manifestações externas de pouca sorte ou de má orientação, sabia que nascera, como se costuma
dizer, em berço de ouro. E comuma coroa dupla. A situação externa era má, admito: mas o que me
preocupava mais era a situação interna. Tinha deveras medo de mim próprio, do meu apetite, da
minha curiosidade, da minha flexibilidade, da minha permeabilidade, da minha maleabilidade, da
minha jovialidade e da minha capacidade de adaptação. Nenhuma situação me assustava, em si
mesma: via-me sempre a aguentar firme, protegido, como se estivesse sentado no interior de um
ranúnculo a sorver o mel. Tinha o pressentimento de que mesmo que me metessem na cadeia,
apreciaria a experiência. Creio que tal se devia ao facto de saber como não oferecer resistência. As
outras pessoas esgotavam-se a puxar, a empurrar, a resistir; a minha estratégia era vogar coma maré.
O que as pessoas me faziam incomodava-me praticamente tanto como o que faziam aos outros ou a
elas próprias. Na realidade, estava tão desligado de tudo, interiormente, que tinha de me prender
comos problemas do Mundo. E era por isso que andava sempre em apuros. Não estava, por assim
dizer, sincronizado como meu próprio destino e tentava viver o destino do Mundo. Se, por exemplo,
chegava a casa, à noite, e não havia comida nenhuma, nem mesmo para a miúda, dava logo a volta e
ia procurá-la. Mas o que notava em mim, e que me intrigava, era que, mal me encontrava na rua à
procura de paparoca, voltava ao Weltanschauung. Não pensava em comida para nós,
exclusivamente, pensava na comida em geral, na comida em todas as suas fases e em toda a parte do
Mundo àquela hora, em como se obtinha e se preparava, no que as pessoas faziam se não a tinham e
na possibilidade de haver uma maneira de resolver o problema de modo que toda a gente a tivesse
quando dela necessitasse, sem se perder mais tempo comum problema tão idiotamente estúpido.
Claro que tinha pena da mulher e da miúda, mas também tinha pena dos
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Henry Miller
hotentotes e dos aborígenes australianos, para não falar dos belgas, dos turcos e dos arménios que
passavam fome. Lamentava a espécie humana, a estupidez do homem e a sua falta de imaginação.
Passar sem uma refeição não era uma coisa assim tão terrível; o que me perturbava profundamente
era o espectral vazio da rua. Todas as malditas casas, tão iguais e todas comum ar tão vazio e tão
triste. Boas pedras de calçada no passeio, debaixo dos pés, asfalto no meio da rua e degraus de
arenito bela-e-horrendamente elegantes para subir - e, no entanto, um tipo podia levar o dia e a noite
inteira a calcorrear esse material dispendioso em busca de uma côdea de pão. Era isso que me
impressionava. A incongruência. Se ao menos se pudesse andar comuma campainha e gritar: «Ouvi,
ouvi! Sou um tipo comfome. Quem precisa dos sapatos engraxados?» Se fosse possível ir para o
meio da rua e expor as coisas comtoda esta clareza! Mas não, não ousávamos abrir a boca. Se
disséssemos a um tipo, na rua, que tínhamos fome, acagaçá-lo-íamos de tal maneira que desataria a
fugir. Nunca compreendi isso. E ainda não compreendo. É tudo tão simples! Bastaria dizermos
«sim» quando um indivíduo nos procurasse comfome. Ou, se não pudéssemos dizer «sim», levá-lo
pelo braço a outro tipo, para o ajudar. Porque temos de vestir um uniforme e matar homens que não
conhecemos, só para conseguir a tal côdea de pão, é um mistério para mim. E nisso que penso, é
mais nisso do que em quem pagará e quanto custará. Porque me havia de ralar como que qualquer
coisa custa? Estou aqui para viver, e não para calcular. E é precisamente isso que os sacanas não
querem que façamos: não querem que vivamos! Querem que passemos toda a vida a somar
números. Isso faz sentido, para eles. Isso é razoável. Isso é inteligente. Se fosse eu que governasse o
barco, talvez as coisas não estivessem tão ordenadas, mas seriam comcerteza mais alegres, coma
breca! Não teríamos de nos cagar nas calças por causa de bagatelas. Talvez não houvesse estradas
macadamizadas, nem automóveis aerodinâmicos, nem altifalantes, nem milhares de milhões de
variedades de engenhocas; talvez não houvesse sequer um vidro nas janelas; talvez tivéssemos de
dormir no chão; talvez não houvesse cozinha francesa, nem cozinha italiana, nem cozinha chinesa;
talvez as pessoas se matassem umas às outras quan-
l
Trópico de Capricórnio
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do a paciência se lhes esgotasse, e talvez ninguém as detivesse porque não haveria cadeias, nem
polícias, nem juizes, e não haveria comcerteza nem ministros de gabinete nem legislaturas, porque
não haveria nenhum raio de nenhuma lei a que obedecer ou desobedecer; talvez fossem precisos
meses ou até anos para ir de um lado para outro - talvez não houvesse nenhuma dessas coisas e tudo
isso fosse assim, mas também não precisaríamos, nem de visto, nem de passaporte, nem de carte
d’identite, porque não estaríamos registados em lado nenhum, e não teríamos nenhum número, e se
quiséssemos mudar de nome todas as semanas poderíamos mudar, pois não faria diferença
nenhuma, uma vez que não possuiríamos nada a não ser o que pudéssemos trazer connosco, e para
que diabo precisaríamos de possuir alguma coisa se tudo fosse grátis?
Durante esse período em que andei à deriva de porta em porta, de emprego em emprego, de amigo
em amigo e de refeição em refeição, tentei, apesar de tudo, isolar um pouco de espaço só para mim,
um pouco de espaço que pudesse ser um ancoradouro - ou melhor, uma bóia de salvação no meio de
uma corrente veloz. Para chegar a uma milha de mim tinha de se ouvir tocar um imenso e doloroso
sino. Ninguém via o ancoradouro, que estava profundamente enterrado no leito do canal. Viam-me
subir e descer à superfície, suavemente embalado ou agitadamente empurrado para a frente ou para
trás. O que me prendia bem era a enorme secretária de cacifos que pusera no meio da sala. Essa
secretária estivera na alfaiataria do meu velho nos últimos cinquenta anos, dera à luz muitas contas
e muitos gemidos e albergara muitas estranhas recordações nos seus cacifos. Por fim, conseguira
apanhá-la ao velho, quando ele estava doente, e agora encontrava-se no meio da lúgubre sala do
segundo andar de uma respeitável casa de arenito, no centro do mais respeitável bairro de Brooklyn.
Tivera de travar dura batalha para lá a instalar, mas insistira em que teria de ficar mesmo ali, mesmo
no meio da barraca. Fora como pôr um mastodonte no centro do consultório de um dentista. Mas
como a patroa não tinha amigas que a visitassem, e como os meus amigos se estariam nas tintas
mesmo que eu a suspendesse do candeeiro, mantive-a na sala e pus à sua volta, a formar um grande
círculo, todas as cadeiras que
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Henry Miller
tínhamos a mais. Sentava-me confortavelmente, punha os pés em cima da secretária e sonhava
como que escreveria se fosse capaz de escrever. Tinha um escarrador ao lado da secretária um
grande escarrador de latão da mesma proveniência, e de vez em quando cuspia-lhe para dentro, para
me lembrar que ele estava ali. Os cacifos estavam todos vazios e as gavetas estavam todas vazias;
não havia nada dentro nem em cima da secretária, a não ser uma folha de papel em que me era
impossível desenhar nem que fosse uma vírgula.
Quando penso nos esforços titânicos que fiz para canalizar a lava quente que fervilhava dentro de
mim, nos esforços que repeti milhares de vezes para colocar o funil no lugar devido e captar uma
palavra, uma frase, quando penso nisso, penso inevitavelmente nos homens do Paleolítico. Cem mil,
duzentos mil, trezentos mil anos para chegar à ideia do paleolítico. Uma luta ilusória, pois eles não
sonhavam sequer como Paleolítico. Surgiu sem esforço, nasceu de um segundo, pode-se dizer que
foi um milagre - ou poderia, se tudo quanto acontece não fosse miraculoso. As coisas acontecem ou
não acontecem, mais nada. Nada se alcança pelo suor e pelo esforço. Quase tudo aquilo a que
chamamos vida é apenas insónia, uma agonia, porque perdemos o hábito de adormecer. Não
sabemos parar. Somos como aquele boneco das caixas de surpresas, empoleirados no alto de uma
mola: quanto mais nos debatemos, mais difícil se nos torna voltar para dentro da
caixa.
Creio que, se fosse doido, não teria tido melhor ideia para consolidar o meu ancoradouro do que a
de instalar aquele objecto de Neanderthal no meio da sala. comos pés em cima da secretária,
apanhando a corrente e coma coluna espinal bem apoiada numa grossa almofada de couro, estava
numa relação ideal comos destroços que redemoinhavam à minha volta e que os meus amigos, por
serem doidos e fazerem parte
do fluxo, tentavam convencer-me de que eram vida. Lembroi j j -me perfeitamente do primeiro contacto coma realidade,
estabelecido por assim dizer através dos pés. O milhão de palavras - mais ou menos - que escrevera,
bem ordenadas e bem relacionadas entre si, não significavam nada para mim eram cifras toscas do
Paleolítico - porque o contacto se fizera através da cabeça, e a cabeça é um apêndice útil, sem
dúvida,
Trópico de Capricórnio
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mas só quando não estamos ancorados no meio da corrente, bem enterrados no lodo. Tudo quanto
escrevera antes era material de museu - e muito do que se escreve ainda é material de museu, e é
por isso que não pega fogo, que não inflama o Mundo. Eu era apenas um porta-voz da espécie
ancestral que falava através de mim; nem sequer os meus sonhos eram autênticos, eram sonhos
bona fide de Henry Miller. Estar quieto e pensar um pensamento que provinha de mim, da bóia de
salvação, era tarefa hercúlea. Não me faltavam pensamentos, nem palavras, nem capacidade de
expressão; faltava-me algo muito mais importante: a alavanca que fecharia a torrente. A maldita
máquina não parava; aí é que estava a dificuldade. Não me encontrava apenas no meio da corrente:
esta corria através de mim e eu não conseguia exercer o mínimo controlo sobre ela.
Lembro-me do dia em que parei totalmente a máquina e de como o outro mecanismo, o que estava
assinado comas minhas iniciais e que fizera comas minhas próprias mãos e como meu próprio
sangue, começou lentamente a funcionar. Tinha ido a um teatro próximo ver um espectáculo de
vaudeville; era uma matiné e eu tinha bilhete para o balcão. Quando me encontrava entre a
multidão, no átrio, já experimentava uma estranha sensação de consistência. Era como se estivesse a
coagular, a tornar-me uma massa de geleia consistente e reconhecível. Era como a última fase da
cicatrização de uma ferida. Encontrava-me no apogeu da normalidade, o que é um estado muito
anormal. Podia vir a cólera e soprar-me o seu bafo imundo para a boca que não teria importância.
Podia inclinar-me e beijar as úlceras de um leproso que nenhum mal me aconteceria. Não se tratava
de existir apenas um equilíbrio na guerra constante entre a saúde e a doença, que é o que a maioria
das pessoas deseja alcançar; havia no meu sangue como que uma vantagem, algo graças ao qual,
pelo menos durante alguns momentos, a doença estava completamente desbaratada, vencida. Se
uma pessoa tivesse a sensatez de se enraizar em tais momentos, nunca mais adoeceria ou seria
infeliz, nunca mais morreria, sequer. Mas chegar a esta conclusão seria dar um salto que nos levaria
ainda mais para trás do que a o Paleolítico. Naquele momento, nem sequer me passou pela cabeça
criar raízes; pela primeira vez na vida tinha
260
Henry Miller
Trópico de Capricórnio
261
percepção do significado do miraculoso. Fiquei tão maravilhado quando ouvi as minhas próprias
engrenagens a funcionar que de boa vontade teria morrido ali mesmo, pelo privilégio da
experiência.
O que aconteceu foi o seguinte: quando passei pelo porteiro como bilhete na mão, as luzes
diminuíram e o pano subiu. Estaquei um momento, ligeiramente entontecido pela súbita escuridão.
Enquanto o pano subia lentamente, tive a sensação de que, ao longo dos séculos, o homem fora
sempre misteriosamente imobilizado por aquele breve momento que precede o espectáculo. Senti o
pano subir no homem. E compreendi imediatamente, também, ser aquilo um símbolo que estava a
ser infindavelmente apresentado ao homem, no sono, e que, se ele estivesse acordado, os actores
jamais teriam subido ao palco e ele, Homem, é que teria pisado as tábuas. Não pensei, digamos, este
pensamento, tratou-se, como disse, de cornpreender, de uma compreensão tão simples e tão
avassaladoramente clara que a máquina parou de repente e eu fiquei parado na minha própria
presença, banhado por uma realidade luminosa. Desviei os olhos do palco e olhei para a escada de
mármores que teria de subir para chegar ao meu lugar, no balcão. Vi um homem subi-la devagar, a
agarrar o corrimão. Esse homem podia ser eu próprio, o antigo eu que andara a dormir em pé desde
que nascera. Os meus olhos não abarcaram a escada toda e, sim, apenas, os poucos degraus que o
homem subira ou estava a subir no momento em que compreendi tudo. O homem nunca chegou ao
cimo da escada e a sua mão nunca deixou o corrimão de mármore. Senti o pano descer e durante
mais alguns momentos estive atrás dos cenários, a mover-me entre bastidores, como o aderecista
que acorda subitamente e não sabe ao certo se continua a sonhar ou se assiste a um sonho que está a
ser representado no palco. Era tão fresco e verde, tão estranhamente novo como as terras de pão e
queijo que as donzelas de Biddenden viram todos os dias da sua longa vida, unidas pelos quadris.
Vi apenas o que estava vivo! O resto esbateu-se numa penumbra. E foi para manter o Mundo vivo
que corri para casa sem esperar pelo espectáculo e me sentei a descrever a pequena zona de escada
imperecível.
Mais ou menos nessa altura, os dadaístas estavam no apogeu e em breve se lhes seguiriam os
surrealistas. Só uns dez anos mais tarde é que ouvi falar de qualquer dos grupos; nunca li um livro
francês e nunca tive uma ideia francesa. Fui talvez o único dadaísta da América e não o soube. Era
como se vivesse na selva amazónica, tão pouco contacto tinha como mundo exterior. Ninguém
compreendia acerca de que escrevia eu, nem porque escrevia assim. Estava tão lúcido que diziam
que estava maluco. Descrevia o Novo Mundo - infelizmente um pouco cedo de mais, porque ainda
não fora descoberto e não era possível convencer ninguém de que ele existia. Era um mundo
ovariano, ainda escondido nas trompas de Falópio. Naturalmente, nada estava ainda formulado
claramente: apenas uma ténue sugestão de coluna vertebral; não se viam, comcerteza, braços ou
pernas, nem cabelo, nem unhas, nem dentes. O sexo seria a última coisa em que se pensaria; era o
mundo de Crono e da sua progénie ovicular. Era o mundo do iota e em que cada iota era
indispensável, assustadoramente lógico e absolutamente invaticinável. Uma coisa era coisa que não
havia, porque o conceito «coisa» faltava.
Disse que descrevia um Novo Mundo, mas, como o Novo Mundo descoberto por Colombo,
revelou-se um mundo muito mais velho do que qualquer dos que temos conhecido. Via sob a
fisionomia de pele e osso o mundo indestrutível que o homem tem trazido sempre dentro dele; na
realidade, não era velho nem novo: era o mundo eternamente verdadeiro que muda de momento a
momento. Tudo quanto olhava era palimpsesto e não havia camada de escrita, por muito estranha
que fosse, que não decifrasse. Quando os meus amigos me deixavam, à noite, sentava-me muitas
vezes a escrever aos meus outros amigos, os aborígenes australianos, ou os construtores de montes
do vale do Mississipi, ou os igorrotes das Filipinas. Tinha de lhes escrever em inglês, naturalmente,
pois era a única língua que sabia, mas entre a minha linguagem e o código telegráfico empregado
pelos meus amigos íntimos havia um mundo de diferença. Qualquer homem primitivo me teria
compreendido, qualquer homem de épocas arcaicas me teria compreendido; só os que me cercavam,
isto é, um continente comcem milhões de pessoas, não compreendiam a minha linguagem. Para
escrever inteligivelmente para eles teria
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
263
sido obrigado, primeiro, a matar qualquer coisa e, segundo, a parar o tempo. E eu acabava de
compreender que a vida é indestrutível e que tempo é coisa que não existe; existe apenas o presente.
Esperariam que negasse uma verdade que levara toda a minha vida para vislumbrar? Esperavam,
comcerteza. Uma coisa que não queriam ouvir dizer era que a vida é in-’ destrutível. O seu precioso
novo mundo não fora edificado’: sobre a destruição dos inocentes, na violentação e no saque, na
tortura e na devastação? Ambos os continentes tinham/ sido violados: ambos os continentes tinham
sido despojados e i saqueados de tudo quanto era precioso - em coisas. Quanto a \ mini, nenhum
homem sofreu maior humilhação do que Mon- ’ tezuma; nenhuma raça foi mais implacavelmente
dizimada do que a do índio americano; nenhuma terra foi jamais violentada do modo indecente e
sanguinário como a Califórnia foi violentada pelos que procuravam ouro. Coro ao pensar nas nossas
origens; as nossas mãos estão mergulhadas em sangue e crime. E não há pausa para a carnificina
nem para a pilhagem, ’ como descobri em primeiro lugar ao viajar a toda a largura e a < todo o
comprimento da Terra. Todo o homem, até o amigo / mais íntimo, é um assassino em potência.
Muitas vezes, não * foi necessário empunhar a arma, ou o laço, ou o ferro de marcar; encontraram
maneiras mais subtis e diabólicas de torturar H e matar os seus próprios semelhantes. Para mini, a
agonia mais excruciante era ver a palavra aniquilada antes mesmo de me sair da boca. A amarga
experiência ensinou-me a ter tento na língua; aprendi a permanecer silencioso, e até a sorrir, quando
na realidade espumava de raiva. Aprendi a apertar a mão e a dizer como está a todos os demónios
de ar inocente que só esperavam que me sentasse para me sugarem o sangue. Como era possível
usar esta linguagem cifrada de violentação e assassínio quando me sentava na sala, à minha
secretária pré-histórica? Estava sozinho nesse grande hemisfério da violência, mas não o estava no
que à espécie humana respeitava. Estava só num mundo de coisas iluminadas por clarões
fosforescentes de crueldade. Delirava comuma energia que só podia ser libertada ao serviço da
morte e da inutilidade. Não podia começar comuma declaração directa clara; isso teria significado o
colete-de-forças ou a cadeira eléctrica. Era como um homem que estivera demasiado tempo
encarcerado numa
masmorra: tinha de tactear o caminho lentamente, hesitantemente, não fosse tropeçar e passaremme por cima. Tinha de me habituar gradualmente aos inconvenientes que a liberdade implica. Tinha
de deixar formar-se uma nova epiderme, que me protegesse da luz abrasadora que brilhava no céu.
O mundo ovariano é o produto de um ritmo de vida. No momento em que uma criança nasce, passa
a fazer parte de um mundo em que existe, não só o ritmo da vida, mas também o ritmo da morte. O
desejo frenético de viver, de viver custe o que custar, não é consequência do ritmo da vida e, sim,
do ritmo da morte. Além de não haver necessidade nenhuma de permanecer vivo a todo o preço, a
vida, se indesejável, está absolutamente errada. Este manter-se vivo devido a uma ânsia cega de
derrotar a morte é, em si mesmo, um meio de semear a morte. Todo aquele que não aceitou
totalmente a vida, que não incrementa a vida, ajuda a encher o Mundo de morte. Fazer o mais
simples dos gestos coma mão pode exprimir o máximo sentido de vida: uma palavra dita comtodo o
ser pode dar vida. A actividade em si mesma não significa nada e é muitas vezes um sinal de morte.
Por simples pressão externa, pela força do ambiente e do exemplo, pelo próprio clima que a
actividade engendra, uma pessoa pode tornar-se parte de uma monstruosa máquina de morte - como
a América, por exemplo. Que sabe um dínamo de vida, de paz, de realidade? Que sabe um dínamo
individual americano da sabedoria e da energia, da vida abundante e eterna possuída por um
mendigo esfarrapado sentado debaixo de uma árvore no acto de meditar? O que é energia? O que é
vida} Basta-nos ler as estúpidas patacoadas dos manuais científicos e filosóficos para
compreendermos quão menos que nada é a sabedoria desses enérgicos americanos. Ouçam, eles
puseram-me em fuga, esses loucos demónios do cavalo a vapor! Para quebrar o seu ritmo insano, o
seu ritmo de morte, tive de recorrer a um comprimento de onda que, até encontrar a subsistência
adequada nas minhas próprias entranhas, anulasse pelo menos o ritmo por eles estabelecido.
Certamente que não precisava daquela grotesca, incómoda e antediluviana secretária que instalara
na sala; certamente que não precisava de doze cadeiras vazias colocadas à sua volta, em
semicírculo; precisava apenas de espaço para escrever e de uma décima terceira cadeira que me
levasse para
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Henry Miller
fora do zodíaco que utilizavam e me colocasse num céu para além do céu. Mas quando se dá
comum homem quase em maluco e quando, talvez para sua própria surpresa, ele descobre que ainda
tem alguma resistência, algumas capacidades, então é natural que esse homem actue muito
semelhantemente a um ser primitivo. Tal homem é capaz de se tornar, não só teimoso e obstinado,
mas também supersticioso, de acreditar em magia e de praticar magia. Tal homem está para além da
religião; é da sua religiosidade que padece. Tal homem torna-se um monomaníaco, empenhado em
fazer uma única coisa, coisa essa que é destruir o encantamento mau que sobre ele foi lançado. Tal
homem está para além de lançar bombas, para além da revolta; quer deixar de reagir, quer
inertemente, quer ferozmente. Esse homem entre todos os homens da Terra quer que o acto seja
uma manifestação de vida. Se, ao tomar consciência da sua terrível necessidade, começa a agir
regressivamente, a tornar-se associai, a gaguejar, a mostrar-se tão absolutamente inadaptado que
nem é capaz de ganhar a vida, se tal acontecer, fiquem sabendo que esse homem encontrou o
caminho de regresso ao útero e fonte de vida e que amanhã, em vez do desprezível objecto de
ridículo que fizeram dele, se demarcará como homem por seu próprio direito e todos os poderes do
Mundo serão inúteis contra ele.
Da tosca cifra comque, da sua pré-história secretária, comunica comos homens arcaicos do Mundo,
emerge, constrói-se uma nova linguagem que abre caminho através da linguagem da morte em
vigor, do mesmo modo que a telegrafia sem fios abre caminho através da tempestade. Não há magia
nesse comprimento de onda, assim como não há magia no útero. Os homens estão sós e sem
comunicar uns comos outros porque todos os seus inventos falam apenas de morte. A morte é o
autómato que rege o mundo da actividade. A morte é silenciosa, porque não tem boca. A morte
nunca exprimiu nada. A morte também é maravilhosa depois da vida. Só alguém como eu, que
abriu a boca e falou, só alguém que disse sim, sim, sim, e outra vez sim, pode abrir bem os braços à
morte e não sentir medo. Morte como recompensa, sim! Morte como resultado de realização, sim!
Morte como coroa e escudo, sim! Mas não morte vinda das raízes, isolando os homens, tornando-os
azedos, medrosos e solitários,
Trópico de Capricórnio
265
dando-lhes energia infrutuosa, enchendo-os de uma vontade que só pode dizer não! A primeira
palavra que qualquer homem escreve quando se encontra, quando encontra o seu próprio ritmo, que
é o ritmo da vida, essa palavra é «sim!». Tudo quanto escreve a partir desse momento é «sim»,
«sim», «sim» - «sim» de mil milhões de maneiras. Nenhum dínamo, por muito imenso que seja nem mesmo um dínamo de cem milhões de almas mortas -, pode combater um homem que diz
«sim!».
Havia guerra e os homens estavam a ser chacinados, um milhão, dois milhões, cinco milhões, dez
milhões, vinte milhões, finalmente cem milhões, depois mil milhões, toda a gente, homens,
mulheres e crianças, até ao último dos últimos. «Não!», gritavam. «Não! Eles não passarão!» E, no
entanto, toda a gente passava, toda a gente obtinha um passe quer gritasse «sim!», quer «não!». No
meio dessa triunfante demonstração de osmose espiritualmente destrutiva, eu estava sentado, comos
pés em cima da enorme secretária, a tentar comunicar comZeus, pai da Atlântida, e toda a sua
progénie desaparecida, ignorando o facto de que Apollinaire morreria na véspera do Armistício num
hospital militar, ignorando o facto de que, na sua «nova escrita», traçara estes versos indeléveis:
Sede indulgentes quando nos comparardes comos que foram a perfeição da ordem. Nós que em
toda a parte buscamos aventura, Nós não somos vossos inimigos. Dar-vos-íamos vastos e estranhos
domínios Onde o mistério em flor aguarda aquele que o
[colher.
Ignorando que, nesse mesmo poema, ele também escrevera:
Compadecei-vos de nós que lutamos sempre nas
{fronteiras Do ilimitado futuro,
Compadecei-vos dos nossos erros, compadecei-vos
[dos nossos pecados.
266
Henry Miller
Ignorava o facto de que viviam então homens que davam pelos estranhos nomes de Blaise Cendrars,
Jacques Vaché, Louis Aragon, Tristan Tzara, René Crevel, Henri de Montherlant, André Breton,
Max Ernst e Georges Grosz; ignorando o facto de que, em 14 de Julho de 1916, no Saal Waag de
Zurique, fora proclamado o primeiro Manifesto Dada «Manifesto de Monsieur Antipyrine» - e que
nesse estranho documento se declarava: «Dada é vida sem chinelos nem paralelo (...) necessidade
forte sem disciplina nem moralidade e nós cuspimos na humanidade.» Ignorando o facto de que o
Manifesto Dada de 1918 continha as seguintes linhas: «Estou a escrever um manifesto e não quero
nada, no entanto digo certas coisas e sou contra manifestos por uma questão de princípio, assim
como sou contra os princípios. (...) Escrevo este manifesto para demonstrar que uma pessoa pode
executar acções opostas conjuntamente, numa única respiração; sou contra a acção, não sou nem
pró nem contra e não explico porque detesto o born senso. (...) Há uma literatura que não alcança a
massa voraz. Trabalho de criadores, emanado de uma necessidade real da parte do autor, e para ele
próprio. Consciência de um egotismo supremo onde as estrelas definham. (...) Cada página deve
explodir, quer como profundamente sério e pesado, o rodopio, a vertigem, o novo, o eterno, o
embuste irresistível ou um entusiasmo por princípios, quer como método tipográfico. De um lado,
um mundo que passa cambaleante, noivo do toque de sinos da escala infernal; do outro: novos
seres...»
Trinta e dois anos depois, continuo a dizer «sim!». Sim, Monsieur Antipyrine! Sim, Monsieur
Tristan Bustanoby Tzara! Sim, Monsieur Max Ernst Geburt! Sim! Monsieur Rene Crevel, agora que
morreu por suicídio, sim, o mundo é louco, tinha razão. Sim, Monsieur Blaise Cendrars, teve razão
em matar. Foi no dia do Armistício que pôs à venda o seu livnnhoj’ai tué} Sim, «continuem, meus
rapazes, a humanidade...». Sim, Jacques Vaché, tinha toda a razão: «A arte deve ser algo divertido e
um nadinha maçador.» Sim, meu caro Vaché morto, como tinha razão e como é divertido, e
maçador, e comovente, e terno, e verdadeiro: «Faz parte da essência dos símbolos ser diabólico.»
Repita-o, repita-o do outro mundo. Tem aí em cima um megafone? Encontrou todos os braços e
Trópico de Capricórnio
267
todas as pernas que foram pelos ares durante a mêlée? Pode refazê-los? Lembra-se do encontro de
1916, em Nantes, comAndré Breton? Celebraram juntos o nascimento da histeria? Breton disse-lhe
que havia só o maravilhoso e nada mais do que o maravilhoso e que o maravilhoso é sempre
maravilhoso e não é maravilhoso ouvi-lo outra vez, mesmo que os seus ouvidos estejam obstruídos?
Quero incluir aqui, antes de passar adiante, um pequeno retrato seu feito por Emile Bouvier, para
benefício dos meus amigos de Brooklyn que podem não me ter reconhecido então, mas que me
reconhecerão agora, tenho a certeza...
«... não era completamente louco e podia explicar a sua conduta quando a ocasião o exigia. As suas
acções, apesar disso, eram tão desconcertantes como as piores excentricidades de Jarry. Por
exemplo, mal saíra do hospital empregou-se como estivador e, desde então, passou as suas tardes a
descarregar carvão nos cais ao longo do Loire. À noite, porém, fazia a ronda dos cafés e cinemas,
vestido à última moda e comfatos muito variados. Mais, em tempo de guerra aparecia algumas
vezes todo emproado num uniforme de tenente de hussardos, outras no de oficial inglês, de aviador
ou de cirurgião. Na vida civil, era igualmente livre e despreocupado, não lhe causando a mínima
perturbação apresentar Breton como André Salmon, ao mesmo tempo que assumia para si próprio,
mas sem vaidade absolutamente nenhuma, os mais maravilhosos títulos e aventuras. Nunca dizia
bons dias, nem boas noites, nem adeus, e nunca ligava importância a cartas, a não ser às da mãe,
quando precisava de lhe pedir dinheiro. Deixava de reconhecer os melhores amigos de um dia para
o outro...»
Reconhecem-me, rapazes? Apenas um rapaz de Brooklyn a comunicar comos albinos ruivos da
região Zuni. A preparar-me, comos pés em cima da secretária, para escrever «obras fortes, obras
para sempre incompreensíveis», como os meus camaradas mortos prometiam. Essas «obras
fortes»... reconhecê-las-iam, se as vissem? Sabem que, dos dois milhões que foram mortos, nem
uma morte foi necessária para produzir «a obra forte»? Seres novos, sim! Ainda temos necessidade
de seres novos. Podemos passar sem o telefone, sem o automóvel, sem os bombardeiros de grande
classe; mas não
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Henry Miller
podemos passar sem seres novos. Se a Atlântida foi submersa pelo mar e se a Esfinge e as
pirâmides continuam a ser um mistério eterno, é porque não estavam a nascer mais seres novos.
Parem a máquina um momento! Flashback! Flashback para 1914, para o Kaiser montado no seu
cavalo. Imobilizem-no assim um momento, como braço mirrado a agarrar a rédea. Olhem para o seu
bigode! Olhem para o seu ar altivo de orgulho e arrogância! Olhem para a sua carne de canhão
formada na mais rigorosa disciplina, pronta para obedecer à sua voz, para ser abatida a tiro, para ser
esventrada, para ser queimada em cal viva. Aguentem agora um momento e olhem para o outro
lado: os defensores da nossa grande e gloriosa civilização, os homens que guerrearão para acabar
coma guerra. Troquem-lhes a roupa, troquem-lhes os uniformes, troquem-lhes os cavalos, troquem
as bandeiras, troquem o terreno. Meu Deus, é o Kaiser que vejo num cavalo branco? São aqueles os
terríveis Hunos? E onde está a Grande Berta? Ah, estou a ver!... Julguei que apontasse para a NotreDame... Humanidade, meus rapazes, a humanidade sempre a marchar na vanguarda... E as obras
fortes de que estávamos a falar? Onde estão as obras fortes? Liguem para a Western Union e
mandem um mensageiro - não um aleijado ou um octogenário, mas sim um jovem! Pecam-lhe que
encontre a grande obra e a traga. Precisamos dela. Temos um museu novinho em folha à espera de a
acolher - e celofane, e o sistema decimal Dewey para a arquivar. Precisamos apenas do nome do
autor. Mas, mesmo que não tenha nome, mesmo que seja uma obra anónima, não faz mal. Mesmo
que tenha um pouco de gás de mostarda, não nos importamos. Tragam-na morta ou viva: há uma
recompensa de vinte e cinco mil dólares para o homem que a trouxer.
E se lhes disserem que essas coisas tinham de acontecer, que não podia ter sido de outra maneira,
que a França fez o melhor possível, e a Alemanha fez o melhor possível, e a pequena Libéria e o
pequeno Equador e todos os outros aliados também fizeram o melhor possível, e que, depois da
guerra, toda a gente tem feito o melhor possível para compor as coisas ou para esquecer, se lhes
disserem isso respondam que esse melhor possível não é suficientemente born, que não queremos
ouvir falar mais dessa lógica de «fazer o melhor possiTropico de Capricórnio
269
vel», digam-lhes que não queremos o melhor de um mau negócio, que não acreditamos em
negócios, bons ou maus, nem em monumentos em memória dos mortos na guerra. Não queremos
ouvir falar da lógica dos acontecimentos, nem em qualquer espécie de lógica. «Je ne parle pás
logique», disse Montherlant, «je parle générosité.». Não creio que tenham ouvido muito bem, pois
foi dito em francês; por isso repito-o para vocês, na própria língua da rainha: «Não falo lógica, falo
generosidade.» É gramaticalmente mau, mas é claro. Generosidade, ouviram? Nunca a praticam,
nenhum de vocês, quer na paz, quer na guerra. Não sabem o significado da palavra. Pensam que
fornecer armas e munições ao lado que está a vencer é generosidade; pensam que mandar para a
frente enfermeiras da Cruz Vermelha ou o Exército de Salvação é generosidade. Pensam que um
bónus dado comvinte anos de atraso é generosidade; pensam que uma pensãozinha e uma cadeira de
rodas é generosidade; pensam que devolverem a um homem o seu antigo emprego é generosidade.
Não sabem o que o caraças da palavra significa, seus pulhas! Ser generoso é dizer «sim» antes de o
homem abrir sequer a boca. Para dizer «sim» é preciso ser primeiro um surrealista ou um dadaísta,
porque, sendo-o, compreende-se o que significa dizer «não». Podem até dizer «sim» e «não» ao
mesmo tempo, desde que façam mais do que é esperado de vocês. Sejam um estivador de dia e um
Beau Brummel de noite. Usem qualquer uniforme, desde que não seja o vosso. Quando escreverem
à vossa mãe, pecam-lhe que vomite umas massas, para terem um trapo limpo a que limpar o eu.
Não se perturbem se virem o vizinho correr atrás da mulher comuma faca: provavelmente ele tem
boas razões para correr atrás dela, e se a matar podem ter a certeza de que teve a satisfação de saber
porque o fez. Se estão a tentar aperfeiçoar a mente, deixem-se disso! Não é possível aperfeiçoar a
mente. Olhem para o coração e para as tripas: o cérebro está no coração.
Ah, sim, se então tivesse sabido que esses gajos existiam Cendrars, Vaché, Grosz, Ernst,
Apollinaire -, se tivesse sabido isso, se tivesse sabido que, à sua maneira, pensavam exactamente as
mesmas coisas que eu pensava, creio que teria explodido. Sim, creio que teria estoirado como uma
bomba. Mas ignorava. Ignorava o facto de que, quase cinquenta anos antes,
270
Henry Miller
um judeu doido da América do Sul parira frases tão maravilhosamente surpreendentes como
«dúvida é pato comlábios de vermute» ou «Vi um figo comer um onagro»; ignorava que, mais ou
menos ao mesmo tempo, um francês, apenas um rapaz ainda, dizia: «Encontrem flores que sejam
cadeiras»... «a minha fome são os bocados de ar preto»... «o coração dele âmbar e coragem».
Talvez ao mesmo tempo, ou mais ou menos, em que Jarry dizia «comendo o som de traças», e
Apollinaire repetia após ele «quase um cavalheiro engolindo-se a si mesmo», e Breton murmurava
docemente «pedais da noite movem-se ininterruptamente», talvez «no ar belo e preto» que o judeu
solitário encontrara sob o Cruzeiro do Sul, outro homem, também solitário e exilado e de origem
espanhola, se preparasse para confiar ao papel as seguintes palavras memoráveis: «Procuro, de
modo geral, consolar-me do meu exílio, do meu exílio da eternidade, daquele desterro a que gosto
de me referir como o meu descéusamento. (...) Presentemente, penso que a melhor maneira de
escrever este romance é dizer como deveria ser escrito. É o romance do romance, a criação da
criação. Ou Deus de Deus, Deus de Deo.» Se eu soubesse que ele ia acrescentar o que se segue,
teria comcerteza rebentado como uma bomba: «Por ser louco entende-se perder a razão. A razão,
mas não a verdade, pois há homens loucos que dizem verdades enquanto outros se mantêm
silenciosos...» Ao falar destas coisas, ao falar da guerra e dos mortos da guerra, não posso deixar de
mencionar que uns vinte anos depois oh, milagre dos milagres! se me deparou o seguinte, em
francês, escrito por um francês: «Ilfaut le dire, U y a dês cadavres que je ne respecte qu’à moitié.»
Sim, sim e outra vez sim! Oh, deixem-nos fazer qualquer coisa arrojada, pelo simples prazer de a
fazermos! Deixem-nos fazer qualquer coisa viva e magnificente, mesmo que destrutiva! Disse o
sapateiro louco: «Todas as coisas são geradas a partir do grande mistério e prosseguem de um grau
para outro grau. Seja o que for que avance no seu grau, não recebe nenhuma abominação.» Em toda
a parte e em todos os tempos o mesmo mundo ovariano anunciando-se. No entanto, também,
paralelamente a esses anúncios, a essas profecias, a esses manifestos ginecológicos, paralelos a eles
e contemporâneos deles, novos tótemes, novos tabus, novas danças de guerra. Enquanto os
Trópico de Capricórnio
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irmãos do homem, os poetas, os escavadores do futuro, cuspiam no ar tão preto e tão belo as suas
linhas mágicas, ao mesmo tempo - oh, profunda e intrigante charada! - outros homens diziam:
«Queira fazer o favor de se apresentar e aceitar um emprego na nossa fábrica de munições.
Prometemos-lhe o salário mais elevado e as condições mais sanitárias e higiénicas. O trabalho é tão
fácil que até uma criança o poderia fazer.» E se o convidado tivesse uma irmã, uma mulher, uma
mãe ou uma tia, desde que soubesse utilizar as mãos e provasse não ter maus hábitos, convidavamno a levá-la também para a fábrica de munições. E se ao convidado repugnasse sujar as mãos,
explicar-lhe-iam muito delicada e inteligentemente como esses delicados mecanismos operavam, o
que faziam quando explodiam, porque não se devia desperdiçar sequer o lixo porque... et ipso facto
e pluribus unum. O que mais me impressionava, ao correr em busca de trabalho, não era tanto o
facto de me fazerem vomitar todos os dias (presumindo que eu tivera a sorte de meter qualquer
coisa nas tripas), mas sim o empenho que mostravam sempre em saber se tínhamos bons hábitos, se
éramos fixes, se éramos sóbrios, se éramos diligentes, se já trabalháramos antes e se não porquê...
Até o lixo, que fora encarregado de recolher para a municipalidade, era precioso para eles, para os
matadores. Enterrado no esterco até aos joelhos, o mais baixo dos baixos, um coolie, um pária,
mesmo assim eu fazia parte do negócio da morte. Tentei ler o Inferno, à noite, mas estava escrito
em inglês, e o inglês não é língua para uma obra católica. «O que quer que entre em si mesmo, no
seu ser, isto é, no seu próprio lubet...» Lubet! Se eu tivesse tido então uma palavra assim, uma
palavra assim para me servir de esconjuro, comque paz e tranquilidade me teria entregado ao meu
trabalho de recolha de lixo! Como seria doce, na noite, quando Dante está fora do alcance e as mãos
cheiram a esterco e a lodo, como seria doce tomar em si mesmo esta palavra que em holandês
significa «luxúria» e em latim «lubitum» ou o divino beneplacitum\ Metido no lixo até aos joelhos,
disse um dia o que consta ter Meister Eckhart dito há muito tempo: «Tenho realmente necessidade
de Deus, mas Deus também tem necessidade de mim.» Esperava-me um emprego no matadouro,
um agradável empregozinho de escolher entranhas, mas não consegui arranjar dinheiro para
272
Henry Miller
os transportes até Chicago. Permaneci em Brooklyn, no meu próprio palácio de entranhas, e girei à
roda e à roda do plinto do labirinto. Fiquei em casa à procura da «vesícula germinal» do «castelo do
dragão no fundo do mar», do «Sagrado Coração», do «campo da polegada quadrada», da «casa do
pé quadrado», do «beco escuro», do «espaço do Céu primitivo». Fiquei fechado, prisioneiro de
Forculus, deus da porta, de Cardea, deus do gonzo, e de Limentius, deus do limiar. Falava apenas
comas suas irmãs, as três deusas chamadas Medo, Palidez e Febre. Não vi nenhum «luxo asiático»
como Santo Agostinho - ou pelo menos como ele imaginou ver. Tão-pouco vi «nascer os dois
gémeos, tão seguidos que o segundo agarrava o primeiro pelo calcanhar». Mas vi uma rua chamada
Myrtle Avenue, que vai de Borough Hall à Fresh Pond Road, e por essa rua jamais santo algum
caminhou (ou ela ter-se-ia desfeito), jamais passou algum milagre, ou algum poeta, ou alguma
espécie de génio humano; e tão-pouco lá nasceu jamais flor alguma, ou o Sol a banhou totalmente,
ou a chuva a layou. Em lugar do Inferno genuíno que tive de adiar durante vinte anos, dou-lhes
Myrtle Avenue, uma das inúmeras sendas de cavaleiros, percorridas por monstros de ferro, que
levavam ao coração do vazio da América. Se viram apenas Essen, ou Manchester, ou Chicago, ou
Levallois-Perret, ou Glásgua, ou Hoboken, ou Canarsie, ou Bayonne, se viram só isso não viram
nada do magnífico vazio do progresso e do esclarecimento. Querido leitor, deve ver a Myrtle
Avenue antes de morrer, quanto mais não seja para avaliar quão longe Dante viu no futuro. Tem de
me acreditar, nem nesta rua, nem nas casas que a ladeiam, nem nas pedras que a pavimentam, nem
em qualquer criatura que tenha um nome e nela viva, nem em qualquer animal, ave ou insecto que a
percorra a caminho do matadouro ou vindo já do matadouro, tem de me acreditar que em nenhuma
dessas coisas há esperança de «lubet», de «sublimar» ou de «abominar». É uma rua, não de
sofrimento, pois o sofrimento seria humano e reconhecível, mas sim de puro vazio: é mais vazia do
que o mais extinto dos vulcões, mais vazia do que o vácuo, mais vazia do que a palavra «Deus» na
boca de um incréu.
Disse que, então, não sabia uma palavra de francês, e é verdade; mas estava na iminência de fazer
uma grande descoberta,
Trópico de Capricórnio
273
uma descoberta que compensaria o vazio da Myrtle Avenue e de todo o continente americano.
Estava quase chegado à costa desse grande oceano francês que dá pelo nome de Elie Faure, um
oceano que os próprios Franceses mal navegaram e tomaram erradamente, segundo parece, por um
mar interior. Ao lê-lo, mesmo numa língua tão decadente como o inglês se tornara, compreendi que
esse homem, que descrevera a glória da espécie humana no seu punho, era o Pai Zeus da Atlântida
de quem eu andara à procura. Chamei-lhe um oceano, mas ele era também uma sinfonia mundial.
Foi o primeiro músico que os Franceses tiveram; era exaltado e controlado, uma anomalia, um
Beethoven gaulês, um grande médico da alma, um gigantesco pára-raios. Era também um girassol a
girar como Sol, sempre sôfrego de luz, sempre radiante e ofuscante de vitalidade. Como não se
pode dizer que o oceano é benéfico ou maléfico, também não se pode dizer que fosse optimista ou
pessimista. Era um crente na espécie humana. Acrescentou um cúbito à espécie ao devolver-lhe a
sua dignidade, a sua força e a sua necessidade de criação. Via tudo como criação, como alegria
solar. Não registava as coisas ordenadamente e, sim, musicalmente. Era-lhe indiferente o facto de os
Franceses terem ouvido duro, pois orquestrava para todo o mundo simultaneamente. Qual não foi,
por consequência, o meu espanto quando, ao chegar a França alguns anos mais tarde, verifiquei não
haver monumentos a ele erigidos nem ruas como seu nome. Pior ainda: durante oito anos inteirinhos
não ouvi nenhum francês mencionar o seu nome. Teve de morrer para ser colocado no panteão das
divindades francesas - e como os seus deíficos contemporâneos devem ter parecido apagados,
doentios, na presença de tão radiante sol! Sabe-se lá o que lhe poderia ter acontecido se não fosse
médico e, portanto, capaz de ganhar a vida! Talvez tivesse sido mais uns braços para carregar os
camiões do lixo! O homem que deu vida aos frescos egípcios em todas as suas flamantes cores, esse
homem podia ter morrido de fome perante a indiferença total do público. Mas ele era um oceano,
um oceano em que os críticos se afundaram. E os editores e o público também. Serão precisas
eternidades para ele secar, para se evaporar. Mais ou menos tanto tempo quanto será preciso para os
Franceses adquirirem um ouvido musical.
274
Henry Miller
Trópico de Capricórnio
275
Se não houvesse música eu teria ido parar ao manicómio, como Nijinski. (Foi mais ou menos nessa
altura que descobriram que Nijinski era doido. Tinham-no encontrado a dar o seu dinheiro aos
pobres, o que é sempre um mau sinal!) A minha mente estava cheia de tesouros maravilhosos, o
meu gosto era apurado e exigente, os meus músculos estavam em excelente forma, o meu apetite
era grande e o meu fôlego born. Não podia fazer outra coisa senão aperfeiçoar-me, e ia
endoidecendo comos aperfeiçoamentos que fazia todos os dias. Mesmo que houvesse um emprego
para mim, não o podia aceitar, pois do que precisava não era de trabalho e, sim, de uma vida mais
abundante. Não podia desperdiçar tempo a ser professor, advogado, médico, político ou qualquer
das outras coisas que a sociedade tinha para oferecer. Era mais fácil aceitar tarefas inferiores, pois
deixavam-me o espírito livre. Lembro-me de que, depois de ser despedido dos camiões do lixo,
trabalhei para um evangelista que parecia ter grande confiança em mim. Eu era uma espécie de
recepcionista, cobrador e secretário particular. Ele trouxe ao meu conhecimento todo o mundo da
filosofia indiana. À noite, quando estava livre, reunia-me comos meus amigos em casa de Ed
Bauries, que vivia num bairro aristocrático de Brooklyn. Ed Bauries era um pianista excêntrico
incapaz de ler uma nota. Tinha um amigo íntimo chamado George Neumiller, comquem tocava
muitas vezes duetos. Dos doze - mais ou menos - que nos reuníamos em casa de Ed Bauries quase
todos sabíamos tocar piano. E, nessa altura, tínhamos todos entre vinte e um e vinte e cinco anos.
Nunca levávamos mulheres e quase nunca nos referíamos a elas durante as nossas sessões.
Tínhamos à nossa disposição muita cerveja e uma grande casa toda inteira, pois as nossas reuniões
eram no Verão, quando a família dele estava ausente. Embora pudesse falar de uma dúzia de outras
casas semelhantes, menciono a de Ed Bauries em virtude de ser típica de algo que nunca mais
encontrei em parte alguma do Mundo. Nem Ed Bauries nem nenhum dos seus amigos suspeitavam
do género de livros que eu andava a ler, e muito menos das coisas que me ocupavam o espírito.
Quando chegava, saudavam-me entusiasticamente, como a um palhaço. Esperavam que animasse as
coisas. Havia uns quatro pianos espalhados pela grande casa, para não falar da celesta, do órgão, das
guitarras, dos bandolins, das flautas e sei lá que mais. Ed Bauries era um chalado, um chalado muito
afável, muito compreensivo e muito generoso. As sanduíches eram do melhor, a cerveja abundante,
e se um tipo queria passar lá a noite ele punha à sua disposição um excelente divã, sem qualquer
problema. Ao descer a rua uma grande rua larga, sonolenta e luxuosa, uma rua que não parecia
deste mundo -, ouvia tocar o piano na grande sala do rés-do-chão. As janelas estavam escancaradas,
e à medida que me aproximava via Al Burger ou Connie Grimm refestelados nas grandes poltronas,
comos pés no parapeito e grandes canecas de cerveja na mão. Era provável que George Neumiller
estivesse ao piano, a improvisar, sem camisa e comum grande charuto na boca. Falavam e riam
enquanto George tocava, a procurar uma aberta. Assim que encontrava um tema, chamava Ed, e
este sentava-se a seu lado, estudava o tema à sua maneira amadora e, de súbito, martelava as teclas,
dando a réplica adequada. Quando eu entrava era possível que alguém estivesse a tentar fazer o pino
na sala contígua havia três grandes salas no rés-do-chão, umas a seguir às outras, e ao fundo um
jardim, um enorme jardim comflores, árvores de fruto, videiras, estátuas, fontes, tudo. Às vezes,
quando estava muito calor, levávamos o celesta ou o pequeno órgão para o jardim (e um barril de
cerveja, naturalmente) e sentávamo-nos às escuras a rir e a cantar, até os vizinhos nos obrigarem a
calar. Outras vezes, tocávamos música em toda a casa ao mesmo tempo, em todos os andares. Era
verdadeiramente louco, embriagador, e se estivessem mulheres presentes nessas alturas estragariam
tudo. Em certas ocasiões, era como assistir a uma prova de resistência: Ed Bauries e George
Neumiller no piano de cauda, cada um a tentar cansar o outro, mudando de lugar sem parar,
cruzando as mãos, limitando-se por vezes a martelar as teclas e outras vezes tocando como um
Wurlitzer. E havia sempre qualquer coisa que fazia rir. Ninguém nos perguntava o que fazíamos, no
que pensávamos, etc. Quando chegávamos a casa de Ed Bauries, estavam-se todos nas tintas para o
tamanho do chapéu que usávamos ou para o preço que custara. Era divertimento do princípio ao fim
- comsanduíches e bebidas por conta da casa. E quando as coisas aqueciam, comtrês ou quatro
pianos a tocar ao mesmo tempo, além do celesta, do órgão, dos ban-
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Henry Miller
dolins e das guitarras, comcerveja a correr a jorros, as prateleiras das chaminés cheias de sanduíches
e charutos e uma brisa a soprar do jardim, e comGeorge Neumiller nu da cintura para cima e a
modular como um demónio, quando isso acontecia era melhor do que qualquer espectáculo que
jamais vi e não custava uni cêntimo. Por sinal, como o despir e o vestir constantes, saía de lá muitas
vezes comuns trocos a mais e uma algibeira cheia de bons charutos. Nunca os via entre sessões: era
só nas noites de segunda-feira, durante o Verão, que Ed nos abria as portas.
De pé no jardim, a ouvir a barulheira, quase me custava a acreditar que se tratasse da mesma cidade.
E se alguma vez tivesse aberto a boca e revelado as entranhas, teria sido o fim. Nenhum daqueles
tipos valia grande coisa, em relação ao Mundo. Eram apenas bons rapazes, crianças, indivíduos que
gostavam de música e de se divertir. E gostavam tanto disso que às vezes até tínhamos de chamar a
ambulância como na noite em que Al Burger torceu um joelho ao mostrar-nos uma das suas
habilidades. Estava toda a gente tão feliz, tão cheia de música, tão animada, que ele precisou de
uma hora para nos persuadir que se magoara, de facto. Tentámos levá-lo para o hospital, mas ficava
muito longe e, além disso, tratava-se de uma coisa tão gira que, de vez em quando, o deixávamos
cair e ele gritava como um doido. Por fim, telefonámos a pedir auxílio de um dos telefones da
Polícia e pouco depois chegou a ambulância e comela a ramona. Levaram Al para o hospital e o
resto da malta para a choça. No caminho, cantámos comtoda a força dos nossos pulmões. Quando
nos libertaram, continuávamos a sentir-nos bem, e os chuis também se sentiam bem, e por isso
fomos todos para a cave, onde havia um piano desafinado, e continuámos a cantar e a tocar. Tudo
isto parece um período qualquer da história de A. C., que não acabou por haver uma guerra e sim
porque nem uma casa como a de Ed Bauries está imune ao veneno que escorre da periferia e se
infiltra. Porque todas as ruas se começam a tornar uma Myrtle Avenue; porque o vazio enche todo o
continente, do Atlântico ao Pacífico; porque, passado um certo tempo, não se pode entrar numa
única, em todo o comprimento e toda a largura da terra, e encontrar um homem a fazer o pino e a
cantar. São coisas
Trópico de Capricórnio
277
que já não se fazem, pura e simplesmente. E não tocam dois pianos ao mesmo tempo em lado
nenhum, nem em lado nenhum há dois homens prontos a tocar toda a noite, só pelo prazer que isso
causa. Dois homens capazes de tocar como Ed Bauries e George Neumiller são contratados pela
rádio ou pelo cinema, utiliza-se apenas um dedalzinho do seu talento e o resto deita-se para o
caixote do lixo. A julgar pelos espectáculos públicos, ninguém faz uma ideia do talento que existe
no grande continente americano. Tempo depois, e era por isso que costumava sentar-me nos
degraus da Tin Pan Alley, entretinha as tardes a ouvir as profissionais esforçarem-se. Também era
born, mas era diferente. Não havia divertimento naquele tocar, era um ensaio perpétuo para render
dólares e cernimos. Qualquer homem da América que tivesse uns gramas de humor poupava-o
muito bem poupadinho, para ir vivendo. Havia entre eles alguns chalados maravilhosos, homens
que nunca esquecerei, homens que não deixaram nome nenhum e que foram o melhor que tivemos.
Lembro-me de um executante anónimo do circuito de Keith que talvez tenha sido o maior louco da
América, sem que isso lhe valesse mais do que uns cinquenta dólares por semana. Três vezes por
dia e todos os dias da semana, aparecia no palco e fascinava os espectadores. Não tinha um número:
improvisava. E nunca repetia as suas piadas nem as suas proezas. Dava-se prodigamente, era um
daqueles indivíduos cheios de uma alegria e de uma energia tão violentas que nada as pode conter.
Era capaz de tocar qualquer instrumento e dançar qualquer dança e, coma maior das facilidades,
inventava histórias que fazia durar até a campainha tocar. Não lhe bastava desempenhar o seu
próprio número, tinha ainda de ajudar os outros. Colocava-se nos bastidores e aguardava o
momento de intervir no número de um colega. Era todo um espectáculo, todo um espectáculo que
continha mais terapia do que o arsenal completo da ciência moderna. Deviam pagar a um homem
assim o mesmo que pagam ao presidente dos Estados Unidos. Deviam despedir o presidente dos
Estados Unidos e todo o Supremo Tribunal e pôr um homem assim a dirigir as coisas. Era um
indivíduo capaz de curar qualquer tipo de doença, e mais: fá-lo-ia de borla, se lho pedissem. São
homens destes que despejam os
278
Henry Miller
manicómios. Não propõem uma cura: endoidecem toda a gente. Entre esta solução e o estado
perpétuo de guerra que é a civilização, só há uma saída - e essa saída é a estrada pela qual todos
enveredaremos, eventualmente, porque tudo o mais está condenado ao fracasso. O tipo que
representa esta única via tem uma cabeça comseis faces e oito olhos; a cabeça é um farol giratório e,
em vez de ter uma coroa tripla no cimo, como seria muito natural que tivesse, tem um buraco que
ventila os poucos miolos que restam. E são realmente muito poucos, porque há muito pouca
bagagem para transportar e porque, vivendo em plena consciência, a matéria cinzenta desfaz-se em
luz. Este é o único tipo de homem que se pode colocar acima do comediante; não ri nem chora, está
para além do sofrimento. Ainda não o reconhecemos porque está muito chegado a nós, porque na
realidade está mesmo debaixo da nossa pele. Quando o comediante nos acerta nas tripas, este
homem, cujo nome suponho que poderia ser Deus, se ele precisasse de ter um nome, este homem
fala. Quando toda a espécie humana treme de riso, quando ri tanto que chega a doer, então todos
têm o pé no caminho. Nesse momento toda a gente pode muito bem ser Deus ou outra coisa
qualquer. Nesse momento, dá-se o aniquilamento da percepção dupla, tripla, quádrupla, que é o que
faz a matéria cinzenta enroscar-se em dobras mortas no topo do crânio. Nesse momento, sentimos
realmente o buraco no alto da cabeça, sabemos que tivemos lá um olho, em tempos, e que esse olho
era capaz de abarcar tudo ao mesmo tempo. Agora o olho desapareceu, mas quando nos rimos até as
lágrimas correrem e a barriga doer, então estamos realmente a abrir a clarabóia e a ventilar os
miolos. Nesse momento, ninguém nos pode convencer a pegar numa arma e matar o nosso inimigo;
tão-pouco nos podem persuadir a abrir um grosso volume contendo as verdades do mundo e a lê-lo.
Se sabemos o que a liberdade significa - a liberdade absoluta e não uma liberdade relativa -, então
temos de reconhecer que nunca estaremos mais próximos dela do que nesse momento. Não sou
contra o estado do mundo por ser moralista e, sim, porque quero rir mais. Não digo que Deus é uma
grande barngada de riso; digo que temos de rir commais força, se nos queremos aproximar, que
seja, de Deus. O meu único objecTroptco de Capricórnio
279
tivo na vida é chegar perto de Deus - isto é, chegar mais perto de mim próprio. E por isso que não
me importa a estrada por que enverede. Mas a música é muito importante. A música é um tónico
para a glândula pineal. A música não é Bach ou Beethoven; a música é o abre-latas da alma. Tornanos terrivelmente calmos por dentro, dá-nos a consciência de que o nosso ser tem um telhado.
O horror acutilante da vida não está contido nas calamidades nem nas catástrofes, porque essas
coisas despertam-nos, nós familiarizamo-nos comelas e elas acabam por ser dominadas... O horror
acutilante da vida é mais como estar, digamos, num quarto de hotel em Hoboken e ter na algibeira
apenas o dinheiro suficiente para mais uma refeição. Estamos numa cidade em que nunca mais
esperamos voltar a estar e temos apenas de passar a noite no nosso quarto, no hotel, mas
permanecer nesse quarto exige toda a nossa coragem e energia. Deve haver uma boa razão para
certas cidades, certos lugares, inspirarem tal aversão, tal medo. Deve cometer-se em tais lugares
qualquer espécie de assassínio perpétuo. As pessoas são da mesma raça que nós, tratam da sua vida
como as pessoas de qualquer outro lado, constróem o mesmo tipo de casa - nem melhor nem pior -,
têm o mesmo sistema de educação, a mesma moeda e os mesmos jornais, e, no entanto, são
absolutamente diferentes das outras pessoas que conhecemos, toda a atmosfera é diferente, o ritmo é
diferente e a tensão é diferente. É quase como olharmos para nós noutra encarnação. Sabemos,
comuma certeza muito perturbadora, que não é o dinheiro, nem a política, nem a religião, nem a
instrução, nem a raça, nem a língua, nem os costumes que governam a vida e, sim, qualquer outra
coisa, algo que tentamos constantemente asfixiar e que na realidade nos asfixia a nós, pois de
contrário não nos sentiríamos subitamente aterrorizados e não nos perguntaríamos como escapar.
Nalgumas cidades nem precisamos de passar a noite; basta uma hora ou duas para nos tirar a
coragem. Penso em Bayonne desse modo. Cheguei lá de noite, comalgumas moradas que me
tinham dado. Levava uma pasta debaixo do braço, comum prospecto da Enciclopédia Britânica. A
minha missão era tentar, ao abrigo da noite, vender a maldita enciclopédia a quaisquer pobres
diabos que quisessem aperfeiçoar-se. Se me tivessem abandonado em
280
Henry Miller
Helsingfors não me sentiria menos à vontade do que a percorrer as ruas de Bayonne. Para mim, não
era uma cidade americana. Não era sequer uma cidade; era um imenso octópode a debater-se no
escuro. A primeira porta a que cheguei pareceu-me tão assustadora que nem me atrevi a bater. E
aconteceu-me o mesmo diante de diversas outras, antes de conseguir a coragem necessária para
bater. A primeira cara para que olhei deixou-me sem pinta de sangue. Não por timidez ou
embaraço: por medo. Era o rosto de um ajudante de pedreiro, um tipo ignorante a quem tanto se
daria derrubar-nos comum machado como cuspir-nos num olho. Fingi que me enganara e corri para
a morada seguinte. Cada vez que a porta se abria via um monstro. E, finalmente, bati à porta de um
simplório que queria realmente aperfeiçoar-se, e isso foi o fim, tirou-me o resto da coragem. Sentime verdadeiramente envergonhado de mim mesmo, do meu país, da minha raça e da minha época.
Vi-me e desejei-me para o persuadir a não comprar a maldita enciclopédia. Quando ele me
perguntou inocentemente o que me levara então a sua casa, respondi-lhe, sem um segundo de
hesitação, comuma espantosa mentira, comuma mentira que viria a revelar-se uma grande verdade.
Disse-lhe que fingia, apenas, andar a vender a enciclopédia para travar conhecimento compessoas e
escrever a seu respeito. Isso interessou-o muitíssimo, ainda mais do que a enciclopédia. Quis saber
o que escreveria a seu respeito, se pudesse dizer-lhe, claro. Levei vinte anos a encontrar a resposta a
essa pergunta, mas aqui vai ela. Se ainda está interessado em saber, John Doe da cidade de
Bayonne, preste atenção. Devo-lhe muito, porque depois da mentira que lhe disse saí da sua casa,
rasguei o prospecto que me fora fornecido pelos vendedores da Encilopédia Britânica e atirei-o para
a valeta. Prometi a mim mesmo que nunca mais abordaria as pessoas comfalsos pretextos, nem que
fosse para lhes dar a Bíblia Sagrada. «Nunca mais venderei nada, nem que tenha de morrer de fome.
Agora you para casa, sento-me e começo realmente a escrever a respeito de pessoas. E se alguém
me bater à porta para me vender qualquer coisa, mando-o entrar e pergunto-lhe: ”Porque faz isso?”
E se ele me responder que é porque precisa de ganhar a vida, dar-lhe-ei todo o dinheiro que tiver e
voltarei a pedir-lhe que pense no que está a fazer. Quero impedir o máximo de homens possível
Trópico de Capricórnio
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de fingirem que têm de fazer isto ou aquilo porque precisam de ganhar a vida. Não é verdade. Podese morrer de fome - é muito melhor. Todo o homem que morre voluntariamente de fome encrava
outra rodinha dentada do processo automático. Prefiro ver um homem pegar numa arma e matar o
vizinho, a fim de obter a comida de que precisa, a vê-lo alimentar o processo automático fingindo
que tem de ganhar a vida.» Era isto que lhe queria dizer, Mr. John Doe.
Adiante. Não é o horror acutilante das calamidades e das catástrofes, como dizia, mas sim a
regressão automática, o panorama severo da luta atávica da alma. Uma ponte na Carolina do Norte,
perto da fronteira do Tennessee. Saindo dos luxuriantes campos de tabaco, cabanas baixas por toda
a parte e o cheiro de madeira nova a arder. O dia passado num denso lago de ondulante verde.
Praticamente ninguém à vista. De súbito, uma clareira e encontro-me sobre uma grande ravina,
atravessada por uma fraca ponte de madeira. É o fim do mundo! Não sei, confesso, como cheguei
aqui e porque estou aqui. Como you comer* E, mesmo que coma a maior refeição que se possa
imaginar, continuarei triste, assustadoramente triste. Não sei para onde ir, daqui. Esta ponte é o fim,
o meu fim, o fim do mundo meu conhecido. Esta ponte é loucura: não existe nenhuma razão para
estar aqui, assim como não existe nenhuma razão para as pessoas a atravessarem. Recuso-me a dar
outro passo, oponho-me a atravessar essa louca ponte. Perto há um muro baixo ao qual me encosto,
a tentar decidir que fazer e aonde ir. Apercebo-me, comtoda a serenidade, de que sou uma pessoa
terrivelmente civilizada, da necessidade que tenho da companhia de pessoas, de conversar, de
livros, de teatro, de música, de cafés, de bebidas, etc. E terrível ser civilizado, porque quando
chegamos ao fim do mundo não temos nada que suporte o terror da solidão. Ser civilizado é ter
necessidades complicadas. E um homem, quando está exausto, não devia precisar de nada. Passara
o dia a atravessar campos de tabaco e a sentir-me cada vez mais inquieto. Que tenho eu a ver
comtodo este tabaco? Para onde you? Por toda a parte as pessoas cuidam de plantações e produzem
mercadorias para outras pessoas, e eu sou como um fantasma a deslizar entre toda esta ininteligível
actividade. Quero encontrar qualquer espécie de trabalho, mas não quero ser uma parte
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Henry Miller
disto, deste infernal processo automático. Passo por uma cidade e vejo um jornal que diz o que se
passa na cidade e nas suas imediações. A mim parece-me que não está a acontecer nada, que o
relógio parou e estes pobres diabos não deram por tal. Além disso, tenho uma forte intuição de que
anda assassínio no ar. Cheira-me. Alguns dias atrás, transpus a linha imaginária que separa o Norte
do Sul. Só tive consciência disso quando vi aparecer um negro a conduzir uma parelha. Quando
chegou ao meu lado, levantou-se do banco e tirou o chapéu, muito respeitosamente. Tinha cabelo
branco como a neve e um rosto cheio de dignidade. Senti-me horrivelmente, compreendi que ainda
havia escravos. Aquele homem a tirar-me o chapéu por eu ser de raça branca! Eu, eu é que lhe devia
ter tirado o chapéu! Devia tê-lo saudado como sobrevivente de todas as vis torturas que os homens
brancos têm infligido aos pretos. Devia ter tirado o meu chapéu primeiro, para que ele soubesse que
não faço parte deste sistema, que peço perdão por todos os meus irmãos brancos, tão ignorantes e
tão cruéis que não são capazes de um gesto franco e honesto. Hoje sinto os seus olhos
constantemente postos em mim; observam-me atrás das portas, atrás das árvores. Muito sossegada e
pacificamente, na aparência. Negro nunca dizer nada. Negro passar o tempo todo a cantarolar.
Branco pensar que negro aprender o seu lugar. Negro não aprender nada. Negro esperar. Negro
observar tudo que homem branco faz. Negro não dizer nada, não senhor, nassinhor. MAS MESMO
ASSIM O NEGRO ESTÁ A MATAR O HOMEM BRANCO! Todas as vezes que um negro olha
para um branco traspassa-o comum punhal. Não é o calor, não é o ancilóstomo, não são as más
colheitas que estão a matar o Sul: é negro! O negro destila um veneno, quer o queira, quer não. O
Sul está drogado, dopado comveneno de negro.
Adiante... Sentado à porta de uma barbearia, junto do rio James. Estarei aqui apenas dez minutos,
enquanto tiro o peso de cima dos pés. Do outro lado, há um hotel e algumas lojas; acaba tudo de
repente, termina como começou: sem razão nenhuma. Do fundo da alma lamento os pobres diabos
que nascem e morrem aqui. Não há nenhuma razão lógica para este lugar existir. Não há nenhuma
razão para alguém atravessar a rua e fazer a barba ou cortar o cabelo, ou sequer para comer
Trópico de Capricórnio
283
um bife do lombo. Homens, comprem uma arma e matem-se uns aos outros! Varram-me esta rua do
pensamento para sempre, pois ela não tem um mínimo de significado.
No mesmo dia, depois de escurecer. Continuo a andar, a embrenhar-me mais e mais profundamente
no Sul. Afasto-me de uma cidadezinha por uma estrada curta, que leva à auto-estrada. De súbito,
ouço passos atrás de mim e, pouco depois, um homem novo passa por mim a trote, ofegante e a
praguejar comtodas as forças. Paro um instante, a perguntar-me o que se passará. Ouço outro
homem aproximar-se, também a trote; é mais velho e empunha uma arma. Respira comrelativa
facilidade e não lhe sai uma palavra da boca. Quando chega perto de mim, a Lua rompe as nuvens e
permite-me ver-lhe bem a cara. É um caçador de homens. Afasto-me do caminho, enquanto se
aproximan outros. Tremo de medo. E o xerife, ouço dizer, e vai apanhá-lo. Horrível. Sigo na
direcção da auto-estrada à espera de ouvir o tiro que acabará tudo. Não ouço nada. Apenas o
respirar pesado do jovem e os passos rápidos, ansiosos, da turba que vai atrás do xerife. Quando me
aproximo da auto-estrada, um homem surde da escuridão e abeira-se silenciosamente de mim.
«Aonde vais, meu filho?», pergunta, calma e quase ternamente. Tartamudeio qualquer coisa acerca
da cidade seguinte. «É melhor ficares aqui, filho.» Não respondo. Deixo-o levar-me de novo para a
cidade e entregar-me como a um ladrão. Dormi no chão comuns cinquenta outros tipos. Tive um
sonho sexual maravilhoso, que terminou coma guilhotina.
Continuo... É tão difícil recuar como avançar. Já não tenho a sensação de ser um cidadão
americano. A parte da América de onde provenho, onde tinha alguns direitos, onde me sentia livre,
ficou tão para trás que começa a tornar-se vaga na minha memória. Tenho a sensação de que
alguém me encosta constantemente uma arma às costas. Continua a andar - é tudo quanto me parece
ouvir. Se algum homem fala comigo, tento não parecer demasiado inteligente. Finjo, ou tento fingir,
que estou vitalmente interessado nas colheitas, no tempo ou nas eleições. Se paro, olham para mim,
brancos e pretos - olham-me e voltam a olhar-me, como se eu fosse suculento e comestível. Tenho
de calcorrear outros mil quilómetros, mais ou menos, como se tivesse um objectivo claro, como se
fosse
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Henry Miller
realmente a algum lado. Tenho também que me mostrar a modos que grato, por não ter ainda dado
na veneta de ninguém disparar contra mim. É deprimente e estimulante ao mesmo tempo. Um tipo é
um homem marcado, e no entanto ninguém prime o gatilho. Deixam-no ir direito ao golfo do
México, onde se pode afogar.
Sim, senhor, cheguei ao golfo do México, meti por ele dentro e afoguei-me. Fi-lo grátis. Quando
pescaram o cadáver, viram que estava marcado F. O. B. Myrtle Avenue, Brooklyn. À cobrança no
destino. Quando mais tarde me perguntaram porque me matara, a única coisa que encontrei para
responder foi: porque quis electríficar o cosmo! Queria comisso dizer uma coisa muito simples:
Delaware, Lackwanna e Western tinham sido electrificadas, a Seaboard Air Line tinha sido
electrificada, mas a alma do homem ainda se encontrava na fase do carroção coberto. Nasci no meio
da civilização e aceitava-a comtoda a naturalidade - que outra coisa poderia fazer? O engraçado é
que mais ninguém tomava o caso a sério. Eu era o único homem da comunidade verdadeiramente
civilizado. Não havia lugar para mim - por enquanto. E, todavia, os livros que lia e a música que
ouvia garantiam-me existirem no mundo outros homens como eu. Tive de me ir afogar no golfo do
México a fim de ter um pretexto para continuar essa existência pseudocivilizada. Precisei, por assim
dizer, de me «despiolhar» do meu corpo espiritual.
Quando tomei consciência de que, em relação ao esquema das coisas, era menos do que pó, sentime realmente muito feliz. Perdi num instante toda a noção da responsabilidade. E, se não fosse os
meus amigos cansarem-se de me emprestar dinheiro, talvez tivesse continuado indefinidamente a
limitar-me a passar o tempo. O Mundo era como um museu para mim; não via mais nada que
valesse a pena fazer senão ir comendo o maravilhoso bolo coberto de chocolate que os homens do
passado tinham abandonado nas nossas mãos. Toda a gente se aborrecia ao ver como me divertia.
Segundo a sua lógica, a arte era uma coisa muito bonita, oh, sim, sem dúvida, mas as pessoas
deviam trabalhar para ganhar a vida... e depois descobririam que estavam demasiado cansadas para
pensar em arte. Mas foi quando ameacei acrescentar uma ou duas camadas pessoais ao maravilhoso
bolo coberto de chocolate que
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rebentaram comigo. Esse foi o retoque final. Demonstrara ser definitivamente doido. Primeiro
consideraram-me um membro inútil da sociedade; depois, durante algum tempo, um cadáver
atrevido e despreocupado, comum apetite tremendo; finalmente, passei a ser doido. (Ouve, sacana,
arranja um emprego... não contes mais connosco, estamos fartos!) De certo modo, essa mudança de
fachada foi revigorante. Sentia o vento soprar através dos corredores. Pelo menos, «eles» já não
vogavam na calmaria. Era a guerra, e como cadáver eu ainda era suficientemente recente para me
restar um pouco de genica para a luta. A guerra é revigorante. A guerra agita o sangue. Foi no meio
da guerra mundial, da qual me esquecera, que a mudança se operou. Casei da noite para o dia, para
demonstrar a todos que, de uma maneira ou de outra, me estava marimbando. Casar estava certo, na
mentalidade deles. Lembro-me de que, graças ao anúncio do casamento, consegui logo um
empréstimo de cinco dólares. O meu amigo MacGregor pagou a licença necessária, e até a barba e o
corte de cabelo, a que insistiu me submetesse, para me casar. Afirmaram que um tipo não se podia
casar sem se barbear e, embora eu não visse razão nenhuma para isso, submeti-me, visto ser de
borla. Foi interessante verificar como toda a gente parecia ansiosa por contribuir comqualquer coisa
para a nossa manutenção. De repente, só porque demonstrara um pouco de senso, cercaram-nos
todos: não podiam fazer isto por nós? Não podiam fazer aquilo por nós? Agora, claro, presumiam,
eu iria comcerteza trabalhar, agora veria que a vida é uma coisa séria. Nunca lhes passou pela
cabeça que eu poderia deixar a minha mulher trabalhar para mim. E na verdade fui muito decente
comela, ao princípio. Não era nenhum condutor de escravos. Só pedia dinheiro para os transportes a fim de procurar o mítico emprego e uns miúdos para cigarros, cinema, etc. As coisas importantes,
tais como livros, álbuns musicais, gramofones, bifes de cervejaria e outras do género, podíamos
arranjá-las a crédito, agora que éramos casados. O sistema de prestações fora inventado
expressamente para tipos como eu. O pagamento inicial era fácil; o resto... ficava a cargo da
Providência. Uma pessoa tem de viver, diziam constantemente. Pois foi isso mesmo que passei a
dizer, para comigo: Uma pessoa tem de viver! Vive primeiro e paga depois. Se via um
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sobretudo que me agradava, entrava e comprava-o. Mas cornprava-o um pouco antes da estação,
para mostrar que era um indivíduo sério, previdente. Merda, era um homem casado e em breve
seria, provavelmente, pai... tinha direito a um sobretudo de Inverno, ao menos, não tinha? E depois
de ter o sobretudo pensava num par de bons sapatos resistentes, a condizer - um par de sapatos
grossos, de cordovão, como toda a vida desejara mas nunca me pudera dar ao luxo de ter. E quando
o frio apertava e me encontrava na rua à procura do tal emprego, às vezes atacava-me uma fome dos
demónios. É realmente saudável sair assim, dias após dia, calcorrear a cidade debaixo de chuva e
neve, vento e granizo. Por isso, de vez em quando entrava num restaurante aconchegado e pedia um
suculento bife alto, comcebola e batatinhas fritas. Fiz um seguro de vida e, também, um seguro
contra acidentes. Segundo me diziam, é importante um tipo casado fazer essas coisas. Supondo que
caía morto, um dia, e depois? Lembro-me de o indivíduo me dizer isso mesmo, para me convencer.
Eu já lhe tinha dito que assinaria o contrato, mas ele devia-se ter esquecido. Dissera-lhe
imediatamente «sim», pela força do hábito, mas, repito, ele devia-se ter esquecido - ou então era
contra as normas deixar um tipo assinar o contrato antes de lhe impingir o discurso de venda todo.
Fosse como fosse, preparava-me para lhe perguntar quanto tempo seria preciso decorrer antes de
poder pedir um empréstimo sobre a apólice, quando ele me atirou coma hipotética calamidade:
Supondo que caía morto, um dia, e depois? Deve ter-me julgado um bocado chalupa, pelo modo
como me ri coma pergunta. Ri até as lágrimas me correrem pela cara abaixo. Por fim, ele observou:
«Não me parece que tenha dito nada assim tão engraçado...» «Bem», redargui-lhe, e por momentos
fiquei sério, «olhe para mim comatenção. Pareço-lhe um indivíduo que queira saber para alguma
coisa do que acontece depois de estar morto?» Aparentemente, ficou escandalizado comas minhas
palavras, pois respondeu-me: «Não creio que essa seja uma atitude muito ética, Mr. Miller. Estou
certo de que não quereria que a sua mulher...» «Escute, suponha que lhe dizia que me estou
marimbando para o que possa acontecer à minha mulher quando eu morrer. E então, hem?» Como
as minhas palavras pareceram ofender ainda mais as suas susceptibilidades éticas,
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acrescentei, pelo sim, pelo não: «Pela parte que me toca, podem até não pagar o seguro quando eu
esticar. Faço isto apenas para que você se sinta bem. Tento ajudar as pessoas, cornpreende? Precisa
de viver, não precisa? Pois eu estou apenas a meter-lhe um pouco de comida na boca, mais nada. Se
tem mais alguma coisa para vender, desembuche. Compro tudo quanto me parece born. Sou um
comprador, não um vendedor. Gosto de ver as pescas felizes, é por isso que compro coisas. A
quanto disse que sairia por semana? Cinquenta e sete centimes? Óptimo. Ó que são cinquenta e sete
cernimos? Vê aquele piano? São cerca de trinta e nove cêntimos por semana, creio. Olhe à sua
volta... Tudo quanto vê custa um tanto por semana. Disse que eu podia cair morto, e depois? Acha
que eu ia morrer e deixar toda esta gente prejudicada? Seria uma brincadeira de muito mau gosto.
Não, preferiria que viessem e levassem as coisas... se não as pudesse pagar, evidentemente...» O
tipo mexia-se nervosamente e tinha uma expressão vítrea no olhar. «Desculpe, não vai uma
pinguinha, para molhar a apólice?» Respondeu que não, mas eu insisti. E, além disso, ainda não
assinara a papelada, a minha urina teria de ser analisada e aprovada e seriam necessários uma
quantidade de selos e carimbos - sabia toda essa treta de cor. Por isso pensei que seria melhor
bebermos uma pinga primeiro e protelarmos assim a parte séria do negócio, porque, sinceramente,
comprar seguros ou comprar fosse o que fosse era um verdadeiro prazer para mim, dava-me a
sensação de que era exactamente como qualquer outro cidadão um homem, coma breca! - e não um
macaco. Por isso fui buscar a garrafa do xerez (não me davam outra coisa) e enchi-lhe
generosamente um copo, a pensar para comigo que era agradável ver o xerez esgotar-se, pois para a
próxima talvez me comprassem outra coisa melhor. «Também vendi seguros, em tempos»,
informei-o, levando o copo aos lábios. «Claro que sou capaz de vender seja o que for. O meu mal é
ser indolente. Num dia como o de hoje, por exemplo, não é mais agradável estar em casa, a ler um
livro ou a ouvir música? Por que diabo havia de sair e cansar-me para uma companhia de seguros?
Se estivesse a trabalhar, hoje, você não me teria apanhado em casa, pois não? Acho que é melhor
levar as coisas comcalma e ajudar as pessoas, quando elas aparecem... como você, por exemplo.
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b r
É muito mais agradável comprar coisas do que vendê-las, não acha? Quando se tem dinheiro para
isso, claro! Nesta casa não precisamos de muito dinheiro. Como lhe disse, o piano custa cerca de
trinta e nove cêntimos por semana - ou quarenta e dois, não sei bem -, e o...»
- Desculpe, Mr. Miller, mas não acha que devíamos tratar de assinar estes papéis? - interrompeume.
- Oh, comcerteza! - respondi-lhe, risonho. - Trouxe todos consigo? Qual lhe parece que devemos
assinar primeiro? A propósito, não tem uma caneta de tinta permanente que gostasse de me vender?
- Assine aqui, por favor - pediu, fingindo ignorar as minhas observações. - E aqui também. Agora,
Mr. Miller, despeço-me. Terá notícias da companhia dentro de poucos dias.
- Quanto mais depressa melhor - redargui, enquanto o conduzia à porta -, pois posso mudar de
ideias e suicidar-me.
- comcerteza, Mr. Miller, comcerteza, o mais depressa possível... E agora bons dias, bons dias!
Claro que o sistema de prestações chega uma altura que falha, mesmo que um tipo seja um
comprador assíduo, como eu era. Fazia, sem dúvida nenhuma, todos os possíveis para manter
ocupados os fabricantes e os publicitários da América, mas parece que ficaram decepcionados
comigo. Toda a gente se decepcionava comigo. Houve um homem, em particular, que ficou mais
decepcionado comigo do que todos os outros, um homem que fez realmente um esforço para me
ajudar e a quem deixei ficar mal. Penso nele e no modo como me admitiu como seu assistente - tão
pronta e graciosamente - porque mais tarde, quando contratava e despedia como um revólver de
calibre 42, eu próprio fui atraiçoado, mas nessa altura já estava por assim dizer imunizado e, por
isso, não liguei nenhuma. O homem a que me refiro fez tudo para me demonstrar que acreditava em
mim. Era editor do catálogo de uma grande casa de vendas pelo correio, um enorme compêndio de
sucata que saía uma vez por ano e levava um ano inteiro a preparar. Não fazia a mínima ideia do
que se tratava e já nem me lembro por que motivo entrei no seu escritório, nesse dia - a não ser que
desejasse aquecer-me, pois passara o dia inteiro nas docas, a ver se arranjava um emprego como
conferente, apontador ou qualquer coisa. O escritório era acolhedor e eu
fiz-lhe um grande discurso, para descongelar. Não sabia que emprego pedir, disse, só queria um
emprego. Era um homem sensível e muito bondoso e pareceu adivinhar que eu era escritor, ou
queria ser escritor, pois a breve trecho estava a perguntar-me o que gostava de ler e qual era a minha
opinião acerca deste ou daquele escritor. Por coincidência, eu tinha uma lista de livros na algibeira livros que ia procurar na biblioteca pública -, tirei-a e mostrei-lha. «Meu Deus!», exclamou. «Lê
realmente este livros?» Acenei modestamente coma cabeça, na afirmativa, e, como costumava
acontecer quando uma observação idiota como aquela me destravava a língua, comecei a falar dos
Mistérios de Hamsun, que acabara de ler. A partir desse momento, o homem foi como massa nas
minhas mãos. Quando me perguntou se queria ser seu assistente, apressou-se a pedir desculpa por
me oferecer um lugar tão modesto. Disse que podia levar o tempo que precisasse a aprender os
pormenores do cargo, o que, estava convencido, seria canja para mim. E depois perguntou-me se
não me podia emprestar algum dinheiro, do seu bolso, até eu receber o ordenado. Antes que tivesse
tempo de dizer sim ou não, tirou uma nota de vinte dólares da algibeira e meteu-ma na mão. Fiquei
comovido, naturalmente. Senti-me disposto a trabalhar para ele como um filho da mãe. Editor
assistente... Soava bem, sobretudo aos ouvidos dos credores das minhas vizinhanças. E durante
algum tempo senti-me tão contente por comer rosbife, e frango, e lombo de porco, que fingi gostar
do trabalho. Na realidade, porém, tinha dificuldade em me manter acordado. Numa semana aprendi
o que precisava de aprender. E depois? Depois senti-me condenado a trabalhos forçados perpétuos.
Para amenizar as coisas, entretinha o tempo a escrever histórias e ensaios e longas cartas aos meus
amigos. Talvez pensassem que estava a escrever ideias novas para a companhia, pois durante algum
tempo ninguém me prestou atenção. Parecia-me um emprego maravilhoso. Dispunha do dia quase
todo para mim, para os meus escritos, pois aprendera a despachar o trabalho da firma numa hora,
mais ou menos. Andava tão entusiasmado como meu trabalho pessoal que dava ordens aos meus
subordinados no sentido de só me incomodarem em determinados momentos. Vogava como uma
brisa, coma companhia a pagar-me regularmente e os outros
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a fazerem o trabalho que lhes destinava, quando um dia, no meio de um importante ensaio sobre O
Anticristo, um homem que nunca vira se aproximou da minha secretária, espreitou por cima do meu
ombro e, em torn sarcástico, começou a ler em voz alta o que eu acabara de escrever. Não me
perguntei quem ele era nem o que pretendia; o único pensamento que me veio à cabeça, e que repeti
freneticamente, foi: Receberei uma semana de salário extra? Quando chegou o momento de me
despedir do meu benfeitor, senti-me um bocadinho envergonhado comigo próprio, sobretudo
quando ele me disse, logo de caras: «Tentei conseguir-lhe uma semana de salário extra, mas nem
quiseram ouvir falar disso. Gostaria de poder fazer qualquer coisa por si... Está apenas a atravessarse no seu próprio caminho, como sabe. Para lhe ser franco, continuo a ter a maior fé em si... mas
receio que, por uns tempos, vá passar um mau bocado. Não se ajusta em parte alguma... Um dia será
um grande escritor, tenho a certeza. Agora desculpe-me», pediu, e apertou-me calorosamente a
mão. «Tenho de ir falar como patrão. Felicidades!»
Senti-me um bocadinho magoado, compena de não ser possível provar-lhe imediatamente que a sua
fé era justificada. Naquele momento, desejei poder justificar-me perante o mundo inteiro: ter-me-ia
atirado da Ponte de Brooklyn se isso convencesse as pessoas de que não era um filho da mãe sem
coração. Tinha um coração grande como o de uma baleia, como não tardaria a provar, mas ninguém
me estava a examinar o coração. O que toda a gente estava era a ser prejudicada, e muito - não só as
firmas de vendas a prestações, mas também o senhorio, o talho, o padeiro, os tipos da água, do gás e
da electricidade, toda a gente. Se ao menos eu pudesse acreditar nessa história do trabalho! Mas não
conseguia, nem que disso dependesse a salvação da minha vida. A única coisa que via é que as
pessoas batiam comeles numa laje a trabalhar porque não tinham senso para mais. Pensava no
discurso que fizera, e graças ao qual obtivera o emprego. Assemelhava-me muito a Herr Nagel.
Nunca se sabia o que seria capaz de fazer, de um momento para o outro. Não havia maneira de se
saber se era um monstro ou um santo. Como tantos homens maravilhosos do nosso tempo, Herr
Nagel era um desesperado - e era esse mesmo desespero que o tornava tão simpático.
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Hamsun também não sabia que ideia fazer da sua personagem. Sabia que ele existia e sabia que era
algo mais do que um simples bufão e um mistificador. Creio que amava Herr Nagel mais do que
qualquer outra das personagens que criou. E porquê? Porque Herr Nagel era o santo não
reconhecido que todo o artista é, o homem que é ridicularizado porque as suas soluções, que são
verdadeiramente profundas, parecem ao mundo demasiado simplistas. Nenhum homem quer ser um
artista; é levado a isso porque o mundo se recusa a reconhecer a sua adequada liderança. O trabalho
não significava nada para mim, porque o verdadeiro trabalho a fazer estava a ser evitado, ignorado.
As pessoas consideravam-me indolente e inepto, mas eu era, pelo contrário, um indivíduo
muitíssimo activo. Mesmo que se tratasse apenas de procurar uma gaja, isso era alguma coisa, e
valia a pena - especialmente em cornparação comoutras formas de actividade, como fazer botões,
apertar parafusos ou até remover apêndices. E porque me escutavam as pessoas tão prontamente
quando me candidatava a um emprego? Porque me consideravam tão interessante? Sem dúvida
porque sempre gastara o meu tempo proveitosamente. Oferecia-lhes presentes - presentes
resultantes das minhas horas passadas na biblioteca pública, das minhas ociosas vagueações pelas
ruas, das minhas experiências íntimas commulheres, das minhas tardes no teatro burlesco, das
minhas visitas aos museus e às galerias de arte... Se fosse um inútil, um pobre diabo honesto que só
queria gastar os tomates a trabalhar por tanto a semana, não me ofereceriam os cargos que me
ofereciam, não me dariam charutos, não me levariam a almoçar e não me emprestariam dinheiro,
como tantas vezes acontecia. Devia ter para oferecer algo que, talvez sem o saberem, consideravam
mais valioso do que cavalos a vapor ou competência técnica. Eu próprio não sabia o que era, porque
não tinha nem orgulho, nem vaidade, nem cobiça. Acerca dos grandes problemas, era lúcido, mas
confrontado comos pequenos pormenores da vida sentia-me confuso. Tive de experimentar essa
mesma confusão numa escala colossal antes de lhe apreender o significado. Os homens vulgares são
geralmente mais lestos na avaliação de uma situação prática: o seu ego é proporcionado às
exigências que lhe são feitas, o mundo não é muito diferente do que imaginam. Mas um homem que
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está completamente dessincronizado do resto do mundo, ou padece de uma colossal inflação do ego,
ou então o seu ego está tão submerso que é praticamente inexistente. Herr Nagel tivera de
mergulhar no lado mais fundo em busca do seu verdadeiro ego; a sua existência era um mistério,
para ele e para toda a gente. Mas eu não me podia dar ao luxo de deixar as coisas assim, em
suspenso; o mistério era demasiado intrigante. Mesmo que tivesse de me roçar como um gato contra
todo o ser humano que encontrasse, havia de chegar ao fundo do problema. Esfrega durante tempo
suficiente e comforça suficiente, e a centelha brilhará!
A hibernação de certos animais, a suspensão de vida praticada por certas formas inferiores de vida,
a maravilhosa vitalidade do percevejo que espera interminavelmente atrás do papel da parede, o
transe do yogui, a catalepsia do indivíduo patológico, a união do místico como cosmo e a
imortalidade da vida celular, tudo isso são coisas que o artista aprende a fim de despertar o mundo,
no momento propício. O artista pertence à raiz racial humana x; é, por assim dizer, o micróbio
espiritual que passa de uma raiz para outra. Não é esmagado pelo infortúnio porque não faz parte do
esquema físico, rácico, das coisas. O seu aparecimento é sempre síncrono comcatástrofe e
dissolução; é o ser cíclico que vive no epiciclo. A experiência que adquire nunca é utilizada para
fins pessoais; serve o objectivo mais vasto para o qual está engrenado. Nada se perde nele, por
muito insignificante que seja. Se interrompe durante vinte e cinco anos a leitura de um livro, é
capaz de recomeçar na página onde interrompeu como se não tivesse acontecido nada de permeio.
Tudo quanto acontece de permeio, e que é «vida» para a maioria das pessoas, é apenas uma
interrupção no seu avanço. O carácter eterno do seu trabalho, quando ele se expressa, é
simplesmente o reflexo do automatismo da vida em que é obrigado a permanecer adormecido, à
espera do sinal que anunciará o momento do nascimento. Esse é o grande acontecimento e foi
sempre claro para mim, mesmo quando o neguei. O descontentamento que impele uma pessoa de
uma palavra para outra, de uma criação para outra, é apenas um protesto contra a inutilidade do
adiamento. Quanto mais desperta uma pessoa se torna, como micróbio artístico, tanto menos deseja
fazer alguma coisa. Comple”
l
tamente acordada, está tudo certo e não há necessidade de sair do transe. A acção, a acção que se
exprime na criação de uma obra de arte, é uma concessão ao princípio automático da morte. Ao
afogar-me no golfo do México, pude compartilhar de uma vida activa que permitiria ao eu
verdadeiro hibernar até eu estar apto a nascer. Compreendi-o perfeitamente, embora actuasse de
maneira cega e confusa. Nadei de regresso à corrente da actividade humana até chegar à fonte de
toda a acção e, aí, abri caminho, entrei, chamando a mim próprio director de pessoal de uma
companhia telegráfica, e deixei a maré de humanidade passar-me por cima como grandes vagas de
crista espumosa. Toda esta vida activa, precedendo o acto final de desespero, conduziu-me de
dúvida em dúvida, cegando-me cada vez mais para o eu autêntico que, como um continente
asfixiado comos indícios de uma grande e florescente civilização, já se afundara sob a superfície do
mar. O ego colossal estava submerso e o que as pessoas viam mover-se freneticamente acima da
superfície era o periscópio da alma, à procura do seu alvo. Tudo quanto aparecia ao alcance de tiro
tinha de ser destruído, se eu queria voltar a emergir e cavalgar as ondas. O monstro que emergia de
vez em quando para fixar o alvo compontaria certeira, que voltava a mergulhar e que vagueava e
pilhava incessantemente, quando chegasse o momento emergiria pela última vez e revelar-se-ia uma
arca, recolheria em si mesmo um par de cada espécie, e por fim, quando as cheias amainassem,
fixar-se-ia no cume de uma alta montanha para aí escancarar as suas portas e devolver ao Mundo o
que fora preservado da catástrofe.
Se estremeço de vez em quando, quando medito na minha vida activa, se tenho pesadelos, é talvez
porque penso em todos os homens que roubei e assassinei no meu sono diurno. Fiz tudo quanto a
minha natureza me mandou fazer. A natureza segreda-nos eternamente ao ouvido: «Se queres
sobreviver, terás de matar!» Em virtude de sermos humanos, não matamos como os animais e, sim,
automaticamente. A morte é disfarçada e as suas ramificações são intermináveis, de modo que
matamos sem pensar sequer nisso, que matamos sem necessidade. Os homens mais respeitados são
os que mais matam. Crêem que estão a servir os seus semelhantes, crêem sinceramente nisso, mas
são assassinos implacáveis, e em certas
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Henry Miller
ocasiões, quando acordam, têm consciência dos seus crimes e entregam-se a actos de bondade
frenéticos e quixotescos, a fim de expiarem a sua culpa. A bondade do homem fede mais do que o
mal que nele há, pois a bondade ainda não está reconhecida, ainda não é uma afirmação do eu
consciente. Quando nos empurram para um precipício, é fácil, no último momento, entregar tudo
quanto possuímos, abrir os braços num último abraço aos que ficam, a todos quantos ficam. Como
deter o impulso cego? Como deter o processo automático em que cada um empurra o outro para o
precipício?
Sentado à minha secretária, na qual pusera um letreiro que dizia: «Ó vós que entrais, não
abandoneis toda a esperança!», sentado à minha secretária a dizer «sim», «não», «sim», «não»,
apercebi-me, comum desespero que se foi transformando em lívido furor, de que era um títere em
cujas mãos a sociedade colocara uma arma mortífera. Em última análise, não havia diferença entre
praticar uma boa acção ou uma má acção. Era como um sinal de igual através do qual passava o
enxame algébrico da humanidade. Era um sinal de igual muito importante e activo, como um
general em tempo de guerra, mas, por muito competente que fosse ou viesse a ser, jamais me
poderia tornar um sinal de mais ou de menos. Nem eu nem ninguém, tanto quanto me era dado
avaliar. Toda a nossa vida se arquitectava sobre esse princípio de igualdade. Os números inteiros
tinham-se tornado símbolos que eram distribuídos de acordo comos interesses da morte. Piedade,
desespero, paixão, esperança, coragem eram as refracções temporais resultantes de olhar para as
equações de vários ângulos. Deter o interminável malabarismo virando-lhe as costas, ou olhando-o
de frente e escrevendo a seu respeito, também não ajudaria. Num salão de espelhos não há maneira
nenhuma de virarmos as costas a nós próprios. Não farei isto. Farei qualquer outra coisa! Muito
bem. Mas pode-se não fazer nada? Pode-se deixar de pensar em não fazer nada? Pode-se estacar e,
sem pensar, irradiar a verdade que se sabe? Fora essa ideia que se encaixara no fundo da minha
cabeça e que ardia, ardia... Quando me mostrava mais expansivo, mais radiante de energia, mais
compreensivo, mais desejoso de ajudar, mais sincero e melhor, talvez fosse essa ideia fixa que
brilhava e me
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fazia dizer, maquinalmente: «Oh, não tem importância... Não tem de quê, garanto-lhe... Não, por
favor, não me agradeça», etc., etc. Em virtude de disparar a arma tantas centenas de vezes por dia,
talvez já nem sequer ouvisse as detonações; talvez pensasse que estava a abrir as gaiolas dos
pombos e a encher o céu de aves brancas como leite. Já alguma vez viram no écran um monstro
sintético, um Frankenstein de carne e sangue? São capazes de imaginar como poderia ser treinado
para premir um gatilho e ver pombos voar ao mesmo tempo? Frankenstein não é um mito:
Frankenstein é uma criação muito real, nascida da experiência pessoal de um ser humano sensitivo.
O monstro é sempre mais real quando não assume as proporções de carne e sangue. O monstro do
écran não é nada comparado como monstro da imaginação; até os monstros patológicos existentes,
que vão parar às esquadras da Polícia, são apenas fracas demonstrações da monstruosa realidade
coma qual o patologista vive. Mas ser o monstro e o patologista ao mesmo tempo... isso está
reservado a certas espécies de homens que, disfarçados de artistas, estão supremamente conscientes
de que o sono é um perigo ainda maior do que a insónia. A fim de não adormecerem, a fim de não
se tornarem vítimas dessa insónia chamada «viver», recorrem à droga de colocar palavras umas
após outras, infindavelmente. Isso não é um processo automático, dizem, porque está sempre
presente a ilusão de que podem parar quando lhes apetecer. Mas não podem parar; conseguiram
apenas criar uma ilusão, que talvez seja um fraco qualquer coisa, mas está longe de ser o estado de
totalmente desperto, e não é estar activo nem inactivo. Eu queria estar totalmente desperto sem
falar ou escrever a esse respeito, a fim de aceitar a vida absolutamente. Mencionei os homens
arcaicos de remotos lugares do Mundo comos quais comunicava frequentemente. Porque considerei
esses «selvagens» mais capazes de me compreenderem do que os homens e as mulheres que me
cercavam? Seria louco por acreditar em semelhante coisa? Não acho. Esses «selvagens» são os
restos degenerados de primitivas raças de homens que, estou convencido, devem ter tido maior
poder sobre a realidade. A imortalidade da espécie está constantemente diante dos nossos olhos sob
a forma desses espécimes do passado que persistem num esplendor debilitado. Se a espécie humana
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é imortal ou não, não me compete dizê-lo, mas a vitalidade da espécie significa algo para mim, e o
facto de estar activa ou letárgica significa ainda mais. À medida que a vitalidade da nova raça
declina, a vitalidade das antigas raças manifesta-se à mente desperta comsignificado cada vez
maior. A vitalidade das antigas raças permanece até na morte, mas a vitalidade da nova raça prestes
a morrer parece já inexistente. Se um homem levasse um cortiço de abelhas para o no a fim de as
afogar... Era esta a imagem que trazia em mim. Se ao menos eu fosse o homem e não as abelhas!
Sabia, de modo vago e inexplicável, que era o homem, que não me afogaria no cortiço como os
outros. Sempre que nos reuníamos num grupo, eu destacava-me; desde o nascimento que era
favorecido desse modo e sabia que, fossem quais fossem as atribulações por que passasse, não
seriam fatais nem duradouras. Acontecia em mim ainda outra coisa estranha, quando me mandavam
aproximar: sabia-me superior ao homem que me dava a ordem! A tremenda humildade que
praticava não era hipócrita e, sim, uma condição provocada pela consciência do carácter fatídico da
situação. A inteligência que possuía, mesmo em rapaz, assustava-me; era a inteligência de um
«selvagem», sempre superior à do homem civilizado no facto de ser mais adequada às exigências
das circunstâncias. É uma inteligência de vida, mesmo que, aparentemente, a vida os tenha
ignorado. Quase tinha a sensação de ter sido propulsionado para um plano de existência que, para o
resto da espécie humana, ainda não atingira o ritmo completo. Via-me obrigado a afrouxar se queria
permanecer comos outros e não ser impelido para outra esfera de existência. Por outro lado, era em
muitas coisas inferior aos seres humanos que me rodeavam. Dir-se-ia que saíra dos fogos do Inferno
sem estar inteiramente purificado. Ainda tinha uma cauda e um par de chavelhos, e, quando as
minhas paixões despertavam, havia no meu hálito um veneno sulfuroso e aniquilador. Chamavamme um «demónio afortunado». O bem que me acontecia era classificado como «sorte» e o mal era
sempre considerado um resultado das minhas deficiências. Ou, melhor ainda, fruto da minha
cegueira. Raramente alguém tinha confiança em mim! Nes.se aspecto era tão hábil como o próprio
demónio. Mas toda a gente via que era frequentemente cego. E em tais ocasiões deixavam-me em
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paz, repeliam-me como ao próprio demónio. Até que abandonei o mundo, regressei aos fogos do
Inferno. Voluntariamente. Estas idas e vindas são tão reais para mim - são na verdade mais reais do que tudo quanto aconteceu de permeio. Os amigos que pensam conhecer-me não sabem nada a
meu respeito, porque o verdadeiro eu mudou de mãos vezes sem conta. Nem os homens que me
agradeciam, nem os que me amaldiçoavam, sabiam comquem estavam a lidar. Nunca ninguém
chegou a uma base sólida comigo, porque a minha personalidade estava sempre em liquidação.
Conservava aquilo a que se chama «personalidade» de reserva, à espera do momento em que,
deixando-a para que solidificasse, ela adoptaria um ritmo humano adequado. Ocultava o rosto à
espera do momento em que me encontraria como passo certo como mundo. Claro que tudo isso
estava errado. Até o papel de artistas vale a pena adoptar, enquanto se gasta tempo. A acção é
importante, ainda que implique actividade inútil. Uma pessoa não deveria dizer «sim», «não»,
«sim», «não», nem mesmo sentada no mais alto lugar. Uma pessoa não se deveria afogar no
macaréu humano, nem mesmo para se tornar um Mestre. Uma pessoa deveria marcar o seu próprio
ritmo, custasse o que custasse. Acumulei milénios de experiência num pequeno punhado de anos,
mas a experiência desperdiçou-se porque não tive necessidade dela. Já tinha sido crucificado e
marcado pela cruz; tinha sido libertado da necessidade de sofrer - e, contudo, não conhecia outra
maneira de avançar a não ser repetindo o drama. Toda a minha inteligência se rebelava, se opunha.
Sofrer é inútil, dizia-me e repetia-me a inteligência, mas eu continuava a sofrer voluntariamente.
Sofrer nunca me ensinara nada; para outros, talvez ainda seja necessário, mas para mim não é mais
do que uma demonstração algébrica de inadaptabilidade espiritual. Todo o drama que o homem de
hoje representa, através do sofrimento, não existe para mim; nunca existiu, na realidade. Todos os
meus calvários foram alegres crucificações, pseudotragédias destinadas a manter os fogos do
Inferno a arder vivamente para os pecadores genuínos em perigo de serem esquecidos.
Outra coisa... O mistério que envolvia o meu comportamento adensava-se à medida que me
aproximava mais do círculo dos parentes uterinos. A mãe de cujo ventre saíra era
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uma autêntica estranha para mim. Para começar, depois de me parir, pariu a minha irmã, a quem
geralmente me refiro como o meu irmão. A minha irmã era uma espécie de monstro inofensivo, um
anjo a quem fora dado o corpo de um idiota. Quando rapaz, causava-me uma estranha sensação
crescer e desenvolver-me lado a lado comesse ser que estava condenado a permanecer toda a vida
um anão mental. Era impossível ser irmão dela porque era impossível considerar aquele matacão
atávico uma «irmã». Suponho que ela teria funcionado perfeitamente entre os primitivos
australianos. Entre eles, talvez ascendesse, até, ao poder e à eminência, pois, como já disse, era a
essência da bondade, não conhecia o mal. Mas, no tocante a viver a vida civilizada, não havia nada
a fazer. Além de não ter nenhum desejo de matar, também não tinha o mínimo desejo de progredir a
expensas dos outros. Era incapaz de trabalhar, pois, mesmo que fosse possível treiná-la para fazer
cápsulas para explosivos fortes, seria muito capaz de, distraidamente, atirar o dinheiro ao rio, no
regresso a casa, ou de o dar a um pedinte, na rua. Quantas vezes foi açoitada na minha presença,
como um cão, por, naquilo a que chamavam a sua distracção, ter desempenhado um desses belos
actos de misericórdia. Aprendi em criança não haver nada pior do que fazer uma boa acção sem
motivo. Ao princípio, fui castigado como a minha irmã, pois tinha como ela o hábito de dar coisas,
principalmente coisas novas, que tinham acabado de me ser dadas. Uma vez, aos cinco anos, levei
até uma valente tareia por aconselhar a minha mãe a cortar uma verruga que tinha num dedo. Um
dia, ela perguntou-me o que havia de fazer e eu, na minha ignorância de medicina, respondi-lhe que
a cortasse comuma tesoura - e ela cortou-a, como uma idiota. Dias depois apareceu-lhe uma
infecção e perguntou-me: «Foste tu que me disseste que a cortasse, não foste?» E, zás! Espancoume. Desse dia em diante compreendi que nascera na casa errada. Desse dia em diante, aprendi como
um alho. Venham-me cá falar de adaptação! Aos dez anos já passara por toda a teoria da evolução.
E ali estava eu, evoluindo através de todas as fases da vida animal e, contudo, acorrentado àquela
criatura a quem chamavam minha «irmã», que era evidentemente um ser primitivo e que nunca
compreenderia sequer o alfabeto, nem mesmo que chegasse aos noventa anos.
Trópico de Capricórnio
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Em vez de crescer como uma árvore robusta, comecei a inclinar-me para um lado, num desafio total
à lei da gravidade. Em vez de romper em ramos e folhas, desabrochei em janelas e torrezinhas, e
quanto mais alto me tornava, tanto mais desafiava a lei da gravidade. Era um fenómeno no meio da
paisagem, mas um fenómeno que atraía gente e provocava elogios. Se a mãe que nos parira
houvesse feito mais um esforço, talvez tivesse nascido um maravilhoso búfalo branco e fôssemos os
três instalados num museu, protegidos para o resto da vida. As conversas travadas entre a torre de
pisa inclinada e o pelourinho, a máquina de ressonar e o pterodáctilo de carne humana, eram pelo
menos, pelo menos, um pouco esquisitas. Tudo podia servir de objecto de conversa - uma migalha
de pão que a «irmã» se esquecera de recolher ao limpar a toalha da mesa ou o multicolorido casaco
de José que, no cérebro alfaiático do velho, podia ter sido jaquetão, ou fraque, ou sobrecasaca. Se
regressava do rinque de patinagem, onde passara toda a tarde a patinar, o importante não era o
ozónio que respirara gratuitamente, nem as convoluções geométricas que me fortaleciam os
músculos e, sim, a pintinha de ferrugem existente debaixo das correias, pintinha essa que, se não
fosse limpa imediatamente, poderia provocar a dissolução de qualquer valor pragmático
incompreensível para o meu tipo pródigo de pensamento. Utilizando este exemplo insignificante, a
pintinha de ferrugem podia arrastar consigo os mais alucinantes resultados. Talvez a «irmã», ao
procurar a lata do petróleo, virasse a vasilha das ameixas que estavam a ser cozidas e pusesse assim
em perigo a vida de todos nós, privando-nos das calorias necessárias, na refeição do dia seguinte.
Isso obrigaria a dar-lhe uma grande tareia, não colericamente, pois tal perturbaria o aparelho
digestivo, mas silenciosa e eficientemente, como um químico a bater uma clara de ovo a fim de
preparar uma análise de pequena importância. Mas a «irmã», que não compreendia a natureza
profiláctica do castigo, soltaria gritos de gelar o sangue, o que afectaria de tal modo o velho que ele
sairia para dar uma volta, e regressaria duas ou três horas depois perdido de bêbedo e, pior ainda,
arrancaria um bocadito de tinta de uma porta, no seu desequilíbrio. Pois esse bocadito de tinta
chegaria para provocar uma zaragata das antigas, o que era muito mau para a minha vida onírica
porque, nessa vida,
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Henry Miller
Trópico de Capricórnio
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mudava muitas vezes de lugar coma minha irmã, aceitando as torturas que lhe eram infligidas e
alimentando-as como meu cérebro hipersensitivo. Era nesses sonhos, sempre acompanhados por
sons de vidros partidos, gritos, pragas, gemidos e soluços, era nesses sonhos que adquiria um
conhecimento não formulado de antigos mistérios, dos ritos da iniciação, da transmigração das
almas, etc. Podia começar tudo comuma cena da vida real: a minha irmã de pé junto do quadro, na
cozinha, e a minha mãe a perguntar-lhe, de régua em riste: dois e dois quantos são? A minha irmã
gritava cinco e... bang! Não, sete e... bang! Não, treze, dezoito, vinte!... Eu estava sentado à mesa a
fazer os trabalhos escolares, exactamente como na vida real, quando, por um ligeiro desvio, ou
esquiva, via a régua acertar na cara da minha irmã. Então, de repente, encontrava-me noutro planeta
onde o vidro era desconhecido, o vidro e muitas outras coisas. Os rostos dos que me rodeavam
eram-me familiares, eram os rostos dos meus parentes naquele novo ambiente. Estavam vestidos de
preto e a sua pele era da cor da cinza, como a dos demónios tibetanos. Estavam todos munidos de
facas e outros instrumentos de tortura: pertenciam à casta dos carniceiros sacrificiais. Eu parecia
dotado de absoluta liberdade e da autoridade de um deus, mas, por qualquer capricho dos
acontecimentos, acabava sempre estendido na pedra dos sacrifícios, enquanto um dos meus
encantadores parentes uterinos se debruçava para mini, comuma faca reluzente, e se preparava para
me arrancar o coração. A suar de terror, desatava a papaguear as «minhas lições» em voz alta e
esganiçada, cada vez mais depressa, à medida que sentia a faca procurar-me o coração. Dois e dois
quatro, cinco e cinco dez, terra, ar, fogo, água, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, hidrogénio,
oxigénio, azoto, Pliocénico, Miocénico, Oligocénico, Pai, Filho, Espírito Santo, Ásia, África,
Europa, Austrália, encarnado, azul, amarelo, caneleira, diospireiro, papaia, catalpa... mais depressa,
mais depressa... Odin, Wotan, Parsifal, rei Alfredo, Frederico-o-Grande, a Liga Hanseática, a
Batalha de Hastings, Termópilas, 1492, 1776, 1812, almirante Farragut, o ataque de Pickett, a
Brigada Ligeira, estamos aqui hoje reunidos, Deus é o meu Senhor, não farei, uno e indivisível, não,
16, não, 27, socorro!, assassínio!, polícia! - e, gritando cada vez mais alto e cada vez mais depressa,
perdia por
completo a tramontana e não havia mais dor nem mais terror, mesmo que eles me estivessem a
traspassar todo comfacas. De súbito, sinto-me absolutamente calmo e o corpo que estava na pedra
dos sacrifícios, e que eles continuavam a perfurar comgozo e êxtase, não sentia nada porque eu, o
seu dono, fugira. Transformava-me numa torre de pedra que se inclinava para a cena e observava
cominteresse científico. Bastava-me entregar-me à lei da gravidade para cair sobre eles e obliterálos... Mas não me entregava à lei da gravidade porque estava excessivamente fascinado por todo
aquele horror. Estava tão fascinado, na realidade, que me nasciam mais e mais janelas. E, à medida
que a luz penetrava na pedra interior do meu ser sentia que as minhas raízes, que estavam na terra,
estavam vivas, e que um dia, quando me apetecesse, poderia libertar-me do transe que me
imobilizava.
Basta do sonho em que estou irremediavelmente enraizado. Na realidade, quando os queridos
parentes uterinos chegam, sinto-me livre como um pássaro e saltitando de um lado para o outro,
como uma agulha magnética. Se me fazem uma pergunta, dou-lhes cinco respostas, cada uma das
quais melhor do que a outra. Se me pedem que toque uma valsa, toco uma sonata para a mão
esquerda. Se me dizem que coma mais uma perna de frango, limpo a travessa,
comacompanhamentos e tudo. Se me incitam a ir brincar para a rua, obedeço e, no meu entusiasmo,
abro a cabeça do meu primo comuma lata. Se ameaçam dar-me uma tareia, replico que dêem, não
me importo! Se me afagam a cabeça e felicitam pelos meus progressos escolares, cuspo para o chão,
a fim de lhes mostrar que ainda tenho alguma coisa a aprender. Faço excessivamente tudo quanto
querem que faça. Se querem que me cale e não diga nada, fico mudo como uma pedra: não os ouço
quando me falam, não me mexo quando me tocam, não choro quando me beliscam, não tujo nem
mujo quando me empurram. Se se queixam de que sou obstinado, torno-me maleável e flexível
como borracha. Se desejam fatigar-me para que não evidencie excessiva energia, consinto que me
encarreguem de todas as tarefas e desempenho-me delas tão minuciosamente que acabo por cair no
chão, exausto, como um saco de trigo. Se querem que seja razoável, torno-me ultra-razoável, o que
os enlouquece. Se desejam que obedeça, obedeço à letra, o que
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Henry Miller
provoca interminável confusão. E tudo isto porque a vida molecular de irmão-e-irmã é incompatível
como peso atómico que nos foi destinado. Como ela não cresce nada, eu cresço como um
cogumelo; como ela não tem personalidade, eu torno-me um colosso; como ela está isenta de mal,
eu sou um candelabro de mal comtrinta e dois braços; como ela não pede nada a ninguém, eu peço
tudo; como ela inspira ridículo em toda a parte, eu inspiro medo e respeito; como ela é humilhada e
torturada, eu exerço vingança sobre toda a gente, seja amigo ou inimigo; como ela é impotente, eu
forço-me a ser Todo-Poderoso. O gigantismo de que sofri nesse tempo foi simplesmente a
consequência de um esforço para limpar a pintinha de ferrugem que aparecera no patim da família,
por assim dizer. Essa pintinha de ferrugem debaixo das correias fez de mim um patinador campeão.
Fez-me patinar tão veloz e furiosamente que, mesmo quando o gelo se derretia, eu continuava a
patinar, patinava através de lama, através de asfalto, através de ribeiros, e rios, e meloais, e teorias
de economia, etc. Tão rápido e lesto era que poderia patinar através do Inferno.
Mas toda essa patinação era inútil. O padre Coxcox, o Noé pan-americano, estava sempre a chamarme, a ordenar-me que regressasse à Arca. Todas as vezes que parava de patinar havia um
cataclismo, a terra abria-se e engolia-me. Era um irmão para todos os homens e, ao mesmo tempo,
um traidor para mim próprio. Fazia os mais espantosos sacrifícios, mas acabava sempre por
verificar que não valiam de nada. De que valia provar que podia ser o que esperavam que fosse,
quando não queria ser nenhuma dessas coisas? Todas as vezes que chegamos ao limite do que
esperam de nós, ficamos frente a frente como o mesmo problema: sermos nós próprios! E mal
damos o primeiro passo nesse sentido, verificamos que não existe plus nem minus; atiramos os
patins fora e nadamos. Acaba-se o sofrimento, porque já não há nada que possa ameaçar a nossa
segurança. E nem sequer há desejo de ajudar os outros, pois para quê roubá-los de um privilégio
que deve ser conquistado? A vida alastra de momento para momento numa infinidade estupenda.
Nada pode ser mais real do que supomos que seja. O cosmos é seja o que for que pensemos que é, e
não poderá comcerteza ser outra coisa enquanto
Trópico de Capricórnio
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vocês forem vocês e eu for eu. Vocês vivem dos frutos da vossa acção e a vossa acção é a colheita
do vosso pensamento. Pensamento e acção são a mesma coisa, porque nadando estão nela e são
dela, e ela é tudo quanto desejam que seja, nem mais, nem menos. Cada braçada conta para toda a
eternidade. O sistema de aquecimento e arrefecimento é só um sistema, e Câncer está separado de
Capricórnio apenas por uma linha imaginária. Não nos tornamos extáticos e não somos
mergulhados em dor violenta; não rezamos a pedir chuva, nem dançamos uma jiga. Vivemos como
um rochedo feliz no meio do oceano: estamos fixos enquanto tudo quanto nos rodeia se encontra em
movimento turbulento. Estamos fixos numa realidade que permite pensar que nada é fixo, que até
mesmo o rochedo mais feliz e mais forte será um dia completamente dissolvido e tornar-se-á fluido
como o oceano de que nasceu.
Era esta a vida musical de que me aproximava, começando por patinar como um maníaco através de
todos os vestíbulos e corredores que levavam do exterior para o interior. Os meus esforços nunca
me acercaram dela, nem os meus esforços, nem a minha furiosa actividade, nem o meu roçar de
cotovelos coma humanidade. Tudo isso era simplesmente um movimento de vector para vector num
círculo que, por muito que o perímetro se expandisse, permanecia paralelo como reino de que falo.
A roda do destino pode ser transcendida em qualquer momento porque toca o mundo real em todos
os pontos da sua superfície, e basta uma centelha de iluminação para provocar o miraculoso, para
transformar o patinador em nadador e o nadador em rochedo. O rochedo é meramente uma imagem
do acto que detém a inútil rotação da roda e mergulha o ser em total consciência. E a total
consciência é veramente como um oceano inexaurível que se dá ao Sol e à Lua e também inclui o
Sol e a Lua. Tudo quanto existe nasceu do ilimitado oceano de luz - até a noite.
Algumas vezes, nas incessantes revoluções da roda, tive um vislumbre da natureza do salto que era
necessário dar. Saltar para fora do mecanismo de relógio: eis o pensamento libertador. Ser qualquer
coisa diferente, ser algo mais do que o mais brilhante maníaco da Terra! A história do Homem na
Terra maçava-me. A conquista, até mesmo a conquista do mal, maçava-me. Irradiar bondade é
maravilhoso, porque
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Henry Miller
é tónico revigorante, vitalizador. Mas ser, apenas, é ainda mais maravilhoso, porque é interminável
e não exige qualquer demonstração. Ser é música, o que é uma profanação do silêncio no interesse
do silêncio, e portanto para além do bem e do mal. A música é a manifestação da acção sem
actividade. É o acto puro da criação a nadar no seu próprio seio. A música não incita nem proíbe,
não procura nem explica. A música é o som silencioso feito pelo nadador no oceano da percepção.
É uma recompensa que só pode ser dada pelo próprio recompensado. É o dom do deus que a pessoa
é porque deixou de pensar em Deus. É um augúrio do deus que todos seremos em devido tempo,
quando tudo quanto é f or para além da imaginação.
CODA
Não há ainda muito tempo, percorria as ruas de Nova Iorque. Querida velha Broadway. Era de noite
e o céu estava de um azul oriental, tão azul como o ouro do tecto do Pagode da rue de Babylone,
quando a máquina começa a funcionar. Passava exactamente debaixo do lugar onde nos
conhecemos. Parei um momento, a olhar para as luzes vermelhas das janelas. A música soava como
sempre: leve, apimentada, encantadora. Estava sozinho e havia milhões de pessoas à minha volta.
Enquanto ali estava parado, lembrei-me de que já não pensava nela; pensava no livro que estou a
escrever, um livro que se tornou mais importante do que ela, mais importante do que tudo quanto
nos aconteceu. Será esse livro a verdade, toda a verdade, e nada mais do que a verdade, assim Deus
me ajude? Misturei-me de novo coma multidão, a debater-me comessa questão da «verdade». Há
anos que tento contar esta história e a questão da verdade tem sempre pesado sobre mim como um
pesadelo. Vezes sem conta relatei a outros as circunstâncias da nossa vida, e disse sempre a
verdade. Mas a verdade também pode ser uma mentira. A verdade não é suficiente. A verdade é
apenas o cerne de uma totalidade inexaurível.
Lembro-me de que, quando estivemos separados pela primeira vez, a ideia da totalidade me agarrou
pelos cabelos. Quando me deixou, pretendeu - ou talvez tenha mesmo acreTropico de Capricórnio
305
ditado nisso - que a separação era necessária para o nosso bem-estar. Eu sabia no fundo do coração
que ela tentava libertar-se de mim, mas era tão cobarde que nem a mim próprio o confessava.
Quando, porém, compreendi que ela podia passar sem mim, mesmo durante um espaço de tempo
limitado, a verdade que tentara ocultar começou a crescer comalarmante rapidez. Foi mais doloroso
do que tudo quanto jamais experimentara, mas também foi cicatrizante. Quando fiquei
completamente vazio, quando a solidão atingiu tal ponto que não podia agudizar-se mais,
compreendi de súbito que, para continuar a viver, essa intolerável verdade tinha de ser incorporada
em algo maior do que o âmbito de um infortúnio pessoal. Senti que passei imperceptivelmente para
outro reino, para um reino de fibra mais resistente, mais elástica, que a mais horrível verdade não
conseguiria destruir. Sentei-me a escrever-lhe uma carta em que lhe dizia sofrer tanto como
pensamento de a perder que decidira começar a escrever um livro a respeito dela, um livro que a
imortalizaria. Seria, afirmei, um livro como ninguém jamais vira. E continuei a escrever
extasiadamente, até que no meio parei, de súbito, para me perguntar porque me sentia tão feliz.
Ao passar por baixo do salão de dança e pensar de novo nesse livro, compreendi de repente que a
nossa vida chegara ao fim: compreendi que o livro que planeava não era mais do que um túmulo
onde planeava sepultá-la, a ela e à parte de mim que lhe pertencera. Isso passou-se há algum tempo
e desde então tenho tentado escrevê-lo. Porque é tão difícil? Porquê? Porque a ideia de um «fim»
me é intolerável.
A verdade encontra-se neste conhecimento do fim que é desapiedado e implacável. Podemos saber
a verdade e aceitá-la, ou podemos recusar o seu conhecimento e não morrer nem renascer. Deste
modo é possível viver para sempre uma vida negativa tão sólida e completa, ou tão dispersa e
fragmentária, como o átomo. E, se seguirmos por essa estrada durante tempo suficiente, até essa
eternidade atómica poderá submeter-se ao nada e o próprio Universo desmoronar-se.
Há anos que tento contar esta história; todas as vezes que comecei escolhi uma estrada diferente.
Sou como um explora-
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Henry Miller
dor que, desejando circum-navegar o Globo, acha desnecessário munir-se sequer de uma bússola.
Além disso, por sonhar há tanto tempo comela, a própria história acabou por se assemelhar a uma
imensa cidade fortificada, e eu, que sonho e sonho comela, estou fora da cidade, sou um vagabundo
que pára diante de portão após portão, demasiado exausto para entrar. E, como acontece ao
vagabundo, a cidade em que a minha história se situa foge-me perpetuamente. Sempre à vista,
mantém-se no entanto inacessível, uma espécie de cidadela fantasma flutuante nas nuvens. Das altas
muralhas ameadas descem bandos de imensos gansos brancos, em firme formação de cunha. comas
pontas das suas asas brancas-azuladas roçam pelos sonhos que me turvam a visão. Os meus pés
movem-se confusamente; mal consigo um apoio, volto a perder-me. Vagueio sem destino, à procura
de um apoio sólido, onde possa firmar bem os pés a abarcar um panorama da minha vida, mas atrás
de mim existe apenas uma confusão de vias entrecruzadas, um tactear confuso, o espernear
espasmódico do frango cuja cabeça acaba de ser cortada.
Sempre que tento explicar a mim próprio o padrão peculiar que a minha vida assumiu, sempre que
tento localizar a primeira causa, por assim dizer, penso inevitavelmente na rapariga a quem amei
pela primeira vez. Parece-me que data tudo desse romance abortado. E foi de facto um estranho
romance masoquista, ridículo e trágico ao mesmo tempo. Talvez tenha tido o prazer de a beijar duas
ou três vezes, como género de beijos que reservamos para uma deusa. Talvez a tenha visto a sós
diversas vezes. comcerteza nunca lhe passou pela cabeça que durante mais de um ano passei todas
as noites pela sua casa, na esperança de captar um vislumbre seu, à janela. Todas as noites, depois
do jantar, levantava-me da mesa e metia pela longa estrada que levava a sua casa. Ela nunca estava
à janela quando eu passava, e eu nunca tinha a coragem de parar diante da casa e esperar. Passava
para trás e para diante, mas dela nem sombra, nunca. Porque não lhe escrevi? Porque não a visitei?
Lembro-me de que uma vez consegui reunir coragem suficiente para a convidar a ir ao teatro.
Cheguei a sua casa comum ramo de violetas, a primeira e a única vez que comprei flores para uma
mulher. Quando saímos do teatro, as violetas caíram-lhe do decote e, na minha atrapalhação,
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pisei-as. Supliquei-lhe que as deixasse no chão, mas ela insistiu em apanhá-las. Pensei como era
desastrado, e só muito tempo depois recordei o seu sorriso, ao baixar-se para apanhar as violetas.
Foi um fiasco completo. No fim, fugi. Na realidade, fugia de outra mulher, mas na véspera de sair
da cidade resolvi vê-la mais uma vez. Foi ao meio da tarde e ela saiu para falar comigo na rua, no
pequeno corredorzinho entre os prédios, comuma vedação. Já estava comprometida comoutro
homem; fingiu sentir-se feliz comisso, mas eu vi, apesar da minha cegueira, que não era tão feliz
como fingia ser. Tenho a certeza de que me bastaria ter dito a palavra adequada para que ela
abandonasse o outro tipo; talvez até tivesse fugido comigo. Preferi, porém, castigar-me. Despedi-me
despreocupadamente e desci a rua como um morto. Na manhã seguinte parti para a costa, decidido a
começar nova dia.
A nova vida foi outro fiasco. Acabei por ir para a um rancho em Chula Vista, sentindo-me o homem
mais desgraçado que jamais pisara a Terra. Havia a rapariga a quem amava e havia a outra mulher,
pela qual sentia apenas uma profunda compaixão. Vivia comela havia dois anos, comessa tal
mulher, mas já me pareciam uma vida inteira. Eu tinha vinte e um anos e ela admitia ter trinta e
seis. Todas as vezes que olhava para ela, dizia para comigo: quando eu tiver trinta anos ela terá
quarenta e cinco, quando eu tiver quarenta anos ela terá cinquenta e cinco, quando eu tiver
cinquenta anos ela terá sessenta e cinco... Tinha rugas fimnhas debaixo dos olhos, rugas de riso,
mas rugas, apesar de tudo. Quando a beijava, ampliavam-se uma dúzia de vezes. Ria-se
comfacilidade, mas os seus olhos eram tristes, terrivelmente tristes. Olhos arménios. O seu cabelo,
que em tempos fora ruivo, era então louro oxigenado. Tirando isso, era adorável: corpo venusiano e
alma venusiana, leal, digna de ser amada, grata, tudo quanto uma mulher deve ser, exceptuando o
facto de ter mais quinze anos do que eu. Os quinze anos de diferença davam comigo em maluco.
Quando saía comela, só fazia a mim mesmo perguntas do género: como será daqui a dez anos? Ou
então: que idade aparenta agora? Pareço ter idade suficiente para ela? Ao subir a escada, costumava
enfiar-lhe o dedo pelas virilhas, o que a fazia guinchar como um cavalo. Se o filho, que era qua-
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se da minha idade, estava na cama, fechávamo-nos à chave na cozinha. Ela deitava-se na mesa
estreita e eu cravava-lho. Era maravilhoso. E o que tornava tudo ainda mais maravilhoso era o facto
de, em cada sessão, dizer para comigo: É a última, vez... amanhã piro-me! E depois, como ela era a
porteira do prédio, ia à cave e punha os latões das cinzas na rua, para a ajudar. De manhã, depois de
o filho ter saído para o trabalho, subia ao telhado e arejava a roupa da cama. Tanto ela como o filho
sofriam de tuberculose... Algumas vezes não havia sessão em cima da mesa. Algumas vezes o
desespero de tudo aquilo filava-me pela garganta e eu vestia-me e ia dar um passeio. De vez em
quando, esquecia-me de regressar. E, quando isso acontecia, sentia-me mais desgraçado do que
nunca, pois sabia que ela estava à minha espera, comaqueles grandes olhos magoados. Voltava para
ela como um homem comum dever sagrado a cumprir. Deitava-me na cama e deixava-a acariciarme, enquanto lhe observava as rugas debaixo dos olhos e as raízes do cabelo, que começavam a
ficar ruivas. Assim deitado, pensava muitas vezes na outra, naquela a quem amava, perguntava-me
se também estaria deitada a fazer aquilo ou... Os longos passeios a pé que eu dava, trezentos e
sessenta e cinco dias no ano! Recordava-os mentalmente, deitado ao lado da outra mulher. Quantas
vezes tenho revivido esses passeios! As ruas mais tristes, mais desoladas, mais feias que o homem
jamais criou. Angustiado, revivo esses passeios, essas ruas, essas primeiras esperanças esmagadas.
A janela existe, mas não há Melisanda; o jardim também existe, mas sem qualquer refulgir dourado.
Passar e tornar a passar e a janela sempre deserta. A estrela vespertina paira, baixa; aparece Tristão,
e depois Fidélio, e depois Oberon. O cão de cabeça de hidra ladra comtodas as suas bocas e, embora
não haja pântanos, ouço rãs coaxar em toda a parte. As mesmas casas, as mesmas filas de carros, o
mesmo tudo. Ela está oculta atrás da cortina, ela espera que eu passe, ela está a fazer isto ou a fazer
aquilo... mas não está à janela nunca, nunca, nunca. É uma ópera de gala ou uma sessão de realejo?
É Amato rebentando o pulmão de ouro, é o Rubaiyat, é o monte Everest, é uma noite sem lua, é
uma solução na alvorada, é um rapaz a fazer de conta, e o Gato na Bota, é Mauna Loa, é raposa ou
astracã, não tem matéria nem tempo, é infindável e começa e torna a começar
sob o coração, ao fundo da garganta, nas solas dos pés, e porque não só uma vez, só uma vez pelo
amor de Cristo, porque não só uma vez uma sombra, ou um roçagar da cortina, ou um bafo na
vidraça, porque não qualquer coisa uma vez, mesmo uma mentira, qualquer coisa que pare a dor,
que ponha fim a este andar para baixo e para cima, para baixo e para cima... De regresso a casa. As
mesmas casas, os mesmos candeeiros, o mesmo tudo. Passo pela minha própria casa, pelo
cemitério, pelos gasómetros, pelas garagens e pela represa e mergulho no descampado. Sento-me à
beira da estrada, coma cabeça nas mãos, e soluço. Pobre diabo que sou, incapaz de contrair o
coração o suficiente para rebentar as veias! Gostaria de sufocar de desgosto, mas em vez disso dou à
luz uma pedra.
Entretanto, a outra espera. Vejo-a de novo, sentada no alpendre baixo, à minha espera, de olhos
dilatados e dolorosos e rosto pálido e trémulo de ansiedade. Sempre pensei que era a compaixão que
me levava para junto dela, mas agora, ao caminhar na sua direcção e ao ver a expressão dos seus
olhos, já não sei o que é, sei apenas que entraremos em casa e nos deitaremos juntos, que ela se
levantará meio a chorar, meio a rir, e ficará pouco a pouco muito calada, a observar-me, a estudar os
meus movimentos, sem nunca, nunca, me perguntar o que me tortura, nunca, porque essa é a única
coisa que teme, a única coisa que tem medo de saber. Não te amo! Não me ouve gritá-lo? Não te
amo! Grito-o vezes sem conta, de lábios comprimidos, comódio no coração, comdesespero,
comraiva impotente. Mas as palavras não me saem nunca da boca. Olho para ela e fico de língua
presa. Não consigo... Tempo, tempo, interminável tempo nas nossas mãos e nada comque preenchêlo, nada a não ser mentiras.
Bem, não quero recordar toda a minha vida até ao momento fatal... Seria muito longo e muito
doloroso. Além disso, terá a minha vida conduzido realmente a esse momento culminante? Duvido.
Penso que existiram inúmeros momentos em que tive oportunidade de começar, mas em que me
faltaram a força e a fé. Na noite em questão, abandonei-me a mim próprio, deliberadamente: virei as
costas à vida antiga e entrei na nova. Isso não exigiu o mínimo esforço. Tinha então trinta anos.
Tinha mulher e filha e aquilo a que
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se chama um lugar de «responsabilidade». Estes são os factos, e os factos não significam nada. A
verdade é que o meu desejo era tão grande, tão forte, que se tornou realidade. O que um homem faz
num momento assim não tem grande importância; o que conta é o que ele é. E em momentos assim
que um homem se torna um anjo. Foi precisamente o que me aconteceu: tornei-me um anjo. O mais
valioso não é a pureza de um anjo e, sim, o facto de poder voar. Um anjo pode quebrar o esquema
em toda a parte e em qualquer momento e encontrar o seu céu; tem a faculdade de descer na mais
baixa da matéria e de se libertar dela a seu bel-prazer. Na noite em questão, compreendi-o
perfeitamente. Era puro e inumano, desprendido, e tinha asas. Fora despojado do passado e não
tinha qualquer preocupação quanto ao futuro. Estava para além do êxtase. Quando saí do escritório,
dobrei as asas e escondi-as debaixo do casaco.
O salão de baile ficava mesmo defronte da entrada lateral do teatro onde costumava passar as
tardes, em vez de procurar trabalho. Era uma rua de teatros e eu costumava sentar-me lá horas a fio,
a sonhar os sonhos mais violentos. Toda a vida teatral de Nova Iorque se concentrava naquela rua,
ou pelo menos assim parecia. Era a Broadway, era o êxito, a fama, o brilho, a pintura, a cortina de
amizade e o buraco na cortina. Sentado nos degraus do teatro, costumava olhar fixamente para o
salão de baile, do outro lado da rua, para a enfiada de lanternas vermelhas que até mesmo nas tardes
de Verão se acendiam. Em todas as janelas havia um ventilador que parecia soprar a música para a
rua, onde a barulheira do trânsito a desfazia. Defronte, do outro lado do salão de baile, havia um
lavabo onde também me costumava sentar, na esperança de conquistar uma mulher ou de dar um
encosto a alguém. Acima do lavabo, ao nível da rua, havia um quiosque que vendia revistas e
jornais estrangeiros; a simples visão daqueles jornais, das estranhas línguas em que estavam
impressos, era o suficiente para me perturbar para o dia todo.
Sem a mínima premeditação, subi a escada do salão de baile e fui direito ao guiché da cabina onde
Nick, o Grego, estava sentado comum rolo de bilhetes à frente. Como o urinol, em baixo, e os
degraus do teatro, a mão do Grego parece-me agora, também, uma coisa isolada, separada - a
enorme mão
peluda de um ogro retirada de qualquer horrível conto de fadas escandinavo. Era sempre a mão que
me falava, era sempre a mão que me dizia: «Miss Mara não virá esta noite.» Ou: «Sim, Miss Mara
só vem tarde, esta noite.» Era comaquela mão que sonhava em criança, quando dormia no quarto
coma janela gradeada. No meu sonho febril, a janela iluminava-se, de súbito, e revelava o ogro
agarrado às grades. O monstro hirsuto visitava-me noite após noite, agarrado às grades e de dentes
arreganhados. Acordava encharcado em suores frios, no quarto absolutamente silencioso da casa às
escuras.
De pé, na orla da pista de dança, vejo-a dirigir-se para mim. Avança comtodas as velas desfraldadas
e a grande cara cheia maravilhosamente equilibrada na comprida coluna do pescoço. Vejo uma
mulher talvez de dezoito anos, talvez de trinta anos, de cabelo preto-azulado e grande cara branca,
uma cara branca e cheia onde os olhos refulgiam, brilhantes. Veste um fato de veludo azul,
comcorte de alfaiate. Lembro-me perfeitamente de como o seu corpo era cheio e o seu cabelo fino e
liso, comrisco ao lado, como o de um homem. Lembro-me do sorriso em que me envolvia conhecedor, misterioso, fugidio -, um sorriso que jorrava subitamente, como uma rabanada de
vento.
O ser concentrava-se todo no rosto. Podia ter pegado apenas na cabeça e partido para casa comela;
podia tê-la deitado a meu lado, numa almofada, à noite, e amá-la. Quando a boca e os olhos se
abriam, todo o ser brilhava através deles. Era como se houvesse uma iluminação que vinha de
qualquer fonte desconhecida, de um centro profundamente oculto na terra. Não era capaz de pensar
noutra coisa senão na cara, na propriedade estranha e uterina do sorriso, na sua avassaladora
proximidade. O sorriso era tão dolorosamente rápido e fugaz que lembrava o clarão de uma faca.
Esse sorriso, esse rosto, empoleiravam-se altivamente num comprido pescoço branco, no forte
pescoço de cisne do médium - e dos perdidos e danados.
Estou parado à esquina, debaixo das luzes vermelhas, à espera que ela desça. São cerca de duas
horas da manhã e ela vai-se despedir. Estou de pé na Broadway, comuma flor na botoeira, e sintome absolutamente purificado e sozinho. Estivemos quase toda a noite a falar de Strindberg, de uma
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Henry Miller
personagem sua chamada Henriette. Escutei-a comuma atenção tão tensa que caí em transe. Foi
como se, logo à primeira frase, tivéssemos iniciado uma corrida - em direcções opostas. Henriette!
A bem dizer, assim que o nome foi mencionado ela começou a falar de si mesma, mas sem nunca
perder Henriette de vista. Henriette estava ligada a ela por uma comprida corda invisível, que
manipulava imperceptivelmente comum dedo, como o vendedor ambulante que se mantém um
pouco afastado do pano preto, no passeio, aparentemente indiferente ao mecanismozinho que
movimenta no pano, mas denunciando-se pelo movimento espasmódico do dedo pequenino, a que o
fio preto está atado. Henriette sou eu, o meu verdadeiro eu, parecia ela dizer. Queria que eu
acreditasse que Henriette era, realmente, a encarnação do mal. Dizia-o tão naturalmente, tão
inocentemente, comuma sinceridade quase sub-humana... Como poderia eu acreditar que falava a
sério? A única coisa que conseguia fazer era sorrir, como para lhe mostrar que estava convencido.
De súbito, sinto-a vir. Viro a cabeça. Sim, lá vem ela de velas desfraldadas e olhos reluzentes. Pela
primeira vez reparo bem no seu porte. Avança como uma ave, uma ave humana envolta numa pele
macia. O motor trabalha a todo o vapor. Apetece-me gritar, produzir um som que leve todo o
mundo a arrebitar as orelhas. Que andar! Não é andar, é deslizar. Alta, imponente, cheia, senhora de
si, corta o fumo e a luminosidade vermelha como a rainha mãe de todas as lúbricas putas
babilónicas. Isto acontece à esquina da Broadway, mesmo defronte do lavabo. A Broadway é o seu
reino. Isto é Broadway, isto é Nova Iorque, isto é América. Ela é América a pé, alada e sexuada. E o
lubet, o abominar e o sublimar comuns pós de ácido clorídrico, nitroglicerina, láudano e ónix
pulverizado. Tem opulência, e magnificência; é a América, certa ou errada, e como oceano de cada
lado. Pela primeira vez na minha vida, todo o continente me acerta em cheio, comtoda a força, entre
os olhos. Isto é América, combúfalos ou sem búfalos, é América, o rebolo de esmeril da esperança e
da desilusão. O que quer que fez a América fê-la a ela, em ossos, sangue, músculos, globos
oculares, andar, ritmo, porte, confiança, descaramento e tripas ocas. Está quase junto de mini, como
rosto cheio a brilhar como cálcio. A grande pele macia
Trópico de Capricórnio
313
escorrega-lhe do ombro sem que dê por isso. Parece não se importar que as roupas lhe caiam ou
não. Está-se nas tintas para tudo. É a América a mover-se como um relâmpago na direcção do
armazém de vidro da histeria vermelha. Amurrica, compele ou sem pele, comsapatos ou sem
sapatos. Amurrica à cobrança. E pirem-se, seus pulhas, antes que os furemos! Acertou-me nas
tripas, tremo. Vem qualquer coisa direita a mim e não me posso esquivar. Ela avança a direito,
através da montra de chapa de vidro. Se parasse ao menos um segundo, se ao menos me deixasse
em paz por um momento... Mas não, nem um momento me concede. Rápida, implacável, imperiosa
como o próprio Destino, avança para mim como uma espada que me traspassa...
Agarra-me na mão, aperta-a comforça. Caminho a seu lado sem medo. As estrelas brilham dentro
de mim, dentro de mim existe uma grande abóbada azul onde há momentos os motores trabalhavam
furiosamente.
Podemos esperar uma vida inteira por um momento assim. A mulher que nunca esperámos
conhecer está agora sentada à nossa frente, fala e parece exactamente a pessoa comquem sonhámos.
Mas o mais estranho de tudo é que, até agora, nunca nos apercebêramos de que sonhávamos
comela. Todo o nosso passado é como um longo sono que teria sido esquecido se não fora o sonho.
E o sonho também poderia ter sido esquecido se não fora a recordação; mas a recordação existe;
está no sangue, e o sangue é como um oceano em que tudo é arrastado pelo que é novo e ainda mais
substancial do que a vida: A REALIDADE.
Estamos sentados num compartimentozinho do restaurante chinês do outro lado da rua. Pelo canto
do olho vejo o tremeluzir das letras luminosas, céu acima, céu abaixo. Ela continua a falar de
Henriette, ou talvez seja de si mesma. O seu chapelinho preto, a sua mala e a sua pele estão no
banco, a seu lado. comintervalos de poucos minutos acende um cigarro, que se consome enquanto
ela fala. O que diz não tem princípio nem fim, jorra dela como uma chama e consome tudo quanto
apanha ao seu alcance. Nunca se sabe como ou onde começa. De súbito, está no meio de uma longa
narrativa, uma narrativa nova, mas que é sempre a mesma. O seu falar é tão informe como um
sonho: não há sulcos, nem paredes,
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Henry Miller
nem saídas, nem paragens. Tenho a sensação de me afogar numa funda rede de palavras, de me
arrastar penosamente para o cimo da rede, de fitar os olhos dela e tentar encontrar neles qualquer
reflexo do significado das suas palavras - mas não encontro nada, nada a não ser a minha própria
imagem a tremer num poço sem fundo. Embora ela não fale noutra coisa que não seja de si mesma,
sou incapaz de formar a mais ténue imagem do seu ser. Inclina-se para a frente, comos cotovelos
apoiados na mesa, e as suas palavras inundam-me; onda após onda passando-me por cima, sem que
nada se acumule dentro de mim, nada que eu possa apreender coma minha mente. Fala-me do pai,
da estranha vida que levavam na orla da Sherwood Forest onde nasceu, ou pelo menos falavame a
esse respeito, pois agora é outra vez acerca de Henriette - ou será acerca de Dostoievski? Não tenho
a certeza. De qualquer maneira, de súbito percebo que não está a falar de nenhuma dessas coisas e,
sim, acerca de um homem que a levou a casa, uma noite, e que, quando estavam no alpendre a
despedir-se, estendeu de repente o braço e lhe levantou o vestido. Faz uma pausa, como se quisesse
informar-me de que é a esse respeito que quer falar. Olho-a, estupefacto, sem perceber por que
caminho chegámos a tal ponto. Que homem? Que lhe estivera ele a dizer? Deixo-a continuar,
pensando que provavelmente voltará ao assunto, mas não, já me ultrapassou outra vez, e agora
parece que o homem, esse homem, já morreu, suicidou-se, e ela tenta fazer-me ver que sofreu um
golpe rude, mas o que na realidade consegue dar-me a entender é que se sente orgulhosa pelo facto
de ter levado um homem ao suicídio. Não consigo visionar o homem morto; só o vejo no alpendre a
levantar-lhe o vestido, um homem sem nome, mas vivo e perpetuamente imobilizado no gesto de se
inclinar para lhe levantar o vestido. Há outro homem que era o pai dela, e a esse vejo-o comuma
série de cavalos de corrida ou então, algumas vezes, numa estalagenzinha à saída de Viena: vejo-o
no telhado da estalagem, a lançar papagaios de papel para tentar entreter o tempo. E entre esse
homem que foi o seu pai e o homem por quem ela esteve loucamente apaixonada, não consigo
estabelecer qualquer separação. Ele é alguém na sua vida a respeito de quem prefere não falar, mas
mesmo assim volta constantemente a ele e, embora eu não tenha a certeza
Trópico de Capricórnio
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de que não foi o homem que lhe levantou a saia, também não tenho a certeza de que não foi o
homem que se suicidou. Talvez fosse o homem acerca do qual começou a falar quando nos
sentámos a comer. Lembro-me agora de que, quando nos sentámos, ela começou a falar febrilmente
de um homem que acabava de ver entrar na cafetaria. Até disse o seu nome, mas esqueci-o
imediatamente. Lembro-me, porém, de me ter dito que vivera comele e que ele fizera qualquer coisa
de que não gostara - não disse o quê - e por isso deixara-o, abandonara-o sem uma palavra de
explicação. Depois, ao entrarmos no restaurante chinês, tinham dado de caras um como outro e ela
ainda estava toda a tremer quando nos sentámos no pequeno compartimento... Durante um longo
momento experimento uma sensação muito desagradável. Talvez cada palavra dita por ela seja uma
mentira! Não uma mentira vulgar, não; algo pior, algo indescritível. Mas às vezes a verdade
também sai assim, especialmente se pensamos que nunca mais voltamos a ver a pessoa comquem
estamos. Às vezes somos capazes de dizer a um absoluto estranho coisas que jamais ousaríamos
revelar ao nosso amigo mais íntimo. E como adormecer no meio de uma festa; interessamo-nos
tanto por nós próprios que adormecemos. E, quando estamos perfeitamente adormecidos,
começamos a falar comalguém, comalguém que estava na mesma sala connosco e portanto
cornpreende tudo, mesmo que comecemos pelo meio de uma frase. E talvez essa outra pessoa
também adormeça, e é por isso que se torna tão fácil encontrá-la. E, se esse indivíduo não diz nada
que nos perturbe, então sabemos que o que estamos a dizer é real e verdadeiro, que estamos bem
acordados e não há outra realidade além desse estar bem acordado a dormir. Nunca me sentira tão
bem acordado e tão a dormir ao mesmo tempo. Se o ogro dos meus sonhos tivesse realmente
afastado as grades e me desse a mão, eu teria morrido de susto e, por consequência, agora estaria
morto, isto é, adormecido para sempre e, portanto, sempre livre, e nada seria estranho, nem mentira,
mesmo se o que acontecesse não acontecesse. O que aconteceu deve ter acontecido há muito tempo,
sem dúvida de noite. E o que está agora a acontecer também está a acontecer há muito tempo, e de
noite, e isso é tão verdade como o sonho do ogro e as grades que não cediam, coma diferença de
que as
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barras, agora, estão partidas, e aquela que receava me dá a l mão, e não há diferença nenhuma entre
o que temia e o que é, *| por que estava adormecido e agora estou adormecido bem | acordado, e não
há mais nada a temer, nem a esperar,, há ape- i nas isto, que é e não conhece fim. 7
Quer partir. Partir... De novo aquele deslizar escorregadio, « como quando saiu do salão de dança e
avançou direita a mim. i De novo as suas palavras... «De súbito, sem nenhum motivo, baixou-se e
levantou-me o vestido.» Aconchega a pele à volta dos ombros; o chapelinho preto emoldura-lhe o
rosto, dá-lhe ares de camafeu. A cara redonda e cheia, comzigomas eslávicos. Como podia sonhar
isto sem nunca o ter visto? Como podia saber que se levantaria assim, próxima e cheia, como rosto
branco, cheio e a desabrochar como uma magnolia? Tremo quando a sua coxa roliça roça pela
minha perna. Parece até um pouco mais alta do que eu, embora não o seja. É da maneira como
levanta o queixo. Não vê por onde caminha. Passador cima de coisas, em frente, comos olhos muito
abertos e fitos no espaço. O eu parece tê-la deixado e o corpo impele-se para a frente, de pescoço
tenso, branco como a cara. A conversa continua, naquela voz baixa, gutural. Sem princípio nem
fim. Não tenho consciência do tempo nem do passar do tempo e, sim, da ausência de tempo. Ela
tem o útero pequenino da garganta ligado ao útero grande da pelve. O táxi está encostado ao passeio
e ela continua a mastigar a moinha cosmológica do eu exterior. Pego no porta-voz e ligo-o ao útero
duplo. Está lá, está lá? Vamos! Toca a andar comisso - táxis, barcos, comboios, lanchas a nafta;
praias, percevejos, auto-estradas, atalhos, ruínas; relíquias, velho mundo, novo mundo, cais, molhe;
o alto fórcipe, o trapézio oscilante, a vala, o delta, os aligátores, os crocodilos, conversa, conversa e
mais conversa, depois outra vez estradas e mais poeira nos olhos, mais arco-íris, mais cargas de
água, mais alimentos para o pequeno-almoço, mais cremes e mais loções. E quando todas as
estradas tiverem sido atravessadas e só restar o pó dos nossos passos frenéticos, ainda subsistirá a
recordação da tua cara cheia e tão branca, e da boca grande, de lábios frescos entreabertos, comos
dentes níveos e cada um uma perfeição, e a essa recordação talvez nada consiga mudar, porque ela,
como os teus dentes, é perfeita...
É domingo, o primeiro domingo da minha nova vida, e eu uso a coleira de cão que me puseste ao
pescoço. Estende-se à minha frente uma vida nova. Começa pelo dia de descanso. Deito-me numa
grande folha verde e vejo o Sol rebentar no teu útero. Que grande barulheira faz! Tudo isso
expressamente para mim, não? Se ao menos tivesses em ti um milhão de sóis! Se ao menos pudesse
ficar aqui deitado para sempre a apreciar o celestial fogo-de-artifício!
Encontro-me suspenso sobre a superfície da Lua. O Mundo está num transe uterino: o ego interior e
o exterior estão em equilíbrio. Prometes-me tanto que, se nunca sair disto, não fará diferença
nenhuma. Parece-me que passaram exactamente 25 960 anos desde que adormeci no útero preto do
sexo. Parece-me que dormi 365 anos a mais. Mas, de qualquer maneira, encontro-me agora na casa
certa, entre os seis, e o que se encontra atrás de mim está bem e o que se encontra à minha frente
está bem. Apareceste-me disfarçada de Vénus, mas és Lilith, e eu bem o sei. Toda a minha vida está
pendente; gozarei tal luxo este único dia. Amanhã inclinarei a balança. Amanhã o equilíbrio acabarse-á; se o voltar a encontrar será no sangue e não nas estrelas. Ainda bem que me prometeste tanto.
Preciso que me prometam quase tudo, pois vivi demasiado tempo à sombra do Sol. Quero luz e
castidade
- e um fogo solar nas tripas. Quero ser enganado e desiludido, para poder completar o triângulo
superior e não estar continuamente a ser atirado do planeta para o espaço. Acredito em tudo quanto
me dizes, mas também sei que acontecerá tudo de modo diferente. Tomo-te como uma estrela e uma
armadilha, como uma pedra para inclinar a balança, como um juiz vendado, como um buraco para
nele cair, como um caminho para nele andar, como uma cruz e uma seta. Até ao presente viajei pelo
lado oposto do Sol; doravante, viajarei em dois sentidos, como Sol e como Lua. Doravante,
assumirei dois sexos, dois hemisférios, dois céus, dois jogos de tudo. Doravante, terei articulações
duplas e sexo duplo. Tudo quanto acontecer, acontecerá duas vezes. Serei como um visitante desta
Terra, compartilhando das suas bênçãos e levando as suas dádivas. Não servirei nem serei servido.
Procurarei o fim em mim próprio.
Olho de novo para o Sol - o meu primeiro olhar em cheio.
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E vermelho-sangue e andam homens a caminhar nos telhados. Tudo acima do horizonte é claro para
mim. É como Domingo de Páscoa. A morte está atrás de mim e o nascimento também. Agora you
viver entre as doenças da vida. you viver a vida espiritual do pigmeu, a vida secreta do homenzinho
no ermo do mato. Interior e exterior trocaram os lugares. O equilíbrio já não é o objectivo - a
balança tem de ser destruída. Deixa-me ouvir-te prometer de novo- todas as soalheiras coisas que
trazes dentro de ti. Deixa-me acreditar só por um dia, enquanto descanso ao ar livre, que o Sol traz
boas novas. Deixa-me apodrecer em esplendor enquanto o Sol rebenta no teu útero. Acredito
implicitamente em todas as tuas mentiras. Tomo-te como a personificação do mal, como a
destruidora da alma, como a mabarani da noite. Prega o teu útero na minha parede, para que possa
lembrar-me de ti. Temos de ir andando. Amanhã, amanhã...
Setembro de 1938 Villa Seurat, Paris
NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
HENRY Valentine MILLER nasceu em 26 de Dezembro de
1891, em Nova Iorque, filho de judeus norte-americanos. Abandonou os estudos no City College
para trabalhar numa fábrica de cimento. Por essa época, iniciou a sua relação comPauline Chouteai,
dezoito anos mais velha do que ele. Em
1914, depois de uma série de viagens pelo Sul dos EUA, empregou-se na alfaiataria do pai. Mais
tarde, trabalhou na Companhia de Telégrafos Western Union e no Herald Tribune. Em 1917, casouse coma pianista Beatrice Sylvas Wickens. Em 1923, depois de se divorciar, casou-se comJune
Edith Smith e comela realizou a sua primeira viagem à Europa. Instalaram-se em Paris, onde Miller
escreveu Trópico de Câncer (1934), livro que se manteve proibido pela censura dos Estados Unidos
até 1961, quando Miller foi descoberto pelos hippies, que o proclamaram o mestre da revolução
sexual de então. Em Paris conheceu os escritores Anais Nin e Lawrence Durrell, que marcariam a
sua vida e a sua obra. comDurrell fez uma viagem à Grécia em 1939, que deu origem ao romance O
Colosso de Maroussi (1941). Divorciado de novo, em 1942 regressou aos EUA e casou-se
comJanina Lepska. Depois da Segunda Guerra Mundial, a sua obra tornou-se conhecida;
gradualmente, Miller foi aceite como uma figura maior na luta pela liberdade literária e pessoal e
um sábio espiritual que influenciou grandemente a beat generation na sua busca pela salvação
através de experiências extremas. Em 1945 instala-se na Califórnia onde viveu até à sua morte. Ali
terminou a trilogia Sexus (1949), Plexus (1953) e Nexus (I960), também autobiográfica. Em 1948
voltou a divorciar-se para se casar comEve McLure, comquem viajou para a Europa. Em 1957 é
eleito membro da Academia Nacional de Artes e Letras. Divorciou-se de Eve em 1961 e casou-se
pela
LA^^m^
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Henry Miller
quinta e última vez coma cantora japonesa Hocki Takuda. Em 1963 estreou a sua comédia Just Wild
about Harry e em
1977 publicou a sua última obra, de carácter autobiográfico: O Livro dos Meus Amigos. Henry
Miller morreu, vítima de insuficiência cardíaca, em 7 de Junho de 1980.
Estão publicados em português: Trópico de Câncer; Trópico de Capricórnio; O Colosso de
Maroussi; Pesadelo em Ar Condicionado; O Sorriso aos Pés da Escada; Sexus; Plexus; Nexus; Big
Sur e as Laranjas de Jeónimo Boch; Reflexões sobre a Morte de Mishima; Opus Pistorum; Um
Diabo no Paraíso; Moloch ou Este Mundo Pagão; Insónia; O Livro dos Meus Amigos. A