O Colar de Âmbar Amarelo
Transcrição
O Colar de Âmbar Amarelo
POLÔNIA Polônia, república da Europa Oriental, é banhada ao norte pelo mar Báltico, a leste faz fronteira com a Rússia, a Lituânia, a Bielorússia e a Ucrânia, ao sul elevam-se os Montes Cárpatos e a fronteira com a República Tcheca e a Eslováquia, a oeste com a Alemanha. Sua superfície atual é de 312.683 quilômetros quadrados. A capital Warszawa (Varsóvia) está situada à beira do rio Wisla (Vistula), que nasce nas vertentes do monte Barania, nos Tatras, e deságua no Mar Báltico, tem 1.070 quilômetros de extensão e é uma via muito importante de navegação.O país tem clima temperado, de invernos medianamente rigorosos com nevascas freqüentes e verões moderados. A mais recente glaciação, começou há aproximados 1.000.000 de anos (no início do Plistoceno, Idade do Gelo), terminou há cerca de 11.000 mil anos. Quatro vezes, durante essa época, as camadas de gelo se expandiram e se retraíram. As geleiras cobriram grande parte dos continentes do hemisfério norte e do hemisfério sul. Na época do Plistoceno, que se compõe de diversos períodos de clima extremamente frio e conseqüentes glaciações, alternados por períodos interglaciais de clima quente, a região da Polônia, incluindo as baixadas, o norte e a parte central do país, alcançando até ¾ da superfície, deve a sua formação, principalmente, às geleiras do Plistoceno, as quais em diversas épocas da glaciação estendiam-se do norte da Europa até o sul da Polônia, alcançando as encostas dos Cárpatos e Sudetos. Os maiores vestígios atrás de si deixou a última glaciação, que desapareceu das terras polonesas há 14.000 mil anos. As geleiras escandinavas detiveram-se na linha que 1 demarca hoje a região dos lagos mazovianos separados por extensos vales e planícies arenosas, que são efeitos do afastamento das águas formadas do degelo dessas imensas massas congeladas. Portanto, a Polônia é um país de terrenos baixos; a elevação média acima do nível do mar é de 137 metros, e de 1,8 metros abaixo do nível do mar. *** Os primeiros homens, possivelmente também o de Neanderthal, surgiram na região onde hoje é Polônia, no último período interglacial, por volta de 180 mil anos a.C., quando o clima quente favoreceu o desenvolvimento de imensas florestas e campos povoados de animais como bisões, mamutes, cervos, ursos, renas, rinocerontes e outros. Eram pequenos bandos desses homens pré-históricos que viviam em cavernas. Utilizavam ferramentas e armas de pedra e osso. Eram nômades e já conheciam o fogo. Alimentavam-se de frutas silvestres, da caça e pesca. Posteriormente, iniciaram a domesticação e criação de animais e a cultura primitiva de grãos. Esta situação obrigava a fixação do homem à terra e a construção de acampamentos fixos. Tribos de cultura norte-européia que se estabeleceram em terras polonesas também cultivavam cereais e criavam gado. .A marcha para o leste de grupos de agricultores camponeses, acompanhando o cinturão de florestas e das estepes, inaugurou uma das primeiras rotas de comércio entre a China e o noroeste da Eurásia no fim do segundo milênio a.C. Esse importante fato abriu caminho às migrações dos Árias, povos nômades que, saindo da Ásia Central, do 2 vale do Rio Indus e das estepes da antiga Pártia hoje Seistão, que fica entre o Irã e o Afeganistão, seguiram em direção à Europa Central, abandonando as planícies secas e as estepes. A partir de 1000 a.C., essa cultura começou a expandir-se para áreas adjacentes aos grandes rios. Quatro ramos principais podem ser identificados, e cada um deu origem a um importante grupo de povos históricos: celtas no ocidente, eslavos ao norte, povos de língua itálica ao sul e ilírios a sudeste. Em 150 d.C., os germânicos orientais foram para o sul em direção aos Cárpatos e às terras ao norte do Mar Negro. Seguiram-se as investidas dos bárbaros – visigodos, hunos, suevos, vândalos e álanos, povos do Norte, invasores do Império Romano do Ocidente, entre os séculos III e VI da nossa era, ameaçando as civilizações que se desenvolveram na bacia do Mediterrâneo. Nos séculos IX e X, a Europa Ocidental sofreu ataques de três grupos de forasteiros: sarracenos, húngaros e vikings, que eram escandinavos. As primeiras incursões vikings ocorreram no fim do século VIII, ano de 793. Da Irlanda, Noruega e Dinamarca saíam em barcos velozes para saquear cidades e igrejas na Grã-Bretanha e no Império Franco. Durante esses acontecimentos no Ocidente, os suecos estavam atravessando o mar Báltico, desciam o rio Volga até Bolgar, onde os muçulmanos ansiavam por adquirir peles de animais e escravos que os suecos capturavam nas florestas do norte da Rússia. Os líderes vikings, que se tornaram senhores de locais como Kiew e Nowgorod, foram influenciados pelos eslavos, mas mantiveram laços dinásticos com a Escandinávia; estabeleceram bases no oeste e leste e constituíram uma ameaça mais duradoura. Os invasores escandinavos foram assimilados pelos povos locais, bem como os suecos, 3 que foram para o leste em busca de riquezas entre os eslavos e finlandeses. A religião dos vikings surgiu nos séculos IX e X d.C., mas suas origens são bem anteriores, remontando à Idade do Bronze escandinava, entre 1760-500 a.C. Durante esse tempo, florescia na Europa Setentrional o culto a Wodan, ou Odin, que se tornou o expoente do panteão cultuado pelos vikings. Walquírias eram as donzelas de Odin, “O Pai Supremo”. Thor, era o grande Fazedor de Trovões e deus da Fertilidade. Os eslavos pagãos cultuavam seu deus em santuários, fazendo oferenda das colheitas, de frutas, flores e sacrifícios de animais. Nessas ocasiões, organizavam folguedos e danças, que finalizavam com a corrida de homens, em bandos, para a floresta adentro, levando consigo, as vezes à força, jovens mulheres. Seguiam então os mandamentos de „Thor”. As mortes eram aceitas com tranqüilidade; nos funerais ofereciam-se comida, bebida, danças e jogos alegres; os cadáveres eram queimados em piras A raça eslava, entre outros povos do ramo lingüístico e etnográfico da família indo-européia, tem os Árias como antepassados remotos, e destes, o grupo Lusácio o é diretamente. Habitavam regiões da Europa desde Venêcia ao Ural, e a raça ainda se estendeu por uma grande parte da Ásia Soviética Central e Europa Oriental. Do grupo Lusácio: os antepassados dos eslavos ocidentais são os vénedos polábios (polábio, antiga língua eslava da região do Elba), que se tinham estabelecido em 937 às margens do rio Elba e do Oder, ao norte da Boêmia e até o Mar do Norte. No século X os povos eslavos enfrentaram com sucesso os alemães na Grande Revolta Eslava em 983, e expulsaram-nos da região. Porém, permaneceram desunidos e pouco organizados. 4 Os eslavos, descendentes dos Árias, são da família dos indo-europeus, que se dividem em três grupos: 1º - Eslavos ocidentais: na Polônia, Eslováquia, Boêmia, Morávia, Ucrânia, os vênedos da Lusácia e a Rússia sub-carpática; 2° - Eslavos orientais ou russos; 3° - Eslavos meridionais ou Iugoslavos. Dá-se o nome de Árias ou Arianos ou ainda Indoeuropeus à quase totalidade das raças brancas da Ásia e da Europa. Nos fins do século XVIII, o conhecimento das duas línguas, sânscrito e zende, fez notar entre elas e a maior parte das faladas na Europa (com exceção do basco, do finês, do magiar e do turco) uma estreita afinidade. Os habitantes da Europa são predominantemente caucasóides; compreendem três origens básicas, determinadas pelos aspectos físicos e semelhança de língua. O grupo românico, cujas línguas derivam do latim, são os franceses, espanhóis, portugueses, italianos, romenos, que habitam o sul. O grupo germânico, cujos povos habitam o norte e oeste, são os ingleses, alemães, holandeses, dinamarqueses, suecos, belgas, austríacos, suíços e outros. O grupo eslavo, que vive no leste, são os tchecos, eslovacos, poloneses, russos, lituanos, ucranianos, sérvios bielorussos, búlgaros, croatas, iugoslavos, eslovenos e os vênedos da Lusácia. 5 II CAMPOS SELVAGENS Era o ano de 1648. No momento em que começa esta narrativa, o sol poente lançava os últimos raios sobre a paisagem deserta das estepes da Ucrânia, era fim de um dia quente de verão. Do extremo norte dos Campos Selvagens até as margens do Dniester (rio que nasce nos Cárpatos, na Polônia, banha o oeste da Ucrânia e deságua no Mar Negro) e a leste até Chortyca no Dnieper, não se percebia o menor movimento na mata espessa da planície. O rio Dnieper origina-se nas colinas de Waldai, na Bielorússia, atravessa a Ucrânia e deságua no Mar Negro por dois braços, formando um grande Delta; tem 2.285 quilômetros de extensão. Logo após a grande curva do rio, abaixo das cataratas, no Delta, habitava uma população de zaporogos, enquanto no próprio centro da planície não havia indícios da presença humana. Apenas nas margens dos rios surgiam alguns campos cultivados pelos cossacos e camponeses ucranianos mais corajosos. Todas essas terras pertenciam à Coroa da Polônia, pelo Tratado de União entre Polônia e Lituânia durante a dinastia Jagiellon. Ucrânia consta na história desde o século IX como vassala da Lituânia, depois da Polônia. Desapareceu como individualidade política desde o século XVII, passando à suserania da Rússia. Ressuscitou como Estado da Ucrânia em 24 de agosto de1944. O rei Jan II, Kazimierz Waza, deu aos tártaros a permissão para que levassem para as estepes os seus rebanhos, mas os cossacos opuseram-se a esse direito, e as vas6 tas planícies tornaram-se campos de batalha. O tártaro atacava o cossaco; o ladrão de ovelhas e gado também atacava o viajante; o pastor armava-se para defender o seu rebanho; camponeses defendiam suas famílias. No meio dos matagais, homens caçavam-se como lobos. A metade do disco solar aparecia ainda no horizonte, tingindo o céu de dourado e rubro escarlate, e de mansinho, aqui e acolá, já as trevas começavam a envolver a terra, espalhando sombras fantasmagóricas. No alto dum morro, mais parecido com um túmulo, levantavam-se as ruínas de um castelo-fortaleza, construído em tempos passados pelo castelão Fiodor Wasilewski e destruído pelas inúmeras incursões tártaras e mongóis. Tênue escuridão ia se estendendo por aqueles ermos temíveis; ao longo do rio as águas cintilavam, com os últimos raios lançados pelo sol que lentamente ia sumindo, e toda a claridade se extinguia. Bandos de pássaros voavam para os seus ninhos, escondidos no meio do matagal, e enchiam de gritos estranhos o ar tranqüilo; nenhum outro ruído interrompia esta paz solene. A noite baixava sobre a estepe e com ela começava a hora mística de sussurros, sons e uivos. Iniciava-se o grande drama da natureza, em que os animais selvagens, timidamente, se arriscavam a sair dos esconderijos para a caçada noturna. Pastores cossacos contavam que nos Campos Selvagens vagueavam as almas de guerreiros mortos, arrependidos dos seus atos, e que estas sombras apavorantes realizavam danças desenfreadas e infernais; vampiros sanguinários, ululantes, perseguiam os desgraçados viajantes que por ali se aventurassem. Fantasmas de almas penadas, armados e montados em cavalos negros que soltavam fogo pelas ventas, corriam pela planície. Inúmeros outros espíritos chegavam perto das 7 muralhas da fortaleza em ruínas, tanto que os cossacos de vigia, apavorados, davam gritos de alarme. E muitas vezes um homem bem vivo, em carne e osso, aparecia e desaparecia como uma sombra, podendo facilmente ser tomado por um fantasma. Não era caso para admirar se vissem um cavaleiro, ao pôr-do-sol, junto à fortaleza em escombros. A luz prateada da lua que nascia para além do Dniester cobria de raios a vasta extensão da estepe. Com intervalos, a brisa soprava do rio, curvando os arbustos que tremiam como se invadidos por súbito terror que impregnava o espaço. Ao pálido reflexo da luz da lua, via-se um cavaleiro sempre imóvel na pequena colina que dominava o espaço; um leve ruído atraiu-lhe de repente a atenção; avançando até a borda do montículo, mergulhou o olhar nas trevas... Mas, no mesmo instante, através do vento, ouviu-se um gemido agudo, acompanhado de gritos violentos! - Allah! Allah! - Senhor Deus! - Salve-se quem puder! Fujam...matem... Tiros de mosquete quebraram o silêncio, relâmpagos avermelhados cortaram a noite. Patear de cascos de cavalos confundiu-se com o ruído das armas. O bando de guerreiros, nas sombras da noite parecendo fantasmas, lançou-se a fugir como um raio, no deserto sinistro. Gritos humanos responderam a uma nova descarga, e depois tudo recaiu no silêncio. Ouvia-se apenas o piar da coruja em cima do topo da árvore. Um grupo de cavaleiros que por ali passava, neste momento, escutou os gritos de socorro, subiu a colina a galope. Chegando ao alto os homens olharam atentamente em volta de si. O cavaleiro que apresentava ser o chefe, com uma voz imperiosa ordenou-lhes: - Desmontem dos cavalos! Acendam uma fogueira! Precisamos rapidamente iluminar o espaço. 8 Num momento, uma chama se elevou dum montão de palha e de ramos secos. A claridade avermelhada iluminou um grupo de homens inclinados para um corpo que jazia imóvel. Eles usavam uniformes encarnados e bonés de pele de lobo. O chefe, apeou de um magnífico cavalo negro e perguntou: - Está vivo? - Sim, tenente. Respira apenas... a corda quase que o estrangulou... - Quem é ele?- perguntou o oficial. - Um grande senhor, creio eu, diria até que é um ataman (chefe dos cossacos). - E que cavalo! - observou o sargento. - O próprio khan (príncipe mongol) não tem igual. O tenente examinou o cavalo, e o seu olhar brilhou num relâmpago de alegria. O diálogo foi interrompido por um estertor do desconhecido. - Iremos passar a noite aqui?- perguntou um deles. - Sim, tirem as selas dos cavalos e avivem a fogueira – concluiu. Os soldados foram executar a ordem. O comandante, sem mais se preocupar com o desconhecido, estendeu-se junto ao fogo sobre uma pele de urso; dois soldados aprontavam a ceia. Um carneiro cortado em quartos foi colocado sobre fogueira espetado em varas de paus, enquanto outro homem esfolava um cabrito. Diversos pássaros apanhados durante o dia foram enfileirados num espeto. A chama crepitava e o aroma da carne assada espalhava-se ao redor. O desconhecido emitiu alguns gemidos, começava a recuperar os sentidos, tentou levantar-se; seu rosto estava ainda congestionado e as veias do pescoço inchadas. -Wodka! dêem-me um pouco de wodka - articulou com voz surda. 9 - Dêem-lhe wodka, e desembaracem-no do cinturão - ordenou o oficial. Alcançaram-lhe um cantil, do qual ele bebeu com avidez. - Em poder de quem me encontro? – perguntou. O tenente acercou-se dele e informou: - Em poder de vossos salvadores, se não fôssemos nós, a esta hora estarias morto... - Não foram então teus soldados que me lançaram um laço no pescoço? - Não nos servimos de laço, mas de nossos sabres... Foste perseguido por um bando de salteadores. - Nesse caso, respondeu o desconhecido, deixa-me repousar um pouco mais. Estendeu-se sobre a capa jogada na grama. Trouxeram-lhe uma sela, sobre a qual colocou a cabeça, fechou os olhos e ficou silencioso, por um bom espaço de tempo. Após ter repousado alguns momentos, levantou-se e, sem dirigir a palavra a ninguém, foi examinar os cadáveres. O desconhecido observou os mortos meneando a cabeça, como tendo a certeza de qualquer coisa. Voltou, lentamente, para o alto da colina, procurando o cinturão. - Antes de tudo - disse o tenente - desejaria saber a quem salvei. - Tens razão. Devia começar por dizer-lhe o meu nome. Chamo-me Bohdan Zenobio Bazarbuk, proprietário na província de Kiew e coronel do regimento cossaco sob as ordens do príncipe Dominico Zaslawski Ostrowski. - Serves a um grande homem de guerra - disse o oficial, e estendeu-lhe a mão, a qual o desconhecido apertou com vigor. - Eu sou Boguslaw Wasilewski, tenente dos dragões do príncipe Jeremias Wisniowiecki. 10 Os dragões, na verdade, olhavam do alto do seu orgulho os soldados de outras armas, mas estavam na presença de um coronel, do que ele se certificou vendo os soldados entregarem a Bazarbuk o seu cinturão, o sabre e um bastão de marfim, que somente os chefes cossacos tinham o direito de usar. Ao mesmo tempo, a linguagem de Bazarbuk revelava um indivíduo bem educado e de boa sociedade. Boguslaw convidou-o a partilhar da sua ceia. O apetitoso odor da carne assada espalhava-se pelo ar; os dois oficiais comeram com grande apetite, e quando se esvaziou uma garrafa de vinho moldavo, a conversa tornou-se viva e cordial. - Donde vens, tenente? - perguntou Bazarbuk. - Venho da Criméia – respondeu o tenente. - E o que foste fazer na Criméia? Trocar prisioneiros talvez? – indagou o coronel. - Não, fui encontrar o khan – informou Boguslaw. O coronel Bazarbuk tornou-se atento. - E para quê, foste? - Para entregar-lhe um despacho do príncipe Jeremias Wisnowiecki. - Ah! Vens de uma embaixada. E o que desejava o príncipe do khan? - Ignoro - respondeu Boguslaw. - Admiro-me que Jeremias tivesse escolhido um oficial tão jovem para ser seu correio... mas agora compreendo ouvindo a tua resposta. O valor e a prudência não conhecem o número dos anos. - E o que fazias aqui sozinho?- perguntou o tenente. - Não estou só, deixei a minha escolta a pouca distância. Atualmente a estepe está tranqüila, conheço-a bem há muito tempo... o que me aconteceu foi pura maldade humana. - Como? Mas, por quê? - perguntou o tenente. 11 - É uma história comprida. Um pérfido vizinho, que destruiu as minhas propriedades e que me roubou um filho, tentou assassinar-me. Eis tudo - esclareceu Bazarbuk. Um surdo rumor de galope de cavalos ressoou na planície até ali silenciosa. Momentos mais tarde emergiram da sombra fileiras de soldados a cavalo. Alguns homens desmontaram e se aproximaram da fogueira para aquecer as mãos ao fogo porque a noite estava fria. Eram quarenta ao todo, robustos e bem armados. O tenente notou também que os cossacos, habituados a tratar os seus chefes com familiaridade, testemunhavam a este uma grande deferência, como a um ataman. Certamente Bazarbuk devia ser um cavalheiro que ocupava um alto posto na hierarquia. O coronel ordenou que lhe trouxessem o cavalo. - Em viagem não se pode parar - disse ele. Mais uma vez te agradeço, tenente, o ter-me salvo a vida. E peço a Deus que um dia te possa prestar igual serviço... - Não mereço reconhecimento, porque não olho a quem salvo. - Dizes isso com uma modéstia que não é inferior a tua coragem. Permite-me que te ofereça este anel... O tenente Boguslaw recuou, lançando sobre o seu interlocutor um olhar fulminante. - Examina este anel, tenente - prosseguiu Bazarbuk não é nem rico, nem belo, mas tem grande valor. Foi um peregrino que voltava da Terra Santa que mo deu outrora, quando eu era prisioneiro dos infiéis. Este anel defender-teá do perigo, quando tiver soado a tua hora suprema - digote eu - que não está muito longe. Houve um curto silêncio, apenas ouvia-se o crepitar da chama e o relincho dos cavalos presos por rédeas às árvores. Ao longe na planície, ressoava o uivo lúgubre dos lobos... 12 O tenente aceitou o anel daquele homem, que em seguida voltou-lhe as costas e, montando a cavalo, saiu a galope. A escolta esperava-o no sopé do morro. Boguslaw Wasilewski salvou a vida do suposto Bazarbuk, que na verdade era o coronel Bohdan Zenobio Chmielnicki. Ele era o chefe do exército dos zaporogos e herdeiro de Subotoff, tinha a altivez dum ataman, mas a mão pesada e o pensamento rápido de salteador. Os cossacos obedeciam-no cegamente. Era um homem inteligente. Autoritário, destemido, astuto como uma raposa, e vingativo. Quando o ódio o dominava, sabia ser terrível, perseguia os seus inimigos até a morte. *** A praça do mercado de Czerkasy estava superlotada; a multidão se comprimia no grande largo invadido por bois, cavalos e camelos que seriam comercializados. Junto deles, os pastores, habituados à vida selvagem nas estepes, homens incultos, sem religião nenhuma. Entre eles, alguns, que tanto eram pastores como bandidos, cruéis, terríveis, esfarrapados. A maior parte deles ostentava como única vestimenta duas peles de carneiro com a lã para fora, presas no ombro, deixando a descoberto, tanto no verão como no inverno, o peito bronzeado pelo sol e vento das planícies da estepe. Todos estavam armados, ainda que com a mais extravagante variedade de armas. Foices, machados, lanças com ferro nas pontas, mosquetes e pistolas. Os homens do sul, não menos selvagens, juntavamse aos pastores. Vendiam peixe seco, caça e gordura de carneiro; outros vendiam mel e cera de abelhas. Camponeses nas suas carroças, cossacos, tártaros e Deus sabe quantos 13 mais, vindos de todos os lados das terras eslavas. A cidade estava repleta de viajantes e mercadores. Czerkasy estava situada à direita do Dnieper, era ponto obrigatório de parada das comitivas que desciam o rio com destino ao mar Negro. Todos ali se entregavam à orgia. Fogueiras ardiam na praça, em todos os cantos ouviam-se gritos e gargalhadas dos homens embriagados. O som agudo das flautas tártaras e o rufar dos tambores misturavam-se às vozes dos animais nervosos, agitados, turbulentos. Tudo isso era, ao mesmo tempo, pitoresco e terrível. Ninguém seria capaz de agüentar por muito tempo esse caos que dominava a cidade. Após essas hordas, vinham os zaporogos, homens que habitavam o Delta do Dnieper, rudes, ferozes, meio bárbaros. De origem mongólica ou turco-tártara, constituíam uma verdadeira classe social na Ucrânia. Revoltados contra os nobres que lhes retiraram as prerrogativas concedidas pelo rei polonês Jan II, Kazimierz Waza, na lei promulgada em 1648, que aliviava o peso da servidão. O rei não teve autoridade suficiente para fazer-se obedecer pelos magnatas que continuaram a oprimir e explorar os servos. Os cossacos, prejudicados nos seus privilégios, guerreavam contra a Polônia e contra os magnatas; comandados pelo hetman Bohdan Zenobio Chmielnicki, que os chefiou de 1620 a 1657. Sucedeu-lhe no comando das tropas dos zaporogos Ivan Stepanovitch Mazepa, antigo pajem da corte de Jan Kazimierz. Homem de vida inquieta e belicosa, dissoluto; certa ocasião foi surpreendido em flagrante delito de adultério por um nobre. Foi amarrado nu a um cavalo bravo, untado com alcatrão e entregue à fúria do animal; este, nascido nas estepes da Ucrânia, levou-o para lá. Desmaiado em cima do cavalo, foi recolhido pelos cossacos, passou a viver com eles uma vida de guerrilhas 14 pelas planícies. Mais tarde, conseguindo granjear-lhes a confiança, foi escolhido como hetman, para chefiá-los na guerra contra a Coroa e os nobres, luta que se estendeu por todos os anos seguintes, com pequenos intervalos. *** As cartas do rei Jan Kazimierz seriam um grande perigo se caíssem nas mãos de Chmielnicki, e fossem levados para o Delta, pois que estavam cheias de promessas aos cossacos e de incentivo à resistência, a eles que já vinham desde há muito tempo mordendo impacientemente o freio que lhes tinham posto. Lembravam-se dos seus antigos privilégios e odiavam os nobres e seus comissários. Formavam um poder organizado que também tinha a simpatia da incomparável massa de camponeses de toda Ucrânia. Tudo isto era relevante, pelo fato de estar sendo declarada guerra contra os muçulmanos, e o rei contava com as forças cossacas, no seu exército. O príncipe Jeremias Wisniowiecki, homem valente e guerreiro consumado, era terrivelmente senhor de si mesmo e das suas tropas; por outro lado, o nome de Jeremias era temível, e se soubessem que ele tinha as vistas sobre os zaporogos, estes se conservariam em paz. As fogueiras crepitavam na praça, espalhando pela cidade tão intensa claridade que Czerkasy parecia estar a arder por toda parte. Os gritos e o barulho aumentavam com a aproximação da noite. Os habitantes locais não ousavam sair das suas casas. Em cada esquina, grupos de condutores de camelos ululavam as canções gemebundas das estepes. Os zaporogos selvagens dançavam em volta das fogueiras, lançando os bonés ao ar e bebendo goraika. Escu- 15 tavam-se os gritos e o tumulto dos cossacos; e os seus cantos ressoavam pela cidade. Já era o começo de outubro daquele ano. O inverno não tinha dado sinais da sua aproximação, e o ar cheirava à primavera, o solo estava mole e brilhante de neve derretida. Os campos estavam cobertos de verde e o sol dardejava os seus raios com tal força que os viajantes podiam julgar estarem em pleno verão. A escolta do tenente Boguslaw Wasilewski tinha aumentado em Lwow, compreendia agora uma embaixada romena que o hospodar da Walaquia enviava a Kiew. O resto da comitiva compunha-se de dragões e de servidores, além dos quarenta cossacos do seu regimento. O ardor do sol, o tempo esplêndido, a aparente volta do verão enchiam todos os corações de alegria, e o tenente mostrava-se dentre todos o mais entusiasmado, porque, depois da longa viagem, iria para junto do seu príncipe. Havia ainda outras causas para este contentamento. Na corte do príncipe, a quem ele amava e respeitava, certos magníficos olhos negros o aguardavam. Estes olhos pertenciam a Anusia Skorupa, dama de honra da princesa Dorota Wisniowiecka, uma linda donzela, por quem os homens definhavam, enquanto ela se mostrava indiferente para com todos eles. A princesa Dorota velava cuidadosamente pela virtude de suas damas e exigia delas comportamento austero. Mas não podia proibir que os cavalheiros lhes enviassem olhares ternos e suspiros. Boguslaw, como todos os outros, pagava o seu tributo aos olhos negros da senhorita Anusia, e não era raro agarrar na cítara e cantar melodias apaixonadas embaixo da sua janela. O príncipe Jeremias Wisnowiecki tinha um magnífico exército sob as suas ordens, eram oito mil soldados, sem contar os cossacos dos pontos avançados. Afirmava-se que 16 estava em preparação um grande exército para a guerra contra os turcos, e que o próprio rei marcharia à frente de todas as forças da Coroa, juntamente com os seus generais. Alguns dias depois, Boguslaw Wasilewski e a sua escolta seguiam em direção de Czerkasy. A região nas duas margens do Dnieper era deserta, selvagem, com freqüência invadida pelos tártaros e exposta aos assaltos dos zaporogos. Cortavam-na riachos numerosos e era coberta por imensas florestas de larícios (pinus larix) e matagais impenetráveis, onde o homem jamais pisara. Havia toda espécie de animais selvagens, e aqui eles encontravam abrigo seguro. Ursos, javalis ferozes, lobos, linces, gansos, avestruzes e milhares de pássaros exóticos. Nos rios, os castores construíam as suas casas. Entre os zaporogos corria a lenda que dentre eles havia alguns com mais de um século de vida e eram brancos como a neve. Hordas de cavalos selvagens de crina eriçada e de olhar sangüíneo corriam pela estepe desabitada. Os rios, cheios de peixes, e suas margens habitadas por numerosas aves aquáticas. Era uma região estranha, meio sonolenta; mas onde havia vestígios da passagem do homem, ficaram por toda parte a devastação e as ruínas das cidades antigas. O lugar era inóspito, pouco acessível. Assim que os camponeses ali se estabeleciam e começavam a lavrar a terra, as incursões tártaras logo os dispersavam ou dizimavam. O tenente Wasilewski cavalgava tranqüilamente na frente da sua comitiva quando o diálogo foi interrompido por um estranho ruído de asas, como se os pássaros estivessem sendo perseguidos. Chegando a encruzilhada, o tenente parou e viu no meio do caminho uma carruagem da qual uma das rodas tinha-se quebrado. Os cavalos desatrelados estavam sendo seguros por um cossaco, e ao lado da condução avariada estavam duas mulheres. 17 Uma delas ostentava um casaco com capuz de raposa; era severo e viril o seu rosto. A outra era uma jovem de estatura elevada, de feições nobres e regulares. Um falcão pousava tranqüilamente sobre o seu ombro e alisava as penas com o bico. O tenente reteve o cavalo com tanta força que as patas do animal afundaram-se na areia do caminho; levou a mão ao boné, para saudar as duas mulheres. E a sua confusão provinha também de que, sob o capuz de zibelina, brilhavam os mais belos olhos que ele tinha visto durante toda a sua vida. Olhos negros, acetinados, fulgurantes, cheios de vida, junto dos quais os olhos de Anusia não passavam duma candeia ao pé dum archote. E acima daqueles olhos, sobrancelhas de veludo desenhavam os seus arcos delicados. Um rosto cor-de-rosa cintilava como a mais fresca flor, e pelos lábios entreabertos apareciam os dentes como pérolas. Boguslaw conservava-se imóvel, de boné na mão, como perdido na contemplação daquele corpo esbelto como um pinheiro. Com o pássaro sobre o ombro, a jovem parecia a imagem de uma deusa da floresta. Ela estendeu a mão ao falcão, que imediatamente saltou do ombro para a sua mão. O tenente antecipou-se ao falcoeiro desejando ele mesmo receber o pássaro; mas então o falcão, sem deixar os dedos da jovem, com o outro pé agarrou a mão de Boguslaw e começando a soltar gritos alegres, conseguiu aproximar as duas mãos, até elas se tocarem. A mulher idosa, interveio: - Quem quer que sejas, senhor, não recusarás o auxílio a duas pobres mulheres aflitas, no meio do caminho. Apenas temos a percorrer umas quinze werstas (antiga medida itinerária russa equivalente a 1.067 metros), mas uma roda da nossa carruagem partiu-se e parece que teremos de passar a noite aqui. Ordenei ao condutor que fosse avisar o 18 meu filho, mas antes que ele chegue virá a noite, e é terrível ter de ficar na escuridão... porque na vizinhança existem túmulos e há fantasmas à noite... Boguslaw respondeu com delicadeza: - Não penseis, senhora, que vos deixaremos aqui sem auxilio. Vamos à Kiew porque somos soldados a serviço do príncipe Jeremias, e mais ou menos seguimos a mesma direção, mas mesmo que assim não fosse, eu me sentiria muito feliz em vos ajudar; viajamos a cavalo, porém, o embaixador que nos acompanha traz consigo a sua carruagem, e creio que ele vos oferecerá, como verdadeiro fidalgo que o é. O embaixador cumprimentou e ofereceu a sua condução às damas. - Deus recompense o vosso auxílio, senhores. E visto que ainda è longa a distância a Kiew, não recusarão a minha hospitalidade, nem a de meus filhos. Habitamos Wasylkow; sou a viúva do príncipe Kosiewicz e esta jovem é filha do mais velho dos Kosiewicz, irmão do meu marido, que a deixou órfã aos nossos cuidados, disse a princesa Amalia. - Sois então a viúva do príncipe Wassili Kosiewicz? - perguntou Boguslaw. - Não! - respondeu vivamente a princesa, com uma espécie de hesitação na voz - sou a viúva de Konstanty e esta moça é filha de Wassili. - Fala-se em Kiew do príncipe Wassili. Era um bom soldado e era confidente do príncipe Miguel Wisniowiecki. - Nunca fui a Kiew - replicou a princesa com certa altivez. Das virtudes militares de Wassili nada sei. E é inútil falar dos seus últimos atos, pois que todos os conhecem. A essas palavras, a princesa Natacha inclinou a cabeça para o peito como uma flor ferida, e Boguslaw disse vivamente: 19 - Não fale assim, senhora. Um terrível erro da justiça humana condenou o príncipe Wassili à perda dos bens e da vida, e só conseguiu salvar-se pela fuga. Mais tarde, porém, a sua completa inocência foi reconhecida e graças a ela, foi restaurado na sua honra e nas suas virtudes. A velha princesa fitou em Boguslaw um olhar reprovador, mas não ousou replicar. Voltou-se à Natacha : - Não é conveniente que ouças estas coisas. Vai ver se as nossas malas já foram levadas para a carruagem que estes senhores nos ofereceram tão gentilmente. - Posso ajudá-la em alguma coisa, senhorita? - ofereceu-se o tenente Wasilewski, dirigindo-se à jovem. E ambos encaminharam-se para o veículo avariado. - Como posso agradecer-lhe, senhor - murmurou ela - pela defesa que acabou de tomar por meu pobre pai? - Desejo trabalhar pelo triunfo da verdade - respondeu o oficial. - Um tal serviço, senhor, só pode provocar a desgraça - comentou Natacha. Como se compreende que, tendo me visto há alguns momentos apenas, tenhas um tal desejo de servir-me? - Apenas vos vi, senhorita, esqueci de mim mesmo. E ambos se consideraram, apesar de terem-se encontrado no caminho como dois entes que se escolheram e cujas almas voam uma para a outra... Tinham transportado as malas para outra condução e pouco depois o cortejo pôs-se a caminho. A caravana entrou pela estrada da floresta, mas apenas tinha dado alguns passos, quando um galope de corcéis se ouviu e cinco cavaleiros apareceram no caminho. Eram os filhos da princesa Amalia que, avisados pelo cocheiro do acidente, acorriam ao seu encontro trazendo um carro puxado por quatro cavalos. 20 - Agradeçam a estes fidalgos. Graças a eles não temos necessidade de nenhum socorro. Senhores, eis meus filhos: Aleksy, Hrynko, Zenobio e Nicolau... o quinto cavaleiro e o amigo dos meus filhos, Bohdan. - As minhas saudações, princesa, e a ti, Natacha ! – exclamou o cavaleiro que atendia pelo nome de Bohdan. Boguslaw Wasilewski reconheceu, no mesmo instante, no quinto cavaleiro que lhe foi apresentado, Bohdan Zenóbio Chmielnicki, o mesmo personagem ao qual salvara a vida na emboscada em que este caíra na estepe, apenas alguns dias atrás. Mas como o mesmo quisera ocultar este fato, fazendo de conta que nunca antes haviam se encontrado, o tenente seguiu-lhe o procedimento. Bohdan, tirando o boné de pele de urso, disse: - Saúdo a vós todos, nobres senhores. Em seguida esporeou o cavalo, que saiu a galope. Os quatro irmãos por sua vez, também saudaram os visitantes. - Muito respeitosamente vos rogamos que aceitem a nossa hospitalidade - falou um dos filhos. A caravana prosseguia, quando Bohdan, num golpe violento no freio, fez estacar o cavalo e voltou, prestes a precipitar-se contra Boguslaw, que acompanhava a jovem ao lado da sua condução. - Afaste-se dessa carruagem! - gritou de repente, e aproximou-se dele com tal violência que os flancos dos cavalos se chocaram. E a luz da lua, viu dois olhos que o fitavam com insolência, desconfiados e zombeteiros ao mesmo tempo. Estes olhos terríveis luziam como os dum lobo em floresta sombria. - O que é isso, Bohdan? - ouviu-se a voz dura e autoritária da princesa Amalia. Boguslaw estava surpreso e encolerizado, Bohdan evidentemente provocava-o. Mas por quê? E por qual motivo este ataque inesperado? 21 Bohdan obedecera à princesa, que o vigiava e o xingava a meia voz: - É um doido este demônio cossaco! - Este oficial está a seu serviço e de seus filhos? perguntou o tenente. - Como! Não conheces Bohdan? O coronel Bohdan Chmielnicki, hetman dos zaporogos, o famoso guerreiro, o amigo dos meus filhos e a quem adotei para ser o meu sexto filho? É impossível que não tenha ouvido pronunciar o seu nome, porque é conhecido por todos. Com efeito, o nome era conhecido por Boguslaw, pois de todos os chefes dos rebeldes, somente ele personificava exatamente a bravura cossaca, e o seu nome era famoso em toda Ucrânia, nas duas margens do Dnieper. Era o rei das planícies onde sempre vivera. Servia à estepe, aos uivos do vento, às campinas, à guerra, ao amor, à orgia, à sua fantasia. Daquele momento em diante, o seu desejo seria perseguir Bohdan por toda parte, mas tinha de cavalgar junto à princesa. Além disso, estavam chegando; os carros acabavam de atravessar os fossos de Wasylkow, as luzes brilhavam ao longe no meio das frondosas árvores. *** Os Bulugian Kosiewicz descendiam duma antiga linhagem de príncipes, que se diziam descendentes do kniaz (princípe) Rurik “O Viking”. Viviam, parte da família na Lituânia e outra parte na Volínia, até que o príncipe Wassili, um dos descendentes numerosos da linha volíniana, se estabeleceu acima do Dnieper, em Wasylkow, entre Zytomir e Kiew. Converteu-se ao rito latino, católico, e esposou uma jovem austríaca, descendente de uma nobre família. 22 Deste casamento nasceu um ano depois uma filha, que recebeu o nome de Natacha. A mãe, ao dar à luz, não suportou as dores e faleceu em seguida. Príncipe Wassili, seu marido, não pensou mais em casar-se novamente, dedicou-se exclusivamente à gerência dos seus bens e à educação da filha. Era um homem de grande caráter. Adquiriu muitos bens e chamou junto de si o seu irmão Konstanty com a esposa e os cinco filhos, que habitavam na Wolínia, mantendo-se com os escassos rendimentos da sua pequena quinta. Viviam os dois irmãos Kosiewicz em paz, até que Wassili foi chamado pelo rei ao cerco de Sebastopol dominado pelos turcos. E foi ali que se deu o fato que causaria a sua ruína. Uma carta escrita ao khan da Criméia, assinada pelo príncipe Wassili e lacrada com o selo das armas dos Kosiewicz Bulugian, foi interceptada no acampamento real. Tal traição vinda de um cavalheiro cuja lealdade nunca fora contestada, surpreendeu e confundiu o rei e todo o exército. Foi em vão que Wassili tomou Deus por testemunha, jurando que nem a letra nem a assinatura eram dele; mas a prova era o selo. As armas dos Bulugian foram aplicadas sobre o selo e não permitiam dúvida alguma. Ninguém aceitou a versão de que o sinete tivesse sido perdido - fato que o príncipe afirmava com veemência, vendo-se, portanto, o desditoso soldado condenado à perda dos seus bens e da vida. Constrangido a procurar a salvação na fuga, chegou uma noite a Wasylkow, sua herdade, suplicou ao irmão que tomasse conta da sua filha Natacha, como se fosse sua própria filha e desapareceu para sempre. Tempos depois ficou provada a sua inocência quando um parente distante, no leito da morte, confessou que tinha escrito a carta ao vizir turco e lacrado com um sinete achado no acampamento. A sentença real foi revogada e restaurado na sua honra o nome do príncipe Wassili Kosie23 wicz. Natacha cresceu em paz, protegida pela ternura do tio Konstanty, e só depois da morte dele começaram as suas vicissitudes. A viúva de Konstanty era uma mulher severa, egoísta, autoritária, que somente seu marido pudera dominar. Depois da morte dele, ela tomara o governo de Wasylkow. Os servos tremiam na sua presença, as criadas temiam-na como ao diabo e a sua tirania se fez conhecida até pela vizinhança. O domínio não era muito longe de Kiew, onde residia a corte, e os jovens príncipes teriam toda a facilidade de ali aprender maneiras corteses, mas a princesa Amalia tinha as suas razões para os conservar junto de si, e os jovens ignoravam quase tudo que não se relacionasse com a vida agreste que levavam. Tinham ficado meio selvagens como os cossacos das estepes. Era triste ver esses descendentes duma nobre raça, em cujas veias corria sangue principesco, com as suas maneiras grosseiras e rudes, com as idéias obscuras e coração fechado, como homens incultos. Os irmãos levavam uma existência guerreira, que lhes valeu o nome de príncipes cossacos. Um olhar a Wasylkow bastava para se adivinhar que espécie de gente ali vivia. Quando os viajantes passaram as grades com os seus carros, viram não um castelo, mas, antes, um vasto barracão construído de enormes troncos de carvalho com janelas estreitas. A habitação dos servidores e dos cossacos, as cavalariças, os celeiros, os depósitos de provisões, tudo estava ligado à casa, formando um conjunto pitoresco de edificações, umas baixas, outras altas, numa estranha desordem. Á entrada, via-se uma espécie de nicho, no qual um urso estava acorrentado. Uma forte barreira de pranchas de carvalho defendia a entrada do pátio interior, que era rodeado de um fosso e 24 de uma paliçada. Era uma habitação fortificada, protegida contra os ataques e incursões. Fazia lembrar os postos cossacos de fronteira e se assemelhava mais a um ninho de salteadores do que a um solar de príncipes ucranianos. Os servidores que vieram com archotes ao encontro dos recém-chegados tinham o ar de bandidos. Cães enormes ladravam furiosamente. Das cavalariças saíam relinchos de cavalos. E foi no meio deste ruído que a caravana entrou no pátio. O interior da habitação não correspondia de maneira alguma ao exterior. Na vasta ante-sala, cujas paredes estavam cobertas com os troféus de guerra e de peles de animais selvagens, grossos troncos de árvore ardiam em enorme fogão e as suas chamas iluminavam o interior do ambiente, cujos cantos estavam repletos de peles de ursos, lobos, raposas, martas e arminhos, e mais além, junto às paredes, amarrados nos seus poleiros estavam belos gaviões, falcões e águias douradas, apanhados nas longínquas estepes do leste e aqui serviam a caçadas. Desta ante-câmara os hóspedes passaram para uma espaçosa sala de recepção, onde ardia o fogo numa enorme lareira. Esta sala era mais luxuosa; as paredes eram cobertas de raros estofos e o chão de esplêndidos tapetes do Oriente. Ao centro destacava-se uma grande mesa em cruz, sobre a qual viam-se taças de cristal de Veneza; e as pequenas mesas estavam repletas de jóias, candelabros e relógios preciosos. Todos estes objetos constituíam despojos de outrora, conquistados dos venezianos pelos turcos e depois dos turcos pelos cossacos. Por toda parte reinava um luxo exagerado, em desarmonia com a rudeza extrema das estepes. Tudo que tinha valor provinha das expedições do príncipe Wassili contra os tártaros e turcos. Esta ostentação de maravilhas e riqueza provocou surpresa aos visitantes, que não podiam ocultar o 25 espanto de ver, no meio daquele luxo, os moços príncipes com botas de couro tão grosseiras e vestimentas de pele de animais como as dos seus criados. Entretanto, os filhos da princesa recebiam os hóspedes de muito boa vontade, mas, pouco habituados à sociedade, faziam-no de forma desajeitada. Neste momento, a princesa Amalia agarrou Bohdan pelo braço e levou-o para outro cômodo. - Ouve Bohdan! - disse rapidamente - não tenho tempo de fazer-te grandes sermões, mas vi você atacar o tenente Boguslaw Wasilewski, queres provocá-lo? - Mãe - respondeu o cossaco, beijando-lhe a mão, o mundo é grande, que ele siga o seu caminho e eu o meu; mas não o deixe andar em volta de Natacha... do contrário eu o matarei como a um cão, com o meu sabre. - Não estás louco, decerto! Queres arruinar-nos a todos? Não vês que ele é um oficial do príncipe Jeremias, uma pessoa de distinção, pois que o nomearam embaixador junto ao khan? Por um só cabelo que lhe caia da cabeça, enquanto estiver debaixo do nosso teto, sabes bem o que acontecerá? O príncipe Jeremias voltará os olhos para Wasylkow, vai querer vingá-lo, nos porá para fora daqui e tomará Natacha sob a sua proteção. Queres provocar Wisniowiecki? Experimenta isso, cossaco doido, e verás o resultado! Voltarás para o Zaporozhye (região no Delta do Dnieper), donde vieste, porque não quero que nos traga a desgraça. O cossaco roía o bigode, torcia-se todo, mas não deixou de reconhecer que a princesa tinha razão. - Eles irão embora amanhã, mãe, deixai ficar a Natacha no seu quarto - pediu Bohdan com insistência. - De que servirá isto? Para fazer pensar a esses estranhos que a seqüestro? Ela aparecerá na ceia, porque as- 26 sim eu quero! E não dê ordens nesta casa, onde não é o senhor - respondeu bruscamente a princesa. - Não vos zangueis, mãe! Obedecerei às vossas ordens, já que assim o quer - respondeu o cossaco, abaixando a cabeça. Ambos voltaram para a sala de recepção. O tenente Boguslaw contemplou-o atentamente, pois na escuridão da planície mal vira as feições deste, quando o salvara. Via um moço jovem, mas já famoso como chefe guerreiro, direito como um álamo, de feições enérgicas, a pele bronzeada pelo sol das estepes, olhos pardos oblíquos de brilho selvagem, como os de um gato, e de fartos bigodes. Bohdan tinha a fronte elevada, da qual os cabelos ruivos caiam-lhe como uma crina, cobrindo as espessas sobrancelhas. Um nariz aquilino de narinas dilatadas e dentes branquíssimos davam à sua fisionomia uma expressão de rapacidade. O conjunto, porém, constituía um modelo daquela beleza cossaca, luxuriante, cheia de caráter, de energia e de arrogância. O seu esplêndido vestuário distinguia-o dos filhos da princesa, que só vestiam peles de animais. Foi servido o jantar, composto de variadas carnes de caça, kascha de trigo sarraceno em enormes tigelas e, como bebida, vinho moldavo da melhor qualidade, servido em taças de cristal. Os cavalheiros ofereceram o braço às damas para acompanhá-las à mesa da ceia. Boguslaw levou a princesa Natacha e sentou-se ao seu lado. Uma onda de sangue subiu ao rosto da jovem e o peito elevou-se-lhe palpitante, queria falar mas os seus lábios tremiam. - Nunca vos esquecerei – sussurrou o oficial. - Silêncio, senhor! Partirás amanhã, e depois de amanhã já terás me esquecido - respondeu Natacha. 27 - Talvez, vós senhora, me esquecerás. Este belo cossaco Bohdan vos ama, suspira por um sorriso seu. - Nunca! - respondeu - Mas toma cuidado com ele, é um homem terrível, traídor e vingativo. Depois do jantar organizou-se um baile, ao som de balalaikas; Boguslaw foi o par constante de Natacha. Já ia alta a noite quando terminaram as danças. Recolhido ao aposento que lhe fora destinado, e não podendo conciliar o sono, Boguslaw sentou-se no leito; conversava com o companheiro de quarto, quando bateram levemente na porta. Era um velho tártaro de olhar negro e penetrante, que parado na porta perguntou: - Necessitais de alguma coisa? Talvez um copo de hidromel? Ou um copo de vinho? O tártaro aproximou-se de Boguslaw, e olhando para os lados com desconfiança, murmurou: - A princesa lhe envia isto, e encarregou-me de lhe dizer que o ama com toda sua alma. O servidor tirou de dentro da manga uma larga fita e entregou-a ao oficial, que a beijou e apertou contra o coração. - Como vive a princesa aqui?- perguntou. - Tem maus desígnios a seu respeito. Querem dar-na à Bohdan, que não passa de um cão maldito, que a levará como o lobo leva o cordeirinho, vai aprisioná-la para sempre. Depois os príncipes e a princesa Amalia viverão em paz em Wasylkow, que não lhes pertence. A herdade é de direito e pertence ao pai da princesa, e Bohdan presta-se a essa infâmia, quando sabe que ela o odeia de toda alma. O tenente Boguslaw não pôde dormir aquela noite. Assim que amanheceu o dia, vestiu-se às pressas; os carros e a escolta já o esperavam. Almoçaram junto com os jovens príncipes e a mãe. Bohdan não apareceu. Depois de alguns momentos Boguslaw falou: 28 - Princesa, quero agradecer pela sua hospitalidade. Mas antes de partir desejava lhe falar dum assunto muito importante para mim. Lia-se a surpresa nas feições da velha dama, e foi com uma certa inquietação que respondeu: - Estou às vossas ordens, de que se trata? - Perdoai-me, senhora, e vós também príncipes, que eu próprio advogue a minha causa. Mas não pode ser de outra maneira. Peço-vos humildemente a mão da princesa Natacha. Se um raio caísse em cima da casa teria causado menos espanto do que estas palavras do oficial. - Falais de Natacha? - Falo da princesa Natacha. E o meu pedido é resultado duma decisão irrevogável. Um momento de silêncio se seguiu a estas palavras. - Espero a vossa resposta, princesa. - Perdoai-me, tenente Boguslaw! – disse ela, por fim, e a sua voz tornou-se seca e dura. A proposta de um cavalheiro como vós é uma grande honra, confesso. Porém, Natacha já está prometida a outro homem. - Mas essa promessa não seria feita contra a vontade da princesa? Consultaram-na? - insistiu Boguslaw. - Nesta matéria sou eu o único juiz, tenente. Podes ser um fidalgo, mas não nos conhecemos. - Mas eu vos conheço, traidores! – exclamou Boguslaw violentamente. Querem entregar essa pobre criança a um vilão, a um patife, contanto que ele abandone este domínio que vocês ocupam sem nenhum direito. Mas não julguem que o vosso crime ficará impune! Amanhã mesmo o príncipe Jeremias conhecerá toda a infâmia! A estas palavras, a princesa correu para o fundo da sala, agarrou numa faca de mato e se precipitou sobre o tenente, os filhos a imitaram. A velha dama gritou: 29 - Ah! vai dizer tudo ao Jeremias? Mas tens certeza que sairás vivo daqui? - Venho da Criméia, onde fui enviado como um embaixador do príncipe - disse Boguslaw. Se uma gota do meu sangue correr aqui, dentro de três dias as cinzas desta casa serão dispersas pelo vento e todos vocês conduzidos às masmorras de Kiew. Os príncipes e a mãe brandiram as armas, mas nenhum deles ousava avançar para ferir o oficial. - Não querem dar-me Natacha? Escutem o que vos proponho. Deixarei Wasylkow para vocês e não pedirei contas da vossa tutela. E agora escolham. O príncipe nada saberá do que aqui aconteceu se me derem Natacha, senão, já sabem o que acontecerá... A velha dama voltou-se para os filhos e perguntou contrafeita: - O que vamos dizer ao altivo pedido deste senhor? Eles abaixaram a cabeça, e um deles murmurou : - Se nos ordenares, mãe, que o matemos, vamos matá-lo. Se nos autorizares para lhe entregar Natacha, assim faremos. Mas quem nos livrará de Bohdan? Ele nos destruirá. É sanguinário, vingativo, não vai nos perdoar. - Escuta. Nós mesmos iremos à Kiew e levaremos Natacha. Bohdan tem às suas ordens, nos arredores de Wasylkow, centenas de cossacos. Não poderás levar a jovem agora, isso seria um risco muito grande para vós e para ela, pois, sem dúvida alguma, cairão nas mãos destes homens selvagens - ponderava a princesa Amalia. - Então vão conceder-me a mão da princesa Natacha? – perguntou o oficial. - Sim, porque não podemos proceder de outra maneira, ainda que lastimemos por causa de Bohdan, pois considero-o como um filho - respondeu a princesa. 30 Uma hora depois, o tenente Boguslaw com o seu regimento e o embaixador cavalgavam na direção de Kiew. *** Por toda Ucrânia, tanto nas regiões da Wolínia, Podólia, acima e dos dois lados do Dnieper, corriam estranhos rumores, semelhantes às agitações precursoras das tempestades, notícias que se espalhavam de aldeia em aldeia, de herdade em herdade e pelas cidades; falava-se de uma grande guerra, ainda que ninguém soubesse dizer quem a empreenderia e contra quem seria. Gente que se reunia de tarde nas praças das aldeias e grupos nos caminhos falavam de coisas terríveis. Esse estado de espírito era tanto mais surpreendente, pois aquele povo estava acostumado às perturbações, aos conflitos e às incursões dos mais diversos inimigos e das mais inesperadas direções. O alarme tornara-se geral. A Ucrânia estava invadida por grande número de zaporogos; os cossacos sentiam a falta do pão preto, feito de centeio e trigo sarraceno que a estepe lhes fornecia. Os estarostes (chefes de distrito) mantinham as tropas vigiando os arredores. Magnatas reforçavam as guardas e séquitos particulares, e enviavam as mulheres e crianças para as cidades fortificadas. O príncipe Wisniowiecki enviou emissários para diversas regiões, contatou vários comandantes que lhe responderam que, por enquanto, não havia motivos para inquietação, mas aconselhavam-no a não desprezar informações, porque duma hora para outra uma tremenda tempestade podia desencadear-se. Informaram, inclusive, que Bohdan Chmielnicki, hetman dos cossacos, dirigia-se para a Criméia a fim de pedir auxílio ao khan tártaro. 31 Resolveu, pois, reunir tantos soldados quantos lhe fosse possível, e empregar todos os meios para conhecer a situação exata. Mandou chamar o capitão Wykhowets, do regimento valáquio, e ordenou-lhe para que seguisse ao Delta. Disse-lhe na saída: - Veja tudo o que se faz por lá, as tropas que já estão prontas e as que devem chegar. Informe-se especialmente de Chmielnicki, o que faz e se realmente foi pedir ajuda aos tártaros da Criméia. Seja prudente, abra bem os olhos e os ouvidos, analise tudo e volte o mais depressa possível. Wykhowets saiu da sala de despachos; no corredor aguardavam-no o tenente Boguslaw Wasilewski e outros oficiais amigos. - O que há? – perguntaram em uníssono. - Saio esta noite. - Para onde? - Para Kudak, e sem dúvida para mais longe ainda até o Delta. - Venha comigo - disse-lhe Boguslaw, e conduziu-o ao seu quarto. É meu amigo - prosseguiu o tenente – peça me o que quiser, um cavalo turco, ou árabe, ou qualquer outra coisa, nada te recusarei se puder ir no teu lugar, porque o meu coração voa na direção que você vai tomar. - Será que o príncipe vai autorizar a troca?- perguntou preocupado o oficial. Boguslaw correu para falar com o príncipe Jeremias, e se fez anunciar. - O que tens a me dizer ?- perguntou o príncipe. . - Senhor, venho pedir-vos humildemente que me envie em missão ao Delta. Meu amigo Wykhowets consentirá nisso, pois já conversei com ele a respeito, receia apenas descontentar-vos cedendo-me a missão. - Confiaria essa missão a você, mas tinhas voltado duma longa viagem. 32 - Não importa Alteza, desejaria até que todos os dias me mandassem a Kudak. O príncipe observava Wasilewski. - O que é que o chama tão ansiosamente a Kudak, ou a Kiew? - Eu lhe direi a verdade, senhor. E o jovem narrou o seu encontro com a filha do príncipe Wassili Kosiewicz, e como se enamorara dela, e que grande felicidade sentia em tornar a vê-la. - Vou ver como as coisas podem-se conciliar - respondeu o príncipe - e mandou chamar Wykhowets. - Capitão – disse - encarreguei-o duma missão, mas se puderes ceder essa incumbência ao tenente Boguslaw, que tem importante razão para a desejar, prometo que lhe arrumarei uma outro encargo sem demora - virou-se na direção do tenente Wasilewski, concluindo: - Agradeça ao teu amigo, capitão Wykhowets, e apronta-te para partir. Ele saiu da cidade antes da noite, seguido de Dendzian, seu ajudante de ordens, e os quarenta cavaleiros do regimento cossaco. Era já no final do mês de abril e a pastagem crescia luxuriante. A estepe renascia para a vida, cobrindo-se de flores multicoloridas. Boguslaw ia à frente dos seus homens, avançava por um mar verdejante, cujas ondas se balançavam à menor aragem. Por toda parte ouviam-se as vozes da primavera, animadas, murmurantes; a natureza inteira ressoava como uma lira tocada pelo Senhor. Bandos de cavalos selvagens apareciam a galope, avançavam até perto dos viajantes, de narinas dilatadas, olhos espantados, e depois desapareciam com a velocidade do vento. A planície estava cheia de vida, de sensualidade palpitante e o vento trazia os odores da fecundidade. 33 Pelo meio dia seguinte, o oficial e o seu grupo de soldados viram os telhados de Wasylkow destacando-se contra as colinas. O coração de Boguslaw palpitava violentamente. Estavam chegando, quando os servidores da herdade reconheceram o tenente e abriram os portões. A princesa Amalia apareceu - exclamando: - Ah! Sois vós, tenente? Receei um ataque de tártaros. Peço lhe que entre. - Certamente que estais admirada de me ver aqui. O príncipe Jeremias envia-me ao Delta numa missão e pediume que parasse em Wasylkow a fim de saber notícias da sua saúde - informou Boguslaw. - Sinto-me honrada pela lembrança de Sua Alteza. Mas não pensa o príncipe em expulsar-nos daqui em breve? - O príncipe não pensa nisso, e eu sou bastante rico para poder fazer o sacrifício de deixar para vós a herdade de Wasylkow. Como vai a princesa Natacha? Onde está ela? – perguntou ansioso o tenente. - A princesa passa bem, vou mandar chamá-la - respondeu a dama. Natacha entrou, entretanto, sem ter sido chamada. O seu velho e fiel servidor tártaro avisara-a da chegada do noivo. Boguslaw correu para ela, pegando-lhe as mãos, começou a beijá-las. Logo que a velha dama saiu, o tenente puxou a jovem junto ao seu peito, beijando-a longamente. Não demorou muito e a dona da casa voltou convidando-os para o jantar, estava de perfeito bom humor. Havia muito tempo que esquecera Bohdan, tudo corria bem para os seus interesses. Veio a noite, e depois de terno adeus o tenente Boguslaw partiu rumo à Kudak. Tornava-se evidente que Chmielnicki preparava-se no Delta para pedir, com as armas nas mãos, justiça para si e o restabelecimento dos antigos direitos dos cossacos. A34 gora era certeza que na Criméia obtivera o auxílio do khan e do seu exército tártaro, e que esperava a chegada deles dum dia para outro. Seria então a campanha dos territórios do sul contra a Coroa, guerra que, graças aos tártaros, poderia tornar-se muito perigosa. A tempestade aproximavase cada vez mais; mais violenta e mais certa. O grande hetman Jeremias Wisniowiecki, com as suas tropas, dirigia-se a toda pressa para Czerkasy; e os cossacos revoltados, em massa, tomavam o rumo do Delta. A infortunada Ucrânia dividia-se em duas facções; uma voltava-se para o Delta e a outra para os quartéis da Coroa. Uma declarava-se pela ordem estabelecida; outra, por uma liberdade sem controle. A guerra civil estava iminente. Chmielnicki reivindicava os direitos dos zaporogos e dos cossacos da estepe que, a pé e a cavalo, dirigiam-se para a fronteira do Delta. Ainda que o sangue não tivesse manchado a estepe, a guerra já começara. Os regimentos seguiam como ondas de gafanhotos saídos com o sol da primavera e se espalhavam pelos campos da Ucrânia. Seis mil homens bem armados compunham o destacamento enviado pelo khan da Criméia em auxílio a Bohdan Chmielnicki. O dia estava lindo, nem uma nuvem no céu azul. Os campos primitivos estendiam-se diante dos zaporogos como um mar sem fim e esta vista inundava de alegria o coração dos guerreiros. O grande estandarte vermelho com o Arcanjo inclinava-se à maneira de saudação ante a planície natal. O mesmo grito saía de todos os peitos, de entusiasmo e de liberdade. Na frente, debaixo da grande bandeira, cavalgava Chmielnicki, de uniforme escarlate e de bastão de ouro na mão. Bandos de pássaros espantados voavam e precediam o exército. Toda a massa de homens marchava num só movimento, lento e seguro para o norte, cobrindo, como uma 35 gigantesca onda, os rios, os cerrados, as colinas e as planícies, enchendo com os seus rumores a estepe infinita. Mas de Lwow, do norte, do país plano, avançavam as tropas do exército da Coroa, comandados pelo príncipe Jeremias, que cavalgava triste, pois sabia que ia se empenhar numa luta fratricida. Entretanto, os batalhões de cossacos e camponeses, de Chmielnicki, voavam, avançavam sem perder tempo ao encontro do exército de Jeremias. O seu poder era formidável, porque contava também com os soldados de Krechowski, que se passara para o seu lado, e somando as forças do khan da Criméia, ao todo, ele conduzia vinte e cinco mil homens resolutos e ansiosos por batalhas. Afluíam, ainda, mais cossacos desertores para o seu lado. Não havia informação certa sobre os efetivos de Wisniowiecki. Chmielnicki marchava para a frente, com prudência, olhando com os olhos multíplices do seu espírito para todos os lados, como um astuto caçador, e colocando sentinelas até mais de cinco werstas do seu acampamento. A Ucrânia estava em chamas... Houve um violento encontro das forças de Chmielnicki com os regimentos de Wisniowiecki nas margens do Dnieper. Com o choque da luta, homens e cavalos caíam como grãos ao sopro da tempestade. A vitória pendia para o lado do príncipe, mas a batalha não durou muito tempo. A noite chegava. O céu cobriu-se de estrelas. No outro dia, o combate recomeçou logo de manhã. Chmielnicki conduzia a cada momento novos regimentos à luta. Via-se ele em toda parte. A batalha travava-se tão encarniçada que entre as duas linhas uma nova muralha se erguera, feita de homens e cavalos mortos. Nuvens de fumaça cobriam o campo de batalha. Os canhões nada conseguiram contra os cossacos rebeldes, e o estandarte vermelho com o Arcanjo dominou o campo do inimigo. 36 Os regimentos de Wisniowiecki estavam vencidos. A vitória, ainda que brilhante, contudo, não decidiu a campanha em favor de Chmielnicki, que já na manhã seguinte após a batalha, levantou o seu acampamento. Marchavam tão rapidamente como se voassem. Era como uma enchente que tivesse invadido a estepe, levando junto todas as águas na sua passagem; mais parecia um dilúvio. As forças rebeldes aumentavam pelo caminho, juntavam-se-lhes grupos de camponeses que fugiam da Ucrânia e que, na passagem, queimavam os campos, aldeias e cidades. Todos os homens válidos, armados de lanças e de punhais, juntavam-se às suas tropas, a região inteira aderia com entusiasmo à guerra e a seu comando. Partiu sem demora e avançou por entre a insurreição, a mortandade e o incêndio, deixando na sua passagem ruínas e cadáveres. Precipitava-se como um vingador, como o Dragão lendário. As patas do seu cavalo faziam jorrar sangue do solo em que pisasse, e a sua respiração escaldante provocava incêndios nas estepes. Vencia as batalhas contra os comandantes poloneses, e depois duma delas cavalgava no meio dos outros, vestido de vermelho, com um bastão de ouro apoiado nos quadris, ia tão orgulhoso como um rei. E o inacreditável e inesperado tinha acontecido: a Coroa no pó e no sangue, aos pés de um cossaco... *** Parecia às pessoas que a abóbada celeste desabara de repente sobre a Polônia. A destruição dos exércitos da Coroa, sempre vitoriosa até então, nas suas lutas contra os cossacos; a terrível conflagração na Ucrânia inteira, seguida de morticínios como jamais foram vistos iguais. 37 Todos os laços sociais estavam quebrados, a autoridade cessava, as distinções entre as pessoas desapareciam. As forças do mal desencadearam toda espécie de crimes e espalharam pela terra uma monstruosa orgia. O assassínio, o saque, a perfídia, a bestialidade, a violência, o banditismo e o frenesi substituíram o trabalho, a lealdade e a consciência. Cidades, aldeias, igrejas, palácios, campos e florestas, tudo queimava. Tinha se instalado na Ucrânia o inferno de Dante. E acima de todas estas calamidades, das mortes, dos incêndios, de todo este sofrimento, um homem se elevava. A cada hora mais altivo, mais orgulhoso, mais terrivelmente gigantesco, como nuvem escura velava a luz do dia e a sua sombra maquiavélica abrangia o espaço do mar Báltico ao mar Negro. Este homem era Bohdan Zenóbio Chmielnicki, o todo poderoso hetman dos cossacos da Ucrânia. Num discurso inflamado, convocava todos à luta. Com autoridade exaltada bradava: - Meus irmãos! Cossacos, cidadãos e camponeses ucranianos, vocês já sofreram muita opressão com esta lei injusta: a da servidão. Fala-se de interesses privados e de traição por parte dos nobres que dominam na Ucrânia. Olho e vejo com indignação o que se passa numa região tão rica, de terras negras tão férteis que não há similares no mundo. Nossa mãe-pátria! Terra natal! E aqui quem tem certeza do dia de amanhã? Quem pode considerar-se feliz? Quem não se vê perturbado na sua fé, espoliado na sua liberdade? Na sua propriedade? Quem aqui não chora e não se lamenta? Os Wisniowiecki, talvez, os Potocki, os Zaslawski, os Czartoryski, os Poniatowski e mais um punhado de nobres e magnatas de diversas origens, que aqui se instalaram e são proprietários de imensos domínios? Latifundiários! 38 - Apossaram-se da terra que é só nossa! Fora com eles! O povo, este ergue os braços ao céu, implorando a piedade de Deus. Quantos, mesmo entre os nobres ucranianos, não podendo sofrer mais esta intolerável opressão fugiram para o Delta, como eu mesmo fugi? - Não desejo a guerra contra a Coroa e o rei Jan Kazimierz; ele é uma pessoa generosa, prometeu aos camponeses mais privilégios, amenizou a lei da servidão, mas os nobres não obedeceram à lei e continuaram a oprimir e explorar os servos. Vivemos sob constante extorsão, pagando impostos sobre as planícies, sobre o trigo que nós produzimos, sobre os animais que criamos, sobre tudo. E pior ainda é a tirania que exercem por intermédio dos seus encarregados. - Tudo isto clama vingança!... - Senhores, coronéis, amigos, decidistes pela guerra, devem tê-la, mas não com o rei nem com a Coroa, mas com nosso maior inimigo, Jeremias Wisniowiecki, tinto ainda pelo sangue cossaco, que, no seu ódio pelos exércitos zaporogos, vai destruindo tudo, martirizando homens e mulheres, não deixando viva alma na sua passagem, mesmo contra a vontade do rei. Na sua insolência, não considera coisa alguma e dia virá que se levantará contra o poder do próprio rei, pois desde já não acata as suas ordens. Exaltado, Chmielnicki pronunciava estas palavras levantando os braços para o céu, agitava-os acima da cabeça como se fossem os raios da vingança celeste... Depois começou a tremer e por fim caiu no banco como que acabrunhado ao peso do seu destino. Multidões de camponeses e nobres ucranianos ouviam e aplaudiam-no. Cento e vinte mil homens armados e ébrios de vitórias estavam atentos ao seu primeiro sinal. O príncipe Jeremias Wisniowiecki era um bravo guerreiro, audaz, comandante experimentado em operações 39 de guerra, mas dominado por ambição desmedida de poder. Uma verdadeira raposa, astuto e inteligente, dificilmente achava opositor à altura para enfrentá-lo em campos de batalha. Descendente de uma antiga família russo-polonesa, cujo berço primitivo era o castelo de Wisniowiec, era kniaz de estirpe russa pelo lado materno. As suas enormes possessões em terras e castelos espalhavam-se por toda Ucrânia, iam desde as portas de Wisniowiec, seu palácio-fortaleza próximo a Lwow, até às margens do Dnieper em Czerkasy, Lubnie e Konotop. Combatia os revoltados cossacos de Chmielnicki, defendendo a sua soberania sobre a região. Os tártaros foram ali perseguidos e obrigados ao trabalho no regime de servidão, com disciplina rígida. Mais de quarenta mil homens tornaram-se tributários do tesouro principesco. O país, desde o rio Prypec ao norte, até as estepes do sul, estava em chamas. A insurreição alcançava as províncias de Rus Vermelha, Wolínia, Podólia, Bratislawa, Kiew, todo o Delta e até Chadzubeij, no Mar Negro. O poderio de Chmielnicki aumentava dia-a-dia. A Coroa nunca tinha oposto aos seus mais terríveis inimigos a metade das forças de que dispunha agora. A revolta ultrapassara todas as previsões. O rei Jan Kazimierz, mesmo que cerceado na sua autoridade, enviou o valoroso guerreiro Jan Sobieski para enfrentar os revoltosos de Chmielnicki. Este, ao saber quem iria enfrentar, mostrou-se apreensivo, pois conhecia o valor de Sobieski. Depois da destruição de Wasylkow e do assassinato dos seus donos, Chmielnicki capturou a princesa Natacha e entregou-a aos cuidados do seu fiel capitão Havrysko, para que a protegesse como pupila dos seus olhos; responderia pela sua segurança com a própria vida. Havrysko levou-a disfarçada como seu pajem para a fortaleza de Bar, longe 40 do tumulto. Entregou-a à proteção das religiosas do convento ortodoxo de Santa Sofia; lá ela estaria segura. Entretanto, algum tempo depois o tenente Boguslaw, por um acaso, soube do paradeiro da sua noiva. Imediatamente, requisitou trezentos tártaros, que pelo meio dia já aguardavam a sua ordem no pátio do castelo de Kiew. Iria até a fortaleza de Bar resgatar Natacha. Wisnioviecki, para festejar o seu fiel tenente, convidara os oficiais, seus amigos, para um jantar de despedida. As paredes da sala e janelas tremiam aos vivas dos convidados desejando-lhe boa sorte. De repente, no limiar da porta apareceu um homem coberto de pó. Ao deparar-se com aquela festa, das faces avermelhadas de alegria, deteve-se, hesitando em aproximar-se dos convidados. O príncipe Jeremias viu-o: - Ah, és tu, Makkar? trazes boas notícias do teu reconhecimento em Bar? - Alteza!- respondeu o oficial com a voz alterada. Alteza! Bar acaba de ser tomada por Chmielnicki. *** Numa noite tranqüila de verão, uma vintena de cavaleiros cossacos armados seguia marchando devagar, na margem direita do rio Serete, em direção à fortaleza de Lwow. No centro do grupo, dois cavalos a par levavam uma padiola ligada às selas, e sobre esta padiola um corpo humano estava estendido; apresentava a palidez da morte. O cavaleiro que ia na frente voltou-se para seu companheiro, perguntando: - Worpina, estamos longe ainda? O companheiro, na realidade, era uma mulher disfarçada. Ela olhou para o céu e respondeu: 41 - Não! Chegaremos antes da meia-noite. Temos que passar ainda o Monte dos Vampiros, o Vale Tártaro, e estaremos na Garganta do Diabo. Oh! Mas seria terrível passar ali entre a meia noite e o canto do galo. Para mim seria isso possível, mas para vocês muito perigoso. - Sabemos perfeitamente que o diabo é teu irmão!– retorquiu o homem sacudindo os ombros. - Mas tenho eu aqui armas contra o diabo e sua corte. Agora, se sou irmã do diabo ou não, isso não importa replicou Worpina - pois, digo a vocês que poderiam procurar por toda parte que não encontrariam melhor esconderijo para a princesa. Ninguém passa por ali sem mim depois da meia-noite, e nenhum homem ainda pôs os pés lá dentro. Se alguém quer um oráculo, espera à entrada e sou eu que vou ter com ele. Não tenha receio, pois nem polaco, nem tártaro ousarão ir até ali, absolutamente ninguém! A Garganta do Diabo é terrível! Assustadora! - Seja ela terrível ou não, irei lá quantas vezes eu quiser! - disse Bohdan Chmielnicki. - De dia - respondeu ela. - Quando me apetecer! E se o diabo se puser na minha frente, derrubá-lo-ei pelos chifres. - Oh! Bohdan, Bohdan! - Que o diabo me leve ou não, nada tens com isto! Mas já te aviso, aconselha-te com os teus protetores para que nada aconteça à princesa, porque se algum mal lhe acontecer, não haverá diabos nem vampiros que possam tirar você das minhas garras vingativas. - Sossega, Bohdan! Guardarei bem a princesa, e nenhum espírito ousará tocar-lhe num só fio de cabelo. Nas minhas mãos estará ela livre de todo perigo e não vos escapará. 42 A conversação interrompeu-se, de novo só se ouviam os passos dos cavalos e uns certos ruídos que pareciam vir do rio. - Worpina, és bruxa, portanto deves conhecer uma erva cuja infusão faz morrer de amor a pessoa que a beber... - Infelizmente, esta erva não poderá te ajudar; se a princesa não estivesse amando um outro homem, lhe daríamos o chá, mas neste caso sabe o que vai acontecer? - Não! - Ela amaria o outro ainda mais. - Raios te partam, junto com a tua erva. Demônio! praguejou Bohdan. - Ouça-me, Bohdan, eu conheço outra erva cuja seiva faz adormecer por dois dias e duas noites a pessoa que a beber... darei esta erva à princesa e você aproveitará... O cossaco estremeceu na sua sela e fixou na bruxa um olhar que brilhava terrivelmente. A velha pôs-se a rir. - Não! Não! Quando tomamos a Fortaleza de Bar, arremeti-me para o mosteiro, a fim de defendê-la da embriaguez dos soldados e matar aquele que ousasse aproximarse dela. Ela, porém, ao ver que eu me aproximava, feriu-se com um punhal, e desde então não tem consciência do que se passa a sua volta. Se outra vez aproximar-me dela, com certeza vai matar-se com o estilete ou lançar-se no rio. Oh! Sou um infeliz! Meu desejo é que a primeira bala seja para mim, pois amo-a com loucura e não sou amado por ela. - Louco! Mas a tendes em teu poder! - Cala-te! - gritou ele com ódio – e se ela se matar? Então, acabo com você antes de me despedaçar! Quebro a minha cabeça nos rochedos! Senão, sairei mordendo a todos como um cão danado, pois a loucura se apossará de mim. Oh! Com que prazer daria minha alma por ela! Fugiria para o fim do mundo, para as entranhas da terra para viver só 43 com ela, para morrer ao seu lado! E ela feriu-se com o punhal. E por quê? Por minha causa. Odeia e despreza-me. Bohdan agitava-se num choro convulso, seu corpo estremecia com a angústia e o desespero que o dominava. Os viajantes entraram na Garganta do Diabo, que cortava o rio em ângulo reto e era tão estreita que a custo iam quatro cavalos a par. Ao fundo corria um riacho, que adiante se lançava no rio. Uma réstia de luz brilhou de repente entre as árvores e dois enormes cães acorreram ladrando furiosamente. Uma choupana e uma cavalariça apareceram entre as árvores. A casa era sólida e bem construída, um clarão de lamparina piscava através das janelas. - Eis a minha morada - falou a bruxa a Bohdan. E lá em baixo é o meu refúgio. Tua princesa terá o melhor quarto da casa. Parem agora e apeiem. Um homem com uma tocha na mão apareceu de repente, como se tivesse saído das profundezas da terra. Era uma criatura horrivelmente feia, um homem pequeno, anão de faces gordas, de olhos oblíquos de tártaro. - Que espécie de diabo é aquele?- indagou Bohdan. . - E inútil interrogá-lo - observou a feiticeira. Tem a língua cortada. Talvez seja melhor levar a princesa até o moinho. Os cossacos vão preparar-lhe o quarto e colocar as tapeçarias. Ela não acordará. Os cossacos tiraram de cima dos cavalos seis grandes fardos, que abriram e tiraram deles ricos estofos, tapetes e objetos em ouro, tudo saqueado na Fortaleza de Bar. O quarto que foi coberto de preciosidades, tomara a aparência duma rica habitação. Transportaram a princesa para dentro e a deitaram em fofos coxins. O sol já estava alto quando a princesa abriu os olhos. A consciência voltava-lhe pouco a pouco; assomaram 44 ao seu semblante o espanto e a inquietação. “Onde estava? Em poder de quem se encontrava? Que lhe tinha sucedido?” Neste momento, as terríveis cenas da tomada de Bar passaram-lhe na mente. Lembrara-se de tudo; do morticínio de milhares de pessoas, entre nobres, cidadãos comuns, padres, religiosas, mulheres e crianças. - Mas, agora, onde estava?- perguntava-se assustada. Seria um castelo? Teria sido socorrida, salva? Estaria fora de perigo? Seriam as tropas do príncipe Jeremias que a teriam salvo das mãos dos cossacos e a transportado para uma fortaleza? Estaria em segurança? Natacha ergueu-se no leito; ouviu uma canção melodiosa, e quanto mais escutava a voz que cantava ao som amortecido de um alaúde, mais os seus olhos dilatavam-se de terror. Reconheceu a voz de Bohdan, soltou um grande grito e caiu para trás como morta. O grito foi ouvido de fora. Apenas alguns segundos se passaram e o próprio Bohdan apareceu na porta. A jovem cobriu o rosto com as mãos e os seus lábios pálidos balbuciavam: - Jesus, Maria! Jesus, Maria! Salve-me. E contudo, a visão que assim a aterrorizava, teria alegrado os olhos de inúmeras jovens, pois o moço herói era verdadeiramente belo, elegante, fisionomia bronzeada, de corpo magnífico, personificando a beleza dos cossacos ucranianos. Vendo que o medo na jovem não diminuía, o moço falou com voz lenta e triste: - Nada receies, princesa. - Onde estou eu? – perguntou ela. - Em segurança, longe da guerra, não tema nada, repito, trouxe-a de Bar para aqui a fim de que nenhuma desgraça lhe acontecesse. Os cossacos não pouparam pessoa alguma na cidade e a princesa é a única que de lá saiu com vida. - Que faz aqui? Por que me persegues? 45 - Eu, persegui-la! Oh! Deus Poderoso! - Causas-me medo! - E o que é que receias? Não lhe quero mal algum e, sendo assim, por que me odeias tanto, princesa? Feriu-se com o punhal ao ver-me. Sabe bem que sou seu amigo dedicado, que a amo muito. As faces de Natacha coraram. - Prefiro a morte, à desgraça!- disse. E aviso-te, se não me respeitares, mato-me. Os olhos da jovem lançavam chamas, e o chefe cossaco viu bem que ela era do sangue dos Kosiewicz, que executaria a ameaça, e que se mataria de vez. - Fique sossegada!- disse enfim - é para mim uma imagem sagrada. Deixe que a contemple, que adore o seu semblante. Depois irei embora. - Dai-me a liberdade! - Mas não está presa aqui, é livre e senhora daqui! Mas onde irás? Os Kosiewicz pereceram todos, o fogo devorou a casa, as aldeias e as cidades; o príncipe Jeremias não se encontra em Kiew, porque marcha contra mim e os zaporogos, há guerra em toda parte. Quem terá, pois, respeito e simpatia por você, princesa? Quem a defenderá, a não ser eu? A princesa ergueu os olhos para o céu, lembrou que havia um outro homem no mundo para lhe dar proteção, carinho e amor; mas não quis pronunciar o seu nome com medo de acordar a fera. Invadiu-a uma profunda tristeza. - Tenho então de ficar aqui prisioneira? Mas que mal lhe fiz, para que me persiga como a desgraça?- lamentava a jovem. - E você também, que me fizestes? Não sei. Só sei com certeza que sou uma dor para você, e você é um sofrimento imenso para mim! Se não a amasse tanto, seria livre como o vento na estepe, livre de coração e de alma. O teu 46 semblante é a minha desgraça, os teus olhos são a minha desventura. O chefe cossaco interrompeu o seu lamento. A voz quebrava-se-lhe na garganta e começou a gemer; depois, continuou: -Vê como este aposento é luxuoso e confortável? Tudo isto é meu e foi arrumado para você. São os despojos da fortaleza de Bar que eu trouxe para aqui. Pede o que quiser... vestidos, jóias, ouro, escravos. Sou rico, e serás como a princesa Dorota! Conquistarei para você castelos e propriedades, darei a você a Ucrânia! Não sou mais do que um cossaco, não sou nobre, mas sou hetman dos zaporogos, e eles irão atrás de mim até o fim do mundo. Comando cento e cinqüenta mil homens! Nem o príncipe Jeremias comanda tantos. Pede tudo o que quiseres, menos que lhe deixe partir. Fica comigo, e amame!, minha alma!, minha doçura!, minha vida! - Quer a minha resposta? Fique sabendo que, ainda que ficasse tua cativa, e sofresse o resto da minha vida, nunca haveria de te amar. E que Deus me ajude a suportar o que o destino me reserva. - Não me diga estas coisas - gritou Chmielnicki contendo a raiva - pois tira-me do controle, e nestes momentos não sei do que sou capaz. - Aquele que me salvou a vida em Bar, para me levar em seguida em cativeiro, não é meu amigo, mas meu inimigo - respondeu a princesa. - Pois não lhe darei a liberdade e será minha, queira ou não!- gritou exasperado o cossaco. - Jamais! Prefiro a morte! – ameaçou a jovem. - Pois saiba, conquistei você na guerra, é portanto minha cativa. Sei porque está assim ofendida, sei porque me resiste, guarda-se para outro! Mas saiba que é inútil! Em vão! Pois hei de encontrar o teu amado e meu rival, o tal 47 tenente Wasilewski, e esfolá-lo vivo, e voltarei aqui para jogar a sua cabeça aos seus pés! A princesa não ouviu as últimas palavras de Chmielnicki, a dor, a cólera, a comoção, o terror tiraram-lhe toda a força. Uma grande fraqueza apoderou-se dela, uma nuvem obscureceu-lhe os olhos. Desmaiou... Um rugido saiu do peito do cossaco: - Morta! Ela está morta! Worpina! Socorro! - gritava desesperado e torcia as mãos. Worpina, de corpo gigante, entrou como um furacão derrubando tudo em volta, aproximou-se da princesa, viu de relance que não estava morta, mas apenas desmaiada, empurrou Bohdan para fora do quarto; tratou dela fazendo-a cheirar vinagre. Natacha abriu os olhos, espantada. - Não é nada, apenas você desmaiou - informou a feiticeira. - Quem sois? - perguntou. - Eu? Tua criada, porque assim Bohdan ordenou; meu irmão é coronel sob as ordens do ataman. - Onde estou? - Na Garganta do Diabo, um verdadeiro deserto. Não verás senão a ele, somente Bohdan. Serás boa para ele. A moça olhou a bruxa, que lhe pareceu ser sincera. - Sai! - gritou-lhe a princesa. Um cavalo relinchou por baixo da janela. Bohdan, que estava no quarto observando tudo, encheu-se de coragem e disse: - Chegou para mim a hora da partida, princesa. Ela não respondeu. - Não me dizes adeus? - Adeus!- respondeu a jovem. - Sei! - continuou Bohdan - Bem sei que está com raiva de mim, que me odeia, mas garanto-lhe que nenhum 48 outro teria sido melhor com você do que eu. Trouxe-lhe aqui porque não podia proceder diferente. Não lhe trato como uma rainha? Os tártaros andam pelo deserto, bandos deles vagueiam em todas as direções. Não posso restituir-te a liberdade agora porque seria perigoso, mas quando voltar...não sei...não sei... - Que Deus o inspire! - disse e estendeu-lhe a mão. Bohdan precipitou-se sobre aquela mão, e nela colou os lábios febris de amor e desejo, depois recuou devagar até a porta e desapareceu na ravina. *** Os representantes da Coroa, designados para tratar com Chmielnicki, foram ter com ele em Kiew, onde o vitorioso hetman estabeleceu o seu quartel general. A cada passo, surgiam novos obstáculos para o acordo. Os diplomatas viajavam com a proteção de um grupo de cem cavaleiros, além disso, Chmielnicki tinha-lhes enviado Subaliuk, com uma escolta de quatrocentos cossacos bem armados. A seis werstas desta cidade, o chefe dos rebeldes foi ao seu encontro. Fingia assim testemunhar o seu respeito aos enviados do rei. Na realidade, queria ostentar o seu poder à frente de numerosa escolta e ao som de músicas de guerra. Assim que ele apareceu, os negociadores e seu séquito pararam. Chmielnicki impeliu o seu cavalo ao carro do palatino, inclinou-se e, apenas erguendo o boné de pele de lobo, disse: - Saúdo-vos, senhores comissários da Coroa, e a vós senhor palatino Kuselski. Teriam feito melhor se tivessem tratado comigo quando eu não tinha ainda consciência da 49 minha força; mas, já que a Sua Majestade, rei Jan Kazimierz, vos envia, sede bem-vindos ao meu território. - Saúdo a vós também, hetman! - respondeu Kuselski. O rei, nosso augusto senhor, enviou-me para lhe oferecer a justiça que tanto reclamas. - Justiça já eu a tenho feito com a espada, continuarei fazendo, se não me derem satisfação. - Senhor, esse acolhimento ofende em nós a majestade real. - Palatino Kuselski, dai-me lugar no vosso carro, quero assim honrar os comissários do rei. Desmontou do cavalo e acercou-se da carruagem. Kuselski arredou-se para a direita, para lhe dar o lugar à esquerda, mas Chmielnicki insistiu em sentar-se à direita. - Represento aqui a pessoa augusta e sagrada do rei, - falou o palatino. Chmielnicki conseguiu dominar a cólera e sentou-se à esquerda, resmungando: - Se o rei reina em Warszawa, eu reino na Ucrânia. Mas creio que não vos obriguei ainda a humilharem-se o bastante; pois, sempre pensei que o rei estava ao meu lado e contra vós outros, nobres e senhores intrigantes, tratantes, cheios de empáfia - o chefe cossaco pronunciou estas palavras com a voz trêmula de raiva. - Hetman Chmielnicki, o rei meu senhor ordena a vós que acabe com o derramamento de sangue e que pense na paz - ponderou o palatino. - Quanto ao tratado, não o desejo, pelo menos não neste momento. Agora sou hetman, nomeado pelo rei, portanto, convido-vos para jantarem comigo. Chmielnicki encheu-se de arrogância ao referir-se a sua atual posição de chefe. Os enviados do rei aceitaram o convite. 50 Na hora do jantar, Chmielnicki colocou à sua direita o palatino, à esquerda o castelão e, dirigindo-se à seu ordenança, disse: - Comentam em Warszawa que eu bebo sangue de polaco, no entanto, não bebo mais do que wodka. O sangue dos polacos deixo-o para os cães... Tal foi o começo do jantar, a esse comentário os comissários não responderam nada, tendo que engolir a afronta do cossaco. *** No limiar da porta da sala dos oficiais, apareceu a face rubicunda e alegre do pajem Dendzian, ordenança do tenente Boguslaw Wasilewski. Ele lançou um olhar perscrutador em volta de si e, depois, inclinando-se, pronunciou a saudação consagrada dos poloneses: - Deus seja louvado! - Por todos os séculos e séculos, amém!. - Dendzian, é você? - Saúdo-vos, senhores! Mas onde está o meu amo? - Teu amo está doente em Lwow. - Deus do céu! - Gravemente doente? - Agora encontra-se melhor. - E eu que lhe trazia notícias da princesa Natacha. - Fale! Por favor! - Eu vos digo que ela encontra-se oculta não longe de Raskow, nas margens do Serete. A feiticeira que a guarda recebeu ordens de não a deixar dar um passo sequer, enquanto Chmielnicki não regressar. - De que feiticeira estás falando, Dendzian? - De Worpina. Ah! conheço-a bem. 51 - Venha aqui, Dendzian. Quem te informou que ela estava oculta nas vizinhanças de Raskow? - Quem poderia dizer-me senão o próprio Bohdan? - Patife! Perdeste o juízo?- gritou Chernota. E onde viste Bohdan? - Em Zytomir. - E quando o viste? - Há umas três semanas. - E ele vive ainda? - E por que não haveria de viver? Contou-me o duelo que teve com Vossa Senhoria. - E foi ele mesmo quem te disse que a princesa estava oculta nos arredores de Raskow? - Certamente. Bohdan entregou-me um passaporte e um anel, encarregando-me de ir saudar a princesa de sua parte. As suas feridas ainda não estavam fechadas. E não ignoram também que no ano passado estive cativo em Kudak. Cuidei de Bohdan e consegui atrair as suas boas graças e a sua amizade. Considerava-me como o mais fiel dos seus amigos e servidores, sem suspeitar sequer que eu jurara vingar-me um dia. Chmielnicki, depois de restabelecer-se parcialmente, em recompensa deu-me algumas jóias, pedindo ao mesmo tempo que lhe prestasse um serviço especial e falou-me: “Vai e diz à feiticeira que conduza a princesa ao mosteiro da Virgem Maria em Kiew, sem perda de tempo. Irei até lá assim que puder. Acompanhe-as até Kiew”. Em seguida explicou-me com todos os pormenores a configuração da ravina e dos seus arredores. Seria capaz de ir lá com os olhos fechados. - Partiremos amanhã de madrugada - disse Czernota. Um pequeno contingente pôs-se a caminho aos primeiros alvores da aurora. Quando encontravam bandos cossacos, mostravam-lhes o passaporte de Chmielnicki; segui52 ram ao longo do rio, e chegando ao alto da ravina, Chernota parou: - Escutai - disse. Dendzian, munido do passaporte e do anel, irá na frente. A feiticeira conhece-o. Se nos visse a todos juntos, ficaria com medo e desapareceria com a princesa. Dendzian pôs-se a frente do cortejo. Os três homens encontravam-se agora no alto da colina. Em breve a voz de Dendzian fez-se ouvir. - Já vejo a ravina, na entrada há um rochedo... Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!- murmurou. - É ali?- perguntou Chernota, apontando com a mão. - Segue-me! - disse Dendzian, e gritou com força: - Bohdan!, Bohdan!, aparece, Worpina! Bohdan! Fizeram parar os cavalos e esperaram alguns instantes. Cães ladravam furiosamente. Na crista esquerda da garganta, moitas se agitaram e dentre elas saiu uma forma humana. - Worpina!- gritou Dendzian. Seguida dum hirsuto gnomo, a feiticeira desceu o declive a pique. - Quem sois ?- perguntou com voz áspera. - Como vai a saúde, Worpina?- respondeu o pajem. - Olá! És tu! Reconheço - te. Serves a Bohdan. - Tenho aqui um passaporte, e além disso um anel e um punhal. Sabes o que isto quer dizer? - Está bem! Você vem buscar a princesa. - Justamente. Ela está bem? - Está totalmente bem. Mas por que o Bohdan em pessoa não veio? - Porque está ferido. - Ferido? Eu previ isto a ele; quando levas a princesa? - Quando nossos cavalos descansarem. 53 - Irei convosco - disse Worpina. Dendzian inclinou-se na sela, e a sua mão pegou a pistola. - Kheremis! - disse ele, mostrando o gnomo aos companheiros. - Estão ambos sós aqui? - É, mais a princesa... - Já te disse que irei convosco. - E eu repito que não! Não sairás do teu antro. E, à queima-roupa, Dendzian enviou-lhe uma bala ao peito; Worpina soltou um grito medonho e caiu de costas, rolando ribanceira abaixo. No mesmo instante, Chernota fendia com o sabre a cabeça do anão. Depois limpou tranqüilamente a arma ensangüentada. - Rápido - gritou Dendzian. Seguiram ao longo do riacho que corria ao lado da ravina; depois viram a cabana e mais adiante o moinho. Amarrados próximo da porta, dois enormes cães pretos, presos em grossas correntes, ladravam furiosamente. Dendzian desmontou do cavalo e correu para a porta, abriu-a com um pontapé e entrou. A esquerda havia uma outra porta que estava fechada. Destravou o ferrolho, abriu a porta e parou no limiar. No fundo do aposento, encostada ao leito, estava Natacha, pálida, assustada; deu um grito ao vê-lo. - Quem sois? - Sossegue, senhora! - tranquilizou-a Dendzian-, estás na presença de amigos do nobre tenente Boguslaw Wasilewski, este nome lhe diz alguma coisa? A princesa caiu de joelhos. - Salvem-me, senhores!- suplicou, juntando as mãos. Após um instante entrou Chernota e gritou, alegre: - Somos nós, princesa! Viemos salvá-la. 54 O som daquela voz, a vista daquele rosto familiar, produziram nela uma emoção forte e ela desmaiou. Demorou para voltar a si. Assim que os cavalos descansaram o suficiente, Natacha, Chernota, Kadlubek e Dendzian puseram-se a caminho com toda pressa. Dendzian guiava com mão firme os cavalos bem tratados e robustos que tivera o cuidado de se apoderar na cavalariça de Worpina. A princesa cavalgava ao lado de Dendzian, por um país ocupado pelos guerrilheiros. Foram assaltados diversas vezes, mas deveram a salvação à velocidade dos seus cavalos e à coragem dos cavaleiros. Passaram por diversas aldeias e cidades, seguiam rumo a Lwow, onde a princesa ficaria hospedada no convento de São Nicolau, aos cuidados das religiosas. *** Na grande sala do castelo, da família Wisniowiecki em Lwow, passos se ouviram no aposento vizinho. Então, o velho príncipe, pareceu sair do seu sonho e falou ao amigo: - Escuta, coronel Boguslaw Wasilewski. A castelã de Winnica chegou ontem aqui em companhia duma das suas parentes. Esta senhora, informada da sua bem-sucedida expedição, deseja ver-vos. Pensei que seria melhor que ela lhe falasse aqui, sem testemunhas. Boguslaw olhava o príncipe com admiração e surpresa, e ele prosseguiu gravemente: - O excesso de alegria súbita mata tanto como uma punhalada. Uma imensa alegria está reservada a você. O oficial escutava-o cada vez mais surpreso e curioso, queria saber imediatamente o que era. 55 - Você ama uma jovem, com todas as forças do teu coração? Queres desposá-la? Uma palidez de cera invadiu o semblante do oficial. - Sim, mas já não vive. - A misericórdia divina velou por ela. Ela vive sim, e de agora em diante será sua noiva. Afastou-se a estas palavras e entrou no aposento vizinho; transcorridos alguns minutos, apareceu sorridente, trazendo a princesa Natacha pela mão. Ela estava pálida, chorosa, mas bela como sempre. Ao ver a noiva, ele caiu em êxtase, ficou mudo, enfim, após uns instantes, murmurou: - Jesus, Maria! Não estou acreditando no que vejo, deve ser um milagre. - Fala-lhe, minha filha! - disse o príncipe comovido. - Boguslaw, sou eu! Os nossos amigos arrancaramme do poder de Bohdan Chmielnicki. O coronel aproximou-se dela, pegou as suas mãos trêmulas e repetiu como que em sonho: - É você, Natacha? É verdade que vive? Caiu a seus pés, pedindo que se casasse com ele e nunca mais o deixasse. O casamento fora marcado para os próximos dias. Apenas o tempo necessário para pedir a autorização do rei e convidá-lo para as bodas. A cerimônia foi solenemente celebrada no palácio do príncipe, em Lwow. Houve festas esplêndidas, oferecidas pelo rei aos recém-casados. O rei Jan Kazimierz, de caráter magnânimo e de coração generoso, recompensou o tenente Boguslaw Wasilewski por serviços prestados à pátria, promovendo-o a coronel dos hussardos. Premiou-o com o título de nobreza, e como convém a um conde, doou-lhe a cidadezinha de Berestecko, na comarca de Luck, incluindo uma grande propriedade de terras, aldeias e servos na região da Wolínia, 56 domínio que começava na nascente do rio Styr, abrangendo uma área de terras até Wasylkow, perto de Kiew, herdade pertencente por direito à princesa Natacha e que lhe fora usurpada pela viúva do seu tio Konstanty, Amalia Kosiewicz. A glória do esposo e a virtude da esposa projetaramse na sua vida conjugal, e Deus os abençoou. Deram à Polônia doze belos rapazes, que, por sua vez, deixaram numerosa descendência. Muitos dos descendentes, a exemplo de Boguslaw, cobriram-se de glória. Outros caíram como heróis nos campos de batalha. Boguslaw Wasilewski foi antepassado do Andrzej, outro mártir pela causa da pátria, cujo bisavô, Kleofas, perdera todos os bens que a família possuía para o governo russo de Catarina II, que os confiscara, como represália por seu envolvimento na Confederação de Bar, em 1768, e na grande insurreição contra a Rússia, em 17 *** O rei Jan Kazimierz, depois de uma série de combates em Zbaraz, concluíra com o khan da Criméia um armistício que, sem ser favorável, ao menos assegurava algum tempo de repouso ao exército da Coroa. Chmielnicki, em conseqüência deste fato, conservava a sua dignidade de hetman dos cossacos, com um efetivo de quarenta mil soldados. Em compensação, fez juramento de obediência e fidelidade ao rei. Mas o tratado de paz não foi o fim da tragédia da Polônia. Dois anos mais tarde, os cossacos levantaram-se de novo, e mais terríveis que nunca. Chmielnicki precipitou-se contra a Coroa, arrastando em seu seguimento o khan da Criméia e as suas hordas tártaras. Um exército de meio milhão de homens soltou, o seu grito de guerra. 57 Parecia que a Coroa não poderia erguer-se mais. Contudo, saiu do seu torpor, pois reconheceu que só a força das armas podia trazer a paz. Assim, quando o rei se pôs em marcha, cem mil homens se comprimiam sob a sua bandeira. Ninguém faltou ao seu chamado.Veio o príncipe Jeremias Wisniowiecki com o seu grande exército e, entre eles, o coronel Boguslaw Wasilewski, que seguia à frente do regimento dos hussardos, que mais pareciam anjos com asas, voando nos seus cavalos velozes. Vieram o hetman Zamojski, Potocki, Czarniecki, generais Adam Poniatowski, Arciszewski e João Sobieski; alferes, duques, príncipes, bispos com seus exércitos particulares, senadores, todas as forças armadas reunidas, enfím, em volta do seu rei. E foi nas planícies de Berestecko que se encontraram aquelas massas formidáveis. Houve ali uma das maiores batalhas que os anais da história registram. Durou três dias a encarniçada luta. Nos dois primeiros, os destinos de tantos povos ficaram indecisos. No terceiro dia, decidiu-se a vitória. O grande hetman Wisniowiecki abriu fogo, e assim como um imenso rio se perde nos abismos do oceano, assim as suas tropas pareciam abismar-se naquele mar inimigo. Milhares de cadáveres juncavam o campo de batalha, entre eles o inimigo irreconciliável dos poloneses, o fiel aliado de Chmielnicki, o terrível e feroz Tugay-Bey. As hordas tártaras soltaram um grito de desolação. O próprio khan ferido estremeceu a este espetáculo, não teve coragem de se defender, e voltando as rédeas, fugiu, levando consigo as tropas consternadas. Em vão Chmielnicki tentou impedir-lhe a passagem e reconduzi-lo ao combate. Á sua vista, o khan rugiu de cólera, apoderou-se dele, mandou amarrá-lo a um cavalo e 58 levou-o consigo. Desta vez ainda, Bohdan Chmielnicki não morreu. Procurou refúgio no meio dos tártaros da Criméia. Quando o príncipe Jeremias Wisniowiecki morreu e os seus imensos domínios na Ucrânia foram destacados da Polônia, foi Chmielnicki quem se beneficiou da melhor parte daqueles despojos. Recusando-se a toda e qualquer proteção, defendeu à mão armada as suas franquias e as liberdades dos cossacos da Ucrânia. As guerras civis continuaram, Chmielnicki assinou em 1654 um tratado pelo qual reconhecia a suserania da Rússia. Morreu em 1657 como um herói da Ucrânia. Será que essa guerra fratricida entre Chmielnicki e seus cossacos contra a Polônia não fora um trágico mal entendido? Prejudicial para ambos os povos e, no prosseguimento das retaliações entre as duas nações-irmãs eslavas, fatalmente perniciosa? III CASTAS SOCIAIS Desde a Idade Média e até o final do século XIX, a população da Polônia estava dividida em castas. Essa foi a principal causa dos conflitos na Ucrânia, Lituânia, Bielorússia, Wolínia e em todas terras polonesas. A divisão era seguinte: 1° - A nobreza: magnatas, poderosos proprietários de vastas terras, aldeias e servos-camponeses; com muitas prerrogativas, controlavam o governo, sem qualquer poder superior para discipliná-los. Recusavam-se a conceder fidelidade sistemática ao rei. Aliavam-se freqüentemente a potências estrangeiras. 59 2° - Rei: no início era um título hereditário, depois o rei passou a ser eleito. Em 1573, com o fim da dinastia Jagiellon, os magnatas e a nobreza elegiam reis de fora da Polônia, ao invés de eleger algum polonês, temendo que se tornasse muito forte. 3°- Príncipes e condes: eram títulos hereditários ou concedidos em casos especiais pelo rei, pelo papa e pelos países ao redor. 4° - A pequena nobreza: era dividida em dois grupos: os que possuíam terras, aldeias e servos, e os nobres sem terra, que se ligavam a algum magnata. Eram pessoas de boa linhagem, alguns deles eram ricos, outros possuíam apenas um cavalo e um orgulho sem limites. 5° - Clero: cardeal, bispo, abade, monge, frade, todos ligados diretamente à Roma. Possuíam vastas propriedades, aldeias e, alguns, até cidades inteiras, com todos os camponeses incluídos. Tinham também exércitos particulares. No início eram os únicos que sabiam ler e escrever, assim, infuenciavam grandemente os governos. 6° - Mercadores e artífices: eram proprietários de lojas e fábricas. Assemelhavam-se à classe média atual. 7° - Judeus e agiotas: como a religião católica proibia a cobrança de juros, a tradição dos nobres não via com bons olhos seus membros se empenharem em negócios de qualquer tipo, os judeus aceitaram de bom grado esta incumbência. 8° - Pequenos proprietários: as terras na Polônia pertenciam aos magnatas, ao clero ou à Coroa, mas camponeses hábeis, mediante um serviço prestado a um magnata ou ao rei, conseguiam obter grandes tratos de terra. 9° - Camponeses: a maioria dos habitantes da Polônia era constituída por camponeses, como na maior parte da Europa medieval, e até os fins do século XIX, em países do leste europeu. Eram chamados de servos e mujiques. Mo60 ravam em aldeias e pertenciam à terra, tinham que trabalhar dias destinados para o amo, não podiam mudar-se para outro lugar, nem decidir sua vida sem consentimento do dono. Não tinham instrução nenhuma, viviam na ignorância e obscurantismo. Entretanto, os camponeses poloneses conquistaram determinadas liberdades e pequenos lotes de terra pela Constituição de 3 de maio de 1791, aprovada pelo rei Stanislaw August Poniatowski. As aldeias compunham-se de um conjunto de pequenas casas, construídas de madeira, taipa e barro, cobertas de palha de centeio trançada com cordas para fixar. Eram chamadas de izbas, geralmente tinham um só cômodo, e o piso era de terra batida. A construção que se destacava na aldeia, era uma pequena igreja de madeira com a torre pintada de azul. Também havia uma edificação grande que servia de estábulo para o gado e dormitório para a criadagem Um moinho de roda d´água, para moer o trigo sarraceno (gryka) e centeio que alimentava de pão preto os aldeões. Na época do Natal e Páscoa comiam do pão branco de trigo e assados de carne de porco. Vestiam roupas novas e calçados para assistir à missa solene dos Dias Santos. O solar dos proprietários só tinha um andar, mas suas paredes eram de pedra e se estendia por uma área considerável, a fim de proporcionar acomodação aos donos, que geralmente eram da nobreza. 61 IV O PAÍS DA ÁGUIA BRANCA ( Breve resumo da história da Polônia) Diz a lenda que nos primórdios, quando o chefe dos polanos procurava um bom lugar para fazer o acampamento para sua tribo, escolheu-o debaixo de um frondoso carvalho, em cujo cimo uma águia branca tinha o seu ninho. O lugar foi chamado de Gniezno (ninho) e a águia branca foi adotada como brasão da nação polonesa. Desde o século VII, os polanos das tribos eslavas povoavam a bacia do rio Oder e Warta, região posteriormente denominada de Grã-Polônia. Os polanos eram aparentados com as tribos mazovianas dos príncipes Lechek e Pepelko. Foi no leste europeu que surgiu um estado eslavo importante. O centro do poder encontrava-se em Gniezno, que era uma fortaleza onde habitavam os chefes tribais dos polanos. Krakus I foi um soberano lendário da Polônia, que teria sucedido a dinastia de Lechek em fins do século VII. Atribui-se-lhe a fundação de Krakow. Krakus II, filho de Krakus I, foi assassinado por seu irmão Lechek, que foi deposto e exilado. Sucedeu-lhe a sua irmã Wanda. Existe uma lenda, de que Wanda, princesa de uma beleza invulgar fora cobiçada por um príncipe alemão.Ela preferiu jogar-se nas águas revoltas do rio Vístula a casar-se com um estrangeiro. Em sua memória foi erigida uma colina de pedras, nas proximidades de Krakow. Com a morte da princesa, extinguiuse a dinastia de Krakus, e a Polônia ficou sob o domínio dos doze palatinos. 62 Primeiro da dinastia seguinte foi Piast, e do seu nome seguiu-se dinastia desde 842 até 1370, terminando com a morte do rei Kazimierz III, O Grande. Mieszko I, da dinastia de Piast, foi rei da Polônia de 962 a 992. Por todo seu reinado, os polanos efetuaram conquistas e unificaram sob seu poder outras tribos eslavas, (Lechickie), que habitavam as terras entre os rios Oder e Bug, bem como o litoral do Báltico, e ao sul até os Montes Cárpatos. A Idade Média na Europa Oriental foi um período de formação, em que sociedades primitivas fundiram-se em monarquias feudais. Mas o processo de consolidação foi lento e interrompido por incursões dos mongóis e tártaros das estepes da Mongólia e também por retrocessos econômicos. A Polônia, entre os séculos X e XII, como outros numerosos Estados do princípio da Idade Média, era uma monarquia, tratada pelos seus soberanos como propriedade dinástica e hereditária. O príncipe e o pequeno grupo de magnatas que o rodeava (no caso, antigos chefes tribais), dispunham de forte poder centralizado. A Igreja Católica Romana emergira do Ocidente, para unificar as tribos belicosas e nômades que formariam a Polônia. Em 966, Mieszko I recebeu o batismo cristão, pelo que colocou o Estado Polonês no sistema político da Europa Central e delineou a via européia e cristã do desenvolvimento do Estado e da sociedade polonesa. Em 965 tomou como esposa a princesa tcheca Dabrowka. Na sua comitiva chegaram à Polônia os padres que se ocuparam do trabalho missionário e da evangelização das tribos eslavas. O filho e herdeiro de Mieszko I, Boleslaw I Chrobry, “O Valente”, reinou de 992 a 1025; no começo do seu reinado agiu no sentido de aumentar a independência da 63 Polônia em face do Império Germânico, para isso teve que lutar na guerra polono-alemã nos anos de 1002 a 1018. Tendo vencido, fortaleceu sua supremacia na Europa Centro-Leste com expedição à Kiew em 1018, com o que aumentou o seu domínio até o Mar Negro. Baseou o seu governo no desenvolvimento agrícola, no fim das diferenças tribais independentes e na organização da Igreja. Tinha a ambição de fundar um grande Estado, desde o Báltico até o Danúbio, incluindo a Boêmia, Morávia e também, às custas dos seus vizinhos eslavos, iniciou a expansão para o sul, leste e oeste. Mieszko II foi coroado rei em 1025; foi, contudo, privado da coroa em 1031, após ter perdido as guerras com a Alemanha, a Rússia de Kiew e com a Boêmia. Após a morte de Mieszko II, o seu sucessor, Kazimierz, teve de fugir do país, forçado pela nobreza que disputava o trono principesco. Retornou à sua terra com a ajuda alemã e reconstruiu o Estado, porém rejeitou a dependência em face do Império Germânico. O seu filho Boleslaw II, “O Valoroso”, reinou de 1054 a 1079. Após numerosas guerras favoráveis e a reconstrução da metrópole eclesiástica, tentou uma vez mais apoderar-se da coroa. Para esse fim, aproveitou o conflito do Império Germânico com o Papado. Entretanto, caiu em conflito com a alta nobreza polonesa e acabou perdendo a coroa. O seu irmão e sucessor, Wladyslaw Herman, contentou-se com o título de príncipe e reconheceu a supremacia relativa do Império Germânico. Porém seu filho, Boleslaw III “Boca Torta” (1102 a 1138), permaneceu também príncipe, embora tenha travado inúmeras guerras favoráveis e rechaçado a invasão alemã em 1109; uniu a alta nobreza e a cavalaria polonesa sob o 64 lema da luta pela Pomerânia, perdida anteriormente, reconquistando essa região. As condições favoráveis na Polônia estimularam a vinda de uma onda de colonos alemães. A afluência destes criou no país uma nova situação étnica, pois até o século XII a Polônia era habitada quase que exclusivamente pela população autóctone, eslava, originária das tribos dos polanos (Lechickie). O recém-chegado clero alemão, francês e italiano, a nobreza de origens diversas, comerciantes alemães e judeus, pertenciam às camadas elitistas. Nas cidades instalouse a rica população judia, favorecida, em 1264, por especial privilégio concedido pelo príncipe cracoviano Boleslaw “O Devoto.” Entre 1330 a 1380, floresceram governos e civilizações no leste e centro-leste europeu. Foi fundada a universidade de Krakow em 1364, por Kazimierz Wielki. Entretanto, não faltaram fenômenos desfavoráveis. Grandes destruições aconteceram na Polônia, pelas três invasões dos mongóis no século XIII. A primeira delas foi em 1241, depois em 1259 e 1287. Em 1180, o sonho de Ghengis Khan, “O Flagelo da Ásia”, tornou-se realidade. Formou aliança com as mais diversas tribos da Mongólia, organizou um poderoso exército e partiu em guerras de conquista, estendendo os seus domínios. No início do século XIII, ele já dominava uma região que se estendia do Oceano Pacífico até o Mar Negro. Era o temido chefe das hordas mongóis que invadiram e dominaram a Rússia de Kiew no século XII. O Império de Ghengis Khan estendeu-se pela China, Mongólia, Índia e Rússia. Morreu em 1227, mas as conquistas prosseguiram com o seu neto e sucessor Batu Khan, um líder militar de competência e coragem que, junto com Vuldai, chefe dos tártaros, atacou a Hungria e a Polônia. 65 Batu liderou a invasão da Europa, com seus exércitos de mongóis e tártaros; invadiram e praticamente destroçaram a incipiente nação polonesa. A primavera de 1241 foi um dos períodos mais sombrios da história da Polônia. Krakow, a Capital Dourada, foi atacada e encontrava-se em ruínas. Sob a liderança do rei Henrique “O Devoto”, um homem sagaz, justo e heróico, cuja ambição era unir os muitos ducados esfacelados, convertendo-os numa poderosa nação, a Polônia; para isso deveria derrotar e expulsar os tártaros. Mas infelizmente o rei morreu em combate, e sua cabeça decapitada foi mandada por Vuldai, general tártaro, para Batu Khan, para a Hungria, onde este fazia guerra de conquista. Nos anos terríveis que se seguiriam, a Dourada Krakow seria saqueada muitas vezes; também foram devastadas outras cidades, entre elas Lwow, Lublin, Luck, Sandomierz, na Polônia. A cidade fortificada de Kiew foi conquistada e arrasada. Os principados russos do norte foram esmagados em uma campanha-relâmpago de inverno em 1237. Os poloneses não entendiam por que não se podia resistir àquele terrível flagelo. Mas a Polônia não estava sozinha em sua incapacidade de se defender das incursões que vinham da Ásia. A Hungria, a Boêmia, a Transilvânia, a Romênia caíram. Também caiu a Rússia, que se mantinha como lagarta abatida, atacada por uma legião de formigas, e assim ficou por longos 200 anos, sob o domínio dos mongóis. As ameaças externas fortaleceram as aspirações à unificação das terras polonesas, o que não constituiu um objetivo fácil de ser alcançado. Cada um dos chefes locais da dinastia dos Piast queria ser o unificador. Litigiosas também eram as bases sociais da unificação. 66 Após várias tentativas mal-sucedidas dos príncipes silesianos, em 1295 apoderou-se da coroa o príncipe da Grã-Polônia Przemyslaw II, tendo sido em seguida assassinado misteriosamente. Pela herança do trono houve grande disputa entre os príncipes da dinastia Piast. Enfim, venceu o rei tcheco Wenceslau II, e coroou-se em 1300 como rei da Polônia. A morte, em breve tempo, de Wenceslau II e do seu filho Wenceslau III, abriu caminho ao trono da Polônia para Wladyslaw Lokietek “Cotovelo”. Ele obteve o apoio do Papa e ajuda militar da Hungria e unificou parte das terras polonesas, excluída a Pomerânia, que foi ocupada em 1308 pela Ordem dos Cavaleiros Teutônicos. Esta separação da Polônia do mar Báltico ocasionou graves conseqüências, abrindo um período de 150 anos de lutas da Polônia contra a Ordem religiosa alemã para a recuperação desta terra. Entre 1330 a 1380, floresceram governos e civilizações no leste e centro-leste europeu. O século XIV foi de desenvolvimento econômico, cultural e político. Foi a época de acelerada expansão econômica da Polônia e Lituânia, que era o maior Estado territorial da Europa do século XIV. O filho e sucessor de Wladyslaw Lokietek, de nome Kazimierz Wielki “Grande”, governou de 1333 a 1370; foi um dos mais notáveis soberanos poloneses. Em 1410 conseguiu derrotar os Cavaleiros Teutônicos na batalha de Grunwald, que foi como um eco de uma vasta tempestade; os mortos tombavam como hastes de trigo derrubadas pelo granizo de verão. O sucessor de Kazimierz Wielki, Luis de Anjou, rei da Hungria e neto de Wladyslaw Lokietek, assumiu o trono polonês em 1370; reinou até 1382. Sucedeu-lhe sua filha Jadwiga, em 1384, de apenas onze anos de idade. O grupo de magnatas cracovianos que 67 governava a Polônia decidiu conceder a sua mão ao soberano pagão do Grão-Ducado da Lituânia, de nome Wladyslaw Jagiellon. A condição foi o batismo da Lituânia e a vinculação do Grão-Ducado da Lituânia à Coroa do Reino da Polônia. A união foi realizada em Krewa, em 1385. A aliança dos dois países, sob a dinastia Jagiellon, era um fato justificado, por motivos econômicos e sociais, pelo comércio, pela ação colonizadora e pela transferência para a Lituânia do modelo político polonês. Um ano depois, Wladyslaw Jagiellon, filho de Olgierd, rei da Lituânia, converteu-se ao catolicismo e foi batizado em 1386 em Krakow, e a assembléia da nobreza elegeu-o rei da Polônia. Após o falecimento de Jadwiga, com apenas 26 anos de idade, em 1399, os direitos de Wladyslaw Jagiellon ao trono foram confirmados pelo conselho real. Reinou até o ano de 1434, sobre o imenso império de mais de 1,1 milhão de quilômetros quadrados, formado desde o rio Oder a oeste, o mar Báltico ao norte, Mar Negro ao sul, e até o rio Oka a leste. Vinculadas, a Polônia e a Lituânia, no limiar do século XIV, ocupavam um enorme território. Nele viviam inúmeros e diversos grupos étnicos e religiosos: poloneses, lituanos, alemães, russos, judeus, armênios e tártaros. Confessavam a religião católica, ortodoxa, armênia, judia e muçulmana. Essa grande diversidade forçava os soberanos a uma política de completa tolerância e garantia de direitos a todos os habitantes. Sucedeu-lhe seu filho Wladyslaw III, que morreu em combate na guerra contra os turcos. A fonte ininterrupta do conflito da Ordem dos Cavalheiros Teutônicos com a Polônia era a ocupação de Pomorze (Pomerânia) e o porto de Gdansk. 68 O rei Kazimierz IV, Jagielonczyk (1447 a 1492), sucessor de seu irmão Wladyslaw III, enfrentou uma guerra de 13 anos com a Ordem, terminada com a paz de Torun em 1466, pela qual a Polônia recuperou Pomorze e todas as outras terras usurpadas pela Ordem. Jan I, Olbracht, filho de Kazimierz Jagiellonczyk, foi rei da Polônia de 1492 a 1501. Assinou a União polonolituana em Wilno no ano de 1499. O rei Aleksander Jagiellon, governou Polônia de 1501 a 1506. Zygmunt I „„Stary”, foi rei de 1506 a 1548, era o 3º filho de Kazimierz Jagiellonczyk. Após a extinção da dinastia dos Piast Mazovianos, em 1526, anexou Mazóvia à Coroa polonesa. Protetor da literatura e da arte, o seu governo marcou a época de ouro polonesa. Zygmunt II August, filho de Zygmunt I, reinou de 1548 a 1572. Realizou, em 1569, a União sob o mesmo cetro da Polônia e da Lituânia; mas por sua morte, em 1572, a dinastia Jagiellon extinguiu-se, pois o rei não possuía descendentes. O poder da Polônia entrou em declínio gradual como resultado da fraqueza interna e dos conflitos externos; a luta pelo poder e sucessão levou a nobreza a eleger Henrique de Valois, francês, que abandonou logo a coroa polonesa para ser sucessor de Carlos IX, da França. Foi votada pelos magnatas, em 1573, a primeira eleição livre, o que levou à grande interferência dos países estrangeiros na sucessão na Polônia. Era uma época em que guerras intermináveis arruinaram o país. Foi interrompido o desenvolvimento da cultura, das artes e do ensino. A rivalidade entre os magnatas, a intervenção de outros países e o aumento da dependência destes, intensificaram a já existente anarquia. 69 Com a primeira eleição livre, foi estabelecida a constituição do Senado, definindo os alicerces que regeriam o organismo. Mas a recém-criada democracia dos nobres escondia inúmeros perigos. A nobreza, que anteriormente já tinha adquirido decisiva influência sobre o poder no país, defendia suas conquistas e, cada tentativa de reforma, considerava como invasão dirigida contra suas posses. O fator que mais dificultou as reformas foi a criação, em meados do século XVII, do conceito de “Liberum Veto”, dando direito a um só senador vetar a lei que não lhe interessasse. A conseqüência de um tal protesto era a rejeição de tudo que fora anteriormente aprovado por essa assembléia. Desta maneira, a democracia incipiente converteuse em oligarquia dos magnatas, fator em que os interesses privados eram colocados acima do bem-estar do país. Este sistema de “Liberdade Áurea”, prejudicial à nação, foi introduzido na época em que crescia em poder a Rússia dos Romanow, a Prússia dos Hohenzoller e a Áustria dos Habsburgos. Em 1575, foi eleito rei Stefan Batory, príncipe húngaro, reinou até 1586. Expulsou os russos da margem do Báltico, recuperando as terras invadidas por eles. Casou com Anna Jagiellon, rainha da Polônia. Zygmunt III, Waza, reinou de 1587 a 1632. Wladyslaw VI, reinou de 1632 a 1648, lutou contra a Suécia, a Rússia e a Porta Otomana. Estava no meio da reconstrução das cidades devastadas pelos alemães. A Polônia e a Alemanha, enquanto existissem, sempre temeriam uma a outra. Os poloneses sempre receariam que sua fronteira ocidental fosse invadida pelos alemães. O governo da Polônia possuía diversas fraquezas singulares que o tornavam muito menos estável; os magnatas dominavam a eleição do rei, mas receavam eleger um 70 dos seus, que poderia assim se tornar muito forte e limitar a sucessão a membros de seu próprio clã; então preferiam sempre eleger um estrangeiro, o que os envolvia nos problemas dinásticos de outras nações. A princípio, os reis eleitos desempenhavam-se como magistrados responsáveis contratados; alguns se tornavam até excelentes administradores. Os magnatas depois de escolherem um rei, recusavam-se a conceder-lhe qualquer poder real, qualquer direito, mesmo o de convocar um exército sólido, pois temiam que se tornasse ditador. O rei devia manter-se exclusivamente como uma fachada. O Parlamento consistia de duas casas, o Senado e a Câmara dos Deputados. Somente os magnatas e a alta hierarquia da Igreja podiam ter assento no Senado. Os representantes da pequena nobreza se concentravam na Câmara dos Deputados. A recusa dos magnatas em partilhar o poder foi a degradação do Congresso. Com esta deterioração intrínseca, a política da Polônia tornou-se a mais corrupta da Europa, superando em venalidade até mesmo a dos turcos em Constantinopla. Ano após ano, a “Liberdade Áurea” dos magnatas implicava o enfraquecimento e aviltamento da nação. Com sucessivos reinados, surgiram rivalidades entre os nobres e a anarquia levou a uma guerra de sucessão. O rei Jan II, Kazimierz Waza, eleito em 1648, teve um reinado desastroso. Era um rei bondoso mas com carência de autoridade. O seu reinado de 20 anos foi marcado por insubordinação dos nobres, intrigas na corte, revoltas, guerra com a Rússia, Hungria, com os tártaros e principalmente com a Suécia. Não conseguiu nada com os magnatas, e assim, no seu governo o país foi à ruína. Abdicou em 1668 e retirou-se para França. Numa eleição disputadíssima em 1669, foi escolhido o príncipe Michal Korybut Wisniowiecki, filho de Jeremias 71 Wisniowiecki, o grande magnata e senhor da Ucrânia. Michal foi um rei indeciso, sem autoridade e incompetente. Seu reinado foi conturbado pela luta pelo poder dos magnatas, que anulavam os Sejm (Assembléias). Michal Wisniowiecki reinou por cinco anos. Em 1674, numa luta brutal entre aspirantes a rei e diante da pressão dos magnatas, foi eleito Jan III, Sobieski, de 54 anos, o grande hétman da Coroa. Homem valente, guerreiro por natureza, de altura e tamanho descomunal, cabeça imponente de cabelos ruivos e bigodes enormes caídos ao lado da boca, era uma figura assustadora à primeira vista, mas de natureza alegre e bom humor, tinha o coração terno e sensível. Amava acima de tudo a esposa, a linda Marysienka, francesa, caprichosa e sutil, que muitas vezes influenciava as decisões do marido. Sobieski, exímio comandante, enfrentara com êxito os exércitos dos tártaros e zaporogos nas planícies e estepes invadidas da Ucrânia. A Turquia, cujo centro de poder continuava a ser Constantinopla, era governada pelo sultão Muhammad IV, que de uma nação quase em desagregação pela corrupção e maus governos, construíra o Império Otomano, que se estendia do leste da Itália à Rússia, do norte da Pérsia à Hungria, abrangendo nações européias como Grécia, Macedônia, Albânia e Bulgária; representava uma ameaça real aos povos da Europa. Em 1683, representantes de cinco países europeus suplicavam a ajuda polonesa para defender o cristianismo de uma nuvem negra de terror; os turco-tártaros ameaçavam toda Europa. A cidade de Viena cairia em poder dos turcos, que constituíam uma força extraordinária, antes que o ano terminasse. Assim, as próprias nações que pouco antes tinham se empenhado em destruir a Polônia, vinham agora suplicar 72 a sua ajuda. E seria o grande rei Sobieski a salvação dos antes algozes da Polônia. Até o velho cardeal, emissário do papa Inocêncio XI, veio pedir socorro para Viena. Sobieski liderou a defesa da cidade e venceu as tropas otomanas de Kara-Mustafa, que cercavam Viena. Jan III, Sobieski, reinou até o ano de 1697. Foi o mais dinâmico rei que a Polônia jamais teria. O seu reinado de vinte e três anos foi profícuo, pois era político hábil e resoluto. Levou o país à prosperidade, reergueu o Estado, refreou os desmandos dos magnatas. Sucedeu-lhe August II, príncipe saxônio eleito pelo Senado dos magnatas, em 1697. Governou até 1709 num reinado absolutista, entrando em conflito com os nobres. Sua época foi de queda da situação da Polônia no conceito internacional. Aliado do czar Pedro “O Grande”, da Rússia, envolveu o país numa guerra de resultados desastrosos. Opositor eleitoral de Stanislaw Leszczynski, disputava com ele o trono polonês. August III, filho de August II, foi rei da Polônia de 1733 a 1763. Conseguiu eleger-se com o apoio do exército russo e saxônio. Seu reinado durou longos trinta anos e foi um fracasso. Contribuiu para o enfraquecimento e o declínio do Estado. Com a ascenção da Rússia, a czarina Catarina II, aproveitou e colocou seus exércitos no território polonês. *** 73 V SONHOS TRUNCADOS Na cidade de Pulawy, situada à margem direita do rio Bug, afluente do Wisla (Vistula), a cinqüenta quilômetros da capital, morava num suntuoso palácio a poderosa família Czartoryski. Os mais proeminentes membros desse clã, pretendiam, com o poder politico que possuiam, influenciar e, por meio de alianças, estudos, projetos e análise apurada da situação, trabalhar para modificar o sistema vigente no país. A Polônia seria liderada por um rei forte, que fundaria uma dinastia em que não mais se permitiriam eleições controladas por potências estrangeiras. Teria um senado eleito de maneira honesta, as pessoas das cidades teriam direito de votar e possuir terras, os servos seriam libertados. Os irmãos Czartoryski tinham uma irmã, jovem e bela, de nome Konstancja, que se casou em 1728 com o conde Roman Poniatowski, que apesar do título de nobreza, este não lhe conferia poder político, mas era rico, dono de extensas áreas de terras, aldeias e servos, na Ucrânia. Os antepassados dos Poniatowski pertenciam à alta aristocracia polonesa. Suas origens datam do século XVI, época da dinastia Jagiellon. Seu berço natal ficava na Ucrânia, no castelo de Kharkow, onde se estabeleceram. Conde Stanislaw Poniatowski, castelão de Kharkow (1677-1762), possuía um imenso domínio de terras negras, as mais férteis da região, nos campos e vales dos rios Doniec e Worskia. Tinha seis filhos, bonitos, inteligentes e empreendedores. Cada um deles seguiu uma carreira; diplomatas, militares, políticos. 74 O primogênito Michal ingressou no sacerdócio, e com a ajuda dos tios, tornou-se o primaz da Polônia. Seu irmão mais moço, Stanislaw August, nasceu em 1732; estava destinado a uma posição ainda mais elevada, rei da Polônia; foi educado e preparado com cuidado excepcional para ocupar o trono. Os tios achavam que, como rei, promoveria as reformas e levaria a Polônia para a família das nações respeitáveis da Europa. Os outros quatro filhos do casal Poniatowski: Andrzej, Janusz, Ludwig e Tadeusz, rapazes ambiciosos, escutavam os conselhos dos tios Czartoryski atentamente. Andrzej seguiu a carreira militar, promovido a general, foi comandante e chefe do exército polonês. Pai do princípe .Jozef Antonio Poniatowski, Ministro da Guerra do Principado de Warszawa e Marechal da França. Jozef morreu em batalha em Lipsk, na guerra napoleônica em 19 de outubro de 1813. Atendendo ao desejo dos tios Czartoryski, Tadeusz, o caçula de Poniatowski, casou-se aos 23 anos com Zofia, filha de Zbigniew Ossolinski, da alta nobreza, ligado a uma das mais ricas e poderosas famílias de magnatas da Polônia, os Zamojski. Os Czartoryski não eram bastante poderosos para alcançarem esses objetivos tão ambiciosos e elevados, mas contavam com a aprovação dos Zamojski, uma família poderosa e extraordinária, que havia construído com seus próprios recursos a cidade murada de Zamosc, tão importante na história polonesa. De uma década para outra, o poder parecia fluir cada vez mais para os Czartoryski e os Zamojski, e sempre os dois grandes clãs se mantinham unidos, empenhando-se para produzir uma Polônia melhor e mais forte. Tinham o apoio de muitos magnatas influêntes, como os poderosos 75 Potocki, que possuíam grande prestígio no governo, mas invariavelmente cabia a eles a liderança. Eles também enfrentavam oposição de muitos, mas, ao final da década de 1750, os Czartoryski, com o desempenho brilhante dos sobrinhos Poniatowski, estavam fadados a triunfar. As perspectivas de a Polônia tornar-se um Estado moderno nunca foram tão animadoras. No ano de 1756, os diligentes Czartoryski chegaram à conclusão de que se Stanislaw August algum dia chegasse a ser rei, devia aprender desde logo um comportamento real. Arrumaram para que ele fosse a São Petersburgo, a fim de tomar gosto pela vida na corte. Eram adeptos da política russa na Polônia. A Rússia era governada na época pela czarina Isabel, segunda filha de Pedro, “O Grande”, e sua esposa lituana Catarina. Ele chegou lá no início da primavera. Os vastos parques e jardins de São Petersburgo estavam cobertos de flores. A brisa morna trazia o perfume até às dependências do castelo onde se alojava o grande número de hóspedes da corte russa. Havia um clima de romance no ar. O fidalgo polonês era um belo diplomata de 24 anos, educado, com boas maneiras e domínio completo de francês, alemão e russo. Possuía predicados que lhe conferiam invejável superioridade sobre outros jovens diplomatas designados para junto do governo russo. Uma semana depois, já atraíra a atenção de uma linda e determinada nobre alemã, Sofia Anhalt Zerbst. Nascida na Alemanha, a princesinha contava apenas 15 anos quando foi escolhida pela czarina Isabel para noiva do príncipe Pedro Ulrico, sobrinho de Isabel, que havia sido destinado ao trono russo, e Sofia seria conhecida pela história como czarina Catarina II, “A Grande”. O jovem conde Stanislaw August Poniatowski sentiu o coração a martelar ao ver Sofia, com “cabelos negros, 76 a tez sedutoramente alva, os longos cílios escuros, o nariz grego, os lábios que pediam beijos, os braços e as mãos esculturais, o passo elástico e a atitude nobre”. E como era alegre o riso de Sofia! Como seria bom poder amá-la - pensava ele. Ele era cavalheiresco e sensível, e não via em Sofia apenas a mulher, ou uma brilhante conquista, mas a personalidade intelectual. A simpatia depressa transformou-se em amor, e o amor elevou-se a paixão, quando sentiu que a atração era recíproca. A grã-duquesa de 28 anos deixou-se arrebatar pelo novo romance. E poucos dias depois de se conhecerem, Sofia e Stanislaw já estavam na cama; tiveram um envolvimento ardente. De temperamento exuberante, ela expunha-se a sérios riscos, deixando à noite o palácio, em trajes masculinos, furtando-se à vista do marido beberrão, para avistar-se com o amante em casa de pessoas de confiança. A jovem Sofia obteve dessa atenção lisonjeira um fortalecimento do seu ego. Poniatowski adquiriu notoriedade como seu amante polonês. A ligação escandalosa de Poniatowski com a grãduquesa Sofia, esposa de grão-duque Pedro Ulrico, sucessor do trono russo, chegou às cortes européias, e foi muito criticada. Censurada com incontida veemência pela imperatriz Isabel I, que era de temperamento violento. Os tios Czartoryski, a fim de desviar a atenção do escândalo na corte russa, acharam melhor casá-lo com uma das moças Czartoryski, chamada Isabella, e também para reforçar o conceito de dinastia. As lutas dinásticas seriam eliminadas com a instituição de uma família unida reinante, Czartoryski e Poniatowski. Isabella era desgraciosa, não podia considerar-se uma beldade, mas era inteligente e determinada. Stanislaw 77 rejeitou-a alegando que era feia demais. Isabella nunca o perdoou por essa afronta. Stanislaw August continuou na corte russa, e foi ali que ele foi citado como preferido para ser o rei polonês. - Há possibilidade em tornar-me rei da Polônia? perguntou Stanislaw a Sofia, quando das carícias de amor na alcova. - Por indicação russa sim, breve o serás - respondeu Sofia, entre um beijo e outro. - E como eu poderia conseguir a ajuda russa? - Por meu intermédio. - Mas você é alemã! -Tenciono tornar-me uma russa - respondeu ela, com uma determinação implacável, que ele não conhecia e nem observara quando se achavam no exercício do amor. A possibilidade de que Sofia pudesse ajudá-lo a subir ao trono aumentou em 1762, quando morreu a czarina Isabel I, a filha de Pedro, “O Grande”. Isso significava que o deplorável marido de Sofia Anhalt Zerbst, grão–duque Pedro Ulrico, tornar-se-ia o czar da Rússia, função na qual seria tão incompetente como o era na cama. O breve reinado de 185 dias do czar Pedro III, Ulrico, foi tão inepto e caótico, que Sofia, temendo perder sua posição, reuniu em sua volta um grupo de oficiais, muitos dos quais haviam partilhado sua cama, e se proclamou Imperatriz de Todas as Rússias, como Catarina II,“A Grande”; ela tinha trinta três anos quando foi coroada. Aguardava-a uma tarefa que era pesada mesmo para os ombros de um homem robusto. Mas ela viera ao mundo para reinar, e em poucos anos, tornara-se tão russa, senão até mais russa que os próprios russos. Na verdade, todo o seu ser, sua alma e seu corpo viviam fascinados pela Rússia, pelo misticismo tipicamente russo, e por esse caldeirão de feiticeiro em que se amalgamam e repelem, fecundando78 se e hostilizando-se mutuamente, elementos russos e asiáticos. Reinaria por tumultuados trinta e quatro anos. Oito dias depois da sua autocoroação, o marido, czar Pedro III, Ulrico, foi assassinado por um jovem oficial, Alexei Orlow, irmão do outro amante de Catarina. O jovem Poniatowski tremia de expectativa e se imaginava o novo consorte de Catarina. Na Rússia, seria marido da czarina; rei na Polônia, e já formulava planos. Mas Catarina já fora muito além do seu interesse por aquele polonês pretencioso. Estava agora apaixonada pelo conde Grigory Orlow, e o moço Poniatowski era-lhe um embaraço. Foi afastado da Rússia, às pressas, sem esposa e sem coroa. Contudo, seus ambiciosos tios Czartoryski não desistiram e enviaram emissários a São Petersburgo, solicitando apoio de Catarina a seu sobrinho. - Se ele não for eleito rei da Polônia, o trono irá para as mãos de um alemão, austríaco ou francês, o que representaria um transtorno para a Rússia. Se ajudá-lo a subir ao trono, terá garantido um permanente aliado. Catarina recompensou seu amante de uma maneira dramática. Quando o rei Augusto III, da Saxônia, morreu, os magnatas, como sempre, preferiam ter um rei fraco, alemão, francês ou austríaco, do que um polonês forte. Deixaram bem claro que o jovem Poniatowski não era aceitável. Mas Catarina não estava disposta a permitir que o seu antigo favorito fosse preterido, especialmente quando ele poderia ser-lhe útil no futuro. - Não podemos admitir uma Polônia indefensável em nossa porta - disse Catarina a seus conselheiros. E como recompensa pelo amor de Poniatowski, ela despachou um exército russo completo para a Polônia, até o lugar onde os magnatas promoviam a eleição do novo rei. 79 Cercando a área, os russos exigiram a eleição do candidato de Catarina e, se os magnatas recusassem, seriam todos fuzilados. E foi dessa maneira violenta e brutal que a Polônia elegeu em 1764 o rei, que seria o último. Ele, certo que a czarina o recompensara porque ainda o amava disse aos tios: -Um dia novo e brilhante amanheceu para a Polônia, com o apoio dela, poderemos realizar tudo o que sonhamos. Mas se enganava lamentavelmente, pois Catarina, vendo o tumulto em Warszawa, estava contente por ter resolvido o problema polonês com tanta facilidade, e comentou com seus conselheiros: - Poniatowski será um rei medíocre, ele é fraco, volúvel, não sabe o que quer, será desprezado pelos magnatas e destruirá o país que tanto ama. Stanislaw Poniatowski, desde o início do seu reinado, tornou-se impopular, pois encontrava-se no trono graças ao apoio do exército russo. No ano de 1771, depois que Catarina II fizera tudo o que era possível para enfraquecer a Polônia e impedir que Poniatowski instituísse as reformas necessárias para dar impulso ao progresso do país, os conselheiros russos resolveram acabar com a questão polonesa sem demora. - Enquanto a Polônia existir, constituirá um ponto de discórdia entre nossos países - concluíram os diplomatas austríacos, prussianos e russos. Por que a hostilidade dessas três potências contra a Polônia? Ela não apresentava ameaça militar nem econômica a nenhum destes países. Apesar de tudo isso, o perigo que o país apresentava era concreto e as grandes potências podiam senti-lo. A Polônia amava a liberdade. Especificamente, cada incidente na história polonesa testemunhava a determinação da nação de evitar a au- 80 tocracia e a ditadura, para que não lhe tolhessem a liberdade. A Polônia era uma democracia. No momento exato em que o bem intencionado rei Poniatowski tentava melhorar a sorte dos seus camponeses, Catarina privava os seus dos poucos privilégios que ainda tinham, e não pararia até que 97% fossem levados a mais abjeta escravidão. Para a Rússia, que estava impondo uma ditadura tão cruel, era inadmissível que a vizinha Polônia se empenhasse em instituir uma democracia viável; poderia encorajar o povo russo a tentar a mesma coisa, e isso não podia ser tolerado. A Polônia devia ser esmagada. Catarina recrutou a Prússia e Áustria para ajudaremna na execução do seu plano. No inverno de 1771, três diplomatas estrangeiros se reuniram, a fim de providenciar essa destruição. Essa reunião que iniciaria o desmembramento da Polônia, ocorreu no próprio coração do país, no palácio Branicki, com anuência deste. Um ano depois começou a divisão. Em 21 de abril 1773, realizou-se em Warszawa, no castelo real, a Assembléia em que os deputados Szczesny Potocki, Adam Poninski e Ksavery Branicki assinaram pelo Senado o documento da divisão da Polônia. Estavam presentes o rei Stanislaw August Poniatowski, o embaixador da Rússia príncipe Repnin e os embaixadores da Áustria e Prússia. Num momento dramático, o deputado por Nowogrod, Tadeusz Rejtan, protestou, querendo conter os membros da Assembléia. Jogou-se no chão da Sala dos Deputados, abriu a camisa no peito e gritou: “Matem-me, enforquem-me, mas não matem a Pátria”. Nessa data foi executada a 1ª partilha parcial da Polônia entre a Rússia, Áustria e Prússia, restando um núcleo central, do tamanho da França, para os poloneses se diverti81 rem em seu jogo de “Liberdade Áurea”. Em 1788, foi abolido o “Liberum Veto”, o infeliz procedimento que eliminava qualquer tentativa de melhorar a situação do país. O desastre despertou o povo. O Senado votou uma Constituição democrática no dia 3 de maio de 1791.O rei Poniatowski adotou-a, apoiado pelos nobres e patriotas. Era a segunda Constituição no mundo, após a dos Estados Unidos, e a primeira da Europa. Os magnatas das famílias poderosas como os Zamojski, Potocki, Czartoryski e outros grandes patriotas, estavam ansiosos e preocupados com o destino iminente de sua pátria. O momento preciso da eliminação da Polônia dependeria dos planos dos Romanoff da Rússia, Hohenzollem da Prússia e Habsburgos da Áustria. - Invadiremos novamente a Polônia; essa nação deve ser retalhada e eliminada, não há mais qualquer desculpa para sua existência - decidiram os embaixadores dos três países em questão. Em 1793, foi feita a segunda partilha, ficando só um pequeno núcleo central. - Fica este pequeno pedaço da Polônia para ser governado pelo rei Poniatowski, meu velho amigo - disse Catarina. Mas desconsiderando a promessa, em 1794 foi feita a terceira partilha do resto que sobrava do país. Reuniram-se como antes, para traçarem as novas fronteiras entre eles. No final de 1795, a Polônia desapareceu do mapa por longos 123 anos de ocupação. Nos territórios usurpados, todos os esforços foram envidados para eliminar a língua, a história, a religião e os costumes; a ordem era para que o nome de “Polônia” nunca mais fosse pronunciado. Stanislaw August Poniatowski, último rei da Polônia, reinou de 1764 a 1795, portanto, por trinta e um anos. Sobrinho dos Czartoryski, poderosa família de magnatas; favorito da czarina Catarina II, foi eleito por sua indicação 82 e imposição, e manobrado por ela como um fantoche. Foi ele o arquiteto involuntário do suicídio de uma nação. Os dias finais do rei foram lamentáveis. Não mais um monarca no poder, foi levado para a Rússia como prisioneiro do Estado, e foi lá que ele morreu, em São Petersburgo, aos sessenta e três anos de idade, um exilado, um amante rejeitado, esquecido e ignorado pela czarina, que não quis nem vê-lo. Catarina morreu um ano depois, em 1796, com sessenta e sete anos, vitimada por uma congestão cerebral. A partir da terceira e última partilha da Polônia, em 1º de novembro de 1795, houve um colapso total de um Estado grande e cristão. Foi uma das destruições mais cruéis da história e uma das menos justificáveis. E nenhum país protestou; uma nação soberana era violentada e saqueada, e as nações cristãs falavam em liberdade e os líderes religiosos e o Papa apregoavam a responsabilidade moral e a justiça para todos. O exército polonês foi derrotado na tentativa de salvar o país, e os inimigos ocuparam toda a nação. Sucedeu a Catarina II, no trono russo, seu filho Paulo I, que reinou de 1796 a 1801. Governou apenas 5 anos, pois a loucura manifestou-se nele. Na conspiração de março de 1801, um oficial estrangulou o Imperador, com uma faixa de seda. Depois da terceira partilha veio a dispersão dos centros culturais de Warszawa e outras cidades polonesas. Caiu também o prestígio das aristocráticas mansões da nobreza no campo, que funcionavam como centros locais da vida cultural e social. Esse aspecto da época de 1800 só permaneceu em Pulawy, dos Czartoryski. O czar Alexandre I, Pawlovitch, neto de Catarina II, subiu ao trono em 1801, e reinou até 1825. Chamou para 1º conselheiro nos assuntos poloneses o magnata Adam Jerzy 83 Czartoryski e, em 1802, encarregou-o da condução da política exterior russa. Foi fundada a Universidade de Wilno e Czartoryski foi nomeado curador-chefe. Em 1805, o czar hospedou-se na residência em Pulawy, e foi recebido com entusiasmo pelos magnatas presentes no castelo.Tempos depois, o czar, descontente com Czartoryski por este não seguir as suas ordens referentes à politica da Polônia, retirou-lhe o apoio e afastou-o do poder, substituindo-o por pessoas de sua confiança. Confiscou-lhe o domínio, propriedades e o castelo de Pulawy. Contrário às restrições do direito civil, da liberdade e da dignidade nacional, Czartoryski ainda assim era firme partidário da união com o Império Russo, não obstante preocupado, para que a violência do arquiduque Konstanty Pawlowitch, irmão do czar, e as trapaças do general Nicolau Nowosilkow não levassem os poloneses ao desespero e, por conseguinte, à revolução. Com esse pensamento, o príncipe Czartoryski, com cautela, apresentou as queixas do povo ao czar Alexandre I, denunciando as arbitrariedades dos seus homens de confiança. Não conseguiu nada. Nicolau I, sucedeu no trono seu irmão Alexandre I, governou de 1825 a 1855. O seu governo infligiu à sociedade polonesa o mesmo sistema desumano e reacionário de terror da polícia militar, o qual era aplicado na Rússia: o de manter a servidão dos camponeses e as prerrogativas do Estado de constranger o livre pensamento e isolar o país do resto do mundo – tendências essas que oprimiam o Império Russo e encontravam reflexos na Polônia. A linha política antipolonesa na terra ocupada pela Rússia era exatamente igual, imitada, pelos dois outros países invasores. O sistema constituído no Congresso de Viena despertava oposição de diversos lados. A burguesia exigia a abrogação do poder absoluto e ampliação da sua participação no governo. Os camponeses, a abolição da 84 servidão, o proletariado operário, a melhoria nas condições de trabalho e da situação econômica. Em 29 de novembro de 1830, uma grande insurreição estalou na Polônia; foi cruelmente reprimida, e os ucazes de Nicolau I privaram este país de tudo que pudesse favorecer a sua independência. Em 1844, em 1846, em 1848 e 1863 novas revoltas surgiram, mas foram reprimidas com violência e seus participantes presos, mortos ou deportados para a Sibéria, obrigados ao trabalho forçado nas minas dos Montes Urais e nas florestas na região de Irkutsk. Ao final do ano de 1850, nas terras ocupadas pelas forças russas houve o fortalecimento das atividades conspiratórias em todas as camadas da comunidade, pleiteando reformas sociais e a independência do país. O conflito com o Império intensificou-se no início do ano de 1861. Dois anos depois, estourou a luta armada, chamada de “Levante de Janeiro”. Os fatos que levaram a esse desfecho podemse reduzir para três importantes causas: a crise feudal interna, a situação revolucionária na Rússia e a mudança na composição dos blocos internacionais. O czar Nicolau I, reforçando o plano de unificação do Reino da Polônia com a Rússia, retirou em 1851 a fronteira alfandegária entre os dois territórios, integrando a Polônia à esfera alfandegária russa.A derrota sofrida pela Rússia na guerra da Criméia denunciou a fraqueza do sistema implantado por Nicolau I, sustentado na servidão dos camponeses e opressão dos povos conquistados. O novo czar Alexandre II (1855-1881), filho e sucessor de Nicolau I, subiu ao trono em 1855, assinou a paz com a França em 1856, depois da guerra da Criméia. Convencido da necessidade de reformas, aboliu a servidão, causa primordial das freqüentes rebeliões dos camponeses; 85 ordenou a diminuição da perseguição e opressão pela polícia militar e anunciou as próximas mudanças políticas. Esperava que diminuíssem os distúrbios e a insatisfação que abrangeu todas as camadas sociais, desde as massas do povo até a liberal ala dos latifundiários. A anistia concedida depois do armistício de Paris permitiu a volta ao país de milhares de deportados, da Sibéria e de outros países. Como sucessor do falecido general Ivan Fedorovitch Paskewitcz, governador militar da Polônia, foi nomeado Miguel Gorczakow, homem velho e indeciso, o qual procurava aproximação com a nobreza polonesa. Foi atenuada a censura. Foram libertados os prisioneiros políticos do X Pavilhão, da prisão em Warszawa. Graças ao “degelo” na Rússia, a sociedade polonesa conseguiu um pouco de liberdade no âmbito social e vida pública. Mas não seria por muito tempo, pois Alexandre II, revogou todas as concessões dadas por Gorczakow. No verão de 1862, foi coroado como rei do Reino da Polônia o irmão do czar, o arquiduque Konstanty Nikolaiewicz Romanow. Quando Gorczakow morreu, foi nomeado Lambert, que proclamou o estado de sítio em toda a Polônia. Esses incidentes levaram a difíceis conseqüências; Lambert adoeceu e abandonou o seu cargo. O seu sucessor, Alexander Lüders, agravou o curso da repressão aprisionando diversos padres e outras personalidades notáveis. As rebeliões espocavam por todo o país, se propagavam no campo e nas cidades; o povo se agitava descontente e não dava tréguas ao invasor. A resistência e o contínuo desdobramento da luta de guerrilhas só foram possíveis pela participação dos camponeses. O Governo Provisório Polonês, nas primeiras semanas do levante de 1863, dava enorme ênfase ao anúncio do decreto de outorga de propriedade rural aos aldeões. A 86 luta contra o governo de ocupação estava limitada às fronteiras do Reino da Polônia e condenada ao fracasso. Alexandre II reprimiu violentamente a insurreição, entregando o comando ao general Dimitri Feodorovitch Trepow, que usou de todo poder do exército para abafar a revolta. Condenados pelo czar, vinte mil guerrilheiros e participantes do levante de 1863 foram deportados para a Sibéria. Em julho de 1866 estourou uma rebelião num grupo de 700 condenados, remanejados de Irkutsk para construção de estradas, além do lago Baikal, em condições desumanas. O levante foi abortado, e os participantes presos e fuzilados pelos gendarmes do czar. A reforma que concedia terras aos camponeses levou à liquidação do sistema de organização feudal das terras polonesas. Anunciada solenemente nas aldeias no decorrer de março da 1864, a reforma de Alexandre II foi elaborada em quatro disposições. A primeira concedia aos aldeões como sua a propriedade das terras que ocupavam. As terras desocupadas das aldeias, prometiam dividir entre os aldeões locais sem terra. Iriam pagar impostos sobre as terras. A segunda declarava a autonomia da população rural. Organizava grupos de aldeias de composição exclusivamente camponesa, e ainda em comunas coletivas, isto é, reuniam diversas aldeias e inclusive fazendas. Os administradores dessas comunas seriam escolhidos por agremiações de proprietários de pelo menos três morgas de terra. Os chefes dessas comunidades recebiam autoridade limitada, sobre rigoroso controle do governo de ocupação. A terceira referia-se às indenizações pelas terras divididas em favor dos camponeses. Os proprietários foram pagos em papéis do Império Russo, que na venda valiam 1/3 do valor real. 87 A quarta convocava uma hierarquia de autoridades, que trataria da divisão das terras. Os funcionários viriam especialmente da Rússia. Vieram Milutim, Czerkasky e Solowiew como chefes, e demais encarregados de exercer a função de árbitros. A crise econômica em 1881 coincidiu com a morte do czar Alexandre II, atingido por uma bomba dos nacionalistas, que foi arremessada contra sua carruagem. A repressão da polícia foi violenta, os operários responderam com catastróficas greves, as quais levaram ao confronto armado com as forças do exército. Em 1883 na ocasião da greve em fábricas, quando a multidão quis resgatar os seus agentes presos, o exército atirou na população deixando centenas de mortos e feridos. Sucedeu-lhe seu filho, Alexandre III, que subiu ao trono em 1881. Renunciou às tendências liberais de seu pai e retomou as tradições absolutistas. Morreu em 1894, deixando o trono a seu filho Nicolau II (1894-1917). Este iniciou o governo com abrandamento da linha política. O crescente engajamento da Rússia no Extremo Oriente e as dificuldades com o movimento operário no centro do país foram as principais causas que fizeram o governo russo normalizar as relações com a Polônia. Com o intuito de atrair e abrandar a comunidade polonesa, foram afastados do governo os generais Hurko e Apuchtin. O próximo governador Paulo Szuwalow e o que veio depois dele,general Imeretynski, mantinham relações amigáveis com a aristocracia polonesa, faziam acreditar nas mudanças especialmente favoráveis à Igreja e à liberação do ensino da língua polonesa. Mas logo veio a decepção. Na Polônia, assim como em toda a Europa Oriental, ao final do século XIX, somente a parcela da população privilegiada tinha acesso à educação e ao ensino superior. Não havia escolas na maior parte das aldeias e onde havia 88 eram do mais baixo nível e decepcionavam pelas aulas obrigatórias em língua russa. Os camponeses eram em sua maioria analfabetos. O número de ginásios nas cidades aumentou, mas eram superlotados e dificilmente algum aluno conseguia terminar o curso em oito anos regulamentares. Embora a educação religiosa e o aprendizado em língua polonesa tivessem sido proibidos, isto apenas significava que eles eram ensinados em locais secretos. Nas escolas, depois da saída de Apuchtin nada foi modificado para melhor. A língua russa era obrigatória nas escolas, como matéria principal. A religião oficial era católica ortodoxa, ensinada nas igrejas. Em 1905, o governador Czertkow implantou na Polônia o “Estado de Alerta Intensivo” e ordenou ao exército dispersar as aglomerações das ruas e praças. Desde as partilhas até a Primeira Guerra Mundial, durante os anos de ocupação, as sucessivas gerações de poloneses tentaram, por todos os meios conseguir a independência da pátria. Entretanto, era tarefa difícil, sem uma conjuntura internacional favorável. A Rússia, a Prússia e a Áustria conduziam uma política comum, visando à manutenção das conquistas e evitando conflitos entre si. Por sua vez, a vitória da Polônia sobre as três potências, ao mesmo tempo, era impossível. A luta dos poloneses pela liberdade era, também, uma luta contra a violência e o absolutismo. Por isso, a questão polonesa foi vinculada com os movimentos libertários e democráticos europeus. A divisa “Pela Nossa e Vossa Liberdade” tornou-se o símbolo da contribuição polonesa para a democratização dos sistemas políticos europeus. O czar Nicolau II governou de 1894 a 1917, quando foi fuzilado com toda sua família pelos revoluciónarios bolcheviques, em Tobolsk na Sibéria. Desde o ano de 89 1914, início da Primeira Guerra Mundial, Polônia foi palco de combates sangrentos, entre as grandes potências envolvidas no conflito. O fim da guerra traz finalmente a libertação. Em 11 de novembro de 1918 o general Jozef Pilsudski, grande militar e patriota, assume o poder e oficializa a independência. A República da Polônia reapareceu no mapa da Europa, depois de ausência compulsória de 123 anos. Durante todo esse tempo, foram sucedendo-se os imperadores da dinastia dos Habsburgos na Áustria, Hohenzollem na Prússia e Romanow na Rússia, todos eles déspotas, tiranos, de poder absoluto, espoliaram e oprimiram povos. Loucos, com toda prepotência, acreditavam-se deuses imortais, mas foram apenas pobres seres humanos sujeitos a morte, e viraram pó como todos.os outros. VI O AGENTE SECRETO Andrzej caminhava solitário pela praia de areias brancas. O mar agitado enviava ondas gigantes que explodiam em cascatas de água, cobrindo a praia, e ao retornarem, deixando atrás de si a espuma branca, orlando a areia como um véu de noiva. Não havia ninguém na praia além dele. Anoitecia... O sol mandava os últimos raios fulgurantes filtrando-se através da floresta rala. Na praia isolada de Braniewo, na margem leste do mar Báltico, um bando de gaivotas passou grasnindo, assustado com a presença do moço. As aves alvoroçadas voavam em bando em todas as dire- 90 ções em cima da restinga, que era um baixio de areia prolongando-se pelo mar adentro. Uma só gaivota separou-se do grupo e começou a circular em cima da cabeça de Andrzej, soltando grasnidos volteava para a direita e para a esquerda, subia e descia. De repente, como um raio, atacou o homem, com o bico afiado, batendo as asas. Gritava desesperadamente. - Se eu tivesse um pedaço de galho ou uma pedra, defender-me-ia – pensou ele. A gaivota, ainda atacando, percebeu a intenção de defesa do moço; afastou-se um pouco, mas não deixou o campo livre do ataque, emitindo grasnidos selvagens; estava desafiando-o para a luta. Perplexo, indagou-se Andrzej: - O que quer de mim esta ave? O que seria a causa de tanto alvoroço e irritação do pássaro? Será que ela, nestes ermos, nas fronteiras das águas e areias só reconhece a lei da guerra? O grito da gaivota não cessou, não diminuiu, não silenciou, mas se alterou cada vez mais até alcançar as raias do desespero, soava como o próprio clamor da angústia humana. Analisando a situação, ele entendeu de repente o desespero da ave. Compreendeu exatamente. Pelo instinto de sobrevivência, ela reconheceu no homem um predador impiedoso, que tomava o rumo de seu ninho, escondido entre os galhos dos arbustos na areia.E cada passo dele representava o passo da morte; que a qualquer momento pisaria em cima do ninho e mataria os filhotes aconchegados à terra, na sombra espessa das folhagens. - Sei! E conheço com certeza o que se passa no coração trêmulo da gaivota, ao ver aproximar-se o perigo, a morte - pensava Andrzej, relembrando o passado recente. 91 - Sei! E como sei! Com o coração aos saltos, os olhos esbugalhados, o corpo trêmulo, o que é a aproximação traiçoeira do inimigo. Sinto ainda na garganta o mesmo grito apavorado que sai do teu peito, avezinha. - Sei! Ó mãe! Sossega o teu coração, não serei eu o assassino dos teus filhotes que amas até a morte. Por teu sagrado anseio, ó mãe! Pelo teu grito de amor em desespero, não tocarei na segurança do teu ninho, e teus filhotes poderão, protegidos por ti, nascer e voar sobre este mar imenso iluminado pelo sol radiante. Pois, sou como tu, apenas uma ave errante, cujas asas a tempestade da vida empurra para um lado e outro, sem trégua. O homem desviou o passo para longe do ninho, até ver o pássaro sossegar o seu piar angustiante. Caminhou ao sol poente, que já formava sombras nos morros e nas pedras da praia. Andando ao léu, vislumbrou ao longe um vulto de mulher. Vinha mancando apoiada num cajado. A cabeça coberta com um xale negro, as vestes longas arrastavam-se pela areia. Vinha ao encontro do moço. Ao deparar-se com ela, viu o seu rosto pálido, murcho pela idade, apenas os olhos negros, cintilantes, destacavam-se daquele semblante tristonho. Eram olhos penetrantes, como lâminas afiadas de uma espada. - Precisa de ajuda?– perguntou-lhe Andrzej, solícito. - Estou aqui perdida nesta praia - respondeu a mulher. Procuro pedras de âmbar amarelo no meio da areia e esqueci o rumo da minha casa. Lá o meu filho me espera, deve estar preocupado com a minha demora - explicou ela. Eu sempre venho aqui à procura destas pedras. Saul é um artífice habilidoso. O âmbar que encontro, ele o lapida e transforma em esplêndidos colares. - Explique-me, senhora, como chegar até lá, vou ajudá-la a encontrar a casa do seu filho - ofereceu-se ele. 92 Pegou-a pela mão esquelética e ajudando-a a caminhar, amparando-a, foram seguindo pela areia da praia. Arbustos, vegetação rasteira e pedras atrapalhavam o seu caminho. Entraram pela trilha de terra batida, que levava a uma mata rala. Lá adiante avistaram a casinhola humilde, feita de troncos de árvores, coberta de palha. A porta estava aberta; lá dentro crepitava o fogo num fogão feito de pedras. Uma mesa tosca no centro, um banco de madeira encostado na parede e num recanto uma pequena oficina de artesão-joalheiro. Era tudo o que existia no casebre. Entregue ao seu trabalho, concentrado, estava o filho. Não viu a mãe chegar. - Filho, eu trouxe visita para você - justificou-se. - Quem é? – perguntou Saul, sem levantar a cabeça do trabalho. Saul era um rapaz jovem, alto, de cabelos ruivos e longos caídos pelo pescoço, a barba por fazer, olhos azuis como safiras, inteligentes. Trajava a roupa tradicional dos judeus. Calçava sandálias de couro. - É um desconhecido - respondeu a mãe. Vagava pela praia. Ajudou-me a encontrar o caminho da casa. Sem ele teria me perdido no meio da noite. - Por favor, entre e sente - convidou Saul, atencioso. Andrzej entrou e sentou no banco tosco de madeira. A mulher serviu-lhe um copo de água e um cálice de hidromel. - Chamo-me Andrzej, vejo que são pessoas boas e simples e que posso confiar em vocês. Sou insurreto, perseguido político, estou fugindo dos gendarmes russos, que me procuram em todo território polonês. Aqui nas margens do Báltico, em lugar ermo como este, em terras prussianas, penso estar seguro. 93 - Pode ficar conosco, se assim o desejar - disse Saul - a casa é pobre, mas é de amigos; fique aqui, pode ajudarme no meu trabalho de joalheiro. - Aceito e agradeço de todo o coração a hospitalidade e o trabalho que me oferecem - respondeu Andrzej. Saul trouxe-lhe algumas pedras de âmbar para serem polidas, uma delas era excepcionalmente linda, faiscando, parecia raios de sol. -Veja - começou a explicar Saul – esta pedra maior traz dentro dela enterrada e preservada uma pétala de flor, outras têm insetos, folhas ... O artesão continuou informando: - O âmbar é uma resina fóssil, dura, quebradiça, translúcida, de cor amarela, avermelhada ou acastanhada; provém de coníferas extintas, do Período Triásico, que começou há duzentos e trinta milhões de anos e teve a duração de cinqüenta milhões de anos. O âmbar é encontrado e extraído do mar Báltico, no norte da Europa. - Em águas rasas, utilizam-se redes para retirar pedaços de âmbar emaranhados nas algas marinhas, e mergulhadores procuram depósitos submersos em águas mais profundas. Em algumas regiões, podem ser encontrados na praia fragmentos expelidos do fundo do oceano, nas agitações dos maremotos. - Os gregos e os romanos admiravam-no por causa da cor, da dureza e por ser translúcido; utilizavam-no em jóias e ornamentos. Atritando-se um pedaço de âmbar com pano, produz-se forte carga elétrica negativa. Isso permitelhe atrair pequenos objetos. Tal propriedade era conhecida dos gregos, que chamavam o âmbar de elektron, termo que deu origem à palavra eletricidade. Tudo isso faz com que a pedra fosse tão valiosa e muito procurada. Andrzej pegou a pedra com a pétala de flor incrustada dentro. Examinou-a atentamente e confirmou: 94 - É realmente um achado extraordinário. - Só ocasionalmente acha-se tal tesouro na areia da praia. Farei um colar, e esta pedra incomum colocarei no meio como um pingente. Vou trançar com fios de ouro, ficará lindo - comentou Saul entusiasmado. Assim, Saul, ajudado por Andrzej, trabalhou muitos dias lapidando e separando as pedras perfeitas. Quando o colar ficou pronto, reconheceram que era uma jóia excepcional, com pedras de um amarelo pálido que faiscavam ao sol, como se fossem diamantes. Saul limpou o colar com um pano e colocou-o sobre a mesa; incrível magia aconteceu: objetos pequenos que estavam na mesa foram atraídos para o colar. Ele tinha uma estranha energia. A velha dama, rindo seu risinho seco, disse: - Eu passei ao colar uma energia mágica. A pessoa que tiver este colar ao pescoço terá esse poder sobrenatural; chamará toda essa força para si, atrairá a felicidade, a saúde, o amor, a amizade... Saul recolheu o colar para uma gaveta na mesa. Andrzej ficou estarrecido com o que viu. Perguntou: - Saul, você venderia este colar para mim? E quanto custaria? Saul, pensativo, respondeu: - Não é jóia que eu possa avaliar o preço, é incalculável. Dou-te de presente, pois você vai precisar muito desta energia mágica e da proteção de Deus. Você demonstrou que tem um bom coração ajudando a minha mãe na praia, quando estava desorientada e perdida. Porque você é um homem honesto, um amigo que encontrei neste remoto lugar. Andrzej, agradecido, aceitou o presente e dias depois seguiu o seu caminho através da floresta e das dunas 95 de areia, rumo ao acampamento dos guerrilheiros, nos pântanos do Polesie, no rio Prypet. *** Enquanto a Europa toda estava apenas observando a Rússia, a Prússia e Áustria, invadirem e retalharem a Polônia, os países do mundo todo também não diziam e não faziam nada. Mas os patriotas, cidadãos poloneses, insurgiramse, não se conformavam e não aceitavam o domínio e a ingerência dos países vizinhos, que dividiram a Polônia de acordo com seus interesses e dominavam-na com mão de ferro. Sufocavam com armas qualquer rebeldia nas terras ocupadas. O motor que impulsionava os insurretos era o popular entusiasmo. Seguiam todos para a luta, todos... como para uma excursão turística. Ainda ninguém tinha visto tamanho fenômeno como esse arrebatamento polonês. Um dia, Andrzej ouviu na cidade tumultuada a conversa de operários e líderes camponeses, conclamando para a luta de vida ou morte – não com a burguesia ou nobreza, como era sempre nas falas operárias, mas com o invasor russo que avançava, roubava, saqueava as cidades e vilas, tornando-as em ruínas. Olhava como meninos púberes fugiam dos cuidados das mães aflitas, e lia informações nos jornais de como eles caíam como heróis. Queria ver com os próprios olhos essa causa pela qual iam em campo, arriscando a cabeça, homens adultos e toda a juventude polonesa - iam tranqüilos, alegres, acompanhando os ecos do tambor. Queria saber o que, na verdade, esconde-se no cerne desta exaltação, que 96 mola desordenada impulsiona-os para a ação; e que valor fantástico tem essa energia. Então, desfilaram, ante os olhos de Andrzej, incalculáveis aldeias e cidadezinhas, matas e campos lavrados, atravessava extensos rios entre os prados e via só ruínas e destruição, pisados com os pés das montarias dos soldados russos. Vestígios da roubalheira, da carnificina e profanação das igrejas. A mais terrível violação dos mais ínfimos direitos humanos. O inimigo mortal do sacrificado povo polonês derramava-se para frente transbordando por todos os caminhos para o interior do país – como gafanhotos, destruidor e faminto, saqueava e incendiava tudo. Onde havia pontes de ferro viam-se agora só esqueletos destruídos; das pontes de madeira, sobraram apenas vigas enegrecidas pelo fogo. Onde havia aldeias, ficaram a demolição, o carvão e deserto. Onde havia alguma coisa bela, elevando o passado, lembrança para os descendentes, viam-se monturos de escombros, estátuas quebradas no chão. Como podia se acreditar nas idéias alardeadas pelos discursos dos invasores do leste? Promessas de liberdade? Era um contra-senso afrontoso a qualquer pensamento de redimir o mundo. Foi um dia muito especial este 29 de novembro de 1830. Irrompeu a rebelião contra a Rússia, causada pela anulação, pelo czar Nicolau I, da Constituição da Polônia, promulgada em 3 de maio de 1791 pelo rei Stanislaw August Poniatowski, e motivada também pela onda de movimentos revolucionários de libertação na Europa, principalmente na França e América do Norte. Andrzej era um agente secreto encarregado de uma missão; levava documentos importantes, com ordens do comandante geral do Éxercito Polonês, general Jan Zyg97 munt Skrzynecki, para o chefe dos guerrilheiros acampados nos pântanos do Prypet. As cartas vinham do comando exilado no estrangeiro. A secreta proteção sobre a Polônia tinha diversas causas; uma delas era a atividade de algumas personagens chamadas de “grandes caracteres poloneses”. Pessoas famosas influenciavam as decisões do governo de ocupação e apoiavam secretamente a resistência no país. Alguém aviva o fogo d‟alma no jovem da província, no empobrecido estudante de medicina, que não come e nem dorme direito, e mora como cão embaixo da ponte, para que inicie a luta contra o poderoso czar russo, contra todo o império moscovita, que fatalmente era invencível. Aqueles estudantes de direito, medicina, arquitetura, biologia e os outros, para os quais somente sobrou dinheiro para comprar tinta, pena e papel, escrevem uma e outra vez, convocando os operários e camponeses para se organizarem na luta contra todo poder do invasor da pátria. Com o auxílio dos rebeldes, doutro lado da fronteira, imprimem as suas idéias revolucionárias na máquina secreta da tipografia; trabalhando a noite como tipógrafos, perto da luz de um toco de vela, para depois, já impressos com as próprias mãos, centenas de exemplares destas volantes carregar nas costas, e do estrangeiro voltar à Polônia, para distribuí-las nas aldeias e cidades. Para atravessar a fronteira muito bem vigiada, em segredo, tem de atravessar a nado e à noite o rio da divisa. Só vai um de cada vez. Escolhe uma noite de outono, a mais abafada, mais escura, mais chuvosa, quando o guarda da fronteira enrola-se no capote e, aquecido, cochila em cima do cavalo. Então o inspirado herói descalça as botas e desnudase até a cintura. Em baixo do braço esquerdo leva a vara com a qual na escuridão vai tatear o guarda parado na beira 98 do rio; na mão direita leva o revólver, para atirar contra o soldado, se o encontrar com a vara ou quando a luta se iniciar. Ouvindo o barulho na água do rio, o soldado de cima do cavalo grita: - Eu te vejo! Eu te vejo! – depois desse grito, o revolucionário reconhece o lugar onde se encontra o soldado. Passa por ele a um passo ou dois. Ouve quando range o arreio em baixo do cavaleiro, como tilintam as esporas e rincha o cavalo assustado. Vai descalço, congelado até a medula dos ossos, tremendo, seminu, pisando em espinhos da vegetação ribeirinha – vai ao seu país, para acordá-lo do sono da escravidão. Assim também Andrzej Wasilewski, o mensageiro, seguiu este caminho para atravessar a fronteira da Prússia e poder alcançar o quartel dos guerrilheiros *** Nuvens escuras e pesadas pairavam sobre a cidadezinha de Berestecko. Era um dia chuvoso, frio, de céu cinzento, um dos panoramas mais desoladores do mundo. Berestecko era uma pequena e suja cidade em ruínas. Para maior constrangimento, imaginem uma administração russa que suga até o último vintém dos habitantes da cidade. Da antiga beleza, agora só se vislumbravam, ao alto, contra o céu nublado, esgueirando-se, majestosos no passado, os muros da antiga fortaleza e do castelo centenário, antigamente, residência do nobre coronel dos hussardos, Boguslaw Wasilewski. Kleofas, neto de Boguslaw, lutou em Pulaski como Confederado de Bar em 1775. Em represália pelo seu envolvimento na insurreição contra a Rússia, Catarina II confiscou-lhe todos os bens. A cidade de Berestecko foi des99 truída por ordem da czarina. Muros só continuaram ali porque a sólida construção dos tempos remotos os mantinha em pé. O esqueleto de uma torre de catedral antiga e as paredes queimadas das igrejas se destacam como fantasmas agonizantes no horizonte. Também era fato notório que nos anos de 1825, quando a cidade de Luck era um centro soberbo, capital de um principado, com muitas terras, sede do judiciário, do bispado, cheia de vida e de alegria, o czar Nicolau 1, ao passar pela capital, disse: - “Não suporto esta cidade”. Durante os anos seguintes, sem explicação nem causa aparente, irromperam grandes incêndios que devastaram tudo. Ninguém foi culpado pelo desastre. Os restos que sobraram dos incêndios, as igrejas e os mosteiros em ruínas, foram reformados pelos invasores e serviam de depósitos e quartéis para soldados russos; outros foram adaptados para prisões, onde apodreciam os revoltosos poloneses. Pequenas igrejas foram vendidas para judeus, que instalaram ali as suas lojas, e o resto ruiu com a chuva e o vento. Não se encontrava rua em que não houvesse montanhas de caliça, tijolos quebrados, chaminés enegrecidas, montes de carvão e lama. Parecia que a vida havia fugido destas paragens; enxotaram os bispos, os padres, a justiça. Só aos poucos velhos consentiram que ficassem nas ruínas, onde a morte os aguardava sob as carabinas moscovitas. A cidade parecia um desterro, as pessoas que não tinham aonde ir, esmolavam pelas ruas, e os cães famintos farejavam alguma carniça entre os entulhos. Na cidadezinha de Berestecko, próxima à Luck, entre as construções que parcialmente se salvaram da destruição, havia uma casa de madeira em ruínas; e é nesta casinha que se inicia o nosso drama. Numa rua um pouco mais lar100 ga, a casa de madeira semidestruída pelo fogo fora reconstruída num nível acima da rua barrenta. Na porta estava pregada uma tabuleta, com o desenho do brasão da Rússia, uma águia coroada de duas cabeças. Na primeira sala sentava-se um personagem nada interessante, Nikodem Formitch. Reconhecia-se nele um funcionário moscovita, não só pelo uniforme, mas também pela fisionomia. Rude, arrogante, testa baixa, nariz vermelho, lábios grossos, rosto escanhoado e barbicha em volta da boca. Escondida dentro do armário, uma garrafa de wodka; na mesa, um retrato do czar Nicolau I. O secretário do coronel Ilia Petrowich Rassim, olhava tristemente pela janela de vidros empoeirados. Cismava... A porta da repartição para a ante-sala estava aberta e ouvia-se ao fundo uma conversa em voz alta, interrompida por largas risadas. Comunicava-se o local com a residência privativa do coronel Rassim, que acumulava dois cargos de confiança - o de comissário da polícia civil e política de Berestecko e comandante da guarnição local do exército russo, aquartelado na cidade. Em frente à repartição, estava estacionada uma diligência, toda enlameada, coberta com couro curtido, puxada por um cavalo esquálido e tristonho. Sentado à boléia estava o cocheiro Wacek, que dormia esperando o passageiro. O secretário Nikodem Formitch bocejava e amaldiçoava a obrigação de ficar de plantão na sala vazia. Começava a escurecer... Nesse meio tempo, devagar e com cautela, abriu-se a porta e apareceu uma cabeça. Limpando os pés na soleira da porta, um judeu entrou pingando chuva da capa comprida. Era o dono da estalagem, Isaak Wrobleski.. Cumprimentou o secretário com uma reverência e começou a procurar um papel pelos bolsos do capote molhado. O 101 secretário adotou um semblante sombrio e a posição severa de um funcionário público, com grande autoridade. - O que queres? – perguntou com rispidez. - Peço ao ilustre senhor...um passaporte, um viajante está de passagem... está se apresentando. O secretário pegou o papel, enrugando a testa, olhou as mãos do judeu, que colocou discretamente na mesa 50 kopekes. Lia o passaporte com desdém, denotando assim sua superioridade. As moedas, as quais já guardara no bolso, não surtiram o efeito desejado. Uma vez, mais outra, revirou o papel, olhou, procurou... e meneando a cabeça: - O que é isso? – berrou, colocando o papel em cima da mesa. Que maneiras são essas, hein? Viajante e ainda estrangeiro, de longe, diabo sabe de onde, pessoa suspeita, manda um papel para ser assinado e não aparece em pessoa? Você não conhece as instruções hein, Isaak? – Eu mesmo devo ir até lá e verificar se o papel não é falso? E olhar nos olhos do personagem distinto? Você não sabe que tempos são esses, hein? – resmungava o secretário Formitch. Que temos ordens de fiscalizar com rigor todos os viajantes e principalmente os estrangeiros? - Mas, o que é isso? Então vocês estão brincando comigo e com o comissário, hein? Estão querendo me comprometer, hein? Trinta kopekes custa o selo, e é só isso que você me traz?! O viajante que se dê ao trabalho de vir pessoalmente ao comissariado. Isaak olhou os pés enlameados. - Ilustre secretário - disse - o homem está doente. - E por que viaja se está enfermo? - Ele está com terrível dor de dentes... - Pois que sinta a dor que quiser. Ele deve estar aqui em pessoa... hein! Que eu possa olhá-lo nos olhos. Assim é a ordem, eu não posso dar o visto sem vê-lo. Assim são os 102 tempos e as ordens. Diabo, sabe de que nacionalidade é ele; o passaporte é ilegível. - De que nação? – vociferava o secretário, colérico. - Tem que ter nação? – perguntou o judeu – se ele é relojoeiro. - Para mim tanto faz se ele é relojoeiro, ou joalheiro, ou outra coisa qualquer; para mim é o suficiente que ele, em consideração à autoridade, apresente-se à repartição. Isaak encolheu os ombros e procurou mais um rublo nos bolsos, colocou sobre a mesa, e afastou-se cauteloso até a porta. Em silêncio o secretário pegou a moeda, guardou no bolso, mas em seguida bateu com o punho na mesa. - Mesmo se me desses mais rublos, ouviu? Disto não vai resultar nada, o homem é estrangeiro, de outro país... relojoeiro... mas você sabe se é verdadeiro relojoeiro ou se finge apenas? Você garante? Você conhece as mais rigorosas ordens policiais, hein, Isaac? Oh, Isaak! Não brinque com a autoridade! Não esgote minha paciência, é minha última palavra! Vá embora e mande-me esta pessoa. - Mas ele não fala outra língua – respondeu Isaak – só em alemão, talvez saiba inglês, italiano ou francês. -Vou pô-lo à prova... der, die, das - gritou o secretário – traga-o aqui, doutra maneira não dá.Você conhece os tempos atuais! - Que eu devo saber? - perguntou Isaak, agitando os ombros. Nikodem Formitch levantou o braço, ameaçando: - Você conhece a responsabilidade? O que é deixar passar um estrangeiro? De outro país? Sem conferir a assinatura?. Bateu o punho na mesa. - Vá agora mesmo atrás dele. O judeu coçou a cabeça, não ousou falar mais nada. E meneando a cabeça, implorava com os olhos. 103 - Eu conheço as coisas, sei quais são os fatos em questão - disse Isaak. - Estrangeiro, suponho que é pessoa responsável, sabe bem que no mundo nada temos de graça, deu um rublo, dará dois pelo passaporte, e o enviado traz míseros 50 kopekes! – reclamava furioso o secretário. Isaak batia no peito, lamentoso. - Que se apresente em pessoa – concluiu o secretário – vá agora mesmo, imediatamente... ande... fora... Isaac deu uns passos, parou um instante indeciso, caminhou até a porta e desapareceu na neblina da noite. O secretário sorriu para si. Pegou o passaporte nas mãos e começou a examinar de todos os lados, balançava a cabeça. Em seguida, abotoou o paletó do uniforme, pegou um livro grosso, começou a folheá-lo, tudo para dar a impressão que estava muito atarefado. Colocou a caneta atrás da orelha e esperou. Estava atento para ver se vinha alguém, mas, inutilmente. Ouvia-se apenas a chuva caindo do telhado, o vento soprando nas árvores. De repente, ouviram-se passos no saguão, a porta rangeu e no portal apareceu um homem de estatura elevada, tirando a capa de chuva. Nikodem Formitch examinava o livro, a testa contraída, levantou a cabeça devagar, o olhar interrogativo. O viajante, com o rosto amarrado por um lenço, inclinou a cabeça levemente e começou a balbuciar palavras em alemão. Isaak olhava para ele e para o secretário, que conferia a assinatura. O rosto do estrangeiro, semi-oculto pelo pano, não era reconhecível, só os olhos negros, jovens, ardentes, fuzilavam com o olhar. Vestia-se decentemente e tinha algo em si que intimidava o secretário. Mas Formitch não era funcionário da polícia por acaso. Apesar de a assinatura conferir com o passaporte, era 104 preciso dificultar as coisas e tentar, pelo menos, arrancar alguma coisa do desconhecido. O secretário não falou nada, levantou da mesa, examinou o passaporte minuciosamente, e com a caneta entre os dentes, dirigiu-se para a porta que dava acesso ao interior da casa. O viajante olhava para tudo com visível indiferença. Isaak sugeriu, em alemão: - É preciso dar mais algum dinheiro, senão vai nos atrapalhar, dificultar as coisas... aborrecer... O desconhecido assentiu com a cabeça. Nikodem Formitch entrou na sala em frente, pela porta aberta, com o passaporte na mão. Coronel Rassim, comissário de polícia de Berestecko, e o promotor da comarca de Luck, coronel Wiktor Yuwanowitch Szulubin, seu amigo, jogavam cartas para amenizar as horas do ócio. Uma garrafa de rum e duas xícaras de chá fumegante faziam-lhes companhia. Ao lado, um prato com biscoitinhos. Vendo o funcionário entrar, Rassim, que não suportava ser interrompido, levantou a cabeça irritado: - O que você quer? Como se atreve? O secretário, como resposta, apresentou o documento. - Pois assine e vá para o inferno - vociferou o coronel. - Assinar, pois sim – retrucou o funcionário – mas é um estrangeiro. - O quê? Quem? O que ele é? - Relojoeiro. - Vá para o inferno com ele! - Mas e se for uma pessoa suspeita? - Isso é teu problema, interrogue-o. - Fala só alemão. 105 - Deixa-o ir, se é alemão não pode ser suspeito, de onde é? - É cidadão prussiano... - Como você ousa, seu pateta, deter um cidadão prussiano? Hein? Você sabe! ô cabeça de orelhas compridas, que o rei da Prússia é parente do nosso czar Nicolau I, amantíssimo imperador, que Deus o guarde, e nós estamos em paz com os prussianos. - Mas eu não entendo nada de política, desculpe-me, coronel Rassim. - Então suma da minha frente enquanto estás inteiro, suma! O funcionário Formitch, meneando a cabeça, saiu devagar. - Com mil diabos – pensou – cidadão prussiano, de fato isso significa alguma coisa, e se os prussianos se ofenderem? Decidido a assinar o passaporte, caminhou de volta à sua sala, mas a vontade de aproveitar a oportunidade dava a ele um ar sombrio, e com esse semblante contrito surgiu na porta. Foi direto à mesa. Seu olhar atento pousou em cima de dois rublos. Esse argumento surtiu efeito de imediato. O secretário colocou o visto policial e assinou o passaporte. Tudo isso levou um pouco de tempo, porque um bom funcionário público não deve apressar-se para agradar um estrangeiro, mesmo que este seja um súdito do rei da Prússia. Finalmente o passaporte foi carimbado, e o secretário entregou-o ao personagem de rosto amarrado por um lenço, que esperava pacientemente. Escurecia... O viajante já estava saindo, quando no aposento anexo ouviram-se vozes. 106 Rassim despedia-se do amigo promotor de justiça, Szulubin, e a figura imponente do comandante da região apareceu na porta aberta. Szulubin atravessou rápido a sala da delegacia, mas teve tempo de olhar para o homem de sobretudo, o tal súdito prussiano, e, como por acaso, seus olhos se encontraram. O viajante não demonstrou nenhuma reação, no entanto, o promotor parou por um instante, parecia que, intrigado, queria voltar... mas isso só durou por um piscar de olhos; lançou o olhar mais uma vez sobre o homem parado e foi embora. Mas no saguão, como se refletisse, deteve-se por um pouco, soltou uma baforada de fumaça do cigarro que segurava nos lábios, e abanando com a mão, chamou o cocheiro sonolento: - Vamos! Podawaj! Wacek Koncewicz, desperto, puxou as rédeas, e o cavalo, assustado, arrancou com violência, jogando barro com as patas. O fiacre encostou e o promotor atirou-se para dentro; saíram em disparada. Instantes depois, o viajante saiu da repartição policial. Despediu-se do judeu e sumiu na penumbra da noite, atolando os pés nas ruas encharcadas. *** Eram 10 horas, a noite estava escura, chuvosa, a neblina cobria a cidadezinha adormecida. O soldado da reserva Mustai Petryczko, funcionário dos correios, que fora buscar a correspondência, chegou já bastante atrasado, a mochila de couro cheia de papéis; entrou sorrateiro na chancelaria. Nikodem Formitch esperava impaciente pelo infeliz correio que tardava. Com o samowar preparado para o chá, 107 a esposa carinhosa esperava por ele na companhia do simpático tenente Stowajko. A casinha acolhedora e o descanso pelo qual ansiava em vão. O coronel Rassim não era dedicado ao trabalho, mas com seus subordinados era exigente. Formitch, vendo o funcionário dos correios Mustai chegar com a correspondência, deixou de lado o orgulho e correu ajudá-lo a desempacotar os papéis. - Por que atrasou tanto? Seu imprestável! - Eu atrasei? Vossa Senhoria! Eu não me atrasei, mas o carro do correio sim, atolou perto de Gorochow, trouxeram só os papéis do governo, e a cavalo; o resto ficou no barro. - Entre logo! Em instantes Nikodem, prático no trabalho, abriu os pacotes, separou as cartas, abriu os envelopes e classificou os papéis. Três cartas vinham lacradas, com peninhas, indicando correspondência expressa, exigiam rapidez na entrega e, com uma observação “sigilosa” e “muito importante”, cha- maram a atenção do já apavorado secretário Nikodem. Dificilmente e muito raro chegavam tais papéis à polícia da cidade; agora chegaram de repente três cartas secretas e urgentíssimas. Não soube por que, mas as suas mãos tremeram. - Fique perto da porta e cuide, eu tenho que falar com o coronel Rassim – falou, e, pegando as três cartas sigilosas, com ar contrito, entrou no aposento onde o chefe, deitado no sofá de roupão de seda, fumando cigarro perfumado, distraía-se dizendo galanteios à governanta de seus filhos. Se já para ele não era agradável a intromissão na sua privacidade, enquanto jogava cartas com um amigo e ho- 108 mem da lei, imagine agora! Aquele secretário detestável vinha agredi-lo no seu descanso merecido. Enrugou a testa de raiva, mas o inabalável secretário alcançou-lhe as três cartas secretas e uma vela. Fazia um trabalho que estava além de sua obrigação, mas teria alguma compensação, postar-se-ia num ângulo donde pudesse ler algo dos documentos secretos. O coronel Rassim não disse nada, abriu o primeiro envelope, olhou por um instante e, balançando a cabeça, colocou a carta no sofá ao lado. Abriu outra. As sobrancelhas contraíram-se, a mão tremeu! Meneou violentamente os ombros e, perturbado, colocou-a ao lado da primeira. Mas o terceiro papel, o terceiro, o que ficara por último, deixou-o apavorado. Levantou-se rápido do sofá, olhou aparvalhado pelo recinto, pôs as mãos na cabeça e como louco saiu correndo para o gabinete da chefatura. O secretário Formitch, pálido e trêmulo, mal conseguiu acompanhá-lo. Ilia Petrowitch Rassim, arrancado do seio da família, entrou no gabinete sem saber o que fazer, por onde começar. Bateu a porta atrás de si e segurou a cabeça, desorientado. - Ouça. Arrume imediatamente um pelotão de soldados, com armas, entendeu? – ordenou ao reservista Mustai - diga ao capitão Wassili Gregorowitch que, se dentro de cinco minutos não estiver aqui, faço-o responsável pelos acontecimentos, entendeu? Seis soldados com armas. - Ouvi – respondeu Mustai, também apavorado dirigindo-se à saída. - Mustai Petryczko – gritou, jogando os papéis em cima da mesa da chefatura. – Desgraça! Perdição! Corra, fale com Zenko, meu ajudante de ordens, que me traga o uniforme e a espada. Mande selar os cavalos. Estou dizendo, você, eu, todos perante tribunal militar! Infeliz hora, 109 traga-me a garrafa com wodka. Diga a senhora Weruska, minha esposa, que não apareça e não me perturbe com pedidos..O secretário, parado, ouvia, e na dramaticidade do superior, lamentava a desgraça, da qual não entendia ainda a profundidade. - Estou perdendo a cabeça - gritou o coronel, desesperado. Nikodem Formitch... sim... não... estou indo me vestir. Você leia a carta secreta. Fale, ajude... o que fazer, se não também você, a esposa e todos vão para o inferno. Rassim saiu. Formitch jogou-se com ganância sobre as cartas secretas e, pelo que parecia, muito importantes. A primeira delas informava ao coronel que, em vista da ramificação da conspiração nas províncias do oeste, era preciso dar muita atenção aos passageiros viajantes, seus passaportes, bilhetes postais e seus itinerários. Já ao ler a primeira carta começou a menear a cabeça, não podendo admitir e nem aceitar como havia gente no mundo tão audaciosa, tão indigna, que tem a ousadia de sublevar-se contra o governo. A segunda carta era pior ainda. Informava ao chefe da polícia que, pela província e especialmente pela cidadezinha de Berestecko, seguia a rota de fuga, pela qual provavelmente os fugitivos de Kiew, criminosos rebeldes e fugitivos da justiça se esgueiravam. Mandava destacar patrulhas nas encruzilhadas, barreiras, não deixar passar ninguém sem documentos autorizados; principalmente vistoriar e investigar as pessoas que se escondiam atrás de sobrenomes e passaportes estrangeiros. Gotas de suor frio afloraram na testa do secretário Formitch. - Para esta gente não há nada que seja sagrado! – gritou - Passaporte! Indignos! 110 Na terceira carta, em cujo envelope constava, “muito secreto”, havia o retrato narrado do principal “revoltoso”, que palavra por palavra coincidia com a descrição do relojoeiro, que fora liberado por ele apenas alguns minutos antes. Acrescentavam que podia ele ter passaporte alemão e mesmo prussiano. O secretário torcia as mãos. - Mas sim! – gritou – era ele! Era ele, eu tinha faro bom, e o comandante politizava. O que eu tenho com a política? Era preciso ter-lhe colocado já as algemas e recolhêlo para a torre na prisão, era ele... e agora.... procure o vento nos campos... vão saber que nós o deixamos passar, que eu coloquei o visto no passaporte, pegam ele e vão ver a minha assinatura, cairei em desgraça, desgraça! Desgraça! Formitch, em desespero, cobriu os olhos. Instintivamente correu para o canto, atrás da mesa, pegou a garrafa de wodka, tirou a rolha e bebeu grandes goles, pois nesse momento de aflição era a única coisa que o traria de volta à consciência. - Oh, Deus, tenha misericórdia de mim – orava, volvendo o olhar para o canto, onde, em frente de um quadro de Cristo, uma luzinha bruxuleava. Wodka e oração voltaram-lhe a esperança. - Mas não é possível que ele viaje nesta noite escura, para onde iría ? Com dor de dentes? Bá! – Ele está com dor de dentes como eu, é só fingimento. Deus misericordioso, ajude-me! Eu devo pegá-lo, do passaporte e visto, rastro não pode ficar. Já se dirigia novamente para a garrafa quando o coronel, que se vestiu às pressas, confortou-se com goles de conhaque, entrou afivelando a espada. - Os soldados ainda não vieram, e já passaram dez minutos. 111 - Nós pegaremos esse subversivo, ele deve estar na cidade. A noite está escura como o inferno e a chuva cai sem parar. Ele não viajou! – disse Formitch. - Idiota! Esta noite é propícia para fuga – esbravejou Rassim. O secretário arrancava os cabelos... Bateram na porta do saguão; na entrada, apareceu o capitão Wassili Gregorowitch. Atrás dele, as carabinas dos soldados. - O que há, meu coronel? – perguntou, rindo-se, na porta, o jovem militar. – Por que, apesar da chuva e barro nos incomodas? Não é hora de Vossa Excelência dormir? Mas vendo a face pálida, os lábios trêmulos do coronel, Gregorowitch calou-se e admitiu que o problema era sério. -Traga-me rápido um cavalo selado!–gritou Rassim. - O que aconteceu, o que se passa? - Nada, é questão do governo. Uma prisão muito importante. Ação política. Os soldados vão comigo. Cerquem a casa que eu apontar e não deixem ninguém sair. Se quiser fugir, pegar, mesmo, se for preciso, matar! O cavalo estava em frente da varanda, tão curioso como o cavaleiro que o trouxe – ambos bocejavam. O secretário arregaçou a calça, recomendou silêncio. Devia guiar os soldados com a lanterna coberta.Tudo o que era polícia local movimentava-se para a grande incursão. A chuva caia, impiedosa. Ao contrário do movimento que havia em frente do comissariado, a cidadezinha apresentava-se calma e sonolenta. Aqui e acolá piscava uma luzinha de lamparina a óleo, refletindo a luz tênue nas poças de água e barro. Os portões das habitações estavam fechados. O silêncio profundo era só interrompido pelo coaxar dos sapos, da chuva e da água pingando dos telhados. Na 112 rua não se via viva alma. Os mercados e as lojas estavam fechados havia muitas horas. Só de algumas tabernas, pelas frestas das portas e janelas, via-se alguma luz. O comissário, não levando em conta o perigo, pois nas ruas de noite, quem transitasse corria o risco de quebrar o pescoço, por entre os buracos e entulhos trazidos pela enxurrada, galopava rápido em direção à hospedaria de Isaak Wrobleski Era uma pousada das mais confortáveis da cidadezinha. Antigamente era a famosa “Casa dos Vinhos”, hoje, infelizmente, não se pode vangloriar com os puros “Tokay” antigos, nem com os “verdes puros”... vendia-se ainda o “Madeira” e o “Porter”, só não se tinha certeza se eram verdadeiros ou falsificados. A casa estava envolta na escuridão, as janelas fechadas, os portões com os trincos travados. Em silêncio, cercaram-na. Colocaram soldados em todas as saídas, em baixo das janelas, em todo o redor. O comissário, segurando o cabo da espada, puxou com força o portãozinho, certo de que estava fechado. A força empregada levou-o à queda sobre a soleira, pois a cancela abriu-se com facilidade e o coronel caiu no interior escuro batendo a cabeça na viga. Gemia e gritava com voz autoritária no meio da total escuridão: - Luz, acendam a luz! Perante esta voz conhecida, movimentaram-se dentro da casa os seus moradores, judeus e judias. Quatro portas foram escancaradas juntas e quatro raios de luz iluminaram o vestíbulo escuro e totalmente vazio. O coronel, movido pelo medo da incerteza, temeroso pelo que o esperava, jogou-se em cima do primeiro judeu que estava a sua frente, pegou-o pela garganta, gritou com voz rouca pelo ódio: - Onde está o viajante? Fale... onde está o viajante? 113 Do interior da casa vieram correndo os hóspedes, cercaram o delegado. O proprietário, surpreso, sério, não sabendo o que acontecia, mas vendo o coronel furioso, inclinou-se e perguntou: - Quem Vossa Senhoria procura? Posso ajudar? - Revoltosos! Subversivos! Desordeiros... eu vos ensino, onde está o viajante? Fale logo! - Que viajante? – perguntou o judeu. De repente, o secretário, que seguiu atrás do coronel, viu o Isaak e pulou em cima dele. - Ah! Agora vocês não sabem qual viajante? Gafanhotos infames! Qual viajante? Aquele que você trouxe ao comissariado de polícia. - Ah, sim! Peço a Vossa Excelência, coronel, entre para a sala - disse o judeu. - Onde está o viajante? – gritavam o coronel e o secretário. - Ah! Peço desculpas a Vossa Senhoria, alguma coisa nós devemos, o viajante fez a ficha na hospedaria e nós o levamos para que se apresentasse na polícia, o senhor secretário assinou o passaporte do homem. - Levem ele preso! Para cárcere! – gritou o coronel, apontando Isaak. - Mas eu devo saber onde ele está? Assim que os senhores assinaram e deram visto no passaporte ele foi embora procurar o seu caminho. Faz mais ou menos três horas, e deve estar bem longe daqui. Rassim pôs as mãos na cabeça. - Estás mentindo! - gritou. O velho Wrobleski, ofendido, mexeu com os ombros e falou devagar: - Então os senhores podem procurá-lo! Três soldados com carabina apareceram na entrada. O oficial, secretário e dois policiais foram revistar a casa. 114 O coronel, como sonâmbulo, entrou para a sala, sentou. Alcançaram-lhe uma garrafa de vinho, começou a beber e xingar, bebia e amaldiçoava todo mundo. Do suspeito viajante não havia nem sombra. Após demorada e trabalhosa revista em toda a casa, como também na adega, donde os soldados surrupiaram algumas garrafas de bebida, e após o interrogatório dos funcionários, redigiu-se um relatório da investigação para a polícia política, que foi encaminhado para São Petersburgo. Deduziu-se do depoimento de Isaak, da jovem Marfa, que serviu peixe assado ao viajante, e do neto do proprietário, que o convidou e insistiu inutilmente e, por diversas vezes, para uma garrafa de vinho, que o homem suspeito chegou de manhã, quase não se alimentou, não bebeu nada, e que era difícil comunicar-se com ele, pois só falava em alemão; que trazia com ele diversos relógios muito bonitos; que estava completamente tranqüilo durante todo o tempo que aqui permaneceu, apenas estava visivelmente com pressa de ir embora. Donde vinha e para onde ia? Ficou uma pergunta sem resposta. O secretário que deu o visto no passaporte não olhou detalhadamente nas assinaturas e datas anteriores. Em qualquer cidadezinha da região, pelas pegadas e direção que seguiu, podia-se descobrir de qual lado do mundo ele veio, e para que direção ele foi. Mas aqui, as ruínas alagadas da cidade permitiam só um caminho; pela mesma estrada que se entrava, por esta mesma via se saía, não havia alternativas. A polícia moscovita, assim como outros dirigentes russos, não costumava estender-se em detalhes para esclarecimento dos fatos, reinava a violência em vez de inteligência. Na Inglaterra, os detetives precisam avaliar bem antes de interpelar um cidadão, muitas vezes um inocente. 115 Aqui, ao se procurar um suspeito, é permitido prender provisoriamente dezenas, o que é mais proveitoso, porque cada um tem de pagar uma taxa para liberação. Mas, desta vez, o chefe de polícia Rassim aplicou todo o poder da sua mente. Mandou que lhe dessem uma vela, levassem-no ao quarto que o viajante ocupou antes. Contava com a sorte. Poderia encontrar algo, um indício. O aposento que o misterioso e suspeito indivíduo ocupou, por sorte, após a sua partida não fora varrido ainda. O coronel, levando consigo o Formitch, entrou no quarto, aguçando todos os sentidos. Uma só janela, uma mesinha, cama forrada com palha, que ainda conservava a depressão do corpo que nele repousou, cadeira colocada no centro do aposento - fato que o chefe da polícia notou à primeira vista. O secretário suspirava, nublavam-se-lhe os olhos, não via nada; nos ouvidos ressoavam-lhe as palavras – “tribunal”, “tribunal”. Sabia bem que a culpa toda lhe seria atribuída. Mas, por Deus! A verdade é que ele chamou a atenção do coronel para o fato de que o viajante era estrangeiro, forasteiro, de outro país. O chefe Rassim caminhava segurando a vela. De repente, jogou-se ao chão, olhando por baixo da cama. Atrás dela encontravam-se pedacinhos de papel rasgados. Formitch adivinhou o que isso significava, ajoelhou-se e juntou-os minuciosamente. Os papéis estavam rasgados e amassados, mas dava para perceber algumas frases truncadas escritas em polonês. Rassim bateu na testa. -Vá chamar o Isaak – gritou. O secretário arrastou pelo braço o judeu assustado. - Imediatamente, responda a verdade, a verdade! Porque vais morrer. Este quarto foi varrido antes de o viajante ocupá-lo? Quem ocupou-o antes? 116 - Antes dele? Ah, sim! Ocupou-o o senhor Stocki, e se foi varrido, é claro que foi varrido. - E embaixo da cama? - Sim! Sim! Por toda parte. Também não tinha feno em cima da cama... é isso... - Mas é isso – disse, juntando os pedacinhos de papel rasgados.- Alemão... mas os papéis são escritos em polonês. O secretário apertava as mãos tragicamente. - Enforcar todos esses judeus! Todos para a Sibéria!. Estão juntos na conspiração com os poloneses rebeldes, é isso! – gritava Rassim. - E como pode ser que não saibam para onde ele foi? Pois, não falou? Perguntou? Procurou cavalos? - Ele se dirigia, pelo menos falou isso, que tinha que ir a Lublin – exclamou Isaak tremendo de medo. - Ah! Agora você já sabe! - trovejou o coronel. Para a prisão com ele! Embaixo do chicote ele falará tudo. Isaak começou a chorar. O comissário acenou aos soldados para que o levassem. Juntou e levou todos os papelinhos rasgados. - Cavalos e diligência! Para a estrada de Lublin gritou Rassim. Rápido! vamos! O secretário já ia para a porta de saída. Parou por um instante. Raciocinou e voltando-se de repente chamou: - Senhor coronel - se ele é tão esperto, falou de caso pensado que ia para Lublin, mas diabo sabe para onde ele foi. Precisamos perseguí-lo por todos os caminhos e recantos. O coronel Rassim, preocupado, taciturno, confirmou com a cabeça, sem olhar para a frente. - Ao promotor! Não tem o que pensar! Precisamos usar os mais violentos meios. 117 Ainda não acabara de falar quando se ouviu o rumor de passos no alpendre e a figura alta do coronel Viktor Yuwanowitch Szulubin, apareceu inesperadamente na porta. Os dois amigos miraram-se nos olhos e se entenderam pelo jeito do olhar. O promotor Szulubin, com um sinal dado com a mão indicando a porta de saída, mandou todos embora. - Sabes o que aconteceu? – disse Rassim, quando ficaram a sós. - Chiu! Chiu! Sem barulho! Para que faz tanta confusão? - Mas, você sabe? - Sei com certeza mais do que você! Recebestes cartas secretas? O promotor meneou os ombros e Rassim confirmou com a cabeça. - Pois, veja, todo o distrito está sob a minha responsabilidade, amigo Szulubin, fatos estranhos estão acontecendo, precisamos dar-nos as mãos. Deram-se as mãos em silêncio. - Você já fez uma besteira. Rassim suspirou pesadamente. - Diabos! Eu não sabia que pássaro era esse! - Eu o vi quando saía da sua repartição, e posso afirmar agora que pássaro era esse, pois o conheço muito bem, há muito tempo. - Você o conhece? E como? Por quê? - Chiu! Quem poderia pensar que essa besta que foi condenada para o exílio na Sibéria por causa de política, se atrevesse a aparecer aqui. O comissário, ouvindo essas palavras, ficou ainda mais desesperado. - Silêncio... Chiu!... Ilia Petrowitch, silêncio... ninguém deve saber sobre o caso - murmurou o promotor. 118 Oh, sim! Eu o conheço bem. Essa besta já fazia parte da conspiração em 1827, foi preso, condenado para os trabalhos forçados na Sibéria, fugiu da prisão de Lublin e safouse para o estrangeiro. Quem podia supor que após tanto tempo ele arriscaria a cabeça vindo aqui de novo! - Você o conhecia? - Oh! Oh! Perfeitamente! Envelheceu, tornou-se mais másculo, mas eu o reconheci, assim que me olhou. Parei, quis voltar e avisar você, mas fiquei indeciso... podia estar enganado, e se fez barulho por nada. Até aí não tinham chegado os documentos secretos, eu nada sabia da nova conspiração... pensei, o diabo parece-se com diabo. O promotor suspirou. Tenho com ele uma diferença para acertar! Não vejo a hora de tê-lo nas minhas mãos. E tenho esperança de que logo o terei, porque sei onde encontrá-lo. Rassim correu para abraçá-lo. - Viktor Yuwanowitch - clamou – eu sou teu amigo para a vida e para a morte... pegue o cavalo árabe, baio, preto... mas livre-me, e não condene à orfandade os meus filhos. - Fique tranqüilo – respondeu o promotor – amanhã mande-me o cavalo árabe negro e não fale nada a ninguém. Precisa dizer agora que foi um engano, que está se mostrando que é uma pessoa sem suspeita, e o resto eu resolvo. Quando chegar a diligência, eu imediatamente viajo para a comarca. E você... cuide-se bem na cidade. Falando assim, o promotor que sabia bem dissimular e tinha absoluto controle sobre si, começou a rir alto, caminhando, para que ouvissem a sua voz. - Engano - falou na saída – um infeliz engano, bobagem. O relojoeiro é mesmo alemão; relojoeiro! Dispensem os soldados, não tem por que fazer tanta balbúrdia! - Soltem o judeu Isaak! 119 O secretário admirou-se da reviravolta do caso, mas não comentou nada. Rassim suspirou profundamente, e todos, devagar, se dirigiram para suas casas. Mas o promotor Szulubin, não perdendo nem um minuto, com dois gendarmes, pulou no coche do correio e de noite mesmo seguiu viagem. Para onde? Ninguém sabia. Aí começava a sua vingança... *** Existem nas antigas províncias polonesas, principalmente nas que ficaram sob o jugo moscovita, aldeias que, em vista dos inúmeros parcelamentos, na reforma de 1864, implantada pelo czar Alexandre II, ficaram obrigadas a pagar as dívidas com terras e servos. Foram tantas as divisões, que numa porção encontravam-se de cinco a seis propriedades distintas pertencentes à pequena nobreza rural. Alguns parceleiros, por pequenas dívidas, receberam vários hectares de terra e um só servo, com o qual eram obrigados a trabalhar em parceria. Apenas a algumas werstas da cidade de Luck, junto à cidadezinha de Berestecko, à beira do rio Styr, encontrase exatamente uma dessas aldeias, contando oito donos, na maior parte tão pobres como seus camponeses. Construídas às pressas, essas vivendas sem acabamento, entre as casinhas cobertas de palha dos aldeões, abrigam os infelizes mártires que morrem de fome nas suas herdades. Para a polícia distrital russa daquele tempo, as propriedades assim divididas eram causas constantes de preocupação, mas também de renda, ilegal, pela extorsão pura e simples. Aquela podia decidir sem nenhum escrúpulo quando e o que cobrar. Como não faltavam casos de discór120 dia, não se passava um dia sequer sem que um serventuário da justiça, um policial, um assessor ou escriturário ali não aparecesse para cobrar ou coagir alguém. Os impostos raramente eram pagos na repartição. As taxas para alistamento militar, contribuições as mais diversas, eram arrecadadas por cobradores, que caíam como granizo em cima dos indefesos aldeões, e como estes eram pobres, pagavam com o que possuíam - trigo e aveia colhidos recentemente, galinhas ou porcos, ou qualquer outra coisa - para se livrarem das constantes investidas dos cobradores. Notável figura depois dos moradores da aldeia, em Berestecko, era o arrendatário Berek Androwicz, que possuía o direito de explorar a melhor estalagem da vila, cujos lucros deveriam ser divididos com o governo local, mas o esperto homem, manipulava tudo e todos. Berek era um rico judeu, antigo morador da cidade, manhoso, velhaco, com grande visão para os negócios; era, ao mesmo tempo, comerciante e vendedor, capitalista e especulador. O mais pobre dos habitantes desta vila era o velho Franciszek Wasilewski, antigamente administrador de bens, bem-sucedido, da nobreza rural, possuía terras e servos. Era um cidadão relativamente rico. Alquebrado pela doença e pelas desgraças que se abateram sobre o seu lar, tornou-se um homem inválido. O governo russo confiscou-lhe os bens, acusando-o de traição, deixando-lhe apenas a pobre casinha onde morava. A filha Anielka morreu de desgosto, importunada pela concupiscência de um libertino oficial moscovita, de nome Wiktor Yuwanowitcz Szulubin. Anastazia, a esposa bem amada, morreu em seguida da prisão de seu filho caçula Andrzej, pois já tinha perdido o filho mais velho Henryk para os russos, que o mataram numa emboscada. 121 O velho Wasilewski tinha um só servo, que, aliás, estava melhor de situação que o dono. Desde há muitos anos, acometido pela doença, não saía da cama. Anna, sua sobrinha, já não tão jovem, dividia o seu destino, fome e preocupação. A vivenda do Wasilewski, na periferia da vila, foi reconstruída e reformada de uma residência antiga e hoje mais parecia uma mansarda do que moradia de nobres. Ficava em cima de uma colina, fechada por uma cerca de ripas, rodeada de árvores frutíferas e matagal, dos quais, ninguém cuidava. Paiol, estábulos e outras dependências caíam aos pedaços em volta da residência em abandono, que apresentava um quadro triste de decadência. A mansão antiga era composta do alpendre sem assoalho; à direita, uma oficina de marceneiro, em desordem; à esquerda, um quarto, salinha, cozinha e despensa, era tudo o que compunha a pobre moradia. Apesar da hora tardia e do tempo chuvoso, ainda havia luz na casa. O velho não podia dormir, sofria muito. O ambiente era pobre, despojado e silencioso, os móveis escassos. Na mesinha, uma vela acesa no óleo, colocada num castiçal, desviando a luz direta. Entre as cobertas aparecia a face pálida de um homem, orlada de barba grisalha e olhos fechados. Aos seus pés, numa cadeira dura, estava sentada Anna, sua sobrinha, uma mulher de meia-idade, alquebrada, magra, pensativa, mas de rosto sereno. Parecia já acostumada com a longa desgraça. Sobre os joelhos segurava um livro de orações. O velho doente cochilava. Anna rezava em silêncio. De repente, o doente deu um longo suspiro e abriu os olhos. - O que sentes, senhor? – perguntou Anna, aflita. 122 O enfermo passeou os olhos pelo quarto, em semiescuridão. -Ah!, não é nada, estava sonhando, minha querida, mas, estranho... estranho... agradeço a Deus por este sonho - murmurava Franciszek como sonâmbulo. Os dois suspiraram. - Olhe as horas, sobrinha, o tempo não passa... já é muito tarde? – perguntou. - São oito horas - respondeu Anna, olhando o relógio de prata, antigo, de bolso, que repousava em cima da mesinha no canto do quarto. - Ainda são só oito horas, e eu estava certo que já era meia-noite. Silenciaram. Na herdade um cão começou a ladrar furiosamente. O velho levantou a cabeça. Escutava atentamente. O latido do cão começou na entrada. O velho Briza, correu até o portão latindo sem parar. Um instante depois começou a choramingar como se festejasse alguém conhecido, depois silenciou, latiu alegremente, aproximando-se da casa, depois tudo ficou quieto novamente. Anna levantou devagar e foi até a entrada, curiosa. Decerto alguém chegara – e alguém conhecido, porque, se não o fosse, o cão não deixaria entrar. Mas, a esta hora? Quem seria? Pois, ninguém visitava a casa pobre, mesmo de dia. O doente não disse nada, mas olhava atento. Seu olhar brilhou com interesse e um fio de esperança. A entrada estava escura. Anna, caminhando sobre os tijolos, seus conhecidos, seguiu a trilha cheia de água da chuva. A porta que saía para o quintal estava entreaberta, uma luz bruxuleava no recinto contíguo. A velha Zyta cochilava em frente da roca de fiar, diante do fogão com fogo crepitando, mas não estava só. Despertou de repente, o rosto assustado, o copo caiu-lhe das 123 mãos. Parado em frente dela estava um homem desconhecido, envolto no capote do qual pingavam gotas de chuva; o cão lambia as mãos do estranho viajante. Anna, admirada, parou estupefata no alpendre, não só pelo viajante, mas o cão, que gania amistosamente, deixou-a surpresa; Briza era intolerável sempre com estranhos, ninguém à noite podia chegar perto da porta – o que significava esta amizade por um desconhecido? Completamente estranho; Anna, impressionada com a situação, olhava-o, sem contudo, reconhecê-lo. Parecialhe que o via pela primeira vez na vida. O visitante ficou de pé, mudo e atrapalhado. Um lampejo do fogo que ardia jogava luz no rosto amarrado por um lenço, nos olhos negros ardentes... - Desculpe, senhora - explicou, dando-lhe um sinal imperceptível – perdi-me, o meu condutor virou a carruagem, queria secar-me e aquecer um pouco. Ao ouvir o som da voz, Anna já abria a boca para gritar, quando outro sinal dado impediu esta exclamação de surpresa. Mas começou a tremer. Encostou-se na porta e por longos instantes não voltava a si, os olhos fixos no estranho, parados. Seguramente, não sabia o que fazer. Só depois, com voz trêmula, balbuciou: - Nós aqui... senhor... nós dois... eu e o velho doente... frio... o senhor espere um pouco... vou perguntar. Sente-se por um instante... eu vou... falando – gaguejava, queria ir, voltava, não sabia o que fazer, esfregava as mãos, – olhava o desconhecido, que se sentou no banco de madeira. Silenciou, abaixou a cabeça. Finalmente Anna saiu para o alpendre e ainda parou, pensando o que fazer. Após alguns minutos, abriu a porta do doente, cujo olhar alcançou-a na porta. Wasilewski, encostado no braço, na expectativa, ansioso, como se adivi- 124 nhasse algo, olhava-a como para uma santa. A mulher estava parada, muda. De repente gaguejou: - Desconhecido, viajante... perdeu-se... suplica.... hospitalidade... - Sei - gritou o velho com aflição. - O senhor sabe? – indagou , admirada. - Sei... sonhei... é ele... silêncio... que venha... oh, meu Deus... A emoção tomou conta da mulher, quase não podia andar, caminhava encostada na parede. O velho ergueu-se, esticou os braços. Arquejava e repetia para si: - Misericordioso sois, meu Deus! É ele... ainda os meus olhos poderão vê-lo... é ele... mas, devo alegrar-me? Mas, que loucura, condenado, fugitivo, meu Deus! Se o pegam, a forca o espera. Falando assim, cobriu os olhos, mas a porta rangeu. e ele rápido retirou as mãos da face e estendeu os braços em direção à porta. - Andrzej! Meu filho! – chamou, assim que viu a figura que parou na porta do quarto. Em silêncio, com passos rápidos, o desconhecido chegou perto da cama, ajoelhou-se sem falar nada. As mãos do ancião descansaram nos seus ombros e os lábios na testa. Começou a chorar, choravam ambos. A sobrinha, ao lado, mal continha o choro que a sufocava, mas a sua dedicação e o cuidado levou-a imediatamente à cozinha, temia que Zyta tivesse visto ou ouvido algo. Mandou reacender o fogo, queria cozinhar algo quente. Mas o quê? Na casa pobre não tinha com o que receber uma visita. Pôs um pouco de leite para aquecer. Tinha um pedacinho de pão amanhecido. Já mais tranqüila quanto à serva que, resmungando, rachava lenha, voltou ao quarto 125 do doente. O recém-chegado ainda estava ajoelhado aos pés da cama. Os dois choravam, dizendo palavras truncadas. - Andrzej! – dizia o ancião – Sente! Descubra o rosto para que eu te veja. Tua mãe – soluçou – morreu há tempos de tanto sofrer e chorar a perda da filha e sem saber do teu destino. Foi definhando e um dia não acordou mais. Lamentei profundamente a sua morte, eu a amava muito. Daquele dia em diante perdi o interesse pela vida, eu não tinha mais ninguém. - Não sofra tanto, meu pai - consolou Andrzej. A comoção embargava-lhe a voz, as lágrimas desciam pela sua face, incontroláveis. - Filho querido, não chore, tua mãe está em paz, eu logo estarei com ela. - Pai! – falou Andrzej - trouxe um presente para minha mãe, eu não sabia que ela havia morrido, é um lindo e precioso colar de ouro e âmbar amarelo, que ganhei de um artesão judeu; que farei com ele agora? - Andrzej, meu filho, escuta-me - disse o velho - vá ao sótão e procure uma caixa de papéis importantes, documentos, que está lá escondida, disfarçada com pedaços de tábua, coloque o colar junto com os papéis na caixa, feche-a bem. Depois vá ao pomar, cave um buraco fundo junto à raiz do carvalho centenário e enterre a caixa, bem protegida. Um dia você vai voltar... Andrzej voltou-se para a prima Anna, que estava parada, atônita, ouvindo-os. - Prima - pediu Andrzej - vá buscar uma enxada para mim, mas com cautela para que a velha Zyta de nada desconfie. Anna foi, e não demorou muito, entregou a ferramenta ao Andrzej. Ele, esgueirando-se por entre as árvores, em silêncio, chegou ao pé do frondoso carvalho, cavou fun- 126 do na terra, colocou a caixa, cobriu-a com tábuas com cuidado, recolocou a terra e jogou entulho em cima. Em seguida voltou para junto do doente. - Andrzej! É você? – chamou o pai – Venha aqui! É a última vez que meus olhos te contemplam... última. Deus todo poderoso, mas você arriscou muito para vir até aqui para me ver - gemia ele. - Não falemos em qualquer perigo - respondeu baixo o viajante - não falemos. Eu estou acostumado à luta, à miséria e à vida em si. Nada me acontecerá, meu pai, a pátria chamava, mandaram-me entrar no país, precisava, aproveitando a ocasião vim vê-lo, abraçá-lo, e ficar consigo alguns minutos. - Oh! Meu Deus! - gemeu o velho. Mas como você vai conseguir sair daqui? Sabes como estão alertas, aqui te conhecem, cada passo é perigo de morte. - Não tenho preocupação com a minha vida, também não temo. Aprendi no exílio a ludibriar os mais espertos, camuflar, fugir e desaparecer. - Mas aqui onde te conhecem? - Por isso mesmo! – sorriu o viajante. Mas falemos de você, pai! - De mim? O que posso te falar? Olhe, veja... estou vivendo os últimos dias, estou acamado... rezo... tenho o anjo da guarda nesta mulher - falou, indicando a Anna. Vivi na esperança das notícias tuas, senti que vivias, mas não tinha idéia do que realizavas. Senti que antes de morrer meus olhos te veriam, mesmo que os sentidos dissessem o contrário, mas vejo-te, o medo domina-me, estou gelando... - Pai! – disse Andrzej com tranqüila resignação. Não tema por mim, eu já ofereci a minha vida pela causa da pátria, a ela pertenço. Não retiro a minha oferenda, e prometi a mim mesmo que veria você a todo custo. 127 - Meu Andrzej, correto, sincero, meu filho, fale – disse o ancião. Como você se sente? - Pergunta isso a um proscrito, emigrante, andarilho, pode? Vivo, mas estou vivendo com o pensamento preso à pátria e trabalho para ela. Vivemos na miséria, andamos aos empurrões, mas agüentamos. Recebiam-nos com triunfo, aplausos, clamavam-nos, mas tudo isso acabou na triste realidade, veio a indiferença. Estamos entre estranhos, não temos irmãos! Eu aprendi o ofício de relojoeiro, vivo desta profissão. Mas, hoje, não devemos pensar nisso... hoje no país alguma coisa está fervendo... precisa de pessoas ousadas e engenhosas que pudessem entrar no país, driblando o inimigo passar com documentos secretos e notícias. Eu entrei. - Arriscando a vida - falou o pai. - Sei - respondeu Andrzej. Mas morrer pela santa causa, haverá algo mais nobre? - Sim! – falou o velho, erguendo a mão. - Nós, a família toda, pelo desígnio de Deus, fomos escolhidos para o sofrimento e sacrifício. O nosso antepassado Fiodor lutou contra os tártaros; o teu tataravô Boguslaw Wasilewski, era um nobre guerreiro, coronel dos hussardos. O bisavô Kleofas, envolveu-se na insurreição. Perseguido pelo governo russo, viveu o resto da vida proscrito, longe dos filhos e da esposa. O avô Kazimir trabalhou como administrador em grandes herdades de magnatas, como eu, administrava os bens do velho conde Zukowski. Acusaram-no de traição e confiscaram os poucos bens que possuía. Adoeci depois do falecimento da tua mãe, e quando você foi preso pelos moscovitas, o mundo desabou sobre mim, agora estou morrendo na miséria... enquanto você ... é um fugitivo... - Mas nenhum de nós desonrou-se - falou Andrzej Ser feliz não é obrigação da pessoa, é o destino dela. 128 - Fale-me de você! – reclamou o ancião. Fale... - Meu pai, eu já falei tudo sobre mim a você. O resto quem falará é a minha permanência neste solo. - Aonde você vai? O que pensa fazer? - Não sei, trago papéis importantes, tenho uma ordem a cumprir, parece que a rebelião foi descoberta, estão perseguindo os insurretos. A minha missão, portanto, é mais importante. Como me sairei desse encargo, só Deus é que sabe, confio na Sua proteção, e se o meu destino é perecer, não terei medo. Dirigi-me até aqui porque quis vê-lo sem falta, aconteça o que acontecer, para obter a sua benção para a vida, para o meu trabalho ou para a minha morte. Mas aqui, não poderei ficar por muito tempo. Não tive sorte. - O que aconteceu? - Por enquanto nada, mas tenho o pressentimento de que o perigo está me rondando. Assim que cheguei em Berestecko, mandaram que me apresentasse na polícia, não podia desobedecer para não trazer desconfiança, tinha que ir pessoalmente. A desgraça quis que ali encontrasse... - Quem? – perguntava, nervoso, o velho. - Szulubin... - Szulubin? Reconheceu-te? - Não sei. Olhou, tremeu, segurou o passo, ficou indeciso e foi embora. Mas, seja o que for, não estou seguro, nem aqui e nem nas proximidades. Mesmo que não tenha certeza, ele procurará por mim na tua casa, com polícia. - Se te reconhecesse - comentou o pai – não deixaria você ir embora. - Assim também pensei eu. Mas esse homem nos odeia, e se tiver dúvidas, mandará espiões, vai procurar e não deixará eu passar. - A ele devo que aqui estou prostrado neste leito respondeu o ancião. Por causa dele estou arruinado, não 129 tenho sossego por causa dele. Ele é impiedoso, se é assim, não fique aqui, vá embora. Mas para onde você vai? Andrzej pensava... - Não sei... preciso ir para o interior do país, esgueirar-me em espaços perigosos, ir rumo aos pântanos do Polesie Pinskie, tenho contatos recomendados, caminhos designados a seguir. Se conseguir sair dessa região, vou a Kowno. Lá vão me esconder! Oh! Meu pai! Não falemos de mim, mas de você. Neste instante, Anna trouxe da cozinha leite quente num caneco e um pedacinho de pão preto. Lágrimas afloraram aos seus olhos por ser obrigada a servir um repasto tão pobre a um visitante tão querido, mas na casa não havia mais nada, e mandar comprar a esta hora da noite no armazém só chamaria a atenção dos outros. - Meu querido Andrzej - disse ela, preocupada - nós não temos mais nada a não ser o leite e o pão preto, tome alguma coisa quente. Andrzej pegou a refeição simples e a tristeza cobriulhe o rosto. Entendeu a miséria do pai e o seu coração se condoeu. Quis entregar à prima o dinheiro que trouxe consigo, ganho com o seu trabalho, para ajudar o pai, mas não conseguia deixá-lo nem por um instante. O ancião não se contentava, olhava-o, pediu para que se aproximasse, segurou sua mão... e chorava um choro dolorido de desesperança. Já passava da meia-noite e a conversa não parava; ao amanhecer o Andrzej precisava, ainda com escuro, ir embora para longe. Teria que sair sem ser visto, com toda a cautela. - Como devo fazer? – pensava. De repente, ocorreulhe uma idéia. Chamou a prima e disse: - Vá buscar o padre Afanazij, diga-lhe para vir logo, o pai está morrendo. 130 Anna correu, balançando seu corpo pesado, escorregando na lama do caminho e, arfando, chegou à casa do padre. Padre Afanazij ainda estava acordado; assustou-se com as batidas na porta. - Quem é? - Sou eu, Anna, sobrinha do Wasilewski. Ele está morrendo, pede para o senhor levar-lhe a extrema-unção. Venha depressa! O padre não perdeu tempo, pegou os óleos santos, a bíblia e a comunhão. Acompanhou a mulher até a casa do agonizante. Teve uma grande surpresa ao deparar-se com Andrzej, que aguardava silencioso aos pés da cama do pai. - Você aqui? – perguntou aflito. - Por favor, não percamos tempo - pediu Andrzej. Devo partir imediatamente, pois sou perseguido pela polícia do coronel Szulubin. Ajude-me, pelo amor de Deus, e por esta criatura que está indo ao encontro Dele. Vê, meu pai está agonizando. O padre perguntou: - O que quer de mim?, peça que te ajudarei no que puder. Sobre o meu silêncio e discrição, pode estar seguro. Sou um servo de Deus. - Padre Afanazij, a minha vida está nas suas mãos, só o senhor pode me ajudar. Assim que o senhor terminar o ritual da confissão e der extrema-unção a meu pai, peço-lhe para que troquemos as nossas roupas. Eu vestirei a sua indumentária de padre e o senhor vestirá a minha roupa. A capa de chuva que trago disfarçará a troca. Eu sairei daqui mais seguro, sem despertar suspeitas dos servos e dos vizinhos que casualmente estiverem acordados. E o senhor voltará rápido para sua casa. Lá o senhor, com certeza tem outra roupa de padre para vestir. Assim procederam; mas não antes de o Andrzej entregar nas mãos do padre Afanazij uma boa quantia em mo131 edas de ouro para as obras de sua igreja. Andrzej puxou o capuz sobre os olhos, esgueirou-se pelas trilhas cheias de lama e pelos atalhos tomou o rumo da floresta próxima, sumiu nas brumas da noite... Dias depois, apareceu um menino de uns quinze anos de idade na porta da casa do padre Afanazij, trazia uma mochila nas costas. - O padre Afanazij está? – perguntou à criada que veio atender a porta. - Quem está perguntando por mim? – perguntou o padre, vindo do interior da sala. - Sou eu, Sascha, trago uma encomenda para entregar ao senhor. Sascha entregou a mochila ao padre, que em seguida abriu-a. Estava lá a roupa que havia emprestado a Andrzej. - Louvado seja Deus! - orou o padre, agradecendo. Ele está em segurança! *** Enquanto esses fatos aconteciam na residência pobre do Wasilewski, na próspera estalagem do judeu Berek Androvicz, muito antes da meia-noite, apagaram as luzes. A chuva torrencial, o vento que uivava. Não esperava mais hóspedes para aquela noite. Fecharam a estalagem e todos foram dormir cedo, mas o velho Berek estava preocupado com os negócios madeireiros; não conseguia dormir. No silêncio da noite calculava. De repente, o seu ouvido sensível captou um som, como se fosse o tilintar dos sininhos da carruagem do correio, anunciando nas estradas particulares a chegada de uma autoridade. Berek levantou a cabeça do travesseiro e escutou. Ouviu mais uma vez o sininho que parou de repente. O ve132 lho judeu convenceu-se de que o sininho estava nos seus ouvidos, quando bateram na porta. Não se ouvia mais os guizos, mas os cavalos relinchavam. Pulou da cama, chamou Icek, o recepcionista, para que fosse verificar quem era, e ele, como dono atencioso, arrumou-se e ficou esperando. Reacenderam o fogo. Dentro da lanterna foi colocada uma vela acesa, e instantes depois entrava dentro da sala um homem robusto, que olhou para os lados e chamou Berek. O dono não o reconheceu, mas viu os dedos sobre a boca e no colarinho um distintivo de oficial. Fez uma reverência profunda. - Entre na casa! – ordenou o recém-chegado. Feche a porta do estábulo, não desatrelem os cavalos, só joguem mais feno para eles! Só agora Berek, mais pela voz do que pela feição encoberta, reconheceu Szulubin, promotor de justiça de Luck. Tremeu dos pés à cabeça. Sabia que a viagem noturna de tão importante personagem não era de graça. Entraram no recinto. O coronel não tirou o boné nem o sobretudo. - Ouve, Berek. Nós somos antigos conhecidos, eu confio em você - falou devagar - colaborou algumas vezes com o governo, e o governo te pagou, verdade? - Bem, não tem o que reclamar - respondeu o velho todos devem servir ao seu governo, para nós, essa lei está escrita na Bíblia. - Poderás prestar a mim e ao governo relevante serviço, mas deves ficar em silêncio como túmulo. - Eu já traí alguma vez? – perguntou Berek. -Tem uma rebelião organizada dirigida contra o czar e o governo. De novo os poloneses estão se agrupando, para sua perdição. Do estrangeiro estão enviando para o 133 país subversivos; está cheio desses rebeldes aqui. Vive ainda o velho Wasilewski? Ainda os diabos não o levaram? O estalajadeiro, ouvindo este nome, empalideceu e mudou-se-lhe a feição. Ficou assustado, mas controlou-se e respondeu com calma. - Sim, vive! Mas que vida é essa? Ele está morrendo aos poucos. - Se morresse o velho imprestável, não se perderia grande coisa, mas temos indícios que o filho, Andrzej, está por aqui. Eu mesmo, hoje, vi-o com meus próprios olhos mas o diabo me cegou, não o reconheci, não o peguei... por mil demônios, ele está aqui, ou virá a qualquer momento. O judeu estacou como se um raio o atingisse. - Ilustre senhor coronel - falou depois de muitos minutos, voltando a si. Ele não pode estar aqui, ninguém chegou até a noite. Não dá para entrar na vila sem passar na minha hospedaria. Viva alma não apareceu até tarde. - Por acaso ele não conhece outro caminho? trilhas? - Mas ele não viria a pé. - Quem sabe? - Não, isso não pode ser - completou Berek. - Que horas são? - perguntou Szulubin. - Ainda não é meia-noite, os primeiros galos ainda não cantaram. O coronel olhou o relógio. - São onze horas, não poderia ir você à casa do Wasilewski por qualquer motivo? - Mas a esta hora? - reclamou Berek - Ir até lá e atacar a casa, à noite, não sabendo ao certo se o Andrzej está lá, de novo toda a província vai reclamar e me acusar de ser o carrasco dele, que o estou matando por vingança, e a presa poderá escapar. O que fazer?raciocinava o oficial. Berek ficou pensativo. 134 - Escute, coronel! – falou de repente. Eu já sou velho, não tenho saúde e é noite. O cão deles é bravo, mas o que fazer? Eu vou. Ilustre promotor sabe que eu para o governo farei o impossível. Eu vou... ele está doente, vou saber se está melhor. O promotor ficou indeciso. - Vá, mas que ninguém te veja, para onde e por que fostes... e em total silêncio. Mande arrumar o samovar com chá para mim, alguns biscoitinhos, e você, saia sem ser visto, dou-te um soldado. - E, para quê? - Ofendeu-se Berek. Mas, sim! Para que alguém me veja com ele? Isso não pode ser. Tudo ocorreu conforme foi combinado. Sara colocou o samovar com chá para o coronel, e para os soldados deram uma garrafa de wodka, e o velho Berek, silenciosamente, sumiu da casa pelo portão dos fundos. Mas, assim que se achou no pátio, o estalajadeiro começou a torcer as mãos, desolado, parou. Parecia pensar profundamente, suspirou e seguiu lépido pela aldeia, rumando pelos caminhos por ele conhecidos. A casa do Wasilewski situava-se no outro extremo da cidade, isolada, e precisava caminhar um bom trecho por cima do barro escorregadio até chegar lá. A chuva e a estrada esburacada tornavam difícil a caminhada, mesmo para pessoa jovem, mas Berek, como que impulsionado, corria com passo apressado. Entrar na residência, não podia nem pensar... o cão era bravo... o velho judeu conhecia bem o lugar, caminhou atrás da cerca, circulou em volta da construção e parou em frente da janela do quarto, pouco iluminada, mas dava para ver o interior da casa. Luz acesa, a esta hora já era uma coisa extraordinária, já denunciava algo incomum. Berek encostou a cabeça no vidro, e quando a sua vista se acostumou com a claridade, reconheceu o Andrzej, 135 que estava sentado no meio da sala. Não o identificou de imediato, mas quem poderia estar lá a esta hora, se não fosse ele? Passou para outra janela e dali via melhor, pôde visualizar Anna e o homem que sentava aos pés do doente. Começou a quebrantar as mãos e tremia todo. Ficou assim parado por um instante, e quem pudesse vê-lo agora, enxergaria lágrimas nos seus olhos, no rosto grande aflição e surpresa. Estava indeciso... não sabia o que fazer... em silêncio passava de janela em janela. De repente, Anna saiu do quarto com vela na mão, lembrou-se que na despensa havia uma garrafa de vinho, queria agradá-lo com isso. A janela do local não tinha vidro, só uma grade de ferro separava-a do pátio externo. A luz da vela dirigia os passos do velho Berek, que chegou à grade. Não tinha nem um minuto a perder. Anna já alcançava a garrafa, quando o velho judeu chamou: - Não se assuste senhora, só direi duas palavras, espere. Apesar disso, ela deu um grito, mas reconhecendo a voz de Androwicz, voltou a si do susto. Rápido, em meiavoz, o judeu falou a ela: - O coronel Szulubin e soldados estão lá em casa. Sabe a respeito do Andrzej. Até amanhecer eu consigo segurá-lo, mas que fuja, e que não fique sinal atrás dele, que fuja!... está me ouvindo, senhora? Compreende o que eu disse? Que fuja, rápido! - Ah! Estou ouvindo e estou morrendo de medo! O velho já não estava lá, tinha-se evaporado. O promotor bebia a primeira xícara de chá quando Berek, sujo de barro, cansado, arquejando, voltou. - Foi até lá? - Fui. - Está lá? 136 - Ainda não veio. O velho está muito doente, mas perguntei à serva se ontem ou hoje não viram ninguém. Na casa não tem nem um pedacinho de pão. - Que morram! – praguejou o promotor. É castigo de Deus, é dedo de Deus, não quiseram genro russo, agora têm um inimigo mortal, mataram a jovem por teimosia, estragaram-me a vida, que seja assim. Berek estava em silêncio. O promotor caminhava nervoso, sem rumo. - Ouve - falou Szulubin - se não chegou até agora ele virá sem tardar. O que fazer? Eu preciso tê-lo nas minhas mãos. Ele não desviará Berestecko; esperá-lo aqui com os soldados, ele vai desconfiar... o maldito... Androwicz, o hospedeiro, silenciava. - Você poderia, com facilidade, ver e avisar-nos. - Ilustre coronel, até chegar o meu aviso, será que ele esperará? Eles vão confiar em mim para não ocultá-lo? Eu faço o que posso; mas não me encarrego de fazer o que não sei. Não quero desapontar Vossa Senhoria. - De quem é a casa em frente do Wasilewski? - Não tem nenhuma, pois a dele está construída no meio da colina. O promotor ficou pensativo, preocupado. Olhou com desconfiança para o estalajadeiro. - Mas não foi ali - falou - que o coronel Priluka comprou uma parte? - Mas não mora ali - respondeu Berek prontamente. - Castigo de Deus – gritou o coronel. - Então arrume a cama para mim, veremos o que fazer de manhã. O dia já estava alto quando Szulubin, acordando, tomou o chá, mandou atrelar os cavalos, e não confiando na determinação e inteligência do judeu, resolveu atacar o casarão. Mandou soldados e aldeões para cercarem a casa, 137 que chamava de “toca do lobo” e, mal-humorado, sentou na carruagem, gritou para o cocheiro: - Em frente! – e tomou o rumo da casa do velho Wasilewski com grande algazarra. Mas, além do cão que uivava na porta da casa, ninguém saía para ver quem fazia tanto barulho. Szulubin pulou da carruagem, abriu a porta do primeiro cômodo, mas não deu um passo adiante. Parou petrificado.Visualizou uma cena fúnebre e singular. No centro da sala foi colocada uma mesa coberta com toalha bordada, branca, e ao lado, na cama, estava deitado o corpo do ancião, de camisa branca, de crucifixo nas mãos rijas. Anna e a velha Zyta, chorando, levantaram o lençol, forçando o corpo a deslizar para o catafalco. O olhar do promotor pousou sobre a face do falecido, e por causa da expressão dele não conseguia desprender a vista. O rosto tinha a bondade expressa dos beatificados e santos, serena, tranqüila, surpreendentemente linda. Parecia dormir e sonhar com o céu. Apesar do desejo de vingança e do ódio, pela inesperada morte, o coronel ficou estupefato, desnorteado. Algo tinha-se quebrado... lembrou da bondade do velho, as horas passadas em sua casa, a filha dele, as suas esperanças, a morte prematura da jovem e, neste momento, voltou a ser humano. Abaixou a cabeça, esqueceu a vingança. - O velho morreu! Quando? - perguntou para a chorosa Anna - Hoje à noite. - Estava enfermo? - Faz muito tempo, mas faleceu tranqüilo; as cinco horas da manhã veio o padre. - O padre veio? – perguntou o coronel. - Partiu neste instante – afirmou, chorando. - Ele piorou depois da meia-noite? 138 - Não sentia nada, parecia como sempre - disse ela mas previu a morte se aproximando, quis que chamássemos o padre. O promotor, parado, olhava o defunto. O judeu pode falar o que quiser – pensou Szulubin ele aqui esteve, essa é obra dele, disso tenho certeza. Não ousou porém, começar a investigar. Na mesinha ao lado da cama, reparou num amontoado de moedas de ouro, estrangeiras, trazidas por Andrzej e jogadas a esmo; chegou perto e pegou uma. Examinando, disse: - Queixavam-se de miséria, mas pelo que vejo vai ter com que fazer o funeral, hein? Anna deixou cair o lençol, ruborizou-se, ficou desorientada, e disse: - O velho... há muito tempo economizava para o funeral. O promotor sorriu, a natureza de predador voltava, a impressão do defunto já tinha sumido, apareceu o policial. Chegou perto e começou a examinar as moedas. - Ah! Sim... isso é verdade que guardava por muito tempo – falou, zombando – esta aqui, por exemplo, é do ano de 1828. Anna quase desmaiou. - Não sei nada, donde e o que pode ser? – respondeu a moça perturbada. - A senhora não sabe? – falou friamente o coronel. Então eu a informo. - Esta noite esteve aqui Andrzej Wasilewski. Ele deixou este dinheiro e o pai, de emoção, morreu. Anna emudeceu. Na sua cabeça as coisas se embaralharam, lágrimas caíram dos seus olhos. Ofendida, apontou o falecido. 139 - Se o senhor é humano, coronel - gritou – respeite o corpo e a majestade da morte, porque não respeitará uma pobre mulher. Não sei de nada, a minha obrigação é aqui! – apontou para a cama e virou-se de costas para ele. Com sangue frio, o coronel contou as moedas, juntou-as e guardou-as no bolso. - Este é o rastro do proscrito e condenado à forca – gritou – vai para averiguação ouviu, senhora? Cumpro a minha obrigação, não estou me apossando, é problema para a justiça resolver. Mas a moça não ouvia mais nada, chorava ajoelhada aos pés da cama. O promotor deixou a casa, entrou na carruagem e saiu em disparada. A procura do “emissário”, de cuja permanência no país Szulubin estava convencido, resultara em nada. Controle e precaução ordenavam silêncio sobre o rumo a ser tomado. Szulubin enviou seus espiões pelo distrito, voltou soturno para a cidade. Encontrou o cavalo negro no estábulo. Prometeu ao coronel Rassim que aconteça o que acontecer, jamais ele será responsabilizado pelo ocorrido. Ordenou silêncio sobre o caso. Em seguida começou a pôr a cabeça a funcionar, pensando como conseguiria apanhar Andrzej Wasilewski. Sabia bem que o caso não era fácil, calculava que no seu distrito ele não permaneceria por muito tempo e seu maior anseio é que se caísse em suas mãos o estrangularia. Tinha certeza absoluta de que o havia visto e que estiveram na cidade no mesmo dia. Não podia culpar o judeu de traição, mas culpava-se por não ter ido direto para o casarão suspeito, assim que chegou à cidade. Teria pego o emissario em flagrante. No enterro do velho, estava atento, mandou prender Anna, enclausurou-a num mosteiro orto- 140 doxo. Zyta estava na prisão e os bens do falecido foram confiscados. Não havia notícias do Andrzej, mas de Kiew e Zytomierz seguiam, um atrás do outro, documentos secretos recomendando vigilância extrema, absoluta. No distrito todo foram colocadas barreiras, havia sentinelas nas encruzilhadas e foi convocado o povo para manter o máximo alerta nas estradas. Nas hospedarias foi exigido um rigoroso controle no trânsito dos viajantes; diariamente ocorriam prisões, a maioria de pessoas inocentes. Os soldados que estavam de sentinela não sabiam ler nem escrever, deixavam passar qualquer um que apresentasse papéis com carimbo, até mesmo alguns pingos de vela de estearina colocados engenhosamente, favoreciam a passagem com facilidade. Mas tudo tremia... Mansões e residências, noite e dia, estavam sujeitas à invasão e eram revistadas pelos serventuários do governo. Qualquer suspeita de abastança era problema e causa para prevaricação. Era certo que os mais ansiosos em obter favores do governo colaboravam, prendendo e mandando para o cárcere quem aparecesse. Esses acompanhavam notícias as mais inverossímeis e desencontradas da cidade. Eram citados nomes importantes de pessoas que faziam parte da insurreição e que estavam presas em São Petersburgo, Kiew e nas províncias. O alerta era geral. Nas casas enterravam livros proibidos, queimavam-se papéis, escondiam-se antigas armas, recordações, porque todos podiam esperar a revista, havia apenas uma certeza: que descobriram uma sublevação contra o governo moscovita e que alguma coisa iria acontecer. Daquela tarde fatídica em que o secretário Formitch recebeu duas moedas de ouro e um rublo do estrangeiro suspeito, nem ele, nem o coronel Rassim, nem o promotor 141 Szulubim, tiveram um minuto de paz. O secretário sentia que no final tudo cairia sobre os seus ombros. Rassim, apesar de ter doado o cavalo árabe, negro, ao promotor temia pela sua sorte, e Szulubin preocupava-se com duas coisas: a sua vingança e a promoção do cargo no governo. Prender o emissário lhe traria uma cruz como condecoração, agradecimentos e, quem sabe, um prêmio em dinheiro. O promotor tinha, na verdade, o que prezava acima de tudo: uma cruz de São Jorge conseguida na guerra turca. O emblema do czar Nicolau I estava estampado na sua espada; do príncipe Wladimir no arreio, e uma medalha com efígie de Catarina II, que levava no pescoço. Mas, o que isso significava, comparado à constelação de medalhas no peito dessas felizes criaturas que tinham menos mérito e mais proteção? Szulubin era muito ambicioso. Rassim não almejava tanto, ele gostava de viver, sua maior preocupação era que não lhe faltasse nada para seu conforto, e não tinha nada melhor que um posto numa pequena cidade. Todos os armazéns abertos e cada acerto era pago em dinheiro ou em espécie. Perder um cargo desses, e ainda numa província que ficava perto da fronteira, onde se fazia contrabando, era inadmissível. Para o coronel Rassim isso representava uma ameaça terrível. O secretário Nikodem Formitch também temia a justiça, a degradação, a ruína. Quem sabe poderia ser rebaixado a soldado raso. O terror reinava na repartição. E assim, desse dia em diante, nenhum viajante era liberado sem uma rigorosa fiscalização. De longe, observavam a estalagem de Wrobleski e o recepcionista Icek Tyrowicz já pensava seriamente em ir embora para sua província em Dubno. Mas, por outro lado, apenas as autoridades sabiam a história do relojoeiro, ninguém mais sabia, pois até os judeus calavam a seu respeito e o resto dos en142 volvidos queria só esquecer. Só o promotor Szulubin estava alerta – mas sem resultado. Investigou todos os sinais de envolvimento dos indivíduos suspeitos, enviou espiões, mas parte alguma tinha notícia de pessoas estranhas que tivessem passado por ali. Nas aldeias, a pequena nobreza, precavida com a situação incômoda e também por causa das más condições das estradas, sem pontes, preferia ficar em casa a se expor. Mas um cérebro ativo e inquieto como o do promotor Szulubin não se conformava com o insucesso e não podia demonstrá-lo. Assim como o chanceler Gorczakow falou em Moscou que estava juntando forças, assim ele procederia, raciocinando e trabalhando, preparando-se. Mas, infelizmente, nenhuma idéia original assomou ao seu cérebro; comumente quando você a procura com esforço, ela te foge. Nunca vem quando é chamada. Esse promotor de justiça ambicioso, que com espetacular esperteza contava conseguir nova promoção, esta lhe escaparia das mãos se não fosse a ajuda do seu único amigo leal e confiável, o capitão Inocenty Igorowicz Priluka que era natural da Bielorússia, deste recanto privilegiado no rio Dnieper, que forneceu excelentes administradores públicos. O capitão tinha o talento de favorecer todos os seus compatriotas e conseguia igualmente conciliar seus interesses com o governo, donde desviava habilmente para si, e dos cidadãos com o governo, e de todos os santos com os não tão santos. Na casa dele sempre o lobo estava saciado, e o cabrito, se não inteiro, pelo menos estava vivo. O bolso dele, por essa ou aquela, enchia-se em toda a oportunidade. Priluka já fora comissário de polícia, advogado, jurista, promotor. . Não contando que no posto de capitão foi ferido e dispensado da artilharia, protegido pelo comitê dos inváli143 dos, podia até se aposentar, pois mancava um pouco. Mas foi atingido por uma infelicidade - alguém achou uma diferença nas contas por ele prestadas, foi investigado e provado que era tão inocente como um bebê recém-nascido, fora o seu adjunto (o qual morreu, de repente, no cárcere) que havia desviado o valor reclamado. Mas mesmo assim foi afastado do cargo. Casou-se depois, com a filha do pope; comprou uma propriedade em Berestecko, que possuía boas terras. Ele administrava-as; mas na verdade havia arrendado tudo, e como era dado a companhias alegres, foi morar em Luck. Priluka aparentava ser de natureza boa, gentil, atencioso, companheiro alegre, fanfarrão. Com o promotor Szulubin mantinha boas relações de longa data. Foi por um acaso que, em função dos seus negócios, veio até Berestecko e foi fazer uma visita ao amigo; velho costume. Encontrou-o triste, e como estavam a sós, começou a investigá-lo. - O que você tem? - O que eu tenho? Os diabos estão me cozinhando vivo. Ouve - e Szulubin contou-lhe todo o ocorrido. Priluka era prático, hábil, viajado. Ficou pensativo. - Sabe lá! você? – falou. Às vezes um conselho como o meu não atrapalha, sempre me falaram que eu tenho faro. Eu neste país já estou servindo há muito tempo, conheço eles como camundongos Eu te direi uma coisa. - Então fale! – pediu Szulubin, suspirando. - Uma coisa é certa: ou ele esconde-se aqui, na tua comarca, ou foi mais longe procurar asilo, e só poderia ser nos pântanos do Polesie; é uma região difícil, inacessível... lá ele poderá esconder-se. - O que ele faria lá? - De início, poderá esconder-se... durante o tempo tumultuado, porque sabe que aqui nada dura por muito 144 tempo. Depois de alguns meses, vão retirar as sentinelas e o povo cansará de espreitar. Foge num dia claro. Por outro lado, onde é mais fácil manipular e convencer, do que entre os polesianos, gente que não sabe nada deste mundo de Deus? Eu te falo, se ele está aqui, então está nos pântanos do Polesie - ponderava Priluka, aconselhando: - Por que você não dá uma volta no teu distrito? Assim, por gentileza... Eu não sei como é agora aqui, mas no meu tempo, quando um funcionário público chegava nalguma residência, serviam o melhor vinho, aveia para os cavalos em abundância, e quando se ia embora, levava-se algum presente. Pouco ou muito, todos davam, para que não os incomodasse. Você não perderia nada se fizesse esta viagem, mesmo em estradas barrentas. Para que servem os cavalos e a carruagem do correio, e a verba para viagens? Não te custará um tostão e ainda te trará lucros. Quem sabe se consegues algum rastro ou encontras ele próprio? Leve gente esperta, que se informe nas casas e vilas: quem chega, visitas, viajantes, quem mercadeja... se recebem cartas, se são muitas. A pessoa aprende mais nestas viagens do que num ano em casa. Leve com você um auxiliar, mas inteligente. - O conselho não é mau – falou Szulubin – Quem sabe vou segui-lo, mas quantas carruagens vou quebrar? - Se isso fosse o maior problema? – respondeu Priluka, rindo, com ar de ganância. Isso é uma bênção de Deus, quebrar a carruagem, eu consegui assim um belo coche, o qual utilizo até hoje. Quebrou-se uma carroça velha, puxaram-na até a vila; um velho nobre quis emprestar-me uma carruagem, eu pedi para que me cedesse, ele foi obrigado a me doar. Depois mandei buscar a velha carroça e recebi-a de volta, consertada. O promotor suspirou. 145 - Eu estou te falando – continuou Priluka – é só ter três anos de paz e os nobres reagem, adquirem confiança e são capazes de denunciar-nos. Acertam-se com os governadores e levantam o nariz para cima. Mas agora todos estão tremendo! Onde a coragem para denunciar-nos? Agora com um pouco de inteligência e esperteza vamos conseguir tirarlhes alguma coisa. - Sim, vamos experimentar – disse, ainda indeciso. - Meu amigo, vá aos recantos mais impossíveis, às aldeias mais difíceis de chegar, não repare nas péssimas estradas e chegue onde jamais esteve, entendeu? Szulubin estava silencioso, balançou a cabeça, viase que o sábio conselho do amigo era plausível, pensava em executá-lo. No dia seguinte, em veículo do governo, seguiu em viagem de inspeção ao redor da sua comarca. *** Abençoados são esses recantos do país onde, em certas estações do ano, um funcionário do governo moscovita tem a maior dificuldade em chegar. Eles têm, nomeados por eles, em todas as vilas e aldeias, assessores e inspetores para controlar o povo. Mas, com o passar do tempo, eles fazem amizades, acertam-se com os habitantes, relaxam e não perturbam. Ainda alguns povoados são tão afastados, protegidos por florestas e pântanos, que mesmo as mais próximas autoridades dificilmente chegam até eles. Quem não conhece este país, ainda sujeito a costumes antigos, afastado da civilização, mas felizes no seu isolamento? Porque sente-se protegido do contínuo contato com a praga russa, aves de rapina, que só pensam em extorquir indivíduos indefesos. Matas inacessíveis, clareiras coalhadas de arbustos de espinhos venenosos, areias movediças, alagados, treme146 dais traiçoeiros, aterros sem pontes, nascentes que transbordam, dunas de areia... grandes extensões desabitadas cercam diversos, às vezes grandes, povoados como cogumelos negros assentados no meio do areal. São aldeias cujos habitantes fogem ao ver aproximar-se alguma condução, como seres selvagens. Quem não tivesse presenciado este fato com os próprios olhos, não acreditaria. O instinto de conservação vê em cada viajante um algoz moscovita, e a melhor maneira de defender-se dele é fugindo. A visão do intransitável Polesie, principalmente no outono, é a mais deprimente do mundo. Negras florestas de pinheiros, campos barrentos cobertos com vegetação rasteira amarelecida; aqui ou acolá, taquarais beirando lagoas. Trechos com derrubadas pela metade, capoeiras ainda fumegando com os galhos secos estendidos como fantasmas e, acima, um céu pardo, e um bando de corvos barulhentos. Mas tendo atravessado léguas sem fim num território hostil como esse, melhor dizendo, desertos inabitados... com surpresa e alegria, recebe-se a visão de uma aldeia ou habitação muitas vezes até bem confortáveis. Assim era, pois, a residência em Radziszew, à beira do Styr, no perdido recanto da região de Polesie, herdade do conde Anton Zaglowski, secular morada da família; era extensa a propriedade cuja área abrangia centenas de hectares, mas pouca renda gerava, apenas algum dinheiro da venda da madeira e de algumas estalagens que possui. A agricultura não produzia muito, requeria muito investimento e o senhor conde era homem da velha estirpe que explorava a propriedade, mas tinha por lema nunca devolver nada à terra. Zaglowski era juiz local, de família nobre, de boa educação, fino trato, de costumes requintados. Embora não fosse de idade avançada, as idéias e o caráter eram antigos. 147 Estudou em escolas na cidade de Minsk, com os padres jesuítas, depois foi para Krzemiec, onde estudou por mais alguns anos. Era patriota fervoroso, alma popular, gostava de viver, divertir-se e trabalhar quanto menos. Era querido na comunidade, e a casa dele era famosa pela hospitalidade. Casado bem jovem ainda, enviuvara cedo, ficandolhe uma filha da querida esposa. Ela e a tia Martyna compunham a sua família. A filha única criou-se no pensionato em Lwow e um pouco em casa. Anos depois, voltou para a companhia do pai e era a atração principal de Radziszew. Krystyna, jovem, bela, educada, gentil, decidida e rica, atraía a atenção dos jovens da região e pretendentes de Dubno. Vestiam fraques e camisas novas e chegavam às dezenas para a herdade. A casa estava cheia de visitas, sem contar os residentes, porque o generoso conde Zaglowski não dispensava companhia - e agora a mocidade enchia a casa. Vivia-se ali não luxuosamente, mas com qualidade, muita alegria e muito pouca cerimônia. Na verdade, a jovem Krystyna estava muito acima daquilo que a rodeava – não excluindo o pai mas era obrigada a conviver no mundo onde reinava absoluta. Devia à sua cidade Radziszew a construção da nova e bela residência, a decoração interna, a entrada de jornais e livros, do piano e música, dos jardins em volta da casa e o pomar plantado perto da fileira de plátanos e milhares de outras benfeitorias úteis. Krystyna tinha o gosto apurado dos ricos, dos bem nascidos, o caráter um tanto romântico ao qual devia o seu constante envolvimento com leitura e pensamentos nostálgicos, talvez isso resultasse da sua situação de órfã, morando longe de casa, mas também era sua inclinação pessoal, a melancolia. 148 Era jovem e bela, não possuía feições clássicas, mas frescura, vivacidade no olhar e fisionomia de traços nobres, a testa e os olhos, acima de tudo, enfeitavam aquela face. Sempre pronta para brincadeiras, de repente ficava pensativa, melancólica. Se nos seus sonhos de donzela sonhara com um herói para si, não sabemos, mas que levava na brincadeira os moços que a cortejavam, era bem visível. E os cavalheiros que a cortejavam iam embora ofendidos. Para uns era muito sofisticada, para outros muito filósofa. Cada um ficava assustado e fugia. A condessa não se preocupava com isso. Sabia que, quando quisesse, casaria com qual ela escolhesse, por enquanto não se apressava, apenas sonhava. A tia, religiosa, boa administradora do lar, amava a sobrinha. Secava as frutas, fazia doces, assava pães e orava. Não interferia nas decisões do coração da sobrinha. O pai também aprovava a lentidão da filha na escolha. Era para ele mais alegria na casa, e sentia na alma que Krystyna merecia algo melhor do que até então se apresentara. A residência deles estava sempre aberta, e mesmo sendo distante, nunca faltava hóspede. O juiz Zaglowski tinha o costume de não despachar uns até ter certeza da chegada de outros hóspedes. E também nesta manhã, não estavam vazios os salões em Radziszew. Hospedavam-se, além dos residentes, o senhor Jan Filkowski, da comarca de Dubno, o senhor Karol Karczynski, da comarca de Kowno, e o senhor Féliks Adamski, também da comarca de Dubno. Os dois primeiros eram velhos amigos e conhecidos do conde, gente da sua idade, freqüentadores assíduos de Radziszew. Filkowski era fervoroso patriota e político, não houve, em dezenas de anos, uma só insurreição à qual não pertencesse ou da qual não estivesse informado. 149 Passava incólume em todas elas, como por milagre. Karczynski, apesar de jogar cartas com maestria, comer bem e contar alegres anedotas, mesmo já conhecidas, não tinha nada de singular. O senhor Féliks Adamski, que veio na companhia de Filkowski, dizia ser seu vizinho, estava pela primeira vez hospedando-se em Radziszew. Pelo seu aspecto podia-se julgar que viera pela notícia sobre os encantos de Krystyna, e não sem propósito. Pessoa jovem, muito simpático, de educação primorosa, gentil, bem informado, gostava de música e logo caiu nas graças da jovem. A sua feição tinha algo de triste e sério, olhos negros fogosos, denotavam bondade e sensibilidade. Sorria pouco... Estava de luto, disse ter perdido o pai recentemente, o que justificava a sua tristeza, mas nada lhe dava o direito de ser indiferente aos encantos da formosa condessa, a qual evitava. Parecia de propósito, e quanto mais ela o procurava, mais ele se afastava de uma amizade mais íntima, até com desconfiança. Esse estranho procedimento intrigava Krystyna, pois o jovem cavalheiro tinha muito mais classe e, por isso, estava acima de todos que ela conhecia e recepcionava. Gostou dele. Filha única, acostumada a ser obedecida, não deu folga ao Adamski, o que levou-o à desistência no terceiro dia. Assim, passaram a tarde toda em conversa amena. Já fazia três dias que Féliks hospedava-se em Radziszew. No quarto dia, de manhã chuvosa, entrou no dormitório de Adamski, do lado do alpendre, o amigo dele, Filkowski, que dormia num quarto separado, de duas camas, com Karczynski. - Escute senhor... como posso chamá-lo? - Como quiser, só não pelo meu nome. - Então te chamo de Krystyno, porque ontem... -Tenha piedade! Não brinque comigo - pediu Féliks. 150 - Não é disso que vim falar, aqui entre as paredes – acrescentou Filkowski, sentando na cama. Ouvi que o promotor Szulubin está no distrito, e o judeu de Kolko avisou por um homem que ele pernoitou lá e vai chegar aqui na hora do almoço. O que você acha disso? Adamski de Dubno, terá coragem de aparecer? Andrzej Wasilewski tremeu e ficou pálido. -Ah, seria muito fácil, se essa pessoa não me conhecesse pessoalmente e não fosse meu inimigo mortal. Razões antigas, particulares. Filkowski pulou da cama. - Não tem o que pensar – encilhar os cavalos e ir embora. - Ficará sabendo que aqui esteve alguém e fugiu. - O que saberá? Era Filkowski e Adamski, dois amigos. - Podemos ir embora, ou podemos não ir, mas uma coisa é certa, ele não poderá me ver, e se me enxergar estou perdido. Se for só eu não é nada - mas todos irão presos comigo – comentou Adamski. Fikowski olhou o relógio, eram dez horas passadas. - Por Deus - falou - viajar seria o mais certo, mas pense, essa besta saiu de Kolko de manhã, está no aterro de Radziszew com certeza, nós precisaremos passar por lá porque não tem outra saída desta fortaleza. Encontraremos ele no caminho. Poderá nos segurar, averiguar... são esses tempos... - Se é assim, devo ficar – falou Adamski – mas não posso aparecer a ele, seria o meu fim. - Falaremos tudo ao proprietário? - Que Deus nos guarde! Íamos assustá-lo sem precisão. Eu vou ficar doente e ficarei de cama o dia todo. É... assim farei... 151 - Mas essas pessoas tão atenciosas, hospitaleiras, preocupadas, não vão cometer alguma infantilidade? Perguntar por você? - Aconteça o que acontecer, não tem outro jeito respondeu Féliks. Vá agora, avise que estou com febre, dor de cabeça, o que quiser... e que preciso descansar na cama. Filkowski preocupou-se. - Muito bem – falou - mas se esse infame pensar um pouco e quiser revistar a casa? - Então... eu dou um jeito – respondeu firme Adamski - fiquem tranqüilos. Recebam-no, dêem-lhe de beber, hospedem-no, mas não o convidem para o pernoite. Não deixe os donos desconfiarem do que está acontecendo... e o resto deixemos por conta de Deus. É, assim deve ser - concluiu. Com a partida do promotor, dentro de meia hora também não estarei mais aqui. Estavam comentando o ocorrido, quando ao longe ouviu-se o tilintar assustador dos guizos da carruagem do funcionário público, ao cujo som tremem todos os aldeões. No longo aterro barrento que levava à mansão, já se vislumbravam os quatro cavalos, puxando a carruagem do coronel Szulubin. Adamski jogou-se na cama, enrolou-se no cobertor e mandou fechar a porta. Filkowski foi ao salão de festas informar sobre a indisposição do hóspede. O honorável juiz Zaglowski andava pelo salão preocupado, como sempre, quando tinha que receber um policial ou um funcionário público. - Que o diabo o carregue! – murmurava – daria-lhe de bem grado 50 rublos, tanto que desviasse minha casa, assim como também Radziszew. - Ele não ficará aqui para sempre – disse Filkowski – e ainda o Adamski vai nos faltar com a sua companhia porque está de cama, doente, com uma terrível enxaqueca. 152 Sofre tanto que não consegue falar nem comer, e não suporta ver gente. - Ainda isso, e eu que contava com ele para que o distraísse... verdadeira desgraça! – reclamou o hospedeiro precisa ver... é o Szulubin... inimigo do nosso povo, cobiçoso... prevaricador... é o diabo em pessoa... e na sua presença somos obrigados a demonstrar submissão, enquanto nossa vontade é mandar para o inferno ele e seu governo. - Calma! Providencie 50 rublos e mande servir o antepasto e o desjejum, quem sabe se desiste do almoço. - Mas sim! É um dia chuvoso, não vai querer enfrentar o barro. Eu tenho medo que peça o pernoite. Onde vou acomodá-lo? Castigo de Deus! Enquanto o anfitrião se lamentava no salão, o sininho maldito aproximava-se, tilintava, fazia barulho... cada vez mais alto, mais sinistro, até que apareceram duas parelhas de cavalos, soltando fumaça pelas ventas, e estacaram em frente ao portão de entrada. Na companhia do promotor Szulubin vinha o secretário Nikodem Formitch e o ajudante, Wacek Koncewicz, o mesmo cocheiro que estacionava a carruagem em frente da delegacia de polícia em Berestecko, quando se iniciava o primeiro ato deste drama. *** Não há mais deprimente cena do que a obrigação de um anfitrião receber um hóspede indesejável, odiado... e pelo qual é obrigado a demonstrar respeito. O nobre Zaglowski foi ao seu encontro obrigando-se a sorrir. Com o rosto alegre, cumprimentou Szulubin, garantindo-lhe que estava muito aborrecido por ter decorrido 153 tanto tempo sem ter voltado a ver tão distinto personagem. Mas na verdade amaldiçoava este momento. - Cavalos para o estábulo! – gritou para o serviçal. Abraçaram-se amistosamente, e o coronel, em traje de viagem, entrou para o salão. Ali já o esperava Filkowski e Karczynski e, para compensar, o capitão Strzeyzoga, residente na mansão; antigo soldado napoleônico, com o rosto marcado por cicatrizes e medalha de honra no uniforme. Pode-se saber que impressão lhe deu um oficial moscovita, basta lembrar que ele esteve no incêndio de Moscou, em Smolensk e Borodino, em 1812. Szulubin, com o olhar rápido, vasculhou o ambiente, como se procurasse alguém, olhou para os cantos, parecia contar... cumprimentou amavelmente, mas frio, e sentou, não o deixaram descansar muito. Vestido num uniforme cinza, novo, com botões brancos, imaculadamente limpo, levantou a taça para o vinho... e o anfitrião já estava com a garrafa desarrolhada. O promotor investigou com o olhar o senhor Jan Filkowski, Karol Karczynski e o capitão Strzeyzoga, mas procurava alguém com o olhar. Estava tão visível, que o Filkowski teve que espirrar, para disfarçar o rubor da face. - O senhor é de Kowno? - perguntou a Karczynski. - Sou sim, senhor coronel. - E os senhores viajam assim, de distrito a distrito, livremente? Hein? E agora de novo temos sublevação, sentinelas, diligências, patrulhas para todo o lado... sem passaporte pode-se passar humilhação e às vezes pode-se ser preso, confundido com outra pessoa. - Mas como?, senhor promotor – respondeu Karczynski, melindrado – eu, senhor, sou conhecido duzentas werstas em volta e também tenho esse santo costume que nunca saio de casa sem o decreto do czar no bolso... isso substitui o passaporte, naturalmente? 154 - É claro - respondeu o promotor, medindo-o com olhar severo – mas sempre o passaporte é melhor. - Digníssimo coronel – comentou Karczynski – eu lhe digo uma coisa, quem viaja sem passaporte, esse tem a consciência limpa, e o velhaco e desordeiro, sempre está prevenido, com os papéis em ordem. O coronel sorriu, voltando-se para Filkowski, que os estava ouvindo. - E o senhor viaja também com o decreto? - Não, eu viajo sem o decreto e sem passaporte, o distrito é próximo, todos me conhecem, o nosso conselho distrital se encarrega de nos munir de avisos e solicitações. Acho que no bolso sempre haverá um papel do governo endereçado a mim que provará a minha identidade. - Vejo que os senhores não sabem o que acontece no país – comentou Szulubin. - O que pode estar acontecendo? - Descobriram nova conspiração contra o governo, temos muita preocupação, o país esta coalhado de emissários... e nós... - não terminou a frase quando entrou Krystyna, que ouviu tudo, volveu o olhar pelo salão e não encontrando Adamski, algo doeu no seu coração. Toda trêmula, cumprimentou o promotor, que ficou fascinado com a beleza da moça, emudeceu. Tornou-se gentil e mais humano. Szulubin tinha a fama de mulherengo, havia nele uma fraqueza pela beleza feminina e já sofreu muito na vida, deixando-se envolver pelos belos olhos das moças polonesas, que lhe devolviam apenas o desprezo explícito. A senhorita Krystyna exerceu sobre ele um fascínio invulgar.Tornou-se bondoso, parou de falar, olhava-a como que para um arco-íris. Ela olhava para a porta com insistência, como que esperando alguém. Filkowski supôs ou adi- 155 vinhou que ela poderia perguntar por Adamski, e com terror mortal, tentava tirá-la dali, por qualquer motivo. Neste ínterim, Szulubin começou a conversar com a jovem num corretíssimo idioma francês. Surpresa com a sua cultura, a moça respondia gentilmente, mas a indiscutível aversão que sentia pelos russos não deixava lado para entabular melhor a conversação. Grande fisionomista, o promotor, mesmo envolvido com o desjejum e a conversa, vislumbrou expressa na fisionomia de Filkowski alguma preocupação, e na face da moça, alguma expectativa, espera e surpresa. Não tirava os olhos e a atenção sobre eles. Diversas vezes, Filkowski quis dar um sinal a Krystyna, mas encontrava o olhar atento de Szulubin, e resolveu deixar o caso para o destino resolver. Apesar do controle que tinha sobre si, a sua feição traía a inquietação que lhe devorava a alma. O semblante da jovem denotava preocupação cada vez mais visível. Diversas vezes tentou falar, mas Filkowski interrompia. O anfitrião, descuidado, entregou... - Quem sabe podíamos mandar algo para o senhor Adamski, que não pode comparecer. - O que ele tem? – interrompeu vivamente a filha. - Desde ontem, está com esta terrível enxaqueca e sofre muita dor – ajudou Filkowski – não precisa de nada, só descansar em paz, enquanto o mal não passa. O promotor ficou alerta. - Na verdade, em casa do senhor conde sempre tem profusão de hóspedes – informou Karczynki. - Esse hóspede é vizinho do Pan Filkowski – respondeu o anfitrião. Adamski é do distrito de Dubno. - Adamski! - acrescentou o promotor - tem diversos, conheço alguns... é o Ludwik ou o Heronim? - Não...Féliks,Féliks – respondeu rápido Filkowski. 156 - Irmão do Ludwik? Filkowski, interrogado com precisão, não estava preparado, falseava as respostas, misturava, mas consertou tudo com uma boa risada. - Nem irmão, nem primo, ele é de outros Adamski respondeu meneando com os ombros.Tem perto de mim parte da aldeia de Paminkowo. Serviu no exército russo. Szulubin parecia mais tranqüilo, mudou de conversa. Filkowski comia o presunto tão vorazmente como se não tivesse comido nada por uma semana. No ínterim da conversa sobre Adamski, Krystyna ficou pálida de repente. Por sorte, o promotor pensou consigo:“Se fosse alguém suspeito, o proprietário não o teria denunciado”. Após o desjejum, o que fazer? Szulubin nem pensava em ir embora. Foi colocada uma mesa para o jogo de cartas. Sentaram-se: o promotor, o anfitrião, Filkowski e Karczynski, mas um foi saindo, o adepto de Napoleão depois da refeição foi direto para a oficina. A jovem passeava pelo salão, seguida pelo olhar de lobo do promotor. O oficial moscovita e seu uniforme eram para ela detestáveis; não diremos nada sobre o ar de adoração que lia nos olhos dele, que a envaidecia, mas mesmo assim, a aborrecia. Ao mesmo tempo, a três passos dali, atrás da parede, enrolado no cobertor, deitado na cama, estava Wasilewski, segurando numa mão um pacote de papéis e noutra um revólver, que nunca deixava longe de si. Apesar da coragem, um suor frio escorria-lhe pela face. Ao ouvir a conversa do secretário Nikodem Formitch e do cocheiro Wacek, os dois discutindo na língua russa, que exercia sobre os poloneses a sensação do som de ferros... degredo...e rumor de forca. Com diversas desculpas, o promotor, por muitas vezes, afastava-se do jogo. Até uma vez, por engano, abriu a 157 porta do quarto, deixada sem chave, no qual descansava o fugitivo, mas afastou-se rapidamente. A janela semifechada não deixava perceber nada. Mas essa procura atrás de saída podia ser proposital. Sorte que Filkowski estava sentado à mesa de jogo e o promotor não reparou nele, senão ia desconfiar da palidez repentina, assim como Krystyna já desconfiava. Tinha ela já uma vaga percepção e a impressão de que o novo hóspede não era esse pelo qual se apresentava. Alertou-a o fato de que, ao saber da chegada do promotor, adoeceu. A imaginação e a lembrança sobre os emissários fizeram o resto. Todo o drama desenhou-se no seu cérebro. O coração batia forte. Queria partilhar o problema... estava intranqüila... e sonhava. No entanto, a entrada do coronel no quarto, que foi reconhecido pelo emissário, mesmo pelo canto do cobertor, encheu-o de terror, não por ele, mas pelos papéis que levava. Estava decidido atirar e depois matar-se, mas o que fazer com os papéis? Não queria destruí-los, não queria e não podia. Szulubin podia reconhecê-lo, podia desconfiar, e tendo maior certeza, fingir despreocupação até a chegada dos gendarmes. Essa idéia, cada vez mais, fixava-se no pensamento do infeliz, pois, Szulubin, tendo saído pela segunda vez, falava baixo com o secretário Formitch e mandou-o não se sabe para onde. Andrzej estava quase certo que não sairia inteiro, mas e os papéis? Pela sua vida não temia, só pela realização do que se propôs, que era para ele uma obrigação santificada. Tremeu... resolvia em quem poderia confiar. Filkowski era homem honesto, mas fraco, perdia o controle, principalmente nos casos em que mais precisava; o conde, conhecia-o pouco; os olhos da filha brilhavam em 158 sua frente, e a sua pessoa, com insistência impunha-se a ele. O coração falava: - Ou a ela, ou a ninguém... O cérebro respondia: Mulher. A intuição dizia: - Polonesa e heroína. - A ela ou a ninguém!- reforçou Andrzej – mas, onde? Como? De que maneira? Entretanto, as horas corriam e o perigo aproximavase. O quarto onde estava deitado tinha uma só porta para a ante-sala, a outra estava fechada com chave e encostada com cômoda, separando-a do dormitório da tia e da sobrinha, entre os dois quartos havia um pequeno corredor. Andrzej começou trancando a porta da ante-sala. Levantou da cama em silêncio, chegou perto da porta fechada à chave, encostou o ouvido e escutou. O coração batia descompassado e a fronte latejava. Ouviu abrir-se a porta do salão e o frufru do vestido... encheu-se de coragem e bateu devagarinho. Os passos pararam. Silêncio. E se fosse a tia? Bateu levemente outra vez. Novamente o frufru do vestido anunciou que alguém chegava perto da cômoda. - Senhorita Krystyna - sussurrou o fugitivo, pelo amor de Deus! Ouve-me! O silêncio foi imediato e não soube por que razão os passos distanciaram-se, a jovem cantarolava a meia voz. Deduziu que foi por causa da batida da porta do salão, ao fechar-se, pois estava apenas encostada. O promotor estava sentado a dois passos no salão, jogando baralho. Minutos depois batiam levemente na porta do outro lado, no corredor. - Estou ouvindo - sussurrou a voz. - Não pergunte, senhora; não fique surpresa, mas, por amor à nossa pátria polonesa... por meio minuto preciso falar-lhe, não temos tempo a perder. 159 - Abra a porta, a chave está na fechadura - respondeu baixinho. Krystyna continuou a cantarolar. Andrzej, procurando não fazer barulho, abriu a porta com facilidade. Atrás da cômoda estava a moça, pálida, tremendo. - Por amor à Polônia, pegue esses papéis senhora, guarde-os, ou eu, peço-os de volta, ou, achará indicação a quem entregar. A moça estendeu o braço corajosa, com a face rubra, pegou o pacote, só meneou a cabeça, não podia falar. A porta fechou-se imediatamente. A chave girou. Andrzej estava novamente enrolado no cobertor, encolhido na cama, com febre alta... segurava o revólver firmemente. Aos poucos o seu semblante foi adquirindo tranqüilidade. Suspirava, sabia com certeza que a jovem polonesa antes seria capaz de morrer do que trair a pátria. Precisamente a uma hora foi servido o almoço. Szulubin nem cogitava em ir embora, mas para um funcionário público graduado, não demonstrava mau-humor. Informava-se das vizinhanças, das estradas, reclamava das obrigações pesadas e incômodas e com palavreado francês distraía a filha do conde Zaglowski. Filkowski, contrariado, observava a gentil senhorita, que ao almoço estava muito atenciosa com o moscovita, até sorria amavelmente, parecia divertir-se com a sua conversa. O pai também estava surpreso, deveras, conhecendo a sua impressão acerca dos russos. Mas – pensou Filkowski – nem o diabo conhece as mulheres, mulher é mulher, seduz até os inimigos. Enquanto ao almoço o anfitrião, não regateando vinho, enchia a taça do promotor, o infeliz Andrzej sofria embaixo do cobertor. Faminto, sequioso e inquieto. 160 A entrega dos papéis tranqüilizou-o um pouco; a febre que o consumia desde de manhã, não cedeu. Não estava preocupado consigo mesmo, ouviu os comensais afastando-se da mesa, certificou-se de que o promotor continuava na sala de jantar e, esquecendo o perigo iminente, desejou tomar um copo de água, estava sedento. Conhecia um pouco da casa para arriscar-se esgueirando-se até a cozinha. Inseguro no início, venceu o arrojo jovem, levantou-se da cama, abriu a porta, olhou em volta e dirigiu-se à cozinha. Não demorou muito, o criado serviu-lhe um copo de água fresca, mas este instante foi crucial para que Wacek, o cocheiro, o enxergasse e o reconhecesse, pois tempos atrás ele o tinha visto, quando esperava o promotor em Berestecko, em frente da delegacia. Por sorte, era uma criatura muito discreta e de inteligência limitada. Passadas algumas horas após o almoço, o anfitrião discretamente recheou a mão do promotor com uma nota de cinqüenta rublos, e este, feliz, finalmente retirou-se de Radziszew. Ouvindo a carruagem distanciar-se do alpendre, Andrzej respirou profundamente, sentia que a enxaqueca ia melhorar e ficaria livre do cativeiro que o molestava. Minutos após a partida do promotor, entrou Filkowski, com ar de triunfo, mas com sinais da batalha que travou, a face muito cansada. - Agora - disse - podes levantar, vestir-se, diremos que a enxaqueca passou e que estás faminto. Vais alimentar-se, não despertando desconfiança nenhuma. Será que o conde deve saber algo sobre você? Andrzej sorriu, pensou consigo que já alguém mais, não só ele, sabia neste minuto acerca dele... e preocupavase com seu destino. Quis sair, resgatar os papéis com a maior urgência, agradecer à Krystyna, conversar em segredo, jurar silêncio, explicar-se. 161 Começou a vestir-se apressado. - Mande encilhar os cavalos - pediu a Filkowski – seja por isso ou aquilo, o mais seguro é ir embora daqui. - Mas por quê? - respondeu Filkowski – para baterse nessas estradas lamacentas do Polesie, de noite, não se sabe por quê? Tenha pena, agora, parte alguma no mundo será mais segura do que aqui. Szulubin esteve aqui, revistou-nos e foi embora. Estás aqui como na casa de Deus atrás do forno, e na estrada pode o diabo mandá-lo para os nossos pescoços. - É verdade. Mas eu estaria mais seguro, em outro lugar, preciso ir embora já. -Vamos embora amanhã ao alvorecer - sugeriu o amigo Filkowski. Andrzej não quis contrariá-lo, mas a consciência mandava-o ir embora daquela casa acolhedora, para não lhes trazer aborrecimento. Agora, essa linda e heróica jovem tinha para ele um encanto especial, almejava aproximar-se dela, pelo menos com o olhar mais longo, e despedir-se dela para sempre. Ao cair da tarde, Andrzej, completamente restabelecido, apareceu de repente no salão. O solícito anfitrião não desconfiou de nada. Serviram chá, reuniram-se para um jogo em três, junto com o capitão Strzeyzoga; Andrzej, agradecendo a atenção, desculpava-se, devia explicar-se perante Krystyna. Desde a entrada do moço no salão, os olhos da filha do proprietário não se desviavam dele, os lábios sorriam. Um olhar mais atento notaria a vivacidade e a luz singular que se irradiavam da fisionomia da jovem, lampejos que só os enamorados transmitem. Parecia esperar ansiosa que ele se aproximasse. 162 Andrzej, não querendo chamar atenção, ficava em volta da mesa do jogo, brincava com a tia e, finalmente, dirigiu a palavra à moça e os dois saíram caminhando. - Não sei como poderei pedir desculpas à senhorita falou indeciso - perdoe-me a coragem, não era por mim, mas por centenas de pessoas. Acima da minha vida está o destino de uma causa nobre... da pátria. - Devo entregar-lhe os papéis? – indagou Krystyna. - Se a senhorita os traz consigo! - Peguei-os depois da partida do coronel. - Não me fale nada, não se explique, eu que devo agradecer pela confiança, não imaginas, senhor, como é gratificante para uma de nós, frágeis criaturas, realizar, pelo menos, uma pequena parcela desse trabalho tão importante. Estou orgulhosa porque pude colaborar, pelo menos por instantes, para sua tranqüilidade.Seria indiscrição se aproveitasse a dolorosa ocasião, e lhe perguntasse... só uma coisa... és aquela pessoa por qual foste apresentado?, ou algum personagem misterioso?... - Devo à senhora toda a verdade – disse Andrzej. Fui mandado para o desterro em 1828, exatamente dois anos atrás. Possuo passaporte falso, no meu país preciso viver escondido, porque fui julgado e condenado a morrer na Sibéria. Sou aquela criatura perseguida, caçada, que chamam de emissário. Krystyna dobrou as mãos em oração. Empalideceu. - Condenado à morte?- sussurou, desconsolada. - Não terei segredos para a senhora - acrescentou ele com veemência - Szulubin conhece-me pessoalmente, odeia-me, já há muitos anos. Interessou-se pela minha irmã Anielka, quis cortejá-la, mas nós não aprovamos o seu propósito. Quer vingar-se. Por isso me persegue. - Oh! Meu Deus! O senhor aparenta ser tão jovem e já passou por tantos dissabores... 163 - E tanta miséria! - acrescentou Andrzej - e tanto sofrimento, poucos dias antes, arriscando a vida, embrenheime por esta região, esgueirando-me como lobo, onde todos me conhecem, onde a cada minuto podem me cassar, para poder abraçar mais uma vez o meu velho pai, e tive a sorte de receber dele a benção paternal, junto com seu último suspiro, pois expirou nos meus braços. Lágrimas brilharam nos olhos de ambos. Num gesto involuntário, sua mão trêmula pegou a mão do jovem deportado e apertou-a com efusão e sentimento, maiores do que seria a solicitude de irmã. Silenciaram por um momento. A conversa voltou saudosa, amorosa, como as coisas que amalgamam, levam, idealizam por momentos a vida das pessoas. Fato estranho que esta hora, passada em confiantes murmúrios, uniu-os tanto, amarrou-os como se fossem há anos muito mais do que irmão e irmã. Pobre Andrzej, que se defendia de qualquer sentimento que pudesse enfraquecê-lo, colocar-lhe grilhões, incutir-lhe novas obrigações, nem percebeu quando foi envolvido pela meiguice da jovem, perdeu a liberdade. Esta hora que passaram juntos decidiu as suas vidas e seus destinos, mas tinha algo tão tristonho nesse amor que nascia, como núpcias à beira do túmulo! Jamais tinham vivido momentos tão desesperançados, mas no entanto tão felizes, juntos. *** Entre muitas diferenças dos exemplares desse ser que chamam de homem, encontram-se tipos tão interessantes e singulares que os mais minuciosos e confiáveis estudos classificariam como violetas, não comparando, pois que crescem debaixo do capim... 164 Ninguém jamais desconfiaria que Wacek, ordenança do coronel Szulubin, seu cocheiro oportunamente e serviçal para toda a obra, pertencesse a esse exemplar raro e original. Mas é isso o que acontecia realmente. Era natural da província de Smolensk, soldado da reserva (quando servia, ocupava-se da costura e conserto de botas dos soldados), era um homem excepcional, honesto, atencioso, quieto, paciente e pacífico, mas, acima de tudo, teimoso sem igual, chegando às raias da imbecilidade. Se não era interrogado, não falava nunca, não tinha coragem para iniciar a conversa, mas, uma vez interpelado, não tinha limites, tornava-se audacioso, cantava até, se lhe mandassem. Era sempre tão feliz, contente com tudo, que deixá-lo nervoso ou triste era quase impossível. Além disso tudo, Wacek era obediente sem reservas. Estava naturalmente convencido de que os atos que praticava sob as ordens de outros, não era por eles responsável, nem perante Deus e nem perante as pessoas. Se o seu patrão mandasse roubar, matar, praticar crimes, ele o faria. Tinha bom coração, mas acostumado à obediência, muitas vezes açoitou culpados entregues às suas mãos sem piedade, mesmo que depois lamentasse, curasse-os e os consolasse. Era homem desse caráter. Espelhava o produto da civilização moscovita, e não era o pior, existem muitos e mais tenebrosos.Wacek tinha sentimentos, mas não os distribuía facilmente, guardava-os em suspenso, mas quando podia, dividia-os fraternalmente. A fisionomia do honesto ordenança era o espelho da sua alma, o rosto pálido, largo, de maçãs proeminentes, olhos pequenos, cinza, às vezes brilhando com sorriso, lábios grossos carnudos, nariz arrebitado escondendo-se no meio da face. Não era bonito, mas tinha nele algo de meiguice, e diversas mulheres amavam-no. Nunca se casou; mesmo 165 sendo um tanto romântico, ficou solteiro. O serviçal gostava de wodka, mas bebia moderadamente, nunca abusava, só até pequena tontura. O coche do promotor rodava pela estrada lamacenta, caía nas panelas enormes feitas pela enxurrada, atolava uma das rodas e ficava prestes a virar, e seguia pelas areias encharcadas. Szulubin assobiava. Caía a tarde, e graças aos cavalos velozes, já haviam se distanciado duas léguas de Radziszew. - E daí, Wacek – indagou o promotor, depois de muitas horas de viagem silenciosa – trataram bem você na herdade? Hein? - Ah, sim... bem...posso dizer... senhor promotor.. deram-me wodka à vontade, deixaram-me uma garrafa cheia, uma tigela de carne... bolo... Peço desculpas, mas é bom viajar pela comarca! Parte alguma somos tão bem tratados como na casa dos cidadãos... O promotor riu. - Nem o judeu na hospedaria é tão mesquinho, mas judeu é judeu. Servem o peixe ou pão com manteiga, cozinham mais ou menos. - Você gosta de comer? – perguntou Dzuwala. - Quem, meu caro coronel, não gosta de comer, a gente já foi criado por Deus para isso. - Só para isso? – perguntou o coronel. - Ah, sim! Precisa beber também! Não tem outro jeito – disseWacek. - E daí? O que mais? - É, também dormir. - E nada mais? - Mas, o que falar, senhor coronel!... Eu não sei nada... só sei que a mais inteligente pessoa, se sentir fome fica idiota. O promotor ria, estava se divertindo com a ignorância do cocheiro. 166 - O que você viu de interessante na mansão? - Ah! Bá! – respondeu Wacek – a residência ao que parece é suntuosa, esconde senhoritas tão belas, que na cidade é difícil encontrar igual. - Você andou namorando? - Deus me livre! Para um moscovita, mesmo que viaje na companhia do promotor, nenhuma vai olhar... e como falar com elas? - Viu muita gente lá? - Muita. Wacek parou. De repente, lembrou: - Mas sabe, senhor coronel, o que eu vi lá de interessante? - O quê? – perguntou o coronel, estava se divertindo com a conversa. - Pois, não sei se o senhor se lembra, quando estivemos no comissariado de polícia, em Berestecko, que eu fiquei no coche em frente da repartição... que veio lá um dito alemão com passaporte... depois procuraram-no com insistência... naquela ocasião eu vi o alemão muito bem. - E o que mais? - E agora eu o vi de novo, em Radziszew, quando os senhores almoçavam, ele veio à cozinha beber água. - Mas como? Tem certeza? – gritou Szulubin. - Mas, senhor coronel, quando eu vejo alguém uma vez na vida, não o esqueço até a morte, tenho essa natureza observadora. - Tens certeza? - Estou falando. O promotor, como se um raio o atingisse, levantou de repente na carruagem, ficou rubro e chamou o cocheiro com voz trovejante, que até a carruagem tremeu: - Pare! Os cavalos estacaram. 167 O coronel estava tremendo, não sabia o que fazer. Já estava escurecendo. De repente, despejou a sua ira. - Idiota! Burro! Irresponsável! – berrou – por que não avisou imediatamente lá no lugar, assim que o viu? E não me deu sinal? Wacek Koncewicz estalou os olhos, levantou o braço, estava perplexo. - Por acaso o senhor coronel mandou eu falar? - Mas, cabeça sem miolo, sabias que estávamos procurando esta pessoa, que a polícia estava no seu encalço, sabias que ele não foi almoçar conosco, que se escondia, como pôde ser tão burro e não me avisar imediatamente? - Olhe, senhor coronel, quem podia saber que este homem era tão importante? Pensei comigo, isso é brincadeira, lá procuravam ele com velas, e ele aqui estava junto conosco. Mas, o que eu tenho com isto? Pensei comigo: “O comissário Rassim buscava ele, e o que nós temos com as artes da policia?”. Szulubin já não escutava, o coche estava parado; deu um murro terrível no pescoço do ordenança e este caiu no assento. - Agora ele foge – gritou, possesso - mas não, não, está contando com a sorte, desgraçado, vai dormir tranqüilo, pego ele na cama, tirem os guizos dos cavalos - acrescentou – volte. Na próxima propriedade trocaremos os cavalos e, voltaremos a Radziszew. *** Era meia-noite. Na residência em Radziszew todos dormiam o sono dos justos e cansados. Sonhador e feliz, embalado com sentimentos amorosos de juventude, desconhecidos há muito 168 tempo, o pobre desterrado adormeceu também. O cansaço e os acontecimentos do dia dominaram-no, assim, caiu num sono profundo e paralisante, que tira as forças e os movimentos. Acostumado a estar alerta, acordar ao mínimo barulho, Andrzej dormia desmaiado. Os lábios sorriam em sonhos celestiais. Na herdade todos dormiam, só uma pessoa intranqüila, sem sono, caminhava pelo quarto pensando, sorrindo, fazendo planos para o futuro, o coração batia feliz, mas um pressentimento estranho, um terror, apossava-se dela, não a deixando sequer pensar em dormir. Krystyna caminhava, parava, sorria para si, lembrava a conversa, repetia as suas palavras, e sentia-se muito feliz, mas imensamente apavorada. Ele era o primeiro amor na sua vida, que despertou nela tão profundos sentimentos. Via nele um grande herói, um mártir, e queria elevar a alma até ele, dar a sua oferenda. Em meio a divagações e silêncio total, alguma coisa, um sussurro ao longe, chegou aos seus ouvidos. Estacou... o coração disparou, esperava. Sussurros... um andar dissimulado... uma fala discreta, abafada... parecia que cercavam a casa... diversas vezes ouviu um som metálico. A moça jogou-se ao chão, apagou a luz. Num piscar de olhos adivinhou qual era o perigo, e o seu pensamento voou imediatamente para aquela porta, que separava o quarto vizinho, onde dormia Andrzej. Com cuidado, colocou os olhos no vidro da janela, que não estava encoberto, e distinguiu sombras que se deslocavam disfarçadamente no pátio. Num vislumbre adivinhou que eram soldados do promoto - captura... Na ponta dos pés, não perdendo o controle, saiu do seu quarto. Era sua obrigação salvá-lo da morte iminente. 169 Mas, como? – isso ela não sabia ainda, mas estava pronta a dar a vida por ele... correu para a porta e começou a bater devagarinho. Por infelicidade, Andrzej, dormia como pedra. Depois de diversas tentativas infrutíferas, batia cada vez mais rápido, já com medo de estar perdendo o tempo precioso, e ser ouvida por outros. Sem pensar muito, correu pelo salão de diversão, saiu na ante-sala, e de lá para o quarto de Andrzej, ele dormia... puxou-o pelo braço. Andrzej, aterrorizado, pegou o revólver, mas sentiu a mão que lhe apertava a boca: - Não fale... levante... vai embora, não tem um minuto a perder... a casa está cercada... Ele, como por milagre, voltou a si, vestiu-se rapidamente, silencioso, pegou os papéis e a arma... uma mão trêmula guiava-o atrás de si. Atravessaram o salão. O fugitivo não sabia aonde ia, e o que acontecia. Krystyna levava-o rápido, voando... No terceiro salão havia, para o caso de roubo, um esconderijo pequeno, atrás de uma tampa da lareira. Era um local escuro, pequeno, onde ficava a caixa com os documentos importantes do magistrado Zaglowski. Em duas palavras Krystyna indicou a entrada, abriu a portinhola, empurrou-o, fechou com força, e, correndo, voltou ao seu quarto, jogou-se na cama, cobrindo-se com cobertor. No mesmo instante batiam na porta principal. Devagar as pessoas foram acordando, ouviam-se passos apressados, correndo, gritos, batidas nas portas, e o som metálico dos sabres, vozes raivosas e discussão... brigas e insultos. Quanto tempo durou isso, a moça não tinha idéia. No horror, cada minuto parecia um século. Agora, ao que parecia, iniciavam minuciosa revista na casa toda. 170 - Não podia fugir! – gritava Szulubin - cerquei a casa toda antes, viva alma não poderia escapar dela, isso não pode ser, vou revistar, demolir, queimo a mansão, mas acho ele. - Mas, senhor coronel – falou o anfitrião – não nego que o dito Adamski pernoitou aqui. Por que não poderia fugir se ouvisse antes de nós que cercavam a casa? Não sabíamos quem ele era, e não nos preocupávamos com ele. - Não poderia fugir – gritava o promotor, batendo com o punho na mesa. Eu vou ensinar a todos, vão para as correntes! Para a Sibéria, revoltosos! Revistem a casa! Os subterrâneos, a adega... Abriu-se a porta do recinto que separava o salão do quarto de Krystyna; ela, voltando a si, ainda teve a habilidade para iludir o promotor, silenciosamente e devagar, abriu a janela. Zaglowski, felizmente percebeu... -Veja, senhor - falou ela - aqui está a prova... vê senhor, a janela está aberta... está visível... percebeu a sua chegada, saiu do seu quarto, onde a janela estava trancada, e fugiu por aqui, antes que o coronel distribuísse os soldados. Szulubin estacou, torcendo as mãos. - Que os raios do inferno o fulminem! – gritou – Soldados, ao quintal! Façam busca nas casas vizinhas... eu e o secretário inspeciono a casa. - Pois, reviste... reviste! – falou, já nervoso, o magistrado – que os raios também fulminem você! Silencioso, desesperado, por causa da janela aberta, mas por obrigação do que na esperança de achar alguém, o coronel puxou a porta do quarto das mulheres. Dois gritos, da tia e da sobrinha, responderam a esse ataque. O oficial envergonhou-se, olhou, viu as mulheres na cama... reparou que não havia portas para outros cômodos, e, resmungando, voltou. Revistaram a casa toda. 171 Szulubin mandou que o conduzissem aos subterrâneos e voltou pálido, enlouquecido pela raiva. - Estes homens - disse - prendo todos, até que as coisas se esclareçam, vão comigo, faremos investigação... se o condenado foge, quem pagará por isso? Ninguém respondeu a essa pergunta. - Amarrem Filkowski – acrescentou - ele trouxe-o aqui, sabia o que estava fazendo e quem ele era. Se alguém rouba ou esconde o culpado, é tão culpado como ele. Sibéria espera Vossa Senhoria. Filkowski, pálido como um defunto, transtornado, meio desmaiado, estava parado de cabeça baixa. O promotor, horas antes, atencioso como convinha a uma visita, agora virou uma fera. Deliciava-se com o pavor dos seus presos, com o seu poder, vituperava sobre eles. Agora ele era o senhor e dono da vida e da morte. Se alguém quiser analisar a cabeça de uma pessoa, sua capacidade, sua aptidão, inteligência, observem pelo método que quiserem, mas a nobreza do caráter nada pode avaliar melhor do que o comportamento do indivíduo perante os infelizes e os fracos. Sua crueldade, maldade e prazer em humilhar e prevalecer-se da autoridade perante os desvalidos, e sua baixeza e abjeção, ao abordar os mais fortes, são o melhor indício da nulidade da pessoa. Assim se apresentou o coronel Szulubin em Radziszew, e o seu ódio era ainda maior pelo fato de o seu maior inimigo conseguir fugir. É sabido que nos tempos do czar Nicolau I, assim como de Nicolau II, a lei dizia: “Um cidadão, que der guarida a um proscrito, emissário, emigrante, pessoa suspeita, e se ele for preso na sua casa, o indivíduo que o esconde responderá, no mesmo grau, como culpado pela transgressão”. Ainda por cima, esta lei, não isentava ninguem da obrigação de denunciar perante o governo russo, e a en172 trega do transgressor, mesmo que seja pai, filho, marido ou irmão. Pai que não denunciava o filho seria castigado em seu lugar. Criança que não entregasse os pais, era considerada culpada. Num governo em que foi criada essa ordem execrável na justiça pública, manifestou-se um despotismo ímpar. Não é de surpreender a desmoralização da nação e a prática de tantos atos desprezíveis aos quais se permitem os ocupantes desse país. Lá não existe família, o amor não redime, não existem laços de sangue e nem de gratidão. Reinavam sim a corrupção, o suborno e a ganância, a prevaricação. E o czar estava acima de todos. Nunca num país cristão foram tão renegados os ensinamentos de Cristo. Foram introduzidos no catecismo ortodoxo russo, a adoração do czar de “Todas As Rússias”. O coronel Szulubin, que era da geração de Nicolau I, vivia sob essas determinações. Para ele, Radziszew estava maculada com a desobediência política, já estava condenada, e os seus habitantes, deste instante em diante, como presos sentenciados. Já era dono do já confiscado, no seu pensamento, castelo e propriedades, só estava separando, o que ficaria com ele antes do confisco oficial. Deitado no sofá, encostado no espaldar, nem olhava os que estavam a sua volta, e meio vestidos, os senhores Filkowski, Karczynski e o magistrado Zaglowski. O secretário foi chamado, aguardava ordens. Após um instante, o promotor se pronunciou: - Primeiro, amarre Filkowski e leve o elemento até o cárcere. Entendeu? Retire daqui os cavalos e o coche. Leve dois soldados como guardiões. Pelo caminho, ele não deve conversar com ninguém. Pegue o seu dinheiro.... trate-o com a maior severidade. Dentro de meia hora devem estar a caminho. Se quiser fugir, mate-o. Filkowski estava parado, pálido e tremendo. 173 - Senhor coronel - falou com voz fraca – não falarei nada ao senhor, vou dizer tudo ao comissário de polícia. O secretário e os gendarmes, parados na porta, pegaram-no e, aos empurrões, levaram-no para fora. Szulubin olhou para Karczynski, que estava silencioso. - Gendarme! – chamou. - Você leva em outra condução essa Senhoria, uma hora depois. Eu vou com o proprietário. Onde guarda os papéis? – indagou. - Mas, que papéis? – perguntou tranqüilamente o magistrado Zaglowski. - Todos quanto possuis. - Então procure-os e leve – falou o anfitrião, e caiu na cadeira – eu não tenho papel nenhum, a não ser os da contabilidade e os da justiça. - Veremos. Puxaram Karczynski para fora da casa. No salão só ficaram Szulubin, que deitado no sofá, resmungava e xingava, e o magistrado, pensativo, não dizia uma palavra. As mulheres, assustadas, vestiam-se. As serviçais informaram Krystyna que os soldados levaram uns e levariam os outros em seguida, e o pai dela ia ser levado preso até Luck. Pálida, trêmula, mas sem perder a coragem e o controle, entrou no salão. O promotor, vendo-a entrar, ficou meio encabulado, levantou-se em silêncio. - Senhor coronel, pelo amor de Deus – reclamou, aproximando-se dele – O que aconteceu? O que está ocorrendo aqui? O que esses senhores devem? E o meu pai? - Teu pai, esses senhores? – disse o promotor com sarcasmo – então a senhorita não sabe de nada?... O promotor balançou a cabeça irônico. - Os senhores hospedavam um personagem muito perigoso, o qual fugiu do cárcere.Vocês vão sofrer por ele. - Nós não o conhecíamos, não sabíamos quem era!... 174 - Isso vai aparecer com a investigação - respondeu friamente Szulubin. A jovem olhou para o pai, que estava sentado rígido, perplexo. - Que deve meu pai? Chegue a uma conclusão, senhor! Devemos pedir passaporte a todos que chegam aqui? Dá para perceber pela fisionomia o que alguém tem no coração? Senhor coronel - disse após um instante – eu confio no seu caráter, que não vais culpar o meu pai e nem vais chamá-lo à responsabilidade. - Isso não depende de mim - respondeu o coronel, cada vez mais friamente. - Meu pai pode explicar-se. - Veremos. Krystyna aproximou-se do magistrado, os olhos deles se encontraram, se a entendeu não se sabe, mas deu um sinal para que saísse. A moça saiu devagar. - Coronel Szulubin – falou Zaglowski, levantandose da cadeira e aproximando-se – falemos claro. Dou a minha palavra de honra que não conhecia esta pessoa, que o vi pela primeira vez e não sabia quem era. Por que o senhor vai nos prejudicar ? - Os senhores se prejudicaram sozinhos. - O que o senhor vai lucrar se me condenarem - O quê? Eu vou me inocentar. - Ao que me parece, por causa disso não precisa me denunciar. Mas, uma vez, falemos como homens. O promotor olhava de soslaio, mas não protestou. - Mil rublos - sussurrou o magistrado. Szulubin balançou a cabeça, negativo. - Mil e quinhentos. - Eu não sou judeu para pechinchar. - Quanto você quer? 175 - Dá-me três mil rublos que eu te deixo limpo. - Eu não tenho tudo agora, palavra de honra. Dou-te mil e quinhentos agora – disse, tirando o dinheiro do bolso – e o outro tanto daqui a uma semana. O coronel não disse nada, mas pegou e guardou o dinheiro no bolso. - Fique doente e deite na cama – mandou. Deixo com você um gendarme, mande que atrelem os cavalos, preciso ir embora. O magistrado suspirou... e quando a filha entrou de novo, leu no seu rosto que as coisas estavam melhores. O homem da lei gritava ainda mais alto, culpando, discutindo com o magistrado que afirmava que estava doente, insultava, batia o pé, dispersava o povo, e após algumas horas dessa comédia, deixando um soldado em Radziszew, foi embora ao alvorecer, atrás dos prisioneiros, para Luck. Zaglowski implorou pelos amigos, mas Szulubin não disse uma só palavra em resposta. Essa noite seria lembrada por muito tempo pelos moradores de Radziszew. O promotor ainda estava passando pelo aterro quando Krystyna, temerosa pela vida do seu prisioneiro, escondido num espaço restrito, apreensiva, correu abrir a tampa da lareira. A janela estava fechada, e o gendarme dormia na ante-sala. A moça não teve tempo de avisar o pai, e com uma vela na mão, silenciosamente, levantou a tampa, e olhou dentro do esconderijo... mas não viu nada, presumiu que o coitado do emissário, por falta de ar, havia desmaiado. Uma escadinha estreita levava até a gruta. Não ouvindo voz alguma e não localizando o prisioneiro, tremendo, foi descendo devagarinho, olhando para os lados, mas ali não tinha ninguém. Quando e como saiu dali, ultrapassava a sua compreensão. 176 Por todo o tempo o promotor havia ficado no salão ao lado. Os gendarmes transitavam sem parar, aldeões, serviçais, não podia sequer imaginar por onde ele havia fugido, mas respirou mais tranqüila, dando graças a Deus. Temendo ainda por ele, se não havia deixado papéis no seu quarto... correu para verificar. Ali aguardava outra surpresa, a roupa de Andrzej, os seus pertences, que deixara ao correr, sumiram. Possivelmente durante o alvoroço que reinava na casa, o corajoso e esperto homem saiu do seu refúgio, conseguiu chegar ao seu quarto, levar o que podia e ir embora, aproveitando a escuridão da noite. As dificuldades para realizar este ato de coragem eram tão grandes que Krystyna não podia explicar a si mesma como ele havia conseguido. Precisava contornar quase a casa toda, esgueirar-se pelo meio dos gendarmes, entrar no quarto e, fugir pela janela que continuava aberta. Tudo isso demandava coragem, decisão, controle sobre si, destreza ímpar. Não precisava, portanto, explicar ao pai, e nem falar nada sobre ele. O magistrado, sentindo-se cansado e alquebrado, mandou que ela também fosse descansar.Voltou, portanto, ao seu dormitório pensativa, mas dando graças a Deus pela oportunidade de poder salvar a vida da pessoa pela qual nutria um sentimento maior do que amizade e respeito. Atravessava o corredor, que separava o salão do seu dormitório, quando percebeu no chão um pedacinho de papel. Apanhou-o quase que maquinalmente, e olhando, percebeu nele, pelo visto, escritas no escuro, com lápis grotescamente rabiscadas, as palavras: - Perdoe ao infeliz. Agradeço de coração, devo a vós a vida. Rasgue este papel. Krystyna imediatamente guardou-o no vestido. Seu coração disparou. Entrou no quarto dele, ajoelhou-se em frente da cama e agradeceu a Deus. 177 Ele estava a salvo... Mas o infeliz Filkowski e seu companheiro, o que os esperava? *** Quem já viajou nas estradas do Polesie no outono, ou melhor, nos degelos da primavera, pode estar seguro que viajando pelo mundo, nenhum outro caminho o surpreenderá ou amedrontará. Essas estradas mais parecem leitos de riachos meio secos. Pedras, galhos, raízes, enxurradas, sumidouros, acha-se de tudo, o que torna a estrada intransitável. E quanto mais ela é percorrida, torna-se pior. As rodas afundando riscam valetas que a água rompe, e cada veículo, evitando os rastros velhos, faz novos. Por fim, o caminho torna-se só rastros no barro amolecido. Galhos, folhas e partes de coches quebrados, pedaços de vigotas que serviram para ajudar a desencalhar. Essas estradas de aterro levam geralmente até uma ponte elevada, balançando em cima de estacas finas, cobertas com folhagem verde, sem segurança nenhuma, tanto que se um cavalo pisa na ponta, pode, com o peso dele, levantar a ponte e arrancar a madeira, muitas pontes têm falhas na madeira, substituídas por buracos. Os cavalos empinam, empacam, não querem passar, alguns pulam as falhas galopando desordenadamente, até atravessar essa arapuca, que sabem ser perigosa. Às vezes, algum cavalo amedrontado arrebenta os arreios e foge. Outras, nas pontes velhas, os cavalos e a carruagem despencam no precipício, junto com a ponte. O viajante, enraivecido com o impedimento, destrói o resto com as próprias mãos, e o seguinte transeúnte terá de consertar. Caminhos desse tipo têm inúmeras surpresas, 178 não permitindo descanso nem ao passageiro e nem ao condutor. Por uma dessas estradas coube ao Szulubin voltar. Ele tinha resoluções importantes no pensamento para perceber os transtornos. Na verdade, não sentia o que acontecia à sua volta. O coche corria, batia, jogava-o para os lados, caía nos buracos, inclinava-se. Ele estava seguro que um funcionário do primeiro escalão da comarca não podia ser despejado da condução. Mas aconteceu o contrário. Na boléia do coche, junto com o condutor, ia um homem que conhecia bem a região, os caminhos mais curtos, trilhas feitas com as rodas das carroças dos aldeões para desviar as pontes estragadas. Ele guiava-os pelas estradinhas, que depois da curva ofereciam mais segurança; levava-os pela floresta de larícios, cheia de árvores caídas, galhos, raízes, tocos ralos e pequenos arbustos, que o coche de quatro cavalos dificilmente conseguia desviar. Na encruzilhada, o condutor distraído enroscou o eixo num toco, os cavalos forçaram, o eixo partiu-se e a roda caiu... e o funcionário do primeiro escalão da comarca, despencou para o chão... ficou deitado como o último dos seus serviçais. O seu ódio não tinha limites, amaldiçoava o condutor e o guia. Xingava, destratava, prometia enforcar,aprisionar, levar em ferros para a Sibéria; mas toda esta fúria não ajudava a consertar o eixo quebrado. Desesperado, o guia, que recebeu a sua dose de empurrões, sopapos e maldições, querendo, por certo, amansar o promotor furioso, propôs que o levaria para uma hospedaria próxima à floresta, em Rudnik, onde havia um ferreiro cigano que podia reparar o coche danificado. Deixando os serviçais junto à carruagem quebrada no mato, o coronel, descontente, caminhou a pé pela trilha 179 indicada, que o levaria ao albergue, distante algumas léguas. Caminhou maldizendo o mundo. A noite cedia vagarosa aos primeiros raios da manhã. Começava a clarear. Na verdade, não era ainda o amanhecer, era a claridade da lua crescente no céu de outono, que iluminava frouxamente o horizonte nevoento. Pensativo, o coronel, com o capote sujo de barro, caminhava sozinho pela floresta, esperando logo deparar se com a hospedaria prometida. Era - como disse o guia - uma pequena casa, que servia de albergue aos viajantes, na encruzilhada. Mas era um telhado, onde se podia aconchegar, um molho de palha ou feno, e a esperança de encontrar um ferreiro. Szulubin já estava calculando se era melhor pedir um novo coche e esperar por ele ou ameaçar e exigir rápido o conserto do eixo. Tudo isso dependia do que ia encontrar na estalagem. Numa estrada do interior, pequena, no meio do mato, não podia esperar muita coisa. Se nas estradas maiores não há acomodações decentes, então, o que esperar desse recanto? Por desgraça, foi ali que aconteceu esse desastre! Como de costume, quando as coisas vão mal, o ódio do promotor dirige-se ao primeiro culpado de todos os acidentes, ao desgraçado emissário, e a raiva contra ele crescia a cada instante. - Oh! Assim que o tiver nas minhas mãos... Oh! – gritava – dou-lhe a oportunidade de conhecer o meu ódio. Caminhava com a cabeça cheia de planos, entre eles a caçada iminente, imediata, ao desertor, como se faz sempre com os recrutas e prisioneiros, quando na penumbra, próxima, apareceu a prometida estalagem. O promotor não tinha certeza se era o albergue ou outra qualquer moradia, pois parecia muito abandonada, mas era uma habitação de pessoas, e na janela pequena já 180 bruxuleava uma luz. Os habitantes tinham levantado cedo. Da chaminé saía uma fumaça preta. No meio de colossais pinheiros, rodeada de cerca de espinhos, com um pequeno jardim na frente, erguia-se uma construção de madeira, coberta com folhagem do mato. A casa era pequena, mas a sua volta havia paióis e chiqueiros. Não era uma pousada, própria para receber viajantes. Sem pátio para os cavalos, nem estrebarias, compunha-se apenas de um sala, dois quartos, despensa, cozinha e área destinada a cabritos e gansos. O promotor já procurava com os olhos o povoado, um ferreiro, mas nada disso estava visível ao redor. Ficou inseguro, pensando que tinha se perdido, mas em todo caso, precisava perguntar. Bateu na porta, certo de que estava fechada, e pelo jeito de sua batida, dava para reconhecer o maior e mais graduado funcionário público do distrito. Martelava na pequena porta com força, como alguém que tem o direito de não pedir, mas mandar abrir. Dentro da casa houve tumulto, alguém veio até a porta e o promotor viu surgir na sua frente um judeu magro, vestido com trajes rituais de oração; camisola preta, longa, a mão descoberta passada com tiras de couro e o manto de oração cobrindo a cabeça. O homem olhava o visitante com terror. No impulso, quis, naturalmente, despachar o intruso com algum palavrão, mas na semi-escuridão, distinguiu um perfil e um uniforme, assustou-se e emudeceu. Szulubin empurrou-o, entrou na sala e, ao passar pela escada alta e a porta baixa, bateu-se forte na cabeça, na viga que sobressaía para a antesala. Isso aumentou ainda mais a sua fúria. Na sala do albergue já tinham acendido o fogo no fogão e na lareira. O recinto era pequeno, sujo e pobre. A mesa rústica, os bancos pregados na parede, cama, berço, 181 uma cabra, diversos utensílios de lavoura ocupavam o espaço... era difícil transitar por ela. Duas mulheres com roupas sujas, lenços na cabeça e panelas nas mãos, e o judeu que introduziu o coronel, era tudo o que compunha a habitação. O ambiente abafado, carregado de odores de alho e cebola, estrume e gordura, velhos capotes, sufocava. O coronel puxou o homem pelo colarinho e gritou: - Apresse-se, procure um ferreiro. O estalajadeiro estava estupefato, raramente havia se encontrado com funcionário público, não compreendia o seu modo de tratá-lo, nem a sua ordem. Começou a gritar, as mulheres acompanhavam-no em diversos tons de gritaria, as crianças nos berços atrás do fogão, acordadas, choravam aos berros e, por instantes, não dava para ouvir nada no meio da balbúrdia. O promotor, com certeza, teria puxado a espada se, na pressa, não a tivesse deixado no coche. E o judeu, já mais calmo, por instinto, compreendeu que a pessoa que o tratara com tanta supremacia devia ter o direito e o poder para isso. Ficou humilde. - Você sabe o que é promotor? - gritou - Eu te ensino! Eu te levo preso e lá você vai apodrecer... vá, procure e traga-me um ferreiro. A mulher acudiu: - Ah! Digníssimo senhor, ele não pode ir, começou a oração a Deus... mas eu vou correndo... O coronel cuspiu, meneando os braços, olhou em volta, não tinha lugar onde pudesse sentar e descansar, mas via-se uma porta para o quarto, onde ardia uma vela em cima da mesa. Szulubin entrou. No tapete forrado com um punhado de palha, enrolado na capa, com o rosto virado para a parede, dormia um 182 viajante. Contrariado pelo fato de que alguém podia descansar enquanto ele não tinha onde sentar, chutou com o pé o adormecido. Não teve resultado imediato, pois o viajante mexeu-se e parecia procurar alguma coisa com as mãos, embaixo do capote. O promotor gritou: - Nu... wstavaj... Ao ouvir a voz prepotente, o homem enrolado na capa moveu-se, mas com lentidão, começou a descobrir-se, devagar... mas, de repente ele saltou, afastou o largo abrigo, e no instante em que o coronel temeroso voltava a si, pegou-o, e com mão forte, agarrou-o pela garganta. Szulubin, à luz pálida da vela a óleo, reconheceu agora, odiados há tempo, mas muito seus conhecidos, a face e os traços de Andrzej Wasilewski e seus olhos de fogo pregados nele, com a mão, segurava-lhe a garganta e apertava-a. Com a outra, erguendo o revólver, apontou-o no seu peito. O coronel tentou arrancar-se, mas sem resultado. O punho forte comprimia-o num aperto de ferro e o cano do revólver encostava no uniforme, à altura do coração. O medo da morte tirava-lhe as forças, não tinha arma, gritou por socorro, mas sabia bem que o judeu não poderia socorrê-lo. O anfitrião, de camisola preta ritual, apareceu à porta, mas o viajante gritou: - Feche a porta, senão atiro, que ninguém ouse entrar. E a porta fechou-se violentamente. O silêncio da morte reinou na hospedaria, só se ouviam murmúrios e leve ruído. Andrzej segurava o promotor, que se debatia, e o apertava cada vez mais forte na garganta. O rosto do homem arroxeava, os olhos saíam das órbitas. - Criatura ignóbil, indivíduo desprezível, indigno do nome de humano – gritava Andrzej, com voz entrecortada – encomende a alma, se a tens, ao satanás ao qual serviu na vida, porque inteiro e vivo, daqui não sairás. Perseguias a 183 minha irmã, envenenaste-lhe a vida, vingava-se do velho desvalido meu pai... o destruístes... persegues-me... apostas com a minha vida... mas Deus enviou-te desarmado para essas mãos que quisestes colocar em grilhões... chegou a hora do ajuste de contas, perecerás!... Falando isso, jogava com ele, apavorado como criança, querendo derrubá-lo. O promotor não podia livrar-se e não ousava, forçava inutilmente, de leve, porque sentia que o revólver que estava encostado no seu peito, com o mínimo movimento, atravessaria o seu coração com uma bala. Não ousava pegá-lo com a mão para não acelerar a própria morte. Veio uma idéia ao seu pensamento, resolveu que devia lutar mais e mais, e a qualquer preço, porque o seu pessoal podia chegar e a situação se reverteria. Resolveu pedir clemência. - Andrzej, Andrzej! – exclamou – eu juro a você, eu cumpria e cumpro ordens, eu jurei como oficial, eu não devo nada, perdoe-me... concede-me a vida... solte-me... tenha piedade... não farei nada contra você, sairás livre, não vou perseguir-te mais, permita-me viver... - Não - gritou Andrzej – não! Conheço-te e não acredito em você. Se te deixasse partir você ia perseguir outros e aterrorizar; o animal feroz não renega a sua natureza, você nasceu para isso... se crês em Deus, reze, porque terás um fim... tenho seis balas, e uma é destinada a você, para eliminar-te e limpar o mundo deste monstro que é você... ajoelhe e reze, ser desprezível. O promotor caiu de joelhos. A oração podia salválo, daria mais tempo para que os soldados chegassem... - Andrzej, pela alma da tua irmã, eu te imploro, e juro a você que deixo esse país, o emprego, tudo... que vais lucrar se me tirares a vida? Vão procurá-lo, persegui-lo, e vão pegá-lo. Eu te deixo ir... eu favoreço a fuga... eu prometo pela honra militar, Andrzej, pela alma do teu pai... 184 Mas Andrzej, rancoroso pela luta, não queria soltálo, segurava o revólver no peito dele, mesmo que o ódio e o cansaço fizessem tremer a sua mão. Szulubin sentiu que o inimigo vacilava, dobrou a oração e o pedido de clemência. - Mas uma vez juro a você, sairás inteiro, concedame a vida, palavra de soldado. Andrzej, você é humano... O emissário ouvia; a repugnância estampou-se no seu rosto altivo, soltou-o finalmente, empurrando-o com força. Szulubin caiu estatelado no chão, mas o revólver ainda estava apontado ao seu peito. - Não quero macular-me com o teu sangue infame – gritou, abaixando a arma.Viva! Quero ver como vais cumprir o teu juramento solene, que te salvou a vida. Mas, lembre-se! Se das pessoas envolvidas com a minha causa cair um só cabelo da cabeça, se ousares perseguir Radziszew, mesmo que eu pereça, vai haver alguém que te estoure os miolos. Se não for eu, será outro, lembre-se! Quando o coronel tentava erguer-se do chão, olhando ainda desconfiado para o adversário, um barulho longínquo chegou aos seus ouvidos, reconheceu, ou antes, adivinhou, a aproximação dos seus soldados chegando com o coche quebrado. Dependia apenas de um minuto para que o emissário fosse capturado, e a vingança concluída. O juramento não o impediria de realizar esta infamia. Torcia para que não desse tempo de Andrzej sair, porque este já estava vestindo a capa. Não ouviu a conversa dos soldados chegando, mas, voltando o olhar ao ainda esparramado no chão, promotor, que forçava para equilibrarse nas pernas, não dizendo nada, jogou-o para a despensa, e sem soltar a arma das mãos, saiu devagarinho, fechando a porta atrás de si. Na porta, ainda, jogou-lhe a última palavra: - Lembre-se do juramento! 185 Szulubin suspirou, sentindo-se salvo, como por milagre. Toda a arrogância voltou-lhe junto com o ódio que nele explodiu incontrolável. Chegou até a porta tremendo, encostou o ouvido, esperou até Andrzej afastar-se alguns passos, depois, ouvindo o chamado de Wacek, que adentrava na hospedaria, possuído pelo ódio, saiu do quarto gritando: - Peguem-no! Peguem-no! Ainda não repetiu pela segunda vez a ordem quando da meia escuridão silvou um tiro, e Szulubin, ferido no ombro, balançou e caiu na porta. Sangrando e insistindo com os soldados: - Peguem-no! Mas Andrzej, com o revólver na mão, sem medo, passou devagar entre as pessoas assustadas, e quando resolveram agir contra ele, sumiu no mato denso. A notícia desses acontecimentos, como fagulha, esparramou-se por todo o distrito, com grande repercussão. Levaram o promotor até Luck e despacharam um mensageiro urgente para Kiew e Zytomierz comunicando o fato às autoridades. Chegou logo uma comissão especial, um coronel, comandante da polícia, um auditor militar e comissões de inquérito. Mandaram de Dubno um pelotão de infantaria e, com ajuda da polícia e dos investigadores, foi organizada uma batida rigorosa em toda a extensão das florestas do distrito. O terror tomou conta da população inteira. Szulubin estava apenas levemente ferido no ombro; conseguiu, assim, mais uma promoção, a qual desejava havia muito tempo, e um prêmio em dinheiro. Sarou logo da ferida e, com redobrado ardor e perseverança, mesmo que ainda carregando o braço na tipóia, viajou novamente pelo distrito à caça do emissário. 186 Inutilmente, as pessoas razoáveis apresentaram-lhe argumentos, pelos quais ele não estaria mais escondendo-se neste distrito, onde estava sendo procurado com insistência, já devia estar longe, nas florestas e alagadiços de Pinsk ou Bialowieza, ou, com a cooperação dos participantes na causa da insurreição, tinha sido transferido além da fronteira austríaca, não longe dali, e bem fácil de atravessar. O promotor teimava na incansável perseguição do inimigo, dizia ter pressentimento que o pegaria com certeza. O ferimento, pago regiamente, livrava-o das obrigações rotineiras; até o magistrado Zaglowski foi trazido para a cidade por sua ordem, apesar da promessa feita de não incomodá-lo, e muitas outras pessoas foram investigadas por qualquer motivo. Era, pois, uma oportunidade excelente para que o jeitoso coronel usufruísse dela o quanto podia. Os cárceres encheram-se de sacerdotes, civis, nobres, judeus e habitantes das florestas. Nos mosteiros, requisitaram as celas para as mulheres, porque nem elas estavam livres da investigação. Comissões alerta averiguando, reuniões, decisões, protocolos e revistas nas casas que não tinham fim. A polícia bêbada ia de propriedade em propriedade seviciar, prevaricar e estuprar. Mas apesar dessas providências, da procura, de cuidados, do prêmio oferecido pelo governo, não havia sinal visível do emissário desde a sua fuga da hospedaria; não foi conseguido nada, como se ele tivesse caído na água. O magistrado Zaglowski, que foi trazido para Luck, apesar dos protestos do promotor (falsos) e sob guarda dos soldados, como doente, colocaram-no, por enquanto, no ambulatório militar. Já estava lá por duas semanas. Sua filha e a tia Martyna ainda não haviam sido presas, mas informadas que precisariam depor no inquérito. 187 Krystyna, adiantando a ordem do governo, com o propósito de libertar o pai e rever o seu caso, entregou a propriedade à administração de um economista e só, juntando dinheiro, o quanto mais podia, veio para a cidade. Com grande preocupação, recursos, propinas, conseguiu pelo menos uma ordem para poder visitar o pai, às tardes. Apesar da situação perigosa, pois Zaglowski sabia certamente que, num momento infeliz, podia esperar expulsão para o interior da Rússia, nem ele nem a filha perdiam a coragem. O magistrado queixava-se que não tinha com quem jogar baralho. A jovem parecia que, entre as desgraças e infelicidade, adquiriu mais força e determinação, mais vontade de viver. O pai mostrava-se indiferente, brincava com tudo, mas era apenas máscara, era para consolar a filha e dar-lhe mais energia e coragem e esconder a preocupação interna. Ambos alegravam-se pelo fato de o infeliz fugitivo não ter sido alcançado nem preso. O juiz protestava mais pelo ataque dos funcionários contra o seu bolso e o grande prejuízo em dinheiro. Nestes casos, a avidez dos moscovitas não tem limite. Eles sabem que os detentos, sem direitos, os mais essenciais, estão à mercê dos seus algozes, e cada um deles segura nas mãos a vida e destino dos prisioneiros, barganham portanto, com crueldade e cinismo de carrascos sem alma. Os absolvidos saem com vida e verdade, mas roubados até a última camisa. O magistrado, ao falar disso, acrescentava: - O diabo que os carregue, se pelo menos me mandassem alguém para jogar cartas comigo à tarde. Já me aborreci de estudar a cabala. Krystyna, para estar próxima ao ambulatório do exército, onde estava o seu pai, alugou uma casa no bairro, numa pequena propriedade. Metade da casa era ocupada 188 por ela com a tia, e a outra, pelo proprietário, velho habitante de Luck, curtidor de couro. O outono ia já avançado. Pequenas geadas de manhã indicavam a aproximação do inverno, desejado pelos habitantes por diversos motivos, e também porque secaria as ruas e facilitaria o transporte de víveres. Ela estava sentada, à tarde, com o livro na mão, perto da mesinha, era o dia que não podia ir visitar o pai, quando bateram na porta, levemente. Logo após, entrou com cautela um homem vestido como um servo, cobrindose com um casaco de capuz, devagar, olhando para os lados, o qual a moça tomou por um enviado do pai. Chegou perto dele, mas foi tão grande a sua surpresa e medo, juntos, quando olhou com atenção o visitante, mudo até aquele instante, e reconheceu nele tão bem guardada na lembrança a fisionomia do infeliz emissário. Parado em frente dela, silencioso, embaraçado, implorava com os olhos. No primeiro momento faltaram-lhe as palavras, os lábios tremeram, dobrou as mãos, afastando-se. - O senhor aqui? Aqui? Onde te procuram, te caçam... quando a tua cabeça está a prêmio... oh! meu Deus! Eu que já estava me consolando com a esperança de que fugistes, de que estás a salvo, além da fronteira. Andrzej suspirou. - Querida senhora – disse baixinho, abaixando os olhos, sentindo-se culpado - até já podia ter saído deste aprisionamento, mas a obrigação que assumi não permitia... a missão não cumprida... os outros estão na situação mais perigosa do que eu e esperam socorro. Precisava ficar para proteger os outros, salvar, ajudar e servir a santa causa da pátria. A minha vida há muito tempo ofereci em holocausto. Se perecer, pereci. 189 A jovem, com expressão de lamento e comiseração, pegou-o pelas mãos, mas Andrzej, sorrindo, como que encabulado, afastou-a. - Ah, senhora, a minha mão não merece ser tocada pela sua, grosseira e encardida pelo trabalho, mão de operário... de servo... podiam reconhecer-me pela mão, se a conservasse branca e macia. - Mas eu a beijaria – interrompeu ela, afoita, - porque esta mão é santa... de um verdadeiro herói da pátria. Andrzej comoveu-se. - Mas, senhorita – respondeu – não é conveniente perturbar a cabeça das pessoas, eu ainda não fiz nada. Envergonho-me por ter sofrido pouco. E se para realizar uma obrigação precisasse de prêmio, as tuas palavras seriam suficientes para pagar a morte de um mártir pela pátria. Krystyna ruborizou-se. - As palavras pronunciadas pelos meus lábios – concluiu saudosa - o que significam para você? O que eu digo... o sentimento deste coração, o pedido ardente, pois estou implorando inutilmente, não se arrisque mais, fuja. - Querida - gritou Andrzej desesperado - você mesma me desprezaria se eu fizesse isso, não ia merecer o teu sentimento, o significado dele tem que ser o mais amável e o mais precioso... porque cheguei até aqui expondo-me, para que ouças isso... amo-te! As últimas palavras foram apenas murmuradas por ele. Os olhos de Krystyna encheram-se de lágrimas, ficou indecisa, ruborizou-se, mas seu coração bateu forte. Ela pegou as mãos calejadas do moço. - Andrzej! Por mim, salva-te... imploro. Procuram por você, conhecem você, não podes fazer nada. Ouve, ninguém vai condenar-me, eu sou mulher, e juro a você, eu vou, cumpro, e entrego os documentos, faço o que me mandar. Permita desempenhar esta tua obrigação, ficarei feliz 190 em dobro, nada me acontecerá, serei cautelosa, esperta, vais ver. Engano-os! Conseguirei forças, mesmo que me martirizem não direi uma só palavra. Rogo-te, não me perca, perdendo-se a si. Falando isso, cobriu os olhos. - Krystyna, minha alma - gritou angustiado Andrzej, caindo de joelhos - ajoelho-me para agradecer o teu heroísmo e pela tua palavra que me concedeu o único instante de felicidade na vida. Faria o que pedes, se pudesse e não estivesse comprometido com o juramento, com palavra de honra, com a confiança dos meus compatriotas, quem sabe? - Pode ser que Deus resolva salvar-me para que eu te sirva para sempre, mas se for o meu destino perecer, só você poderá guardar a lembrança de um desconhecido que ofereceu a vida em oferenda à pátria. Uma vez mais, ao lado desse negro precipício que guarda o meu passado, queria ver-te e confirmar como em confessionário que você me encantou, que por sua causa quase que falhei nos serviços da pátria, que te amo e venero, e se eu morrer, a minha alma permanecerá junto de ti. A jovem começou a chorar... silenciaram. - Não, querido - falou com a voz embargada, depois de uns instantes, enxugando as lágrimas. Deus não será tão terrível, você deve ser salvo porque merece por sua dedicação e oferenda. Eu sinto isso... eu quero... nos veremos novamente livres... nos encontraremos para darmos as mãos para sempre. Falando isso, deu-lhe a mão, a qual Andrzej beijou com paixão. Krystyna inclinou-se para ele. Nesse ínterim, a tia Martyna entrou com a capelinha de Nossa Senhora de Czestochowa nas mãos, óculos sobre o nariz.Tendo ouvido um ruído no cômodo próximo, caminhou na ponta dos pés para ver o que estava acontecendo. 191 Estacou ao ver um aldeão, vestido como um simples servo, beijando as mãos da sobrinha. Ainda isso não seria nada, mas podia ser que por causa dos óculos, com lentes fracas - ou simplesmente por medo, - pareceu a pobre tia que seus rostos e bocas se aproximaram, que esse mísero aldeão ousou beijar uma dama da nobreza. Ao ver um tal perigo, a tia soltou a capelinha das mãos trêmulas, os óculos caíram no chão, quebrando-se em pedacinhos. Deu um grito, assustada. - Oh! Pelas chagas de Cristo! E com certeza ia desmaiar, mas por sorte não tinha nenhum sofá ou cadeira por perto, em que pudesse cair. Encostou-se na parede. Sua voz elevada podia alertar todos os serviçais da casa e despertar a atenção dos moradores da vizinhança. A moça, com medo, deu um sinal a Andrzej para que fosse embora e foi rapidamente ao encontro da tia, alcançando-lhe a água de colônia. - Por amor de Deus, tia! Se a minha vida for preciosa para você, não repita o que viu! Te imploro, não fale a ninguém! Faça silêncio. Aqui não tinha ninguém! Logo depois, vieram correndo do curtume duas serviçais, mas Krystyna explicou que a tia, caminhando pelo quarto escuro, bateu-se na perna doente, em que havia calos doloridos. Desse modo, tudo ficou aquietado rapidamente na casa. As serviçais foram embora, a tia sentou no sofá e a sobrinha, com água de colônia, gotas e essências, estava às voltas com a tia. Mas, acima de tudo, esses medicamentos fariam melhor efeito se desvendassem o terrível segredo que não poderia confiar à tia, pois ela era a melhor pessoa do mundo, tinha medo de tudo, e não sabia guardar segredo, por um minuto sequer. - Mas, o que era aquilo? O que era, minha querida? Tenha piedade, diga-me. Sossegue meu coração. Vi com 192 meus próprios olhos quando chegavas tua boca à face daquele aldeão. Quem poderia ser que tinha direito e que ousaria? Meu anjo, isso é horrível... confesse-me tudo, eu não falo a ninguém... aldeão! Mas não poderia ser um verdadeiro servo. - Tia querida, acalme-se. Não posso te dizer o segredo, que não me pertence – respondeu ela - mas posso jurar-te que se não for este, nenhum outro terá a minha mão, porque ele tem o meu coração. A senhora Martyna torceu as mãos desesperada. - Jesus Cristo! Pelas chagas do Senhor! O que eu estou ouvindo? Isso mais parece um romance francês... isso não parece com nada... aldeão... vestimenta... não cabe na minha cabeça... e você, sobrinha... - Titia, não pergunte nada, mas confie em mim – interrompeu - não pergunte porque me entregas e não penses no pior porque estou inocente e pura. - Mas o pai no cárcere, e você... Krystyna, abaixando os olhos, suspirou. - Sim, nesse caso sou culpada – disse – mas não aconteceu com o meu consentimento. Não posso te revelar hoje esse grande segredo, algum dia vais saber de tudo, então vais me absolver. A tia silenciou, mas a primeira oração que fez após esses acontecimentos foi rezar o terço em louvor à Nossa Senhora de Czestochowa. *** No dia seguinte, o promotor Szulubin, após lauto almoço, oferecido por seus colegas de armas, comemorando o prêmio que recebera em forma de uma medalha com a efígie do príncipe Wladmir, voltou para casa para descan193 sar. O champagne, vinho que apreciava deveras, sempre deixava-o sonolento. O seu ajudante de ordens Wacek tinha por regra estabelecida há tempo que, durante a sesta do seu superior, nada e ninguém podia perturbá-lo. Agora, como sempre em ocasiões semelhantes, estava vigiando na ante-sala e distraía-se lendo um desses livrinhos com capa de madeira, o qual compunha a única literatura original moscovita, que era distribuída pelos vendedores ambulantes pelo país. É sabido que os contos neles relatados são apreciados pelo povo, que se identifica neles, e nem sempre são impressos, são às vezes xilografados, isto é, as letras são recortadas em madeira, como as antigas escritas egípcias. Classes inteiras de artesãos, desde os tataravós, ocupavam-se com essa forma de recortar as letras em madeira para imprimir os livrinhos em papel barato, acessível ao povo. Por muito tempo, essa literatura pôde ser bastante liberal, pois não estava sujeita à censura. Alertaram-se depois, porque as vezes eram ali citados e criticados os czares e suas famílias. Então, o comitê plenipotenciário condenou os livretos de madeira. Wacek estava lendo a história do gigante Ob e os sete czarevitz, quando no instante mais interessante da leitura que ele silabava, a porta foi aberta com violência e, apareceu o rosto do coronel Priluka, ruborizado, não se sabe se de wodka forte ou do vento, ou se de ambos. Com voz rouca, perguntou: - O coronel está em casa? - Está, mas está descansando– respondeu Wacek, silenciosamente, como era seu costume, dando exemplo ao visitante, para que respeitasse o sono dos justos. - Está descansando, não é? Priluka quis entrar direto, mas o serviçal impediuo, protegendo com o largo peito o descanso do seu superior. 194 - Peço desculpas ao excelentíssimo senhor, mas quando não pode, então não pode. - Querido, você é um idiota – respondeu Priluka, pausadamente, - não pode se alguém vem com problemas menores, não tendo o que fazer, mas eu tenho um negócio importante a tratar. - Mas o senhor coronel depois bate em mim! - Pois que bata! Mas quando se trata de interesse importante do governo, do czar, eu te garanto que nada vai te acontecer. Deixe-me entrar. Wacek, entre o czar e o promotor, ainda tinha dúvidas, porque o czar estava longe e o promotor atrás da porta, quando do outro quarto ouviu-se a voz sonolenta e rouquenha de Szulubin. - Que estardalhaço é este? Wacek, quem o inferno enviou agora, assim que pude adormecer? - Sou eu, eu – respondeu Priluka, empurrando o ordenança - mas enganas-te, porque não foram os diabos que me mandaram. O amigo entrou sem cerimônia. Szulubin estava sentado no sofá de couro e esfregava os olhos, sonolento. - Wacek - gritou alto, sem cumprimentar o amigo – diga à senhora Zoska que faça ponche para nós, de marinheiro, como ela sabe. - Não, não! Eu não vim tomar ponche com você disse Priluka, sentando – eu vim aqui tratar de um interesse importante. O promotor ainda bocejava. - Que interesse importante? Quer despojar alguém em Olszowo? Hein? - Não, vais ver - falou - mas antes falemos como gente, uma mão lava a outra. O promotor olhou-o de soslaio. 195 - Se eu conseguir entregar a você esse detestável e subversivo Andrzej Wasilewski, em tuas mãos... o que eu ganho com isso? O interrogado olhou incrédulo. - Já me entregaram ele assim por diversas vezes. Ele faz tempo sumiu daqui, deve estar no estrangeiro. - O que você me dá por isso? – repetia Priluka. - O que eu devo te dar e pelo quê? - Porque você de novo receberá de prêmio ou uma cruz ou promoção ou dinheiro, e eu recebo o quê? - O que eu devo dar a você? Apresentar-te candidato ao prêmio como denunciante? mas isso não pode ser. Priluka pôs as mãos no bolso. - Isso já é outro caso, o que o governo vai pagar. Você sabe que sou seu amigo, mas de graça não denuncio, deve me dar algo em troca. Para mim é a mesma coisa, se é você que o pega sozinho ou um policial do governo. Vou ao delegado e o pegaremos em dois. Vão me pagar muito bem. - Mas, com todos os diabos, onde ele está? - Onde? És ladino... diga, o que me ofereces? – disse rindo Priluka – a amizade é uma coisa boa, mas nem de favores se faz uma camisa, nem de beijos. - O que devo te dar? Judeu! – indagou Szulubin. - Judeu? Perdôo-te esta, porque somos amigos, mas você ganhou o cavalo alazão do comissário de polícia para não denunciá-lo. - Então você quer se apoderar dele? - Não, não obrigatoriamente... o que farei eu com um só cavalo? - Não te chega isso? Hein? Como não devo te chamar de judeu? Não ficas com vergonha? - Por que devo ter vergonha? Eu estou oferecendo muito mais do que você pode me dar. 196 - Então diga-me o que quer... e não me martirize por mais tempo – gritou nervoso Szulubin. Diga, você já veio aqui decidido do que pedir. - Mas, certamente! – respondeu tranqüilo o amigo – pensas que não andei em volta disso, não averiguei? Não sofri por uma semana aqui em Luck? - Pois já tenho a resposta. Ele está em Luck, pego ele mesmo sem você – falou rindo o promotor. - Então pegue - disse friamente Priluka, levantandose da cadeira. Muito bem, não falo mais nada. - Ei! Que mau amigo que você é! – falou o promotor, já mais calmo, estendendo-lhe a mão. Já não somos velhos companheiros? Está aí a mão, dou o que queres, se puder. - Eu não quero muito, um par de cavalos alazão... dinheiro não peço... - Tenha pena, os meus melhores cavalos? - E eu ia querer se fossem ruins? - disse Priluka, rindo e esfregando as mãos - Bom negócio e bons cavalos. - Sim, eu dou... dou... assim que o pegar. Palavra? ´ - Palavra... E daí apertaram as mãos para selar o acordo. A senhora Zoska, judia batizada, natural de Olikni, trouxe sorrindo o ponche nas taças, era a governanta do coronel, pessoa ágil, de olhos pretos, não muito bela, muito extrovertida e oferecida, o resto... é só suposições... Na cidade chamavam-na de coronela e promotora, e ela pensava seriamente que algum dia seria de fato. De acordo com o costume, esperava ser recebida com gracejos e galanteios, mas Szulubin mandou-a deixar o ponche e sumir rápido. Saiu aborrecida e se desconfiasse que os preciosos cavalos com os quais às vezes viajava, alguém queria lhe tirar, aí teria razão de sobra para ficar nervosa. 197 O promotor fechou a porta. - Fale - insistiu com o amigo - esse homem desleal já me custou muito sangue e suor para que eu possa me alegrar quando ele subir à forca ou for deportado para Sibéria, em grilhões! - Ouça – respondeu calmamente Priluka, sorvendo o ponche quente – o amigo não se enganou deduzindo que ele está em Luck, mas mesmo assim não vais encontrá-lo sem mim, falando a verdade, nem o diabo adivinharia que este homem ousado arriscaria esconder-se aqui perto da sede do distrito, na aldeia onde o seu pai morava, onde todos o conhecem, bem ao lado da polícia rural. Como vês, o demônio é hábil e inteligente. - Sabes que eu tenho propriedade em Berestecko, conheço todos eles, nobres e aldeões, proprietários, conheço todos há muito tempo... particularmente. Meu arrendatário começou a me incomodar apresentando contas. Fui até lá para jogá-lo fora da propriedade, porque não temos contrato... eu também não sou bobo, mas precavido, sabia que terminaria assim, invariavelmente como sempre... e ele ainda me ameaçava com denúncia! É! Isso é demais. Assim, eu o enxotei com as crianças, velhos e as mulheres. Mandei jogar todos na rua... denunciem agora! Miseráveis... - Como já não tinha mais arrendatário, precisei eu mesmo dar uma ordem na propriedade; não seria fácil encontrar um outro administrador, precisei ficar na gleba. Que tédio insuportável! Não tendo o que fazer fui conhecer melhor os habitantes da aldeia; os arrendatários, aldeões, servos, popes e proprietários, não tive outra alternativa. - A plebe briga entre si, discute, acusa-se, ameaça, trazem as queixas para eu resolver, porque sabem que eu tenho amizade com a polícia local. Numa noite dessas o pope veio fazer-me uma visita, você sabe que eu não aprecio o clero – porque é uma gente difícil de lidar –, mas o 198 que eu podia fazer? É um sacerdote, pastor das almas... clérigo enfadonho, mas mesmo assim beijei-lhe a mão. Eu estava tomando chá quando ele apareceu na porta, precisei convidar – servir-lhe rum, na verdade era wodka pura. - O pope começou a tagarelar, despejar as palavras, como se tivesse desamarrado um saco. Ele sabe que sou amigo dos seus superiores. Após o segundo copo já beijava a minha mão... sussurrando, contou-me segredos ao ouvido... que na aldeia escondia-se um recruta foragido, um aldeão hospedava-o; disso podia-se deduzir alguma coisa. - “Deus nos livre, se depois descobrem, todos vão sofrer”, disse o pope. Pressionei-o mais, disse-me onde... como. No outro dia fui investigar em sindicância secreta, amedrontei os aldeões, até que um deles confessou que na casa de um vizinho dele mora um homem, parece ser um trabalhador, que lavra a sua terra, não aparece em parte alguma e dorme num esconderijo... assim que encontrei esse rastro, comecei a indagar, e claro, concluí quem era. - Bah! Bah! Quem te disse que era ele? Isto é tua dedução, pode ser um recruta mesmo - duvidou Szulubin. - Eu te afirmo que é ele – se não for, não me dás os cavalos. Ainda quando o velho Wasilewski era proprietário aqui, ele era benquisto pelos aldeões, porque viviam com eles, curavam-nos, alimentavam, dividiam mesmo o último pedacinho de pão, por isso a aldeia toda morreria por eles... e eu não ia conseguir nenhuma informação, se não fosse um elemento de outra aldeia. Eles não o entregariam nunca. O promotor estava pensativo. - Sim, é verdade?Verdade? - indagou mais uma vez. - Vais ter certeza, mas não podemos perder tempo. Nesta noite mesmo iremos com os gendarmes e pegaremos ele como se fosse um lobo na caverna. Dorme em esconderijo, só tem uma porta para entrar, a cavidade é pequena, a 199 garganta da caverna é muito estreita, nem um gato fugiria por lá, além do que, cercaremos em torno. Szulubin tremia todo. Sorria com ódio satânico. - Oh! Enfim! – gritou abraçando o amigo e virando um copo de ponche pela garganta - pois não tenho pena do par de cavalos alazão... se eu conseguir ter ele nas minhas mãos... e você foi bobo, porque se me pedisses, eu te daria até quatro cavalos, o coche e os arreios, e mais cem rublos por esse indivíduo. Priluka sacudiu os ombros. - Pois é! Bobo! – disse – É verdade, mas amigo. O promotor fez soar o sininho. - Hei! Ordenança, venha logo. Neste instante apareceu o homem chamado, meio bêbado, mal podendo firmar-se nos pés. Szulubin olhou para ele e gritou: - Você está bêbado! - Deus me livre! – respondeu Wacek. - Hei! Hei! Wacek, mas de novo! No horário do trabalho? - Deus me livre! – dizia o ordenança, mas a cada palavra soluçava. - Você não vale nada! - Deus me guarde, eu tomei como remédio. - Sim, acredito! Mas você precisa ir ao distrito. - Ilustríssimo, juro! Eu estou apto. - Providencie para que tudo esteja preparado. Quatro gendarmes, quatro soldados da reserva, dos melhores... carroça, cavalos. Que viva alma não fique sabendo de nada. - Sim, senhor coronel. - Mais duas pessoas da sentinela poderiam ir? Szulubin olhou para Priluka, que confirmou. - Pegue da delegacia um par de algemas... cordas... quem sabe podem ser úteis. 200 - Estou ouvindo, coronel. - Ao entardecer quero tudo pronto. - E, à meia-noite, estaremos na estrada - concluiu Priluka. - não antes. - À meia-noite. - Você tem tempo para sair da bebedeira, quero você lúcido – concluiu o coronel, ameaçando-o com o punho. Wacek saiu soluçando de bêbado, e os dois amigos saudaram com ponche a esperança de poderem finalmente vingar-se de Andrzej. A noite era de inverno, fria. O outono passou e, de vez em quando, caía uma neve fininha que deixava branco e congelado o solo úmido. A terra estava encharcada com as chuvas prolongadas, endurecia com o vento do norte... o céu, ao entardecer, cobria-se de nuvens espessas, pesadas. Na pequena aldeia, conforme era costume local, as luzes já estavam apagadas em todas as casas, só algumas janelas estavam iluminadas, porque as pessoas preferiam levantar de madrugada no inverno, a ficar até tarde sem deitar-se. Só na hospedaria e em algumas residências a luz brilhava através das vidraças enfumaçadas. A investida contra o infeliz agente foi organizada com todo o cuidado, para não espantá-lo e deixá-lo fugir novamente. As carroças foram deixadas longe da aldeia, os soldados da reserva que conheciam o local, quando em manobras no rio Styr, foram mandados para cercar a casa e o esconderijo. O promotor, armado de espada e revólver, junto com os gendarmes, silenciosamente, com cautela, foi aproximando-se das casas. Traziam nas mãos as espadas, para que não fizessem barulho. Priluka, agasalhado com capote de lã, fazia companhia ao amigo Szulubin. No vilarejo, além dos cães atentos que, acordados, ladravam, sentindo a presença de estranhos, não se ouvia voz nenhuma. Caminhavam devagar, em 201 silêncio... obedecendo à ordem. Priluka mostrou ao promotor a casa em questão, rodeada de cerca viva de espinhos e sombreada pela velha pereira. Os olhos, acostumando-se à escuridão, podiam perceber que os soldados mandados na frente já tomaram as suas posições, em silêncio. Enfileiravam-se no pátio com as armas apontadas, guardando o maior cuidado para não fazer nenhum ruído. Com o coração aos saltos, o coronel entrou pelo portaõzinho aberto. Ordenando os soldados, mandou bater na porta da casa. Não havia mais luz no recinto. Ao ouvir o barulho, uma mulher apareceu, com um casaco de lã sobre as costas, estava sem pressa. Mandaram que o dono saísse, mas ele não estava em casa – foram informados que ele prestava serviço ao assessor do distrito, trabalho semanal, que todas as aldeias realizavam como tributo, pois não podiam arcar com maiores encargos em dinheiro. A mulher, assustada, vendo na semi-escuridão tanta gente, tremia, não podia falar, chorava. Atrás dela apareceu um servo que foi capturado, ao sinal do coronel. Apertaram-no para que os levasse ao esconderijo onde o fugitivo escondia-se. O trabalhador jurava que não sabia de nada. Começaram a bater nele com as coronhas das espingardas. O coronel dava-lhe murros com o punho quando Priluka chamou a atenção dizendo que perdiam o tempo precioso, porque a gruta estava ali, visível, os gendarmes já forçavam a porta do esconderijo, um deles trazia na mão uma lamparina acesa. No interior da gruta não se ouvia nada. Mas quando os portais quebraram e a porta caiu, a entrada ficou livre, uma bala sibilou, atingindo o primeiro que colocava o pé no esconderijo. Outro gendarme, vendo isso, afastou-se. Priluka, que olhava de lado, fugiu atrás da cerca. O coronel escondeu-se atrás da pereira, mas começou 202 a gritar e açular os soldados para que pegassem o fugitivo, vivo ou morto. Ninguém teve a coragem de aproximar-se, e o gendarme ferido, jazia prostrado na terra, gemendo; lembrava o perigo iminente. Inutilmente Szulubin, enlouquecido gritava, batia, ameaçava, repreendia. Os seus homens chegavam perto da entrada da gruta, de lado... e ao mínimo ruído, afastavam-se aterrorizados. Esses instantes de indecisão estavam se prolongando. O coronel começou a temer que, aproveitando a escuridão da noite e a confusão, o emissário escapasse. Priluka resolveu destacar alguns soldados com carabinas para que se postassem na garganta da gruta, que sobressaía do chão, atirando para dentro. Colocou outros na porta. Esse meio foi escolhido ao acaso, por não haver outra alternativa, pois, a dimensão da gruta não era conhecida nem a direção do corredor no subsolo, o fugitivo podia esconder-se dos tiros num recanto. Porém, a desgraça quis que o recurso aplicado surtisse efeito inesperado. Após seis tiros de carabina, ouviram-se gritos e um curto gemido truncado ouviu-se do interior do esconderijo. Depois tudo silenciou. Transcorrido um quarto de hora, não se ouvia nada, e o mais valente gendarme, animado com a promessa do prêmio de dez rublos, desceu devagar para dentro, com a pistola e a lanterna nas mãos. Tendo dado alguns passos, começou a chamar com voz alegre e triunfante. Todos correram para a porta da gruta. Atingido por duas balas, no peito e no quadril, o fugitivo jazia coberto de sangue, desmaiado. A vida ainda não o abandonara. Respirava levemente; a fraqueza denotava a pouca vida que ainda lhe restava. Os olhos negros parados, olhavam com desdém aos que o circundavam... nenhum gemido, nenhuma palavra... deitado, agonizava, mas não apre- 203 sentava alma alquebrada. Duas lágrimas enormes nos olhos vítreos brilhavam como dois diamantes. O promotor, com os dentes cerrados, pálido, tremendo, mais perturbado do que a sua vítima, concluiu, então, descontente, que estava levando um inimigo agonizante, do qual esperava conseguir informações preciosas. As ordens superiores eram claras e decisivas – fazer todo o possível para trazê-lo vivo. Talvez por isso, sem molestá-lo mais, ergueram o corpo, amarraram rapidamente as feridas e mandaram chamar o médico mais próximo. O agonizante foi transportado com o maximo cuidado até o carro, em padiola improvisada e, em silêncio, até o hospital militar em Luck. Não fora por misericórdia humana, mas pela importância do ferido, que se esforçaram em conservar a vida do infeliz. Ao Szulubin era uma causa crucial que as feridas sarassem, para condená-lo ao padecimento nos grilhões e nas mãos dos carrascos. Parou em frente da sua vítima e exclamou vitorioso: - Agora estás nas minhas mãos, cachorro!... Andrzej encontrou os olhos dele, e seu olhar era tão terrível que o promotor apenas balbuciou alguma coisa. Szulubin e Priluka conseguiram uma vitória singular. Agora iriam até a hospedaria para beber wodka para festejar, mas acabrunhados, não disseram uma só palavra um ao outro. Priluka também encontrara o olhar condenatório do agonizante. Crédulo em feitiçaria como todos os russos, pôs na cabeça que iria ser castigado; enfeitiçado já estava... Andrzej, cujas feições cobriram-se de uma palidez quase mortal, cada vez menos mostrava sinais de vida, mas ainda respirava... as pálpebras fechadas... os lábios contraídos de dor... o sangue, estancado com massa de pão e panos 204 queimados, gotejava aos poucos através destes, marcando o caminho por onde era levado. O promotor parecia feliz agora, mas os lábios torcidos num sorriso amargo, as rugas da testa e o brilho febril dos olhos denotavam a angústia que o dominava. Não era isso que esperava, queria-o vivo e recebia-o como um defunto, sem sentidos, talvez emudecido para sempre. Revistaram a gruta, a casa, reviraram a terra em volta, rasgaram as vestes do fugitivo, descosturaram as cobertas de lã, tudo... mas os papéis que procuravam com tanto afinco, não encontraram nenhum perto dele. Wasilewski teve tempo de rasgá-los em pedacinhos e engoli-los, um a um. Assim terminou esta última excursão, vitoriosa. Szulubin voltou dela exaurido, pálido, sentindo-se fraco, e para escrever o relatório precisou beber uma garrafa de rum. Será que só agora recobrou a consciência, que estava semi-morta, acordou-se, ou, por não receber o que esperava - com certeza, - mostrava-se triste e decepcionado. Priluka recebeu o par de cavalos alazão e, com a feição risonha, seguiu para casa. O prisioneiro, devido ao seu estado grave, só podia ser internado no hospital militar, pois os médicos, após os primeiros socorros, concluíram que não podiam garantir a vida do paciente a não ser que lhe dispensassem os máximos cuidados. Andrzej foi deixado em cela especial, sob vigilância restrita. Dois médicos, um local e outro do exército, incumbiram-se do tratamento. Fora atingido com um tiro no peito, mas, felizmente, não comprometeu nenhum órgão vital. Esta bala atravessou o corpo. Outra acertou no quadril, deslizando pelo fêmur, deslocando-o e alojando-se sob a pele. Os dois tiros não foram mortais, mas pela demora no atendimento, muito sangue foi perdido e o caso tornara-se grave. 205 Após algumas horas nas mãos dos médicos, Andrzej recuperou os sentidos, abriu os olhos, tentou arrancar os curativos do peito e impedir o tratamento, mas a voz do médico e a ameaça de ter as mãos amarradas se continuasse a debater-se, acalmaram-no. - Como tens coragem de tratar-me? Bárbaros! – gritou desesperado. Só estão me curando para que sofra por mais tempo, para que agonize e sucumba sob o látego do algoz. Se fossem humanos, dariam veneno para mim. Proibiram-no de falar, mas um médico moscovita, um pouco mais audacioso pelo fato de que não havia ninguém naquele momento perto deles, murmurou: - Enquanto existir um sopro de vida na pessoa, sempre há uma esperança. Nós executamos o nosso dever... e o que Deus destina... só ele sabe. Fique tranqüilo, senhor. Os dois médicos afirmaram com segurança aos superiores da polícia que durante muitas semanas não poderiam interrogar o prisioneiro, se quisessem conservar a sua vida. Por sorte vieram ordens de Kiew e São Petersburgo para que fosse dispensado o maior desvelo no tratamento do prisioneiro, pois depositavam nele toda a esperança de descobrirem as mais importantes ramificações da insurreição contra a ocupação russa na Polônia. Os médicos locais receberam mais um auxiliar especializado, mandado pela cúpula do governo, que veio fiscalizar o estado do doente e empeender os meios mais eficazes para conservar a vida do detento. Na tarde do próximo dia após os acontecimentos, Krystyna informada sem cuidado do terrivel destino de Andrzej, não resistiu e caiu por terra, desmaiada. Voltando a si, só por alguns instantes, adoeceu tão perigosamente, que o médico chamado às pressas pôs em dúvida a salvação da sua vida. 206 A razão da doença não ficou oculta por muito tempo, pelo menos aos mais próximos, porque a enferma, ardendo em febre, falava de todo o seu desespero. O doutor que a tratava era o mesmo que cuidava de Andrzej, e isso podia salvar a pobre doente. Tomou conta dele uma imensa piedade pela infeliz criatura. Do outro lado, o prisioneiro, ao qual conhecia melhor a cada dia, acordou nele um sentimento de admiração e respeito, pelo seu caráter de homem honesto e de energia inquebrantável. Assim que Krystyna conseguiu entender o médico, este sussurrou-lhe as encantadas palavras de consolo: - Senhora - disse - recobre a fé, a saúde, a coragem, Deus é grande... No mundo há mais pessoas honradas do que pensamos, precisa viver e ter esperança sempre... e não posso dizer mais nada à senhora, mas nós... nós temos obrigação de estar alerta, salvar, lembrar as pessoas que até o último alento não devem desesperar. Precisamos admitir que a sorte de Andrzej, até nos mais insensíveis moscovitas, despertava piedade e sentimentos humanos. Szulubin, que recebeu um novo prêmio pela recente vitória, reconheceu, logo após o triunfo sobre o inimigo político e pessoal, perseguido com a maior ferocidade, que até os melhores amigos começaram a afastar-se dele – os seus superiores tratavam-no com fria distinção, mostravamlhe o seu visível desprezo, evitavam estender-lhe a mão. O vice-governador, de passagem pela comarca de Luck, recebeu-o na porta, e na hora de despedir-se pôs as mãos nos bolsos tão indiferente, que Szulubin, ao sair de lá, já na rua, sentiu-se como um revolucionário rejeitado. A mesma coisa aconteceu a Priluka. Ambos sentiram-se tão isolados e detestados, mesmo pelos seus, que não eram nada melhores do que eles, que o infame denunciante começou seriamente a pensar em 207 vender sua parte das terras em Berestecko e mudar-se para a região do baixo Dnieper. Szulubin resmungava que ia pedir demissão, estava certíssimo que o exército ficaria muito sentido com a perda de tão importante oficial. Na verdade, ninguém queria comentar claramente com os ditos senhores a razão da não aceitação e aversão que causavam, mas num meio de amigos, são facilmente percebidas as expressões desses sentimentos. O coronel, nas rodas mais íntimas, comentava com entusiasmo os detalhes dos acontecimentos da sua expedição a Luck, mas, a cada vez, os ouvintes ficavam silenciosos e os mais decididos saíam da sala sob vários pretextos. Ninguém os convidava para nada, evitavam-nos, e os interrogados disfarçavam sempre. Esse procedimento dos seus inferiores na administração governamental não importava – mas até os funcionários graduados, que o admiravam antes, tratavam-no agora direto, como um carrasco que prestou serviço ao governo, cortando o pescoço da pessoa odiada por ele, ao qual pagase pelo trabalho, mas não se aceita sua amizade. Sentimento amargo invadiu o coração do coronel, que começava por meias palavras a reclamar da ingratidão das autoridades às quais se dedicara. Enquanto isso, a sorte do culpado e perseguido comovia até as pessoas indiferentes e mesmo as que tinham outras convicções, mas que sabiam reconhecer e admirar a heróica oferenda. Nem todos ousavam manifestar a sua comiseração, mas todos se esforçavam em segredo para demonstrá-la. A doença, apesar da juventude e energia, requeria um tempo maior, assim, pelo menos, afirmaram os honestos médicos, querendo prolongar o momento de descanso e 208 folga do prisioneiro, pois sabiam que o aguardava um indigno, inexorável e terrível destino no futuro. Não tinham dúvidas que, assim que lhe voltasse a saúde, iria ser investigado, e quem conheceu pelo menos um pouco do seu caso, está convencido que os carrascos não conseguirão dele nem uma só palavra. Estava certo que o esperava o martírio, a fome, o cativeiro e a pressão moral. Se durante os prolongados interrogatórios sob tortura não quisesse falar nada, ficaria condenado à forca ou trabalhos forçados no inferno das minas da Sibéria. Neste país de moscovitas, a tortura medieval ainda se conserva até esses dias, com menos aparato para martírio, mas aplicam-na sem misericórdia nem piedade, com extrema crueldade. Não existe um prisioneiro político mais destacado que não seja açoitado, que não passe fome ou que seja alimentado com arenque salgado, privado de água para matar a sede. Andrzej, recuperando a saúde aos poucos, mesmo estando ciente do que o esperava pela frente, mostrava-se bastante tranqüilo. Falava pouco e não estava preocupado com o futuro. A doçura e o amargor desses dias roubados à morte eram as notícias da sua amada, que o médico Karolenko, cauteloso e dedicado trazia-lhe, cada vez mais afeiçoado aos dois. Karolenko conseguiu convencer o médico-chefe para que o doente fosse protegido do clima insalubre do hospital militar, e para sua total recuperação fosse transferido, até o término do tratamento, para uma isolada, e afastada residência. A febre tifóide que estava presente entre os soldados doentes justificava este cuidado. As autoridades policiais negaram inicialmente, esse procedimento era quase incomum; foi mandado um comunicado a Kiew, e como esse assunto era muito importante, para recuperar a vida do prisioneiro, ameaçada com a infec209 ção pela febre tifóide, foi decidida a remoção do enfermo para um castelinho próximo, com a condição de destacar uma guarnição densa e vigilante em volta dele dia e noite e patrulhamento intensivo do local. Andrzej ainda não conseguia levantar-se da cama e já temiam não se sabe qual eventualidade no futuro. A polícia russa, ao que parece, tem imaginação altamente confusa quanto ao poder das artimanhas, da astúcia, organização e recursos dos patriotas poloneses. Se por acaso um desses infelizes consegue arrancar-se das garras deles é mais grato à falta de habilidade dos seus guardiões do que à esperteza dos seus correligionários, que são às vezes impulsionados para o heroísmo pelo desespero. Krystyna, depois da perigosa doença, estava se recuperando como se fosse por um milagre. Voltava-lhe rapidamente a saúde, mas levantou da cama como outra pessoa; de uma alegre menina, tornou-se cautelosa, uma mulher pensativa, de cujos lábios sumiu o riso juvenil; a testa enrugada, contrita, denunciava uma grande preocupação; os olhos sem brilho, olhavam mais para o interior da sua alma, do que para o mundo que a rodeava. Os dias inteiros caminhava pelo dormitório meditando, silenciosa e inquieta, lutando consigo mesma, preparando-se para o combate com o destino. A tia zelosa não a abandonava por um só instante, acompanhava-a com os olhos e tentava adivinhar as suas necessidades. Às vezes, a pergunta insistente nem despertava a atenção dela, mas de repente, como se acordasse de um pesadelo, ficava apavorada e inconsciente. Sim ou não - era a resposta comum às perguntas insistentes. Arrancada dos seus pensamentos, voltava a eles de imediato. A tia era enfermeira zelosa mas não entendia o seu estado da alma. Recolhida em si, a jovem não reagia, e como conseqüência a doença se prolongava. 210 A difícil e triste situação do pai, mesmo não tão desesperadora, justificava a apatia da pobre moça. O leal médico que a atendeu na doença, e mesmo agora vinha visitála de vez em quando, trazia-lhe notícias do pai ou palavra de consolo de Andrzej. Ela mandou-lhe o santinho que representava a perseguição e sofrimento de Jesus Cristo, que o moço guardou carinhosamente. Como outros, sujeitos a longos períodos de inatividade, Andrzej fazia do miolo do pão do hospital flores e pequenos artefatos, que mandava para a jovem... Karolenko era bielorusso, como Priluka, mas completamente diferente dele, alma calorosa, leal, caráter nobre, era o anjo da guarda dos dois.O seu coração contribuiu muito para a sua posição privilegiada no mundo.Era um corcunda feio, aleijão, tinha a cabeça grande e pontuda, as mãos compridas e as pernas tortas. Parecia o Quasimodo, ele mesmo fazia essa comparação em brincadeiras. Comumente esta monstruosidade afasta as pessoas do indivíduo excepcional e o afasta das pessoas, fazendo dele uma pessoa má, raivosa e avessa ao mundo. Com Karolenko foi o contrário. Aumentou-lhe o amor ao próximo, tornou-o sensível ao sofrimento alheio. Às vezes temível, frio, às vezes ranzinza, mas na privacidade era o anjo da bondade e sacrifício. No hospital, só esses não o suportavam, aos quais não permitia roubar ou saquear os doentes, o resto venerava-o. Médico excelente, era chamado constantemente para atender os doentes, vivia feliz, era pobre, fato incomum entre a classe. Não tinha uma moeda no bolso, porque não cobrava dos pobres, ainda pagava os seus remédios e, se alguém não se recuperava por falta de alimento, ele abastecia-o de víveres e justificava que fazia isso por amor à ciência e à experiência. Esses que leram o romance de Victor Hugo, “Notre Dame de Paris”, chamavam-no de Quasimodo. Os estu211 dantes apelidaram-no de “Esopo” e os soldados de “Sapo”. Mas todos o amavam e o respeitavam, ele mesmo ria dos seus apelidos. Numa tarde, semanas após terem aprisionado Andrzej, o leal Karolenko arrastou-se de novo para a casa de Krystyna, onde sempre recebiam-no com festa. Como gostava de chá, a tia Martyna mandou imediatamente colocar o samovar para esquentar a água. Ela mesma foi cuidar para que não faltasse nada. O “Esopo” gostava de biscoitos e doces, e abusava da única coisa que lhe dava prazer no mundo – comer. A moça ficou só com ele. - Diga-me senhor, fale - implorou - como ele está? - Nesse estado como se encontra, ele está ótimo – respondeu o médico – As feridas estão sarando, até muito rápido... o meu maior medo, é que o transfiram para Kiew, quando decidirem que está forte o suficiente. - Está triste? - Não diria que está. Antes, um pouco pensativo – informou Karolenko - Ainda não conheci homem nenhum com esse caráter tão forte, nada parecido. - Ah! Senhor! – gemeu ela, dobrando as mãos em oração – Caro senhor, se pudéssemos salvar essa pessoa! O médico colocou os dedos sobre a boca. - A senhora tem saído a passeio? – perguntou, após decorridos alguns momentos. Agora está geando, está seco, tempo lindo, até não faz muito frio, o ar fresco faria bem à senhora. Por que a senhora não sai amanhã, ao entardecer, se fizer tempo firme, digamos assim, para o lado dos conventos dos Beneditinos... Um esquisito piscar de olhos acompanhava esta recomendação médica, que a moça, de início não entendeu, mas captou em seguida e respondeu vivamente: - Se tivesse esperança de encontrar o senhor? 212 - Pode ser que eu esteja passando por lá. Não gosto de ficar fechado, mas pela profissão quase sempre estou preso atrás de quatro paredes. Depois, Karolenko investiu com gosto nos biscoitos e doces que lhe trouxeram e, alegre, comentava as notícias da cidade. Por sorte, no outro dia o céu amanheceu claro, o ar calmo, a geada leve. Krystyna, obedecendo à recomendação médica, saiu com a serva em direção ao mosteiro dos Beneditinos. Por um feliz acaso, encontrou o médico. - A senhora saiu com a roupa muito leve – comentou ao se encontrarem – mande buscar um xale mais quente ou agasalho, pela serviçal, e nós esperaremos por ela passeando. Quando a serva distanciou-se, o médico olhou em volta. No horizonte não havia ninguém, nem carruagem do delegado, nem o coche do promotor e nem o nariz vermelho de um funcionário. - Sabe, senhora - falou - que esta cidade de Luck é muito antiga. Havia outrora, como dizem as crônicas, um castelo enorme, formidável, e hoje só existem solidão e ruína! Os sinais da antiga majestade foram cobertos por caliça e pedra. Jazem embaixo dos pés dos passantes. Pelos jardins os cidadãos desenterram lousas de mármore que ornavam os palácios antigamente. - Fala-se em segredo que por toda a cidade, antigamente murada, e hoje tão devastada e miserável, existem extensos e antigos túneis, pelos quais pode-se passear por toda a cidade subterrânea. Existem, ainda, pessoas que os conhecem. Eram antigamente, com certeza, adegas dos magnatas, ou depósitos dos comerciantes armênios, mas é mais provável serem restos de fortaleza e meios de fugas das invasões dos inimigos. Só é certeza que os túneis exis- 213 tem intactos até hoje... quem sabe? Pode ser que lá escondam contrabando das vistas do inspetor de polícia? Krystyna ouvia-o, sem coragem de interromper. - Aconteceu uma vez – continuou ele - quando cavavam a terra para fundação de uma casa, caiu um paredão, deixando descoberto um túnel. Não deixei de olhar para dentro, sou bem corajoso, mas descendo um pouco por curiosidade, assustei-me com as escuras profundezas, labirintos... Existem pessoas que conhecem todos esses corredores, mas isso é segredo deles, têm medo que o único esconderijo que têm para fugir da polícia seja descoberto. Começou a rir. - Dizem – acrescentou sussurrando – que perto do confiscado mosteiro dos Beneditinos, onde o bispo Piwnicki também tinha um túnel próprio para guardar o seu tesouro, vive ainda um antigo sacristão da igreja, chama-se Wojciech Treiba, com oitenta anos, outros dizem que tem cem, pois é, desse homem é que corre a fama que só ele conhece esta cidade subterrânea tão bem que, mesmo sem luz, pode passear por ela. O mais curioso, ele sabe exatamente qual passagem segue em que direção e por baixo de qual casa ou mansão se aproxima mais; há algumas casas que estão sobre os túneis sem ninguém ter conhecimento disso até hoje. Krystyna escutava cada vez com maior atenção. - O senhor está falando sério disso? – perguntou. - Estou! Com a maior seriedade, e tenho certeza disto que estou falando. A senhora pode acreditar. Alguns túneis podem não ser tão extensos como as pessoas crédulas falam, mas mesmo que não cheguem em baixo de todas as casas, cavando-se pode-se unir um a outro túnel próximo, isso para quem conhece bem o local. Morar numa cidadela tão antiga – disse, rindo-se – a pessoa está adormecendo tranqüila, de repente um ladrão pode sair de baixo da cama. 214 - E o senhor ouviu que este velho sacristão dos Beneditinos ... interrompeu Krystyna. - Assim dizem as pessoas, mas é certeza. Ele chamase Wojciech Treiba, todos aqui o conhecem bem, mas chegar perto dele não é fácil. Esse homem reza o dia todo, não gosta de conversar com as pessoas, ele é excêntrico, avarento. Afirmam que é rico e nesses túneis, em alguma parte, guarda os seus tesouros. Karolenko ria, piscando os seus olhinhos pretos. A moça ouvia-o com atenção. Ele às vezes interrogava-a com os olhos, para ver se o entendia, mas não poderia dizer. A serva chegou com os agasalhos e a jovem perdeu o interesse pelo passeio e, pensativa, voltou para casa. Karolenko despediu-se na encruzilhada. Após a prisão do principal culpado, o destino dos outros prisioneiros podia até melhorar porque eles faziam parte de outra categoria de envolvidos. Principalmente o magistrado Zaglowski, devido a diligentes recursos apresentados pela filha e tendo melhorado a sua saúde, recebeu a promessa, diante de um novo pagamento régio, de que poderia ser solto com a condição de se apresentar à comissão, assim que fosse chamado. As autoridades prolongavam a liberação, entretanto, de um dia para outro. Somente Krystyna não reclamava da demora em deixar a cidadezinha. A tia Martyna admiravase, deveras, com a mudança do seu humor e incomum religiosidade da sobrinha. Amiúde saía para assistir à missa, novenas, meditação, rosários; às vezes, ia à catedral, outras ao mosteiro. A tia gostaria de acompanhá-la, mas raramente podia ir junto com ela, sempre aconteciam pequenas surpresas que a impediam. Nem mesmo levava consigo a serva, mas numa cidade pequena ninguém se incomodava com isso. Viam 215 ela seguidamente em companhia da irmã de caridade Vincentina, já bastante idosa. Neste tempo houve algumas modificações entre os funcionários sediados em Luck. O coronel Szulubin foi nomeado general e transferido para Wologda, na qualidade de comandante. O pobre e leal Karolenko, suspirando profundamente, juntava suas roupas e pertences, que eram poucos, e transferia-se como médico do hospital militar, para Kowel. Ambos, por diferentes razões, não estavam contentes em abandonar a cidade, à qual acostumaram-se, mas quem é funcionário do governo, é seu escravo. Szulubin providenciava a viagem lentamente. Confidenciava aos amigos, dando a entender que não estava contente com esta promoção e que tinha o direito de esperar algo melhor. Wologda parecia-lhe mais ou menos desterro, era no interior da Rússia, lá não poderia abusar sem ser admoestado pelos superiores, não era como ali nas províncias ocupadas, que podia fazer o que bem quisesse. - Hulaj duszo! puki morzesz - dizia rindo. O doente, desde então, melhorava a cada dia, e toda semana mandavam o relatório para Kiew, assinado por três médicos, que no prazo de um mês, prometiam entregá-lo à comissão, já bem fortalecido, para o martírio nas mãos dos algozes. Karczynski e Filkowski, por causa da investigação não ter começado ainda, tinham a licença de permanecerem na prisão local; mas deviam ser transferidos juntamente com o principal culpado para Kiew. Filkowski estava algemado e vigiado com extremo cuidado. Nesse meio tempo, o médico-chefe foi embora, e a vigilância sobre o preso, entregue às autoridades militar e policial. Agora somente os médicos locais atendiam o convalescente, de modo que tudo estava evidente quanto ao seu próximo e inevitável destino. 216 Todos os que o viam sofriam e não deixavam de lastimar a sua sorte, ficavam tocados pela energia jovem, seu caráter nobre, coragem indômita de um idealista e uma paz de espírito invulgar estampada no seu semblante. Os soldados de plantão, aos quais não era segredo o seu destino, admiravam-se ao ouvir, ao entardecer, um canto de melodias saudosas, melancólicas... Depois da partida de Karolenko, Krystyna não recebeu mais notícias do prisioneiro. Mas ela também parecia serena. Será que o tempo poderoso acalmou o vendaval de sentimentos impetuosos? Ou o coração aninhou alguma esperança incompreensível aos outros? Já no inverno, o magistrado Zaglowski conseguiu finalmente a licença temporária para ir para casa. Não perdendo um só minuto rumou para Radziszew levando a filha e a tia. Seguiu com grande proteção policial. Krystyna permaneceu na igreja até o fim do último dia, na companhia da irmã de caridade Vincentina e, chorosa, abandonou a cidade. De longe, ainda abençoava com a Santa Cruz. A sua permanência na cidade de Luck ficara marcada na sua memória para o resto da vida. Deixou com a freira uma carta para ser entregue a Andrzej, encaminhada a ele pelo sacristão Wojciech Treiba. A carta dizia: “Meu querido Andrzej! O destino fez com que nós nos conhecêssemos em ocasião perigosa e invulgar, agora nos separa numa hora mais trágica ainda. Rogo a Deus, nosso Pai, que você consiga salvar-se. Livre... imploro para que me esqueças, vou dedicar a minha vida a Cristo... o nosso amor é impossível... não arrisque a tua vida para encontrar-me; farei votos como freira na ordem das Clarissas; vou recolher-me ao convento em Oremburgo, para onde meu pai foi deportado. 217 Amor da minha vida, jamais vou esquecer-te, dedicarei toda a minha existência orando pela tua vida e felicidade. Viverei feliz sabendo que estás salvo... no silêncio do claustro, na companhia das irmãs em Cristo. Desta que te ama, Krystyna.” Dias após a partida do magistrado e sua filha, chegaram ordens de Kiew e, no maior segredo, foi decidido que no outro dia Andrzej seria transferido. Carruagem, algemas, guardas, gendarmes, tudo estava pronto, quando no meio da maior tranqüilidade, com nada que a turvasse, caiu a novidade como um raio. O prisioneiro – o maldito agente secreto – guardado como menina dos olhos por todo um destacamento de soldados, num dia claro, sumiu de um modo impossível, sem que ninguém pudesse explicar. Já mencionamos que o castelinho destinado ao abrigo do prisioneiro ficava próximo à enfermaria do hospital militar. A residência era de madeira e pedras, construída sobre os muros da fortaleza antiga, que serviram como alicerce. Compunha-se de um saguão extenso, uma sala grande, lugar no qual parte da guarda descansava, e um dormitório reservado ao preso. As janelas estavam pregadas com tábuas, protegidas externamente por grades de ferro. Além disso, um soldado na ante-sala vigiava sempre em frente da porta e dois gendarmes com carabinas ficavam de prontidão, embaixo das janelas com grades. Na vigília desse dia, o doente ainda estava de cama, nem levantar podia; à tarde, o enfermeiro fez curativos na ferida dos quadris, porque a do peito já havia sarado e cicatrizado. O que causou mais espanto é que de manhã ainda houve a visita do médico e do assistente, correu tudo de modo costumeiro, o encarcerado não deveria saber que à tarde seria transferido para Kiew. 218 Das nove horas a uma hora da tarde, ninguém havia entrado no quarto, a vigilância não tirava os olhos da porta, a qual estava fechada a chave. Não se ouvia nenhum ruído no cômodo, quando no horário do almoço, de acordo com o estabelecido, o soldado abriu a porta com a chave, na frente do funcionário do governo, entrou trazendo o almoço. De início não acreditou nos seus olhos, não encontrou o prisioneiro no quarto, a cama estava vazia. Desorientado, saiu para perguntar ao colega que estava de plantão se já tinham transferido o preso. O soldado pensara que fizeram uma brincadeira com ele. Os dois, ele e o funcionário, conferiram mais uma vez. Realmente o cômodo estava vazio, ninguém estava lá. A cama, um pouco desarrumada, mas, no lugar. O doente sumiu. O soalho e o teto estavam intocados. Para as pessoas simples parecia feitiçaria! Para outros, indecifrável segredo; e meia hora depois do alarme dado, muitas pessoas que poderiam ser responsabilizadas pela fuga, correram até o castelinho, no maior desespero, apavoradas. Todos estavam aflitos. No mesmo instante já combinavam se não era melhor darem-no como morto, mas o caso já estava muito alarmado. O fato era que o médico e o cirurgião viram-no, falaram com ele de manhã, a porta estava hermeticamente fechada à chave, a guarda constante, as janelas intactas, sem mexer, tudo em ordem, só faltava o prisioneiro... Mas como? Por onde poderia assim voar? E isso ultrapassava o entendimento humano... Os moscovitas juravam que ele só podia ser feiticeiro, mas os funcionários graduados não podiam permitir um fenômeno nem milagre, acusavam-se mutuamente de traição e corrupção. Encontrar a pista era impossível - não havia vestígio nenhum – comentavam os moscovitas. Comissão após comissão vinha ao castelinho, rodeado de densa guarda, exa219 minava as paredes, arrancava os assoalhos, vistoriava todos os cantos e, não conseguindo nada, ia embora, duvidando da própria inteligência. - Será que alguém ajudou-o a sair? - murmuravam Mas quando ? Como? O médico, o assistente, soldados da guarda, todos estavam presos, interrogados inutilmente. Cada novo funcionário ou chefe que vinha ria-se da incompetência dos que o precederam, debochava e insultava-os. Jurava que ia descobrir o segredo e depois ia embora, descrente, odiando as intrigas polonesas e a esperteza dos subversivos, secretas sedições a que todos pertenciam. Após cinco comissões, civis, do exército e da polícia secreta investigarem esse infeliz pedaço de terra, em Kiew, onde as autoridades superiores esperavam pelo emissáriorebelde, polonês, a insatisfação crescia espantosamente. Finalmente foi nomeado, em São Petersburgo, pelo comandante-chefe da polícia, um investigador, simples e desajeitado, alemão, chamado Wilhelm Schlieman. Era natural de Berlim, mas havia tempo trabalhava na Rússia. Era famoso em desamarrar nós górdios. Ninguém atribuiria sabedoria ao Wilhelm Schlieman se avaliasse o seu aspecto, parecia um alemão comum, igual a dúzias deles, aos quais uma boa cerveja não era indiferente, tinha um jeito sonolento, e um atributo que não era recomendável a um policial, era até incômodo, uma barriga redonda e saliente. Olhava tudo em silêncio, fumando cachimbo, que lhe pendia de um lado da boca. Sugava-o de vez em quando ruidosamente. Schlieman destacou-se em diversas missões no país e no estrangeiro, conseguiu o posto de conselheiro do Colégio Militar, o que não é bagatela; e na lapela colocava centena de fitas de condecoração. Como foi recebido pela polícia de Luck é fácil de adivinhar; vinha da capital. Mas pelas 220 costas riam dele, cochichando: “Será que ele descobre algo? Se pessoas mais competentes não acharam nada?”. No primeiro dia, Schlieman fumava cachimbo e lia os relatórios dos seus precedentes, através de grandes óculos pendurados no nariz. No outro dia, foi passear pela redondeza e no terceiro dia, nada fez, bocejava, reclamando que não tinha cerveja que prestasse na cidade. No quarto dia foi até o castelinho; atrás dele foram o chefe de polícia Rassim e diversos palpiteiros oficiais. O agente alemão, entrando no aposento, olhou, encheu o cachimbo, sentou na cama e fumou em silêncio; enquanto o cachimbo não ficou bem aceso, tragava e soltava a fumaça seguindo a sua dispersão. Meditava... O coronel Rassim estava parado na porta com o semblante carregado, penalizado pela importante reputação de um homem que punha em risco a fama conseguida em muitos anos, a perdê-la em uma cidadezinha insignificante. De repente, o alemão levantou a cabeça, sorriu, e com um gesto da mão chamou o chefe de polícia. - Peço que o senhor mande buscar umas pessoas com enxadas e machados. Rassim, encobrindo o riso de deboche, sacudindo os ombros com indiferença, rumou para mandar executar a ordem do alemão. Não foi tão fácil encontrar enxadas e machados nas vizinhanças e trazê-los até ali. Três soldados estavam na porta esperando. Schlieman só então levantouse, limpou o cachimbo e mandou que afastassem a cama. Embaixo tinha um soalho igual, como no quarto todo. Começaram a arrancá-lo, quando, de repente, uma tábua, com apenas pequeno toque, levantou a ponta, não estava pregada, apenas fixada no lugar. O chefe da polícia empalideceu. A tábua que estava levemente colocada escondia uma passagem subterrânea, funda, escura. Schlie221 man mostrou a Rassim, que já estava desconfiado que era por ali que o preso devia ter descido, e, para disfarçar, recolocou de novo as tábuas atrás de si. Os moscovitas ficaram deveras admirados com a perspicácia e inteligência do fleumático alemão. Schlieman mandou buscar escadas para descer ao túnel. Olhando para dentro de perto, descobriram que havia uma viga forte de madeira, na qual fora amarrada uma corda feita de lençóis torcidos; por ela o prisioneiro tinha descido. Os soldados colocaram as escadas presas uma a outra dentro do túnel, e um dos soldados desceu antes para testar a resistência. Com a lanterna na mão desceu Schlieman, e, contrariado, desceu também o comissário. Embaixo do castelinho havia uma adega antiga, seguia-se um corredor subterrâneo e, partindo deste, uma longa garganta abobadada que levava para o lado por uma dezena de metros. Estendia-se, o que se apresentava, para mais longe, mas estava trancada com entulhos e tijolos recentemente empilhados de propósito, para atrasar quem quisesse segui-los, pois que teriam que remover todo o escombro, num trabalho moroso e cansativo. Depois de retirar os tijolos, terra e pedras, seguiram adiante, não pelo corredor murado, mas por uma passagem cavada na argila, semelhante às catacumbas romanas ou cavernas próximas a Kiew. O alemão, que prestava atenção a tudo, descobriu pegadas de pés humanos na poeira que cobria o caminho e concluiu, examinando-as com atenção, à luz da lanterna, que seguia uma só pegada rumo à adega do castelinho, e de volta havia rasto de pés de duas pessoas. Numa distância considerável, novamente a passagem da caverna foi impedida com entulho e pedras, para dificultar o trânsito. Caminhavam em diversas direções, vagando para a direita e para a esquerda, mas o alemão investigava as pegadas e guiava-se por elas. Nas paredes late222 rais, encontravam portas fortemente muradas e muito antigas, que, com certeza, levavam a outros túneis. Finalmente, depois de percorrer caminhos difíceis e assustadores, espantando morcegos que saíam em revoada pelo túnel, e muitos ratos que subiam pelos pés dos caminhantes, aterrorizando-os, enxergaram uma fraca luz diurna, infiltrando-se entre as folhas e galhos entrelaçados dos arbustos. Era o final do túnel com uma abertura de aproximadamente um metro e meio de altura que saia na margem do rio Styr, num lugar isolado, longe da cidade. Em vista disso, terminava ali a investigação, pois era uma prova convincente de que o prisioneiro evadiu-se pelos túneis secretos existentes debaixo do castelinho. Mas quem orientou-o e guiou-o para a saída? Isso a investigação mais apurada não desvendou. Os colaboradores da fuga ficaram incógnitos, para desespero dos seus perseguidores. Quiseram incriminar os que indicaram o castelinho para abrigar o prisioneiro, mas esses facilmente livraram-se da injusta acusação, provando que não eram habitantes locais e não podiam saber nada referente a túneis secretos debaixo da cidade de Luck, sobre os quais nem a polícia da cidade tinha conhecimento. Com a fuga do insurreto Andrzej Wasilewski, muitas coisas poderiam ser encerradas mais facilmente, porque podiam lançar a culpa sobre ele de tudo o que quisessem. Entretanto, Filkowski e Karczynski, que eram considerados os principais culpados, apesar das providências e empenho das famílias, foram condenados para desterro em Irkutsk, na Sibéria. O magistrado Zaglowski foi deportado por tempo indeterminado para Oremburgo, cidade na beira do rio Ural, no sul da Rússia. De Andrzej, desde esse tempo, ninguém mais ouviu notícias, sumiu, como se tivesse caído na água. 223 *** Um ano depois desses acontecimentos, o nobre magistrado Zaglowski conseguiu uma boa recomendação da autoridade de Oremburgo (jogava cartas com o governador) e, ainda, um atestado sobre mau estado da sua saúde, e, como especial favor do czar Nicolau I, conseguiu licença para voltar a Radziszew, mas sob estreita vigilância policial. Isso significava que seria alvo de extorsão pela polícia corrupta. A saúde muito abalada com os acontecimentos recentes, mesmo ali no meio do ar puro do campo, não estava melhorando. Entristeceu, envelheceu, afligia-se e queixavase de dores; foi a Kiew e ficou por lá durante um mês, recebeu novo atestado da autoridade recomendando tratamento médico, era-lhe conveniente procurar um lugar tranqüilo, de clima ameno, para morar. Como não podia ocupar-se com a administração e negócios da propriedade, e tendo aparecido um comprador para Radziszew, bom e velho amigo do magistrado, Pan Warchowski, a propriedade foi vendida. Antiga e secular herdade dos tataravós, passou para mãos estranhas. Enquanto o negócio representava apenas uma transação financeira, o magistrado não parecia sofrer muito, mas quando terminaram as formalidades e era preciso dar adeus aos cantos queridos, onde as pegadas dos pés dos pais e avós estavam impressas nos pisos, onde nasceram, brincaram quando crianças, viveram, adoeceram e morreram; onde derramaram lágrimas de dor e de felicidade. Onde os fantasmas familiares passeavam pelos corredores, nas horas mortas da noite; terrível dor apertou o coração do velho Zaglowski. O magistrado, a tia, até Krystyna, até aí brincalhona, andavam com lágrimas nos olhos, não conseguindo separar-se das abençoadas lembranças do passado. 224 Da aldeia, a cada instante aparecia alguém na mansão, chorando. A ama de leite de Krystyna, a irmã de leite do velho magistrado, comadres, afilhados, amigos e serviçais, todos com a incerteza do que traria o dia de amanhã; gemiam, choravam, enxugando as lágrimas nas mangas das blusas e camisas. Zaglowski distribuía alimentos, repartia a terra aos aldeões, mas aos leais serviçais, ele mesmo e seu coração bondoso de pai iria fazer muita falta, e eles sofriam por isso. Pan Warchowski, que o substituiria, era uma pessoa muito boa, honrada, pacífico por natureza. Mas com a família Zaglowski, essas pessoas trabalharam, viveram, conheciam-se, tantos anos transcorreram, de felicidade e de tristeza e, portanto, os últimos dias foram difíceis e tristes, para todos. Krystyna andava, parava, olhava e enxugava as lágrimas. Cada aposento significava algo para ela, mesmo para uma vida ainda tão curta. O magistrado e a filha iam viajar juntos para Oremburgo, ela para a clausura no convento das Clarissas e ele ao desterro, próximo ao mar Cáspio. A tia, que levava parte dos móveis e utensílios, conseguiu abrigo no convento local, não querendo abandonar o país na velhice. Zaglowski prometia voltar logo, e parecia estar nos seus planos, mas no entremeio de suas palavras dava para entender que nem logo e nunca mais voltaria para o país. Despedia-se para sempre. Era o último dia que estavam em Radziszew, esperavam a chegada de Pan Warchowski, que viria receber a sua nova propriedade. No pátio estava reunido um pequeno grupo de pessoas das aldeias pertencentes a Radziszew. Pelos quartos semivazios, caminhava o pai com as mãos sobre o peito e a filha amparando-o. 225 Assomavam lágrimas aos olhos do velho, mas fingia indiferença diante da filha, para não magoá-la mais ainda. Pela janela via-se o pomar que fora plantado pelo magistrado, mais adiante os campos e florestas. Parou por um instante para encher os olhos com essa visão amada, e não podendo suportar, disse: - Minha criança, você é jovem, está apenas começando a viver, acostumar-se-á a outros modos de vida, em outro país, não será tão difícil, mas a mim, que já estou no fim, a lembrança dos dias passados, mesmo estando no paraíso, me chamará de volta. Para esse lugar trouxe a tua mãe, aqui vivi com ela muitos dias felizes, aqui você com sua juventude iluminou meus dias de viuvez, tive amigos, tive dias amenos, em último caso, pelo menos silêncio e tranqüilidade, exigem-me sacrifício, faço-o, não reclamo, não me queixo, apenas deixem-me ter saudade... Falando assim, beijou a filha na testa. Ela abaixou a cabeça para beijar a sua mão. Estavam em frente da lareira, cuja portinhola secreta salvou a vida de Andrzej. Ela olhou na sua direção, as suas faces ruborizaram-se e ela disse: - Nunca tive segredos para você, meu pai querido, esse esconderijo que você inventou salvou a vida do meu herói, serviu-lhe de abrigo, e no momento em que o indiquei, decidiu sobre o meu destino e meu futuro. Ao homem que salvei, afeiçoei-me intensamente. - Então foi você que o escondeu? Como? Quando? Krystyna corando, mas com tranqüilidade de um coração puro, relatou tudo ao pai pela primeira vez. O magistrado ouvia em silêncio, pensativo. - Milagres existem, - respondeu finalmente. Mas esses milagres só um amor verdadeiro é capaz de realizar e só um afeto puro e santo como o teu. Não era impossível fugir de Radziszew, mas quem poderia, e de que maneira conse- 226 guiu arrancá-lo daquela prisão em Luck, tão vigiada e fortificada, com tanta precisão? A filha, silenciosa, beijou a mão do pai, olhou-o nos olhos, e falou bem baixinho: - Deus. - Mas com a mão de quem? Não será.... não foi com a tua mão, minha querida criança? - Com a minha frágil mão de mulher o milagre aconteceu, ajudaram-me amigos leais. O pai bateu as palmas surpreso. Neste instante ouviu-se o tilintar dos sininhos e o estalar do chicote anunciando a chegada do novo proprietário. Ainda permaneciam perto da lareira quando Pan Warchowski entrou e estendeu a mão ao amigo. - Ouve, Warchowski – disse ele depois das boasvindas, levando-o junto à tampa que fechava o esconderijo e mostrando-lhe como funcionava – ninguém deve saber sobre isso, apenas você... aí você tem um lugar seguro para se esconder, e que já salvou a vida de uma pessoa. Faço votos de que não precise nunca, mas, se Deus nos livre precisar esconder-se ou esconder alguém ou alguma coisa... *** Krystyna conseguiu falar com o sacristão Wojciech Treiba, quando ia à igreja nos últimos dias, antes de sua volta à Radziszew. O bom velhinho dispôs-se a ajudá-la; conseguiu reunir amigos de plena confiança, comprometidos com a insurreição e prontos a socorrer os seus correligionários. Primeiro desimpediram de entulhos as galerias subterrâneas que estavam mais próximas do acesso ao castelinho, onde Andrzej estava preso. Uniram as galerias para dar passagem desde o quarto onde estava o prisioneiro. Naquela manhã, depois que o médico e o cirurgião fizeram a visita ao doente, examinaram-no, fecharam a por227 ta e foram embora, Andrzej cochilava, quando ouviu batidas leves no assoalho, debaixo da sua cama. Levantou a cabeça e escutou uma voz no subterrâneo que sussurrava: - Erga a ponta desta tábua, ela está solta. - Quem é? – perguntou Andrzej, surpreso. - Amigos! – responderam. O doente, com todo cuidado, desceu da cama gemendo, pois a ferida da coxa ainda doía muito, abaixou-se e olhou debaixo da cama. As batidas leves continuavam. Andrzej levantou a ponta da tábua e viu um homem que lhe falava baixinho: - Rasgue o lençol em pedaços, faça uma corda, amarre bem nesta viga que está encostada na parede do túnel e desça com cuidado por ela, espero por você aqui. Reponha com cuidado a tábua solta, para não denunciar que foi mexida, faça tudo muito rápido e que Deus nos ajude! Andrzej trabalhou rápido e em silêncio. Tudo pronto, desceu pela corda, repondo a tábua no lugar exato onde estava antes. - Quem mandou o senhor aqui para me salvar? – perguntou ao homem que o esperava no túnel com uma tocha na mão para iluminar o caminho. - Foi a pedido de um anjo do céu – respondeu este. Caminhavam rápido, obstruindo o caminho com tijolos, pedras e entulho. Quando avistaram a fraca luz do dia no final do túnel, o prisioneiro chorou e agradeceu: - Oh! Deus! Mais uma vez salvastes a minha vida! – e caiu de joelhos. - Diga-me, senhor - insistiu ele - quem te pediu para que me raptasses das mãos da morte? - Foram amigos leais, correligionários, também a pedido de uma jovem de uma beleza angelical; ela não nos disse o nome, mas deu-me esta carta para te entregar, é tudo o que sei. Agora apressa-te – disse o homem - pegue este 228 barco e desça pelo rio Styr por dentro da floresta até onde os teus amigos te esperam escondidos na margem, daqui a cinco quilômetros. Apressa-te, pois os carrascos estão no teu encalço - avisou o bom velho - e que Deus te proteja! O desconhecido sumiu no meio da mata densa. Ao subir na canoa, esta balançou, depois aprumouse e ouvia-se apenas as batidas dos remos na água clara, deslizando em silêncio, em ziguezague por entre os juncos luxuriantes. Gotas de chuva passageira ainda tremeluziam nas folhagens ribeirinhas, faiscando como diamantes. Os amieiros curvavam os seus galhos para a água; o dia era de céu límpido. Andrzej remou rápido pelas águas silenciosas, ouvindo apenas o sussurro do vento nas folhas das árvores seculares da floresta do Polesie. Viajou por uma hora descendo o rio. As ondas silenciosas, planas, marcavam com larga listra o espaço percorrido, alcançavam a margem, batiam levemente no barranco e sumiam. O fugitivo remava cadenciado, firme, sem chapinhar com o remo. Conduzia a canoa com cuidado, esforçava-se para mantê-la no meio, desviava dos galhos pendentes e das raízes caídas no fundo do rio. Nos rios do Polesie, o ar de exotismo e as paisagens selvagens, com árvores de raízes descobertas, lavadas pelas enchentes, que se enrolavam nas outras, sumiam e de repente apareciam trançadas nas formas mais fantásticas, tudo exalava o hálito dos pântanos do norte. O pantanal do Prypet foi escolhido como o lugar ideal para o quartel general dos insurretos, guerrilheiros poloneses no levante de 1830. Os caminhos entre as areias movediças e tremedais, só eles conheciam... ali eles estavam seguros. O fugitivo ainda estava remando quando ouviu um forte barulho de ramos quebrados e o troar de centenas de cascos e mugidos de bezerros e vacas; era uma manada de 229 bisões selvagens, que vinha beber água no rio e assustou-se com a aproximação da canoa. Bandos de patos selvagens levantaram vôo grasnando assustados. Depois de remar por mais meia hora, desviando-se dos lugares expostos pelas clareiras a canoa encostou na margem. Andrzej, envolto numa capa comprida, sem boné, levantou-se com dificuldade, desceu e seguiu com passo inseguro pela mata, não olhando para trás, mesmo quando a onda levou a canoa e, batendo com ela num toco que emergia da água, empurrou-a para frente, para além. Guerrilheiros esperavam-no na beira da floresta. - Aleksy! Anton! Amigos! - gritou alegre Andrzej – finalmente estamos juntos! Caminhavam pela mata densa, para dentro dos charcos, pelas trilhas que só eles conheciam, até o acampamento do comando de guerrilha. Orientavam-se pelos raios opacos do sol que atravessavam os galhos das árvores. Seguiram para o norte, depois para o leste, na direção do rio Prypet. O rio Styr nasce perto de Radziszew, corre vagarosamente no seu largo leito, pelo meio dos pântanos, até desaguar no rio Prypet (afluente do Dnieper), o qual atravessa os alagadiços e os grandes pântanos de Pinsk. O céu começou toldar-se, nuvens pesadas formaram-se no horizonte e, à tarde, principiou a nevar. A natureza deu uma ajuda aos três guerrilheiros, pois a neve cobriu todas as pegadas deles. Sem uma nódoa, sem o menor vestígio de passos, nenhum odor humano. Havia apenas um manto extenso de neve. - Que demora! - reclamou o tenente Pawloski, que fora até a floresta com seis homens para encontrar Andrzej e os companheiros que estavam custando muito a chegar. Percorriam a mata com cautela, como lobos fugitivos, levavam pistolas e espingardas com munição. Vestidos com peças de uniformes russos, quando encontravam sol230 dados moscovitas isolados, atiravam para matar, levavam os farnéis, pegavam as armas e tiravam os uniformes dos mortos. Nos pântanos do Prypet havia quatrocentos camponeses e soldados esperando por armas, roupas e alimentos. Toda noite saíam em revoada como vespões gigantes e ferroavam o corpo russo. Denominavam-se como “Frente Polonesa de Libertação”. Os russos os chamavam de guerrilheiros e fuzilavam todos os que encontravam. O capitão Lech Zaswilikowski pertencia ao exército clandestino polonês. Era um adepto da disciplina, não ria nunca, era compenetrado e responsável. Conduziu o grupo de guerrilheiros aos pântanos do Prypet. Bem no meio dos charcos, em grandes ilhas firmes, que só alguns poucos camponeses sabiam como alcançar, e onde os caminhos de galhos e tocos ficavam meio metro abaixo da superfície enlodada, ele treinava os guerrilheiros, como se fosse um quartel em Warszawa ou Lublin. Faziam exercícios, mandava-os caminhar pelos brejos para melhor familiarizar-se com eles. Mantinha disciplina rígida e ensinava saudação militar, treinava-os no tiro com alvos móveis e conseguiu formar um pequeno grupo de atiradores que, mesmo caindo, ainda conseguiam acertar e furar uma folha do tamanho de um pires, jogada para o alto pelo capitão Lech. Não mediam sacrifícios. Os russos eram implacáveis em suas incursões pelos alagadiços contra os guerrilheiros, e esses retribuíam atacando sem clemência os destacamentos russos ou o transporte militar, boicotavam serviços públicos, estradas de ferro, explodiam pontes, e tudo o que pudesse desarticular o inimigo. Assim eram eles, rapazes jovens, quase crianças, rudes, todo sentimento de medo afugentado dos seus corações. Outrora eram camponeses, aldeões, cordatos e traba231 lhadores, operários das fábricas, habitantes das cidades, funcionários e até mesmo alguns profissionais liberais, médicos formados, arquitetos e engenheiros. De todos, estes eram os mais importantes, em qualquer guerra precisava-se de um médico; o arquiteto construía trincheiras e cabanas no meio do pântano; o engenheiro consertava as armas e com ajuda de dois ferreiros fabricava requintadas minas, com as quais salpicava os caminhos estreitos e firmes dos pântanos. De que serviria o sentimento de humanidade numa hora dessas? Quem falava em crueldade? A ordem era destruir tudo o que era russo, para que assim saíssem da nossa terra. Não podia haver trégua. Depois de caminhar muito, Andrzej e os dois amigos encontraram o tenente Pawloski e os seis soldados que saíram para encontrá-los. Seguiram juntos rumo ao acampamento. O capitão Lech ficou muito surpreso ao ver Andrzej - o mensageiro, afundado até os joelhos na água lamacenta e procurando o caminho escondido, tateando com os pés. Antes dele, a sua fama já tinha chegado ao acampamento; a sua coragem e o seu devotamento à causa da pátria. - Entrem na minha cabana – convidou Lech Era um dos abrigos invisíveis cavados no pântano, uma invenção do arquiteto de Zamosc. Neles dava para viver bem, era difícil descobrir os esconderijos dos homens do brejo; eram como os castores e os ratos d‟água, ninguém conseguia vê-los, mas bem que roíam as estruturas inimigas. O recém-chegado e o capitão conversaram a noite toda. O emissário informou-o dos acontecimentos recentes, relatando tudo a respeito da insurreição no país. Pela manhã, Andrzej esgueirou-se do abrigo para o ar livre. O pantanal estava coberto de neblina. O sol de in232 verno sorvia a água do brejo e a estendia sobre a terra em forma de alvos véus esvoaçantes. Era um daqueles dias em que o capitão treinava a sua tropa. Os russos não conseguiam penetrar no pântano, por mais que se esforçassem para encontrar os caminhos secretos sob a superfície lodosa. Brados de comando ressoavam pelo véu da neblina. Andrzej, seguindo os sons, encontrou um campo relativamente grande cercado de altas paredes de junco e de salgueiros. Ali havia grupos marchando, aprendendo a manejar o fuzil ou atirando em alvos pregados nas árvores. Havia velhos de barbas compridas e jovens soldados adolescentes, homens em idade madura, todos levavam a sério o serviço, esforçando-se para impressionar o capitão Zaswilikowski. Andrzej acompanhava as manobras e exercitava-se junto. Assim passaram-se alguns meses. Nesse tempo, o emissário foi designado por diversas vezes para missões secretas. Levava documentos com ordens e informações para outros agrupamentos, saiu-se muito bem dessas incumbências. Foi e voltou em segredo, tranqüilamente, pois conhecia os caminhos, tinha astúcia e era ardiloso, e conhecia os hábitos moscovitas. Levou papéis muito importantes e sigilosos para comandos da rebelião em Zitomir, Kiew, Lublin, Lwow, Kraków, Warszawa, Brest e lugarejos que pareciam muitas vezes sem importância, mas que ocultavam a célula revolucionária. O inverno chegara rigoroso, com muita neve e noites geladas. Batalhões moscovitas marchavam pelos pântanos do Prypet. Com os brejos congelados era fácil penetrar; era só por isso que os russos esperavam. Metro por metro seria vasculhado, pois no inverno um pantanal deixava de ser um esconderijo. 233 O capitão Zaswilikowski, de comum acordo com os guerrilheiros, resolveu deslocar-se para dentro da floresta. Um por um, os homens deveriam infiltrar-se até que o círculo sobre os russos estivesse bem fechado. Sempre havia brechas e seriam encontradas com o instinto de raposa dos revoltosos. O capitão e Andrzej estavam entre os últimos que deixaram o acampamento do pântano. Tinham aterrado as trincheiras, plantado junco no campo de exercícios, nada indicava a recente presença de homens. Começava a primavera de 1831 e já fazia quase um ano que Andrzej vivia no acampamento. No início do verão o comando superior russo da luta contra os guerrilheiros do Prypet deu a ordem de se eliminar, de uma vez por todas, aqueles enormes vespões dos charcos. Foram convocados batalhões da polícia, tropas especiais, uma brigada cossaca e, guiados por alguns camponeses que, mediante suborno, esqueceram sua alma polonesa, as tropas russas penetraram no pantanal. O golpe não chegou a pegar o capitão Lech de surpresa. Ele já sabia de tudo. Um número grande demais de seus espiões trabalhava junto às unidades russas. A noite faziam sinais luminosos ou depositavam mensagens em locais combinados. A organização dos combatentes estendia-se por todo o país, como uma teia de aranha invisível, tecida em volta do governo de ocupação. Não acontecia nada sem que se soubesse nos pântanos. Cada nova unidade, cada decisão dos poderes da repressão era conhecida pelos guerrilheiros. Andrzej e o seu grupo afastaram-se bastante do acampamento central; encontravam-se agora no caminho que avançava para bem longe dentro do pantanal. Era uma passagem de cuja descoberta os russos se orgulhavam muito. Um destacamento da polícia de campo russa fora encarregado da segurança desta trilha, e guiados por dois cam234 poneses da região, os homens foram para os brejos, bem distanciados um do outro, sempre em grupos de três e uma metralhadora. O junco era alto e denso, o chão em volta era uma esponja que não devolvia nada que lhe caísse em cima. Entretanto, o juncal não estava morto nem solitário. Em pequenas ilhas estavam os guerrilheiros, eles próprios transformados em juncos, que observavam o caminho pelo qual os grupos de três soldados russos tateavam para a frente. Também Andrzej estava deitado numa poça esponjosa, irreconhecível no meio do matagal, prendendo a respiração. - Não vai ser fácil pegar todos – cochichou ele ao ouvido do amigo - só três de cada vez. Isso está ficando perigoso, irmão... De algum lugar distante vinha o grito de um pássaro; só que não era o som de uma ave, era a sentinela que comunicava a presença de soldados russos. Agora os guerrilheiros estavam todos no pântano, tateando, procurando a trilha, os semblantes corajosos, carregados, embora um profundo medo se estampasse em seus olhos. E à medida que penetravam nos charcos, minas eram colocadas em buracos previamente preparados, e explosivos na beira dos caminhos, para fazer explodir a terra firme e tudo voltar a ser um imenso e impenetrável tremedal. Andrzej levantou a cabeça ao ouvir o grito do pássaro e viu o grupo de soldados que estava passando no outro lado, puxou o gatilho e atirou. Foi infeliz no tiro, pois abateu um soldado russo, e o que vinha atrás viu o movimento nos juncos, voltou-se e atirou na direção. O projétil pegouo no ombro, do lado do braço que segurava o fuzil, ele caiu no meio do pântano desmaiado; o grupo de soldados moscovitas voltou e encontrou-o caído, coberto de sangue e de 235 barro. Foi algemado e levado inconsciente para a retaguarda do exército inimigo. Andrzej era novamente um prisioneiro. Levaram-no para o ambulatório do hospital militar próximo, extraíram-lhe a bala, fizeram curativos. O projétil tinha atravessado o ombro, machucando os músculos, e se alojado junto à pele. Não era um ferimento grave, mas a febre se manifestara. Assim que voltou a si, foi interrogado pelo comandante do batalhão. Simplesmente não respondeu nada. Resolveram mandá-lo para o quartel general em Smolensk. Começava o inverno novamente. A neve caía há várias semanas. Eram no mínimo dez dias de viagem nas estradas lamacentas pelas florestas e estepes congeladas. É... e foi assim que começou novamente o seu martírio... fazia um frio dos diabos! Andrzej ia deitado, todo encolhido e algemado no assento traseiro do coche. Estava com febre. Cobriram-no com uma pele de urso, mas mesmo assim sentia muito frio. O comandante russo dirigiu-se ao segundo tenente Wiktor Iwanowitcz Woronkow, e falou com severidade: - Segundo tenente Wiktor, este prisioneiro é peça importante! Ele vai nos fornecer informações de que precisamos para abortar e desmantelar a insurreição polaca. Sem falta, ele deve chegar às mãos do coronel Tumanow, do Estado Maior, em Smolensk. Só a ele deve ser entregue, ele o fará cantar... e se alguém tentar detê-los no caminho, bem, se assim acontecer, mate o prisioneiro. Nunca desvie os olhos dele, vigie-o atentamente. E agora sigam! Rumem direto ao Quartel General em Smolensk. Seguiram viagem - o segundo tenente Wiktor, os dois soldados, encarregados de vigiar o prisioneiro, e um russo de aspecto mongólico, de longos bigodes, que ia na boléia como cocheiro. 236 - Dawaj, Dawaj, - gritou, e o chicote sibilou nas ancas dos animais, que arrancaram a galope. Viajaram pela estrada lamacenta, prosseguiram com dificuldade através das florestas, estepes, rios e neve... muita neve. Pernoitavam nas estalagens na beira da estrada, onde faziam a troca dos cavalos. A ferida de Andrzej estava sendo tratada e melhorava devagar, apesar de a febre não ceder completamente, mas a reação de sua natureza jovem vencia a infecção. Nos dias seguintes, a tempestade de neve abrandara um pouco. O uivo do vento transformou-se em lamento, mas a neve continuava; não mais chicoteava a terra, apenas bailava sobre ela. Caía silenciosa do céu leitoso. Na floresta os lobos uivavam, e na neve macia havia rastros... muitas e muitas patas em volta das casas. Um círculo de fome e fúria assassina. A trégua concedida pela natureza foi de poucas horas, pois a tempestade voltara e as nuvens tinham despencado sobre a terra. Os ventos uivavam e impeliam montes brancos reluzentes. A taiga afundava na neve, as aldeias, as estações de troca, morros e depressões... tudo se transformava numa única superfície lisa, branca, em turbilhão. As pessoas refugiavam-se nas cabanas, vedavam as janelas e portas com jornais enrolados e deixavam-se isolar pelo vento. O gado deitava-se junto às pessoas, com as cabeças caídas e com ar de tristeza e interrogação no olhar. Vez ou outra ouvia-se um estalo vindo da floresta... eram galhos de árvores que se fendiam minadas pelo gelo que se instalara nas suas medulas. Só os lobos se movimentavam, desgrenhados, magros, uivando de fome. Deitavam-se perto das cabanas e currais. Cheiravam o odor que emanava dos homens e dos 237 animais. Instalavam-se junto às chaminés fumegantes, a única coisa que ainda aparecia por cima da neve. - Uma beleza! Uma verdadeira beleza! Uma miséria de terra, uma porcaria de comandante, uma merda de vida... que vá tudo para o inferno - reclamava e xingava o segundo tenente Woronkow. Aconchegou os braços juntos, em seu casaco grosso de pele de carneiro. Ali estava ele no meio da estrada lamacenta, um lodaçal cheio de atoleiros; a carruagem era apenas um ponto escuro naquela imensa brancura. No banco de trás, um prisioneiro doente que devia ser entregue em Smolensk, protegido como carga de ouro, e eles estavam cumprindo a missão confiada a eles, à moda russa. As pernas dos cavalos afundavam até metade na neve, pisavam com força avançando as cabeças e soltando vapor pelas ventas, pareciam estar saltando contra um muro branco e macio. Corriam pela estepe, rumo à imensidão... - Dawaj! Dawaj! – gritava o cocheiro. E assim viajaram por longos e sofridos dias e noites, até avistarem a fortaleza de Smolensk. O pátio interno do forte era longo e estreito, dividido por duas altas cercas de arame farpado, deixando uma passagem de um metro e meio de largura entre elas. Nessa passagem, cinco guardas faziam patrulha, enrolados em mantas forradas de pele.O fuzil com a longa baioneta pendendo do ombro direito numa longa tira de couro. Os guardas não interromperam seu ir e vir nem quando os soldados chegaram com o prisioneiro ao pátio interno. Do outro lado abriu-se lentamente uma porta na muralha escura e alta, interrompida apenas por janelinhas gradeadas de ferro. Andrzej ainda usava a roupa rasgada e manchada de sangue e barro, com o curativo na ferida, a cabeça descoberta e a barba por fazer. Seu rosto jovem, antes radiante, estava pálido e abatido, sofria muito. 238 Conforme a ordem, ele foi entregue ao comandante coronel Prokor Borossowitch Tumanow; que mandou chicoteá-lo com violência e torturá-lo antes de o levar ao interrogatório. Berrava com ele, indiferente ao fato de ele ser prisioneiro político. Portava-se como um verdadeiro demônio, na degradação moral do ser humano. Andrzej sofria mudo... não respondia nada. Após alguns dias de torturas repetidas e interrogatórios infrutíferos, foi decidido pelo comandante que os insurretos poloneses seriam deportados para a Sibéria, para além do lago Baikal. - Dou uma sentença justa, que faça pagar o crime de insurreição na medida certa: vinte anos de trabalhos forçados na Sibéria! – foi o veredicto do coronel Tumanow. Andrzej Wasilewski foi acordado, ao alvorecer do dia, pelo tilintar das chaves que abriam a porta de sua cela. Ficou deitado no catre de madeira, puxou sobre a cabeça o capote longo, sujo de barro, com que se cobrira e fingiu dormir. A porta bateu contra a parede. Os saltos das botas soaram na cela e as tábuas rangeram; uma voz em tom imperioso berrou: - Prisioneiro Andrzej Wasilewski, levante-se! Vais fazer um passeio de vinte anos – disse o guarda. O preso jogou o casacão de lado e piscou na claridade da manhã, que entrava pela janelinha de grades. Estremeceu... Era como se repentinamente, num cálido dia, irrompesse a tempestade gélida da taiga infinita. O frio perpassou seus ossos, assimilou a visão dos rios congelados, das ululantes tempestades de neve, dos bandos de lobos famintos e das florestas indevassáveis. - Por que não me matam de uma vez? Por que me fazem morrer vinte anos a fio? Isso é uma crueldade insu- 239 portável! – desesperava-se Andrzej – Isso é um ato diabólico, Deus amaldiçoe esses assassinos moscovitas! VII A CAMINHO DO EXÍLIO Andrzej foi apresentado ao coronel Tumanow, que deu a sentença pessoalmente a todos os condenados reunidos. Falava com energia e autoridade: - Vinte anos de Sibéria... bem, a taiga ainda é um lugar selvagem. No verão faz quarenta graus de calor, no inverno chega a trinta graus abaixo de zero. Inimaginável, mas pode se agüentar. Se já milhares de pessoas viveram junto aos imensos rios e florestas, se as pessoas suportavam a vida nas aldeias, é porque a vida é viável por lá. Os rebeldes aprenderiam uma boa lição, porque Deus criou a Sibéria para castigar a humanidade, raciocinava o coronel Tumanow, ao decretar a deportação. Uma hora mais tarde ecoaram as ordens para saírem pelos corredores da prisão. Entre os cento e vinte e um prisioneiros políticos poloneses que se encontravam nos cárceres da fortaleza de Smolensk, todos eles participantes do Movimento de Libertação da Polônia, que eclodiu em 29 de novembro de 1830, estavam os três amigos e correligionários de Andrzej, Jan Filkowski, Karol Karczynski e Lukasz Bonkowski. Todos eles sofreram torturas infernais nas mãos dos inquiridores nos longos interrogatórios a que foram submetidos, mas nada conseguiram os carrascos russos, nenhuma pista foi dada, ninguém foi denunciado. Os condenados encontraram-se no espaço fechado por muro, acompanhados dos guardas. Todos estavam algemados. O coronel Tumanow berrou uma ordem, o portão 240 abriu-se e uma divisão de cossacos precipitou-se no pátio e rodeou os condenados. - Marchem! – ordenou o coronel, e os prisioneiros se puseram em movimento. Marcharam pelo portão para fora da fortaleza. Na véspera do Natal, quarenta grandes trenós deixaram a fortaleza de Smolensk. Os deportados jaziam na palha, escondidos debaixo das lonas. Uma divisão de cossacos acompanhava a escura fileira de trenós, com seus rápidos cavalinhos de pêlo hirsuto e grosso, resistentes e acostumados a comer a palha de telhados ou o musgo que teriam de cavoucar do solo, lamber o gelo das paredes para matar a sede; eram animais das estepes, assim como os seus donos. Nevava há dias, em grossos flocos pesados que cobriam a paisagem e sufocavam qualquer som. Na paisagem plana além de Moscou, as aldeias naufragavam, os campos se tornavam desertos brancos sobre os quais o vento soprava a neve como poeira alva. As florestas transformavam-se em figuras fantasmagóricas faiscantes, numa beleza mágica e singular. O gelo ainda não estava tão forte para que as árvores se partissem e morressem em pé. Mas a mortalha do inverno já estava depositada sobre elas, curvando os ramos até o chão, sufocando qualquer vida. Seria um inverno muito rigoroso naquele ano. Já tinham viajado quarenta dias, quando o trajeto a percorrer pelos deportados foi conhecido. Seguiriam de Smolensk a Nijni-Nowgorod e Wiatka, de lá a Perm, e atravessando os Montes Urais, passariam em Tijumen, Tobolsk, Omsk, Novo-Sibirsk, Krasnoyarsk, Irkutsk e Tchita. - O fim do mundo - disse uma voz baixa e trêmula atrás de Tchita, começa ... começa o nada. 241 É quase um ano de viagem, talvez mais ainda. Muitos não sobreviverão. São aproximadamente oito mil quilômetros até o destino final. A estação do correio mais próxima de Nijni Nowgorod era uma velha casa de madeira com enormes estábulos, uma varanda coberta, um salão de estar e muitos lampiões balançando ao vento. Era o lugar onde se fazia a troca dos cavalos cansados por outros já recuperados da fadiga. O encarregado do posto era um velho gordo, de bigodes enormes e olhos injetados, que chegou arrastando os pés. Bateu com as mãos na cabeça calva e, vendo todos aqueles trenós, gritou: - Não há mais cavalos, Ilustríssimos!, levaram todos os meus cavalos descansados, os outros precisam descansar. Amanhã às sete horas poderei dar-lhes cavalos novos! E assim ficou determinado. O comboio dos deportados do coronel Tumanow pernoitou na estalagem e os cossacos acamparam fora. Acenderam grandes fogueiras. Os cavaleiros selvagens sentaram-se em torno das labaredas bebendo e rindo. Alguns vigias cercavam o posto em seus cavalinhos, controlando qualquer um que se aproximasse. Na estrada que seguiram ao clarear do dia, via-se, ao longe, uma linha escura no campo de neve, era a coluna dos deportados em marcha. A estação de Nova Sarja ficava vinte quilômetros de Wiatka, a cidade onde terminam as grandes estradas. Dali em diante viajava-se apenas seguindo veredas demarcadas no terreno, até Perm, a última grande cidade na Rússia Européia. Atrás, erguiam-se os Montes Urais, como uma enorme muralha, cortada apenas por algumas poucas passagens. Os Montes Urais têm 2.400 quilômetros de extensão, com picos de 1.804 metros de altura; dividem a Rússia Européia da Sibéria. Possui minas de ferro, cobre, chumbo, 242 zinco, estanho, manganês, níquel, platina e ouro. Os habitantes dos vales e planícies da região dos Urais são descendentes dos mongóis de Ghengis Khan, conhecidos pelo nome genérico de tártaros. Atrás dos Urais começa a Sibéria, com gigantescas florestas, rios caudalosos e pântanos nos baixios. Cedo, pela manhã, chegaram quatro grandes trenós vindos de Perm. Pararam em Nowa Sarja. Ninguém estava acordado no albergue, exceto o estalajadeiro e o coronel Tumanow. Lá fora, porém, ardiam as grandes fogueiras dos cossacos e os guardas marchavam de um lado para outro. Alguns vultos desceram dos trenós. - Trouxeram bastante? – quis saber Tumanow. - Muitas, excelência, sempre temos bom estoque, Perm é a porta dos Urais, por isso, seguidamente somos solicitados. O coronel aproximou-se do primeiro trenó e afastou a lona. Correntes cintilaram na luz da manhã, eram correntes novas, com argolas nas pontas. Correntes compridas o bastante para permitirem um passo longo e com o peso exato para tornarem possível arrastá-las com esforço, por milhares de léguas, em meio a chuva, tempestade, gelo, turbilhões de neve e solo escaldante. Por florestas e pantanais, montanhas e planuras sem fim. A Sibéria saudava seus deportados como lhes era devido: com correntes para seus tornozelos. Os homens de Perm começaram a descarregar as correntes. Tumanow virou-se abruptamente e berrou: - Guardas, acordem os prisioneiros! Dos galpões laterais nos quais estavam, os deportados apareceram sonolentos. Era de cortar a alma vê-los aproximarem-se em seus uniformes de prisioneiros, esfarrapados, ainda mal despertos, arrancados do mísero esque- 243 cimento de uma noite, tangidos como uma manada de animais. No galpão, cujos portões duplos estavam abertos, os homens de Perm aguardavam ao lado de seus trenós desatrelados. As correntes ainda estavam cobertas por peles e capim. Depois que todos os prisioneiros haviam sido empurrados para dentro do galpão, os portões foram fechados. O coronel mandou cercar o local por um grupo de soldados fortemente armados. - Prisioneiros - ordenou Tumanow - cada um se adiante isoladamente. Não me obriguem a lhes botar as correntes debaixo de chicotadas. Sabem que são ordens e devem ser cumpridas. - Temos de obedecer – falou Andrzej, e adiantou-se em primeiro lugar. O ferreiro tirou uma corrente do trenó. As fechaduras dos dois anéis cerraram-se com ruído. - O seguinte – disse o ferreiro, indiferente, pois já colocara aquelas correntes nas pernas de milhares de prisioneiros, ouvira gritos, insultos, ameaças, pragas, lágrimas e também orações. Para ele, tratava-se apenas de um trabalho, como outro qualquer. Ferrar um cavalo ou acorrentar um homem, qual é a diferença? O emissário-insurreto ergueu-se, deu uns passos cambaleantes, a pesada corrente tiniu no chão. - É um peso de toneladas – disse em voz baixa – é todo um mundo de intolerância e humilhação que se arrasta nos pés. Uma hora depois tinham terminado a colocação das correntes nos 121 deportados políticos e na centena de criminosos comuns. Tiraram-lhes as algemas das mãos, mas colocaram as correntes nos tornozelos, para que não pudessem fugir. Um tilintar alto e sinistro enchia o galpão, pois qualquer movimento dos pés fazia ressoarem os elos de 244 ferro. O portão duplo do galpão foi aberto, os cossacos seguraram suas espadas em prontidão. Primeiro saiu o coronel Tumanow. O seu ordenança jogou-lhe nos ombros o grosso manto de peles, e colocoulhe na cabeça o alto gorro de zibelina. Depois apareceram os soldados, colocando-se à direita e à esquerda do portão. O desfile diabólico começou... Apoiando-se uns nos outros, cambaleavam para fora do galpão, arrastando atrás de si as correntes. Formaram fila de dois, numa coluna infindável. Começou a caminhada infernal rumo à Sibéria. Do depósito chegou um trenó pesado e tosco puxado por três cavalos, era o carro das provisões. O coronel Tumanow subiu no seu trenó e enfiou-se debaixo dos grossos cobertores de peles. Os cossacos estavam em formação, os trenós com os soldados já esperavam fora do pátio da estação. - Coluna! Em marcha! – gritou Tumanow. O esquadrão de cossacos adiantou-se, o vapor branco das narinas de seus cavalos erguia-se como uma nuvem sobre os homens e animais. Depois, a fileira humana partiu, deixando atrás de si os gemidos e o turbilhão da neve revolvida. Quantos deles alcançaram Tchita? Este centro de deportados, ao sul da Sibéria, na fronteira com a Mongólia, a última cidade um pouco humana, antes que os prisioneiros se percam na selva e no esquecimento total? Durante cinco dias andaram pela neve, num frio que chegava a cortar. Passaram cinco noites nos trenós, enrolados em peles e palha. Não se via uma aldeia, uma casa, um animal, ou um ser humano, apenas a amplidão desolada, florestas silenciosas, rochedos e uma estrada mal demarcada, que levava para o desordenado ziguezague das monta- 245 nhas, subindo para a passagem que ligava os Montes Urais com a Sibéria. Andariam até Tijumen, sobre aquela terra virgem, que, no inverno, se transformava num cemitério branco e sem fim, na primavera, quando os rios Ob e Irtich ultrapassavam as margens, se tornava um deserto de água, no verão, uma frigideira ardente, e no outono, um pantanal lamacento... Começou a subida dos quarenta trenós e da coluna humana pelas íngremes estradas das alturas até o topo dos Urais. Do cimo do passo avistava-se toda a planície abaixo. Os rios congelados rebrilhavam no sol poente. De resto, florestas, neve e silêncio, até onde o olhar pudesse alcançar. Os deportados fitavam do alto as profundezas, com olhar tristonho, e suas correntes tilintavam quando caminhavam. Já estavam acostumados àquela carga de ferro. No dia seguinte, ao meio dia, o transporte de deportados descia com espantosa lentidão e dificuldade a estrada das montanhas. Entraram Sibéria adentro. A descida dos Urais para a planície do rio Tobol foi um tormento, trenós tombavam de lado, mais cavalos morreram de exaustão nos arreios. Era uma longa fila de trenós, rodeada pelos cossacos a cavalo, numa marcha lenta. Chegavam agora numa região famosa pelos bandos de salteadores. O coronel Tumanow transportava, além dos prisioneiros, três caixas de rublos de ouro, destinadas à construção no sul do país, em Irkutsk e Tchita, de uma nova colônia povoada pelos deportados, que seriam usados como mão-de-obra escrava. Depois de terem obtido cavalos descansados para todos os trenós em Tijumen e refeito suas provisões, seguiram rumo a Tobolsk. Esta cidade foi fundada pelo czar Ivan IV, “O Terrível”, em 1587. Lá, foi construído um for246 te, donde dominavam todo o sul da Sibéria. Estabeleceu-se ali uma comunidade de tártaros, que aumentava a cada leva de deportados que chegava da Rússia.Trabalhavam num regime de trabalhos forçados, nas minas de ferro, cobre, chumbo e outros minérios, que eram extraídos dos Montes Urais. Tumanow trazia ordens para deixar em Tobolsk os deportados que eram criminosos comuns e seguir até Tchita com a leva dos deportados políticos. Após a entrega dos condenados ao comandante do campo de prisioneiros de Tobolsk, o comboio seguiu rumo a Omsk. Seria uma jornada entre florestas, pântanos, cruzando o gigantesco e congelado rio Ob. Alcançaram uma região na qual viviam os quirguizes, uma raça de homenzinhos de olhos oblíquos e pele amarelada, que habitavam em cabanas redondas chamadas aul. Eram nômades, criavam cavalos póneis, ágeis como vento. Passaram em Novosibirsk, cidade situada à margem do rio Ob, e foram em direção à Krasnoyarsk, constuída à beira do rio Yenissei. O coronel enviara cossacos para que se informassem com os moradores da aldeia, em que ponto seria possível atravessar o rio. A estação dos correios por onde passaram estava vazia. Algo jamais visto. O encarregado escrevera como último registro em seu livro: - “ 9 de outubro de 1831. Deus esteja com todos os que aqui entrarem. Não agüento mais esta vida. Choro de solidão, tenho medo de enlouquecer, vou para onde houver gente. O último viajante passou por aqui há quatorze dias”. - E nós aqui plantados, sem sabermos o que fazer! – berrou Tumanow. Diante de nós o Yenissei, e ninguém para nos dizer como chegarmos à outra margem! Pela manhã, os cossacos voltaram e ajudaram a libertar com pás os trenós presos na neve. Ninguém sabia onde se podia cruzar o rio Yenissei, mas tinham trazido 247 consigo um guia que lhes indicaria a possível passagem, e a direção que deviam seguir para chegar à Irkutsk. Centro da região do Angara, Irkutsk, é a capital da Sibéria Oriental, fundada em 1611, na margem bastante elevada que se ergue do lado direito do rio Angara, na confluência do rio Irkut. Vista de uma certa distância do alto da montanha que se eleva a duas dezenas de quilômetros sobre a grande estrada siberiana, tem o aspecto um tanto oriental, devido às suas cúpulas, às suas torres, às suas agulhas, elevando-se como minaretes, aos seus zimbórios bojudos como cebolas. E agora os deportados chegavam a essa legendária cidade, que tinha um kremlin próprio, belas e grandes casas de madeira ornadas de esculturas, três igrejas ortodoxas com ícones e altares dourados. Era uma cidade admirável, meio bizantina, meio chinesa, volta a ser européia pelas suas largas ruas macadamizadas ladeadas de passeios, atravessada por canais de margens arborizadas. Irkutsk, entreposto de inúmeras mercadorias trocadas entre a China e a Europa, era a residência do governador geral da Sibéria Oriental, general Semion Iliaiewitch Abdulkhei, e sob as suas ordens estavam um governador civil (woiwoda), nas mãos do qual se concentrava a administração da província; um diretor da polícia, ao qual não faltava o que fazer numa região onde havia muitos deportados e exilados, e finalmente um presidente do município e da câmara de comércio. A guarnição da cidade compunhase então de um regimento da infantaria de cossacos, que contava com dois mil homens, e de um corpo residente de policiais. O general Abdulkhei era um homem de aparência singular. Alto, muito magro, quase esquelético, com um longo bigode sobre os lábios finos e a pele amarelada. Era originário do Kasaquistão, da cidade de Karaganda, uma 248 província do sul, distante 2.750 quilômetros de Irkutsk, onde russos e kasaques se misturavam, tinha pois, sangue mongol por parte do pai e russo pelo lado da mãe. Próximo de Irkutsk fica o lago Baikal, que está situado a 550 metros acima do nível do mar, tem cerca de 900 quilômetros de comprimento e 100 de largura, e 1.600 metros de profundidade; é o lago mais profundo do mundo. Este imenso reservatório de água doce é alimentado por mais de trezentos ribeirões, recebe, inclusive, os rios Selenga e o Angara Superior, seu escoadouro é o rio Angara Inferior, que, depois de passar por Irkutsk, vai lançar-se no Yenissei, um pouco acima da cidade de Yeniseisk. O lago Baikal é enquadrado por um magnífico círculo de montanhas vulcânicas. As montanhas que o rodeiam são uma ramificação das Tunguses, do vasto sistema da formação da cordilheira do Altai, da Ásia Central. Durante o inverno siberiano, este mar interior, gelado numa espessura de vários pés, é atravessado por trenós dos correios e pelas caravanas. No verão, o lago está sujeito a violentas tempestades, as suas ondas, curtas, são temidas pelas jangadas, embarcações de carga e de passageiros que o sulcam durante a estação. Jangadas de toras de madeira habitualmente derivam pelos rios siberianos guiadas por robustos mujiques. O governador Abdulkhei foi informado da chegada da coluna de trenós trazendo deportados políticos para sua região. Os prisioneiros foram imediatamente levados ao quartel e trancafiados lá. Ficaram oito dias em Irkutsk, oito dias de esperança, de planos e de confiança no futuro. Quase começaram a amar a Sibéria. A história e o crescimento da Sibéria foram escritos com sangue, e nada mudará isso, ainda que mudem as gerações. Esta terra é como um “Moloch,” o deus dos Amoni- 249 tas (povo da Palestina, descendentes de Amon), que só conseguia sobreviver à custa de sacrifícios humanos. Atravessando as íngremes montanhas Yablonowy, os exilados seguiram para Tchita, no rio Schilka, afluente do enorme rio Amur. O lugarejo ainda era bastante pequeno. Um miserável ponto de encontro de caçadores de pele e mineradores, e de reunião de aventureiros, vigaristas da Sibéria, entre o rio Lena e o Amur. Um dia Tchita será um lugar importante, mas para conseguir isso, precisam de gente. Gente que se possa forçar a trabalhar, a construir estradas, secar pântanos e a derrubar matas virgens. E para isso mandaram-lhes os deportados poloneses. Mas no nono dia de viagem, de repente, o coronel Tumanow foi substituído. Um certo capitão, Grigory Nikolaiewitch Tyrow, assumiu o comando do transporte, e ele saudou cada um dos prisioneiros cuspindo-lhes no rosto. - Este é o último calor humano que vais receber! Assim começou a amostra do que seria a vida dos prisioneiros na Sibéria. Seriam ainda trinta dias de uma viagem de sofrimentos até o seu destino em Tchita. Depois de Irkutsk tudo se transformou, a caminhada tornou-se um tormento indescritível. E tudo já começou na primeira estação dos correios. O capitão Grigory ordenou aos deportados que descessem dos trenós e andassem um grande trecho a pé. Aquilo era muito doloroso, pois a estrada estava congelada. Os prisioneiros escorregavam, as correntes nos pés os impediam de andar direito, e depois de algumas centenas de metros, pareciam pesar toneladas. Arquejantes, os homens cambaleavam pela estrada, com os tornozelos feridos, enquanto os trenós seguiam atrás deles vazios, com o alegre tinir de sininhos. 250 - Temos de poupar os cavalos - berrava o capitão na Sibéria, cavalos são mais importantes e valiosos que homens! Esse negócio de andar nos trenós acabou. - Vocês são criminosos como qualquer outro. Dawaj! Vamos! Quem ficar parado ou deitado será chico-teado. - Seremos obrigados a estrangulá-lo numa noite dessas, ou não sobreviveremos até o destino! – cochichou um dos deportados. Foi durante um descanso. Ao lado da estrada, os homens jaziam como trastes jogados na neve, tentando respirar. Suas correntes estavam cobertas de gelo e entravamlhes na carne, ferindo-os. Era uma armação diabólica, esta, de marchar horas a fio no gelo e na neve com aquelas correntes. Durante sete dias atravessaram essa solidão de veredas pela floresta e pela estepe. Avistavam-se pessoas apenas algumas vezes e, ao longe, uma pequena tropa de cavaleiros iacutos, que fugiam como fantasmas vendo a coluna de deportados. Eram sujeitinhos pequenos, de olhos oblíquos e pele amarela, montados em cavalinhos do tamanho de pôneis, que sumiam tão depressa como tinham aparecido. No oitavo dia, a coluna descansou numa floresta. E foi ali que tudo aconteceu. De manhã, o capitão Grigory apareceu degolado na sua tenda. Os cossacos reuniram os prisioneiros. Um jovem tenente assumiu o comando interinamente. Examinaram cada deportado. Interrogaram todos, mas nada foi apurado, não foi encontrado o culpado. O tenente ordenou que os prisioneiros acampassem, dali por diante a céu aberto, e mandou três de seus homens, os melhores cavaleiros, de volta à Irkutsk, para avisarem o governador do ocorrido. 251 - Mesmo que criem raízes aqui – berrou o tenente aos deportados – esperaremos até que o governador nos mande novas ordens. Dez dias depois, regressaram os cavaleiros enviados à Irkutsk. Traziam consigo um quarto homem, todo embuçado em uma grossa pele que tornava a sua figura parecida com a de um urso. E foi a maior surpresa ver o coronel Prokor Borossowitch Tumanow descer da sela do seu cavalo, chegando ao acampamento. - Um capitão russo foi morto por vocês aqui, portanto, todos são suspeitos - berrou Tumanow. As ordens que trago do governador são para retornar com todos para Irkutsk, todos vão ser interrogados e acharemos o culpado. O caminho a seguir dos deportados, inverteu-se. Antes de chegarem de volta à Irkutsk, subitamente, irrompeu a primavera. Um vento morno soprava da China, as árvores sacudiram a neve como cachorros sacodem as gotas de água do seu pêlo. O gelo, rompendo-se sobre os rios, dava estouros como canhões, amontoava-se em grossos torrões, batendo contra as margens. A estrada tornou-se um lamaçal pantanoso no qual os trenós atolavam. Cada wersta vencida era uma dura luta. Os cavalos puxavam arquejantes, os homens empurravam por trás os seus trenós e, ainda assim, avançavam lentamente. O calor que se abateu sobre eles, de repente, tornouse insuportável. Os homens andavam com as camisas abertas atrás dos trenós. Milhões de mosquitos subiram dos pantanais e atacaram a coluna de prisioneiros, em nuvens densas e sussurrantes, mais sanguinárias do que uma alcatéia de lobos. Contra o frio havia peles, contra os lobos havia espingardas, mas contra os mosquitos, todos estavam indefesos. Mas antes de retornar à Irkutsk, teriam que se apresentar ao comando militar de Tchita; cidade que vivia de 252 apenados. Um miserável amontoado de casas de madeira, exceto pelo edifício do comando, de cujo telhado tremulava a bandeira do czar. Na distância, desenhavam-se vagamente as montanhas de Iks, e longas listras escuras de florestas da taiga, estendiam-se no horizonte. O comboio cruzou o rio Schilka e entrou em Tchita. Eram míseras figuras humanas as que chegaram lá. Com roupas rasgadas, consumidas pela marcha de nove meses a fio, esqueléticas, tendo percorrido mais de oito mil quilômetros de distância. Os prisioneiros foram conduzidos a um acampamento de cabanas de madeira. Seguiriam de volta para Irkutsk dentro de cinco dias. E estavam sem correntes nos tornozelos. - Aqui não se precisa de algemas, pois ninguém conseguirá voltar à Europa - decidiu o comandante. Estavam como que inebriados, apesar da decadência física, das feridas terríveis que as correntes haviam feito e do desespero que ainda os corroía, por causa da pátria e do lar perdidos. Andrzej estava terrivelmente magro por causa da longa marcha, mas seus olhos negros ainda mantinham a firmeza e o brilho juvenil. Em Tchita tinham recebido roupas novas, embora remendadas em muitos pontos, não mais aqueles horríveis uniformes listrados de prisioneiros.Tinham sapatos adequados, chapéus de palha de aba larga, como os aldeões, e no acampamento haviam lhes dito que no inverno haveria botas de feltro, casacos acolchoados e calças forradas. - Naturalmente não estão fazendo isso por bondade – disse Jan Filkowski – precisam da nossa força para o trabalho, e quem sente frio trabalha mal. A comida também vai melhorar. Em Tchita vamos até cuidar de nós mesmos. A taiga está repleta de animais, haverá bastante carne, podemos plantar nossos próprios legumes, nas horas vagas. 253 Dias depois,Tumanow chegou ao acampamento com uma notícia surpreendente: - O cossaco Tatarchuk confessou o assassinato do capitão Grigory Tyrow. Simplesmente degolou-o, por vingança, enquanto dormia na sua tenda, ainda ébrio, informou o comandante. O capitão tinha esbofeteado o cossaco, lançado-o por terra e dançado sobre o seu corpo, dera coices na sua cabeça só porque o mesmo rira na sua frente; o capitão estava bêbado. Tatarchuk foi preso e levado para Irkutsk. Por este motivo, o governador revogou a ordem de levar os deportados de volta à Irkutsk. Eles seriam encaminhados para as fábricas, para o corte de árvores na floresta que abastecia as serrarias, para a construção de casas, para fazendas de criação de cavalos e renas e tantos outros empreendimentos de que aquela terra era carente. Ainda conheciam apenas uma pequena parte da Sibéria. Tinham atravessado o país do oeste para o leste, mas no fundo fora apenas uma estreita faixa desta região imensa, uma estrada, uma fina artéria de civilização. Tchita mostrou-se, ao primeiro olhar, como um lugar desolado, um pedaço de terra que Deus esquecera no momento da Criação, mas, olhando melhor, via-se que se podia fazer algo por ali, pois o rio Schilka corria, largo e lento, rumo ao rio Amur, apinhado de peixes, com água clara e pura. Havia matas cheias de animais, castores na água, manadas de cervos pastavam nas planícies verdes; havia raposas, martas e arminhos; ursos, tigres e outros animais de grande porte povoavam as florestas, e, parando nas corredeiras do rio, podiam-se ver salmões grandes e gordos saltando no rio. As primeiras semanas foram preenchidas com os preparativos. Os deportados, reunidos num acampamento de sete grandes cabanas feitas de troncos, em tor254 no das quais estava erguida uma alta cerca de toras, começaram a derrubar árvores. Os demais habitantes de Tchita, a princípio portaram-se com reserva; eram em maioria constituídos de tribos de buriatas e tártaros, que moravam em cabanas de madeira protegidas contra o inverno. O coronel Tumanow já informara e preparara o comandante das tropas siberianas, general Vassili Kusmaievitch Kirkine, sobre a situação dos deportados políticos poloneses e as ordens que recebera do czar. *** Dez anos se passaram... Andrzej e os quatro amigos, Anton Zubrowski, Jan Filkowski, Karol Karczynski e Lukasz Bonkowski, trabalhavam numa fazenda de criação de cavalos que pertencia ao governador, general Semion Iliaiewitch Abdulkhei. A fazenda ficava em Ulan-Ude (Kyakhta), a uns duzentos quilômetros da divisa da Mongólia. Situava-se à margem do rio Selenga, próximo a sua foz, no lago Baikal. Este rio nasce na Mongólia, tem 1.205 km de extensão. Existem na cidade de Ulan-Ude indústrias de construção naval, mecânicas, indústria de pesca, de peles, carnes e um comércio ativo com a China. A região é habitada por buriato-mongóis, comumente chamados de tártaros. O governador visitava a fazenda esporadicamente. Simpatizou com os cinco deportados que trabalhavam na sua fazenda, gostou de seu trabalho, que era feito com zelo e dedicação. Um dia chamou os cinco amigos e lhes anunciou: - Mandei um mensageiro para São Petersburgo, levando um documento dirigido ao czar Nicolau I, com pedido de indulgência para os 121 deportados poloneses que estão sob a minha responsabilidade. 255 Os exilados trabalhavam nas matas, derrubando árvores, serrando e carregando os troncos para as grandes carroças de transporte. No segundo ano instalaram uma serraria a vapor, com maquinaria bem moderna, com as peças desmontadas que vieram da Rússia, em trenós. Trabalhavam como animais, até a exaustão. O orgulho polonês manda que cumpram o dever até cair. Levantar a cabeça, mesmo se as pernas estão moles de cansaço. Um guerrilheiro polonês morre de pé, jamais desiste. Os prisioneiros políticos sempre tinham vida pior que os criminosos comuns, pelo simples critério de que a inteligência é mais perigosa do que um cérebro primitivo, que só pensa em roubo e morte. Mas não pensava assim o governador, general Abdulkhei, o qual reconheceu o grande potencial que tinha nas mãos. Os deportados políticos eram homens inteligentes, trabalhadores, honestos e podiam ser aproveitados, se livres, no incremento ao desenvolvimento da região oriental da Sibéria. Enviou mais uma petição ao czar, rogando o perdão para os poloneses expatriados. Assinaram-na, além do Abdulkhei, catorze altos oficiais e todos os governadores das províncias siberianas. Esperavam ser bem-sucedidos. A carta dizia o seguinte: “Suplicamos à Vossa Majestade que realize esse ato de misericórdia, perdoe os exilados poloneses. Majestade, eu governador de Irkutsk, peço igualmente por esta graça. Os poloneses são homens que falharam em relação à Vossa Majestade, mas fizeram-no por amor à Pátria. Foram patriotas, bons e verdadeiros, que apenas olharam em direção errada. Suplico misericórdia à Vossa Majestade”. Ainda naquela noite, um mensageiro de Irkutsk cavalgou para o oeste. Oito mil werstas de terra isolada jaziam diante dele, interrompidas pelos diminutos postos de 256 muda, onde se podia trocar os cavalos e dormir algumas horas para refazer as energias. - Levará um ano até chegar a resposta do czar - disse Abdulkhei aos seus oficiais -, mas o que significa um ano na Sibéria? - Um dia o czar responderá - comentou Kirkine. - Ele nunca responderá - retrucou um dos oficiais. Efetivamente, o inverno passou, a primavera, o verão... e nada se modificava. A vida em Tchita seguia o seu caminho, conforme queriam os comandantes dos campos de prisioneiros. O general Wassili Kusmaiewitch Kirkine ficou impaciente, e, por fim, cavalgou com uma divisão de cossacos até Irkutsk. Abdulkhei adivinhou a razão da visita, ergueu os ombros com as largas ombreiras douradas e disse: - Nada de São Petersburgo, nenhuma notícia, e o último mensageiro chegou a uma semana. Deixe passar um ano - continuou o general, e encheu um cálice de vinho da Geórgia oferecendo a Kirkine, que o esvaziou num gole. - O que é um ano na Rússia? - comentou Kirkine. Dias depois do regresso de Kirkine à Tchita, um mensageiro de São Petersburgo trouxe uma carta selada, do czar Nicolau I, até Irkutsk. Abdulkhei quebrou o sinete com mãos trêmulas e desdobrou o grande pergaminho estampado com a águia de duas cabeças, o emblema do Império da Rússia. Entre outros assuntos, a carta dizia: “O czar, na sua grande misericórdia, decidiu declarar livres os deportados poloneses”. Podiam morar nas suas casas, estavam livres da vigilância dos soldados; podiam trabalhar onde quisessem, contanto que não se distanciassem da região de Tchita, Ulan-Ude ou Irkutsk. Passados dez anos de trabalhos forçados, nas florestas de coníferas da taiga, nas minas de ferro ou de cobre, 257 nas fazendas de criação de cavalos e renas, sempre sob a vigilância severa e ininterrupta de soldados e comissários políticos, um dia foram procurados por funcionários policiais da Administração Central de Irkutsk, que lhes informaram: -Vocês estão livres, podem andar e movimentar-se livremente, arranjar emprego, fazer qualquer coisa. Incluímos vocês no nosso processo de produção dessa região. Não tentem fugir, porque serão fuzilados. E, assim, foram libertados, não eram mais prisioneiros, só não podiam voltar a sua pátria. Não pareciam subjugados, nem esfomeados, nem doentes, somente os olhos eram grandes e famintos, repletos de desejo pela liberdade e pela vida na sua terra. O campo foi desfeito, os barracões retirados, derrubaram-se as cercas de arame farpado. Muitos deles foram trabalhar nas cidades, nas serrarias, outros foram para o campo; plantaram cereais, criaram galinhas e porcos. A ordem era clara: teriam que cumprir a sentença, “deportados por vinte anos”. Faltavam, pois, mais dez anos de exílio. Mas, vencido esse tempo, poderiam voltar. Surgiu dali uma categoria especial de intelectuais, que se dedicaram ao estudo e à exploração da flora e fauna da Sibéria Oriental e do norte da Ásia. Ocupavam-se, eles, da pesquisa e como professores no ensino dos povos locais. Os deportados poloneses,“agora livres” na Sibéria, foram assentados nas cidades, nos arredores, nos campos e nas fábricas da região. Alguns ocuparam-se no comércio, no trabalho das fazendas de criação de cavalos e gado, outros no artesanato, carpintaria e na agricultura, plantando trigo, beterraba para açúcar, aveia, centeio, alfafa e lúpulo. Batatas norueguesas e diversas leguminosas foram introduzidas pelos expatriados, que aplicavam métodos modernos de cultivo usados na sua terra natal. Foram im258 plantadas pequenas indústrias de cerâmica artesanal para fabricação de potes, vasos, tijolos e telhas. Executavam trabalhos em xilogravura e incrustações em madeira. Criavam abelhas para a produção do mel e cera. Certo dia, o governador Abdulkhei veio fazer uma visita à sua fazenda de criação de cavalos em Ulan-Ude. Mandou chamar os cinco deportados que ali trabalhavam e lhes anunciou: - Estão livres agora - podem ficar aqui ou ir para Irkutsk ou Tchita. Mas só receberão documentos para se movimentarem na região, não terão permissão para distanciarem-se para além da minha autonomia. Não adianta fugir, pois não irão longe; a Sibéria é o “ Moloch”. Os cinco amigos resolveram mudar-se para Irkutsk, onde teriam outras oportunidades de trabalho. Andrzej Wasilewski tinha uma natureza inquieta, era curioso e inteligente, espírito inventivo e observador. Um dia, ele e os quatro amigos estavam pescando no rio Angara. Andrzej observou as diversas cascatas pelas quais as águas caíam com estrondo. Veio-lhe uma idéia à mente. Aqui é possível construir um moinho, uma grande roda de madeira impulsionada pela queda d‟água movimentará as pedras que vão triturar os grãos de cereais que são produzidos na região. Teremos muita farinha para o pão do povo. Levou o plano ao governador, que o admirava pelo seu talento e firmeza de propósito. O general gostou da idéia e autorizou-o a promover a análise do projeto. Andrzej procurou o engenheiro polonês, deportado como ele, Jan Tamulewicz, e os dois fizeram o estudo; concluíram pela viabilidade da construção do moinho. Só faltavam os recursos para o material e a mão-de-obra. Foram conversar com o general, o qual, depois de ouvi-los na explanação do projeto, aprovou e dispôs-se a 259 financiar a obra. Eles assumiriam a construção do moinho e, depois de pronto, iriam administrá-lo e teriam parte nos lucros. O negócio foi concluído. E imediatamente começou a grande empreitada da construção. Andrzej chamou seus conterrâneos para trabalharem na obra, contratou homens das aldeias próximas para drenar o terreno da margem do rio e colocar pedras para firmá-lo. Ordenou ainda para derrubarem árvores de porte reto para as vigas e os esteios. As pedras do moinho que iriam triturar os grãos foram encomendadas em Perm; iria demorar bastante tempo até chegarem à Irkutsk. A enorme roda de madeira que iria movimentar o moinho já estava sendo construída. Tudo estava se realizando conforme fora programado. O governador estava contente, vistoriava a obra e confidenciava aos amigos: - Eu não me enganei quando interferi no pedido de indulgência para os deportados. Eles estão colaborando e nos ajudando a construir o progresso desta região. Deus abençoe o czar - disse com entusiasmo. Demorou um ano até que o moinho ficasse pronto. Era uma obra marcante do governador e fonte de bons lucros para ele, além de beneficiar a população, que não precisava mais moer os grãos manualmente. Em junho de 1863 chegou outra leva considerável de deportados poloneses, sendo na maioria jovens de 17 a 25 anos de idade. Dos mais famosos deportados, sobressaíram-se Jan Czerski, Waclaw Sieroszewski, Aleksander Czekanowski, Benedykt Dybowski, Wiktor Godlewski, Ignacy Trzaskowski, e outros não menos competentes, profissionais liberais, como médicos, dentistas, professores, músicos, poetas, escritores, cientistas, historiadores, engenheiros e muitos outros que não se conformaram com a situação vigente na Polônia, não aceitaram a subjugação, a 260 humilhação do povo e se revoltaram contra a ocupação russa, por isso, foram condenados ao degredo na Sibéria. E, mesmo no exílio, incitavam as rebeliões, organizavam grupos revolucionários, incutindo-lhes idéias democráticas, com a finalidade de juntos com as populações locais criarem uma república livre da Sibéria. Não menos significativo, era o incentivo à cultura, às artes e ao ensino de novos métodos de agricultura. *** Ivan Grigoliewitch Poznikow era woiwoda (governador civil), funcionário público nomeado pelo czar. Tinha como obrigação administrar os problemas dos habitantes do território de sua jurisdição; recebia ordens do governador militar. Ocasionalmente, dedicava-se ao negócio de peles em Kyakhta, na fronteira da Mongólia. Alguns mercadores que compravam as peles eram russos, outros mongóis, mas a maioria era chinesa. Andrzej Wasilewski estava na casa dos vinte e oito anos; calejado pelos cruéis invernos da Sibéria e ainda mais pelo trabalho duro que tivera que executar como prisioneiro. Ele era alto e magro, largo nos ombros e musculoso nos braços, tinha cabelos castanhos encaracolados, usava-os curtos, olhos negros brilhantes e penetrantes. Por precisar de documentos para o funcionamento do moinho, Andrzej procurou o woiwoda na sua casa, local onde ele atendia a população que o procurava. Foi recebido prontamente, por se tratar do homem de confiança do governador Abdulkhei. 261 - Entre! Sente-se! – convidou Ivan Grigoliewitch. Voltou a cabeça para a porta que levava para dentro da casa e chamou: - Ludmila, minha filha, o cavalheiro gostaria de uma xícara de chá e uma bandeja de biscoitos. Pouco depois, entrava na sala uma jovem bonita, de aproximadamente dezesseis anos, um sonho de beleza a desabrochar, cabelos negros compridos, presos em tranças, sobrancelhas escuras, olhos negros levemente oblíquos, brilhantes e inteligentes, corpo excepcional, de curvas bem delineadas. Notava-se nela a descendência mongólica, eram naturais do Kasaquistão. Com sorriso nos belos lábios carnudos, entrou Ludmila, trazendo a bandeja com o chá. - Posso servir, paizinho? – perguntou. O pai levantou a cabeça de cima dos documentos que examinava e respondeu: - Sirva o moço, meu passarinho! – ela despejou o chá fumegante na xícara e primeiro ofereceu ao pai. Ao servir o chá ao Andrzej os seus olhos se encontraram. Passou uma corrente eletrizante pelo olhar entre os dois. A moça ficou tremendo, corou até a raiz dos cabelos. Perturbada, retirou-se em seguida. Podia se vislumbrar seus cabelos negros atrás das cortinas do quarto observando o rapaz que se despedia do pai. Andrzej surpreendeu-se ao perceber que estava com o pensamento fixo na moça; o seu semblante risonho não lhe saía da cabeça. Depois do seu trágico amor por Krystyna, nunca mais houve amor para ele. Vivia para o trabalho, isolado. Lembrando com saudade dos momentos felizes que passara ao lado daquela jovem corajosa e abnegada, que sacrificara sua vida no retiro do claustro para proteger a vida dele. Ela conhecia bem Andrzej, a sua impetuosidade, ele arriscaria tudo para estar perto dela. Depois da sua deci262 são definitiva e irrevogável de fazer votos como freira, ele não teve outra alternativa a não ser procurar esquecê-la. Naquela noite de verão siberiano ele foi dormir pensativo; e antes mesmo do alvorecer despertou, jogou os lençóis para o lado, vestiu-se e saiu para fora. As estrelas ainda cintilavam no céu, e uma camada de cerração levantava-se do rio Angara. À distância os lobos uivavam com os sons alternados, outras vezes em uníssono. Andrzej reconheceu surpreso que estava perdidamente apaixonado pela Ludmila, que o seu coração despertou novamente para o amor. Depois do encanto, o reconhecimento da sua situação grave e problemática desabou com todo peso sobre ele. Tinha previsto e procurado evitar por todos esses anos o que acabara de acontecer. Ele era polonês, deportado político e não podia dispor da sua vida; obedecia ordens, não podia locomover-se livremente pelo país. Era preciso tomar uma decisão, refletiu: “só há duas alternativas; ou permaneço aqui e levo a vida de um cidadão siberiano honrado, ou cumpro até o final a minha pena e volto para a minha pátria”. Desistir de Ludmila? Mas uma vez desistir do amor? Seu coração cheio de esperança dizia “Não! não desista! lute! seja feliz! vá em frente!” Na casa do pai, Ludmila dormia com o sorriso feliz da criança embalada com a canção de ninar. A jovem virava-se na cama, sussurrava no sono, soava como um grilo cantando na grama quente de verão. Andrzej arrumou mais papéis para serem assinados pelo woiwoda, eram apenas desculpas, pois ele precisava muito ver a jovem. Seu coração estava inquieto. A natureza arrojada do rapaz levou-o até a residência da moça. Sentia tanta alegria interior que não viu Ludmila se aproximar. - Gostei muito de vê-lo aqui, vai demorar-se? – perguntou a jovem - talvez aceite uma xícara de chá? 263 O irresistível brilho dos seus olhos e o sorriso que lançou enquanto lhe dirigia a palavra, abrasaram-no. Entrava nesse momento o secretário, com os papéis para o Poznikow assinar, aproximou-se da mesa do chefe para lhe explicar uma dificuldade que encontrara nos documentos. - Seja como for, faça como eu te autorizei - articulou Poznikow suavizando a advertência com um sorriso. Virouse para Andrzej, que bebericava o chá, e lhe perguntou: - e afinal, para o que vieste? mais papéis para eu assinar? deixe-me vê-los. - Trata-se do seguinte... não, aliás, é particular - gaguejou Andrzej, e de súbito surgiu em seu rosto um vivo rubor provocado pelo esforço que fazia para vencer a timidez. Vendo a insegurança do moço, o woiwoda quis ajudar. - Gostaria de convidar-te para ir à nossa casa, mas a minha esposa não está bem - disse Poznikow. . - Eu farei as honras da casa, meu pai - acudiu Ludmila. Nós dará muito prazer a sua visita. - Está bem, meu passarinho - respondeu o pai. Portanto, estás convidado, Andrzej. Passaram-se muitos dias antes que o moço decidisse aceitar o convite do woiwoda, estava intranqüilo, hesitava... Era um dia claro e frio. Junto à porta da casa havia uma carruagem. As velhas e frondosas bétulas do jardim, cujos ramos pendiam sobre a neve, pareciam engalanados de vestes novas e solenes. Andrzej caminhava pela alameda, dizendo para si mesmo: “Não devo emocionar-me, preciso estar sereno. O que é isso, coração? Cala-te, tonto!” Mas quanto mais se esforçava por tranqüilizar-se, tanto mais sentia-se perturbado. Quando pensava em Ludmila, podia imaginá-la por inteiro, e sobretudo aquela sua encantadora cabeça com os 264 cabelos negros, lisos, longos até a cintura; aquele seu ar de menina-moça, cheia de alegria e bondade. O contraste entre a graça juvenil do rosto e a beleza feminina, do busto empinado, dava-lhe um encanto todo especial. Mas o que o assombrava nela eram os olhos negros, como poços profundos, cintilando raios que o atingiam no coração. Andrzej estava apaixonado, e por isso Ludmila lhe parecia uma criatura tão perfeita em todos os sentidos, tão além das coisa terrenas, que não podia sequer pensar que ela e o pai o considerassem digno de aspirar a sua mão. Ludmila veio recebê-lo na porta. - Tenho pensado em ti todo esse tempo e estou muito contente, muito mesmo, que tenhas vindo - falou radiante a moça, olhando-o nos olhos com raios de fogo. Quando entraram no salão, Andrzej tirou o casaco e o cachecol e os entregou à criada. Passaram para a sala de jantar e sentaram-se à mesa. Eram quatro pessoas. Poznikow, Mariusia, sua esposa, Ludmila e, em frente dela, Andrzej. Foi servido caviar vermelho como entrada, sopa de verduras, depois carpas assadas com maçãs, leitãozinho no espeto, cogumelos marinados e robalo com molho. Acompanhava a refeição vinho tinto da Georgia, servido em taças de cristal. De sobremesa, foram servidas frutas da região em calda. Poznikow conversava sobre amenidades e também sobre o inverno que chegava. Depois do jantar, Ludmila retirou-se, estava inquieta, conheceu as mesmas impressões que costuma experimentar um jovem soldado nas vésperas de uma batalha. O coração pulsava-lhe com violência e não era capaz de concentrar o pensamento. Sentia que aquela noite iria decidir-se o seu destino. O amor que Andrzej sentia por ela, sentimento do qual ela tinha certeza, inundava-a, enchendo a sua alma de 265 contentamento. Agora compreendia por que Andrzej viera mais cedo, era para encontrar-se com ela, sozinha, sem a presença dos pais. - Era precisamente isso o que eu queria, encontrá-la a sós - disse - pois não sei se irei ficar muito tempo aqui...dependerá de você. Ludmila olhava-o nos olhos; isso lhe deu coragem para dizer: - Estou dependendo da sua resolução - repetiu elequeria dizer-lhe... vim para pedir a sua mão em casamento. Quero que seja minha esposa! Eu a amo muito, Ludmila!concluiu. Então, fixou os olhos nela, interrogativo. Uma alegria imensa invadiu o coração da jovem. Nunca pensara que a confissão daquele amor lhe causasse uma emoção tão forte. - Eu também o amo, Andrzej! - respondeu a moça comovida - vamos conversar com o meu pai e minha mãe. - Agora mesmo vou pedir a sua mão - disse Andrzej. Ludmila segurou-o pelo braço. Depois, no entanto, começou a tremer, como se o frio a dominasse por completo. O moço preocupado, perguntou: - Quer sair daqui? Este lugar está exposto ao vento. - Oh, não! – exclamou ela, apertando lhe a mão - é que, não sabemos o que o pai dirá. - Acho que ele simpatiza e gosta de mim. - Gosta , sim! Já me disse isso. - É mesmo? Então não temos o que temer. - E, mas eu acho... infelizmente, acho que ele espera que eu me case com um russo. Depois que ela manifestou o seu temor, o jovem compreendeu como era procedente. - Mesmo assim, meu dever é falar com seu pai respondeu Andrzej. - Pois então vamos procurá-lo e falar com ele. 266 Entraram na sala. Pela maneira como Ludmila se manteve junto ao Andrzej, era evidente que tencionava apoiá-lo em seu pedido. Encontraram o woiwoda em companhia de um amigo, os dois debruçados sobre um documento; conversavam. Andrzej não quis interromper, mas Ludmila aproximou-se do pai e disse: - Paizinho, podemos lhe falar por um momento? Dobrando os papéis e pondo um livro pesado sobre eles, pediu para que o amigo saísse por um instante da sala. - Pai, queremos lhe fazer uma pergunta - falou Ludmila. Ela pegou a mão do apaixonado para lhe dar apoio. Mas quando Andrzej se adiantou para fazer o pedido, Poznikow também avançou em direção a ele. Parecia enorme, um gigante a se inclinar para frente, como os penhascos de um rio de desfiladeiro; com um olhar tão intenso que Andrzej temeu que pudesse agredi-lo. Em vez disso, porém, o rosto imenso, de sobrancelhas hirsutas e bigodes enormes caindo ao lado da boca, os olhos negros oblíquos como os da filha, abriu-se num sorriso afetuoso. Antes que o moço pudesse dizer qualquer coisa, sentiu as mãos agarradas por ele, que os apertava firmemente. - Foi sensato em vir procurar-me, Andrzej. É o que o cavalheiro tem a me dizer? Estou esperando... - Senhor Ivan Grigoliewitch Poznikow, eu, Andrzej Wasilewski, peço a mão de sua filha Ludmila em casamento, se o senhor achar que eu sou digno dela - solicitou o jovem, ruborizando-se. - Você está apaixonada por ele, filha? - Estou apaixonada sim, paizinho. - E quer casar com ele? 267 Ela corou, encostou a cabeça no ombro do pai, beijou-lhe o rosto e disse: - É o que mais quero! O pai comentou com muito cuidado: - Acho melhor você me deixar conversar com sua mãe primeiro. - Eu amo Andrzej, paizinho, e quero casar com ele insistiu ela. Entraram de volta na sala onde a mãe, Mariusia, estava sentada no sofá. Poznikow sentou perto dela, abraçoua, e sorrindo para a esposa disse: - Mariusia, nossa filha está apaixonada e quer casar, o que você acha? - Que vocês possam desfrutar de uma felicidade interminável, e que Deus os abençoe - felicitou a mãe. - No dia de hoje, nossa filha Ludmila declara seu noivado com Andrzej Wasilewski, protegido do nosso amigo e conterrâneo, governador militar da Sibéria Oriental, general Semion Iliaiewitch Abdulkhei. Devemos informá-lo do compromisso assumido por vocês. O casamento será realizado no próximo verão, daqui a seis meses. Até lá têm a minha permissão para namorarem. Você, Andrzej, poderá freqüentar a nossa casa. A mãe e a filha passaram a discutir os preparativos para o casamento. *** Nos últimos dois dias antes de se iniciar a festa do casamento que duraria três dias, o woiwoda convocou diversos aldeões para o trabalho. Precisavam aplainar o pátio para as danças, varrer os caminhos, podar as árvores e limpar os estábulos. Os camponeses visitantes chegaram de barcos pelo Angara e em carroças. Foram alojados em diversos galpões e celeiros da propriedade. 268 Fora colocada uma mesa comprida no meio do grande salão, ali era servida a comida e as bebidas. Serviuse também muito pão doce caseiro com frutas secas; e para beber: kwass (bebida espirituosa usada pelos russos, feita de cevada fermentada) e hidromel (bebida fermentada com água e mel, usada entre os povos eslavos). Os camponeses comiam, bebiam e dançavam sem parar. Na chegada do governador, as trombetas soaram, e as moças foram instruídas a jogarem flores quando o general Abdulkhei e sua família tivessem desembarcando da carruagem, que chegou toda enfeitada, com os sininhos tinindo no pescoço dos seis cavalos negros que puxavam a condução. Todos ficaram emocionados e o general agradecia acenando com a mão. Houve um banquete de gala naquela sexta-feira em homenagem ao convidado especial e aos amigos do noivo, que eram: Anton Zubrowski, Jan Filkowski, Karol Karczynski, Lukasz Bonkowski e o engenheiro Jan Tamulewicz. Entraram para o salão onde Mariusia, a mãe da noiva, orientava a arrumação da mesa para o jantar. - Quero que preparem a melhor comida e a mais apropriada para a ocasião. Que seja servida a melhor kascha da região de Irkutsk que já fizeram - recomendava a dona da casa. Mandou fazer quatro espécies de “pierogi,” (pastéis) com diferentes recheios, preparados com repolho cozido, de carne moída, de kascha com bastante cebola e, o predileto de todos, de chucrute bastante ácido e cogumelos. Os convidados sentaram-se à volta da mesa e os criados trouxeram as tigelas de sopa de beterraba com carne de porco defumada e nata de leite, salmão assado com batata, carne de veado acompanhada de couve-flor em conserva, carne de leitão assada, com a pele crocante cortada em losangos e salpicada com ervas finas. 269 Serviram vinho tinto da Geórgia, em taças de cristal. Cada item do cardápio a ser servido aos convidados foi supervisionado de maneira meticulosa pela Mariusia. Assim, o jantar foi um sucesso. O outro dia amanheceu lindo e ensolarado. Era sábado... O dia do casamento... Ludmila estava realmente bela, enquanto se preparava para receber o jovem que seria seu marido. Era apenas um pouco mais alta do que a média da sua idade, mas muito mais atraente. Tinha a graça de movimentos encantadora e um sorriso espontâneo que a todos fascinava. A mãe lhe pôs um vestido branco comprido e diáfano, que se apertava por baixo dos seios, ajeitou a grinalda de flores do campo em seus cabelos e amarrou uma delicada fita dourada no pulso esquerdo. Segurava nas mãos um buquê de rosas vermelhas, misturado com minúsculas miosótis brancas. - Ludmila! Pare de sonhar, você é a noiva mais linda de Irkutsk - falou a mãe, já aflita. Se Andrzej não a quiser, o próprio czar da Rússia aqui virá um dia em seu cavalo e gritará aos quatro ventos: “Onde está essa Ludmila Poznikowna que disseram ser a mais bela da Rússia?”. A vida é surpreendente ao traçar o nosso destino. Andrzej jamais sonhou que iria se apaixonar novamente. Porém, o destino maroto colocou no seu caminho a bela e risonha Ludmila Poznikowna, de olhos negros e oblíquos. No dia do seu casamento, veio-lhe a idéia de presentear a noiva. Numa ocasião em que passava pela cidade de Berestecko, em missão secreta, Andrzej voltou à noite à residência antiga, desenterrou a jóia e a levou consigo guardando-a como uma relíquia. Por segurança, costurou-a por dentro do forro do seu casaco acolchoado, junto com duzentos rublos de ouro. O agasalho acompanhou-o no desterro para a Sibéria, protegeu-o do frio congelante, e agora devolvia o seu segredo. 270 Quando Ludmila já estava pronta para descer a escadaria para o salão, Andrzej veio ao encontro dela com um pequeno estojo na mão. Abriu-o e tirou um colar de fios de ouro de que pendiam gotas de âmbar amarelo. No meio estava preso um pingente, de pedra maior, engastada em ouro, com pétala de flor embutida dentro. - Querida, quero te oferecer essa jóia; como uma recordação do dia mais feliz das nossas vidas. Depois de prender o colar por trás, no pescoço de Ludmila, arrumou as contas com carinho até que caíssem naturalmente pela garganta, o que deu à sua aparência uma ilusão de raios de sol, cintilando. Andrzej afastou-se e, contemplando-a, exclamou com paixão: - Ludmila, meu amor, estas contas foram feitas para você! Vá agora, Rainha do Sol Nascente! Eu te saúdo e te espero. O noivo desceu para aguardar a noiva ao pé da escada, junto ao pai, a mãe e os convidados. Ela deixou o quarto, com o colar enfeitando-lhe a linda garganta, encaminhou-se rapidamente para descer. No topo da escada parecia uma deusa que flutuava no ar. O noivo, vendo-a assim tão bela, refletiu: “Esta moça enfeitaria qualquer castelo da Rússia ou da Polônia. Como sou feliz por poder partilhar a minha vida com ela. Como a amo!”. Andrzej seguiu para a igreja, em companhia dos amigos e convidados, para ali esperar pela noiva. Uma grande multidão os aguardava ansiosa. Pouco antes das onze horas, apareceu na igreja o paizinho Alexei, o pope que iria oficiar a cerimônia do casamento no rito ortodoxo-russo. Estava com a vestimenta para ocasiões solenes. Sobre os longos cabelos brancos, a alta kamilawka, reluzindo de ouro e adornos, e a longa barba 271 cortada em retângulo, aparada, escovada, que conferia ao seu rosto algo de sublime. O cerimonial demorou horas. Em seu breve sermão aos recém-casados, ele ressaltou apenas o seguinte: - Ludmila e Andrzej, agora vocês pertencem um ao outro. Amem-se e respeitem-se. O resto, Deus lhes concederá. Sejam felizes. O casamento foi uma festa muito alegre. Já tinha começado na sexta-feira, quando chegaram os camponeses das aldeias vizinhas, trazendo as carroças e os cavalos enfeitados com flores e fitas coloridas. Cada pessoa exibindo o único traje bom que possuía: calças e casacos escuros para os homens, vestidos coloridos e toucas para as mulheres. As moças em idade casadoura, para as quais o casamento era uma ocasião muito especial, porque ali podiam encontrar os rapazes do distrito, usavam saias atraentes, rodadas, blusas bordadas e lenços ornados com franjas na cabeça, ou cabelos em tranças com fitas coloridas; circulavam em grupos, rindo e provocando, parecendo às vezes bandos de passarinhos na primavera a chilrear de alegria. Os aldeões usavam sapatos só quando iam às festas ou à igreja, comumente calçavam botas de couro grosso. Havia danças e comida dia e noite. Ali rapazes tímidos observavam as moças, cutucando e empurrando-se, até tomarem coragem para se aproximar, sendo invariavelmente repelidos com gritinhos altos, ficando parados, desconcertados no meio do salão. À medida que a tarde avançava, no entanto, cada rapaz conseguia de alguma forma retirar do grupo de moças alguém com quem desejava dançar ou conversar. As outras moças ficavam em silêncio por um momento, observando como o rapaz se comportava, com a sua escolhida. 272 Naquela noite, com todos sentados à mesa comprida, os pratos na frente, sem nada conterem, as trombetas soaram e a orquestra pôs-se a tocar uma música solene. Ludmila entrou no salão, vestindo uma túnica branca solta, uma única flor nos cabelos negros, o colar de âmbar na garganta. Andando devagar, com uma graça incomparável, ela se aproximou do noivo e ajoelhou-se à sua frente, oferecendo, numa bandeja, que segurava com as mãos estendidas, um pedaço de pão e um pouco de sal. - Chleb i sól ! Cristo esteja contigo! – orou. O paizinho Alexei, o pope, abençoou cada um dos pães, fazendo uma prece solene pela felicidade do casamento que aquele pão honraria. Os criados circulavam então apressadamente, oferecendo a cada convidado um pedacinho do pão abençoado. A mesa do banquete nupcial apresentava-se como uma admirável obra de arte. Colocada no centro da mesa, num pedestal, feita de ouro e prata, uma escultura intrincada e delicada, representando a chegada de um imperador chinês a um pavilhão no meio de um lago. Era uma peça tão original que os convivas ficaram fascinados. Iniciou-se então a refeição festiva em comemoração ao dia das núpcias. Violinos tocavam músicas tradicionais da Rússia, enquanto os criados, treinados para a ocasião, serviam os nove pratos do banquete. Começou com uma delicada borsch branca, peixes recheados do lago Baikal, chucrute e batatas, kielbasa defumada, caviar vermelho com broa de centeio, coxas de pato em geléia e cogumelos marinados, leitão inteiro no espeto, recheado, e carneiro assado. Pães doces com frutas cristalizadas. Terminou três horas depois com pequenos pedaços de um bolo de nozes e amêndoas, coberto com geléia de frutas, e licor de ameixas. Seguiram-se as danças no salão, quando a alta sociedade de Irkutsk aproveitou para se divertir. 273 Os anos subseqüentes foram os mais felizes que Andrzej e Ludmila jamais conheceram. Ele trabalhava no moinho, ajudado pelo seu amigo e conterrâneo Jan Filkowski. Ludmila ocupava-se da administração da casa paterna, onde moravam, porque a mãe, de saúde frágil, vivia acamada. O woiwoda dirigia os negócios públicos do seu distrito, pouco tempo lhe sobrando para o lazer; ocasionalmente ia a Kyakhta, na fronteira mongol, que dominava o comércio oriental de peles; os mercadores chineses compravam-nas por preços fabulosos.Certa ocasião, um caçador iacuto ofereceu-lhe algumas peles, comentando: -Veja, hospodim, estas peles são excepcionais. Na maior curiosidade Poznikow abriu o pacote, para descobrir que continha duas peles, com cerca de um metro e meio cada uma, do pêlo mais macio, fino e forte que jamais vira. De cor marrom escura, cintilavam à luz fraca da tarde; de pelugem mais comprida do que as peles que conhecia. Eram da valiosa lontra do mar que habitava as águas geladas à leste das terras dos chukchis, no mar da Sibéria Oriental. Ficou fascinado pela beleza das peles, e comprou as duas por um preço muito regateado entre os dois. Levouas para casa para presentear a esposa e a filha. *** Quando a primavera chega à taiga, os dias tornam-se mais longos, como em todo lugar do mundo, mas na realidade, eles ficam mais curtos. A neve, o gelo e as tempestades obrigam as pessoas a permanecerem dentro de casa durante o inverno. Mas a primavera, aquela época maravilhosa depois do degelo! Então se libertam as forças represadas. A vida explode nas estepes e na taiga. 274 Os rios com o degelo correm caudalosos, a floresta cobre-se de folhas verdes e a relva cor de jade enfeita-se de flores multicoloridas. A vegetação toda estoura durante a noite numa orgia de vida, e o ar se enche dos sons do crescimento febril. O vento traz, das florestas e campos, odores da fecundidade, parecendo que, no horizonte sem limites, a terra exala nuvens de vapor, cheias das ardentes emanações de fertilidade orgíaca. Os animais selvagens lutam entre si disputando as fêmeas que estão no cio. Todos os elementos da natureza estão empenhados na luta pela conservação das espécies. Sente-se no ar a euforia da sexualidade; é o empenho da energia da vida para perpetuar-se. Zumbem as abelhas obreiras, colhendo o néctar das flores, ajudando a natureza no afã da polinização das plantas. Voam de flor em flor sugando o alimento para levar à sua rainha. Nos rios descongelados, miríades de peixes se movem, outros saltam no ar para apanhar os insetos; as águas estão repletas de vida. Cava-se no jardim e plantam-se flores. Os caçadores vão para a floresta, pois agora aparecem os hibernantes, os texugos e os ursos, e suas peles ainda estão grossas e valiosas. Os animais estão descuidados, pois a primavera também pulsa dentro deles. Sim, e os tigres vagueiam pela taiga, famintos, após os longos meses magros do inverno. São tigres de um amarelo claro, quase branco, menores que os de Bengala, porém mais ágeis, astutos, cruéis e destemidos, porque quem quiser sobreviver na taiga, tem de ser cruel e mais forte que o adversário. O woiwoda Poznikow foi caçar tigres nas florestas da região do rio Lena, junto com a comitiva de caçadores experientes, composta de mongóis e iacutos. Andaram du- 275 rante vários dias sem encontrar caça importante. Os homens se dispersaram procurando melhor resultado. Poznikow era homem corajoso, ficou apenas com um caçador iacuto como companhia. Cavalgava na frente, sozinho. De repente, o cavalo dele começou a inquietar-se; mexia com as orelhas, fungava, sacudia a cabeça. Quando o cavaleiro puxava as rédeas, tornava-se indócil, disparava e corria... corria... Do lado da trilha florestal, da brenha da taiga, um tigre enorme, listrado de preto e branco, saltou para o espaço livre, corria ao lado do cavalo com saltos elásticos e rosnava baixinho. Era um animal majestoso. - Não atire! – gritou o woiwoda para o caçador iacuto que vinha atrás dele. - Não irá acertá-lo! Não atire! Mas enquanto o homem bradava furioso, espoucou o primeiro tiro; não acertou a cabeça da fera poderosa, somente arranhou-lhe as costas, ele rugiu e deu um salto desesperado para cima. Parecia não existir mais qualquer força de gravidade. Ao tocar no chão, o tigre deu o bote no cavalo, enfiou as garras na garupa do animal, puxou-se para cima; rosnando e sibilando alto, enterrou as presas nas costas do animal, que caiu de joelhos derrubando o cavaleiro. O tigre estava a dois passos de distância, escorria-lhe sangue da ferida aberta nas costas pela bala do iacuto. Estava quieto, de pé, os cabelos da barba sujos pelo sangue que corria do peito do cavalo. Poznikow virou-se; o seu revólver estava a um passo, no chão, tinha caído da sua mão, quando da queda do cavalo. Não teve chance de pegá-lo de volta. Então, ele agarrou a lança, apoiou-a contra si e apontou na direção da cabeça do tigre. - Vem - disse com voz rouca. - Vem... Somente um de nós dois vai sobrar. 276 O tigre olhou o homem com o olhar frio e cruel. Somente a cauda chicoteava o chão violentamente, levantando poeira. O fera agachou-se. As ancas deslizaram para trás, os tendões das pernas sobressaíam da pele. A cabeça estendeu-se lentamente para a frente, o corpo todo era um único tendão retesado. E o animal saltou silencioso, o corpo estendido flutuou no ar. Frios, impiedosos e assassinos, os olhos fitaram o pequeno ser humano que ousou atravessar a sua frente. O woiwoda deu um grande salto para o lado, no instante em que o tigre voava para cima dele. O tigre rugiu decepcionado e furioso ao atingir a poeira do chão, a um passo do homem. A fera tinha calculado a distância com precisão. Caiu com as quatro patas exatamente no ponto onde um segundo antes estivera o inimigo. A cauda chicoteava a poeira e o animal rugia. Poznikow, num relance, pegou o revólver do chão, e segurando com as duas mãos, atirou. Acertou no peito do tigre, mas não foi um bom tiro, conforme viu depois. O suor brotava-lhe dos poros e escorria sobre os olhos, embaraçando-lhe a visão. Sentia como se, de dentro para fora, um tremor lhe percorresse os nervos É o medo mortal, pensou, então é assim quando a gente pensa que tudo acabou. O sangue escorria do peito do animal e o levava à loucura; o tigre saltou novamente, daquela posição sentada, sem agachar-se nem rugir. Parecia que se jogava de encontro ao homem, cegado pelo ódio e enlouquecido ao sentir o próprio sangue gotejando da ferida ardente no peito, aberta pela bala do revólver. Foi um choque pavoroso. A forte mandíbula enterrou-se no peito do homem, despedaçou as costelas e acertou o coração. O tigre ficou erguido durante um instante sobre as pernas traseiras, um 277 animal enorme e poderoso, agonizando, girou uma vez em volta de si mesmo. Parecia dizer: - Olhem! Vejam! árvores seculares desta floresta siberiana, todos os pássaros que voam no céu, as águas límpidas do Lena e o vento que sopra do lago Baikal, é assim que morre um rei da taiga. Alto e Soberbo. Então os olhos dourados se apagaram, as patas enterraram-se no solo da floresta, a terra revolveu-se para cima... e então houve um suspirar, um gemido no ar, como se o espírito das florestas se lamentasse enlutado. O corpo pesado do tigre caiu de lado na poeira, próximo donde jazia o corpo estraçalhado do woiwoda. O caçador iacuto que o acompanhava ficou estupefato, sem ação. Ao ver o ataque mortal do tigre, esporeou o cavalo e galopou para pedir socorro aos caçadores que estavam dispersos pela floresta. Quando chegaram ao local da luta, encontraram mortos o rei da selva e o woiwoda de Irkutsk. Trasladaram o corpo do mandatário para sua cidade. Uma grande tristeza e dor se abateram sobre o lar de Poznikow. Ludmila não parava de chorar a morte do pai ao qual amava muito; não se conformava com esta fatalidade. A mãe, Mariusia, que não tinha se recuperado ainda da doença que a afligia, caiu novamente de cama, ficando aos cuidados da filha e das servas dedicadas. Andrzej consolava a esposa, mas também sofria com a perda do woiwoda Ivan Grigoliewitch Poznikow, que era seu amigo e protetor. Decorridos alguns meses, Deus quis consolar a família do Poznikow, falecido tragicamente; mandou-lhes um presente; a comprovação da gravidez de Ludmila. Desconfiada das mudanças no seu corpo, a moça procurou o médico, que lhe confirmou o seu estado. Ela entrou no quarto da mãe, que estava acamada. 278 - Mãe - disse - Deus está mandando uma criaturinha nova para nós. - O que estás dizendo, filha? Não estou entendendo. Grávida? - Sim! Eu estou grávida, mãe, e estou muito feliz! Vou procurar Andrzej para comunicar-lhe esta boa nova. Não encontrou o marido e subiu para o seu aposento. E lá no quarto estava ela deitada, chorando, no entanto, estava feliz, como ficam felizes as mulheres quando descobrem que o milagre da vida cresce dentro do seu ventre. Ludmila estava extasiada e embevecida. Andrzej voltou do trabalho, procurou-a junto da mãe e não a encontrando subiu ao quarto para ver a esposa, já bastante preocupado. - Querida! O que você tem? – perguntou ansioso. - Já estou no 2º mês. Estou apavorada, nunca me senti assim. Andrzej levou a mão trêmula à boca. - Nosso primeiro filhinho! - falou baixinho - minha Ludmila! meu anjo, minha mãezinha. Obrigada, meu Deus. Então caiu de joelhos e chorou... abraçou o corpo delgado da moça e a beijou... beijou... feliz por esta dádiva da vida. Passaram-se os meses de espera! A gravidez transcorreu tranqüila, sem maiores complicações. Numa noite fria, Andrzej acordou, despertado por gemidos angustiantes. Ludmila estava sentada num banquinho e dobrava-se de dores. Chorava, as lágrimas caíamlhe dos olhos mansamente. - Ludmila, querida! – gritou Andrzej e pulou da cama - o que há? - Chegou a hora, meu querido! São as dores do parto - disse - E contorcia-se e gemia. O seu lamento soava oco e surdo, como se sua garganta estivesse apertada. Andrzej correu pela sala, trouxe os lampiões acesos, atiçou o fogo 279 na lareira, enfiou grossos troncos no forno e colocou panos nas pedras quentes, para que ficassem aquecidas. - Ainda está cedo demais - disse Andrzej - para chamar a tua mãe. Apanhou Ludmila nos braços e carregou-a até a cama. Deitou-a sobre os lençóis brancos e cobriu-a com cobertor de peles de raposa. Ludmila sorriu para o marido e segurou-lhe as mãos com firmeza. - Se é hoje ou dentro de três semanas, tanto faz... vem aí o nosso filho, Andrzej, o nosso filhinho. Ela curvou-se novamente e mordeu a mão do marido; seu corpo estremecia e as pernas batiam contra os lençóis. Andrzej corria como um cego. Havia se preparado para este momento durante semanas. Tinha repetido para si mesmo tudo que teria que fazer, como um aluno que já conhece a lição. Resolveu avisar a mãe, ela veio apoiando-se numa bengala, trôpega, ansiosa. Chegou perto da filha, confortou-a com carinho; mais nada podia fazer, pois estava doente de corpo e da alma... Mandaram chamar a parteira Axinya, que veio apressada. Ordenou para que se providenciassem bacias com água quente. Panos quentes para aquecer a parturiente. Água e sabão para lavar as mãos, tesoura, faixas e roupas aquecidas para o recém-nascido. E nenhum pânico. Andrzej corria pela sala. Lembrou-se da recomendação de não mostrar nenhum pânico, nenhum medo. Corria do fogão até Ludmila, e de volta ao fogão. Sempre em círculo. Ou então sentava-se novamente junto dela, seguravalhe a cabeça ensopada de suor, olhava para os olhos cheios de dor e sustinha a respiração, quando novamente uma dor obrigava-a a entortar o corpo e as pernas se dobravam como se estivessem com cãibras. A parteira massageava-lhe o ventre e a ajudava quando vinham as dores. 280 - Andrzej! - gritou ela uma vez - oh, meu querido, eu vou morrer! Cuide da criança. Oh, a criança está me rasgando. Está dilacerando o meu corpo. Dá-me a tua mão, fique perto de mim. Estou sofrendo tanto. Amanheceu o dia, passou a manhã. Ludmila sofria... estava deitada, os olhos semicerrados, os punhos crispados. As pequenas veias azuis estavam dilatadas nas têmporas, e cada vez que sentia a dor do parto, abria a boca. Mas não gritava mais, pois não tinha mais voz. Apenas exalava um sussurro, que soava como um piar de um passarinho ferido. O marido ficou sentado ao lado, beijando-a, segurando a sua mão, deixando que ela o arranhasse, batesse e mordesse, quando as dores tornavam-se insuportáveis. Axinya, a parteira, era natural da região do Iacutsk, região do norte da Sibéria, habitante das florestas do Lena, atendia os partos das mulheres iacutas, que tinham um costume original de parir seus filhos. Na hora do parto elas ficavam de cócoras, na posição de defecar. Era um parto rápido e quase sempre sem complicações. Aflita com o sofrimento da moça, e com a dificuldade do desfecho do parto, Axinya sugeriu para que tentassem o método iacuto, incomum entre as mulheres do sul, que eram mais modernas. - Andrzej, desçamos ela do leito para o chão – disse - E você Ludmila vai agachar-se de cócoras, assim , dobrando os joelhos para a frente e vai fazer muita força para baixo, assim que surgirem as dores. Apóie as mãos na cabeceira da cama e faça força, muita força... Feito isto, vieram as dores e Ludmila berrou como um touro, os olhos quase saltando das órbitas, vermelhos, o corpo retesado, como se sob fortes choques elétricos, e quando o sangue e a água jorraram do colo, a cabeça da 281 criança surgiu lentamente. O suor escorria do rosto da parturiente. A parteira colocou as duas mãos em concha, debaixo da criança, que vinha junto com o sangue, e a aparou nas suas mãos. Um minúsculo ser enrugado, com os olhos e os pequeninos punhos cerrados, a cabecinha coberta com cabelos negros, chorava alto com voz forte. - A criança - gaguejou Andrzej - Nosso filho... tem cabelos negros como os teus...um menino... nosso filho. E, então, ele chorou, segurando a criança na palma das mãos, e embalou-a; depois, entregou à Axinya, que cortou o cordão umbilical com tesoura esterilizada, amarrou e levou a criança até a bacia de água morna, em que a lavou, enrolou em panos quentes e colocou perto da mãe na cama. Ludmila ainda estava agitada pelas dores do pósparto, mas já eram suportáveis. Axinya apertou e esfregou o ventre com as duas mãos, até a placenta soltar-se e ser expelida com uma última golfada de sangue. Retirou os panos ensangüentados, forrou a cama com lençóis limpos, cobriu a moça com cobertor, para que se aquecesse; mas enquanto isso ocorria, ela já tinha caído num sono profundo. Como o seu semblante estava descansado. E como parecia feliz! Parecia uma Madonna, com os cabelos negros ao redor do rosto e dos ombros nus. Esgotado, Andrzej sentou-se no banco, defronte o fogão, cobriu o rosto com as mãos e adormeceu assim. Só acordou com a criança choramingando, enrolada em fraldas e cobertores. Ludmila dormia... A jovem recuperou-se logo do sofrimento do parto, tornou-se uma mãezinha alegre e carinhosa. Amamentava o filho com o leite abundante dos seus seios. Foi durante os dias que se seguiram que Andrzej, embalando o filho nos braços, fez a pergunta: 282 - Querida, que nome daremos ao menino? Você já pensou nisso? Escolheu? - Não! – respondeu ela - e você, já pensou nalgum nome bonito? - Sim! se, você gostar. - Qual? Diga, meu querido. - O nome do meu avô, Kazimir. - Gostei! Batizaremos o menino com este nome, soa bonito. Kazimir Andrejew Wasilewski. - É, ele vai ser um homem bom e honesto como o meu avô. No próximo domingo levaram o menino à igreja. O filho de Andrzej e Ludmila seria batizado no dia de Natal. O governador Abdulkhei e a esposa Irina seriam os padrinhos. Foi um batizado maravilhoso. Um coro cantou os magníficos hinos sacros da Rússia antiga; a cerimônia seria oficiada no rito ortodoxo. As velas altas de cera, acesas, tremeluziam; e o ouro nos ícones e nos murais brilhava. Centenas de olhos de santos olhavam para baixo quando o paizinho Alexei, o pope, descobriu a cabecinha do pequeno Kazimir. Abdulkhei e Irina seguraram a criança sobre a pia, e a água batismal escorreu pelos finos cabelos, escuros, como pérolas transparentes rolando das mãos do paizinho Alexei. O menino chorava e se agitava com força. - Eu te batizo com o nome de Kazimir Andrejew pronunciava o pope, com sua voz de baixo. - Cristo esteja contigo até o último dia da tua vida. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Fazia-se silêncio absoluto na igreja, e o minúsculo Kazio também ficara calado. Os olhinhos castanho-escuros, um pouco oblíquos, espiavam para fora da camisola azul de batismo para aquela barba grisalha que flutuava acima dele, como uma densa nuvem branca. Então ele virou a cabe283 cinha, e olhou para sua mãezinha. Como as velas tremeluziam, a água escorria-lhe pelo rosto, e a nuvem branca movia-se, fechou os olhos e apertou os lábios num soluçar queixoso. - Meu filhinho - pensou Ludmila ternamente - como será o seu mundo, quando tiver a minha idade? Que lhe reserva o destino? Ela buscou a mão do marido, segurou-a firmemente, como se pedisse proteção para o filho, que o marido levava nos braços. O coro de cantores entoou novamente um hino de louvor a Deus, pedindo a bençã ao neófito. Mariusia, a avó, não pudera comparecer à cerimônia do batizado, devido ao estado precário da sua saúde. Desde a morte do marido, a saudade e a tristeza não a abandonavam; debilitada no corpo e na alma, a sua doença foi se agravando cada vez mais, apesar dos cuidados médicos que lhe foram propiciados. Quem pode medir a solidão de um ser humano, quando ela só consiste de saudade? Certa noite, Ludmila foi acordada por um leve sacudir do seu ombro. Andrzej dormia ao seu lado e roncava levemente, num sono pesado. - A sua mãe, não está passando bem. Venha comigo - falou a serva que tomava conta dela - Ela esta morrendo. Ludmila levantou-se e foi ao quarto da mãe. - Chegue perto de mim! – falou a mãe num sussurro. Eu já estou indo ao encontro do teu pai. Não chore, filhinha! Eu estou feliz! Deus te abençoe e te faça feliz. Ludmila em prantos abraçou a mãe, que serenamente entregou a alma a Deus. Ela correu aflita chamar o marido; mas cuidou para não acordar o bebê que dormia tranqüilo num berço ao pé da cama. Tinha um aspecto satisfeito, risonho e rechonchudo. 284 - Venha deitar-se - disse Andrzej em tom carinhoso - procure dormir. Venha, vou dar-lhe um chá. A única coisa que precisa fazer é dormir. Eu cuidarei de tudo. Durante a noite, quando Ludmila finalmente adormeceu, após ter tomado o chá de erva cidreira, para se acalmar, Andrzej e o amigo Jan Filkowski apanharam o cadáver de Mariusia e levaram-no até a capela mortuária do cemitério de Irkutsk. Foi velada, e sua alma encomendada, pelo pope Alexei, numa longa cerimônia, conforme o ritual da igreja ortodoxa. Uma grande multidão acompanhou o enterro. O seu túmulo foi feito junto ao do seu marido, o woiwoda Ivan Grigoliewitch Poznikow. Ludmila chorava desconsolada. Em pouco tempo tinha perdido o pai e a mãe. Ela não tinha irmãos, era filha única; seus parentes mais próximos moravam em Karaganda, no Kasaquistão. A família dela agora eram o marido Andrzej e o filhinho Kazimir. Para ela, na sua tristeza, o próprio vento calou-se e não mais cantava ao redor de sua casa. O sol era frio e as nuvens brancas no céu azul eram agora lânguidas e tristes. O silêncio era total. As servas andavam pela casa na ponta dos pés, quase invisíveis, como fantasmas. Andrzej passava os dias trabalhando no moinho, só voltando à noite. Ludmila ficava sozinha com o filho, ao qual mimava muito. – Ele será forte, corajoso e inteligente como meu marido - dizia embevecida. Chegou novamente o mês de julho. O verão ardia sobre o Angara, milhões de borboletas e outros insetos voavam nos brejos e campinas. À tarde, quando a beleza da Sibéria desfraldava-se como plumagem colorida de um pavão, o ar puro cheirava a pólen de flores. Era realmente um milagre, como da noite para o dia um sopro quente passava sobre a região, a brisa vinda do sul das estepes da Mongólia. 285 Andrzej e Ludmila passeavam à beira do Angara. Estavam a sós; o pequeno Kazio dormia na rede entre a sombra das árvores. Aproximaram-se do rio e sentaram-se na orla, na palha dos juncos. O grande Angara corria silencioso, mas a vida fervilhava nas águas e nas suas margens. Peixes pulavam fora d´água para apanhar insetos. O marido passou o braço pelos ombros da esposa e assim ficaram olhando o pôr-do-sol. Depois ele deitou e esticou-se, deixando a cabeça no colo acolhedor da mulher. Acima do seu rosto voavam os cabelos negros de Ludmila, esparramados pelo vento morno. O semblante da moça mostrava-se melancólico; era a saudade dos pais falecidos tão subitamente. A tristeza tomou conta dela, lágrimas grossas caíram dos seus olhos. - Você tem a mim e ao nosso filhinho, querida Ludmila – falava desconsolado, pois não sabia como afastar esta tristeza da esposa. *** Eram nove horas da manhã quando o governador de Irkusk, general Semion Iliaiewitch Abdulkhei, recebeu um correio de São Petersburgo. Um personagem novo fora lhe apresentado junto com os documentos enviados pelo Comando Geral. - Coronel Boris Tikhonowich Koryakow – apresentou-se o oficial, batendo continência, com olhar de arrogância. Koryakow era de estatura mediana, atarracado, rosto largo e ossudo, bigode fino embaixo do nariz abatatado, lábios grossos de um libertino, cabelos castanhos e olhinhos pequenos e penetrantes, cor de avelã. Aparentava ter uns quarenta anos. Era solteiro, informavam os documentos apresentados ao general. Veio 286 substituir Ivan Grigoliewitch Poznikow, o woiwoda falecido recentemente. O coronel seria um comissário enérgico. Tinha aprendido como se podia tornar camponeses obstinados novamente razoáveis, como se interrogava descontentes políticos e ladrões de gado, ou como se devia chutar os traseiros dos aldeões mentirosos. Sua máxima era: - Lindo é o canto do rouxinol! Mas ainda mais lindo é como canta o malfeitor que cair nas minhas mãos! Ele era temido por todos por seu caráter violento. Beberrão e mulherengo, era um indivíduo de difícil convivência. Como procedia de uma família influente de São Petersburgo, mandaram-no para Irkutsk, para que não envergonhasse mais os seus nobres e poderosos parentes. *** Numa tarde amena de abril, Ludmila foi atender alguém que chegou de carruagem e estacionou em frente da sua casa. O susto apareceu-lhe no rosto delicado, e o olhar rápido que lançou sobre o coronel Boris Tikhonovitch Koryakow refletia a sua desconfiança. Já conhecia o coronel, que lhe foi apresentado numa recepção na casa do governador Abdulkhei. Não simpatizou nada com ele. - Desculpe, minha senhora, mas vim procurar uns documentos da repartição que o woiwoda Poznikow guardava aqui no seu escritório - disse amavelmente. - Então entre, por favor - convidou Ludmila. O sol flutuava num céu azul sem uma única nuvem; a temperatura gostosa de verão proporcionava a ocasião de vestir roupas leves, e Ludmila vestia apenas uma blusa branca de mangas cavadas e saia longa de pregas. Ambas eram tão finas que o coronel enxergou as linhas de suas coxas e a nudez das pernas delgadas. Fitou a blusa decotada e diante de si o início dos seios, os cabelos negros, longos, 287 que caíam sobre os ombros. Koryakow olhou ao redor da sala. Estavam sós, ouvia-se apenas as vozes das servas ocupadas com trabalhos na cozinha, que ficava na outra parte da casa. - Meu passarinho – disse o coronel baixinho, e na sua voz havia carinho e mil desejos. – Eu queria... Chegou perto da moça, e num frenesi lascivo agarrou-a e puxou-a para si, procurando beijá-la. Um soco, bem em cima do nariz, fez com que o coronel tombasse para trás. Apalpou o nariz, sentiu o sangue escorrer pelos dedos e isto o enlouqueceu, roubou-lhe o juízo e o descontrolou-o completamente. - Sua sacana! – gaguejou - Sacana linda e tesuda! Você me paga! – Com um gemido surdo, lançou-se novamente sobre Ludmila, pôs a mão sobre a sua boca e deixou cair todo o seu peso sobre a frágil figura humana. Ofegando, rolaram sobre o tapete de urso, estendido no chão. As mãos enormes do coronel seguraram as pernas dela, separando-as violentamente e firmando-as com força no chão. E agora ele até ria, com uma gargalhada rouca e triunfante. A saliva escorria-lhe dos cantos da boca e um odor de macho, animalesco, desprendia-se dos seus poros. - Minha raposinha – gaguejou - Seus olhos estavam avermelhados de excitação. Minha gatinha quente. Faz tempo que te amo e desejo com loucura. Jurei para mim mesmo que serias minha, iria te possuir de qualquer maneira. Nada poderia impedir-me de realizar este desejo. Ela debatia-se inutilmente, presa por mãos enormes, uma comprimindo-lhe a boca, outra rasgando-lhe as vestes para facilitar a posse. Ela sentiu seu membro ereto e duro penetrá-la profundamente, depois os arquejos do seu gozo lúbrico. Em seguida rolou para o lado, levantou-se sobre os joelhos, suspirou profundamente, e falou como se desculpando: 288 - Eu não quis que fosse assim, mas não pude me conter....foi mais forte do que eu... Ela não respondeu nada, apenas seus lábios se entortaram, como se ela quisesse cuspir em Koryakow. Parecia ter nojo de ter sido tocada por ele, como se o corpo dele fosse coberto por chagas leprosas. Ela se encolheu de tal maneira, para não roçar nele ao se levantar. O seu lindo rosto tinha envelhecido, apresentava rugas profundas nos cantos da boca. Os seus olhos eram lâminas afiadas prontas para atacar. Como petrificada, Ludmila continuou deitada no tapete. Estava sem ação; só um pensamento martelava na sua cabeça “Fora estuprada por este monstro”. Ele arrumou a roupa e calmamente acendeu o cachimbo, que sugava, soltando uma fumaça de cheiro doce e seco, de tabaco amarelo, chinês. Saiu pela porta da frente sem olhar para trás. Ela quisera esfaquéa-lo, esganá-lo e fuzilá-lo. Batera com os punhos contra a parede e cuspira na própria imagem no espelho, que atraíra a concupiscência do bruto. Prometeu a si mesma vingar-se dele. - É um selvagem, que vos ama - comentou Daria, a pagem do Kazio, certa ocasião em que conversavam. - Mas o que fiz para merecer o amor desse monstro? Conheço-o há tão pouco tempo e odeio-o desde que o vi. Nunca me inspirou outra coisa senão asco e repugnância. Sinto uma enorme vergonha de ter inspirado um tal amor. Lágrimas corriam-lhe pela face, provocadas pela cólera. Não conseguia apagar da sua memória aquela tarde fatídica. A presença suada e o odor animalesco daquele indivíduo, quando ela tivera de fechar os olhos para não ver o rosto dele, que estava com os olhos injetados e arregalados, com os lábios molhados pela saliva que escorria da boca aberta, e a palpitação felina do nariz. Sua mão enorme, espalmada, apertando-lhe a boca. 289 E agora, só sobrava o ódio, um rancor nu e desesperado, e o desejo incontrolável de se vingar daquele ser abominável. Numa ocasião, ao cair da tarde fresca de verão, Ludmila saíra com Daria, sua serva de confiança, para espairecer, passeando à beira do lago Baikal, e o encontrara sozinho, embriagado, cantando canções obscenas contra o vento. Sem dizer palavra, aproveitando o vento a favor que soprava forte, aproximou-se por trás, e lançou um punhado de pimenta do reino em pó dentro dos olhos do Koryakow. Ele uivou como um cão ferido de morte, as mãos esfregando os olhos; correu como um louco em disparada. Jamais descobriram o autor da ação. O médico fez o possível para salvar-lhe a visão, mas nenhum tratamento teve resultado positivo. Ficou completamente cego. Ludmila voltava ao lago Baikal, caminhava pelas margens e chorava a sua desgraça. Ela tinha-se modificado totalmente. Não era mais aquela jovem alegre e despreocupada, pensava no futuro de modo diferente, sentia que sua alma fora profanada. - Não posso negar que grandes desgraças tenham atingido a vossa casa - comentou Daria. Deus punirá o vosso inimigo. - Oh! esse Koryakow é um canalha! Um monstro selvagem! Sinto por ele tanto horror que preferia ver antes o demônio do que ele - disse Ludmila. Não falarei nada ao Andrzej dessa violência, temo ser desprezada e abandonada. Eu amo-o tanto - gemeu a jovem - não suportaria viver sem ele. Andrzej regressou para sua bela e tranqüila casa, e pela primeira vez, fechou o trinco da porta. Ludmila já dormia. Estava deitada na cama, afundada num poço de grossos cobertores de penas de ganso e pesadas colchas de pele, que mais parecia um urso escondido na toca. Ela em290 purrara a colcha para o lado, e ao entrar Andrzej, vislumbrou seu lindo e brilhante corpo jovem e um rostinho infantil sorrindo no sonho. O menino dormia no berço. O marido sentou-se cuidadosamente na beirada do leito e olhou a esposa e o filho. O seu coração pesava de tanta felicidade, tanto, que doía com essa sensação de euforia. Andrzej beijou o seio da mulher e deixou a cabeça apoiada nela. Ludmila agarrou os cabelos castanhos e crespos do marido, puxou-o para si; ele rosnou e subiu, colocando as duas mãos ao redor do corpo delicado. - Andrzej ?... - Sim? - Eu queria ter mais um filho... - Agora não, meu anjo... - Um menino, para fazer companhia para o Kazio, ele é tão sozinho, poderiam brincar juntos, seriam tão amiguinhos... - Não, por enquanto não, meu amor... Ela segurou a cabeça do marido com ambas as mãos e a apertou firmemente. Os lábios dele deslizavam sobre a pele cálida e macia da mulher. - Por que nosso caminho para a felicidade tem que ser sempre calçado com dor e sofrimento? - Porque aquela sorte que procuramos realmente não existe, querida. Encontra-se além dos limites humanos. - Mas somos seres humanos, Andrzej. - Mas nós nos libertamos... saltamos por cima das coisas inertes, ordenadas. E isso custa sangue. - Mas nós apenas nos amamos! Nada mais queremos realmente, além do sossego, paz, de um lugar ao sol, de uma pequena e simples vida para nós e nossos filhos. Isto é pedir demais? - É o que parece, meu anjo. - Então, por que nascemos? 291 - Não sei... - Por que Kazio nasceu? - Porque nós nos amamos. - Isto é um círculo, Andrzej ? - É um círculo, ordenado pelo Cosmos. Ludmila espreguiçou-se sob o peso do peito cabeludo dele; senti-lo fazia-lhe bem, os músculos dos braços e ombros, a carne firme das coxas, seu cheiro de musgo aquecido pelo sol. As mãos da mulher deslizaram pelas costas dele, apalparam as duas cicatrizes de bala do emissário, e foram até abaixo da cintura. Permaneceram lá, num acariciar infindavelmente terno, rotativo e leve. Em seguida, se amaram com paixão. Um vento cálido do sul soprava pelos cumes das árvores. A taiga sussurrava. Respirava o ar quente. Sugava forças para o inverno que se aproximava. Já escurecia quando Andrzej chegou de volta do trabalho no moinho. Ludmila correu ao encontro do marido e caíram nos braços um do outro; beijaram-se com ardor. Parecia que não se viam há meses. E fora apenas um dia. - Venha - falou baixinho o marido - um dia inteiro sem você, é como ser enterrado no gelo durante uma eternidade. Não posso ficar mais sem você. - Oh! pare... o que vão pensar de nós... - Que o Andrzej é o homem de maior sorte desde o Oceano Glacial Ártico até o lago Baikal. É isto que vão pensar! E estarão com toda razão. Quem em todo este mundo tem uma Ludmila? Kazio dormia no seu berço e sorria com o sorriso dos anjos. Somente a claridade proveniente das chamas do fogão bruxuleava pela sala. Estavam deitados, de braços dados e pernas entrelaçadas na cama larga, fitando o teto, divagando... 292 - Andrzej, meu amor - falou a moça gaguejando devo contar-te... o drama que vivi... nestes dias passados. - Fale! – respondeu o marido assustado. - Vou morrer se me desprezares, mas não posso mais viver guardando de você este terrível segredo. - Que segredo? Do que estás falando? - indagou o marido - ansioso. E a Ludmila abriu o seu coração, chorando, contou ao marido, estupefato, toda sua desgraça. Contou também como se vingara. Ninguém jamais descobrirá quem foi que o cegou, confessou ela. Koryakow pagou caro pela sua atitude infame. Viver para ele será maior sofrimento do que a morte. A voz da moça agora soava calma. Aliviou a sua consciência, contando tudo ao marido. - O que irá fazer? - indagou apreensiva Ludmila. - Eu vou matá-lo!- disse o marido. - Não fará isto!- respondeu a moça severamente prometa-me que não o fará. Ele já está castigado. Quero que viva na escuridão pelo resto dos seus dias. - E você, Andrzej, tem que continuar vivendo para mim e nosso filhinho, porque não existe nenhuma vida sem você. E você sabe disso... Era inútil continuar conversando sobre o assunto. Andrzej percebeu pelo olhar dela. A selvageria da alma siberiana de Ludmila estava revelada. Assim como os blocos de gelo da taiga rolam e esmagam, do mesmo modo impiedoso, as pessoas nativas vivem, amam e odeiam... Não há como impedi-las... Quem é que faz parar a tempestade, erguendo as mãos contra ela? - Você me desprezará? Meu amor? Minha vida, meu Andrzej?... - Não acontecerá nada disso - respondeu ele baixinho - Nada, meu amor, que não possa suportar. Como é que pode imaginar que eu continuasse a viver sem você? 293 O que é um leito do rio sem a água, o que é um fogo sem calor? Sem você, Ludmila, não sou nada. *** O comissário, coronel Boris Koryakow, estava definitivamente cego. Depois de ter recorrido a diversos médicos, o diagnóstico não lhe foi favorável. Nunca mais veria o sol. Desesperado, vagueava há dias tateando com a bengala pelas ruas de Irkutsk. Ninguém sabia o que lhe aconteceu apesar de ter sido feita uma investigação rigorosa, nada foi descoberto. Condoído da sorte do comissário o general Abdulkhei mandou dois soldados para que o trouxessem ao seu gabinete. - O que foi que lhe aconteceu?- indagou o general. - Não sei, deve ser uma cuspida do inferno que me cegou - respondeu Koryakow. Agora estou eu inválido, rodando de um lado para outro, na escuridão. O que mais pode fazer um pobre diabo como eu? A última linda lembrança que me ficou, foi aquele passarinho selvagem se debatendo debaixo de mim. – Oh! foi o máximo, possui-la! – comentou, deliciado. - De quem você esta falando, seu depravado? – perguntou o general. - Daquela pombinha, a mulherzinha do deportado Wasilewski - respondeu ele, rindo alto. - Oh! - berrou o general - então você violentou Ludmila, filha do meu amigo, o falecido woiwoda Poznikow, e esposa do Andrzej, meu protegido? Seu porco imundo? Besta em forma humana! - Rogo perdão, general! Não sabia que eles eram tão preciosos para Vossa Excelência!, peço mil desculpas. 294 - Não contou nada a ninguém, não é, seu monstro, indivíduo desnaturado? Ninguém sabe do crime de estupro que você praticou? – indagou furioso o general Abdulkhei. Estava com ódio daquele devasso. - O diabo cuspiu na minha sopa! Não falei a ninguém, fique tranqüilo - falou com cinismo Koryakow. - Pare! Chega! Seu escarro do inferno - gritou Abulkhei, e empurrou-o para o lado. Some da minha frente! Irresponsável! “Existem horas em que repentinamente se reconhece que na realidade tudo - as pessoas, a vida, o passado e o futuro - é sem sentido e estúpido, e a gente não sabe mais por que realmente vive”, raciocinava o infeliz Koryakow, ao se despedir do general. - Eu não quero mais viver - gemeu ele. - Sim?- Abdulkhei anuiu, raivoso.- O coronel permite que eu acredite que isto é um assunto particular seu? O que tem o Estado a ver com isto? Se lhe agradar, enforquese, envenene-se, ou imagine um método especial para matar-se, mas não fique incomodando as autoridades com confissão de culpas, que ninguém quer ouvir. Já lhe providenciei o transporte e o dinheiro para viagem de retorno a São Petersburgo. A sua família é poderosa e abastada, vai ampará-lo. Já me incomodou muito com suas bebedeiras e vida desregrada que aqui levou. É tempo de ir embora para sua casa. - Eu pensava... - Pois, não pense - Abdulkhei interrompeu-o com gesto brusco, não queria mais ouvi-lo falar. Estava decidido a mandá -lo embora. Koryakow sentia aquele gosto amargo de fel na boca. Parecia-lhe que estava numa ilha coberta de neve, só e banido, sem roupas e com o traseiro nu congelando no gelo; numa situação desesperadora. Só havia trevas a sua volta. 295 Após a conversa com o general, dois soldados da polícia levaram o lamuriento coronel Boris Tikhonovitch Koryakow, para a diligência do correio que o aguardava. Embarcaram e acomodaram-no sozinho num assento de trás, recomendando ao postilhão para que tomasse conta dele até o destino, entregando-o à família em São Petersburgo. Nunca mais tiveram notícias dele. *** Era o início da primavera. À tarde, o tempo se alterou repentinamente. Nuvens rolavam vindas do sul, o céu azul ficou de repente acinzentado e logo amarelado e descolorido. Para quem conhecia estes indícios, persignava-se. Os vendavais eram raros, mas, quando passavam pela taiga, abriam uma larga clareira na selva, arrancavam as copas das árvores, partiam troncos centenários, arremessavam galhos de larícios pelo ar como grãos de areia. O céu cobriu-se de nuvens escuras; ouvia-se ao longe rugidos do trovão; a tempestade aproximava-se. O vento forte soprava do sul do lado das estepes da Mongólia, atiçando o ar quente do deserto de Gobi para as florestas da Sibéria. Estava-se formando um furacão de grandes proporções. Naquele dia, Andrzej tinha levantado de madrugada para ir ao trabalho no moinho. Não tinha conseguido dormir a noite toda, pensava na violência que Ludmila tinha sofrido; esta lembrança não o abandonava. Atravessou a estrada da floresta; resolveu sentar-se em cima de um toco de árvore para melhor refletir sobre o problema. Não viu o tempo passar; quando levantou para prosseguir a caminhada, já haviam transcorrido muitas horas. Caminhava pensativo sem perceber que a violenta tem296 pestade estava-lhe alcançando. As árvores gemiam sobre a força do vento, galhos da grossura de um braço voavam pelo ar como penas, musgo seco girava em danças de roda na clareira e onde os gravetos cobriam o chão duro, tinhamse formado turbilhões e redemoinhos, que arrancavam raízes da terra seca. As águas do lago Baikal dançavam um balé fantástico, com ondas frenéticas que batiam nas margens com violência. Salgueiros vergastados pelo vento dobravam suas hastes finas até o chão, como cabeleiras de bruxas numa dança orgíaca. A tempestade caiu sobre Andrzej, forçando-o contra o chão, arrancando-lhe a roupa, o vento enfurecido lutava com ele e tentava lançá-lo pelo ar, como galhos e folhas. Ele agarrou-se a um tronco de árvore, agachou-se atrás dele. O uivar do vento, o ranger e chiar da floresta, os estalos e chicotadas dos galhos arremessados contra os troncos não permitiam qualquer ação. Só havia uma coisa a fazer; deitar-se no chão, encolher a cabeça, cruzar os braços sobre a nuca e rezar para que o vértice da tempestade o poupasse. No entanto, para o Andrzej não existia mais o tempo, ele não calculava mais em minutos, horas, ou eternidade; não ouvia nem o vento, não sentia a chuva batendo-lhe nas costas, não sabia se era dia ou a noite mais negra que jamais vira em sua vida. Só existia um ponto em sua frente, que ele tinha que alcançar. Aquele maldito Koryakow, ele o mataria. No coração do homem uivava uma tormenta de dor e revolta. - Vou matá-lo - pensava o marido ofendido, na sua amargura; e, apesar de ter prometido à mulher que não iria vingar-se, não conseguia amainar o seu ódio. Só o sangue do desgraçado pode lavar a mácula da desonra que ele deixou em mim – questionava ele. 297 Após a tempestade ter-se desvanecido, Andrzej prosseguiu na caminhada até a casa do coronel Koryakow. Informaram-lhe que o comissariado estava fechado há dias. Diversas pessoas postavam-se em frente da porta. Corria o boato de que o comissário havia sumido, ninguém sabia do seu paradeiro. Murmurava-se que ele tinha sido chamado de volta à São Petersburgo. Fora visto pela última vez, vagando pelas ruas, apoiado sobre uma bengala. Devia estar doente e fora tratar da saúde. O destino poupara Andrzej do crime de homicídio; ele voltou para casa já de noite, talvez lá pelas dez horas. Ludmila veio correndo encontrá-lo, e com as mãos macias acariciou-lhe o rosto; falou-lhe o quanto estava inquieta e preocupada pela sua segurança na hora da tempestade que desabou de manhã. - Será que tenho de dizer-te novamente o quanto te amo? Quer sempre ouvi-lo de novo, minha avezinha? Ludmila sorriu, beijou-o na face e foi até a porta abraçada com o marido. - Onde está o menino, Daria? – perguntou. O pequeno Kazio assim que viu o pai chegando, escapuliu da proteção da ama e veio correndo para o colo do pai. Já tinha completado quatro anos; de cabelos castanhoescuros, encaracolados como os do pai, e olhos também escuros, levemente oblíquos, era uma criança inteligente e inquieta. - Leve-o para cama, Daria - falou a mãe - já é bastante tarde para que as crianças fiquem acordadas. Debruçou-se sobre o filho, deu lhe um beijo e acariciou-o. Dirigiu-se para o quarto do casal, quando ao entrar sentiu tontura e encostou-se na parede... foi caindo lentamente... desmaiou... Assustado, o marido correu para ampará-la. 298 - O que você tem, meu amor? O que está acontecendo? O que sentiu? - perguntou aflito. - Daria, venha ajudar-me, traga o vinagre! Ela desmaiou - chamava Andrzej. Passados alguns minutos, Ludmila voltou a si. - Ela está viva! Graças a Deus – falou alegre a serva. - O que aconteceu comigo? Diga a verdade, - pediu em voz baixa a moça, - estava preocupada com o ocorrido. - Você desmaiou, só isso, precisa ir ao médico, para saber a causa desse mal-estar - explicava o marido. Irei com você amanhã. - No outro dia cedo ela foi consultar o médico. Depois de minuciosos exames e perguntas o doutor deu-lhe o diagnóstico e efusivos cumprimentos ao Andrzej. - Será pai, dentro de alguns meses - falou o médico alegremente. Ludmila, ainda com o rosto pálido e transparente, levantou-o para o marido, e, com olhar suplicante, dissenão fique zangado comigo, querido! - O que é isso, Ludmiluska? - Eu sabia que você não queria outro filho logo, mas aconteceu... estou grávida. - Quem poderia amar a Deus mais do que nós? Agradecer-lhe mais esta graça. Estamos juntos, e vamos ter mais um filho. Não existem palavras para agradecer tanta felicidade. Andrzej virou-se e puxou a esposa para junto do seu peito. Segurou-lhe a cabeça nas duas mãos e fitou os olhos negros, oblíquos e ardentes; ela ergueu os braços e os passou em volta do pescoço dele. Beijaram-se com paixão. Mas uma grande preocupação não saía da cabeça de Ludmila. Teria ficado grávida do estuprador Koryakow? Ou do seu marido? Pois amaram-se intensamente naquele mesmo dia. Teria que esperar até o nascimento da criança 299 para saber a verdade. Andrzej não comentou mais o triste acontecimento. Durante muitos dias Ludmila sentiu enjôos e vômitos. Não podia sentir o cheiro de comida; emagreceu e ficou pálida, de olhos fundos. Mas isto também passou, e ela voltou a ser aquela jovem alegre e brincalhona. *** Amanhecia. O disco dourado do sol surgia no horizonte. O céu se tornara pálido e os cumes das árvores da taiga balançavam ao vento matutino, como se a mão de um gigante limpasse a coberta cinzenta da noite e cobrisse o lago Baikal com um brilho prateado. A floresta reluzia incrivelmente verde; os bancos de areia branca cintilavam, como se não tivessem sido formados de cascalho escuro, moído durante milhões de anos, e sim de minúsculos diamantes, nos quais se refletiam agora os primeiros raios do sol. Um vento morno começou a soprar do sul nesta manhã de abril, e ao olhar das janelas, cedo, via-se que a neve derretia, os caminhos se transformavam em lamaçais sem fundo, a água da neve corria em torrentes pelas estradas, entrava pela floresta, e de lá para os rios ainda cobertos de gelo. Depois de três dias o gelo começava a estourar no lago Baikal e no Angara, chegava carregado pelas águas do sul, e junto vinha a enchente. No quinto dia do degelo e da entrada da primavera, com os ventos mornos constantes, a cidade ficara debaixo d´água, por muitos dias. Andrzej e Ludmila estavam sentados no banco junto ao fogão, numa daquelas noites felizes, em que sonhavam um nos braços do outro. O menino dormia ao lado. 300 Foi nesse novo mundo que a carta do czar Nicolau I chegou, vinda de São Petersburgo. Enviada com urgência ao Andrzej, por um correio do general Abdulkhei, vinha acompanhada de um bilhete do governador, que dizia: “Leia e resolva o que for melhor para você e sua família, sentirei muito se optar por ir embora, já o considero como um filho. Mas a vida é tua, só você pode decidir”. - Leia - pediu Ludmila, curiosa. Era uma longa carta na qual o czar tornava livres os prisioneiros políticos deportados em 1831, que já tinham cumprido a pena de vinte anos.Podiam voltar para sua pátria. E, sendo assim, “deixamos à sua vontade, regressar à Polônia e viver sem nos perturbar, ou ficar na Sibéria e empregar toda energia no engrandecimento da região”. Andrzej deixou cair a carta e abraçou Ludmila. Ela chorava como uma criança, agarrando-se a ele em soluços. - Vai mesmo voltar, querido? – perguntou ela baixinho, e escondeu o rosto na sua camisa. Pensei que amavas a Sibéria! O marido pegou seu rosto nas mãos: - Eu dizia isso para não te magoar, mas cada manhã, ao me levantar, olhando pela janela, uma saudade imensa me invadia a alma. O esposo apertou o rosto contra os cabelos da esposa, depois foi escorregando, caiu de joelhos diante dela, e começou a chorar. Pensou... e de repente se deu conta que tinham passado vinte anos, e eram como um dia. Mas na Sibéria o que significa o tempo? É de estranhar que esta palavra exista na linguagem russa. Então, ficou ali, adormeceu... e sonhou... Ludmila cobriu-o com cobertor, beijou-o mais uma vez nos olhos, acariciou-lhe os cabelos castanhos. Seu co- 301 ração estava pesado de amor e de medo e não sabia explicar porquê! Kazio brincava com um cavalinho esculpido, no qual montado, corria... gritando de alegria. Andrzej sonhava com a volta à pátria, com o pai e a mãe falecidos, a irmã e irmão, e lembrou que não tinha mais ninguém vivo da sua família; somente lhe restavam alguns parentes afastados, que moravam em Lublin. Rolava na cama inquieto. Muitos dos deportados já eram tão idosos, que mesmo a liberdade anunciada pelo czar não tinha mais sentido para eles; não sobreviveriam à viagem de retorno, logo Irkutsk se tornara a estação final de suas vidas. Muitos já tinham morrido e aqui foram enterrados os seus corpos, no exílio, para sempre. Para quem vagueou durante vinte anos pela Sibéria já falta tutano nos ossos para se aventurar numa peregrinação a um mundo diferente daquele que tinham deixado, e começar tudo de novo. Assim pensavam os alquebrados pelo trabalho duro, doenças e idade. Dos 121 deportados poloneses que ali chegaram no ano de 1831, estavam voltando apenas 48 homens, alguns com suas famílias siberianas, outros sozinhos. Ninguém fugiu durante todos esses anos. Quem ia pensar em fugir? Fugir? Para onde? A Sibéria é mais segura do que cem grades de ferro uma atrás da outra. É uma grande armadilha, só se pode correr de um canto para outro, ou em círculos. Deveriam, então, todos os deportados que iriam voltar, providenciar documentos, passaportes, autorizações. O Comando Central da Sibéria em Irkutsk teria que autorizar o retorno. Mas isso não era obstáculo, pois o governador Semion Iliaievitch Abdulkhei, de posse da carta do czar, autorizou de imediato, pois a primavera havia chegado an- 302 tes do esperado, e deveriam aproveitar as boas condições do tempo para iniciar esta longa viagem. Ludmila vendo o marido triste, caminhando pela casa inquieto, disse: - Se você tem tanta saudade e vontade de voltar, eu estou pronta para abandonar tudo e ir contigo até o fim do mundo. Meu amor! Sem você eu não vivo. - Estás falando seriamente? Pensou bem? Não vai se arrepender? – perguntou Andrzej com ansiedade. - Não, e não adianta tentar persuadir-me para ficar, já resolvi, iremos para tua Polônia - respondeu ela com firmeza. - Agora tratemos de arrumar tudo para a longa viagem - comentou o marido, já com sorriso na face. Andrzej vendeu a propriedade que fora do pai de Ludmila. Foi apresentar o seu amigo Karol Karczynski, que ficaria administrando o moinho em seu lugar. Karczynski constituíra nova família em Irkutsk, achava-se cansado e um tanto idoso para recomeçar uma nova vida na Polônia. Faltava ainda vender as duas peles de lontra do mar que Ludmila herdara da sua mãe. Eram peles muito valiosas e eles iriam precisar de muitos rublos para a viagem e o começo de vida nova no destino. Andrzej e Ludmila seguiram numa carruagem pela estrada tortuosa em direção ao sul, para Kyakhta, na fronteira da Mongólia. A cidade parecia um grande mercado turco, havia fogueiras nas ruas, sobre as quais se preparavam todas as espécies de cozinha. Por toda parte reinava uma balbúrdia sem controle, uma atividade comercial de ensurdecer. Era uma extraordinária mistura de mercadores, de todas as regiões da Ásia. A multidão ostentava os mais variados trajes. Turcos de turbantes brancos; judeus de túnicas pretas, camponeses usbeques, casaques, caçadores iacutos, tártaros co303 bertos de peles de animais selvagens. Chineses, de quimonos de seda longos e floridos, com o eterno sorriso da Ásia, que se encontrava nos seus lábios finos, e os olhos eram alertas e repletos de inteligência ardilosa, e a boca de palavras sutis. O ar vibrava aos sons de todas as línguas; de gritos, de pragas, do mugido dos camelos, vacas, cavalos, porcos, berro de cabras e ladrido de cães. O comércio intenso de peles de animais trazidas pelos iacutos dos confins da Sibéria, e de sedas oferecidas pelos chineses, chás os mais variados, colares e contas de ágata, estatuetas de porcelana chinesa e de marfim, perfumes exóticos e especiarias; mais uma infinidade de artigos que eram negociados aqui no entreposto do Oriente. E mais interessantes eram os camelos... esses fantásticos animais possuem duas corcovas no dorso e o corpo coberto de lã. São originários do deserto de Gobi, na Ásia Central. É o transporte de carga mais útil nas regiões áridas, pela sua sobriedade, resistência e força. Aí na fronteira da Mongólia que ele se faz mais presente. É inteligente, e o seu comportamento vingativo demonstra isso, pois quando se enfurece com alguém, cospe nele, sorrateiramente. Ludmila conhecia um mercador chinês de nome Ye Hiu, que negociava tapetes de seda de Cabul e Bukhara, vestes femininas de seda e bordados, artigos de prata marchetada, caixinhas de jóias, punhais,taças e perfumes orientais. Comprava peles de zibelina, de raposa prateada, de martas e outros animais de peles preciosas, caçados pelos iacutos nas florestas do Lena. Foram procurá-lo e Andrzej mostrou-lhe as duas preciosas peles de lontra do mar. Ye Hiu ficou maravilhado com a beleza das mesmas. Ofereceu um preço bom, mas muito abaixo do valor real. Ludmila ficou ofendida e falou firme que só venderia as peles por mil rublos de ouro. Ye Hiu esbravejou, xingou, mas pagou o preço pedido. 304 - Quantos rublos temos agora, Ludmila? - Com esta venda completamos oito mil rublos. Nos dias que se seguiram, o casal providenciou as compras; adquiriram provisões para uma longa viagem. Compraram cobertores e sacos de dormir, roupas de baixo quentes e botas de feltro; protetores de orelhas e luvas forradas, agasalhos compridos forrados com pele de carneiro e gorros de lã. Levaram farinha de trigo para o pão e grãos descascados de cevada e trigo mourisco para kascha, latas de chá, carnes em conserva e dois toneis de arenque em salmoura. Montaram uma pequena farmácia: com tesouras, ataduras, compressas arteriais e pomadas, comprimidos para dores e vidrinhos de iodo. Álcool para acender o fogo e o fogareiro e panelas para cozinhar. Acondicionaram tudo em sacos de couro. Foi comprada uma carroça grande e forte para levar a carga; e uma carruagem leve, para transportar a família. Dez cavalinhos da estepe, animais fortes, resistentes para longas viagens; agüentavam valentemente o frio e o calor. Em fins de abril o barqueiro voltou a efetuar suas travessias, pilotando as grandes barcaças. Andrzej e Ludmila ultimaram os preparativos para a longa viagem; chegava o dia e a hora de partir; não podiam mais protelar. Foram despedir-se do governador Abdulkhei. Ele pegou Andrzej pelo braço e levou-o para seu escritório, lá retirou da parede duas lustrosas carabinas militares, limpas e bem azeitadas, e as entregou, dizendo: - Estas armas são maravilhosas atiram com uma pontualidade ímpar. Poderá precisar delas. Leve-as consigo! Andrzej pegou as carabinas e colocou as alças de couro no ombro. Até as baionetas estavam presas às coro- 305 nhas; as lâminas estavam limpas, sem ferrugem e cobertas com uma camada de graxa. - Como, quando, e com o que poderei agradecerlhe, general? – perguntou Andrzej. - Apenas cuide e faça feliz Ludmila, a filha do meu grande amigo Poznikow, e também cuide bem do meu afilhado Kazimir Andrejew. Darei a você uma carta de recomendação ao meu amigo general Dimitri Pawlowitch Kisselef governador da província de Lublinski na Polônia. É um salvo conduto, para não ser incomodado por nenhuma autoridade no caminho que vai seguir, até o seu destino. Esta oferta era muito valiosa, pois precisavam da autorização especial para viajar em paz; para obter cavalos de posta e pousada nas estações de correio. Viajariam em vinte tarrantasses, que é uma espécie de veículo rústico de quatro rodas, com um toldo de couro que se pode baixar e fechar quase que hermeticamente. Torna a condução mais arejada e agradável no grande calor, e mais segura com chuva ou ventania. É puxado por cinco cavalos. Podiam viajar nele quatro ou cinco pessoas confortavelmente, com o postilhão na frente. A partida dos 48 deportados foi um acontecimento inusitado, por dois dias despediam-se dos amigos que ficavam. Levavam consigo grande quantidade de cartas, relatórios, recados. Partiram cedo, na manhã de 15 de julho de 1851. Os homens, conduzindo os 10 carroções com provisões e material de mudança. As famílias seguiram na frente, em tarrantasses e troikas, acompanhados por doze cossacos a cavalo, para proteção, nessa longa viagem em direção ao oeste. Ninguém estava à beira da estrada, para pouparem as lágrimas e os acenos de despedida. Ouviam-se apenas as vozes altas dos amigos clamando: - Deus vos acompanhe ! Boa viagem! 306 Passando em frente ao cemitério da cidade, Ludmila e Andrzej desceram da carruagem, foram até o túmulo dos pais dela e colocaram flores de campo sobre as sepulturas, rezaram em silêncio. A filha não conseguiu segurar as lágrimas que vieram como torrentes. - Adeus, minha mãe e meu pai, talvez para sempre, - soluçava, amparada pelo marido. Os dois olharam mais uma vez para trás. A última coisa que conseguiram divisar contra o fundo da parede verde da taiga era a cebola da torre da igreja de Irkutsk, lugar onde se casaram e batizaram seu filho Kazimir. Depois continuaram a viagem ao seu destino. Um grupo de buriatas, em seus pequenos cavalinhos peludos, acompanhou-os por um trecho grande do caminho, despedindo-se depois com galope selvagem e gritos agudos. Apenas restou o silêncio... A infinita quietude da taiga, que os acompanharia por meses a fio. Andrzej pôs o braço em torno da esposa - e falou com voz rouca: - Ainda podemos voltar... Ela sacudiu a cabeça e pôs as mãos suavemente sobre a sua boca: - Não fales nada agora - sua voz vacilava - por favor querido, eu te suplico! Não diga mais nada, ou não terei forças para dizer não. Lágrimas escorriam por sua face pálida, encostou o rosto no ombro do marido e chorou. O comboio de tarrantasses e carroções continuou matraqueando pelas estradas ruins e perigosas, atravessando rios, florestas e montanhas. O primeiro grande rio que teriam que transpor era o Yenissei. Em circunstâncias normais, utilizando as barcaças especialmente preparadas para o transporte de viajantes, veículos e animais, a passagem do rio exige três horas ou mais, e só com extrema dificuldade estas barcaças atingem a margem direita. 307 Mal rompeu o dia e a bruma ainda estava densa sobre o rio, e não se via a água. Das camadas inferiores do nevoeiro saía um surdo tumulto de correnteza. Todos esperavam que a cortina de brumas se levantasse. O sol subia rapidamente no horizonte, e os seus primeiros raios não iam tardar a dissipar o nevoeiro. O rio Yenissei, no local da foz do Angara, é imenso, mede mais ou menos 1.600 metros de largura e forma dois braços desiguais por onde as águas seguem tumultuosas. É um admirável espetáculo da natureza. O Yenissei nasce na Mongólia, quase na fronteira da Sibéria, bem próximo ao lago Baikal; recebe como afluentes, o Angara, Tunguska superior, médio e o inferior, e outros rios menores; forma um rio caudaloso e turbulento, com 5.200 quilômetros de extensão, deságua no oceano Glacial Ártico, no Mar de Kara, por um largo estuário; fica congelado durante todo inverno. Como transportar este grande comboio de carroções, tarrantasses e cavalos de uma margem à outra? Viajaram durante todo verão e outono, passaram por cidadezinhas remotas; percorreram grandes extensões de terras áridas e vazias, estepes sem qualquer habitação projetando-se até o horizonte, lugares que nunca antes tinham sido cruzados por viajantes estranhos. O inverno já havia começado e a neve caía fininha. As borrascas e violentos crepúsculos vermelhos, brilhando sobre lagos congelados e tundras brancas, estavam no auge. Lobos famintos seguiam a caravana à espera de acidente que lhes proporcionasse um alvo indefeso. Seguiu-se um inverno intenso, e os ventos uivavam na solidão da taiga. À noite a temperatura descia próximo a quarenta graus negativos. Foram obrigados a abandonar quaisquer tentativas adicionais de continuar a viagem para oeste. Abrigados em cabanas feitas de troncos de árvo308 res, pois as tendas o vento derrubaria, e quase sem alimentação adequada para os homens e animais, eles sobreviveram ao terrível inverno de 1851. Nas estepes siberianas no inverno, apesar das roupas de pele de rena que as pessoas vestiam, gelava o coração dos viajantes, enregelava os pés que estavam envoltos em três pares de meias de lã. Os cavalos da troika estavam cobertos por uma camada fina de neve, e a sua respiração condensava-se nas narinas; contudo, a viatura corria sempre como um tufão. Os obstáculos sumiam sobre a planície nivelada pela neve, desapareciam os rios e lagos sem que fosse preciso procurar-lhe os locais de passagem. A família de Andrzej viajava numa condução bem confortável. O menino ia envolto em cobertores, só lhe aparecendo os olhos espertos, na face rosada. O marido estava pensativo e preocupado com a gravidez da esposa. A caravana prosseguia em frente percorrendo cerca de 4.500 werstas de estradas tortuosas pelas estepes siberianas, congeladas, até chegarem à Tobolsk. E, finalmente, quando degelaram os vales e os rios, eles navegaram em barcaças por centenas de quilômetros pelo rio Obi e Irtisth, até chegarem a Tiyumen, o solitário e desolado povoado aos pés dos Montes Urais. A vida explodiu nos campos com a vinda da primavera. Os rios corriam caudalosos, as florestas cobriam-se de folhas verdes, a relva tinha um tom de esmeralda e léguas de estepes cobriam-se de flores. Às vezes, quilômetros de flores brancas inclinavam-se ao vento forte e fresco. Pétalas azuis, douradas e rosadas derramavam-se pelas planícies e vales como um imenso tapete turco. Os pássaros cortavam os céus azuis ardentes e suas vozes exultantes enchiam o ar de sons emocionantes. Os primeiros contornos dos Montes Urais começaram a desenhar-se no horizonte, na direção do oeste. 309 Os Montes Urais são uma cadeia de montanhas que se estendem entre a Europa e a Ásia ao longo de 3.200 quilômetros. “Urais”, nome de origem tártara que significa “cinturão”. Começam no litoral do mar Ártico e terminam nas margens do mar Cáspio. Durante o dia, o céu esteve sempre encoberto, a temperatura suportável, mas o tempo mostrava-se tempestuoso. A passagem na vertente oriental dos Montes Urais, na estrada que vai de Ekaterimburgo à Perm era a via mais rápida e a mais segura, aquela que serve ao trafégo de todo o comércio da Ásia Central. Infelizmente, o ribombar de um primeiro trovão anunciava uma tempestade que se adivinhava temível pelo estado particular da atmosfera. A tensão elétrica era tal que só poderia desencadear-se com violência. Andrzej velou para que a sua família não sofresse nenhum problema. A capota da tarrantasse, que uma rajada de vento facilmente arrancaria, foi presa solidamente com cordas reforçadas. Desatrelaram-se os cavalos, que foram amarrados a troncos. Esperaram a tempestade passar, mas a noite mostrava-se ameaçadora. Densas nuvens pareciam baixar a abóbada do céu; pelas onze horas os relâmpagos começaram a iluminar o céu e não paravam mais. À luz dos seus clarões, viam-se aparecer e desaparecer as silhuetas dos grandes pinheiros da floresta. À borda do caminho, profundos abismos eram iluminados, e o trovão parecia rolar por dentro deles. O vento desencadeava-se nas copas dos grandes pinheiros, que se torciam no cume, e algumas velhas árvores não resistiam ao ataque da borrasca, arrancadas com raízes, caíam com estrondo no abismo profundo que bordejava a estrada. A fúria da tempestade redobrava. Ao mesmo tempo, uma avalanche de pedras e de troncos descia de roldão do alto das escarpas. O rolar do 310 trovão cessou por um instante, e a terrível tempestade perdia-se nas profundezas do desfiladeiro. Começou uma chuva torrencial, com granizo martelando os veículos e os animais encolhidos perto das árvores. A borrasca estava então na plenitude da sua fúria. Os relâmpagos enchiam o desfiladeiro e um raio ricocheteou no tronco de um larício, destruindo-o completamente; os trovões sucediam-se, e o solo vibrando sob os furiosos golpes parecia tremer, como se todo o maciço dos Urais tivesse sido submetido a uma trepidação infernal. Depois, quando o último som do trovão se perdeu nas profundezas das montanhas, a chuva parou tão rápido quanto começou. A comitiva dos ex-exilados estava acampada ao sopé dos Montes Urais. Passado o temporal, podiam continuar a viagem em direção à Perm. O ventre de Ludmila agora estava arredondado, viase nitidamente o seu estado de gravidez. Quando Andrzej colocava a mão sobre seu ventre, sentia como a criança se mexia; como uma vida nova se desenvolvia no abrigo cálido do corpo dela. Isto o fazia ficar cada vez mais feliz, sim, ele encostava o ouvido na pele lisa, esticada da barriga, e prendia a respiração. - Eu ouço o coraçãozinho do nosso filho - dizia - bate baixinho, mas não é um milagre que eu o escute? - Sim, meu bobinho - respondia Ludmila, e revolvialhe os cabelos, esticava-se e ficava bem quieta, para que ele pudesse escutar e tocar, e ela se banhava numa sensação maravilhosa de felicidade. - Que assim seja, - pensou ela - Que Deus não se esqueça de nós nestes confins do mundo. Nós iremos precisar muito do Seu amparo nesta viagem. E,logo chegará a criança, nosso segundo filho. - Esperamos já ter chegado ao nosso destino. 311 Assim viajaram durante toda primavera de brisas amenas, o verão de calor escaldante e o outono que se aproximava novamente, anunciado pelo frio gélido que entrava pelos ossos. Atravessaram, de volta, toda a extensão da Sibéria, da Rússia européia, até a Polônia, com suas florestas, estepes, rios e montanhas. Hoje, como há séculos, - pensou Andrzej - hoje, amanhã e sempre, enquanto a terra girar, haverá um céu azul e um outro céu cor de chumbo, que cobre a imensidão dos campos no inverno. O céu e o sol, a neve e o vento, as montanhas e os rios circundarão a taiga na qual existiu certa vez uma extensa cerca de arame farpado, com torres de vigia, um portão grande, barracões compridos e soldados de guarda... Centenas de homens desesperançados, prisioneiros de outros homens, por não aceitarem a sua opressão, por não comungarem com suas idéias de domínio sobre as nações livres, suportaram as privações, o sofrimento e a solidão na longínqua Sibéria... O tempo passou... Os impérios caíram, os czares e os carrascos se foram, as inexpugnáveis fortalezas viraram ruínas e pó... mas a alma do povo polonês continua amando a liberdade acima de tudo. VIII O REGRESSO A atual província de Lublin é composta de diversas terras antes pertencentes a outros centros administrativos como Chelm e Krasnystaw. O tronco-mater é a província criada pelo rei Kazimierz Jagiellonczyk no ano de 1474. A divisa no rio Bug já existia nos tempos de Mieszko I, em 981 d.C. A cidade, sede da província, situa-se a sudeste de 312 Warszawa, no Planalto de Lublin, à margem do rio Bystrzyca afluente do Wieprz, tributário do Wisla. Fontes escritas e achados arqueológicos indicam quão importante era o papel de Lublin no trânsito comercial, desde o início da Idade Média até os dias atuais. A passagem era uma ramificação da grande rota de comércio do âmbar, ligando o Mar Negro e a Rússia de Kiew com o mercado do mar Báltico. Significativa posição no comércio de exportação tinham os cereais e a cera de abelha trazida da Wolinia e Podolia. Também os corantes e pigmentos colhidos na Rus Vermelha, de insetos Porfirosfera polônica (cochinilha). Fornece uma tinta de um vermelho magnífico que é o carmim. Na região de Rus havia a maior incidência desses insetos. No século XV, foi o auge da expansão desse comércio original. Lublin era conhecida no século XII como fortaleza de defesa. Desde o ano de 1317 foi centro de comércio entre a Coroa e o Grande Principado da Lituânia. Ali foi firmada a União entre a Polônia e a Lituânia (Unja Lubelska), em 1569. Depois da divisão da Polônia em 1795, a cidade foi ocupada pela Àustria, mais tarde passou para a Rússia. e assim ficou até o ano de 1918. Início de fevereiro de 1852. Num dia gélido de inverno, Andrzej Wasilewski, Ludmila, Daria e o pequeno Kazimir Andrejew, mais os 47 deportados, pisavam novamente o solo pátrio, em Lublin, na Polônia.Tinham uma necessidade imensa de descanso, sossego, sono, esquecimento, de alegria e de amor. Um teto para sua família, um trabalho calmo e frutífero, era o que Andrzej e os outros desejavam acima de tudo. 313 E foi num domingo, já se aproximando a hora do meio-dia, que os ex-exilados entraram na cidade. Apesar de a chuva e a neve não darem trégua, surge na rua lamacenta do bairro Krakowskie Przedmiescie um comboio de dez carroções e outro tanto de tarrantasses e troikas trazendo de volta à pátria, depois de 20 anos de exílio na Sibéria, os remanescentes da insurreição de novembro de 1830. As ruas de Lublin estavam desertas. Ninguém saía de casa. As pessoas ou escondiam-se nos portais, ou encolhidas fugiam do frio cortante, da chuva fininha e neve. Não se ouvia o rodar das dorozkas, pois a maioria estava parada, os cocheiros abandonavam a boleia e entravam dentro dos fiacres para proteger-se do frio; os cavalos açoitados pela chuva e cobertos de neve, tremendo, pareciam querer cobrir-se com as próprias orelhas. Andrzej procurou uma hospedaria para acomodar a família por aquela noite. Todos estavam muito cansados e Ludmila não se sentia bem desde a manhã daquele dia; começou sentir a dores sutis no baixo ventre. Assustou-se. Podia ser o início do trabalho do parto. - Será que chegou a hora? - dirigiu-se ao marido, angustiada. - O que você sente, querida? Deite-se e descanse, com certeza logo vai passar, é apenas o cansaço da viagem; eu preciso sair, devo voltar logo, vou procurar um amigo meu de nome Tadeusz Wawelski; com sorte, espero encontrá-lo; e que ainda esteja morando aqui e na mesma casa - disse Andrzej, e apesar da chuva e neve bater-lhe no rosto, ele foi à rua Aleja Raclawicka procurar o amigo. Ao chegar próximo à casa ouviu os acordes de uma música nostálgica, sua conhecida. As notas encantadas acordaram o cão que dormia no sofá, este, levantando a cabeça, ficou olhando para o dono, embevecido. De repente correu até a janela e latiu furiosa314 mente. Uma grande sombra apareceu na janela gradeada, que tentava olhar para dentro. - Deve ser o Paulo - pensou Tadeusz. Mas o cão não estava de acordo, pulou do sofá novamente e, ganindo inquieto, cheirava a porta como se sentisse a presença de um estranho. Ouve-se um ruído no vestíbulo. Uma mão procura o trinco e abre a porta, no portal aparece um homem vestindo um longo casacão de pele de urso, respingando chuva e neve. - Quem é ? – pergunta Tadeusz intrigado, e a sua face cobre-se de rubor ao avistar o visitante. - Então já não me conhece, velho amigo? - Andrzej respondeu em voz baixa, lentamente. O senhor Tadeusz atrapalha-se mais ainda, arruma os óculos no nariz, que estavam caindo, guarda a clarineta no armário. Enquanto isso o hóspede tira a peliça e o gorro de pele, agradando o cão que o estava festejando, pois este com alegre ganido deitou-se a seus pés. Tadeusz chega mais perto do visitante, comovido... caminha encurvado mais do que comumente. - Parece-me – diz, esfregando as mãos - parece-me que tenho a honra... E leva o visitante para perto da luz da janela, piscando os olhos, fala enternecido: - Andrzej! Mal posso acreditar! Como Deus é misericordioso - em seguida abraça-o, aperta-lhe as mãos, passalhe as mãos na cabeça com afeto. - Ha! Ha! Ha! – ri de contente - Andrzej em corpo e alma! Salvo da Sibéria! Voltou finalmente, e veio ver-me, lembrou-se do amigo Tadeusz – concluiu, batendo-lhe nas costas - com certeza, estás mais velho, mas continuas o mesmo de sempre, forte e decidido. Andrzej também ria. Abraçou o amigo e beijou-o na face diversas vezes, conforme o costume antigo. 315 - Então, o que temos de novo por aqui? – perguntou o visitante - você emagreceu, teus cabelos encaneceram... - É, um pouco... estive doente. - Esta cabeleira cinza fica-lhe muito bem... mas estás bem de saúde ? - Otimamente! E os negócios vão bem. Mas fale-me de você, amigo querido; vinte anos se passaram desde que nos vimos pela última vez nos pântanos do Polesie. Eles te pegaram naquele dia... O que fizeram com você, meu amigo? Encarceraram em masmorras, sujeitaram a torturas. Condenaram por vinte anos de trabalhos forçados na Sibéria. Sugaram tuas energias, mas não conseguiram dobrar-te, continuas o mesmo Andrzej forte e destemido. Finalmente estás de volta, libertaram-te... Os demônios russos... Malditos opressores. - Venceu o prazo da nossa sentença e tiveram que nos soltar - comentou Andrzej, e sentou-se no sofá. O cão subiu e deitou a cabeça no colo dele. Tadeusz puxou a cadeira para perto. - Come alguma coisa? Tenho presunto e pão preto. - Aceito! - Quer beber algo? Tenho uma garrafa de vinho, mas só tenho uma taça. - Bebo do copo - respondeu o hóspede. Tadeusz começou a andar pela sala, atrapalhado, abrindo gavetas, armários, procurando... até que achou o vinho, colocou na mesa o presunto e o pão. Suas mãos e lábios tremiam de emoção, levou tempo até que se acalmasse e servisse a comida. Só depois de tomar um copo de vinho é que lhe voltou a calma. Enquanto isso, o visitante comia com grande apetite. - Sacie-se, depois fale-me de você – pediu. - Estou pensando como é que vou começar... Tadeusz puxou a cadeira para mais perto do amigo. 316 - Agora fale, Andrzej, estou ansioso para ouvi-lo!.. - Meu querido e velho amigo, você não imagina o quanto estou feliz por estar aqui de volta. Você não tem idéia de quanto eu sofri, longe de todos, na incerteza se algum dia iria retornar à pátria. Vivia na mais terrível solidão, pois a pior solidão não é aquela que cerca a pessoa, mas esse vazio dentro da alma, quando não há nenhum raio de esperança por mais tênue que seja. E também a saudade consumia-me todo momento livre do trabalho, cada hora de descanso. De novo o visitante levantou-se do sofá e caminhou pelo recinto, falando com voz embargada: - Eu trabalhava até a exaustão, comia, conversava, até ria às vezes e ficava alegre, mas apesar disso tudo sentia no interior do peito uma agulhada surda, um desassossego, um interminável terror. Esse estado crônico atormentavame, qualquer mínima circunstância incitava uma tempestade na minha alma. - Uma árvore de formas conhecidas, algum visual de um ressequido outeiro, o colorido mais intenso de um pôrdo-sol, uma nuvem branca no céu azul, o canto de um pássaro, até o soprar suave da brisa da primavera, sem qualquer motivo acordava em mim um tão louco desespero que eu fugia das pessoas e refugiava-me em recantos isolados da floresta, onde pudesse cair no chão e sem ser espreitado por ninguém, uivar de dor como um cão. - Às vezes, nessas fugas de mim mesmo, alcançavame a noite. Então, por entre os arbustos, tocos caídos e precipícios, vinham ao meu encontro sombras antigas e tristemente balançavam a cabeça, de olhos pálidos e fundos. E tudo, o sussurro das folhas, o ruído longínquo das carroças, o murmúrio dos córregos, confluíam num só grito lamentoso, que me indagava: - Exilado! O que foi que aconteceu com tua vida? 317 - Certa vez sucedeu isso comigo, quando eu estava na fazenda de criação de cavalos do governador Abdulkhei. Fazia a travessia do rio Amur, que se prolongou pela tarde toda. Navegava só com um tártaro conduzindo o meu barco, e como não consegui entabular conversa com ele, vinha admirando a paisagem. Havia praias arenosas, como aqui, e árvores parecidas com os nossos salgueiros, colinas cobertas de vegetação e moitas de larícios. - Por momentos pareceu-me que estava no meu país, e antes que escurecesse veria vocês novamente. Caiu a noite, e as margens do rio sumiram. Estava sozinho sobre essa colossal massa de água, onde apenas refletiam-se as estrelas e a lua cheia. Senti uma imensa dor interior e vi o quanto é profunda a chaga da minha alma. Sofria dor física como se um grão de areia corroesse o meu coração. - Fiquei por dez anos sozinho, sem uma alma piedosa que me aquecesse o coração, no acampamento, no meio das florestas de Tchita. Depois que fomos liberados, fui trabalhar na fazenda do governador de Irkutsk. E nas minhas visitas à cidade conheci uma jovem nativa, belíssima, de origem mongol, cujo pai era woiwoda da cidade. Apaixonamo-nos e com a anuência dos pais dela casamos em pouco tempo. Temos um filho e ela está esperando o segundo por esses dias. Chegamos hoje à tarde em Lublin e alojamo-nos na hospedaria do Max Sowinski. Vim até aqui para rever você e pedir uma orientação e, se for possível, a indicação de uma casa onde eu possa morar por algum tempo com a minha família. - Isso não será difícil, eu conheço algumas casas para locação, posso levar você lá amanhã cedo. - Também trouxe uma carta de recomendação do governador de Irkutsk, general Semion Iliaiewitch Abdulkhei, para o governador da Gubernia de Lublinski, gene- 318 ral Dimitri Pawlowitch Kisselef, espero conseguir algum trabalho bom e honesto. - Com certeza conseguirá, amanhã cedo iremos ver a casa para você alugar. E como estou impaciente e também curioso para conhecer a tua família, leve-me até a hospedaria do Max Sowinski. - Então vamos para a estalagem. Há conversas, que depois das quais é preferível falar em negócios e resolver problemas atuais que estão nos aguardando – disse Andrzej. Quando saíram, no alpendre a neve úmida soprou sobre eles; foram caminhando a pé pela rua com poças cheias de água. Pegaram o rumo da hospedaria que não ficava muito distante. Ludmila já estava deitada, ressonava tranqüilamente, a criança e a babá também estavam dormindo. - Fica para amanhã - falou Tadeusz, desapontado vou voltar para casa, e logo de manhã cedo volto aqui. Espere-me, iremos ver a casa para você, a primeira que me ocorreu fica na Alameda Ujazdowska. É uma casa de oito cômodos, tem uma boa sala de visitas com três janelas grandes que abrem para o jardim, escritório, três dormitórios, sala de jantar, cozinha e quarto de banho. Separadas da casa ficam as dependências para os empregados. A moradia tinha muitas vantagens, era seca, clara, ventilada no verão e com aquecimento no inverno, tinha escadas de pedra; era cercada por um muro alto e possuía um jardim interior. Utensílios e móveis havia o suficiente, eram simples mas funcionais. A despensa, espaçosa; as camas ofereciam conforto e descanso tranqüilo. Havia uma mesa de jantar comprida e oito cadeiras fortes; sofás na sala de visitas, e ao todo era uma casa bastante confortável. Acertaram o preço da locação com o proprietário. Andrzej estava contente e providenciou a mudança. Não demorou muito e estavam instalados confortavelmente.O 319 amigo Tadeusz desempenhou um papel muito importante na instalação da família do Andrzej no seu novo lar, ele providenciava e ajudava em tudo que podia. Depois dos dias de azáfama da arrumação da casa, todos estavam muito cansados, mas não deixaram de comemorar com um lauto almoço e música de clarinete, que Tadeusz tocava muito bem. Naquela noite, já passando das duas horas, Ludmila acordou-se e chamou pelo marido: - Querido, é hoje que o nosso filho vai nascer, comecei a sentir dores muito fortes no ventre. Andrzej, assustado, correu procurar a parteira Arkadia, que fora indicada pelo seu amigo Tadeusz e que Ludmila tinha conhecido naqueles dias. A mulher atendeu prontamente e veio junto com ele, não se incomodando pela hora tardia. Chegando, logo providenciou água quente, toalhas, álcool, tesoura e linha para amarrar o cordão umbilical. Lavou bem as mãos e foi para junto da parturiente, à qual consolou e encorajou. Estava se iniciando o trabalho do parto. As contrações começaram sutis, espaçadas e foram aumentando, cada vez mais fortes. Dez horas se passaram até que surgissem as grandes dores expulsivas do feto. Com um grande esforço, Ludmila ajudou a parteira, e finalmente apareceu a cabecinha coberta de cabelos escuros. Assim que nasceu, a criança deu um grito forte, como que assustada com o mundo em que ingressava; depois ficou quietinha. Arkadya atendeu a parturiente, recolheu a placenta e deu banho no recém-nascido, que era um menino forte, de bracinhos e perninhas compridos. - Vai ser um homem alto - comentou Arkadya. - Nosso filhinho - dizia Andrzej, chorando e rindo de emoção - é lindo, tem os cabelos encaracolados e os olhos escuros como meus. 320 Acabaram o terrível medo e a insegurança de Ludmila de que o filho não fosse do marido, mas do estuprador. - Que nome lhe daremos? – perguntou Andrzej. - O que você acha de darmos a ele o nome do seu pai? Francisco, é um nome bonito, o menino vai ser um homem bom como o avô - profetizava Ludmila, não conseguindo esconder a felicidade e o alívio que sentia. - Será então batizado com este nome, e o padrinho, se ele aceitar, vai ser o nosso amigo Tadeusz Wawelski concordou Andrzej. Os dias foram passando e Andrzej precisava encontrar trabalho, pois agora eram cinco pessoas pelas quais era responsável. O dinheiro que tinham trazido de Irkutsk já estava escasseando. Convidou seu amigo e os dois foram à audiência marcada com o governador da província de Lublinski, general Kisselef, para a entrega da carta de recomendação do governador de Irkutsk, general Abdulkhei, que tinha sido outorgada a ele. Após a apresentação e a entrega do documento, o governador gentilmente perguntou: - Como vai meu grande amigo general Abdulkhei? – faz muito tempo que não o vejo. - Cada vez mais preocupado com as pessoas e a colonização da Sibéria. - Ele é uma pessoa extraordinária. Vou atender a sua solicitação e o apresentarei ao meu caro amigo conde Jan Zukowski, que terá um cargo para você nas propriedades que possui, entre elas as aldeias de Plenin (Plonka), Majdan Kobylanski, Mchy, Stryjno e outras nos distritos de Rudnik e Krasnystaw. Haverá trabalho para você, e atenderei com o maior prazer o pedido do meu amigo de Irkutsk. Com esta favorável promessa estava assegurado o reingresso de Andrzej ao trabalho na sua pátria. 321 Conde Jan Zukowski era um sexagenário, de estatura mediana, corpulento e sangüíneo, usava os bigodes brancos bem aparados e o cabelo grisalho penteado para trás. De olhos cinzas, inteligentes, de porte ereto, ainda tinha o passo firme. Na rua o povo simples fazia-lhe reverência. Realmente, o conde Zukowski contava no passado com uma fileira de senadores na sua família. O pai ainda possuía uma grande fortuna em propriedades, e ele mesmo na juventude era rico. Depois, parte da fortuna foi empenhada na política, outro tanto em viagens pela Europa, onde freqüentava as cortes francesa, austríaca e italiana. Já havia tempo que o conde não saía de Lublin, eventualmente ia a Warszawa; o dinheiro estava escasso para poder brilhar nas cortes, mas a sua residência em Lublin era o centro da sociedade elegante. Organizavam-se reuniões com festas, música, danças e jogos de cartas, nas quais o conde era assíduo, quase sempre jogando em parceria com o governador de Lublinski. O dono da casa recebia com esmerada cortesia e gentileza; e sua fisionomia estava sempre tranqüila e sorridente. Foi numa dessas ocasiões de conversas alegres que o governador lembrou-se da carta do general Abdulkhei e seu pedido a respeito do trabalho para Andrzej Wasilewski. - Caro amigo Zukowski, tenho um pedido a lhe fazer - disse o general. - Seu pedido, governador, é uma ordem para mim, estou a sua total disposição - respondeu o conde, solícito. - É a respeito de um ex-exilado que teve a permissão de retornar à Polônia, está morando em Lublin e precisa de trabalho. Poderá ajudar-me a resolver esse problema? perguntou o governador. - Deixe-me pensar um pouco, realmente tenho necessidade de encontrar um bom administrador, se ele for 322 capacitado para esse emprego, já está contratado. Se não tiver experiência para esse cargo arrumarei outra ocupação para ele. Agradeço-lhe, governador, por permitir-me ser-lhe útil pelo menos um pouco. Amanhã mesmo mandarei chamar o interessado. Andrzej teve uma entrevista com o conde Zukowski, que o aprovou e contratou como administrador das suas propriedades. Continuou morando em Lublin, mas ia às fazendas do conde sempre que era necessário, e com grande freqüência fiscalizava os trabalhos nas aldeias. Conde Zukowski era viúvo havia já muitos anos. Tinha uma filha de 18 anos, de nome Bárbara, jovem de uma beleza invulgar. Tudo nela era original e perfeito. De estatura acima da média, de formoso porte esbelto, bastos cabelos castanhos de reflexos dourados, nariz reto, lábios carmim, dentes de pérola, mãos e pernas bem modelados. Seus olhos azuis celeste, transmitiam singular impressão, às vezes sombrios e melancólicos, outras cheios de contentamento, no entanto, frios como o gelo. Chocante era o jogo da sua fisionomia. Quando dizia algo, falava sua boca, sobrancelhas, narinas, mãos, todo seu porte, mas principalmente, os olhos, com os quais parecia querer passar a sua alma para o seu ouvinte. Quando ouvia, parecia querer beber a alma do narrador, seus olhos sabiam acariciar, afagar, chorar sem lágrimas, queimar e gelar. Era uma personagem fora do comum. Os salões do conde Zukowski eram freqüentados por dezenas de adoradores de Bárbara, a beldade da casa. Às vezes poderia-se pensar que, na sua distraída fantasia, ela poderia abraçar alguém, mas quando o felizardo delirasse de prazer, ela faria um rápido movimento, esgueirando-se e ninguém podia tocá-la, pois simplesmente ela mandaria o lacaio levar o importuno até a porta. 323 Curioso fenômeno constituía a alma da senhorita Bárbara. Se alguém lhe perguntasse o que é o mundo, e o que era ela, com certeza responderia que o mundo era um parque encantado, e ela, uma deusa ou ninfa presa a um corpo material. A condessinha Bárbara, desde o berço vivia num mundo maravilhoso, não só sobre-humano, mas sobrenatural. Dormia em plumas, vestia sedas e cambraias finíssimas bordadas, sentava-se em móveis de ébano, esculpidos e forrados de tecidos adamascados, bebia de taças de cristal da Boêmia, comia em pratos de porcelana de Sévres e talheres de prata. Para ela não havia estações do ano, mas só uma eterna primavera, cheia de luz, flores e perfumes. Esse mundo, onde sussurravam as sedas, tinha os seus especiais habitantes, e um deles era a jovem condessa Bárbara. Ela não conhecia a outra face da vida, mas sabia que além do mundo encantado em que vivia, havia outro mais comum. Da sua existência tinha conhecimento, pois gostava de olhar pela janela da carruagem que a transportava pelas ruas, do vagão que a levava à Viena, ou mesmo da janela da sua casa. Este quadro, de longe, apresentava-se-lhe pitoresco, e até simpático. Via os aldeões arando a terra, caminhando devagar atrás do cavalo esquálido; carroças com os vendedores de frutas e verduras; um velho quebrando pedras na estrada; mensageiros caminhando depressa alhures; famílias compostas de pai, mãe muito gorda e quatro filhos que, em dupla, segurando-se pela mão, atravessam a rua. A jovem Bárbara não acreditava no amor e nem no casamento. – Não existe felicidade nesta união - dizia ela - e ouvindo o que lhe contavam as amigas recém-casadas, adquiriu mais horror ao casamento. 324 Portanto, já estando com 18 anos, Bárbara tiranizava os pretendentes com desprezo. Príncipes, nobres, magnatas eram por ela afastados com indiferença; assim procedendo por longo tempo, causou solidão em sua volta. Admiravamna e adoravam-na só de longe, pois ninguém se arriscaria à desdenhosa recusa. Realmente, apareceram homens jovens e lindos, ricos e com títulos de nobreza, mas por infelicidade, nenhum possuía as qualidades desejadas por ela. E assim passaram-se mais alguns anos. De repente, surgiu a notícia de que o conde estava falido, e de toda a legião de pretendentes só sobraram um barão, um marechal e o general Kisselef, ricos, influentes, mas os três já velhos, com mais de 60 anos. Bárbara viu alarmada que a situação estava ficando fora do seu controle. Resolveu diminuir a escala de suas exigências quanto aos pretendentes. E, apesar do general despertar nela incontrolável aversão, aceitou a idéia de se casar com ele. Era rico, influente, poderoso. Ela fechava os olhos quanto à sua idade e nacionalidade, sabia que ele era russo, mas desta vez aceitaria, reconhecendo como é difícil viver longe dos salões e da sociedade alegre. A tia Catarina, irmã do conde, veio ao seu quarto saber sobre a sua decisão. - Ele é pessoa já idosa, tem a idade do teu pai, e na verdade não é nenhum Adônis, mas é rico e poderoso - comentou ela - e, posso te assegurar que a posição de uma bela mulher casada com um homem idoso não pertence às piores situações. E, por sua vez, o velho marido, atende-lhe todos os caprichos e é menos exigente do que o marido jovem. Pense bem, querida, quanto você pode aproveitar dispondo desta imensa fortuna - insistia a tia Catarina. - Mas tia! Ele é horrível, para ele não é necessária esposa, mas uma babá para lhe limpar a boca. Não sei se vou agüentá-lo. 325 - Reflita bem, filha, se não aceitar perderá uma ótima ocasião de ser novamente rica e poderosa, pois, como deve saber, teu pai está falido. De repente, ouviram barulho no salão de jantar, eram passos de homem, cadenciados, tranqüilos, que se dirigiam ao quarto. - Entre, pai - disse Bárbara, ouvindo batidas na porta do seu aposento, onde neste momento confabulava com a tia. Ele entrou, a jovem levantou-se da beirada da cama e o pai envolveu-a num longo abraço, beijou-a na testa e sentou perto dela. - Ouvi dizer - falou, olhando nos olhos da filha, sorrindo - que minha filha já chegou a uma decisão quanto ao casamento com o general. Singularmente, nestes olhos refletiam-se o receio e o temor do futuro. Ela aconchegou a cabeça nos ombros do pai e sussurrou: - Eu cheguei à conclusão que o senhor e a tia estão com razão. Eu devo aceitar o general. Mas maior surpresa foi ainda o fato da tranqüilidade com que o conde aceitou a decisão da filha, comentando: - O ouro dos nossos antepassados já esteve nos cofres dos tártaros, cossacos, russos, turcos e alemães. - Mas perderam-no por causa da guerra e na guerra retrucou Bárbara. - E hoje não há guerra? Só foram substituídas as armas, em vez das foices ou espadas, lutam com rublos e com diplomacia. E é esta guerra que nós vamos lutar - disse o conde Zukowski, como se fosse para si mesmo. Jogaremos o jogo deles - concluiu. Casaram-se com grande pompa: Bárbara Zukowska e o general Dimitri Pawlowitch Kisselef, governador da província de Lublinski. 326 O conde Jan Zukowski ficou sendo o sogro do governador e as festas nos seus salões continuaram a ser os acontecimentos mais importantes da cidade de Lublin. Sua filha brilhava e era o centro das atenções, reinava absol *** Tinham decorrido os primeiros minutos depois da meia-noite, quando Andrzej chegava à aldeia de Plenin (Plonka). O lugarejo era um pequeno aglomerado de casas com telhados de tabuinhas escurecidas, cobertas de musgo e fungos. Construídas à beira do caminho entre moitas de ameixeiras, ou solitárias, em volta e perto do pântano onde se acomodou a plebe pobre. Durante anos os incêndios e a pobreza traçaram uma linha invisível dividindo a aldeia. Tanto que no alto moravam os cidadãos mais abastados, e era diferente, as casas estavam perto uma da outra, com jardins na frente. Nos seus anos juvenis, Andrzej esteve várias vezes neste povoado, pois a sua mãe era parente distante de Eugenia, esposa do proprietário da hospedaria Marcin Struzyk. Ele ia até lá passar as férias escolares; neste momento, esforçava-se para reconhecer essa localidade, mas as lembranças eram confusas. À noite, ao luar, tudo adquiria formas estranhas. Entre os arbustos, nos campos e nas escarpas, estava suspensa uma nuvem branca de cerração, modificando toda a redondeza, que mais parecia um lago sem margens; para aumentar ainda mais esta ilusão, havia o coro de sapos coaxando na neblina. A noite de julho estava serena e clara, era lua cheia. Por instantes, quando os sapos emudeciam, ouvia-se o canto da codorniz por entre as plantações, e ao longe, nos alagadiços escondidos atrás dos amieiros, ressoava o zumbido dos besouros. 327 Andrzej foi seduzido pela magia desta noite. Era-lhe tão próxima e tão familiar, sentiu na alma a nostalgia e seu coração confrangeu-se de tristeza, pois ao entrar nesta aldeia adormecida, lembrou-se da sua infância e da mãe, que estava morta há mais de vinte anos, ela não resistiu à tristeza e aflição por ter perdido os três filhos. O coche seguiu pelo caminho onde se avistava uma cruz em cima de um outeiro, estava inclinada e prestes a cair. Depois da cruz começaram a aparecer as primeiras casas. Os habitantes da aldeia já estavam dormindo, e em nenhuma janela havia luz. Onde a vista alcançava, somente brilhavam na noite iluminada pelo luar os telhados das casas, que com os reflexos da lua pareciam de prata. Algumas estavam caiadas de branco e refletiam o verde da grama, outras escondidas no meio das cerejeiras, dos girassóis ou dos canteiros de fumo, apenas vislumbravam-se nas sombras. No centro da aldeia estava construída a igreja de madeira com pequena torre branca. Nos quintais, os cães ladravam com vozes sonolentas, que com o coaxar das rãs, cantos dos grilos e todos estes ecos juntos ressoando na noite de verão, mesmo assim, tinha-se a impressão de silêncio. A condução rodando devagar por entre os torrões endurecidos na estrada lamacenta entrou no final de rua salpicada de raios de luz que penetravam por entre as folhas. Na casa grande de paredes brancas, algumas janelas ainda estavam iluminadas. Era a hospedaria de Marcin Struzyk, que também era preposto do conde, na aldeia de Plenin. Quando o coche ruidosamente encostou ao lado da varanda, saiu correndo de dentro da casa um empregado, que começou a ajudar Andrzej a desembarcar. O guardião noturno aproximou-se para verificar quem era essa visita, numa hora tão tardia. O serviçal tirou da condução os pertences do hospede, e convidou-o a entrar 328 para a sala de jantar, onde lhe foi servido chá com pão preto e geléia de frutas. No cômodo espaçoso havia, encostado à parede, um armário de nogueira, ao lado, dependurado, um relógio com compridas correntes e grandes pesos, cujo cuco saía a cada trinta minutos e enchia o ar de seus trinados. Do outro lado estavam dois retratos de mulheres com vestimentas do século dezoito, e no centro da sala, havia uma mesa coberta com uma toalha branca,enfeitada com renda feita a mão, rodeada de cadeiras de espaldar alto. Este ambiente bem iluminado, cheio de vapor que se levantava do samovar, apresentava-se bem convidativo. Andrzej começou a caminhar em volta da mesa, mas o ranger dos seus sapatos feria o silêncio que ali reinava, foi então até a janela e começou a olhar através das vidraças para o pátio iluminado pelo luar. Decorridos alguns minutos, a porta da sala contígua abriu-se, e entrou uma jovem que o visitante supôs ser Helena, a filha de Marcin Struzyk, proprietário da casa. A moça estendeu-lhe a mão para cumprimentá-lo e falou: - Já fomos informados da sua vinda, por carta enviada pelo conde Zukowski, de Lublin. O senhor é o novo administrador, Andrzej Wasilewski. Meu pai está um pouco adoentado, precisou deitar-se mais cedo, mas amanhã certamente estará melhor. - Não foi minha culpa ter chegado tão tarde da noite, - informou Andrzej - tive de passar em Zamosc e Kasnystaw, verificar alguns assuntos da herdade do conde. De Zamosc até aqui são ainda uns 50 quilômetros, e depois da cheia do rio Gielczew, que inundou toda a redondeza, a estrada está muito ruim, existem poças de água e atoleiros por toda parte. 329 - Não tem por que desculpar-se, senhor! Seja bem vindo a Plenin, desejamos-lhe uma frutífera administração, - respondeu a moça. - Mas não é hora para conversa, pois já é muito tarde e estou atrapalhando o seu descanso, amanhã conversarei com o seu pai - disse Andrzej, e fez menção de recolher-se. - Está bem, desculpe-me! Stasiek vai encaminhá-lo ao seu quarto. Boa-noite - disse ela. O quarto de dormir era o mesmo em que dormia quando vinha ali em férias junto com a mãe. Então, as lembranças voltaram, e tudo se apresentou como se fosse hoje - a janela dava para o pomar e ao fundo havia um lago onde a lua cheia espelhava-se em toda plenitude. Via-se o menino de doze anos que junto com a mãe Anastazia, o irmão Henryk e a irmã Anielka, vinham de Berestecko, onde moravam, visitar os parentes em Plenin. Pela manhã, Stasiek trouxe-lhe o desjejum ao quarto, esclarecendo que o velho senhor Marcin Struzyk ainda não levantara e a senhorita tinha ido à missa. - Vá e pergunte ao senhor Struzyk a que horas terei o prazer de vê-lo. Não demorou muito tempo, Stasiek voltou dizendo: - O senhor convida-o para vir até ele. Pelo longo corredor levou-o até à sala de visitas, doutro lado da casa. Andrzej entrou, e no primeiro momento não reconheceu Struzyk, o marido de Eugenia, parente de sua mãe. Lembrava-se dele como homem bonito, na força da idade, e revia-o agora como um velho, com o rosto murcho, como uma maçã assada, onde só brilhavam os olhos muito azuis. O velho abriu os braços e exclamou: - Andrzej! Como vai, querido menino. Venha cá! – e apertou-o num forte abraço, dizendo: 330 - Quero olhar bem você, é o retrato de Anastazia, é a mais pura semelhança com a minha querida sobrinha. O tio soluçou e limpou em seguida a lágrima que lhe escorria pela face murcha. - Retrato de Anastazia!.. Tua mãe foi sempre para mim a melhor e a mais querida parente. Andrzej estava parado, confuso e admirado com a calorosa recepção, pela qual não esperava. - Como está, meu tio? – perguntou finalmente, julgando que esse tratamento seria o ideal, pois era assim que o tratava quando criança e condizia melhor com a recepção festiva que este agora lhe proporcionava. - Como estou? Já não tenho muito tempo, estou doente, fraco - respondeu o tio. E por isso, recebo você com a maior alegria em minha casa, como um pai... que você já não tem, soube tempos atrás do seu falecimento. Pobre Francisco!, eu tinha a maior admiração e amizade por ele. A tua mãe, além de parente, era muito amiga de Eugenia. Sente-se agora, caro sobrinho, sinta-se em casa e conte-me tudo sobre você. Ele sentou e narrou ao tio sobre todos fatos que ocorreram na sua vida depois da deportação para a Sibéria e a sua volta à pátria. - Você sofreu muito, não é? - Vamos esquecer isso, tudo já passou, os tempos são outros, sou casado e tenho esposa e dois filhos, preciso trabalhar e pensar no bem-estar da minha família. Agora devo incumbir-me dos deveres que me foram delegados pelo senhor conde Zukowski. Mas o hospitaleiro tio parece que não ouvia e perguntava mais. - Você sentiu-se confortável no quarto que lhe deram? Passou bem a noite? 331 - Agradeço a preocupação, mas dormi bem, tanto que levantei tarde. - Vai ficar por aqui pelo menos por uma semana? Andrzej surpreso, respondeu: - Acho que já expliquei ao tio que sou encarregado da administração das propriedades do conde, incluídas as aldeias de Plenin, Rudnik, Majdan Kobylanski, e outras situadas na gubernia de Lublinski, são mais ou menos mil morgas de terra sobre meus cuidados; preciso ser muito hábil, diligente e eficaz, para fazer jus à confiança em mim depositada pelo conde. Portanto, preciso verificar a situação real desta e outras propriedades e voltar para Lublin com urgência, para relatar ao conde tudo que ocorre a respeito da sua herdade. Também rever a minha família, que já não vejo há muitos dias. No entanto, o tio Marcin falou com cordial apreço: - Não, meu rapaz. Hoje é domingo, e além disso os sentimentos familiares devem estar acima dos interesses. Hoje saúdo e recebo você como parente, amanhã se quiser poderá tratar dos teus afazeres. E assim será. Hoje quem me visita é o Andrzej, o filho da Anastazia, e até amanhã será assim. Quem te fala agora é um parente que te ama, e assim você deve proceder. - Então que seja, rendo-me a sua vontade, mas só até amanhã. *** Logo de manhã, Andrzej e Marcin Struzyk foram ver as plantações que estavam sob seus cuidados, e que agora devia passar ao novo administrador. A rua pela qual Andrzej entrou ontem na vila de Plenin estava margeada por antigas e carcomidas bétulas plantadas em espaços desiguais. Colocadas em fileiras, com pequena distância uma 332 da outra, estavam as caixas de colméias de abelhas, que forneciam o mel para população. O coche rodou pela estrada, que de um lado apresentava uma gleba plantada de fumo e de batatinhas e do outro, uma extensa lavoura de trigo com maduros e curvados cachos, que pareciam estar dormindo com ar tranqüilo, sob plena luz do sol de verão. Entre as cerejeiras e na frente do coche, os pardais e pombas voavam em bandos; desciam sobre a estrada, para em seguida levantar vôo e em semicírculos pousar sob os galhos. Ao longe viam-se operárias caminhando por entre os trigais, mergulhadas até a cintura na plantação, de cabeças cobertas por lenços coloridos, mais parecendo flores num jardim exótico. - A colheita vai ser boa este ano? - perguntou Andrzej. - Será abundante, se Deus quiser! – respondeu o tio. Fez-se o que é possível pelas forças do homem, o resto Deus acrescenta. Você que é jovem, dou-te este conselho, que vai servir no futuro. Faça sempre o que é tua obrigação, o resto deixe por conta de Deus, só ele sabe o que nós precisamos. Feita a vistoria na lavoura, estavam voltando à Plenin, onde já aparecia a torre branca da igrejinha local, construída numa elevação do terreno, cercada de árvores frondosas de tília. Ao pé do outeiro estavam paradas várias carroças rústicas dos aldeões, coches e algumas carruagens dos mais abastados. Andrzej e o tio fizeram o sinal da cruz em frente à porta da igreja. - Essa é a nossa igrejinha, você deve lembrar-se sempre, alguns dos antigos Wasilewski estão enterrados aqui. Não acho um lugar melhor para orar do que aqui. Vieram à memória de Andrzej os anos de infância, quando vinha assistir à missa de domingo com a mãe. Aci333 ma de tudo ficava admirado como nas aldeias nada muda durante o passar dos anos; apenas as pessoas se modificam, umas mudam-se, outras evelhecem e morrem, nascem outras, e as vidas novas enquadram-se nos antigos moldes, e para o visitante que volta depois de transcorrido muito tempo, parece que tudo aconteceu apenas ontem. A igreja continua a mesma; o interior dela cheio de aldeões em roupas cinzentas, mulheres de lenços vermelhos na cabeça e as jovens com flores nos cabelos. O mesmo perfume de incenso, de velas de cera, de ervas aromáticas e suor humano. Atrás da janela crescia a mesma cerejeira, cujos ramos finos o vento, que soprava forte, jogava contra a janela, e a luz do sol entrava furtiva por entre os galhos balançantes. Só as pessoas não eram as mesmas. Andrzej ganhava cada vez mais a confiança do conde, ampliava pouco a pouco a atividade nas aldeias, fazendo-as produzir mais. Preocupava-se também com a saúde dos aldeões e suas necessidades. Construiu escolas e trouxe professores. Era benquisto pelos camponeses, que colaboravam com ele sempre que necessário. Houve um ano em que as colheitas no país todo foram escassas. Aqui e acolá já aparecia o fantasma da fome, e era fácil de deduzir que até a primavera os abastecimentos iriam esgotar-se em toda a região, e a conseqüência seria a fome. As pessoas mais esclarecidas começaram a murmurar sobre a possibilidade da proibição da exportação do trigo nacional. Alguns guardavam as colheitas do ano, outros, os que não colheram muito, compravam mais para guardar. Andrzej avisou o conde da possibilidade de faltar pão para os aldeões das suas propriedades. Ele necessitava da ordem de Zukowski para providenciar um estoque maior de grãos. Após analisar o assunto, o conde autorizou a 334 compra dos cereais, necessários para alimentar os seus trabalhadores durante o próximo ano. Na aldeia de Plenin havia um moinho; ficava à beira do rio, totalmente oculto entre os amieiros. Durante o dia sempre havia muitas carroças em frente, esperando o trigo ser moído. Discussões, risadas, gritos, misturavam-se com o ruído da água que caía em cima da roda com estrépito, compondo invulgar harmonia de vozes, que durante todo o dia alcançavam diversos tons. O mais alto era durante o meio-dia; à tarde, as vozes tornavam- se mais silenciosas, só o moinho rugia sem parar, e a água que caía em cima da roda entoava o seu cantar inalterado: aach, aach. O som que emitia parecia queixume contra a prepotência do homem que a aprisionava; a água é um elemento da natureza, vivo, livre e soberano, e muitas vezes vinga-se do homem com crueldade, formando tempestades, desabando dilúvios de chuva e arrastando tudo com as enchentes. Quando chegava a noite, o pátio ficava vazio, mas o moinho não parava de funcionar, trabalhava a noite toda. Precisava adiantar a moagem dos grãos antes que o inverno chegasse, pois com a temperatura abaixo de zero, a água congelava, a roda cobria-se de gelo e o moinho parava. Foram contratados mais homens para ajudar o moleiro Teóphilo, que era bom trabalhador, esforçava-se bastante para deixar o moinho em condições de produzir, fez consertos na roda grande, na pedra de triturar e onde mais fosse necessário; substituiu as correias, pregou as tábuas soltas do assoalho. Principalmente, atendeu a ordem do administrador Andrzej Wasilewski para que fizesse o possível, e moesse muita farinha, que seria a reserva de pão para os aldeões naquele ano de pouca colheita. 335 *** Andrzej trabalhava com afinco e dedicação na administração da herdade do conde Zukowski. Passava os finais de semana em Lublin, com Ludmila e os filhos, que já eram três: Kazimir Andrejew, um adolescente inteligente, calmo e trabalhador; Francisco parecia-se com o pai, era destemido e irrequieto; e João era o retrato da mãe, com algumas características da raça mongol, como cabelos negros, lisos e grossos, olhos semi-oblíquos cor de avelã, pele amorenada. Francisco e João faziam uma dupla de meninos inteligentes, mas muito peraltas, sempre arrumavam confusão na escola. Eram crianças sadias e alegres. Ludmila esperava ansiosa a volta do marido nos finais de semana, preparava comida especial para recebê-lo. Os dias que passavam juntos, com filhos, eram os mais gratificantes das suas vidas. Kazimir freqüentava o ginásio, mas quando houve greve e fecharam as escolas, o pai matriculou-o na Escola Noturna do Comércio. Uma ocasião, voltando da aula noturna com um colega, a patrulha cossaca fazia ronda pelas ruas; enxotavam os transeuntes com chicotes. Os dois amigos ouviram atrás de si as batidas dos cascos dos cavalos, apressaram o passo, de repente começaram a correr. Os cossacos a galope atrás deles. Entraram na esquina da casa do pai Andrzej, estavam subindo por cima do muro; o amigo pulou rápido para o pomar, Kazimir não conseguiu e recebeu uma chicotada nas costas tão violenta que rasgou a camisa em duas partes; com esse ferimento sangrando nas costas, passou diversas horas escondido, porque os cossacos de imediato revistaram todas as casas vizinhas à procura dos dois estudantes, para levá-los presos. 336 Conde Zukowski intercedeu a favor, mas aconselhou retirar os dois de Lublin por algum tempo. Andrzej levou o filho para Plenin, deixou-o na hospedaria do Struzyk, por muitos dias, até que a ferida das costas sarasse. Renasceu nele o ódio pelos invasores russos; aderiu ao comitê da organização de guerrilhas contra o governo. Reuniam-se numa casa isolada, tinham armas, esperavam pelo instrutor de tiro. Enquanto isso, os gendarmes rodearam o esconderijo; os homens começaram a pular pela janela para o quintal. Marcin Struzyk, já idoso, não conseguiu fugir, foi atingido com adaga pelas costas, por um soldado, e caiu morto. Andrzej não estava na reunião naquele dia, viajara para Lublin, levando o filho junto. Surgiram novos rumores cada vez mais persistentes de uma nova revolta no país. Andrzej, como todos os patriotas, aguardava com impaciência a realização das aspirações nacionais. No momento em que estalou a revolta de 1863, ele participou ativamente do movimento, senão como combatente, pelo menos como membro ativo do comitê local, ocultando em sua casa, sem medo dos riscos, armas, munições e uniformes destinados aos regimentos poloneses em formação. Com intuito de despistar os gendarmes do esconderijo deste material tão importante para a guerrilha, ele fechou a casa e pediu ao conde Zukowski, alguns dias de dispensa. Levou a família em férias, para Plenin. As crianças estavam precisando de um espaço para brincar. Vieram conhecer a aldeia, pois Andrzej estava pensando seriamente em mudar-se de Lublin para o interior, devido à insegurança dos próximos dias; a cidade de Lublin estava agitada pelas greves e protestos dos operários e estudantes. 337 Houve violentas repressões, prisões e mortes. Os gendarmes não vacilaram em atirar contra o povo indefeso. Fato que o estava atormentando, pois ele era um ex-deportado. Queria proteger a família, e ele também ansiava por um lugar sossegado. Durante as férias, e em contato mais íntimo com os aldeões, freqüentando reuniões, festas de igreja e casamentos, fez amigos, e se identificou com a aldeia e o seu povo. Consultou Ludmila e os filhos sobre a possibilidade da mudança para Plenin. Eles aprovaram. Os filhos do casal, Francisco, de 11 anos, e João, de 9 anos, iam estudar na Escola Paroquial do povoado. Kazimir, jovem de 17 anos, freqüentava as reuniões na aldeia, gostava de estar com a juventude local, conversar e dançar nos bailes e festas. Quando reiniciassem as aulas do Curso Médio, iria estudar em Zamosc, cidade universitária, distante 50 quilômetros de Plenin. Zamosc, foi fundada em 1580 pelo chanceler da Coroa Jan Zamojski, em estilo renascentista. Designada como residência da família Zamojski, e capital do morgado, transformou-se em grande centro de comércio e cultural, possuindo escolas de Curso Médio e Superior. No centro da cidade velha, ao redor do mercado, erguem-se preciosas construções em estilo renascentista, como a Câmara Municipal, residências e castelos da rua Armênia, onde fica o Museu de Zamosc. É uma cidade histórica. Naquele mês, realizou-se o casamento da Helena Struzyk. Depois do casamento na igreja, houve a recepção na casa da noiva. A comida e bebida foram servidos em compridas mesas armadas nas varandas e ao ar livre, que não eram retiradas, mas sempre reabastecidas com alimentos variados e carnes. A cerveja caseira era a bebida predileta do povo, portanto, era servida em grande quantidade. Os convidados se divertiam... 338 O baile começou. Os jovens, inquietos, olhavam para os lados procurando a moça mais bonita para ser seu par. Os músicos colocados no saguão, atrás das janelas abertas, tocavam um vibrante krakowiak, e alguns pares começaram a dançar. Os que estavam de pé, por não haver lugar, passaram para outra sala. Criados distribuíam vinho em taças e pão doce caseiro. O barulho da conversa enchia a casa toda, até o ultimo canto da varanda, que saía para o pomar. A alegria tomou conta de todos convidados. Então Andrzej com toda delicadeza ofereceu o braço à sua Ludmila. Na expectativa, a música silenciou por instantes. De repente os músicos tocaram um esplendido oberek, estridente, rápido. Todos aguardavam o próximo episódio. Andrzej começou dando os passos e saltos, com extrema precisão e extraordinária ligeireza. Levou o par pelo salão, dançando, deu duas voltas e parou diante dos músicos. - É como nós - gritavam os convivas. - É assim que gostamos. - Ergam o velho para cima; que bela surpresa! - Toquem músicas bem alegres para eles - falou o dançarino entusiasmado. Só agora a festa começava de verdade... Todos os jovens entraram para o salão, escolheram os pares e saíram a dançar. Nos primeiros momentos, os mais tímidos empurravam-se pelos cantos, mas breve a alegria tomou conta de todos. Por momentos essa vibrante mocidade causava a impressão de saudável, forte e belo rebanho, correndo de um a outro lado do campo. O soalho novo rangia e reboava com a batida dos saltos das botas. O tumulto da alegria bramia neles como água em ebulição. Saúde, mocidade, vida efervescente transformaram essa dança em cascatas de alegria. 339 Divertiam-se extravasando o prazer da alma, o entusiasmo pela vida. Dançavam, no total sentido da palavra, até cair. Ouviam-se apenas risos e batidas dos saltos; confundiam até a música ligeira. Abriram-se as portas e janelas, porque estava muito abafado e quente. Pelas janelas, os curiosos e admirados aldeões mais velhos olhavam imóveis, talvez com uma ponta de inveja, a dança dos jovens, relembrando os tempos idos da sua mocidade. Na festa, Kazimir conheceu uma jovenzinha de 14 anos de nome Maria Zablotska, a menina-moça encantou-o. Ela era bonita, de feições regulares, alta para sua idade, de espírito alegre. Bem o tipo de menina polonesa, de faces rosadas e nariz fino, olhos azul esverdeados, cabelos castanhos, encaracolados, caindo em cachos pelo pescoço. A blusa fina realçava a projeção dos seios da adolescente, que desabrochava como uma flor na primavera. Ele seguia com os olhos a linda menina. A tristeza oprimiu o seu coração no momento em que a viu dançando com os outros; ela estava feliz e exuberante; num momento, olhou para ele e seus olhos se encontraram; lançavam raios, irradiando pura alegria. Não se desviaram, estavam fixos um olhar no outro. Nas contradanças, ela o procurava entre os outros. Nos intervalos, entre uma dança e outra, ela passeava pelo salão com as amigas. - Você percebeu como Kazio e Maria roubavam olhares um do outro? Como se ambos estivessem com os corações em dádiva? - comentava Helena com o noivo. - Sim! Já percebi isso, devem estar atraídos um pelo outro - confirmou o noivo - veja como ele olha para ela agora! Deslumbrado, mas muito tímido no seu propósito de se aproximar dela...Veja! Lá vai ele. Kazimir tomou-se de coragem e se aproximou de Maria. Não podia, na verdade não tinha forças para desviar 340 os olhos desta visão maravilhosa. Como ela sorria, com ingenuidade de criança, no entanto, as suas palavras eram inteligentes e a séria expressão do seu rosto denotava a força da vontade própria. Convidou-a para dançar. Ela ruborizou-se e timidamente aceitou. Dançavam como se estivessem voando, leves, encantados, olhando um nos olhos do outro, fora da realidade. Dançaram assim a noite toda. Quando assim caminhavam entre a multidão, não sabendo o que conversar entre si, ousavam em cada olhar falar coisas indizíveis. Havia momentos sobrenaturais, quando estavam juntos, com os olhos mergulhados em si, encantados pelo sorriso cheio de felicidade. Os olhos dela azuis, como o céu de verão, escureciam de repente e se tornavam como raios de fogo, e por momentos faiscavam neles o rancor, tremiam desejos e a dor surgindo do nada. Não conhecendo essas emoções, ardentes, apaixonadas, inocentes, ingenuamente sensuais, que lhe percorriam rapidamente o corpo, estourava em risos inesperados, mas cortantes como adagas afiadas. Começavam alguma conversa, não se sabe por quê, aos sussurros, de tudo e nada, do céu e da terra, sem sentido nenhum. Pela primeira vez na vida, Kazimir, que era tímido, conversava alto, animado, fluente, brincalhão. Sentia-se como se estivesse embriagado. Caminhava entre as pessoas e cada vez mais abertamente procurava com os olhos a senhorita Maria. De manhã viu-a de soslaio, correu ao seu encontro, desajeitado, pegou as suas mãos, e só um momento durou esse cálido e singelo beijo... Um grito silencioso escapoulhe do peito, ela afastou-o perplexa e saiu correndo. Na cabeça do jovem, no peito, nos ouvidos, no coração, ainda soavam as notas da música, melancólicas, sen341 suais, e principalmente os sons do violino, ao longe... e o gosto dos lábios dela continuavam nos seus. Kazimir ficou parado, encostado de costas à parede. Riu alto, sem motivo, como um bobo, e com passo trôpego, saiu de lá. No outro dia de manhã, procurou por ela, estava temeroso de uma recusa. Combinaram um passeio à beira do lago na próxima tarde. Encontraram-se na ponte, sobre o córrego que desaguava na lagoa. Ela vinha conversando, como se fosse consigo mesma. - Não entendo o que estás falando - disse Kazimir, e acercou-se mais perto dela. - Quero perguntar-te, por que estás sentido comigo? Por que não me olhas mais nos olhos? – explicou ela. O sangue congelou-se nas veias do Kazimir ao falar: - Então você não vê que sou tímido? Queria dizer-te que te amo, perdidamente. Como pode ignorar este afeto? Ouça, eu não te peço nada. Diga-me apenas que me ama, entregue-me a tua alma, e eu aceito todas as condições. Entrego-te em recompensa a minha vida e vou servir-te até o último alento. Diga-me, por favor, você me ama? Esta única palavra será a minha salvação. Fale-a. Maria pegou a mão de Kazimir e encostou-a no seu peito. O coração dela batia violentamente, e ela falou: - O que você acha que ele diz? A-mo! A-mo! A-mo! - é o som que se ouve... Recobrou os sentidos ao toque das mãos suaves de Maria. Numa voz estranha, clandestina, anjo ou demônio falou pelos seus lábios, sussurrando: só ela pode ouvir essas frases insólitas, que lhe rasgavam o peito... - Vá para casa do teu pai, amanhã eu vou à Majdan Kobylanski de noite, a cavalo. Espere-me na janela que dá para o pomar. Vou bater três vezes no vidro da janela, no 342 lugar onde está desenhado um coração. Espere-me perto da janela... Promete?... Maria olhou para os olhos cheios de fulgores selvagens, nas veias saltadas do pescoço, o rosto em fogo, cabelos em desordem e rompeu em gargalhadas tão inauditas e sinceras, que ele ficou desarvorado. Kazimir encabulado, não sabia o que fazer; acompanhou o riso dela tolamente. - Desculpe-me, por favor, Maria, agi como um estúpido, é capaz de me perdoar? Esqueça o que eu disse - implorava o moço. Abraçaram-se comovidos e juraram que nada iria separá-los até o fim dos seus dias. De longe, chegavam os sons de música tocada de ouvido. O violino emitia ligeiros acordes, o violoncelo acompanhava e o clarinete soluçava enternecido. Esse dia ficou como um marco de um novo tempo, para os dois. Kazimir exultou com a idéia de mudar-se para Plenin, pois a sua namorada morava na aldeia de Majdan Kobylanski, que distava apenas cinco quilômetros da vila. Ludmila, sempre concordata, acatando as idéias do marido, aprovou a mudança. Passadas as férias, voltaram à Lublin, e Andrzej foi conversar com o conde Zukowski. - Acho a idéia excelente, você já tem uma boa economia comigo; vou vender a você 20 morgas de terra boa, que será suficiente para que faça uma excelente lavoura. Escolha uma casa confortável na vila, que será meu presente para tua família. Só tem uma condição: você não pode deixar a administração das minhas propriedades. Eu já estou velho, tenho 72 anos, estou adoentado, não vou me acostumar com outro administrador. Acertados todos os detalhes, Andrzej escolheu e demarcou a área de terra; encontrou uma casa em boas condições, espaçosa, arejada, com um lindo pomar em volta e jardim florido, próxima à igrejinha de torre branca. 343 Mudaram-se para Plenin em 1863. Andrzej estava com 51 anos. Kazimir estava feliz com a mudança, poderia ver a namorada com maior freqüência. Estava perdidamente apaixonado, e isto ocasionou uma mudança drástica na sua vida e no seu comportamento. E, de fato, iniciou-se uma nova e estranha vida para o rapaz. Ele adormecia e acordava extremamente nervoso e irritado. Processavam-se nele mudanças físicas e morais. Não tinha apetite. Uma doença incomum invadiu o seu corpo. A febre emocional consumia sua alma. O amor tomou conta dele como uma doença contagiosa, amava de corpo e alma; cada célula do seu corpo e cada palpitar do seu coração estava cheio deste sentimento. Acontecia às vezes que se transformava em matéria sem vida, estático, preso ao lugar, então, todos os esforços da vontade quebravam-se ao encontro da desesperança. Depois de alguns dias nesse estado de espírito, emagreceu, amarelou, ficou pálido, com aspecto horrível. Não se importava com nada. O olhar severo do pai não lhe importava. Apenas a lembrança do semblante da jovem Maria, que o enfeitiçara, permanecia sempre inalterável, impregnando a alma e a sua vida. Uma noite, deitado imóvel na sua cama, pensava... Os últimos rumores na casa tinham cessado. Na cozinha apagaram o fogo do fogão e a criada foi dormir. Só o grilo noturno cantava seu cantar contínuo nalgum lugar... Kazimir esperava, olhando para a escuridão. Parecia- lhe que o tempo não passava. Levantou-se e escutou com atenção. O coração martelava no seu peito como presa, jovem e forte. A cabeça estalava e o sangue pulsava nas têmporas. Antes da meia-noite, sentou-se na cama; uma força estranha colocou-o de pé como se fosse uma ordem. Vestiuse apressadamente. Segurando nas mãos as chaves do está344 bulo, empurrou a janela do seu quarto e saltou para fora. O vento frio bateu-lhe no rosto. Ria de contentamento vendo como a neve cobria as suas pegadas. Abriu a estrebaria... esperou um pouco para verificar se alguém tinha acordado. O cavalo alazão fungou diversas vezes quando o aventureiro da noite chegou perto dele; encostou o focinho úmido no seu braço. - Alazão, alazão - sussurrou, cumprimentando o animal, e ligeiro colocou o freio e a sela. Tirou o cavalo rapidamente da cavalariça, pegou as rédeas e pulou na sela. O jovem passou o portão com os cães ladrando atrás. Saiu para o campo galopando pela estrada de álamos que ia a Majdan Kobylanski; o caminho levava pela pequena elevação evitada pelos aldeões porque passava à beira do cemitério antigo; ali o vento assobiava pelos ramos dos arbustos, um lamento lúgubre; os braços das cruzes curvadas, rotas, envelhecidas, encobertas pela mata rala, pareciam clamar por socorro. Encontrou a encruzilhada onde estava fincada a coluna com a cruz de Cristo; estava agora nos limites das terras do Zablotski, perto da floresta. Quando parou por instantes, pela primeira vez, apoderou-se dele um sentimento estranho. Seria medo? Não! Não estava com medo! Chegou mais perto da casa. O sopro do vento trazia o latido dos cães anunciando que alguém estava chegando. Uma luzinha brilhava na janela entreaberta. Os olhos acostumados com a escuridão divisaram a massa escura da casa. Kazimir pulou da sela, levou o cavalo para mais longe da casa, onde o animal começou a pastar a grama da beira do caminho. E, com passos largos, atravessou a estrada, passou beirando a cerca da horta, chegou até a janela iluminada, deu mais dois passos e olhou para dentro. Ficou pasmo. Ali, a dois passos dele, estava a senhorita Maria, lia, recostada num sofá. A vela de cera ilu345 minava-lhe a linda face e os cabelos louros, soltos. Parecia que ia morrer de ansiedade embaixo desta janela. Chegou mais perto e bateu devagar três vezes no vidro. Maria levantou rápido, jogou o livro e, transtornada, olhava para a janela. Ele deu mais três batidas leves. Sentia frio no coração. A felicidade como um pássaro abatido no ar, caiu, e amorteceu na sua alma. Com olhos tristes olhava para a janela. A luz apagou-se. O jovem aventureiro da noite saiu de perto. Fechou os olhos e relembrou a imagem da sua amada. Inesperadamente, no silêncio, abriu-se uma porta; percebia-se uma pessoa saindo. Esperou ansioso; então ouviu um leve roçar, parecendo mais o murmúrio do vento. Surpreso, viu Maria caminhando descalça pela relva, como uma sombra na noite. Aproximou-se dele como uma alma invisível, como o amor. Jogou-se nos seus braços. Abraçaram-se longamente, as cabeças inclinaram-se para junto e os lábios sorveram o beijo tão desejado, ardente, inesquecível. Caminharam sem falar nada. A graça do amor preencheu os seus corações. Em certo momento, Maria parou. - Como veio até aqui ? – perguntou ela. - Vim a cavalo. - Então cumpriu o pedido daquele dia, na dança? - Sim! - Onde está o cavalo? - Deixei-o na estrada, comendo capim, vamos até lá. - Não! Tenho medo, muito medo... Kazimir inclinou a cabeça novamente à procura dos lábios dela. Beijaram-se apaixonadamente. Ele abriu-lhe a blusa e grudou os lábios no seu peito descoberto. Maria afastou a cabeça importuna com as leves mãos, mas os lábios sedentos já beijavam a sua face. Não conseguiam dizer uma só palavra. Novamente ele mergulhou os lábios nos 346 seus longos cabelos, perfumados. E quando mais uma vez inclinou-se para o seu pescoço, não encontrou resistência. Perdeu o controle, o juízo. Descobriu com os lábios o mimoso seio, e o beijava com loucura. Esse solitário e furtivo momento de prazer foi interrompido, de repente, como um golpe. Retiniu longamente o som do apito do guardião que passava. Maria tremeu e uma vez mais beijou-o rapidamente... Sumiu na escuridão... O ruído dos seus passos o vento encobriu. Os cães latindo correram em direção do intruso, que com destreza pulou na garupa do seu alazão e safou-se. Kazimir Andrejew completou 18 anos, e naquele ano foi convocado para prestar serviço militar, que era de cinco anos. Não tinha alternativa, devia se apresentar no quartel do exército russo em Lublin dentro de 7 dias. Foi designado para servir em São Petersburgo, capital do Império russo. Ao receber a notificação, desesperado, foi imediatamente procurar a namorada para lhe comunicar: - Querida! Aconteceu uma desgraça! Fui chamado para o serviço militar obrigatório. Maria, você me espera cinco anos, até eu voltar para casarmos? É muito tempo! Lembre-se das juras que fizemos! - implorava com o olhar. - Ora! Kazimir, sabe que eu te amo e esperarei por você toda a minha vida, se for necessário. Despediram-se com longos beijos; refizeram as juras de amor eterno. Kazimir, ao embarcar para Lublin, onde deveria se apresentar no quartel, queria ao menos passar em frente da casa da amada. Pesaroso, chegou perto da cerca de balaustres do quintal, parou na abertura entre dois pilares, olhou a residência, o pomar e as altas tílias. Viu o solitário terraço na sombra do velho carvalho, estava coberto de relva e escondia um banco de madeira. Ah! quanta saudade dos momentos felizes que passaram ali. Quantos beijos roubados da doce Maria! 347 Frondosos galhos de jasmim e roseiras silvestres encobriam-no, formavam cerca viva. Nos parapeitos das janelas da casa viam-se flores coloridas. Com a janela aberta, o vento balançava levemente os batentes da treliça As paredes brancas solenes e misteriosas estavam cobertas com galhos floridos das ameixeiras. O odor forte das flores, o zunido de milhares de abelhas colhendo o néctar, cigarras cantando, trinado dos pintassilgos, melros, cotovias e rouxinóis; o grande e escuro telhado coberto de musgos, tudo isso é lembrado agora; e o coração ficava apertado. Parecia estar preso por encantadas correntes, não podia mover-se do lugar. Absorvia ainda o odor perfumado do jardim e despedia-se talvez para sempre. Deveria ficar longe por longos cinco anos, e não sabia se ia voltar. Via os caminhos da sua felicidade e do amor cheios de sombras e incertezas. Enquanto a vida parecia-lhe um sonho, de repente, como que num só sopro do vento primaveril transformou-se tudo em pó. Não olhou para trás quando a carruagem moveu-se do lugar, não virou a cabeça quando passou em frente ao pomar. Não queria ver Maria, o coração não ia agüentar tanta dor. Os cavalos iam devagar, e as rodas do coche pulavam de raiz em raiz ou atolavam na areia funda e seca, que se movia pelos raios da roda como numa ampulheta... O tempo passava, célere... Precisava seguir o seu caminho... o caminho do dever... Dirigiu-se primeiro para o quartel de Lublin, e de lá até São Petersburgo, junto com outros jovens convocados, designados para servir naquela capital. A saudade aninhada no seu coração, presa como refém na corda, jazia fatigada pelo longo cativeiro. Os pensamentos de Kazimir vagavam por lugares desconhecidos perseguindo o destino a ele reservado. Para diminuir a saudade, escreviam-se cartas todas 348 as semanas durante estes longos cinco anos, reafirmando o amor que tinham um pelo outro. Em 1869, passado o prazo do engajamento nas forças armadas, Kazimir voltou para Plenin e para sua amada Maria. O reencontro do jovem casal foi algo indescritível, extravasavam a saudade em cálidos beijos e suaves carícias. Não se separavam. Após curto noivado, casaram na igrejinha local, com todo ritual tradicional. Foram morar em Majdan Kobylanski, aldeia, onde o pai de Maria, André Zablotski, tinha uma casa grande de madeira, que foi adaptada para duas residências; uma delas seria o doce lar de Kazimir e Maria. Em frente da grande habitação crescia um carvalho centenário, plantado pelo avô de André Zablotski, em cujos galhos frondosos as cegonhas e os pintassilgos faziam seus ninhos. Em volta do jardim, os canteiros cheios de flores, nos vasos e no chão e trepadeiras subindo pelo telhado. Kazimir trabalhava na terra, junto com Andrzej, seu pai, e eventualmente ajudava-o na administração da herdade do conde Zukowski. Substituía-o muitas vezes nas viagens a outras aldeias do conde. *** Em 1877 até 1878, o czar Alexandre II empreendeu a guerra contra a Turquia. Ordenou para que se organizasse um grande exército. Como milhares de homens aptos, também Kazimir Andrejew Wasilewski, reservista, com instrução, já com 32 anos de idade, foi convocado para participar da guerra na Criméia. Foi destacado para servir no almoxarifado do Pronto Socorro Militar; recebeu o n° 34, como cabo do exército. Seguiu com as tropas sob o comando do general Kutuzow, para o território conflagrado. 349 A península da Criméia situa-se na antiga Rússia Meridional, ligada ao continente pelo istmo de Perécope, entre o mar Negro e Azow. Tem 25.880 quilômetros quadrados. Cidades principais: Sinferopol, capital da Criméia, Sebastopol, Eupalúria, Yalta. De clima suave, é procurada como estação de cura e veraneio. Disputada por muitos séculos pela Rússia, Turquia, França e Inglaterra, foi a causa de muitas guerras, pelo domínio do mar Negro e acesso ao Mediterrâneo, pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos. Atualmente, é uma república autônoma da Ucrânia. Os balcânicos da Turquia eram, em sua maioria, eslavos ortodoxos; a Rússia se considerava sua protetora, incentivava os levantes nas províncias turcas dos Balcãs e na Criméia. As revoltas dos eslavos balcânicos e a repressão pelos turcos provocaram a nova invasão russa nos Balcãs. Os exércitos russos desceram o Dniester, detendose para enfrentar o inimigo, e apenas se comprometendo o estritamente necessário para evitar a perda das bagagens e provisões que eram levadas em grandes carroções. Kutuzow recebeu, por um dos seus espiões, notícias de que a infantaria turca, após ter passado pelo istmo, avançava para impedir que seus soldados se unissem às tropas provenientes de Moscou. Entretanto, numa manobra rápida, o general Kutuzow encontrou-se em Kherson com as forças imperiais que já esperavam o inimigo. Não havia ainda terminado a noite, quando o exército turco enegreceu ao longe, parecia uma nuvem de gafanhotos. Dos confins do horizonte, vaga sobre vaga, e hora a hora, aquela massa sombria se aproximava. Por detrás do khan Murat, marchavam os povos que formigavam entre o Don e as bocas do Danúbio; as hordas da Criméia, do Bielograd, de Nogai e de Constantinopla; também ali se encontravam circassianos, turcos das estepes da Silistria e da Rumânia, e um número infinito de selva350 gens guerreiros, vindos do Oural e das margens do Cáspio. Nas planícies de Kherson via-se o extenso acampamento turco. A noite veio silenciosa, quando de repente se ouviu o ribombar dos canhões do exército turco, e o assalto começou. Pareceu aos assaltados que a terra tremia nos seus fundamentos; dir-se-ia que aquela noite estrelada era do juízo final; o solo ficou juncado de cadáveres, e era raro que um não caísse sobre outro. Os vivos lutavam sobre a massa palpitante de agonizantes. As hordas tártaras corriam ao assalto; repelidas, voltavam em maior número. Kutuzow não tinha tropas de reserva. Os mesmos soldados deviam repelir os assaltos, enterrar os mortos, cavar trincheiras, reparar as brechas. Os homens das enfermarias não venciam tratar dos feridos. Soldados dormiam em pé. Molhados pela chuva, tremiam ao frio da noite e sufocavam durante o dia. Passou uma semana sem que ingerissem um alimento quente. Recebiam aguardente, bebiam misturando pólvora, para não perderem a coragem. Apenas distribuía-se meia ração, com grande descontentamento dos soldados, que, com fome, já não se batiam com tanto ardor. Alguns dias mais tarde chegaram notícias do campo de batalha. Kutuzow, depois de uma série de combates nas margens do Dnieper, concluíra com o khan da Turquia um armistício com conseqüências desfavoráveis para a Rússia. Diante da oposição unânime das grandes potências, mais uma vez a Rússia recuou. E no congresso de Berlim (1878), mesmo tendo libertado os eslavos moldavos, sérvios, búlgaros, romenos e valáquios da opressão turca, a Rússia ficou isolada, enquanto os frutos da vitória foram para a Áustria e Turquia. Kazimir Andrejew sofreu grandes vicissitudes durante a guerra, nos deslocamentos com as tropas; cuidava 351 dos feridos nas enfermarias e enterrava os mortos. Ficou doente, e em fins de 1878 voltou para casa, em Plenin. Encontrou o pai acamado, muito doente, envelhecido, sem forças. Andrzej já estava com 66 anos de idade; morreu naquele ano. Ludmila, desconsolada pela morte do marido querido, não quis ficar morando sozinha. O filho Francisco já tinha casado e morava em Krasnystaw. João, o caçula, foi convocado para o serviço militar e designado para a guarda do czar em São Petersburgo. Então chamou Kazimir, a mulher dele, Maria, e os filhos para que viessem morar com ela em Plenin. O casal tinha 7 filhos: os gêmeos André e João, Teóphilo, Nicoláu, Francisco, Estanisláu e Anastácia. Seriam 10 pessoas, mas a casa era grande e caberiam todos. Trouxeram a mudança naquela semana. Maria ficou triste por deixar os pais em Majdan Kobylanski, mas a aldeia ficava perto, podia visitá-los com freqüência. Numa tarde, após o jantar, Ludmila chamou Maria para junto de si: - Venha, querida, preciso falar-lhe, sente-se aqui perto de mim - e puxou a cadeira para perto. Pegou um estojo de veludo azul e abriu-o, tirou um cordão de ouro com pedras de âmbar amarelo engatadas em volta, colocou-o sobre o peito e com grande emoção, falou: - No dia do meu casamento, Andrzej deu-me este colar. Guardei-o sempre como uma jóia de valor inestimável, é uma relíquia para mim - disse com lágrimas nos olhos. Guarde e cuide dele como eu o cuidei. Depois, dê este colar a tua filha ou neta mais velha, ele pertence a nossa família, onde deve permanecer. Ludmila não conseguiu superar a tristeza e a saudade do marido, morreu como viveu toda vida, silenciosa e tranqüila, com um sorriso nos lábios, como se tivesse adormecido. 352 Kazimir continuou o trabalho do pai, administrando a grande herdade, que pertencera ao falecido conde Zukowski e passou a ser propriedade da sua filha Bárbara, que enviuvara recentemente. Não lhe cabendo como herança os bens do marido, e necessitando de dinheiro, logo vendeu boa parte das terras que herdou do pai, sobrando-lhe apenas algumas aldeias, inclusive a de Plenin, e umas centenas de morgas de terra de cultura. Kazimir tinha uma pequena casa comercial e açougue, anexos à casa onde moravam. O filho André era açougueiro e João, ferreiro e carpinteiro. Eles o ajudaram a construir as dependências para o comércio. Os outros filhos o ajudavam no trabalho diário da lavoura. Plantavam trigo, centeio, beterraba, batata, fumo e hortaliças. Criavam abelhas e peixes, possuíam algumas vacas e porcos. Um fato curioso a se notar, Kazimir lidava com as suas abelhas, sem proteção nenhuma, e nenhuma abelha o picava; ele sabia lidar com elas. No pomar havia macieiras, pereiras, ameixeiras e outras árvores de frutas da região, e pelo meio, soltos, andavam os gansos em fila indiana comendo ervas verdes, moluscos e vermes, dando gritos de alarme a qualquer aproximação. Os gansos são aves robustas, de bico forte, pescoço longo, asas bem desenvolvidas e pés bem conformados. Um produto importante é a carne, que é saborosa e muito utilizada na Europa Oriental, como também as penas, das quais fazem-se acolchoados (pierzyna) e travesseiros. Com essa diversidade, a propriedade tornara-se próspera. A casa onde moravam era modesta, mas havia alegria e felicidade no lar. Mãe Maria fazia esforços para embelezá-la, colocou cortinas coloridas, plantou flores no jardim, mandou caiar as paredes de branco e puxou plantas 353 trepadeiras de glicínias azuis sobre a grade da varanda; ajudada pela filha Anastazia, cuidava dos afazeres da casa. Teóphilo, 3° filho de Kazimir e Maria, trabalhava no moinho da viúva Stanislawa. O marido dela, Lukasz Browarski, tinha morrido na guerra contra o Japão. Naquela época, o governo do czar Alexandre III, recrutava jovens poloneses que eram soldados da reserva para trabalhar na construção da Estrada de Ferro Transiberiana, que começa em Chalyobinsk, aos pés dos Montes Urais, atravessa o sul da Sibéria e vai até Wladiwostok. Foi iniciada em 1891 e concluída em 1904, tem 7.873 quilômetros de extensão. Foi construída com trabalho e sacrifício de muitas vidas, em terras inóspitas, de invernos rigorosos e verões escaldantes. Além da violência por parte dos comandantes militares e dos administradores da colossal obra, juntavam-se as emboscadas dos guerrilheiros manchús e de outros povos que se opunham à ocupação das suas terras. Aleixo Nikolaievitch Kuropatkine foi o comandante do exército russo da Manchúria, durante a guerra russojaponesa. O general cometeu muitas atrocidades contra o povo local. Vingava-se ferozmente, culpando-os de traição, pela perda da cidade fortificada no golfo de Petchili e base naval de Port Artur, que se rendeu aos japoneses (só foi recuperada na 2ª Guerra Mundial). O tratado de paz foi assinado em 5 de setembro de 1905. Lukasz Browarski, assim como muitos outros soldados poloneses, foi enviado para o local mais distante, Wladiwostok, o porto militar no Mar do Japão, o ponto final da linha do Expresso Transiberiano no Pacífico, base da esquadra russa durante a guerra. Estes soldados compunham os regimentos que protegiam as fronteiras russas. Morreu em combate com os japoneses. Viveu só vinte e cinco anos (1876-1901). 354 Stanislawa ficara viúva, com um filho de dois anos de idade, de nome Boleslau. Lukasz deixara para a esposa diversas propriedades rurais, um moinho e um título de nobreza. Ela era uma pessoa de compleição frágil e de saúde delicada. Sem experiência de administração, contratou Teóphilo Wasilewski, que já administrava o moinho, para cuidar de todas suas propriedades. Teóphilo nasceu em 1873, em Plenin. Solteiro aos 28 anos, alto, esbelto, de rosto corado, cabelos castanhos e bastos bigodes, olhos azuis, era um homem bastante atraente, tinha habilidade para os negócios e talento para as invenções. Trabalhador e honesto, fez os bens de Stanislawa prosperarem. Construiu novos depósitos, comprou máquinas agrícolas e executou melhoramentos e reformas. O moinho era velho, ruidoso, como tantos que se encontravam pelas aldeias. Mas Teóphilo era diligente e inventivo. Dele dependia a produção das lavouras e do moinho. Ele discutia com os aldeões o preço e a qualidade dos grãos, determinava as trocas, e mesmo já tarde da noite, enchia os cestos de grãos, regulava as correias da transmissão, enchia os sacos de farinha e pesava; sempre estava em atividade. Assobiava por entre os dentes antigas canções, sorria às vezes para si mesmo, ou ouvia o murmurar da água correndo atrás das paredes de tábua. Apesar da aparência, a água à noite parecia mais intranqüila, derramava-se na roda dentada, parecia que carregada de ira. Entre o monótono e estrondoso ruído, Teóphilo distinguia as águas que caíam de cima da represa e com forte rugido quebravam-se na roda, emitindo um lamento como ser vivo que procura socorro contra as forças que a sujeitam e aprisionam. A vida no moinho e na aldeia corria uniforme, os dias seguiam-se sem maiores problemas, iguais, sem novi355 dades. Na companhia da viúva Stanislawa, morava uma parente sua, Marynka, que era uma pessoa alegre e espirituosa. Um dia saiu-se com esta conversa: - Stasia, você é viúva, precisa de um homem que a ajude nos negócios, e que te faça companhia; porque não casa com teu administrador Teóphilo? Ele é jovem, bonito e acima de tudo honesto e trabalhador. Você estaria bem amparada. Stanislawa sorriu e falou: - Não brinque com assunto sério - repreendeu-a, mas não conseguiu tirar essa idéia tentadora da cabeça. E se perguntava com insistência: “Será que ele casaria comigo? Sim! Não! Mas que dúvida é essa? Com certeza, devo consultar o meu cunhado Jozef, e pedir para que ele sonde essa possibilidade com Teóphilo”. No outro dia foi procurar o cunhado, que aplaudiu a idéia. Teóphilo encontrava-se no moinho e Jozef foi até lá. - Será que ela me aceitaria?- indagou Teóphilo. - Ora! Ora!, é claro que sim, faça-lhe a proposta. Jozef comentava o resultado da missão com Marynka, quando ela argumentou: - Mas o que Stasia sabe sobre os negócios? Acho que tanto quanto seu filho Boles, de 2 anos. - Sim, ela mesma nunca se interessou por isso, se não fosse seu bom administrador, teria já perdido toda sua fortuna - disse ele, e ajuntou - e ele gosta muito de Boles; vai dar um bom pai e marido. Jozef e Marynka foram os padrinhos casamenteiros, acertaram todos detalhes da união de Stanislawa eTeóphilo. Casaram-se em 1902. Formavam um casal feliz. Viveram seis anos juntos e tiveram dois filhos: Kazemira nasceu em cinco de maio de 1904, em Plenin, e Bogdan em 1906. 356 Stanislawa morreu em 1908 (nasceu em 1876), estava com 32 anos. Como era de natureza fraca, contraiu tuberculose, doença que grassava na região, devido ao inverno rigoroso daquele ano. Foi enterrada em Plenin. Teóphilo ficara viúvo aos 35 anos, tinha dois filhos para criar. O enteado de 9 anos, Boleslau, a família do pai Lukasz acolheu. Os dois órfãos Kazemira e Bogdan foram amparados pelos avós Kazemir Andrejew e Maria. *** Em 1905, no governo do czar Nicolau II, estourou mais uma insurreição na Polônia; tinha caráter libertador no sentido social e nacional. Angariava elementos de todas as camadas sociais, revoltados contra a opressão política e econômica do mais reacionário ocupante do país. Kazimir e os filhos tinham papel ativo na conspiração. Apesar de não saírem de arma em punho na rua, escondiam e ajudavam financeiramente os fugitivos políticos. O pai professava doutrinas para aqueles tempos muito avançadas, consideradas liberais e revolucionárias. Havia tradições no comportamento, de encarniçado patriotismo e ódio aos ocupantes da pátria. O pai dele, Andrzej, havia sofrido na própria pele os horrores da deportação para a Sibéria. Muitos desses guerrilheiros que o pai ajudava a enviar além da fronteira emigraram para o Brasil e encontraram-se com ele no Paraná. Mas a maior preocupação foi com o filho mais novo, Stanislaw, ele fora chamado para o exército russo, não queria ir, detestava o uniforme do inimigo e, pior ainda, seria obrigado a lutar contra os seus compatriotas. Resolveram mandá-lo em fuga para Krakow (sob ocupação austríaca). Isso era deserção; se o pegassem, seria fuzilado. Encontraram uma moça mais velha do que ele, a qual con357 cordou em desempenhar o papel de esposa em viagem de núpcias para Krakow. Mas como era comum muitos jovens convocados para o serviço militar fugirem, a polícia moscovita ficava alerta, procurando-os nos trens. Stanislaw foi preso na fronteira para “esclarecimentos”. Mandaram-no de volta para Lublin, onde precisou apresentar-se no quartel. Foi designado para servir em Warsowia; devia apresentar-se dentro de 15 dias. O moço fugitivo ficou muito chocado com o episódio por ele presenciado, no quartel em Lublin, quando foi se apresentar ao comando. Comentou em casa o acontecido: - Os recrutas estavam postados em frente do comando e um dos rapazes acendeu um cigarro. O oficial que passava viu e bateu-lhe no rosto. Se tivesse batido em mim - disse Stanislaw - imediatamente lhe retribuiria. - E irias ser preso e condenado à morte pelo Tribunal Militar! - retrucou o pai Kazimir. Não, você, filho querido, definitivamente não se adapta a esse emprego. Se você tem tanta coragem assim, então vai receber um passaporte falso, roupa, dinheiro e fuja por tua conta; se te pegarem, vai bala na cabeça pela deserção. Para casa não poderás voltar - avisava o pai. Mandaram-no para Lwow, para casa de parentes, e de lá, passaram-no pela fronteira austríaca. Assim, chegou até Krakow. Tinha o passaporte em nome de Jan Gwiderski. E o pai lhe disse : - Você chama-se Gwiderski! Se esquecer, você é um homem morto! Ficou trabalhando na cidade de Krakow até o dia de emigrar para América do Norte com seu irmão Nicolau, e com muitos outros jovens da região de Lublin, que foram em busca de trabalho e de dólares. Iriam trabalhar na construção do canal em Búfalo. Nicolau, depois de dois anos, 358 voltou para a família, pois já era casado com Anastácia Bzówka e tinha dois filhos. Stanislaw não quis voltar com o irmão para a Polônia. Era solteiro, conheceu uma jovem americana, casou-se e ficou morando em Boston nos EUA. Stanislaw era o sexto filho de Kazimir Andrejew Wasilewski e Maria Zablotska, nasceu em 1881, na aldeia de Plenin, hoje Plonka. IX OS GRYCZYNSKI Os judeus encontram-se na Diáspora desde a destruição do segundo Templo, arrasado pelo exército romano de Tito, no ano 70 d.C. A grande dispersão aconteceu, e já dura aproximadamente dois mil anos. A febre da perseguição aos judeus elevou-se durante a Inquisição, quando a tortura e a bestialidade eram tão comuns quanto a prece diária. Na Idade Média os judeus foram acusados da peste negra, feitiçaria e rituais assassinos. Eram obrigados a fugir, por sofrerem maus tratos, chacinas, expulsões das suas casas e do país em que viviam. Mas foram as Cruzadas que, em nome de Deus, se dispuseram a matar todos os judeus da Europa. Os massacres se tornaram tão violentos e sangrentos, que grupos após grupos de judeus fugiram dos nascedouros da carnificina na Espanha, Portugal, França, Itália, Boêmia, para a Europa Oriental e principalmente para a Polônia. Aqui a comunidade judaica foi bem recebida. E assim, reis poloneses outorgaram cartas-régias garantindo a liberdade religiosa e proteção para o seu trabalho. Entretanto, esta condição de segurança não durou todo tempo; iniciou-se a perseguição. Começou com o apoio da Igreja 359 Católica Romana e a ajuda dos imigrantes alemães, que competiam no comércio com os judeus. Os judeus eram necessários porque os nobres poloneses não se ocupavam com o comércio, essa atividade era desonrosa para eles. Esse mister foi confiado aos judeus, que o receberam de bom grado, pois não havia uma classe média entre a aristocracia feudal e os camponeses. Eles trouxeram consigo sua arte, ferramentas, comércio, profissões e habilidade como mercadores.No final do século XIX, o estilo de vida deles sofreu uma grande transformação nas grandes e médias cidades. Apesar de revogada a lei que limitava o seu domicílio, eles fixaramse, tradicionalmente, nos seus próprios bairros. Gradualmente, a juventude citadina e os intelectuais judeus começaram a se vestir na moda vigente, falavam em polonês, deixando de lado os ritos tradicionais. Alguns batizaram-se na religião católica, e foram assimilados pela comunidade autóctone. Essa mudança facilitou a muitos representar importante papel na política e vida cultural polonesa. Na grande leva de judeus que fugiram da Inquisição, no final do século XVI, veio para a Polônia uma família que, mais tarde adotaria o sobrenome de Gryczynski. Inicialmente estabeleceu-se em Warszawa, capital do país, com pequeno negócio. No ano de 1750 Marian Gryczynski abandonou a religião judaica e aceitou o catolicismo. No mesmo ano nasceu o seu filho varão, que foi batizado na Igreja Católica com o nome de Jozef. Viveram ali, criaram seus filhos e trabalharam no país durante séculos. Com os casamentos dos homens e mulheres da família com jovens poloneses, no decorrer do tempo houve a total assimilação. Mas ficou como herança genética: o gosto pela música, pelas artes, pelos livros, ci360 ências, misticismo e a habilidade incomum para os negócios. Os descendentes consideravam-se poloneses de corpo e alma e passaram a amar este país. Aleksander, filho de Jozef, nasceu em 1775, em Warszawa. Depois da partilha da Polônia, em 1772, e dos conseqüentes tumultos que isso ocasionou, seu pai Jozef, querendo proteger a família, retirou-se para o interior da província de Plock, para a propriedade que lá possuíam nos arredores da cidadezinha de Mazowsze, a 150 quilômetros de Warszawa e próxima da fronteira prussiana. Jozef possuía uma considerável quantidade de morgas de terra fértil e campos, herdados do bisavô. Os cereais, como trigo, centeio e gryka eram ali cultivados em grande quantidade. Da palavra gryka originou-se o sobrenome que os antepassados adotaram para a família. Passaram a chamar-se Gryczynski, e a herdade de Gryczynszczyzna. O fagópiro (gryka), trigo sarraceno ou mourisco, é originário da Pérsia, foi trazido para a Espanha pelos mouros que ali dominaram por sete séculos. Durante as perseguições da Inquisição, os judeus que fugiram para a Europa Oriental e principalmente para a Polônia trouxeram consigo as sementes deste cereal. A propriedade era próspera. No campo e nos estábulos havia gado e vacas leiteiras, produzia boa quantidade de leite, queijo e manteiga, que eram comercializados em Grudziadz. Em casa falavam em polonês com sotaque mazoviano, como nas casas vizinhas dos camponeses que moravam na aldeia, que não ultrapassava cinqüenta casas. Os aldeões trabalhavam na herdade como assalariados e meeiros. Em tempos de inquietação, os negócios diminuíam e o dinheiro sumia, e nesses anos difíceis os Gryczynski exploravam a madeira das florestas ou alugavam as pequenas aldeias. 361 A casa grande pertencia aos Gryczynski há muito tempo, e cada geração fazia melhorias a seu gosto e aumentava o numero de cômodos. Herança dos antepassados, a moradia possuía paredes de vigas grossas de sosna (pinho), as quais o carpinteiro alisara com cuidado e armara o esqueleto, colocando as vigas no horizontal, fechando os vãos com mistura feita de palha de centeio moída e argila. A construção era atarracada e esparramada. Por baixo do mesmo telhado de tabuinhas de pinho, havia a parte destinada à residência das pessoas, com diversas izbás (quartos) dispostas simetricamente, separadas pelo sien (vestíbulo), cozinha e despensa. Separado por vigas e tábuas lascadas estava o estábulo, para que, no inverno, o homem, o cavalo e a vaca aproveitassem do mesmo calor da fogueira que crepitava no meio da cozinha, num grande fogão de pedras, em cima do qual ficavam dependurados os caldeirões em tripés de ferro fundido, para cozer os alimentos e esquentar a água. A fumaça saía por uma grande chaminé acima da casa. Aleksander, que herdou a casa, reformou-a e adaptou um dos cômodos para sala de recreio, de leitura e de música. Tempos depois, como a família foi aumentando, construiu ao lado do dom (casa) antigo, que ficou destinado para depósito e estábulo, uma nova casa de dois pavimentos, moderna e confortável, de tijolos e pedras, coberta de telhas de barro; uma residência típica rural, com a frente para o terreiro e com uma grande varanda em volta. Concluída a construção da casa, a tradição mandava que deveriam mudar-se numa noite de lua cheia, entrar pela primeira vez levando uma broa de centeio, sal, vassoura, o livro de orações e um crucifixo. Os móveis foram trazidos de Warszawa. Era um belo solar, construído no meio da herdade. A família também possuía uma hospedaria na cidadezinha de Mazowsze, que era administrada pelo pai. 362 A vida transcorria tranqüila, dedicada ao trabalho, apesar dos rumores sempre presentes de rebeliões e complôs contra o regime moscovita do czar Alexandre I, que dominava no país ocupado, com mão-de-ferro. David, filho mais velho de Aleksander, nasceu em 1800. Estudava em Warszawa e trabalhava na Indústria Têxtil do amigo de seu pai, Simon Bialik. Tinha uma carreira promissora na firma. E como estudante era muito esforçado. Numa viagem a Lublin, onde fora a trabalho, conheceu uma jovem de quinze anos, bela e alegre. Assim que a viu, ficou enfeitiçado com o seu olhar, de lindos olhos azuis.A jovem de nome romântico, chamava-se Julka (Julie ta), tirou o sono de David. Tytus Wojciechowski era um cidadão pacato, funcionário público, dedicava-se com amor a criar a única filha. Surpreso com o interesse de Julka pelo jovem Gryczynski, e também para agradar a menina, convidou-o para a festa de aniversário dos seus quinze anos. Foi um acaso ou sorte mesmo do jovem David ter conhecido Julka, pois nesse momento foi traçado o seu destino. O moço estava perdidamente apaixonado. Compareceu no dia da festa, um tanto receoso e tímido. A mesa de doces estava posta e no centro um bolo enorme. Dançavam ao ritmo alegre e agitado de um krakowiak; todos estavam se divertindo muito. David pensou em convidar a jovem Julka para ser o seu par na dança. Indeciso, pensou... pensou... mas finalmente venceu a timidez, atravessou o salão e dirigiu-se a ela: - Vamos dançar senhorita Julka? - Aceito com muito prazer - disse ela com alegria. E saíram dançando pelo salão, leves, como se estivessem flutuando no ar. Os músicos começaram a tocar uma valsa lenta. Para ele era a realização de um sonho tê-la nos braços, tão próxima do seu corpo. Tremia de emoção... 363 Terminada a música, foram para a varanda tomar o ar fresco. A brisa soprava amena e as estrelas cintilavam como diamantes no céu; a lua enorme pairava iluminando tudo, proporcionando um ar de mistério e magia à noite. Ela postou-se às suas costas, e isso fez ele sentir-se pouco à vontade; voltou-se rapidamente e estendendo os braços agarrou-a num abraço apertado, beijando-a de surpresa no rosto. Mas, envergonhado, afastou-se dizendo: - Fui um idiota, por favor, perdoe-me, é que você deixa-me desnorteado. - Não é nada... gostei até... - respondeu ela rindo. David e Julka olharam um para o outro durante algum tempo e suas respirações tornaram-se irregulares... A moça estava ficando assustada diante da estranha sensação que lhe percorria o corpo todo. - É melhor que entremos - disse ela. David, possuído pela grande paixão, quis beijá-la novamente, e com olhar suplicante, murmurou: - Posso... posso de verdade?... Ela estava muito tensa para falar, apenas inclinou a cabeça, fechou os olhos, levantou o queixo e entreabriu os lábios. O jovem retesou-se, e levemente inclinado, encostou seus lábios nos lábios dela, cerrou os olhos e apertou as mãos. Foi um beijo apaixonado. - Podemos beijar-nos de novo? - perguntou David. -Talvez não devêssemos... bem, apenas mais uma vez - respondeu a moça, com as faces rubras. Desta vez, David puxou-a gentilmente e ambos se abraçaram. Foi ainda mais maravilhoso. Os braços dela envolveram-no e prenderam-no contra si, e foi como num sonho bom... que nunca deveria terminar!... - Oh! David! - sussurrou ela. Afastou-se, repentinamente, dirigindo-se para porta. - Julka!... meu amor! - gaguejou ele. 364 - Sim? - Poderei vê-la novamente? Em breve? - Sim! - respondeu, correndo para dentro do salão. Dias depois, David veio falar com o pai e pedir permissão para namorar a moça. - Você a ama?- perguntou o pai - ela é muito jovem ainda para assumir um compromisso, não é melhor esperar um pouco? Vou chamar Julka para saber a sua opinião. Julka veio apressada atender ao chamado do pai. - Filha, você realmente ama este moço? - Amo muito!, meu pai, e quero casar-me com ele respondeu com firmeza. David estava ansioso pelo consentimento para namorar, mas como a declaração da jovem foi inesperada, ele acabou pedindo a mão da moça em casamento. A cerimônia foi marcada para o início da primavera. Os pais e os irmãos de David vieram de Mazovsze para a festa do casamento que se realizou em Lublin, com grande comemoração. Os noivos estavam muito felizes, jamais duas pessoas tiveram dias tão idílicos. Amavam-se com a energia reservada para os jovens apaixonados. Depois do enlace matrimonial, os cônjuges foram morar em Warszawa, na casa nova que Simon Bialik mandou preparar para o jovem casal. Após rápida lua-de-mel, David apresentou-se no escritório central da Indústria Têxtil de Simon Bialik para inteirar-se do trabalho que ia exercer. Bialik recebeu-o afetuosamente, pegou uma cadeira e mandou David sentar. - Irei diretamente ao assunto – disse - estamos expandindo nossas operações no país. Iremos precisar de um homem de confiança para ocupar-se da supervisão das vendas do produto da nossa indústria. Se nos conhece bem, sabe que selecionamos cuidadosamente o nosso pessoal. 365 Verifiquei que você é um rapaz competente, portanto, nomeio-o como meu auxiliar direto - decidiu o proprietário. Ao final do período de treinamento na sessão de vendas por atacado, David foi designado supervisor e teria que viajar ocasionalmente, para atender a grande clientela. Julka sentia saudades de casa, o que era inteiramente natural para uma jovem que passara sua vida em Lublin, em casa dos pais. Ela nunca se queixara ao marido o quanto se sentia solitária, quando ele viajava a negócios da firma. David sentia-se feliz, muito contente com o trabalho, e com o casamento, que era maravilhoso, pois cada encontro após uma semana de viagem apagava a solidão. O carinho e o amor que esta relação proporcionava era algo inesquecível para ambos. Numa ocasião ela tentou viajar junto com ele. Foi pior do que ficar em casa. Um homem de negócios precisa ter mobilidade e nenhuma limitação de horário, nenhuma preocupação em relação à esposa esperando num quarto de hotel. Ela teve uma conversa com o David sobre a compra de uma casa em Lublin, perto dos seus pais, mas o marido não acatou a idéia. Ficava muito longe do seu local de trabalho. Julka procurou muito, muito mesmo, adaptar-se àquela vida, e ao círculo de amizades do marido. Mas não conseguia, vivia triste; só ficava contente quando ele chegava em casa. Passou-se algum tempo assim; ele viajando, voltando para casa, amando a esposa. Nestes dias ela era feliz. Os filhos foram chegando um após outro; eram crianças fortes e saudáveis; o cuidado com elas a distraía, ela sentia-se mais feliz. Após dez anos de casados, David, vendo Julka atarefada com a casa e com os filhos, mas sempre triste, motivada pela sua ausência, resolveu deixar o trabalho na Indústria Têxtil. O casal mudou-se para o interior de Mazowsze. 366 Foram criar as crianças longe dos perigos da cidade grande, lá eles teriam mais espaço para as brincadeiras infantis. E o casal ficaria sempre junto. Iriam morar na herdade que fora do seu pai Aleksander, recentemente falecido. Deixou para eles a estalagem na cidadezinha de Mazowsze; os irmãos continuaram o trabalho do pai cuidando da hospedaria e da propriedade Gryczynszczyzna. David e Julka tiveram seis filhos: Leon era o mais velho, nasceu em 1822, depois em 1824 veio Stephan, louro, de olhos azuis como os da mãe; Jan, Roman, Marcela e Feliksa vieram em seguida, com diferença de dois anos um do outro. Criaram-se na fazenda, correndo pelos campos como bezerros soltos. Eram crianças sadias, cresceram robustos como carvalhos. Quando Leon estava com 20 anos e Stephan com 18, foram convocados para o serviço militar, no exército do czar Nicolau I, assim como centenas de jovens poloneses desta idade. Os pais ficaram apavorados, pois o serviço militar russo era de cinco anos, e era obrigatório; se o recruta desertasse, o castigo era uma bala na cabeça assim que fosse resgatado, e os pais punidos severamente com o confisco dos seus bens. A situação estava desesperadora, ainda mais pela notícia de que os recrutas poloneses iriam para o front da guerra na Criméia contra os turcos e outros povos revoltados do Cáucaso. Caucásia é a região percorrida pela cadeia de montanhas do Cáucaso, que compreende uma parte da Rússia, Geórgia, Azerbaijão e Armênia, entre o Mar Negro e o Cáspio. Os povos dessas regiões eram submetidos à Rússia pela força da conquista. Constantemente organizavam guerrilhas e conspirações. O exército russo estava sempre presente nessas terras reprimindo revoltas. 367 Arregimentavam homens para o exército de todos os países ocupados, além de soldados russos. Portanto, era necessário, se convocado, seguir para o quartel e apresentar-se ao comandante. Foi como procederam os dois irmãos Gryczynski, Leon, o mais velho, e Stephan, o mais moço, quase criança ainda. Foram incorporados às tropas e nos primeiros meses receberam instrução militar. A vida no quartel era dura. Exercícios o dia todo; de tiro, corrida, de defesa, ataque e sobrevivência. Comiam pouco e mal, dormiam também apenas algumas horas. Os instrutores eram severos, muitas vezes cruéis, batiam com carabina por qualquer motivo, por mínimo deslize, sem olhar onde atingiam. Depois de intensos exercícios no quartel, os dois irmãos foram designados para seguir com o exército para o front de guerra na Criméia. Foram separados; cada um acompanhando a sua unidade. Leon, com o regimento da Infantaria, seguiu para o Cáucaso, região do Azerbaijão, mais precisamente para a cidade litorânea de Baku, no mar Cáspio. As divisões russas deviam abafar a revolta na cidade, onde os armênios, sob o comando de Szaumian, haviam organizado quatro regimentos de armênios e georgianos e convenceram o comandante do exército inglês para que colocasse a sua artilharia, infantaria e cavalaria, que juntos perfaziam 2.000 homens, para sitiar o centro do extenso povoado de Baku. A outra parte dos habitantes, que era tártara, vendo a reviravolta da situação, ficou apavorada, pois veio-lhe a lembrança da sua participação na carnificina de um ano antes, quando caíram sacrificadas as populações armênias. A previsão da catástrofe e o medo enlouqueciam os tártaros. 368 Os armênios queimaram as mesquitas junto com as mulheres e crianças tártaras que ali se refugiaram, e foram os senhores da vida e morte dos tártaros durante muitos meses. Estes, desesperados, procuraram socorro junto ao califa da Turquia. Um exército turco, sob a chefia de NuriPashá, rumou para Baku, matando e queimando as propriedades dos armênios, revestindo de cadáveres os campos próximos. A cidade de Baku encontrava-se numa situação fatal. Defendida pela artilharia inglesa e pelos regimentos armênios, achava-se sob o fogo da artilharia turca. Dias depois, chegou o exército russo para resgatar a cidade. Travou-se violenta batalha com as forças turcas, que sitiavam a capital. O comandante russo, vendo fracassar a retomada de Baku, pediu reforços para São Petersburgo.Veio o general Muraviev com tropas auxiliares, as divisões de cossacos do Dnieper e os regimentos vindos da Polônia. Ao cabo de mais alguns meses de cerco passivo, expugnou a fortaleza. O assalto foi um dos mais sangrentos na história militar russa. Os vencedores, exaustos, quase loucos de terror e fadiga, vingaram-se com uma horrenda carnificina no forte conquistado. Caíram ao todo sessenta mil homens, entre os quais vinte mil russos. As trincheiras de defesa, antes do exército inglês e da infantaria armênia, em seguida das tropas turcas, localizavam-se nas elevações do sopé da montanha, avançando além do cemitério armênio. Foram retirados todos os mortos da orla da cidade e jogados em valas comuns, fundas, pulverizadas com cal e cobertas com terra; em seguida, foi feito um aterro em forma de meio-círculo, acompanhando a formação do morro. O trabalho de remover e enterrar os cadáveres requeria muitas mãos humanas. Os homens que trabalhavam no aterro moravam provisoriamente na parte das fortifica369 ções do exército russo, construídas pelos soldados armênios, de retalhos de tábuas, trazidas ali do cais do porto de Baku. Entre outros soldados russos, Leon Gryczynski também encontrou ali um lugar para dormir. Dormia na tarimba, junto com os demais, em fileiras; alguns dormiam jogados no chão, outros ainda em estrados mais altos, perto do teto. Era um amontoado de gente miserável. A comida era cada vez pior. Leon, exausto do trabalho físico, pesado, ao qual não estava acostumado, emagreceu, ficou pálido e fraco. Não conseguia dormir, após o esforço no longo trabalho diurno. Assim que clareava o dia, já chamavam para levantar e chutavam os sonolentos e atrasados. Quase nu, sem camisa, picado pelos percevejos,piolhos e outros insetos, barbudo, com a calça rasgada e suja, descalço, com a cabeça de cabelos cumpridos e desgrenhados, cobertos com o boné de soldado, já roto, mais parecia um mendigo. A tristeza da alma o corroía. Às vezes, à noite, escapulia do galpão que fedia, com os humores mórbidos, exalados pelos vitais candidatos para cadáveres, não melhores do que os já agonizantes. Com o olhar inexpressivo, Leon olhava para longe... Passava horas mergulhado em pensamentos. Procurava o sentido da vida na sua alma, que estava tão perdida, que não a encontrava, juntava as migalhas despedaçadas com a violência da guerra. Ninguém sabia nada dele, quem era, donde vinha. Pois que os trabalhadores dessa soturna missão compunham-se de soldados russos, alemães, cossacos do Dnieper e judeus. Alienaram-no do grupo que conversava entre si, principalmente em russo. Omitiam-no e colocaram-no numa lista negra. O sobrenome de Gryczynski era pronunciado com desdém, a nacionalidade polonesa virou apelido de Polaczynski, cujo som não denotava afeto amigável. Só 370 esse apelido já era suficiente para que Leon se afastasse mais ainda do grupo de soldados, seus colegas na macabra profissão. Entre os homens que trabalhavam no sepultamento dos cadáveres nas valas comuns da encosta do morro, misturava-se e vadiava um terceiro tipo de gente – pedintes, mendigos famintos, ladrões, saqueadores, doentes e aleijados, velhas e velhos decrépitos –, por termo, toda a miséria da cidade devastada e do porto, juntando as sobras de comida jogadas pelo quartel. Os soldados jogavam a essa turba pedaços de ossos com restos de carne, migalhas de pão amanhecido, legumes e frutas passadas. Na cidade de Baku, era esse o único lugar onde essa multidão de famintos podia apaziguar a sua fome, e eles iam ali procurar os restos. Não havia trabalho. O comércio estava fechado, a vida parou e a fome terrível reinava nas ruelas solitárias. Não faltavam entre esse amontoado de gente, loucos varridos, histéricos, pessoas descontroladas, que ainda não se recuperaram dos terríveis sofrimentos do corpo e da alma durante o cerco de Baku, do bombardeio e da carnificina. Leon, durante vários dias, via no meio da multidão de miseráveis e famintos um homem que sempre ficava próximo a ele. Era um camponês russo, barbudo e cabeludo, vestido de farrapos, um boné caído sobre os olhos, alpercatas nos pés desnudos. Esse homem aparecia de manhã e cochilava em cima de um monte de pedras. Sempre ficava de cabeça baixa - cantarolava... a face coberta com as mãos, olhos fechados, cobertos com o boné, as costas curvadas... ninguém o notava. Só Leon reparou nele, e concluiu que se tratava de um excepcional, alienado do mundo. Como todos os seres anormais despertam curiosidade nas pessoas equilibradas, este chamou a atenção do moço. Quem é ele? Por que fica 371 ali e não noutro lugar? O que cantarola para si? Começou a prestar atenção. Ouviu um som monótono, repetitivo, trêmulo, estático. Compunha-se de um som e de duas sílabas, sempre repetias. Era um caso estranho, fora do comum e irritante... Chegou perto do demente e começou a escutar, e qual foi sua surpresa ao ouvir o seu nome repetido no som cantarolado. -Le... on, Le... on, Le... on... Não compreendia o porquê daquele nome ser repetido pelo estranho. Chegou ainda mais perto e fixou o olhar com interesse no desconhecido. O outro parou de cantarolar e levantou a cabeça lentamente. Naquele instante, o sangue de Leon gelou. Viu o olhar apagado de olhos azuis fixos nos seus. Surpresa, dúvida, insegurança, alegria, felicidade, tresloucado deleite – tudo encerrou-se num só murmúrio: - Stephan, meu irmão! O pobre homem, sentado em cima das pedras, negava com a cabeça, como se não conseguisse assimilar essas palavras. De novo abaixou a cabeça e cobriu os olhos azuis com o boné. Leon ficou perplexo. Encostou o peito num poste de madeira, segurando-se para não cair, crispava as mãos convulsivamente; queria ter a certeza que não estava sonhando, que realmente via aquele homem. As suas pernas tremiam... queria correr ao encontro dele... afogou o grito no peito, ficou em dúvida... assustou-se... – Será que é apenas semelhança ilusória? Mas não! Não! Por que esse indivíduo cantaria o meu nome durante tanto tempo? – raciocinou Leon. Pois estava cantarolando de novo... - Le... on, Le... on, Le... on... Um sorriso celestial deslumbrado pairava nos seus lábios, não trazia sombras, estava iluminado pelo sol da 372 felicidade. Eram os lábios do seu irmão. Era a figura do Stephan, naquele vagabundo vestido de andrajos. Leon estava parado no lugar, como que colado à terra, quando o indivíduo levantou-se pesadamente de cima das pedras, cantarolando sua singular cantiga, arrastou-se em direção menos conveniente; seguiu para a cloaca feita de tábuas brutas, entre as valas abertas destinadas aos cadáveres e a caserna dos soldados. A latrina era comum, tanto para os soldados como para os homens que enterravam os mortos. A privada situava-se em frente das valas, cheia de excremento exposto, tinha um tapume que vedava os olhos curiosos às necessidades íntimas. O mendigo, no qual Leon reconheceu o irmão Stephan, sumiu atrás daquele tapume. Mas antes de sumir olhou para trás, e com um disfarçado movimento da cabeça, chamou Leon para vir atrás dele; este voltou ao seu posto de trabalho, cavou mais um pouco de terra e jogou a pá, e ligeiro, pegou o rumo da latrina. Assim que virou atrás do tapume, mãos trêmulas agarraram-no. - Leon! Leon!, meu irmão - ouviu-se o murmúrio ansioso do homem. Agora não tinha mais dúvida. Essas eram as mãos, os olhos, a face do irmão Stephan. As cabeças encostadas dos dois jovens, com suspiro de indescritível felicidade, com gemido de saudade e dor, caíram um nos braços do outro e lágrimas de alegria rolavam pelos seus rostos. No asfixiante fedor da cloaca, dos odores de defuntos apodrecendo nas valas, eles viveram este momento sagrado do reencontro, do aconchego ao peito, do abraço dos dois nesta terra estranha e longínqua. O grito de felicidade assomava-lhes à garganta, mas deviam manter o silêncio. Pulsava neles um só coração e um só sangue corria nas suas veias. 373 De repente, ouviram passos de alguém que se aproximava. Os dois irmão se afastaram rapidamente, cada um para o lado oposto da latrina e simulando estarem urinando nas valas, trataram de não chamar a atenção dos outros; mas assim que o homem foi embora, voltaram a se aproximar. - Por que não podemos ficar juntos em público? – perguntou Leon. - Tenho medo! Os tártaros me conhecem e os russos também, pois sou desertor do exército russo. Podem me reconhecer e por vingança entregar-me ao comandante. Esse mandaria matar-me e agora não quero morrer – disse soluçando Stephan, abraçando o irmão. - Como conseguiu encontrar-me? – indagou Leon. - Encontrei... só isso basta - disse com sorriso terno. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, que nesse momento romperam as comportas do suplício da alma. Com surdos soluços encostou a cabeça no peito do irmão. Leon amparou-o com carinho e afagou a sua cabeça com mãos trêmulas, como fazia quando eram crianças. - Quando nos encontraremos outra vez? - À noite venho até aqui, fico esperando neste monte de pedras, onde fico sempre - disse Stephan. - Às sentinelas fazem ronda em volta da caserna. - Eu conheço os lugares onde passam as sentinelas da noite. Não foi só uma noite que aqui esperei pensando que podias aparecer, venho aqui após a meia-noite - informou Stephan. - E de onde você vem? – perguntou Leon. Stephan descreveu um semicírculo com a mão, abrangendo o sul. - Mas donde? – perguntou Leon. - Do mundo, do sul da Rússia. - Falaram para mim que você morreu em combate no Mar Negro - comentou Leon. 374 Nesse momento, ele uivou de alegria, como um cão. - Mas você não morreu! Não morreu! Oh!, que felicidade que sinto! - E você também está vivo, e eu estou muito feliz por encontrar-te, meu irmão – disse Stephan, abraçando-o. Graças a Deus que conseguimos encontrar-nos. - E onde você esteve todo esse tempo? - Eu vim para a Criméia com as tropas do general Suworow. Depois do infausto cerco de Sebastópolis, com a derrota que sofremos, houve uma grande desordem no regimento, aproveitei a confusão e desertei. Viajei muito, procurando-te por toda parte, assim cheguei até o Cáucaso, soube da batalha de Baku e tive esperanças de encontrar você aqui. Viajei como mendigo para não ser reconhecido esclareceu Stephan. - Você sofreu muito, não? Pobre Stephan! - Agora vamos fugir de volta para a Polônia, quer? - Oh, como quero! Voltaremos juntos, meu irmão. - Isso! Isso! Nós dois juntos, Leon! Abraçaram-se mais uma vez com toda força e ternura. Alguém vinha chegando novamente para a cloaca, Leon voltou lentamente para o seu trabalho com a pá e Stephan sumiu na sombra da paliçada. *** O domínio turco na cidade de Baku, marcado pelo bom senso e pela boa vontade, refreando os bárbaros morticínios, saques e pilhagens, não permaneceu por muito tempo. O tratado de Versalhes obrigou a Turquia a se retirar de Baku e da região, permitindo que as terras litorâneas do Mar Cáspio conseguissem uma relativa independência para a criação de um país de nome de Azerbaijão. Mas esse Estado não permaneceu por muito tempo, pois a Rússia aniquilou o povo e dominou o país. 375 Naquele outono tardio iniciaram-se os movimentos dos regimentos russos para oeste. Leon e Stephan preparavam-se para abandonar Baku. Depois da saída dos turcos, moravam juntos, vivendo na penúria, esperavam a ocasião propícia para a fuga, juntavam fundos para a viagem; trabalhavam, ganhando como e o que podiam. Com dificuldade conseguiram comprar botas, calças, camisas, jaquetas e bonés, sobretudos forrados de lã de carneiro, para enfrentar o inverno rigoroso que se aproximava. Mas ainda lhes faltava muita coisa, que para uma pessoa que saiu do estado de barbarismo é tão indispensável como camisa e calçado. Não tinham dinheiro para comprar remédios para debelar a febre e a fraqueza que os acometia, intermitente, devido ao estado de desnutrição a que foram sujeitos durante muito tempo. Juntavam dinheiro para pagar a passagem na diligência que os levaria até Kiew. Através das estepes da Ucrânia, viajariam disfarçados de mujiques. Em Kiew esperava-os um amigo conterrâneo, agente secreto político, polonês, de nome Edmund Mucha; este prometeu ajudá-los na volta para Polônia. Stephan falou-lhe sobre a sua participação na guerra da Criméia e a sua fuga do regimento russo que sitiava Sebastópolis. Do seu deslocamento através da Rússia, atravessando fronteiras, deslizando clandestino, sorrateiro, para alcançar o Mar Cáspio, onde pelas notícias, encontrava-se seu irmão. Empregou astúcia, muitos disfarces, ardis, esforços inimagináveis; fazia-se de doente, de bobo, desentendido, vasculhava, procurava rastros da passagem do irmão, seguia rumos, agüentava piadas, gracejos malévolos, todas as aflições, privações, perseguições, miséria e fome, até que disfarçado de aldeão imbecil encontrou o irmão como coveiro em Baku. Agora não podia desistir. 376 O conhecimento do país russo, após cinco anos de ali viver, sua língua, dialetos, costumes e vícios, facilitoulhe o caminho e a possibilidade de transformar-se em diversos personagens. Mas a guerra colocou no caminho dificuldades tão insuperáveis que só o amor fraterno, ilimitado, poderia superar. Esse sentimento impelia e conduzia-o na imensidão das estepes russas, onde o homem comum perdia o alento. Esse amor pelo irmão Leon dava-lhe forças quando era preciso esperar... esperar para que o perigo passasse; para a autorização de livre trânsito, a fiscalização, testemunhos diversos, fichas, controles. Tudo isso exigia paciência diante da prepotência, caprichos, má-vontade, infame prazer de prejudicar por prejudicar, diante do despotismo dos comissários, senhores absolutos, autocratas, assumindo poses de imperadores, sendo apenas simples funcionários. Esse sentimento forte de amizade pelo irmão, que buscava, e que não podia deixar nos confins da Rússia e voltar sozinho para casa, dava-lhe ânimo para resistir quando estava na prisão, quando viajava nas comitivas de mascates ambulantes, quando fazia papel de palhaço no circo, ou caminhando a pé com a multidão que se dirigia para o leste. Assim, aprendeu a mentir com perfeição, inventar aventuras jamais vividas, representar papéis, ser idiota, fanfarrão, adulador; bajulava, era servil, mas persistia sempre no intento de encontrar o seu irmão Leon, e voltar com ele para Polônia, para a casa dos pais. Aspiravam e sonhavam agora em dois. Planejavam o retorno à pátria, mas não podiam ignorar as dificuldades que encontrariam pelo caminho, até chegarem em casa. Teriam que atravessar as montanhas geladas, de ventos cortantes e desfiladeiros profundos da cordilheira do Cáucaso, na Geórgia, seguindo as trilhas beirando precipí377 cios, pela passagem de Dariel, para chegar ao Mar Negro e ao porto de Batum. Saíram de Baku acompanhando uma caravana que ia em direção à Tbilsi, capital da Geórgia. A viagem foi difícil e demorou mais de um mês para alcançarem o porto de Batúm. Em seguida, partiram a caminho de Odéssa, de navio, como dois operários que trabalhavam nas minas de manganês e ferro, e agora por causa da paralisação do trabalho estão voltando para casa em Kiew. Possuíam passaportes falsos, que conseguiram por intermédio de um funcionário que era favorável ao seu retorno, e ao suborno que lhe foi dado. Vestidos nos típicos trajes operários, conversando entre si em perfeita fala moscovita, cujos segredos possuíam num grau incomparável, eram na aparência “amigos” da ordem estabelecida. Com isso realizaram em paz a viagem de navio até Odéssa. Mas de Odéssa a Kiew eram mais mil quilômetros de distância, duma viagem exaustiva, cheia de contratempos. A segunda parte da viagem seria por terra e apresentava-se muito mais difícil. Viajaram em diligências puxadas por oito cavalos através de estradas lamacentas. O carro parava sempre, e ficava parado nas estalagens por muitos dias, até que o tempo melhorasse. Sem razão alguma detinha-se e, sem saber quando, arrancava do lugar, não dando atenção alguma para os passageiros que ficassem para trás. Precisavam estar alertas nos seus assentos, para não ficar por acaso nas estepes ucranianas. Vinham conversando no dialeto local até que perceberam a indiferença dos outros passageiros e começaram a falar em polonês. - Quanto tempo ainda levará? - indagou Stephan preocupado – será que conseguiremos chegar ao destino? - Para a Polônia? – perguntou Leon, distraído. - Sim! Sim! Para a Polônia! – respondeu. 378 - Deus há de nos proteger, e algum dia chegaremos. A viagem até Kiew prolongou-se por muitos dias. A diligência, danificada pelas más condições das estradas, foi arrastada, pelos cavalos exaustos, até o subúrbio da histórica cidades dos vikings. Mas não era esse o objetivo dos dois irmãos, portanto, precisavam trocar de personagens e de roupas. Ficaria difícil simular operários russos pretendendo viajar para a Polônia. Leon e Stephan procuraram o agente polonês, Edmund Mucha, que os ajudou, arrumando alojamento, comida e roupa, e eles transformaram-se em mujiques ucranianos, para não chamar a atenção da polícia. Os dois estavam ansiosos para conhecer Kiew, passeavam na companhia de Mucha pela cidade e admiravam as diversas curiosidades e belezas locais. Kiew e o centro da história da antiga Rússia, concentrando, desde o início da colonização eslava, uma intensa atividade política e militar. Foi a primeira capital do Estado Russo, fundado entre o rio Volga e o Oka. Em 988, o príncipe Wladimir de Kiew proclamou o cristianismo como religião do Estado; mandou construir a Igreja de Santa Sofia e o monastério de Petchersk para a residência do metropolita, chefe da Igreja Ortodoxa russa. No século XII, Kiew sofreu sucessivos ataques mongóis vindos do leste, que terminaram por conquistá-la, e por diversas vezes foi arrasada pelos exércitos tártaros. A partir de então a cidade entrou em franca decadência, perdendo sua posição hegemônica para Moscou. Foram necessários longos anos de desenvolvimento econômico e social das populações ucranianas para que a cidade recuperasse o antigo prestígio e esplendor, o que só conseguiu por volta do século XVIII, quando passou a ser capital da Ucrânia. 379 Nessa época, Catarina II transformou-a em centro militar importante, transferindo para a cidade numerosas guarnições e instalando manufaturas que forneciam material bélico e outros tipos de suprimento para o exército. Mandou construir um magnífico palácio para sua residência ocasional. E é esta cidade antiga e bela que os dois irmãos Gryczynski estavam conhecendo, na companhia do amigo Mucha. Porém, não era conveniente expor-se muito e demorar-se nesta capital de palácios de pedras brancas, residências de diversos czares russos. Tinham comida nos restaurantes públicos onde eram exigidos documentos com o registro do trabalho que executavam, mas o agente polonês tinha providenciado tudo. Esperaram em Kiew só o tempo necessário para conseguir lugar na diligência que levava diversos sobreviventes de guerra, do front nas montanhas do Cáucaso, do Mar Negro e das estepes, até a fronteira polonesa. Obtiveram os documentos necessários e, forçando, entraram na condução, que estava superlotada. Se a viagem desde o litoral do mar Cáspio era longa e sofrida, então esta de Kiew até a fronteira foi uma verdadeira tortura. No caminho por Zitomir, Rowno, na cidade ou subúrbio, no campo aberto ou na estrada pela floresta, o carro parava, nas estalagens, faziam consertos, alimentavam os cavalos, descansavam por horas ou dias inteiros. Os passageiros impacientavam-se, pediam para que se apressasse, mas o condutor, que era uma autoridade sobre os reemigrantes, explicava secamente que era necessário fazer consertos na diligência para poder prosseguir a viagem. A última parada aconteceu a dez verstas de Lwow. Por algum acaso quebraram-se duas rodas do carro, e o cocheiro avisou que não iria mais adiante por preço nenhum. Uma parte dos passageiros, os mais impacientes e os fortes 380 fisicamente, partiram a pé para a cidade fronteiriça; entre eles, estavam os dois irmãos Gryczynski. Carregavam os poucos pertences nas costas, alternando-se na carga. Chegaram a Lwow já tarde da noite. Ao procurar acomodação para dormir, encontraram abrigo na casa pobre de um alfaiate meio polonês, meio ucraniano. Pagaram-lhe o pernoite em rublos, que juntaram com esforço, durante muito tempo. Levantaram cedo e foram informar-se da partida da próxima diligência com passageiros para a Polônia. Conseguiram informação de que um comboio de diversas diligências, levando grande quantidade de reemigrantes, seguiria para a Polônia, mas assinalaram de longe que não havia mais lugar para ninguém e que de Lwow não levariam mais uma só viva alma. Os dois irmãos, preocupados, procuraram as pessoas de influência da agência de transporte para conseguir os dois lugares no comboio. Depois de andar muito, implorar e pagar uma taxa extra ao funcionário russo corrupto, conseguiram os tão desejados bilhetes que lhes davam o direito de viajar na diligência. Aguardavam a chegada do comboio, desde muito cedo. E de repente, no silêncio da madrugada, ao longe, ouviu-se o trotar surdo de inúmeras patas de cavalos, o tilintar dos sininhos e o ranger das rodas. O prenúncio desejado da chegada das diligências. Parados, os dois mantinham-se à escuta na penumbra da estação pouco iluminada, triste e vazia. O trotar aproximava-se, aumentava, crescia... Finalmente, o primeiro carroção enorme, com os cavalos soltando vapor pelas ventas, estacou na estação. Seguiram-se-lhe mais seis diligências, com as janelas e portas cobertas pela neve e gelo. Veneráveis estalactites pendiam como tufos de pêlos daquela coluna de caixas em movimento, fechadas hermeticamente. 381 Quando Leon pulou e tentou abrir uma ou outra porta das diligências, em vão forçava os dedos e torcia as mãos. Todas as portas estavam inacessíveis, cerradas. Da última carruagem avançou um homem, e ligeiro dirigiu-se à estação à procura da autoridade. Os dois irmãos atiraram-se a ele e sem perguntar quem era, encheram-no de pedidos, para que os deixasse entrar na carruagem, apresentando os bilhetes adquiridos. Confirmou-se que era o engenheiro Bariatynski, o guia condutor do comboio, mas ele não podia fazer nada, não tinha mais nenhum lugar vago em qualquer uma das carruagens. Estavam superlotadas. Em cada parada havia revista e conferência de papéis dos autorizados a viajar. Pelo contrabando mesmo de um só passageiro, havia uma ameaça de castigo sumário, com pena de morte. - Não posso, sinto muito, senhores, não posso!Ainda mais duas pessoas, não posso! - gemia o engenheiro. Aconselhava que esperassem o próximo transporte que chegaria em breve, com certeza não estaria tão lotado, e poderiam embarcar. Leon pedia, suplicava, gemia... Stephan chorava... beijava as mãos do condutor, mas de nada adiantou. Ele não podia ajudar. - Esperem o próximo, não me condenem, eu que sou também polonês, será morte certa, pois respondo com a vida pela execução correta das ordens que recebo. Os irmãos não queriam ouvir as justificativas do guia. De modo ríspido e decisivo, Leon informou que embarcaria de qualquer maneira, pois já fazia seis anos que estavam longe da pátria, lutando por uma causa que não era deles, sacrificando a vida. Que tinham o direito de voltar para sua terra, e ele os mandava esperar mais? Para uma nova recusa? Por que os outros podiam viajar e eles não? – reclamava, com voz alterada. 382 Bariatynski de novo começou a explicar que não são só eles, mas muitos outros soldados em Lwow não poderiam embarcar. Simplesmente porque não havia mais lugar nas carruagens. Enquanto eles estavam assim questionando, aproximou-se, por trás, um outro homem, também passageiro desta mesma comitiva. Ouvia a discussão calado. Quando o engenheiro respondeu com toda a prepotência, negando o embarque, o homem puxou Leon e Stephan pela jaqueta e empurrou-os para trás de uma das diligências.Virou-se e falou ao engenheiro: - Morte? Morte por levares esses dois? - Sim! Morte! – gritou o engenheiro. - Pode ser, tudo é possível, mas nós vamos levá- los. - Eu não vou levar! - gritava alto o guia - Não levo! Não levo! Está decidido! - Não é você que vai levá-los, mas eu! Jogue a culpa por cima de mim, você não sabe de nada, nunca ouviu e nem viu nada. Eu os levo em segredo e em segredo perante você os escondi. Eu respondo por eles com a minha vida. Fim! – disse o homem, com decisão. O engenheiro gesticulou, bateu os pés, gritou impropérios, ameaçou furioso, mas o outro homem magro, alto, levemente corcunda, empurrou os dois irmãos à sua frente e mandou correr até a última carruagem, subiu no degrau e com dificuldade abriu a porta, que rangia seca e congelada. Gritou para eles uma ordem: - Empurrem-se lá no fundo, embaixo dos bancos, deitem-se e fiquem quietos, nenhum suspiro, ouviram? Os dois irmãos seguiram a ordem do homem e, assim que entraram, ele fechou a porta com o cadeado e desceu os degraus. Não demorou muito o comboio seguiu em 383 frente. Os cavalos arrancaram com violência; as rodas rangeram roucamente. - Estamos viajando – sussurrou Leon. - Estamos finalmente regressando, graças a Deus falou Stephan, em voz baixa. - Está se aproximando o fim do nosso exílio. Já tinham viajado de Baku a Lwow, três mil quilômetros de distância, numa viagem exaustiva, cheia de contratempos, que durou quatro meses. Ainda tinham uns mil quilômetros de estrada para percorrer, até chegarem na casa dos pais, em Mazowsze, na Polônia. De sobretudo comprido de lã, encurvado, alto e magro, o personagem não esqueceu dos dois homens, que por sua graça embarcaram no grande carroção de suprimentos, do comboio dos reemigrantes e dos ex-combatentes. Na primeira parada, quando conseguiu um bule com água quente e um pouco de açúcar enrolado numa folha de jornal, um pedaço de pão preto e uma panela com kascha, levou tudo ao carroção de carga, escondido, para que ninguém desconfiasse. Comeram em silêncio, agradeceram com o olhar. Acreditaram que Deus havia mandado este homem para socorrê-los e, apesar de toda a dificuldade, ele trazia o alimento e água todos os dias. Recomendava murmurando para que eles se escondessem bem, porque a fiscalização podia aparecer inesperadamente. Pois, às vezes, no meio do caminho, apareciam patrulhas de policiais russos, e tudo era revistado minuciosamente. Conferiam papéis e pertences, e tudo o que era de ouro, como anéis, correntes, relógios, era confiscado. Até arroz e aveia levavam embora. Os dois irmãos mergulhavam por entre os caixotes e cobertores, ainda porque, o frio era intenso. De vez em quando aparecia o bom samaritano, misterioso, com atenção, fornecia o caldeirão de sopa ou kascha e o bule com 384 água quente. Quando um dos irmãos pedia-lhe alguma informação, colocava o dedo sobre a boca, recomendando silêncio, paciência e cuidado. Num certo dia, veio com outro homem mais velho. Entraram os dois dentro do carro de carga - confabulavam. O personagem mais velho dirigiu-se a Leon e murmurou: - Em Warszawa vão procurar um homem chamado Mariusz Zagloba. É pessoa conhecida, informem-se. Fale a ele de nós, é nosso amigo, ele vai orientá-los e protegê-los. Saíram em seguida e trancaram a porta à chave. Os irmãos não sabiam quanto tempo já tinham viajado pelos campos de neve e rios congelados, entre as florestas e estepes infinitas e vazias, silenciosos. Ainda transcorreram muitos dias de viagens, e quanto mais perto estavam dos limites da terra polonesa, as fiscalizações tornavam-se mais duras e rigorosas. Enfim, propagou-se entre os viajantes a boa nova: fronteira! As diligências pararam no meio do campo. As portas estavam fechadas. Esperavam naquela prisão ambulante pela misericórdia dos inclementes condutores. Os dois irmãos ainda estavam no interior do carroção de carga, quando apareceu o samaritano e mandou que saíssem depressa misturando-se a outros passageiros que desciam das carruagens, retirando os seus poucos pertences que tinham sobrado dos confiscos. Corriam gritando e chorando, empurrando-se, ultrapassando um ao outro pelo caminho lamacento, dirigindose às casas que apareciam do outro lado da fronteira; corriam cada vez mais rápido, como se alguém os quisesse impedir; rezando, chorando e rindo alcançavam a cerca, atrás da qual estavam diversos soldados poloneses de uniformes cinzentos e barretes azuis. 385 A multidão de gente desviava as casas da beira de estrada e dirigia-se à cidadezinha de Rawa-Russkaia, que ficava na fronteira, e já apareciam suas casas de madeira pintadas de cor-de-rosa. Os irmãos também dirigiram-se para lá. Depois da angústia, sufoco, falta de ar e de espaço no carroção de carga, fechado, os seus pulmões aspiravam ar puro com toda a força; abriam os braços para essa terra que era a sua pátria, como se abraçassem novamente a liberdade. Empurravam-se, abrindo caminho entre a multidão, num rebuliço tamanho como se fossem náufragos remanescentes, que buscavam a praia para salvar-se. O portão estava aberto, e deixavam passar as pessoas uma a uma, em fila. Chegou a vez de Leon e Stephan; apresentaram os papéis fornecidos pelo engenheiro Bariatynski, na última hora, quando já iam atravessar o portão. O oficial polonês pegou os papéis dos dois irmãos, olhou, colocou em cima da mesinha e carimbou os dois documentos. Os viajantes finalmente atravessaram o portão da divisa. Entraram na Polônia... seu país... estavam de volta... Os dois irmãos prosseguiram a viagem até a cidade histórica de Lublin, uma distância de cento e cinqüenta quilómetros pegando carona ou a pé, pois não possuíam mais dinheiro para pagar a passagem de condução. Comida e pouso iam pedindo pelo caminho. Ao chegarem em Lublin, procuraram um quarto onde pudessem ficar por alguns dias, para trabalhar em qualquer serviço que aparecesse, ganhando o suficiente para comer e comprar os bilhetes de trem para Warszawa. Ao chegarem à capital procuraram Mariusz Zagloba, o homem indicado pelo samaritano. Esse cidadão orientou-os e ajudou-os muito, pois era alto funcionário no recém-criado Ministério do Tesouro. 386 Deu aos dois irmãos emprego temporário no seu gabinete, e recomendou que dessem aula de língua russa aos oficiais naturais da Galícia, que foram transferidos para Warszawa. O senhor Zagloba especialmente queria informações a respeito da mãe dos dois moços, Julka, pois conhecera-a ainda mocinha, já havia muito tempo, na cidade de Lublin, onde moravam. Pedia que repetissem muitas vezes os diversos acontecimentos, tudo que era relativo à sua vida. Leon contava com detalhes a vida de sua mãe e Pan Zagloba concentrava a atenção em tudo o que ouvia. Sim, ouvia com lágrimas nos olhos, e uma vez durante a narrativa chorou amargamente. Os dois irmãos não podiam entender por que esse homem, que não via a mãe deles havia muito tempo, desde que ela se casara, emocionava-se e comovia-se tanto. Mas Pan Zagloba, cerimonioso e elegante burocrata, era um cavalheiro com atitudes de diplomata, pessoa meticulosa e fiel servidor; ele mesmo explicou-lhes quando conversavam intimamente. Confessou de um modo calmo e frio, como se discutisse algum negócio financeiro, sem sombra de afetação, de falsa vergonha, ou fingido sentimento, que tempos passados, na juventude, amou muito a mãe deles. E só a ela amou na vida. - Era naquele tempo um modesto funcionário do correio em Lublin. Não poderia igualar-se em condições com David, o pai deles, que chegou da capital, coberto com a aura do sucesso; era supervisor geral de vendas, da Companhia Têxtil da capital. Casaram-na com o melhor pretendente, nada de estranho... - Quem? Que pais poderiam rejeitar um tal partido? – disse. Casou-se e foi embora para sempre. Uma jovenzinha linda que nunca consegui apagar da minha lembrança, e agora só lembro o seu nome: Julieta... Julka... 387 Pan Zagloba afirmou friamente aos dois que nunca pegou na mão da mãe deles, que jamais declarou em palavras o seu amor a ela. - Uma vez... uma carta... mas isso não vem ao caso... não influiu em nada na decisão dela. Portanto, não tem nada de mais. Nunca mais a vi. Que dor, meu Deus! – disse soluçando, e grossas lágrimas caíram dos seus olhos. - Stephan é a imagem e semelhança da senhorita Julka, os seus olhos são tão azuis como os dela. Zagloba gostava de conversar com eles; fechavamse amiúde numa sala e trocavam lembranças por horas. Não havia pormenor, versão, anedota que não interessasse ao homem idoso, se fosse referente à ela. Os irmãos encontravam particular prazer nas conversas sobre a mãe. Sucedia-lhes, às vezes, que assim como Pan Zagloba a descrevia, eles viam-na jovenzinha, bela, alegre, e a reconheciam como “senhorita Julka”, pela qual havia se apaixonado até a loucura, até ao delírio, um jovem moço de Lublin. Ele falava desse sentimento puro tranqüilamente, apenas com o olhar sonhador. Esta era uma nova imagem da mãe, um retrato novo que estavam conhecendo agora, uma transformação da velha senhora sofrida, chorando em desespero ao ver partir para a guerra os dois filhos queridos. Leon e Stephan choraram sentidos lembrando-se do momento. E com ele, recordaram novamente a jovem e linda imagem da mãe. Permaneceram em Warszawa por alguns meses, mas precisavam seguir para Mazowsze, onde o velho pai David necessitava de sua ajuda no trabalho do campo e na hospedaria. O senhor Mariusz Zagloba, o único protetor deles na grande cidade, não os retinha e nem os animava a ir embora, pois sentia-se feliz na companhia dos dois moços e para ele a idéia de sua partida era uma tortura, era uma tris388 teza sem consolo. Assim resolveram logo a questão. Os dois irmãos viajariam no outro dia de manhã por navio, pelo rio Vistula até Ciechocinek, e de lá, de carruagem até a cidadezinha de Mazowsze, que distava 25 km do rio. O navio aportou no cais, em Warszawa, às 6 horas da manhã. O rio Vistula estava resplandecente com os primeiros raios do sol que nascia. Leon e Stephan não se despediram de Zagloba, pois ele detestava despedidas. Embarcaram e após algumas horas de viagem chegaram a Ciechocinek. Já na plataforma do porto, os dois irmãos procuraram um veiculo de aluguel. Encostados perto do muro achavam-se diversos fiacres. - Para onde vamos? - perguntou o cocheiro. - Para a propriedade Gryczynszczyzna – respondeu alegremente Leon. O condutor, bem vestido, cumprimentou os moços com entusiasmo, pois voltavam da guerra, felizmente salvos. Ele mesmo também voltou da guerra, intacto, pois só desempenhou a função tranqüila de ordenança de um dignitário, altamente posicionado. Anoitecia. O sol lançava os últimos raios sobre o rubro horizonte. Leon e Stephan subiram para o assento e o condutor pegou as rédeas nas mãos fortes, hábeis, e com visível satisfação, brandiu o longo chicote.Os cavalos arrancaram do pátio do cais como um raio, e rumaram pela estrada de terra. Quando os alazões tomaram alento e aparelharam o passo, a condução parecia que voava pelos campos. Era depois da chuva, a estrada estava lisa e cheia de buracos, em que ainda permanecia a água amarela de barro, mas as altas rodas do coche apenas roçavam nessas poças de água, que atiradas para longe, pareciam pérolas jogadas em cima da grama. 389 Bartosz, o cocheiro, saiu da estrada principal para um caminho lateral estreito, entre as casinhas dos camponeses, onde duas carreiras de árvores à beira da estrada dividiam os lotes. O caminho estava marcado pelas rodas das carroças que corriam paralelas, como se fossem trilhos de estrada de ferro. Cercas carcomidas, de cerne nodoso, alcançavam até a altura dos assentos do fiacre. A estrada parecia feita especialmente para o trânsito dos leves carrinhos puxados por dois velozes cavalos. O barro argiloso lançado pelos cascos dos cavalos e pelas rodas em forma de patacões, e os esguichos de água, caíam atrás da condução, que ia em disparada. O vento do outono assobiava nos ouvidos. O prazer da força da natureza, a consciência da saúde, a extraordinária energia do organismo, a feliz convivência com o movimento e a velocidade e acima de tudo a curiosidade da juventude transparecia na fronte de todos os ocupantes do coche. Correr... correr... rápido... o que haverá no final deste caminho? O que terá atrás deste pé de pereira selvagem? E o que haverá adiante ainda? O cocheiro, estalou o chicote com força. Subitamente puxou as rédeas para si. Os cavalos viraram rápido para o lado. Aconteceu o inesperado. A condução leve, correndo pela estrada argilosa, lisa, foi jogada em semicírculo, e deslizou como se estivesse em cima do gelo, bateu de lado na cerca com as rodas traseiras, perdeu o equilíbrio e tombou. As rodas giravam no ar, enquanto os passageiros foram cuspidos dos seus assentos como flechas. Bartosz, que segurava firmemente as rédeas, caiu na poça de barro mais próxima. Stephan, que não tinha nenhum apoio, caiu longe, rolou pelos canteiros plantados e só na quarta cambalhota, encontrou um obstáculo que o 390 segurou. Entretanto, Leon, no vôo do seu assento alto para o chão, bateu com os dentes na parte de trás da cabeça do cocheiro Bartosz. Por sorte os cavalos pararam, indiferentes à sorte dos seus donos, e começaram a mordiscar por entre os freios os gostosos brotos de capim. Leon ergueu-se do chão com dificuldade, procurou o seu chapéu, que estava enlameado e amassado, e em voz baixa lamentou: - Como vou me apresentar ao meu pai nessa situação? - Ai! Ai! – gritava Stephan, olhando para Bartosz, que segurava a cabeça que sangrava com a dentada de Leon. Mas com a ajuda um do outro, conseguiram juntar os ossos, e por sorte estavam inteiros. E por força da colaboração, desviraram o veículo, ajeitaram os cavalos, subiram cautelosos no coche, partiram novamente... O cocheiro instigou os cavalos, que correram duas vezes mais rápido, seguiram pelas encostas e campos úmidos, pelos vales e beira de rios, que pareciam ser estradas normais, mas eram apenas trilhas sinuosas. Já escurecia quando avistaram um belo solar antigo. Entraram num caminho ladeado de velhas árvores, e no final da alameda brilhava uma luz. - Vê, Stephan, aquela luz? - Claro que vejo. - Então, irmão, alegra-te, alegra-te.... é a nossa casa! É a Gryczynszczyzna, não reconheces? Stephan sentiu uma leve inquietação. Receava alguma coisa, e em desacordo com a sua natureza, temia algo, estava angustiado. Premonição? Os cavalos entraram no pátio largo e pararam em frente da varanda comprida. Na área profusamente iluminada, ouviam-se vozes alteradas de homens e mulheres, que chamavam: 391 - Leon, Stephan, irmãos, sejam bem-vindos! Os dois irmãos foram puxados dos seus assentos por muitas mãos ansiosas e abraçados afetuosamente. Na claridade dos lampiões e velas, distinguiam-se diversas pessoas. Uma senhora idosa, alta, magra, de movimentos enérgicos e cheia de autoridade, era a avó Elzbieta, mãe de David. Ao lado dela estava Marcela, uma moça loura de 17 anos, de lindos olhos azuis, Jan, de 16 anos, e Roman, de 14 anos, eram os três irmãos dos recém-chegados. Um senhor de meia-idade, de grisalhos e bastos bigodes caídos em volta da boca, alto e magro, denotava um caráter forte ao olhar com os olhos expressivos; era Pan David, o pai dos jovens, que os recebia com ar circunspecto e tristonho. Stephan beijou a mão de sua avó, abraçou o pai e os irmãos. Leon cumprimentava todos com um olhar de tristeza, sentia a falta de sua mãe, que falecera dois anos depois da partida deles para o front da guerra na Criméia. A conversa estava tão caótica que não se entendia nada, todos falavam ao mesmo tempo, fazendo perguntas e não esperando pela resposta, perguntavam mais ainda. Nada disso era de estranhar... Leon, primogênito da família, e o irmão Stephan, voltavam da guerra, inteiros, salvos, trigueiros, queimados pelo sol da Criméia, apesar das vicissitudes por que passaram. Estavam magros e abatidos. Entraram para a sala de jantar, onde a refeição seria servida. - Jantar! Finalmente um jantar digno dos heróis de guerra – dizia o caçula dos irmãos, e chegava à mesa olhando guloso para a tigela de sopa. - Estou morto de fome - reclamou Leon. - Ei! Vais comer! E é agora! E é hoje! 392 - Alcance-me essa sopa! Passe-me a vitela... meu Deus do céu... isso é um banquete - falava Stephan. - E a salada, você mesma preparou? - perguntou Leon à irmã. - Quanto à salada fique tranqüilo - disse Marcela. - O que você falou? - perguntou o pai, atencioso, alcançando a travessa com salada. Foi um esplêndido jantar, particularmente feito para agradar os irmãos recém-chegados. Durante o prato de peixe e dos molhos, a conversação foi muito animada. A sopa de galinha foi servida com macarrão feito pela gorda Hanka, a cozinheira. Frango assado, carne estufada, repolho em conserva e passas. Pudim de arroz doce para sobremesa. Durante todo esse tempo, a avó, sentada no largo sofá, não falou nada, seguia os netos com o olhar triste, lágrimas escorriam-lhe dos olhos azuis, pela face murcha. - A vovó Elzbieta está chorando - observou Stephan. - Vocês podem conversar e rir alto como queiram; eu choro de alegria pela volta de vocês, mas também pela ausência de Julka, a mãe de vocês – respondeu a avó. Os dois heróis bebiam tudo o que lhes era posto no copo e comiam o que lhes serviam no prato, estavam esfomeados e sedentos. Todos os escutavam com a maior atenção, quando desfiavam os seus feitos de guerra. Depois todos voltaram para a grande sala de visitas, e a conversa continuou animada. Chegaram ainda o administrador da herdade, senhor Dambicki e duas tias idosas, Aniela era viúva, e Viktoria, solteirona. A conversa animou-se mais ainda. O velho empregado Maciej não conseguia a tempo abrir as garrafas de vinho que trouxera da adega duma safra especial. Pediu ajuda a Leon. Tomaram muitas garrafas do vinho inebriante até ficarem fracos das pernas. Assim transcorreu o jantar da primeira noite na casa paterna. A alegria 393 era imensa pela volta dos heróis. Apenas a lembrança da mãe falecida colocava sombras no ambiente festivo. Stephan mais sensivel, estava tristonho, pensativo... com lágrimas nos olhos azuis. - Vocês devem estar cansados, exaustos mesmo comentou o pai - saíram de Warszawa hoje?. - Sim, saímos hoje de manhã muito cedo. - Vocês não acham que está na hora de descansarem pelo menos um pouco até amanhã cedo? - concluiu a avó, que ouvia a conversa, sentada na poltrona. - É, realmente estamos cansados - respondeu Leon. E dirigiram-se todos para o interior da casa, onde ficavam os quartos de dormir. No outro dia, já descansados, Leon e Stephan acordaram muito cedo. A chuva batia nos vidros das janelas e o vento frio assobiava lá fora, balançando os galhos das bétulas do parque. *** O solar tinha dois pavimentos, suas paredes eram de pedra, se estendia por uma área considerável, a fim de proporcionar acomodações às muitas pessoas que acompanhavam Pan David Gryczynski em suas visitas periódicas à propriedade rural. Ele morava com a família na cidadezinha de Mazowsze, sede do distrito e da paróquia e a apenas 6 quilômetros de distância da propriedade. Pan David ocupava-se da administração de sua hospedaria próspera e muito procurada na época do verão pela beleza da região dos lagos, pelos campos verdes e sua proximidade de Ciechocinek, à margem do Vistula. Da legendária cidade de Plock, capital do antigo principado, da dinastia dos Piast Mazovianos; com as ruínas do castelo e da fortaleza. Leon e Stephan tiveram uma interessante introdução na vida cotidiana da herdade rural. Na manhã do segundo 394 dia em casa, um jovem aldeão mais ou menos da idade deles apareceu no solar, em busca de uma autorização do Pan David, que, sentado numa poltrona de espaldar alto, esperava para ouvir as solicitações dos seus aldeões. - Excelência, pretendo casar-me. - Já encontrou a noiva? - Já sim, é Klementyna, a filha do sapateiro. - Ela quer casar-se com você? - Oh! sim, excelência. E ela espera que possamos ocupar a casinha que era da velha Zofia. - Zofia morreu? - Não. Ela deixou a casa... durante a parte mais fria do inverno. - Mas pode voltar. - Pode sim, excelência. Mas agora ela vive com a minha tia e sua habitação se encontra vazia. Suplico à Vossa Excelência!, permita-me ocupá-la. Ficou evidente que Pan David decidira logo no primeiro momento permitir que o rapaz se casasse com Klementyna e ocupasse o chalé vazio. Na terceira manhã, Leon andava pela aldeia, quando se encontrou com o jovem pretendente. Eles se falaram e timidamente o camponês perguntou: - O senhor Leon poderia me conceder a honra de cumprimentar a minha prometida? Leon concordou e foi levado para uma cabana perto da extremidade da aldeia. As paredes da casinha estavam decoradas alegremente, havia canteiros de flores a desabrochar em toda volta. - Klementyna! - chamou o rapaz. Uma moça de grande beleza apareceu na porta baixa; a cintura fina, os cabelos cor de linho, presos em tranças que iam até a cintura, um sorriso grande no rosto largo. Um ritmo poético na maneira como erguia a cabeça e mexia 395 com as mãos. Leon pensou que nunca conhecera antes uma moça que exprimisse com tanta intensidade a alegria de ser jovem, bonita e apaixonada pela vida. Ele notou especialmente que o vestido forrado não era de tecido comum, mas de um material escuro e aveludado, costurado com pregas largas, e enfeitado de taxas brilhantes, douradas e multicoloridas, em toda a volta da barra. Um colete bordado cingia-lhe a fina cintura. Como esse homem é afortunado, pensou Leon, enquanto se adiantava para ser apresentado à jovem. Para sua surpresa, no entanto, o camponês mostrou-se desapontado e perguntou à moça: - Onde está Klementyna? Antes que ela respondesse, ele explicou a Leon: - Esta é Anusia, irmã da minha noiva. Leon sentiu que um peso enorme tinha sido removido do seu coração. Ele passou a maior parte do tempo, nos dias subseqüentes, naquela cabana de uma só peça; linda por fora, mas humilde e quase miserável por dentro. O chão era de terra batida, os únicos móveis eram uma mesa, armário de prateleiras para um pouco de louça, bancos de três pernas, as camas encostadas na parede, e um fogão de pedras no canto; praticamente mais nada, além da bancada em que o pai consertava os sapatos. Mesmo assim, era uma das residências mais felizes da aldeia, um local de muita alegria, pois as duas filhas eram lindas, havia pão e os pais conservavam os dentes. Anusia acompanhou a irmã ao solar na manhã em que ela e seu jovem namorado se apresentaram ao Pan David, para receberem a permissão formal de casar e ocupar o chalé da velha Zofia. As irmãs formavam uma linda dupla. Klementyna, um pouco mais alta, Anusia um pouco mais risonha e alegre, dava a impressão de sempre estar sonhando com a felicidade. 396 - Tenho certeza que vai ser um bom casamento declarou Pan David ao se levantar para beijar a noiva na face rosada. As moças também apareceram juntas no sábado, quando a aldeia promoveu uma reunião, em que a filha do sapateiro e seu jovem enamorado foram festejados. Prolongaram-se as danças por três dias turbulentos, em que o violino, a flauta e o violoncelo mantiveram todos em constante movimento. Ali, Leon, Stephan e os irmãos assistiram à dança vigorosa e artística do camponês mazoviano, muito animada, natural do seu povo, cheia de coreografias. Leon notou em particular a maneira cativante com que Anusia girava o vestido pesado se levantando e voltando, ficando paralelo ao chão. Os lindos olhos faiscando, enquanto virava a cabeça para um lado e outro, movimentando os braços, ora segurando o vestido, ora agitando-os acima da cabeça, acompanhando o ritmo da música. Ela estava deslumbrante. A própria essência da juventude; a moça a flertar rindo, como a sussurrar para os rapazes da aldeia: - “Aqui estou eu, Anusia, a filha do sapateiro, a bela dançarina, clamando por amor”. O jovem Leon sentia-se perigosamente atraído por ela. Depois de dançar com Anusia por várias vezes na prolongada festa, saía a passear com ela pelos arredores da aldeia, quando o violino e a flauta paravam de tocar. Embora o pai David fosse o responsável pelos camponeses dessa aldeia, foi somente por intermédio de Anusia que Leon soube como era a vida numa aldeia. - Nós, moças jovens, somos como borboletas, belas, apenas por um pequeno espaço de tempo... - declarou Anusia, um dia, numa confissão extraordinária - depois casamos... parimos os filhos... e engordamos... perdemos um dente aqui e outro acolá, nossa face murcha... e além de 397 tudo somos analfabetas... Solteiras, somos submissas ao pai, depois, devemos obediência ao marido; não somos donas dos nossos atos e curvamo-nos ao nosso destino. Ela fez uma pausa indicando as mulheres que circulavam pela aldeia, e continuou comentando: - Já somos velhas aos 27 anos, e as nossas coloridas roupas e fitas são abandonadas. Morremos aos 38 anos e nossos maridos casam novamente, para tudo recomeçar. E assim continua indefinidamente. Leon e Anusia passaram a se afastar cada vez mais da aldeia em seus passeios. E houve o dia em que foram até o pequeno bosque de faias, por onde passava um regato, e ali ficaram sentados, com os pés dentro da água, conversando e rindo, ocultos de todos, como já acontecera com incontáveis casais antes. Deixaram que todo fluxo primaveril da paixão os envolvesse. Rolaram pela relva como animais no cio, e deixaram que a natureza exuberante que ansiava dentro deles tomasse conta dos seus corpos febris de volúpia; e a vida não perdeu a oportunidade de introduzir-se no ventre de Anusia para perpetuar-se mais uma vez. Anusia, mesmo sabendo, o escândalo que resultaria se engravidasse, não podia perder aquela oportunidade fugaz de fazer amor com um homem sensível, que sabia como ninguém proporcionar-lhe aquele prazer indescritível. A irmã Klementyna alertou-a: - Oh! Anusia, você está fazendo uma coisa muito errada e de terrível conseqüência. Nenhum homem desta aldeia vai querer você depois que ele for embora. - Não me importo! – gritou Anusia, assumindo uma atitude de desafio perante o fato. Klementyna resolveu chamar a atenção da mãe. - Anusia está se destruindo, mãe, fale com ela. 398 - O tempo implacável destrói a todas nós - declarou a mãe, sem comentar mais nada. - Ele a deixará – preveniu a irmã – e com um filho, certamente. Quando isso acontecer, sua vida vai tornar-se um inferno. Que Deus tenha piedade dela. Mas Leon não tencionava abandonar aquela moça extraordinária, tão sincera e apaixonada. Anusia era a mulher mais excitante e provocante que já conhecera. E foi então que ele teve uma idéia. Depois de uma noite insone, ele se levantou cedo, atravessou a aldeia silenciosa até a cabana do sapateiro. Bateu na porta de madeira e avisou que desejava falar com Anusia. Para sua surpresa, foi Klementyna que abriu a porta. Ela lhe disse sombriamente: - Anusia foi embora... para sempre. - Como? Mas por quê? - perguntou Leon, a angústia transparecendo na sua voz. - O administrador Dambicki esteve aqui ontem à tarde e levou-a ao solar, pensei que para falar com você, mas não era para nada disso. O Pan David disse que ela deveria deixar esta aldeia para sempre... que não tinha mais lugar para ela aqui. O administrador trouxe-a de volta e disse a todos nós: - “Se ela dormir aqui esta noite, vocês perderão o chalé e a bancada de sapateiro, inclusive o casamento da outra será proibido”. - O que aconteceu? – implorou Leon. - Preparamos uma pequena trouxa com suas roupas, seu vestido enfeitado, sua costura... e ela partiu à procura de algum lugar para morar e trabalhar. - Para onde ela foi? - Quem pode saber? - ao dizer isso, a irmã recuou para dentro da casa - o responsável por isso foi você! E agora, peço-te que vá embora. Deixe-nos em paz, ou perderei também o meu noivo e a cabana. 399 Leon voltou para casa desesperado, correu para os estábulos, pulou num cavalo já selado e destinado ao passeio matinal do Pan David. Esporeando-o cruelmente, galopou pela estrada que Anusia devia ter seguido, chamava-a em vão. Era uma trilha estreita, se estendia por clareiras floridas e perdia-se na imensidão dos campos mazovianos. Ao chegar ao ponto em que não mais se podia avistar outra aldeia, ou sequer habitação, ele compreendeu que Anusia deveria ter seguido por outro caminho para o seu exílio. Leon inclinou-se sobre a cabeça do cavalo e chorou muito... a perda do seu amor pela intransigência do pai. Os primeiros quatro dias foram sombrios, porque o pai se mostrava visivelmente contrariado com o comportamento dele, mas não lhe dirigira qualquer palavra de recriminação. Stephan mostrou-se solícito e condoído da sorte do irmão. - Ela era muito bonita e inteligente – comentou. - Alguma vez já conheceu o amor? – perguntou-lhe Leon. O amor de verdade, por uma moça maravilhosa? - Oh! Não – respondeu Stephan prontamente – ainda não sei o que é. Cavalgavam em silêncio rumo à cidadezinha de Mazowsze, residência da família. Triste e desgostoso com a atitude do pai em relação ao seu envolvimento com Anusia, o moço resolveu voltar para Warszawa e procurar o amigo Mariusz Zagloba. O pai não se pronunciou a respeito. A recepção na capital não poderia ser melhor. - Então você voltou?– falou contente o velho amigo. - Sim, desentendi-me com meu pai. Procuro a sua proteção – respondeu Leon acabrunhado. Pan Zagloba hospedou-o na sua casa e planejou darlhe trabalho no seu gabinete; mas uma inesperada ordem, vinda do Ministério da Fazenda, onde exercia a função de 400 vice-ministro, designava-o para uma viagem a Paris, para resolver negócios urgentes, referentes ao Ministério. Este fato fez Zagloba mudar de planos em relação a Leon. Tinha parentes em Lubartow, cujo proprietário atual era o conde Stanislaw Lubartowski, seu cunhado, e foi para lá que enviou o seu jovem protegido, munido de uma carta de recomendação à sua irmã Zofia e a seu cunhado. Encontrava-se também na herdade o filho mais velho do casal, Ambrozy, que voltara recentemente da guerra na Criméia. Seriam uma boa companhia um para o outro. Leon e Mariusz Zagloba despediram-se na manhã seguinte, cada um seguindo o seu caminho. *** O aposento de Leon era bastante espaçoso e alto, com as paredes caiadas de branco e teto de madeira. As janelas e a porta estavam embutidas em grossos muros, o que lembrava, na realidade, um velho parlatório, ou sala de reuniões, ou ainda, um recinto de orações. O jovem, já em excelente disposição, levantou-se cedo, lavou-se e penteou-se com cuidado, vestindo-se em seguida. Debruçou-se pela larga janela de seu quarto. A varanda, com fundação de pedras, era ainda mais alta do que o aposento. As escadas levavam para o andar superior, onde pessoas caminhavam pesadamente e conversavam. Ao abrir a porta para o jardim, Leon avistou o parque, que não notara na noite anterior, devido à escuridão. A área arborizada era extensa, descia da elevação, onde estavam localizados os quartos de hóspedes, para abaixo do solar de dois pavimentos, rodeado de plantações e duma grande piscina de água cristalina. A casa grande era de madeira, com reforçados alicerces de pedra que deviam sustentar antigamente alguma outra construção maior. No parque alinhavam-se avenidas 401 largas, que seguiam para o campo e os distantes matagais. Uma dessas alamedas tinha em volta bancos de madeira, que estavam cobertos de folhas secas, molhadas pela chuva da noite. Todas as vias e ruelas estavam cobertas de neblina úmida, que para Leon, possuía um encanto místico. Com prazer vagueava pelos longos caminhos laterais, não encontrando viva alma. Enrolado na sua capa impermeável, sentindo o calor ameno de outono, estava feliz, inebriado e saciado com a saúde física e serenidade da alma. Cantava à meia voz, para si mesmo, uma canção alegre, um tanto sem nexo quanto à letra. Já havia esquecido o seu drama de amor. Parecia-lhe que fora apenas um sonho. Pobre Anusia! Só ela estava amargando o seu deslize amoroso. Sem lar, sem trabalho, carregando no ventre o fruto deste amor ocasional, repudiada pela família, vagava pelas aldeias à procura de alguém que a acolhesse. Esse era o destino da mulher na sociedade patriarcal. Uma das ruas arborizadas com carvalhos seculares levou Leon do parque para a sede da fazenda. Entre paióis, pilhas de trigo, estábulos, cavalariças, monturos de adubo e esterqueiras. Lá havia já muitas horas, as pessoas estavam atarefadas, e quando ele passou foi cumprimentado com grande reverência. Saiu rapidamente desse local de trabalho; e não se sentiu bem com a demonstração de servilismo dos camponeses. A servidão tinha sido abolida em 1863 e ele era adepto e defensor do código Napoleônico: “ de Liberdade e Igualdade do Homem”. Caminhando por acaso, entrou no campo de hortaliças e depois num viveiro de pássaros. Noutro cercado de arame passeavam as galinhas, ciscando e cacarejando, enquanto os galos desfilavam imponentes, anunciando vez por outra a sua autoridade com comunicado barulhento. 402 As galinhas d´angola gritando: Psiakrew! Psiakrew! caminhavam em fila atrás do seu rei, fazendo grande alarido. As peruas grasnando, vasculhavam a terra atrás de minhocas, enquanto os perus eriçavam a sua plumagem dourada e abriam a cauda em leque, gaguejando os gritos selvagens, com mania de grandeza. Um magnífico pavão pousava na cerca, imóvel como se esculpido em bronze multicolorido, seguro da beleza das suas penas e do brilho metálico da sua crista. As desleixadas marrecas beliscavam a comida, sujando os bicos, patas e barrigas no cochinho baixo de madeira. Os gansos emitiam grasnidos roucos de admiração sobre tudo, não entendendo nada. Nesta comunidade havia tanta vida surpreendente que Leon formalmente ficou distraído observando aquele curioso mundo das aves. Uma cena muito cômica veio atrapalhar a sua contemplação. Apareceu nas proximidades dos viveiros e dos galinheiros uma senhorita delgada, magra, flexível como uma vara de marmelo, hóspede ou pensionista da mansão. Saiu da casa onde Leon havia pernoitado; era com certeza, recém-chegada da cidade, parente de algum oficial, porque de maneira citadina ficava surpresa com tudo o que via na fazenda; parava perto do cercado, enchia de perguntas todos que passavam por perto dela. Descalça, e com as saias arregaçadas até os joelhos, observando tudo, a jovem entrou no meio das galinhas d‟angola, cujo bando todo pôs-se a gritar. O que ela fez a esse espécime africano, não se sabe. De repente, aconteceu um fato inesperado e curioso: o líder mais velho, de pescoço inclinado, desproporcional, e pequena cabecinha azul, de crista eriçada, o paxá daquele barulhento harém, jogouse em cima da frágil senhorita, com as garras afiadas e o bico perigosamente aberto. 403 Pulava do chão até a cintura da jovem, muda de espanto. A cauda da ave, sempre virada para baixo, agora tornou-se mais uma arma do atacante feroz. A saliência azul da cabeça, inclinada para trás, era uma nova garra para ataque. O estridente grito das galinhas d´angola, praguejando: -Psiakrew! Psiakrew! Psiakrew! - e o ataque súbito desta colônia cinzenta, que com inúmeras garras, esporões e bicos, apavorou tanto a jovem que com grito de pânico, que abafou até o barulho da ave, lançou-se à fuga. Pernas, mãos, cordões, cintos, fitas, tranças, babados da calçola, voavam no ar, e o choro desesperado enchia a atmosfera de outono. A ave não se deu por vencida, não se deixou iludir com esta demonstração de capitulação, mas atirou-se na corrida atrás da menina em fuga, com gritos do bando, que cada vez mais enchia-se com perigosos acentos de guerra. Apavorada, a jovem correu rumo às acomodações da casa, cada vez mais rápido. Finalmente chegou à larga varanda, do lado do pátio. Gemendo e chorando chamava por socorro, subindo as escadas e os corredores, até que no alto, bateu a porta atrás de si. Silenciou, afinal, na segurança do quarto. A ave pintada ainda nem aí parou. Correu valente atrás da vítima até a varanda de alicerces de pedra, pulou para dentro, foi até a escada e parou ameaçadora perante os degraus, onde a perseguida tinha sumido da sua vista, e por muito tempo ainda anunciava ao mundo a sua vitória, desafiando a todos com o grito: Psiakrew! Psiakrew! Trabalhadores, mulheres dos cômodos, moças da fazenda, há muito tempo que não tinham tal diversão. Alguns homens deitavam no chão, de tanto rir, olhando a cena. Mesmo quando a ave, de rabo curto, cheia de triunfo e glória, voltava da perseguição até a sua comunidade, a habitante da cidade grande não ousou sair do quarto. 404 O frio do outono, no entanto, penetrou nos ossos de Leon, que observava a cena, divertido. Resolveu voltar ao solar, conhecê-lo de dia, beber e comer algo quente. Tinha, apesar de tudo, sincera intenção de repartir as impressões matutinas com a senhorita Angelina, e acima de tudo, saber dela quem fora tão valentemente atacada pela ave africana. Pensava até em conhecer a parte vencida e trocar idéias a respeito de galinhas d´angola. Em silêncio deu a volta no solar, porém, não encontrou ninguém. Todas as janelas estavam ainda fechadas, e o silêncio imperava no interior da casa. Todos ainda estavam dormindo. A residência da fazenda era muito grande, com o telhado em quebradas. Embaixo deste telhado, estendiam-se ramos de trepadeiras floridas. Encontrando as já conhecidas escadas, Leon subiu e entrou na varanda principal; a porta do lado da varanda estava aberta, levava para a sala de jantar, onde na véspera tinham jantado. Estava vazia. E já fora retirado tudo que lembrava a festa do dia anterior. O fogo ardia no fogão de pedras, e a chama aquecia o recinto. A visão do crepitar da lenha, diante do frio da manhã, proporcionava um bem-estar melancólico. A contemplação do fogo trazia à mente recordações, devaneios, sonhos, o sofrimento da alma, pensamentos do passado, turvas resoluções do insensato, do vivido e do sonhado – constituía o verdadeiro peso da existência, é como olhar ao redor e reconhecer o jugo da sorte. Pois ele tinha vivido um amor intenso, sonhado com o futuro ao lado da bela Anusia, e no entanto, tudo ruiu, como ceifado pelo destino. Mas esses momentos de nostalgia foram logo perturbados e ele teve uma pausa nos seus pensamentos. A porta abriu-se e entrou na sala de jantar a jovem Angelina em pessoa. Vestida com desabilee - que na verdade era uma camisola curta e transparente. 405 Dormiu, pelo que parecia, próxima ao refeitório e veio direto da cama esquentar-se ao fogo. Calçava macias pantufas sem meias, os cabelos soltos emaranhados. Parada em frente do fogão, Angelina começou a fazer exercício abaixava e espichava -se, flexionando os braços e as pernas. Certamente, no intuito de se aquecer ao fogo, levantava a curta camisola e de novo cobria-se quando esquentava de mais. Cantarolando e balançando-se no ritmo da canção, penteava os longos e dourados cabelos. Executava com a perna direita e a esquerda leves passos, em direção ao fogo, como se estivesse só, em cena, e dançava em ritmo lento, para a alegria da platéia sentada abaixo, no andar térreo. Leon estava fascinado com este espetáculo, mesmo que não estivesse sentado no rés do chão, como os outros, mas no interior da sala. Nunca teve diante de seus olhos formas de mulher tão harmoniosas e belas, de carnes firmes, juvenis. Cada movimento da junta do corpo da moça era pleno, de fascinante encanto. Todavia, era embaraçosa demais a longa exposição da jovem beleza. Portanto, o moço, depois de refletir, tossiu e falou alegremente: - Temo que o seu cabelo possa pegar fogo, então... – não teve tempo para terminar a frase, alertando-a sobre o perigo do fogo, porque Angelina deu, de repente, um grito igual à menina que fugia da galinhola, e correu para a porta com tanto ímpeto, que por pouco não a arrancou das dobradiças. A velha e deformada porta ainda durante muito tempo balançou e gemeu nos apavorados ganchos. O fogo da lareira parecia contorcer-se, estourando de rir com redobrada força, como se lá no fundo realmente estivesse uma multidão muito alegre aplaudindo a peripécia de Angelina. Leon não sabia se continuaria sentado no mesmo lugar, ou se envergonhado, levantava e ia embora. 406 Ficou. O velho empregado Wojtus viu o hóspede sentado no sofá, preocupou-se, quase chorou: - Mas como! Ainda não trouxeram o desjejum, e o visitante, querido amigo e parente dos senhores, espera? – questionava o mordomo. Ocupou-se logo em mandar servir o café da manhã. Trouxeram cestas com broa de centeio, pão doce, biscoitos, brioches, mel, confituras, conservas, sucos, omelete de ovos, salame, fatias de presunto, café com leite, manteiga e queijos. A mesa parecia posta para banquete. Leon estava com fome, portanto, deixando de lado a boa educação, não esperou pelos hospedeiros, começou a servir-se das delícias que estavam sobre a mesa. Ao perguntar se ninguém da casa tinha levantado ainda, o velho Wojtus respondeu: - Todos estão dormindo ainda, a senhorita Angelina já tinha levantado, mas voltou para a cama porque não se sentia bem. - Verdade? Ela adoeceu? – afligiu-se, como se não soubesse de nada. - Parece... dor de cabeça. Febre, por causa da mudança do tempo - respondeu o mordomo. Mas nem todos estavam dormindo, porque Ambrozy, filho dos proprietários e amigo de Leon, entrou na varanda e encaminhou-se à sala de café. Num minuto estava sentado à mesa e comia com grande apetite. Após ter saciado a fome, levantou-se e dirigiu-se à sala ao lado, onde encontrou Wojtus, ao qual perguntou: - Onde está a senhorita Angelina? Ainda dorme? - Sim, a nobre senhorita parece hoje adoentada. - Está de cama? - Deus nos livre! Não está acamada, mas indisposta. - Entendo! Pensei convidá-la para cavalgar conosco! Então, Leon, vai comigo? - perguntou Ambrozy. 407 - Mas claro que vou!- respondeu Leon prontamente. Saíram ruidosamente para o pátio pavimentado com pedras. As cavalariças localizavam-se no final desta área. De portas abertas, o cavalariço Jedrek esperava já com os cavalos selados, prontos para montar. Ambrozy aproximouse do belo cavalo castanho, acariciou o animal no focinho e passou a mão no pêlo liso e brilhante. Tinha lágrimas nos olhos e a felicidade estampada no rosto. Musculoso, delgado e forte, o corredor de quatro anos estremecia debaixo da sela e batia com a pata nas pedras do pátio. Ambrozy pegou as rédeas e pulou na montaria. Leon acompanhou-o e saíram num galope veloz, pelo longo caminho cheio de curvas e desvios. Cavalgaram a manhã toda pelos campos verdes e floridos; voltaram esfomeados e sedentos. O lacaio Wojtus saiu ao seu encontro e com voz submissa convidou-os para o almoço, que foi servido ao meio-dia em ponto. Eram seis pessoas sentadas ao redor da grande mesa: o conde Stanislaw Lubartowski, proprietário de Lubartow, a esposa, condessa Zofia, Ambrozy, Leon, Jadwiga, sobrinha da condessa; Angelina, prima de Ambrozy, parente por parte do pai. Uma grande floreira com arranjo de flores do campo enfeitava o centro. Os lacaios se esforçavam para que os comensais fossem dignamente atendidos. Os sucos de frutas e o vinho eram servidos pelo velho mordomo Wojtus. A grande variedade de pratos com iguarias, dispostos ao longo da mesa, atiçava o apetite. O almoço transcorreu em alegre conversação entre os convidados. *** A senhorita Jadwiga Wodzinska (Jadzia) já tinha completado dezesseis anos, mas não conseguia passar da 408 quinta para a sexta série da escola pública em Lublin. E lhe aconselharam que fosse para casa e aprendesse a cozinhar. Os esforços do pai, Anton Wodzinski, alto funcionário público em Lublin, não adiantaram nada, porque realmente Jadzia não se habilitava para a sexta série, porquanto, tudo o que a professora ensinava, mesmo que ela ouvisse, imediatamente saia voando da pobre cabeçinha. O infeliz pai ficou furioso e não queria nem olhar para esta atrapalhada criatura. A mãe, Valéria, mandou a incorrigível “burra” para a mansão de verão da irmã Zofia, condessa Lubartowska. Assim, pelo menos por um pouco de tempo, ela desapareceria dos olhos do pai e do seu pesado punho. Justamente foi esta senhorita que Leon viu, quando ela fugia do ataque da vingativa galinha d`angola. Jadzia tinha uma qualidade que a justificava, tocava piano com paixão. Nada entrava na sua cabeça, só a música. Podia tocar o dia todo, não comendo nem bebendo nada – podia não dormir, e nem saber se estava viva, apenas queria que a deixassem tocar piano. Portanto, tocava... Os pais gastavam fortunas com os honorários dos mestres. Estes mexiam a cabeça e unânimes garantiam: ela tinha uma habilidade extraordinária e um ouvido assombroso. Inaudita memória para a música, um verdadeiro talento musical. A jovem Jadzia não tinha ambição, ela tocava só pelo amor à música. Embriagava-se com o som como um bêbado com aguardente. Sua vinda para Lubartow foi providencial, pois no solar havia um piano antigo, mas de cuja existência ela não sabia, e a infeliz andava vagando pela propriedade como uma ovelha perdida. Passados alguns dias da sua permanência na mansão, a tia Zofia reparou que Jadzia, quando sentada à mesa, mexia automaticamente com os dedos sobre a mesa e utili409 zava um fictício pedal. Lágrimas caíam dos olhos da “banida”, quando também simulando, tocava na mesa do escritório do tio Stanislau na ausência deste. A jovem Angelina falou sobre a saudade de Jadzia pelo seu piano e todos da casa começaram a pedir à condessa a permissão para que ela pudesse tocar no piano antigo da mansão.Tia Zofia, com alguma oposição, consentiu, e a menina Jadzia imediatamente começou a tocar... a tocar... Era-lhe permitido executar a sua arte, mas nas seguintes condições: 1º - antes do almoço; 2º - quando não houver visitas; 3º - quando ninguém estiver dormindo; 4º quando ninguém protestasse. Leon e Ambrozy, voltando do passeio pelos campos, ao entrar no grande salão, ouviram, maravilhosamente executada, a Polonaese de Chopin. Padre Lourenço, que almoçara na mansão, informou aos moços quem tocava, e contou em detalhes a história de Jadzia, porém recomendou rigorosamente para que não a atrapalhassem, que sentassem quietos no salão de jantar e tomassem alguma bebida. Mas os dois heróis que voltaram do passeio felizes e bem-humorados, estavam com outras idéias, resolveram justamente o contrário; queriam conhecer de perto a jovem pianista. Ambrozy foi o primeiro a abrir a porta da esquerda do salão, e puxou consigo o amigo. Leon imediatamente reconheceu nela a vítima da perseguição da ave africana. Estava parada em frente do antigo piano, atemorizada como uma pensionista com a entrada dos dois jovens cavalheiros. Um deles era... Oh, desespero! Ambrozy, seu primo, herdeiro de Lubartow e de todas as aldeias próximas. Fez uma reverência diante dos jovens e com tímida expressão, deu-lhes a mão, que eles apertaram com carinho. Apresentou-se melhor ali do que na fuga pelo pátio. Era uma adolescente esguia, mas já apresentando formas adultas. Tinha as pernas e os braços compridos, ca410 belos longos, louros, arrumados numa grossa trança. Nos olhos azuis uma expressão particular, profunda, assombrada, como se não fosse deste mundo. Ao insistente pedido de que não deixasse de tocar, Jadzia ficou pálida como cera. Virou-se para o lado e mexia com os dedos desesperada. Leon ficou condoído da adolescente. Lembrou-se que ele tocava piano com a mãe toda tarde, a quatro mãos, e destas lições de música adquiriu considerável experiência ao piano. Propôs a Jadzia: - Você não gostaria de tocar comigo a quatro mãos? “A dança Húngara” de Liszt? – música que ainda lembrava bem de memória. Ela concordou com aceno da cabeça. Sentaram os dois ao piano e tocaram. Assim que começaram, a jovem readquiriu não só o domínio sobre si, mas dominou também o parceiro – não falando da primazia que detinha, ao recitar a peça. O semblante da jovem transformou-se, reviveu, iluminou-se, ficou bela. Sempre que se voltava para o companheiro do piano, um invulgar brilho, o resplandecer de uma inteligência superior assomava - e o gênio da música ardia nos seus olhos azuis. Vieram ao salão todos os moradores; sentaram-se nos sofás e ouviram a música extasiados. O concerto musical foi interrompido pelo lacaio, avisando que a mesa do jantar estava posta. Jadzia suspendeu as mãos das teclas, levantou-se, obediente, silenciosa, e com mesura saiu do salão para o seu quarto. Durante o jantar, Angelina interessou-se pelos assuntos discutidos à mesa, só estava distante em relação a Leon e tratava-o com frieza e soberba. Evitava olhar para ele, e quando virava o rosto para o seu lado, as pálpebras cobriam os seus olhos. Leon queria esclarecer essa situação incômoda e não se permitia o menor sorriso ao encará-la. Relatava alegremente aos presentes a cavalgada da manhã e de propó411 sito colocava-se em situações cômicas, para com o riso, afastar o mal-estar entre os dois, mas não teve sucesso. Num certo momento, o moço ficou profundamente surpreso, pois quando procurava a paz entre os dois, ela, encontrando-se perto do armário, atrás das costas dos outros comensais, mostrou-lhe a língua, tão comprida quanto conseguiu, fazendo careta ao mesmo tempo. Essa vingança incomum praticada por Angelina foi só por um momento, após o que, com passos lentos, ela retirou-se da sala. Leon foi atrás dela. - Senhorita Angelina - disse - esqueça o acontecido, sejamos amigos sinceros. Peço-lhe por favor. - De onde tens tanta certeza da sinceridade? - Porventura não será melhor a senhorita ter aqui – e no mundo, um bom amigo? - Seria melhor, com certeza - respondeu toda rubra ter um amigo. Mas dá para acreditar num homem? - Não acredite nos homens, mas por favor, acredite em mim... - Veremos... - respondeu rindo, mas envergonhada. - Em todo caso, para o começo, paz!- disse Leon, estendendo-lhe a mão - Paz!- respondeu ela, apertando a mão estendida. Entre uma e outra excursão pela fazenda, Leon dava largas à sua curiosidade, queria travar conhecimento com a vida na sua autenticidade e essência. Escapulia para os palheiros e participava na grande operação da debulhada do trigo nas trilhadeiras movidas a força animal, sentava no celeiro ou nas cavalariças e estábulos e ficava olhando, ao aterrarem os montes de batatas e no corte de repolho para conserva. Os grandes celeiros ficavam abertos durante as colheitas. As máquinas faziam barulho com as rodas puxadas por cavalos e o vento soprava nas palhas e folheiros, le412 vantando extensa poeira. Os homens gritavam em voz alta, apressando os cavalos e dando ordens aos trabalhadores, tentando sobrepujar o ruído das máquinas. Mas apesar dos zunidos, rangidos e gritos, vencia sempre a alegre cantiga das moças que recolhiam a palha do chão amarrando-a em feixes. Leon, para ter oportunidade de agradecer à jovem Angelina pelo trabalho de passar sua roupa de passeio, ia procurá-la no salão, quando viu-a descendo a escada, cantarolando. Rápido, entreabriu a porta do seu quarto e apareceu no portal. Ela gritou de espanto, quis correr... mas ele pediulhe para que entrasse no dormitório, porque tinha uma coisa importante para lhe dizer. Angelina, olhando para todos os lados, passou para dentro na ponta dos pés. Assim que a porta fechou-se, Leon agarrou-a pela cintura e começou a dançar defronte do espelho. Ela falava baixinho: - Alguém pode ouvir o barulho, ou pode entrar e aí eu estou perdida... - Pshh... Não fale. Apenas me abrace e aperte com força. Ninguém vai nos ver - disse, rodopiando com ela. - Solte-me, alguém pode entrar e ver que eu estou com você no teu quarto... - implorava a moça. Oh!, mas nada disso adiantou, dançavam na ponta dos pés silenciosamente, sem parar. Quando ela começou a pedir com insistência para que a largasse, senão estaria perdida a sua reputação e a sua virtude, ele fechou seus lábios falantes com um longo beijo. Ela emudeceu por um longo e inesquecível momento, no peito o seu coração parou do insaciável prazer, tudo ao redor desapareceu. Mas a jovem Angelina acordouse da embriaguez do amor e com forte empurrão do cotovelo, afastou o importuno dos seus lábios, e de olhos fechados sussurrava: 413 - Por favor, o senhor não me comprometa, não me faça nada de mal! - Mal? E o amor é por acaso mal? - Peço de coração, não me faça mal. - Então a senhorita vá, avarenta... repulsiva... mas antes... só uma vez... não aqui perto da porta... venha até a cama... sente-se aqui... Ela não resistiu a ele... Leon pôs a mão abaixo da cintura dela. Angelina o abraçou enquanto ele pousava a cabeça sobre seus seios. - Preciso tanto de você - disse ele. Leon aproximou-se mais, e seu corpo tornou-se tenso e rígido, ela debruçou-se sobre ele e os dois caíram na cama. Leon começou devagar, com carícias, um contato suave, ele foi explorando a sensibilidade, os sentidos. E foi desenvolvendo e aumentando para um ritmo frenético, até se tornar desvairado, selvagem, uma orgia de prazer. O membro duro de Leon acariciava e arremetia, enchia-a por completo, até que ela sentiu vontade de gritar com o prazer intenso. Ela se achava no centro de um arco-íris. Sentia-se arrebatada por um maremoto que a elevava mais e mais. Houve uma súbita explosão dentro dela e todo o seu corpo começou a tremer. Gradativamente, a tempestade se desvaneceu. Angelina fechou os olhos e puxou Leon contra si, sentindo o coração dele bater contra o seu. Pensou: - Agora eu sei. Pela primeira vez, eu sei como é o amor. Mas o que será de mim, agora? Será que ele vai casar comigo? Se não me quiser, estarei perdida, pois não sou mais donzela - raciocinava ela. No entanto, o seu sorriso perplexo era feliz, e os seus lábios encontraram novamente outros lábios, passaram longos momentos nessa despedida. Afinal, soltou-se, acenou com a cabeça e silenciosamente abriu a porta; correu alucinada pelo corredor, em direção ao seu quarto, jo414 gou-se na cama aos prantos. Chorava pela sua virgindade perdida e pela incerteza do seu futuro. Naquela noite Angelina não dormiu. A lembrança daquele encontro reacendeu a sua inquietação. Mas ela ansiava por ele. Fechou os olhos e começou a relembrar os momentos de prazer vividos tão intensamente. Estava perdidamente apaixonada. Revirou-se no leito; grossas lágrimas cairam no seu travesseiro... Leon sentia a felicidade transbordando no seu peito, como se o beijo dado e recebido corresse ainda em todas as suas veias, queimando, até a medula dos seus ossos. Novamente estava excitado. Olhou pela janela, não havia ninguém ali. Refletiu: - Podíamos nos beijar e fazer amor pelo menos por mais uma hora. Agora não vai aparecer uma oportunidade tão logo. Mas ele enganara-se redondamente. Tinha alguém que espionava diligente esses encontros ocasionais e viu bem os beijos trocados, abraços e os gemidos de prazer, os quais não entendia - era a jovem pianista. Quando Angelina saiu da casa da tia Zofia, Jadzia saiu às escondidas e foi atrás dela até as escadas. Jamais para espionar, mas para aliviar o seu coração. Mas viu e ouviu do seu esconderijo na escada quando Angelina conversou com ele e entrou no seu quarto. Impulsionada por uma indomada curiosidade, Jadzia, em silêncio e com agilidade de um gato, chegou perto da porta de Leon e, pelo buraco da fechadura, viu a dança, os abraços, os beijos e o rolar dos seus corpos na cama. Que terrível explosão abalou o seu peito, queimando na profundidade da sua alma. Parecia-lhe que não ia agüentar, que iria começar a bater com os punhos na porta, gritar aos céus, arrancar os cabelos, ou sumir no espaço... 415 Embora Jadzia não possuísse encantos que chamassem a atenção de Leon, ela sentiu os efeitos das flechas de cupido. Assim que o viu, ficou fascinada. Eletrizante calafrio passou-lhe pelo corpo: - É esse! – pensou ela. Quando Leon sentou perto dela para tocar o piano a quatro mãos, louca paixão, verdadeiro vulcão explodiu no seu coração de adolescente. Mandada embora da escola, despedida da casa paterna, não sabia sequer distinguir um sentimento que chamavam de amor. A jovem simplesmente adoeceu no profundo da alma. Seu estado era uma incessante saudade, embriaguez que levava ao total domínio da razão. A adolescente vivia num turbilhão celeste. A figura de Leon perdia-se, esvaecia-se em suave e lânguida nuvem azul. Quando ele não estava, o mundo ficava vazio, árido, surdo, frívolo, cheio de escuridão e enfadonho. Não havia força que pudesse desviar os pensamentos e o sentimento de Jadzia em outra direção. A voz dele, ouvida de longe, ressoava no seu ouvido como uma melodia singular.Ensaiava, às vezes, traduzir, transferir para a música o timbre da sua voz alegre ou triste. Tocava para si mesma, algo que ninguém entendia. Jadzia guardava o seu segredo a sete chaves, ninguém sabia. Tinha certeza que morreria desta, para ela, incompreensível doença que tomou conta de sua alma, ao defrontar-se com este estranho homem que a desconhecia. E, naquele dia, quando Angelina dançou, beijou e amou-se com Leon, Jadzia desceu as escadas pálida, como um defunto, como fantasma noturno, para chorar às escondidas. Agora compreendeu porque Leon nunca olhava para ela, não conversava como com as outras pessoas. Ela viu, pela primeira vez, alguém se beijando e amando, mas entendeu bem o seu significado. 416 Essa visão lançou-se sobre ela como dardo do inferno, penetrou no seu coração, igual farpa de três ganchos, a qual não é possível arrancar do peito sem feri-lo mortalmente. Apertava os olhos, desfalecia, agonizava diante desta perspectiva. Enfiava o lenço na boca para não gemer... não soluçar, pois essa visão sempre e sempre estava diante de seus olhos. Alguns dias depois, chegou a Lubartow uma carta, endereçada à Angelina. Wojtus, o lacaio, recebeu-a e dirigiu-se para entregá-la à destinatária. Era a carta do seu pai. A jovem, após lê-la, ficou pálida e chorou muito; o pai chamava-a de volta para casa em Lwow, mas a moça não estava nada animada com a notícia. Não queria voltar. Tia Zofia aconselhou-a a acatar as ordens paternas. Não havia outra alternativa, portanto, Angelina arrumou as malas e todos os seus pertences. O dia da partida chegou rápido. Era ainda muito cedo quando uma carruagem, puxada por quatro ágeis cavalos, encostou em frente da mansão. Wojtus comandava o carregamento dos baús. Enquanto isso, entraram para a sala de jantar todas as pessoas da família: a condessa Zofia, o conde Stanislau, seu marido, o tio Miguel, gordo e baixo, ainda sonolento após uma noite de orgia, as duas tias solteironas Antonia e Eva, a sempre sonhadora Jadzia, Ambrozy, Leon, triste e abalado pela partida de Angelina, pois estava começando a amá-la; fariam-lhe falta o seu amor e seus longos beijos. Finalmente apareceu Angelina, em prantos. Levava nas mãos a maleta com os principais pertences. Entre abraços, recomendações à família, a doce Angelina voltou para Lwow. Lá chegando, inscreveu-se, de novo, na faculdade de filosofia, para continuar os estudos, que era o desejo do seu pai e o motivo da sua volta. Os dias de férias passadas em Lubartow ficariam na sua memória como uma experiência e 417 uma doce lembrança, e se propôs firmemente a esquecer Leon, pois não aninhava nenhuma esperança a seu respeito. Jadzia, sem maldade no coração, viu que o destino estava ajudando-a, afastando do seu caminho ao coração de Leon a forte rival Angelina. Exultou de alegria intimamente. Correu para o piano e bateu as teclas furiosamente. Leon que passava por ali naquele momento, olhou pela porta, atraído pelo alto som do piano e dos acordes inéditos. - Posso tocar com você a quatro mãos? – perguntou . - Pode, se é esse o seu desejo – disse, trêmula. Ele sentou-se no tamborete e colocou as mãos sobre as teclas brancas daquele esplêndido e antigo piano. Bateu com força uma, duas vezes. Ouviu o som perfeito do instrumento. O ressoar particular acordou a jovem do enlevo em que se encontrava, esqueceu a sua insegurança. As suas mãos tocavam-se na execução da melodia. Ela transformou-se totalmente pelo encanto da música. Já não tremia, com o temor virginal, ao pensar na proximidade do homem que amava. Aprumou-se, instalou-se melhor, como rainha no trono. A tímida e indecisa mocinha converteu-se em audaciosa heroína, a qual joga-se à luta com as prepotentes forças do sentimento. Executava a música dedicada ao belo jovem que estava ao seu lado, e por quem nutria uma paixão avassaladora. Leon acompanhava-a, tocava, mas os seus pensamentos estavam nos seus problemas recentes, que era a partida repentina da jovem que estava começando a amar. Batendo com as mãos firmes, a complicada e nervosa dança dos dedos ia desenrolando a meada de sua saudade por Angelina. Podia-se pensar que não ouvia a música executada pelas suas próprias mãos. Estava em outro mundo. E, terminada a composição que tocavam juntos, as mãos de ambos pousaram-se sobre as teclas, Leon ainda 418 dedilhava os últimos acordes. De repente, sentiu, com profunda surpresa, que Jadzia, com a mão direita estendida, em vez de tocar as teclas pretas ou brancas, colocou-a em cima das suas mãos. Fria como gelo pela emoção que tomava conta dela, tremendo, apertou a mão de encontro às teclas – os dedos magros e finos, com força, agarraram os dedos de Leon. Este ficou sentado por alguns momentos, sem se mexer, rendendo-se a este aperto, completamente alheio, sem saber o que fazer. Levantou os olhos para o rosto da jovem, que tinha nos lábios um sorriso tênue e lágrimas nos olhos. Segurava fortemente a sua mão. Leon retirou a mão com cuidado e delicadeza. Olhando para ela, adivinhou a razão desse procedimento. A reação ao inesperado ato da pianista, confundiu e desconsertou-o. Daquele dia em diante, não viu mais nela a adolescente ingênua e tímida, mas uma mulher jovem que desabrochava como uma flor. Estava agora com dezessete anos. De porte delgado, nariz delicado, a boca rubra, fronte alta e pensativa, cabelos louros arrumados em longa trança e os olhos sonhadores da cor de safira. Todo este porte evocava uma deusa esbelta e bela. Pela primeira vez, Leon olhou-a com atenção redobrada. Seguidamente acompanhava-a ao piano, esmerandose em ressuscitar-lhe a alma ferida pela sua indiferença. Uma verdadeira metamorfose realizou-se com Jadzia. De uma menina feia, apagada e triste, transformou-se em uma linda donzela. Emanava dela agora o encanto, a ação profunda, talvez inconsciente, de um temperamento exuberante, escondido até agora, numa concha de timidez. Estava despertando para o mundo, para a vida. Ela mesma não se reconhecia naquela menina tímida e assustada. Leon logo esqueceu Angelina, que fora apenas uma aventura passageira. Ficou seduzido por esta nova Jadzia. 419 Apaixonou-se por ela. Amava o seu sorriso, o seu andar, a sua voz, o seu olhar. Como também adorava os seus gracejos bondosos e amigos – suaves e aprazíveis. Esperava ansioso por suas silenciosas confidências; pelas conversas com ela sobre o cotidiano ou fatos invulgares. Não havia nela nada de pecaminoso, tudo era ingenuidade e amor. Falava-se em casamento. Como Jadzia não tinha grandes posses, a família e o conde Lubartowski decidiram dar-lhe um dote, resolveram que o melhor seria dar-lhe de presente a aldeia Kozlowka, propriedade próxima a Lubartow. Assim seriam vizinhos por toda a vida. Leon, ao encontrar-se sozinho com o conde Lubartowski, pediu-lhe conselhos a respeito do seu compromisso com Jadzia. - Devo ir a Warszawa comunicar o fato ao meu protetor Mariusz Zagloba e à minha família em Mazowsze? – perguntou Leon. - Sim! Esse é o procedimento correto – respondeu o conde. Vá sem demora, utilize a minha carruagem; darei ordens ao lacaio Wojtus a respeito, para que providencie tudo para a viagem. Muito se alegrou pela volta do seu protegido, já bastante envelhecido Mariusz Zagloba. Muito mesmo! No gabinete oficial do Ministério da Fazenda, onde Zagloba era alto funcionário, Leon foi procurá-lo, mas era difícil conversar com ele, porque constantemente entravam e saíam pessoas. Zagloba convidou o jovem para ir à sua residência particular. No próximo dia, era um “Dia Santo”. O moço anunciou-se logo de manhã. A governanta abriu a porta e convidou-o a entrar, informando que infelizmente o senhor vice-ministro iria atrasar-se um pouco, porque nesse dia tinha muitas visitas importantes. Leon entrou e sentou-se no canto da sala, conhecia já esse grande aposento, o qual tinha saída para um pequeno 420 jardim interno. Galhos das plantas cruzavam as largas e brilhantes vidraças das janelas. A porta para o próximo aposento, melhor, para o quarto de dormir, estava vedada por uma pesada cortina de veludo bordô. A grande sala estava mobiliada caprichosamente, havia móveis antigos, bem dispostos, um grande tapete persa bem no centro. Na parede, um armário aberto, com livros de capas de couro e letras douradas; diversos quadros pendurados na parede, com retratos pintados por famosos artistas poloneses. Quando Pan Zagloba chegou em casa, começou perguntando ao jovem amigo sobre as impressões de sua estada em Lubartow. Mas ele falou-lhe pouco a respeito. Queria ganhar tempo para chegar ao assunto principal e o objetivo de sua visita até ali. Veio solicitar algum emprego rendoso, para poder fazer frente às despesas futuras. Leon conseguiu esse trabalho, que ia render-lhe um bom ordenado, no escritório do seu protetor. Trabalhava com afinco o dia todo. Conferia papéis, contava, somava, anotava, fazia balanço, analisava montanhas de papéis que o vice-ministro trazia para casa. Leon era inteligente, e o seu protetor incentivava essa capacidade no trabalho. Ganhava bem e economizava quase tudo. Certa noite, quando fazia uma visita ao senhor Zagloba, tomou coragem para falar-lhe de Jadzia. - Pan Zagloba, quando retornei das férias, o senhor perguntou-me a respeito da minha estada em Lubartow; eu desviei o assunto naquele dia. O senhor respeitou a minha posição, mas quero-lhe falar agora. - O que tem de tão importante?- perguntou admirado. - Conheci em Lubartow uma jovem chamada Jadwiga Wodzinska – a moça impressionou-me muito, pela sua beleza e candura. 421 Zagloba mostrou uma grande surpresa e perguntou: - Wodzinska? De Lublin? O pai chama-se Anton e a mãe Walerja? - Mas como? O senhor os conhece? - Ora! Ora! Walerja é minha irmã! - Que surpresa agradável! - disse Leon contente – pois eu e Jadzia conhecemo-nos na mansão da condessa Zofia, sua irmã, onde Jadzia passava as férias de verão. - Então Jadzia estava passando férias? E a música? Ouviu-a tocar piano? – perguntou o tio. - Nós costumávamos tocar a quatro mãos, ela toca maravilhosamente bem, é uma criança ingênua e modesta, que toca piano tal como cantam os passarinhos... Dessa convivência quase diária, surgiu um grande afeto, nos apaixonamos um pelo outro, pretendemos nos casar. - Mas que belo romance! – divagou Pan Zagloba. - Mas para isso preciso de dinheiro para poder arcar com as despesas do casamento, para a roupa, móveis, casa e demais necessidades. Eu sou sozinho. Fugitivo da casa do meu pai. Não posso contar com ele, preciso trabalhar e ganhar dinheiro do qual necessito – desabafou Leon. - Oh! Meu querido filho - disse enternecido – por que não me falou antes? Jadzia é minha sobrinha e você o meu protegido, não se preocupe com essa parte financeira. Entre eu, condessa Zofia e Wodzinski, arranjaremos tudo. Volte para Lubartow e marque a data do casamento - concluiu. - Mas meu pai ainda não sabe, vou escrever para ele. Devo solicitar-lhe que venha e peça a mão de Jadzia ao pai dela para mim? – perguntou aflito. - Sim! Sim! Esse é o costume - respondeu. Leon escreveu a carta, despachou urgente para Mazowsze. Nela pedia desculpas ao pai pelo seu mau comportamento; pedia também que viesse, logo que pudesse à 422 Lubartow pedir a mão de Jadzia para ele, em casamento. Marcariam a data para logo. O pai podia ficar em Lubartow, esperar a festa do casamento. E pedia também com carinho a presença dos irmãos. O pai de Leon, David, já quase com cinqüenta anos, viúvo, cuidava da hospedaria e da propriedade rural com os filhos. Durante muitas noites chorara escondido, sentia falta de Leon, e também por sua teimosia. Quando recebeu a carta, tremendo de emoção e alegria, começou a ler. Grossas lágrimas caíam-lhe dos olhos. Queria ver o filho, sentiu uma saudade imensa dele. Estava magoado, sim, mas que coração de pai não perdoa o filho? Não resistiu. Respondeu a carta no outro dia, prometendo ir em breve para o noivado. Os irmãos iriam depois para o casamento. Era primavera de 1848. Leon tinha passado quase seis anos fora da casa do pai. Agora ia casar-se e continuaria longe dos seus. Stephan estava noivo de uma bela e rica jovem, cujos pais eram comerciantes em Grudziadz, e a irmã Marcela já tinha casado. Os irmãos mais novos trabalhavam junto com o pai. A festa do casamento de Leon Gryczynski e Jadwiga Wodzinska foi um lindo acontecimento social, comemorado com banquetes, músicas e danças que duraram três dias. Realizou-se na mansão em Lubartow, com a presença dos pais da noiva, Anton e Walerja Wodzinska, que moravam em Lublin. Anton descendia de uma antiga nobreza, não era um homem rico, mas contava com uma pequena renda da sua propriedade, perto de Lublin, além do seu salário generoso do Ministério da Fazenda, onde era um alto funcionário. 423 Mariusz Zagloba, tio da noiva, apareceu com um belíssimo presente, um jogo de jantar, café e chá completos, com 180 peças, de valiosa porcelana chinesa. Vieram, de Poniatowo, o conde Poniatowski com a família. O príncipe Czartoryski que estava passando férias em Pulawy, compareceu na festa com a esposa e filhos; presenteou Jadzia com um lindo piano de cauda Kisting, dádiva que mais a agradou. As famílias eram vizinhas de Lubartow e se visitavam com freqüência. Compareceram todos os membros da família do noivo: o pai David; Stephan com a noiva; Marcela com o marido; Jan, Roman e a avó Elzbieta. Jadzia e Leon, depois do casamento, foram morar na aldeia Kozlowka, numa bela residência, mandada construir pelo conde Lubartowski, onde viviam muito felizes. ***. No palácio do príncipe Czartoryski, em Pulawy, fora programada uma grande festa para comemorar o Natal e o aniversário da princesa Marcela. Compareceram, o conde Poniatowski com a família, o conde Stanislau Lubartowski, com a esposa Zofia, e personagens importantes, convidados e amigos da família. Um pinheirinho trazido do campo fora colocado no lugar de destaque no grande salão, era a árvore de Natal. Foi ornamentado com bolas de vidro multicoloridas, enfeites diversos, flocos de algodão imitando a neve e pequenas velas acesas davam o encanto especial. Grandes e pequenos embrulhos de presentes foram colocados embaixo da árvore. Crianças corriam em volta, curiosas e inquietas, esperando a chegada do Papai Noel. Na recepção de Natal sempre havia muita música. Jadzia fora convidada para tocar no antigo piano Pleyel, todo em ébano lustroso, com teclas de marfim, relí424 quia da família. Tinha um som cristalino, extraordinário. Fora colocado num lugar estratégico, no grande salão de festas, que estava iluminado feericamente. Os hóspedes já tinham se acomodado nas poltronas e sofás colocados em volta do piano. Jadzia adiantou-se; usava um vestido leve, branco, com a cintura justa logo abaixo dos seios, cingida por uma fita de veludo azul; os cabelos louros soltos, adornados com uma flor. Pareceu indecisa por um momento, mas quando se inclinou para ajustar o tamborete, exibiu tanta confiança que ficou evidente que já estava no controle total. Depois, sorriu para os convidados, fez uma leve reverência e disse: - Esta noite terei o maior orgulho em tocar para tão seleta audiência composições como “Grande Polonaise”, a “Balada em Sol Menor”, o “Concerto em Fá Menor” e a “Valsa do Adeus”, do compositor polonês Frederyk Chopin. Da numerosa platéia, ouviram-se sussurros de aprovação. Acomodou-se cuidadosamente, ajustando o vestido branco, experimentou a distância para o teclado e fez uma longa pausa; depois, subitamente, ela projetou-se para frente, as mãos ágeis, os dedos finos, tocando as cinco notas suaves, que constituíam o tema de abertura. Ela tocava maravilhosamente bem, alternando força e delicadeza. A audiência não fez qualquer barulho, estava um silêncio total. Quando a balada chegou ao fim, os ouvintes aplaudiram de pé, entusiasmados. Jadzia inclinou-se graciosamente e agradeceu. Ela tocou mais, com a delicadeza e inspiração que se podia esperar. Leon veio acompanhá-la e tocaram a quatro mãos músicas maravilhosas, que deixaram os espectadores extasiados. Depois, ela levantou-se e disse: 425 - É Natal! Tocarei como um presente especial para a princesa Marcela, nossa anfitriã, a música que nós, poloneses, sempre adoramos cantar no Natal e que nos lembra as reuniões nesta noite, em volta da árvore de Natal com a família. Logo em seguida, acordes reapareceram, suaves, melodiosos, e várias pessoas começaram a cantar juntas... Wsród nocnej ciszy glos sie rozchodzi Wstancie pasterze Bóg sie wam rodzi Czemprendzej sie wybierajcie Do Bet leem pospieszajcie Powitac Pana, powitac Pana ... As pessoas ficaram comovidas. Lenços foram retirados das bolsas para enxugar as lágrimas de saudade, que lhes escorriam pelas faces. Naquela noite todos se alegraram com as músicas tocadas por tão talentosa pianista. Foi aplaudida de pé pelos distintos ouvintes. *** Leon e Jadzia moravam na aldeia Kozlowka; o ordenado dele mais a renda da propriedade davam-lhes uma vida tranqüila sem preocupações financeiras. O casal teve seis filhos. O mais velho, Jakub, nasceu em 1849, em Lublin, na casa da avó materna. Desde pequeno, adorava correr pelos campos, subir em árvores e pescar nos córregos próximos. Freqüentou a escola primária na aldeia natal; mais tarde, foi para Lublin, onde ficou hospedado na casa dos avós. Terminado o curso secundário, foi para Warszawa continuar os estudos e trabalhar. Já então estava com 21 anos. 426 Era hóspede e protegido da condessa Maria, casada com o conde Miguel Poniatowski. No verão de 1870 passava as férias em Poniatowo, herdade da família, no solar antigo. Estavam no grande salão, quando a condessa Maria puxou uma cadeira para perto de Jakub e comentou: - Você já está com 21 anos, portanto, precisamos arrumar-lhe um bom casamento. Antes que ele pudesse fazer qualquer comentário, a condessa, com o realismo que a caracterizava: -Temos que lhe encontrar uma esposa com dinheiro. Tudo que você tem a oferecer é uma boa aparência e um nome respeitável. A isso terá de acrescentar um bom dote da moça escolhida. Reconhece a verdade do que estou dizendo, Jakub? Ele não teve outro jeito, senão confirmar: - Reconheço, mas que posso fazer? - Dinheiro é tudo, onde vai conseguir dinheiro? E a condessa respondeu por ele: - Somente pelo casamento com a filha de algum rico comerciante, ou de um nobre proprietário de terra. Jakub protestou contra este arranjo, mas ela falou: - A quem vai escolher, Pan Jakub? Não pode casarse na família de um magnata e não deve ficar à deriva, terminando por casar-se com a filha de algum pequeno nobre, tão pobre quanto você. - Morando num solar antigo, numa propriedade de nossa família em Poltawa, na Ucrânia, existe um parente distante, de nome Adam Poniatowski; ele é, como nós, isto é, como meu marido, descendente direto de Janusz Poniatowski, é um nobre, mas com poucas posses, pois todos os seus bens foram confiscados pelo governo russo, por seu envolvimento em conspirações. Adam tem uma filha de 17 anos, de nome Jozefa - comentou a condessa. 427 Foi para lá que ela viajou com Jakub nos próximos dias. Depois de uma semana de viagem, chegaram ao solar da família. Pan Adam recebeu-os na porta. - Querido parente, vim apresentar-lhe o meu jovem amigo Jakub Gryczynski, de boa família, que eu gostaria que fizesse parte da nossa. Ele veio conhecer sua filha Jozefa - disse a condessa Maria. Entraram para a sala de visitas. - Mas não seria justo com Jozefa - retrucou Adam, e abriu a porta que ia para o interior da casa, chamando: - Jozefa, minha filha, quero que se apresente dentro de um quarto de hora na sala de visitas. - Acho que Deus deve ter ordenado que o meu Jakub conhecesse a sua Jozefa. Esses dois jovens precisam um do outro... È uma união determinada pelo destino - comentou a visitante. - Mas acabei de conhecer esse rapaz, e ele ainda nem viu a minha filha Jozefa – argumentou Adam. - É verdade, mas às vezes as coisas são definidas no céu, e esta é uma delas. Passados alguns minutos, apareceu na porta uma jovem linda, esbelta, cintura fina, os cabelos castanhos presos em tranças, olhos azuis brilhantes. Um sorriso no rosto bonito e um ritmo poético no andar. Vestia um vestido simples, de organza azul, de saia esvoaçante, que lhe realçava a graça e a juventude. Jozefa adiantou-se para cumprimentar a condessa e o moço que a acompanhava. - Esta é sua parente, condessa Maria Poniatowska, e este é Jakub Gryczynski, seu protegido. Inclinaram-se cortesmente. Jakub, pegou a mão estendida de Jozefa e falou: - Eu estou muito feliz em conhecê-la, senhorita. - E eu também - disse - olhando-o firme nos olhos. 428 Alguma coisa lhe dizia que era este o seu príncipe encantado. Ele correspondeu ao olhar com admiração. A condessa beijou e abraçou a moça afetuosamente. No dia seguinte, de manhã, os jovens sairam a passear pelo parque, e no final da semana reuniram-se com Pan Adam e a condessa para confirmar a proposta. - Desejo que o casamento se realize em meu palácio, em Poniatowo, pois passei a amar esse rapaz como meu filho e lhe desejo muito bem - assim decidiu a condessa. Ficou acertado que o casamento seria dentro de trinta dias. Os pais de Jakub, Leon e Jadzia, deveriam comparecer às núpcias no castelo. Eles moravam agora na cidadezinha de Mazowsze, para onde se transferiram após a morte de David, pai de Leon. Jakub, após o casamento, foi morar no solar antigo da família Gryczynski, nas proximidades da cidadezinha. Era uma propriedade extensa, com diversas aldeias, e bastante terra para cultivar. Ele era o primogênito e a ele, por direito, pertencia a herdade. X A MALDIÇÂO DA PEDRA A província de Warszawa (Varsóvia) estende-se na baixada Mazoviana, nas duas margens do médio Wisla (Vistula). A sua localização central favoreceu o seu desenvolvimento. O início da cidade-fortaleza de Warszawa alcançou o século XIII e XIV. No ano de 1413, o príncipe mazoviano Janusz I transferiu a capital do principado dos Piast, de Czersk para esta cidade. E desde 1596 Warszawa passou a ser a capital da Polônia, quando o rei Zygmunt III, Waza, mudou a residência real de Krakow para esta cidade, reformou e embe429 lezou o Castelo Real, que pertencera aos príncipes mazovianos. Entre os edifícios famosos, parques e monumentos históricos de Stare Miasto (Cidade Velha), estão as mansões renascentistas dos magnatas. Construído em 1674, o palacete da família Poniatowski era o exemplo de riqueza e de bom gosto. Todo o interior era decorado em estilo italiano; fora realizado por competentes artífices e mestres italianos e franceses. Completou-se a seleção dos móveis, quadros, tapeçaria, faianças finas, porcelanas e objetos de arte, que foram importados da Inglaterra, Itália, França e Holanda. Atrás do palácio fora projetado e construído um magnífico parque com lago no centro, ladeado por estátuas em mármore branco, de figuras da mitologia grega; fontes e cascatas de água, que corria num riacho por entre as árvores, até o lago, no centro do bosque. O parque de carvalhos seculares fora preservado, assim como as aléias margeadas por plátanos, que ofereciam ao transeunte uma visão de beleza e mistério. O conde Miguel Poniatowski, neto de Janusz, possuía em Ciechanow, não muito distante da cidadezinha de Mazowsze, uma esplêndida residência de verão, além de grande quantidade de morgas de terras férteis, que estavam sob a administração de Jakub Gryczynski. Ciechanow era antiga fortaleza de castelãs e residência dos príncipes de Mazowia no século XIII. Portanto, existiam ali castelos seculares e igrejas barrocas daquelas épocas. A família do conde vinha com freqüência para a mansão, onde passavam grandes temporadas durante o verão; nessas ocasiões visitavam a família Gryczynski, que eram seus parentes distantes, por parte de Jozefa, a esposa de Jakub. Numa destas visitas houve a sondagem sobre a 430 idéia de levar Stephania para Warszawa. Ao despedir-se, a condessa Maria perguntou à moça: - O que você acha de ir morar conosco em Warszawa? A jovem de 16 anos sempre sonhara em conhecer a capital, mas diante da proposta da condessa Maria para que ocupasse o cargo de dama de companhia dela e das duas filhas, morando no palácio, sentiu-se triste e contrafeita. Mesmo sendo a sua vida na casa dos pais simples e austera, ela não se sentiu atraída pela oferta. - O pai é que decide - respondeu ela, acostumada a obedecer ao pai autoritário. Jakub não admitia que seus filhos vivessem na ociosidade e, por isso, exigia deles trabalho; incumbia-os das mais variadas tarefas no campo e na hospedaria e cobravalhes os resultados. Wladyslaw, Aleksander, Stephania e Ksavera, os quatro filhos do casal Jakub e Jozefa, nasceram e cresceram na fazenda Gryczynszczyzna, como carvalhos novos, fortes e saudáveis, aprenderam e tinham consciência da sua obediência ao pai exigente. A mãe nada fazia para modificar esse costume rígido, ao qual ela mesma se submetia calada. Todavia, quando a condessa Maria propôs levar Stephania para Warszawa, ela ficou apreensiva. - Os Poniatowski são na verdade aparentados conosco - comentou, tentando acalmar-se. - Sim!São de fato! Mas é um parentesco muito distante - respondeu o pai. - Tens razão. Portanto, nós nunca nos impomos a eles. Mas quanto a isso não se preocupem, eu os conheço, são pessoas extremamente bem educadas e estou convicta que darão a você toda atenção - conciliou a mãe. 431 - Com certeza nada mais humilhante do que esta benevolência para com os parentes pobres - questionou ainda Jakub. - Você não tem razão alguma, filha, você não vai como hóspede residente, vai desempenhar uma função, um trabalho, serás dama de companhia da condessa Maria e das filhas – explicava Jozefa. Não foi sem resistência que Stephania aceitou a idéia; mas ficou sensibilizada, quando no dia marcado, parou em frente de sua casa, em Mazowsze, uma bela carruagem puxada por dois lindos cavalos negros. A condessa e a filha vieram buscá-la. Podiam ter mandado uma simples dorozka, como para levar uma empregada - pensou Stephania, comovida. Mazowsze ficava a 160 quilômetros de Warszawa, portanto, após dois dias exaustivos de viagem, chegaram à capital. Pela primeira vez na vida Stephania encontrou-se com refinado conforto, com arranjos sem precisa utilidade, dos quais, porém, a beleza e o valor não reconheceu de imediato. O idoso conde Poniatowski, sereno, jovial, bondoso, com toda paciência introduziu-a nos segredos dessas coisas maravilhosas. Desvendou-lhe o encanto e o brilho das cores nas geniais composições da escola flamenga, chamou-lhe a atenção para a incomparável arte nas obras de pintura histórica de Jan Matejko e Michalowski. Mostrou-lhe os bronzes da época do Primeiro Império. Fez a jovem conhecer a qualidade e o valor da porcelana chinesa e das finas faianças inglesas; dos cristais da Boêmia em taças e vasos. O palácio era enorme, cercado de jardins, protegidos por um maciço de árvores do parque. Stephania ia exercer as funções de dama de companhia, como exigia a tradição entre esses fidalgos orgulho432 sos. A família compunha-se do casal de meia idade, o conde Miguel e a condessa Maria, a filha viúva sem filhos e a outra solteira. Todos eram muito educados, meigos, corteses, duma gentileza cativante. Entre os parentes e visitantes que freqüentavam o palácio, havia diversas pessoas singulares. O interior dessa magnífica residência compunha-se de inúmeros salões e uma infinidade de quartos, tudo decorado com requinte e bom gosto. Do salão de estar, através de duas grandes portas laterais abertas, avistava-se a mesa posta da sala de jantar. Os pratos de carne de caça e as entradas, os guardanapos alvos dobrados, que coroavam cada grupo de talheres de prata, os pratos de porcelana de Sèvres e as taças de cristal, e no meio da mesa vasos cheios de flores coloridas, pareciam alfinetar o apetite dos convivas. Todos tomaram lugar nas cadeiras dispostas em volta da grande mesa. Os olhares recaíam sobre a variedade de iguarias oferecidas. Um tanto atrasado, chegou um homem corpulento, trajando camisa russa, cinzenta, apertada à cintura por um largo cinto. Usava botas de couro preto, e as calças formavam um balão sobre os joelhos. Dava a impressão de ser um bom sujeito, mas um tanto distraído. Ao tirar o sobretudo à entrada, não tirara o cachecol e conservava nas mãos o chapéu redondo de feltro. Conde Miguel, dono da casa, foi ao seu encontro com os braços abertos: - Bem-vindo, Pan Laurenti Orlowski, como vai a família? E a esposa Delfina? - Está bem, obrigado, mandou abraços a todos e especialmente à condessa Maria. Peço desculpas pelo meu atraso. Fatos imprevistos impediram-me de chegar no horário, perdoe-me, meu amigo. 433 - Estás perdoado, o importante é a sua presença disse o conde. Laurenti foi conduzido à mesa, sentando-se a esquerda do conde, lugar a ele reservado; à direita sentava-se a condessa. Falaram por algum tempo de política, quando surgiu o assunto sobre os tumultos universitários em Petersburgo e Moscou. Laurenti Orlowski era um grande industrial moderno, espírito prático bem dotado e inteligente. Tinha para com o regime moribundo o duplo ódio, do ricaço fabuloso que teria podido comprar todo o tesouro do Estado e do homem do povo que chegara a cumeeira de uma carreira estonteante. Escondia proscritos em casa, fornecia advogados aos acusados de crimes políticos. Era um homem notável e sua esposa Delfina estava à sua altura. O conde tinha por ambos uma admiração entusiástica. Após o almoço, reuniram-se na biblioteca para fumar. Um lacaio de uniforme branco e luvas servia o café e o licor. A biblioteca era uma linda sala, de paredes cobertas por tapetes e quadros. Do teto, que era decorado por pinturas de colorido suave, descia um antigo lustre veneziano. O assoalho era coberto totalmente por um soberbo tapete vermelho. Numa das paredes estava dependurado um antigo Gobelem, com o brasão da família Poniatowski. Num recanto ficava a lareira de mármore branco que no inverno aquecia o ambiente luxuoso. Enegrecidos pelo tempo, estavam enfileirados na parede os retratos dos antepassados. Personagens de bigodes espessos caídos ao redor da boca, com as cabeças raspadas à moda mongol; cinturões, botões de diamantes, gorros de pele de urso, chapéus com penas de avestruz, uniformes militares. Ao lado, senhoras com decotes ousados, cobertas de jóias, de penteados extravagantes; senhoritas sorridentes e crianças gorduchas. 434 Stephania fazia companhia às senhoras que se ocupavam de trabalhos manuais, enquanto tagarelavam alegremente; ela olhava encantada as prateleiras com os livros da enorme biblioteca do palácio. Havia ali obras dos séculos passados e da época atual, escritas em diversas línguas e de vários autores. Ficavam alinhados como soldados durante o desfile, os quais nunca foram chamados para a luta. Publicações anuais parisienses, londrinas, de Petersbugo, de Roma, das quais obtinham informações; pareciam colocar em silencioso desprezo os seus ausentes primos poloneses. Stephania, ingenuamente perguntou: - Por que não há aqui revistas polonesas? Ao que a condessa Maria respondeu: - Oh! querida, para quê? As nossas publicações colhem todas as informações das similares da Europa? Então não é melhor tê-las em primeira mão? Apesar de tudo, essa gente despertava simpatia na jovem. Antigos, históricos sobrenomes, tinham para ela inexplicável atração, pois associavam-se a toda história da Polônia. Os Lubomirski, Sapieha, Ossolinski, Potocki, Czartoryski, Zamojski, Sobieski, Poniatowski, Leszczynski. Por acaso esses personagens não determinaram os capítulos notáveis ocorridos na história desta nação? Eles, porém, em competição entre si pelo poder, doutras vezes impulsionados pelo sincero amor pela pátria, uma vez elevavam-na aos picos da glória, outras vezes precipitavam-na ao fundo do poço da decadência e ruína. Como Stephania podia vasculhar, sem nenhum obstáculo, na soberba biblioteca do palácio, foi procurar o livro de genealogia da família. Estudou as sucessivas gerações, analisou e procurou a sua origem. Entre muitos sobrenomes, encontrou o da sua mãe, de cujos antepassados já sabia alguma coisa. Aqui conferiu dados ainda por ela des435 conhecidos. E pelo que ali ela viu, não tinha mais dúvidas, descendia por parte do pai, dos antigos judeus que emigraram do sul da Europa para a Polônia. - É necessário conhecer as nossas origens e saber sobre os ancestrais que nos transmitiram os traços do seu caráter - raciocinava a jovem. Mesmo sabendo que descendia do ramo pobre dos Poniatowski, Stephania sentia-se feliz. Recebia o afeto que todos da casa lhe dedicavam. Viajava com a família, em longas férias, em passeios pelo país e para o exterior; para praias de Nice, estações de esqui na Suíça e cassinos de Monte Carlo, onde o conde Miguel fazia grandes apostas. Foram assistir ao 1º concerto dado por Ignacy Paderewski, na cidade de Warszawa. O interesse por esse espetáculo atraíra um imenso auditório que superlotou a sala da Ópera Municipal . Durante mais de três anos Stephania viveu feliz em casa da condessa. Nada vinha perturbar-lhe a tranqüilidade, nem mesmo a saudade dos seus pais e irmãos, pois visitavaos com freqüência, e nesse tempo seu irmão Wladyslaw veio estudar em Warszawa. *** Na estação de Warszawa, o trem parou por curtos quarenta minutos. No vagão de passageiros, encontrava-se um lugar vago na poltrona em frente do tenente Zbigniew Orlowski, e nele sentou-se uma jovem que colocou ao seu lado uma mochila de viagem de couro marrom, que era toda sua bagagem; acomodou-se para fazer um trajeto que deveria durar apenas algumas poucas horas. A recém-chegada teria mais ou menos, dezesseis anos. A sua cabeça realmente bela, apresentava o tipo eslavo em toda sua pureza - tipo um pouco severo, que a tor436 nava mais formosa que bonita, quando, passados alguns anos, as suas feições estivessem de todo acentuadas. De uma espécie de toucado, soltavam-se-lhe em profusão os cabelos castanhos. Os olhos castanho-esverdeados e o nariz delicado e fino marcavam as faces rosadas. A boca firmemente desenhada, parecia sempre pronta a sorrir. Era alta, de formas graciosas, tanto quanto se podia adivinhar sob as dobras da ampla peliça que a cobria. Era evidente que esta moça devia ter tido um passado de bem-estar e o futuro, sem dúvida, se lhe apresentava de cores auspiciosas, mas não era menos certo que ela tinha sabido lutar e que estava resolvida a batalhar pelo que sonhava. A sua vontade devia ser decidida e firme sem se deixar abater ou irritar facilmente. A jovem passageira trajava com elegância sóbria. O casaco comprido de cor escura, debruado de azul, abotoavase-lhe graciosamente no pescoço. Por baixo desta peliça via-se uma saia curta, também escura, caindo sobre um vestido que terminava nos dedos dos pés e cuja barra era guarnecida de bordados coloridos. Calçava nos pés bem feitos e pequenos botinas de couro lavrado, de sola grossa, pretas, com ilhoses dourados. Para onde iria esta moça completamente só e numa idade em que o apoio de um pai ou de uma mãe, ou a proteção de um irmão, se torna de todo indispensável? Algum parente ou amigo esperá-la-ia na chegada do trem? Zbigniew Orlowski observava-a com interesse, mas com toda reserva, não tentando sequer um pretexto para lhe dirigir a palavra. A jovem levantou-se do seu assento, foi até a janela do vagão; debruçou-se para fora, o vento esparramava o seu cabelo castanho pelo rosto bonito. Ela olhava os campos semeados de trigo que se estendiam até os últimos planos da colina. A brisa da tarde balançava as espigas douradas como ondas do mar. 437 Dez quilômetros antes de chegar à estação de Plock, no ponto onde a via férrea fazia uma curva, sentiu-se no trem um choque de certa violência. Passageiros assustados gritavam, houve confusão e desordem geral dentro dos vagões. Antes que o trem parasse, as portas dos vagões foram abertas e os passageiros apavorados só pensavam em abandonar o trem. Enquanto os viajantes do compartimento onde ambos estavam, fugiam atropelando-se e gritando, a moça continuou tranqüila no seu lugar. Ela não fizera nenhum movimento para descer do trem, ele também não. Ambos continuavam impassíveis. Entretanto, o perigo sumira. O choque resultara de ter-se avariado uma roda do vagão de carga. O atraso do trem foi apenas de uma hora. Desembaraçada a linha, o trem retomou a marcha, e às cinco horas da tarde chegaram a Aleksandrow, na fronteira da Prússia. O movimento crescente na estação, as idas e vindas dos carregadores, o aparecimento da polícia, as pessoas que vinham esperar os passageiros, tudo era indício da chegada do trem. Fazia frio, e através da bruma viam-se operários de japonas longas e botas de feltro, que atravessavam as linhas. O condutor fez soar o apito ainda com a composição em movimento e saltou. Antes que alguém tivesse saído dos vagões, já os agentes da polícia de fronteira revistavam os passageiros. Concluída a inspeção, abriram-se as portas dos vagões e os viajantes impacientes desembarcavam um por um. Zbigniew Orlowski não tivera tempo para dirigir-se à jovem. Ela já tinha descido rapidamente e desaparecido entre a multidão aglomerada na estação de Aleksandrow. O tenente pensava na bela jovem que, durante algumas horas, tinha sido sua companheira de viagem. E nem sabia o seu nome. O militar viajava no trem que vinha de 438 Bialistok; passando por Warszawa, dirigia-se a Torun. Ia fazer uma visita à tia viúva, irmã da sua mãe. Estava de férias do serviço militar; já fazia dois anos que servia no quartel da Sétima Brigada de Cavalaria de Bialistok. Estava sentado na sua poltrona pensativo... a jovem passageira não lhe saía da cabeça. Quem seria? O que vinha fazer aqui? *** Stephania era jovem, tinha o mesmo temperamento apaixonado do pai, independente, egocêntrica, autoritária... Jakub, seu pai, era um paradoxo, homem liberal em muitos assuntos, mas como pai era muito exigente; exercia a posição de chefe de família com total seriedade. Tinha herdado muitas das antigas tradições de um tirano familiar. O trabalho na capital e a vida com o pai, que ela respeitava e amava, constituíam as suas mais felizes memórias. Recebeu rigorosa educação de severas freiras, na exclusiva escola para moças em Plock, isso lhe permitiu que ingressasse nos escalões elevados da sociedade, que tinham eleito Warszawa como Paris da Europa Oriental. Havia um infindável círculo de cultura, trivialidades e romance no ar. Stephania era uma jovem extremamente bonita; sua agenda ficava repleta de compromissos. Como muitos dos que viajavam pelo mundo, ela desenvolveu um elevado grau de sofisticação, apreciando flertes e namoros. A jovem tomava parte nos divertimentos da numerosa sociedade que se reunia no palácio Poniatowski. Quase todos os meses havia uma proposta de casamento a ponderar e a descartar. Ela amava sua liberdade. Mantinha suas amizades com uma sutil frieza. Sentia-se contente e feliz em Warszawa. Era o seu lugar. Realizava-se a festa anual dos oficiais da Sétima Brigada, no Bristol Hotel. A corporação possuía uma série 439 particularmente longa de grandes e gloriosos feitos, os quais poderiam ser traçados a partir do rei Kazimierz Wielki, na Idade Média. Por isso, a reunião da Sétima Brigada atraía o melhor da sociedade. O conde Miguel Poniatowski, a condessa Maria, Stephania, e a filha mais nova, entraram pela escadaria principal do Bristol Hotel. Stephania parou um pouco no vestíbulo e olhou para o salão de danças, todo iluminado. Estava cheio de distintos oficiais poloneses de uniforme e de elegantes senhoras vestindo os últimos figurinos de Paris, bem como de barbudos e esqueléticos diplomatas estrangeiros. Era um salão de teto alto, com painéis de mogno escuro. O assoalho era de madeira polida ao extremo, refletia as pessoas dançando. Espelhos que iam do teto ao chão alternavam-se com tapetes persas. Outros, que também pendiam das paredes, representavam sérios heróis poloneses em esculturais cavalos brancos com crinas encapeladas liderando tropas numa batalha. O imenso lustre de cristal faiscava. Elegantes pares circulavam em torno da sala ao ritmo de uma valsa lenta. E, quando a música parou, os cavalheiros curvaram-se e beijaram as mãos das damas. Algumas responderam com olhares enamorados detrás dos leques, enquanto outras desviavam o olhar, enfastiadas. Fora nesta noite festiva que Stephania reencontrara Zbigniew Orlowski. Como sempre, ela estava rodeada por um amplo grupo de oficiais solteiros. Ao fim da primeira hora de agitadas polkas e mazurkas, a jovem retirou-se ao toalete na companhia da sua madrinha e protetora. A condessa Maria era uma senhora inteligente; mãe de duas filhas, ainda mantinha a peculiar elegância parisiense e a beleza madura, apesar de já estar entrando na meia idade. Stephania estava enfadada. 440 - O problema é com você, Stephcia! Você sempre afasta todos os pretendentes sérios. É uma jovem muito exigente. - Tenho sentido um desejo de quebrar alguns desse crânios quando eles se curvam e lambem as minhas mãos. - Eu gosto disso. Bem, minha jovem afilhada, não vá acordar numa certa manhã e descobrir que todos os bons partidos já se foram, estão casados ou compromissados. Pegue um estúpido qualquer e eduque-o à sua maneira. A moça sorriu e abraçou a sua protetora. - Vamos, querida, vá tentar mais uma vez. Ela refez a maquilagem e voltou ao salão de baile de braço dado com a condessa. As duas viram-no ao mesmo tempo, de fato, cada par de olhos parecia ter-se concentrado na porta, quando por ela entrou um oficial polonês, de uniforme de gala da Sétima Brigada da Cavalaria. Era o tenente Zbigniew Orlowski. Após um segundo de breve surpresa, os seus olhos se encontraram. Reconheceram-se instantaneamente. Ambos eram os passageiros do trem de Warszawa à Torun, que viajaram no mesmo compartimento e que se separaram sem ter sequer trocado uma palavra. - Quem é ele ?- perguntou Stephania. - Esqueça-o, querida. Você perderá o seu tempo, ninguém ainda foi capaz de prendê-lo. - É mesmo? - Alguns dizem que ele é um monge tibetano que tomou votos de castidade. Outros dizem que tem amantes por toda a cidade de Warszawa. - Mas afinal, quem é ele? - O tenente Zbigniew Orlowski. - O aventureiro dos ulanos? Condessa Maria suspirou e disse: 441 - Bem, tenho de voltar para junto do meu marido. Stephania reteve a amiga e protetora por mais uns instantes - Será que o conde, seu marido, poderia apresentarme ao tenente Orlowski? - Bem, bem! – pedirei a ele – respondeu ela rindo. Quando o conde Miguel apresentou o tenente à jovem, ele curvou-se e beijou-lhe a mão, cumprimentando-a polidamente. - Não guardei o seu nome - disse Stephania. - Mas eu sei o seu, senhorita Gryczynska, estou encantado. - Tenho livre a próxima dança, tenente Orlowski. Zbigniew, vagarosamente, colocou os braços em torno dela e levou-a para o salão de baile. Todos os olhares femininos da sala os observavam com inveja, disfarçada atrás dos leques. Stephania estava furiosa consigo mesma por se comportar como centenas de moças já o teriam feito antes. Mas ela apreciava estar nos seus braços, eles eram acolhedores e firmes. Isto a tornou ainda mais zangada, pois ele estava procedendo de forma a exprimir a sensação de que, se quisesse, poderia estar dançando com uma vassoura. O pensamento de colocar este egocêntrico cavalheiro nos eixos deliciou-a. Como seria adorável terminar a noite dando ao tenente Orlowski o suficiente para torná-lo esperançoso, e então bater-lhe com a porta na cara. - Gostaria que, mais tarde, você me levasse para minha casa - disse-lhe Stephania. - Talvez o seu par não goste - respondeu ele. - Vim na companhia do conde e da condessa Poniatowski, sou a dama de companhia da senhora. Sou completamente livre, tenente... ou é necessário que eu obtenha uma ordem do seu coronel para que você possa acompanhar uma dama? 442 - Oh! Não é preciso tanto! Será um prazer para mim. Quando as carruagens estavam sendo conduzidas para a porta de saída, o conde ofereceu-lhes um lugar na condução. Viajaram em silêncio até a mansão. Ao chegarem, Stephania sugeriu: - Está tão calma e agradável a noite! Por que não caminhamos um pouco, tenente? - Se me concederes este prazer!- respondeu o moço. Era tarde e as ruas estavam vazias, ouvia-se apenas o som dos seus próprios passos e o rumor de uma dorozka passando. De repente, ela parou na calçada. - Fui terrivelmente estúpida e grosseira - disse elanão deveria tê-lo forçado a acompanhar-me até minha casa. - Bobagem, sinto-me feliz em fazer-lhe companhia. Na realidade - disse Orlowski- foi oportuna a sua idéia do passeio, eu precisava esclarecer um assunto que está me intrigando. - Qual assunto? – perguntou ela surpresa. - Não quero parecer indelicado, mas, diga-me, o que estava fazendo naquele trem de Warszawa-Torun, e por que desceu em Aleksandrow? - Esqueça isso - respondeu ela. - Não, diga-me, pois não consegui tirá-la do meu pensamento desde então. - Mas um famoso ulano como você? Todas aquelas jovens que o adoram. - Nada tenho a ver com elas - respondeu enigmático. - Por quê? - Não quero estragar a sua noite com detalhes da minha vida, mas você não respondeu a minha pergunta: o que foi fazer em Aleksandrow, fale, se puder responder-me. - Ora, nada de misterioso, meus pais moram na cidadezinha de Mazowsze, a quinze quilômetros de Aleksan- 443 drow, e meu pai esperava-me na estação. Como vê, fui visitar a minha família. Na volta, caminharam em silêncio. Ambos tinham chegado muito rapidamente a um estranho sentimento de angústia, com a descoberta de que se sentiam, de súbito, atraídos terrivelmente um pelo outro, e isso inquietava-os e atemorizava. Orlowski comportou-se de maneira respeitosa e gentil; quando a moça parou diante do portão do palacete, Wojtek, o guardião, veio abrir para ela entrar. - Boa noite, senhorita - despediu-se o tenente. Eles apertaram-se as mãos, um estranho sentimento tomava conta dos seus corações. - Tenente Orlowski, gostaria de vê-lo novamente. Ele retirou vagarosamente a sua mão de entre as dela, e respondeu: - Gostaria muito, mas creio que não será possível, tão logo. Devo voltar ao quartel em Bialistok; minhas férias terminaram. Stephania não dormiu aquela noite. Levantou-se tarde, estava triste e pálida. - Nunca pensei que algo tão simples pudesse ser tão doloroso. Quero vê-lo tanto que me sinto como se fosse explodir, não sei o que faço - lamentava-se à sua madrinha. - Querida, e se eu pedisse a meu marido, conde Miguel, para convidar o tenente Orlowski para almoçar hoje conosco, antes de ele ir embora para Bialistok?- sugeriu a condessa. - Deus Todo Poderoso! nem sequer posso ter o coração despedaçado? – desesperou-se a moça. - Não!, pois, parece-me que lá existe um jovem tão enamorado e sofredor quanto você. Nós o apreciamos, e será bem recebido em nossa casa. 444 Almoçaram juntos naquele dia. Seus ternos olhares denunciavam o grande afeto que os dominava. Passados dois meses, isto é, na primavera de 1889, ficaram noivos... Ele era filho de Laurenti Orlowski, russo de origem, mas residindo desde a adolescência em Warszawa, quando seu pai foi nomeado, pelo governo russo, para um cargo administrativo no Reino da Polônia, com sede em Warszawa. Desde então, integrara-se na comunidade polonesa, participando da sua vida. Laurenti amava esta bela cidade. Zbigniew nasceu na Polônia. Os pais de Stephania aprovaram a escolha, mas opunham-se a um casamento apressado, aconselhando-a a esperar um pouco. Não sabiam que Zbigniew estava impedido de casar-se por estar prestando serviço militar, só estaria liberado em dois anos. Quando soube da resolução do pai em emigrar para o Brasil, ficou desconsolada, não aceitava essa idéia radical. Suplicou-lhe para que a deixasse na Polônia, em casa do casal Poniatowski, que também não admitiam deixá-la partir, pois ali era tratada como membro da família, e a afeição que lhe dedicavam era algo admirável. Tinha chegado o dia da viagem de Stephania para Mazowsze, onde ia reunir-se à família. Já estavam com a data marcada para seguirem viagem rumo ao porto de Hamburgo, e de lá viajariam de navio para o Brasil. Marcaram um encontro na residência do conde, para a despedida final. O acaso colaborou com o clima de nostalgia. No dia marcado, o céu amanheceu triste e cinzento. Já eram dez horas da manhã e as gotas da pesada chuva que caíra durante a noite ainda permaneciam nos vidros das janelas altas e nas folhas dos carvalhos seculares, como se fossem lágrimas de despedida dos dois jovens apaixonados. 445 Estavam passeando pelo parque do castelo, caminhavam pelas aléias ladeadas de flores; a brisa da manhã balançava as folhas das árvores, em mudo adeus. - Stephania querida - falou Zbigniew, passando-lhe o braço pelos ombros - queria que você antes de partir me desse pelo menos um pouco de esperança, dum reencontro no futuro; alguma lembrança a qual possa me apegar na tua ausência. - Querido, você não avalia o quanto estou sofrendo com esta separação, mas nada posso fazer, meu pai está irredutível. - Meu amor, eu entendo a posição do teu pai. Ele não quer deixá-la na Polônia, sozinha, solteira. Eu não posso seguir com você e nem casar-me agora, pois sou oficial da ativa do exército russo e a lei do czar não permite. Se eu proceder à revelia serei preso e fuzilado, e se desertar, serei caçado e morto como animal. O casal abraçou-se; as lágrimas incontroladas escorriam pelo seus rostos. Stephania tirou do pescoço um cordão de ouro com crucifixo e entregou-o ao noivo. - Fique com esta jóia, que é uma peça muito antiga, ganhei-a da minha madrinha, a condessa Maria, no dia do meu aniversário. Não a tire nunca do pescoço, ela vai proteger você dos perigos da vida. Ele trazia no dedo da mão esquerda um largo anel de ouro puro, com uma pedra de opala negra incrustada no meio. Em volta da pedra estavam gravados estranhos hieróglifos egípcios. Seu pai tinha trazido o anel do Cairo, quando por lá esteve em missão diplomática. Comprou o anel num antiquário, cujo proprietário era um muezim árabe. Ao vender a jóia, o homem avisou: - Este anel possui um poder misterioso, sobrenatural. Pertenceu a uma sacerdotisa da deusa Ísis. Cuidado com 446 a energia poderosa deste amuleto, ele pode influenciar a sua vida. O comprador era uma pessoa descrente, não deu atenção ao aviso do muezim. Mas nunca usou o anel. Numa ocasião, Zbigniew estava vasculhando a gaveta da cômoda do quarto do pai. Achou o anel entre objetos e papéis diversos, experimentou, achou-o interessante e ficou com ele. Usava-o ocasionalmente, e na naquela tarde estava com ele no dedo anular. Ao receber o cordão de ouro da namorada, tirou o anel e disse: - Em troca dou-te o meu talismã. Stephania você nunca vai esquecer de mim, porque este anel vai lembrar-te sempre o quanto eu te amei. Esta fora uma despedida muito dolorosa para os dois. Nunca mais se viram, os seus destinos tomaram rumos diferentes. O amor deles já nasceu condenado, pois ambos não foram felizes durante suas vidas. *** Era o ano de 1890. Numa tarde de inverno, o administrador foi à casa de Jakub Gryczynski com a informação secreta de que um oficial da cavalaria desejava falar com ele, imediatamente. Surpreso e confuso, ele se deixou levar para um bar perto da escola, onde um grupo de homens, agitados, falava em voz baixa, que às vezes se alterava num tom mais ousado. Jakub foi informado que estava em curso uma conspiração contra o governo russo, e se estendia por todo o território da Polônia. A luta tinha caráter guerrilheiro. O secreto e clandestino Governo Nacional, bem como as suas determinações, eram respeitadas e obedecidas pelos guer447 rilheiros. Garantiam que o país podia conquistar e defender a sua liberdade. Gryczynski ficou impressionado com a constituição do grupo. Havia filhos de magnatas, pequenos nobres, filhos de mercadores e um punhado de estudantes. Eram sete os oficiais da cavalaria que, ansiosos, manifestavam a opinião que os patriotas deviam deslocar-se para o sul de imediato, a fim de apoiar o que seria um grande levante. Jakub formulou uma pergunta: - E podemos derrotar a Rússia? A resposta veio de um dos oficiais: - Vamos tentar! Estava no poder o czar Alexandre III. Como rei do Reino da Polônia, foi coroado, o irmão do czar, arquiduque Konstanty, e como governador de Warszawa, foi nomeado o general Paulo Szuwalow. Os poloneses tentaram lutar contra o imenso poder russo, mas foram sendo derrotados, presos e aniquilados, um por um. A insurreição foi abafada mais uma vez. O mais forte venceu, mas não conseguiram exterminar o sonho de liberdade de um povo. Jakub Gryczynski pagou caro por sua participação. Detido pela polícia russa e encarcerado “preventivamente”, permaneceu na prisão, seus bens foram confiscados. Não conseguiram provas contra ele e foi solto, mas continuava sob vigilância dos espiões russos. Estava inquieto e inseguro quanto ao futuro. Todos esses fatos o motivaram a repensar sua segurança e a da família. Como a maioria de seus bens foi confiscada, sobrou-lhe apenas o antigo solar e um pouco de terra, cuja renda era insuficiente. A hospedaria em Mazowsze tinha ficado para seus irmãos. No auge da “Febre Brasileira” de emigração, Jakub reuniu a família para conversar. Estava bastante impressio- 448 nado pelas notícias sobre o Brasil; da abundância de terras e principalmente pela apregoada liberdade. Ficou resolvido que venderiam a propriedade e o restante das terras, sem alarde, no silêncio, para não chamar a atenção das autoridades russas. Naquela semana foi providenciar os passaportes para todos. Prometeram-lhe que ficariam prontos dentro de 15 dias. E aí também funcionou a corrupção moscovita, Jakub deu 100 rublos ao funcionário, pelo sigilo e pela rapidez, e no dia seguinte, foi buscar os documentos que já estavam prontos. Eram válidos por três meses. Naquele sábado de fins de abril de 1890, Jakub reuniu alguns amigos e parentes na casa da herdade para despedir-se deles, pois iria realmente partir com a família para o Brasil. Contra a expectativa do dono da casa, que convidara apenas pessoas muito íntimas, compareceu também o pároco da igreja local, Anton Czychala, que procurava ser agradável com todos, e, depois de tirar o chapéu e ajustar o colarinho da batina num gesto automático, dirigiu-se para a sala de visitas, com a gravidade de quem carrega um andor em dia de festa. Os vizinhos entraram e foram cumprimentar Jozefa, a dona da casa, séria, um tanto chorosa, sentada numa postura rígida. Perto dela em pé, estava a filha Stephania, de uma beleza juvenil, de grandes olhos castanho-esverdeados, de tez alva e pura como um floco de algodão; os longos cabelos castanhos, enrolados em grossas tranças, brilhavam com tons dourados; descobriam a fronte e caíam em volta do pescoço. Seu traje era de uma simplicidade original. Tinha sobre o vestido branco um saiote azul preso à cintura por um fita larga, formando um laço que caía as costas. Os lábios vermelhos, de sorriso provocador, davam a este rosto um poder de sedução irresistível. 449 A outra moça, Ksavera, de 19 anos, estava sentada próxima à irmã, no banco encostado à parede. Era um tipo inteiramente diferente do de Stephania; não competia com ela. Alta, o rosto rosado queimado pelo sol, de olhos escuros, cabelos castanhos, presos em tranças, com fitas nas pontas; o sorriso triste dava a este semblante um ar de seriedade. Vestida com simplicidade, ouvia as palavras do pai com atenção. Os dois filhos homens, Wladyslaw e Aleksander, estavam de pé próximo ao pai, que recebia as visitas à porta. Wladyslaw estava com 16 anos, era de estatura mediana, um tanto atarracado, de cabelos castanhos e olhos castanhoesverdeados, parecia-se um pouco com a mãe. Já Aleksander, que tinha 15 anos, era alto para sua idade, magro, parecia uma vara, tinha olhos e cabelos escuros, a pele amorenada; era muito parecido com o pai, até no modo de falar. Jakub, com expressão grave, falou aos convidados: - Sabem com quanta dor no coração abandono este país. Aqui estabeleceram-se e viveram meus antepassados. - Trabalharam e criaram seus filhos, apesar das dificuldades criadas pelos invasores da nossa pátria. Mas não vejo horizontes de paz para o trabalho profícuo, portanto, vou procurar outras plagas; terras onde há promessa de paz e liberdade; onde poderei ter garantias de propriedade. Existe terra em abundância, tanto quanto possa comprar. Pois, este é o sonho de todo polonês, que ama a terra acima de tudo. Todos escutavam em silêncio. Cabeças baixas, meditavam sobre as palavras que estavam sendo proferidas pelo seu amigo e vizinho. Davam-lhe toda razão. Muitos deles seguiram os seus passos e emigraram para o Brasil. Duas pessoas da família revoltaram-se, não queriam ir embora. Stephania que estava noiva do tenente Zbi450 gniew Orlowski ao qual amava muito, e não queria abandoná-lo.Tinha uma vida confortável no palacete da família Poniatowski, onde trabalhava. Wladyslaw era o terceiro filho do casal Jakub Gryczynski e Jozefa Poniatowska. Nasceu no dia seis de março de1874, em Gryczynszczyzna, propriedade rural da família. Criou-se brincando e correndo pelos campos, junto com os meninos da aldeia; igual a potros selvagens. A aldeia possuía uma escola primária, que era freqüentada pelas crianças locais, como também pelos filhos do proprietário. Wladyslaw também estudou nesta escola; seguiu depois para Warszawa, onde faria o Curso Médio. Para vencer as dificuldades, principalmente as materiais, devem muito aos parentes Poniatowski. A condessa descobriu o talento e o gosto pelo estudo do menino, e estendeu-lhe a mão. Hospedou-o na sua casa, onde já estava sua irmã Stephania. A cidade grande exerceu grande influência no despertar dos seus sentimentos patrióticos. Nas longas e frias tardes neste recanto do país, reuniam-se as pessoas pelas casas, para com as janelas vedadas e escurecidas, levar sigilosas conversas sobre como poderiam expulsar os inimigos da Pátria. Durante as férias escolares, Wladyslaw, com o seu idealismo estudantil, tomava parte ativa nessas reuniões; não via perigo nessa atividade. Não queria abandonar os estudos, acostumara-se à vida citadina. Jakub, prevendo o perigo que o estava ameaçando, e a sua família, decidiu apressadamente abandonar as propriedades e fugir pela fronteira verde para a Prússia, e de lá via porto de Hamburgo na Alemanha, para o Brasil. O pai exigiu que toda a família o acompanhasse na viagem. Não deixaria ninguém para trás. Foi categórico na sua autoridade paterna. Não teve proposta que o demovesse da idéia de emigrar com toda a família. 451 No dia 17 de abril de 1890 embarcaram no navio Darmstadt, alemão, Jakub Gryczynski, a esposa Jozefa, e os filhos, Ksawera, Stephania, Wladyslaw e Alexandre. Durante 22 dias eles viajaram pelo Oceano Atlântico enfrentando o mar, às vezes calmo, outras revolto, formando ondas gigantes que faziam o navio balançar perigosamente. Eram 2.600 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, dividindo o espaço apinhado do navio. Fugiam da injustiça, arbitrariedade e opressão reinantes na sua pátria. Cheios de esperança, o camponês, o operário e o pequeno agricultor se deslocavam através dos mares para esse encantado Brasil, à procura de trabalho, terra e liberdade. 452