O Colar de Âmbar Amarelo

Transcrição

O Colar de Âmbar Amarelo
POLÔNIA
Polônia, república da Europa Oriental, é banhada ao
norte pelo mar Báltico, a leste faz fronteira com a Rússia, a
Lituânia, a Bielorússia e a Ucrânia, ao sul elevam-se os
Montes Cárpatos e a fronteira com a República Tcheca e a
Eslováquia, a oeste com a Alemanha.
Sua superfície atual é de 312.683 quilômetros quadrados. A capital Warszawa (Varsóvia) está situada à beira
do rio Wisla (Vistula), que nasce nas vertentes do monte
Barania, nos Tatras, e deságua no Mar Báltico, tem 1.070
quilômetros de extensão e é uma via muito importante de
navegação.O país tem clima temperado, de invernos medianamente rigorosos com nevascas freqüentes e verões moderados.
A mais recente glaciação, começou há aproximados
1.000.000 de anos (no início do Plistoceno, Idade do Gelo),
terminou há cerca de 11.000 mil anos. Quatro vezes, durante essa época, as camadas de gelo se expandiram e se
retraíram. As geleiras cobriram grande parte dos continentes do hemisfério norte e do hemisfério sul.
Na época do Plistoceno, que se compõe de diversos
períodos de clima extremamente frio e conseqüentes glaciações, alternados por períodos interglaciais de clima quente,
a região da Polônia, incluindo as baixadas, o norte e a parte
central do país, alcançando até ¾ da superfície, deve a sua
formação, principalmente, às geleiras do Plistoceno, as
quais em diversas épocas da glaciação estendiam-se do norte da Europa até o sul da Polônia, alcançando as encostas
dos Cárpatos e Sudetos.
Os maiores vestígios atrás de si deixou a última glaciação, que desapareceu das terras polonesas há 14.000 mil
anos. As geleiras escandinavas detiveram-se na linha que
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demarca hoje a região dos lagos mazovianos separados por
extensos vales e planícies arenosas, que são efeitos do afastamento das águas formadas do degelo dessas imensas massas congeladas. Portanto, a Polônia é um país de terrenos
baixos; a elevação média acima do nível do mar é de 137
metros, e de 1,8 metros abaixo do nível do mar.
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Os primeiros homens, possivelmente também o de
Neanderthal, surgiram na região onde hoje é Polônia, no
último período interglacial, por volta de 180 mil anos a.C.,
quando o clima quente favoreceu o desenvolvimento de
imensas florestas e campos povoados de animais como bisões, mamutes, cervos, ursos, renas, rinocerontes e outros.
Eram pequenos bandos desses homens pré-históricos que viviam em cavernas. Utilizavam ferramentas e armas de pedra e osso. Eram nômades e já conheciam o fogo.
Alimentavam-se de frutas silvestres, da caça e pesca. Posteriormente, iniciaram a domesticação e criação de animais e
a cultura primitiva de grãos. Esta situação obrigava a fixação do homem à terra e a construção de acampamentos fixos.
Tribos de cultura norte-européia que se estabeleceram em terras polonesas também cultivavam cereais e criavam gado.
.A marcha para o leste de grupos de agricultores
camponeses, acompanhando o cinturão de florestas e das
estepes, inaugurou uma das primeiras rotas de comércio
entre a China e o noroeste da Eurásia no fim do segundo
milênio a.C.
Esse importante fato abriu caminho às migrações
dos Árias, povos nômades que, saindo da Ásia Central, do
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vale do Rio Indus e das estepes da antiga Pártia hoje Seistão, que fica entre o Irã e o Afeganistão, seguiram em direção à Europa Central, abandonando as planícies secas e as
estepes.
A partir de 1000 a.C., essa cultura começou a expandir-se para áreas adjacentes aos grandes rios. Quatro
ramos principais podem ser identificados, e cada um deu
origem a um importante grupo de povos históricos: celtas
no ocidente, eslavos ao norte, povos de língua itálica ao sul
e ilírios a sudeste.
Em 150 d.C., os germânicos orientais foram para o
sul em direção aos Cárpatos e às terras ao norte do Mar Negro. Seguiram-se as investidas dos bárbaros – visigodos,
hunos, suevos, vândalos e álanos, povos do Norte, invasores do Império Romano do Ocidente, entre os séculos III e
VI da nossa era, ameaçando as civilizações que se desenvolveram na bacia do Mediterrâneo.
Nos séculos IX e X, a Europa Ocidental sofreu ataques de três grupos de forasteiros: sarracenos, húngaros e
vikings, que eram escandinavos. As primeiras incursões
vikings ocorreram no fim do século VIII, ano de 793.
Da Irlanda, Noruega e Dinamarca saíam em barcos
velozes para saquear cidades e igrejas na Grã-Bretanha e no
Império Franco. Durante esses acontecimentos no Ocidente,
os suecos estavam atravessando o mar Báltico, desciam o
rio Volga até Bolgar, onde os muçulmanos ansiavam por
adquirir peles de animais e escravos que os suecos capturavam nas florestas do norte da Rússia.
Os líderes vikings, que se tornaram senhores de locais como Kiew e Nowgorod, foram influenciados pelos
eslavos, mas mantiveram laços dinásticos com a Escandinávia; estabeleceram bases no oeste e leste e constituíram
uma ameaça mais duradoura. Os invasores escandinavos
foram assimilados pelos povos locais, bem como os suecos,
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que foram para o leste em busca de riquezas entre os eslavos e finlandeses.
A religião dos vikings surgiu nos séculos IX e X
d.C., mas suas origens são bem anteriores, remontando à
Idade do Bronze escandinava, entre 1760-500 a.C. Durante
esse tempo, florescia na Europa Setentrional o culto a Wodan, ou Odin, que se tornou o expoente do panteão cultuado
pelos vikings. Walquírias eram as donzelas de Odin, “O Pai
Supremo”. Thor, era o grande Fazedor de Trovões e deus
da Fertilidade.
Os eslavos pagãos cultuavam seu deus em santuários, fazendo oferenda das colheitas, de frutas, flores e sacrifícios de animais. Nessas ocasiões, organizavam folguedos e danças, que finalizavam com a corrida de homens, em
bandos, para a floresta adentro, levando consigo, as vezes à
força, jovens mulheres. Seguiam então os mandamentos de
„Thor”.
As mortes eram aceitas com tranqüilidade; nos funerais ofereciam-se comida, bebida, danças e jogos alegres;
os cadáveres eram queimados em piras
A raça eslava, entre outros povos do ramo lingüístico e etnográfico da família indo-européia, tem os Árias
como antepassados remotos, e destes, o grupo Lusácio o é
diretamente. Habitavam regiões da Europa desde Venêcia
ao Ural, e a raça ainda se estendeu por uma grande parte da
Ásia Soviética Central e Europa Oriental.
Do grupo Lusácio: os antepassados dos eslavos ocidentais são os vénedos polábios (polábio, antiga língua eslava da região do Elba), que se tinham estabelecido em 937
às margens do rio Elba e do Oder, ao norte da Boêmia e até
o Mar do Norte. No século X os povos eslavos enfrentaram
com sucesso os alemães na Grande Revolta Eslava em 983,
e expulsaram-nos da região. Porém, permaneceram desunidos e pouco organizados.
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Os eslavos, descendentes dos Árias, são da família
dos indo-europeus, que se dividem em três grupos:
1º - Eslavos ocidentais: na Polônia, Eslováquia,
Boêmia, Morávia, Ucrânia, os vênedos da Lusácia e a Rússia sub-carpática;
2° - Eslavos orientais ou russos;
3° - Eslavos meridionais ou Iugoslavos.
Dá-se o nome de Árias ou Arianos ou ainda Indoeuropeus à quase totalidade das raças brancas da Ásia e da
Europa. Nos fins do século XVIII, o conhecimento das duas
línguas, sânscrito e zende, fez notar entre elas e a maior
parte das faladas na Europa (com exceção do basco, do finês, do magiar e do turco) uma estreita afinidade.
Os habitantes da Europa são predominantemente
caucasóides; compreendem três origens básicas, determinadas pelos aspectos físicos e semelhança de língua.
O grupo românico, cujas línguas derivam do latim,
são os franceses, espanhóis, portugueses, italianos, romenos, que habitam o sul.
O grupo germânico, cujos povos habitam o norte e
oeste, são os ingleses, alemães, holandeses, dinamarqueses,
suecos, belgas, austríacos, suíços e outros.
O grupo eslavo, que vive no leste, são os tchecos,
eslovacos, poloneses, russos, lituanos, ucranianos, sérvios
bielorussos, búlgaros, croatas, iugoslavos, eslovenos e os
vênedos da Lusácia.
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II
CAMPOS SELVAGENS
Era o ano de 1648.
No momento em que começa esta narrativa, o sol
poente lançava os últimos raios sobre a paisagem deserta
das estepes da Ucrânia, era fim de um dia quente de verão.
Do extremo norte dos Campos Selvagens até as
margens do Dniester (rio que nasce nos Cárpatos, na Polônia, banha o oeste da Ucrânia e deságua no Mar Negro) e a
leste até Chortyca no Dnieper, não se percebia o menor
movimento na mata espessa da planície.
O rio Dnieper origina-se nas colinas de Waldai, na
Bielorússia, atravessa a Ucrânia e deságua no Mar Negro
por dois braços, formando um grande Delta; tem 2.285 quilômetros de extensão.
Logo após a grande curva do rio, abaixo das cataratas, no Delta, habitava uma população de zaporogos,
enquanto no próprio centro da planície não havia indícios
da presença humana. Apenas nas margens dos rios surgiam
alguns campos cultivados pelos cossacos e camponeses
ucranianos mais corajosos.
Todas essas terras pertenciam à Coroa da Polônia,
pelo Tratado de União entre Polônia e Lituânia durante a
dinastia Jagiellon. Ucrânia consta na história desde o século
IX como vassala da Lituânia, depois da Polônia. Desapareceu como individualidade política desde o século XVII,
passando à suserania da Rússia. Ressuscitou como Estado
da Ucrânia em 24 de agosto de1944.
O rei Jan II, Kazimierz Waza, deu aos tártaros a
permissão para que levassem para as estepes os seus rebanhos, mas os cossacos opuseram-se a esse direito, e as vas6
tas planícies tornaram-se campos de batalha. O tártaro atacava o cossaco; o ladrão de ovelhas e gado também atacava
o viajante; o pastor armava-se para defender o seu rebanho;
camponeses defendiam suas famílias. No meio dos matagais, homens caçavam-se como lobos.
A metade do disco solar aparecia ainda no horizonte, tingindo o céu de dourado e rubro escarlate, e de
mansinho, aqui e acolá, já as trevas começavam a envolver
a terra, espalhando sombras fantasmagóricas.
No alto dum morro, mais parecido com um túmulo,
levantavam-se as ruínas de um castelo-fortaleza, construído
em tempos passados pelo castelão Fiodor Wasilewski e
destruído pelas inúmeras incursões tártaras e mongóis.
Tênue escuridão ia se estendendo por aqueles ermos
temíveis; ao longo do rio as águas cintilavam, com os últimos raios lançados pelo sol que lentamente ia sumindo, e
toda a claridade se extinguia. Bandos de pássaros voavam
para os seus ninhos, escondidos no meio do matagal, e enchiam de gritos estranhos o ar tranqüilo; nenhum outro
ruído interrompia esta paz solene.
A noite baixava sobre a estepe e com ela começava a
hora mística de sussurros, sons e uivos. Iniciava-se o
grande drama da natureza, em que os animais selvagens,
timidamente, se arriscavam a sair dos esconderijos para a
caçada noturna.
Pastores cossacos contavam que nos Campos Selvagens vagueavam as almas de guerreiros mortos, arrependidos dos seus atos, e que estas sombras apavorantes realizavam danças desenfreadas e infernais; vampiros sanguinários, ululantes, perseguiam os desgraçados viajantes
que por ali se aventurassem.
Fantasmas de almas penadas, armados e montados
em cavalos negros que soltavam fogo pelas ventas, corriam
pela planície. Inúmeros outros espíritos chegavam perto das
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muralhas da fortaleza em ruínas, tanto que os cossacos de
vigia, apavorados, davam gritos de alarme. E muitas vezes
um homem bem vivo, em carne e osso, aparecia e desaparecia como uma sombra, podendo facilmente ser tomado
por um fantasma. Não era caso para admirar se vissem um
cavaleiro, ao pôr-do-sol, junto à fortaleza em escombros.
A luz prateada da lua que nascia para além do Dniester cobria de raios a vasta extensão da estepe. Com intervalos, a brisa soprava do rio, curvando os arbustos que tremiam como se invadidos por súbito terror que impregnava
o espaço.
Ao pálido reflexo da luz da lua, via-se um cavaleiro
sempre imóvel na pequena colina que dominava o espaço;
um leve ruído atraiu-lhe de repente a atenção; avançando
até a borda do montículo, mergulhou o olhar nas trevas...
Mas, no mesmo instante, através do vento, ouviu-se um
gemido agudo, acompanhado de gritos violentos!
- Allah! Allah! - Senhor Deus! - Salve-se quem puder! Fujam...matem...
Tiros de mosquete quebraram o silêncio, relâmpagos
avermelhados cortaram a noite. Patear de cascos de cavalos
confundiu-se com o ruído das armas. O bando de guerreiros, nas sombras da noite parecendo fantasmas, lançou-se a
fugir como um raio, no deserto sinistro. Gritos humanos
responderam a uma nova descarga, e depois tudo recaiu no
silêncio. Ouvia-se apenas o piar da coruja em cima do topo
da árvore.
Um grupo de cavaleiros que por ali passava, neste
momento, escutou os gritos de socorro, subiu a colina a
galope. Chegando ao alto os homens olharam atentamente
em volta de si. O cavaleiro que apresentava ser o chefe,
com uma voz imperiosa ordenou-lhes:
- Desmontem dos cavalos! Acendam uma fogueira!
Precisamos rapidamente iluminar o espaço.
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Num momento, uma chama se elevou dum montão
de palha e de ramos secos. A claridade avermelhada iluminou um grupo de homens inclinados para um corpo que
jazia imóvel. Eles usavam uniformes encarnados e bonés de
pele de lobo. O chefe, apeou de um magnífico cavalo negro
e perguntou:
- Está vivo?
- Sim, tenente. Respira apenas... a corda quase que o
estrangulou...
- Quem é ele?- perguntou o oficial.
- Um grande senhor, creio eu, diria até que é um ataman (chefe dos cossacos).
- E que cavalo! - observou o sargento.
- O próprio khan (príncipe mongol) não tem igual.
O tenente examinou o cavalo, e o seu olhar brilhou
num relâmpago de alegria. O diálogo foi interrompido por
um estertor do desconhecido.
- Iremos passar a noite aqui?- perguntou um deles.
- Sim, tirem as selas dos cavalos e avivem a fogueira
– concluiu. Os soldados foram executar a ordem.
O comandante, sem mais se preocupar com o desconhecido, estendeu-se junto ao fogo sobre uma pele de urso;
dois soldados aprontavam a ceia. Um carneiro cortado em
quartos foi colocado sobre fogueira espetado em varas de
paus, enquanto outro homem esfolava um cabrito. Diversos
pássaros apanhados durante o dia foram enfileirados num
espeto. A chama crepitava e o aroma da carne assada espalhava-se ao redor.
O desconhecido emitiu alguns gemidos, começava a
recuperar os sentidos, tentou levantar-se; seu rosto estava
ainda congestionado e as veias do pescoço inchadas.
-Wodka! dêem-me um pouco de wodka - articulou
com voz surda.
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- Dêem-lhe wodka, e desembaracem-no do cinturão
- ordenou o oficial.
Alcançaram-lhe um cantil, do qual ele bebeu com
avidez.
- Em poder de quem me encontro? – perguntou.
O tenente acercou-se dele e informou:
- Em poder de vossos salvadores, se não fôssemos
nós, a esta hora estarias morto...
- Não foram então teus soldados que me lançaram
um laço no pescoço?
- Não nos servimos de laço, mas de nossos sabres...
Foste perseguido por um bando de salteadores.
- Nesse caso, respondeu o desconhecido, deixa-me
repousar um pouco mais.
Estendeu-se sobre a capa jogada na grama. Trouxeram-lhe uma sela, sobre a qual colocou a cabeça, fechou os
olhos e ficou silencioso, por um bom espaço de tempo. Após ter repousado alguns momentos, levantou-se e, sem
dirigir a palavra a ninguém, foi examinar os cadáveres. O
desconhecido observou os mortos meneando a cabeça, como tendo a certeza de qualquer coisa. Voltou, lentamente,
para o alto da colina, procurando o cinturão.
- Antes de tudo - disse o tenente - desejaria saber a
quem salvei.
- Tens razão. Devia começar por dizer-lhe o meu
nome. Chamo-me Bohdan Zenobio Bazarbuk, proprietário
na província de Kiew e coronel do regimento cossaco sob
as ordens do príncipe Dominico Zaslawski Ostrowski.
- Serves a um grande homem de guerra - disse o oficial, e estendeu-lhe a mão, a qual o desconhecido apertou
com vigor.
- Eu sou Boguslaw Wasilewski, tenente dos dragões
do príncipe Jeremias Wisniowiecki.
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Os dragões, na verdade, olhavam do alto do seu orgulho os soldados de outras armas, mas estavam na presença de um coronel, do que ele se certificou vendo os soldados entregarem a Bazarbuk o seu cinturão, o sabre e um
bastão de marfim, que somente os chefes cossacos tinham o
direito de usar. Ao mesmo tempo, a linguagem de Bazarbuk
revelava um indivíduo bem educado e de boa sociedade.
Boguslaw convidou-o a partilhar da sua ceia.
O apetitoso odor da carne assada espalhava-se pelo
ar; os dois oficiais comeram com grande apetite, e quando
se esvaziou uma garrafa de vinho moldavo, a conversa tornou-se viva e cordial.
- Donde vens, tenente? - perguntou Bazarbuk.
- Venho da Criméia – respondeu o tenente.
- E o que foste fazer na Criméia? Trocar prisioneiros
talvez? – indagou o coronel.
- Não, fui encontrar o khan – informou Boguslaw.
O coronel Bazarbuk tornou-se atento.
- E para quê, foste?
- Para entregar-lhe um despacho do príncipe Jeremias Wisnowiecki.
- Ah! Vens de uma embaixada. E o que desejava o
príncipe do khan?
- Ignoro - respondeu Boguslaw.
- Admiro-me que Jeremias tivesse escolhido um
oficial tão jovem para ser seu correio... mas agora compreendo ouvindo a tua resposta. O valor e a prudência não conhecem o número dos anos.
- E o que fazias aqui sozinho?- perguntou o tenente.
- Não estou só, deixei a minha escolta a pouca distância. Atualmente a estepe está tranqüila, conheço-a bem
há muito tempo... o que me aconteceu foi pura maldade
humana.
- Como? Mas, por quê? - perguntou o tenente.
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- É uma história comprida. Um pérfido vizinho, que
destruiu as minhas propriedades e que me roubou um filho,
tentou assassinar-me. Eis tudo - esclareceu Bazarbuk.
Um surdo rumor de galope de cavalos ressoou na
planície até ali silenciosa. Momentos mais tarde emergiram
da sombra fileiras de soldados a cavalo. Alguns homens
desmontaram e se aproximaram da fogueira para aquecer as
mãos ao fogo porque a noite estava fria. Eram quarenta ao
todo, robustos e bem armados.
O tenente notou também que os cossacos, habituados a tratar os seus chefes com familiaridade, testemunhavam a este uma grande deferência, como a um ataman. Certamente Bazarbuk devia ser um cavalheiro que ocupava um
alto posto na hierarquia. O coronel ordenou que lhe trouxessem o cavalo.
- Em viagem não se pode parar - disse ele. Mais
uma vez te agradeço, tenente, o ter-me salvo a vida. E peço
a Deus que um dia te possa prestar igual serviço...
- Não mereço reconhecimento, porque não olho a
quem salvo.
- Dizes isso com uma modéstia que não é inferior a
tua coragem. Permite-me que te ofereça este anel...
O tenente Boguslaw recuou, lançando sobre o seu
interlocutor um olhar fulminante.
- Examina este anel, tenente - prosseguiu Bazarbuk não é nem rico, nem belo, mas tem grande valor. Foi um
peregrino que voltava da Terra Santa que mo deu outrora,
quando eu era prisioneiro dos infiéis. Este anel defender-teá do perigo, quando tiver soado a tua hora suprema - digote eu - que não está muito longe.
Houve um curto silêncio, apenas ouvia-se o crepitar
da chama e o relincho dos cavalos presos por rédeas às
árvores. Ao longe na planície, ressoava o uivo lúgubre dos
lobos...
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O tenente aceitou o anel daquele homem, que em
seguida voltou-lhe as costas e, montando a cavalo, saiu a
galope. A escolta esperava-o no sopé do morro.
Boguslaw Wasilewski salvou a vida do suposto Bazarbuk, que na verdade era o coronel Bohdan Zenobio Chmielnicki. Ele era o chefe do exército dos zaporogos e herdeiro de Subotoff, tinha a altivez dum ataman, mas a mão
pesada e o pensamento rápido de salteador.
Os cossacos obedeciam-no cegamente. Era um homem inteligente. Autoritário, destemido, astuto como uma
raposa, e vingativo. Quando o ódio o dominava, sabia ser
terrível, perseguia os seus inimigos até a morte.
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A praça do mercado de Czerkasy estava superlotada;
a multidão se comprimia no grande largo invadido por bois,
cavalos e camelos que seriam comercializados. Junto deles,
os pastores, habituados à vida selvagem nas estepes, homens incultos, sem religião nenhuma. Entre eles, alguns,
que tanto eram pastores como bandidos, cruéis, terríveis,
esfarrapados.
A maior parte deles ostentava como única vestimenta duas peles de carneiro com a lã para fora, presas no
ombro, deixando a descoberto, tanto no verão como no inverno, o peito bronzeado pelo sol e vento das planícies da
estepe. Todos estavam armados, ainda que com a mais extravagante variedade de armas. Foices, machados, lanças
com ferro nas pontas, mosquetes e pistolas.
Os homens do sul, não menos selvagens, juntavamse aos pastores. Vendiam peixe seco, caça e gordura de carneiro; outros vendiam mel e cera de abelhas. Camponeses
nas suas carroças, cossacos, tártaros e Deus sabe quantos
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mais, vindos de todos os lados das terras eslavas. A cidade
estava repleta de viajantes e mercadores.
Czerkasy estava situada à direita do Dnieper, era
ponto obrigatório de parada das comitivas que desciam o
rio com destino ao mar Negro. Todos ali se entregavam à
orgia. Fogueiras ardiam na praça, em todos os cantos ouviam-se gritos e gargalhadas dos homens embriagados.
O som agudo das flautas tártaras e o rufar dos tambores misturavam-se às vozes dos animais nervosos, agitados, turbulentos. Tudo isso era, ao mesmo tempo, pitoresco
e terrível. Ninguém seria capaz de agüentar por muito tempo esse caos que dominava a cidade.
Após essas hordas, vinham os zaporogos, homens
que habitavam o Delta do Dnieper, rudes, ferozes, meio
bárbaros. De origem mongólica ou turco-tártara, constituíam uma verdadeira classe social na Ucrânia.
Revoltados contra os nobres que lhes retiraram as
prerrogativas concedidas pelo rei polonês Jan II, Kazimierz
Waza, na lei promulgada em 1648, que aliviava o peso da
servidão. O rei não teve autoridade suficiente para fazer-se
obedecer pelos magnatas que continuaram a oprimir e explorar os servos. Os cossacos, prejudicados nos seus privilégios, guerreavam contra a Polônia e contra os magnatas;
comandados pelo hetman Bohdan Zenobio Chmielnicki,
que os chefiou de 1620 a 1657.
Sucedeu-lhe no comando das tropas dos zaporogos
Ivan Stepanovitch Mazepa, antigo pajem da corte de Jan
Kazimierz. Homem de vida inquieta e belicosa, dissoluto;
certa ocasião foi surpreendido em flagrante delito de adultério por um nobre. Foi amarrado nu a um cavalo bravo, untado com alcatrão e entregue à fúria do animal; este, nascido nas estepes da Ucrânia, levou-o para lá.
Desmaiado em cima do cavalo, foi recolhido pelos
cossacos, passou a viver com eles uma vida de guerrilhas
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pelas planícies. Mais tarde, conseguindo granjear-lhes a
confiança, foi escolhido como hetman, para chefiá-los na
guerra contra a Coroa e os nobres, luta que se estendeu por
todos os anos seguintes, com pequenos intervalos.
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As cartas do rei Jan Kazimierz seriam um grande
perigo se caíssem nas mãos de Chmielnicki, e fossem levados para o Delta, pois que estavam cheias de promessas aos
cossacos e de incentivo à resistência, a eles que já vinham
desde há muito tempo mordendo impacientemente o freio
que lhes tinham posto. Lembravam-se dos seus antigos privilégios e odiavam os nobres e seus comissários.
Formavam um poder organizado que também tinha
a simpatia da incomparável massa de camponeses de toda
Ucrânia. Tudo isto era relevante, pelo fato de estar sendo
declarada guerra contra os muçulmanos, e o rei contava
com as forças cossacas, no seu exército.
O príncipe Jeremias Wisniowiecki, homem valente e
guerreiro consumado, era terrivelmente senhor de si mesmo
e das suas tropas; por outro lado, o nome de Jeremias era
temível, e se soubessem que ele tinha as vistas sobre os
zaporogos, estes se conservariam em paz.
As fogueiras crepitavam na praça, espalhando pela
cidade tão intensa claridade que Czerkasy parecia estar a
arder por toda parte. Os gritos e o barulho aumentavam com
a aproximação da noite. Os habitantes locais não ousavam
sair das suas casas. Em cada esquina, grupos de condutores
de camelos ululavam as canções gemebundas das estepes.
Os zaporogos selvagens dançavam em volta das fogueiras, lançando os bonés ao ar e bebendo goraika. Escu-
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tavam-se os gritos e o tumulto dos cossacos; e os seus cantos ressoavam pela cidade.
Já era o começo de outubro daquele ano. O inverno
não tinha dado sinais da sua aproximação, e o ar cheirava à
primavera, o solo estava mole e brilhante de neve derretida.
Os campos estavam cobertos de verde e o sol dardejava os
seus raios com tal força que os viajantes podiam julgar estarem em pleno verão.
A escolta do tenente Boguslaw Wasilewski tinha
aumentado em Lwow, compreendia agora uma embaixada
romena que o hospodar da Walaquia enviava a Kiew. O
resto da comitiva compunha-se de dragões e de servidores,
além dos quarenta cossacos do seu regimento. O ardor do
sol, o tempo esplêndido, a aparente volta do verão enchiam
todos os corações de alegria, e o tenente mostrava-se dentre
todos o mais entusiasmado, porque, depois da longa viagem, iria para junto do seu príncipe.
Havia ainda outras causas para este contentamento.
Na corte do príncipe, a quem ele amava e respeitava, certos
magníficos olhos negros o aguardavam. Estes olhos pertenciam a Anusia Skorupa, dama de honra da princesa Dorota
Wisniowiecka, uma linda donzela, por quem os homens
definhavam, enquanto ela se mostrava indiferente para com
todos eles.
A princesa Dorota velava cuidadosamente pela virtude de suas damas e exigia delas comportamento austero.
Mas não podia proibir que os cavalheiros lhes enviassem
olhares ternos e suspiros. Boguslaw, como todos os outros,
pagava o seu tributo aos olhos negros da senhorita Anusia,
e não era raro agarrar na cítara e cantar melodias apaixonadas embaixo da sua janela.
O príncipe Jeremias Wisnowiecki tinha um magnífico
exército sob as suas ordens, eram oito mil soldados, sem
contar os cossacos dos pontos avançados. Afirmava-se que
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estava em preparação um grande exército para a guerra
contra os turcos, e que o próprio rei marcharia à frente de
todas as forças da Coroa, juntamente com os seus generais.
Alguns dias depois, Boguslaw Wasilewski e a sua
escolta seguiam em direção de Czerkasy. A região nas duas
margens do Dnieper era deserta, selvagem, com freqüência
invadida pelos tártaros e exposta aos assaltos dos zaporogos. Cortavam-na riachos numerosos e era coberta por imensas florestas de larícios (pinus larix) e matagais impenetráveis, onde o homem jamais pisara.
Havia toda espécie de animais selvagens, e aqui eles encontravam abrigo seguro. Ursos, javalis ferozes, lobos, linces, gansos, avestruzes e milhares de pássaros exóticos. Nos rios, os castores construíam as suas casas. Entre os
zaporogos corria a lenda que dentre eles havia alguns com
mais de um século de vida e eram brancos como a neve.
Hordas de cavalos selvagens de crina eriçada e de
olhar sangüíneo corriam pela estepe desabitada. Os rios,
cheios de peixes, e suas margens habitadas por numerosas
aves aquáticas.
Era uma região estranha, meio sonolenta; mas onde
havia vestígios da passagem do homem, ficaram por toda
parte a devastação e as ruínas das cidades antigas. O lugar
era inóspito, pouco acessível. Assim que os camponeses ali
se estabeleciam e começavam a lavrar a terra, as incursões
tártaras logo os dispersavam ou dizimavam.
O tenente Wasilewski cavalgava tranqüilamente na
frente da sua comitiva quando o diálogo foi interrompido
por um estranho ruído de asas, como se os pássaros estivessem sendo perseguidos. Chegando a encruzilhada, o
tenente parou e viu no meio do caminho uma carruagem da
qual uma das rodas tinha-se quebrado. Os cavalos desatrelados estavam sendo seguros por um cossaco, e ao lado da
condução avariada estavam duas mulheres.
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Uma delas ostentava um casaco com capuz de raposa; era severo e viril o seu rosto. A outra era uma jovem
de estatura elevada, de feições nobres e regulares. Um falcão pousava tranqüilamente sobre o seu ombro e alisava as
penas com o bico.
O tenente reteve o cavalo com tanta força que as
patas do animal afundaram-se na areia do caminho; levou a
mão ao boné, para saudar as duas mulheres. E a sua confusão provinha também de que, sob o capuz de zibelina, brilhavam os mais belos olhos que ele tinha visto durante toda
a sua vida.
Olhos negros, acetinados, fulgurantes, cheios de vida, junto dos quais os olhos de Anusia não passavam duma
candeia ao pé dum archote. E acima daqueles olhos, sobrancelhas de veludo desenhavam os seus arcos delicados.
Um rosto cor-de-rosa cintilava como a mais fresca flor, e
pelos lábios entreabertos apareciam os dentes como pérolas.
Boguslaw conservava-se imóvel, de boné na mão,
como perdido na contemplação daquele corpo esbelto como um pinheiro. Com o pássaro sobre o ombro, a jovem
parecia a imagem de uma deusa da floresta. Ela estendeu a
mão ao falcão, que imediatamente saltou do ombro para a
sua mão. O tenente antecipou-se ao falcoeiro desejando ele
mesmo receber o pássaro; mas então o falcão, sem deixar os
dedos da jovem, com o outro pé agarrou a mão de Boguslaw e começando a soltar gritos alegres, conseguiu aproximar as duas mãos, até elas se tocarem.
A mulher idosa, interveio:
- Quem quer que sejas, senhor, não recusarás o auxílio a duas pobres mulheres aflitas, no meio do caminho.
Apenas temos a percorrer umas quinze werstas (antiga medida itinerária russa equivalente a 1.067 metros), mas uma
roda da nossa carruagem partiu-se e parece que teremos de
passar a noite aqui. Ordenei ao condutor que fosse avisar o
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meu filho, mas antes que ele chegue virá a noite, e é terrível ter de ficar na escuridão... porque na vizinhança existem
túmulos e há fantasmas à noite...
Boguslaw respondeu com delicadeza:
- Não penseis, senhora, que vos deixaremos aqui
sem auxilio. Vamos à Kiew porque somos soldados a serviço do príncipe Jeremias, e mais ou menos seguimos a
mesma direção, mas mesmo que assim não fosse, eu me
sentiria muito feliz em vos ajudar; viajamos a cavalo, porém, o embaixador que nos acompanha traz consigo a sua
carruagem, e creio que ele vos oferecerá, como verdadeiro
fidalgo que o é.
O embaixador cumprimentou e ofereceu a sua condução às damas.
- Deus recompense o vosso auxílio, senhores. E visto que ainda è longa a distância a Kiew, não recusarão a
minha hospitalidade, nem a de meus filhos. Habitamos
Wasylkow; sou a viúva do príncipe Kosiewicz e esta jovem é filha do mais velho dos Kosiewicz, irmão do meu
marido, que a deixou órfã aos nossos cuidados, disse a
princesa Amalia.
- Sois então a viúva do príncipe Wassili Kosiewicz?
- perguntou Boguslaw.
- Não! - respondeu vivamente a princesa, com uma
espécie de hesitação na voz - sou a viúva de Konstanty e
esta moça é filha de Wassili.
- Fala-se em Kiew do príncipe Wassili. Era um bom
soldado e era confidente do príncipe Miguel Wisniowiecki.
- Nunca fui a Kiew - replicou a princesa com certa
altivez. Das virtudes militares de Wassili nada sei. E é inútil
falar dos seus últimos atos, pois que todos os conhecem.
A essas palavras, a princesa Natacha inclinou a cabeça para o peito como uma flor ferida, e Boguslaw disse
vivamente:
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- Não fale assim, senhora. Um terrível erro da justiça humana condenou o príncipe Wassili à perda dos bens
e da vida, e só conseguiu salvar-se pela fuga. Mais tarde,
porém, a sua completa inocência foi reconhecida e graças a
ela, foi restaurado na sua honra e nas suas virtudes.
A velha princesa fitou em Boguslaw um olhar reprovador, mas não ousou replicar. Voltou-se à Natacha :
- Não é conveniente que ouças estas coisas. Vai ver
se as nossas malas já foram levadas para a carruagem que
estes senhores nos ofereceram tão gentilmente.
- Posso ajudá-la em alguma coisa, senhorita? - ofereceu-se o tenente Wasilewski, dirigindo-se à jovem. E ambos encaminharam-se para o veículo avariado.
- Como posso agradecer-lhe, senhor - murmurou ela
- pela defesa que acabou de tomar por meu pobre pai?
- Desejo trabalhar pelo triunfo da verdade - respondeu o oficial.
- Um tal serviço, senhor, só pode provocar a desgraça - comentou Natacha. Como se compreende que, tendo me visto há alguns momentos apenas, tenhas um tal desejo de servir-me?
- Apenas vos vi, senhorita, esqueci de mim mesmo.
E ambos se consideraram, apesar de terem-se encontrado no caminho como dois entes que se escolheram e
cujas almas voam uma para a outra...
Tinham transportado as malas para outra condução e
pouco depois o cortejo pôs-se a caminho. A caravana entrou pela estrada da floresta, mas apenas tinha dado alguns
passos, quando um galope de corcéis se ouviu e cinco cavaleiros apareceram no caminho.
Eram os filhos da princesa Amalia que, avisados
pelo cocheiro do acidente, acorriam ao seu encontro trazendo um carro puxado por quatro cavalos.
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- Agradeçam a estes fidalgos. Graças a eles não temos necessidade de nenhum socorro. Senhores, eis meus
filhos: Aleksy, Hrynko, Zenobio e Nicolau... o quinto cavaleiro e o amigo dos meus filhos, Bohdan.
- As minhas saudações, princesa, e a ti, Natacha ! –
exclamou o cavaleiro que atendia pelo nome de Bohdan.
Boguslaw Wasilewski reconheceu, no mesmo instante, no quinto cavaleiro que lhe foi apresentado, Bohdan
Zenóbio Chmielnicki, o mesmo personagem ao qual salvara
a vida na emboscada em que este caíra na estepe, apenas
alguns dias atrás. Mas como o mesmo quisera ocultar este
fato, fazendo de conta que nunca antes haviam se encontrado, o tenente seguiu-lhe o procedimento.
Bohdan, tirando o boné de pele de urso, disse:
- Saúdo a vós todos, nobres senhores. Em seguida
esporeou o cavalo, que saiu a galope. Os quatro irmãos por
sua vez, também saudaram os visitantes.
- Muito respeitosamente vos rogamos que aceitem a
nossa hospitalidade - falou um dos filhos.
A caravana prosseguia, quando Bohdan, num golpe
violento no freio, fez estacar o cavalo e voltou, prestes a
precipitar-se contra Boguslaw, que acompanhava a jovem
ao lado da sua condução.
- Afaste-se dessa carruagem! - gritou de repente, e
aproximou-se dele com tal violência que os flancos dos
cavalos se chocaram. E a luz da lua, viu dois olhos que o
fitavam com insolência, desconfiados e zombeteiros ao
mesmo tempo. Estes olhos terríveis luziam como os dum
lobo em floresta sombria.
- O que é isso, Bohdan? - ouviu-se a voz dura e autoritária da princesa Amalia.
Boguslaw estava surpreso e encolerizado, Bohdan
evidentemente provocava-o. Mas por quê? E por qual motivo este ataque inesperado?
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Bohdan obedecera à princesa, que o vigiava e o xingava a meia voz:
- É um doido este demônio cossaco!
- Este oficial está a seu serviço e de seus filhos? perguntou o tenente.
- Como! Não conheces Bohdan? O coronel Bohdan
Chmielnicki, hetman dos zaporogos, o famoso guerreiro, o
amigo dos meus filhos e a quem adotei para ser o meu sexto
filho? É impossível que não tenha ouvido pronunciar o seu
nome, porque é conhecido por todos.
Com efeito, o nome era conhecido por Boguslaw,
pois de todos os chefes dos rebeldes, somente ele personificava exatamente a bravura cossaca, e o seu nome era famoso em toda Ucrânia, nas duas margens do Dnieper. Era o
rei das planícies onde sempre vivera. Servia à estepe, aos
uivos do vento, às campinas, à guerra, ao amor, à orgia, à
sua fantasia.
Daquele momento em diante, o seu desejo seria perseguir Bohdan por toda parte, mas tinha de cavalgar junto à
princesa. Além disso, estavam chegando; os carros acabavam de atravessar os fossos de Wasylkow, as luzes brilhavam ao longe no meio das frondosas árvores.
***
Os Bulugian Kosiewicz descendiam duma antiga linhagem de príncipes, que se diziam descendentes do kniaz
(princípe) Rurik “O Viking”. Viviam, parte da família na
Lituânia e outra parte na Volínia, até que o príncipe Wassili, um dos descendentes numerosos da linha volíniana, se
estabeleceu acima do Dnieper, em Wasylkow, entre Zytomir e Kiew. Converteu-se ao rito latino, católico, e esposou
uma jovem austríaca, descendente de uma nobre família.
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Deste casamento nasceu um ano depois uma filha, que recebeu o nome de Natacha. A mãe, ao dar à luz, não suportou as dores e faleceu em seguida.
Príncipe Wassili, seu marido, não pensou mais em
casar-se novamente, dedicou-se exclusivamente à gerência
dos seus bens e à educação da filha. Era um homem de
grande caráter. Adquiriu muitos bens e chamou junto de si
o seu irmão Konstanty com a esposa e os cinco filhos, que
habitavam na Wolínia, mantendo-se com os escassos rendimentos da sua pequena quinta.
Viviam os dois irmãos Kosiewicz em paz, até que
Wassili foi chamado pelo rei ao cerco de Sebastopol dominado pelos turcos. E foi ali que se deu o fato que causaria a
sua ruína. Uma carta escrita ao khan da Criméia, assinada
pelo príncipe Wassili e lacrada com o selo das armas dos
Kosiewicz Bulugian, foi interceptada no acampamento real.
Tal traição vinda de um cavalheiro cuja lealdade
nunca fora contestada, surpreendeu e confundiu o rei e todo
o exército. Foi em vão que Wassili tomou Deus por testemunha, jurando que nem a letra nem a assinatura eram dele;
mas a prova era o selo. As armas dos Bulugian foram aplicadas sobre o selo e não permitiam dúvida alguma.
Ninguém aceitou a versão de que o sinete tivesse
sido perdido - fato que o príncipe afirmava com veemência,
vendo-se, portanto, o desditoso soldado condenado à perda
dos seus bens e da vida. Constrangido a procurar a salvação
na fuga, chegou uma noite a Wasylkow, sua herdade, suplicou ao irmão que tomasse conta da sua filha Natacha, como
se fosse sua própria filha e desapareceu para sempre.
Tempos depois ficou provada a sua inocência quando um parente distante, no leito da morte, confessou que
tinha escrito a carta ao vizir turco e lacrado com um sinete
achado no acampamento. A sentença real foi revogada e
restaurado na sua honra o nome do príncipe Wassili Kosie23
wicz.
Natacha cresceu em paz, protegida pela ternura do
tio Konstanty, e só depois da morte dele começaram as suas
vicissitudes. A viúva de Konstanty era uma mulher severa,
egoísta, autoritária, que somente seu marido pudera dominar. Depois da morte dele, ela tomara o governo de Wasylkow.
Os servos tremiam na sua presença, as criadas temiam-na como ao diabo e a sua tirania se fez conhecida até
pela vizinhança. O domínio não era muito longe de Kiew,
onde residia a corte, e os jovens príncipes teriam toda a
facilidade de ali aprender maneiras corteses, mas a princesa
Amalia tinha as suas razões para os conservar junto de si, e
os jovens ignoravam quase tudo que não se relacionasse
com a vida agreste que levavam. Tinham ficado meio selvagens como os cossacos das estepes.
Era triste ver esses descendentes duma nobre raça,
em cujas veias corria sangue principesco, com as suas maneiras grosseiras e rudes, com as idéias obscuras e coração
fechado, como homens incultos. Os irmãos levavam uma
existência guerreira, que lhes valeu o nome de príncipes
cossacos. Um olhar a Wasylkow bastava para se adivinhar
que espécie de gente ali vivia.
Quando os viajantes passaram as grades com os seus
carros, viram não um castelo, mas, antes, um vasto barracão construído de enormes troncos de carvalho com janelas
estreitas. A habitação dos servidores e dos cossacos, as cavalariças, os celeiros, os depósitos de provisões, tudo estava
ligado à casa, formando um conjunto pitoresco de edificações, umas baixas, outras altas, numa estranha desordem.
Á entrada, via-se uma espécie de nicho, no qual um
urso estava acorrentado.
Uma forte barreira de pranchas de carvalho defendia
a entrada do pátio interior, que era rodeado de um fosso e
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de uma paliçada. Era uma habitação fortificada, protegida
contra os ataques e incursões. Fazia lembrar os postos cossacos de fronteira e se assemelhava mais a um ninho de
salteadores do que a um solar de príncipes ucranianos.
Os servidores que vieram com archotes ao encontro
dos recém-chegados tinham o ar de bandidos. Cães enormes
ladravam furiosamente. Das cavalariças saíam relinchos de
cavalos. E foi no meio deste ruído que a caravana entrou no
pátio. O interior da habitação não correspondia de maneira
alguma ao exterior.
Na vasta ante-sala, cujas paredes estavam cobertas
com os troféus de guerra e de peles de animais selvagens,
grossos troncos de árvore ardiam em enorme fogão e as
suas chamas iluminavam o interior do ambiente, cujos cantos estavam repletos de peles de ursos, lobos, raposas, martas e arminhos, e mais além, junto às paredes, amarrados
nos seus poleiros estavam belos gaviões, falcões e águias
douradas, apanhados nas longínquas estepes do leste e aqui
serviam a caçadas.
Desta ante-câmara os hóspedes passaram para uma
espaçosa sala de recepção, onde ardia o fogo numa enorme
lareira. Esta sala era mais luxuosa; as paredes eram cobertas
de raros estofos e o chão de esplêndidos tapetes do Oriente.
Ao centro destacava-se uma grande mesa em cruz, sobre a
qual viam-se taças de cristal de Veneza; e as pequenas
mesas estavam repletas de jóias, candelabros e relógios
preciosos. Todos estes objetos constituíam despojos de outrora, conquistados dos venezianos pelos turcos e depois
dos turcos pelos cossacos.
Por toda parte reinava um luxo exagerado, em desarmonia com a rudeza extrema das estepes. Tudo que tinha
valor provinha das expedições do príncipe Wassili contra os
tártaros e turcos. Esta ostentação de maravilhas e riqueza
provocou surpresa aos visitantes, que não podiam ocultar o
25
espanto de ver, no meio daquele luxo, os moços príncipes
com botas de couro tão grosseiras e vestimentas de pele de
animais como as dos seus criados.
Entretanto, os filhos da princesa recebiam os hóspedes de muito boa vontade, mas, pouco habituados à sociedade, faziam-no de forma desajeitada. Neste momento, a
princesa Amalia agarrou Bohdan pelo braço e levou-o para
outro cômodo.
- Ouve Bohdan! - disse rapidamente - não tenho
tempo de fazer-te grandes sermões, mas vi você atacar o
tenente Boguslaw Wasilewski, queres provocá-lo?
- Mãe - respondeu o cossaco, beijando-lhe a mão, o
mundo é grande, que ele siga o seu caminho e eu o meu;
mas não o deixe andar em volta de Natacha... do contrário
eu o matarei como a um cão, com o meu sabre.
- Não estás louco, decerto! Queres arruinar-nos a todos? Não vês que ele é um oficial do príncipe Jeremias,
uma pessoa de distinção, pois que o nomearam embaixador
junto ao khan? Por um só cabelo que lhe caia da cabeça,
enquanto estiver debaixo do nosso teto, sabes bem o que
acontecerá? O príncipe Jeremias voltará os olhos para Wasylkow, vai querer vingá-lo, nos porá para fora daqui e tomará Natacha sob a sua proteção. Queres provocar Wisniowiecki? Experimenta isso, cossaco doido, e verás o resultado! Voltarás para o Zaporozhye (região no Delta do
Dnieper), donde vieste, porque não quero que nos traga a
desgraça.
O cossaco roía o bigode, torcia-se todo, mas não
deixou de reconhecer que a princesa tinha razão.
- Eles irão embora amanhã, mãe, deixai ficar a Natacha no seu quarto - pediu Bohdan com insistência.
- De que servirá isto? Para fazer pensar a esses estranhos que a seqüestro? Ela aparecerá na ceia, porque as-
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sim eu quero! E não dê ordens nesta casa, onde não é o senhor - respondeu bruscamente a princesa.
- Não vos zangueis, mãe! Obedecerei às vossas ordens, já que assim o quer - respondeu o cossaco, abaixando
a cabeça.
Ambos voltaram para a sala de recepção.
O tenente Boguslaw contemplou-o atentamente,
pois na escuridão da planície mal vira as feições deste,
quando o salvara. Via um moço jovem, mas já famoso como chefe guerreiro, direito como um álamo, de feições enérgicas, a pele bronzeada pelo sol das estepes, olhos pardos oblíquos de brilho selvagem, como os de um gato, e de
fartos bigodes.
Bohdan tinha a fronte elevada, da qual os cabelos
ruivos caiam-lhe como uma crina, cobrindo as espessas
sobrancelhas. Um nariz aquilino de narinas dilatadas e dentes branquíssimos davam à sua fisionomia uma expressão
de rapacidade. O conjunto, porém, constituía um modelo
daquela beleza cossaca, luxuriante, cheia de caráter, de energia e de arrogância. O seu esplêndido vestuário distinguia-o dos filhos da princesa, que só vestiam peles de animais.
Foi servido o jantar, composto de variadas carnes de
caça, kascha de trigo sarraceno em enormes tigelas e, como bebida, vinho moldavo da melhor qualidade, servido
em taças de cristal. Os cavalheiros ofereceram o braço às
damas para acompanhá-las à mesa da ceia. Boguslaw levou
a princesa Natacha e sentou-se ao seu lado. Uma onda de
sangue subiu ao rosto da jovem e o peito elevou-se-lhe palpitante, queria falar mas os seus lábios tremiam.
- Nunca vos esquecerei – sussurrou o oficial.
- Silêncio, senhor! Partirás amanhã, e depois de amanhã já terás me esquecido - respondeu Natacha.
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- Talvez, vós senhora, me esquecerás. Este belo cossaco Bohdan vos ama, suspira por um sorriso seu.
- Nunca! - respondeu - Mas toma cuidado com ele,
é um homem terrível, traídor e vingativo.
Depois do jantar organizou-se um baile, ao som de
balalaikas; Boguslaw foi o par constante de Natacha. Já ia
alta a noite quando terminaram as danças.
Recolhido ao aposento que lhe fora destinado, e não
podendo conciliar o sono, Boguslaw sentou-se no leito;
conversava com o companheiro de quarto, quando bateram
levemente na porta. Era um velho tártaro de olhar negro e
penetrante, que parado na porta perguntou:
- Necessitais de alguma coisa? Talvez um copo de
hidromel? Ou um copo de vinho?
O tártaro aproximou-se de Boguslaw, e olhando para os lados com desconfiança, murmurou:
- A princesa lhe envia isto, e encarregou-me de lhe
dizer que o ama com toda sua alma. O servidor tirou de
dentro da manga uma larga fita e entregou-a ao oficial, que
a beijou e apertou contra o coração.
- Como vive a princesa aqui?- perguntou.
- Tem maus desígnios a seu respeito. Querem dar-na
à Bohdan, que não passa de um cão maldito, que a levará
como o lobo leva o cordeirinho, vai aprisioná-la para sempre. Depois os príncipes e a princesa Amalia viverão em
paz em Wasylkow, que não lhes pertence. A herdade é de
direito e pertence ao pai da princesa, e Bohdan presta-se a
essa infâmia, quando sabe que ela o odeia de toda alma.
O tenente Boguslaw não pôde dormir aquela noite.
Assim que amanheceu o dia, vestiu-se às pressas; os carros
e a escolta já o esperavam. Almoçaram junto com os jovens
príncipes e a mãe. Bohdan não apareceu.
Depois de alguns momentos Boguslaw falou:
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- Princesa, quero agradecer pela sua hospitalidade.
Mas antes de partir desejava lhe falar dum assunto muito
importante para mim.
Lia-se a surpresa nas feições da velha dama, e foi
com uma certa inquietação que respondeu:
- Estou às vossas ordens, de que se trata?
- Perdoai-me, senhora, e vós também príncipes, que
eu próprio advogue a minha causa. Mas não pode ser de
outra maneira. Peço-vos humildemente a mão da princesa
Natacha.
Se um raio caísse em cima da casa teria causado
menos espanto do que estas palavras do oficial.
- Falais de Natacha?
- Falo da princesa Natacha. E o meu pedido é resultado duma decisão irrevogável.
Um momento de silêncio se seguiu a estas palavras.
- Espero a vossa resposta, princesa.
- Perdoai-me, tenente Boguslaw! – disse ela, por
fim, e a sua voz tornou-se seca e dura. A proposta de um
cavalheiro como vós é uma grande honra, confesso. Porém,
Natacha já está prometida a outro homem.
- Mas essa promessa não seria feita contra a vontade
da princesa? Consultaram-na? - insistiu Boguslaw.
- Nesta matéria sou eu o único juiz, tenente. Podes
ser um fidalgo, mas não nos conhecemos.
- Mas eu vos conheço, traidores! – exclamou Boguslaw violentamente. Querem entregar essa pobre criança
a um vilão, a um patife, contanto que ele abandone este
domínio que vocês ocupam sem nenhum direito. Mas não
julguem que o vosso crime ficará impune! Amanhã mesmo
o príncipe Jeremias conhecerá toda a infâmia!
A estas palavras, a princesa correu para o fundo da
sala, agarrou numa faca de mato e se precipitou sobre o
tenente, os filhos a imitaram. A velha dama gritou:
29
- Ah! vai dizer tudo ao Jeremias? Mas tens certeza
que sairás vivo daqui?
- Venho da Criméia, onde fui enviado como um embaixador do príncipe - disse Boguslaw. Se uma gota do meu
sangue correr aqui, dentro de três dias as cinzas desta casa
serão dispersas pelo vento e todos vocês conduzidos às
masmorras de Kiew.
Os príncipes e a mãe brandiram as armas, mas nenhum deles ousava avançar para ferir o oficial.
- Não querem dar-me Natacha? Escutem o que vos
proponho. Deixarei Wasylkow para vocês e não pedirei
contas da vossa tutela. E agora escolham. O príncipe nada
saberá do que aqui aconteceu se me derem Natacha, senão,
já sabem o que acontecerá...
A velha dama voltou-se para os filhos e perguntou
contrafeita:
- O que vamos dizer ao altivo pedido deste senhor?
Eles abaixaram a cabeça, e um deles murmurou :
- Se nos ordenares, mãe, que o matemos, vamos
matá-lo. Se nos autorizares para lhe entregar Natacha, assim faremos. Mas quem nos livrará de Bohdan? Ele nos
destruirá. É sanguinário, vingativo, não vai nos perdoar.
- Escuta. Nós mesmos iremos à Kiew e levaremos
Natacha. Bohdan tem às suas ordens, nos arredores de
Wasylkow, centenas de cossacos. Não poderás levar a jovem agora, isso seria um risco muito grande para vós e para
ela, pois, sem dúvida alguma, cairão nas mãos destes homens selvagens - ponderava a princesa Amalia.
- Então vão conceder-me a mão da princesa Natacha? – perguntou o oficial.
- Sim, porque não podemos proceder de outra maneira, ainda que lastimemos por causa de Bohdan, pois
considero-o como um filho - respondeu a princesa.
30
Uma hora depois, o tenente Boguslaw com o seu regimento e o embaixador cavalgavam na direção de Kiew.
***
Por toda Ucrânia, tanto nas regiões da Wolínia, Podólia, acima e dos dois lados do Dnieper, corriam estranhos
rumores, semelhantes às agitações precursoras das tempestades, notícias que se espalhavam de aldeia em aldeia,
de herdade em herdade e pelas cidades; falava-se de uma
grande guerra, ainda que ninguém soubesse dizer quem a
empreenderia e contra quem seria.
Gente que se reunia de tarde nas praças das aldeias
e grupos nos caminhos falavam de coisas terríveis. Esse
estado de espírito era tanto mais surpreendente, pois aquele
povo estava acostumado às perturbações, aos conflitos e às
incursões dos mais diversos inimigos e das mais inesperadas direções. O alarme tornara-se geral.
A Ucrânia estava invadida por grande número de
zaporogos; os cossacos sentiam a falta do pão preto, feito
de centeio e trigo sarraceno que a estepe lhes fornecia. Os
estarostes (chefes de distrito) mantinham as tropas vigiando
os arredores. Magnatas reforçavam as guardas e séquitos
particulares, e enviavam as mulheres e crianças para as cidades fortificadas.
O príncipe Wisniowiecki enviou emissários para
diversas regiões, contatou vários comandantes que lhe responderam que, por enquanto, não havia motivos para inquietação, mas aconselhavam-no a não desprezar informações,
porque duma hora para outra uma tremenda tempestade
podia desencadear-se. Informaram, inclusive, que Bohdan
Chmielnicki, hetman dos cossacos, dirigia-se para a Criméia a fim de pedir auxílio ao khan tártaro.
31
Resolveu, pois, reunir tantos soldados quantos lhe
fosse possível, e empregar todos os meios para conhecer a
situação exata. Mandou chamar o capitão Wykhowets, do
regimento valáquio, e ordenou-lhe para que seguisse ao
Delta. Disse-lhe na saída:
- Veja tudo o que se faz por lá, as tropas que já estão
prontas e as que devem chegar. Informe-se especialmente
de Chmielnicki, o que faz e se realmente foi pedir ajuda aos
tártaros da Criméia. Seja prudente, abra bem os olhos e os
ouvidos, analise tudo e volte o mais depressa possível.
Wykhowets saiu da sala de despachos; no corredor
aguardavam-no o tenente Boguslaw Wasilewski e outros
oficiais amigos.
- O que há? – perguntaram em uníssono.
- Saio esta noite.
- Para onde?
- Para Kudak, e sem dúvida para mais longe ainda até o Delta.
- Venha comigo - disse-lhe Boguslaw, e conduziu-o
ao seu quarto. É meu amigo - prosseguiu o tenente – peça me o que quiser, um cavalo turco, ou árabe, ou qualquer
outra coisa, nada te recusarei se puder ir no teu lugar, porque o meu coração voa na direção que você vai tomar.
- Será que o príncipe vai autorizar a troca?- perguntou preocupado o oficial.
Boguslaw correu para falar com o príncipe Jeremias,
e se fez anunciar.
- O que tens a me dizer ?- perguntou o príncipe.
.
- Senhor, venho pedir-vos humildemente que me
envie em missão ao Delta. Meu amigo Wykhowets consentirá nisso, pois já conversei com ele a respeito, receia apenas descontentar-vos cedendo-me a missão.
- Confiaria essa missão a você, mas tinhas voltado
duma longa viagem.
32
- Não importa Alteza, desejaria até que todos os dias
me mandassem a Kudak.
O príncipe observava Wasilewski.
- O que é que o chama tão ansiosamente a Kudak,
ou a Kiew?
- Eu lhe direi a verdade, senhor.
E o jovem narrou o seu encontro com a filha do
príncipe Wassili Kosiewicz, e como se enamorara dela, e
que grande felicidade sentia em tornar a vê-la.
- Vou ver como as coisas podem-se conciliar - respondeu o príncipe - e mandou chamar Wykhowets.
- Capitão – disse - encarreguei-o duma missão, mas
se puderes ceder essa incumbência ao tenente Boguslaw,
que tem importante razão para a desejar, prometo que lhe
arrumarei uma outro encargo sem demora - virou-se na direção do tenente Wasilewski, concluindo:
- Agradeça ao teu amigo, capitão Wykhowets, e apronta-te para partir.
Ele saiu da cidade antes da noite, seguido de Dendzian, seu ajudante de ordens, e os quarenta cavaleiros do
regimento cossaco.
Era já no final do mês de abril e a pastagem crescia
luxuriante. A estepe renascia para a vida, cobrindo-se de
flores multicoloridas.
Boguslaw ia à frente dos seus homens, avançava por
um mar verdejante, cujas ondas se balançavam à menor
aragem. Por toda parte ouviam-se as vozes da primavera,
animadas, murmurantes; a natureza inteira ressoava como
uma lira tocada pelo Senhor. Bandos de cavalos selvagens
apareciam a galope, avançavam até perto dos viajantes, de
narinas dilatadas, olhos espantados, e depois desapareciam
com a velocidade do vento. A planície estava cheia de vida,
de sensualidade palpitante e o vento trazia os odores da
fecundidade.
33
Pelo meio dia seguinte, o oficial e o seu grupo de
soldados viram os telhados de Wasylkow destacando-se
contra as colinas. O coração de Boguslaw palpitava violentamente. Estavam chegando, quando os servidores da herdade reconheceram o tenente e abriram os portões.
A princesa Amalia apareceu - exclamando:
- Ah! Sois vós, tenente? Receei um ataque de tártaros. Peço lhe que entre.
- Certamente que estais admirada de me ver aqui. O
príncipe Jeremias envia-me ao Delta numa missão e pediume que parasse em Wasylkow a fim de saber notícias da
sua saúde - informou Boguslaw.
- Sinto-me honrada pela lembrança de Sua Alteza.
Mas não pensa o príncipe em expulsar-nos daqui em breve?
- O príncipe não pensa nisso, e eu sou bastante rico
para poder fazer o sacrifício de deixar para vós a herdade de
Wasylkow. Como vai a princesa Natacha? Onde está ela? –
perguntou ansioso o tenente.
- A princesa passa bem, vou mandar chamá-la - respondeu a dama.
Natacha entrou, entretanto, sem ter sido chamada. O
seu velho e fiel servidor tártaro avisara-a da chegada do
noivo. Boguslaw correu para ela, pegando-lhe as mãos,
começou a beijá-las. Logo que a velha dama saiu, o tenente
puxou a jovem junto ao seu peito, beijando-a longamente.
Não demorou muito e a dona da casa voltou convidando-os para o jantar, estava de perfeito bom humor. Havia muito tempo que esquecera Bohdan, tudo corria bem
para os seus interesses.
Veio a noite, e depois de terno adeus o tenente Boguslaw partiu rumo à Kudak.
Tornava-se evidente que Chmielnicki preparava-se
no Delta para pedir, com as armas nas mãos, justiça para si
e o restabelecimento dos antigos direitos dos cossacos. A34
gora era certeza que na Criméia obtivera o auxílio do khan
e do seu exército tártaro, e que esperava a chegada deles
dum dia para outro. Seria então a campanha dos territórios
do sul contra a Coroa, guerra que, graças aos tártaros, poderia tornar-se muito perigosa. A tempestade aproximavase cada vez mais; mais violenta e mais certa.
O grande hetman Jeremias Wisniowiecki, com as
suas tropas, dirigia-se a toda pressa para Czerkasy; e os
cossacos revoltados, em massa, tomavam o rumo do Delta.
A infortunada Ucrânia dividia-se em duas facções; uma
voltava-se para o Delta e a outra para os quartéis da Coroa.
Uma declarava-se pela ordem estabelecida; outra, por uma
liberdade sem controle. A guerra civil estava iminente.
Chmielnicki reivindicava os direitos dos zaporogos
e dos cossacos da estepe que, a pé e a cavalo, dirigiam-se
para a fronteira do Delta. Ainda que o sangue não tivesse
manchado a estepe, a guerra já começara. Os regimentos
seguiam como ondas de gafanhotos saídos com o sol da
primavera e se espalhavam pelos campos da Ucrânia. Seis
mil homens bem armados compunham o destacamento enviado pelo khan da Criméia em auxílio a Bohdan Chmielnicki.
O dia estava lindo, nem uma nuvem no céu azul.
Os campos primitivos estendiam-se diante dos zaporogos
como um mar sem fim e esta vista inundava de alegria o
coração dos guerreiros. O grande estandarte vermelho com
o Arcanjo inclinava-se à maneira de saudação ante a planície natal. O mesmo grito saía de todos os peitos, de entusiasmo e de liberdade. Na frente, debaixo da grande bandeira,
cavalgava Chmielnicki, de uniforme escarlate e de bastão
de ouro na mão.
Bandos de pássaros espantados voavam e precediam
o exército. Toda a massa de homens marchava num só movimento, lento e seguro para o norte, cobrindo, como uma
35
gigantesca onda, os rios, os cerrados, as colinas e as planícies, enchendo com os seus rumores a estepe infinita.
Mas de Lwow, do norte, do país plano, avançavam
as tropas do exército da Coroa, comandados pelo príncipe
Jeremias, que cavalgava triste, pois sabia que ia se empenhar numa luta fratricida.
Entretanto, os batalhões de cossacos e camponeses,
de Chmielnicki, voavam, avançavam sem perder tempo ao
encontro do exército de Jeremias. O seu poder era formidável, porque contava também com os soldados de Krechowski, que se passara para o seu lado, e somando as forças do khan da Criméia, ao todo, ele conduzia vinte e cinco
mil homens resolutos e ansiosos por batalhas.
Afluíam, ainda, mais cossacos desertores para o seu
lado. Não havia informação certa sobre os efetivos de Wisniowiecki. Chmielnicki marchava para a frente, com prudência, olhando com os olhos multíplices do seu espírito
para todos os lados, como um astuto caçador, e colocando
sentinelas até mais de cinco werstas do seu acampamento.
A Ucrânia estava em chamas...
Houve um violento encontro das forças de Chmielnicki com os regimentos de Wisniowiecki nas margens do
Dnieper. Com o choque da luta, homens e cavalos caíam
como grãos ao sopro da tempestade. A vitória pendia para o
lado do príncipe, mas a batalha não durou muito tempo.
A noite chegava. O céu cobriu-se de estrelas.
No outro dia, o combate recomeçou logo de manhã.
Chmielnicki conduzia a cada momento novos regimentos à
luta. Via-se ele em toda parte. A batalha travava-se tão encarniçada que entre as duas linhas uma nova muralha se
erguera, feita de homens e cavalos mortos. Nuvens de fumaça cobriam o campo de batalha. Os canhões nada conseguiram contra os cossacos rebeldes, e o estandarte vermelho
com o Arcanjo dominou o campo do inimigo.
36
Os regimentos de Wisniowiecki estavam vencidos.
A vitória, ainda que brilhante, contudo, não decidiu a campanha em favor de Chmielnicki, que já na manhã seguinte
após a batalha, levantou o seu acampamento. Marchavam
tão rapidamente como se voassem.
Era como uma enchente que tivesse invadido a estepe, levando junto todas as águas na sua passagem; mais
parecia um dilúvio. As forças rebeldes aumentavam pelo
caminho, juntavam-se-lhes grupos de camponeses que fugiam da Ucrânia e que, na passagem, queimavam os campos, aldeias e cidades. Todos os homens válidos, armados
de lanças e de punhais, juntavam-se às suas tropas, a região
inteira aderia com entusiasmo à guerra e a seu comando.
Partiu sem demora e avançou por entre a insurreição, a mortandade e o incêndio, deixando na sua passagem
ruínas e cadáveres. Precipitava-se como um vingador, como
o Dragão lendário. As patas do seu cavalo faziam jorrar
sangue do solo em que pisasse, e a sua respiração escaldante provocava incêndios nas estepes.
Vencia as batalhas contra os comandantes poloneses, e depois duma delas cavalgava no meio dos outros,
vestido de vermelho, com um bastão de ouro apoiado nos
quadris, ia tão orgulhoso como um rei.
E o inacreditável e inesperado tinha acontecido: a
Coroa no pó e no sangue, aos pés de um cossaco...
***
Parecia às pessoas que a abóbada celeste desabara
de repente sobre a Polônia. A destruição dos exércitos da
Coroa, sempre vitoriosa até então, nas suas lutas contra os
cossacos; a terrível conflagração na Ucrânia inteira, seguida de morticínios como jamais foram vistos iguais.
37
Todos os laços sociais estavam quebrados, a autoridade cessava, as distinções entre as pessoas desapareciam.
As forças do mal desencadearam toda espécie de crimes e
espalharam pela terra uma monstruosa orgia. O assassínio,
o saque, a perfídia, a bestialidade, a violência, o banditismo e o frenesi substituíram o trabalho, a lealdade e a
consciência.
Cidades, aldeias, igrejas, palácios, campos e florestas, tudo queimava. Tinha se instalado na Ucrânia o inferno de Dante. E acima de todas estas calamidades, das
mortes, dos incêndios, de todo este sofrimento, um homem
se elevava. A cada hora mais altivo, mais orgulhoso, mais
terrivelmente gigantesco, como nuvem escura velava a luz
do dia e a sua sombra maquiavélica abrangia o espaço do
mar Báltico ao mar Negro.
Este homem era Bohdan Zenóbio Chmielnicki, o todo poderoso hetman dos cossacos da Ucrânia. Num discurso inflamado, convocava todos à luta.
Com autoridade exaltada bradava:
- Meus irmãos! Cossacos, cidadãos e camponeses
ucranianos, vocês já sofreram muita opressão com esta lei
injusta: a da servidão. Fala-se de interesses privados e de
traição por parte dos nobres que dominam na Ucrânia. Olho
e vejo com indignação o que se passa numa região tão rica,
de terras negras tão férteis que não há similares no mundo.
Nossa mãe-pátria! Terra natal! E aqui quem tem certeza do
dia de amanhã? Quem pode considerar-se feliz? Quem não
se vê perturbado na sua fé, espoliado na sua liberdade? Na
sua propriedade? Quem aqui não chora e não se lamenta?
Os Wisniowiecki, talvez, os Potocki, os Zaslawski, os Czartoryski, os Poniatowski e mais um punhado de nobres e
magnatas de diversas origens, que aqui se instalaram e são
proprietários de imensos domínios? Latifundiários!
38
- Apossaram-se da terra que é só nossa! Fora com
eles! O povo, este ergue os braços ao céu, implorando a
piedade de Deus. Quantos, mesmo entre os nobres ucranianos, não podendo sofrer mais esta intolerável opressão fugiram para o Delta, como eu mesmo fugi?
- Não desejo a guerra contra a Coroa e o rei Jan Kazimierz; ele é uma pessoa generosa, prometeu aos camponeses mais privilégios, amenizou a lei da servidão, mas os
nobres não obedeceram à lei e continuaram a oprimir e explorar os servos. Vivemos sob constante extorsão, pagando
impostos sobre as planícies, sobre o trigo que nós produzimos, sobre os animais que criamos, sobre tudo. E pior ainda
é a tirania que exercem por intermédio dos seus encarregados.
- Tudo isto clama vingança!...
- Senhores, coronéis, amigos, decidistes pela guerra,
devem tê-la, mas não com o rei nem com a Coroa, mas com
nosso maior inimigo, Jeremias Wisniowiecki, tinto ainda
pelo sangue cossaco, que, no seu ódio pelos exércitos zaporogos, vai destruindo tudo, martirizando homens e mulheres, não deixando viva alma na sua passagem, mesmo contra a vontade do rei. Na sua insolência, não considera coisa
alguma e dia virá que se levantará contra o poder do próprio
rei, pois desde já não acata as suas ordens.
Exaltado, Chmielnicki pronunciava estas palavras
levantando os braços para o céu, agitava-os acima da cabeça como se fossem os raios da vingança celeste... Depois
começou a tremer e por fim caiu no banco como que acabrunhado ao peso do seu destino. Multidões de camponeses
e nobres ucranianos ouviam e aplaudiam-no. Cento e vinte
mil homens armados e ébrios de vitórias estavam atentos ao
seu primeiro sinal.
O príncipe Jeremias Wisniowiecki era um bravo
guerreiro, audaz, comandante experimentado em operações
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de guerra, mas dominado por ambição desmedida de poder.
Uma verdadeira raposa, astuto e inteligente, dificilmente
achava opositor à altura para enfrentá-lo em campos de
batalha. Descendente de uma antiga família russo-polonesa,
cujo berço primitivo era o castelo de Wisniowiec, era kniaz
de estirpe russa pelo lado materno.
As suas enormes possessões em terras e castelos espalhavam-se por toda Ucrânia, iam desde as portas de Wisniowiec, seu palácio-fortaleza próximo a Lwow, até às
margens do Dnieper em Czerkasy, Lubnie e Konotop.
Combatia os revoltados cossacos de Chmielnicki,
defendendo a sua soberania sobre a região. Os tártaros foram ali perseguidos e obrigados ao trabalho no regime de
servidão, com disciplina rígida. Mais de quarenta mil homens tornaram-se tributários do tesouro principesco.
O país, desde o rio Prypec ao norte, até as estepes do
sul, estava em chamas. A insurreição alcançava as províncias de Rus Vermelha, Wolínia, Podólia, Bratislawa, Kiew,
todo o Delta e até Chadzubeij, no Mar Negro. O poderio de
Chmielnicki aumentava dia-a-dia.
A Coroa nunca tinha oposto aos seus mais terríveis
inimigos a metade das forças de que dispunha agora. A revolta ultrapassara todas as previsões. O rei Jan Kazimierz,
mesmo que cerceado na sua autoridade, enviou o valoroso
guerreiro Jan Sobieski para enfrentar os revoltosos de Chmielnicki. Este, ao saber quem iria enfrentar, mostrou-se
apreensivo, pois conhecia o valor de Sobieski.
Depois da destruição de Wasylkow e do assassinato
dos seus donos, Chmielnicki capturou a princesa Natacha e
entregou-a aos cuidados do seu fiel capitão Havrysko, para
que a protegesse como pupila dos seus olhos; responderia
pela sua segurança com a própria vida. Havrysko levou-a
disfarçada como seu pajem para a fortaleza de Bar, longe
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do tumulto. Entregou-a à proteção das religiosas do convento ortodoxo de Santa Sofia; lá ela estaria segura.
Entretanto, algum tempo depois o tenente Boguslaw, por um acaso, soube do paradeiro da sua noiva. Imediatamente, requisitou trezentos tártaros, que pelo meio dia
já aguardavam a sua ordem no pátio do castelo de Kiew.
Iria até a fortaleza de Bar resgatar Natacha.
Wisnioviecki, para festejar o seu fiel tenente, convidara os oficiais, seus amigos, para um jantar de despedida.
As paredes da sala e janelas tremiam aos vivas dos convidados desejando-lhe boa sorte.
De repente, no limiar da porta apareceu um homem
coberto de pó. Ao deparar-se com aquela festa, das faces
avermelhadas de alegria, deteve-se, hesitando em aproximar-se dos convidados. O príncipe Jeremias viu-o:
- Ah, és tu, Makkar? trazes boas notícias do teu reconhecimento em Bar?
- Alteza!- respondeu o oficial com a voz alterada.
Alteza! Bar acaba de ser tomada por Chmielnicki.
***
Numa noite tranqüila de verão, uma vintena de cavaleiros cossacos armados seguia marchando devagar, na
margem direita do rio Serete, em direção à fortaleza de
Lwow. No centro do grupo, dois cavalos a par levavam
uma padiola ligada às selas, e sobre esta padiola um corpo
humano estava estendido; apresentava a palidez da morte.
O cavaleiro que ia na frente voltou-se para seu companheiro, perguntando:
- Worpina, estamos longe ainda?
O companheiro, na realidade, era uma mulher disfarçada. Ela olhou para o céu e respondeu:
41
- Não! Chegaremos antes da meia-noite. Temos que
passar ainda o Monte dos Vampiros, o Vale Tártaro, e estaremos na Garganta do Diabo. Oh! Mas seria terrível passar
ali entre a meia noite e o canto do galo. Para mim seria isso
possível, mas para vocês muito perigoso.
- Sabemos perfeitamente que o diabo é teu irmão!–
retorquiu o homem sacudindo os ombros.
- Mas tenho eu aqui armas contra o diabo e sua corte. Agora, se sou irmã do diabo ou não, isso não importa replicou Worpina - pois, digo a vocês que poderiam procurar por toda parte que não encontrariam melhor esconderijo para a princesa. Ninguém passa por ali sem mim depois da meia-noite, e nenhum homem ainda pôs os pés lá
dentro. Se alguém quer um oráculo, espera à entrada e sou
eu que vou ter com ele. Não tenha receio, pois nem polaco,
nem tártaro ousarão ir até ali, absolutamente ninguém! A
Garganta do Diabo é terrível! Assustadora!
- Seja ela terrível ou não, irei lá quantas vezes eu
quiser! - disse Bohdan Chmielnicki.
- De dia - respondeu ela.
- Quando me apetecer! E se o diabo se puser na minha frente, derrubá-lo-ei pelos chifres.
- Oh! Bohdan, Bohdan!
- Que o diabo me leve ou não, nada tens com isto!
Mas já te aviso, aconselha-te com os teus protetores para
que nada aconteça à princesa, porque se algum mal lhe acontecer, não haverá diabos nem vampiros que possam tirar
você das minhas garras vingativas.
- Sossega, Bohdan! Guardarei bem a princesa, e nenhum espírito ousará tocar-lhe num só fio de cabelo. Nas
minhas mãos estará ela livre de todo perigo e não vos escapará.
42
A conversação interrompeu-se, de novo só se ouviam os passos dos cavalos e uns certos ruídos que pareciam vir do rio.
- Worpina, és bruxa, portanto deves conhecer uma
erva cuja infusão faz morrer de amor a pessoa que a beber...
- Infelizmente, esta erva não poderá te ajudar; se a
princesa não estivesse amando um outro homem, lhe daríamos o chá, mas neste caso sabe o que vai acontecer?
- Não!
- Ela amaria o outro ainda mais.
- Raios te partam, junto com a tua erva. Demônio! praguejou Bohdan.
- Ouça-me, Bohdan, eu conheço outra erva cuja seiva faz adormecer por dois dias e duas noites a pessoa que a
beber... darei esta erva à princesa e você aproveitará...
O cossaco estremeceu na sua sela e fixou na bruxa
um olhar que brilhava terrivelmente. A velha pôs-se a rir.
- Não! Não! Quando tomamos a Fortaleza de Bar,
arremeti-me para o mosteiro, a fim de defendê-la da embriaguez dos soldados e matar aquele que ousasse aproximarse dela. Ela, porém, ao ver que eu me aproximava, feriu-se
com um punhal, e desde então não tem consciência do que
se passa a sua volta. Se outra vez aproximar-me dela, com
certeza vai matar-se com o estilete ou lançar-se no rio. Oh!
Sou um infeliz! Meu desejo é que a primeira bala seja para
mim, pois amo-a com loucura e não sou amado por ela.
- Louco! Mas a tendes em teu poder!
- Cala-te! - gritou ele com ódio – e se ela se matar?
Então, acabo com você antes de me despedaçar! Quebro a
minha cabeça nos rochedos! Senão, sairei mordendo a todos
como um cão danado, pois a loucura se apossará de mim.
Oh! Com que prazer daria minha alma por ela! Fugiria para
o fim do mundo, para as entranhas da terra para viver só
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com ela, para morrer ao seu lado! E ela feriu-se com o punhal. E por quê? Por minha causa. Odeia e despreza-me.
Bohdan agitava-se num choro convulso, seu corpo estremecia com a angústia e o desespero que o dominava. Os
viajantes entraram na Garganta do Diabo, que cortava o rio
em ângulo reto e era tão estreita que a custo iam quatro cavalos a par. Ao fundo corria um riacho, que adiante se lançava no rio.
Uma réstia de luz brilhou de repente entre as árvores
e dois enormes cães acorreram ladrando furiosamente. Uma
choupana e uma cavalariça apareceram entre as árvores. A
casa era sólida e bem construída, um clarão de lamparina
piscava através das janelas.
- Eis a minha morada - falou a bruxa a Bohdan. E lá
em baixo é o meu refúgio. Tua princesa terá o melhor
quarto da casa. Parem agora e apeiem.
Um homem com uma tocha na mão apareceu de repente, como se tivesse saído das profundezas da terra. Era
uma criatura horrivelmente feia, um homem pequeno, anão
de faces gordas, de olhos oblíquos de tártaro.
- Que espécie de diabo é aquele?- indagou Bohdan. .
- E inútil interrogá-lo - observou a feiticeira. Tem a
língua cortada. Talvez seja melhor levar a princesa até o
moinho. Os cossacos vão preparar-lhe o quarto e colocar as
tapeçarias. Ela não acordará.
Os cossacos tiraram de cima dos cavalos seis grandes fardos, que abriram e tiraram deles ricos estofos, tapetes
e objetos em ouro, tudo saqueado na Fortaleza de Bar. O
quarto que foi coberto de preciosidades, tomara a aparência
duma rica habitação. Transportaram a princesa para dentro
e a deitaram em fofos coxins.
O sol já estava alto quando a princesa abriu os olhos. A consciência voltava-lhe pouco a pouco; assomaram
44
ao seu semblante o espanto e a inquietação. “Onde estava?
Em poder de quem se encontrava? Que lhe tinha sucedido?”
Neste momento, as terríveis cenas da tomada de Bar
passaram-lhe na mente. Lembrara-se de tudo; do morticínio
de milhares de pessoas, entre nobres, cidadãos comuns,
padres, religiosas, mulheres e crianças.
- Mas, agora, onde estava?- perguntava-se assustada.
Seria um castelo? Teria sido socorrida, salva? Estaria fora
de perigo? Seriam as tropas do príncipe Jeremias que a teriam salvo das mãos dos cossacos e a transportado para
uma fortaleza? Estaria em segurança?
Natacha ergueu-se no leito; ouviu uma canção melodiosa, e quanto mais escutava a voz que cantava ao som
amortecido de um alaúde, mais os seus olhos dilatavam-se
de terror. Reconheceu a voz de Bohdan, soltou um grande
grito e caiu para trás como morta. O grito foi ouvido de
fora. Apenas alguns segundos se passaram e o próprio Bohdan apareceu na porta. A jovem cobriu o rosto com as
mãos e os seus lábios pálidos balbuciavam:
- Jesus, Maria! Jesus, Maria! Salve-me.
E contudo, a visão que assim a aterrorizava, teria alegrado os olhos de inúmeras jovens, pois o moço herói era
verdadeiramente belo, elegante, fisionomia bronzeada, de
corpo magnífico, personificando a beleza dos cossacos
ucranianos. Vendo que o medo na jovem não diminuía, o
moço falou com voz lenta e triste:
- Nada receies, princesa.
- Onde estou eu? – perguntou ela.
- Em segurança, longe da guerra, não tema nada,
repito, trouxe-a de Bar para aqui a fim de que nenhuma
desgraça lhe acontecesse. Os cossacos não pouparam pessoa alguma na cidade e a princesa é a única que de lá saiu
com vida.
- Que faz aqui? Por que me persegues?
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- Eu, persegui-la! Oh! Deus Poderoso!
- Causas-me medo!
- E o que é que receias? Não lhe quero mal algum e,
sendo assim, por que me odeias tanto, princesa? Feriu-se
com o punhal ao ver-me. Sabe bem que sou seu amigo dedicado, que a amo muito.
As faces de Natacha coraram.
- Prefiro a morte, à desgraça!- disse. E aviso-te, se
não me respeitares, mato-me.
Os olhos da jovem lançavam chamas, e o chefe cossaco viu bem que ela era do sangue dos Kosiewicz, que
executaria a ameaça, e que se mataria de vez.
- Fique sossegada!- disse enfim - é para mim uma
imagem sagrada. Deixe que a contemple, que adore o seu
semblante. Depois irei embora.
- Dai-me a liberdade!
- Mas não está presa aqui, é livre e senhora daqui!
Mas onde irás? Os Kosiewicz pereceram todos, o fogo devorou a casa, as aldeias e as cidades; o príncipe Jeremias
não se encontra em Kiew, porque marcha contra mim e os
zaporogos, há guerra em toda parte. Quem terá, pois, respeito e simpatia por você, princesa? Quem a defenderá, a
não ser eu?
A princesa ergueu os olhos para o céu, lembrou que
havia um outro homem no mundo para lhe dar proteção,
carinho e amor; mas não quis pronunciar o seu nome com
medo de acordar a fera. Invadiu-a uma profunda tristeza.
- Tenho então de ficar aqui prisioneira? Mas que
mal lhe fiz, para que me persiga como a desgraça?- lamentava a jovem.
- E você também, que me fizestes? Não sei. Só sei
com certeza que sou uma dor para você, e você é um sofrimento imenso para mim! Se não a amasse tanto, seria livre
como o vento na estepe, livre de coração e de alma. O teu
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semblante é a minha desgraça, os teus olhos são a minha
desventura.
O chefe cossaco interrompeu o seu lamento. A voz
quebrava-se-lhe na garganta e começou a gemer; depois,
continuou:
-Vê como este aposento é luxuoso e confortável?
Tudo isto é meu e foi arrumado para você. São os despojos
da fortaleza de Bar que eu trouxe para aqui. Pede o que
quiser... vestidos, jóias, ouro, escravos. Sou rico, e serás
como a princesa Dorota! Conquistarei para você castelos e
propriedades, darei a você a Ucrânia!
Não sou mais do que um cossaco, não sou nobre,
mas sou hetman dos zaporogos, e eles irão atrás de mim até
o fim do mundo. Comando cento e cinqüenta mil homens!
Nem o príncipe Jeremias comanda tantos. Pede tudo o que
quiseres, menos que lhe deixe partir. Fica comigo, e amame!, minha alma!, minha doçura!, minha vida!
- Quer a minha resposta? Fique sabendo que, ainda
que ficasse tua cativa, e sofresse o resto da minha vida,
nunca haveria de te amar. E que Deus me ajude a suportar o
que o destino me reserva.
- Não me diga estas coisas - gritou Chmielnicki contendo a raiva - pois tira-me do controle, e nestes momentos
não sei do que sou capaz.
- Aquele que me salvou a vida em Bar, para me levar em seguida em cativeiro, não é meu amigo, mas meu
inimigo - respondeu a princesa.
- Pois não lhe darei a liberdade e será minha, queira
ou não!- gritou exasperado o cossaco.
- Jamais! Prefiro a morte! – ameaçou a jovem.
- Pois saiba, conquistei você na guerra, é portanto
minha cativa. Sei porque está assim ofendida, sei porque
me resiste, guarda-se para outro! Mas saiba que é inútil! Em
vão! Pois hei de encontrar o teu amado e meu rival, o tal
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tenente Wasilewski, e esfolá-lo vivo, e voltarei aqui para
jogar a sua cabeça aos seus pés!
A princesa não ouviu as últimas palavras de Chmielnicki, a dor, a cólera, a comoção, o terror tiraram-lhe toda a
força. Uma grande fraqueza apoderou-se dela, uma nuvem
obscureceu-lhe os olhos.
Desmaiou...
Um rugido saiu do peito do cossaco:
- Morta! Ela está morta! Worpina! Socorro! - gritava
desesperado e torcia as mãos.
Worpina, de corpo gigante, entrou como um furacão
derrubando tudo em volta, aproximou-se da princesa, viu de
relance que não estava morta, mas apenas desmaiada, empurrou Bohdan para fora do quarto; tratou dela fazendo-a
cheirar vinagre. Natacha abriu os olhos, espantada.
- Não é nada, apenas você desmaiou - informou a
feiticeira.
- Quem sois? - perguntou.
- Eu? Tua criada, porque assim Bohdan ordenou;
meu irmão é coronel sob as ordens do ataman.
- Onde estou?
- Na Garganta do Diabo, um verdadeiro deserto.
Não verás senão a ele, somente Bohdan. Serás boa para ele.
A moça olhou a bruxa, que lhe pareceu ser sincera.
- Sai! - gritou-lhe a princesa.
Um cavalo relinchou por baixo da janela. Bohdan,
que estava no quarto observando tudo, encheu-se de coragem e disse:
- Chegou para mim a hora da partida, princesa.
Ela não respondeu.
- Não me dizes adeus?
- Adeus!- respondeu a jovem.
- Sei! - continuou Bohdan - Bem sei que está com
raiva de mim, que me odeia, mas garanto-lhe que nenhum
48
outro teria sido melhor com você do que eu. Trouxe-lhe
aqui porque não podia proceder diferente. Não lhe trato
como uma rainha? Os tártaros andam pelo deserto, bandos
deles vagueiam em todas as direções. Não posso restituir-te
a liberdade agora porque seria perigoso, mas quando voltar...não sei...não sei...
- Que Deus o inspire! - disse e estendeu-lhe a mão.
Bohdan precipitou-se sobre aquela mão, e nela colou os lábios febris de amor e desejo, depois recuou devagar
até a porta e desapareceu na ravina.
***
Os representantes da Coroa, designados para tratar
com Chmielnicki, foram ter com ele em Kiew, onde o vitorioso hetman estabeleceu o seu quartel general. A cada
passo, surgiam novos obstáculos para o acordo.
Os diplomatas viajavam com a proteção de um grupo de cem cavaleiros, além disso, Chmielnicki tinha-lhes
enviado Subaliuk, com uma escolta de quatrocentos cossacos bem armados. A seis werstas desta cidade, o chefe dos
rebeldes foi ao seu encontro. Fingia assim testemunhar o
seu respeito aos enviados do rei. Na realidade, queria ostentar o seu poder à frente de numerosa escolta e ao som de
músicas de guerra.
Assim que ele apareceu, os negociadores e seu séquito pararam. Chmielnicki impeliu o seu cavalo ao carro
do palatino, inclinou-se e, apenas erguendo o boné de pele
de lobo, disse:
- Saúdo-vos, senhores comissários da Coroa, e a vós
senhor palatino Kuselski. Teriam feito melhor se tivessem
tratado comigo quando eu não tinha ainda consciência da
49
minha força; mas, já que a Sua Majestade, rei Jan Kazimierz, vos envia, sede bem-vindos ao meu território.
- Saúdo a vós também, hetman! - respondeu Kuselski. O rei, nosso augusto senhor, enviou-me para lhe oferecer a justiça que tanto reclamas.
- Justiça já eu a tenho feito com a espada, continuarei fazendo, se não me derem satisfação.
- Senhor, esse acolhimento ofende em nós a majestade real.
- Palatino Kuselski, dai-me lugar no vosso carro,
quero assim honrar os comissários do rei.
Desmontou do cavalo e acercou-se da carruagem.
Kuselski arredou-se para a direita, para lhe dar o lugar à
esquerda, mas Chmielnicki insistiu em sentar-se à direita.
- Represento aqui a pessoa augusta e sagrada do rei,
- falou o palatino.
Chmielnicki conseguiu dominar a cólera e sentou-se
à esquerda, resmungando:
- Se o rei reina em Warszawa, eu reino na Ucrânia.
Mas creio que não vos obriguei ainda a humilharem-se o
bastante; pois, sempre pensei que o rei estava ao meu lado e
contra vós outros, nobres e senhores intrigantes, tratantes,
cheios de empáfia - o chefe cossaco pronunciou estas palavras com a voz trêmula de raiva.
- Hetman Chmielnicki, o rei meu senhor ordena a
vós que acabe com o derramamento de sangue e que pense
na paz - ponderou o palatino.
- Quanto ao tratado, não o desejo, pelo menos não
neste momento. Agora sou hetman, nomeado pelo rei, portanto, convido-vos para jantarem comigo.
Chmielnicki encheu-se de arrogância ao referir-se a
sua atual posição de chefe.
Os enviados do rei aceitaram o convite.
50
Na hora do jantar, Chmielnicki colocou à sua direita
o palatino, à esquerda o castelão e, dirigindo-se à seu ordenança, disse:
- Comentam em Warszawa que eu bebo sangue de
polaco, no entanto, não bebo mais do que wodka. O sangue
dos polacos deixo-o para os cães...
Tal foi o começo do jantar, a esse comentário os
comissários não responderam nada, tendo que engolir a
afronta do cossaco.
***
No limiar da porta da sala dos oficiais, apareceu a
face rubicunda e alegre do pajem Dendzian, ordenança do
tenente Boguslaw Wasilewski. Ele lançou um olhar perscrutador em volta de si e, depois, inclinando-se, pronunciou
a saudação consagrada dos poloneses:
- Deus seja louvado!
- Por todos os séculos e séculos, amém!.
- Dendzian, é você?
- Saúdo-vos, senhores! Mas onde está o meu amo?
- Teu amo está doente em Lwow.
- Deus do céu!
- Gravemente doente?
- Agora encontra-se melhor.
- E eu que lhe trazia notícias da princesa Natacha.
- Fale! Por favor!
- Eu vos digo que ela encontra-se oculta não longe
de Raskow, nas margens do Serete. A feiticeira que a guarda recebeu ordens de não a deixar dar um passo sequer,
enquanto Chmielnicki não regressar.
- De que feiticeira estás falando, Dendzian?
- De Worpina. Ah! conheço-a bem.
51
- Venha aqui, Dendzian. Quem te informou que ela
estava oculta nas vizinhanças de Raskow?
- Quem poderia dizer-me senão o próprio Bohdan?
- Patife! Perdeste o juízo?- gritou Chernota. E onde
viste Bohdan?
- Em Zytomir.
- E quando o viste?
- Há umas três semanas.
- E ele vive ainda?
- E por que não haveria de viver? Contou-me o duelo que teve com Vossa Senhoria.
- E foi ele mesmo quem te disse que a princesa estava oculta nos arredores de Raskow?
- Certamente. Bohdan entregou-me um passaporte e
um anel, encarregando-me de ir saudar a princesa de sua
parte. As suas feridas ainda não estavam fechadas. E não
ignoram também que no ano passado estive cativo em Kudak. Cuidei de Bohdan e consegui atrair as suas boas graças
e a sua amizade. Considerava-me como o mais fiel dos seus
amigos e servidores, sem suspeitar sequer que eu jurara
vingar-me um dia.
Chmielnicki, depois de restabelecer-se parcialmente,
em recompensa deu-me algumas jóias, pedindo ao mesmo
tempo que lhe prestasse um serviço especial e falou-me:
“Vai e diz à feiticeira que conduza a princesa ao
mosteiro da Virgem Maria em Kiew, sem perda de tempo.
Irei até lá assim que puder. Acompanhe-as até Kiew”.
Em seguida explicou-me com todos os pormenores
a configuração da ravina e dos seus arredores. Seria capaz
de ir lá com os olhos fechados.
- Partiremos amanhã de madrugada - disse Czernota.
Um pequeno contingente pôs-se a caminho aos primeiros alvores da aurora. Quando encontravam bandos cossacos, mostravam-lhes o passaporte de Chmielnicki; segui52
ram ao longo do rio, e chegando ao alto da ravina, Chernota
parou:
- Escutai - disse. Dendzian, munido do passaporte e
do anel, irá na frente. A feiticeira conhece-o. Se nos visse a
todos juntos, ficaria com medo e desapareceria com a princesa.
Dendzian pôs-se a frente do cortejo. Os três homens
encontravam-se agora no alto da colina. Em breve a voz de
Dendzian fez-se ouvir.
- Já vejo a ravina, na entrada há um rochedo... Em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!- murmurou.
- É ali?- perguntou Chernota, apontando com a mão.
- Segue-me! - disse Dendzian, e gritou com força:
- Bohdan!, Bohdan!, aparece, Worpina! Bohdan!
Fizeram parar os cavalos e esperaram alguns instantes. Cães ladravam furiosamente. Na crista esquerda da
garganta, moitas se agitaram e dentre elas saiu uma forma
humana.
- Worpina!- gritou Dendzian.
Seguida dum hirsuto gnomo, a feiticeira desceu o
declive a pique.
- Quem sois ?- perguntou com voz áspera.
- Como vai a saúde, Worpina?- respondeu o pajem.
- Olá! És tu! Reconheço - te. Serves a Bohdan.
- Tenho aqui um passaporte, e além disso um anel e
um punhal. Sabes o que isto quer dizer?
- Está bem! Você vem buscar a princesa.
- Justamente. Ela está bem?
- Está totalmente bem. Mas por que o Bohdan em
pessoa não veio?
- Porque está ferido.
- Ferido? Eu previ isto a ele; quando levas a princesa?
- Quando nossos cavalos descansarem.
53
- Irei convosco - disse Worpina.
Dendzian inclinou-se na sela, e a sua mão pegou a
pistola.
- Kheremis! - disse ele, mostrando o gnomo aos
companheiros.
- Estão ambos sós aqui?
- É, mais a princesa...
- Já te disse que irei convosco.
- E eu repito que não! Não sairás do teu antro.
E, à queima-roupa, Dendzian enviou-lhe uma bala
ao peito; Worpina soltou um grito medonho e caiu de costas, rolando ribanceira abaixo. No mesmo instante, Chernota fendia com o sabre a cabeça do anão. Depois limpou
tranqüilamente a arma ensangüentada.
- Rápido - gritou Dendzian.
Seguiram ao longo do riacho que corria ao lado da
ravina; depois viram a cabana e mais adiante o moinho.
Amarrados próximo da porta, dois enormes cães pretos,
presos em grossas correntes, ladravam furiosamente.
Dendzian desmontou do cavalo e correu para a porta, abriu-a com um pontapé e entrou. A esquerda havia uma
outra porta que estava fechada. Destravou o ferrolho, abriu
a porta e parou no limiar. No fundo do aposento, encostada
ao leito, estava Natacha, pálida, assustada; deu um grito ao
vê-lo.
- Quem sois?
- Sossegue, senhora! - tranquilizou-a Dendzian-, estás na presença de amigos do nobre tenente Boguslaw Wasilewski, este nome lhe diz alguma coisa?
A princesa caiu de joelhos.
- Salvem-me, senhores!- suplicou, juntando as mãos.
Após um instante entrou Chernota e gritou, alegre:
- Somos nós, princesa! Viemos salvá-la.
54
O som daquela voz, a vista daquele rosto familiar,
produziram nela uma emoção forte e ela desmaiou. Demorou para voltar a si.
Assim que os cavalos descansaram o suficiente, Natacha, Chernota, Kadlubek e Dendzian puseram-se a caminho com toda pressa. Dendzian guiava com mão firme os
cavalos bem tratados e robustos que tivera o cuidado de se
apoderar na cavalariça de Worpina.
A princesa cavalgava ao lado de Dendzian, por um
país ocupado pelos guerrilheiros. Foram assaltados diversas
vezes, mas deveram a salvação à velocidade dos seus cavalos e à coragem dos cavaleiros. Passaram por diversas
aldeias e cidades, seguiam rumo a Lwow, onde a princesa
ficaria hospedada no convento de São Nicolau, aos cuidados das religiosas.
***
Na grande sala do castelo, da família Wisniowiecki
em Lwow, passos se ouviram no aposento vizinho. Então, o
velho príncipe, pareceu sair do seu sonho e falou ao amigo:
- Escuta, coronel Boguslaw Wasilewski. A castelã
de Winnica chegou ontem aqui em companhia duma das
suas parentes. Esta senhora, informada da sua bem-sucedida
expedição, deseja ver-vos. Pensei que seria melhor que ela
lhe falasse aqui, sem testemunhas.
Boguslaw olhava o príncipe com admiração e surpresa, e ele prosseguiu gravemente:
- O excesso de alegria súbita mata tanto como uma
punhalada. Uma imensa alegria está reservada a você.
O oficial escutava-o cada vez mais surpreso e curioso, queria saber imediatamente o que era.
55
- Você ama uma jovem, com todas as forças do teu
coração? Queres desposá-la?
Uma palidez de cera invadiu o semblante do oficial.
- Sim, mas já não vive.
- A misericórdia divina velou por ela. Ela vive sim,
e de agora em diante será sua noiva.
Afastou-se a estas palavras e entrou no aposento vizinho; transcorridos alguns minutos, apareceu sorridente,
trazendo a princesa Natacha pela mão. Ela estava pálida,
chorosa, mas bela como sempre.
Ao ver a noiva, ele caiu em êxtase, ficou mudo,
enfim, após uns instantes, murmurou:
- Jesus, Maria! Não estou acreditando no que vejo,
deve ser um milagre.
- Fala-lhe, minha filha! - disse o príncipe comovido.
- Boguslaw, sou eu! Os nossos amigos arrancaramme do poder de Bohdan Chmielnicki.
O coronel aproximou-se dela, pegou as suas mãos
trêmulas e repetiu como que em sonho:
- É você, Natacha? É verdade que vive?
Caiu a seus pés, pedindo que se casasse com ele e
nunca mais o deixasse.
O casamento fora marcado para os próximos dias.
Apenas o tempo necessário para pedir a autorização do rei e
convidá-lo para as bodas. A cerimônia foi solenemente celebrada no palácio do príncipe, em Lwow. Houve festas esplêndidas, oferecidas pelo rei aos recém-casados.
O rei Jan Kazimierz, de caráter magnânimo e de coração generoso, recompensou o tenente Boguslaw Wasilewski por serviços prestados à pátria, promovendo-o a
coronel dos hussardos. Premiou-o com o título de nobreza,
e como convém a um conde, doou-lhe a cidadezinha de
Berestecko, na comarca de Luck, incluindo uma grande
propriedade de terras, aldeias e servos na região da Wolínia,
56
domínio que começava na nascente do rio Styr, abrangendo
uma área de terras até Wasylkow, perto de Kiew, herdade
pertencente por direito à princesa Natacha e que lhe fora
usurpada pela viúva do seu tio Konstanty, Amalia Kosiewicz.
A glória do esposo e a virtude da esposa projetaramse na sua vida conjugal, e Deus os abençoou. Deram à Polônia doze belos rapazes, que, por sua vez, deixaram numerosa descendência. Muitos dos descendentes, a exemplo de
Boguslaw, cobriram-se de glória. Outros caíram como heróis nos campos de batalha.
Boguslaw Wasilewski foi antepassado do Andrzej,
outro mártir pela causa da pátria, cujo bisavô, Kleofas, perdera todos os bens que a família possuía para o governo
russo de Catarina II, que os confiscara, como represália por
seu envolvimento na Confederação de Bar, em 1768, e na
grande insurreição contra a Rússia, em 17
***
O rei Jan Kazimierz, depois de uma série de combates em Zbaraz, concluíra com o khan da Criméia um armistício que, sem ser favorável, ao menos assegurava algum tempo de repouso ao exército da Coroa.
Chmielnicki, em conseqüência deste fato, conservava a sua dignidade de hetman dos cossacos, com um efetivo de quarenta mil soldados. Em compensação, fez juramento de obediência e fidelidade ao rei.
Mas o tratado de paz não foi o fim da tragédia da
Polônia. Dois anos mais tarde, os cossacos levantaram-se
de novo, e mais terríveis que nunca. Chmielnicki precipitou-se contra a Coroa, arrastando em seu seguimento o
khan da Criméia e as suas hordas tártaras. Um exército de
meio milhão de homens soltou, o seu grito de guerra.
57
Parecia que a Coroa não poderia erguer-se mais.
Contudo, saiu do seu torpor, pois reconheceu que só a força
das armas podia trazer a paz. Assim, quando o rei se pôs em
marcha, cem mil homens se comprimiam sob a sua bandeira.
Ninguém faltou ao seu chamado.Veio o príncipe Jeremias Wisniowiecki com o seu grande exército e, entre
eles, o coronel Boguslaw Wasilewski, que seguia à frente
do regimento dos hussardos, que mais pareciam anjos com
asas, voando nos seus cavalos velozes.
Vieram o hetman Zamojski, Potocki, Czarniecki,
generais Adam Poniatowski, Arciszewski e João Sobieski;
alferes, duques, príncipes, bispos com seus exércitos particulares, senadores, todas as forças armadas reunidas, enfím,
em volta do seu rei.
E foi nas planícies de Berestecko que se encontraram aquelas massas formidáveis. Houve ali uma das maiores batalhas que os anais da história registram.
Durou três dias a encarniçada luta. Nos dois primeiros, os destinos de tantos povos ficaram indecisos. No terceiro dia, decidiu-se a vitória. O grande hetman Wisniowiecki abriu fogo, e assim como um imenso rio se perde nos
abismos do oceano, assim as suas tropas pareciam abismar-se naquele mar inimigo.
Milhares de cadáveres juncavam o campo de batalha, entre eles o inimigo irreconciliável dos poloneses, o fiel
aliado de Chmielnicki, o terrível e feroz Tugay-Bey.
As hordas tártaras soltaram um grito de desolação.
O próprio khan ferido estremeceu a este espetáculo, não
teve coragem de se defender, e voltando as rédeas, fugiu,
levando consigo as tropas consternadas.
Em vão Chmielnicki tentou impedir-lhe a passagem
e reconduzi-lo ao combate. Á sua vista, o khan rugiu de
cólera, apoderou-se dele, mandou amarrá-lo a um cavalo e
58
levou-o consigo. Desta vez ainda, Bohdan Chmielnicki não
morreu. Procurou refúgio no meio dos tártaros da Criméia.
Quando o príncipe Jeremias Wisniowiecki morreu e
os seus imensos domínios na Ucrânia foram destacados da
Polônia, foi Chmielnicki quem se beneficiou da melhor
parte daqueles despojos. Recusando-se a toda e qualquer
proteção, defendeu à mão armada as suas franquias e as
liberdades dos cossacos da Ucrânia.
As guerras civis continuaram, Chmielnicki assinou
em 1654 um tratado pelo qual reconhecia a suserania da
Rússia. Morreu em 1657 como um herói da Ucrânia.
Será que essa guerra fratricida entre Chmielnicki e
seus cossacos contra a Polônia não fora um trágico mal
entendido? Prejudicial para ambos os povos e, no prosseguimento das retaliações entre as duas nações-irmãs eslavas, fatalmente perniciosa?
III
CASTAS SOCIAIS
Desde a Idade Média e até o final do século XIX, a
população da Polônia estava dividida em castas. Essa foi a
principal causa dos conflitos na Ucrânia, Lituânia, Bielorússia, Wolínia e em todas terras polonesas.
A divisão era seguinte:
1° - A nobreza: magnatas, poderosos proprietários
de vastas terras, aldeias e servos-camponeses; com muitas
prerrogativas, controlavam o governo, sem qualquer poder
superior para discipliná-los. Recusavam-se a conceder fidelidade sistemática ao rei. Aliavam-se freqüentemente a
potências estrangeiras.
59
2° - Rei: no início era um título hereditário, depois
o rei passou a ser eleito. Em 1573, com o fim da dinastia
Jagiellon, os magnatas e a nobreza elegiam reis de fora da
Polônia, ao invés de eleger algum polonês, temendo que se
tornasse muito forte.
3°- Príncipes e condes: eram títulos hereditários ou
concedidos em casos especiais pelo rei, pelo papa e pelos
países ao redor.
4° - A pequena nobreza: era dividida em dois grupos: os que possuíam terras, aldeias e servos, e os nobres
sem terra, que se ligavam a algum magnata. Eram pessoas
de boa linhagem, alguns deles eram ricos, outros possuíam
apenas um cavalo e um orgulho sem limites.
5° - Clero: cardeal, bispo, abade, monge, frade, todos ligados diretamente à Roma. Possuíam vastas propriedades, aldeias e, alguns, até cidades inteiras, com todos os
camponeses incluídos. Tinham também exércitos particulares. No início eram os únicos que sabiam ler e escrever,
assim, infuenciavam grandemente os governos.
6° - Mercadores e artífices: eram proprietários de lojas e fábricas. Assemelhavam-se à classe média atual.
7° - Judeus e agiotas: como a religião católica proibia a cobrança de juros, a tradição dos nobres não via com
bons olhos seus membros se empenharem em negócios de
qualquer tipo, os judeus aceitaram de bom grado esta incumbência.
8° - Pequenos proprietários: as terras na Polônia
pertenciam aos magnatas, ao clero ou à Coroa, mas camponeses hábeis, mediante um serviço prestado a um magnata
ou ao rei, conseguiam obter grandes tratos de terra.
9° - Camponeses: a maioria dos habitantes da Polônia era constituída por camponeses, como na maior parte da
Europa medieval, e até os fins do século XIX, em países do
leste europeu. Eram chamados de servos e mujiques. Mo60
ravam em aldeias e pertenciam à terra, tinham que trabalhar
dias destinados para o amo, não podiam mudar-se para outro lugar, nem decidir sua vida sem consentimento do dono. Não tinham instrução nenhuma, viviam na ignorância e
obscurantismo.
Entretanto, os camponeses poloneses conquistaram
determinadas liberdades e pequenos lotes de terra pela
Constituição de 3 de maio de 1791, aprovada pelo rei Stanislaw August Poniatowski.
As aldeias compunham-se de um conjunto de pequenas casas, construídas de madeira, taipa e barro, cobertas de palha de centeio trançada com cordas para fixar. Eram chamadas de izbas, geralmente tinham um só cômodo,
e o piso era de terra batida.
A construção que se destacava na aldeia, era uma
pequena igreja de madeira com a torre pintada de azul.
Também havia uma edificação grande que servia de estábulo para o gado e dormitório para a criadagem
Um moinho de roda d´água, para moer o trigo sarraceno (gryka) e centeio que alimentava de pão preto os aldeões. Na época do Natal e Páscoa comiam do pão branco
de trigo e assados de carne de porco. Vestiam roupas novas
e calçados para assistir à missa solene dos Dias Santos.
O solar dos proprietários só tinha um andar, mas suas paredes eram de pedra e se estendia por uma área considerável, a fim de proporcionar acomodação aos donos, que
geralmente eram da nobreza.
61
IV
O PAÍS DA ÁGUIA BRANCA
( Breve resumo da história da Polônia)
Diz a lenda que nos primórdios, quando o chefe dos
polanos procurava um bom lugar para fazer o acampamento
para sua tribo, escolheu-o debaixo de um frondoso carvalho, em cujo cimo uma águia branca tinha o seu ninho. O
lugar foi chamado de Gniezno (ninho) e a águia branca foi
adotada como brasão da nação polonesa.
Desde o século VII, os polanos das tribos eslavas
povoavam a bacia do rio Oder e Warta, região posteriormente denominada de Grã-Polônia. Os polanos eram aparentados com as tribos mazovianas dos príncipes Lechek e
Pepelko.
Foi no leste europeu que surgiu um estado eslavo
importante. O centro do poder encontrava-se em Gniezno,
que era uma fortaleza onde habitavam os chefes tribais dos
polanos.
Krakus I foi um soberano lendário da Polônia, que
teria sucedido a dinastia de Lechek em fins do século VII.
Atribui-se-lhe a fundação de Krakow.
Krakus II, filho de Krakus I, foi assassinado por seu
irmão Lechek, que foi deposto e exilado.
Sucedeu-lhe a sua irmã Wanda. Existe uma lenda,
de que Wanda, princesa de uma beleza invulgar fora cobiçada por um príncipe alemão.Ela preferiu jogar-se nas águas revoltas do rio Vístula a casar-se com um estrangeiro.
Em sua memória foi erigida uma colina de pedras, nas proximidades de Krakow. Com a morte da princesa, extinguiuse a dinastia de Krakus, e a Polônia ficou sob o domínio dos
doze palatinos.
62
Primeiro da dinastia seguinte foi Piast, e do seu nome seguiu-se dinastia desde 842 até 1370, terminando com
a morte do rei Kazimierz III, O Grande.
Mieszko I, da dinastia de Piast, foi rei da Polônia de
962 a 992. Por todo seu reinado, os polanos efetuaram
conquistas e unificaram sob seu poder outras tribos eslavas,
(Lechickie), que habitavam as terras entre os rios Oder e
Bug, bem como o litoral do Báltico, e ao sul até os Montes
Cárpatos.
A Idade Média na Europa Oriental foi um período
de formação, em que sociedades primitivas fundiram-se em
monarquias feudais. Mas o processo de consolidação foi
lento e interrompido por incursões dos mongóis e tártaros
das estepes da Mongólia e também por retrocessos econômicos.
A Polônia, entre os séculos X e XII, como outros
numerosos Estados do princípio da Idade Média, era uma
monarquia, tratada pelos seus soberanos como propriedade
dinástica e hereditária. O príncipe e o pequeno grupo de
magnatas que o rodeava (no caso, antigos chefes tribais),
dispunham de forte poder centralizado.
A Igreja Católica Romana emergira do Ocidente,
para unificar as tribos belicosas e nômades que formariam a
Polônia. Em 966, Mieszko I recebeu o batismo cristão, pelo
que colocou o Estado Polonês no sistema político da Europa Central e delineou a via européia e cristã do desenvolvimento do Estado e da sociedade polonesa.
Em 965 tomou como esposa a princesa tcheca Dabrowka. Na sua comitiva chegaram à Polônia os padres que
se ocuparam do trabalho missionário e da evangelização
das tribos eslavas.
O filho e herdeiro de Mieszko I, Boleslaw I Chrobry, “O Valente”, reinou de 992 a 1025; no começo do seu
reinado agiu no sentido de aumentar a independência da
63
Polônia em face do Império Germânico, para isso teve que
lutar na guerra polono-alemã nos anos de 1002 a 1018.
Tendo vencido, fortaleceu sua supremacia na Europa Centro-Leste com expedição à Kiew em 1018, com o
que aumentou o seu domínio até o Mar Negro. Baseou o
seu governo no desenvolvimento agrícola, no fim das diferenças tribais independentes e na organização da Igreja.
Tinha a ambição de fundar um grande Estado, desde o Báltico até o Danúbio, incluindo a Boêmia, Morávia e também,
às custas dos seus vizinhos eslavos, iniciou a expansão para
o sul, leste e oeste.
Mieszko II foi coroado rei em 1025; foi, contudo,
privado da coroa em 1031, após ter perdido as guerras com
a Alemanha, a Rússia de Kiew e com a Boêmia.
Após a morte de Mieszko II, o seu sucessor, Kazimierz, teve de fugir do país, forçado pela nobreza que disputava o trono principesco. Retornou à sua terra com a ajuda alemã e reconstruiu o Estado, porém rejeitou a dependência em face do Império Germânico.
O seu filho Boleslaw II, “O Valoroso”, reinou de
1054 a 1079. Após numerosas guerras favoráveis e a reconstrução da metrópole eclesiástica, tentou uma vez mais
apoderar-se da coroa. Para esse fim, aproveitou o conflito
do Império Germânico com o Papado. Entretanto, caiu em
conflito com a alta nobreza polonesa e acabou perdendo a
coroa.
O seu irmão e sucessor, Wladyslaw Herman, contentou-se com o título de príncipe e reconheceu a supremacia relativa do Império Germânico.
Porém seu filho, Boleslaw III “Boca Torta” (1102 a
1138), permaneceu também príncipe, embora tenha travado
inúmeras guerras favoráveis e rechaçado a invasão alemã
em 1109; uniu a alta nobreza e a cavalaria polonesa sob o
64
lema da luta pela Pomerânia, perdida anteriormente, reconquistando essa região.
As condições favoráveis na Polônia estimularam a
vinda de uma onda de colonos alemães. A afluência destes
criou no país uma nova situação étnica, pois até o século
XII a Polônia era habitada quase que exclusivamente pela
população autóctone, eslava, originária das tribos dos polanos (Lechickie).
O recém-chegado clero alemão, francês e italiano, a
nobreza de origens diversas, comerciantes alemães e judeus, pertenciam às camadas elitistas. Nas cidades instalouse a rica população judia, favorecida, em 1264, por especial
privilégio concedido pelo príncipe cracoviano Boleslaw “O
Devoto.”
Entre 1330 a 1380, floresceram governos e civilizações no leste e centro-leste europeu. Foi fundada a universidade de Krakow em 1364, por Kazimierz Wielki. Entretanto, não faltaram fenômenos desfavoráveis. Grandes destruições aconteceram na Polônia, pelas três invasões dos
mongóis no século XIII. A primeira delas foi em 1241, depois em 1259 e 1287.
Em 1180, o sonho de Ghengis Khan, “O Flagelo da
Ásia”, tornou-se realidade. Formou aliança com as mais
diversas tribos da Mongólia, organizou um poderoso exército e partiu em guerras de conquista, estendendo os seus
domínios. No início do século XIII, ele já dominava uma
região que se estendia do Oceano Pacífico até o Mar Negro.
Era o temido chefe das hordas mongóis que invadiram e
dominaram a Rússia de Kiew no século XII.
O Império de Ghengis Khan estendeu-se pela China,
Mongólia, Índia e Rússia. Morreu em 1227, mas as conquistas prosseguiram com o seu neto e sucessor Batu Khan,
um líder militar de competência e coragem que, junto com
Vuldai, chefe dos tártaros, atacou a Hungria e a Polônia.
65
Batu liderou a invasão da Europa, com seus exércitos de mongóis e tártaros; invadiram e praticamente destroçaram a incipiente nação polonesa. A primavera de 1241 foi
um dos períodos mais sombrios da história da Polônia.
Krakow, a Capital Dourada, foi atacada e encontrava-se em
ruínas.
Sob a liderança do rei Henrique “O Devoto”, um
homem sagaz, justo e heróico, cuja ambição era unir os
muitos ducados esfacelados, convertendo-os numa poderosa nação, a Polônia; para isso deveria derrotar e expulsar
os tártaros.
Mas infelizmente o rei morreu em combate, e sua
cabeça decapitada foi mandada por Vuldai, general tártaro,
para Batu Khan, para a Hungria, onde este fazia guerra de
conquista. Nos anos terríveis que se seguiriam, a Dourada
Krakow seria saqueada muitas vezes; também foram devastadas outras cidades, entre elas Lwow, Lublin, Luck,
Sandomierz, na Polônia. A cidade fortificada de Kiew foi
conquistada e arrasada.
Os principados russos do norte foram esmagados
em uma campanha-relâmpago de inverno em 1237. Os poloneses não entendiam por que não se podia resistir àquele
terrível flagelo. Mas a Polônia não estava sozinha em sua
incapacidade de se defender das incursões que vinham da
Ásia. A Hungria, a Boêmia, a Transilvânia, a Romênia caíram. Também caiu a Rússia, que se mantinha como lagarta
abatida, atacada por uma legião de formigas, e assim ficou
por longos 200 anos, sob o domínio dos mongóis.
As ameaças externas fortaleceram as aspirações à
unificação das terras polonesas, o que não constituiu um
objetivo fácil de ser alcançado. Cada um dos chefes locais
da dinastia dos Piast queria ser o unificador. Litigiosas
também eram as bases sociais da unificação.
66
Após várias tentativas mal-sucedidas dos príncipes
silesianos, em 1295 apoderou-se da coroa o príncipe da
Grã-Polônia Przemyslaw II, tendo sido em seguida assassinado misteriosamente.
Pela herança do trono houve grande disputa entre os
príncipes da dinastia Piast. Enfim, venceu o rei tcheco
Wenceslau II, e coroou-se em 1300 como rei da Polônia. A
morte, em breve tempo, de Wenceslau II e do seu filho
Wenceslau III, abriu caminho ao trono da Polônia para
Wladyslaw Lokietek “Cotovelo”.
Ele obteve o apoio do Papa e ajuda militar da Hungria e unificou parte das terras polonesas, excluída a Pomerânia, que foi ocupada em 1308 pela Ordem dos Cavaleiros
Teutônicos. Esta separação da Polônia do mar Báltico ocasionou graves conseqüências, abrindo um período de 150
anos de lutas da Polônia contra a Ordem religiosa alemã
para a recuperação desta terra.
Entre 1330 a 1380, floresceram governos e civilizações no leste e centro-leste europeu. O século XIV foi de
desenvolvimento econômico, cultural e político. Foi a época de acelerada expansão econômica da Polônia e Lituânia,
que era o maior Estado territorial da Europa do século XIV.
O filho e sucessor de Wladyslaw Lokietek, de nome
Kazimierz Wielki “Grande”, governou de 1333 a 1370; foi
um dos mais notáveis soberanos poloneses. Em 1410 conseguiu derrotar os Cavaleiros Teutônicos na batalha de
Grunwald, que foi como um eco de uma vasta tempestade;
os mortos tombavam como hastes de trigo derrubadas pelo
granizo de verão.
O sucessor de Kazimierz Wielki, Luis de Anjou, rei
da Hungria e neto de Wladyslaw Lokietek, assumiu o trono
polonês em 1370; reinou até 1382.
Sucedeu-lhe sua filha Jadwiga, em 1384, de apenas
onze anos de idade. O grupo de magnatas cracovianos que
67
governava a Polônia decidiu conceder a sua mão ao soberano pagão do Grão-Ducado da Lituânia, de nome Wladyslaw Jagiellon.
A condição foi o batismo da Lituânia e a vinculação
do Grão-Ducado da Lituânia à Coroa do Reino da Polônia.
A união foi realizada em Krewa, em 1385. A aliança dos
dois países, sob a dinastia Jagiellon, era um fato justificado, por motivos econômicos e sociais, pelo comércio,
pela ação colonizadora e pela transferência para a Lituânia
do modelo político polonês.
Um ano depois, Wladyslaw Jagiellon, filho de Olgierd, rei da Lituânia, converteu-se ao catolicismo e foi
batizado em 1386 em Krakow, e a assembléia da nobreza
elegeu-o rei da Polônia. Após o falecimento de Jadwiga,
com apenas 26 anos de idade, em 1399, os direitos de Wladyslaw Jagiellon ao trono foram confirmados pelo conselho
real. Reinou até o ano de 1434, sobre o imenso império de
mais de 1,1 milhão de quilômetros quadrados, formado
desde o rio Oder a oeste, o mar Báltico ao norte, Mar Negro ao sul, e até o rio Oka a leste.
Vinculadas, a Polônia e a Lituânia, no limiar do século XIV, ocupavam um enorme território. Nele viviam
inúmeros e diversos grupos étnicos e religiosos: poloneses,
lituanos, alemães, russos, judeus, armênios e tártaros. Confessavam a religião católica, ortodoxa, armênia, judia e muçulmana. Essa grande diversidade forçava os soberanos a
uma política de completa tolerância e garantia de direitos a
todos os habitantes.
Sucedeu-lhe seu filho Wladyslaw III, que morreu
em combate na guerra contra os turcos. A fonte ininterrupta
do conflito da Ordem dos Cavalheiros Teutônicos com a
Polônia era a ocupação de Pomorze (Pomerânia) e o porto
de Gdansk.
68
O rei Kazimierz IV, Jagielonczyk (1447 a 1492),
sucessor de seu irmão Wladyslaw III, enfrentou uma guerra
de 13 anos com a Ordem, terminada com a paz de Torun
em 1466, pela qual a Polônia recuperou Pomorze e todas as
outras terras usurpadas pela Ordem.
Jan I, Olbracht, filho de Kazimierz Jagiellonczyk,
foi rei da Polônia de 1492 a 1501. Assinou a União polonolituana em Wilno no ano de 1499.
O rei Aleksander Jagiellon, governou Polônia de
1501 a 1506.
Zygmunt I „„Stary”, foi rei de 1506 a 1548, era o 3º
filho de Kazimierz Jagiellonczyk. Após a extinção da dinastia dos Piast Mazovianos, em 1526, anexou Mazóvia à Coroa polonesa. Protetor da literatura e da arte, o seu governo
marcou a época de ouro polonesa.
Zygmunt II August, filho de Zygmunt I, reinou de
1548 a 1572. Realizou, em 1569, a União sob o mesmo
cetro da Polônia e da Lituânia; mas por sua morte, em 1572,
a dinastia Jagiellon extinguiu-se, pois o rei não possuía
descendentes.
O poder da Polônia entrou em declínio gradual como resultado da fraqueza interna e dos conflitos externos; a
luta pelo poder e sucessão levou a nobreza a eleger Henrique de Valois, francês, que abandonou logo a coroa polonesa para ser sucessor de Carlos IX, da França. Foi votada
pelos magnatas, em 1573, a primeira eleição livre, o que
levou à grande interferência dos países estrangeiros na sucessão na Polônia.
Era uma época em que guerras intermináveis arruinaram o país. Foi interrompido o desenvolvimento da cultura, das artes e do ensino. A rivalidade entre os magnatas,
a intervenção de outros países e o aumento da dependência
destes, intensificaram a já existente anarquia.
69
Com a primeira eleição livre, foi estabelecida a
constituição do Senado, definindo os alicerces que regeriam
o organismo. Mas a recém-criada democracia dos nobres
escondia inúmeros perigos. A nobreza, que anteriormente
já tinha adquirido decisiva influência sobre o poder no país,
defendia suas conquistas e, cada tentativa de reforma, considerava como invasão dirigida contra suas posses.
O fator que mais dificultou as reformas foi a criação, em meados do século XVII, do conceito de “Liberum
Veto”, dando direito a um só senador vetar a lei que não lhe
interessasse. A conseqüência de um tal protesto era a rejeição de tudo que fora anteriormente aprovado por essa assembléia.
Desta maneira, a democracia incipiente converteuse em oligarquia dos magnatas, fator em que os interesses
privados eram colocados acima do bem-estar do país. Este
sistema de “Liberdade Áurea”, prejudicial à nação, foi introduzido na época em que crescia em poder a Rússia dos
Romanow, a Prússia dos Hohenzoller e a Áustria dos Habsburgos.
Em 1575, foi eleito rei Stefan Batory, príncipe húngaro, reinou até 1586. Expulsou os russos da margem do
Báltico, recuperando as terras invadidas por eles. Casou
com Anna Jagiellon, rainha da Polônia.
Zygmunt III, Waza, reinou de 1587 a 1632.
Wladyslaw VI, reinou de 1632 a 1648, lutou contra
a Suécia, a Rússia e a Porta Otomana. Estava no meio da
reconstrução das cidades devastadas pelos alemães. A Polônia e a Alemanha, enquanto existissem, sempre temeriam
uma a outra. Os poloneses sempre receariam que sua fronteira ocidental fosse invadida pelos alemães.
O governo da Polônia possuía diversas fraquezas
singulares que o tornavam muito menos estável; os magnatas dominavam a eleição do rei, mas receavam eleger um
70
dos seus, que poderia assim se tornar muito forte e limitar a
sucessão a membros de seu próprio clã; então preferiam
sempre eleger um estrangeiro, o que os envolvia nos problemas dinásticos de outras nações.
A princípio, os reis eleitos desempenhavam-se como
magistrados responsáveis contratados; alguns se tornavam
até excelentes administradores. Os magnatas depois de escolherem um rei, recusavam-se a conceder-lhe qualquer
poder real, qualquer direito, mesmo o de convocar um exército sólido, pois temiam que se tornasse ditador. O rei devia
manter-se exclusivamente como uma fachada.
O Parlamento consistia de duas casas, o Senado e a
Câmara dos Deputados. Somente os magnatas e a alta hierarquia da Igreja podiam ter assento no Senado. Os representantes da pequena nobreza se concentravam na Câmara
dos Deputados. A recusa dos magnatas em partilhar o poder
foi a degradação do Congresso.
Com esta deterioração intrínseca, a política da Polônia tornou-se a mais corrupta da Europa, superando em
venalidade até mesmo a dos turcos em Constantinopla. Ano
após ano, a “Liberdade Áurea” dos magnatas implicava o
enfraquecimento e aviltamento da nação. Com sucessivos
reinados, surgiram rivalidades entre os nobres e a anarquia
levou a uma guerra de sucessão.
O rei Jan II, Kazimierz Waza, eleito em 1648, teve
um reinado desastroso. Era um rei bondoso mas com carência de autoridade. O seu reinado de 20 anos foi marcado por
insubordinação dos nobres, intrigas na corte, revoltas, guerra com a Rússia, Hungria, com os tártaros e principalmente
com a Suécia. Não conseguiu nada com os magnatas, e
assim, no seu governo o país foi à ruína. Abdicou em 1668
e retirou-se para França.
Numa eleição disputadíssima em 1669, foi escolhido
o príncipe Michal Korybut Wisniowiecki, filho de Jeremias
71
Wisniowiecki, o grande magnata e senhor da Ucrânia. Michal foi um rei indeciso, sem autoridade e incompetente.
Seu reinado foi conturbado pela luta pelo poder dos magnatas, que anulavam os Sejm (Assembléias).
Michal Wisniowiecki reinou por cinco anos.
Em 1674, numa luta brutal entre aspirantes a rei e
diante da pressão dos magnatas, foi eleito Jan III, Sobieski,
de 54 anos, o grande hétman da Coroa. Homem valente,
guerreiro por natureza, de altura e tamanho descomunal,
cabeça imponente de cabelos ruivos e bigodes enormes
caídos ao lado da boca, era uma figura assustadora à primeira vista, mas de natureza alegre e bom humor, tinha o
coração terno e sensível. Amava acima de tudo a esposa, a
linda Marysienka, francesa, caprichosa e sutil, que muitas
vezes influenciava as decisões do marido.
Sobieski, exímio comandante, enfrentara com êxito
os exércitos dos tártaros e zaporogos nas planícies e estepes invadidas da Ucrânia.
A Turquia, cujo centro de poder continuava a ser
Constantinopla, era governada pelo sultão Muhammad IV,
que de uma nação quase em desagregação pela corrupção e
maus governos, construíra o Império Otomano, que se estendia do leste da Itália à Rússia, do norte da Pérsia à Hungria, abrangendo nações européias como Grécia, Macedônia, Albânia e Bulgária; representava uma ameaça real aos
povos da Europa.
Em 1683, representantes de cinco países europeus
suplicavam a ajuda polonesa para defender o cristianismo
de uma nuvem negra de terror; os turco-tártaros ameaçavam
toda Europa. A cidade de Viena cairia em poder dos turcos,
que constituíam uma força extraordinária, antes que o ano
terminasse.
Assim, as próprias nações que pouco antes tinham
se empenhado em destruir a Polônia, vinham agora suplicar
72
a sua ajuda. E seria o grande rei Sobieski a salvação dos
antes algozes da Polônia. Até o velho cardeal, emissário do
papa Inocêncio XI, veio pedir socorro para Viena. Sobieski
liderou a defesa da cidade e venceu as tropas otomanas de
Kara-Mustafa, que cercavam Viena.
Jan III, Sobieski, reinou até o ano de 1697. Foi o
mais dinâmico rei que a Polônia jamais teria. O seu reinado
de vinte e três anos foi profícuo, pois era político hábil e
resoluto. Levou o país à prosperidade, reergueu o Estado,
refreou os desmandos dos magnatas.
Sucedeu-lhe August II, príncipe saxônio eleito pelo
Senado dos magnatas, em 1697. Governou até 1709 num
reinado absolutista, entrando em conflito com os nobres.
Sua época foi de queda da situação da Polônia no conceito
internacional. Aliado do czar Pedro “O Grande”, da Rússia,
envolveu o país numa guerra de resultados desastrosos.
Opositor eleitoral de Stanislaw Leszczynski, disputava com
ele o trono polonês.
August III, filho de August II, foi rei da Polônia de
1733 a 1763. Conseguiu eleger-se com o apoio do exército
russo e saxônio. Seu reinado durou longos trinta anos e foi
um fracasso. Contribuiu para o enfraquecimento e o declínio do Estado. Com a ascenção da Rússia, a czarina Catarina II, aproveitou e colocou seus exércitos no território
polonês.
***
73
V
SONHOS TRUNCADOS
Na cidade de Pulawy, situada à margem direita do
rio Bug, afluente do Wisla (Vistula), a cinqüenta quilômetros da capital, morava num suntuoso palácio a poderosa
família Czartoryski. Os mais proeminentes membros desse
clã, pretendiam, com o poder politico que possuiam, influenciar e, por meio de alianças, estudos, projetos e análise apurada da situação, trabalhar para modificar o sistema
vigente no país.
A Polônia seria liderada por um rei forte, que fundaria uma dinastia em que não mais se permitiriam eleições
controladas por potências estrangeiras. Teria um senado
eleito de maneira honesta, as pessoas das cidades teriam
direito de votar e possuir terras, os servos seriam libertados.
Os irmãos Czartoryski tinham uma irmã, jovem e
bela, de nome Konstancja, que se casou em 1728 com o
conde Roman Poniatowski, que apesar do título de nobreza,
este não lhe conferia poder político, mas era rico, dono de
extensas áreas de terras, aldeias e servos, na Ucrânia.
Os antepassados dos Poniatowski pertenciam à alta
aristocracia polonesa. Suas origens datam do século XVI,
época da dinastia Jagiellon. Seu berço natal ficava na Ucrânia, no castelo de Kharkow, onde se estabeleceram.
Conde Stanislaw Poniatowski, castelão de Kharkow
(1677-1762), possuía um imenso domínio de terras negras,
as mais férteis da região, nos campos e vales dos rios Doniec e Worskia. Tinha seis filhos, bonitos, inteligentes e
empreendedores. Cada um deles seguiu uma carreira; diplomatas, militares, políticos.
74
O primogênito Michal ingressou no sacerdócio, e
com a ajuda dos tios, tornou-se o primaz da Polônia. Seu
irmão mais moço, Stanislaw August, nasceu em 1732; estava destinado a uma posição ainda mais elevada, rei da
Polônia; foi educado e preparado com cuidado excepcional
para ocupar o trono.
Os tios achavam que, como rei, promoveria as reformas e levaria a Polônia para a família das nações respeitáveis da Europa. Os outros quatro filhos do casal Poniatowski: Andrzej, Janusz, Ludwig e Tadeusz, rapazes ambiciosos, escutavam os conselhos dos tios Czartoryski atentamente.
Andrzej seguiu a carreira militar, promovido a general, foi comandante e chefe do exército polonês. Pai do
princípe .Jozef Antonio Poniatowski, Ministro da Guerra do
Principado de Warszawa e Marechal da França. Jozef morreu em batalha em Lipsk, na guerra napoleônica em 19 de
outubro de 1813.
Atendendo ao desejo dos tios Czartoryski, Tadeusz,
o caçula de Poniatowski, casou-se aos 23 anos com Zofia,
filha de Zbigniew Ossolinski, da alta nobreza, ligado a uma
das mais ricas e poderosas famílias de magnatas da Polônia,
os Zamojski.
Os Czartoryski não eram bastante poderosos para
alcançarem esses objetivos tão ambiciosos e elevados, mas
contavam com a aprovação dos Zamojski, uma família poderosa e extraordinária, que havia construído com seus próprios recursos a cidade murada de Zamosc, tão importante
na história polonesa.
De uma década para outra, o poder parecia fluir cada vez mais para os Czartoryski e os Zamojski, e sempre os
dois grandes clãs se mantinham unidos, empenhando-se
para produzir uma Polônia melhor e mais forte. Tinham o
apoio de muitos magnatas influêntes, como os poderosos
75
Potocki, que possuíam grande prestígio no governo, mas
invariavelmente cabia a eles a liderança.
Eles também enfrentavam oposição de muitos, mas,
ao final da década de 1750, os Czartoryski, com o desempenho brilhante dos sobrinhos Poniatowski, estavam fadados a triunfar. As perspectivas de a Polônia tornar-se um
Estado moderno nunca foram tão animadoras.
No ano de 1756, os diligentes Czartoryski chegaram
à conclusão de que se Stanislaw August algum dia chegasse
a ser rei, devia aprender desde logo um comportamento
real. Arrumaram para que ele fosse a São Petersburgo, a
fim de tomar gosto pela vida na corte. Eram adeptos da
política russa na Polônia. A Rússia era governada na época
pela czarina Isabel, segunda filha de Pedro, “O Grande”, e
sua esposa lituana Catarina.
Ele chegou lá no início da primavera. Os vastos
parques e jardins de São Petersburgo estavam cobertos de
flores. A brisa morna trazia o perfume até às dependências
do castelo onde se alojava o grande número de hóspedes da
corte russa. Havia um clima de romance no ar.
O fidalgo polonês era um belo diplomata de 24 anos, educado, com boas maneiras e domínio completo de
francês, alemão e russo. Possuía predicados que lhe conferiam invejável superioridade sobre outros jovens diplomatas designados para junto do governo russo.
Uma semana depois, já atraíra a atenção de uma
linda e determinada nobre alemã, Sofia Anhalt Zerbst. Nascida na Alemanha, a princesinha contava apenas 15 anos
quando foi escolhida pela czarina Isabel para noiva do
príncipe Pedro Ulrico, sobrinho de Isabel, que havia sido
destinado ao trono russo, e Sofia seria conhecida pela história como czarina Catarina II, “A Grande”.
O jovem conde Stanislaw August Poniatowski sentiu o coração a martelar ao ver Sofia, com “cabelos negros,
76
a tez sedutoramente alva, os longos cílios escuros, o nariz
grego, os lábios que pediam beijos, os braços e as mãos
esculturais, o passo elástico e a atitude nobre”. E como era
alegre o riso de Sofia! Como seria bom poder amá-la - pensava ele.
Ele era cavalheiresco e sensível, e não via em Sofia
apenas a mulher, ou uma brilhante conquista, mas a personalidade intelectual. A simpatia depressa transformou-se
em amor, e o amor elevou-se a paixão, quando sentiu que a
atração era recíproca. A grã-duquesa de 28 anos deixou-se
arrebatar pelo novo romance. E poucos dias depois de se
conhecerem, Sofia e Stanislaw já estavam na cama; tiveram
um envolvimento ardente.
De temperamento exuberante, ela expunha-se a sérios riscos, deixando à noite o palácio, em trajes masculinos, furtando-se à vista do marido beberrão, para avistar-se
com o amante em casa de pessoas de confiança. A jovem
Sofia obteve dessa atenção lisonjeira um fortalecimento do
seu ego. Poniatowski adquiriu notoriedade como seu amante polonês.
A ligação escandalosa de Poniatowski com a grãduquesa Sofia, esposa de grão-duque Pedro Ulrico, sucessor
do trono russo, chegou às cortes européias, e foi muito criticada. Censurada com incontida veemência pela imperatriz
Isabel I, que era de temperamento violento.
Os tios Czartoryski, a fim de desviar a atenção do
escândalo na corte russa, acharam melhor casá-lo com
uma das moças Czartoryski, chamada Isabella, e também
para reforçar o conceito de dinastia. As lutas dinásticas seriam eliminadas com a instituição de uma família unida
reinante, Czartoryski e Poniatowski.
Isabella era desgraciosa, não podia considerar-se
uma beldade, mas era inteligente e determinada. Stanislaw
77
rejeitou-a alegando que era feia demais. Isabella nunca o
perdoou por essa afronta.
Stanislaw August continuou na corte russa, e foi ali
que ele foi citado como preferido para ser o rei polonês.
- Há possibilidade em tornar-me rei da Polônia? perguntou Stanislaw a Sofia, quando das carícias de amor
na alcova.
- Por indicação russa sim, breve o serás - respondeu
Sofia, entre um beijo e outro.
- E como eu poderia conseguir a ajuda russa?
- Por meu intermédio.
- Mas você é alemã!
-Tenciono tornar-me uma russa - respondeu ela,
com uma determinação implacável, que ele não conhecia e
nem observara quando se achavam no exercício do amor.
A possibilidade de que Sofia pudesse ajudá-lo a
subir ao trono aumentou em 1762, quando morreu a czarina
Isabel I, a filha de Pedro, “O Grande”. Isso significava que
o deplorável marido de Sofia Anhalt Zerbst, grão–duque
Pedro Ulrico, tornar-se-ia o czar da Rússia, função na qual
seria tão incompetente como o era na cama.
O breve reinado de 185 dias do czar Pedro III, Ulrico, foi tão inepto e caótico, que Sofia, temendo perder sua
posição, reuniu em sua volta um grupo de oficiais, muitos
dos quais haviam partilhado sua cama, e se proclamou Imperatriz de Todas as Rússias, como Catarina II,“A Grande”;
ela tinha trinta três anos quando foi coroada.
Aguardava-a uma tarefa que era pesada mesmo para
os ombros de um homem robusto. Mas ela viera ao mundo
para reinar, e em poucos anos, tornara-se tão russa, senão
até mais russa que os próprios russos. Na verdade, todo o
seu ser, sua alma e seu corpo viviam fascinados pela Rússia, pelo misticismo tipicamente russo, e por esse caldeirão
de feiticeiro em que se amalgamam e repelem, fecundando78
se e hostilizando-se mutuamente, elementos russos e asiáticos.
Reinaria por tumultuados trinta e quatro anos. Oito
dias depois da sua autocoroação, o marido, czar Pedro III,
Ulrico, foi assassinado por um jovem oficial, Alexei Orlow,
irmão do outro amante de Catarina. O jovem Poniatowski
tremia de expectativa e se imaginava o novo consorte de
Catarina. Na Rússia, seria marido da czarina; rei na Polônia, e já formulava planos.
Mas Catarina já fora muito além do seu interesse por
aquele polonês pretencioso. Estava agora apaixonada pelo
conde Grigory Orlow, e o moço Poniatowski era-lhe um
embaraço. Foi afastado da Rússia, às pressas, sem esposa e
sem coroa. Contudo, seus ambiciosos tios Czartoryski não
desistiram e enviaram emissários a São Petersburgo, solicitando apoio de Catarina a seu sobrinho.
- Se ele não for eleito rei da Polônia, o trono irá para
as mãos de um alemão, austríaco ou francês, o que representaria um transtorno para a Rússia. Se ajudá-lo a subir ao
trono, terá garantido um permanente aliado.
Catarina recompensou seu amante de uma maneira
dramática. Quando o rei Augusto III, da Saxônia, morreu,
os magnatas, como sempre, preferiam ter um rei fraco, alemão, francês ou austríaco, do que um polonês forte.
Deixaram bem claro que o jovem Poniatowski não
era aceitável. Mas Catarina não estava disposta a permitir
que o seu antigo favorito fosse preterido, especialmente
quando ele poderia ser-lhe útil no futuro.
- Não podemos admitir uma Polônia indefensável
em nossa porta - disse Catarina a seus conselheiros.
E como recompensa pelo amor de Poniatowski, ela
despachou um exército russo completo para a Polônia, até o
lugar onde os magnatas promoviam a eleição do novo rei.
79
Cercando a área, os russos exigiram a eleição do
candidato de Catarina e, se os magnatas recusassem, seriam
todos fuzilados. E foi dessa maneira violenta e brutal que a
Polônia elegeu em 1764 o rei, que seria o último. Ele,
certo que a czarina o recompensara porque ainda o amava disse aos tios:
-Um dia novo e brilhante amanheceu para a Polônia,
com o apoio dela, poderemos realizar tudo o que sonhamos.
Mas se enganava lamentavelmente, pois Catarina,
vendo o tumulto em Warszawa, estava contente por ter resolvido o problema polonês com tanta facilidade, e comentou com seus conselheiros:
- Poniatowski será um rei medíocre, ele é fraco, volúvel, não sabe o que quer, será desprezado pelos magnatas
e destruirá o país que tanto ama.
Stanislaw Poniatowski, desde o início do seu reinado, tornou-se impopular, pois encontrava-se no trono
graças ao apoio do exército russo. No ano de 1771, depois
que Catarina II fizera tudo o que era possível para enfraquecer a Polônia e impedir que Poniatowski instituísse as
reformas necessárias para dar impulso ao progresso do país,
os conselheiros russos resolveram acabar com a questão
polonesa sem demora.
- Enquanto a Polônia existir, constituirá um ponto de
discórdia entre nossos países - concluíram os diplomatas
austríacos, prussianos e russos.
Por que a hostilidade dessas três potências contra a
Polônia? Ela não apresentava ameaça militar nem econômica a nenhum destes países. Apesar de tudo isso, o perigo
que o país apresentava era concreto e as grandes potências
podiam senti-lo. A Polônia amava a liberdade.
Especificamente, cada incidente na história polonesa testemunhava a determinação da nação de evitar a au-
80
tocracia e a ditadura, para que não lhe tolhessem a liberdade. A Polônia era uma democracia.
No momento exato em que o bem intencionado rei
Poniatowski tentava melhorar a sorte dos seus camponeses,
Catarina privava os seus dos poucos privilégios que ainda
tinham, e não pararia até que 97% fossem levados a mais
abjeta escravidão.
Para a Rússia, que estava impondo uma ditadura tão
cruel, era inadmissível que a vizinha Polônia se empenhasse
em instituir uma democracia viável; poderia encorajar o
povo russo a tentar a mesma coisa, e isso não podia ser tolerado. A Polônia devia ser esmagada.
Catarina recrutou a Prússia e Áustria para ajudaremna na execução do seu plano. No inverno de 1771, três diplomatas estrangeiros se reuniram, a fim de providenciar
essa destruição. Essa reunião que iniciaria o desmembramento da Polônia, ocorreu no próprio coração do país, no
palácio Branicki, com anuência deste. Um ano depois começou a divisão.
Em 21 de abril 1773, realizou-se em Warszawa, no
castelo real, a Assembléia em que os deputados Szczesny
Potocki, Adam Poninski e Ksavery Branicki assinaram pelo
Senado o documento da divisão da Polônia. Estavam presentes o rei Stanislaw August Poniatowski, o embaixador
da Rússia príncipe Repnin e os embaixadores da Áustria e
Prússia.
Num momento dramático, o deputado por Nowogrod, Tadeusz Rejtan, protestou, querendo conter os membros da Assembléia. Jogou-se no chão da Sala dos Deputados, abriu a camisa no peito e gritou: “Matem-me, enforquem-me, mas não matem a Pátria”.
Nessa data foi executada a 1ª partilha parcial da Polônia entre a Rússia, Áustria e Prússia, restando um núcleo
central, do tamanho da França, para os poloneses se diverti81
rem em seu jogo de “Liberdade Áurea”. Em 1788, foi abolido o “Liberum Veto”, o infeliz procedimento que eliminava qualquer tentativa de melhorar a situação do país.
O desastre despertou o povo. O Senado votou uma
Constituição democrática no dia 3 de maio de 1791.O rei
Poniatowski adotou-a, apoiado pelos nobres e patriotas.
Era a segunda Constituição no mundo, após a dos Estados
Unidos, e a primeira da Europa.
Os magnatas das famílias poderosas como os Zamojski, Potocki, Czartoryski e outros grandes patriotas,
estavam ansiosos e preocupados com o destino iminente de
sua pátria. O momento preciso da eliminação da Polônia
dependeria dos planos dos Romanoff da Rússia, Hohenzollem da Prússia e Habsburgos da Áustria.
- Invadiremos novamente a Polônia; essa nação deve
ser retalhada e eliminada, não há mais qualquer desculpa
para sua existência - decidiram os embaixadores dos três
países em questão. Em 1793, foi feita a segunda partilha,
ficando só um pequeno núcleo central.
- Fica este pequeno pedaço da Polônia para ser governado pelo rei Poniatowski, meu velho amigo - disse
Catarina. Mas desconsiderando a promessa, em 1794 foi
feita a terceira partilha do resto que sobrava do país.
Reuniram-se como antes, para traçarem as novas
fronteiras entre eles. No final de 1795, a Polônia desapareceu do mapa por longos 123 anos de ocupação. Nos territórios usurpados, todos os esforços foram envidados para
eliminar a língua, a história, a religião e os costumes; a ordem era para que o nome de “Polônia” nunca mais fosse
pronunciado.
Stanislaw August Poniatowski, último rei da Polônia, reinou de 1764 a 1795, portanto, por trinta e um anos.
Sobrinho dos Czartoryski, poderosa família de magnatas;
favorito da czarina Catarina II, foi eleito por sua indicação
82
e imposição, e manobrado por ela como um fantoche. Foi
ele o arquiteto involuntário do suicídio de uma nação.
Os dias finais do rei foram lamentáveis. Não mais
um monarca no poder, foi levado para a Rússia como prisioneiro do Estado, e foi lá que ele morreu, em São Petersburgo, aos sessenta e três anos de idade, um exilado, um
amante rejeitado, esquecido e ignorado pela czarina, que
não quis nem vê-lo. Catarina morreu um ano depois, em
1796, com sessenta e sete anos, vitimada por uma congestão cerebral.
A partir da terceira e última partilha da Polônia, em
1º de novembro de 1795, houve um colapso total de um
Estado grande e cristão. Foi uma das destruições mais cruéis da história e uma das menos justificáveis. E nenhum
país protestou; uma nação soberana era violentada e saqueada, e as nações cristãs falavam em liberdade e os líderes
religiosos e o Papa apregoavam a responsabilidade moral e
a justiça para todos. O exército polonês foi derrotado na
tentativa de salvar o país, e os inimigos ocuparam toda a
nação.
Sucedeu a Catarina II, no trono russo, seu filho Paulo I, que reinou de 1796 a 1801. Governou apenas 5 anos,
pois a loucura manifestou-se nele. Na conspiração de março
de 1801, um oficial estrangulou o Imperador, com uma faixa de seda.
Depois da terceira partilha veio a dispersão dos centros culturais de Warszawa e outras cidades polonesas. Caiu
também o prestígio das aristocráticas mansões da nobreza
no campo, que funcionavam como centros locais da vida
cultural e social. Esse aspecto da época de 1800 só permaneceu em Pulawy, dos Czartoryski.
O czar Alexandre I, Pawlovitch, neto de Catarina II,
subiu ao trono em 1801, e reinou até 1825. Chamou para 1º
conselheiro nos assuntos poloneses o magnata Adam Jerzy
83
Czartoryski e, em 1802, encarregou-o da condução da política exterior russa. Foi fundada a Universidade de Wilno e
Czartoryski foi nomeado curador-chefe.
Em 1805, o czar hospedou-se na residência em Pulawy, e foi recebido com entusiasmo pelos magnatas presentes no castelo.Tempos depois, o czar, descontente com
Czartoryski por este não seguir as suas ordens referentes à
politica da Polônia, retirou-lhe o apoio e afastou-o do poder, substituindo-o por pessoas de sua confiança. Confiscou-lhe o domínio, propriedades e o castelo de Pulawy.
Contrário às restrições do direito civil, da liberdade
e da dignidade nacional, Czartoryski ainda assim era firme
partidário da união com o Império Russo, não obstante preocupado, para que a violência do arquiduque Konstanty
Pawlowitch, irmão do czar, e as trapaças do general Nicolau Nowosilkow não levassem os poloneses ao desespero e,
por conseguinte, à revolução. Com esse pensamento, o
príncipe Czartoryski, com cautela, apresentou as queixas do
povo ao czar Alexandre I, denunciando as arbitrariedades
dos seus homens de confiança. Não conseguiu nada.
Nicolau I, sucedeu no trono seu irmão Alexandre I,
governou de 1825 a 1855. O seu governo infligiu à sociedade polonesa o mesmo sistema desumano e reacionário de
terror da polícia militar, o qual era aplicado na Rússia: o de
manter a servidão dos camponeses e as prerrogativas do
Estado de constranger o livre pensamento e isolar o país
do resto do mundo – tendências essas que oprimiam o Império Russo e encontravam reflexos na Polônia.
A linha política antipolonesa na terra ocupada pela
Rússia era exatamente igual, imitada, pelos dois outros
países invasores. O sistema constituído no Congresso de
Viena despertava oposição de diversos lados. A burguesia
exigia a abrogação do poder absoluto e ampliação da sua
participação no governo. Os camponeses, a abolição da
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servidão, o proletariado operário, a melhoria nas condições
de trabalho e da situação econômica.
Em 29 de novembro de 1830, uma grande insurreição estalou na Polônia; foi cruelmente reprimida, e os ucazes de Nicolau I privaram este país de tudo que pudesse
favorecer a sua independência. Em 1844, em 1846, em
1848 e 1863 novas revoltas surgiram, mas foram reprimidas
com violência e seus participantes presos, mortos ou deportados para a Sibéria, obrigados ao trabalho forçado nas
minas dos Montes Urais e nas florestas na região de Irkutsk.
Ao final do ano de 1850, nas terras ocupadas pelas
forças russas houve o fortalecimento das atividades conspiratórias em todas as camadas da comunidade, pleiteando
reformas sociais e a independência do país. O conflito com
o Império intensificou-se no início do ano de 1861. Dois
anos depois, estourou a luta armada, chamada de “Levante
de Janeiro”. Os fatos que levaram a esse desfecho podemse reduzir para três importantes causas: a crise feudal interna, a situação revolucionária na Rússia e a mudança na
composição dos blocos internacionais.
O czar Nicolau I, reforçando o plano de unificação
do Reino da Polônia com a Rússia, retirou em 1851 a fronteira alfandegária entre os dois territórios, integrando a Polônia à esfera alfandegária russa.A derrota sofrida pela Rússia na guerra da Criméia denunciou a fraqueza do sistema
implantado por Nicolau I, sustentado na servidão dos camponeses e opressão dos povos conquistados.
O novo czar Alexandre II (1855-1881), filho e sucessor de Nicolau I, subiu ao trono em 1855, assinou a paz
com a França em 1856, depois da guerra da Criméia. Convencido da necessidade de reformas, aboliu a servidão,
causa primordial das freqüentes rebeliões dos camponeses;
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ordenou a diminuição da perseguição e opressão pela polícia militar e anunciou as próximas mudanças políticas.
Esperava que diminuíssem os distúrbios e a insatisfação que abrangeu todas as camadas sociais, desde as massas do povo até a liberal ala dos latifundiários. A anistia
concedida depois do armistício de Paris permitiu a volta ao
país de milhares de deportados, da Sibéria e de outros países.
Como sucessor do falecido general Ivan Fedorovitch
Paskewitcz, governador militar da Polônia, foi nomeado
Miguel Gorczakow, homem velho e indeciso, o qual procurava aproximação com a nobreza polonesa. Foi atenuada a
censura. Foram libertados os prisioneiros políticos do X
Pavilhão, da prisão em Warszawa. Graças ao “degelo” na
Rússia, a sociedade polonesa conseguiu um pouco de liberdade no âmbito social e vida pública.
Mas não seria por muito tempo, pois Alexandre II,
revogou todas as concessões dadas por Gorczakow. No
verão de 1862, foi coroado como rei do Reino da Polônia o
irmão do czar, o arquiduque Konstanty Nikolaiewicz Romanow. Quando Gorczakow morreu, foi nomeado Lambert,
que proclamou o estado de sítio em toda a Polônia. Esses
incidentes levaram a difíceis conseqüências; Lambert adoeceu e abandonou o seu cargo.
O seu sucessor, Alexander Lüders, agravou o curso
da repressão aprisionando diversos padres e outras personalidades notáveis. As rebeliões espocavam por todo o país,
se propagavam no campo e nas cidades; o povo se agitava
descontente e não dava tréguas ao invasor. A resistência e
o contínuo desdobramento da luta de guerrilhas só foram
possíveis pela participação dos camponeses.
O Governo Provisório Polonês, nas primeiras semanas do levante de 1863, dava enorme ênfase ao anúncio
do decreto de outorga de propriedade rural aos aldeões. A
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luta contra o governo de ocupação estava limitada às fronteiras do Reino da Polônia e condenada ao fracasso.
Alexandre II reprimiu violentamente a insurreição,
entregando o comando ao general Dimitri Feodorovitch
Trepow, que usou de todo poder do exército para abafar a
revolta. Condenados pelo czar, vinte mil guerrilheiros e
participantes do levante de 1863 foram deportados para a
Sibéria.
Em julho de 1866 estourou uma rebelião num grupo
de 700 condenados, remanejados de Irkutsk para construção
de estradas, além do lago Baikal, em condições desumanas.
O levante foi abortado, e os participantes presos e fuzilados
pelos gendarmes do czar.
A reforma que concedia terras aos camponeses levou à liquidação do sistema de organização feudal das terras polonesas. Anunciada solenemente nas aldeias no decorrer de março da 1864, a reforma de Alexandre II foi elaborada em quatro disposições.
A primeira concedia aos aldeões como sua a propriedade das terras que ocupavam. As terras desocupadas das
aldeias, prometiam dividir entre os aldeões locais sem terra.
Iriam pagar impostos sobre as terras.
A segunda declarava a autonomia da população rural. Organizava grupos de aldeias de composição exclusivamente camponesa, e ainda em comunas coletivas, isto é,
reuniam diversas aldeias e inclusive fazendas. Os administradores dessas comunas seriam escolhidos por agremiações
de proprietários de pelo menos três morgas de terra. Os
chefes dessas comunidades recebiam autoridade limitada,
sobre rigoroso controle do governo de ocupação.
A terceira referia-se às indenizações pelas terras divididas em favor dos camponeses. Os proprietários foram
pagos em papéis do Império Russo, que na venda valiam
1/3 do valor real.
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A quarta convocava uma hierarquia de autoridades,
que trataria da divisão das terras. Os funcionários viriam
especialmente da Rússia. Vieram Milutim, Czerkasky e
Solowiew como chefes, e demais encarregados de exercer a
função de árbitros.
A crise econômica em 1881 coincidiu com a morte
do czar Alexandre II, atingido por uma bomba dos nacionalistas, que foi arremessada contra sua carruagem. A repressão da polícia foi violenta, os operários responderam
com catastróficas greves, as quais levaram ao confronto
armado com as forças do exército. Em 1883 na ocasião da
greve em fábricas, quando a multidão quis resgatar os seus
agentes presos, o exército atirou na população deixando
centenas de mortos e feridos.
Sucedeu-lhe seu filho, Alexandre III, que subiu ao
trono em 1881. Renunciou às tendências liberais de seu pai
e retomou as tradições absolutistas. Morreu em 1894, deixando o trono a seu filho Nicolau II (1894-1917).
Este iniciou o governo com abrandamento da linha
política. O crescente engajamento da Rússia no Extremo
Oriente e as dificuldades com o movimento operário no
centro do país foram as principais causas que fizeram o
governo russo normalizar as relações com a Polônia. Com o
intuito de atrair e abrandar a comunidade polonesa, foram
afastados do governo os generais Hurko e Apuchtin.
O próximo governador Paulo Szuwalow e o que
veio depois dele,general Imeretynski, mantinham relações
amigáveis com a aristocracia polonesa, faziam acreditar nas
mudanças especialmente favoráveis à Igreja e à liberação
do ensino da língua polonesa. Mas logo veio a decepção.
Na Polônia, assim como em toda a Europa Oriental,
ao final do século XIX, somente a parcela da população
privilegiada tinha acesso à educação e ao ensino superior.
Não havia escolas na maior parte das aldeias e onde havia
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eram do mais baixo nível e decepcionavam pelas aulas obrigatórias em língua russa. Os camponeses eram em sua
maioria analfabetos.
O número de ginásios nas cidades aumentou, mas
eram superlotados e dificilmente algum aluno conseguia
terminar o curso em oito anos regulamentares. Embora a
educação religiosa e o aprendizado em língua polonesa
tivessem sido proibidos, isto apenas significava que eles
eram ensinados em locais secretos.
Nas escolas, depois da saída de Apuchtin nada foi
modificado para melhor. A língua russa era obrigatória nas
escolas, como matéria principal. A religião oficial era católica ortodoxa, ensinada nas igrejas. Em 1905, o governador
Czertkow implantou na Polônia o “Estado de Alerta Intensivo” e ordenou ao exército dispersar as aglomerações das
ruas e praças.
Desde as partilhas até a Primeira Guerra Mundial,
durante os anos de ocupação, as sucessivas gerações de
poloneses tentaram, por todos os meios conseguir a independência da pátria. Entretanto, era tarefa difícil, sem uma
conjuntura internacional favorável.
A Rússia, a Prússia e a Áustria conduziam uma política comum, visando à manutenção das conquistas e evitando conflitos entre si. Por sua vez, a vitória da Polônia
sobre as três potências, ao mesmo tempo, era impossível.
A luta dos poloneses pela liberdade era, também,
uma luta contra a violência e o absolutismo. Por isso, a
questão polonesa foi vinculada com os movimentos libertários e democráticos europeus. A divisa “Pela Nossa e Vossa Liberdade” tornou-se o símbolo da contribuição polonesa
para a democratização dos sistemas políticos europeus.
O czar Nicolau II governou de 1894 a 1917, quando
foi fuzilado com toda sua família pelos revoluciónarios
bolcheviques, em Tobolsk na Sibéria. Desde o ano de
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1914, início da Primeira Guerra Mundial, Polônia foi palco de combates sangrentos, entre as grandes potências envolvidas no conflito.
O fim da guerra traz finalmente a libertação. Em
11 de novembro de 1918 o general Jozef Pilsudski, grande
militar e patriota, assume o poder e oficializa a independência. A República da Polônia reapareceu no mapa da Europa,
depois de ausência compulsória de 123 anos.
Durante todo esse tempo, foram sucedendo-se os
imperadores da dinastia dos Habsburgos na Áustria, Hohenzollem na Prússia e Romanow na Rússia, todos eles
déspotas, tiranos, de poder absoluto, espoliaram e oprimiram povos. Loucos, com toda prepotência, acreditavam-se
deuses imortais, mas foram apenas pobres seres humanos
sujeitos a morte, e viraram pó como todos.os outros.
VI
O AGENTE SECRETO
Andrzej caminhava solitário pela praia de areias
brancas. O mar agitado enviava ondas gigantes que explodiam em cascatas de água, cobrindo a praia, e ao retornarem, deixando atrás de si a espuma branca, orlando a areia
como um véu de noiva.
Não havia ninguém na praia além dele.
Anoitecia...
O sol mandava os últimos raios fulgurantes filtrando-se através da floresta rala. Na praia isolada de Braniewo, na margem leste do mar Báltico, um bando de gaivotas passou grasnindo, assustado com a presença do moço.
As aves alvoroçadas voavam em bando em todas as dire-
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ções em cima da restinga, que era um baixio de areia prolongando-se pelo mar adentro.
Uma só gaivota separou-se do grupo e começou a
circular em cima da cabeça de Andrzej, soltando grasnidos
volteava para a direita e para a esquerda, subia e descia. De
repente, como um raio, atacou o homem, com o bico afiado,
batendo as asas. Gritava desesperadamente.
- Se eu tivesse um pedaço de galho ou uma pedra,
defender-me-ia – pensou ele.
A gaivota, ainda atacando, percebeu a intenção de
defesa do moço; afastou-se um pouco, mas não deixou o
campo livre do ataque, emitindo grasnidos selvagens; estava desafiando-o para a luta. Perplexo, indagou-se Andrzej:
- O que quer de mim esta ave? O que seria a causa
de tanto alvoroço e irritação do pássaro? Será que ela, nestes ermos, nas fronteiras das águas e areias só reconhece a
lei da guerra?
O grito da gaivota não cessou, não diminuiu, não silenciou, mas se alterou cada vez mais até alcançar as raias
do desespero, soava como o próprio clamor da angústia
humana. Analisando a situação, ele entendeu de repente o
desespero da ave. Compreendeu exatamente.
Pelo instinto de sobrevivência, ela reconheceu no
homem um predador impiedoso, que tomava o rumo de seu
ninho, escondido entre os galhos dos arbustos na areia.E
cada passo dele representava o passo da morte; que a qualquer momento pisaria em cima do ninho e mataria os filhotes aconchegados à terra, na sombra espessa das folhagens.
- Sei! E conheço com certeza o que se passa no coração trêmulo da gaivota, ao ver aproximar-se o perigo, a
morte - pensava Andrzej, relembrando o passado recente.
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- Sei! E como sei! Com o coração aos saltos, os olhos esbugalhados, o corpo trêmulo, o que é a aproximação
traiçoeira do inimigo. Sinto ainda na garganta o mesmo
grito apavorado que sai do teu peito, avezinha.
- Sei! Ó mãe! Sossega o teu coração, não serei eu o
assassino dos teus filhotes que amas até a morte. Por teu
sagrado anseio, ó mãe! Pelo teu grito de amor em desespero, não tocarei na segurança do teu ninho, e teus filhotes
poderão, protegidos por ti, nascer e voar sobre este mar
imenso iluminado pelo sol radiante. Pois, sou como tu, apenas uma ave errante, cujas asas a tempestade da vida empurra para um lado e outro, sem trégua.
O homem desviou o passo para longe do ninho, até
ver o pássaro sossegar o seu piar angustiante. Caminhou ao
sol poente, que já formava sombras nos morros e nas pedras
da praia.
Andando ao léu, vislumbrou ao longe um vulto de
mulher. Vinha mancando apoiada num cajado. A cabeça
coberta com um xale negro, as vestes longas arrastavam-se
pela areia. Vinha ao encontro do moço. Ao deparar-se com
ela, viu o seu rosto pálido, murcho pela idade, apenas os
olhos negros, cintilantes, destacavam-se daquele semblante
tristonho. Eram olhos penetrantes, como lâminas afiadas de
uma espada.
- Precisa de ajuda?– perguntou-lhe Andrzej, solícito.
- Estou aqui perdida nesta praia - respondeu a mulher. Procuro pedras de âmbar amarelo no meio da areia e
esqueci o rumo da minha casa. Lá o meu filho me espera,
deve estar preocupado com a minha demora - explicou ela.
Eu sempre venho aqui à procura destas pedras. Saul é um
artífice habilidoso. O âmbar que encontro, ele o lapida e
transforma em esplêndidos colares.
- Explique-me, senhora, como chegar até lá, vou
ajudá-la a encontrar a casa do seu filho - ofereceu-se ele.
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Pegou-a pela mão esquelética e ajudando-a a caminhar, amparando-a, foram seguindo pela areia da praia. Arbustos, vegetação rasteira e pedras atrapalhavam o seu caminho. Entraram pela trilha de terra batida, que levava a
uma mata rala.
Lá adiante avistaram a casinhola humilde, feita de
troncos de árvores, coberta de palha. A porta estava aberta;
lá dentro crepitava o fogo num fogão feito de pedras. Uma
mesa tosca no centro, um banco de madeira encostado na
parede e num recanto uma pequena oficina de artesão-joalheiro. Era tudo o que existia no casebre.
Entregue ao seu trabalho, concentrado, estava o filho. Não viu a mãe chegar.
- Filho, eu trouxe visita para você - justificou-se.
- Quem é? – perguntou Saul, sem levantar a cabeça
do trabalho.
Saul era um rapaz jovem, alto, de cabelos ruivos e
longos caídos pelo pescoço, a barba por fazer, olhos azuis
como safiras, inteligentes. Trajava a roupa tradicional dos
judeus. Calçava sandálias de couro.
- É um desconhecido - respondeu a mãe. Vagava pela praia. Ajudou-me a encontrar o caminho da casa. Sem ele
teria me perdido no meio da noite.
- Por favor, entre e sente - convidou Saul, atencioso.
Andrzej entrou e sentou no banco tosco de madeira.
A mulher serviu-lhe um copo de água e um cálice de hidromel.
- Chamo-me Andrzej, vejo que são pessoas boas e
simples e que posso confiar em vocês. Sou insurreto, perseguido político, estou fugindo dos gendarmes russos, que me
procuram em todo território polonês. Aqui nas margens do
Báltico, em lugar ermo como este, em terras prussianas,
penso estar seguro.
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- Pode ficar conosco, se assim o desejar - disse Saul
- a casa é pobre, mas é de amigos; fique aqui, pode ajudarme no meu trabalho de joalheiro.
- Aceito e agradeço de todo o coração a hospitalidade e o trabalho que me oferecem - respondeu Andrzej.
Saul trouxe-lhe algumas pedras de âmbar para serem
polidas, uma delas era excepcionalmente linda, faiscando,
parecia raios de sol.
-Veja - começou a explicar Saul – esta pedra maior
traz dentro dela enterrada e preservada uma pétala de flor,
outras têm insetos, folhas ...
O artesão continuou informando:
- O âmbar é uma resina fóssil, dura, quebradiça,
translúcida, de cor amarela, avermelhada ou acastanhada;
provém de coníferas extintas, do Período Triásico, que
começou há duzentos e trinta milhões de anos e teve a duração de cinqüenta milhões de anos. O âmbar é encontrado
e extraído do mar Báltico, no norte da Europa.
- Em águas rasas, utilizam-se redes para retirar pedaços de âmbar emaranhados nas algas marinhas, e mergulhadores procuram depósitos submersos em águas mais
profundas. Em algumas regiões, podem ser encontrados na
praia fragmentos expelidos do fundo do oceano, nas agitações dos maremotos.
- Os gregos e os romanos admiravam-no por causa
da cor, da dureza e por ser translúcido; utilizavam-no em
jóias e ornamentos. Atritando-se um pedaço de âmbar com
pano, produz-se forte carga elétrica negativa. Isso permitelhe atrair pequenos objetos. Tal propriedade era conhecida
dos gregos, que chamavam o âmbar de elektron, termo que
deu origem à palavra eletricidade. Tudo isso faz com que a
pedra fosse tão valiosa e muito procurada.
Andrzej pegou a pedra com a pétala de flor incrustada dentro. Examinou-a atentamente e confirmou:
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- É realmente um achado extraordinário.
- Só ocasionalmente acha-se tal tesouro na areia da
praia. Farei um colar, e esta pedra incomum colocarei no
meio como um pingente. Vou trançar com fios de ouro,
ficará lindo - comentou Saul entusiasmado.
Assim, Saul, ajudado por Andrzej, trabalhou muitos
dias lapidando e separando as pedras perfeitas. Quando o
colar ficou pronto, reconheceram que era uma jóia excepcional, com pedras de um amarelo pálido que faiscavam ao
sol, como se fossem diamantes.
Saul limpou o colar com um pano e colocou-o sobre a mesa; incrível magia aconteceu: objetos pequenos que
estavam na mesa foram atraídos para o colar. Ele tinha uma
estranha energia.
A velha dama, rindo seu risinho seco, disse:
- Eu passei ao colar uma energia mágica. A pessoa
que tiver este colar ao pescoço terá esse poder sobrenatural; chamará toda essa força para si, atrairá a felicidade, a
saúde, o amor, a amizade...
Saul recolheu o colar para uma gaveta na mesa.
Andrzej ficou estarrecido com o que viu. Perguntou:
- Saul, você venderia este colar para mim? E quanto
custaria?
Saul, pensativo, respondeu:
- Não é jóia que eu possa avaliar o preço, é incalculável. Dou-te de presente, pois você vai precisar muito desta
energia mágica e da proteção de Deus. Você demonstrou
que tem um bom coração ajudando a minha mãe na praia,
quando estava desorientada e perdida. Porque você é um
homem honesto, um amigo que encontrei neste remoto lugar.
Andrzej, agradecido, aceitou o presente e dias depois seguiu o seu caminho através da floresta e das dunas
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de areia, rumo ao acampamento dos guerrilheiros, nos pântanos do Polesie, no rio Prypet.
***
Enquanto a Europa toda estava apenas observando
a Rússia, a Prússia e Áustria, invadirem e retalharem a Polônia, os países do mundo todo também não diziam e não
faziam nada.
Mas os patriotas, cidadãos poloneses, insurgiramse, não se conformavam e não aceitavam o domínio e a ingerência dos países vizinhos, que dividiram a Polônia de
acordo com seus interesses e dominavam-na com mão de
ferro. Sufocavam com armas qualquer rebeldia nas terras
ocupadas.
O motor que impulsionava os insurretos era o popular entusiasmo. Seguiam todos para a luta, todos... como
para uma excursão turística. Ainda ninguém tinha visto
tamanho fenômeno como esse arrebatamento polonês.
Um dia, Andrzej ouviu na cidade tumultuada a conversa de operários e líderes camponeses, conclamando para
a luta de vida ou morte – não com a burguesia ou nobreza,
como era sempre nas falas operárias, mas com o invasor
russo que avançava, roubava, saqueava as cidades e vilas,
tornando-as em ruínas.
Olhava como meninos púberes fugiam dos cuidados
das mães aflitas, e lia informações nos jornais de como eles
caíam como heróis. Queria ver com os próprios olhos essa
causa pela qual iam em campo, arriscando a cabeça, homens adultos e toda a juventude polonesa - iam tranqüilos,
alegres, acompanhando os ecos do tambor. Queria saber o
que, na verdade, esconde-se no cerne desta exaltação, que
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mola desordenada impulsiona-os para a ação; e que valor
fantástico tem essa energia.
Então, desfilaram, ante os olhos de Andrzej, incalculáveis aldeias e cidadezinhas, matas e campos lavrados,
atravessava extensos rios entre os prados e via só ruínas e
destruição, pisados com os pés das montarias dos soldados
russos.
Vestígios da roubalheira, da carnificina e profanação
das igrejas. A mais terrível violação dos mais ínfimos direitos humanos. O inimigo mortal do sacrificado povo polonês derramava-se para frente transbordando por todos os
caminhos para o interior do país – como gafanhotos, destruidor e faminto, saqueava e incendiava tudo.
Onde havia pontes de ferro viam-se agora só esqueletos destruídos; das pontes de madeira, sobraram apenas vigas enegrecidas pelo fogo. Onde havia aldeias, ficaram a demolição, o carvão e deserto. Onde havia alguma
coisa bela, elevando o passado, lembrança para os descendentes, viam-se monturos de escombros, estátuas quebradas
no chão.
Como podia se acreditar nas idéias alardeadas pelos
discursos dos invasores do leste? Promessas de liberdade?
Era um contra-senso afrontoso a qualquer pensamento de
redimir o mundo.
Foi um dia muito especial este 29 de novembro de
1830. Irrompeu a rebelião contra a Rússia, causada pela
anulação, pelo czar Nicolau I, da Constituição da Polônia,
promulgada em 3 de maio de 1791 pelo rei Stanislaw August Poniatowski, e motivada também pela onda de movimentos revolucionários de libertação na Europa, principalmente na França e América do Norte.
Andrzej era um agente secreto encarregado de uma
missão; levava documentos importantes, com ordens do
comandante geral do Éxercito Polonês, general Jan Zyg97
munt Skrzynecki, para o chefe dos guerrilheiros acampados
nos pântanos do Prypet. As cartas vinham do comando exilado no estrangeiro.
A secreta proteção sobre a Polônia tinha diversas
causas; uma delas era a atividade de algumas personagens
chamadas de “grandes caracteres poloneses”. Pessoas famosas influenciavam as decisões do governo de ocupação e
apoiavam secretamente a resistência no país.
Alguém aviva o fogo d‟alma no jovem da província,
no empobrecido estudante de medicina, que não come e
nem dorme direito, e mora como cão embaixo da ponte,
para que inicie a luta contra o poderoso czar russo, contra
todo o império moscovita, que fatalmente era invencível.
Aqueles estudantes de direito, medicina, arquitetura,
biologia e os outros, para os quais somente sobrou dinheiro
para comprar tinta, pena e papel, escrevem uma e outra vez,
convocando os operários e camponeses para se organizarem
na luta contra todo poder do invasor da pátria.
Com o auxílio dos rebeldes, doutro lado da fronteira, imprimem as suas idéias revolucionárias na máquina
secreta da tipografia; trabalhando a noite como tipógrafos,
perto da luz de um toco de vela, para depois, já impressos
com as próprias mãos, centenas de exemplares destas volantes carregar nas costas, e do estrangeiro voltar à Polônia,
para distribuí-las nas aldeias e cidades.
Para atravessar a fronteira muito bem vigiada, em
segredo, tem de atravessar a nado e à noite o rio da divisa.
Só vai um de cada vez. Escolhe uma noite de outono, a
mais abafada, mais escura, mais chuvosa, quando o guarda
da fronteira enrola-se no capote e, aquecido, cochila em
cima do cavalo.
Então o inspirado herói descalça as botas e desnudase até a cintura. Em baixo do braço esquerdo leva a vara
com a qual na escuridão vai tatear o guarda parado na beira
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do rio; na mão direita leva o revólver, para atirar contra o
soldado, se o encontrar com a vara ou quando a luta se iniciar. Ouvindo o barulho na água do rio, o soldado de cima
do cavalo grita:
- Eu te vejo! Eu te vejo! – depois desse grito, o revolucionário reconhece o lugar onde se encontra o soldado.
Passa por ele a um passo ou dois. Ouve quando range o
arreio em baixo do cavaleiro, como tilintam as esporas e
rincha o cavalo assustado. Vai descalço, congelado até a
medula dos ossos, tremendo, seminu, pisando em espinhos
da vegetação ribeirinha – vai ao seu país, para acordá-lo do
sono da escravidão.
Assim também Andrzej Wasilewski, o mensageiro,
seguiu este caminho para atravessar a fronteira da Prússia e
poder alcançar o quartel dos guerrilheiros
***
Nuvens escuras e pesadas pairavam sobre a cidadezinha de Berestecko. Era um dia chuvoso, frio, de céu cinzento, um dos panoramas mais desoladores do mundo. Berestecko era uma pequena e suja cidade em ruínas. Para
maior constrangimento, imaginem uma administração russa
que suga até o último vintém dos habitantes da cidade.
Da antiga beleza, agora só se vislumbravam, ao alto,
contra o céu nublado, esgueirando-se, majestosos no passado, os muros da antiga fortaleza e do castelo centenário,
antigamente, residência do nobre coronel dos hussardos,
Boguslaw Wasilewski.
Kleofas, neto de Boguslaw, lutou em Pulaski como
Confederado de Bar em 1775. Em represália pelo seu envolvimento na insurreição contra a Rússia, Catarina II confiscou-lhe todos os bens. A cidade de Berestecko foi des99
truída por ordem da czarina. Muros só continuaram ali
porque a sólida construção dos tempos remotos os mantinha
em pé. O esqueleto de uma torre de catedral antiga e as paredes queimadas das igrejas se destacam como fantasmas
agonizantes no horizonte.
Também era fato notório que nos anos de 1825,
quando a cidade de Luck era um centro soberbo, capital de
um principado, com muitas terras, sede do judiciário, do
bispado, cheia de vida e de alegria, o czar Nicolau 1, ao
passar pela capital, disse:
- “Não suporto esta cidade”.
Durante os anos seguintes, sem explicação nem causa aparente, irromperam grandes incêndios que devastaram
tudo. Ninguém foi culpado pelo desastre.
Os restos que sobraram dos incêndios, as igrejas e
os mosteiros em ruínas, foram reformados pelos invasores e
serviam de depósitos e quartéis para soldados russos; outros
foram adaptados para prisões, onde apodreciam os revoltosos poloneses. Pequenas igrejas foram vendidas para judeus, que instalaram ali as suas lojas, e o resto ruiu com a
chuva e o vento.
Não se encontrava rua em que não houvesse montanhas de caliça, tijolos quebrados, chaminés enegrecidas,
montes de carvão e lama. Parecia que a vida havia fugido
destas paragens; enxotaram os bispos, os padres, a justiça.
Só aos poucos velhos consentiram que ficassem nas
ruínas, onde a morte os aguardava sob as carabinas moscovitas. A cidade parecia um desterro, as pessoas que não
tinham aonde ir, esmolavam pelas ruas, e os cães famintos
farejavam alguma carniça entre os entulhos.
Na cidadezinha de Berestecko, próxima à Luck, entre as construções que parcialmente se salvaram da destruição, havia uma casa de madeira em ruínas; e é nesta casinha
que se inicia o nosso drama. Numa rua um pouco mais lar100
ga, a casa de madeira semidestruída pelo fogo fora reconstruída num nível acima da rua barrenta.
Na porta estava pregada uma tabuleta, com o desenho do brasão da Rússia, uma águia coroada de duas cabeças. Na primeira sala sentava-se um personagem nada interessante, Nikodem Formitch. Reconhecia-se nele um funcionário moscovita, não só pelo uniforme, mas também
pela fisionomia. Rude, arrogante, testa baixa, nariz vermelho, lábios grossos, rosto escanhoado e barbicha em volta
da boca. Escondida dentro do armário, uma garrafa de wodka; na mesa, um retrato do czar Nicolau I.
O secretário do coronel Ilia Petrowich Rassim, olhava tristemente pela janela de vidros empoeirados.
Cismava...
A porta da repartição para a ante-sala estava aberta e
ouvia-se ao fundo uma conversa em voz alta, interrompida
por largas risadas. Comunicava-se o local com a residência
privativa do coronel Rassim, que acumulava dois cargos de
confiança - o de comissário da polícia civil e política de
Berestecko e comandante da guarnição local do exército
russo, aquartelado na cidade.
Em frente à repartição, estava estacionada uma diligência, toda enlameada, coberta com couro curtido, puxada
por um cavalo esquálido e tristonho. Sentado à boléia estava o cocheiro Wacek, que dormia esperando o passageiro.
O secretário Nikodem Formitch bocejava e amaldiçoava a obrigação de ficar de plantão na sala vazia.
Começava a escurecer...
Nesse meio tempo, devagar e com cautela, abriu-se
a porta e apareceu uma cabeça. Limpando os pés na soleira da porta, um judeu entrou pingando chuva da capa
comprida. Era o dono da estalagem, Isaak Wrobleski..
Cumprimentou o secretário com uma reverência e começou
a procurar um papel pelos bolsos do capote molhado. O
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secretário adotou um semblante sombrio e a posição severa
de um funcionário público, com grande autoridade.
- O que queres? – perguntou com rispidez.
- Peço ao ilustre senhor...um passaporte, um viajante
está de passagem... está se apresentando.
O secretário pegou o papel, enrugando a testa, olhou
as mãos do judeu, que colocou discretamente na mesa 50
kopekes. Lia o passaporte com desdém, denotando assim
sua superioridade. As moedas, as quais já guardara no bolso, não surtiram o efeito desejado.
Uma vez, mais outra, revirou o papel, olhou, procurou... e meneando a cabeça:
- O que é isso? – berrou, colocando o papel em cima
da mesa. Que maneiras são essas, hein? Viajante e ainda
estrangeiro, de longe, diabo sabe de onde, pessoa suspeita,
manda um papel para ser assinado e não aparece em pessoa? Você não conhece as instruções hein, Isaak?
– Eu mesmo devo ir até lá e verificar se o papel não
é falso? E olhar nos olhos do personagem distinto? Você
não sabe que tempos são esses, hein? – resmungava o secretário Formitch. Que temos ordens de fiscalizar com rigor todos os viajantes e principalmente os estrangeiros?
- Mas, o que é isso? Então vocês estão brincando
comigo e com o comissário, hein? Estão querendo me comprometer, hein? Trinta kopekes custa o selo, e é só isso que
você me traz?! O viajante que se dê ao trabalho de vir pessoalmente ao comissariado.
Isaak olhou os pés enlameados.
- Ilustre secretário - disse - o homem está doente.
- E por que viaja se está enfermo?
- Ele está com terrível dor de dentes...
- Pois que sinta a dor que quiser. Ele deve estar aqui
em pessoa... hein! Que eu possa olhá-lo nos olhos. Assim é
a ordem, eu não posso dar o visto sem vê-lo. Assim são os
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tempos e as ordens. Diabo, sabe de que nacionalidade é ele;
o passaporte é ilegível.
- De que nação? – vociferava o secretário, colérico.
- Tem que ter nação? – perguntou o judeu – se ele é
relojoeiro.
- Para mim tanto faz se ele é relojoeiro, ou joalheiro,
ou outra coisa qualquer; para mim é o suficiente que ele,
em consideração à autoridade, apresente-se à repartição.
Isaak encolheu os ombros e procurou mais um rublo
nos bolsos, colocou sobre a mesa, e afastou-se cauteloso até
a porta. Em silêncio o secretário pegou a moeda, guardou
no bolso, mas em seguida bateu com o punho na mesa.
- Mesmo se me desses mais rublos, ouviu? Disto
não vai resultar nada, o homem é estrangeiro, de outro país... relojoeiro... mas você sabe se é verdadeiro relojoeiro ou
se finge apenas? Você garante? Você conhece as mais rigorosas ordens policiais, hein, Isaac? Oh, Isaak! Não brinque
com a autoridade! Não esgote minha paciência, é minha
última palavra! Vá embora e mande-me esta pessoa.
- Mas ele não fala outra língua – respondeu Isaak –
só em alemão, talvez saiba inglês, italiano ou francês.
-Vou pô-lo à prova... der, die, das - gritou o secretário – traga-o aqui, doutra maneira não dá.Você conhece os
tempos atuais!
- Que eu devo saber? - perguntou Isaak, agitando os
ombros.
Nikodem Formitch levantou o braço, ameaçando:
- Você conhece a responsabilidade? O que é deixar
passar um estrangeiro? De outro país? Sem conferir a assinatura?.
Bateu o punho na mesa.
- Vá agora mesmo atrás dele.
O judeu coçou a cabeça, não ousou falar mais nada.
E meneando a cabeça, implorava com os olhos.
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- Eu conheço as coisas, sei quais são os fatos em
questão - disse Isaak.
- Estrangeiro, suponho que é pessoa responsável,
sabe bem que no mundo nada temos de graça, deu um rublo, dará dois pelo passaporte, e o enviado traz míseros 50
kopekes! – reclamava furioso o secretário.
Isaak batia no peito, lamentoso.
- Que se apresente em pessoa – concluiu o secretário
– vá agora mesmo, imediatamente... ande... fora...
Isaac deu uns passos, parou um instante indeciso,
caminhou até a porta e desapareceu na neblina da noite.
O secretário sorriu para si. Pegou o passaporte nas
mãos e começou a examinar de todos os lados, balançava a
cabeça. Em seguida, abotoou o paletó do uniforme, pegou
um livro grosso, começou a folheá-lo, tudo para dar a impressão que estava muito atarefado. Colocou a caneta atrás
da orelha e esperou.
Estava atento para ver se vinha alguém, mas, inutilmente. Ouvia-se apenas a chuva caindo do telhado, o vento
soprando nas árvores. De repente, ouviram-se passos no
saguão, a porta rangeu e no portal apareceu um homem de
estatura elevada, tirando a capa de chuva.
Nikodem Formitch examinava o livro, a testa contraída, levantou a cabeça devagar, o olhar interrogativo.
O viajante, com o rosto amarrado por um lenço, inclinou a cabeça levemente e começou a balbuciar palavras
em alemão. Isaak olhava para ele e para o secretário, que
conferia a assinatura.
O rosto do estrangeiro, semi-oculto pelo pano, não
era reconhecível, só os olhos negros, jovens, ardentes, fuzilavam com o olhar. Vestia-se decentemente e tinha algo
em si que intimidava o secretário.
Mas Formitch não era funcionário da polícia por acaso. Apesar de a assinatura conferir com o passaporte, era
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preciso dificultar as coisas e tentar, pelo menos, arrancar
alguma coisa do desconhecido.
O secretário não falou nada, levantou da mesa, examinou o passaporte minuciosamente, e com a caneta entre
os dentes, dirigiu-se para a porta que dava acesso ao interior
da casa.
O viajante olhava para tudo com visível indiferença.
Isaak sugeriu, em alemão:
- É preciso dar mais algum dinheiro, senão vai nos
atrapalhar, dificultar as coisas... aborrecer...
O desconhecido assentiu com a cabeça.
Nikodem Formitch entrou na sala em frente, pela
porta aberta, com o passaporte na mão.
Coronel Rassim, comissário de polícia de Berestecko, e o promotor da comarca de Luck, coronel Wiktor
Yuwanowitch Szulubin, seu amigo, jogavam cartas para
amenizar as horas do ócio.
Uma garrafa de rum e duas xícaras de chá fumegante faziam-lhes companhia. Ao lado, um prato com biscoitinhos. Vendo o funcionário entrar, Rassim, que não
suportava ser interrompido, levantou a cabeça irritado:
- O que você quer? Como se atreve?
O secretário, como resposta, apresentou o documento.
- Pois assine e vá para o inferno - vociferou o coronel.
- Assinar, pois sim – retrucou o funcionário – mas é
um estrangeiro.
- O quê? Quem? O que ele é?
- Relojoeiro.
- Vá para o inferno com ele!
- Mas e se for uma pessoa suspeita?
- Isso é teu problema, interrogue-o.
- Fala só alemão.
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- Deixa-o ir, se é alemão não pode ser suspeito, de
onde é?
- É cidadão prussiano...
- Como você ousa, seu pateta, deter um cidadão
prussiano? Hein? Você sabe! ô cabeça de orelhas compridas, que o rei da Prússia é parente do nosso czar Nicolau I,
amantíssimo imperador, que Deus o guarde, e nós estamos
em paz com os prussianos.
- Mas eu não entendo nada de política, desculpe-me,
coronel Rassim.
- Então suma da minha frente enquanto estás inteiro,
suma!
O funcionário Formitch, meneando a cabeça, saiu
devagar.
- Com mil diabos – pensou – cidadão prussiano, de
fato isso significa alguma coisa, e se os prussianos se ofenderem?
Decidido a assinar o passaporte, caminhou de volta
à sua sala, mas a vontade de aproveitar a oportunidade dava
a ele um ar sombrio, e com esse semblante contrito surgiu
na porta. Foi direto à mesa. Seu olhar atento pousou em
cima de dois rublos. Esse argumento surtiu efeito de imediato. O secretário colocou o visto policial e assinou o passaporte.
Tudo isso levou um pouco de tempo, porque um
bom funcionário público não deve apressar-se para agradar
um estrangeiro, mesmo que este seja um súdito do rei da
Prússia. Finalmente o passaporte foi carimbado, e o secretário entregou-o ao personagem de rosto amarrado por um
lenço, que esperava pacientemente.
Escurecia...
O viajante já estava saindo, quando no aposento anexo ouviram-se vozes.
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Rassim despedia-se do amigo promotor de justiça,
Szulubin, e a figura imponente do comandante da região
apareceu na porta aberta. Szulubin atravessou rápido a sala
da delegacia, mas teve tempo de olhar para o homem de
sobretudo, o tal súdito prussiano, e, como por acaso, seus
olhos se encontraram.
O viajante não demonstrou nenhuma reação, no entanto, o promotor parou por um instante, parecia que, intrigado, queria voltar... mas isso só durou por um piscar de
olhos; lançou o olhar mais uma vez sobre o homem parado
e foi embora. Mas no saguão, como se refletisse, deteve-se
por um pouco, soltou uma baforada de fumaça do cigarro
que segurava nos lábios, e abanando com a mão, chamou o
cocheiro sonolento:
- Vamos! Podawaj!
Wacek Koncewicz, desperto, puxou as rédeas, e o
cavalo, assustado, arrancou com violência, jogando barro
com as patas. O fiacre encostou e o promotor atirou-se para
dentro; saíram em disparada.
Instantes depois, o viajante saiu da repartição policial. Despediu-se do judeu e sumiu na penumbra da noite,
atolando os pés nas ruas encharcadas.
***
Eram 10 horas, a noite estava escura, chuvosa, a neblina cobria a cidadezinha adormecida. O soldado da reserva Mustai Petryczko, funcionário dos correios, que fora
buscar a correspondência, chegou já bastante atrasado, a
mochila de couro cheia de papéis; entrou sorrateiro na
chancelaria.
Nikodem Formitch esperava impaciente pelo infeliz
correio que tardava. Com o samowar preparado para o chá,
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a esposa carinhosa esperava por ele na companhia do simpático tenente Stowajko. A casinha acolhedora e o descanso
pelo qual ansiava em vão. O coronel Rassim não era dedicado ao trabalho, mas com seus subordinados era exigente.
Formitch, vendo o funcionário dos correios Mustai
chegar com a correspondência, deixou de lado o orgulho e
correu ajudá-lo a desempacotar os papéis.
- Por que atrasou tanto? Seu imprestável!
- Eu atrasei? Vossa Senhoria! Eu não me atrasei,
mas o carro do correio sim, atolou perto de Gorochow,
trouxeram só os papéis do governo, e a cavalo; o resto ficou
no barro.
- Entre logo!
Em instantes Nikodem, prático no trabalho, abriu os
pacotes, separou as cartas, abriu os envelopes e classificou
os papéis.
Três cartas vinham lacradas, com peninhas, indicando correspondência expressa, exigiam rapidez na entrega e, com uma observação “sigilosa” e “muito importante”, cha- maram a atenção do já apavorado secretário
Nikodem.
Dificilmente e muito raro chegavam tais papéis à
polícia da cidade; agora chegaram de repente três cartas
secretas e urgentíssimas.
Não soube por que, mas as suas mãos tremeram.
- Fique perto da porta e cuide, eu tenho que falar
com o coronel Rassim – falou, e, pegando as três cartas
sigilosas, com ar contrito, entrou no aposento onde o chefe,
deitado no sofá de roupão de seda, fumando cigarro perfumado, distraía-se dizendo galanteios à governanta de seus
filhos.
Se já para ele não era agradável a intromissão na sua
privacidade, enquanto jogava cartas com um amigo e ho-
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mem da lei, imagine agora! Aquele secretário detestável
vinha agredi-lo no seu descanso merecido.
Enrugou a testa de raiva, mas o inabalável secretário
alcançou-lhe as três cartas secretas e uma vela. Fazia um
trabalho que estava além de sua obrigação, mas teria alguma compensação, postar-se-ia num ângulo donde pudesse ler algo dos documentos secretos.
O coronel Rassim não disse nada, abriu o primeiro
envelope, olhou por um instante e, balançando a cabeça,
colocou a carta no sofá ao lado. Abriu outra. As sobrancelhas contraíram-se, a mão tremeu! Meneou violentamente
os ombros e, perturbado, colocou-a ao lado da primeira.
Mas o terceiro papel, o terceiro, o que ficara por último, deixou-o apavorado. Levantou-se rápido do sofá, olhou aparvalhado pelo recinto, pôs as mãos na cabeça e
como louco saiu correndo para o gabinete da chefatura.
O secretário Formitch, pálido e trêmulo, mal conseguiu acompanhá-lo.
Ilia Petrowitch Rassim, arrancado do seio da família, entrou no gabinete sem saber o que fazer, por onde começar. Bateu a porta atrás de si e segurou a cabeça, desorientado.
- Ouça. Arrume imediatamente um pelotão de soldados, com armas, entendeu? – ordenou ao reservista Mustai - diga ao capitão Wassili Gregorowitch que, se dentro de
cinco minutos não estiver aqui, faço-o responsável pelos
acontecimentos, entendeu? Seis soldados com armas.
- Ouvi – respondeu Mustai, também apavorado dirigindo-se à saída.
- Mustai Petryczko – gritou, jogando os papéis em
cima da mesa da chefatura. – Desgraça! Perdição! Corra,
fale com Zenko, meu ajudante de ordens, que me traga o
uniforme e a espada. Mande selar os cavalos. Estou dizendo, você, eu, todos perante tribunal militar! Infeliz hora,
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traga-me a garrafa com wodka. Diga a senhora Weruska,
minha esposa, que não apareça e não me perturbe com pedidos..O secretário, parado, ouvia, e na dramaticidade do
superior, lamentava a desgraça, da qual não entendia ainda
a profundidade.
- Estou perdendo a cabeça - gritou o coronel, desesperado. Nikodem Formitch... sim... não... estou indo me
vestir. Você leia a carta secreta. Fale, ajude... o que fazer,
se não também você, a esposa e todos vão para o inferno.
Rassim saiu.
Formitch jogou-se com ganância sobre as cartas secretas e, pelo que parecia, muito importantes. A primeira
delas informava ao coronel que, em vista da ramificação da
conspiração nas províncias do oeste, era preciso dar muita
atenção aos passageiros viajantes, seus passaportes, bilhetes
postais e seus itinerários.
Já ao ler a primeira carta começou a menear a cabeça, não podendo admitir e nem aceitar como havia gente
no mundo tão audaciosa, tão indigna, que tem a ousadia de
sublevar-se contra o governo.
A segunda carta era pior ainda. Informava ao chefe
da polícia que, pela província e especialmente pela cidadezinha de Berestecko, seguia a rota de fuga, pela qual provavelmente os fugitivos de Kiew, criminosos rebeldes e fugitivos da justiça se esgueiravam.
Mandava destacar patrulhas nas encruzilhadas, barreiras, não deixar passar ninguém sem documentos autorizados; principalmente vistoriar e investigar as pessoas que
se escondiam atrás de sobrenomes e passaportes estrangeiros.
Gotas de suor frio afloraram na testa do secretário
Formitch.
- Para esta gente não há nada que seja sagrado! –
gritou - Passaporte! Indignos!
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Na terceira carta, em cujo envelope constava, “muito secreto”, havia o retrato narrado do principal “revoltoso”, que palavra por palavra coincidia com a descrição
do relojoeiro, que fora liberado por ele apenas alguns minutos antes. Acrescentavam que podia ele ter passaporte
alemão e mesmo prussiano.
O secretário torcia as mãos.
- Mas sim! – gritou – era ele! Era ele, eu tinha faro
bom, e o comandante politizava. O que eu tenho com a política? Era preciso ter-lhe colocado já as algemas e recolhêlo para a torre na prisão, era ele... e agora.... procure o vento
nos campos... vão saber que nós o deixamos passar, que eu
coloquei o visto no passaporte, pegam ele e vão ver a minha
assinatura, cairei em desgraça, desgraça! Desgraça!
Formitch, em desespero, cobriu os olhos. Instintivamente correu para o canto, atrás da mesa, pegou a garrafa
de wodka, tirou a rolha e bebeu grandes goles, pois nesse
momento de aflição era a única coisa que o traria de volta à
consciência.
- Oh, Deus, tenha misericórdia de mim – orava, volvendo o olhar para o canto, onde, em frente de um quadro
de Cristo, uma luzinha bruxuleava.
Wodka e oração voltaram-lhe a esperança.
- Mas não é possível que ele viaje nesta noite escura,
para onde iría ? Com dor de dentes? Bá! – Ele está com dor
de dentes como eu, é só fingimento. Deus misericordioso,
ajude-me! Eu devo pegá-lo, do passaporte e visto, rastro
não pode ficar.
Já se dirigia novamente para a garrafa quando o coronel, que se vestiu às pressas, confortou-se com goles de
conhaque, entrou afivelando a espada.
- Os soldados ainda não vieram, e já passaram dez
minutos.
111
- Nós pegaremos esse subversivo, ele deve estar na
cidade. A noite está escura como o inferno e a chuva cai
sem parar. Ele não viajou! – disse Formitch.
- Idiota! Esta noite é propícia para fuga – esbravejou
Rassim.
O secretário arrancava os cabelos...
Bateram na porta do saguão; na entrada, apareceu o
capitão Wassili Gregorowitch. Atrás dele, as carabinas dos
soldados.
- O que há, meu coronel? – perguntou, rindo-se, na
porta, o jovem militar. – Por que, apesar da chuva e barro
nos incomodas? Não é hora de Vossa Excelência dormir?
Mas vendo a face pálida, os lábios trêmulos do coronel, Gregorowitch calou-se e admitiu que o problema era
sério.
-Traga-me rápido um cavalo selado!–gritou Rassim.
- O que aconteceu, o que se passa?
- Nada, é questão do governo. Uma prisão muito
importante. Ação política. Os soldados vão comigo. Cerquem a casa que eu apontar e não deixem ninguém sair. Se
quiser fugir, pegar, mesmo, se for preciso, matar!
O cavalo estava em frente da varanda, tão curioso
como o cavaleiro que o trouxe – ambos bocejavam.
O secretário arregaçou a calça, recomendou silêncio.
Devia guiar os soldados com a lanterna coberta.Tudo o que
era polícia local movimentava-se para a grande incursão. A
chuva caia, impiedosa.
Ao contrário do movimento que havia em frente do
comissariado, a cidadezinha apresentava-se calma e sonolenta. Aqui e acolá piscava uma luzinha de lamparina a óleo, refletindo a luz tênue nas poças de água e barro. Os
portões das habitações estavam fechados.
O silêncio profundo era só interrompido pelo coaxar
dos sapos, da chuva e da água pingando dos telhados. Na
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rua não se via viva alma. Os mercados e as lojas estavam
fechados havia muitas horas. Só de algumas tabernas, pelas
frestas das portas e janelas, via-se alguma luz.
O comissário, não levando em conta o perigo, pois
nas ruas de noite, quem transitasse corria o risco de quebrar
o pescoço, por entre os buracos e entulhos trazidos pela
enxurrada, galopava rápido em direção à hospedaria de Isaak Wrobleski
Era uma pousada das mais confortáveis da cidadezinha. Antigamente era a famosa “Casa dos Vinhos”, hoje,
infelizmente, não se pode vangloriar com os puros “Tokay”
antigos, nem com os “verdes puros”... vendia-se ainda o
“Madeira” e o “Porter”, só não se tinha certeza se eram
verdadeiros ou falsificados.
A casa estava envolta na escuridão, as janelas fechadas, os portões com os trincos travados. Em silêncio,
cercaram-na. Colocaram soldados em todas as saídas, em
baixo das janelas, em todo o redor. O comissário, segurando o cabo da espada, puxou com força o portãozinho,
certo de que estava fechado. A força empregada levou-o à
queda sobre a soleira, pois a cancela abriu-se com facilidade e o coronel caiu no interior escuro batendo a cabeça na
viga. Gemia e gritava com voz autoritária no meio da total
escuridão:
- Luz, acendam a luz!
Perante esta voz conhecida, movimentaram-se dentro da casa os seus moradores, judeus e judias. Quatro portas foram escancaradas juntas e quatro raios de luz iluminaram o vestíbulo escuro e totalmente vazio.
O coronel, movido pelo medo da incerteza, temeroso pelo que o esperava, jogou-se em cima do primeiro
judeu que estava a sua frente, pegou-o pela garganta, gritou
com voz rouca pelo ódio:
- Onde está o viajante? Fale... onde está o viajante?
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Do interior da casa vieram correndo os hóspedes,
cercaram o delegado. O proprietário, surpreso, sério, não
sabendo o que acontecia, mas vendo o coronel furioso, inclinou-se e perguntou:
- Quem Vossa Senhoria procura? Posso ajudar?
- Revoltosos! Subversivos! Desordeiros... eu vos ensino, onde está o viajante? Fale logo!
- Que viajante? – perguntou o judeu.
De repente, o secretário, que seguiu atrás do coronel, viu o Isaak e pulou em cima dele.
- Ah! Agora vocês não sabem qual viajante? Gafanhotos infames! Qual viajante? Aquele que você trouxe ao
comissariado de polícia.
- Ah, sim! Peço a Vossa Excelência, coronel, entre
para a sala - disse o judeu.
- Onde está o viajante? – gritavam o coronel e o secretário.
- Ah! Peço desculpas a Vossa Senhoria, alguma coisa nós devemos, o viajante fez a ficha na hospedaria e nós o
levamos para que se apresentasse na polícia, o senhor secretário assinou o passaporte do homem.
- Levem ele preso! Para cárcere! – gritou o coronel,
apontando Isaak.
- Mas eu devo saber onde ele está? Assim que os senhores assinaram e deram visto no passaporte ele foi embora procurar o seu caminho. Faz mais ou menos três horas,
e deve estar bem longe daqui.
Rassim pôs as mãos na cabeça.
- Estás mentindo! - gritou.
O velho Wrobleski, ofendido, mexeu com os ombros e falou devagar:
- Então os senhores podem procurá-lo!
Três soldados com carabina apareceram na entrada.
O oficial, secretário e dois policiais foram revistar a casa.
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O coronel, como sonâmbulo, entrou para a sala, sentou. Alcançaram-lhe uma garrafa de vinho, começou a beber e xingar, bebia e amaldiçoava todo mundo. Do suspeito
viajante não havia nem sombra.
Após demorada e trabalhosa revista em toda a casa,
como também na adega, donde os soldados surrupiaram
algumas garrafas de bebida, e após o interrogatório dos
funcionários, redigiu-se um relatório da investigação para a
polícia política, que foi encaminhado para São Petersburgo.
Deduziu-se do depoimento de Isaak, da jovem Marfa, que serviu peixe assado ao viajante, e do neto do proprietário, que o convidou e insistiu inutilmente e, por diversas
vezes, para uma garrafa de vinho, que o homem suspeito
chegou de manhã, quase não se alimentou, não bebeu nada,
e que era difícil comunicar-se com ele, pois só falava em
alemão; que trazia com ele diversos relógios muito bonitos;
que estava completamente tranqüilo durante todo o tempo
que aqui permaneceu, apenas estava visivelmente com
pressa de ir embora.
Donde vinha e para onde ia? Ficou uma pergunta
sem resposta.
O secretário que deu o visto no passaporte não olhou
detalhadamente nas assinaturas e datas anteriores.
Em qualquer cidadezinha da região, pelas pegadas e
direção que seguiu, podia-se descobrir de qual lado do
mundo ele veio, e para que direção ele foi. Mas aqui, as
ruínas alagadas da cidade permitiam só um caminho; pela
mesma estrada que se entrava, por esta mesma via se saía,
não havia alternativas.
A polícia moscovita, assim como outros dirigentes
russos, não costumava estender-se em detalhes para esclarecimento dos fatos, reinava a violência em vez de inteligência. Na Inglaterra, os detetives precisam avaliar bem
antes de interpelar um cidadão, muitas vezes um inocente.
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Aqui, ao se procurar um suspeito, é permitido prender provisoriamente dezenas, o que é mais proveitoso, porque cada
um tem de pagar uma taxa para liberação.
Mas, desta vez, o chefe de polícia Rassim aplicou
todo o poder da sua mente. Mandou que lhe dessem uma
vela, levassem-no ao quarto que o viajante ocupou antes.
Contava com a sorte. Poderia encontrar algo, um indício.
O aposento que o misterioso e suspeito indivíduo
ocupou, por sorte, após a sua partida não fora varrido ainda.
O coronel, levando consigo o Formitch, entrou no
quarto, aguçando todos os sentidos. Uma só janela, uma
mesinha, cama forrada com palha, que ainda conservava a
depressão do corpo que nele repousou, cadeira colocada no
centro do aposento - fato que o chefe da polícia notou à
primeira vista.
O secretário suspirava, nublavam-se-lhe os olhos,
não via nada; nos ouvidos ressoavam-lhe as palavras – “tribunal”, “tribunal”. Sabia bem que a culpa toda lhe seria
atribuída. Mas, por Deus! A verdade é que ele chamou a
atenção do coronel para o fato de que o viajante era estrangeiro, forasteiro, de outro país.
O chefe Rassim caminhava segurando a vela. De repente, jogou-se ao chão, olhando por baixo da cama. Atrás
dela encontravam-se pedacinhos de papel rasgados. Formitch adivinhou o que isso significava, ajoelhou-se e juntou-os minuciosamente. Os papéis estavam rasgados e amassados, mas dava para perceber algumas frases truncadas
escritas em polonês.
Rassim bateu na testa.
-Vá chamar o Isaak – gritou.
O secretário arrastou pelo braço o judeu assustado.
- Imediatamente, responda a verdade, a verdade!
Porque vais morrer. Este quarto foi varrido antes de o viajante ocupá-lo? Quem ocupou-o antes?
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- Antes dele? Ah, sim! Ocupou-o o senhor Stocki, e
se foi varrido, é claro que foi varrido.
- E embaixo da cama?
- Sim! Sim! Por toda parte. Também não tinha feno
em cima da cama... é isso...
- Mas é isso – disse, juntando os pedacinhos de papel rasgados.- Alemão... mas os papéis são escritos em polonês.
O secretário apertava as mãos tragicamente.
- Enforcar todos esses judeus! Todos para a Sibéria!.
Estão juntos na conspiração com os poloneses rebeldes, é
isso! – gritava Rassim.
- E como pode ser que não saibam para onde ele foi?
Pois, não falou? Perguntou? Procurou cavalos?
- Ele se dirigia, pelo menos falou isso, que tinha que
ir a Lublin – exclamou Isaak tremendo de medo.
- Ah! Agora você já sabe! - trovejou o coronel. Para
a prisão com ele! Embaixo do chicote ele falará tudo.
Isaak começou a chorar.
O comissário acenou aos soldados para que o levassem. Juntou e levou todos os papelinhos rasgados.
- Cavalos e diligência! Para a estrada de Lublin gritou Rassim. Rápido! vamos!
O secretário já ia para a porta de saída. Parou por
um instante. Raciocinou e voltando-se de repente chamou:
- Senhor coronel - se ele é tão esperto, falou de caso
pensado que ia para Lublin, mas diabo sabe para onde ele
foi. Precisamos perseguí-lo por todos os caminhos e recantos.
O coronel Rassim, preocupado, taciturno, confirmou
com a cabeça, sem olhar para a frente.
- Ao promotor! Não tem o que pensar! Precisamos
usar os mais violentos meios.
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Ainda não acabara de falar quando se ouviu o rumor
de passos no alpendre e a figura alta do coronel Viktor Yuwanowitch Szulubin, apareceu inesperadamente na porta.
Os dois amigos miraram-se nos olhos e se entenderam pelo
jeito do olhar.
O promotor Szulubin, com um sinal dado com a
mão indicando a porta de saída, mandou todos embora.
- Sabes o que aconteceu? – disse Rassim, quando ficaram a sós.
- Chiu! Chiu! Sem barulho! Para que faz tanta confusão?
- Mas, você sabe?
- Sei com certeza mais do que você! Recebestes cartas secretas?
O promotor meneou os ombros e Rassim confirmou
com a cabeça.
- Pois, veja, todo o distrito está sob a minha responsabilidade, amigo Szulubin, fatos estranhos estão acontecendo, precisamos dar-nos as mãos.
Deram-se as mãos em silêncio.
- Você já fez uma besteira.
Rassim suspirou pesadamente.
- Diabos! Eu não sabia que pássaro era esse!
- Eu o vi quando saía da sua repartição, e posso afirmar agora que pássaro era esse, pois o conheço muito
bem, há muito tempo.
- Você o conhece? E como? Por quê?
- Chiu! Quem poderia pensar que essa besta que foi
condenada para o exílio na Sibéria por causa de política, se
atrevesse a aparecer aqui.
O comissário, ouvindo essas palavras, ficou ainda
mais desesperado.
- Silêncio... Chiu!... Ilia Petrowitch, silêncio... ninguém deve saber sobre o caso - murmurou o promotor.
118
Oh, sim! Eu o conheço bem. Essa besta já fazia parte da
conspiração em 1827, foi preso, condenado para os trabalhos forçados na Sibéria, fugiu da prisão de Lublin e safouse para o estrangeiro. Quem podia supor que após tanto
tempo ele arriscaria a cabeça vindo aqui de novo!
- Você o conhecia?
- Oh! Oh! Perfeitamente! Envelheceu, tornou-se
mais másculo, mas eu o reconheci, assim que me olhou.
Parei, quis voltar e avisar você, mas fiquei indeciso... podia
estar enganado, e se fez barulho por nada. Até aí não tinham chegado os documentos secretos, eu nada sabia da
nova conspiração... pensei, o diabo parece-se com diabo. O
promotor suspirou. Tenho com ele uma diferença para acertar! Não vejo a hora de tê-lo nas minhas mãos. E tenho esperança de que logo o terei, porque sei onde encontrá-lo.
Rassim correu para abraçá-lo.
- Viktor Yuwanowitch - clamou – eu sou teu amigo
para a vida e para a morte... pegue o cavalo árabe, baio,
preto... mas livre-me, e não condene à orfandade os meus
filhos.
- Fique tranqüilo – respondeu o promotor – amanhã
mande-me o cavalo árabe negro e não fale nada a ninguém.
Precisa dizer agora que foi um engano, que está se mostrando que é uma pessoa sem suspeita, e o resto eu resolvo.
Quando chegar a diligência, eu imediatamente viajo para a
comarca. E você... cuide-se bem na cidade.
Falando assim, o promotor que sabia bem dissimular
e tinha absoluto controle sobre si, começou a rir alto, caminhando, para que ouvissem a sua voz.
- Engano - falou na saída – um infeliz engano, bobagem. O relojoeiro é mesmo alemão; relojoeiro! Dispensem os soldados, não tem por que fazer tanta balbúrdia!
- Soltem o judeu Isaak!
119
O secretário admirou-se da reviravolta do caso, mas
não comentou nada. Rassim suspirou profundamente, e
todos, devagar, se dirigiram para suas casas.
Mas o promotor Szulubin, não perdendo nem um
minuto, com dois gendarmes, pulou no coche do correio e
de noite mesmo seguiu viagem.
Para onde?
Ninguém sabia.
Aí começava a sua vingança...
***
Existem nas antigas províncias polonesas, principalmente nas que ficaram sob o jugo moscovita, aldeias
que, em vista dos inúmeros parcelamentos, na reforma de
1864, implantada pelo czar Alexandre II, ficaram obrigadas
a pagar as dívidas com terras e servos. Foram tantas as divisões, que numa porção encontravam-se de cinco a seis propriedades distintas pertencentes à pequena nobreza rural.
Alguns parceleiros, por pequenas dívidas, receberam vários
hectares de terra e um só servo, com o qual eram obrigados
a trabalhar em parceria.
Apenas a algumas werstas da cidade de Luck, junto
à cidadezinha de Berestecko, à beira do rio Styr, encontrase exatamente uma dessas aldeias, contando oito donos, na
maior parte tão pobres como seus camponeses.
Construídas às pressas, essas vivendas sem acabamento, entre as casinhas cobertas de palha dos aldeões, abrigam os infelizes mártires que morrem de fome nas suas
herdades.
Para a polícia distrital russa daquele tempo, as propriedades assim divididas eram causas constantes de preocupação, mas também de renda, ilegal, pela extorsão pura e
simples. Aquela podia decidir sem nenhum escrúpulo
quando e o que cobrar. Como não faltavam casos de discór120
dia, não se passava um dia sequer sem que um serventuário
da justiça, um policial, um assessor ou escriturário ali não
aparecesse para cobrar ou coagir alguém.
Os impostos raramente eram pagos na repartição. As
taxas para alistamento militar, contribuições as mais diversas, eram arrecadadas por cobradores, que caíam como granizo em cima dos indefesos aldeões, e como estes eram
pobres, pagavam com o que possuíam - trigo e aveia colhidos recentemente, galinhas ou porcos, ou qualquer outra
coisa - para se livrarem das constantes investidas dos cobradores.
Notável figura depois dos moradores da aldeia, em
Berestecko, era o arrendatário Berek Androwicz, que possuía o direito de explorar a melhor estalagem da vila, cujos
lucros deveriam ser divididos com o governo local, mas o
esperto homem, manipulava tudo e todos. Berek era um
rico judeu, antigo morador da cidade, manhoso, velhaco,
com grande visão para os negócios; era, ao mesmo tempo,
comerciante e vendedor, capitalista e especulador.
O mais pobre dos habitantes desta vila era o velho
Franciszek Wasilewski, antigamente administrador de bens,
bem-sucedido, da nobreza rural, possuía terras e servos.
Era um cidadão relativamente rico. Alquebrado pela doença
e pelas desgraças que se abateram sobre o seu lar, tornou-se
um homem inválido. O governo russo confiscou-lhe os
bens, acusando-o de traição, deixando-lhe apenas a pobre
casinha onde morava.
A filha Anielka morreu de desgosto, importunada
pela concupiscência de um libertino oficial moscovita, de
nome Wiktor Yuwanowitcz Szulubin. Anastazia, a esposa
bem amada, morreu em seguida da prisão de seu filho caçula Andrzej, pois já tinha perdido o filho mais velho Henryk para os russos, que o mataram numa emboscada.
121
O velho Wasilewski tinha um só servo, que, aliás,
estava melhor de situação que o dono. Desde há muitos
anos, acometido pela doença, não saía da cama. Anna, sua
sobrinha, já não tão jovem, dividia o seu destino, fome e
preocupação.
A vivenda do Wasilewski, na periferia da vila, foi
reconstruída e reformada de uma residência antiga e hoje
mais parecia uma mansarda do que moradia de nobres. Ficava em cima de uma colina, fechada por uma cerca de ripas, rodeada de árvores frutíferas e matagal, dos quais, ninguém cuidava.
Paiol, estábulos e outras dependências caíam aos
pedaços em volta da residência em abandono, que apresentava um quadro triste de decadência. A mansão antiga era
composta do alpendre sem assoalho; à direita, uma oficina
de marceneiro, em desordem; à esquerda, um quarto, salinha, cozinha e despensa, era tudo o que compunha a pobre
moradia. Apesar da hora tardia e do tempo chuvoso, ainda
havia luz na casa.
O velho não podia dormir, sofria muito.
O ambiente era pobre, despojado e silencioso, os
móveis escassos. Na mesinha, uma vela acesa no óleo, colocada num castiçal, desviando a luz direta. Entre as cobertas aparecia a face pálida de um homem, orlada de barba
grisalha e olhos fechados.
Aos seus pés, numa cadeira dura, estava sentada
Anna, sua sobrinha, uma mulher de meia-idade, alquebrada,
magra, pensativa, mas de rosto sereno. Parecia já acostumada com a longa desgraça. Sobre os joelhos segurava um
livro de orações. O velho doente cochilava. Anna rezava em
silêncio.
De repente, o doente deu um longo suspiro e abriu
os olhos.
- O que sentes, senhor? – perguntou Anna, aflita.
122
O enfermo passeou os olhos pelo quarto, em semiescuridão.
-Ah!, não é nada, estava sonhando, minha querida,
mas, estranho... estranho... agradeço a Deus por este sonho
- murmurava Franciszek como sonâmbulo.
Os dois suspiraram.
- Olhe as horas, sobrinha, o tempo não passa... já é
muito tarde? – perguntou.
- São oito horas - respondeu Anna, olhando o relógio de prata, antigo, de bolso, que repousava em cima da
mesinha no canto do quarto.
- Ainda são só oito horas, e eu estava certo que já
era meia-noite.
Silenciaram.
Na herdade um cão começou a ladrar furiosamente.
O velho levantou a cabeça. Escutava atentamente. O latido
do cão começou na entrada. O velho Briza, correu até o
portão latindo sem parar. Um instante depois começou a
choramingar como se festejasse alguém conhecido, depois
silenciou, latiu alegremente, aproximando-se da casa, depois tudo ficou quieto novamente.
Anna levantou devagar e foi até a entrada, curiosa.
Decerto alguém chegara – e alguém conhecido, porque, se
não o fosse, o cão não deixaria entrar. Mas, a esta hora?
Quem seria? Pois, ninguém visitava a casa pobre, mesmo
de dia. O doente não disse nada, mas olhava atento. Seu
olhar brilhou com interesse e um fio de esperança.
A entrada estava escura. Anna, caminhando sobre
os tijolos, seus conhecidos, seguiu a trilha cheia de água da
chuva. A porta que saía para o quintal estava entreaberta,
uma luz bruxuleava no recinto contíguo.
A velha Zyta cochilava em frente da roca de fiar,
diante do fogão com fogo crepitando, mas não estava só.
Despertou de repente, o rosto assustado, o copo caiu-lhe das
123
mãos. Parado em frente dela estava um homem desconhecido, envolto no capote do qual pingavam gotas de chuva;
o cão lambia as mãos do estranho viajante.
Anna, admirada, parou estupefata no alpendre, não
só pelo viajante, mas o cão, que gania amistosamente, deixou-a surpresa; Briza era intolerável sempre com estranhos,
ninguém à noite podia chegar perto da porta – o que significava esta amizade por um desconhecido?
Completamente estranho; Anna, impressionada com
a situação, olhava-o, sem contudo, reconhecê-lo. Parecialhe que o via pela primeira vez na vida. O visitante ficou de
pé, mudo e atrapalhado. Um lampejo do fogo que ardia
jogava luz no rosto amarrado por um lenço, nos olhos negros ardentes...
- Desculpe, senhora - explicou, dando-lhe um sinal
imperceptível – perdi-me, o meu condutor virou a carruagem, queria secar-me e aquecer um pouco.
Ao ouvir o som da voz, Anna já abria a boca para
gritar, quando outro sinal dado impediu esta exclamação de
surpresa. Mas começou a tremer. Encostou-se na porta e
por longos instantes não voltava a si, os olhos fixos no estranho, parados. Seguramente, não sabia o que fazer. Só
depois, com voz trêmula, balbuciou:
- Nós aqui... senhor... nós dois... eu e o velho doente... frio... o senhor espere um pouco... vou perguntar.
Sente-se por um instante... eu vou... falando – gaguejava,
queria ir, voltava, não sabia o que fazer, esfregava as mãos,
– olhava o desconhecido, que se sentou no banco de madeira. Silenciou, abaixou a cabeça.
Finalmente Anna saiu para o alpendre e ainda parou,
pensando o que fazer. Após alguns minutos, abriu a porta
do doente, cujo olhar alcançou-a na porta. Wasilewski,
encostado no braço, na expectativa, ansioso, como se adivi-
124
nhasse algo, olhava-a como para uma santa. A mulher estava parada, muda. De repente gaguejou:
- Desconhecido, viajante... perdeu-se... suplica....
hospitalidade...
- Sei - gritou o velho com aflição.
- O senhor sabe? – indagou , admirada.
- Sei... sonhei... é ele... silêncio... que venha... oh,
meu Deus...
A emoção tomou conta da mulher, quase não podia
andar, caminhava encostada na parede.
O velho ergueu-se, esticou os braços. Arquejava e
repetia para si:
- Misericordioso sois, meu Deus! É ele... ainda os
meus olhos poderão vê-lo... é ele... mas, devo alegrar-me?
Mas, que loucura, condenado, fugitivo, meu Deus! Se o
pegam, a forca o espera.
Falando assim, cobriu os olhos, mas a porta rangeu.
e ele rápido retirou as mãos da face e estendeu os braços em
direção à porta.
- Andrzej! Meu filho! – chamou, assim que viu a
figura que parou na porta do quarto.
Em silêncio, com passos rápidos, o desconhecido
chegou perto da cama, ajoelhou-se sem falar nada. As mãos
do ancião descansaram nos seus ombros e os lábios na testa.
Começou a chorar, choravam ambos.
A sobrinha, ao lado, mal continha o choro que a sufocava, mas a sua dedicação e o cuidado levou-a imediatamente à cozinha, temia que Zyta tivesse visto ou ouvido
algo. Mandou reacender o fogo, queria cozinhar algo quente. Mas o quê? Na casa pobre não tinha com o que receber
uma visita. Pôs um pouco de leite para aquecer.
Tinha
um pedacinho de pão amanhecido. Já mais tranqüila quanto
à serva que, resmungando, rachava lenha, voltou ao quarto
125
do doente. O recém-chegado ainda estava ajoelhado aos pés
da cama. Os dois choravam, dizendo palavras truncadas.
- Andrzej! – dizia o ancião – Sente! Descubra o rosto para que eu te veja. Tua mãe – soluçou – morreu há tempos de tanto sofrer e chorar a perda da filha e sem saber do
teu destino. Foi definhando e um dia não acordou mais.
Lamentei profundamente a sua morte, eu a amava muito.
Daquele dia em diante perdi o interesse pela vida, eu não
tinha mais ninguém.
- Não sofra tanto, meu pai - consolou Andrzej.
A comoção embargava-lhe a voz, as lágrimas desciam pela sua face, incontroláveis.
- Filho querido, não chore, tua mãe está em paz, eu
logo estarei com ela.
- Pai! – falou Andrzej - trouxe um presente para minha mãe, eu não sabia que ela havia morrido, é um lindo e
precioso colar de ouro e âmbar amarelo, que ganhei de um
artesão judeu; que farei com ele agora?
- Andrzej, meu filho, escuta-me - disse o velho - vá
ao sótão e procure uma caixa de papéis importantes, documentos, que está lá escondida, disfarçada com pedaços de
tábua, coloque o colar junto com os papéis na caixa, feche-a
bem. Depois vá ao pomar, cave um buraco fundo junto à
raiz do carvalho centenário e enterre a caixa, bem protegida. Um dia você vai voltar...
Andrzej voltou-se para a prima Anna, que estava parada, atônita, ouvindo-os.
- Prima - pediu Andrzej - vá buscar uma enxada para mim, mas com cautela para que a velha Zyta de nada
desconfie.
Anna foi, e não demorou muito, entregou a ferramenta ao Andrzej. Ele, esgueirando-se por entre as árvores,
em silêncio, chegou ao pé do frondoso carvalho, cavou fun-
126
do na terra, colocou a caixa, cobriu-a com tábuas com cuidado, recolocou a terra e jogou entulho em cima.
Em seguida voltou para junto do doente.
- Andrzej! É você? – chamou o pai – Venha aqui!
É a última vez que meus olhos te contemplam... última.
Deus todo poderoso, mas você arriscou muito para vir até
aqui para me ver - gemia ele.
- Não falemos em qualquer perigo - respondeu baixo
o viajante - não falemos. Eu estou acostumado à luta, à miséria e à vida em si. Nada me acontecerá, meu pai, a pátria
chamava, mandaram-me entrar no país, precisava, aproveitando a ocasião vim vê-lo, abraçá-lo, e ficar consigo alguns
minutos.
- Oh! Meu Deus! - gemeu o velho. Mas como você
vai conseguir sair daqui? Sabes como estão alertas, aqui te
conhecem, cada passo é perigo de morte.
- Não tenho preocupação com a minha vida, também
não temo. Aprendi no exílio a ludibriar os mais espertos,
camuflar, fugir e desaparecer.
- Mas aqui onde te conhecem?
- Por isso mesmo! – sorriu o viajante. Mas falemos
de você, pai!
- De mim? O que posso te falar? Olhe, veja... estou
vivendo os últimos dias, estou acamado... rezo... tenho o
anjo da guarda nesta mulher - falou, indicando a Anna. Vivi
na esperança das notícias tuas, senti que vivias, mas não
tinha idéia do que realizavas. Senti que antes de morrer
meus olhos te veriam, mesmo que os sentidos dissessem o
contrário, mas vejo-te, o medo domina-me, estou gelando...
- Pai! – disse Andrzej com tranqüila resignação. Não
tema por mim, eu já ofereci a minha vida pela causa da pátria, a ela pertenço. Não retiro a minha oferenda, e prometi
a mim mesmo que veria você a todo custo.
127
- Meu Andrzej, correto, sincero, meu filho, fale –
disse o ancião. Como você se sente?
- Pergunta isso a um proscrito, emigrante, andarilho,
pode? Vivo, mas estou vivendo com o pensamento preso à
pátria e trabalho para ela. Vivemos na miséria, andamos aos
empurrões, mas agüentamos. Recebiam-nos com triunfo,
aplausos, clamavam-nos, mas tudo isso acabou na triste
realidade, veio a indiferença. Estamos entre estranhos, não
temos irmãos! Eu aprendi o ofício de relojoeiro, vivo desta
profissão. Mas, hoje, não devemos pensar nisso... hoje no
país alguma coisa está fervendo... precisa de pessoas ousadas e engenhosas que pudessem entrar no país, driblando o
inimigo passar com documentos secretos e notícias. Eu entrei.
- Arriscando a vida - falou o pai.
- Sei - respondeu Andrzej. Mas morrer pela santa
causa, haverá algo mais nobre?
- Sim! – falou o velho, erguendo a mão.
- Nós, a família toda, pelo desígnio de Deus, fomos
escolhidos para o sofrimento e sacrifício. O nosso antepassado Fiodor lutou contra os tártaros; o teu tataravô Boguslaw Wasilewski, era um nobre guerreiro, coronel dos hussardos. O bisavô Kleofas, envolveu-se na insurreição. Perseguido pelo governo russo, viveu o resto da vida proscrito,
longe dos filhos e da esposa.
O avô Kazimir trabalhou como administrador em
grandes herdades de magnatas, como eu, administrava os
bens do velho conde Zukowski. Acusaram-no de traição e
confiscaram os poucos bens que possuía. Adoeci depois do
falecimento da tua mãe, e quando você foi preso pelos moscovitas, o mundo desabou sobre mim, agora estou morrendo na miséria... enquanto você ... é um fugitivo...
- Mas nenhum de nós desonrou-se - falou Andrzej Ser feliz não é obrigação da pessoa, é o destino dela.
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- Fale-me de você! – reclamou o ancião. Fale...
- Meu pai, eu já falei tudo sobre mim a você. O resto
quem falará é a minha permanência neste solo.
- Aonde você vai? O que pensa fazer?
- Não sei, trago papéis importantes, tenho uma ordem a cumprir, parece que a rebelião foi descoberta, estão
perseguindo os insurretos. A minha missão, portanto, é
mais importante. Como me sairei desse encargo, só Deus é
que sabe, confio na Sua proteção, e se o meu destino é perecer, não terei medo. Dirigi-me até aqui porque quis vê-lo
sem falta, aconteça o que acontecer, para obter a sua benção
para a vida, para o meu trabalho ou para a minha morte.
Mas aqui, não poderei ficar por muito tempo. Não tive sorte.
- O que aconteceu?
- Por enquanto nada, mas tenho o pressentimento de
que o perigo está me rondando. Assim que cheguei em Berestecko, mandaram que me apresentasse na polícia, não
podia desobedecer para não trazer desconfiança, tinha que
ir pessoalmente. A desgraça quis que ali encontrasse...
- Quem? – perguntava, nervoso, o velho.
- Szulubin...
- Szulubin? Reconheceu-te?
- Não sei. Olhou, tremeu, segurou o passo, ficou indeciso e foi embora. Mas, seja o que for, não estou seguro,
nem aqui e nem nas proximidades. Mesmo que não tenha
certeza, ele procurará por mim na tua casa, com polícia.
- Se te reconhecesse - comentou o pai – não deixaria
você ir embora.
- Assim também pensei eu. Mas esse homem nos
odeia, e se tiver dúvidas, mandará espiões, vai procurar e
não deixará eu passar.
- A ele devo que aqui estou prostrado neste leito respondeu o ancião. Por causa dele estou arruinado, não
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tenho sossego por causa dele. Ele é impiedoso, se é assim,
não fique aqui, vá embora. Mas para onde você vai?
Andrzej pensava...
- Não sei... preciso ir para o interior do país, esgueirar-me em espaços perigosos, ir rumo aos pântanos do Polesie Pinskie, tenho contatos recomendados, caminhos designados a seguir. Se conseguir sair dessa região, vou a
Kowno. Lá vão me esconder! Oh! Meu pai! Não falemos de
mim, mas de você.
Neste instante, Anna trouxe da cozinha leite quente
num caneco e um pedacinho de pão preto. Lágrimas afloraram aos seus olhos por ser obrigada a servir um repasto tão
pobre a um visitante tão querido, mas na casa não havia
mais nada, e mandar comprar a esta hora da noite no armazém só chamaria a atenção dos outros.
- Meu querido Andrzej - disse ela, preocupada - nós
não temos mais nada a não ser o leite e o pão preto, tome
alguma coisa quente.
Andrzej pegou a refeição simples e a tristeza cobriulhe o rosto. Entendeu a miséria do pai e o seu coração se
condoeu. Quis entregar à prima o dinheiro que trouxe consigo, ganho com o seu trabalho, para ajudar o pai, mas não
conseguia deixá-lo nem por um instante.
O ancião não se contentava, olhava-o, pediu para
que se aproximasse, segurou sua mão... e chorava um choro
dolorido de desesperança. Já passava da meia-noite e a
conversa não parava; ao amanhecer o Andrzej precisava,
ainda com escuro, ir embora para longe. Teria que sair sem
ser visto, com toda a cautela.
- Como devo fazer? – pensava. De repente, ocorreulhe uma idéia. Chamou a prima e disse:
- Vá buscar o padre Afanazij, diga-lhe para vir logo,
o pai está morrendo.
130
Anna correu, balançando seu corpo pesado, escorregando na lama do caminho e, arfando, chegou à casa do
padre. Padre Afanazij ainda estava acordado; assustou-se
com as batidas na porta.
- Quem é?
- Sou eu, Anna, sobrinha do Wasilewski. Ele está
morrendo, pede para o senhor levar-lhe a extrema-unção.
Venha depressa!
O padre não perdeu tempo, pegou os óleos santos, a
bíblia e a comunhão. Acompanhou a mulher até a casa do
agonizante. Teve uma grande surpresa ao deparar-se com
Andrzej, que aguardava silencioso aos pés da cama do pai.
- Você aqui? – perguntou aflito.
- Por favor, não percamos tempo - pediu Andrzej.
Devo partir imediatamente, pois sou perseguido pela polícia
do coronel Szulubin. Ajude-me, pelo amor de Deus, e por
esta criatura que está indo ao encontro Dele. Vê, meu pai
está agonizando.
O padre perguntou:
- O que quer de mim?, peça que te ajudarei no que
puder. Sobre o meu silêncio e discrição, pode estar seguro.
Sou um servo de Deus.
- Padre Afanazij, a minha vida está nas suas mãos,
só o senhor pode me ajudar. Assim que o senhor terminar o
ritual da confissão e der extrema-unção a meu pai, peço-lhe
para que troquemos as nossas roupas. Eu vestirei a sua indumentária de padre e o senhor vestirá a minha roupa. A
capa de chuva que trago disfarçará a troca. Eu sairei daqui
mais seguro, sem despertar suspeitas dos servos e dos vizinhos que casualmente estiverem acordados. E o senhor voltará rápido para sua casa. Lá o senhor, com certeza tem
outra roupa de padre para vestir.
Assim procederam; mas não antes de o Andrzej entregar nas mãos do padre Afanazij uma boa quantia em mo131
edas de ouro para as obras de sua igreja. Andrzej puxou o
capuz sobre os olhos, esgueirou-se pelas trilhas cheias de
lama e pelos atalhos tomou o rumo da floresta próxima,
sumiu nas brumas da noite...
Dias depois, apareceu um menino de uns quinze anos de idade na porta da casa do padre Afanazij, trazia uma
mochila nas costas.
- O padre Afanazij está? – perguntou à criada que
veio atender a porta.
- Quem está perguntando por mim? – perguntou o
padre, vindo do interior da sala.
- Sou eu, Sascha, trago uma encomenda para entregar ao senhor.
Sascha entregou a mochila ao padre, que em seguida
abriu-a. Estava lá a roupa que havia emprestado a Andrzej.
- Louvado seja Deus! - orou o padre, agradecendo.
Ele está em segurança!
***
Enquanto esses fatos aconteciam na residência pobre do Wasilewski, na próspera estalagem do judeu Berek
Androvicz, muito antes da meia-noite, apagaram as luzes. A
chuva torrencial, o vento que uivava.
Não esperava mais hóspedes para aquela noite. Fecharam a estalagem e todos foram dormir cedo, mas o velho
Berek estava preocupado com os negócios madeireiros; não
conseguia dormir. No silêncio da noite calculava. De repente, o seu ouvido sensível captou um som, como se fosse
o tilintar dos sininhos da carruagem do correio, anunciando
nas estradas particulares a chegada de uma autoridade.
Berek levantou a cabeça do travesseiro e escutou.
Ouviu mais uma vez o sininho que parou de repente. O ve132
lho judeu convenceu-se de que o sininho estava nos seus
ouvidos, quando bateram na porta. Não se ouvia mais os
guizos, mas os cavalos relinchavam. Pulou da cama, chamou Icek, o recepcionista, para que fosse verificar quem
era, e ele, como dono atencioso, arrumou-se e ficou esperando.
Reacenderam o fogo. Dentro da lanterna foi colocada uma vela acesa, e instantes depois entrava dentro da
sala um homem robusto, que olhou para os lados e chamou
Berek. O dono não o reconheceu, mas viu os dedos sobre a
boca e no colarinho um distintivo de oficial. Fez uma reverência profunda.
- Entre na casa! – ordenou o recém-chegado. Feche
a porta do estábulo, não desatrelem os cavalos, só joguem
mais feno para eles!
Só agora Berek, mais pela voz do que pela feição
encoberta, reconheceu Szulubin, promotor de justiça de
Luck. Tremeu dos pés à cabeça. Sabia que a viagem noturna de tão importante personagem não era de graça.
Entraram no recinto. O coronel não tirou o boné
nem o sobretudo.
- Ouve, Berek. Nós somos antigos conhecidos, eu
confio em você - falou devagar - colaborou algumas vezes
com o governo, e o governo te pagou, verdade?
- Bem, não tem o que reclamar - respondeu o velho todos devem servir ao seu governo, para nós, essa lei está
escrita na Bíblia.
- Poderás prestar a mim e ao governo relevante serviço, mas deves ficar em silêncio como túmulo.
- Eu já traí alguma vez? – perguntou Berek.
-Tem uma rebelião organizada dirigida contra o czar
e o governo. De novo os poloneses estão se agrupando,
para sua perdição. Do estrangeiro estão enviando para o
133
país subversivos; está cheio desses rebeldes aqui. Vive ainda o velho Wasilewski? Ainda os diabos não o levaram?
O estalajadeiro, ouvindo este nome, empalideceu e
mudou-se-lhe a feição. Ficou assustado, mas controlou-se e
respondeu com calma.
- Sim, vive! Mas que vida é essa? Ele está morrendo
aos poucos.
- Se morresse o velho imprestável, não se perderia
grande coisa, mas temos indícios que o filho, Andrzej, está
por aqui. Eu mesmo, hoje, vi-o com meus próprios olhos mas o diabo me cegou, não o reconheci, não o peguei... por
mil demônios, ele está aqui, ou virá a qualquer momento.
O judeu estacou como se um raio o atingisse.
- Ilustre senhor coronel - falou depois de muitos minutos, voltando a si. Ele não pode estar aqui, ninguém chegou até a noite. Não dá para entrar na vila sem passar na
minha hospedaria. Viva alma não apareceu até tarde.
- Por acaso ele não conhece outro caminho? trilhas?
- Mas ele não viria a pé.
- Quem sabe?
- Não, isso não pode ser - completou Berek.
- Que horas são? - perguntou Szulubin.
- Ainda não é meia-noite, os primeiros galos ainda
não cantaram.
O coronel olhou o relógio.
- São onze horas, não poderia ir você à casa do Wasilewski por qualquer motivo?
- Mas a esta hora? - reclamou Berek
- Ir até lá e atacar a casa, à noite, não sabendo ao
certo se o Andrzej está lá, de novo toda a província vai reclamar e me acusar de ser o carrasco dele, que o estou matando por vingança, e a presa poderá escapar. O que fazer?raciocinava o oficial.
Berek ficou pensativo.
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- Escute, coronel! – falou de repente. Eu já sou velho, não tenho saúde e é noite. O cão deles é bravo, mas o
que fazer? Eu vou. Ilustre promotor sabe que eu para o
governo farei o impossível. Eu vou... ele está doente, vou
saber se está melhor.
O promotor ficou indeciso.
- Vá, mas que ninguém te veja, para onde e por que
fostes... e em total silêncio. Mande arrumar o samovar com
chá para mim, alguns biscoitinhos, e você, saia sem ser visto, dou-te um soldado.
- E, para quê? - Ofendeu-se Berek. Mas, sim! Para
que alguém me veja com ele? Isso não pode ser.
Tudo ocorreu conforme foi combinado. Sara colocou o samovar com chá para o coronel, e para os soldados
deram uma garrafa de wodka, e o velho Berek, silenciosamente, sumiu da casa pelo portão dos fundos.
Mas, assim que se achou no pátio, o estalajadeiro
começou a torcer as mãos, desolado, parou. Parecia pensar
profundamente, suspirou e seguiu lépido pela aldeia, rumando pelos caminhos por ele conhecidos.
A casa do Wasilewski situava-se no outro extremo
da cidade, isolada, e precisava caminhar um bom trecho por
cima do barro escorregadio até chegar lá. A chuva e a estrada esburacada tornavam difícil a caminhada, mesmo para
pessoa jovem, mas Berek, como que impulsionado, corria
com passo apressado.
Entrar na residência, não podia nem pensar... o cão
era bravo... o velho judeu conhecia bem o lugar, caminhou
atrás da cerca, circulou em volta da construção e parou em
frente da janela do quarto, pouco iluminada, mas dava para
ver o interior da casa. Luz acesa, a esta hora já era uma coisa extraordinária, já denunciava algo incomum.
Berek encostou a cabeça no vidro, e quando a sua
vista se acostumou com a claridade, reconheceu o Andrzej,
135
que estava sentado no meio da sala. Não o identificou de
imediato, mas quem poderia estar lá a esta hora, se não fosse ele? Passou para outra janela e dali via melhor, pôde visualizar Anna e o homem que sentava aos pés do doente.
Começou a quebrantar as mãos e tremia todo. Ficou
assim parado por um instante, e quem pudesse vê-lo agora,
enxergaria lágrimas nos seus olhos, no rosto grande aflição
e surpresa. Estava indeciso... não sabia o que fazer... em
silêncio passava de janela em janela.
De repente, Anna saiu do quarto com vela na mão,
lembrou-se que na despensa havia uma garrafa de vinho,
queria agradá-lo com isso. A janela do local não tinha vidro, só uma grade de ferro separava-a do pátio externo. A
luz da vela dirigia os passos do velho Berek, que chegou à
grade. Não tinha nem um minuto a perder. Anna já alcançava a garrafa, quando o velho judeu chamou:
- Não se assuste senhora, só direi duas palavras, espere.
Apesar disso, ela deu um grito, mas reconhecendo a
voz de Androwicz, voltou a si do susto. Rápido, em meiavoz, o judeu falou a ela:
- O coronel Szulubin e soldados estão lá em casa.
Sabe a respeito do Andrzej. Até amanhecer eu consigo segurá-lo, mas que fuja, e que não fique sinal atrás dele, que
fuja!... está me ouvindo, senhora? Compreende o que eu
disse? Que fuja, rápido!
- Ah! Estou ouvindo e estou morrendo de medo!
O velho já não estava lá, tinha-se evaporado.
O promotor bebia a primeira xícara de chá quando
Berek, sujo de barro, cansado, arquejando, voltou.
- Foi até lá?
- Fui.
- Está lá?
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- Ainda não veio. O velho está muito doente, mas
perguntei à serva se ontem ou hoje não viram ninguém. Na
casa não tem nem um pedacinho de pão.
- Que morram! – praguejou o promotor. É castigo de
Deus, é dedo de Deus, não quiseram genro russo, agora têm
um inimigo mortal, mataram a jovem por teimosia, estragaram-me a vida, que seja assim.
Berek estava em silêncio. O promotor caminhava
nervoso, sem rumo.
- Ouve - falou Szulubin - se não chegou até agora
ele virá sem tardar. O que fazer? Eu preciso tê-lo nas minhas mãos. Ele não desviará Berestecko; esperá-lo aqui
com os soldados, ele vai desconfiar... o maldito...
Androwicz, o hospedeiro, silenciava.
- Você poderia, com facilidade, ver e avisar-nos.
- Ilustre coronel, até chegar o meu aviso, será que
ele esperará? Eles vão confiar em mim para não ocultá-lo?
Eu faço o que posso; mas não me encarrego de fazer o que
não sei. Não quero desapontar Vossa Senhoria.
- De quem é a casa em frente do Wasilewski?
- Não tem nenhuma, pois a dele está construída no
meio da colina.
O promotor ficou pensativo, preocupado. Olhou
com desconfiança para o estalajadeiro.
- Mas não foi ali - falou - que o coronel Priluka
comprou uma parte?
- Mas não mora ali - respondeu Berek prontamente.
- Castigo de Deus – gritou o coronel. - Então arrume
a cama para mim, veremos o que fazer de manhã.
O dia já estava alto quando Szulubin, acordando,
tomou o chá, mandou atrelar os cavalos, e não confiando na
determinação e inteligência do judeu, resolveu atacar o casarão. Mandou soldados e aldeões para cercarem a casa,
137
que chamava de “toca do lobo” e, mal-humorado, sentou na
carruagem, gritou para o cocheiro:
- Em frente! – e tomou o rumo da casa do velho
Wasilewski com grande algazarra.
Mas, além do cão que uivava na porta da casa, ninguém saía para ver quem fazia tanto barulho. Szulubin pulou da carruagem, abriu a porta do primeiro cômodo, mas
não deu um passo adiante. Parou petrificado.Visualizou
uma cena fúnebre e singular.
No centro da sala foi colocada uma mesa coberta
com toalha bordada, branca, e ao lado, na cama, estava deitado o corpo do ancião, de camisa branca, de crucifixo nas
mãos rijas. Anna e a velha Zyta, chorando, levantaram o
lençol, forçando o corpo a deslizar para o catafalco. O olhar
do promotor pousou sobre a face do falecido, e por causa da
expressão dele não conseguia desprender a vista.
O rosto tinha a bondade expressa dos beatificados e
santos, serena, tranqüila, surpreendentemente linda. Parecia
dormir e sonhar com o céu. Apesar do desejo de vingança e
do ódio, pela inesperada morte, o coronel ficou estupefato,
desnorteado. Algo tinha-se quebrado... lembrou da bondade
do velho, as horas passadas em sua casa, a filha dele, as
suas esperanças, a morte prematura da jovem e, neste momento, voltou a ser humano. Abaixou a cabeça, esqueceu a
vingança.
- O velho morreu! Quando? - perguntou para a chorosa Anna
- Hoje à noite.
- Estava enfermo?
- Faz muito tempo, mas faleceu tranqüilo; as cinco
horas da manhã veio o padre.
- O padre veio? – perguntou o coronel.
- Partiu neste instante – afirmou, chorando.
- Ele piorou depois da meia-noite?
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- Não sentia nada, parecia como sempre - disse ela mas previu a morte se aproximando, quis que chamássemos
o padre.
O promotor, parado, olhava o defunto.
O judeu pode falar o que quiser – pensou Szulubin ele aqui esteve, essa é obra dele, disso tenho certeza.
Não ousou porém, começar a investigar.
Na mesinha ao lado da cama, reparou num amontoado de moedas de ouro, estrangeiras, trazidas por Andrzej e
jogadas a esmo; chegou perto e pegou uma. Examinando,
disse:
- Queixavam-se de miséria, mas pelo que vejo vai
ter com que fazer o funeral, hein?
Anna deixou cair o lençol, ruborizou-se, ficou desorientada, e disse:
- O velho... há muito tempo economizava para o funeral.
O promotor sorriu, a natureza de predador voltava, a
impressão do defunto já tinha sumido, apareceu o policial.
Chegou perto e começou a examinar as moedas.
- Ah! Sim... isso é verdade que guardava por muito
tempo – falou, zombando – esta aqui, por exemplo, é do
ano de 1828.
Anna quase desmaiou.
- Não sei nada, donde e o que pode ser? – respondeu
a moça perturbada.
- A senhora não sabe? – falou friamente o coronel.
Então eu a informo.
- Esta noite esteve aqui Andrzej Wasilewski. Ele
deixou este dinheiro e o pai, de emoção, morreu.
Anna emudeceu. Na sua cabeça as coisas se embaralharam, lágrimas caíram dos seus olhos. Ofendida, apontou o falecido.
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- Se o senhor é humano, coronel - gritou – respeite o
corpo e a majestade da morte, porque não respeitará uma
pobre mulher. Não sei de nada, a minha obrigação é aqui! –
apontou para a cama e virou-se de costas para ele.
Com sangue frio, o coronel contou as moedas, juntou-as e guardou-as no bolso.
- Este é o rastro do proscrito e condenado à forca –
gritou – vai para averiguação ouviu, senhora? Cumpro a
minha obrigação, não estou me apossando, é problema para
a justiça resolver.
Mas a moça não ouvia mais nada, chorava ajoelhada
aos pés da cama.
O promotor deixou a casa, entrou na carruagem e
saiu em disparada. A procura do “emissário”, de cuja permanência no país Szulubin estava convencido, resultara em
nada. Controle e precaução ordenavam silêncio sobre o
rumo a ser tomado.
Szulubin enviou seus espiões pelo distrito, voltou
soturno para a cidade. Encontrou o cavalo negro no estábulo. Prometeu ao coronel Rassim que aconteça o que acontecer, jamais ele será responsabilizado pelo ocorrido.
Ordenou silêncio sobre o caso.
Em seguida começou a pôr a cabeça a funcionar,
pensando como conseguiria apanhar Andrzej Wasilewski.
Sabia bem que o caso não era fácil, calculava que no seu
distrito ele não permaneceria por muito tempo e seu maior
anseio é que se caísse em suas mãos o estrangularia.
Tinha certeza absoluta de que o havia visto e que
estiveram na cidade no mesmo dia. Não podia culpar o judeu de traição, mas culpava-se por não ter ido direto para o
casarão suspeito, assim que chegou à cidade. Teria pego o
emissario em flagrante. No enterro do velho, estava atento,
mandou prender Anna, enclausurou-a num mosteiro orto-
140
doxo. Zyta estava na prisão e os bens do falecido foram
confiscados.
Não havia notícias do Andrzej, mas de Kiew e Zytomierz seguiam, um atrás do outro, documentos secretos
recomendando vigilância extrema, absoluta. No distrito
todo foram colocadas barreiras, havia sentinelas nas encruzilhadas e foi convocado o povo para manter o máximo
alerta nas estradas. Nas hospedarias foi exigido um rigoroso
controle no trânsito dos viajantes; diariamente ocorriam
prisões, a maioria de pessoas inocentes.
Os soldados que estavam de sentinela não sabiam
ler nem escrever, deixavam passar qualquer um que apresentasse papéis com carimbo, até mesmo alguns pingos de
vela de estearina colocados engenhosamente, favoreciam a
passagem com facilidade. Mas tudo tremia...
Mansões e residências, noite e dia, estavam sujeitas
à invasão e eram revistadas pelos serventuários do governo.
Qualquer suspeita de abastança era problema e causa para
prevaricação. Era certo que os mais ansiosos em obter favores do governo colaboravam, prendendo e mandando para o
cárcere quem aparecesse. Esses acompanhavam notícias as
mais inverossímeis e desencontradas da cidade. Eram citados nomes importantes de pessoas que faziam parte da insurreição e que estavam presas em São Petersburgo, Kiew e
nas províncias.
O alerta era geral. Nas casas enterravam livros proibidos, queimavam-se papéis, escondiam-se antigas armas,
recordações, porque todos podiam esperar a revista, havia
apenas uma certeza: que descobriram uma sublevação contra o governo moscovita e que alguma coisa iria acontecer.
Daquela tarde fatídica em que o secretário Formitch
recebeu duas moedas de ouro e um rublo do estrangeiro
suspeito, nem ele, nem o coronel Rassim, nem o promotor
141
Szulubim, tiveram um minuto de paz. O secretário sentia
que no final tudo cairia sobre os seus ombros.
Rassim, apesar de ter doado o cavalo árabe, negro,
ao promotor temia pela sua sorte, e Szulubin preocupava-se
com duas coisas: a sua vingança e a promoção do cargo no
governo. Prender o emissário lhe traria uma cruz como
condecoração, agradecimentos e, quem sabe, um prêmio em
dinheiro.
O promotor tinha, na verdade, o que prezava acima
de tudo: uma cruz de São Jorge conseguida na guerra turca.
O emblema do czar Nicolau I estava estampado na sua espada; do príncipe Wladimir no arreio, e uma medalha com
efígie de Catarina II, que levava no pescoço. Mas, o que
isso significava, comparado à constelação de medalhas no
peito dessas felizes criaturas que tinham menos mérito e
mais proteção? Szulubin era muito ambicioso.
Rassim não almejava tanto, ele gostava de viver, sua
maior preocupação era que não lhe faltasse nada para seu
conforto, e não tinha nada melhor que um posto numa pequena cidade. Todos os armazéns abertos e cada acerto era
pago em dinheiro ou em espécie.
Perder um cargo desses, e ainda numa província que
ficava perto da fronteira, onde se fazia contrabando, era
inadmissível. Para o coronel Rassim isso representava uma
ameaça terrível. O secretário Nikodem Formitch também
temia a justiça, a degradação, a ruína. Quem sabe poderia
ser rebaixado a soldado raso. O terror reinava na repartição.
E assim, desse dia em diante, nenhum viajante era
liberado sem uma rigorosa fiscalização. De longe, observavam a estalagem de Wrobleski e o recepcionista Icek Tyrowicz já pensava seriamente em ir embora para sua província em Dubno. Mas, por outro lado, apenas as autoridades sabiam a história do relojoeiro, ninguém mais sabia,
pois até os judeus calavam a seu respeito e o resto dos en142
volvidos queria só esquecer. Só o promotor Szulubin estava
alerta – mas sem resultado.
Investigou todos os sinais de envolvimento dos indivíduos suspeitos, enviou espiões, mas parte alguma tinha
notícia de pessoas estranhas que tivessem passado por ali.
Nas aldeias, a pequena nobreza, precavida com a situação
incômoda e também por causa das más condições das estradas, sem pontes, preferia ficar em casa a se expor.
Mas um cérebro ativo e inquieto como o do promotor Szulubin não se conformava com o insucesso e não podia demonstrá-lo. Assim como o chanceler Gorczakow falou em Moscou que estava juntando forças, assim ele procederia, raciocinando e trabalhando, preparando-se. Mas,
infelizmente, nenhuma idéia original assomou ao seu cérebro; comumente quando você a procura com esforço, ela te
foge. Nunca vem quando é chamada.
Esse promotor de justiça ambicioso, que com espetacular esperteza contava conseguir nova promoção, esta
lhe escaparia das mãos se não fosse a ajuda do seu único
amigo leal e confiável, o capitão Inocenty Igorowicz Priluka que era natural da Bielorússia, deste recanto privilegiado no rio Dnieper, que forneceu excelentes administradores públicos.
O capitão tinha o talento de favorecer todos os seus
compatriotas e conseguia igualmente conciliar seus interesses com o governo, donde desviava habilmente para si, e
dos cidadãos com o governo, e de todos os santos com os
não tão santos. Na casa dele sempre o lobo estava saciado, e
o cabrito, se não inteiro, pelo menos estava vivo. O bolso
dele, por essa ou aquela, enchia-se em toda a oportunidade.
Priluka já fora comissário de polícia, advogado, jurista,
promotor.
.
Não contando que no posto de capitão foi ferido e
dispensado da artilharia, protegido pelo comitê dos inváli143
dos, podia até se aposentar, pois mancava um pouco. Mas
foi atingido por uma infelicidade - alguém achou uma diferença nas contas por ele prestadas, foi investigado e provado que era tão inocente como um bebê recém-nascido,
fora o seu adjunto (o qual morreu, de repente, no cárcere)
que havia desviado o valor reclamado. Mas mesmo assim
foi afastado do cargo.
Casou-se depois, com a filha do pope; comprou uma
propriedade em Berestecko, que possuía boas terras. Ele
administrava-as; mas na verdade havia arrendado tudo, e
como era dado a companhias alegres, foi morar em Luck.
Priluka aparentava ser de natureza boa, gentil, atencioso, companheiro alegre, fanfarrão. Com o promotor Szulubin mantinha boas relações de longa data. Foi por um
acaso que, em função dos seus negócios, veio até Berestecko e foi fazer uma visita ao amigo; velho costume.
Encontrou-o triste, e como estavam a sós, começou
a investigá-lo.
- O que você tem?
- O que eu tenho? Os diabos estão me cozinhando
vivo. Ouve - e Szulubin contou-lhe todo o ocorrido.
Priluka era prático, hábil, viajado. Ficou pensativo.
- Sabe lá! você? – falou. Às vezes um conselho como o meu não atrapalha, sempre me falaram que eu tenho
faro. Eu neste país já estou servindo há muito tempo, conheço eles como camundongos Eu te direi uma coisa.
- Então fale! – pediu Szulubin, suspirando.
- Uma coisa é certa: ou ele esconde-se aqui, na tua
comarca, ou foi mais longe procurar asilo, e só poderia ser
nos pântanos do Polesie; é uma região difícil, inacessível...
lá ele poderá esconder-se.
- O que ele faria lá?
- De início, poderá esconder-se... durante o tempo
tumultuado, porque sabe que aqui nada dura por muito
144
tempo. Depois de alguns meses, vão retirar as sentinelas e o
povo cansará de espreitar. Foge num dia claro. Por outro
lado, onde é mais fácil manipular e convencer, do que entre
os polesianos, gente que não sabe nada deste mundo de
Deus? Eu te falo, se ele está aqui, então está nos pântanos
do Polesie - ponderava Priluka, aconselhando:
- Por que você não dá uma volta no teu distrito?
Assim, por gentileza... Eu não sei como é agora aqui, mas
no meu tempo, quando um funcionário público chegava
nalguma residência, serviam o melhor vinho, aveia para os
cavalos em abundância, e quando se ia embora, levava-se
algum presente. Pouco ou muito, todos davam, para que
não os incomodasse. Você não perderia nada se fizesse esta
viagem, mesmo em estradas barrentas. Para que servem os
cavalos e a carruagem do correio, e a verba para viagens?
Não te custará um tostão e ainda te trará lucros. Quem sabe
se consegues algum rastro ou encontras ele próprio? Leve
gente esperta, que se informe nas casas e vilas: quem chega,
visitas, viajantes, quem mercadeja... se recebem cartas, se
são muitas. A pessoa aprende mais nestas viagens do que
num ano em casa. Leve com você um auxiliar, mas inteligente.
- O conselho não é mau – falou Szulubin – Quem
sabe vou segui-lo, mas quantas carruagens vou quebrar?
- Se isso fosse o maior problema? – respondeu Priluka, rindo, com ar de ganância. Isso é uma bênção de
Deus, quebrar a carruagem, eu consegui assim um belo coche, o qual utilizo até hoje. Quebrou-se uma carroça velha,
puxaram-na até a vila; um velho nobre quis emprestar-me
uma carruagem, eu pedi para que me cedesse, ele foi obrigado a me doar. Depois mandei buscar a velha carroça e
recebi-a de volta, consertada.
O promotor suspirou.
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- Eu estou te falando – continuou Priluka – é só ter
três anos de paz e os nobres reagem, adquirem confiança e
são capazes de denunciar-nos. Acertam-se com os governadores e levantam o nariz para cima. Mas agora todos estão
tremendo! Onde a coragem para denunciar-nos? Agora com
um pouco de inteligência e esperteza vamos conseguir tirarlhes alguma coisa.
- Sim, vamos experimentar – disse, ainda indeciso.
- Meu amigo, vá aos recantos mais impossíveis, às
aldeias mais difíceis de chegar, não repare nas péssimas
estradas e chegue onde jamais esteve, entendeu?
Szulubin estava silencioso, balançou a cabeça, viase que o sábio conselho do amigo era plausível, pensava em
executá-lo. No dia seguinte, em veículo do governo, seguiu
em viagem de inspeção ao redor da sua comarca.
***
Abençoados são esses recantos do país onde, em
certas estações do ano, um funcionário do governo moscovita tem a maior dificuldade em chegar. Eles têm, nomeados por eles, em todas as vilas e aldeias, assessores e inspetores para controlar o povo. Mas, com o passar do tempo,
eles fazem amizades, acertam-se com os habitantes, relaxam e não perturbam. Ainda alguns povoados são tão afastados, protegidos por florestas e pântanos, que mesmo as
mais próximas autoridades dificilmente chegam até eles.
Quem não conhece este país, ainda sujeito a costumes antigos, afastado da civilização, mas felizes no seu
isolamento? Porque sente-se protegido do contínuo contato
com a praga russa, aves de rapina, que só pensam em extorquir indivíduos indefesos.
Matas inacessíveis, clareiras coalhadas de arbustos
de espinhos venenosos, areias movediças, alagados, treme146
dais traiçoeiros, aterros sem pontes, nascentes que transbordam, dunas de areia... grandes extensões desabitadas cercam diversos, às vezes grandes, povoados como cogumelos
negros assentados no meio do areal.
São aldeias cujos habitantes fogem ao ver aproximar-se alguma condução, como seres selvagens. Quem não
tivesse presenciado este fato com os próprios olhos, não
acreditaria. O instinto de conservação vê em cada viajante
um algoz moscovita, e a melhor maneira de defender-se
dele é fugindo. A visão do intransitável Polesie, principalmente no outono, é a mais deprimente do mundo. Negras
florestas de pinheiros, campos barrentos cobertos com vegetação rasteira amarelecida; aqui ou acolá, taquarais beirando lagoas.
Trechos com derrubadas pela metade, capoeiras ainda fumegando com os galhos secos estendidos como fantasmas e, acima, um céu pardo, e um bando de corvos barulhentos. Mas tendo atravessado léguas sem fim num território hostil como esse, melhor dizendo, desertos inabitados...
com surpresa e alegria, recebe-se a visão de uma aldeia ou
habitação muitas vezes até bem confortáveis.
Assim era, pois, a residência em Radziszew, à beira
do Styr, no perdido recanto da região de Polesie, herdade
do conde Anton Zaglowski, secular morada da família; era
extensa a propriedade cuja área abrangia centenas de hectares, mas pouca renda gerava, apenas algum dinheiro da
venda da madeira e de algumas estalagens que possui. A
agricultura não produzia muito, requeria muito investimento e o senhor conde era homem da velha estirpe que
explorava a propriedade, mas tinha por lema nunca devolver nada à terra.
Zaglowski era juiz local, de família nobre, de boa
educação, fino trato, de costumes requintados. Embora não
fosse de idade avançada, as idéias e o caráter eram antigos.
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Estudou em escolas na cidade de Minsk, com os padres
jesuítas, depois foi para Krzemiec, onde estudou por mais
alguns anos. Era patriota fervoroso, alma popular, gostava
de viver, divertir-se e trabalhar quanto menos. Era querido
na comunidade, e a casa dele era famosa pela hospitalidade.
Casado bem jovem ainda, enviuvara cedo, ficandolhe uma filha da querida esposa. Ela e a tia Martyna compunham a sua família. A filha única criou-se no pensionato
em Lwow e um pouco em casa. Anos depois, voltou para a
companhia do pai e era a atração principal de Radziszew.
Krystyna, jovem, bela, educada, gentil, decidida e rica, atraía a atenção dos jovens da região e pretendentes de Dubno.
Vestiam fraques e camisas novas e chegavam às dezenas
para a herdade.
A casa estava cheia de visitas, sem contar os residentes, porque o generoso conde Zaglowski não dispensava
companhia - e agora a mocidade enchia a casa. Vivia-se ali
não luxuosamente, mas com qualidade, muita alegria e muito pouca cerimônia. Na verdade, a jovem Krystyna estava
muito acima daquilo que a rodeava – não excluindo o pai mas era obrigada a conviver no mundo onde reinava absoluta.
Devia à sua cidade Radziszew a construção da nova
e bela residência, a decoração interna, a entrada de jornais e
livros, do piano e música, dos jardins em volta da casa e o
pomar plantado perto da fileira de plátanos e milhares de
outras benfeitorias úteis.
Krystyna tinha o gosto apurado dos ricos, dos bem
nascidos, o caráter um tanto romântico ao qual devia o seu
constante envolvimento com leitura e pensamentos nostálgicos, talvez isso resultasse da sua situação de órfã, morando longe de casa, mas também era sua inclinação pessoal, a melancolia.
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Era jovem e bela, não possuía feições clássicas, mas
frescura, vivacidade no olhar e fisionomia de traços nobres,
a testa e os olhos, acima de tudo, enfeitavam aquela face.
Sempre pronta para brincadeiras, de repente ficava
pensativa, melancólica. Se nos seus sonhos de donzela sonhara com um herói para si, não sabemos, mas que levava
na brincadeira os moços que a cortejavam, era bem visível.
E os cavalheiros que a cortejavam iam embora ofendidos.
Para uns era muito sofisticada, para outros muito filósofa.
Cada um ficava assustado e fugia.
A condessa não se preocupava com isso. Sabia que,
quando quisesse, casaria com qual ela escolhesse, por enquanto não se apressava, apenas sonhava. A tia, religiosa,
boa administradora do lar, amava a sobrinha. Secava as
frutas, fazia doces, assava pães e orava. Não interferia nas
decisões do coração da sobrinha.
O pai também aprovava a lentidão da filha na escolha. Era para ele mais alegria na casa, e sentia na alma que
Krystyna merecia algo melhor do que até então se apresentara. A residência deles estava sempre aberta, e mesmo sendo distante, nunca faltava hóspede.
O juiz Zaglowski tinha o costume de não despachar
uns até ter certeza da chegada de outros hóspedes. E também nesta manhã, não estavam vazios os salões em Radziszew. Hospedavam-se, além dos residentes, o senhor Jan
Filkowski, da comarca de Dubno, o senhor Karol
Karczynski, da comarca de Kowno, e o senhor Féliks Adamski, também da comarca de Dubno.
Os dois primeiros eram velhos amigos e conhecidos
do conde, gente da sua idade, freqüentadores assíduos de
Radziszew. Filkowski era fervoroso patriota e político, não
houve, em dezenas de anos, uma só insurreição à qual não
pertencesse ou da qual não estivesse informado.
149
Passava incólume em todas elas, como por milagre.
Karczynski, apesar de jogar cartas com maestria, comer
bem e contar alegres anedotas, mesmo já conhecidas, não
tinha nada de singular.
O senhor Féliks Adamski, que veio na companhia
de Filkowski, dizia ser seu vizinho, estava pela primeira vez
hospedando-se em Radziszew. Pelo seu aspecto podia-se
julgar que viera pela notícia sobre os encantos de Krystyna,
e não sem propósito. Pessoa jovem, muito simpático, de
educação primorosa, gentil, bem informado, gostava de
música e logo caiu nas graças da jovem. A sua feição tinha
algo de triste e sério, olhos negros fogosos, denotavam
bondade e sensibilidade. Sorria pouco...
Estava de luto, disse ter perdido o pai recentemente,
o que justificava a sua tristeza, mas nada lhe dava o direito
de ser indiferente aos encantos da formosa condessa, a qual
evitava. Parecia de propósito, e quanto mais ela o procurava, mais ele se afastava de uma amizade mais íntima, até
com desconfiança. Esse estranho procedimento intrigava
Krystyna, pois o jovem cavalheiro tinha muito mais classe
e, por isso, estava acima de todos que ela conhecia e recepcionava. Gostou dele.
Filha única, acostumada a ser obedecida, não deu
folga ao Adamski, o que levou-o à desistência no terceiro
dia. Assim, passaram a tarde toda em conversa amena. Já
fazia três dias que Féliks hospedava-se em Radziszew.
No quarto dia, de manhã chuvosa, entrou no dormitório de Adamski, do lado do alpendre, o amigo dele, Filkowski, que dormia num quarto separado, de duas camas,
com Karczynski.
- Escute senhor... como posso chamá-lo?
- Como quiser, só não pelo meu nome.
- Então te chamo de Krystyno, porque ontem...
-Tenha piedade! Não brinque comigo - pediu Féliks.
150
- Não é disso que vim falar, aqui entre as paredes –
acrescentou Filkowski, sentando na cama. Ouvi que o promotor Szulubin está no distrito, e o judeu de Kolko avisou
por um homem que ele pernoitou lá e vai chegar aqui na
hora do almoço. O que você acha disso? Adamski de Dubno, terá coragem de aparecer?
Andrzej Wasilewski tremeu e ficou pálido.
-Ah, seria muito fácil, se essa pessoa não me conhecesse pessoalmente e não fosse meu inimigo mortal. Razões
antigas, particulares.
Filkowski pulou da cama.
- Não tem o que pensar – encilhar os cavalos e ir
embora.
- Ficará sabendo que aqui esteve alguém e fugiu.
- O que saberá? Era Filkowski e Adamski, dois amigos.
- Podemos ir embora, ou podemos não ir, mas uma
coisa é certa, ele não poderá me ver, e se me enxergar estou
perdido. Se for só eu não é nada - mas todos irão presos
comigo – comentou Adamski.
Fikowski olhou o relógio, eram dez horas passadas.
- Por Deus - falou - viajar seria o mais certo, mas
pense, essa besta saiu de Kolko de manhã, está no aterro de
Radziszew com certeza, nós precisaremos passar por lá
porque não tem outra saída desta fortaleza. Encontraremos
ele no caminho. Poderá nos segurar, averiguar... são esses
tempos...
- Se é assim, devo ficar – falou Adamski – mas não
posso aparecer a ele, seria o meu fim.
- Falaremos tudo ao proprietário?
- Que Deus nos guarde! Íamos assustá-lo sem precisão. Eu vou ficar doente e ficarei de cama o dia todo. É...
assim farei...
151
- Mas essas pessoas tão atenciosas, hospitaleiras,
preocupadas, não vão cometer alguma infantilidade? Perguntar por você?
- Aconteça o que acontecer, não tem outro jeito respondeu Féliks. Vá agora, avise que estou com febre, dor
de cabeça, o que quiser... e que preciso descansar na cama.
Filkowski preocupou-se.
- Muito bem – falou - mas se esse infame pensar um
pouco e quiser revistar a casa?
- Então... eu dou um jeito – respondeu firme Adamski - fiquem tranqüilos. Recebam-no, dêem-lhe de beber,
hospedem-no, mas não o convidem para o pernoite. Não
deixe os donos desconfiarem do que está acontecendo... e o
resto deixemos por conta de Deus. É, assim deve ser - concluiu. Com a partida do promotor, dentro de meia hora
também não estarei mais aqui.
Estavam comentando o ocorrido, quando ao longe
ouviu-se o tilintar assustador dos guizos da carruagem do
funcionário público, ao cujo som tremem todos os aldeões.
No longo aterro barrento que levava à mansão, já se vislumbravam os quatro cavalos, puxando a carruagem do
coronel Szulubin. Adamski jogou-se na cama, enrolou-se
no cobertor e mandou fechar a porta.
Filkowski foi ao salão de festas informar sobre a indisposição do hóspede. O honorável juiz Zaglowski andava
pelo salão preocupado, como sempre, quando tinha que
receber um policial ou um funcionário público.
- Que o diabo o carregue! – murmurava – daria-lhe
de bem grado 50 rublos, tanto que desviasse minha casa,
assim como também Radziszew.
- Ele não ficará aqui para sempre – disse Filkowski
– e ainda o Adamski vai nos faltar com a sua companhia
porque está de cama, doente, com uma terrível enxaqueca.
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Sofre tanto que não consegue falar nem comer, e não suporta ver gente.
- Ainda isso, e eu que contava com ele para que o
distraísse... verdadeira desgraça! – reclamou o hospedeiro precisa ver... é o Szulubin... inimigo do nosso povo, cobiçoso... prevaricador... é o diabo em pessoa... e na sua presença somos obrigados a demonstrar submissão, enquanto
nossa vontade é mandar para o inferno ele e seu governo.
- Calma! Providencie 50 rublos e mande servir o antepasto e o desjejum, quem sabe se desiste do almoço.
- Mas sim! É um dia chuvoso, não vai querer enfrentar o barro. Eu tenho medo que peça o pernoite. Onde
vou acomodá-lo? Castigo de Deus!
Enquanto o anfitrião se lamentava no salão, o sininho maldito aproximava-se, tilintava, fazia barulho... cada
vez mais alto, mais sinistro, até que apareceram duas parelhas de cavalos, soltando fumaça pelas ventas, e estacaram
em frente ao portão de entrada.
Na companhia do promotor Szulubin vinha o secretário Nikodem Formitch e o ajudante, Wacek Koncewicz, o
mesmo cocheiro que estacionava a carruagem em frente da
delegacia de polícia em Berestecko, quando se iniciava o
primeiro ato deste drama.
***
Não há mais deprimente cena do que a obrigação de
um anfitrião receber um hóspede indesejável, odiado... e
pelo qual é obrigado a demonstrar respeito.
O nobre Zaglowski foi ao seu encontro obrigando-se
a sorrir. Com o rosto alegre, cumprimentou Szulubin, garantindo-lhe que estava muito aborrecido por ter decorrido
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tanto tempo sem ter voltado a ver tão distinto personagem.
Mas na verdade amaldiçoava este momento.
- Cavalos para o estábulo! – gritou para o serviçal.
Abraçaram-se amistosamente, e o coronel, em traje
de viagem, entrou para o salão. Ali já o esperava Filkowski
e Karczynski e, para compensar, o capitão Strzeyzoga, residente na mansão; antigo soldado napoleônico, com o rosto
marcado por cicatrizes e medalha de honra no uniforme.
Pode-se saber que impressão lhe deu um oficial moscovita,
basta lembrar que ele esteve no incêndio de Moscou, em
Smolensk e Borodino, em 1812.
Szulubin, com o olhar rápido, vasculhou o ambiente,
como se procurasse alguém, olhou para os cantos, parecia
contar... cumprimentou amavelmente, mas frio, e sentou,
não o deixaram descansar muito. Vestido num uniforme
cinza, novo, com botões brancos, imaculadamente limpo,
levantou a taça para o vinho... e o anfitrião já estava com a
garrafa desarrolhada.
O promotor investigou com o olhar o senhor Jan
Filkowski, Karol Karczynski e o capitão Strzeyzoga, mas
procurava alguém com o olhar. Estava tão visível, que o
Filkowski teve que espirrar, para disfarçar o rubor da face.
- O senhor é de Kowno? - perguntou a Karczynski.
- Sou sim, senhor coronel.
- E os senhores viajam assim, de distrito a distrito,
livremente? Hein? E agora de novo temos sublevação, sentinelas, diligências, patrulhas para todo o lado... sem passaporte pode-se passar humilhação e às vezes pode-se ser
preso, confundido com outra pessoa.
- Mas como?, senhor promotor – respondeu Karczynski, melindrado – eu, senhor, sou conhecido duzentas
werstas em volta e também tenho esse santo costume que
nunca saio de casa sem o decreto do czar no bolso... isso
substitui o passaporte, naturalmente?
154
- É claro - respondeu o promotor, medindo-o com
olhar severo – mas sempre o passaporte é melhor.
- Digníssimo coronel – comentou Karczynski – eu
lhe digo uma coisa, quem viaja sem passaporte, esse tem a
consciência limpa, e o velhaco e desordeiro, sempre está
prevenido, com os papéis em ordem.
O coronel sorriu, voltando-se para Filkowski, que os
estava ouvindo.
- E o senhor viaja também com o decreto?
- Não, eu viajo sem o decreto e sem passaporte, o
distrito é próximo, todos me conhecem, o nosso conselho
distrital se encarrega de nos munir de avisos e solicitações.
Acho que no bolso sempre haverá um papel do governo
endereçado a mim que provará a minha identidade.
- Vejo que os senhores não sabem o que acontece no
país – comentou Szulubin.
- O que pode estar acontecendo?
- Descobriram nova conspiração contra o governo,
temos muita preocupação, o país esta coalhado de emissários... e nós... - não terminou a frase quando entrou Krystyna, que ouviu tudo, volveu o olhar pelo salão e não encontrando Adamski, algo doeu no seu coração.
Toda trêmula, cumprimentou o promotor, que ficou
fascinado com a beleza da moça, emudeceu. Tornou-se
gentil e mais humano. Szulubin tinha a fama de mulherengo, havia nele uma fraqueza pela beleza feminina e já
sofreu muito na vida, deixando-se envolver pelos belos olhos das moças polonesas, que lhe devolviam apenas o desprezo explícito.
A senhorita Krystyna exerceu sobre ele um fascínio
invulgar.Tornou-se bondoso, parou de falar, olhava-a como
que para um arco-íris. Ela olhava para a porta com insistência, como que esperando alguém. Filkowski supôs ou adi-
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vinhou que ela poderia perguntar por Adamski, e com terror
mortal, tentava tirá-la dali, por qualquer motivo.
Neste ínterim, Szulubin começou a conversar com a
jovem num corretíssimo idioma francês. Surpresa com a
sua cultura, a moça respondia gentilmente, mas a indiscutível aversão que sentia pelos russos não deixava lado para
entabular melhor a conversação.
Grande fisionomista, o promotor, mesmo envolvido
com o desjejum e a conversa, vislumbrou expressa na fisionomia de Filkowski alguma preocupação, e na face da moça, alguma expectativa, espera e surpresa. Não tirava os
olhos e a atenção sobre eles.
Diversas vezes, Filkowski quis dar um sinal a
Krystyna, mas encontrava o olhar atento de Szulubin, e
resolveu deixar o caso para o destino resolver. Apesar do
controle que tinha sobre si, a sua feição traía a inquietação
que lhe devorava a alma. O semblante da jovem denotava
preocupação cada vez mais visível. Diversas vezes tentou
falar, mas Filkowski interrompia.
O anfitrião, descuidado, entregou...
- Quem sabe podíamos mandar algo para o senhor
Adamski, que não pode comparecer.
- O que ele tem? – interrompeu vivamente a filha.
- Desde ontem, está com esta terrível enxaqueca e
sofre muita dor – ajudou Filkowski – não precisa de nada,
só descansar em paz, enquanto o mal não passa.
O promotor ficou alerta.
- Na verdade, em casa do senhor conde sempre tem
profusão de hóspedes – informou Karczynki.
- Esse hóspede é vizinho do Pan Filkowski – respondeu o anfitrião. Adamski é do distrito de Dubno.
- Adamski! - acrescentou o promotor - tem diversos,
conheço alguns... é o Ludwik ou o Heronim?
- Não...Féliks,Féliks – respondeu rápido Filkowski.
156
- Irmão do Ludwik?
Filkowski, interrogado com precisão, não estava
preparado, falseava as respostas, misturava, mas consertou
tudo com uma boa risada.
- Nem irmão, nem primo, ele é de outros Adamski respondeu meneando com os ombros.Tem perto de mim
parte da aldeia de Paminkowo. Serviu no exército russo.
Szulubin parecia mais tranqüilo, mudou de conversa. Filkowski comia o presunto tão vorazmente como se
não tivesse comido nada por uma semana. No ínterim da
conversa sobre Adamski, Krystyna ficou pálida de repente.
Por sorte, o promotor pensou consigo:“Se fosse alguém suspeito, o proprietário não o teria denunciado”.
Após o desjejum, o que fazer? Szulubin nem pensava em ir embora. Foi colocada uma mesa para o jogo de
cartas. Sentaram-se: o promotor, o anfitrião, Filkowski e
Karczynski, mas um foi saindo, o adepto de Napoleão depois da refeição foi direto para a oficina.
A jovem passeava pelo salão, seguida pelo olhar de
lobo do promotor. O oficial moscovita e seu uniforme eram
para ela detestáveis; não diremos nada sobre o ar de adoração que lia nos olhos dele, que a envaidecia, mas mesmo
assim, a aborrecia.
Ao mesmo tempo, a três passos dali, atrás da parede,
enrolado no cobertor, deitado na cama, estava Wasilewski,
segurando numa mão um pacote de papéis e noutra um revólver, que nunca deixava longe de si.
Apesar da coragem, um suor frio escorria-lhe pela
face. Ao ouvir a conversa do secretário Nikodem Formitch
e do cocheiro Wacek, os dois discutindo na língua russa,
que exercia sobre os poloneses a sensação do som de ferros... degredo...e rumor de forca.
Com diversas desculpas, o promotor, por muitas vezes, afastava-se do jogo. Até uma vez, por engano, abriu a
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porta do quarto, deixada sem chave, no qual descansava o
fugitivo, mas afastou-se rapidamente.
A janela semifechada não deixava perceber nada.
Mas essa procura atrás de saída podia ser proposital. Sorte
que Filkowski estava sentado à mesa de jogo e o promotor
não reparou nele, senão ia desconfiar da palidez repentina,
assim como Krystyna já desconfiava.
Tinha ela já uma vaga percepção e a impressão de
que o novo hóspede não era esse pelo qual se apresentava.
Alertou-a o fato de que, ao saber da chegada do promotor,
adoeceu. A imaginação e a lembrança sobre os emissários
fizeram o resto. Todo o drama desenhou-se no seu cérebro.
O coração batia forte. Queria partilhar o problema... estava
intranqüila... e sonhava.
No entanto, a entrada do coronel no quarto, que foi
reconhecido pelo emissário, mesmo pelo canto do cobertor,
encheu-o de terror, não por ele, mas pelos papéis que levava. Estava decidido atirar e depois matar-se, mas o que
fazer com os papéis? Não queria destruí-los, não queria e
não podia.
Szulubin podia reconhecê-lo, podia desconfiar, e
tendo maior certeza, fingir despreocupação até a chegada
dos gendarmes. Essa idéia, cada vez mais, fixava-se no
pensamento do infeliz, pois, Szulubin, tendo saído pela segunda vez, falava baixo com o secretário Formitch e mandou-o não se sabe para onde. Andrzej estava quase certo
que não sairia inteiro, mas e os papéis?
Pela sua vida não temia, só pela realização do que se
propôs, que era para ele uma obrigação santificada. Tremeu... resolvia em quem poderia confiar.
Filkowski era homem honesto, mas fraco, perdia o
controle, principalmente nos casos em que mais precisava;
o conde, conhecia-o pouco; os olhos da filha brilhavam em
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sua frente, e a sua pessoa, com insistência impunha-se a ele.
O coração falava:
- Ou a ela, ou a ninguém... O cérebro respondia: Mulher. A intuição dizia: - Polonesa e heroína.
- A ela ou a ninguém!- reforçou Andrzej – mas, onde? Como? De que maneira?
Entretanto, as horas corriam e o perigo aproximavase. O quarto onde estava deitado tinha uma só porta para a
ante-sala, a outra estava fechada com chave e encostada
com cômoda, separando-a do dormitório da tia e da sobrinha, entre os dois quartos havia um pequeno corredor.
Andrzej começou trancando a porta da ante-sala.
Levantou da cama em silêncio, chegou perto da porta fechada à chave, encostou o ouvido e escutou. O coração
batia descompassado e a fronte latejava. Ouviu abrir-se a
porta do salão e o frufru do vestido... encheu-se de coragem
e bateu devagarinho.
Os passos pararam. Silêncio. E se fosse a tia?
Bateu levemente outra vez. Novamente o frufru do
vestido anunciou que alguém chegava perto da cômoda.
- Senhorita Krystyna - sussurrou o fugitivo, pelo
amor de Deus! Ouve-me!
O silêncio foi imediato e não soube por que razão os
passos distanciaram-se, a jovem cantarolava a meia voz.
Deduziu que foi por causa da batida da porta do salão, ao fechar-se, pois estava apenas encostada. O promotor
estava sentado a dois passos no salão, jogando baralho. Minutos depois batiam levemente na porta do outro lado, no
corredor.
- Estou ouvindo - sussurrou a voz.
- Não pergunte, senhora; não fique surpresa, mas,
por amor à nossa pátria polonesa... por meio minuto preciso
falar-lhe, não temos tempo a perder.
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- Abra a porta, a chave está na fechadura - respondeu baixinho.
Krystyna continuou a cantarolar.
Andrzej, procurando não fazer barulho, abriu a porta com facilidade. Atrás da cômoda estava a moça, pálida,
tremendo.
- Por amor à Polônia, pegue esses papéis senhora,
guarde-os, ou eu, peço-os de volta, ou, achará indicação a
quem entregar.
A moça estendeu o braço corajosa, com a face rubra,
pegou o pacote, só meneou a cabeça, não podia falar. A
porta fechou-se imediatamente. A chave girou.
Andrzej estava novamente enrolado no cobertor, encolhido na cama, com febre alta... segurava o revólver firmemente. Aos poucos o seu semblante foi adquirindo tranqüilidade. Suspirava, sabia com certeza que a jovem polonesa antes seria capaz de morrer do que trair a pátria.
Precisamente a uma hora foi servido o almoço. Szulubin nem cogitava em ir embora, mas para um funcionário
público graduado, não demonstrava mau-humor. Informava-se das vizinhanças, das estradas, reclamava das
obrigações pesadas e incômodas e com palavreado francês
distraía a filha do conde Zaglowski.
Filkowski, contrariado, observava a gentil senhorita,
que ao almoço estava muito atenciosa com o moscovita, até
sorria amavelmente, parecia divertir-se com a sua conversa.
O pai também estava surpreso, deveras, conhecendo
a sua impressão acerca dos russos.
Mas – pensou Filkowski – nem o diabo conhece as
mulheres, mulher é mulher, seduz até os inimigos. Enquanto ao almoço o anfitrião, não regateando vinho, enchia
a taça do promotor, o infeliz Andrzej sofria embaixo do
cobertor. Faminto, sequioso e inquieto.
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A entrega dos papéis tranqüilizou-o um pouco; a
febre que o consumia desde de manhã, não cedeu. Não estava preocupado consigo mesmo, ouviu os comensais afastando-se da mesa, certificou-se de que o promotor continuava na sala de jantar e, esquecendo o perigo iminente, desejou tomar um copo de água, estava sedento. Conhecia um
pouco da casa para arriscar-se esgueirando-se até a cozinha.
Inseguro no início, venceu o arrojo jovem, levantou-se da
cama, abriu a porta, olhou em volta e dirigiu-se à cozinha.
Não demorou muito, o criado serviu-lhe um copo de
água fresca, mas este instante foi crucial para que Wacek, o
cocheiro, o enxergasse e o reconhecesse, pois tempos atrás
ele o tinha visto, quando esperava o promotor em Berestecko, em frente da delegacia.
Por sorte, era uma criatura muito discreta e de inteligência limitada. Passadas algumas horas após o almoço, o
anfitrião discretamente recheou a mão do promotor com
uma nota de cinqüenta rublos, e este, feliz, finalmente retirou-se de Radziszew.
Ouvindo a carruagem distanciar-se do alpendre, Andrzej respirou profundamente, sentia que a enxaqueca ia
melhorar e ficaria livre do cativeiro que o molestava. Minutos após a partida do promotor, entrou Filkowski, com ar
de triunfo, mas com sinais da batalha que travou, a face
muito cansada.
- Agora - disse - podes levantar, vestir-se, diremos
que a enxaqueca passou e que estás faminto. Vais alimentar-se, não despertando desconfiança nenhuma. Será que o
conde deve saber algo sobre você?
Andrzej sorriu, pensou consigo que já alguém mais,
não só ele, sabia neste minuto acerca dele... e preocupavase com seu destino. Quis sair, resgatar os papéis com a
maior urgência, agradecer à Krystyna, conversar em segredo, jurar silêncio, explicar-se.
161
Começou a vestir-se apressado.
- Mande encilhar os cavalos - pediu a Filkowski –
seja por isso ou aquilo, o mais seguro é ir embora daqui.
- Mas por quê? - respondeu Filkowski – para baterse nessas estradas lamacentas do Polesie, de noite, não se
sabe por quê? Tenha pena, agora, parte alguma no mundo
será mais segura do que aqui. Szulubin esteve aqui, revistou-nos e foi embora. Estás aqui como na casa de Deus atrás do forno, e na estrada pode o diabo mandá-lo para os
nossos pescoços.
- É verdade. Mas eu estaria mais seguro, em outro
lugar, preciso ir embora já.
-Vamos embora amanhã ao alvorecer - sugeriu o
amigo Filkowski.
Andrzej não quis contrariá-lo, mas a consciência
mandava-o ir embora daquela casa acolhedora, para não
lhes trazer aborrecimento. Agora, essa linda e heróica jovem tinha para ele um encanto especial, almejava aproximar-se dela, pelo menos com o olhar mais longo, e despedir-se dela para sempre.
Ao cair da tarde, Andrzej, completamente restabelecido, apareceu de repente no salão. O solícito anfitrião não
desconfiou de nada. Serviram chá, reuniram-se para um
jogo em três, junto com o capitão Strzeyzoga; Andrzej, agradecendo a atenção, desculpava-se, devia explicar-se perante Krystyna.
Desde a entrada do moço no salão, os olhos da filha
do proprietário não se desviavam dele, os lábios sorriam.
Um olhar mais atento notaria a vivacidade e a luz singular
que se irradiavam da fisionomia da jovem, lampejos que só
os enamorados transmitem. Parecia esperar ansiosa que ele
se aproximasse.
162
Andrzej, não querendo chamar atenção, ficava em
volta da mesa do jogo, brincava com a tia e, finalmente,
dirigiu a palavra à moça e os dois saíram caminhando.
- Não sei como poderei pedir desculpas à senhorita falou indeciso - perdoe-me a coragem, não era por mim,
mas por centenas de pessoas. Acima da minha vida está o
destino de uma causa nobre... da pátria.
- Devo entregar-lhe os papéis? – indagou Krystyna.
- Se a senhorita os traz consigo!
- Peguei-os depois da partida do coronel.
- Não me fale nada, não se explique, eu que devo
agradecer pela confiança, não imaginas, senhor, como é
gratificante para uma de nós, frágeis criaturas, realizar, pelo
menos, uma pequena parcela desse trabalho tão importante.
Estou orgulhosa porque pude colaborar, pelo menos por
instantes, para sua tranqüilidade.Seria indiscrição se aproveitasse a dolorosa ocasião, e lhe perguntasse... só uma coisa... és aquela pessoa por qual foste apresentado?, ou algum personagem misterioso?...
- Devo à senhora toda a verdade – disse Andrzej.
Fui mandado para o desterro em 1828, exatamente dois
anos atrás. Possuo passaporte falso, no meu país preciso
viver escondido, porque fui julgado e condenado a morrer
na Sibéria. Sou aquela criatura perseguida, caçada, que
chamam de emissário.
Krystyna dobrou as mãos em oração. Empalideceu.
- Condenado à morte?- sussurou, desconsolada.
- Não terei segredos para a senhora - acrescentou ele
com veemência - Szulubin conhece-me pessoalmente, odeia-me, já há muitos anos. Interessou-se pela minha irmã
Anielka, quis cortejá-la, mas nós não aprovamos o seu propósito. Quer vingar-se. Por isso me persegue.
- Oh! Meu Deus! O senhor aparenta ser tão jovem e
já passou por tantos dissabores...
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- E tanta miséria! - acrescentou Andrzej - e tanto sofrimento, poucos dias antes, arriscando a vida, embrenheime por esta região, esgueirando-me como lobo, onde todos
me conhecem, onde a cada minuto podem me cassar, para
poder abraçar mais uma vez o meu velho pai, e tive a sorte
de receber dele a benção paternal, junto com seu último
suspiro, pois expirou nos meus braços.
Lágrimas brilharam nos olhos de ambos.
Num gesto involuntário, sua mão trêmula pegou a
mão do jovem deportado e apertou-a com efusão e sentimento, maiores do que seria a solicitude de irmã.
Silenciaram por um momento.
A conversa voltou saudosa, amorosa, como as coisas
que amalgamam, levam, idealizam por momentos a vida
das pessoas. Fato estranho que esta hora, passada em confiantes murmúrios, uniu-os tanto, amarrou-os como se fossem há anos muito mais do que irmão e irmã.
Pobre Andrzej, que se defendia de qualquer sentimento que pudesse enfraquecê-lo, colocar-lhe grilhões, incutir-lhe novas obrigações, nem percebeu quando foi envolvido pela meiguice da jovem, perdeu a liberdade. Esta
hora que passaram juntos decidiu as suas vidas e seus destinos, mas tinha algo tão tristonho nesse amor que nascia,
como núpcias à beira do túmulo! Jamais tinham vivido
momentos tão desesperançados, mas no entanto tão felizes,
juntos.
***
Entre muitas diferenças dos exemplares desse ser
que chamam de homem, encontram-se tipos tão interessantes e singulares que os mais minuciosos e confiáveis estudos classificariam como violetas, não comparando, pois que
crescem debaixo do capim...
164
Ninguém jamais desconfiaria que Wacek, ordenança
do coronel Szulubin, seu cocheiro oportunamente e serviçal
para toda a obra, pertencesse a esse exemplar raro e original. Mas é isso o que acontecia realmente. Era natural da
província de Smolensk, soldado da reserva (quando servia,
ocupava-se da costura e conserto de botas dos soldados),
era um homem excepcional, honesto, atencioso, quieto,
paciente e pacífico, mas, acima de tudo, teimoso sem igual,
chegando às raias da imbecilidade.
Se não era interrogado, não falava nunca, não tinha
coragem para iniciar a conversa, mas, uma vez interpelado,
não tinha limites, tornava-se audacioso, cantava até, se lhe
mandassem. Era sempre tão feliz, contente com tudo, que
deixá-lo nervoso ou triste era quase impossível.
Além disso tudo, Wacek era obediente sem reservas.
Estava naturalmente convencido de que os atos que praticava sob as ordens de outros, não era por eles responsável,
nem perante Deus e nem perante as pessoas. Se o seu patrão mandasse roubar, matar, praticar crimes, ele o faria.
Tinha bom coração, mas acostumado à obediência, muitas
vezes açoitou culpados entregues às suas mãos sem piedade, mesmo que depois lamentasse, curasse-os e os consolasse.
Era homem desse caráter. Espelhava o produto da
civilização moscovita, e não era o pior, existem muitos e
mais tenebrosos.Wacek tinha sentimentos, mas não os distribuía facilmente, guardava-os em suspenso, mas quando
podia, dividia-os fraternalmente. A fisionomia do honesto
ordenança era o espelho da sua alma, o rosto pálido, largo,
de maçãs proeminentes, olhos pequenos, cinza, às vezes
brilhando com sorriso, lábios grossos carnudos, nariz arrebitado escondendo-se no meio da face.
Não era bonito, mas tinha nele algo de meiguice, e
diversas mulheres amavam-no. Nunca se casou; mesmo
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sendo um tanto romântico, ficou solteiro. O serviçal gostava de wodka, mas bebia moderadamente, nunca abusava,
só até pequena tontura. O coche do promotor rodava pela
estrada lamacenta, caía nas panelas enormes feitas pela enxurrada, atolava uma das rodas e ficava prestes a virar, e
seguia pelas areias encharcadas.
Szulubin assobiava.
Caía a tarde, e graças aos cavalos velozes, já haviam
se distanciado duas léguas de Radziszew.
- E daí, Wacek – indagou o promotor, depois de
muitas horas de viagem silenciosa – trataram bem você na
herdade? Hein?
- Ah, sim... bem...posso dizer... senhor promotor..
deram-me wodka à vontade, deixaram-me uma garrafa
cheia, uma tigela de carne... bolo... Peço desculpas, mas é
bom viajar pela comarca! Parte alguma somos tão bem tratados como na casa dos cidadãos...
O promotor riu.
- Nem o judeu na hospedaria é tão mesquinho, mas
judeu é judeu. Servem o peixe ou pão com manteiga, cozinham mais ou menos.
- Você gosta de comer? – perguntou Dzuwala.
- Quem, meu caro coronel, não gosta de comer, a
gente já foi criado por Deus para isso.
- Só para isso? – perguntou o coronel.
- Ah, sim! Precisa beber também! Não tem outro jeito – disseWacek.
- E daí? O que mais?
- É, também dormir.
- E nada mais?
- Mas, o que falar, senhor coronel!... Eu não sei nada... só sei que a mais inteligente pessoa, se sentir fome fica
idiota. O promotor ria, estava se divertindo com a ignorância do cocheiro.
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- O que você viu de interessante na mansão?
- Ah! Bá! – respondeu Wacek – a residência ao que
parece é suntuosa, esconde senhoritas tão belas, que na cidade é difícil encontrar igual.
- Você andou namorando?
- Deus me livre! Para um moscovita, mesmo que
viaje na companhia do promotor, nenhuma vai olhar... e
como falar com elas?
- Viu muita gente lá?
- Muita.
Wacek parou. De repente, lembrou:
- Mas sabe, senhor coronel, o que eu vi lá de interessante?
- O quê? – perguntou o coronel, estava se divertindo
com a conversa.
- Pois, não sei se o senhor se lembra, quando estivemos no comissariado de polícia, em Berestecko, que eu
fiquei no coche em frente da repartição... que veio lá um
dito alemão com passaporte... depois procuraram-no com
insistência... naquela ocasião eu vi o alemão muito bem.
- E o que mais?
- E agora eu o vi de novo, em Radziszew, quando os
senhores almoçavam, ele veio à cozinha beber água.
- Mas como? Tem certeza? – gritou Szulubin.
- Mas, senhor coronel, quando eu vejo alguém uma
vez na vida, não o esqueço até a morte, tenho essa natureza
observadora.
- Tens certeza?
- Estou falando.
O promotor, como se um raio o atingisse, levantou
de repente na carruagem, ficou rubro e chamou o cocheiro
com voz trovejante, que até a carruagem tremeu:
- Pare!
Os cavalos estacaram.
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O coronel estava tremendo, não sabia o que fazer. Já
estava escurecendo. De repente, despejou a sua ira.
- Idiota! Burro! Irresponsável! – berrou – por que
não avisou imediatamente lá no lugar, assim que o viu? E
não me deu sinal?
Wacek Koncewicz estalou os olhos, levantou o braço, estava perplexo.
- Por acaso o senhor coronel mandou eu falar?
- Mas, cabeça sem miolo, sabias que estávamos procurando esta pessoa, que a polícia estava no seu encalço,
sabias que ele não foi almoçar conosco, que se escondia,
como pôde ser tão burro e não me avisar imediatamente?
- Olhe, senhor coronel, quem podia saber que este
homem era tão importante? Pensei comigo, isso é brincadeira, lá procuravam ele com velas, e ele aqui estava junto
conosco. Mas, o que eu tenho com isto? Pensei comigo: “O
comissário Rassim buscava ele, e o que nós temos com as
artes da policia?”.
Szulubin já não escutava, o coche estava parado;
deu um murro terrível no pescoço do ordenança e este caiu
no assento.
- Agora ele foge – gritou, possesso - mas não, não,
está contando com a sorte, desgraçado, vai dormir tranqüilo, pego ele na cama, tirem os guizos dos cavalos - acrescentou – volte. Na próxima propriedade trocaremos os
cavalos e, voltaremos a Radziszew.
***
Era meia-noite.
Na residência em Radziszew todos dormiam o sono
dos justos e cansados. Sonhador e feliz, embalado com sentimentos amorosos de juventude, desconhecidos há muito
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tempo, o pobre desterrado adormeceu também. O cansaço e
os acontecimentos do dia dominaram-no, assim, caiu num
sono profundo e paralisante, que tira as forças e os movimentos.
Acostumado a estar alerta, acordar ao mínimo barulho, Andrzej dormia desmaiado. Os lábios sorriam em
sonhos celestiais.
Na herdade todos dormiam, só uma pessoa intranqüila, sem sono, caminhava pelo quarto pensando, sorrindo,
fazendo planos para o futuro, o coração batia feliz, mas um
pressentimento estranho, um terror, apossava-se dela, não a
deixando sequer pensar em dormir. Krystyna caminhava,
parava, sorria para si, lembrava a conversa, repetia as suas
palavras, e sentia-se muito feliz, mas imensamente apavorada.
Ele era o primeiro amor na sua vida, que despertou
nela tão profundos sentimentos. Via nele um grande herói,
um mártir, e queria elevar a alma até ele, dar a sua oferenda. Em meio a divagações e silêncio total, alguma coisa,
um sussurro ao longe, chegou aos seus ouvidos.
Estacou... o coração disparou, esperava. Sussurros...
um andar dissimulado... uma fala discreta, abafada... parecia que cercavam a casa... diversas vezes ouviu um som
metálico. A moça jogou-se ao chão, apagou a luz.
Num piscar de olhos adivinhou qual era o perigo, e
o seu pensamento voou imediatamente para aquela porta,
que separava o quarto vizinho, onde dormia Andrzej. Com
cuidado, colocou os olhos no vidro da janela, que não estava encoberto, e distinguiu sombras que se deslocavam
disfarçadamente no pátio. Num vislumbre adivinhou que
eram soldados do promoto - captura...
Na ponta dos pés, não perdendo o controle, saiu do
seu quarto. Era sua obrigação salvá-lo da morte iminente.
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Mas, como? – isso ela não sabia ainda, mas estava
pronta a dar a vida por ele... correu para a porta e começou
a bater devagarinho. Por infelicidade, Andrzej, dormia como pedra. Depois de diversas tentativas infrutíferas, batia
cada vez mais rápido, já com medo de estar perdendo o
tempo precioso, e ser ouvida por outros. Sem pensar muito,
correu pelo salão de diversão, saiu na ante-sala, e de lá para
o quarto de Andrzej, ele dormia... puxou-o pelo braço.
Andrzej, aterrorizado, pegou o revólver, mas sentiu
a mão que lhe apertava a boca:
- Não fale... levante... vai embora, não tem um minuto a perder... a casa está cercada...
Ele, como por milagre, voltou a si, vestiu-se rapidamente, silencioso, pegou os papéis e a arma... uma mão
trêmula guiava-o atrás de si.
Atravessaram o salão.
O fugitivo não sabia aonde ia, e o que acontecia.
Krystyna levava-o rápido, voando... No terceiro salão havia, para o caso de roubo, um esconderijo pequeno,
atrás de uma tampa da lareira. Era um local escuro, pequeno, onde ficava a caixa com os documentos importantes
do magistrado Zaglowski.
Em duas palavras Krystyna indicou a entrada, abriu
a portinhola, empurrou-o, fechou com força, e, correndo,
voltou ao seu quarto, jogou-se na cama, cobrindo-se com
cobertor. No mesmo instante batiam na porta principal.
Devagar as pessoas foram acordando, ouviam-se
passos apressados, correndo, gritos, batidas nas portas, e o
som metálico dos sabres, vozes raivosas e discussão... brigas e insultos.
Quanto tempo durou isso, a moça não tinha idéia.
No horror, cada minuto parecia um século. Agora, ao que
parecia, iniciavam minuciosa revista na casa toda.
170
- Não podia fugir! – gritava Szulubin - cerquei a casa toda antes, viva alma não poderia escapar dela, isso não
pode ser, vou revistar, demolir, queimo a mansão, mas acho
ele.
- Mas, senhor coronel – falou o anfitrião – não nego
que o dito Adamski pernoitou aqui. Por que não poderia
fugir se ouvisse antes de nós que cercavam a casa? Não
sabíamos quem ele era, e não nos preocupávamos com ele.
- Não poderia fugir – gritava o promotor, batendo
com o punho na mesa. Eu vou ensinar a todos, vão para as
correntes! Para a Sibéria, revoltosos! Revistem a casa! Os
subterrâneos, a adega...
Abriu-se a porta do recinto que separava o salão do
quarto de Krystyna; ela, voltando a si, ainda teve a habilidade para iludir o promotor, silenciosamente e devagar,
abriu a janela. Zaglowski, felizmente percebeu...
-Veja, senhor - falou ela - aqui está a prova... vê senhor, a janela está aberta... está visível... percebeu a sua
chegada, saiu do seu quarto, onde a janela estava trancada,
e fugiu por aqui, antes que o coronel distribuísse os soldados.
Szulubin estacou, torcendo as mãos.
- Que os raios do inferno o fulminem! – gritou –
Soldados, ao quintal! Façam busca nas casas vizinhas... eu e
o secretário inspeciono a casa.
- Pois, reviste... reviste! – falou, já nervoso, o magistrado – que os raios também fulminem você!
Silencioso, desesperado, por causa da janela aberta,
mas por obrigação do que na esperança de achar alguém, o
coronel puxou a porta do quarto das mulheres.
Dois gritos, da tia e da sobrinha, responderam a esse ataque. O oficial envergonhou-se, olhou, viu as mulheres
na cama... reparou que não havia portas para outros cômodos, e, resmungando, voltou. Revistaram a casa toda.
171
Szulubin mandou que o conduzissem aos subterrâneos e
voltou pálido, enlouquecido pela raiva.
- Estes homens - disse - prendo todos, até que as
coisas se esclareçam, vão comigo, faremos investigação...
se o condenado foge, quem pagará por isso?
Ninguém respondeu a essa pergunta.
- Amarrem Filkowski – acrescentou - ele trouxe-o aqui, sabia o que estava fazendo e quem ele era. Se alguém
rouba ou esconde o culpado, é tão culpado como ele. Sibéria espera Vossa Senhoria.
Filkowski, pálido como um defunto, transtornado,
meio desmaiado, estava parado de cabeça baixa.
O promotor, horas antes, atencioso como convinha a
uma visita, agora virou uma fera. Deliciava-se com o pavor
dos seus presos, com o seu poder, vituperava sobre eles.
Agora ele era o senhor e dono da vida e da morte.
Se alguém quiser analisar a cabeça de uma pessoa,
sua capacidade, sua aptidão, inteligência, observem pelo
método que quiserem, mas a nobreza do caráter nada pode
avaliar melhor do que o comportamento do indivíduo perante os infelizes e os fracos.
Sua crueldade, maldade e prazer em humilhar e
prevalecer-se da autoridade perante os desvalidos, e sua
baixeza e abjeção, ao abordar os mais fortes, são o melhor
indício da nulidade da pessoa. Assim se apresentou o coronel Szulubin em Radziszew, e o seu ódio era ainda maior
pelo fato de o seu maior inimigo conseguir fugir.
É sabido que nos tempos do czar Nicolau I, assim
como de Nicolau II, a lei dizia: “Um cidadão, que der guarida a um proscrito, emissário, emigrante, pessoa suspeita, e
se ele for preso na sua casa, o indivíduo que o esconde responderá, no mesmo grau, como culpado pela transgressão”.
Ainda por cima, esta lei, não isentava ninguem da
obrigação de denunciar perante o governo russo, e a en172
trega do transgressor, mesmo que seja pai, filho, marido ou
irmão. Pai que não denunciava o filho seria castigado em
seu lugar. Criança que não entregasse os pais, era considerada culpada.
Num governo em que foi criada essa ordem execrável na justiça pública, manifestou-se um despotismo ímpar.
Não é de surpreender a desmoralização da nação e a prática
de tantos atos desprezíveis aos quais se permitem os ocupantes desse país. Lá não existe família, o amor não redime,
não existem laços de sangue e nem de gratidão. Reinavam
sim a corrupção, o suborno e a ganância, a prevaricação.
E o czar estava acima de todos.
Nunca num país cristão foram tão renegados os ensinamentos de Cristo. Foram introduzidos no catecismo
ortodoxo russo, a adoração do czar de “Todas As Rússias”.
O coronel Szulubin, que era da geração de Nicolau
I, vivia sob essas determinações. Para ele, Radziszew estava
maculada com a desobediência política, já estava condenada, e os seus habitantes, deste instante em diante, como
presos sentenciados.
Já era dono do já confiscado, no seu pensamento,
castelo e propriedades, só estava separando, o que ficaria
com ele antes do confisco oficial. Deitado no sofá, encostado no espaldar, nem olhava os que estavam a sua volta, e
meio vestidos, os senhores Filkowski, Karczynski e o magistrado Zaglowski. O secretário foi chamado, aguardava
ordens. Após um instante, o promotor se pronunciou:
- Primeiro, amarre Filkowski e leve o elemento até o
cárcere. Entendeu? Retire daqui os cavalos e o coche. Leve
dois soldados como guardiões. Pelo caminho, ele não deve
conversar com ninguém. Pegue o seu dinheiro.... trate-o
com a maior severidade. Dentro de meia hora devem estar a
caminho. Se quiser fugir, mate-o.
Filkowski estava parado, pálido e tremendo.
173
- Senhor coronel - falou com voz fraca – não falarei
nada ao senhor, vou dizer tudo ao comissário de polícia.
O secretário e os gendarmes, parados na porta, pegaram-no e, aos empurrões, levaram-no para fora. Szulubin
olhou para Karczynski, que estava silencioso.
- Gendarme! – chamou. - Você leva em outra condução essa Senhoria, uma hora depois. Eu vou com o proprietário. Onde guarda os papéis? – indagou.
- Mas, que papéis? – perguntou tranqüilamente o
magistrado Zaglowski.
- Todos quanto possuis.
- Então procure-os e leve – falou o anfitrião, e caiu
na cadeira – eu não tenho papel nenhum, a não ser os da
contabilidade e os da justiça.
- Veremos.
Puxaram Karczynski para fora da casa.
No salão só ficaram Szulubin, que deitado no sofá,
resmungava e xingava, e o magistrado, pensativo, não dizia
uma palavra. As mulheres, assustadas, vestiam-se. As serviçais informaram Krystyna que os soldados levaram uns e
levariam os outros em seguida, e o pai dela ia ser levado
preso até Luck. Pálida, trêmula, mas sem perder a coragem
e o controle, entrou no salão.
O promotor, vendo-a entrar, ficou meio encabulado,
levantou-se em silêncio.
- Senhor coronel, pelo amor de Deus – reclamou,
aproximando-se dele – O que aconteceu? O que está ocorrendo aqui? O que esses senhores devem? E o meu pai?
- Teu pai, esses senhores? – disse o promotor com
sarcasmo – então a senhorita não sabe de nada?... O promotor balançou a cabeça irônico.
- Os senhores hospedavam um personagem muito
perigoso, o qual fugiu do cárcere.Vocês vão sofrer por ele.
- Nós não o conhecíamos, não sabíamos quem era!...
174
- Isso vai aparecer com a investigação - respondeu
friamente Szulubin.
A jovem olhou para o pai, que estava sentado rígido,
perplexo.
- Que deve meu pai? Chegue a uma conclusão, senhor! Devemos pedir passaporte a todos que chegam aqui?
Dá para perceber pela fisionomia o que alguém tem no coração? Senhor coronel - disse após um instante – eu confio
no seu caráter, que não vais culpar o meu pai e nem vais
chamá-lo à responsabilidade.
- Isso não depende de mim - respondeu o coronel,
cada vez mais friamente.
- Meu pai pode explicar-se.
- Veremos.
Krystyna aproximou-se do magistrado, os olhos deles se encontraram, se a entendeu não se sabe, mas deu um
sinal para que saísse.
A moça saiu devagar.
- Coronel Szulubin – falou Zaglowski, levantandose da cadeira e aproximando-se – falemos claro. Dou a minha palavra de honra que não conhecia esta pessoa, que o vi
pela primeira vez e não sabia quem era. Por que o senhor
vai nos prejudicar ?
- Os senhores se prejudicaram sozinhos.
- O que o senhor vai lucrar se me condenarem
- O quê? Eu vou me inocentar.
- Ao que me parece, por causa disso não precisa me
denunciar. Mas, uma vez, falemos como homens.
O promotor olhava de soslaio, mas não protestou.
- Mil rublos - sussurrou o magistrado.
Szulubin balançou a cabeça, negativo.
- Mil e quinhentos.
- Eu não sou judeu para pechinchar.
- Quanto você quer?
175
- Dá-me três mil rublos que eu te deixo limpo.
- Eu não tenho tudo agora, palavra de honra. Dou-te
mil e quinhentos agora – disse, tirando o dinheiro do bolso
– e o outro tanto daqui a uma semana.
O coronel não disse nada, mas pegou e guardou o
dinheiro no bolso.
- Fique doente e deite na cama – mandou. Deixo
com você um gendarme, mande que atrelem os cavalos,
preciso ir embora.
O magistrado suspirou... e quando a filha entrou de
novo, leu no seu rosto que as coisas estavam melhores. O
homem da lei gritava ainda mais alto, culpando, discutindo
com o magistrado que afirmava que estava doente, insultava, batia o pé, dispersava o povo, e após algumas horas
dessa comédia, deixando um soldado em Radziszew, foi
embora ao alvorecer, atrás dos prisioneiros, para Luck.
Zaglowski implorou pelos amigos, mas Szulubin
não disse uma só palavra em resposta. Essa noite seria lembrada por muito tempo pelos moradores de Radziszew.
O promotor ainda estava passando pelo aterro quando Krystyna, temerosa pela vida do seu prisioneiro, escondido num espaço restrito, apreensiva, correu abrir a tampa
da lareira. A janela estava fechada, e o gendarme dormia na
ante-sala.
A moça não teve tempo de avisar o pai, e com uma
vela na mão, silenciosamente, levantou a tampa, e olhou
dentro do esconderijo... mas não viu nada, presumiu que o
coitado do emissário, por falta de ar, havia desmaiado. Uma
escadinha estreita levava até a gruta. Não ouvindo voz alguma e não localizando o prisioneiro, tremendo, foi descendo devagarinho, olhando para os lados, mas ali não tinha
ninguém. Quando e como saiu dali, ultrapassava a sua
compreensão.
176
Por todo o tempo o promotor havia ficado no salão
ao lado. Os gendarmes transitavam sem parar, aldeões,
serviçais, não podia sequer imaginar por onde ele havia
fugido, mas respirou mais tranqüila, dando graças a Deus.
Temendo ainda por ele, se não havia deixado papéis
no seu quarto... correu para verificar. Ali aguardava outra
surpresa, a roupa de Andrzej, os seus pertences, que deixara
ao correr, sumiram. Possivelmente durante o alvoroço que
reinava na casa, o corajoso e esperto homem saiu do seu
refúgio, conseguiu chegar ao seu quarto, levar o que podia e
ir embora, aproveitando a escuridão da noite.
As dificuldades para realizar este ato de coragem
eram tão grandes que Krystyna não podia explicar a si
mesma como ele havia conseguido. Precisava contornar
quase a casa toda, esgueirar-se pelo meio dos gendarmes,
entrar no quarto e, fugir pela janela que continuava aberta.
Tudo isso demandava coragem, decisão, controle
sobre si, destreza ímpar. Não precisava, portanto, explicar
ao pai, e nem falar nada sobre ele.
O magistrado, sentindo-se cansado e alquebrado,
mandou que ela também fosse descansar.Voltou, portanto,
ao seu dormitório pensativa, mas dando graças a Deus pela
oportunidade de poder salvar a vida da pessoa pela qual
nutria um sentimento maior do que amizade e respeito.
Atravessava o corredor, que separava o salão do seu
dormitório, quando percebeu no chão um pedacinho de papel. Apanhou-o quase que maquinalmente, e olhando, percebeu nele, pelo visto, escritas no escuro, com lápis grotescamente rabiscadas, as palavras:
- Perdoe ao infeliz. Agradeço de coração, devo a vós
a vida. Rasgue este papel.
Krystyna imediatamente guardou-o no vestido. Seu
coração disparou. Entrou no quarto dele, ajoelhou-se em
frente da cama e agradeceu a Deus.
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Ele estava a salvo... Mas o infeliz Filkowski e seu
companheiro, o que os esperava?
***
Quem já viajou nas estradas do Polesie no outono,
ou melhor, nos degelos da primavera, pode estar seguro que
viajando pelo mundo, nenhum outro caminho o surpreenderá ou amedrontará. Essas estradas mais parecem leitos de
riachos meio secos. Pedras, galhos, raízes, enxurradas, sumidouros, acha-se de tudo, o que torna a estrada intransitável.
E quanto mais ela é percorrida, torna-se pior. As
rodas afundando riscam valetas que a água rompe, e cada
veículo, evitando os rastros velhos, faz novos. Por fim, o
caminho torna-se só rastros no barro amolecido. Galhos,
folhas e partes de coches quebrados, pedaços de vigotas que
serviram para ajudar a desencalhar.
Essas estradas de aterro levam geralmente até uma
ponte elevada, balançando em cima de estacas finas, cobertas com folhagem verde, sem segurança nenhuma, tanto
que se um cavalo pisa na ponta, pode, com o peso dele,
levantar a ponte e arrancar a madeira, muitas pontes têm
falhas na madeira, substituídas por buracos.
Os cavalos empinam, empacam, não querem passar,
alguns pulam as falhas galopando desordenadamente, até
atravessar essa arapuca, que sabem ser perigosa. Às vezes,
algum cavalo amedrontado arrebenta os arreios e foge. Outras, nas pontes velhas, os cavalos e a carruagem despencam no precipício, junto com a ponte.
O viajante, enraivecido com o impedimento, destrói
o resto com as próprias mãos, e o seguinte transeúnte terá
de consertar. Caminhos desse tipo têm inúmeras surpresas,
178
não permitindo descanso nem ao passageiro e nem ao condutor. Por uma dessas estradas coube ao Szulubin voltar.
Ele tinha resoluções importantes no pensamento para perceber os transtornos. Na verdade, não sentia o que acontecia
à sua volta.
O coche corria, batia, jogava-o para os lados, caía
nos buracos, inclinava-se. Ele estava seguro que um funcionário do primeiro escalão da comarca não podia ser despejado da condução.
Mas aconteceu o contrário.
Na boléia do coche, junto com o condutor, ia um
homem que conhecia bem a região, os caminhos mais curtos, trilhas feitas com as rodas das carroças dos aldeões para
desviar as pontes estragadas. Ele guiava-os pelas estradinhas, que depois da curva ofereciam mais segurança; levava-os pela floresta de larícios, cheia de árvores caídas,
galhos, raízes, tocos ralos e pequenos arbustos, que o coche
de quatro cavalos dificilmente conseguia desviar.
Na encruzilhada, o condutor distraído enroscou o
eixo num toco, os cavalos forçaram, o eixo partiu-se e a
roda caiu... e o funcionário do primeiro escalão da comarca,
despencou para o chão... ficou deitado como o último dos
seus serviçais.
O seu ódio não tinha limites, amaldiçoava o condutor e o guia. Xingava, destratava, prometia enforcar,aprisionar, levar em ferros para a Sibéria; mas toda esta fúria não
ajudava a consertar o eixo quebrado.
Desesperado, o guia, que recebeu a sua dose de
empurrões, sopapos e maldições, querendo, por certo, amansar o promotor furioso, propôs que o levaria para uma
hospedaria próxima à floresta, em Rudnik, onde havia um
ferreiro cigano que podia reparar o coche danificado.
Deixando os serviçais junto à carruagem quebrada
no mato, o coronel, descontente, caminhou a pé pela trilha
179
indicada, que o levaria ao albergue, distante algumas léguas. Caminhou maldizendo o mundo.
A noite cedia vagarosa aos primeiros raios da manhã. Começava a clarear. Na verdade, não era ainda o amanhecer, era a claridade da lua crescente no céu de outono,
que iluminava frouxamente o horizonte nevoento. Pensativo, o coronel, com o capote sujo de barro, caminhava sozinho pela floresta, esperando logo deparar se com a hospedaria prometida.
Era - como disse o guia - uma pequena casa, que
servia de albergue aos viajantes, na encruzilhada. Mas era
um telhado, onde se podia aconchegar, um molho de palha
ou feno, e a esperança de encontrar um ferreiro. Szulubin já
estava calculando se era melhor pedir um novo coche e esperar por ele ou ameaçar e exigir rápido o conserto do eixo.
Tudo isso dependia do que ia encontrar na estalagem.
Numa estrada do interior, pequena, no meio do mato, não podia esperar muita coisa. Se nas estradas maiores
não há acomodações decentes, então, o que esperar desse
recanto? Por desgraça, foi ali que aconteceu esse desastre!
Como de costume, quando as coisas vão mal, o ódio do
promotor dirige-se ao primeiro culpado de todos os acidentes, ao desgraçado emissário, e a raiva contra ele crescia
a cada instante.
- Oh! Assim que o tiver nas minhas mãos... Oh! – gritava – dou-lhe a oportunidade de conhecer o meu ódio.
Caminhava com a cabeça cheia de planos, entre eles
a caçada iminente, imediata, ao desertor, como se faz sempre com os recrutas e prisioneiros, quando na penumbra,
próxima, apareceu a prometida estalagem.
O promotor não tinha certeza se era o albergue ou
outra qualquer moradia, pois parecia muito abandonada,
mas era uma habitação de pessoas, e na janela pequena já
180
bruxuleava uma luz. Os habitantes tinham levantado cedo.
Da chaminé saía uma fumaça preta.
No meio de colossais pinheiros, rodeada de cerca de
espinhos, com um pequeno jardim na frente, erguia-se uma
construção de madeira, coberta com folhagem do mato. A
casa era pequena, mas a sua volta havia paióis e chiqueiros.
Não era uma pousada, própria para receber viajantes. Sem
pátio para os cavalos, nem estrebarias, compunha-se apenas
de um sala, dois quartos, despensa, cozinha e área destinada
a cabritos e gansos.
O promotor já procurava com os olhos o povoado,
um ferreiro, mas nada disso estava visível ao redor. Ficou
inseguro, pensando que tinha se perdido, mas em todo caso,
precisava perguntar. Bateu na porta, certo de que estava
fechada, e pelo jeito de sua batida, dava para reconhecer o
maior e mais graduado funcionário público do distrito.
Martelava na pequena porta com força, como alguém que tem o direito de não pedir, mas mandar abrir.
Dentro da casa houve tumulto, alguém veio até a
porta e o promotor viu surgir na sua frente um judeu magro,
vestido com trajes rituais de oração; camisola preta, longa,
a mão descoberta passada com tiras de couro e o manto de
oração cobrindo a cabeça.
O homem olhava o visitante com terror. No impulso, quis, naturalmente, despachar o intruso com algum
palavrão, mas na semi-escuridão, distinguiu um perfil e um
uniforme, assustou-se e emudeceu. Szulubin empurrou-o,
entrou na sala e, ao passar pela escada alta e a porta baixa,
bateu-se forte na cabeça, na viga que sobressaía para a antesala. Isso aumentou ainda mais a sua fúria.
Na sala do albergue já tinham acendido o fogo no
fogão e na lareira. O recinto era pequeno, sujo e pobre. A
mesa rústica, os bancos pregados na parede, cama, berço,
181
uma cabra, diversos utensílios de lavoura ocupavam o espaço... era difícil transitar por ela.
Duas mulheres com roupas sujas, lenços na cabeça
e panelas nas mãos, e o judeu que introduziu o coronel, era
tudo o que compunha a habitação. O ambiente abafado,
carregado de odores de alho e cebola, estrume e gordura,
velhos capotes, sufocava.
O coronel puxou o homem pelo colarinho e gritou:
- Apresse-se, procure um ferreiro.
O estalajadeiro estava estupefato, raramente havia se
encontrado com funcionário público, não compreendia o
seu modo de tratá-lo, nem a sua ordem. Começou a gritar,
as mulheres acompanhavam-no em diversos tons de gritaria, as crianças nos berços atrás do fogão, acordadas, choravam aos berros e, por instantes, não dava para ouvir nada
no meio da balbúrdia.
O promotor, com certeza, teria puxado a espada se,
na pressa, não a tivesse deixado no coche. E o judeu, já
mais calmo, por instinto, compreendeu que a pessoa que o
tratara com tanta supremacia devia ter o direito e o poder
para isso. Ficou humilde.
- Você sabe o que é promotor? - gritou - Eu te ensino! Eu te levo preso e lá você vai apodrecer... vá, procure
e traga-me um ferreiro.
A mulher acudiu:
- Ah! Digníssimo senhor, ele não pode ir, começou a
oração a Deus... mas eu vou correndo...
O coronel cuspiu, meneando os braços, olhou em
volta, não tinha lugar onde pudesse sentar e descansar, mas
via-se uma porta para o quarto, onde ardia uma vela em
cima da mesa.
Szulubin entrou.
No tapete forrado com um punhado de palha, enrolado na capa, com o rosto virado para a parede, dormia um
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viajante. Contrariado pelo fato de que alguém podia descansar enquanto ele não tinha onde sentar, chutou com o pé
o adormecido. Não teve resultado imediato, pois o viajante
mexeu-se e parecia procurar alguma coisa com as mãos,
embaixo do capote. O promotor gritou:
- Nu... wstavaj...
Ao ouvir a voz prepotente, o homem enrolado na
capa moveu-se, mas com lentidão, começou a descobrir-se,
devagar... mas, de repente ele saltou, afastou o largo abrigo,
e no instante em que o coronel temeroso voltava a si, pegou-o, e com mão forte, agarrou-o pela garganta.
Szulubin, à luz pálida da vela a óleo, reconheceu
agora, odiados há tempo, mas muito seus conhecidos, a face
e os traços de Andrzej Wasilewski e seus olhos de fogo
pregados nele, com a mão, segurava-lhe a garganta e apertava-a. Com a outra, erguendo o revólver, apontou-o no seu
peito. O coronel tentou arrancar-se, mas sem resultado. O
punho forte comprimia-o num aperto de ferro e o cano do
revólver encostava no uniforme, à altura do coração.
O medo da morte tirava-lhe as forças, não tinha arma, gritou por socorro, mas sabia bem que o judeu não poderia socorrê-lo. O anfitrião, de camisola preta ritual, apareceu à porta, mas o viajante gritou:
- Feche a porta, senão atiro, que ninguém ouse entrar.
E a porta fechou-se violentamente. O silêncio da
morte reinou na hospedaria, só se ouviam murmúrios e leve
ruído. Andrzej segurava o promotor, que se debatia, e o
apertava cada vez mais forte na garganta. O rosto do homem arroxeava, os olhos saíam das órbitas.
- Criatura ignóbil, indivíduo desprezível, indigno do
nome de humano – gritava Andrzej, com voz entrecortada –
encomende a alma, se a tens, ao satanás ao qual serviu na
vida, porque inteiro e vivo, daqui não sairás. Perseguias a
183
minha irmã, envenenaste-lhe a vida, vingava-se do velho
desvalido meu pai... o destruístes... persegues-me... apostas
com a minha vida... mas Deus enviou-te desarmado para
essas mãos que quisestes colocar em grilhões... chegou a
hora do ajuste de contas, perecerás!...
Falando isso, jogava com ele, apavorado como criança, querendo derrubá-lo. O promotor não podia livrar-se
e não ousava, forçava inutilmente, de leve, porque sentia
que o revólver que estava encostado no seu peito, com o
mínimo movimento, atravessaria o seu coração com uma
bala. Não ousava pegá-lo com a mão para não acelerar a
própria morte. Veio uma idéia ao seu pensamento, resolveu
que devia lutar mais e mais, e a qualquer preço, porque o
seu pessoal podia chegar e a situação se reverteria. Resolveu pedir clemência.
- Andrzej, Andrzej! – exclamou – eu juro a você, eu
cumpria e cumpro ordens, eu jurei como oficial, eu não
devo nada, perdoe-me... concede-me a vida... solte-me...
tenha piedade... não farei nada contra você, sairás livre, não
vou perseguir-te mais, permita-me viver...
- Não - gritou Andrzej – não! Conheço-te e não acredito em você. Se te deixasse partir você ia perseguir outros e aterrorizar; o animal feroz não renega a sua natureza,
você nasceu para isso... se crês em Deus, reze, porque terás
um fim... tenho seis balas, e uma é destinada a você, para
eliminar-te e limpar o mundo deste monstro que é você...
ajoelhe e reze, ser desprezível.
O promotor caiu de joelhos. A oração podia salválo, daria mais tempo para que os soldados chegassem...
- Andrzej, pela alma da tua irmã, eu te imploro, e juro a você que deixo esse país, o emprego, tudo... que vais
lucrar se me tirares a vida? Vão procurá-lo, persegui-lo, e
vão pegá-lo. Eu te deixo ir... eu favoreço a fuga... eu prometo pela honra militar, Andrzej, pela alma do teu pai...
184
Mas Andrzej, rancoroso pela luta, não queria soltálo, segurava o revólver no peito dele, mesmo que o ódio e
o cansaço fizessem tremer a sua mão. Szulubin sentiu que o
inimigo vacilava, dobrou a oração e o pedido de clemência.
- Mas uma vez juro a você, sairás inteiro, concedame a vida, palavra de soldado. Andrzej, você é humano...
O emissário ouvia; a repugnância estampou-se no
seu rosto altivo, soltou-o finalmente, empurrando-o com
força. Szulubin caiu estatelado no chão, mas o revólver
ainda estava apontado ao seu peito.
- Não quero macular-me com o teu sangue infame –
gritou, abaixando a arma.Viva! Quero ver como vais cumprir o teu juramento solene, que te salvou a vida. Mas, lembre-se! Se das pessoas envolvidas com a minha causa cair
um só cabelo da cabeça, se ousares perseguir Radziszew,
mesmo que eu pereça, vai haver alguém que te estoure os
miolos. Se não for eu, será outro, lembre-se!
Quando o coronel tentava erguer-se do chão, olhando ainda desconfiado para o adversário, um barulho longínquo chegou aos seus ouvidos, reconheceu, ou antes, adivinhou, a aproximação dos seus soldados chegando com o
coche quebrado. Dependia apenas de um minuto para que o
emissário fosse capturado, e a vingança concluída. O juramento não o impediria de realizar esta infamia.
Torcia para que não desse tempo de Andrzej sair,
porque este já estava vestindo a capa. Não ouviu a conversa
dos soldados chegando, mas, voltando o olhar ao ainda esparramado no chão, promotor, que forçava para equilibrarse nas pernas, não dizendo nada, jogou-o para a despensa, e
sem soltar a arma das mãos, saiu devagarinho, fechando a
porta atrás de si.
Na porta, ainda, jogou-lhe a última palavra:
- Lembre-se do juramento!
185
Szulubin suspirou, sentindo-se salvo, como por milagre. Toda a arrogância voltou-lhe junto com o ódio que
nele explodiu incontrolável. Chegou até a porta tremendo,
encostou o ouvido, esperou até Andrzej afastar-se alguns
passos, depois, ouvindo o chamado de Wacek, que adentrava na hospedaria, possuído pelo ódio, saiu do quarto gritando:
- Peguem-no! Peguem-no!
Ainda não repetiu pela segunda vez a ordem quando
da meia escuridão silvou um tiro, e Szulubin, ferido no ombro, balançou e caiu na porta. Sangrando e insistindo com
os soldados:
- Peguem-no!
Mas Andrzej, com o revólver na mão, sem medo,
passou devagar entre as pessoas assustadas, e quando resolveram agir contra ele, sumiu no mato denso. A notícia desses acontecimentos, como fagulha, esparramou-se por todo
o distrito, com grande repercussão.
Levaram o promotor até Luck e despacharam um
mensageiro urgente para Kiew e Zytomierz comunicando o
fato às autoridades.
Chegou logo uma comissão especial, um coronel,
comandante da polícia, um auditor militar e comissões de
inquérito. Mandaram de Dubno um pelotão de infantaria e,
com ajuda da polícia e dos investigadores, foi organizada
uma batida rigorosa em toda a extensão das florestas do
distrito. O terror tomou conta da população inteira.
Szulubin estava apenas levemente ferido no ombro;
conseguiu, assim, mais uma promoção, a qual desejava havia muito tempo, e um prêmio em dinheiro. Sarou logo da
ferida e, com redobrado ardor e perseverança, mesmo que
ainda carregando o braço na tipóia, viajou novamente pelo
distrito à caça do emissário.
186
Inutilmente, as pessoas razoáveis apresentaram-lhe
argumentos, pelos quais ele não estaria mais escondendo-se
neste distrito, onde estava sendo procurado com insistência,
já devia estar longe, nas florestas e alagadiços de Pinsk ou
Bialowieza, ou, com a cooperação dos participantes na causa da insurreição, tinha sido transferido além da fronteira
austríaca, não longe dali, e bem fácil de atravessar.
O promotor teimava na incansável perseguição do
inimigo, dizia ter pressentimento que o pegaria com certeza. O ferimento, pago regiamente, livrava-o das obrigações rotineiras; até o magistrado Zaglowski foi trazido para
a cidade por sua ordem, apesar da promessa feita de não
incomodá-lo, e muitas outras pessoas foram investigadas
por qualquer motivo.
Era, pois, uma oportunidade excelente para que o
jeitoso coronel usufruísse dela o quanto podia. Os cárceres
encheram-se de sacerdotes, civis, nobres, judeus e habitantes das florestas. Nos mosteiros, requisitaram as celas para
as mulheres, porque nem elas estavam livres da investigação. Comissões alerta averiguando, reuniões, decisões, protocolos e revistas nas casas que não tinham fim. A polícia
bêbada ia de propriedade em propriedade seviciar, prevaricar e estuprar.
Mas apesar dessas providências, da procura, de cuidados, do prêmio oferecido pelo governo, não havia sinal
visível do emissário desde a sua fuga da hospedaria; não foi
conseguido nada, como se ele tivesse caído na água.
O magistrado Zaglowski, que foi trazido para Luck,
apesar dos protestos do promotor (falsos) e sob guarda dos
soldados, como doente, colocaram-no, por enquanto, no
ambulatório militar. Já estava lá por duas semanas. Sua
filha e a tia Martyna ainda não haviam sido presas, mas
informadas que precisariam depor no inquérito.
187
Krystyna, adiantando a ordem do governo, com o
propósito de libertar o pai e rever o seu caso, entregou a
propriedade à administração de um economista e só, juntando dinheiro, o quanto mais podia, veio para a cidade.
Com grande preocupação, recursos, propinas, conseguiu pelo menos uma ordem para poder visitar o pai, às
tardes. Apesar da situação perigosa, pois Zaglowski sabia
certamente que, num momento infeliz, podia esperar expulsão para o interior da Rússia, nem ele nem a filha perdiam a
coragem. O magistrado queixava-se que não tinha com
quem jogar baralho.
A jovem parecia que, entre as desgraças e infelicidade, adquiriu mais força e determinação, mais vontade de
viver. O pai mostrava-se indiferente, brincava com tudo,
mas era apenas máscara, era para consolar a filha e dar-lhe
mais energia e coragem e esconder a preocupação interna.
Ambos alegravam-se pelo fato de o infeliz fugitivo não ter
sido alcançado nem preso. O juiz protestava mais pelo ataque dos funcionários contra o seu bolso e o grande prejuízo
em dinheiro.
Nestes casos, a avidez dos moscovitas não tem limite. Eles sabem que os detentos, sem direitos, os mais
essenciais, estão à mercê dos seus algozes, e cada um deles
segura nas mãos a vida e destino dos prisioneiros, barganham portanto, com crueldade e cinismo de carrascos sem
alma. Os absolvidos saem com vida e verdade, mas roubados até a última camisa. O magistrado, ao falar disso, acrescentava:
- O diabo que os carregue, se pelo menos me mandassem alguém para jogar cartas comigo à tarde. Já me aborreci de estudar a cabala.
Krystyna, para estar próxima ao ambulatório do exército, onde estava o seu pai, alugou uma casa no bairro,
numa pequena propriedade. Metade da casa era ocupada
188
por ela com a tia, e a outra, pelo proprietário, velho habitante de Luck, curtidor de couro.
O outono ia já avançado. Pequenas geadas de manhã
indicavam a aproximação do inverno, desejado pelos habitantes por diversos motivos, e também porque secaria as
ruas e facilitaria o transporte de víveres.
Ela estava sentada, à tarde, com o livro na mão, perto da mesinha, era o dia que não podia ir visitar o pai,
quando bateram na porta, levemente. Logo após, entrou
com cautela um homem vestido como um servo, cobrindose com um casaco de capuz, devagar, olhando para os lados, o qual a moça tomou por um enviado do pai.
Chegou perto dele, mas foi tão grande a sua surpresa
e medo, juntos, quando olhou com atenção o visitante, mudo até aquele instante, e reconheceu nele tão bem guardada
na lembrança a fisionomia do infeliz emissário. Parado em
frente dela, silencioso, embaraçado, implorava com os olhos. No primeiro momento faltaram-lhe as palavras, os
lábios tremeram, dobrou as mãos, afastando-se.
- O senhor aqui? Aqui? Onde te procuram, te caçam... quando a tua cabeça está a prêmio... oh! meu Deus!
Eu que já estava me consolando com a esperança de que
fugistes, de que estás a salvo, além da fronteira.
Andrzej suspirou.
- Querida senhora – disse baixinho, abaixando os
olhos, sentindo-se culpado - até já podia ter saído deste aprisionamento, mas a obrigação que assumi não permitia...
a missão não cumprida... os outros estão na situação mais
perigosa do que eu e esperam socorro. Precisava ficar para
proteger os outros, salvar, ajudar e servir a santa causa da
pátria. A minha vida há muito tempo ofereci em holocausto.
Se perecer, pereci.
189
A jovem, com expressão de lamento e comiseração,
pegou-o pelas mãos, mas Andrzej, sorrindo, como que encabulado, afastou-a.
- Ah, senhora, a minha mão não merece ser tocada
pela sua, grosseira e encardida pelo trabalho, mão de operário... de servo... podiam reconhecer-me pela mão, se a conservasse branca e macia.
- Mas eu a beijaria – interrompeu ela, afoita, - porque esta mão é santa... de um verdadeiro herói da pátria.
Andrzej comoveu-se.
- Mas, senhorita – respondeu – não é conveniente
perturbar a cabeça das pessoas, eu ainda não fiz nada. Envergonho-me por ter sofrido pouco. E se para realizar uma
obrigação precisasse de prêmio, as tuas palavras seriam
suficientes para pagar a morte de um mártir pela pátria.
Krystyna ruborizou-se.
- As palavras pronunciadas pelos meus lábios – concluiu saudosa - o que significam para você? O que eu digo... o sentimento deste coração, o pedido ardente, pois
estou implorando inutilmente, não se arrisque mais, fuja.
- Querida - gritou Andrzej desesperado - você mesma me desprezaria se eu fizesse isso, não ia merecer o teu
sentimento, o significado dele tem que ser o mais amável e
o mais precioso... porque cheguei até aqui expondo-me,
para que ouças isso... amo-te!
As últimas palavras foram apenas murmuradas por
ele. Os olhos de Krystyna encheram-se de lágrimas, ficou
indecisa, ruborizou-se, mas seu coração bateu forte. Ela
pegou as mãos calejadas do moço.
- Andrzej! Por mim, salva-te... imploro. Procuram
por você, conhecem você, não podes fazer nada. Ouve, ninguém vai condenar-me, eu sou mulher, e juro a você, eu
vou, cumpro, e entrego os documentos, faço o que me mandar. Permita desempenhar esta tua obrigação, ficarei feliz
190
em dobro, nada me acontecerá, serei cautelosa, esperta, vais
ver. Engano-os! Conseguirei forças, mesmo que me martirizem não direi uma só palavra. Rogo-te, não me perca,
perdendo-se a si.
Falando isso, cobriu os olhos.
- Krystyna, minha alma - gritou angustiado Andrzej,
caindo de joelhos - ajoelho-me para agradecer o teu heroísmo e pela tua palavra que me concedeu o único instante de
felicidade na vida. Faria o que pedes, se pudesse e não estivesse comprometido com o juramento, com palavra de honra, com a confiança dos meus compatriotas, quem sabe?
- Pode ser que Deus resolva salvar-me para que eu
te sirva para sempre, mas se for o meu destino perecer, só
você poderá guardar a lembrança de um desconhecido que
ofereceu a vida em oferenda à pátria. Uma vez mais, ao
lado desse negro precipício que guarda o meu passado, queria ver-te e confirmar como em confessionário que você me
encantou, que por sua causa quase que falhei nos serviços
da pátria, que te amo e venero, e se eu morrer, a minha alma permanecerá junto de ti.
A jovem começou a chorar... silenciaram.
- Não, querido - falou com a voz embargada, depois
de uns instantes, enxugando as lágrimas. Deus não será tão
terrível, você deve ser salvo porque merece por sua dedicação e oferenda. Eu sinto isso... eu quero... nos veremos
novamente livres... nos encontraremos para darmos as mãos
para sempre. Falando isso, deu-lhe a mão, a qual Andrzej
beijou com paixão.
Krystyna inclinou-se para ele.
Nesse ínterim, a tia Martyna entrou com a capelinha
de Nossa Senhora de Czestochowa nas mãos, óculos sobre
o nariz.Tendo ouvido um ruído no cômodo próximo, caminhou na ponta dos pés para ver o que estava acontecendo.
191
Estacou ao ver um aldeão, vestido como um simples servo,
beijando as mãos da sobrinha.
Ainda isso não seria nada, mas podia ser que por
causa dos óculos, com lentes fracas - ou simplesmente por
medo, - pareceu a pobre tia que seus rostos e bocas se aproximaram, que esse mísero aldeão ousou beijar uma dama da
nobreza. Ao ver um tal perigo, a tia soltou a capelinha das
mãos trêmulas, os óculos caíram no chão, quebrando-se em
pedacinhos. Deu um grito, assustada.
- Oh! Pelas chagas de Cristo!
E com certeza ia desmaiar, mas por sorte não tinha
nenhum sofá ou cadeira por perto, em que pudesse cair.
Encostou-se na parede. Sua voz elevada podia alertar todos
os serviçais da casa e despertar a atenção dos moradores da
vizinhança. A moça, com medo, deu um sinal a Andrzej
para que fosse embora e foi rapidamente ao encontro da tia,
alcançando-lhe a água de colônia.
- Por amor de Deus, tia! Se a minha vida for preciosa para você, não repita o que viu! Te imploro, não fale a
ninguém! Faça silêncio. Aqui não tinha ninguém!
Logo depois, vieram correndo do curtume duas serviçais, mas Krystyna explicou que a tia, caminhando pelo
quarto escuro, bateu-se na perna doente, em que havia calos doloridos.
Desse modo, tudo ficou aquietado rapidamente na
casa. As serviçais foram embora, a tia sentou no sofá e a
sobrinha, com água de colônia, gotas e essências, estava às
voltas com a tia. Mas, acima de tudo, esses medicamentos
fariam melhor efeito se desvendassem o terrível segredo
que não poderia confiar à tia, pois ela era a melhor pessoa
do mundo, tinha medo de tudo, e não sabia guardar segredo,
por um minuto sequer.
- Mas, o que era aquilo? O que era, minha querida?
Tenha piedade, diga-me. Sossegue meu coração. Vi com
192
meus próprios olhos quando chegavas tua boca à face daquele aldeão. Quem poderia ser que tinha direito e que ousaria? Meu anjo, isso é horrível... confesse-me tudo, eu não
falo a ninguém... aldeão! Mas não poderia ser um verdadeiro servo.
- Tia querida, acalme-se. Não posso te dizer o segredo, que não me pertence – respondeu ela - mas posso
jurar-te que se não for este, nenhum outro terá a minha
mão, porque ele tem o meu coração.
A senhora Martyna torceu as mãos desesperada.
- Jesus Cristo! Pelas chagas do Senhor! O que eu estou ouvindo? Isso mais parece um romance francês... isso
não parece com nada... aldeão... vestimenta... não cabe na
minha cabeça... e você, sobrinha...
- Titia, não pergunte nada, mas confie em mim – interrompeu - não pergunte porque me entregas e não penses
no pior porque estou inocente e pura.
- Mas o pai no cárcere, e você...
Krystyna, abaixando os olhos, suspirou.
- Sim, nesse caso sou culpada – disse – mas não aconteceu com o meu consentimento. Não posso te revelar
hoje esse grande segredo, algum dia vais saber de tudo,
então vais me absolver.
A tia silenciou, mas a primeira oração que fez após
esses acontecimentos foi rezar o terço em louvor à Nossa
Senhora de Czestochowa.
***
No dia seguinte, o promotor Szulubin, após lauto
almoço, oferecido por seus colegas de armas, comemorando
o prêmio que recebera em forma de uma medalha com a
efígie do príncipe Wladmir, voltou para casa para descan193
sar. O champagne, vinho que apreciava deveras, sempre
deixava-o sonolento. O seu ajudante de ordens Wacek tinha
por regra estabelecida há tempo que, durante a sesta do seu
superior, nada e ninguém podia perturbá-lo.
Agora, como sempre em ocasiões semelhantes, estava vigiando na ante-sala e distraía-se lendo um desses
livrinhos com capa de madeira, o qual compunha a única
literatura original moscovita, que era distribuída pelos vendedores ambulantes pelo país. É sabido que os contos neles
relatados são apreciados pelo povo, que se identifica neles,
e nem sempre são impressos, são às vezes xilografados, isto
é, as letras são recortadas em madeira, como as antigas escritas egípcias.
Classes inteiras de artesãos, desde os tataravós, ocupavam-se com essa forma de recortar as letras em madeira
para imprimir os livrinhos em papel barato, acessível ao
povo. Por muito tempo, essa literatura pôde ser bastante
liberal, pois não estava sujeita à censura. Alertaram-se depois, porque as vezes eram ali citados e criticados os czares
e suas famílias. Então, o comitê plenipotenciário condenou
os livretos de madeira.
Wacek estava lendo a história do gigante Ob e os sete czarevitz, quando no instante mais interessante da leitura
que ele silabava, a porta foi aberta com violência e, apareceu o rosto do coronel Priluka, ruborizado, não se sabe se
de wodka forte ou do vento, ou se de ambos. Com voz rouca, perguntou:
- O coronel está em casa?
- Está, mas está descansando– respondeu Wacek,
silenciosamente, como era seu costume, dando exemplo ao
visitante, para que respeitasse o sono dos justos.
- Está descansando, não é?
Priluka quis entrar direto, mas o serviçal impediuo, protegendo com o largo peito o descanso do seu superior.
194
- Peço desculpas ao excelentíssimo senhor, mas
quando não pode, então não pode.
- Querido, você é um idiota – respondeu Priluka,
pausadamente, - não pode se alguém vem com problemas
menores, não tendo o que fazer, mas eu tenho um negócio
importante a tratar.
- Mas o senhor coronel depois bate em mim!
- Pois que bata! Mas quando se trata de interesse
importante do governo, do czar, eu te garanto que nada vai
te acontecer. Deixe-me entrar.
Wacek, entre o czar e o promotor, ainda tinha dúvidas, porque o czar estava longe e o promotor atrás da porta,
quando do outro quarto ouviu-se a voz sonolenta e rouquenha de Szulubin.
- Que estardalhaço é este? Wacek, quem o inferno
enviou agora, assim que pude adormecer?
- Sou eu, eu – respondeu Priluka, empurrando o
ordenança - mas enganas-te, porque não foram os diabos
que me mandaram.
O amigo entrou sem cerimônia. Szulubin estava sentado no sofá de couro e esfregava os olhos, sonolento.
- Wacek - gritou alto, sem cumprimentar o amigo –
diga à senhora Zoska que faça ponche para nós, de marinheiro, como ela sabe.
- Não, não! Eu não vim tomar ponche com você disse Priluka, sentando – eu vim aqui tratar de um interesse
importante.
O promotor ainda bocejava.
- Que interesse importante? Quer despojar alguém
em Olszowo? Hein?
- Não, vais ver - falou - mas antes falemos como
gente, uma mão lava a outra.
O promotor olhou-o de soslaio.
195
- Se eu conseguir entregar a você esse detestável e
subversivo Andrzej Wasilewski, em tuas mãos... o que eu
ganho com isso?
O interrogado olhou incrédulo.
- Já me entregaram ele assim por diversas vezes.
Ele faz tempo sumiu daqui, deve estar no estrangeiro.
- O que você me dá por isso? – repetia Priluka.
- O que eu devo te dar e pelo quê?
- Porque você de novo receberá de prêmio ou uma
cruz ou promoção ou dinheiro, e eu recebo o quê?
- O que eu devo dar a você? Apresentar-te candidato
ao prêmio como denunciante? mas isso não pode ser.
Priluka pôs as mãos no bolso.
- Isso já é outro caso, o que o governo vai pagar.
Você sabe que sou seu amigo, mas de graça não denuncio,
deve me dar algo em troca. Para mim é a mesma coisa, se é
você que o pega sozinho ou um policial do governo. Vou ao
delegado e o pegaremos em dois. Vão me pagar muito bem.
- Mas, com todos os diabos, onde ele está?
- Onde? És ladino... diga, o que me ofereces? – disse
rindo Priluka – a amizade é uma coisa boa, mas nem de
favores se faz uma camisa, nem de beijos.
- O que devo te dar? Judeu! – indagou Szulubin.
- Judeu? Perdôo-te esta, porque somos amigos, mas
você ganhou o cavalo alazão do comissário de polícia para
não denunciá-lo.
- Então você quer se apoderar dele?
- Não, não obrigatoriamente... o que farei eu com
um só cavalo?
- Não te chega isso? Hein? Como não devo te chamar de judeu? Não ficas com vergonha?
- Por que devo ter vergonha? Eu estou oferecendo
muito mais do que você pode me dar.
196
- Então diga-me o que quer... e não me martirize por
mais tempo – gritou nervoso Szulubin. Diga, você já veio
aqui decidido do que pedir.
- Mas, certamente! – respondeu tranqüilo o amigo –
pensas que não andei em volta disso, não averiguei? Não
sofri por uma semana aqui em Luck?
- Pois já tenho a resposta. Ele está em Luck, pego
ele mesmo sem você – falou rindo o promotor.
- Então pegue - disse friamente Priluka, levantandose da cadeira. Muito bem, não falo mais nada.
- Ei! Que mau amigo que você é! – falou o promotor, já mais calmo, estendendo-lhe a mão. Já não somos
velhos companheiros? Está aí a mão, dou o que queres, se
puder.
- Eu não quero muito, um par de cavalos alazão...
dinheiro não peço...
- Tenha pena, os meus melhores cavalos?
- E eu ia querer se fossem ruins? - disse Priluka,
rindo e esfregando as mãos - Bom negócio e bons cavalos.
- Sim, eu dou... dou... assim que o pegar. Palavra?
´
- Palavra...
E daí apertaram as mãos para selar o acordo.
A senhora Zoska, judia batizada, natural de Olikni,
trouxe sorrindo o ponche nas taças, era a governanta do
coronel, pessoa ágil, de olhos pretos, não muito bela, muito
extrovertida e oferecida, o resto... é só suposições...
Na cidade chamavam-na de coronela e promotora, e
ela pensava seriamente que algum dia seria de fato. De acordo com o costume, esperava ser recebida com gracejos e
galanteios, mas Szulubin mandou-a deixar o ponche e sumir
rápido.
Saiu aborrecida e se desconfiasse que os preciosos
cavalos com os quais às vezes viajava, alguém queria lhe
tirar, aí teria razão de sobra para ficar nervosa.
197
O promotor fechou a porta.
- Fale - insistiu com o amigo - esse homem desleal
já me custou muito sangue e suor para que eu possa me
alegrar quando ele subir à forca ou for deportado para Sibéria, em grilhões!
- Ouça – respondeu calmamente Priluka, sorvendo o
ponche quente – o amigo não se enganou deduzindo que ele
está em Luck, mas mesmo assim não vais encontrá-lo sem
mim, falando a verdade, nem o diabo adivinharia que este
homem ousado arriscaria esconder-se aqui perto da sede do
distrito, na aldeia onde o seu pai morava, onde todos o conhecem, bem ao lado da polícia rural. Como vês, o demônio
é hábil e inteligente.
- Sabes que eu tenho propriedade em Berestecko,
conheço todos eles, nobres e aldeões, proprietários, conheço todos há muito tempo... particularmente. Meu arrendatário começou a me incomodar apresentando contas. Fui
até lá para jogá-lo fora da propriedade, porque não temos
contrato... eu também não sou bobo, mas precavido, sabia
que terminaria assim, invariavelmente como sempre... e ele
ainda me ameaçava com denúncia! É! Isso é demais. Assim, eu o enxotei com as crianças, velhos e as mulheres.
Mandei jogar todos na rua... denunciem agora! Miseráveis...
- Como já não tinha mais arrendatário, precisei eu
mesmo dar uma ordem na propriedade; não seria fácil encontrar um outro administrador, precisei ficar na gleba. Que
tédio insuportável! Não tendo o que fazer fui conhecer melhor os habitantes da aldeia; os arrendatários, aldeões, servos, popes e proprietários, não tive outra alternativa.
- A plebe briga entre si, discute, acusa-se, ameaça,
trazem as queixas para eu resolver, porque sabem que eu
tenho amizade com a polícia local. Numa noite dessas o
pope veio fazer-me uma visita, você sabe que eu não aprecio o clero – porque é uma gente difícil de lidar –, mas o
198
que eu podia fazer? É um sacerdote, pastor das almas... clérigo enfadonho, mas mesmo assim beijei-lhe a mão. Eu
estava tomando chá quando ele apareceu na porta, precisei
convidar – servir-lhe rum, na verdade era wodka pura.
- O pope começou a tagarelar, despejar as palavras,
como se tivesse desamarrado um saco. Ele sabe que sou
amigo dos seus superiores. Após o segundo copo já beijava
a minha mão... sussurrando, contou-me segredos ao ouvido... que na aldeia escondia-se um recruta foragido, um
aldeão hospedava-o; disso podia-se deduzir alguma coisa.
- “Deus nos livre, se depois descobrem, todos vão
sofrer”, disse o pope. Pressionei-o mais, disse-me onde...
como. No outro dia fui investigar em sindicância secreta,
amedrontei os aldeões, até que um deles confessou que na
casa de um vizinho dele mora um homem, parece ser um
trabalhador, que lavra a sua terra, não aparece em parte alguma e dorme num esconderijo... assim que encontrei esse
rastro, comecei a indagar, e claro, concluí quem era.
- Bah! Bah! Quem te disse que era ele? Isto é tua
dedução, pode ser um recruta mesmo - duvidou Szulubin.
- Eu te afirmo que é ele – se não for, não me dás os
cavalos. Ainda quando o velho Wasilewski era proprietário
aqui, ele era benquisto pelos aldeões, porque viviam com
eles, curavam-nos, alimentavam, dividiam mesmo o último
pedacinho de pão, por isso a aldeia toda morreria por eles...
e eu não ia conseguir nenhuma informação, se não fosse um
elemento de outra aldeia. Eles não o entregariam nunca.
O promotor estava pensativo.
- Sim, é verdade?Verdade? - indagou mais uma vez.
- Vais ter certeza, mas não podemos perder tempo.
Nesta noite mesmo iremos com os gendarmes e pegaremos
ele como se fosse um lobo na caverna. Dorme em esconderijo, só tem uma porta para entrar, a cavidade é pequena, a
199
garganta da caverna é muito estreita, nem um gato fugiria
por lá, além do que, cercaremos em torno.
Szulubin tremia todo. Sorria com ódio satânico.
- Oh! Enfim! – gritou abraçando o amigo e virando
um copo de ponche pela garganta - pois não tenho pena do
par de cavalos alazão... se eu conseguir ter ele nas minhas
mãos... e você foi bobo, porque se me pedisses, eu te daria
até quatro cavalos, o coche e os arreios, e mais cem rublos
por esse indivíduo.
Priluka sacudiu os ombros.
- Pois é! Bobo! – disse – É verdade, mas amigo.
O promotor fez soar o sininho.
- Hei! Ordenança, venha logo.
Neste instante apareceu o homem chamado, meio
bêbado, mal podendo firmar-se nos pés. Szulubin olhou
para ele e gritou:
- Você está bêbado!
- Deus me livre! – respondeu Wacek.
- Hei! Hei! Wacek, mas de novo! No horário do trabalho?
- Deus me livre! – dizia o ordenança, mas a cada
palavra soluçava.
- Você não vale nada!
- Deus me guarde, eu tomei como remédio.
- Sim, acredito! Mas você precisa ir ao distrito.
- Ilustríssimo, juro! Eu estou apto.
- Providencie para que tudo esteja preparado. Quatro
gendarmes, quatro soldados da reserva, dos melhores... carroça, cavalos. Que viva alma não fique sabendo de nada.
- Sim, senhor coronel.
- Mais duas pessoas da sentinela poderiam ir?
Szulubin olhou para Priluka, que confirmou.
- Pegue da delegacia um par de algemas... cordas...
quem sabe podem ser úteis.
200
- Estou ouvindo, coronel.
- Ao entardecer quero tudo pronto.
- E, à meia-noite, estaremos na estrada - concluiu
Priluka. - não antes.
- À meia-noite.
- Você tem tempo para sair da bebedeira, quero você
lúcido – concluiu o coronel, ameaçando-o com o punho.
Wacek saiu soluçando de bêbado, e os dois amigos
saudaram com ponche a esperança de poderem finalmente
vingar-se de Andrzej.
A noite era de inverno, fria. O outono passou e, de
vez em quando, caía uma neve fininha que deixava branco e
congelado o solo úmido. A terra estava encharcada com as
chuvas prolongadas, endurecia com o vento do norte... o
céu, ao entardecer, cobria-se de nuvens espessas, pesadas.
Na pequena aldeia, conforme era costume local, as
luzes já estavam apagadas em todas as casas, só algumas
janelas estavam iluminadas, porque as pessoas preferiam
levantar de madrugada no inverno, a ficar até tarde sem
deitar-se. Só na hospedaria e em algumas residências a luz
brilhava através das vidraças enfumaçadas.
A investida contra o infeliz agente foi organizada
com todo o cuidado, para não espantá-lo e deixá-lo fugir
novamente. As carroças foram deixadas longe da aldeia, os
soldados da reserva que conheciam o local, quando em manobras no rio Styr, foram mandados para cercar a casa e o
esconderijo. O promotor, armado de espada e revólver, junto com os gendarmes, silenciosamente, com cautela, foi
aproximando-se das casas.
Traziam nas mãos as espadas, para que não fizessem
barulho. Priluka, agasalhado com capote de lã, fazia companhia ao amigo Szulubin. No vilarejo, além dos cães atentos que, acordados, ladravam, sentindo a presença de estranhos, não se ouvia voz nenhuma. Caminhavam devagar, em
201
silêncio... obedecendo à ordem. Priluka mostrou ao promotor a casa em questão, rodeada de cerca viva de espinhos e
sombreada pela velha pereira.
Os olhos, acostumando-se à escuridão, podiam perceber que os soldados mandados na frente já tomaram as
suas posições, em silêncio. Enfileiravam-se no pátio com as
armas apontadas, guardando o maior cuidado para não fazer
nenhum ruído. Com o coração aos saltos, o coronel entrou
pelo portaõzinho aberto. Ordenando os soldados, mandou
bater na porta da casa.
Não havia mais luz no recinto. Ao ouvir o barulho,
uma mulher apareceu, com um casaco de lã sobre as costas,
estava sem pressa. Mandaram que o dono saísse, mas ele
não estava em casa – foram informados que ele prestava
serviço ao assessor do distrito, trabalho semanal, que todas
as aldeias realizavam como tributo, pois não podiam arcar
com maiores encargos em dinheiro.
A mulher, assustada, vendo na semi-escuridão tanta
gente, tremia, não podia falar, chorava. Atrás dela apareceu
um servo que foi capturado, ao sinal do coronel. Apertaram-no para que os levasse ao esconderijo onde o fugitivo
escondia-se.
O trabalhador jurava que não sabia de nada. Começaram a bater nele com as coronhas das espingardas. O coronel dava-lhe murros com o punho quando Priluka chamou
a atenção dizendo que perdiam o tempo precioso, porque a
gruta estava ali, visível, os gendarmes já forçavam a porta
do esconderijo, um deles trazia na mão uma lamparina acesa. No interior da gruta não se ouvia nada.
Mas quando os portais quebraram e a porta caiu, a
entrada ficou livre, uma bala sibilou, atingindo o primeiro
que colocava o pé no esconderijo. Outro gendarme, vendo
isso, afastou-se. Priluka, que olhava de lado, fugiu atrás da
cerca. O coronel escondeu-se atrás da pereira, mas começou
202
a gritar e açular os soldados para que pegassem o fugitivo,
vivo ou morto. Ninguém teve a coragem de aproximar-se, e
o gendarme ferido, jazia prostrado na terra, gemendo; lembrava o perigo iminente.
Inutilmente Szulubin, enlouquecido gritava, batia,
ameaçava, repreendia. Os seus homens chegavam perto da
entrada da gruta, de lado... e ao mínimo ruído, afastavam-se
aterrorizados. Esses instantes de indecisão estavam se prolongando. O coronel começou a temer que, aproveitando a
escuridão da noite e a confusão, o emissário escapasse.
Priluka resolveu destacar alguns soldados com carabinas para que se postassem na garganta da gruta, que sobressaía do chão, atirando para dentro. Colocou outros na
porta. Esse meio foi escolhido ao acaso, por não haver outra
alternativa, pois, a dimensão da gruta não era conhecida
nem a direção do corredor no subsolo, o fugitivo podia esconder-se dos tiros num recanto.
Porém, a desgraça quis que o recurso aplicado surtisse efeito inesperado. Após seis tiros de carabina, ouviram-se gritos e um curto gemido truncado ouviu-se do interior do esconderijo. Depois tudo silenciou.
Transcorrido um quarto de hora, não se ouvia nada,
e o mais valente gendarme, animado com a promessa do
prêmio de dez rublos, desceu devagar para dentro, com a
pistola e a lanterna nas mãos. Tendo dado alguns passos,
começou a chamar com voz alegre e triunfante. Todos correram para a porta da gruta. Atingido por duas balas, no
peito e no quadril, o fugitivo jazia coberto de sangue, desmaiado. A vida ainda não o abandonara.
Respirava levemente; a fraqueza denotava a pouca
vida que ainda lhe restava. Os olhos negros parados, olhavam com desdém aos que o circundavam... nenhum gemido, nenhuma palavra... deitado, agonizava, mas não apre-
203
sentava alma alquebrada. Duas lágrimas enormes nos olhos
vítreos brilhavam como dois diamantes.
O promotor, com os dentes cerrados, pálido, tremendo, mais perturbado do que a sua vítima, concluiu, então, descontente, que estava levando um inimigo agonizante, do qual esperava conseguir informações preciosas.
As ordens superiores eram claras e decisivas – fazer todo o
possível para trazê-lo vivo.
Talvez por isso, sem molestá-lo mais, ergueram o
corpo, amarraram rapidamente as feridas e mandaram chamar o médico mais próximo. O agonizante foi transportado
com o maximo cuidado até o carro, em padiola improvisada
e, em silêncio, até o hospital militar em Luck.
Não fora por misericórdia humana, mas pela importância do ferido, que se esforçaram em conservar a vida
do infeliz. Ao Szulubin era uma causa crucial que as feridas
sarassem, para condená-lo ao padecimento nos grilhões e
nas mãos dos carrascos. Parou em frente da sua vítima e
exclamou vitorioso:
- Agora estás nas minhas mãos, cachorro!...
Andrzej encontrou os olhos dele, e seu olhar era tão
terrível que o promotor apenas balbuciou alguma coisa.
Szulubin e Priluka conseguiram uma vitória singular. Agora iriam até a hospedaria para beber wodka para
festejar, mas acabrunhados, não disseram uma só palavra
um ao outro. Priluka também encontrara o olhar condenatório do agonizante. Crédulo em feitiçaria como todos os russos, pôs na cabeça que iria ser castigado; enfeitiçado já estava...
Andrzej, cujas feições cobriram-se de uma palidez
quase mortal, cada vez menos mostrava sinais de vida, mas
ainda respirava... as pálpebras fechadas... os lábios contraídos de dor... o sangue, estancado com massa de pão e panos
204
queimados, gotejava aos poucos através destes, marcando o
caminho por onde era levado.
O promotor parecia feliz agora, mas os lábios torcidos num sorriso amargo, as rugas da testa e o brilho febril
dos olhos denotavam a angústia que o dominava. Não era
isso que esperava, queria-o vivo e recebia-o como um defunto, sem sentidos, talvez emudecido para sempre.
Revistaram a gruta, a casa, reviraram a terra em volta, rasgaram as vestes do fugitivo, descosturaram as cobertas de lã, tudo... mas os papéis que procuravam com
tanto afinco, não encontraram nenhum perto dele. Wasilewski teve tempo de rasgá-los em pedacinhos e engoli-los,
um a um.
Assim terminou esta última excursão, vitoriosa.
Szulubin voltou dela exaurido, pálido, sentindo-se
fraco, e para escrever o relatório precisou beber uma garrafa de rum. Será que só agora recobrou a consciência, que
estava semi-morta, acordou-se, ou, por não receber o que
esperava - com certeza, - mostrava-se triste e decepcionado.
Priluka recebeu o par de cavalos alazão e, com a feição risonha, seguiu para casa.
O prisioneiro, devido ao seu estado grave, só podia
ser internado no hospital militar, pois os médicos, após os
primeiros socorros, concluíram que não podiam garantir a
vida do paciente a não ser que lhe dispensassem os máximos cuidados. Andrzej foi deixado em cela especial, sob
vigilância restrita. Dois médicos, um local e outro do exército, incumbiram-se do tratamento. Fora atingido com um
tiro no peito, mas, felizmente, não comprometeu nenhum
órgão vital. Esta bala atravessou o corpo. Outra acertou no
quadril, deslizando pelo fêmur, deslocando-o e alojando-se
sob a pele. Os dois tiros não foram mortais, mas pela demora no atendimento, muito sangue foi perdido e o caso
tornara-se grave.
205
Após algumas horas nas mãos dos médicos, Andrzej
recuperou os sentidos, abriu os olhos, tentou arrancar os
curativos do peito e impedir o tratamento, mas a voz do
médico e a ameaça de ter as mãos amarradas se continuasse a debater-se, acalmaram-no.
- Como tens coragem de tratar-me? Bárbaros! – gritou desesperado. Só estão me curando para que sofra por
mais tempo, para que agonize e sucumba sob o látego do
algoz. Se fossem humanos, dariam veneno para mim.
Proibiram-no de falar, mas um médico moscovita,
um pouco mais audacioso pelo fato de que não havia ninguém naquele momento perto deles, murmurou:
- Enquanto existir um sopro de vida na pessoa, sempre há uma esperança. Nós executamos o nosso dever... e o
que Deus destina... só ele sabe. Fique tranqüilo, senhor.
Os dois médicos afirmaram com segurança aos superiores da polícia que durante muitas semanas não poderiam interrogar o prisioneiro, se quisessem conservar a sua
vida. Por sorte vieram ordens de Kiew e São Petersburgo
para que fosse dispensado o maior desvelo no tratamento do
prisioneiro, pois depositavam nele toda a esperança de descobrirem as mais importantes ramificações da insurreição
contra a ocupação russa na Polônia.
Os médicos locais receberam mais um auxiliar especializado, mandado pela cúpula do governo, que veio fiscalizar o estado do doente e empeender os meios mais eficazes para conservar a vida do detento.
Na tarde do próximo dia após os acontecimentos,
Krystyna informada sem cuidado do terrivel destino de
Andrzej, não resistiu e caiu por terra, desmaiada.
Voltando a si, só por alguns instantes, adoeceu tão
perigosamente, que o médico chamado às pressas pôs em
dúvida a salvação da sua vida.
206
A razão da doença não ficou oculta por muito tempo, pelo menos aos mais próximos, porque a enferma, ardendo em febre, falava de todo o seu desespero. O doutor
que a tratava era o mesmo que cuidava de Andrzej, e isso
podia salvar a pobre doente. Tomou conta dele uma imensa
piedade pela infeliz criatura.
Do outro lado, o prisioneiro, ao qual conhecia melhor a cada dia, acordou nele um sentimento de admiração e
respeito, pelo seu caráter de homem honesto e de energia
inquebrantável. Assim que Krystyna conseguiu entender o
médico, este sussurrou-lhe as encantadas palavras de consolo:
- Senhora - disse - recobre a fé, a saúde, a coragem,
Deus é grande... No mundo há mais pessoas honradas do
que pensamos, precisa viver e ter esperança sempre... e não
posso dizer mais nada à senhora, mas nós... nós temos obrigação de estar alerta, salvar, lembrar as pessoas que até o
último alento não devem desesperar. Precisamos admitir
que a sorte de Andrzej, até nos mais insensíveis moscovitas,
despertava piedade e sentimentos humanos.
Szulubin, que recebeu um novo prêmio pela recente
vitória, reconheceu, logo após o triunfo sobre o inimigo
político e pessoal, perseguido com a maior ferocidade, que
até os melhores amigos começaram a afastar-se dele – os
seus superiores tratavam-no com fria distinção, mostravamlhe o seu visível desprezo, evitavam estender-lhe a mão.
O vice-governador, de passagem pela comarca de
Luck, recebeu-o na porta, e na hora de despedir-se pôs as
mãos nos bolsos tão indiferente, que Szulubin, ao sair de lá,
já na rua, sentiu-se como um revolucionário rejeitado. A
mesma coisa aconteceu a Priluka.
Ambos sentiram-se tão isolados e detestados, mesmo pelos seus, que não eram nada melhores do que eles,
que o infame denunciante começou seriamente a pensar em
207
vender sua parte das terras em Berestecko e mudar-se para
a região do baixo Dnieper.
Szulubin resmungava que ia pedir demissão, estava
certíssimo que o exército ficaria muito sentido com a perda
de tão importante oficial. Na verdade, ninguém queria comentar claramente com os ditos senhores a razão da não
aceitação e aversão que causavam, mas num meio de amigos, são facilmente percebidas as expressões desses sentimentos.
O coronel, nas rodas mais íntimas, comentava com
entusiasmo os detalhes dos acontecimentos da sua expedição a Luck, mas, a cada vez, os ouvintes ficavam silenciosos e os mais decididos saíam da sala sob vários pretextos.
Ninguém os convidava para nada, evitavam-nos, e os interrogados disfarçavam sempre.
Esse procedimento dos seus inferiores na administração governamental não importava – mas até os funcionários graduados, que o admiravam antes, tratavam-no agora
direto, como um carrasco que prestou serviço ao governo,
cortando o pescoço da pessoa odiada por ele, ao qual pagase pelo trabalho, mas não se aceita sua amizade.
Sentimento amargo invadiu o coração do coronel,
que começava por meias palavras a reclamar da ingratidão
das autoridades às quais se dedicara.
Enquanto isso, a sorte do culpado e perseguido comovia até as pessoas indiferentes e mesmo as que tinham
outras convicções, mas que sabiam reconhecer e admirar a
heróica oferenda. Nem todos ousavam manifestar a sua
comiseração, mas todos se esforçavam em segredo para
demonstrá-la.
A doença, apesar da juventude e energia, requeria
um tempo maior, assim, pelo menos, afirmaram os honestos
médicos, querendo prolongar o momento de descanso e
208
folga do prisioneiro, pois sabiam que o aguardava um indigno, inexorável e terrível destino no futuro.
Não tinham dúvidas que, assim que lhe voltasse a
saúde, iria ser investigado, e quem conheceu pelo menos
um pouco do seu caso, está convencido que os carrascos
não conseguirão dele nem uma só palavra. Estava certo que
o esperava o martírio, a fome, o cativeiro e a pressão moral.
Se durante os prolongados interrogatórios sob tortura não
quisesse falar nada, ficaria condenado à forca ou trabalhos
forçados no inferno das minas da Sibéria.
Neste país de moscovitas, a tortura medieval ainda
se conserva até esses dias, com menos aparato para martírio, mas aplicam-na sem misericórdia nem piedade, com
extrema crueldade. Não existe um prisioneiro político mais
destacado que não seja açoitado, que não passe fome ou que
seja alimentado com arenque salgado, privado de água para
matar a sede.
Andrzej, recuperando a saúde aos poucos, mesmo
estando ciente do que o esperava pela frente, mostrava-se
bastante tranqüilo. Falava pouco e não estava preocupado
com o futuro. A doçura e o amargor desses dias roubados à
morte eram as notícias da sua amada, que o médico Karolenko, cauteloso e dedicado trazia-lhe, cada vez mais afeiçoado aos dois.
Karolenko conseguiu convencer o médico-chefe para que o doente fosse protegido do clima insalubre do hospital militar, e para sua total recuperação fosse transferido,
até o término do tratamento, para uma isolada, e afastada
residência. A febre tifóide que estava presente entre os soldados doentes justificava este cuidado.
As autoridades policiais negaram inicialmente, esse
procedimento era quase incomum; foi mandado um comunicado a Kiew, e como esse assunto era muito importante,
para recuperar a vida do prisioneiro, ameaçada com a infec209
ção pela febre tifóide, foi decidida a remoção do enfermo
para um castelinho próximo, com a condição de destacar
uma guarnição densa e vigilante em volta dele dia e noite e
patrulhamento intensivo do local.
Andrzej ainda não conseguia levantar-se da cama e
já temiam não se sabe qual eventualidade no futuro. A polícia russa, ao que parece, tem imaginação altamente confusa
quanto ao poder das artimanhas, da astúcia, organização e
recursos dos patriotas poloneses. Se por acaso um desses
infelizes consegue arrancar-se das garras deles é mais grato
à falta de habilidade dos seus guardiões do que à esperteza
dos seus correligionários, que são às vezes impulsionados
para o heroísmo pelo desespero.
Krystyna, depois da perigosa doença, estava se recuperando como se fosse por um milagre. Voltava-lhe rapidamente a saúde, mas levantou da cama como outra pessoa;
de uma alegre menina, tornou-se cautelosa, uma mulher
pensativa, de cujos lábios sumiu o riso juvenil; a testa enrugada, contrita, denunciava uma grande preocupação; os
olhos sem brilho, olhavam mais para o interior da sua alma, do que para o mundo que a rodeava.
Os dias inteiros caminhava pelo dormitório meditando, silenciosa e inquieta, lutando consigo mesma, preparando-se para o combate com o destino. A tia zelosa não a
abandonava por um só instante, acompanhava-a com os
olhos e tentava adivinhar as suas necessidades.
Às vezes, a pergunta insistente nem despertava a
atenção dela, mas de repente, como se acordasse de um
pesadelo, ficava apavorada e inconsciente. Sim ou não - era
a resposta comum às perguntas insistentes.
Arrancada dos seus pensamentos, voltava a eles de
imediato. A tia era enfermeira zelosa mas não entendia o
seu estado da alma. Recolhida em si, a jovem não reagia, e
como conseqüência a doença se prolongava.
210
A difícil e triste situação do pai, mesmo não tão desesperadora, justificava a apatia da pobre moça. O leal médico que a atendeu na doença, e mesmo agora vinha visitála de vez em quando, trazia-lhe notícias do pai ou palavra
de consolo de Andrzej. Ela mandou-lhe o santinho que representava a perseguição e sofrimento de Jesus Cristo, que
o moço guardou carinhosamente.
Como outros, sujeitos a longos períodos de inatividade, Andrzej fazia do miolo do pão do hospital flores e
pequenos artefatos, que mandava para a jovem...
Karolenko era bielorusso, como Priluka, mas completamente diferente dele, alma calorosa, leal, caráter nobre,
era o anjo da guarda dos dois.O seu coração contribuiu muito para a sua posição privilegiada no mundo.Era um corcunda feio, aleijão, tinha a cabeça grande e pontuda, as
mãos compridas e as pernas tortas. Parecia o Quasimodo,
ele mesmo fazia essa comparação em brincadeiras.
Comumente esta monstruosidade afasta as pessoas
do indivíduo excepcional e o afasta das pessoas, fazendo
dele uma pessoa má, raivosa e avessa ao mundo. Com Karolenko foi o contrário. Aumentou-lhe o amor ao próximo,
tornou-o sensível ao sofrimento alheio.
Às vezes temível, frio, às vezes ranzinza, mas na
privacidade era o anjo da bondade e sacrifício. No hospital,
só esses não o suportavam, aos quais não permitia roubar
ou saquear os doentes, o resto venerava-o. Médico excelente, era chamado constantemente para atender os doentes,
vivia feliz, era pobre, fato incomum entre a classe. Não
tinha uma moeda no bolso, porque não cobrava dos pobres,
ainda pagava os seus remédios e, se alguém não se recuperava por falta de alimento, ele abastecia-o de víveres e justificava que fazia isso por amor à ciência e à experiência.
Esses que leram o romance de Victor Hugo, “Notre
Dame de Paris”, chamavam-no de Quasimodo. Os estu211
dantes apelidaram-no de “Esopo” e os soldados de “Sapo”.
Mas todos o amavam e o respeitavam, ele mesmo ria dos
seus apelidos.
Numa tarde, semanas após terem aprisionado Andrzej, o leal Karolenko arrastou-se de novo para a casa de
Krystyna, onde sempre recebiam-no com festa. Como gostava de chá, a tia Martyna mandou imediatamente colocar o
samovar para esquentar a água. Ela mesma foi cuidar para
que não faltasse nada. O “Esopo” gostava de biscoitos e
doces, e abusava da única coisa que lhe dava prazer no
mundo – comer. A moça ficou só com ele.
- Diga-me senhor, fale - implorou - como ele está?
- Nesse estado como se encontra, ele está ótimo –
respondeu o médico – As feridas estão sarando, até muito
rápido... o meu maior medo, é que o transfiram para Kiew,
quando decidirem que está forte o suficiente.
- Está triste?
- Não diria que está. Antes, um pouco pensativo –
informou Karolenko - Ainda não conheci homem nenhum
com esse caráter tão forte, nada parecido.
- Ah! Senhor! – gemeu ela, dobrando as mãos em
oração – Caro senhor, se pudéssemos salvar essa pessoa!
O médico colocou os dedos sobre a boca.
- A senhora tem saído a passeio? – perguntou, após
decorridos alguns momentos. Agora está geando, está seco,
tempo lindo, até não faz muito frio, o ar fresco faria bem à
senhora. Por que a senhora não sai amanhã, ao entardecer,
se fizer tempo firme, digamos assim, para o lado dos conventos dos Beneditinos... Um esquisito piscar de olhos acompanhava esta recomendação médica, que a moça, de
início não entendeu, mas captou em seguida e respondeu
vivamente:
- Se tivesse esperança de encontrar o senhor?
212
- Pode ser que eu esteja passando por lá. Não gosto
de ficar fechado, mas pela profissão quase sempre estou
preso atrás de quatro paredes.
Depois, Karolenko investiu com gosto nos biscoitos
e doces que lhe trouxeram e, alegre, comentava as notícias
da cidade.
Por sorte, no outro dia o céu amanheceu claro, o ar
calmo, a geada leve. Krystyna, obedecendo à recomendação
médica, saiu com a serva em direção ao mosteiro dos Beneditinos. Por um feliz acaso, encontrou o médico.
- A senhora saiu com a roupa muito leve – comentou ao se encontrarem – mande buscar um xale mais quente
ou agasalho, pela serviçal, e nós esperaremos por ela passeando.
Quando a serva distanciou-se, o médico olhou em
volta. No horizonte não havia ninguém, nem carruagem do
delegado, nem o coche do promotor e nem o nariz vermelho
de um funcionário.
- Sabe, senhora - falou - que esta cidade de Luck é
muito antiga. Havia outrora, como dizem as crônicas, um
castelo enorme, formidável, e hoje só existem solidão e
ruína! Os sinais da antiga majestade foram cobertos por
caliça e pedra. Jazem embaixo dos pés dos passantes. Pelos
jardins os cidadãos desenterram lousas de mármore que
ornavam os palácios antigamente.
- Fala-se em segredo que por toda a cidade, antigamente murada, e hoje tão devastada e miserável, existem
extensos e antigos túneis, pelos quais pode-se passear por
toda a cidade subterrânea. Existem, ainda, pessoas que os
conhecem. Eram antigamente, com certeza, adegas dos
magnatas, ou depósitos dos comerciantes armênios, mas é
mais provável serem restos de fortaleza e meios de fugas
das invasões dos inimigos. Só é certeza que os túneis exis-
213
tem intactos até hoje... quem sabe? Pode ser que lá escondam contrabando das vistas do inspetor de polícia?
Krystyna ouvia-o, sem coragem de interromper.
- Aconteceu uma vez – continuou ele - quando cavavam a terra para fundação de uma casa, caiu um paredão,
deixando descoberto um túnel. Não deixei de olhar para
dentro, sou bem corajoso, mas descendo um pouco por curiosidade, assustei-me com as escuras profundezas, labirintos... Existem pessoas que conhecem todos esses corredores, mas isso é segredo deles, têm medo que o único esconderijo que têm para fugir da polícia seja descoberto.
Começou a rir.
- Dizem – acrescentou sussurrando – que perto do
confiscado mosteiro dos Beneditinos, onde o bispo Piwnicki também tinha um túnel próprio para guardar o seu tesouro, vive ainda um antigo sacristão da igreja, chama-se
Wojciech Treiba, com oitenta anos, outros dizem que tem
cem, pois é, desse homem é que corre a fama que só ele
conhece esta cidade subterrânea tão bem que, mesmo sem
luz, pode passear por ela. O mais curioso, ele sabe exatamente qual passagem segue em que direção e por baixo de
qual casa ou mansão se aproxima mais; há algumas casas
que estão sobre os túneis sem ninguém ter conhecimento
disso até hoje.
Krystyna escutava cada vez com maior atenção.
- O senhor está falando sério disso? – perguntou.
- Estou! Com a maior seriedade, e tenho certeza disto que estou falando. A senhora pode acreditar. Alguns túneis podem não ser tão extensos como as pessoas crédulas
falam, mas mesmo que não cheguem em baixo de todas as
casas, cavando-se pode-se unir um a outro túnel próximo,
isso para quem conhece bem o local. Morar numa cidadela
tão antiga – disse, rindo-se – a pessoa está adormecendo
tranqüila, de repente um ladrão pode sair de baixo da cama.
214
- E o senhor ouviu que este velho sacristão dos Beneditinos ... interrompeu Krystyna.
- Assim dizem as pessoas, mas é certeza. Ele chamase Wojciech Treiba, todos aqui o conhecem bem, mas chegar perto dele não é fácil. Esse homem reza o dia todo, não
gosta de conversar com as pessoas, ele é excêntrico, avarento. Afirmam que é rico e nesses túneis, em alguma parte,
guarda os seus tesouros.
Karolenko ria, piscando os seus olhinhos pretos.
A moça ouvia-o com atenção. Ele às vezes interrogava-a com os olhos, para ver se o entendia, mas não poderia dizer.
A serva chegou com os agasalhos e a jovem perdeu
o interesse pelo passeio e, pensativa, voltou para casa.
Karolenko despediu-se na encruzilhada.
Após a prisão do principal culpado, o destino dos
outros prisioneiros podia até melhorar porque eles faziam
parte de outra categoria de envolvidos. Principalmente o
magistrado Zaglowski, devido a diligentes recursos apresentados pela filha e tendo melhorado a sua saúde, recebeu
a promessa, diante de um novo pagamento régio, de que
poderia ser solto com a condição de se apresentar à comissão, assim que fosse chamado.
As autoridades prolongavam a liberação, entretanto,
de um dia para outro. Somente Krystyna não reclamava da
demora em deixar a cidadezinha. A tia Martyna admiravase, deveras, com a mudança do seu humor e incomum religiosidade da sobrinha.
Amiúde saía para assistir à missa, novenas, meditação, rosários; às vezes, ia à catedral, outras ao mosteiro. A
tia gostaria de acompanhá-la, mas raramente podia ir junto
com ela, sempre aconteciam pequenas surpresas que a impediam. Nem mesmo levava consigo a serva, mas numa
cidade pequena ninguém se incomodava com isso. Viam
215
ela seguidamente em companhia da irmã de caridade Vincentina, já bastante idosa.
Neste tempo houve algumas modificações entre os
funcionários sediados em Luck. O coronel Szulubin foi
nomeado general e transferido para Wologda, na qualidade
de comandante. O pobre e leal Karolenko, suspirando profundamente, juntava suas roupas e pertences, que eram
poucos, e transferia-se como médico do hospital militar,
para Kowel. Ambos, por diferentes razões, não estavam
contentes em abandonar a cidade, à qual acostumaram-se,
mas quem é funcionário do governo, é seu escravo.
Szulubin providenciava a viagem lentamente. Confidenciava aos amigos, dando a entender que não estava
contente com esta promoção e que tinha o direito de esperar
algo melhor. Wologda parecia-lhe mais ou menos desterro,
era no interior da Rússia, lá não poderia abusar sem ser
admoestado pelos superiores, não era como ali nas províncias ocupadas, que podia fazer o que bem quisesse.
- Hulaj duszo! puki morzesz - dizia rindo.
O doente, desde então, melhorava a cada dia, e toda
semana mandavam o relatório para Kiew, assinado por três
médicos, que no prazo de um mês, prometiam entregá-lo à
comissão, já bem fortalecido, para o martírio nas mãos dos
algozes.
Karczynski e Filkowski, por causa da investigação
não ter começado ainda, tinham a licença de permanecerem
na prisão local; mas deviam ser transferidos juntamente
com o principal culpado para Kiew. Filkowski estava algemado e vigiado com extremo cuidado.
Nesse meio tempo, o médico-chefe foi embora, e a
vigilância sobre o preso, entregue às autoridades militar e
policial. Agora somente os médicos locais atendiam o convalescente, de modo que tudo estava evidente quanto ao
seu próximo e inevitável destino.
216
Todos os que o viam sofriam e não deixavam de
lastimar a sua sorte, ficavam tocados pela energia jovem,
seu caráter nobre, coragem indômita de um idealista e uma
paz de espírito invulgar estampada no seu semblante. Os
soldados de plantão, aos quais não era segredo o seu destino, admiravam-se ao ouvir, ao entardecer, um canto de
melodias saudosas, melancólicas...
Depois da partida de Karolenko, Krystyna não recebeu mais notícias do prisioneiro. Mas ela também parecia
serena. Será que o tempo poderoso acalmou o vendaval de
sentimentos impetuosos? Ou o coração aninhou alguma
esperança incompreensível aos outros?
Já no inverno, o magistrado Zaglowski conseguiu
finalmente a licença temporária para ir para casa. Não perdendo um só minuto rumou para Radziszew levando a filha
e a tia. Seguiu com grande proteção policial.
Krystyna permaneceu na igreja até o fim do último
dia, na companhia da irmã de caridade Vincentina e, chorosa, abandonou a cidade. De longe, ainda abençoava com a
Santa Cruz. A sua permanência na cidade de Luck ficara
marcada na sua memória para o resto da vida. Deixou com
a freira uma carta para ser entregue a Andrzej, encaminhada
a ele pelo sacristão Wojciech Treiba.
A carta dizia:
“Meu querido Andrzej!
O destino fez com que nós nos conhecêssemos em
ocasião perigosa e invulgar, agora nos separa numa hora
mais trágica ainda. Rogo a Deus, nosso Pai, que você consiga salvar-se.
Livre... imploro para que me esqueças, vou dedicar
a minha vida a Cristo... o nosso amor é impossível... não
arrisque a tua vida para encontrar-me; farei votos como
freira na ordem das Clarissas; vou recolher-me ao convento
em Oremburgo, para onde meu pai foi deportado.
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Amor da minha vida, jamais vou esquecer-te, dedicarei toda a minha existência orando pela tua vida e felicidade. Viverei feliz sabendo que estás salvo... no silêncio do
claustro, na companhia das irmãs em Cristo.
Desta que te ama,
Krystyna.”
Dias após a partida do magistrado e sua filha, chegaram ordens de Kiew e, no maior segredo, foi decidido que
no outro dia Andrzej seria transferido.
Carruagem, algemas, guardas, gendarmes, tudo estava pronto, quando no meio da maior tranqüilidade, com
nada que a turvasse, caiu a novidade como um raio. O prisioneiro – o maldito agente secreto – guardado como menina dos olhos por todo um destacamento de soldados, num
dia claro, sumiu de um modo impossível, sem que ninguém
pudesse explicar.
Já mencionamos que o castelinho destinado ao abrigo do prisioneiro ficava próximo à enfermaria do hospital
militar. A residência era de madeira e pedras, construída
sobre os muros da fortaleza antiga, que serviram como
alicerce. Compunha-se de um saguão extenso, uma sala
grande, lugar no qual parte da guarda descansava, e um
dormitório reservado ao preso. As janelas estavam pregadas
com tábuas, protegidas externamente por grades de ferro.
Além disso, um soldado na ante-sala vigiava sempre em
frente da porta e dois gendarmes com carabinas ficavam de
prontidão, embaixo das janelas com grades.
Na vigília desse dia, o doente ainda estava de cama,
nem levantar podia; à tarde, o enfermeiro fez curativos na
ferida dos quadris, porque a do peito já havia sarado e cicatrizado. O que causou mais espanto é que de manhã ainda
houve a visita do médico e do assistente, correu tudo de
modo costumeiro, o encarcerado não deveria saber que à
tarde seria transferido para Kiew.
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Das nove horas a uma hora da tarde, ninguém havia
entrado no quarto, a vigilância não tirava os olhos da porta,
a qual estava fechada a chave. Não se ouvia nenhum ruído
no cômodo, quando no horário do almoço, de acordo com o
estabelecido, o soldado abriu a porta com a chave, na frente
do funcionário do governo, entrou trazendo o almoço.
De início não acreditou nos seus olhos, não encontrou o prisioneiro no quarto, a cama estava vazia. Desorientado, saiu para perguntar ao colega que estava de plantão se
já tinham transferido o preso. O soldado pensara que fizeram uma brincadeira com ele. Os dois, ele e o funcionário,
conferiram mais uma vez. Realmente o cômodo estava vazio, ninguém estava lá. A cama, um pouco desarrumada,
mas, no lugar. O doente sumiu. O soalho e o teto estavam
intocados.
Para as pessoas simples parecia feitiçaria! Para outros, indecifrável segredo; e meia hora depois do alarme
dado, muitas pessoas que poderiam ser responsabilizadas
pela fuga, correram até o castelinho, no maior desespero,
apavoradas. Todos estavam aflitos. No mesmo instante já
combinavam se não era melhor darem-no como morto, mas
o caso já estava muito alarmado.
O fato era que o médico e o cirurgião viram-no, falaram com ele de manhã, a porta estava hermeticamente
fechada à chave, a guarda constante, as janelas intactas,
sem mexer, tudo em ordem, só faltava o prisioneiro...
Mas como? Por onde poderia assim voar? E isso ultrapassava o entendimento humano... Os moscovitas juravam que ele só podia ser feiticeiro, mas os funcionários
graduados não podiam permitir um fenômeno nem milagre,
acusavam-se mutuamente de traição e corrupção.
Encontrar a pista era impossível - não havia vestígio
nenhum – comentavam os moscovitas. Comissão após comissão vinha ao castelinho, rodeado de densa guarda, exa219
minava as paredes, arrancava os assoalhos, vistoriava todos
os cantos e, não conseguindo nada, ia embora, duvidando
da própria inteligência.
- Será que alguém ajudou-o a sair? - murmuravam Mas quando ? Como?
O médico, o assistente, soldados da guarda, todos
estavam presos, interrogados inutilmente. Cada novo funcionário ou chefe que vinha ria-se da incompetência dos
que o precederam, debochava e insultava-os. Jurava que ia
descobrir o segredo e depois ia embora, descrente, odiando
as intrigas polonesas e a esperteza dos subversivos, secretas
sedições a que todos pertenciam.
Após cinco comissões, civis, do exército e da polícia
secreta investigarem esse infeliz pedaço de terra, em Kiew,
onde as autoridades superiores esperavam pelo emissáriorebelde, polonês, a insatisfação crescia espantosamente.
Finalmente foi nomeado, em São Petersburgo, pelo comandante-chefe da polícia, um investigador, simples e desajeitado, alemão, chamado Wilhelm Schlieman. Era natural de
Berlim, mas havia tempo trabalhava na Rússia. Era famoso
em desamarrar nós górdios.
Ninguém atribuiria sabedoria ao Wilhelm Schlieman
se avaliasse o seu aspecto, parecia um alemão comum, igual a dúzias deles, aos quais uma boa cerveja não era indiferente, tinha um jeito sonolento, e um atributo que não era
recomendável a um policial, era até incômodo, uma barriga
redonda e saliente. Olhava tudo em silêncio, fumando cachimbo, que lhe pendia de um lado da boca. Sugava-o de
vez em quando ruidosamente.
Schlieman destacou-se em diversas missões no país
e no estrangeiro, conseguiu o posto de conselheiro do Colégio Militar, o que não é bagatela; e na lapela colocava centena de fitas de condecoração. Como foi recebido pela polícia de Luck é fácil de adivinhar; vinha da capital. Mas pelas
220
costas riam dele, cochichando: “Será que ele descobre algo?
Se pessoas mais competentes não acharam nada?”.
No primeiro dia, Schlieman fumava cachimbo e lia
os relatórios dos seus precedentes, através de grandes óculos pendurados no nariz.
No outro dia, foi passear pela redondeza e no terceiro dia, nada fez, bocejava, reclamando que não tinha cerveja que prestasse na cidade. No quarto dia foi até o castelinho; atrás dele foram o chefe de polícia Rassim e diversos
palpiteiros oficiais. O agente alemão, entrando no aposento,
olhou, encheu o cachimbo, sentou na cama e fumou em
silêncio; enquanto o cachimbo não ficou bem aceso, tragava
e soltava a fumaça seguindo a sua dispersão.
Meditava...
O coronel Rassim estava parado na porta com o
semblante carregado, penalizado pela importante reputação
de um homem que punha em risco a fama conseguida em
muitos anos, a perdê-la em uma cidadezinha insignificante.
De repente, o alemão levantou a cabeça, sorriu, e
com um gesto da mão chamou o chefe de polícia.
- Peço que o senhor mande buscar umas pessoas
com enxadas e machados.
Rassim, encobrindo o riso de deboche, sacudindo os
ombros com indiferença, rumou para mandar executar a
ordem do alemão. Não foi tão fácil encontrar enxadas e
machados nas vizinhanças e trazê-los até ali. Três soldados
estavam na porta esperando. Schlieman só então levantouse, limpou o cachimbo e mandou que afastassem a cama.
Embaixo tinha um soalho igual, como no quarto todo. Começaram a arrancá-lo, quando, de repente, uma tábua, com apenas pequeno toque, levantou a ponta, não estava pregada, apenas fixada no lugar. O chefe da polícia
empalideceu. A tábua que estava levemente colocada escondia uma passagem subterrânea, funda, escura. Schlie221
man mostrou a Rassim, que já estava desconfiado que era
por ali que o preso devia ter descido, e, para disfarçar, recolocou de novo as tábuas atrás de si.
Os moscovitas ficaram deveras admirados com a
perspicácia e inteligência do fleumático alemão. Schlieman
mandou buscar escadas para descer ao túnel. Olhando para
dentro de perto, descobriram que havia uma viga forte de
madeira, na qual fora amarrada uma corda feita de lençóis
torcidos; por ela o prisioneiro tinha descido.
Os soldados colocaram as escadas presas uma a outra dentro do túnel, e um dos soldados desceu antes para
testar a resistência. Com a lanterna na mão desceu Schlieman, e, contrariado, desceu também o comissário.
Embaixo do castelinho havia uma adega antiga, seguia-se um corredor subterrâneo e, partindo deste, uma longa garganta abobadada que levava para o lado por uma dezena de metros. Estendia-se, o que se apresentava, para
mais longe, mas estava trancada com entulhos e tijolos recentemente empilhados de propósito, para atrasar quem
quisesse segui-los, pois que teriam que remover todo o
escombro, num trabalho moroso e cansativo.
Depois de retirar os tijolos, terra e pedras, seguiram
adiante, não pelo corredor murado, mas por uma passagem
cavada na argila, semelhante às catacumbas romanas ou
cavernas próximas a Kiew. O alemão, que prestava atenção
a tudo, descobriu pegadas de pés humanos na poeira que
cobria o caminho e concluiu, examinando-as com atenção,
à luz da lanterna, que seguia uma só pegada rumo à adega
do castelinho, e de volta havia rasto de pés de duas pessoas.
Numa distância considerável, novamente a passagem da caverna foi impedida com entulho e pedras, para
dificultar o trânsito. Caminhavam em diversas direções,
vagando para a direita e para a esquerda, mas o alemão investigava as pegadas e guiava-se por elas. Nas paredes late222
rais, encontravam portas fortemente muradas e muito antigas, que, com certeza, levavam a outros túneis.
Finalmente, depois de percorrer caminhos difíceis e
assustadores, espantando morcegos que saíam em revoada
pelo túnel, e muitos ratos que subiam pelos pés dos caminhantes, aterrorizando-os, enxergaram uma fraca luz diurna,
infiltrando-se entre as folhas e galhos entrelaçados dos arbustos. Era o final do túnel com uma abertura de aproximadamente um metro e meio de altura que saia na margem
do rio Styr, num lugar isolado, longe da cidade.
Em vista disso, terminava ali a investigação, pois
era uma prova convincente de que o prisioneiro evadiu-se
pelos túneis secretos existentes debaixo do castelinho. Mas
quem orientou-o e guiou-o para a saída? Isso a investigação
mais apurada não desvendou. Os colaboradores da fuga
ficaram incógnitos, para desespero dos seus perseguidores.
Quiseram incriminar os que indicaram o castelinho
para abrigar o prisioneiro, mas esses facilmente livraram-se
da injusta acusação, provando que não eram habitantes locais e não podiam saber nada referente a túneis secretos
debaixo da cidade de Luck, sobre os quais nem a polícia da
cidade tinha conhecimento. Com a fuga do insurreto Andrzej Wasilewski, muitas coisas poderiam ser encerradas mais
facilmente, porque podiam lançar a culpa sobre ele de tudo
o que quisessem.
Entretanto, Filkowski e Karczynski, que eram considerados os principais culpados, apesar das providências e
empenho das famílias, foram condenados para desterro em
Irkutsk, na Sibéria. O magistrado Zaglowski foi deportado
por tempo indeterminado para Oremburgo, cidade na beira
do rio Ural, no sul da Rússia. De Andrzej, desde esse tempo, ninguém mais ouviu notícias, sumiu, como se tivesse
caído na água.
223
***
Um ano depois desses acontecimentos, o nobre magistrado Zaglowski conseguiu uma boa recomendação da
autoridade de Oremburgo (jogava cartas com o governador)
e, ainda, um atestado sobre mau estado da sua saúde, e,
como especial favor do czar Nicolau I, conseguiu licença
para voltar a Radziszew, mas sob estreita vigilância policial. Isso significava que seria alvo de extorsão pela polícia
corrupta.
A saúde muito abalada com os acontecimentos recentes, mesmo ali no meio do ar puro do campo, não estava
melhorando. Entristeceu, envelheceu, afligia-se e queixavase de dores; foi a Kiew e ficou por lá durante um mês, recebeu novo atestado da autoridade recomendando tratamento
médico, era-lhe conveniente procurar um lugar tranqüilo, de
clima ameno, para morar.
Como não podia ocupar-se com a administração e
negócios da propriedade, e tendo aparecido um comprador
para Radziszew, bom e velho amigo do magistrado, Pan
Warchowski, a propriedade foi vendida. Antiga e secular
herdade dos tataravós, passou para mãos estranhas.
Enquanto o negócio representava apenas uma transação financeira, o magistrado não parecia sofrer muito,
mas quando terminaram as formalidades e era preciso dar
adeus aos cantos queridos, onde as pegadas dos pés dos pais
e avós estavam impressas nos pisos, onde nasceram, brincaram quando crianças, viveram, adoeceram e morreram;
onde derramaram lágrimas de dor e de felicidade. Onde os
fantasmas familiares passeavam pelos corredores, nas horas
mortas da noite; terrível dor apertou o coração do velho
Zaglowski. O magistrado, a tia, até Krystyna, até aí brincalhona, andavam com lágrimas nos olhos, não conseguindo
separar-se das abençoadas lembranças do passado.
224
Da aldeia, a cada instante aparecia alguém na mansão, chorando. A ama de leite de Krystyna, a irmã de leite
do velho magistrado, comadres, afilhados, amigos e serviçais, todos com a incerteza do que traria o dia de amanhã;
gemiam, choravam, enxugando as lágrimas nas mangas das
blusas e camisas. Zaglowski distribuía alimentos, repartia a
terra aos aldeões, mas aos leais serviçais, ele mesmo e seu
coração bondoso de pai iria fazer muita falta, e eles sofriam
por isso.
Pan Warchowski, que o substituiria, era uma pessoa
muito boa, honrada, pacífico por natureza. Mas com a família Zaglowski, essas pessoas trabalharam, viveram, conheciam-se, tantos anos transcorreram, de felicidade e de tristeza e, portanto, os últimos dias foram difíceis e tristes, para
todos.
Krystyna andava, parava, olhava e enxugava as lágrimas. Cada aposento significava algo para ela, mesmo
para uma vida ainda tão curta. O magistrado e a filha iam
viajar juntos para Oremburgo, ela para a clausura no convento das Clarissas e ele ao desterro, próximo ao mar Cáspio. A tia, que levava parte dos móveis e utensílios, conseguiu abrigo no convento local, não querendo abandonar o
país na velhice.
Zaglowski prometia voltar logo, e parecia estar nos
seus planos, mas no entremeio de suas palavras dava para
entender que nem logo e nunca mais voltaria para o país.
Despedia-se para sempre.
Era o último dia que estavam em Radziszew, esperavam a chegada de Pan Warchowski, que viria receber a
sua nova propriedade. No pátio estava reunido um pequeno
grupo de pessoas das aldeias pertencentes a Radziszew.
Pelos quartos semivazios, caminhava o pai com as mãos
sobre o peito e a filha amparando-o.
225
Assomavam lágrimas aos olhos do velho, mas fingia indiferença diante da filha, para não magoá-la mais ainda. Pela janela via-se o pomar que fora plantado pelo magistrado, mais adiante os campos e florestas. Parou por um
instante para encher os olhos com essa visão amada, e não
podendo suportar, disse:
- Minha criança, você é jovem, está apenas começando a viver, acostumar-se-á a outros modos de vida, em
outro país, não será tão difícil, mas a mim, que já estou no
fim, a lembrança dos dias passados, mesmo estando no paraíso, me chamará de volta. Para esse lugar trouxe a tua
mãe, aqui vivi com ela muitos dias felizes, aqui você com
sua juventude iluminou meus dias de viuvez, tive amigos,
tive dias amenos, em último caso, pelo menos silêncio e
tranqüilidade, exigem-me sacrifício, faço-o, não reclamo,
não me queixo, apenas deixem-me ter saudade...
Falando assim, beijou a filha na testa. Ela abaixou a
cabeça para beijar a sua mão. Estavam em frente da lareira,
cuja portinhola secreta salvou a vida de Andrzej. Ela olhou
na sua direção, as suas faces ruborizaram-se e ela disse:
- Nunca tive segredos para você, meu pai querido,
esse esconderijo que você inventou salvou a vida do meu
herói, serviu-lhe de abrigo, e no momento em que o indiquei, decidiu sobre o meu destino e meu futuro. Ao homem
que salvei, afeiçoei-me intensamente.
- Então foi você que o escondeu? Como? Quando?
Krystyna corando, mas com tranqüilidade de um coração puro, relatou tudo ao pai pela primeira vez. O magistrado ouvia em silêncio, pensativo.
- Milagres existem, - respondeu finalmente. Mas esses milagres só um amor verdadeiro é capaz de realizar e só
um afeto puro e santo como o teu. Não era impossível fugir
de Radziszew, mas quem poderia, e de que maneira conse-
226
guiu arrancá-lo daquela prisão em Luck, tão vigiada e fortificada, com tanta precisão?
A filha, silenciosa, beijou a mão do pai, olhou-o nos
olhos, e falou bem baixinho: - Deus.
- Mas com a mão de quem? Não será.... não foi com
a tua mão, minha querida criança?
- Com a minha frágil mão de mulher o milagre aconteceu, ajudaram-me amigos leais.
O pai bateu as palmas surpreso. Neste instante ouviu-se o tilintar dos sininhos e o estalar do chicote anunciando a chegada do novo proprietário. Ainda permaneciam
perto da lareira quando Pan Warchowski entrou e estendeu
a mão ao amigo.
- Ouve, Warchowski – disse ele depois das boasvindas, levando-o junto à tampa que fechava o esconderijo
e mostrando-lhe como funcionava – ninguém deve saber
sobre isso, apenas você... aí você tem um lugar seguro para
se esconder, e que já salvou a vida de uma pessoa. Faço
votos de que não precise nunca, mas, se Deus nos livre precisar esconder-se ou esconder alguém ou alguma coisa...
***
Krystyna conseguiu falar com o sacristão Wojciech
Treiba, quando ia à igreja nos últimos dias, antes de sua
volta à Radziszew.
O bom velhinho dispôs-se a ajudá-la; conseguiu reunir amigos de plena confiança, comprometidos com a insurreição e prontos a socorrer os seus correligionários. Primeiro desimpediram de entulhos as galerias subterrâneas
que estavam mais próximas do acesso ao castelinho, onde
Andrzej estava preso. Uniram as galerias para dar passagem
desde o quarto onde estava o prisioneiro.
Naquela manhã, depois que o médico e o cirurgião
fizeram a visita ao doente, examinaram-no, fecharam a por227
ta e foram embora, Andrzej cochilava, quando ouviu batidas leves no assoalho, debaixo da sua cama. Levantou a
cabeça e escutou uma voz no subterrâneo que sussurrava:
- Erga a ponta desta tábua, ela está solta.
- Quem é? – perguntou Andrzej, surpreso.
- Amigos! – responderam.
O doente, com todo cuidado, desceu da cama gemendo, pois a ferida da coxa ainda doía muito, abaixou-se e
olhou debaixo da cama. As batidas leves continuavam. Andrzej levantou a ponta da tábua e viu um homem que lhe
falava baixinho:
- Rasgue o lençol em pedaços, faça uma corda, amarre bem nesta viga que está encostada na parede do túnel
e desça com cuidado por ela, espero por você aqui. Reponha com cuidado a tábua solta, para não denunciar que foi
mexida, faça tudo muito rápido e que Deus nos ajude!
Andrzej trabalhou rápido e em silêncio. Tudo pronto, desceu pela corda, repondo a tábua no lugar exato onde
estava antes.
- Quem mandou o senhor aqui para me salvar? –
perguntou ao homem que o esperava no túnel com uma
tocha na mão para iluminar o caminho.
- Foi a pedido de um anjo do céu – respondeu este.
Caminhavam rápido, obstruindo o caminho com tijolos, pedras e entulho. Quando avistaram a fraca luz do dia
no final do túnel, o prisioneiro chorou e agradeceu:
- Oh! Deus! Mais uma vez salvastes a minha vida! –
e caiu de joelhos.
- Diga-me, senhor - insistiu ele - quem te pediu para
que me raptasses das mãos da morte?
- Foram amigos leais, correligionários, também a
pedido de uma jovem de uma beleza angelical; ela não nos
disse o nome, mas deu-me esta carta para te entregar, é tudo
o que sei. Agora apressa-te – disse o homem - pegue este
228
barco e desça pelo rio Styr por dentro da floresta até onde
os teus amigos te esperam escondidos na margem, daqui a
cinco quilômetros. Apressa-te, pois os carrascos estão no
teu encalço - avisou o bom velho - e que Deus te proteja!
O desconhecido sumiu no meio da mata densa.
Ao subir na canoa, esta balançou, depois aprumouse e ouvia-se apenas as batidas dos remos na água clara,
deslizando em silêncio, em ziguezague por entre os juncos
luxuriantes. Gotas de chuva passageira ainda tremeluziam
nas folhagens ribeirinhas, faiscando como diamantes.
Os amieiros curvavam os seus galhos para a água; o
dia era de céu límpido. Andrzej remou rápido pelas águas
silenciosas, ouvindo apenas o sussurro do vento nas folhas
das árvores seculares da floresta do Polesie.
Viajou por uma hora descendo o rio.
As ondas silenciosas, planas, marcavam com larga
listra o espaço percorrido, alcançavam a margem, batiam
levemente no barranco e sumiam. O fugitivo remava cadenciado, firme, sem chapinhar com o remo. Conduzia a canoa
com cuidado, esforçava-se para mantê-la no meio, desviava
dos galhos pendentes e das raízes caídas no fundo do rio.
Nos rios do Polesie, o ar de exotismo e as paisagens
selvagens, com árvores de raízes descobertas, lavadas pelas
enchentes, que se enrolavam nas outras, sumiam e de repente apareciam trançadas nas formas mais fantásticas, tudo
exalava o hálito dos pântanos do norte.
O pantanal do Prypet foi escolhido como o lugar
ideal para o quartel general dos insurretos, guerrilheiros
poloneses no levante de 1830. Os caminhos entre as areias
movediças e tremedais, só eles conheciam... ali eles estavam seguros.
O fugitivo ainda estava remando quando ouviu um
forte barulho de ramos quebrados e o troar de centenas de
cascos e mugidos de bezerros e vacas; era uma manada de
229
bisões selvagens, que vinha beber água no rio e assustou-se
com a aproximação da canoa. Bandos de patos selvagens
levantaram vôo grasnando assustados.
Depois de remar por mais meia hora, desviando-se
dos lugares expostos pelas clareiras a canoa encostou na
margem. Andrzej, envolto numa capa comprida, sem boné,
levantou-se com dificuldade, desceu e seguiu com passo
inseguro pela mata, não olhando para trás, mesmo quando a
onda levou a canoa e, batendo com ela num toco que emergia da água, empurrou-a para frente, para além.
Guerrilheiros esperavam-no na beira da floresta.
- Aleksy! Anton! Amigos! - gritou alegre Andrzej –
finalmente estamos juntos!
Caminhavam pela mata densa, para dentro dos charcos, pelas trilhas que só eles conheciam, até o acampamento
do comando de guerrilha. Orientavam-se pelos raios opacos
do sol que atravessavam os galhos das árvores. Seguiram
para o norte, depois para o leste, na direção do rio Prypet.
O rio Styr nasce perto de Radziszew, corre vagarosamente no seu largo leito, pelo meio dos pântanos, até desaguar no rio Prypet (afluente do Dnieper), o qual atravessa
os alagadiços e os grandes pântanos de Pinsk.
O céu começou toldar-se, nuvens pesadas formaram-se no horizonte e, à tarde, principiou a nevar. A natureza deu uma ajuda aos três guerrilheiros, pois a neve cobriu todas as pegadas deles. Sem uma nódoa, sem o menor
vestígio de passos, nenhum odor humano. Havia apenas um
manto extenso de neve.
- Que demora! - reclamou o tenente Pawloski, que
fora até a floresta com seis homens para encontrar Andrzej
e os companheiros que estavam custando muito a chegar.
Percorriam a mata com cautela, como lobos fugitivos, levavam pistolas e espingardas com munição. Vestidos
com peças de uniformes russos, quando encontravam sol230
dados moscovitas isolados, atiravam para matar, levavam
os farnéis, pegavam as armas e tiravam os uniformes dos
mortos.
Nos pântanos do Prypet havia quatrocentos camponeses e soldados esperando por armas, roupas e alimentos.
Toda noite saíam em revoada como vespões gigantes e ferroavam o corpo russo. Denominavam-se como “Frente Polonesa de Libertação”. Os russos os chamavam de guerrilheiros e fuzilavam todos os que encontravam.
O capitão Lech Zaswilikowski pertencia ao exército
clandestino polonês. Era um adepto da disciplina, não ria
nunca, era compenetrado e responsável. Conduziu o grupo
de guerrilheiros aos pântanos do Prypet. Bem no meio dos
charcos, em grandes ilhas firmes, que só alguns poucos
camponeses sabiam como alcançar, e onde os caminhos de
galhos e tocos ficavam meio metro abaixo da superfície
enlodada, ele treinava os guerrilheiros, como se fosse um
quartel em Warszawa ou Lublin.
Faziam exercícios, mandava-os caminhar pelos brejos para melhor familiarizar-se com eles. Mantinha disciplina rígida e ensinava saudação militar, treinava-os no tiro
com alvos móveis e conseguiu formar um pequeno grupo
de atiradores que, mesmo caindo, ainda conseguiam acertar
e furar uma folha do tamanho de um pires, jogada para o
alto pelo capitão Lech. Não mediam sacrifícios.
Os russos eram implacáveis em suas incursões pelos
alagadiços contra os guerrilheiros, e esses retribuíam atacando sem clemência os destacamentos russos ou o transporte militar, boicotavam serviços públicos, estradas de
ferro, explodiam pontes, e tudo o que pudesse desarticular o
inimigo.
Assim eram eles, rapazes jovens, quase crianças,
rudes, todo sentimento de medo afugentado dos seus corações. Outrora eram camponeses, aldeões, cordatos e traba231
lhadores, operários das fábricas, habitantes das cidades,
funcionários e até mesmo alguns profissionais liberais, médicos formados, arquitetos e engenheiros.
De todos, estes eram os mais importantes, em qualquer guerra precisava-se de um médico; o arquiteto construía trincheiras e cabanas no meio do pântano; o engenheiro
consertava as armas e com ajuda de dois ferreiros fabricava
requintadas minas, com as quais salpicava os caminhos
estreitos e firmes dos pântanos.
De que serviria o sentimento de humanidade numa
hora dessas? Quem falava em crueldade? A ordem era destruir tudo o que era russo, para que assim saíssem da nossa
terra. Não podia haver trégua.
Depois de caminhar muito, Andrzej e os dois amigos encontraram o tenente Pawloski e os seis soldados que
saíram para encontrá-los. Seguiram juntos rumo ao acampamento. O capitão Lech ficou muito surpreso ao ver Andrzej - o mensageiro, afundado até os joelhos na água lamacenta e procurando o caminho escondido, tateando com os
pés. Antes dele, a sua fama já tinha chegado ao acampamento; a sua coragem e o seu devotamento à causa da pátria.
- Entrem na minha cabana – convidou Lech
Era um dos abrigos invisíveis cavados no pântano,
uma invenção do arquiteto de Zamosc. Neles dava para
viver bem, era difícil descobrir os esconderijos dos homens
do brejo; eram como os castores e os ratos d‟água, ninguém
conseguia vê-los, mas bem que roíam as estruturas inimigas.
O recém-chegado e o capitão conversaram a noite
toda. O emissário informou-o dos acontecimentos recentes,
relatando tudo a respeito da insurreição no país.
Pela manhã, Andrzej esgueirou-se do abrigo para o
ar livre. O pantanal estava coberto de neblina. O sol de in232
verno sorvia a água do brejo e a estendia sobre a terra em
forma de alvos véus esvoaçantes. Era um daqueles dias em
que o capitão treinava a sua tropa. Os russos não conseguiam penetrar no pântano, por mais que se esforçassem
para encontrar os caminhos secretos sob a superfície lodosa.
Brados de comando ressoavam pelo véu da neblina.
Andrzej, seguindo os sons, encontrou um campo relativamente grande cercado de altas paredes de junco e de salgueiros. Ali havia grupos marchando, aprendendo a manejar o fuzil ou atirando em alvos pregados nas árvores.
Havia velhos de barbas compridas e jovens soldados adolescentes, homens em idade madura, todos levavam
a sério o serviço, esforçando-se para impressionar o capitão
Zaswilikowski. Andrzej acompanhava as manobras e exercitava-se junto.
Assim passaram-se alguns meses.
Nesse tempo, o emissário foi designado por diversas
vezes para missões secretas. Levava documentos com ordens e informações para outros agrupamentos, saiu-se muito bem dessas incumbências. Foi e voltou em segredo, tranqüilamente, pois conhecia os caminhos, tinha astúcia e era
ardiloso, e conhecia os hábitos moscovitas.
Levou papéis muito importantes e sigilosos para
comandos da rebelião em Zitomir, Kiew, Lublin, Lwow,
Kraków, Warszawa, Brest e lugarejos que pareciam muitas
vezes sem importância, mas que ocultavam a célula revolucionária.
O inverno chegara rigoroso, com muita neve e noites geladas. Batalhões moscovitas marchavam pelos pântanos do Prypet. Com os brejos congelados era fácil penetrar;
era só por isso que os russos esperavam. Metro por metro
seria vasculhado, pois no inverno um pantanal deixava de
ser um esconderijo.
233
O capitão Zaswilikowski, de comum acordo com os
guerrilheiros, resolveu deslocar-se para dentro da floresta.
Um por um, os homens deveriam infiltrar-se até que o círculo sobre os russos estivesse bem fechado. Sempre havia
brechas e seriam encontradas com o instinto de raposa dos
revoltosos. O capitão e Andrzej estavam entre os últimos
que deixaram o acampamento do pântano. Tinham aterrado
as trincheiras, plantado junco no campo de exercícios, nada
indicava a recente presença de homens.
Começava a primavera de 1831 e já fazia quase um
ano que Andrzej vivia no acampamento.
No início do verão o comando superior russo da
luta contra os guerrilheiros do Prypet deu a ordem de se
eliminar, de uma vez por todas, aqueles enormes vespões
dos charcos. Foram convocados batalhões da polícia, tropas
especiais, uma brigada cossaca e, guiados por alguns camponeses que, mediante suborno, esqueceram sua alma polonesa, as tropas russas penetraram no pantanal.
O golpe não chegou a pegar o capitão Lech de surpresa. Ele já sabia de tudo. Um número grande demais de
seus espiões trabalhava junto às unidades russas. A noite
faziam sinais luminosos ou depositavam mensagens em
locais combinados. A organização dos combatentes estendia-se por todo o país, como uma teia de aranha invisível,
tecida em volta do governo de ocupação. Não acontecia
nada sem que se soubesse nos pântanos. Cada nova unidade, cada decisão dos poderes da repressão era conhecida
pelos guerrilheiros.
Andrzej e o seu grupo afastaram-se bastante do acampamento central; encontravam-se agora no caminho
que avançava para bem longe dentro do pantanal. Era uma
passagem de cuja descoberta os russos se orgulhavam muito. Um destacamento da polícia de campo russa fora encarregado da segurança desta trilha, e guiados por dois cam234
poneses da região, os homens foram para os brejos, bem
distanciados um do outro, sempre em grupos de três e uma
metralhadora.
O junco era alto e denso, o chão em volta era uma
esponja que não devolvia nada que lhe caísse em cima. Entretanto, o juncal não estava morto nem solitário. Em pequenas ilhas estavam os guerrilheiros, eles próprios transformados em juncos, que observavam o caminho pelo qual
os grupos de três soldados russos tateavam para a frente.
Também Andrzej estava deitado numa poça esponjosa, irreconhecível no meio do matagal, prendendo a respiração.
- Não vai ser fácil pegar todos – cochichou ele ao
ouvido do amigo - só três de cada vez. Isso está ficando
perigoso, irmão...
De algum lugar distante vinha o grito de um pássaro; só que não era o som de uma ave, era a sentinela que
comunicava a presença de soldados russos. Agora os guerrilheiros estavam todos no pântano, tateando, procurando a
trilha, os semblantes corajosos, carregados, embora um
profundo medo se estampasse em seus olhos.
E à medida que penetravam nos charcos, minas eram colocadas em buracos previamente preparados, e explosivos na beira dos caminhos, para fazer explodir a terra
firme e tudo voltar a ser um imenso e impenetrável tremedal.
Andrzej levantou a cabeça ao ouvir o grito do pássaro e viu o grupo de soldados que estava passando no outro
lado, puxou o gatilho e atirou. Foi infeliz no tiro, pois abateu um soldado russo, e o que vinha atrás viu o movimento
nos juncos, voltou-se e atirou na direção. O projétil pegouo no ombro, do lado do braço que segurava o fuzil, ele caiu
no meio do pântano desmaiado; o grupo de soldados moscovitas voltou e encontrou-o caído, coberto de sangue e de
235
barro. Foi algemado e levado inconsciente para a retaguarda
do exército inimigo.
Andrzej era novamente um prisioneiro.
Levaram-no para o ambulatório do hospital militar
próximo, extraíram-lhe a bala, fizeram curativos. O projétil
tinha atravessado o ombro, machucando os músculos, e se
alojado junto à pele. Não era um ferimento grave, mas a
febre se manifestara. Assim que voltou a si, foi interrogado
pelo comandante do batalhão. Simplesmente não respondeu
nada. Resolveram mandá-lo para o quartel general em Smolensk.
Começava o inverno novamente. A neve caía há várias semanas. Eram no mínimo dez dias de viagem nas estradas lamacentas pelas florestas e estepes congeladas.
É... e foi assim que começou novamente o seu martírio... fazia um frio dos diabos!
Andrzej ia deitado, todo encolhido e algemado no
assento traseiro do coche. Estava com febre. Cobriram-no
com uma pele de urso, mas mesmo assim sentia muito frio.
O comandante russo dirigiu-se ao segundo tenente
Wiktor Iwanowitcz Woronkow, e falou com severidade:
- Segundo tenente Wiktor, este prisioneiro é peça
importante! Ele vai nos fornecer informações de que precisamos para abortar e desmantelar a insurreição polaca. Sem
falta, ele deve chegar às mãos do coronel Tumanow, do
Estado Maior, em Smolensk. Só a ele deve ser entregue, ele
o fará cantar... e se alguém tentar detê-los no caminho, bem,
se assim acontecer, mate o prisioneiro. Nunca desvie os
olhos dele, vigie-o atentamente. E agora sigam! Rumem
direto ao Quartel General em Smolensk.
Seguiram viagem - o segundo tenente Wiktor, os
dois soldados, encarregados de vigiar o prisioneiro, e um
russo de aspecto mongólico, de longos bigodes, que ia na
boléia como cocheiro.
236
- Dawaj, Dawaj, - gritou, e o chicote sibilou nas ancas dos animais, que arrancaram a galope.
Viajaram pela estrada lamacenta, prosseguiram com
dificuldade através das florestas, estepes, rios e neve... muita neve. Pernoitavam nas estalagens na beira da estrada,
onde faziam a troca dos cavalos. A ferida de Andrzej estava
sendo tratada e melhorava devagar, apesar de a febre não
ceder completamente, mas a reação de sua natureza jovem
vencia a infecção.
Nos dias seguintes, a tempestade de neve abrandara
um pouco. O uivo do vento transformou-se em lamento,
mas a neve continuava; não mais chicoteava a terra, apenas
bailava sobre ela. Caía silenciosa do céu leitoso. Na floresta
os lobos uivavam, e na neve macia havia rastros... muitas e
muitas patas em volta das casas. Um círculo de fome e
fúria assassina.
A trégua concedida pela natureza foi de poucas horas, pois a tempestade voltara e as nuvens tinham despencado sobre a terra. Os ventos uivavam e impeliam montes
brancos reluzentes. A taiga afundava na neve, as aldeias, as
estações de troca, morros e depressões... tudo se transformava numa única superfície lisa, branca, em turbilhão. As
pessoas refugiavam-se nas cabanas, vedavam as janelas e
portas com jornais enrolados e deixavam-se isolar pelo vento.
O gado deitava-se junto às pessoas, com as cabeças
caídas e com ar de tristeza e interrogação no olhar. Vez ou
outra ouvia-se um estalo vindo da floresta... eram galhos de
árvores que se fendiam minadas pelo gelo que se instalara
nas suas medulas.
Só os lobos se movimentavam, desgrenhados, magros, uivando de fome. Deitavam-se perto das cabanas e
currais. Cheiravam o odor que emanava dos homens e dos
237
animais. Instalavam-se junto às chaminés fumegantes, a
única coisa que ainda aparecia por cima da neve.
- Uma beleza! Uma verdadeira beleza! Uma miséria
de terra, uma porcaria de comandante, uma merda de vida...
que vá tudo para o inferno - reclamava e xingava o segundo
tenente Woronkow.
Aconchegou os braços juntos, em seu casaco grosso
de pele de carneiro. Ali estava ele no meio da estrada lamacenta, um lodaçal cheio de atoleiros; a carruagem era apenas um ponto escuro naquela imensa brancura.
No banco de trás, um prisioneiro doente que devia
ser entregue em Smolensk, protegido como carga de ouro,
e eles estavam cumprindo a missão confiada a eles, à moda
russa. As pernas dos cavalos afundavam até metade na neve, pisavam com força avançando as cabeças e soltando
vapor pelas ventas, pareciam estar saltando contra um muro
branco e macio. Corriam pela estepe, rumo à imensidão...
- Dawaj! Dawaj! – gritava o cocheiro.
E assim viajaram por longos e sofridos dias e noites, até avistarem a fortaleza de Smolensk.
O pátio interno do forte era longo e estreito, dividido por duas altas cercas de arame farpado, deixando uma
passagem de um metro e meio de largura entre elas. Nessa
passagem, cinco guardas faziam patrulha, enrolados em
mantas forradas de pele.O fuzil com a longa baioneta pendendo do ombro direito numa longa tira de couro. Os guardas não interromperam seu ir e vir nem quando os soldados
chegaram com o prisioneiro ao pátio interno.
Do outro lado abriu-se lentamente uma porta na
muralha escura e alta, interrompida apenas por janelinhas
gradeadas de ferro. Andrzej ainda usava a roupa rasgada e
manchada de sangue e barro, com o curativo na ferida, a
cabeça descoberta e a barba por fazer. Seu rosto jovem,
antes radiante, estava pálido e abatido, sofria muito.
238
Conforme a ordem, ele foi entregue ao comandante
coronel Prokor Borossowitch Tumanow; que mandou chicoteá-lo com violência e torturá-lo antes de o levar ao interrogatório. Berrava com ele, indiferente ao fato de ele ser
prisioneiro político. Portava-se como um verdadeiro demônio, na degradação moral do ser humano.
Andrzej sofria mudo... não respondia nada.
Após alguns dias de torturas repetidas e interrogatórios infrutíferos, foi decidido pelo comandante que os insurretos poloneses seriam deportados para a Sibéria, para além
do lago Baikal.
- Dou uma sentença justa, que faça pagar o crime de
insurreição na medida certa: vinte anos de trabalhos forçados na Sibéria! – foi o veredicto do coronel Tumanow.
Andrzej Wasilewski foi acordado, ao alvorecer do
dia, pelo tilintar das chaves que abriam a porta de sua cela.
Ficou deitado no catre de madeira, puxou sobre a cabeça o
capote longo, sujo de barro, com que se cobrira e fingiu
dormir. A porta bateu contra a parede. Os saltos das botas
soaram na cela e as tábuas rangeram; uma voz em tom
imperioso berrou:
- Prisioneiro Andrzej Wasilewski, levante-se! Vais
fazer um passeio de vinte anos – disse o guarda.
O preso jogou o casacão de lado e piscou na claridade da manhã, que entrava pela janelinha de grades.
Estremeceu...
Era como se repentinamente, num cálido dia, irrompesse a tempestade gélida da taiga infinita. O frio perpassou
seus ossos, assimilou a visão dos rios congelados, das ululantes tempestades de neve, dos bandos de lobos famintos e
das florestas indevassáveis.
- Por que não me matam de uma vez? Por que me
fazem morrer vinte anos a fio? Isso é uma crueldade insu-
239
portável! – desesperava-se Andrzej – Isso é um ato diabólico, Deus amaldiçoe esses assassinos moscovitas!
VII
A CAMINHO DO EXÍLIO
Andrzej foi apresentado ao coronel Tumanow, que
deu a sentença pessoalmente a todos os condenados reunidos. Falava com energia e autoridade:
- Vinte anos de Sibéria... bem, a taiga ainda é um
lugar selvagem. No verão faz quarenta graus de calor, no
inverno chega a trinta graus abaixo de zero. Inimaginável,
mas pode se agüentar. Se já milhares de pessoas viveram
junto aos imensos rios e florestas, se as pessoas suportavam
a vida nas aldeias, é porque a vida é viável por lá.
Os rebeldes aprenderiam uma boa lição, porque
Deus criou a Sibéria para castigar a humanidade, raciocinava o coronel Tumanow, ao decretar a deportação.
Uma hora mais tarde ecoaram as ordens para saírem
pelos corredores da prisão. Entre os cento e vinte e um prisioneiros políticos poloneses que se encontravam nos cárceres da fortaleza de Smolensk, todos eles participantes do
Movimento de Libertação da Polônia, que eclodiu em 29 de
novembro de 1830, estavam os três amigos e correligionários de Andrzej, Jan Filkowski, Karol Karczynski e Lukasz
Bonkowski. Todos eles sofreram torturas infernais nas
mãos dos inquiridores nos longos interrogatórios a que foram submetidos, mas nada conseguiram os carrascos russos,
nenhuma pista foi dada, ninguém foi denunciado.
Os condenados encontraram-se no espaço fechado
por muro, acompanhados dos guardas. Todos estavam algemados. O coronel Tumanow berrou uma ordem, o portão
240
abriu-se e uma divisão de cossacos precipitou-se no pátio e
rodeou os condenados.
- Marchem! – ordenou o coronel, e os prisioneiros
se puseram em movimento.
Marcharam pelo portão para fora da fortaleza.
Na véspera do Natal, quarenta grandes trenós deixaram a fortaleza de Smolensk. Os deportados jaziam na palha, escondidos debaixo das lonas. Uma divisão de cossacos
acompanhava a escura fileira de trenós, com seus rápidos
cavalinhos de pêlo hirsuto e grosso, resistentes e acostumados a comer a palha de telhados ou o musgo que teriam de
cavoucar do solo, lamber o gelo das paredes para matar a
sede; eram animais das estepes, assim como os seus donos.
Nevava há dias, em grossos flocos pesados que cobriam a
paisagem e sufocavam qualquer som.
Na paisagem plana além de Moscou, as aldeias naufragavam, os campos se tornavam desertos brancos sobre os
quais o vento soprava a neve como poeira alva. As florestas
transformavam-se em figuras fantasmagóricas faiscantes,
numa beleza mágica e singular.
O gelo ainda não estava tão forte para que as árvores se partissem e morressem em pé. Mas a mortalha do
inverno já estava depositada sobre elas, curvando os ramos
até o chão, sufocando qualquer vida. Seria um inverno muito rigoroso naquele ano.
Já tinham viajado quarenta dias, quando o trajeto a
percorrer pelos deportados foi conhecido. Seguiriam de
Smolensk a Nijni-Nowgorod e Wiatka, de lá a Perm, e atravessando os Montes Urais, passariam em Tijumen, Tobolsk, Omsk, Novo-Sibirsk, Krasnoyarsk, Irkutsk e Tchita.
- O fim do mundo - disse uma voz baixa e trêmula atrás de Tchita, começa ... começa o nada.
241
É quase um ano de viagem, talvez mais ainda. Muitos não sobreviverão. São aproximadamente oito mil quilômetros até o destino final.
A estação do correio mais próxima de Nijni Nowgorod era uma velha casa de madeira com enormes estábulos,
uma varanda coberta, um salão de estar e muitos lampiões
balançando ao vento. Era o lugar onde se fazia a troca dos
cavalos cansados por outros já recuperados da fadiga. O
encarregado do posto era um velho gordo, de bigodes enormes e olhos injetados, que chegou arrastando os pés.
Bateu com as mãos na cabeça calva e, vendo todos aqueles
trenós, gritou:
- Não há mais cavalos, Ilustríssimos!, levaram todos
os meus cavalos descansados, os outros precisam descansar.
Amanhã às sete horas poderei dar-lhes cavalos novos!
E assim ficou determinado.
O comboio dos deportados do coronel Tumanow
pernoitou na estalagem e os cossacos acamparam fora. Acenderam grandes fogueiras. Os cavaleiros selvagens sentaram-se em torno das labaredas bebendo e rindo. Alguns
vigias cercavam o posto em seus cavalinhos, controlando
qualquer um que se aproximasse.
Na estrada que seguiram ao clarear do dia, via-se,
ao longe, uma linha escura no campo de neve, era a coluna
dos deportados em marcha. A estação de Nova Sarja ficava
vinte quilômetros de Wiatka, a cidade onde terminam as
grandes estradas. Dali em diante viajava-se apenas seguindo veredas demarcadas no terreno, até Perm, a última grande cidade na Rússia Européia. Atrás, erguiam-se os Montes
Urais, como uma enorme muralha, cortada apenas por algumas poucas passagens.
Os Montes Urais têm 2.400 quilômetros de extensão, com picos de 1.804 metros de altura; dividem a Rússia
Européia da Sibéria. Possui minas de ferro, cobre, chumbo,
242
zinco, estanho, manganês, níquel, platina e ouro. Os habitantes dos vales e planícies da região dos Urais são descendentes dos mongóis de Ghengis Khan, conhecidos pelo nome genérico de tártaros. Atrás dos Urais começa a Sibéria,
com gigantescas florestas, rios caudalosos e pântanos nos
baixios.
Cedo, pela manhã, chegaram quatro grandes trenós
vindos de Perm. Pararam em Nowa Sarja. Ninguém estava
acordado no albergue, exceto o estalajadeiro e o coronel
Tumanow. Lá fora, porém, ardiam as grandes fogueiras dos
cossacos e os guardas marchavam de um lado para outro.
Alguns vultos desceram dos trenós.
- Trouxeram bastante? – quis saber Tumanow.
- Muitas, excelência, sempre temos bom estoque,
Perm é a porta dos Urais, por isso, seguidamente somos
solicitados.
O coronel aproximou-se do primeiro trenó e afastou
a lona. Correntes cintilaram na luz da manhã, eram correntes novas, com argolas nas pontas. Correntes compridas o
bastante para permitirem um passo longo e com o peso exato para tornarem possível arrastá-las com esforço, por milhares de léguas, em meio a chuva, tempestade, gelo, turbilhões de neve e solo escaldante. Por florestas e pantanais,
montanhas e planuras sem fim. A Sibéria saudava seus deportados como lhes era devido: com correntes para seus
tornozelos.
Os homens de Perm começaram a descarregar as
correntes. Tumanow virou-se abruptamente e berrou:
- Guardas, acordem os prisioneiros!
Dos galpões laterais nos quais estavam, os deportados apareceram sonolentos. Era de cortar a alma vê-los
aproximarem-se em seus uniformes de prisioneiros, esfarrapados, ainda mal despertos, arrancados do mísero esque-
243
cimento de uma noite, tangidos como uma manada de animais.
No galpão, cujos portões duplos estavam abertos, os
homens de Perm aguardavam ao lado de seus trenós desatrelados. As correntes ainda estavam cobertas por peles e
capim. Depois que todos os prisioneiros haviam sido empurrados para dentro do galpão, os portões foram fechados.
O coronel mandou cercar o local por um grupo de soldados
fortemente armados.
- Prisioneiros - ordenou Tumanow - cada um se adiante isoladamente. Não me obriguem a lhes botar as correntes debaixo de chicotadas. Sabem que são ordens e devem
ser cumpridas.
- Temos de obedecer – falou Andrzej, e adiantou-se
em primeiro lugar.
O ferreiro tirou uma corrente do trenó. As fechaduras dos dois anéis cerraram-se com ruído.
- O seguinte – disse o ferreiro, indiferente, pois já
colocara aquelas correntes nas pernas de milhares de prisioneiros, ouvira gritos, insultos, ameaças, pragas, lágrimas e
também orações. Para ele, tratava-se apenas de um trabalho,
como outro qualquer. Ferrar um cavalo ou acorrentar um
homem, qual é a diferença?
O emissário-insurreto ergueu-se, deu uns passos
cambaleantes, a pesada corrente tiniu no chão.
- É um peso de toneladas – disse em voz baixa – é
todo um mundo de intolerância e humilhação que se arrasta
nos pés.
Uma hora depois tinham terminado a colocação das
correntes nos 121 deportados políticos e na centena de criminosos comuns. Tiraram-lhes as algemas das mãos, mas
colocaram as correntes nos tornozelos, para que não pudessem fugir. Um tilintar alto e sinistro enchia o galpão, pois
qualquer movimento dos pés fazia ressoarem os elos de
244
ferro. O portão duplo do galpão foi aberto, os cossacos seguraram suas espadas em prontidão.
Primeiro saiu o coronel Tumanow. O seu ordenança
jogou-lhe nos ombros o grosso manto de peles, e colocoulhe na cabeça o alto gorro de zibelina. Depois apareceram
os soldados, colocando-se à direita e à esquerda do portão.
O desfile diabólico começou...
Apoiando-se uns nos outros, cambaleavam para fora
do galpão, arrastando atrás de si as correntes. Formaram fila
de dois, numa coluna infindável. Começou a caminhada
infernal rumo à Sibéria.
Do depósito chegou um trenó pesado e tosco puxado
por três cavalos, era o carro das provisões. O coronel Tumanow subiu no seu trenó e enfiou-se debaixo dos grossos
cobertores de peles. Os cossacos estavam em formação, os
trenós com os soldados já esperavam fora do pátio da estação.
- Coluna! Em marcha! – gritou Tumanow.
O esquadrão de cossacos adiantou-se, o vapor branco das narinas de seus cavalos erguia-se como uma nuvem
sobre os homens e animais. Depois, a fileira humana partiu,
deixando atrás de si os gemidos e o turbilhão da neve revolvida.
Quantos deles alcançaram Tchita? Este centro de
deportados, ao sul da Sibéria, na fronteira com a Mongólia,
a última cidade um pouco humana, antes que os prisioneiros se percam na selva e no esquecimento total?
Durante cinco dias andaram pela neve, num frio que
chegava a cortar. Passaram cinco noites nos trenós, enrolados em peles e palha. Não se via uma aldeia, uma casa, um
animal, ou um ser humano, apenas a amplidão desolada,
florestas silenciosas, rochedos e uma estrada mal demarcada, que levava para o desordenado ziguezague das monta-
245
nhas, subindo para a passagem que ligava os Montes Urais
com a Sibéria.
Andariam até Tijumen, sobre aquela terra virgem,
que, no inverno, se transformava num cemitério branco e
sem fim, na primavera, quando os rios Ob e Irtich ultrapassavam as margens, se tornava um deserto de água, no verão, uma frigideira ardente, e no outono, um pantanal lamacento...
Começou a subida dos quarenta trenós e da coluna
humana pelas íngremes estradas das alturas até o topo dos
Urais. Do cimo do passo avistava-se toda a planície abaixo.
Os rios congelados rebrilhavam no sol poente. De resto,
florestas, neve e silêncio, até onde o olhar pudesse alcançar.
Os deportados fitavam do alto as profundezas, com
olhar tristonho, e suas correntes tilintavam quando caminhavam. Já estavam acostumados àquela carga de ferro. No
dia seguinte, ao meio dia, o transporte de deportados descia
com espantosa lentidão e dificuldade a estrada das montanhas.
Entraram Sibéria adentro.
A descida dos Urais para a planície do rio Tobol foi
um tormento, trenós tombavam de lado, mais cavalos morreram de exaustão nos arreios. Era uma longa fila de trenós, rodeada pelos cossacos a cavalo, numa marcha lenta.
Chegavam agora numa região famosa pelos bandos de salteadores. O coronel Tumanow transportava, além dos prisioneiros, três caixas de rublos de ouro, destinadas à construção no sul do país, em Irkutsk e Tchita, de uma nova
colônia povoada pelos deportados, que seriam usados como
mão-de-obra escrava.
Depois de terem obtido cavalos descansados para
todos os trenós em Tijumen e refeito suas provisões, seguiram rumo a Tobolsk. Esta cidade foi fundada pelo czar
Ivan IV, “O Terrível”, em 1587. Lá, foi construído um for246
te, donde dominavam todo o sul da Sibéria. Estabeleceu-se
ali uma comunidade de tártaros, que aumentava a cada leva
de deportados que chegava da Rússia.Trabalhavam num
regime de trabalhos forçados, nas minas de ferro, cobre,
chumbo e outros minérios, que eram extraídos dos Montes
Urais.
Tumanow trazia ordens para deixar em Tobolsk os
deportados que eram criminosos comuns e seguir até Tchita
com a leva dos deportados políticos. Após a entrega dos
condenados ao comandante do campo de prisioneiros de
Tobolsk, o comboio seguiu rumo a Omsk.
Seria uma jornada entre florestas, pântanos, cruzando o gigantesco e congelado rio Ob. Alcançaram uma
região na qual viviam os quirguizes, uma raça de homenzinhos de olhos oblíquos e pele amarelada, que habitavam em
cabanas redondas chamadas aul. Eram nômades, criavam
cavalos póneis, ágeis como vento.
Passaram em Novosibirsk, cidade situada à margem
do rio Ob, e foram em direção à Krasnoyarsk, constuída à
beira do rio Yenissei. O coronel enviara cossacos para que
se informassem com os moradores da aldeia, em que ponto
seria possível atravessar o rio. A estação dos correios por
onde passaram estava vazia. Algo jamais visto. O encarregado escrevera como último registro em seu livro:
- “ 9 de outubro de 1831. Deus esteja com todos os
que aqui entrarem. Não agüento mais esta vida. Choro de
solidão, tenho medo de enlouquecer, vou para onde houver
gente. O último viajante passou por aqui há quatorze dias”.
- E nós aqui plantados, sem sabermos o que fazer! –
berrou Tumanow. Diante de nós o Yenissei, e ninguém para
nos dizer como chegarmos à outra margem!
Pela manhã, os cossacos voltaram e ajudaram a libertar com pás os trenós presos na neve. Ninguém sabia
onde se podia cruzar o rio Yenissei, mas tinham trazido
247
consigo um guia que lhes indicaria a possível passagem, e
a direção que deviam seguir para chegar à Irkutsk.
Centro da região do Angara, Irkutsk, é a capital da
Sibéria Oriental, fundada em 1611, na margem bastante
elevada que se ergue do lado direito do rio Angara, na confluência do rio Irkut. Vista de uma certa distância do alto
da montanha que se eleva a duas dezenas de quilômetros
sobre a grande estrada siberiana, tem o aspecto um tanto
oriental, devido às suas cúpulas, às suas torres, às suas agulhas, elevando-se como minaretes, aos seus zimbórios bojudos como cebolas.
E agora os deportados chegavam a essa legendária
cidade, que tinha um kremlin próprio, belas e grandes casas
de madeira ornadas de esculturas, três igrejas ortodoxas
com ícones e altares dourados. Era uma cidade admirável,
meio bizantina, meio chinesa, volta a ser européia pelas
suas largas ruas macadamizadas ladeadas de passeios, atravessada por canais de margens arborizadas.
Irkutsk, entreposto de inúmeras mercadorias trocadas entre a China e a Europa, era a residência do governador geral da Sibéria Oriental, general Semion Iliaiewitch
Abdulkhei, e sob as suas ordens estavam um governador
civil (woiwoda), nas mãos do qual se concentrava a administração da província; um diretor da polícia, ao qual não
faltava o que fazer numa região onde havia muitos deportados e exilados, e finalmente um presidente do município e
da câmara de comércio. A guarnição da cidade compunhase então de um regimento da infantaria de cossacos, que
contava com dois mil homens, e de um corpo residente de
policiais.
O general Abdulkhei era um homem de aparência
singular. Alto, muito magro, quase esquelético, com um
longo bigode sobre os lábios finos e a pele amarelada. Era
originário do Kasaquistão, da cidade de Karaganda, uma
248
província do sul, distante 2.750 quilômetros de Irkutsk,
onde russos e kasaques se misturavam, tinha pois, sangue
mongol por parte do pai e russo pelo lado da mãe.
Próximo de Irkutsk fica o lago Baikal, que está situado a 550 metros acima do nível do mar, tem cerca de
900 quilômetros de comprimento e 100 de largura, e 1.600
metros de profundidade; é o lago mais profundo do mundo.
Este imenso reservatório de água doce é alimentado por
mais de trezentos ribeirões, recebe, inclusive, os rios Selenga e o Angara Superior, seu escoadouro é o rio Angara
Inferior, que, depois de passar por Irkutsk, vai lançar-se no
Yenissei, um pouco acima da cidade de Yeniseisk.
O lago Baikal é enquadrado por um magnífico círculo de montanhas vulcânicas. As montanhas que o rodeiam são uma ramificação das Tunguses, do vasto sistema
da formação da cordilheira do Altai, da Ásia Central. Durante o inverno siberiano, este mar interior, gelado numa
espessura de vários pés, é atravessado por trenós dos correios e pelas caravanas. No verão, o lago está sujeito a violentas tempestades, as suas ondas, curtas, são temidas pelas
jangadas, embarcações de carga e de passageiros que o sulcam durante a estação. Jangadas de toras de madeira habitualmente derivam pelos rios siberianos guiadas por robustos mujiques.
O governador Abdulkhei foi informado da chegada
da coluna de trenós trazendo deportados políticos para sua
região. Os prisioneiros foram imediatamente levados ao
quartel e trancafiados lá. Ficaram oito dias em Irkutsk, oito
dias de esperança, de planos e de confiança no futuro. Quase começaram a amar a Sibéria.
A história e o crescimento da Sibéria foram escritos
com sangue, e nada mudará isso, ainda que mudem as gerações. Esta terra é como um “Moloch,” o deus dos Amoni-
249
tas (povo da Palestina, descendentes de Amon), que só conseguia sobreviver à custa de sacrifícios humanos.
Atravessando as íngremes montanhas Yablonowy,
os exilados seguiram para Tchita, no rio Schilka, afluente
do enorme rio Amur. O lugarejo ainda era bastante pequeno. Um miserável ponto de encontro de caçadores de
pele e mineradores, e de reunião de aventureiros, vigaristas
da Sibéria, entre o rio Lena e o Amur.
Um dia Tchita será um lugar importante, mas para
conseguir isso, precisam de gente. Gente que se possa forçar a trabalhar, a construir estradas, secar pântanos e a derrubar matas virgens. E para isso mandaram-lhes os deportados poloneses.
Mas no nono dia de viagem, de repente, o coronel
Tumanow foi substituído. Um certo capitão, Grigory Nikolaiewitch Tyrow, assumiu o comando do transporte, e ele
saudou cada um dos prisioneiros cuspindo-lhes no rosto.
- Este é o último calor humano que vais receber!
Assim começou a amostra do que seria a vida dos
prisioneiros na Sibéria. Seriam ainda trinta dias de uma
viagem de sofrimentos até o seu destino em Tchita. Depois
de Irkutsk tudo se transformou, a caminhada tornou-se um
tormento indescritível. E tudo já começou na primeira estação dos correios. O capitão Grigory ordenou aos deportados
que descessem dos trenós e andassem um grande trecho a
pé. Aquilo era muito doloroso, pois a estrada estava congelada.
Os prisioneiros escorregavam, as correntes nos pés
os impediam de andar direito, e depois de algumas centenas
de metros, pareciam pesar toneladas. Arquejantes, os homens cambaleavam pela estrada, com os tornozelos feridos,
enquanto os trenós seguiam atrás deles vazios, com o alegre
tinir de sininhos.
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- Temos de poupar os cavalos - berrava o capitão na Sibéria, cavalos são mais importantes e valiosos que
homens! Esse negócio de andar nos trenós acabou.
- Vocês são criminosos como qualquer outro. Dawaj! Vamos! Quem ficar parado ou deitado será chico-teado.
- Seremos obrigados a estrangulá-lo numa noite dessas, ou não sobreviveremos até o destino! – cochichou um
dos deportados.
Foi durante um descanso. Ao lado da estrada, os
homens jaziam como trastes jogados na neve, tentando respirar. Suas correntes estavam cobertas de gelo e entravamlhes na carne, ferindo-os. Era uma armação diabólica, esta,
de marchar horas a fio no gelo e na neve com aquelas correntes.
Durante sete dias atravessaram essa solidão de veredas pela floresta e pela estepe. Avistavam-se pessoas apenas algumas vezes e, ao longe, uma pequena tropa de cavaleiros iacutos, que fugiam como fantasmas vendo a coluna
de deportados. Eram sujeitinhos pequenos, de olhos oblíquos e pele amarela, montados em cavalinhos do tamanho
de pôneis, que sumiam tão depressa como tinham aparecido.
No oitavo dia, a coluna descansou numa floresta. E
foi ali que tudo aconteceu. De manhã, o capitão Grigory
apareceu degolado na sua tenda. Os cossacos reuniram os
prisioneiros. Um jovem tenente assumiu o comando interinamente. Examinaram cada deportado. Interrogaram todos,
mas nada foi apurado, não foi encontrado o culpado.
O tenente ordenou que os prisioneiros acampassem,
dali por diante a céu aberto, e mandou três de seus homens,
os melhores cavaleiros, de volta à Irkutsk, para avisarem o
governador do ocorrido.
251
- Mesmo que criem raízes aqui – berrou o tenente
aos deportados – esperaremos até que o governador nos
mande novas ordens.
Dez dias depois, regressaram os cavaleiros enviados
à Irkutsk. Traziam consigo um quarto homem, todo embuçado em uma grossa pele que tornava a sua figura parecida
com a de um urso. E foi a maior surpresa ver o coronel
Prokor Borossowitch Tumanow descer da sela do seu cavalo, chegando ao acampamento.
- Um capitão russo foi morto por vocês aqui, portanto, todos são suspeitos - berrou Tumanow. As ordens que
trago do governador são para retornar com todos para Irkutsk, todos vão ser interrogados e acharemos o culpado.
O caminho a seguir dos deportados, inverteu-se.
Antes de chegarem de volta à Irkutsk, subitamente,
irrompeu a primavera. Um vento morno soprava da China,
as árvores sacudiram a neve como cachorros sacodem as
gotas de água do seu pêlo. O gelo, rompendo-se sobre os
rios, dava estouros como canhões, amontoava-se em grossos torrões, batendo contra as margens. A estrada tornou-se
um lamaçal pantanoso no qual os trenós atolavam. Cada
wersta vencida era uma dura luta. Os cavalos puxavam
arquejantes, os homens empurravam por trás os seus trenós
e, ainda assim, avançavam lentamente.
O calor que se abateu sobre eles, de repente, tornouse insuportável. Os homens andavam com as camisas abertas atrás dos trenós. Milhões de mosquitos subiram dos pantanais e atacaram a coluna de prisioneiros, em nuvens densas e sussurrantes, mais sanguinárias do que uma alcatéia
de lobos. Contra o frio havia peles, contra os lobos havia
espingardas, mas contra os mosquitos, todos estavam indefesos.
Mas antes de retornar à Irkutsk, teriam que se apresentar ao comando militar de Tchita; cidade que vivia de
252
apenados. Um miserável amontoado de casas de madeira,
exceto pelo edifício do comando, de cujo telhado tremulava
a bandeira do czar. Na distância, desenhavam-se vagamente
as montanhas de Iks, e longas listras escuras de florestas da
taiga, estendiam-se no horizonte.
O comboio cruzou o rio Schilka e entrou em Tchita.
Eram míseras figuras humanas as que chegaram lá. Com
roupas rasgadas, consumidas pela marcha de nove meses a
fio, esqueléticas, tendo percorrido mais de oito mil quilômetros de distância. Os prisioneiros foram conduzidos a um
acampamento de cabanas de madeira. Seguiriam de volta
para Irkutsk dentro de cinco dias. E estavam sem correntes
nos tornozelos.
- Aqui não se precisa de algemas, pois ninguém
conseguirá voltar à Europa - decidiu o comandante.
Estavam como que inebriados, apesar da decadência
física, das feridas terríveis que as correntes haviam feito e
do desespero que ainda os corroía, por causa da pátria e do
lar perdidos.
Andrzej estava terrivelmente magro por causa da
longa marcha, mas seus olhos negros ainda mantinham a
firmeza e o brilho juvenil. Em Tchita tinham recebido roupas novas, embora remendadas em muitos pontos, não mais
aqueles horríveis uniformes listrados de prisioneiros.Tinham sapatos adequados, chapéus de palha de aba
larga, como os aldeões, e no acampamento haviam lhes dito
que no inverno haveria botas de feltro, casacos acolchoados e calças forradas.
- Naturalmente não estão fazendo isso por bondade
– disse Jan Filkowski – precisam da nossa força para o trabalho, e quem sente frio trabalha mal. A comida também
vai melhorar. Em Tchita vamos até cuidar de nós mesmos.
A taiga está repleta de animais, haverá bastante carne, podemos plantar nossos próprios legumes, nas horas vagas.
253
Dias depois,Tumanow chegou ao acampamento com
uma notícia surpreendente:
- O cossaco Tatarchuk confessou o assassinato do
capitão Grigory Tyrow. Simplesmente degolou-o, por vingança, enquanto dormia na sua tenda, ainda ébrio, informou
o comandante. O capitão tinha esbofeteado o cossaco, lançado-o por terra e dançado sobre o seu corpo, dera coices
na sua cabeça só porque o mesmo rira na sua frente; o capitão estava bêbado. Tatarchuk foi preso e levado para Irkutsk. Por este motivo, o governador revogou a ordem de
levar os deportados de volta à Irkutsk.
Eles seriam encaminhados para as fábricas, para o
corte de árvores na floresta que abastecia as serrarias, para a
construção de casas, para fazendas de criação de cavalos e
renas e tantos outros empreendimentos de que aquela terra
era carente.
Ainda conheciam apenas uma pequena parte da Sibéria. Tinham atravessado o país do oeste para o leste, mas
no fundo fora apenas uma estreita faixa desta região imensa, uma estrada, uma fina artéria de civilização.
Tchita mostrou-se, ao primeiro olhar, como um lugar desolado, um pedaço de terra que Deus esquecera no
momento da Criação, mas, olhando melhor, via-se que se
podia fazer algo por ali, pois o rio Schilka corria, largo e
lento, rumo ao rio Amur, apinhado de peixes, com água
clara e pura.
Havia matas cheias de animais, castores na água,
manadas de cervos pastavam nas planícies verdes; havia
raposas, martas e arminhos; ursos, tigres e outros animais
de grande porte povoavam as florestas, e, parando nas corredeiras do rio, podiam-se ver salmões grandes e gordos
saltando no rio. As primeiras semanas foram preenchidas
com os preparativos. Os deportados, reunidos num acampamento de sete grandes cabanas feitas de troncos, em tor254
no das quais estava erguida uma alta cerca de toras, começaram a derrubar árvores.
Os demais habitantes de Tchita, a princípio portaram-se com reserva; eram em maioria constituídos de tribos
de buriatas e tártaros, que moravam em cabanas de madeira protegidas contra o inverno.
O coronel Tumanow já informara e preparara o comandante das tropas siberianas, general Vassili Kusmaievitch Kirkine, sobre a situação dos deportados políticos
poloneses e as ordens que recebera do czar.
***
Dez anos se passaram...
Andrzej e os quatro amigos, Anton Zubrowski, Jan
Filkowski, Karol Karczynski e Lukasz Bonkowski, trabalhavam numa fazenda de criação de cavalos que pertencia
ao governador, general Semion Iliaiewitch Abdulkhei.
A fazenda ficava em Ulan-Ude (Kyakhta), a uns
duzentos quilômetros da divisa da Mongólia. Situava-se à
margem do rio Selenga, próximo a sua foz, no lago Baikal.
Este rio nasce na Mongólia, tem 1.205 km de extensão.
Existem na cidade de Ulan-Ude indústrias de construção
naval, mecânicas, indústria de pesca, de peles, carnes e um
comércio ativo com a China. A região é habitada por buriato-mongóis, comumente chamados de tártaros.
O governador visitava a fazenda esporadicamente.
Simpatizou com os cinco deportados que trabalhavam na
sua fazenda, gostou de seu trabalho, que era feito com zelo
e dedicação. Um dia chamou os cinco amigos e lhes anunciou:
- Mandei um mensageiro para São Petersburgo, levando um documento dirigido ao czar Nicolau I, com pedido de indulgência para os 121 deportados poloneses que
estão sob a minha responsabilidade.
255
Os exilados trabalhavam nas matas, derrubando árvores, serrando e carregando os troncos para as grandes
carroças de transporte. No segundo ano instalaram uma
serraria a vapor, com maquinaria bem moderna, com as
peças desmontadas que vieram da Rússia, em trenós.
Trabalhavam como animais, até a exaustão. O orgulho polonês manda que cumpram o dever até cair. Levantar a cabeça, mesmo se as pernas estão moles de cansaço. Um guerrilheiro polonês morre de pé, jamais desiste.
Os prisioneiros políticos sempre tinham vida pior que os
criminosos comuns, pelo simples critério de que a inteligência é mais perigosa do que um cérebro primitivo, que só
pensa em roubo e morte.
Mas não pensava assim o governador, general
Abdulkhei, o qual reconheceu o grande potencial que tinha
nas mãos. Os deportados políticos eram homens inteligentes, trabalhadores, honestos e podiam ser aproveitados, se
livres, no incremento ao desenvolvimento da região oriental
da Sibéria.
Enviou mais uma petição ao czar, rogando o perdão
para os poloneses expatriados. Assinaram-na, além do Abdulkhei, catorze altos oficiais e todos os governadores das
províncias siberianas. Esperavam ser bem-sucedidos.
A carta dizia o seguinte:
“Suplicamos à Vossa Majestade que realize esse ato
de misericórdia, perdoe os exilados poloneses. Majestade,
eu governador de Irkutsk, peço igualmente por esta graça.
Os poloneses são homens que falharam em relação à Vossa
Majestade, mas fizeram-no por amor à Pátria. Foram patriotas, bons e verdadeiros, que apenas olharam em direção
errada. Suplico misericórdia à Vossa Majestade”.
Ainda naquela noite, um mensageiro de Irkutsk cavalgou para o oeste. Oito mil werstas de terra isolada jaziam diante dele, interrompidas pelos diminutos postos de
256
muda, onde se podia trocar os cavalos e dormir algumas
horas para refazer as energias.
- Levará um ano até chegar a resposta do czar - disse
Abdulkhei aos seus oficiais -, mas o que significa um ano
na Sibéria?
- Um dia o czar responderá - comentou Kirkine.
- Ele nunca responderá - retrucou um dos oficiais.
Efetivamente, o inverno passou, a primavera, o verão... e nada se modificava. A vida em Tchita seguia o seu
caminho, conforme queriam os comandantes dos campos de
prisioneiros. O general Wassili Kusmaiewitch Kirkine ficou
impaciente, e, por fim, cavalgou com uma divisão de cossacos até Irkutsk.
Abdulkhei adivinhou a razão da visita, ergueu os
ombros com as largas ombreiras douradas e disse:
- Nada de São Petersburgo, nenhuma notícia, e o último mensageiro chegou a uma semana. Deixe passar um
ano - continuou o general, e encheu um cálice de vinho da
Geórgia oferecendo a Kirkine, que o esvaziou num gole.
- O que é um ano na Rússia? - comentou Kirkine.
Dias depois do regresso de Kirkine à Tchita, um
mensageiro de São Petersburgo trouxe uma carta selada, do
czar Nicolau I, até Irkutsk. Abdulkhei quebrou o sinete com
mãos trêmulas e desdobrou o grande pergaminho estampado com a águia de duas cabeças, o emblema do Império
da Rússia.
Entre outros assuntos, a carta dizia:
“O czar, na sua grande misericórdia, decidiu declarar livres os deportados poloneses”. Podiam morar nas suas
casas, estavam livres da vigilância dos soldados; podiam
trabalhar onde quisessem, contanto que não se distanciassem da região de Tchita, Ulan-Ude ou Irkutsk.
Passados dez anos de trabalhos forçados, nas florestas de coníferas da taiga, nas minas de ferro ou de cobre,
257
nas fazendas de criação de cavalos e renas, sempre sob a
vigilância severa e ininterrupta de soldados e comissários
políticos, um dia foram procurados por funcionários policiais da Administração Central de Irkutsk, que lhes informaram:
-Vocês estão livres, podem andar e movimentar-se
livremente, arranjar emprego, fazer qualquer coisa. Incluímos vocês no nosso processo de produção dessa região.
Não tentem fugir, porque serão fuzilados.
E, assim, foram libertados, não eram mais prisioneiros, só não podiam voltar a sua pátria. Não pareciam subjugados, nem esfomeados, nem doentes, somente os olhos
eram grandes e famintos, repletos de desejo pela liberdade e
pela vida na sua terra.
O campo foi desfeito, os barracões retirados, derrubaram-se as cercas de arame farpado. Muitos deles foram
trabalhar nas cidades, nas serrarias, outros foram para o
campo; plantaram cereais, criaram galinhas e porcos.
A ordem era clara: teriam que cumprir a sentença,
“deportados por vinte anos”. Faltavam, pois, mais dez anos
de exílio. Mas, vencido esse tempo, poderiam voltar.
Surgiu dali uma categoria especial de intelectuais,
que se dedicaram ao estudo e à exploração da flora e fauna
da Sibéria Oriental e do norte da Ásia. Ocupavam-se, eles,
da pesquisa e como professores no ensino dos povos locais.
Os deportados poloneses,“agora livres” na Sibéria,
foram assentados nas cidades, nos arredores, nos campos e
nas fábricas da região. Alguns ocuparam-se no comércio,
no trabalho das fazendas de criação de cavalos e gado, outros no artesanato, carpintaria e na agricultura, plantando
trigo, beterraba para açúcar, aveia, centeio, alfafa e lúpulo.
Batatas norueguesas e diversas leguminosas foram
introduzidas pelos expatriados, que aplicavam métodos
modernos de cultivo usados na sua terra natal. Foram im258
plantadas pequenas indústrias de cerâmica artesanal para
fabricação de potes, vasos, tijolos e telhas. Executavam
trabalhos em xilogravura e incrustações em madeira. Criavam abelhas para a produção do mel e cera.
Certo dia, o governador Abdulkhei veio fazer uma
visita à sua fazenda de criação de cavalos em Ulan-Ude.
Mandou chamar os cinco deportados que ali trabalhavam e
lhes anunciou:
- Estão livres agora - podem ficar aqui ou ir para Irkutsk ou Tchita. Mas só receberão documentos para se movimentarem na região, não terão permissão para distanciarem-se para além da minha autonomia. Não adianta fugir, pois não irão longe; a Sibéria é o “ Moloch”.
Os cinco amigos resolveram mudar-se para Irkutsk,
onde teriam outras oportunidades de trabalho. Andrzej Wasilewski tinha uma natureza inquieta, era curioso e inteligente, espírito inventivo e observador.
Um dia, ele e os quatro amigos estavam pescando
no rio Angara. Andrzej observou as diversas cascatas pelas
quais as águas caíam com estrondo. Veio-lhe uma idéia à
mente. Aqui é possível construir um moinho, uma grande
roda de madeira impulsionada pela queda d‟água movimentará as pedras que vão triturar os grãos de cereais que
são produzidos na região. Teremos muita farinha para o pão
do povo.
Levou o plano ao governador, que o admirava pelo
seu talento e firmeza de propósito. O general gostou da idéia e autorizou-o a promover a análise do projeto. Andrzej
procurou o engenheiro polonês, deportado como ele, Jan
Tamulewicz, e os dois fizeram o estudo; concluíram pela
viabilidade da construção do moinho. Só faltavam os recursos para o material e a mão-de-obra.
Foram conversar com o general, o qual, depois de
ouvi-los na explanação do projeto, aprovou e dispôs-se a
259
financiar a obra. Eles assumiriam a construção do moinho
e, depois de pronto, iriam administrá-lo e teriam parte nos
lucros. O negócio foi concluído. E imediatamente começou
a grande empreitada da construção.
Andrzej chamou seus conterrâneos para trabalharem
na obra, contratou homens das aldeias próximas para drenar
o terreno da margem do rio e colocar pedras para firmá-lo.
Ordenou ainda para derrubarem árvores de porte reto para
as vigas e os esteios. As pedras do moinho que iriam triturar os grãos foram encomendadas em Perm; iria demorar
bastante tempo até chegarem à Irkutsk. A enorme roda de
madeira que iria movimentar o moinho já estava sendo
construída. Tudo estava se realizando conforme fora programado. O governador estava contente, vistoriava a obra e
confidenciava aos amigos:
- Eu não me enganei quando interferi no pedido de
indulgência para os deportados. Eles estão colaborando e
nos ajudando a construir o progresso desta região. Deus
abençoe o czar - disse com entusiasmo.
Demorou um ano até que o moinho ficasse pronto.
Era uma obra marcante do governador e fonte de bons lucros para ele, além de beneficiar a população, que não precisava mais moer os grãos manualmente.
Em junho de 1863 chegou outra leva considerável
de deportados poloneses, sendo na maioria jovens de 17 a
25 anos de idade. Dos mais famosos deportados, sobressaíram-se Jan Czerski, Waclaw Sieroszewski, Aleksander
Czekanowski, Benedykt Dybowski, Wiktor Godlewski,
Ignacy Trzaskowski, e outros não menos competentes, profissionais liberais, como médicos, dentistas, professores,
músicos, poetas, escritores, cientistas, historiadores, engenheiros e muitos outros que não se conformaram com a
situação vigente na Polônia, não aceitaram a subjugação, a
260
humilhação do povo e se revoltaram contra a ocupação russa, por isso, foram condenados ao degredo na Sibéria.
E, mesmo no exílio, incitavam as rebeliões, organizavam grupos revolucionários, incutindo-lhes idéias democráticas, com a finalidade de juntos com as populações locais criarem uma república livre da Sibéria. Não menos
significativo, era o incentivo à cultura, às artes e ao ensino
de novos métodos de agricultura.
***
Ivan Grigoliewitch Poznikow era woiwoda (governador civil), funcionário público nomeado pelo czar. Tinha
como obrigação administrar os problemas dos habitantes do
território de sua jurisdição; recebia ordens do governador
militar.
Ocasionalmente, dedicava-se ao negócio de peles
em Kyakhta, na fronteira da Mongólia. Alguns mercadores
que compravam as peles eram russos, outros mongóis, mas
a maioria era chinesa.
Andrzej Wasilewski estava na casa dos vinte e oito
anos; calejado pelos cruéis invernos da Sibéria e ainda mais
pelo trabalho duro que tivera que executar como prisioneiro. Ele era alto e magro, largo nos ombros e musculoso
nos braços, tinha cabelos castanhos encaracolados, usava-os
curtos, olhos negros brilhantes e penetrantes.
Por precisar de documentos para o funcionamento
do moinho, Andrzej procurou o woiwoda na sua casa, local
onde ele atendia a população que o procurava. Foi recebido
prontamente, por se tratar do homem de confiança do governador Abdulkhei.
261
- Entre! Sente-se! – convidou Ivan Grigoliewitch.
Voltou a cabeça para a porta que levava para dentro da casa
e chamou:
- Ludmila, minha filha, o cavalheiro gostaria de
uma xícara de chá e uma bandeja de biscoitos.
Pouco depois, entrava na sala uma jovem bonita, de
aproximadamente dezesseis anos, um sonho de beleza a
desabrochar, cabelos negros compridos, presos em tranças,
sobrancelhas escuras, olhos negros levemente oblíquos,
brilhantes e inteligentes, corpo excepcional, de curvas bem
delineadas. Notava-se nela a descendência mongólica, eram
naturais do Kasaquistão. Com sorriso nos belos lábios carnudos, entrou Ludmila, trazendo a bandeja com o chá.
- Posso servir, paizinho? – perguntou.
O pai levantou a cabeça de cima dos documentos
que examinava e respondeu:
- Sirva o moço, meu passarinho! – ela despejou o
chá fumegante na xícara e primeiro ofereceu ao pai. Ao
servir o chá ao Andrzej os seus olhos se encontraram.
Passou uma corrente eletrizante pelo olhar entre os
dois. A moça ficou tremendo, corou até a raiz dos cabelos.
Perturbada, retirou-se em seguida. Podia se vislumbrar
seus cabelos negros atrás das cortinas do quarto observando
o rapaz que se despedia do pai.
Andrzej surpreendeu-se ao perceber que estava com
o pensamento fixo na moça; o seu semblante risonho não
lhe saía da cabeça. Depois do seu trágico amor por Krystyna, nunca mais houve amor para ele. Vivia para o trabalho, isolado.
Lembrando com saudade dos momentos felizes que
passara ao lado daquela jovem corajosa e abnegada, que
sacrificara sua vida no retiro do claustro para proteger a
vida dele. Ela conhecia bem Andrzej, a sua impetuosidade,
ele arriscaria tudo para estar perto dela. Depois da sua deci262
são definitiva e irrevogável de fazer votos como freira, ele
não teve outra alternativa a não ser procurar esquecê-la.
Naquela noite de verão siberiano ele foi dormir
pensativo; e antes mesmo do alvorecer despertou, jogou os
lençóis para o lado, vestiu-se e saiu para fora. As estrelas
ainda cintilavam no céu, e uma camada de cerração levantava-se do rio Angara. À distância os lobos uivavam com os
sons alternados, outras vezes em uníssono.
Andrzej reconheceu surpreso que estava perdidamente apaixonado pela Ludmila, que o seu coração despertou novamente para o amor. Depois do encanto, o reconhecimento da sua situação grave e problemática desabou
com todo peso sobre ele. Tinha previsto e procurado evitar
por todos esses anos o que acabara de acontecer.
Ele era polonês, deportado político e não podia dispor da sua vida; obedecia ordens, não podia locomover-se
livremente pelo país. Era preciso tomar uma decisão, refletiu: “só há duas alternativas; ou permaneço aqui e levo a
vida de um cidadão siberiano honrado, ou cumpro até o
final a minha pena e volto para a minha pátria”.
Desistir de Ludmila? Mas uma vez desistir do amor? Seu coração cheio de esperança dizia “Não! não desista! lute! seja feliz! vá em frente!”
Na casa do pai, Ludmila dormia com o sorriso feliz
da criança embalada com a canção de ninar. A jovem virava-se na cama, sussurrava no sono, soava como um grilo
cantando na grama quente de verão.
Andrzej arrumou mais papéis para serem assinados
pelo woiwoda, eram apenas desculpas, pois ele precisava
muito ver a jovem. Seu coração estava inquieto. A natureza
arrojada do rapaz levou-o até a residência da moça. Sentia
tanta alegria interior que não viu Ludmila se aproximar.
- Gostei muito de vê-lo aqui, vai demorar-se? –
perguntou a jovem - talvez aceite uma xícara de chá?
263
O irresistível brilho dos seus olhos e o sorriso que
lançou enquanto lhe dirigia a palavra, abrasaram-no.
Entrava nesse momento o secretário, com os papéis
para o Poznikow assinar, aproximou-se da mesa do chefe
para lhe explicar uma dificuldade que encontrara nos documentos.
- Seja como for, faça como eu te autorizei - articulou
Poznikow suavizando a advertência com um sorriso. Virouse para Andrzej, que bebericava o chá, e lhe perguntou: - e
afinal, para o que vieste? mais papéis para eu assinar? deixe-me vê-los.
- Trata-se do seguinte... não, aliás, é particular - gaguejou Andrzej, e de súbito surgiu em seu rosto um vivo
rubor provocado pelo esforço que fazia para vencer a timidez. Vendo a insegurança do moço, o woiwoda quis ajudar.
- Gostaria de convidar-te para ir à nossa casa, mas a
minha esposa não está bem - disse Poznikow.
.
- Eu farei as honras da casa, meu pai - acudiu Ludmila. Nós dará muito prazer a sua visita.
- Está bem, meu passarinho - respondeu o pai. Portanto, estás convidado, Andrzej.
Passaram-se muitos dias antes que o moço decidisse
aceitar o convite do woiwoda, estava intranqüilo, hesitava...
Era um dia claro e frio.
Junto à porta da casa havia uma carruagem. As velhas e frondosas bétulas do jardim, cujos ramos pendiam
sobre a neve, pareciam engalanados de vestes novas e solenes.
Andrzej caminhava pela alameda, dizendo para si
mesmo: “Não devo emocionar-me, preciso estar sereno. O
que é isso, coração? Cala-te, tonto!” Mas quanto mais se
esforçava por tranqüilizar-se, tanto mais sentia-se perturbado. Quando pensava em Ludmila, podia imaginá-la por
inteiro, e sobretudo aquela sua encantadora cabeça com os
264
cabelos negros, lisos, longos até a cintura; aquele seu ar de
menina-moça, cheia de alegria e bondade.
O contraste entre a graça juvenil do rosto e a beleza
feminina, do busto empinado, dava-lhe um encanto todo
especial. Mas o que o assombrava nela eram os olhos negros, como poços profundos, cintilando raios que o atingiam no coração. Andrzej estava apaixonado, e por isso
Ludmila lhe parecia uma criatura tão perfeita em todos os
sentidos, tão além das coisa terrenas, que não podia sequer
pensar que ela e o pai o considerassem digno de aspirar a
sua mão. Ludmila veio recebê-lo na porta.
- Tenho pensado em ti todo esse tempo e estou muito contente, muito mesmo, que tenhas vindo - falou radiante
a moça, olhando-o nos olhos com raios de fogo.
Quando entraram no salão, Andrzej tirou o casaco e
o cachecol e os entregou à criada. Passaram para a sala de
jantar e sentaram-se à mesa. Eram quatro pessoas. Poznikow, Mariusia, sua esposa, Ludmila e, em frente dela,
Andrzej.
Foi servido caviar vermelho como entrada, sopa de
verduras, depois carpas assadas com maçãs, leitãozinho no
espeto, cogumelos marinados e robalo com molho. Acompanhava a refeição vinho tinto da Georgia, servido em taças de cristal. De sobremesa, foram servidas frutas da região em calda.
Poznikow conversava sobre amenidades e também
sobre o inverno que chegava. Depois do jantar, Ludmila
retirou-se, estava inquieta, conheceu as mesmas impressões
que costuma experimentar um jovem soldado nas vésperas
de uma batalha. O coração pulsava-lhe com violência e não
era capaz de concentrar o pensamento. Sentia que aquela
noite iria decidir-se o seu destino.
O amor que Andrzej sentia por ela, sentimento do
qual ela tinha certeza, inundava-a, enchendo a sua alma de
265
contentamento. Agora compreendia por que Andrzej viera
mais cedo, era para encontrar-se com ela, sozinha, sem a
presença dos pais.
- Era precisamente isso o que eu queria, encontrá-la
a sós - disse - pois não sei se irei ficar muito tempo aqui...dependerá de você.
Ludmila olhava-o nos olhos; isso lhe deu coragem
para dizer:
- Estou dependendo da sua resolução - repetiu elequeria dizer-lhe... vim para pedir a sua mão em casamento.
Quero que seja minha esposa! Eu a amo muito, Ludmila!concluiu. Então, fixou os olhos nela, interrogativo.
Uma alegria imensa invadiu o coração da jovem.
Nunca pensara que a confissão daquele amor lhe causasse
uma emoção tão forte.
- Eu também o amo, Andrzej! - respondeu a moça
comovida - vamos conversar com o meu pai e minha mãe.
- Agora mesmo vou pedir a sua mão - disse Andrzej.
Ludmila segurou-o pelo braço. Depois, no entanto,
começou a tremer, como se o frio a dominasse por completo. O moço preocupado, perguntou:
- Quer sair daqui? Este lugar está exposto ao vento.
- Oh, não! – exclamou ela, apertando lhe a mão - é
que, não sabemos o que o pai dirá.
- Acho que ele simpatiza e gosta de mim.
- Gosta , sim! Já me disse isso.
- É mesmo? Então não temos o que temer.
- E, mas eu acho... infelizmente, acho que ele espera
que eu me case com um russo.
Depois que ela manifestou o seu temor, o jovem
compreendeu como era procedente.
- Mesmo assim, meu dever é falar com seu pai respondeu Andrzej.
- Pois então vamos procurá-lo e falar com ele.
266
Entraram na sala. Pela maneira como Ludmila se
manteve junto ao Andrzej, era evidente que tencionava apoiá-lo em seu pedido.
Encontraram o woiwoda em companhia de um amigo, os dois debruçados sobre um documento; conversavam.
Andrzej não quis interromper, mas Ludmila aproximou-se
do pai e disse:
- Paizinho, podemos lhe falar por um momento?
Dobrando os papéis e pondo um livro pesado sobre
eles, pediu para que o amigo saísse por um instante da sala.
- Pai, queremos lhe fazer uma pergunta - falou Ludmila.
Ela pegou a mão do apaixonado para lhe dar apoio.
Mas quando Andrzej se adiantou para fazer o pedido, Poznikow também avançou em direção a ele. Parecia enorme,
um gigante a se inclinar para frente, como os penhascos de
um rio de desfiladeiro; com um olhar tão intenso que Andrzej temeu que pudesse agredi-lo.
Em vez disso, porém, o rosto imenso, de sobrancelhas hirsutas e bigodes enormes caindo ao lado da boca, os
olhos negros oblíquos como os da filha, abriu-se num sorriso afetuoso. Antes que o moço pudesse dizer qualquer
coisa, sentiu as mãos agarradas por ele, que os apertava
firmemente.
- Foi sensato em vir procurar-me, Andrzej. É o que
o cavalheiro tem a me dizer? Estou esperando...
- Senhor Ivan Grigoliewitch Poznikow, eu, Andrzej
Wasilewski, peço a mão de sua filha Ludmila em casamento, se o senhor achar que eu sou digno dela - solicitou o
jovem, ruborizando-se.
- Você está apaixonada por ele, filha?
- Estou apaixonada sim, paizinho.
- E quer casar com ele?
267
Ela corou, encostou a cabeça no ombro do pai, beijou-lhe o rosto e disse:
- É o que mais quero!
O pai comentou com muito cuidado:
- Acho melhor você me deixar conversar com sua
mãe primeiro.
- Eu amo Andrzej, paizinho, e quero casar com ele insistiu ela.
Entraram de volta na sala onde a mãe, Mariusia, estava sentada no sofá. Poznikow sentou perto dela, abraçoua, e sorrindo para a esposa disse:
- Mariusia, nossa filha está apaixonada e quer casar,
o que você acha?
- Que vocês possam desfrutar de uma felicidade interminável, e que Deus os abençoe - felicitou a mãe.
- No dia de hoje, nossa filha Ludmila declara seu
noivado com Andrzej Wasilewski, protegido do nosso amigo e conterrâneo, governador militar da Sibéria Oriental,
general Semion Iliaiewitch Abdulkhei. Devemos informá-lo
do compromisso assumido por vocês. O casamento será
realizado no próximo verão, daqui a seis meses. Até lá têm
a minha permissão para namorarem. Você, Andrzej, poderá freqüentar a nossa casa.
A mãe e a filha passaram a discutir os preparativos
para o casamento.
***
Nos últimos dois dias antes de se iniciar a festa do
casamento que duraria três dias, o woiwoda convocou diversos aldeões para o trabalho. Precisavam aplainar o pátio para as danças, varrer os caminhos, podar as árvores e
limpar os estábulos. Os camponeses visitantes chegaram de
barcos pelo Angara e em carroças. Foram alojados em diversos galpões e celeiros da propriedade.
268
Fora colocada uma mesa comprida no meio do
grande salão, ali era servida a comida e as bebidas. Serviuse também muito pão doce caseiro com frutas secas; e para
beber: kwass (bebida espirituosa usada pelos russos, feita de
cevada fermentada) e hidromel (bebida fermentada com
água e mel, usada entre os povos eslavos). Os camponeses
comiam, bebiam e dançavam sem parar.
Na chegada do governador, as trombetas soaram, e
as moças foram instruídas a jogarem flores quando o general Abdulkhei e sua família tivessem desembarcando da
carruagem, que chegou toda enfeitada, com os sininhos
tinindo no pescoço dos seis cavalos negros que puxavam a
condução. Todos ficaram emocionados e o general agradecia acenando com a mão.
Houve um banquete de gala naquela sexta-feira em
homenagem ao convidado especial e aos amigos do noivo,
que eram: Anton Zubrowski, Jan Filkowski, Karol
Karczynski, Lukasz Bonkowski e o engenheiro Jan Tamulewicz. Entraram para o salão onde Mariusia, a mãe da noiva, orientava a arrumação da mesa para o jantar.
- Quero que preparem a melhor comida e a mais apropriada para a ocasião. Que seja servida a melhor kascha
da região de Irkutsk que já fizeram - recomendava a dona
da casa. Mandou fazer quatro espécies de “pierogi,” (pastéis) com diferentes recheios, preparados com repolho cozido, de carne moída, de kascha com bastante cebola e, o
predileto de todos, de chucrute bastante ácido e cogumelos.
Os convidados sentaram-se à volta da mesa e os
criados trouxeram as tigelas de sopa de beterraba com carne
de porco defumada e nata de leite, salmão assado com batata, carne de veado acompanhada de couve-flor em conserva, carne de leitão assada, com a pele crocante cortada em
losangos e salpicada com ervas finas.
269
Serviram vinho tinto da Geórgia, em taças de cristal.
Cada item do cardápio a ser servido aos convidados foi
supervisionado de maneira meticulosa pela Mariusia. Assim, o jantar foi um sucesso.
O outro dia amanheceu lindo e ensolarado.
Era sábado... O dia do casamento...
Ludmila estava realmente bela, enquanto se preparava para receber o jovem que seria seu marido. Era apenas
um pouco mais alta do que a média da sua idade, mas muito
mais atraente. Tinha a graça de movimentos encantadora e
um sorriso espontâneo que a todos fascinava. A mãe lhe pôs
um vestido branco comprido e diáfano, que se apertava por
baixo dos seios, ajeitou a grinalda de flores do campo em
seus cabelos e amarrou uma delicada fita dourada no pulso
esquerdo. Segurava nas mãos um buquê de rosas vermelhas, misturado com minúsculas miosótis brancas.
- Ludmila! Pare de sonhar, você é a noiva mais linda
de Irkutsk - falou a mãe, já aflita. Se Andrzej não a quiser,
o próprio czar da Rússia aqui virá um dia em seu cavalo e
gritará aos quatro ventos: “Onde está essa Ludmila Poznikowna que disseram ser a mais bela da Rússia?”.
A vida é surpreendente ao traçar o nosso destino.
Andrzej jamais sonhou que iria se apaixonar novamente.
Porém, o destino maroto colocou no seu caminho a bela e
risonha Ludmila Poznikowna, de olhos negros e oblíquos.
No dia do seu casamento, veio-lhe a idéia de presentear a noiva. Numa ocasião em que passava pela cidade
de Berestecko, em missão secreta, Andrzej voltou à noite à
residência antiga, desenterrou a jóia e a levou consigo
guardando-a como uma relíquia. Por segurança, costurou-a
por dentro do forro do seu casaco acolchoado, junto com
duzentos rublos de ouro. O agasalho acompanhou-o no desterro para a Sibéria, protegeu-o do frio congelante, e agora
devolvia o seu segredo.
270
Quando Ludmila já estava pronta para descer a escadaria para o salão, Andrzej veio ao encontro dela com um
pequeno estojo na mão. Abriu-o e tirou um colar de fios de
ouro de que pendiam gotas de âmbar amarelo. No meio
estava preso um pingente, de pedra maior, engastada em
ouro, com pétala de flor embutida dentro.
- Querida, quero te oferecer essa jóia; como uma recordação do dia mais feliz das nossas vidas.
Depois de prender o colar por trás, no pescoço de
Ludmila, arrumou as contas com carinho até que caíssem
naturalmente pela garganta, o que deu à sua aparência uma
ilusão de raios de sol, cintilando.
Andrzej afastou-se e, contemplando-a, exclamou
com paixão:
- Ludmila, meu amor, estas contas foram feitas para
você! Vá agora, Rainha do Sol Nascente! Eu te saúdo e te
espero.
O noivo desceu para aguardar a noiva ao pé da escada, junto ao pai, a mãe e os convidados. Ela deixou o
quarto, com o colar enfeitando-lhe a linda garganta, encaminhou-se rapidamente para descer. No topo da escada parecia uma deusa que flutuava no ar. O noivo, vendo-a assim
tão bela, refletiu: “Esta moça enfeitaria qualquer castelo da
Rússia ou da Polônia. Como sou feliz por poder partilhar a
minha vida com ela. Como a amo!”.
Andrzej seguiu para a igreja, em companhia dos
amigos e convidados, para ali esperar pela noiva. Uma
grande multidão os aguardava ansiosa.
Pouco antes das onze horas, apareceu na igreja o paizinho Alexei, o pope que iria oficiar a cerimônia do casamento no rito ortodoxo-russo. Estava com a vestimenta para
ocasiões solenes. Sobre os longos cabelos brancos, a alta
kamilawka, reluzindo de ouro e adornos, e a longa barba
271
cortada em retângulo, aparada, escovada, que conferia ao
seu rosto algo de sublime.
O cerimonial demorou horas. Em seu breve sermão
aos recém-casados, ele ressaltou apenas o seguinte:
- Ludmila e Andrzej, agora vocês pertencem um ao
outro. Amem-se e respeitem-se. O resto, Deus lhes concederá. Sejam felizes.
O casamento foi uma festa muito alegre. Já tinha
começado na sexta-feira, quando chegaram os camponeses
das aldeias vizinhas, trazendo as carroças e os cavalos enfeitados com flores e fitas coloridas.
Cada pessoa exibindo o único traje bom que possuía: calças e casacos escuros para os homens, vestidos
coloridos e toucas para as mulheres. As moças em idade
casadoura, para as quais o casamento era uma ocasião muito especial, porque ali podiam encontrar os rapazes do distrito, usavam saias atraentes, rodadas, blusas bordadas e
lenços ornados com franjas na cabeça, ou cabelos em tranças com fitas coloridas; circulavam em grupos, rindo e
provocando, parecendo às vezes bandos de passarinhos na
primavera a chilrear de alegria.
Os aldeões usavam sapatos só quando iam às festas
ou à igreja, comumente calçavam botas de couro grosso.
Havia danças e comida dia e noite. Ali rapazes tímidos observavam as moças, cutucando e empurrando-se, até tomarem coragem para se aproximar, sendo invariavelmente
repelidos com gritinhos altos, ficando parados, desconcertados no meio do salão.
À medida que a tarde avançava, no entanto, cada
rapaz conseguia de alguma forma retirar do grupo de moças
alguém com quem desejava dançar ou conversar. As outras
moças ficavam em silêncio por um momento, observando
como o rapaz se comportava, com a sua escolhida.
272
Naquela noite, com todos sentados à mesa comprida, os pratos na frente, sem nada conterem, as trombetas
soaram e a orquestra pôs-se a tocar uma música solene.
Ludmila entrou no salão, vestindo uma túnica branca solta,
uma única flor nos cabelos negros, o colar de âmbar na garganta. Andando devagar, com uma graça incomparável, ela
se aproximou do noivo e ajoelhou-se à sua frente, oferecendo, numa bandeja, que segurava com as mãos estendidas,
um pedaço de pão e um pouco de sal.
- Chleb i sól ! Cristo esteja contigo! – orou.
O paizinho Alexei, o pope, abençoou cada um dos
pães, fazendo uma prece solene pela felicidade do casamento que aquele pão honraria. Os criados circulavam então
apressadamente, oferecendo a cada convidado um pedacinho do pão abençoado.
A mesa do banquete nupcial apresentava-se como
uma admirável obra de arte. Colocada no centro da mesa,
num pedestal, feita de ouro e prata, uma escultura intrincada e delicada, representando a chegada de um imperador
chinês a um pavilhão no meio de um lago. Era uma peça tão
original que os convivas ficaram fascinados.
Iniciou-se então a refeição festiva em comemoração
ao dia das núpcias. Violinos tocavam músicas tradicionais
da Rússia, enquanto os criados, treinados para a ocasião,
serviam os nove pratos do banquete. Começou com uma
delicada borsch branca, peixes recheados do lago Baikal,
chucrute e batatas, kielbasa defumada, caviar vermelho
com broa de centeio, coxas de pato em geléia e cogumelos
marinados, leitão inteiro no espeto, recheado, e carneiro
assado. Pães doces com frutas cristalizadas. Terminou três
horas depois com pequenos pedaços de um bolo de nozes e
amêndoas, coberto com geléia de frutas, e licor de ameixas.
Seguiram-se as danças no salão, quando a alta sociedade de Irkutsk aproveitou para se divertir.
273
Os anos subseqüentes foram os mais felizes que
Andrzej e Ludmila jamais conheceram. Ele trabalhava no
moinho, ajudado pelo seu amigo e conterrâneo Jan Filkowski. Ludmila ocupava-se da administração da casa paterna, onde moravam, porque a mãe, de saúde frágil, vivia
acamada.
O woiwoda dirigia os negócios públicos do seu distrito, pouco tempo lhe sobrando para o lazer; ocasionalmente ia a Kyakhta, na fronteira mongol, que dominava o
comércio oriental de peles; os mercadores chineses compravam-nas por preços fabulosos.Certa ocasião, um caçador iacuto ofereceu-lhe algumas peles, comentando:
-Veja, hospodim, estas peles são excepcionais.
Na maior curiosidade Poznikow abriu o pacote, para descobrir que continha duas peles, com cerca de um metro e meio cada uma, do pêlo mais macio, fino e forte que
jamais vira. De cor marrom escura, cintilavam à luz fraca
da tarde; de pelugem mais comprida do que as peles que
conhecia.
Eram da valiosa lontra do mar que habitava as águas
geladas à leste das terras dos chukchis, no mar da Sibéria
Oriental. Ficou fascinado pela beleza das peles, e comprou
as duas por um preço muito regateado entre os dois. Levouas para casa para presentear a esposa e a filha.
***
Quando a primavera chega à taiga, os dias tornam-se
mais longos, como em todo lugar do mundo, mas na realidade, eles ficam mais curtos. A neve, o gelo e as tempestades obrigam as pessoas a permanecerem dentro de casa
durante o inverno. Mas a primavera, aquela época maravilhosa depois do degelo! Então se libertam as forças represadas. A vida explode nas estepes e na taiga.
274
Os rios com o degelo correm caudalosos, a floresta
cobre-se de folhas verdes e a relva cor de jade enfeita-se de
flores multicoloridas. A vegetação toda estoura durante a
noite numa orgia de vida, e o ar se enche dos sons do crescimento febril.
O vento traz, das florestas e campos, odores da fecundidade, parecendo que, no horizonte sem limites, a terra
exala nuvens de vapor, cheias das ardentes emanações de
fertilidade orgíaca. Os animais selvagens lutam entre si
disputando as fêmeas que estão no cio. Todos os elementos
da natureza estão empenhados na luta pela conservação das
espécies. Sente-se no ar a euforia da sexualidade; é o empenho da energia da vida para perpetuar-se.
Zumbem as abelhas obreiras, colhendo o néctar das
flores, ajudando a natureza no afã da polinização das plantas. Voam de flor em flor sugando o alimento para levar à
sua rainha. Nos rios descongelados, miríades de peixes se
movem, outros saltam no ar para apanhar os insetos; as águas estão repletas de vida.
Cava-se no jardim e plantam-se flores. Os caçadores
vão para a floresta, pois agora aparecem os hibernantes, os
texugos e os ursos, e suas peles ainda estão grossas e valiosas. Os animais estão descuidados, pois a primavera também pulsa dentro deles.
Sim, e os tigres vagueiam pela taiga, famintos, após
os longos meses magros do inverno. São tigres de um amarelo claro, quase branco, menores que os de Bengala, porém
mais ágeis, astutos, cruéis e destemidos, porque quem quiser sobreviver na taiga, tem de ser cruel e mais forte que o
adversário.
O woiwoda Poznikow foi caçar tigres nas florestas
da região do rio Lena, junto com a comitiva de caçadores
experientes, composta de mongóis e iacutos. Andaram du-
275
rante vários dias sem encontrar caça importante. Os homens
se dispersaram procurando melhor resultado.
Poznikow era homem corajoso, ficou apenas com
um caçador iacuto como companhia. Cavalgava na frente,
sozinho. De repente, o cavalo dele começou a inquietar-se;
mexia com as orelhas, fungava, sacudia a cabeça. Quando o
cavaleiro puxava as rédeas, tornava-se indócil, disparava e
corria... corria... Do lado da trilha florestal, da brenha da
taiga, um tigre enorme, listrado de preto e branco, saltou
para o espaço livre, corria ao lado do cavalo com saltos
elásticos e rosnava baixinho. Era um animal majestoso.
- Não atire! – gritou o woiwoda para o caçador iacuto que vinha atrás dele. - Não irá acertá-lo! Não atire!
Mas enquanto o homem bradava furioso, espoucou
o primeiro tiro; não acertou a cabeça da fera poderosa, somente arranhou-lhe as costas, ele rugiu e deu um salto desesperado para cima. Parecia não existir mais qualquer força de gravidade.
Ao tocar no chão, o tigre deu o bote no cavalo, enfiou as garras na garupa do animal, puxou-se para cima;
rosnando e sibilando alto, enterrou as presas nas costas do
animal, que caiu de joelhos derrubando o cavaleiro. O tigre
estava a dois passos de distância, escorria-lhe sangue da
ferida aberta nas costas pela bala do iacuto. Estava quieto,
de pé, os cabelos da barba sujos pelo sangue que corria do
peito do cavalo.
Poznikow virou-se; o seu revólver estava a um passo, no chão, tinha caído da sua mão, quando da queda do
cavalo. Não teve chance de pegá-lo de volta. Então, ele
agarrou a lança, apoiou-a contra si e apontou na direção da
cabeça do tigre.
- Vem - disse com voz rouca. - Vem... Somente um
de nós dois vai sobrar.
276
O tigre olhou o homem com o olhar frio e cruel.
Somente a cauda chicoteava o chão violentamente, levantando poeira. O fera agachou-se. As ancas deslizaram para
trás, os tendões das pernas sobressaíam da pele. A cabeça
estendeu-se lentamente para a frente, o corpo todo era um
único tendão retesado.
E o animal saltou silencioso, o corpo estendido flutuou no ar. Frios, impiedosos e assassinos, os olhos fitaram
o pequeno ser humano que ousou atravessar a sua frente. O
woiwoda deu um grande salto para o lado, no instante em
que o tigre voava para cima dele. O tigre rugiu decepcionado e furioso ao atingir a poeira do chão, a um passo do homem.
A fera tinha calculado a distância com precisão. Caiu com as quatro patas exatamente no ponto onde um segundo antes estivera o inimigo. A cauda chicoteava a poeira
e o animal rugia. Poznikow, num relance, pegou o revólver
do chão, e segurando com as duas mãos, atirou.
Acertou no peito do tigre, mas não foi um bom tiro,
conforme viu depois. O suor brotava-lhe dos poros e escorria sobre os olhos, embaraçando-lhe a visão. Sentia como
se, de dentro para fora, um tremor lhe percorresse os nervos
É o medo mortal, pensou, então é assim quando a gente
pensa que tudo acabou.
O sangue escorria do peito do animal e o levava à
loucura; o tigre saltou novamente, daquela posição sentada,
sem agachar-se nem rugir. Parecia que se jogava de encontro ao homem, cegado pelo ódio e enlouquecido ao sentir o
próprio sangue gotejando da ferida ardente no peito, aberta
pela bala do revólver.
Foi um choque pavoroso.
A forte mandíbula enterrou-se no peito do homem,
despedaçou as costelas e acertou o coração. O tigre ficou
erguido durante um instante sobre as pernas traseiras, um
277
animal enorme e poderoso, agonizando, girou uma vez em
volta de si mesmo. Parecia dizer:
- Olhem! Vejam! árvores seculares desta floresta siberiana, todos os pássaros que voam no céu, as águas límpidas do Lena e o vento que sopra do lago Baikal, é assim
que morre um rei da taiga. Alto e Soberbo.
Então os olhos dourados se apagaram, as patas enterraram-se no solo da floresta, a terra revolveu-se para cima... e então houve um suspirar, um gemido no ar, como se
o espírito das florestas se lamentasse enlutado. O corpo
pesado do tigre caiu de lado na poeira, próximo donde jazia
o corpo estraçalhado do woiwoda.
O caçador iacuto que o acompanhava ficou estupefato, sem ação. Ao ver o ataque mortal do tigre, esporeou o
cavalo e galopou para pedir socorro aos caçadores que estavam dispersos pela floresta. Quando chegaram ao local da
luta, encontraram mortos o rei da selva e o woiwoda de
Irkutsk. Trasladaram o corpo do mandatário para sua cidade. Uma grande tristeza e dor se abateram sobre o lar de
Poznikow.
Ludmila não parava de chorar a morte do pai ao
qual amava muito; não se conformava com esta fatalidade.
A mãe, Mariusia, que não tinha se recuperado ainda da
doença que a afligia, caiu novamente de cama, ficando aos
cuidados da filha e das servas dedicadas. Andrzej consolava
a esposa, mas também sofria com a perda do woiwoda Ivan
Grigoliewitch Poznikow, que era seu amigo e protetor.
Decorridos alguns meses, Deus quis consolar a família do Poznikow, falecido tragicamente; mandou-lhes
um presente; a comprovação da gravidez de Ludmila. Desconfiada das mudanças no seu corpo, a moça procurou o
médico, que lhe confirmou o seu estado. Ela entrou no
quarto da mãe, que estava acamada.
278
- Mãe - disse - Deus está mandando uma criaturinha
nova para nós.
- O que estás dizendo, filha? Não estou entendendo.
Grávida?
- Sim! Eu estou grávida, mãe, e estou muito feliz!
Vou procurar Andrzej para comunicar-lhe esta boa nova.
Não encontrou o marido e subiu para o seu aposento. E lá no quarto estava ela deitada, chorando, no entanto, estava feliz, como ficam felizes as mulheres quando
descobrem que o milagre da vida cresce dentro do seu ventre. Ludmila estava extasiada e embevecida.
Andrzej voltou do trabalho, procurou-a junto da mãe
e não a encontrando subiu ao quarto para ver a esposa, já
bastante preocupado.
- Querida! O que você tem? – perguntou ansioso.
- Já estou no 2º mês. Estou apavorada, nunca me
senti assim.
Andrzej levou a mão trêmula à boca.
- Nosso primeiro filhinho! - falou baixinho - minha
Ludmila! meu anjo, minha mãezinha. Obrigada, meu Deus.
Então caiu de joelhos e chorou... abraçou o corpo
delgado da moça e a beijou... beijou... feliz por esta dádiva
da vida. Passaram-se os meses de espera! A gravidez transcorreu tranqüila, sem maiores complicações.
Numa noite fria, Andrzej acordou, despertado por
gemidos angustiantes. Ludmila estava sentada num banquinho e dobrava-se de dores. Chorava, as lágrimas caíamlhe dos olhos mansamente.
- Ludmila, querida! – gritou Andrzej e pulou da
cama - o que há?
- Chegou a hora, meu querido! São as dores do parto
- disse - E contorcia-se e gemia. O seu lamento soava oco e
surdo, como se sua garganta estivesse apertada. Andrzej
correu pela sala, trouxe os lampiões acesos, atiçou o fogo
279
na lareira, enfiou grossos troncos no forno e colocou panos
nas pedras quentes, para que ficassem aquecidas.
- Ainda está cedo demais - disse Andrzej - para
chamar a tua mãe.
Apanhou Ludmila nos braços e carregou-a até a cama. Deitou-a sobre os lençóis brancos e cobriu-a com cobertor de peles de raposa. Ludmila sorriu para o marido e
segurou-lhe as mãos com firmeza.
- Se é hoje ou dentro de três semanas, tanto faz...
vem aí o nosso filho, Andrzej, o nosso filhinho.
Ela curvou-se novamente e mordeu a mão do marido; seu corpo estremecia e as pernas batiam contra os lençóis. Andrzej corria como um cego. Havia se preparado
para este momento durante semanas. Tinha repetido para si
mesmo tudo que teria que fazer, como um aluno que já conhece a lição. Resolveu avisar a mãe, ela veio apoiando-se
numa bengala, trôpega, ansiosa. Chegou perto da filha, confortou-a com carinho; mais nada podia fazer, pois estava
doente de corpo e da alma...
Mandaram chamar a parteira Axinya, que veio apressada. Ordenou para que se providenciassem bacias com
água quente. Panos quentes para aquecer a parturiente. Água e sabão para lavar as mãos, tesoura, faixas e roupas
aquecidas para o recém-nascido. E nenhum pânico.
Andrzej corria pela sala. Lembrou-se da recomendação de não mostrar nenhum pânico, nenhum medo. Corria
do fogão até Ludmila, e de volta ao fogão. Sempre em círculo. Ou então sentava-se novamente junto dela, seguravalhe a cabeça ensopada de suor, olhava para os olhos cheios
de dor e sustinha a respiração, quando novamente uma dor
obrigava-a a entortar o corpo e as pernas se dobravam como
se estivessem com cãibras. A parteira massageava-lhe o
ventre e a ajudava quando vinham as dores.
280
- Andrzej! - gritou ela uma vez - oh, meu querido,
eu vou morrer! Cuide da criança. Oh, a criança está me
rasgando. Está dilacerando o meu corpo. Dá-me a tua mão,
fique perto de mim. Estou sofrendo tanto.
Amanheceu o dia, passou a manhã.
Ludmila sofria... estava deitada, os olhos semicerrados, os punhos crispados. As pequenas veias azuis estavam
dilatadas nas têmporas, e cada vez que sentia a dor do parto, abria a boca. Mas não gritava mais, pois não tinha mais
voz. Apenas exalava um sussurro, que soava como um piar
de um passarinho ferido. O marido ficou sentado ao lado,
beijando-a, segurando a sua mão, deixando que ela o arranhasse, batesse e mordesse, quando as dores tornavam-se
insuportáveis.
Axinya, a parteira, era natural da região do Iacutsk,
região do norte da Sibéria, habitante das florestas do Lena,
atendia os partos das mulheres iacutas, que tinham um costume original de parir seus filhos. Na hora do parto elas
ficavam de cócoras, na posição de defecar. Era um parto
rápido e quase sempre sem complicações. Aflita com o
sofrimento da moça, e com a dificuldade do desfecho do
parto, Axinya sugeriu para que tentassem o método iacuto,
incomum entre as mulheres do sul, que eram mais modernas.
- Andrzej, desçamos ela do leito para o chão – disse - E você Ludmila vai agachar-se de cócoras, assim , dobrando os joelhos para a frente e vai fazer muita força para
baixo, assim que surgirem as dores. Apóie as mãos na cabeceira da cama e faça força, muita força...
Feito isto, vieram as dores e Ludmila berrou como
um touro, os olhos quase saltando das órbitas, vermelhos, o
corpo retesado, como se sob fortes choques elétricos, e
quando o sangue e a água jorraram do colo, a cabeça da
281
criança surgiu lentamente. O suor escorria do rosto da parturiente.
A parteira colocou as duas mãos em concha, debaixo da criança, que vinha junto com o sangue, e a aparou
nas suas mãos. Um minúsculo ser enrugado, com os olhos e
os pequeninos punhos cerrados, a cabecinha coberta com
cabelos negros, chorava alto com voz forte.
- A criança - gaguejou Andrzej - Nosso filho... tem
cabelos negros como os teus...um menino... nosso filho.
E, então, ele chorou, segurando a criança na palma
das mãos, e embalou-a; depois, entregou à Axinya, que
cortou o cordão umbilical com tesoura esterilizada, amarrou
e levou a criança até a bacia de água morna, em que a lavou, enrolou em panos quentes e colocou perto da mãe na
cama. Ludmila ainda estava agitada pelas dores do pósparto, mas já eram suportáveis.
Axinya apertou e esfregou o ventre com as duas
mãos, até a placenta soltar-se e ser expelida com uma última golfada de sangue. Retirou os panos ensangüentados,
forrou a cama com lençóis limpos, cobriu a moça com cobertor, para que se aquecesse; mas enquanto isso ocorria,
ela já tinha caído num sono profundo. Como o seu semblante estava descansado. E como parecia feliz! Parecia
uma Madonna, com os cabelos negros ao redor do rosto e
dos ombros nus.
Esgotado, Andrzej sentou-se no banco, defronte o
fogão, cobriu o rosto com as mãos e adormeceu assim. Só
acordou com a criança choramingando, enrolada em fraldas
e cobertores. Ludmila dormia...
A jovem recuperou-se logo do sofrimento do parto,
tornou-se uma mãezinha alegre e carinhosa. Amamentava
o filho com o leite abundante dos seus seios. Foi durante os
dias que se seguiram que Andrzej, embalando o filho nos
braços, fez a pergunta:
282
- Querida, que nome daremos ao menino? Você já
pensou nisso? Escolheu?
- Não! – respondeu ela - e você, já pensou nalgum
nome bonito?
- Sim! se, você gostar.
- Qual? Diga, meu querido.
- O nome do meu avô, Kazimir.
- Gostei! Batizaremos o menino com este nome, soa
bonito. Kazimir Andrejew Wasilewski.
- É, ele vai ser um homem bom e honesto como o
meu avô.
No próximo domingo levaram o menino à igreja.
O filho de Andrzej e Ludmila seria batizado no dia
de Natal. O governador Abdulkhei e a esposa Irina seriam
os padrinhos. Foi um batizado maravilhoso. Um coro cantou os magníficos hinos sacros da Rússia antiga; a cerimônia seria oficiada no rito ortodoxo. As velas altas de cera,
acesas, tremeluziam; e o ouro nos ícones e nos murais brilhava.
Centenas de olhos de santos olhavam para baixo
quando o paizinho Alexei, o pope, descobriu a cabecinha do
pequeno Kazimir. Abdulkhei e Irina seguraram a criança
sobre a pia, e a água batismal escorreu pelos finos cabelos,
escuros, como pérolas transparentes rolando das mãos do
paizinho Alexei. O menino chorava e se agitava com força.
- Eu te batizo com o nome de Kazimir Andrejew pronunciava o pope, com sua voz de baixo. - Cristo esteja
contigo até o último dia da tua vida. Em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo.
Fazia-se silêncio absoluto na igreja, e o minúsculo
Kazio também ficara calado. Os olhinhos castanho-escuros,
um pouco oblíquos, espiavam para fora da camisola azul de
batismo para aquela barba grisalha que flutuava acima dele, como uma densa nuvem branca. Então ele virou a cabe283
cinha, e olhou para sua mãezinha. Como as velas tremeluziam, a água escorria-lhe pelo rosto, e a nuvem branca
movia-se, fechou os olhos e apertou os lábios num soluçar
queixoso.
- Meu filhinho - pensou Ludmila ternamente - como
será o seu mundo, quando tiver a minha idade? Que lhe
reserva o destino?
Ela buscou a mão do marido, segurou-a firmemente,
como se pedisse proteção para o filho, que o marido levava
nos braços. O coro de cantores entoou novamente um hino
de louvor a Deus, pedindo a bençã ao neófito.
Mariusia, a avó, não pudera comparecer à cerimônia
do batizado, devido ao estado precário da sua saúde. Desde
a morte do marido, a saudade e a tristeza não a abandonavam; debilitada no corpo e na alma, a sua doença foi se
agravando cada vez mais, apesar dos cuidados médicos que
lhe foram propiciados.
Quem pode medir a solidão de um ser humano,
quando ela só consiste de saudade?
Certa noite, Ludmila foi acordada por um leve sacudir do seu ombro. Andrzej dormia ao seu lado e roncava
levemente, num sono pesado.
- A sua mãe, não está passando bem. Venha comigo
- falou a serva que tomava conta dela - Ela esta morrendo.
Ludmila levantou-se e foi ao quarto da mãe.
- Chegue perto de mim! – falou a mãe num sussurro.
Eu já estou indo ao encontro do teu pai. Não chore, filhinha! Eu estou feliz! Deus te abençoe e te faça feliz.
Ludmila em prantos abraçou a mãe, que serenamente entregou a alma a Deus. Ela correu aflita chamar o
marido; mas cuidou para não acordar o bebê que dormia
tranqüilo num berço ao pé da cama. Tinha um aspecto satisfeito, risonho e rechonchudo.
284
- Venha deitar-se - disse Andrzej em tom carinhoso
- procure dormir. Venha, vou dar-lhe um chá. A única coisa
que precisa fazer é dormir. Eu cuidarei de tudo.
Durante a noite, quando Ludmila finalmente adormeceu, após ter tomado o chá de erva cidreira, para se acalmar, Andrzej e o amigo Jan Filkowski apanharam o cadáver de Mariusia e levaram-no até a capela mortuária do
cemitério de Irkutsk. Foi velada, e sua alma encomendada,
pelo pope Alexei, numa longa cerimônia, conforme o ritual
da igreja ortodoxa. Uma grande multidão acompanhou o
enterro. O seu túmulo foi feito junto ao do seu marido, o
woiwoda Ivan Grigoliewitch Poznikow.
Ludmila chorava desconsolada. Em pouco tempo tinha perdido o pai e a mãe. Ela não tinha irmãos, era filha
única; seus parentes mais próximos moravam em Karaganda, no Kasaquistão. A família dela agora eram o marido
Andrzej e o filhinho Kazimir.
Para ela, na sua tristeza, o próprio vento calou-se e
não mais cantava ao redor de sua casa. O sol era frio e as
nuvens brancas no céu azul eram agora lânguidas e tristes.
O silêncio era total. As servas andavam pela casa na
ponta dos pés, quase invisíveis, como fantasmas. Andrzej
passava os dias trabalhando no moinho, só voltando à noite.
Ludmila ficava sozinha com o filho, ao qual mimava muito.
– Ele será forte, corajoso e inteligente como meu
marido - dizia embevecida.
Chegou novamente o mês de julho. O verão ardia
sobre o Angara, milhões de borboletas e outros insetos voavam nos brejos e campinas. À tarde, quando a beleza da
Sibéria desfraldava-se como plumagem colorida de um pavão, o ar puro cheirava a pólen de flores. Era realmente um
milagre, como da noite para o dia um sopro quente passava
sobre a região, a brisa vinda do sul das estepes da Mongólia.
285
Andrzej e Ludmila passeavam à beira do Angara.
Estavam a sós; o pequeno Kazio dormia na rede entre a
sombra das árvores. Aproximaram-se do rio e sentaram-se
na orla, na palha dos juncos. O grande Angara corria silencioso, mas a vida fervilhava nas águas e nas suas margens.
Peixes pulavam fora d´água para apanhar insetos.
O marido passou o braço pelos ombros da esposa e
assim ficaram olhando o pôr-do-sol. Depois ele deitou e
esticou-se, deixando a cabeça no colo acolhedor da mulher.
Acima do seu rosto voavam os cabelos negros de Ludmila,
esparramados pelo vento morno.
O semblante da moça mostrava-se melancólico; era
a saudade dos pais falecidos tão subitamente. A tristeza
tomou conta dela, lágrimas grossas caíram dos seus olhos.
- Você tem a mim e ao nosso filhinho, querida
Ludmila – falava desconsolado, pois não sabia como afastar
esta tristeza da esposa.
***
Eram nove horas da manhã quando o governador de
Irkusk, general Semion Iliaiewitch Abdulkhei, recebeu um
correio de São Petersburgo. Um personagem novo fora lhe
apresentado junto com os documentos enviados pelo Comando Geral.
- Coronel Boris Tikhonowich Koryakow – apresentou-se o oficial, batendo continência, com olhar de arrogância. Koryakow era de estatura mediana, atarracado, rosto largo e ossudo, bigode fino embaixo do nariz abatatado,
lábios grossos de um libertino, cabelos castanhos e olhinhos
pequenos e penetrantes, cor de avelã.
Aparentava ter uns quarenta anos. Era solteiro, informavam os documentos apresentados ao general. Veio
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substituir Ivan Grigoliewitch Poznikow, o woiwoda falecido recentemente.
O coronel seria um comissário enérgico. Tinha aprendido como se podia tornar camponeses obstinados novamente razoáveis, como se interrogava descontentes políticos e ladrões de gado, ou como se devia chutar os traseiros dos aldeões mentirosos. Sua máxima era:
- Lindo é o canto do rouxinol! Mas ainda mais lindo
é como canta o malfeitor que cair nas minhas mãos!
Ele era temido por todos por seu caráter violento.
Beberrão e mulherengo, era um indivíduo de difícil convivência. Como procedia de uma família influente de São
Petersburgo, mandaram-no para Irkutsk, para que não envergonhasse mais os seus nobres e poderosos parentes.
***
Numa tarde amena de abril, Ludmila foi atender alguém que chegou de carruagem e estacionou em frente da
sua casa. O susto apareceu-lhe no rosto delicado, e o olhar
rápido que lançou sobre o coronel Boris Tikhonovitch Koryakow refletia a sua desconfiança. Já conhecia o coronel,
que lhe foi apresentado numa recepção na casa do governador Abdulkhei. Não simpatizou nada com ele.
- Desculpe, minha senhora, mas vim procurar uns
documentos da repartição que o woiwoda Poznikow guardava aqui no seu escritório - disse amavelmente.
- Então entre, por favor - convidou Ludmila.
O sol flutuava num céu azul sem uma única nuvem;
a temperatura gostosa de verão proporcionava a ocasião de
vestir roupas leves, e Ludmila vestia apenas uma blusa
branca de mangas cavadas e saia longa de pregas. Ambas
eram tão finas que o coronel enxergou as linhas de suas
coxas e a nudez das pernas delgadas. Fitou a blusa decotada
e diante de si o início dos seios, os cabelos negros, longos,
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que caíam sobre os ombros. Koryakow olhou ao redor da
sala. Estavam sós, ouvia-se apenas as vozes das servas ocupadas com trabalhos na cozinha, que ficava na outra parte
da casa.
- Meu passarinho – disse o coronel baixinho, e na
sua voz havia carinho e mil desejos. – Eu queria...
Chegou perto da moça, e num frenesi lascivo agarrou-a e puxou-a para si, procurando beijá-la. Um soco, bem
em cima do nariz, fez com que o coronel tombasse para
trás. Apalpou o nariz, sentiu o sangue escorrer pelos dedos
e isto o enlouqueceu, roubou-lhe o juízo e o descontrolou-o
completamente.
- Sua sacana! – gaguejou - Sacana linda e tesuda!
Você me paga! – Com um gemido surdo, lançou-se novamente sobre Ludmila, pôs a mão sobre a sua boca e deixou
cair todo o seu peso sobre a frágil figura humana.
Ofegando, rolaram sobre o tapete de urso, estendido
no chão. As mãos enormes do coronel seguraram as pernas
dela, separando-as violentamente e firmando-as com força
no chão. E agora ele até ria, com uma gargalhada rouca e
triunfante. A saliva escorria-lhe dos cantos da boca e um
odor de macho, animalesco, desprendia-se dos seus poros.
- Minha raposinha – gaguejou - Seus olhos estavam
avermelhados de excitação. Minha gatinha quente. Faz
tempo que te amo e desejo com loucura. Jurei para mim
mesmo que serias minha, iria te possuir de qualquer maneira. Nada poderia impedir-me de realizar este desejo.
Ela debatia-se inutilmente, presa por mãos enormes,
uma comprimindo-lhe a boca, outra rasgando-lhe as vestes
para facilitar a posse. Ela sentiu seu membro ereto e duro
penetrá-la profundamente, depois os arquejos do seu gozo
lúbrico. Em seguida rolou para o lado, levantou-se sobre os
joelhos, suspirou profundamente, e falou como se desculpando:
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- Eu não quis que fosse assim, mas não pude me
conter....foi mais forte do que eu...
Ela não respondeu nada, apenas seus lábios se entortaram, como se ela quisesse cuspir em Koryakow. Parecia ter nojo de ter sido tocada por ele, como se o corpo dele
fosse coberto por chagas leprosas. Ela se encolheu de tal
maneira, para não roçar nele ao se levantar.
O seu lindo rosto tinha envelhecido, apresentava
rugas profundas nos cantos da boca. Os seus olhos eram
lâminas afiadas prontas para atacar. Como petrificada,
Ludmila continuou deitada no tapete. Estava sem ação; só
um pensamento martelava na sua cabeça “Fora estuprada
por este monstro”.
Ele arrumou a roupa e calmamente acendeu o cachimbo, que sugava, soltando uma fumaça de cheiro doce e
seco, de tabaco amarelo, chinês. Saiu pela porta da frente
sem olhar para trás. Ela quisera esfaquéa-lo, esganá-lo e
fuzilá-lo. Batera com os punhos contra a parede e cuspira
na própria imagem no espelho, que atraíra a concupiscência
do bruto. Prometeu a si mesma vingar-se dele.
- É um selvagem, que vos ama - comentou Daria, a
pagem do Kazio, certa ocasião em que conversavam.
- Mas o que fiz para merecer o amor desse monstro?
Conheço-o há tão pouco tempo e odeio-o desde que o vi.
Nunca me inspirou outra coisa senão asco e repugnância.
Sinto uma enorme vergonha de ter inspirado um tal amor.
Lágrimas corriam-lhe pela face, provocadas pela
cólera. Não conseguia apagar da sua memória aquela tarde
fatídica. A presença suada e o odor animalesco daquele
indivíduo, quando ela tivera de fechar os olhos para não ver
o rosto dele, que estava com os olhos injetados e arregalados, com os lábios molhados pela saliva que escorria da
boca aberta, e a palpitação felina do nariz. Sua mão enorme, espalmada, apertando-lhe a boca.
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E agora, só sobrava o ódio, um rancor nu e desesperado, e o desejo incontrolável de se vingar daquele ser abominável. Numa ocasião, ao cair da tarde fresca de verão,
Ludmila saíra com Daria, sua serva de confiança, para espairecer, passeando à beira do lago Baikal, e o encontrara
sozinho, embriagado, cantando canções obscenas contra o
vento.
Sem dizer palavra, aproveitando o vento a favor que
soprava forte, aproximou-se por trás, e lançou um punhado
de pimenta do reino em pó dentro dos olhos do Koryakow.
Ele uivou como um cão ferido de morte, as mãos esfregando os olhos; correu como um louco em disparada. Jamais descobriram o autor da ação. O médico fez o possível
para salvar-lhe a visão, mas nenhum tratamento teve resultado positivo. Ficou completamente cego.
Ludmila voltava ao lago Baikal, caminhava pelas
margens e chorava a sua desgraça. Ela tinha-se modificado
totalmente. Não era mais aquela jovem alegre e despreocupada, pensava no futuro de modo diferente, sentia que sua
alma fora profanada.
- Não posso negar que grandes desgraças tenham atingido a vossa casa - comentou Daria. Deus punirá o vosso
inimigo.
- Oh! esse Koryakow é um canalha! Um monstro
selvagem! Sinto por ele tanto horror que preferia ver antes
o demônio do que ele - disse Ludmila. Não falarei nada ao
Andrzej dessa violência, temo ser desprezada e abandonada. Eu amo-o tanto - gemeu a jovem - não suportaria viver sem ele.
Andrzej regressou para sua bela e tranqüila casa, e
pela primeira vez, fechou o trinco da porta. Ludmila já
dormia. Estava deitada na cama, afundada num poço de
grossos cobertores de penas de ganso e pesadas colchas de
pele, que mais parecia um urso escondido na toca. Ela em290
purrara a colcha para o lado, e ao entrar Andrzej, vislumbrou seu lindo e brilhante corpo jovem e um rostinho infantil sorrindo no sonho. O menino dormia no berço.
O marido sentou-se cuidadosamente na beirada do
leito e olhou a esposa e o filho. O seu coração pesava de
tanta felicidade, tanto, que doía com essa sensação de euforia. Andrzej beijou o seio da mulher e deixou a cabeça
apoiada nela. Ludmila agarrou os cabelos castanhos e crespos do marido, puxou-o para si; ele rosnou e subiu, colocando as duas mãos ao redor do corpo delicado.
- Andrzej ?...
- Sim?
- Eu queria ter mais um filho...
- Agora não, meu anjo...
- Um menino, para fazer companhia para o Kazio,
ele é tão sozinho, poderiam brincar juntos, seriam tão amiguinhos...
- Não, por enquanto não, meu amor...
Ela segurou a cabeça do marido com ambas as mãos
e a apertou firmemente. Os lábios dele deslizavam sobre a
pele cálida e macia da mulher.
- Por que nosso caminho para a felicidade tem que
ser sempre calçado com dor e sofrimento?
- Porque aquela sorte que procuramos realmente não
existe, querida. Encontra-se além dos limites humanos.
- Mas somos seres humanos, Andrzej.
- Mas nós nos libertamos... saltamos por cima das
coisas inertes, ordenadas. E isso custa sangue.
- Mas nós apenas nos amamos! Nada mais queremos
realmente, além do sossego, paz, de um lugar ao sol, de
uma pequena e simples vida para nós e nossos filhos. Isto é
pedir demais?
- É o que parece, meu anjo.
- Então, por que nascemos?
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- Não sei...
- Por que Kazio nasceu?
- Porque nós nos amamos.
- Isto é um círculo, Andrzej ?
- É um círculo, ordenado pelo Cosmos.
Ludmila espreguiçou-se sob o peso do peito cabeludo dele; senti-lo fazia-lhe bem, os músculos dos braços e
ombros, a carne firme das coxas, seu cheiro de musgo aquecido pelo sol. As mãos da mulher deslizaram pelas costas dele, apalparam as duas cicatrizes de bala do emissário,
e foram até abaixo da cintura. Permaneceram lá, num acariciar infindavelmente terno, rotativo e leve. Em seguida, se
amaram com paixão.
Um vento cálido do sul soprava pelos cumes das árvores. A taiga sussurrava. Respirava o ar quente. Sugava
forças para o inverno que se aproximava. Já escurecia
quando Andrzej chegou de volta do trabalho no moinho.
Ludmila correu ao encontro do marido e caíram nos
braços um do outro; beijaram-se com ardor. Parecia que
não se viam há meses. E fora apenas um dia.
- Venha - falou baixinho o marido - um dia inteiro
sem você, é como ser enterrado no gelo durante uma eternidade. Não posso ficar mais sem você.
- Oh! pare... o que vão pensar de nós...
- Que o Andrzej é o homem de maior sorte desde o
Oceano Glacial Ártico até o lago Baikal. É isto que vão
pensar! E estarão com toda razão. Quem em todo este mundo tem uma Ludmila?
Kazio dormia no seu berço e sorria com o sorriso
dos anjos. Somente a claridade proveniente das chamas do
fogão bruxuleava pela sala. Estavam deitados, de braços
dados e pernas entrelaçadas na cama larga, fitando o teto,
divagando...
292
- Andrzej, meu amor - falou a moça gaguejando devo contar-te... o drama que vivi... nestes dias passados.
- Fale! – respondeu o marido assustado.
- Vou morrer se me desprezares, mas não posso
mais viver guardando de você este terrível segredo.
- Que segredo? Do que estás falando? - indagou o
marido - ansioso.
E a Ludmila abriu o seu coração, chorando, contou
ao marido, estupefato, toda sua desgraça. Contou também
como se vingara. Ninguém jamais descobrirá quem foi que
o cegou, confessou ela. Koryakow pagou caro pela sua
atitude infame. Viver para ele será maior sofrimento do
que a morte. A voz da moça agora soava calma. Aliviou a
sua consciência, contando tudo ao marido.
- O que irá fazer? - indagou apreensiva Ludmila.
- Eu vou matá-lo!- disse o marido.
- Não fará isto!- respondeu a moça severamente prometa-me que não o fará. Ele já está castigado. Quero
que viva na escuridão pelo resto dos seus dias.
- E você, Andrzej, tem que continuar vivendo para
mim e nosso filhinho, porque não existe nenhuma vida sem
você. E você sabe disso...
Era inútil continuar conversando sobre o assunto.
Andrzej percebeu pelo olhar dela. A selvageria da alma
siberiana de Ludmila estava revelada. Assim como os blocos de gelo da taiga rolam e esmagam, do mesmo modo
impiedoso, as pessoas nativas vivem, amam e odeiam...
Não há como impedi-las... Quem é que faz parar a
tempestade, erguendo as mãos contra ela?
- Você me desprezará? Meu amor? Minha vida, meu
Andrzej?...
- Não acontecerá nada disso - respondeu ele baixinho - Nada, meu amor, que não possa suportar. Como é que
pode imaginar que eu continuasse a viver sem você?
293
O que é um leito do rio sem a água, o que é um fogo sem
calor? Sem você, Ludmila, não sou nada.
***
O comissário, coronel Boris Koryakow, estava definitivamente cego. Depois de ter recorrido a diversos médicos, o diagnóstico não lhe foi favorável. Nunca mais veria o
sol. Desesperado, vagueava há dias tateando com a bengala
pelas ruas de Irkutsk. Ninguém sabia o que lhe aconteceu
apesar de ter sido feita uma investigação rigorosa, nada foi
descoberto.
Condoído da sorte do comissário o general Abdulkhei mandou dois soldados para que o trouxessem ao
seu gabinete.
- O que foi que lhe aconteceu?- indagou o general.
- Não sei, deve ser uma cuspida do inferno que me
cegou - respondeu Koryakow. Agora estou eu inválido,
rodando de um lado para outro, na escuridão. O que mais
pode fazer um pobre diabo como eu? A última linda lembrança que me ficou, foi aquele passarinho selvagem se
debatendo debaixo de mim. – Oh! foi o máximo, possui-la!
– comentou, deliciado.
- De quem você esta falando, seu depravado? – perguntou o general.
- Daquela pombinha, a mulherzinha do deportado
Wasilewski - respondeu ele, rindo alto.
- Oh! - berrou o general - então você violentou
Ludmila, filha do meu amigo, o falecido woiwoda Poznikow, e esposa do Andrzej, meu protegido? Seu porco
imundo? Besta em forma humana!
- Rogo perdão, general! Não sabia que eles eram tão
preciosos para Vossa Excelência!, peço mil desculpas.
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- Não contou nada a ninguém, não é, seu monstro,
indivíduo desnaturado? Ninguém sabe do crime de estupro
que você praticou? – indagou furioso o general Abdulkhei.
Estava com ódio daquele devasso.
- O diabo cuspiu na minha sopa! Não falei a ninguém, fique tranqüilo - falou com cinismo Koryakow.
- Pare! Chega! Seu escarro do inferno - gritou Abulkhei, e empurrou-o para o lado. Some da minha frente!
Irresponsável!
“Existem horas em que repentinamente se reconhece que na realidade tudo - as pessoas, a vida, o passado
e o futuro - é sem sentido e estúpido, e a gente não sabe
mais por que realmente vive”, raciocinava o infeliz Koryakow, ao se despedir do general.
- Eu não quero mais viver - gemeu ele.
- Sim?- Abdulkhei anuiu, raivoso.- O coronel permite que eu acredite que isto é um assunto particular seu? O
que tem o Estado a ver com isto? Se lhe agradar, enforquese, envenene-se, ou imagine um método especial para matar-se, mas não fique incomodando as autoridades com confissão de culpas, que ninguém quer ouvir. Já lhe providenciei o transporte e o dinheiro para viagem de retorno a São
Petersburgo. A sua família é poderosa e abastada, vai ampará-lo. Já me incomodou muito com suas bebedeiras e
vida desregrada que aqui levou. É tempo de ir embora para
sua casa.
- Eu pensava...
- Pois, não pense - Abdulkhei interrompeu-o com
gesto brusco, não queria mais ouvi-lo falar. Estava decidido
a mandá -lo embora.
Koryakow sentia aquele gosto amargo de fel na boca. Parecia-lhe que estava numa ilha coberta de neve, só e
banido, sem roupas e com o traseiro nu congelando no gelo;
numa situação desesperadora. Só havia trevas a sua volta.
295
Após a conversa com o general, dois soldados da
polícia levaram o lamuriento coronel Boris Tikhonovitch
Koryakow, para a diligência do correio que o aguardava.
Embarcaram e acomodaram-no sozinho num assento de
trás, recomendando ao postilhão para que tomasse conta
dele até o destino, entregando-o à família em São Petersburgo. Nunca mais tiveram notícias dele.
***
Era o início da primavera.
À tarde, o tempo se alterou repentinamente. Nuvens
rolavam vindas do sul, o céu azul ficou de repente acinzentado e logo amarelado e descolorido. Para quem conhecia
estes indícios, persignava-se. Os vendavais eram raros,
mas, quando passavam pela taiga, abriam uma larga clareira na selva, arrancavam as copas das árvores, partiam
troncos centenários, arremessavam galhos de larícios pelo
ar como grãos de areia.
O céu cobriu-se de nuvens escuras; ouvia-se ao
longe rugidos do trovão; a tempestade aproximava-se. O
vento forte soprava do sul do lado das estepes da Mongólia,
atiçando o ar quente do deserto de Gobi para as florestas da
Sibéria. Estava-se formando um furacão de grandes proporções.
Naquele dia, Andrzej tinha levantado de madrugada
para ir ao trabalho no moinho. Não tinha conseguido dormir
a noite toda, pensava na violência que Ludmila tinha sofrido; esta lembrança não o abandonava. Atravessou a estrada da floresta; resolveu sentar-se em cima de um toco de
árvore para melhor refletir sobre o problema.
Não viu o tempo passar; quando levantou para
prosseguir a caminhada, já haviam transcorrido muitas horas. Caminhava pensativo sem perceber que a violenta tem296
pestade estava-lhe alcançando. As árvores gemiam sobre a
força do vento, galhos da grossura de um braço voavam
pelo ar como penas, musgo seco girava em danças de roda
na clareira e onde os gravetos cobriam o chão duro, tinhamse formado turbilhões e redemoinhos, que arrancavam raízes da terra seca.
As águas do lago Baikal dançavam um balé fantástico, com ondas frenéticas que batiam nas margens com
violência. Salgueiros vergastados pelo vento dobravam suas
hastes finas até o chão, como cabeleiras de bruxas numa
dança orgíaca.
A tempestade caiu sobre Andrzej, forçando-o contra
o chão, arrancando-lhe a roupa, o vento enfurecido lutava
com ele e tentava lançá-lo pelo ar, como galhos e folhas.
Ele agarrou-se a um tronco de árvore, agachou-se atrás dele. O uivar do vento, o ranger e chiar da floresta, os estalos
e chicotadas dos galhos arremessados contra os troncos não
permitiam qualquer ação.
Só havia uma coisa a fazer; deitar-se no chão, encolher a cabeça, cruzar os braços sobre a nuca e rezar para
que o vértice da tempestade o poupasse. No entanto, para o
Andrzej não existia mais o tempo, ele não calculava mais
em minutos, horas, ou eternidade; não ouvia nem o vento,
não sentia a chuva batendo-lhe nas costas, não sabia se era
dia ou a noite mais negra que jamais vira em sua vida. Só
existia um ponto em sua frente, que ele tinha que alcançar.
Aquele maldito Koryakow, ele o mataria. No coração do
homem uivava uma tormenta de dor e revolta.
- Vou matá-lo - pensava o marido ofendido, na sua
amargura; e, apesar de ter prometido à mulher que não iria
vingar-se, não conseguia amainar o seu ódio. Só o sangue
do desgraçado pode lavar a mácula da desonra que ele deixou em mim – questionava ele.
297
Após a tempestade ter-se desvanecido, Andrzej
prosseguiu na caminhada até a casa do coronel Koryakow.
Informaram-lhe que o comissariado estava fechado há dias.
Diversas pessoas postavam-se em frente da porta. Corria o
boato de que o comissário havia sumido, ninguém sabia do
seu paradeiro. Murmurava-se que ele tinha sido chamado de
volta à São Petersburgo.
Fora visto pela última vez, vagando pelas ruas, apoiado sobre uma bengala. Devia estar doente e fora tratar
da saúde. O destino poupara Andrzej do crime de homicídio; ele voltou para casa já de noite, talvez lá pelas dez horas. Ludmila veio correndo encontrá-lo, e com as mãos macias acariciou-lhe o rosto; falou-lhe o quanto estava inquieta e preocupada pela sua segurança na hora da tempestade
que desabou de manhã.
- Será que tenho de dizer-te novamente o quanto te
amo? Quer sempre ouvi-lo de novo, minha avezinha?
Ludmila sorriu, beijou-o na face e foi até a porta abraçada com o marido.
- Onde está o menino, Daria? – perguntou.
O pequeno Kazio assim que viu o pai chegando, escapuliu da proteção da ama e veio correndo para o colo do
pai. Já tinha completado quatro anos; de cabelos castanhoescuros, encaracolados como os do pai, e olhos também
escuros, levemente oblíquos, era uma criança inteligente e
inquieta.
- Leve-o para cama, Daria - falou a mãe - já é bastante tarde para que as crianças fiquem acordadas.
Debruçou-se sobre o filho, deu lhe um beijo e acariciou-o. Dirigiu-se para o quarto do casal, quando ao entrar
sentiu tontura e encostou-se na parede... foi caindo lentamente... desmaiou... Assustado, o marido correu para ampará-la.
298
- O que você tem, meu amor? O que está acontecendo? O que sentiu? - perguntou aflito.
- Daria, venha ajudar-me, traga o vinagre! Ela desmaiou - chamava Andrzej. Passados alguns minutos, Ludmila voltou a si.
- Ela está viva! Graças a Deus – falou alegre a serva.
- O que aconteceu comigo? Diga a verdade, - pediu
em voz baixa a moça, - estava preocupada com o ocorrido.
- Você desmaiou, só isso, precisa ir ao médico, para
saber a causa desse mal-estar - explicava o marido. Irei com
você amanhã.
- No outro dia cedo ela foi consultar o médico. Depois de minuciosos exames e perguntas o doutor deu-lhe o
diagnóstico e efusivos cumprimentos ao Andrzej.
- Será pai, dentro de alguns meses - falou o médico
alegremente.
Ludmila, ainda com o rosto pálido e transparente,
levantou-o para o marido, e, com olhar suplicante, dissenão fique zangado comigo, querido!
- O que é isso, Ludmiluska?
- Eu sabia que você não queria outro filho logo, mas
aconteceu... estou grávida.
- Quem poderia amar a Deus mais do que nós? Agradecer-lhe mais esta graça. Estamos juntos, e vamos ter
mais um filho. Não existem palavras para agradecer tanta
felicidade.
Andrzej virou-se e puxou a esposa para junto do
seu peito. Segurou-lhe a cabeça nas duas mãos e fitou os
olhos negros, oblíquos e ardentes; ela ergueu os braços e os
passou em volta do pescoço dele. Beijaram-se com paixão.
Mas uma grande preocupação não saía da cabeça de
Ludmila. Teria ficado grávida do estuprador Koryakow?
Ou do seu marido? Pois amaram-se intensamente naquele
mesmo dia. Teria que esperar até o nascimento da criança
299
para saber a verdade. Andrzej não comentou mais o triste
acontecimento.
Durante muitos dias Ludmila sentiu enjôos e vômitos. Não podia sentir o cheiro de comida; emagreceu e
ficou pálida, de olhos fundos. Mas isto também passou, e
ela voltou a ser aquela jovem alegre e brincalhona.
***
Amanhecia.
O disco dourado do sol surgia no horizonte. O céu
se tornara pálido e os cumes das árvores da taiga balançavam ao vento matutino, como se a mão de um gigante limpasse a coberta cinzenta da noite e cobrisse o lago Baikal
com um brilho prateado.
A floresta reluzia incrivelmente verde; os bancos de
areia branca cintilavam, como se não tivessem sido formados de cascalho escuro, moído durante milhões de anos, e
sim de minúsculos diamantes, nos quais se refletiam agora
os primeiros raios do sol.
Um vento morno começou a soprar do sul nesta manhã de abril, e ao olhar das janelas, cedo, via-se que a neve
derretia, os caminhos se transformavam em lamaçais sem
fundo, a água da neve corria em torrentes pelas estradas,
entrava pela floresta, e de lá para os rios ainda cobertos de
gelo.
Depois de três dias o gelo começava a estourar no
lago Baikal e no Angara, chegava carregado pelas águas do
sul, e junto vinha a enchente. No quinto dia do degelo e da
entrada da primavera, com os ventos mornos constantes, a
cidade ficara debaixo d´água, por muitos dias.
Andrzej e Ludmila estavam sentados no banco junto
ao fogão, numa daquelas noites felizes, em que sonhavam
um nos braços do outro. O menino dormia ao lado.
300
Foi nesse novo mundo que a carta do czar Nicolau
I chegou, vinda de São Petersburgo. Enviada com urgência
ao Andrzej, por um correio do general Abdulkhei, vinha
acompanhada de um bilhete do governador, que dizia:
“Leia e resolva o que for melhor para você e sua
família, sentirei muito se optar por ir embora, já o considero
como um filho. Mas a vida é tua, só você pode decidir”.
- Leia - pediu Ludmila, curiosa.
Era uma longa carta na qual o czar tornava livres
os prisioneiros políticos deportados em 1831, que já tinham
cumprido a pena de vinte anos.Podiam voltar para sua pátria.
E, sendo assim, “deixamos à sua vontade, regressar
à Polônia e viver sem nos perturbar, ou ficar na Sibéria e
empregar toda energia no engrandecimento da região”.
Andrzej deixou cair a carta e abraçou Ludmila. Ela
chorava como uma criança, agarrando-se a ele em soluços.
- Vai mesmo voltar, querido? – perguntou ela baixinho, e escondeu o rosto na sua camisa. Pensei que amavas a
Sibéria!
O marido pegou seu rosto nas mãos:
- Eu dizia isso para não te magoar, mas cada manhã,
ao me levantar, olhando pela janela, uma saudade imensa
me invadia a alma.
O esposo apertou o rosto contra os cabelos da esposa, depois foi escorregando, caiu de joelhos diante dela, e
começou a chorar. Pensou... e de repente se deu conta que
tinham passado vinte anos, e eram como um dia. Mas na
Sibéria o que significa o tempo? É de estranhar que esta
palavra exista na linguagem russa.
Então, ficou ali, adormeceu... e sonhou...
Ludmila cobriu-o com cobertor, beijou-o mais uma
vez nos olhos, acariciou-lhe os cabelos castanhos. Seu co-
301
ração estava pesado de amor e de medo e não sabia explicar
porquê!
Kazio brincava com um cavalinho esculpido, no
qual montado, corria... gritando de alegria.
Andrzej sonhava com a volta à pátria, com o pai e a
mãe falecidos, a irmã e irmão, e lembrou que não tinha
mais ninguém vivo da sua família; somente lhe restavam
alguns parentes afastados, que moravam em Lublin. Rolava
na cama inquieto.
Muitos dos deportados já eram tão idosos, que
mesmo a liberdade anunciada pelo czar não tinha mais sentido para eles; não sobreviveriam à viagem de retorno, logo
Irkutsk se tornara a estação final de suas vidas. Muitos já
tinham morrido e aqui foram enterrados os seus corpos, no
exílio, para sempre. Para quem vagueou durante vinte anos
pela Sibéria já falta tutano nos ossos para se aventurar numa peregrinação a um mundo diferente daquele que tinham
deixado, e começar tudo de novo.
Assim pensavam os alquebrados pelo trabalho duro,
doenças e idade. Dos 121 deportados poloneses que ali
chegaram no ano de 1831, estavam voltando apenas 48 homens, alguns com suas famílias siberianas, outros sozinhos.
Ninguém fugiu durante todos esses anos. Quem ia pensar
em fugir? Fugir? Para onde? A Sibéria é mais segura do que
cem grades de ferro uma atrás da outra. É uma grande armadilha, só se pode correr de um canto para outro, ou em
círculos.
Deveriam, então, todos os deportados que iriam voltar, providenciar documentos, passaportes, autorizações. O
Comando Central da Sibéria em Irkutsk teria que autorizar
o retorno. Mas isso não era obstáculo, pois o governador
Semion Iliaievitch Abdulkhei, de posse da carta do czar,
autorizou de imediato, pois a primavera havia chegado an-
302
tes do esperado, e deveriam aproveitar as boas condições do
tempo para iniciar esta longa viagem.
Ludmila vendo o marido triste, caminhando pela casa inquieto, disse:
- Se você tem tanta saudade e vontade de voltar, eu
estou pronta para abandonar tudo e ir contigo até o fim do
mundo. Meu amor! Sem você eu não vivo.
- Estás falando seriamente? Pensou bem? Não vai se
arrepender? – perguntou Andrzej com ansiedade.
- Não, e não adianta tentar persuadir-me para ficar,
já resolvi, iremos para tua Polônia - respondeu ela com firmeza.
- Agora tratemos de arrumar tudo para a longa viagem - comentou o marido, já com sorriso na face.
Andrzej vendeu a propriedade que fora do pai de
Ludmila. Foi apresentar o seu amigo Karol Karczynski, que
ficaria administrando o moinho em seu lugar. Karczynski
constituíra nova família em Irkutsk, achava-se cansado e
um tanto idoso para recomeçar uma nova vida na Polônia.
Faltava ainda vender as duas peles de lontra do mar
que Ludmila herdara da sua mãe. Eram peles muito valiosas
e eles iriam precisar de muitos rublos para a viagem e o
começo de vida nova no destino.
Andrzej e Ludmila seguiram numa carruagem pela
estrada tortuosa em direção ao sul, para Kyakhta, na fronteira da Mongólia. A cidade parecia um grande mercado
turco, havia fogueiras nas ruas, sobre as quais se preparavam todas as espécies de cozinha. Por toda parte reinava
uma balbúrdia sem controle, uma atividade comercial de
ensurdecer. Era uma extraordinária mistura de mercadores,
de todas as regiões da Ásia.
A multidão ostentava os mais variados trajes. Turcos de turbantes brancos; judeus de túnicas pretas, camponeses usbeques, casaques, caçadores iacutos, tártaros co303
bertos de peles de animais selvagens. Chineses, de quimonos de seda longos e floridos, com o eterno sorriso da Ásia, que se encontrava nos seus lábios finos, e os olhos eram alertas e repletos de inteligência ardilosa, e a boca de
palavras sutis. O ar vibrava aos sons de todas as línguas; de
gritos, de pragas, do mugido dos camelos, vacas, cavalos,
porcos, berro de cabras e ladrido de cães.
O comércio intenso de peles de animais trazidas pelos iacutos dos confins da Sibéria, e de sedas oferecidas
pelos chineses, chás os mais variados, colares e contas de
ágata, estatuetas de porcelana chinesa e de marfim, perfumes exóticos e especiarias; mais uma infinidade de artigos
que eram negociados aqui no entreposto do Oriente.
E mais interessantes eram os camelos... esses fantásticos animais possuem duas corcovas no dorso e o corpo
coberto de lã. São originários do deserto de Gobi, na Ásia
Central. É o transporte de carga mais útil nas regiões áridas, pela sua sobriedade, resistência e força. Aí na fronteira
da Mongólia que ele se faz mais presente. É inteligente, e o
seu comportamento vingativo demonstra isso, pois quando
se enfurece com alguém, cospe nele, sorrateiramente.
Ludmila conhecia um mercador chinês de nome Ye
Hiu, que negociava tapetes de seda de Cabul e Bukhara,
vestes femininas de seda e bordados, artigos de prata marchetada, caixinhas de jóias, punhais,taças e perfumes orientais. Comprava peles de zibelina, de raposa prateada, de
martas e outros animais de peles preciosas, caçados pelos
iacutos nas florestas do Lena.
Foram procurá-lo e Andrzej mostrou-lhe as duas
preciosas peles de lontra do mar. Ye Hiu ficou maravilhado
com a beleza das mesmas. Ofereceu um preço bom, mas
muito abaixo do valor real. Ludmila ficou ofendida e falou
firme que só venderia as peles por mil rublos de ouro. Ye
Hiu esbravejou, xingou, mas pagou o preço pedido.
304
- Quantos rublos temos agora, Ludmila?
- Com esta venda completamos oito mil rublos.
Nos dias que se seguiram, o casal providenciou as
compras; adquiriram provisões para uma longa viagem.
Compraram cobertores e sacos de dormir, roupas de baixo
quentes e botas de feltro; protetores de orelhas e luvas forradas, agasalhos compridos forrados com pele de carneiro e
gorros de lã.
Levaram farinha de trigo para o pão e grãos descascados de cevada e trigo mourisco para kascha, latas de chá,
carnes em conserva e dois toneis de arenque em salmoura.
Montaram uma pequena farmácia: com tesouras, ataduras,
compressas arteriais e pomadas, comprimidos para dores e
vidrinhos de iodo. Álcool para acender o fogo e o fogareiro
e panelas para cozinhar. Acondicionaram tudo em sacos de
couro.
Foi comprada uma carroça grande e forte para levar
a carga; e uma carruagem leve, para transportar a família.
Dez cavalinhos da estepe, animais fortes, resistentes para
longas viagens; agüentavam valentemente o frio e o calor.
Em fins de abril o barqueiro voltou a efetuar suas
travessias, pilotando as grandes barcaças.
Andrzej e Ludmila ultimaram os preparativos para a
longa viagem; chegava o dia e a hora de partir; não podiam
mais protelar. Foram despedir-se do governador Abdulkhei.
Ele pegou Andrzej pelo braço e levou-o para seu escritório,
lá retirou da parede duas lustrosas carabinas militares, limpas e bem azeitadas, e as entregou, dizendo:
- Estas armas são maravilhosas atiram com uma
pontualidade ímpar. Poderá precisar delas. Leve-as consigo!
Andrzej pegou as carabinas e colocou as alças de
couro no ombro. Até as baionetas estavam presas às coro-
305
nhas; as lâminas estavam limpas, sem ferrugem e cobertas
com uma camada de graxa.
- Como, quando, e com o que poderei agradecerlhe, general? – perguntou Andrzej.
- Apenas cuide e faça feliz Ludmila, a filha do meu
grande amigo Poznikow, e também cuide bem do meu afilhado Kazimir Andrejew. Darei a você uma carta de recomendação ao meu amigo general Dimitri Pawlowitch Kisselef governador da província de Lublinski na Polônia.
É um salvo conduto, para não ser incomodado por
nenhuma autoridade no caminho que vai seguir, até o seu
destino. Esta oferta era muito valiosa, pois precisavam da
autorização especial para viajar em paz; para obter cavalos
de posta e pousada nas estações de correio.
Viajariam em vinte tarrantasses, que é uma espécie
de veículo rústico de quatro rodas, com um toldo de couro
que se pode baixar e fechar quase que hermeticamente.
Torna a condução mais arejada e agradável no grande calor,
e mais segura com chuva ou ventania. É puxado por cinco
cavalos. Podiam viajar nele quatro ou cinco pessoas confortavelmente, com o postilhão na frente.
A partida dos 48 deportados foi um acontecimento
inusitado, por dois dias despediam-se dos amigos que ficavam. Levavam consigo grande quantidade de cartas, relatórios, recados.
Partiram cedo, na manhã de 15 de julho de 1851. Os
homens, conduzindo os 10 carroções com provisões e material de mudança. As famílias seguiram na frente, em tarrantasses e troikas, acompanhados por doze cossacos a
cavalo, para proteção, nessa longa viagem em direção ao
oeste. Ninguém estava à beira da estrada, para pouparem
as lágrimas e os acenos de despedida. Ouviam-se apenas as
vozes altas dos amigos clamando:
- Deus vos acompanhe ! Boa viagem!
306
Passando em frente ao cemitério da cidade, Ludmila
e Andrzej desceram da carruagem, foram até o túmulo dos
pais dela e colocaram flores de campo sobre as sepulturas,
rezaram em silêncio. A filha não conseguiu segurar as lágrimas que vieram como torrentes.
- Adeus, minha mãe e meu pai, talvez para sempre,
- soluçava, amparada pelo marido. Os dois olharam mais
uma vez para trás. A última coisa que conseguiram divisar
contra o fundo da parede verde da taiga era a cebola da torre da igreja de Irkutsk, lugar onde se casaram e batizaram
seu filho Kazimir. Depois continuaram a viagem ao seu
destino. Um grupo de buriatas, em seus pequenos cavalinhos peludos, acompanhou-os por um trecho grande do
caminho, despedindo-se depois com galope selvagem e
gritos agudos.
Apenas restou o silêncio... A infinita quietude da
taiga, que os acompanharia por meses a fio. Andrzej pôs o
braço em torno da esposa - e falou com voz rouca:
- Ainda podemos voltar...
Ela sacudiu a cabeça e pôs as mãos suavemente sobre a sua boca:
- Não fales nada agora - sua voz vacilava - por favor querido, eu te suplico! Não diga mais nada, ou não terei
forças para dizer não. Lágrimas escorriam por sua face pálida, encostou o rosto no ombro do marido e chorou.
O comboio de tarrantasses e carroções continuou
matraqueando pelas estradas ruins e perigosas, atravessando
rios, florestas e montanhas. O primeiro grande rio que teriam que transpor era o Yenissei. Em circunstâncias normais, utilizando as barcaças especialmente preparadas para
o transporte de viajantes, veículos e animais, a passagem do
rio exige três horas ou mais, e só com extrema dificuldade
estas barcaças atingem a margem direita.
307
Mal rompeu o dia e a bruma ainda estava densa sobre o rio, e não se via a água. Das camadas inferiores do
nevoeiro saía um surdo tumulto de correnteza. Todos esperavam que a cortina de brumas se levantasse. O sol subia
rapidamente no horizonte, e os seus primeiros raios não iam
tardar a dissipar o nevoeiro.
O rio Yenissei, no local da foz do Angara, é imenso, mede mais ou menos 1.600 metros de largura e forma
dois braços desiguais por onde as águas seguem tumultuosas. É um admirável espetáculo da natureza.
O Yenissei nasce na Mongólia, quase na fronteira da
Sibéria, bem próximo ao lago Baikal; recebe como afluentes, o Angara, Tunguska superior, médio e o inferior, e
outros rios menores; forma um rio caudaloso e turbulento,
com 5.200 quilômetros de extensão, deságua no oceano
Glacial Ártico, no Mar de Kara, por um largo estuário; fica
congelado durante todo inverno.
Como transportar este grande comboio de carroções,
tarrantasses e cavalos de uma margem à outra?
Viajaram durante todo verão e outono, passaram por
cidadezinhas remotas; percorreram grandes extensões de
terras áridas e vazias, estepes sem qualquer habitação projetando-se até o horizonte, lugares que nunca antes tinham
sido cruzados por viajantes estranhos.
O inverno já havia começado e a neve caía fininha.
As borrascas e violentos crepúsculos vermelhos, brilhando
sobre lagos congelados e tundras brancas, estavam no auge.
Lobos famintos seguiam a caravana à espera de acidente
que lhes proporcionasse um alvo indefeso.
Seguiu-se um inverno intenso, e os ventos uivavam na solidão da taiga. À noite a temperatura descia próximo a quarenta graus negativos. Foram obrigados a abandonar quaisquer tentativas adicionais de continuar a viagem
para oeste. Abrigados em cabanas feitas de troncos de árvo308
res, pois as tendas o vento derrubaria, e quase sem alimentação adequada para os homens e animais, eles sobreviveram ao terrível inverno de 1851.
Nas estepes siberianas no inverno, apesar das roupas de pele de rena que as pessoas vestiam, gelava o coração dos viajantes, enregelava os pés que estavam envoltos
em três pares de meias de lã. Os cavalos da troika estavam
cobertos por uma camada fina de neve, e a sua respiração
condensava-se nas narinas; contudo, a viatura corria sempre
como um tufão. Os obstáculos sumiam sobre a planície
nivelada pela neve, desapareciam os rios e lagos sem que
fosse preciso procurar-lhe os locais de passagem.
A família de Andrzej viajava numa condução bem
confortável. O menino ia envolto em cobertores, só lhe aparecendo os olhos espertos, na face rosada. O marido estava
pensativo e preocupado com a gravidez da esposa. A caravana prosseguia em frente percorrendo cerca de 4.500
werstas de estradas tortuosas pelas estepes siberianas, congeladas, até chegarem à Tobolsk.
E, finalmente, quando degelaram os vales e os rios,
eles navegaram em barcaças por centenas de quilômetros
pelo rio Obi e Irtisth, até chegarem a Tiyumen, o solitário e
desolado povoado aos pés dos Montes Urais.
A vida explodiu nos campos com a vinda da primavera. Os rios corriam caudalosos, as florestas cobriam-se de
folhas verdes, a relva tinha um tom de esmeralda e léguas
de estepes cobriam-se de flores. Às vezes, quilômetros de
flores brancas inclinavam-se ao vento forte e fresco. Pétalas
azuis, douradas e rosadas derramavam-se pelas planícies e
vales como um imenso tapete turco. Os pássaros cortavam
os céus azuis ardentes e suas vozes exultantes enchiam o ar
de sons emocionantes. Os primeiros contornos dos Montes
Urais começaram a desenhar-se no horizonte, na direção do
oeste.
309
Os Montes Urais são uma cadeia de montanhas que
se estendem entre a Europa e a Ásia ao longo de 3.200 quilômetros. “Urais”, nome de origem tártara que significa
“cinturão”. Começam no litoral do mar Ártico e terminam
nas margens do mar Cáspio.
Durante o dia, o céu esteve sempre encoberto, a
temperatura suportável, mas o tempo mostrava-se tempestuoso. A passagem na vertente oriental dos Montes Urais,
na estrada que vai de Ekaterimburgo à Perm era a via mais
rápida e a mais segura, aquela que serve ao trafégo de todo
o comércio da Ásia Central. Infelizmente, o ribombar de
um primeiro trovão anunciava uma tempestade que se adivinhava temível pelo estado particular da atmosfera. A tensão elétrica era tal que só poderia desencadear-se com violência.
Andrzej velou para que a sua família não sofresse
nenhum problema. A capota da tarrantasse, que uma rajada
de vento facilmente arrancaria, foi presa solidamente com
cordas reforçadas. Desatrelaram-se os cavalos, que foram
amarrados a troncos. Esperaram a tempestade passar, mas a
noite mostrava-se ameaçadora. Densas nuvens pareciam
baixar a abóbada do céu; pelas onze horas os relâmpagos
começaram a iluminar o céu e não paravam mais.
À luz dos seus clarões, viam-se aparecer e desaparecer as silhuetas dos grandes pinheiros da floresta.
À borda do caminho, profundos abismos eram iluminados, e o trovão parecia rolar por dentro deles. O vento
desencadeava-se nas copas dos grandes pinheiros, que se
torciam no cume, e algumas velhas árvores não resistiam
ao ataque da borrasca, arrancadas com raízes, caíam com
estrondo no abismo profundo que bordejava a estrada. A
fúria da tempestade redobrava.
Ao mesmo tempo, uma avalanche de pedras e de
troncos descia de roldão do alto das escarpas. O rolar do
310
trovão cessou por um instante, e a terrível tempestade perdia-se nas profundezas do desfiladeiro. Começou uma chuva torrencial, com granizo martelando os veículos e os animais encolhidos perto das árvores. A borrasca estava então
na plenitude da sua fúria.
Os relâmpagos enchiam o desfiladeiro e um raio ricocheteou no tronco de um larício, destruindo-o completamente; os trovões sucediam-se, e o solo vibrando sob os
furiosos golpes parecia tremer, como se todo o maciço dos
Urais tivesse sido submetido a uma trepidação infernal.
Depois, quando o último som do trovão se perdeu nas profundezas das montanhas, a chuva parou tão rápido quanto
começou.
A comitiva dos ex-exilados estava acampada ao sopé dos Montes Urais. Passado o temporal, podiam continuar
a viagem em direção à Perm.
O ventre de Ludmila agora estava arredondado, viase nitidamente o seu estado de gravidez. Quando Andrzej
colocava a mão sobre seu ventre, sentia como a criança se
mexia; como uma vida nova se desenvolvia no abrigo cálido do corpo dela. Isto o fazia ficar cada vez mais feliz, sim,
ele encostava o ouvido na pele lisa, esticada da barriga, e
prendia a respiração.
- Eu ouço o coraçãozinho do nosso filho - dizia - bate baixinho, mas não é um milagre que eu o escute?
- Sim, meu bobinho - respondia Ludmila, e revolvialhe os cabelos, esticava-se e ficava bem quieta, para que
ele pudesse escutar e tocar, e ela se banhava numa sensação
maravilhosa de felicidade.
- Que assim seja, - pensou ela - Que Deus não se esqueça de nós nestes confins do mundo. Nós iremos precisar
muito do Seu amparo nesta viagem. E,logo chegará a criança, nosso segundo filho.
- Esperamos já ter chegado ao nosso destino.
311
Assim viajaram durante toda primavera de brisas
amenas, o verão de calor escaldante e o outono que se aproximava novamente, anunciado pelo frio gélido que entrava pelos ossos. Atravessaram, de volta, toda a extensão
da Sibéria, da Rússia européia, até a Polônia, com suas
florestas, estepes, rios e montanhas.
Hoje, como há séculos, - pensou Andrzej - hoje,
amanhã e sempre, enquanto a terra girar, haverá um céu
azul e um outro céu cor de chumbo, que cobre a imensidão
dos campos no inverno. O céu e o sol, a neve e o vento, as
montanhas e os rios circundarão a taiga na qual existiu certa
vez uma extensa cerca de arame farpado, com torres de
vigia, um portão grande, barracões compridos e soldados de
guarda...
Centenas de homens desesperançados, prisioneiros
de outros homens, por não aceitarem a sua opressão, por
não comungarem com suas idéias de domínio sobre as nações livres, suportaram as privações, o sofrimento e a solidão na longínqua Sibéria...
O tempo passou... Os impérios caíram, os czares e
os carrascos se foram, as inexpugnáveis fortalezas viraram
ruínas e pó... mas a alma do povo polonês continua amando
a liberdade acima de tudo.
VIII
O REGRESSO
A atual província de Lublin é composta de diversas
terras antes pertencentes a outros centros administrativos
como Chelm e Krasnystaw. O tronco-mater é a província
criada pelo rei Kazimierz Jagiellonczyk no ano de 1474. A
divisa no rio Bug já existia nos tempos de Mieszko I, em
981 d.C. A cidade, sede da província, situa-se a sudeste de
312
Warszawa, no Planalto de Lublin, à margem do rio Bystrzyca afluente do Wieprz, tributário do Wisla.
Fontes escritas e achados arqueológicos indicam
quão importante era o papel de Lublin no trânsito comercial, desde o início da Idade Média até os dias atuais. A
passagem era uma ramificação da grande rota de comércio
do âmbar, ligando o Mar Negro e a Rússia de Kiew com o
mercado do mar Báltico.
Significativa posição no comércio de exportação tinham os cereais e a cera de abelha trazida da Wolinia e Podolia. Também os corantes e pigmentos colhidos na Rus
Vermelha, de insetos Porfirosfera polônica (cochinilha).
Fornece uma tinta de um vermelho magnífico que é o carmim. Na região de Rus havia a maior incidência desses
insetos. No século XV, foi o auge da expansão desse comércio original.
Lublin era conhecida no século XII como fortaleza
de defesa. Desde o ano de 1317 foi centro de comércio entre a Coroa e o Grande Principado da Lituânia. Ali foi firmada a União entre a Polônia e a Lituânia (Unja Lubelska),
em 1569. Depois da divisão da Polônia em 1795, a cidade
foi ocupada pela Àustria, mais tarde passou para a Rússia. e
assim ficou até o ano de 1918.
Início de fevereiro de 1852.
Num dia gélido de inverno, Andrzej Wasilewski,
Ludmila, Daria e o pequeno Kazimir Andrejew, mais os 47
deportados, pisavam novamente o solo pátrio, em Lublin,
na Polônia.Tinham uma necessidade imensa de descanso,
sossego, sono, esquecimento, de alegria e de amor. Um teto
para sua família, um trabalho calmo e frutífero, era o que
Andrzej e os outros desejavam acima de tudo.
313
E foi num domingo, já se aproximando a hora do
meio-dia, que os ex-exilados entraram na cidade. Apesar de
a chuva e a neve não darem trégua, surge na rua lamacenta
do bairro Krakowskie Przedmiescie um comboio de dez
carroções e outro tanto de tarrantasses e troikas trazendo
de volta à pátria, depois de 20 anos de exílio na Sibéria, os
remanescentes da insurreição de novembro de 1830.
As ruas de Lublin estavam desertas. Ninguém saía
de casa. As pessoas ou escondiam-se nos portais, ou encolhidas fugiam do frio cortante, da chuva fininha e neve.
Não se ouvia o rodar das dorozkas, pois a maioria estava
parada, os cocheiros abandonavam a boleia e entravam dentro dos fiacres para proteger-se do frio; os cavalos açoitados
pela chuva e cobertos de neve, tremendo, pareciam querer
cobrir-se com as próprias orelhas.
Andrzej procurou uma hospedaria para acomodar a
família por aquela noite. Todos estavam muito cansados e
Ludmila não se sentia bem desde a manhã daquele dia; começou sentir a dores sutis no baixo ventre. Assustou-se.
Podia ser o início do trabalho do parto.
- Será que chegou a hora? - dirigiu-se ao marido,
angustiada.
- O que você sente, querida? Deite-se e descanse,
com certeza logo vai passar, é apenas o cansaço da viagem; eu preciso sair, devo voltar logo, vou procurar um
amigo meu de nome Tadeusz Wawelski; com sorte, espero
encontrá-lo; e que ainda esteja morando aqui e na mesma
casa - disse Andrzej, e apesar da chuva e neve bater-lhe no
rosto, ele foi à rua Aleja Raclawicka procurar o amigo. Ao
chegar próximo à casa ouviu os acordes de uma música
nostálgica, sua conhecida.
As notas encantadas acordaram o cão que dormia no
sofá, este, levantando a cabeça, ficou olhando para o dono,
embevecido. De repente correu até a janela e latiu furiosa314
mente. Uma grande sombra apareceu na janela gradeada,
que tentava olhar para dentro.
- Deve ser o Paulo - pensou Tadeusz.
Mas o cão não estava de acordo, pulou do sofá novamente e, ganindo inquieto, cheirava a porta como se sentisse a presença de um estranho. Ouve-se um ruído no vestíbulo. Uma mão procura o trinco e abre a porta, no portal
aparece um homem vestindo um longo casacão de pele de
urso, respingando chuva e neve.
- Quem é ? – pergunta Tadeusz intrigado, e a sua
face cobre-se de rubor ao avistar o visitante.
- Então já não me conhece, velho amigo? - Andrzej
respondeu em voz baixa, lentamente.
O senhor Tadeusz atrapalha-se mais ainda, arruma
os óculos no nariz, que estavam caindo, guarda a clarineta
no armário. Enquanto isso o hóspede tira a peliça e o gorro
de pele, agradando o cão que o estava festejando, pois este
com alegre ganido deitou-se a seus pés.
Tadeusz chega mais perto do visitante, comovido...
caminha encurvado mais do que comumente.
- Parece-me – diz, esfregando as mãos - parece-me
que tenho a honra... E leva o visitante para perto da luz da
janela, piscando os olhos, fala enternecido:
- Andrzej! Mal posso acreditar! Como Deus é misericordioso - em seguida abraça-o, aperta-lhe as mãos, passalhe as mãos na cabeça com afeto.
- Ha! Ha! Ha! – ri de contente - Andrzej em corpo e
alma! Salvo da Sibéria! Voltou finalmente, e veio ver-me,
lembrou-se do amigo Tadeusz – concluiu, batendo-lhe nas
costas - com certeza, estás mais velho, mas continuas o
mesmo de sempre, forte e decidido.
Andrzej também ria. Abraçou o amigo e beijou-o na
face diversas vezes, conforme o costume antigo.
315
- Então, o que temos de novo por aqui? – perguntou
o visitante - você emagreceu, teus cabelos encaneceram...
- É, um pouco... estive doente.
- Esta cabeleira cinza fica-lhe muito bem... mas
estás bem de saúde ?
- Otimamente! E os negócios vão bem. Mas fale-me
de você, amigo querido; vinte anos se passaram desde que
nos vimos pela última vez nos pântanos do Polesie. Eles te
pegaram naquele dia... O que fizeram com você, meu amigo? Encarceraram em masmorras, sujeitaram a torturas.
Condenaram por vinte anos de trabalhos forçados na Sibéria. Sugaram tuas energias, mas não conseguiram dobrar-te,
continuas o mesmo Andrzej forte e destemido. Finalmente
estás de volta, libertaram-te... Os demônios russos... Malditos opressores.
- Venceu o prazo da nossa sentença e tiveram que
nos soltar - comentou Andrzej, e sentou-se no sofá. O cão
subiu e deitou a cabeça no colo dele. Tadeusz puxou a cadeira para perto.
- Come alguma coisa? Tenho presunto e pão preto.
- Aceito!
- Quer beber algo? Tenho uma garrafa de vinho,
mas só tenho uma taça.
- Bebo do copo - respondeu o hóspede.
Tadeusz começou a andar pela sala, atrapalhado,
abrindo gavetas, armários, procurando... até que achou o
vinho, colocou na mesa o presunto e o pão. Suas mãos e
lábios tremiam de emoção, levou tempo até que se acalmasse e servisse a comida. Só depois de tomar um copo de
vinho é que lhe voltou a calma. Enquanto isso, o visitante
comia com grande apetite.
- Sacie-se, depois fale-me de você – pediu.
- Estou pensando como é que vou começar...
Tadeusz puxou a cadeira para mais perto do amigo.
316
- Agora fale, Andrzej, estou ansioso para ouvi-lo!..
- Meu querido e velho amigo, você não imagina o
quanto estou feliz por estar aqui de volta. Você não tem
idéia de quanto eu sofri, longe de todos, na incerteza se
algum dia iria retornar à pátria. Vivia na mais terrível solidão, pois a pior solidão não é aquela que cerca a pessoa,
mas esse vazio dentro da alma, quando não há nenhum raio
de esperança por mais tênue que seja. E também a saudade
consumia-me todo momento livre do trabalho, cada hora de
descanso.
De novo o visitante levantou-se do sofá e caminhou
pelo recinto, falando com voz embargada:
- Eu trabalhava até a exaustão, comia, conversava,
até ria às vezes e ficava alegre, mas apesar disso tudo sentia
no interior do peito uma agulhada surda, um desassossego,
um interminável terror. Esse estado crônico atormentavame, qualquer mínima circunstância incitava uma tempestade na minha alma.
- Uma árvore de formas conhecidas, algum visual de
um ressequido outeiro, o colorido mais intenso de um pôrdo-sol, uma nuvem branca no céu azul, o canto de um pássaro, até o soprar suave da brisa da primavera, sem qualquer motivo acordava em mim um tão louco desespero que
eu fugia das pessoas e refugiava-me em recantos isolados
da floresta, onde pudesse cair no chão e sem ser espreitado
por ninguém, uivar de dor como um cão.
- Às vezes, nessas fugas de mim mesmo, alcançavame a noite. Então, por entre os arbustos, tocos caídos e precipícios, vinham ao meu encontro sombras antigas e tristemente balançavam a cabeça, de olhos pálidos e fundos. E
tudo, o sussurro das folhas, o ruído longínquo das carroças,
o murmúrio dos córregos, confluíam num só grito lamentoso, que me indagava:
- Exilado! O que foi que aconteceu com tua vida?
317
- Certa vez sucedeu isso comigo, quando eu estava
na fazenda de criação de cavalos do governador Abdulkhei.
Fazia a travessia do rio Amur, que se prolongou pela tarde
toda. Navegava só com um tártaro conduzindo o meu barco,
e como não consegui entabular conversa com ele, vinha
admirando a paisagem. Havia praias arenosas, como aqui,
e árvores parecidas com os nossos salgueiros, colinas cobertas de vegetação e moitas de larícios.
- Por momentos pareceu-me que estava no meu país,
e antes que escurecesse veria vocês novamente. Caiu a noite, e as margens do rio sumiram. Estava sozinho sobre essa
colossal massa de água, onde apenas refletiam-se as estrelas
e a lua cheia. Senti uma imensa dor interior e vi o quanto é
profunda a chaga da minha alma. Sofria dor física como se
um grão de areia corroesse o meu coração.
- Fiquei por dez anos sozinho, sem uma alma piedosa que me aquecesse o coração, no acampamento, no meio
das florestas de Tchita. Depois que fomos liberados, fui
trabalhar na fazenda do governador de Irkutsk. E nas minhas visitas à cidade conheci uma jovem nativa, belíssima,
de origem mongol, cujo pai era woiwoda da cidade. Apaixonamo-nos e com a anuência dos pais dela casamos em
pouco tempo. Temos um filho e ela está esperando o segundo por esses dias. Chegamos hoje à tarde em Lublin e
alojamo-nos na hospedaria do Max Sowinski. Vim até aqui
para rever você e pedir uma orientação e, se for possível, a
indicação de uma casa onde eu possa morar por algum tempo com a minha família.
- Isso não será difícil, eu conheço algumas casas para locação, posso levar você lá amanhã cedo.
- Também trouxe uma carta de recomendação do
governador de Irkutsk, general Semion Iliaiewitch Abdulkhei, para o governador da Gubernia de Lublinski, gene-
318
ral Dimitri Pawlowitch Kisselef, espero conseguir algum
trabalho bom e honesto.
- Com certeza conseguirá, amanhã cedo iremos ver
a casa para você alugar. E como estou impaciente e também curioso para conhecer a tua família, leve-me até a hospedaria do Max Sowinski.
- Então vamos para a estalagem. Há conversas, que
depois das quais é preferível falar em negócios e resolver
problemas atuais que estão nos aguardando – disse Andrzej.
Quando saíram, no alpendre a neve úmida soprou
sobre eles; foram caminhando a pé pela rua com poças
cheias de água. Pegaram o rumo da hospedaria que não
ficava muito distante. Ludmila já estava deitada, ressonava
tranqüilamente, a criança e a babá também estavam dormindo.
- Fica para amanhã - falou Tadeusz, desapontado vou voltar para casa, e logo de manhã cedo volto aqui. Espere-me, iremos ver a casa para você, a primeira que me
ocorreu fica na Alameda Ujazdowska. É uma casa de oito
cômodos, tem uma boa sala de visitas com três janelas
grandes que abrem para o jardim, escritório, três dormitórios, sala de jantar, cozinha e quarto de banho. Separadas da
casa ficam as dependências para os empregados.
A moradia tinha muitas vantagens, era seca, clara,
ventilada no verão e com aquecimento no inverno, tinha
escadas de pedra; era cercada por um muro alto e possuía
um jardim interior. Utensílios e móveis havia o suficiente,
eram simples mas funcionais. A despensa, espaçosa; as
camas ofereciam conforto e descanso tranqüilo. Havia uma
mesa de jantar comprida e oito cadeiras fortes; sofás na sala
de visitas, e ao todo era uma casa bastante confortável.
Acertaram o preço da locação com o proprietário.
Andrzej estava contente e providenciou a mudança. Não
demorou muito e estavam instalados confortavelmente.O
319
amigo Tadeusz desempenhou um papel muito importante
na instalação da família do Andrzej no seu novo lar, ele
providenciava e ajudava em tudo que podia.
Depois dos dias de azáfama da arrumação da casa,
todos estavam muito cansados, mas não deixaram de comemorar com um lauto almoço e música de clarinete, que
Tadeusz tocava muito bem.
Naquela noite, já passando das duas horas, Ludmila
acordou-se e chamou pelo marido:
- Querido, é hoje que o nosso filho vai nascer, comecei a sentir dores muito fortes no ventre.
Andrzej, assustado, correu procurar a parteira Arkadia, que fora indicada pelo seu amigo Tadeusz e que Ludmila tinha conhecido naqueles dias. A mulher atendeu prontamente e veio junto com ele, não se incomodando pela
hora tardia. Chegando, logo providenciou água quente, toalhas, álcool, tesoura e linha para amarrar o cordão umbilical. Lavou bem as mãos e foi para junto da parturiente, à
qual consolou e encorajou.
Estava se iniciando o trabalho do parto. As contrações começaram sutis, espaçadas e foram aumentando, cada
vez mais fortes. Dez horas se passaram até que surgissem
as grandes dores expulsivas do feto.
Com um grande esforço, Ludmila ajudou a parteira,
e finalmente apareceu a cabecinha coberta de cabelos escuros. Assim que nasceu, a criança deu um grito forte, como
que assustada com o mundo em que ingressava; depois ficou quietinha. Arkadya atendeu a parturiente, recolheu a
placenta e deu banho no recém-nascido, que era um menino
forte, de bracinhos e perninhas compridos.
- Vai ser um homem alto - comentou Arkadya.
- Nosso filhinho - dizia Andrzej, chorando e rindo
de emoção - é lindo, tem os cabelos encaracolados e os
olhos escuros como meus.
320
Acabaram o terrível medo e a insegurança de Ludmila de que o filho não fosse do marido, mas do estuprador.
- Que nome lhe daremos? – perguntou Andrzej.
- O que você acha de darmos a ele o nome do seu
pai? Francisco, é um nome bonito, o menino vai ser um
homem bom como o avô - profetizava Ludmila, não conseguindo esconder a felicidade e o alívio que sentia.
- Será então batizado com este nome, e o padrinho,
se ele aceitar, vai ser o nosso amigo Tadeusz Wawelski concordou Andrzej.
Os dias foram passando e Andrzej precisava encontrar trabalho, pois agora eram cinco pessoas pelas quais
era responsável. O dinheiro que tinham trazido de Irkutsk
já estava escasseando.
Convidou seu amigo e os dois foram à audiência
marcada com o governador da província de Lublinski, general Kisselef, para a entrega da carta de recomendação do
governador de Irkutsk, general Abdulkhei, que tinha sido
outorgada a ele. Após a apresentação e a entrega do documento, o governador gentilmente perguntou:
- Como vai meu grande amigo general Abdulkhei? –
faz muito tempo que não o vejo.
- Cada vez mais preocupado com as pessoas e a colonização da Sibéria.
- Ele é uma pessoa extraordinária. Vou atender a sua
solicitação e o apresentarei ao meu caro amigo conde Jan
Zukowski, que terá um cargo para você nas propriedades
que possui, entre elas as aldeias de Plenin (Plonka), Majdan
Kobylanski, Mchy, Stryjno e outras nos distritos de Rudnik
e Krasnystaw. Haverá trabalho para você, e atenderei com o
maior prazer o pedido do meu amigo de Irkutsk.
Com esta favorável promessa estava assegurado o
reingresso de Andrzej ao trabalho na sua pátria.
321
Conde Jan Zukowski era um sexagenário, de estatura mediana, corpulento e sangüíneo, usava os bigodes
brancos bem aparados e o cabelo grisalho penteado para
trás. De olhos cinzas, inteligentes, de porte ereto, ainda tinha o passo firme. Na rua o povo simples fazia-lhe reverência.
Realmente, o conde Zukowski contava no passado
com uma fileira de senadores na sua família. O pai ainda
possuía uma grande fortuna em propriedades, e ele mesmo
na juventude era rico. Depois, parte da fortuna foi empenhada na política, outro tanto em viagens pela Europa, onde
freqüentava as cortes francesa, austríaca e italiana.
Já havia tempo que o conde não saía de Lublin, eventualmente ia a Warszawa; o dinheiro estava escasso para
poder brilhar nas cortes, mas a sua residência em Lublin era
o centro da sociedade elegante. Organizavam-se reuniões
com festas, música, danças e jogos de cartas, nas quais o
conde era assíduo, quase sempre jogando em parceria com
o governador de Lublinski. O dono da casa recebia com
esmerada cortesia e gentileza; e sua fisionomia estava sempre tranqüila e sorridente.
Foi numa dessas ocasiões de conversas alegres que
o governador lembrou-se da carta do general Abdulkhei e
seu pedido a respeito do trabalho para Andrzej Wasilewski.
- Caro amigo Zukowski, tenho um pedido a lhe fazer - disse o general.
- Seu pedido, governador, é uma ordem para mim,
estou a sua total disposição - respondeu o conde, solícito.
- É a respeito de um ex-exilado que teve a permissão de retornar à Polônia, está morando em Lublin e precisa
de trabalho. Poderá ajudar-me a resolver esse problema? perguntou o governador.
- Deixe-me pensar um pouco, realmente tenho necessidade de encontrar um bom administrador, se ele for
322
capacitado para esse emprego, já está contratado. Se não
tiver experiência para esse cargo arrumarei outra ocupação
para ele. Agradeço-lhe, governador, por permitir-me ser-lhe
útil pelo menos um pouco. Amanhã mesmo mandarei chamar o interessado.
Andrzej teve uma entrevista com o conde Zukowski,
que o aprovou e contratou como administrador das suas
propriedades. Continuou morando em Lublin, mas ia às
fazendas do conde sempre que era necessário, e com grande
freqüência fiscalizava os trabalhos nas aldeias.
Conde Zukowski era viúvo havia já muitos anos.
Tinha uma filha de 18 anos, de nome Bárbara, jovem de
uma beleza invulgar. Tudo nela era original e perfeito. De
estatura acima da média, de formoso porte esbelto, bastos
cabelos castanhos de reflexos dourados, nariz reto, lábios
carmim, dentes de pérola, mãos e pernas bem modelados.
Seus olhos azuis celeste, transmitiam singular impressão, às vezes sombrios e melancólicos, outras cheios de
contentamento, no entanto, frios como o gelo. Chocante era
o jogo da sua fisionomia. Quando dizia algo, falava sua
boca, sobrancelhas, narinas, mãos, todo seu porte, mas
principalmente, os olhos, com os quais parecia querer passar a sua alma para o seu ouvinte. Quando ouvia, parecia
querer beber a alma do narrador, seus olhos sabiam acariciar, afagar, chorar sem lágrimas, queimar e gelar. Era uma
personagem fora do comum.
Os salões do conde Zukowski eram freqüentados
por dezenas de adoradores de Bárbara, a beldade da casa.
Às vezes poderia-se pensar que, na sua distraída
fantasia, ela poderia abraçar alguém, mas quando o felizardo delirasse de prazer, ela faria um rápido movimento,
esgueirando-se e ninguém podia tocá-la, pois simplesmente
ela mandaria o lacaio levar o importuno até a porta.
323
Curioso fenômeno constituía a alma da senhorita
Bárbara. Se alguém lhe perguntasse o que é o mundo, e o
que era ela, com certeza responderia que o mundo era um
parque encantado, e ela, uma deusa ou ninfa presa a um
corpo material. A condessinha Bárbara, desde o berço vivia
num mundo maravilhoso, não só sobre-humano, mas sobrenatural. Dormia em plumas, vestia sedas e cambraias finíssimas bordadas, sentava-se em móveis de ébano, esculpidos
e forrados de tecidos adamascados, bebia de taças de cristal
da Boêmia, comia em pratos de porcelana de Sévres e talheres de prata.
Para ela não havia estações do ano, mas só uma eterna primavera, cheia de luz, flores e perfumes.
Esse mundo, onde sussurravam as sedas, tinha os
seus especiais habitantes, e um deles era a jovem condessa
Bárbara. Ela não conhecia a outra face da vida, mas sabia
que além do mundo encantado em que vivia, havia outro
mais comum. Da sua existência tinha conhecimento, pois
gostava de olhar pela janela da carruagem que a transportava pelas ruas, do vagão que a levava à Viena, ou mesmo
da janela da sua casa.
Este quadro, de longe, apresentava-se-lhe pitoresco,
e até simpático. Via os aldeões arando a terra, caminhando
devagar atrás do cavalo esquálido; carroças com os vendedores de frutas e verduras; um velho quebrando pedras na
estrada; mensageiros caminhando depressa alhures; famílias
compostas de pai, mãe muito gorda e quatro filhos que, em
dupla, segurando-se pela mão, atravessam a rua.
A jovem Bárbara não acreditava no amor e nem no
casamento.
– Não existe felicidade nesta união - dizia ela - e
ouvindo o que lhe contavam as amigas recém-casadas, adquiriu mais horror ao casamento.
324
Portanto, já estando com 18 anos, Bárbara tiranizava
os pretendentes com desprezo. Príncipes, nobres, magnatas
eram por ela afastados com indiferença; assim procedendo
por longo tempo, causou solidão em sua volta. Admiravamna e adoravam-na só de longe, pois ninguém se arriscaria à
desdenhosa recusa. Realmente, apareceram homens jovens
e lindos, ricos e com títulos de nobreza, mas por infelicidade, nenhum possuía as qualidades desejadas por ela. E
assim passaram-se mais alguns anos.
De repente, surgiu a notícia de que o conde estava
falido, e de toda a legião de pretendentes só sobraram um
barão, um marechal e o general Kisselef, ricos, influentes,
mas os três já velhos, com mais de 60 anos. Bárbara viu
alarmada que a situação estava ficando fora do seu controle.
Resolveu diminuir a escala de suas exigências quanto aos pretendentes. E, apesar do general despertar nela
incontrolável aversão, aceitou a idéia de se casar com ele.
Era rico, influente, poderoso. Ela fechava os olhos quanto à
sua idade e nacionalidade, sabia que ele era russo, mas desta vez aceitaria, reconhecendo como é difícil viver longe
dos salões e da sociedade alegre.
A tia Catarina, irmã do conde, veio ao seu quarto
saber sobre a sua decisão.
- Ele é pessoa já idosa, tem a idade do teu pai, e na
verdade não é nenhum Adônis, mas é rico e poderoso - comentou ela - e, posso te assegurar que a posição de uma
bela mulher casada com um homem idoso não pertence às
piores situações. E, por sua vez, o velho marido, atende-lhe
todos os caprichos e é menos exigente do que o marido jovem. Pense bem, querida, quanto você pode aproveitar dispondo desta imensa fortuna - insistia a tia Catarina.
- Mas tia! Ele é horrível, para ele não é necessária
esposa, mas uma babá para lhe limpar a boca. Não sei se
vou agüentá-lo.
325
- Reflita bem, filha, se não aceitar perderá uma ótima ocasião de ser novamente rica e poderosa, pois, como
deve saber, teu pai está falido.
De repente, ouviram barulho no salão de jantar, eram passos de homem, cadenciados, tranqüilos, que se dirigiam ao quarto.
- Entre, pai - disse Bárbara, ouvindo batidas na porta do seu aposento, onde neste momento confabulava com a
tia. Ele entrou, a jovem levantou-se da beirada da cama e o
pai envolveu-a num longo abraço, beijou-a na testa e sentou
perto dela.
- Ouvi dizer - falou, olhando nos olhos da filha, sorrindo - que minha filha já chegou a uma decisão quanto ao
casamento com o general.
Singularmente, nestes olhos refletiam-se o receio e o
temor do futuro. Ela aconchegou a cabeça nos ombros do
pai e sussurrou:
- Eu cheguei à conclusão que o senhor e a tia estão
com razão. Eu devo aceitar o general.
Mas maior surpresa foi ainda o fato da tranqüilidade
com que o conde aceitou a decisão da filha, comentando:
- O ouro dos nossos antepassados já esteve nos cofres
dos tártaros, cossacos, russos, turcos e alemães.
- Mas perderam-no por causa da guerra e na guerra retrucou Bárbara.
- E hoje não há guerra? Só foram substituídas as armas, em vez das foices ou espadas, lutam com rublos e com
diplomacia. E é esta guerra que nós vamos lutar - disse o
conde Zukowski, como se fosse para si mesmo. Jogaremos
o jogo deles - concluiu.
Casaram-se com grande pompa: Bárbara Zukowska
e o general Dimitri Pawlowitch Kisselef, governador da
província de Lublinski.
326
O conde Jan Zukowski ficou sendo o sogro do governador e as festas nos seus salões continuaram a ser os
acontecimentos mais importantes da cidade de Lublin. Sua
filha brilhava e era o centro das atenções, reinava absol
***
Tinham decorrido os primeiros minutos depois da
meia-noite, quando Andrzej chegava à aldeia de Plenin
(Plonka). O lugarejo era um pequeno aglomerado de casas
com telhados de tabuinhas escurecidas, cobertas de musgo e
fungos. Construídas à beira do caminho entre moitas de
ameixeiras, ou solitárias, em volta e perto do pântano onde
se acomodou a plebe pobre.
Durante anos os incêndios e a pobreza traçaram
uma linha invisível dividindo a aldeia. Tanto que no alto
moravam os cidadãos mais abastados, e era diferente, as
casas estavam perto uma da outra, com jardins na frente.
Nos seus anos juvenis, Andrzej esteve várias vezes
neste povoado, pois a sua mãe era parente distante de Eugenia, esposa do proprietário da hospedaria Marcin Struzyk. Ele ia até lá passar as férias escolares; neste momento,
esforçava-se para reconhecer essa localidade, mas as lembranças eram confusas. À noite, ao luar, tudo adquiria formas estranhas. Entre os arbustos, nos campos e nas escarpas, estava suspensa uma nuvem branca de cerração, modificando toda a redondeza, que mais parecia um lago sem
margens; para aumentar ainda mais esta ilusão, havia o coro
de sapos coaxando na neblina.
A noite de julho estava serena e clara, era lua cheia.
Por instantes, quando os sapos emudeciam, ouvia-se o canto da codorniz por entre as plantações, e ao longe, nos alagadiços escondidos atrás dos amieiros, ressoava o zumbido
dos besouros.
327
Andrzej foi seduzido pela magia desta noite. Era-lhe
tão próxima e tão familiar, sentiu na alma a nostalgia e seu
coração confrangeu-se de tristeza, pois ao entrar nesta aldeia adormecida, lembrou-se da sua infância e da mãe, que
estava morta há mais de vinte anos, ela não resistiu à tristeza e aflição por ter perdido os três filhos.
O coche seguiu pelo caminho onde se avistava uma
cruz em cima de um outeiro, estava inclinada e prestes a
cair. Depois da cruz começaram a aparecer as primeiras
casas. Os habitantes da aldeia já estavam dormindo, e em
nenhuma janela havia luz. Onde a vista alcançava, somente
brilhavam na noite iluminada pelo luar os telhados das casas, que com os reflexos da lua pareciam de prata.
Algumas estavam caiadas de branco e refletiam o
verde da grama, outras escondidas no meio das cerejeiras,
dos girassóis ou dos canteiros de fumo, apenas vislumbravam-se nas sombras. No centro da aldeia estava construída
a igreja de madeira com pequena torre branca.
Nos quintais, os cães ladravam com vozes sonolentas, que com o coaxar das rãs, cantos dos grilos e todos
estes ecos juntos ressoando na noite de verão, mesmo assim, tinha-se a impressão de silêncio. A condução rodando
devagar por entre os torrões endurecidos na estrada lamacenta entrou no final de rua salpicada de raios de luz que
penetravam por entre as folhas.
Na casa grande de paredes brancas, algumas janelas ainda estavam iluminadas. Era a hospedaria de Marcin
Struzyk, que também era preposto do conde, na aldeia de
Plenin. Quando o coche ruidosamente encostou ao lado da
varanda, saiu correndo de dentro da casa um empregado,
que começou a ajudar Andrzej a desembarcar.
O guardião noturno aproximou-se para verificar
quem era essa visita, numa hora tão tardia. O serviçal tirou
da condução os pertences do hospede, e convidou-o a entrar
328
para a sala de jantar, onde lhe foi servido chá com pão preto e geléia de frutas.
No cômodo espaçoso havia, encostado à parede, um
armário de nogueira, ao lado, dependurado, um relógio com
compridas correntes e grandes pesos, cujo cuco saía a cada
trinta minutos e enchia o ar de seus trinados.
Do outro lado estavam dois retratos de mulheres
com vestimentas do século dezoito, e no centro da sala,
havia uma mesa coberta com uma toalha branca,enfeitada
com renda feita a mão, rodeada de cadeiras de espaldar alto.
Este ambiente bem iluminado, cheio de vapor que se levantava do samovar, apresentava-se bem convidativo.
Andrzej começou a caminhar em volta da mesa, mas
o ranger dos seus sapatos feria o silêncio que ali reinava, foi
então até a janela e começou a olhar através das vidraças
para o pátio iluminado pelo luar. Decorridos alguns minutos, a porta da sala contígua abriu-se, e entrou uma jovem
que o visitante supôs ser Helena, a filha de Marcin Struzyk,
proprietário da casa. A moça estendeu-lhe a mão para cumprimentá-lo e falou:
- Já fomos informados da sua vinda, por carta enviada pelo conde Zukowski, de Lublin. O senhor é o novo administrador, Andrzej Wasilewski. Meu pai está um pouco
adoentado, precisou deitar-se mais cedo, mas amanhã certamente estará melhor.
- Não foi minha culpa ter chegado tão tarde da noite,
- informou Andrzej - tive de passar em Zamosc e Kasnystaw, verificar alguns assuntos da herdade do conde. De Zamosc até aqui são ainda uns 50 quilômetros, e depois da
cheia do rio Gielczew, que inundou toda a redondeza, a
estrada está muito ruim, existem poças de água e atoleiros
por toda parte.
329
- Não tem por que desculpar-se, senhor! Seja bem
vindo a Plenin, desejamos-lhe uma frutífera administração,
- respondeu a moça.
- Mas não é hora para conversa, pois já é muito tarde e estou atrapalhando o seu descanso, amanhã conversarei
com o seu pai - disse Andrzej, e fez menção de recolher-se.
- Está bem, desculpe-me! Stasiek vai encaminhá-lo
ao seu quarto. Boa-noite - disse ela.
O quarto de dormir era o mesmo em que dormia
quando vinha ali em férias junto com a mãe. Então, as lembranças voltaram, e tudo se apresentou como se fosse hoje
- a janela dava para o pomar e ao fundo havia um lago onde
a lua cheia espelhava-se em toda plenitude. Via-se o menino de doze anos que junto com a mãe Anastazia, o irmão
Henryk e a irmã Anielka, vinham de Berestecko, onde moravam, visitar os parentes em Plenin.
Pela manhã, Stasiek trouxe-lhe o desjejum ao quarto, esclarecendo que o velho senhor Marcin Struzyk ainda
não levantara e a senhorita tinha ido à missa.
- Vá e pergunte ao senhor Struzyk a que horas terei
o prazer de vê-lo.
Não demorou muito tempo, Stasiek voltou dizendo:
- O senhor convida-o para vir até ele.
Pelo longo corredor levou-o até à sala de visitas,
doutro lado da casa. Andrzej entrou, e no primeiro momento não reconheceu Struzyk, o marido de Eugenia, parente de sua mãe. Lembrava-se dele como homem bonito,
na força da idade, e revia-o agora como um velho, com o
rosto murcho, como uma maçã assada, onde só brilhavam
os olhos muito azuis.
O velho abriu os braços e exclamou:
- Andrzej! Como vai, querido menino. Venha cá! –
e apertou-o num forte abraço, dizendo:
330
- Quero olhar bem você, é o retrato de Anastazia, é
a mais pura semelhança com a minha querida sobrinha.
O tio soluçou e limpou em seguida a lágrima que
lhe escorria pela face murcha.
- Retrato de Anastazia!.. Tua mãe foi sempre para
mim a melhor e a mais querida parente.
Andrzej estava parado, confuso e admirado com a
calorosa recepção, pela qual não esperava.
- Como está, meu tio? – perguntou finalmente, julgando que esse tratamento seria o ideal, pois era assim que
o tratava quando criança e condizia melhor com a recepção
festiva que este agora lhe proporcionava.
- Como estou? Já não tenho muito tempo, estou doente, fraco - respondeu o tio. E por isso, recebo você com a
maior alegria em minha casa, como um pai... que você já
não tem, soube tempos atrás do seu falecimento. Pobre
Francisco!, eu tinha a maior admiração e amizade por ele.
A tua mãe, além de parente, era muito amiga de Eugenia.
Sente-se agora, caro sobrinho, sinta-se em casa e conte-me
tudo sobre você.
Ele sentou e narrou ao tio sobre todos fatos que
ocorreram na sua vida depois da deportação para a Sibéria
e a sua volta à pátria.
- Você sofreu muito, não é?
- Vamos esquecer isso, tudo já passou, os tempos
são outros, sou casado e tenho esposa e dois filhos, preciso
trabalhar e pensar no bem-estar da minha família. Agora
devo incumbir-me dos deveres que me foram delegados
pelo senhor conde Zukowski.
Mas o hospitaleiro tio parece que não ouvia e perguntava mais.
- Você sentiu-se confortável no quarto que lhe deram? Passou bem a noite?
331
- Agradeço a preocupação, mas dormi bem, tanto
que levantei tarde.
- Vai ficar por aqui pelo menos por uma semana?
Andrzej surpreso, respondeu:
- Acho que já expliquei ao tio que sou encarregado
da administração das propriedades do conde, incluídas as
aldeias de Plenin, Rudnik, Majdan Kobylanski, e outras
situadas na gubernia de Lublinski, são mais ou menos mil
morgas de terra sobre meus cuidados; preciso ser muito
hábil, diligente e eficaz, para fazer jus à confiança em mim
depositada pelo conde. Portanto, preciso verificar a situação
real desta e outras propriedades e voltar para Lublin com
urgência, para relatar ao conde tudo que ocorre a respeito
da sua herdade. Também rever a minha família, que já não
vejo há muitos dias.
No entanto, o tio Marcin falou com cordial apreço:
- Não, meu rapaz. Hoje é domingo, e além disso os
sentimentos familiares devem estar acima dos interesses.
Hoje saúdo e recebo você como parente, amanhã se quiser
poderá tratar dos teus afazeres. E assim será. Hoje quem me
visita é o Andrzej, o filho da Anastazia, e até amanhã será
assim. Quem te fala agora é um parente que te ama, e assim
você deve proceder.
- Então que seja, rendo-me a sua vontade, mas só até
amanhã.
***
Logo de manhã, Andrzej e Marcin Struzyk foram
ver as plantações que estavam sob seus cuidados, e que
agora devia passar ao novo administrador. A rua pela qual
Andrzej entrou ontem na vila de Plenin estava margeada
por antigas e carcomidas bétulas plantadas em espaços desiguais. Colocadas em fileiras, com pequena distância uma
332
da outra, estavam as caixas de colméias de abelhas, que
forneciam o mel para população.
O coche rodou pela estrada, que de um lado apresentava uma gleba plantada de fumo e de batatinhas e do
outro, uma extensa lavoura de trigo com maduros e curvados cachos, que pareciam estar dormindo com ar tranqüilo,
sob plena luz do sol de verão. Entre as cerejeiras e na frente
do coche, os pardais e pombas voavam em bandos; desciam sobre a estrada, para em seguida levantar vôo e em
semicírculos pousar sob os galhos.
Ao longe viam-se operárias caminhando por entre os
trigais, mergulhadas até a cintura na plantação, de cabeças
cobertas por lenços coloridos, mais parecendo flores num
jardim exótico.
- A colheita vai ser boa este ano? - perguntou Andrzej.
- Será abundante, se Deus quiser! – respondeu o tio.
Fez-se o que é possível pelas forças do homem, o resto
Deus acrescenta. Você que é jovem, dou-te este conselho,
que vai servir no futuro. Faça sempre o que é tua obrigação,
o resto deixe por conta de Deus, só ele sabe o que nós precisamos.
Feita a vistoria na lavoura, estavam voltando à Plenin, onde já aparecia a torre branca da igrejinha local, construída numa elevação do terreno, cercada de árvores frondosas de tília. Ao pé do outeiro estavam paradas várias carroças rústicas dos aldeões, coches e algumas carruagens dos
mais abastados. Andrzej e o tio fizeram o sinal da cruz em
frente à porta da igreja.
- Essa é a nossa igrejinha, você deve lembrar-se
sempre, alguns dos antigos Wasilewski estão enterrados
aqui. Não acho um lugar melhor para orar do que aqui.
Vieram à memória de Andrzej os anos de infância,
quando vinha assistir à missa de domingo com a mãe. Aci333
ma de tudo ficava admirado como nas aldeias nada muda
durante o passar dos anos; apenas as pessoas se modificam,
umas mudam-se, outras evelhecem e morrem, nascem outras, e as vidas novas enquadram-se nos antigos moldes, e
para o visitante que volta depois de transcorrido muito tempo, parece que tudo aconteceu apenas ontem.
A igreja continua a mesma; o interior dela cheio de
aldeões em roupas cinzentas, mulheres de lenços vermelhos
na cabeça e as jovens com flores nos cabelos. O mesmo
perfume de incenso, de velas de cera, de ervas aromáticas e
suor humano.
Atrás da janela crescia a mesma cerejeira, cujos ramos finos o vento, que soprava forte, jogava contra a janela,
e a luz do sol entrava furtiva por entre os galhos balançantes. Só as pessoas não eram as mesmas.
Andrzej ganhava cada vez mais a confiança do conde, ampliava pouco a pouco a atividade nas aldeias, fazendo-as produzir mais. Preocupava-se também com a saúde
dos aldeões e suas necessidades. Construiu escolas e trouxe
professores. Era benquisto pelos camponeses, que colaboravam com ele sempre que necessário.
Houve um ano em que as colheitas no país todo foram escassas. Aqui e acolá já aparecia o fantasma da fome,
e era fácil de deduzir que até a primavera os abastecimentos
iriam esgotar-se em toda a região, e a conseqüência seria a
fome. As pessoas mais esclarecidas começaram a murmurar
sobre a possibilidade da proibição da exportação do trigo
nacional. Alguns guardavam as colheitas do ano, outros, os
que não colheram muito, compravam mais para guardar.
Andrzej avisou o conde da possibilidade de faltar
pão para os aldeões das suas propriedades. Ele necessitava
da ordem de Zukowski para providenciar um estoque maior
de grãos. Após analisar o assunto, o conde autorizou a
334
compra dos cereais, necessários para alimentar os seus trabalhadores durante o próximo ano.
Na aldeia de Plenin havia um moinho; ficava à beira
do rio, totalmente oculto entre os amieiros. Durante o dia
sempre havia muitas carroças em frente, esperando o trigo
ser moído. Discussões, risadas, gritos, misturavam-se com
o ruído da água que caía em cima da roda com estrépito,
compondo invulgar harmonia de vozes, que durante todo o
dia alcançavam diversos tons.
O mais alto era durante o meio-dia; à tarde, as vozes tornavam- se mais silenciosas, só o moinho rugia sem
parar, e a água que caía em cima da roda entoava o seu cantar inalterado: aach, aach.
O som que emitia parecia queixume contra a prepotência do homem que a aprisionava; a água é um elemento da natureza, vivo, livre e soberano, e muitas vezes
vinga-se do homem com crueldade, formando tempestades,
desabando dilúvios de chuva e arrastando tudo com as enchentes.
Quando chegava a noite, o pátio ficava vazio, mas o
moinho não parava de funcionar, trabalhava a noite toda.
Precisava adiantar a moagem dos grãos antes que o inverno
chegasse, pois com a temperatura abaixo de zero, a água
congelava, a roda cobria-se de gelo e o moinho parava.
Foram contratados mais homens para ajudar o moleiro Teóphilo, que era bom trabalhador, esforçava-se bastante para deixar o moinho em condições de produzir, fez
consertos na roda grande, na pedra de triturar e onde mais
fosse necessário; substituiu as correias, pregou as tábuas
soltas do assoalho.
Principalmente, atendeu a ordem do administrador
Andrzej Wasilewski para que fizesse o possível, e moesse
muita farinha, que seria a reserva de pão para os aldeões
naquele ano de pouca colheita.
335
***
Andrzej trabalhava com afinco e dedicação na administração da herdade do conde Zukowski. Passava os
finais de semana em Lublin, com Ludmila e os filhos, que
já eram três: Kazimir Andrejew, um adolescente inteligente,
calmo e trabalhador; Francisco parecia-se com o pai, era
destemido e irrequieto; e João era o retrato da mãe, com
algumas características da raça mongol, como cabelos negros, lisos e grossos, olhos semi-oblíquos cor de avelã, pele
amorenada.
Francisco e João faziam uma dupla de meninos inteligentes, mas muito peraltas, sempre arrumavam confusão
na escola. Eram crianças sadias e alegres. Ludmila esperava
ansiosa a volta do marido nos finais de semana, preparava
comida especial para recebê-lo. Os dias que passavam juntos, com filhos, eram os mais gratificantes das suas vidas.
Kazimir freqüentava o ginásio, mas quando houve
greve e fecharam as escolas, o pai matriculou-o na Escola
Noturna do Comércio. Uma ocasião, voltando da aula noturna com um colega, a patrulha cossaca fazia ronda pelas
ruas; enxotavam os transeuntes com chicotes.
Os dois amigos ouviram atrás de si as batidas dos
cascos dos cavalos, apressaram o passo, de repente começaram a correr. Os cossacos a galope atrás deles. Entraram na
esquina da casa do pai Andrzej, estavam subindo por cima
do muro; o amigo pulou rápido para o pomar, Kazimir não
conseguiu e recebeu uma chicotada nas costas tão violenta
que rasgou a camisa em duas partes; com esse ferimento
sangrando nas costas, passou diversas horas escondido,
porque os cossacos de imediato revistaram todas as casas
vizinhas à procura dos dois estudantes, para levá-los presos.
336
Conde Zukowski intercedeu a favor, mas aconselhou retirar os dois de Lublin por algum tempo. Andrzej
levou o filho para Plenin, deixou-o na hospedaria do Struzyk, por muitos dias, até que a ferida das costas sarasse.
Renasceu nele o ódio pelos invasores russos; aderiu
ao comitê da organização de guerrilhas contra o governo.
Reuniam-se numa casa isolada, tinham armas, esperavam
pelo instrutor de tiro. Enquanto isso, os gendarmes rodearam o esconderijo; os homens começaram a pular pela janela para o quintal.
Marcin Struzyk, já idoso, não conseguiu fugir, foi
atingido com adaga pelas costas, por um soldado, e caiu
morto. Andrzej não estava na reunião naquele dia, viajara
para Lublin, levando o filho junto.
Surgiram novos rumores cada vez mais persistentes
de uma nova revolta no país. Andrzej, como todos os patriotas, aguardava com impaciência a realização das aspirações nacionais. No momento em que estalou a revolta de
1863, ele participou ativamente do movimento, senão como
combatente, pelo menos como membro ativo do comitê
local, ocultando em sua casa, sem medo dos riscos, armas,
munições e uniformes destinados aos regimentos poloneses
em formação.
Com intuito de despistar os gendarmes do esconderijo deste material tão importante para a guerrilha, ele fechou a casa e pediu ao conde Zukowski, alguns dias de
dispensa. Levou a família em férias, para Plenin. As crianças estavam precisando de um espaço para brincar.
Vieram conhecer a aldeia, pois Andrzej estava pensando seriamente em mudar-se de Lublin para o interior,
devido à insegurança dos próximos dias; a cidade de Lublin
estava agitada pelas greves e protestos dos operários e estudantes.
337
Houve violentas repressões, prisões e mortes. Os
gendarmes não vacilaram em atirar contra o povo indefeso.
Fato que o estava atormentando, pois ele era um ex-deportado. Queria proteger a família, e ele também ansiava por
um lugar sossegado.
Durante as férias, e em contato mais íntimo com os
aldeões, freqüentando reuniões, festas de igreja e casamentos, fez amigos, e se identificou com a aldeia e o seu povo.
Consultou Ludmila e os filhos sobre a possibilidade da mudança para Plenin. Eles aprovaram.
Os filhos do casal, Francisco, de 11 anos, e João, de
9 anos, iam estudar na Escola Paroquial do povoado. Kazimir, jovem de 17 anos, freqüentava as reuniões na aldeia,
gostava de estar com a juventude local, conversar e dançar
nos bailes e festas. Quando reiniciassem as aulas do Curso
Médio, iria estudar em Zamosc, cidade universitária, distante 50 quilômetros de Plenin.
Zamosc, foi fundada em 1580 pelo chanceler da Coroa Jan Zamojski, em estilo renascentista. Designada como
residência da família Zamojski, e capital do morgado, transformou-se em grande centro de comércio e cultural, possuindo escolas de Curso Médio e Superior. No centro da
cidade velha, ao redor do mercado, erguem-se preciosas
construções em estilo renascentista, como a Câmara Municipal, residências e castelos da rua Armênia, onde fica o
Museu de Zamosc. É uma cidade histórica.
Naquele mês, realizou-se o casamento da Helena Struzyk. Depois do casamento na igreja, houve a recepção
na casa da noiva. A comida e bebida foram servidos em
compridas mesas armadas nas varandas e ao ar livre, que
não eram retiradas, mas sempre reabastecidas com alimentos variados e carnes. A cerveja caseira era a bebida predileta do povo, portanto, era servida em grande quantidade.
Os convidados se divertiam...
338
O baile começou. Os jovens, inquietos, olhavam para os lados procurando a moça mais bonita para ser seu par.
Os músicos colocados no saguão, atrás das janelas abertas,
tocavam um vibrante krakowiak, e alguns pares começaram
a dançar. Os que estavam de pé, por não haver lugar, passaram para outra sala. Criados distribuíam vinho em taças e
pão doce caseiro.
O barulho da conversa enchia a casa toda, até o ultimo canto da varanda, que saía para o pomar. A alegria
tomou conta de todos convidados. Então Andrzej com toda
delicadeza ofereceu o braço à sua Ludmila.
Na expectativa, a música silenciou por instantes. De
repente os músicos tocaram um esplendido oberek, estridente, rápido. Todos aguardavam o próximo episódio. Andrzej começou dando os passos e saltos, com extrema precisão e extraordinária ligeireza. Levou o par pelo salão,
dançando, deu duas voltas e parou diante dos músicos.
- É como nós - gritavam os convivas.
- É assim que gostamos.
- Ergam o velho para cima; que bela surpresa!
- Toquem músicas bem alegres para eles - falou o
dançarino entusiasmado.
Só agora a festa começava de verdade...
Todos os jovens entraram para o salão, escolheram
os pares e saíram a dançar. Nos primeiros momentos, os
mais tímidos empurravam-se pelos cantos, mas breve a alegria tomou conta de todos. Por momentos essa vibrante
mocidade causava a impressão de saudável, forte e belo
rebanho, correndo de um a outro lado do campo.
O soalho novo rangia e reboava com a batida dos
saltos das botas. O tumulto da alegria bramia neles como
água em ebulição. Saúde, mocidade, vida efervescente
transformaram essa dança em cascatas de alegria.
339
Divertiam-se extravasando o prazer da alma, o entusiasmo pela vida. Dançavam, no total sentido da palavra,
até cair. Ouviam-se apenas risos e batidas dos saltos; confundiam até a música ligeira. Abriram-se as portas e janelas, porque estava muito abafado e quente. Pelas janelas, os
curiosos e admirados aldeões mais velhos olhavam imóveis,
talvez com uma ponta de inveja, a dança dos jovens, relembrando os tempos idos da sua mocidade.
Na festa, Kazimir conheceu uma jovenzinha de 14
anos de nome Maria Zablotska, a menina-moça encantou-o.
Ela era bonita, de feições regulares, alta para sua idade, de
espírito alegre. Bem o tipo de menina polonesa, de faces
rosadas e nariz fino, olhos azul esverdeados, cabelos castanhos, encaracolados, caindo em cachos pelo pescoço. A
blusa fina realçava a projeção dos seios da adolescente, que
desabrochava como uma flor na primavera.
Ele seguia com os olhos a linda menina. A tristeza
oprimiu o seu coração no momento em que a viu dançando com os outros; ela estava feliz e exuberante; num momento, olhou para ele e seus olhos se encontraram; lançavam raios, irradiando pura alegria. Não se desviaram, estavam fixos um olhar no outro.
Nas contradanças, ela o procurava entre os outros.
Nos intervalos, entre uma dança e outra, ela passeava pelo
salão com as amigas.
- Você percebeu como Kazio e Maria roubavam olhares um do outro? Como se ambos estivessem com os
corações em dádiva? - comentava Helena com o noivo.
- Sim! Já percebi isso, devem estar atraídos um pelo
outro - confirmou o noivo - veja como ele olha para ela
agora! Deslumbrado, mas muito tímido no seu propósito de
se aproximar dela...Veja! Lá vai ele.
Kazimir tomou-se de coragem e se aproximou de
Maria. Não podia, na verdade não tinha forças para desviar
340
os olhos desta visão maravilhosa. Como ela sorria, com
ingenuidade de criança, no entanto, as suas palavras eram
inteligentes e a séria expressão do seu rosto denotava a força da vontade própria.
Convidou-a para dançar.
Ela ruborizou-se e timidamente aceitou. Dançavam
como se estivessem voando, leves, encantados, olhando um
nos olhos do outro, fora da realidade. Dançaram assim a
noite toda.
Quando assim caminhavam entre a multidão, não
sabendo o que conversar entre si, ousavam em cada olhar
falar coisas indizíveis. Havia momentos sobrenaturais,
quando estavam juntos, com os olhos mergulhados em si,
encantados pelo sorriso cheio de felicidade. Os olhos dela
azuis, como o céu de verão, escureciam de repente e se tornavam como raios de fogo, e por momentos faiscavam neles o rancor, tremiam desejos e a dor surgindo do nada.
Não conhecendo essas emoções, ardentes, apaixonadas, inocentes, ingenuamente sensuais, que lhe percorriam rapidamente o corpo, estourava em risos inesperados,
mas cortantes como adagas afiadas.
Começavam alguma conversa, não se sabe por quê,
aos sussurros, de tudo e nada, do céu e da terra, sem sentido
nenhum. Pela primeira vez na vida, Kazimir, que era tímido, conversava alto, animado, fluente, brincalhão. Sentia-se
como se estivesse embriagado. Caminhava entre as pessoas
e cada vez mais abertamente procurava com os olhos a senhorita Maria.
De manhã viu-a de soslaio, correu ao seu encontro,
desajeitado, pegou as suas mãos, e só um momento durou
esse cálido e singelo beijo... Um grito silencioso escapoulhe do peito, ela afastou-o perplexa e saiu correndo.
Na cabeça do jovem, no peito, nos ouvidos, no coração, ainda soavam as notas da música, melancólicas, sen341
suais, e principalmente os sons do violino, ao longe... e o
gosto dos lábios dela continuavam nos seus.
Kazimir ficou parado, encostado de costas à parede.
Riu alto, sem motivo, como um bobo, e com passo trôpego,
saiu de lá. No outro dia de manhã, procurou por ela, estava
temeroso de uma recusa.
Combinaram um passeio à beira do lago na próxima
tarde. Encontraram-se na ponte, sobre o córrego que desaguava na lagoa. Ela vinha conversando, como se fosse consigo mesma.
- Não entendo o que estás falando - disse Kazimir, e
acercou-se mais perto dela.
- Quero perguntar-te, por que estás sentido comigo?
Por que não me olhas mais nos olhos? – explicou ela.
O sangue congelou-se nas veias do Kazimir ao falar:
- Então você não vê que sou tímido? Queria dizer-te
que te amo, perdidamente. Como pode ignorar este afeto?
Ouça, eu não te peço nada. Diga-me apenas que me ama,
entregue-me a tua alma, e eu aceito todas as condições. Entrego-te em recompensa a minha vida e vou servir-te até o
último alento. Diga-me, por favor, você me ama? Esta única palavra será a minha salvação. Fale-a.
Maria pegou a mão de Kazimir e encostou-a no seu
peito. O coração dela batia violentamente, e ela falou:
- O que você acha que ele diz? A-mo! A-mo! A-mo!
- é o som que se ouve...
Recobrou os sentidos ao toque das mãos suaves de
Maria. Numa voz estranha, clandestina, anjo ou demônio
falou pelos seus lábios, sussurrando: só ela pode ouvir essas
frases insólitas, que lhe rasgavam o peito...
- Vá para casa do teu pai, amanhã eu vou à Majdan
Kobylanski de noite, a cavalo. Espere-me na janela que dá
para o pomar. Vou bater três vezes no vidro da janela, no
342
lugar onde está desenhado um coração. Espere-me perto da
janela... Promete?...
Maria olhou para os olhos cheios de fulgores selvagens, nas veias saltadas do pescoço, o rosto em fogo, cabelos em desordem e rompeu em gargalhadas tão inauditas e
sinceras, que ele ficou desarvorado. Kazimir encabulado,
não sabia o que fazer; acompanhou o riso dela tolamente.
- Desculpe-me, por favor, Maria, agi como um estúpido, é capaz de me perdoar? Esqueça o que eu disse - implorava o moço.
Abraçaram-se comovidos e juraram que nada iria
separá-los até o fim dos seus dias. De longe, chegavam os
sons de música tocada de ouvido. O violino emitia ligeiros
acordes, o violoncelo acompanhava e o clarinete soluçava
enternecido. Esse dia ficou como um marco de um novo
tempo, para os dois.
Kazimir exultou com a idéia de mudar-se para Plenin, pois a sua namorada morava na aldeia de Majdan Kobylanski, que distava apenas cinco quilômetros da vila.
Ludmila, sempre concordata, acatando as idéias do
marido, aprovou a mudança. Passadas as férias, voltaram à
Lublin, e Andrzej foi conversar com o conde Zukowski.
- Acho a idéia excelente, você já tem uma boa economia comigo; vou vender a você 20 morgas de terra boa,
que será suficiente para que faça uma excelente lavoura.
Escolha uma casa confortável na vila, que será meu presente para tua família. Só tem uma condição: você não pode
deixar a administração das minhas propriedades. Eu já estou velho, tenho 72 anos, estou adoentado, não vou me acostumar com outro administrador.
Acertados todos os detalhes, Andrzej escolheu e
demarcou a área de terra; encontrou uma casa em boas condições, espaçosa, arejada, com um lindo pomar em volta e
jardim florido, próxima à igrejinha de torre branca.
343
Mudaram-se para Plenin em 1863. Andrzej estava
com 51 anos. Kazimir estava feliz com a mudança, poderia
ver a namorada com maior freqüência. Estava perdidamente
apaixonado, e isto ocasionou uma mudança drástica na sua
vida e no seu comportamento.
E, de fato, iniciou-se uma nova e estranha vida para
o rapaz. Ele adormecia e acordava extremamente nervoso e
irritado. Processavam-se nele mudanças físicas e morais.
Não tinha apetite. Uma doença incomum invadiu o seu corpo. A febre emocional consumia sua alma. O amor tomou
conta dele como uma doença contagiosa, amava de corpo e
alma; cada célula do seu corpo e cada palpitar do seu coração estava cheio deste sentimento. Acontecia às vezes que
se transformava em matéria sem vida, estático, preso ao
lugar, então, todos os esforços da vontade quebravam-se ao
encontro da desesperança.
Depois de alguns dias nesse estado de espírito, emagreceu, amarelou, ficou pálido, com aspecto horrível. Não
se importava com nada. O olhar severo do pai não lhe importava. Apenas a lembrança do semblante da jovem Maria,
que o enfeitiçara, permanecia sempre inalterável, impregnando a alma e a sua vida.
Uma noite, deitado imóvel na sua cama, pensava...
Os últimos rumores na casa tinham cessado. Na cozinha apagaram o fogo do fogão e a criada foi dormir. Só o
grilo noturno cantava seu cantar contínuo nalgum lugar...
Kazimir esperava, olhando para a escuridão. Parecia- lhe que o tempo não passava. Levantou-se e escutou com
atenção. O coração martelava no seu peito como presa, jovem e forte. A cabeça estalava e o sangue pulsava nas têmporas.
Antes da meia-noite, sentou-se na cama; uma força
estranha colocou-o de pé como se fosse uma ordem. Vestiuse apressadamente. Segurando nas mãos as chaves do está344
bulo, empurrou a janela do seu quarto e saltou para fora. O
vento frio bateu-lhe no rosto. Ria de contentamento vendo
como a neve cobria as suas pegadas.
Abriu a estrebaria... esperou um pouco para verificar
se alguém tinha acordado. O cavalo alazão fungou diversas
vezes quando o aventureiro da noite chegou perto dele; encostou o focinho úmido no seu braço.
- Alazão, alazão - sussurrou, cumprimentando o animal, e ligeiro colocou o freio e a sela. Tirou o cavalo rapidamente da cavalariça, pegou as rédeas e pulou na sela.
O jovem passou o portão com os cães ladrando atrás. Saiu para o campo galopando pela estrada de álamos
que ia a Majdan Kobylanski; o caminho levava pela pequena elevação evitada pelos aldeões porque passava à beira do
cemitério antigo; ali o vento assobiava pelos ramos dos
arbustos, um lamento lúgubre; os braços das cruzes curvadas, rotas, envelhecidas, encobertas pela mata rala, pareciam clamar por socorro.
Encontrou a encruzilhada onde estava fincada a coluna com a cruz de Cristo; estava agora nos limites das terras do Zablotski, perto da floresta. Quando parou por instantes, pela primeira vez, apoderou-se dele um sentimento
estranho. Seria medo? Não! Não estava com medo! Chegou
mais perto da casa. O sopro do vento trazia o latido dos
cães anunciando que alguém estava chegando. Uma luzinha brilhava na janela entreaberta. Os olhos acostumados
com a escuridão divisaram a massa escura da casa.
Kazimir pulou da sela, levou o cavalo para mais
longe da casa, onde o animal começou a pastar a grama da
beira do caminho. E, com passos largos, atravessou a estrada, passou beirando a cerca da horta, chegou até a janela
iluminada, deu mais dois passos e olhou para dentro.
Ficou pasmo. Ali, a dois passos dele, estava a senhorita Maria, lia, recostada num sofá. A vela de cera ilu345
minava-lhe a linda face e os cabelos louros, soltos.
Parecia que ia morrer de ansiedade embaixo desta janela.
Chegou mais perto e bateu devagar três vezes no vidro.
Maria levantou rápido, jogou o livro e, transtornada, olhava
para a janela. Ele deu mais três batidas leves.
Sentia frio no coração. A felicidade como um pássaro abatido no ar, caiu, e amorteceu na sua alma. Com olhos
tristes olhava para a janela. A luz apagou-se. O jovem aventureiro da noite saiu de perto. Fechou os olhos e relembrou
a imagem da sua amada. Inesperadamente, no silêncio, abriu-se uma porta; percebia-se uma pessoa saindo.
Esperou ansioso; então ouviu um leve roçar, parecendo mais o murmúrio do vento. Surpreso, viu Maria caminhando descalça pela relva, como uma sombra na noite.
Aproximou-se dele como uma alma invisível, como o amor.
Jogou-se nos seus braços.
Abraçaram-se longamente, as cabeças inclinaram-se
para junto e os lábios sorveram o beijo tão desejado, ardente, inesquecível. Caminharam sem falar nada. A graça do
amor preencheu os seus corações.
Em certo momento, Maria parou.
- Como veio até aqui ? – perguntou ela.
- Vim a cavalo.
- Então cumpriu o pedido daquele dia, na dança?
- Sim!
- Onde está o cavalo?
- Deixei-o na estrada, comendo capim, vamos até lá.
- Não! Tenho medo, muito medo...
Kazimir inclinou a cabeça novamente à procura dos
lábios dela. Beijaram-se apaixonadamente. Ele abriu-lhe a
blusa e grudou os lábios no seu peito descoberto. Maria
afastou a cabeça importuna com as leves mãos, mas os lábios sedentos já beijavam a sua face. Não conseguiam dizer uma só palavra. Novamente ele mergulhou os lábios nos
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seus longos cabelos, perfumados. E quando mais uma vez
inclinou-se para o seu pescoço, não encontrou resistência.
Perdeu o controle, o juízo. Descobriu com os lábios o mimoso seio, e o beijava com loucura.
Esse solitário e furtivo momento de prazer foi interrompido, de repente, como um golpe. Retiniu longamente o
som do apito do guardião que passava. Maria tremeu e uma
vez mais beijou-o rapidamente... Sumiu na escuridão... O
ruído dos seus passos o vento encobriu. Os cães latindo
correram em direção do intruso, que com destreza pulou na
garupa do seu alazão e safou-se.
Kazimir Andrejew completou 18 anos, e naquele
ano foi convocado para prestar serviço militar, que era de
cinco anos. Não tinha alternativa, devia se apresentar no
quartel do exército russo em Lublin dentro de 7 dias. Foi
designado para servir em São Petersburgo, capital do Império russo. Ao receber a notificação, desesperado, foi imediatamente procurar a namorada para lhe comunicar:
- Querida! Aconteceu uma desgraça! Fui chamado
para o serviço militar obrigatório. Maria, você me espera
cinco anos, até eu voltar para casarmos? É muito tempo!
Lembre-se das juras que fizemos! - implorava com o olhar.
- Ora! Kazimir, sabe que eu te amo e esperarei por
você toda a minha vida, se for necessário.
Despediram-se com longos beijos; refizeram as juras de amor eterno. Kazimir, ao embarcar para Lublin,
onde deveria se apresentar no quartel, queria ao menos passar em frente da casa da amada. Pesaroso, chegou perto da
cerca de balaustres do quintal, parou na abertura entre dois
pilares, olhou a residência, o pomar e as altas tílias.
Viu o solitário terraço na sombra do velho carvalho,
estava coberto de relva e escondia um banco de madeira.
Ah! quanta saudade dos momentos felizes que passaram ali.
Quantos beijos roubados da doce Maria!
347
Frondosos galhos de jasmim e roseiras silvestres encobriam-no, formavam cerca viva. Nos parapeitos das janelas da casa viam-se flores coloridas. Com a janela aberta,
o vento balançava levemente os batentes da treliça As paredes brancas solenes e misteriosas estavam cobertas com
galhos floridos das ameixeiras.
O odor forte das flores, o zunido de milhares de abelhas colhendo o néctar, cigarras cantando, trinado dos
pintassilgos, melros, cotovias e rouxinóis; o grande e escuro
telhado coberto de musgos, tudo isso é lembrado agora; e o
coração ficava apertado.
Parecia estar preso por encantadas correntes, não
podia mover-se do lugar. Absorvia ainda o odor perfumado
do jardim e despedia-se talvez para sempre. Deveria ficar
longe por longos cinco anos, e não sabia se ia voltar. Via
os caminhos da sua felicidade e do amor cheios de sombras
e incertezas. Enquanto a vida parecia-lhe um sonho, de repente, como que num só sopro do vento primaveril transformou-se tudo em pó.
Não olhou para trás quando a carruagem moveu-se
do lugar, não virou a cabeça quando passou em frente ao
pomar. Não queria ver Maria, o coração não ia agüentar
tanta dor. Os cavalos iam devagar, e as rodas do coche pulavam de raiz em raiz ou atolavam na areia funda e seca,
que se movia pelos raios da roda como numa ampulheta...
O tempo passava, célere... Precisava seguir o seu caminho...
o caminho do dever...
Dirigiu-se primeiro para o quartel de Lublin, e de lá
até São Petersburgo, junto com outros jovens convocados,
designados para servir naquela capital. A saudade aninhada
no seu coração, presa como refém na corda, jazia fatigada
pelo longo cativeiro. Os pensamentos de Kazimir vagavam
por lugares desconhecidos perseguindo o destino a ele reservado. Para diminuir a saudade, escreviam-se cartas todas
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as semanas durante estes longos cinco anos, reafirmando o
amor que tinham um pelo outro.
Em 1869, passado o prazo do engajamento nas forças armadas, Kazimir voltou para Plenin e para sua amada
Maria. O reencontro do jovem casal foi algo indescritível,
extravasavam a saudade em cálidos beijos e suaves carícias.
Não se separavam. Após curto noivado, casaram na igrejinha local, com todo ritual tradicional.
Foram morar em Majdan Kobylanski, aldeia, onde o
pai de Maria, André Zablotski, tinha uma casa grande de
madeira, que foi adaptada para duas residências; uma delas
seria o doce lar de Kazimir e Maria. Em frente da grande
habitação crescia um carvalho centenário, plantado pelo
avô de André Zablotski, em cujos galhos frondosos as cegonhas e os pintassilgos faziam seus ninhos. Em volta do
jardim, os canteiros cheios de flores, nos vasos e no chão e
trepadeiras subindo pelo telhado.
Kazimir trabalhava na terra, junto com Andrzej, seu
pai, e eventualmente ajudava-o na administração da herdade do conde Zukowski. Substituía-o muitas vezes nas
viagens a outras aldeias do conde.
***
Em 1877 até 1878, o czar Alexandre II empreendeu
a guerra contra a Turquia. Ordenou para que se organizasse
um grande exército. Como milhares de homens aptos, também Kazimir Andrejew Wasilewski, reservista, com instrução, já com 32 anos de idade, foi convocado para participar
da guerra na Criméia. Foi destacado para servir no almoxarifado do Pronto Socorro Militar; recebeu o n° 34, como
cabo do exército. Seguiu com as tropas sob o comando do
general Kutuzow, para o território conflagrado.
349
A península da Criméia situa-se na antiga Rússia
Meridional, ligada ao continente pelo istmo de Perécope,
entre o mar Negro e Azow. Tem 25.880 quilômetros quadrados. Cidades principais: Sinferopol, capital da Criméia,
Sebastopol, Eupalúria, Yalta. De clima suave, é procurada
como estação de cura e veraneio. Disputada por muitos
séculos pela Rússia, Turquia, França e Inglaterra, foi a causa de muitas guerras, pelo domínio do mar Negro e acesso
ao Mediterrâneo, pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos.
Atualmente, é uma república autônoma da Ucrânia.
Os balcânicos da Turquia eram, em sua maioria, eslavos ortodoxos; a Rússia se considerava sua protetora, incentivava os levantes nas províncias turcas dos Balcãs e na
Criméia. As revoltas dos eslavos balcânicos e a repressão
pelos turcos provocaram a nova invasão russa nos Balcãs.
Os exércitos russos desceram o Dniester, detendose para enfrentar o inimigo, e apenas se comprometendo o
estritamente necessário para evitar a perda das bagagens e
provisões que eram levadas em grandes carroções.
Kutuzow recebeu, por um dos seus espiões, notícias
de que a infantaria turca, após ter passado pelo istmo, avançava para impedir que seus soldados se unissem às tropas
provenientes de Moscou. Entretanto, numa manobra rápida,
o general Kutuzow encontrou-se em Kherson com as forças
imperiais que já esperavam o inimigo.
Não havia ainda terminado a noite, quando o exército turco enegreceu ao longe, parecia uma nuvem de gafanhotos. Dos confins do horizonte, vaga sobre vaga, e hora a
hora, aquela massa sombria se aproximava.
Por detrás do khan Murat, marchavam os povos que
formigavam entre o Don e as bocas do Danúbio; as hordas
da Criméia, do Bielograd, de Nogai e de Constantinopla;
também ali se encontravam circassianos, turcos das estepes
da Silistria e da Rumânia, e um número infinito de selva350
gens guerreiros, vindos do Oural e das margens do Cáspio.
Nas planícies de Kherson via-se o extenso acampamento
turco.
A noite veio silenciosa, quando de repente se ouviu
o ribombar dos canhões do exército turco, e o assalto começou. Pareceu aos assaltados que a terra tremia nos seus fundamentos; dir-se-ia que aquela noite estrelada era do juízo
final; o solo ficou juncado de cadáveres, e era raro que um
não caísse sobre outro. Os vivos lutavam sobre a massa
palpitante de agonizantes.
As hordas tártaras corriam ao assalto; repelidas, voltavam em maior número. Kutuzow não tinha tropas de reserva. Os mesmos soldados deviam repelir os assaltos, enterrar os mortos, cavar trincheiras, reparar as brechas.
Os homens das enfermarias não venciam tratar dos
feridos. Soldados dormiam em pé. Molhados pela chuva,
tremiam ao frio da noite e sufocavam durante o dia.
Passou uma semana sem que ingerissem um alimento quente. Recebiam aguardente, bebiam misturando
pólvora, para não perderem a coragem. Apenas distribuía-se
meia ração, com grande descontentamento dos soldados,
que, com fome, já não se batiam com tanto ardor.
Alguns dias mais tarde chegaram notícias do campo
de batalha. Kutuzow, depois de uma série de combates nas
margens do Dnieper, concluíra com o khan da Turquia um
armistício com conseqüências desfavoráveis para a Rússia.
Diante da oposição unânime das grandes potências,
mais uma vez a Rússia recuou. E no congresso de Berlim
(1878), mesmo tendo libertado os eslavos moldavos, sérvios, búlgaros, romenos e valáquios da opressão turca, a
Rússia ficou isolada, enquanto os frutos da vitória foram
para a Áustria e Turquia.
Kazimir Andrejew sofreu grandes vicissitudes durante a guerra, nos deslocamentos com as tropas; cuidava
351
dos feridos nas enfermarias e enterrava os mortos. Ficou
doente, e em fins de 1878 voltou para casa, em Plenin.
Encontrou o pai acamado, muito doente, envelhecido, sem forças. Andrzej já estava com 66 anos de idade;
morreu naquele ano. Ludmila, desconsolada pela morte do
marido querido, não quis ficar morando sozinha. O filho
Francisco já tinha casado e morava em Krasnystaw. João, o
caçula, foi convocado para o serviço militar e designado
para a guarda do czar em São Petersburgo.
Então chamou Kazimir, a mulher dele, Maria, e
os filhos para que viessem morar com ela em Plenin. O
casal tinha 7 filhos: os gêmeos André e João, Teóphilo,
Nicoláu, Francisco, Estanisláu e Anastácia.
Seriam 10 pessoas, mas a casa era grande e caberiam todos. Trouxeram a mudança naquela semana. Maria
ficou triste por deixar os pais em Majdan Kobylanski, mas a
aldeia ficava perto, podia visitá-los com freqüência.
Numa tarde, após o jantar, Ludmila chamou Maria
para junto de si:
- Venha, querida, preciso falar-lhe, sente-se aqui
perto de mim - e puxou a cadeira para perto.
Pegou um estojo de veludo azul e abriu-o, tirou um
cordão de ouro com pedras de âmbar amarelo engatadas em
volta, colocou-o sobre o peito e com grande emoção, falou:
- No dia do meu casamento, Andrzej deu-me este
colar. Guardei-o sempre como uma jóia de valor inestimável, é uma relíquia para mim - disse com lágrimas nos olhos. Guarde e cuide dele como eu o cuidei. Depois, dê este
colar a tua filha ou neta mais velha, ele pertence a nossa
família, onde deve permanecer.
Ludmila não conseguiu superar a tristeza e a saudade do marido, morreu como viveu toda vida, silenciosa e
tranqüila, com um sorriso nos lábios, como se tivesse adormecido.
352
Kazimir continuou o trabalho do pai, administrando
a grande herdade, que pertencera ao falecido conde Zukowski e passou a ser propriedade da sua filha Bárbara, que
enviuvara recentemente. Não lhe cabendo como herança os
bens do marido, e necessitando de dinheiro, logo vendeu
boa parte das terras que herdou do pai, sobrando-lhe apenas
algumas aldeias, inclusive a de Plenin, e umas centenas de
morgas de terra de cultura.
Kazimir tinha uma pequena casa comercial e açougue, anexos à casa onde moravam. O filho André era açougueiro e João, ferreiro e carpinteiro. Eles o ajudaram a
construir as dependências para o comércio.
Os outros filhos o ajudavam no trabalho diário da
lavoura. Plantavam trigo, centeio, beterraba, batata, fumo e
hortaliças. Criavam abelhas e peixes, possuíam algumas
vacas e porcos. Um fato curioso a se notar, Kazimir lidava
com as suas abelhas, sem proteção nenhuma, e nenhuma
abelha o picava; ele sabia lidar com elas.
No pomar havia macieiras, pereiras, ameixeiras e
outras árvores de frutas da região, e pelo meio, soltos, andavam os gansos em fila indiana comendo ervas verdes,
moluscos e vermes, dando gritos de alarme a qualquer aproximação.
Os gansos são aves robustas, de bico forte, pescoço
longo, asas bem desenvolvidas e pés bem conformados. Um
produto importante é a carne, que é saborosa e muito utilizada na Europa Oriental, como também as penas, das quais
fazem-se acolchoados (pierzyna) e travesseiros. Com essa
diversidade, a propriedade tornara-se próspera.
A casa onde moravam era modesta, mas havia alegria e felicidade no lar. Mãe Maria fazia esforços para embelezá-la, colocou cortinas coloridas, plantou flores no jardim, mandou caiar as paredes de branco e puxou plantas
353
trepadeiras de glicínias azuis sobre a grade da varanda; ajudada pela filha Anastazia, cuidava dos afazeres da casa.
Teóphilo, 3° filho de Kazimir e Maria, trabalhava no
moinho da viúva Stanislawa. O marido dela, Lukasz Browarski, tinha morrido na guerra contra o Japão.
Naquela época, o governo do czar Alexandre III,
recrutava jovens poloneses que eram soldados da reserva
para trabalhar na construção da Estrada de Ferro Transiberiana, que começa em Chalyobinsk, aos pés dos Montes
Urais, atravessa o sul da Sibéria e vai até Wladiwostok. Foi
iniciada em 1891 e concluída em 1904, tem 7.873 quilômetros de extensão. Foi construída com trabalho e sacrifício de
muitas vidas, em terras inóspitas, de invernos rigorosos e
verões escaldantes. Além da violência por parte dos comandantes militares e dos administradores da colossal obra, juntavam-se as emboscadas dos guerrilheiros manchús
e de outros povos que se opunham à ocupação das suas terras.
Aleixo Nikolaievitch Kuropatkine foi o comandante
do exército russo da Manchúria, durante a guerra russojaponesa. O general cometeu muitas atrocidades contra o
povo local. Vingava-se ferozmente, culpando-os de traição,
pela perda da cidade fortificada no golfo de Petchili e base
naval de Port Artur, que se rendeu aos japoneses (só foi
recuperada na 2ª Guerra Mundial). O tratado de paz foi assinado em 5 de setembro de 1905.
Lukasz Browarski, assim como muitos outros soldados poloneses, foi enviado para o local mais distante,
Wladiwostok, o porto militar no Mar do Japão, o ponto
final da linha do Expresso Transiberiano no Pacífico, base
da esquadra russa durante a guerra. Estes soldados compunham os regimentos que protegiam as fronteiras russas.
Morreu em combate com os japoneses. Viveu só vinte e
cinco anos (1876-1901).
354
Stanislawa ficara viúva, com um filho de dois anos
de idade, de nome Boleslau. Lukasz deixara para a esposa
diversas propriedades rurais, um moinho e um título de
nobreza. Ela era uma pessoa de compleição frágil e de saúde delicada. Sem experiência de administração, contratou
Teóphilo Wasilewski, que já administrava o moinho, para
cuidar de todas suas propriedades.
Teóphilo nasceu em 1873, em Plenin. Solteiro aos
28 anos, alto, esbelto, de rosto corado, cabelos castanhos e
bastos bigodes, olhos azuis, era um homem bastante atraente, tinha habilidade para os negócios e talento para as
invenções. Trabalhador e honesto, fez os bens de Stanislawa prosperarem. Construiu novos depósitos, comprou
máquinas agrícolas e executou melhoramentos e reformas.
O moinho era velho, ruidoso, como tantos que se encontravam pelas aldeias.
Mas Teóphilo era diligente e inventivo. Dele dependia a produção das lavouras e do moinho. Ele discutia
com os aldeões o preço e a qualidade dos grãos, determinava as trocas, e mesmo já tarde da noite, enchia os cestos
de grãos, regulava as correias da transmissão, enchia os
sacos de farinha e pesava; sempre estava em atividade. Assobiava por entre os dentes antigas canções, sorria às vezes
para si mesmo, ou ouvia o murmurar da água correndo atrás
das paredes de tábua.
Apesar da aparência, a água à noite parecia mais intranqüila, derramava-se na roda dentada, parecia que carregada de ira. Entre o monótono e estrondoso ruído, Teóphilo distinguia as águas que caíam de cima da represa e
com forte rugido quebravam-se na roda, emitindo um lamento como ser vivo que procura socorro contra as forças
que a sujeitam e aprisionam.
A vida no moinho e na aldeia corria uniforme, os
dias seguiam-se sem maiores problemas, iguais, sem novi355
dades. Na companhia da viúva Stanislawa, morava uma
parente sua, Marynka, que era uma pessoa alegre e espirituosa. Um dia saiu-se com esta conversa:
- Stasia, você é viúva, precisa de um homem que a
ajude nos negócios, e que te faça companhia; porque não
casa com teu administrador Teóphilo? Ele é jovem, bonito e
acima de tudo honesto e trabalhador. Você estaria bem amparada.
Stanislawa sorriu e falou:
- Não brinque com assunto sério - repreendeu-a, mas
não conseguiu tirar essa idéia tentadora da cabeça. E se
perguntava com insistência: “Será que ele casaria comigo? Sim! Não! Mas que
dúvida é essa? Com certeza, devo consultar o meu cunhado
Jozef, e pedir para que ele sonde essa possibilidade com
Teóphilo”.
No outro dia foi procurar o cunhado, que aplaudiu a
idéia. Teóphilo encontrava-se no moinho e Jozef foi até lá.
- Será que ela me aceitaria?- indagou Teóphilo.
- Ora! Ora!, é claro que sim, faça-lhe a proposta.
Jozef comentava o resultado da missão com Marynka, quando ela argumentou:
- Mas o que Stasia sabe sobre os negócios? Acho
que tanto quanto seu filho Boles, de 2 anos.
- Sim, ela mesma nunca se interessou por isso, se
não fosse seu bom administrador, teria já perdido toda sua
fortuna - disse ele, e ajuntou - e ele gosta muito de Boles;
vai dar um bom pai e marido.
Jozef e Marynka foram os padrinhos casamenteiros,
acertaram todos detalhes da união de Stanislawa eTeóphilo.
Casaram-se em 1902. Formavam um casal feliz.
Viveram seis anos juntos e tiveram dois filhos: Kazemira
nasceu em cinco de maio de 1904, em Plenin, e Bogdan em
1906.
356
Stanislawa morreu em 1908 (nasceu em 1876), estava com 32 anos. Como era de natureza fraca, contraiu
tuberculose, doença que grassava na região, devido ao inverno rigoroso daquele ano. Foi enterrada em Plenin.
Teóphilo ficara viúvo aos 35 anos, tinha dois filhos
para criar. O enteado de 9 anos, Boleslau, a família do pai
Lukasz acolheu. Os dois órfãos Kazemira e Bogdan foram
amparados pelos avós Kazemir Andrejew e Maria.
***
Em 1905, no governo do czar Nicolau II, estourou
mais uma insurreição na Polônia; tinha caráter libertador
no sentido social e nacional. Angariava elementos de todas
as camadas sociais, revoltados contra a opressão política e
econômica do mais reacionário ocupante do país.
Kazimir e os filhos tinham papel ativo na conspiração. Apesar de não saírem de arma em punho na rua, escondiam e ajudavam financeiramente os fugitivos políticos.
O pai professava doutrinas para aqueles tempos muito avançadas, consideradas liberais e revolucionárias.
Havia tradições no comportamento, de encarniçado
patriotismo e ódio aos ocupantes da pátria. O pai dele, Andrzej, havia sofrido na própria pele os horrores da deportação para a Sibéria. Muitos desses guerrilheiros que o
pai ajudava a enviar além da fronteira emigraram para o
Brasil e encontraram-se com ele no Paraná.
Mas a maior preocupação foi com o filho mais novo, Stanislaw, ele fora chamado para o exército russo, não
queria ir, detestava o uniforme do inimigo e, pior ainda,
seria obrigado a lutar contra os seus compatriotas. Resolveram mandá-lo em fuga para Krakow (sob ocupação austríaca). Isso era deserção; se o pegassem, seria fuzilado. Encontraram uma moça mais velha do que ele, a qual con357
cordou em desempenhar o papel de esposa em viagem de
núpcias para Krakow.
Mas como era comum muitos jovens convocados
para o serviço militar fugirem, a polícia moscovita ficava
alerta, procurando-os nos trens. Stanislaw foi preso na fronteira para “esclarecimentos”.
Mandaram-no de volta para Lublin, onde precisou
apresentar-se no quartel. Foi designado para servir em
Warsowia; devia apresentar-se dentro de 15 dias.
O moço fugitivo ficou muito chocado com o episódio por ele presenciado, no quartel em Lublin, quando foi
se apresentar ao comando. Comentou em casa o acontecido:
- Os recrutas estavam postados em frente do comando e um dos rapazes acendeu um cigarro. O oficial que
passava viu e bateu-lhe no rosto. Se tivesse batido em mim
- disse Stanislaw - imediatamente lhe retribuiria.
- E irias ser preso e condenado à morte pelo Tribunal Militar! - retrucou o pai Kazimir. Não, você, filho querido, definitivamente não se adapta a esse emprego. Se
você tem tanta coragem assim, então vai receber um passaporte falso, roupa, dinheiro e fuja por tua conta; se te pegarem, vai bala na cabeça pela deserção. Para casa não poderás voltar - avisava o pai.
Mandaram-no para Lwow, para casa de parentes, e
de lá, passaram-no pela fronteira austríaca. Assim, chegou
até Krakow. Tinha o passaporte em nome de Jan Gwiderski.
E o pai lhe disse :
- Você chama-se Gwiderski! Se esquecer, você é um
homem morto!
Ficou trabalhando na cidade de Krakow até o dia de
emigrar para América do Norte com seu irmão Nicolau, e
com muitos outros jovens da região de Lublin, que foram
em busca de trabalho e de dólares. Iriam trabalhar na construção do canal em Búfalo. Nicolau, depois de dois anos,
358
voltou para a família, pois já era casado com Anastácia
Bzówka e tinha dois filhos. Stanislaw não quis voltar com o
irmão para a Polônia. Era solteiro, conheceu uma jovem
americana, casou-se e ficou morando em Boston nos EUA.
Stanislaw era o sexto filho de Kazimir Andrejew
Wasilewski e Maria Zablotska, nasceu em 1881, na aldeia
de Plenin, hoje Plonka.
IX
OS GRYCZYNSKI
Os judeus encontram-se na Diáspora desde a destruição do segundo Templo, arrasado pelo exército romano
de Tito, no ano 70 d.C. A grande dispersão aconteceu, e já
dura aproximadamente dois mil anos.
A febre da perseguição aos judeus elevou-se durante
a Inquisição, quando a tortura e a bestialidade eram tão
comuns quanto a prece diária. Na Idade Média os judeus
foram acusados da peste negra, feitiçaria e rituais assassinos. Eram obrigados a fugir, por sofrerem maus tratos,
chacinas, expulsões das suas casas e do país em que viviam.
Mas foram as Cruzadas que, em nome de Deus, se
dispuseram a matar todos os judeus da Europa. Os massacres se tornaram tão violentos e sangrentos, que grupos
após grupos de judeus fugiram dos nascedouros da carnificina na Espanha, Portugal, França, Itália, Boêmia, para a
Europa Oriental e principalmente para a Polônia.
Aqui a comunidade judaica foi bem recebida. E assim, reis poloneses outorgaram cartas-régias garantindo a
liberdade religiosa e proteção para o seu trabalho. Entretanto, esta condição de segurança não durou todo tempo;
iniciou-se a perseguição. Começou com o apoio da Igreja
359
Católica Romana e a ajuda dos imigrantes alemães, que
competiam no comércio com os judeus.
Os judeus eram necessários porque os nobres poloneses não se ocupavam com o comércio, essa atividade era
desonrosa para eles. Esse mister foi confiado aos judeus,
que o receberam de bom grado, pois não havia uma classe
média entre a aristocracia feudal e os camponeses.
Eles trouxeram consigo sua arte, ferramentas, comércio, profissões e habilidade como mercadores.No final
do século XIX, o estilo de vida deles sofreu uma grande
transformação nas grandes e médias cidades. Apesar de
revogada a lei que limitava o seu domicílio, eles fixaramse, tradicionalmente, nos seus próprios bairros.
Gradualmente, a juventude citadina e os intelectuais
judeus começaram a se vestir na moda vigente, falavam em
polonês, deixando de lado os ritos tradicionais. Alguns batizaram-se na religião católica, e foram assimilados pela
comunidade autóctone. Essa mudança facilitou a muitos
representar importante papel na política e vida cultural polonesa.
Na grande leva de judeus que fugiram da Inquisição,
no final do século XVI, veio para a Polônia uma família
que, mais tarde adotaria o sobrenome de Gryczynski. Inicialmente estabeleceu-se em Warszawa, capital do país,
com pequeno negócio.
No ano de 1750 Marian Gryczynski abandonou a
religião judaica e aceitou o catolicismo. No mesmo ano
nasceu o seu filho varão, que foi batizado na Igreja Católica com o nome de Jozef.
Viveram ali, criaram seus filhos e trabalharam no
país durante séculos. Com os casamentos dos homens e
mulheres da família com jovens poloneses, no decorrer do
tempo houve a total assimilação. Mas ficou como herança
genética: o gosto pela música, pelas artes, pelos livros, ci360
ências, misticismo e a habilidade incomum para os negócios. Os descendentes consideravam-se poloneses de corpo
e alma e passaram a amar este país.
Aleksander, filho de Jozef, nasceu em 1775, em
Warszawa. Depois da partilha da Polônia, em 1772, e dos
conseqüentes tumultos que isso ocasionou, seu pai Jozef,
querendo proteger a família, retirou-se para o interior da
província de Plock, para a propriedade que lá possuíam nos
arredores da cidadezinha de Mazowsze, a 150 quilômetros
de Warszawa e próxima da fronteira prussiana.
Jozef possuía uma considerável quantidade de morgas de terra fértil e campos, herdados do bisavô. Os cereais,
como trigo, centeio e gryka eram ali cultivados em grande
quantidade. Da palavra gryka originou-se o sobrenome que
os antepassados adotaram para a família. Passaram a chamar-se Gryczynski, e a herdade de Gryczynszczyzna.
O fagópiro (gryka), trigo sarraceno ou mourisco, é
originário da Pérsia, foi trazido para a Espanha pelos mouros que ali dominaram por sete séculos. Durante as perseguições da Inquisição, os judeus que fugiram para a Europa
Oriental e principalmente para a Polônia trouxeram consigo as sementes deste cereal.
A propriedade era próspera. No campo e nos estábulos havia gado e vacas leiteiras, produzia boa quantidade de
leite, queijo e manteiga, que eram comercializados em
Grudziadz. Em casa falavam em polonês com sotaque mazoviano, como nas casas vizinhas dos camponeses que moravam na aldeia, que não ultrapassava cinqüenta casas. Os
aldeões trabalhavam na herdade como assalariados e meeiros.
Em tempos de inquietação, os negócios diminuíam
e o dinheiro sumia, e nesses anos difíceis os Gryczynski
exploravam a madeira das florestas ou alugavam as pequenas aldeias.
361
A casa grande pertencia aos Gryczynski há muito
tempo, e cada geração fazia melhorias a seu gosto e aumentava o numero de cômodos. Herança dos antepassados,
a moradia possuía paredes de vigas grossas de sosna (pinho), as quais o carpinteiro alisara com cuidado e armara o
esqueleto, colocando as vigas no horizontal, fechando os
vãos com mistura feita de palha de centeio moída e argila.
A construção era atarracada e esparramada. Por baixo do
mesmo telhado de tabuinhas de pinho, havia a parte destinada à residência das pessoas, com diversas izbás (quartos)
dispostas simetricamente, separadas pelo sien (vestíbulo),
cozinha e despensa.
Separado por vigas e tábuas lascadas estava o estábulo, para que, no inverno, o homem, o cavalo e a vaca
aproveitassem do mesmo calor da fogueira que crepitava no
meio da cozinha, num grande fogão de pedras, em cima do
qual ficavam dependurados os caldeirões em tripés de ferro
fundido, para cozer os alimentos e esquentar a água. A fumaça saía por uma grande chaminé acima da casa.
Aleksander, que herdou a casa, reformou-a e adaptou um dos cômodos para sala de recreio, de leitura e de
música. Tempos depois, como a família foi aumentando,
construiu ao lado do dom (casa) antigo, que ficou destinado
para depósito e estábulo, uma nova casa de dois pavimentos, moderna e confortável, de tijolos e pedras, coberta de
telhas de barro; uma residência típica rural, com a frente
para o terreiro e com uma grande varanda em volta.
Concluída a construção da casa, a tradição mandava
que deveriam mudar-se numa noite de lua cheia, entrar pela
primeira vez levando uma broa de centeio, sal, vassoura, o
livro de orações e um crucifixo. Os móveis foram trazidos
de Warszawa. Era um belo solar, construído no meio da
herdade. A família também possuía uma hospedaria na cidadezinha de Mazowsze, que era administrada pelo pai.
362
A vida transcorria tranqüila, dedicada ao trabalho,
apesar dos rumores sempre presentes de rebeliões e complôs contra o regime moscovita do czar Alexandre I, que
dominava no país ocupado, com mão-de-ferro.
David, filho mais velho de Aleksander, nasceu em
1800. Estudava em Warszawa e trabalhava na Indústria
Têxtil do amigo de seu pai, Simon Bialik. Tinha uma carreira promissora na firma. E como estudante era muito esforçado. Numa viagem a Lublin, onde fora a trabalho, conheceu uma jovem de quinze anos, bela e alegre. Assim que
a viu, ficou enfeitiçado com o seu olhar, de lindos olhos
azuis.A jovem de nome romântico, chamava-se Julka (Julie
ta), tirou o sono de David.
Tytus Wojciechowski era um cidadão pacato, funcionário público, dedicava-se com amor a criar a única filha. Surpreso com o interesse de Julka pelo jovem Gryczynski, e também para agradar a menina, convidou-o para a
festa de aniversário dos seus quinze anos. Foi um acaso ou
sorte mesmo do jovem David ter conhecido Julka, pois nesse momento foi traçado o seu destino. O moço estava perdidamente apaixonado.
Compareceu no dia da festa, um tanto receoso e tímido. A mesa de doces estava posta e no centro um bolo
enorme. Dançavam ao ritmo alegre e agitado de um krakowiak; todos estavam se divertindo muito. David pensou
em convidar a jovem Julka para ser o seu par na dança. Indeciso, pensou... pensou... mas finalmente venceu a timidez, atravessou o salão e dirigiu-se a ela:
- Vamos dançar senhorita Julka?
- Aceito com muito prazer - disse ela com alegria.
E saíram dançando pelo salão, leves, como se estivessem flutuando no ar. Os músicos começaram a tocar
uma valsa lenta. Para ele era a realização de um sonho tê-la
nos braços, tão próxima do seu corpo. Tremia de emoção...
363
Terminada a música, foram para a varanda tomar o
ar fresco. A brisa soprava amena e as estrelas cintilavam
como diamantes no céu; a lua enorme pairava iluminando
tudo, proporcionando um ar de mistério e magia à noite.
Ela postou-se às suas costas, e isso fez ele sentir-se
pouco à vontade; voltou-se rapidamente e estendendo os
braços agarrou-a num abraço apertado, beijando-a de surpresa no rosto. Mas, envergonhado, afastou-se dizendo:
- Fui um idiota, por favor, perdoe-me, é que você
deixa-me desnorteado.
- Não é nada... gostei até... - respondeu ela rindo.
David e Julka olharam um para o outro durante algum tempo e suas respirações tornaram-se irregulares... A
moça estava ficando assustada diante da estranha sensação
que lhe percorria o corpo todo.
- É melhor que entremos - disse ela.
David, possuído pela grande paixão, quis beijá-la
novamente, e com olhar suplicante, murmurou:
- Posso... posso de verdade?...
Ela estava muito tensa para falar, apenas inclinou a
cabeça, fechou os olhos, levantou o queixo e entreabriu os
lábios. O jovem retesou-se, e levemente inclinado, encostou
seus lábios nos lábios dela, cerrou os olhos e apertou as
mãos. Foi um beijo apaixonado.
- Podemos beijar-nos de novo? - perguntou David.
-Talvez não devêssemos... bem, apenas mais uma
vez - respondeu a moça, com as faces rubras.
Desta vez, David puxou-a gentilmente e ambos se
abraçaram. Foi ainda mais maravilhoso. Os braços dela
envolveram-no e prenderam-no contra si, e foi como num
sonho bom... que nunca deveria terminar!...
- Oh! David! - sussurrou ela.
Afastou-se, repentinamente, dirigindo-se para porta.
- Julka!... meu amor! - gaguejou ele.
364
- Sim?
- Poderei vê-la novamente? Em breve?
- Sim! - respondeu, correndo para dentro do salão.
Dias depois, David veio falar com o pai e pedir
permissão para namorar a moça.
- Você a ama?- perguntou o pai - ela é muito jovem
ainda para assumir um compromisso, não é melhor esperar
um pouco? Vou chamar Julka para saber a sua opinião.
Julka veio apressada atender ao chamado do pai.
- Filha, você realmente ama este moço?
- Amo muito!, meu pai, e quero casar-me com ele respondeu com firmeza.
David estava ansioso pelo consentimento para namorar, mas como a declaração da jovem foi inesperada, ele
acabou pedindo a mão da moça em casamento. A cerimônia
foi marcada para o início da primavera. Os pais e os irmãos
de David vieram de Mazovsze para a festa do casamento
que se realizou em Lublin, com grande comemoração. Os
noivos estavam muito felizes, jamais duas pessoas tiveram
dias tão idílicos. Amavam-se com a energia reservada para
os jovens apaixonados.
Depois do enlace matrimonial, os cônjuges foram
morar em Warszawa, na casa nova que Simon Bialik mandou preparar para o jovem casal. Após rápida lua-de-mel,
David apresentou-se no escritório central da Indústria Têxtil
de Simon Bialik para inteirar-se do trabalho que ia exercer.
Bialik recebeu-o afetuosamente, pegou uma cadeira e mandou David sentar.
- Irei diretamente ao assunto – disse - estamos expandindo nossas operações no país. Iremos precisar de um
homem de confiança para ocupar-se da supervisão das vendas do produto da nossa indústria. Se nos conhece bem,
sabe que selecionamos cuidadosamente o nosso pessoal.
365
Verifiquei que você é um rapaz competente, portanto, nomeio-o como meu auxiliar direto - decidiu o proprietário.
Ao final do período de treinamento na sessão de
vendas por atacado, David foi designado supervisor e teria
que viajar ocasionalmente, para atender a grande clientela.
Julka sentia saudades de casa, o que era inteiramente
natural para uma jovem que passara sua vida em Lublin, em
casa dos pais. Ela nunca se queixara ao marido o quanto se
sentia solitária, quando ele viajava a negócios da firma.
David sentia-se feliz, muito contente com o trabalho, e
com o casamento, que era maravilhoso, pois cada encontro
após uma semana de viagem apagava a solidão. O carinho e
o amor que esta relação proporcionava era algo inesquecível para ambos.
Numa ocasião ela tentou viajar junto com ele. Foi
pior do que ficar em casa. Um homem de negócios precisa
ter mobilidade e nenhuma limitação de horário, nenhuma
preocupação em relação à esposa esperando num quarto de
hotel. Ela teve uma conversa com o David sobre a compra
de uma casa em Lublin, perto dos seus pais, mas o marido
não acatou a idéia. Ficava muito longe do seu local de trabalho.
Julka procurou muito, muito mesmo, adaptar-se àquela vida, e ao círculo de amizades do marido. Mas não
conseguia, vivia triste; só ficava contente quando ele chegava em casa. Passou-se algum tempo assim; ele viajando,
voltando para casa, amando a esposa. Nestes dias ela era
feliz. Os filhos foram chegando um após outro; eram crianças fortes e saudáveis; o cuidado com elas a distraía, ela
sentia-se mais feliz.
Após dez anos de casados, David, vendo Julka atarefada com a casa e com os filhos, mas sempre triste, motivada pela sua ausência, resolveu deixar o trabalho na Indústria Têxtil. O casal mudou-se para o interior de Mazowsze.
366
Foram criar as crianças longe dos perigos da cidade grande,
lá eles teriam mais espaço para as brincadeiras infantis. E o
casal ficaria sempre junto.
Iriam morar na herdade que fora do seu pai Aleksander, recentemente falecido. Deixou para eles a estalagem
na cidadezinha de Mazowsze; os irmãos continuaram o
trabalho do pai cuidando da hospedaria e da propriedade
Gryczynszczyzna.
David e Julka tiveram seis filhos: Leon era o mais
velho, nasceu em 1822, depois em 1824 veio Stephan, louro, de olhos azuis como os da mãe; Jan, Roman, Marcela e
Feliksa vieram em seguida, com diferença de dois anos um
do outro. Criaram-se na fazenda, correndo pelos campos
como bezerros soltos. Eram crianças sadias, cresceram robustos como carvalhos.
Quando Leon estava com 20 anos e Stephan com
18, foram convocados para o serviço militar, no exército do
czar Nicolau I, assim como centenas de jovens poloneses
desta idade. Os pais ficaram apavorados, pois o serviço
militar russo era de cinco anos, e era obrigatório; se o recruta desertasse, o castigo era uma bala na cabeça assim
que fosse resgatado, e os pais punidos severamente com o
confisco dos seus bens. A situação estava desesperadora,
ainda mais pela notícia de que os recrutas poloneses iriam
para o front da guerra na Criméia contra os turcos e outros
povos revoltados do Cáucaso.
Caucásia é a região percorrida pela cadeia de montanhas do Cáucaso, que compreende uma parte da Rússia,
Geórgia, Azerbaijão e Armênia, entre o Mar Negro e o
Cáspio. Os povos dessas regiões eram submetidos à Rússia
pela força da conquista. Constantemente organizavam guerrilhas e conspirações. O exército russo estava sempre presente nessas terras reprimindo revoltas.
367
Arregimentavam homens para o exército de todos os
países ocupados, além de soldados russos. Portanto, era
necessário, se convocado, seguir para o quartel e apresentar-se ao comandante.
Foi como procederam os dois irmãos Gryczynski,
Leon, o mais velho, e Stephan, o mais moço, quase criança
ainda. Foram incorporados às tropas e nos primeiros meses
receberam instrução militar. A vida no quartel era dura.
Exercícios o dia todo; de tiro, corrida, de defesa, ataque e
sobrevivência. Comiam pouco e mal, dormiam também
apenas algumas horas.
Os instrutores eram severos, muitas vezes cruéis,
batiam com carabina por qualquer motivo, por mínimo deslize, sem olhar onde atingiam. Depois de intensos exercícios no quartel, os dois irmãos foram designados para seguir com o exército para o front de guerra na Criméia. Foram separados; cada um acompanhando a sua unidade.
Leon, com o regimento da Infantaria, seguiu para o Cáucaso, região do Azerbaijão, mais precisamente para a cidade litorânea de Baku, no mar Cáspio.
As divisões russas deviam abafar a revolta na cidade, onde os armênios, sob o comando de Szaumian, haviam organizado quatro regimentos de armênios e georgianos e convenceram o comandante do exército inglês para
que colocasse a sua artilharia, infantaria e cavalaria, que
juntos perfaziam 2.000 homens, para sitiar o centro do
extenso povoado de Baku.
A outra parte dos habitantes, que era tártara, vendo a
reviravolta da situação, ficou apavorada, pois veio-lhe a
lembrança da sua participação na carnificina de um ano
antes, quando caíram sacrificadas as populações armênias.
A previsão da catástrofe e o medo enlouqueciam os tártaros.
368
Os armênios queimaram as mesquitas junto com as
mulheres e crianças tártaras que ali se refugiaram, e foram
os senhores da vida e morte dos tártaros durante muitos
meses. Estes, desesperados, procuraram socorro junto ao
califa da Turquia. Um exército turco, sob a chefia de NuriPashá, rumou para Baku, matando e queimando as propriedades dos armênios, revestindo de cadáveres os campos
próximos.
A cidade de Baku encontrava-se numa situação fatal. Defendida pela artilharia inglesa e pelos regimentos
armênios, achava-se sob o fogo da artilharia turca. Dias
depois, chegou o exército russo para resgatar a cidade. Travou-se violenta batalha com as forças turcas, que sitiavam a
capital. O comandante russo, vendo fracassar a retomada de
Baku, pediu reforços para São Petersburgo.Veio o general
Muraviev com tropas auxiliares, as divisões de cossacos do
Dnieper e os regimentos vindos da Polônia.
Ao cabo de mais alguns meses de cerco passivo,
expugnou a fortaleza. O assalto foi um dos mais sangrentos
na história militar russa. Os vencedores, exaustos, quase
loucos de terror e fadiga, vingaram-se com uma horrenda
carnificina no forte conquistado. Caíram ao todo sessenta
mil homens, entre os quais vinte mil russos.
As trincheiras de defesa, antes do exército inglês e
da infantaria armênia, em seguida das tropas turcas, localizavam-se nas elevações do sopé da montanha, avançando
além do cemitério armênio. Foram retirados todos os mortos da orla da cidade e jogados em valas comuns, fundas,
pulverizadas com cal e cobertas com terra; em seguida, foi
feito um aterro em forma de meio-círculo, acompanhando a
formação do morro.
O trabalho de remover e enterrar os cadáveres requeria muitas mãos humanas. Os homens que trabalhavam
no aterro moravam provisoriamente na parte das fortifica369
ções do exército russo, construídas pelos soldados armênios, de retalhos de tábuas, trazidas ali do cais do porto de
Baku.
Entre outros soldados russos, Leon Gryczynski
também encontrou ali um lugar para dormir. Dormia na
tarimba, junto com os demais, em fileiras; alguns dormiam
jogados no chão, outros ainda em estrados mais altos, perto
do teto. Era um amontoado de gente miserável. A comida
era cada vez pior. Leon, exausto do trabalho físico, pesado,
ao qual não estava acostumado, emagreceu, ficou pálido e
fraco. Não conseguia dormir, após o esforço no longo trabalho diurno. Assim que clareava o dia, já chamavam para
levantar e chutavam os sonolentos e atrasados.
Quase nu, sem camisa, picado pelos percevejos,piolhos e outros insetos, barbudo, com a calça rasgada e suja,
descalço, com a cabeça de cabelos cumpridos e desgrenhados, cobertos com o boné de soldado, já roto, mais parecia
um mendigo. A tristeza da alma o corroía. Às vezes, à noite, escapulia do galpão que fedia, com os humores mórbidos, exalados pelos vitais candidatos para cadáveres, não
melhores do que os já agonizantes.
Com o olhar inexpressivo, Leon olhava para longe...
Passava horas mergulhado em pensamentos. Procurava o
sentido da vida na sua alma, que estava tão perdida, que não
a encontrava, juntava as migalhas despedaçadas com a violência da guerra. Ninguém sabia nada dele, quem era, donde vinha. Pois que os trabalhadores dessa soturna missão
compunham-se de soldados russos, alemães, cossacos do
Dnieper e judeus.
Alienaram-no do grupo que conversava entre si,
principalmente em russo. Omitiam-no e colocaram-no numa lista negra. O sobrenome de Gryczynski era pronunciado com desdém, a nacionalidade polonesa virou apelido de
Polaczynski, cujo som não denotava afeto amigável. Só
370
esse apelido já era suficiente para que Leon se afastasse
mais ainda do grupo de soldados, seus colegas na macabra
profissão.
Entre os homens que trabalhavam no sepultamento
dos cadáveres nas valas comuns da encosta do morro, misturava-se e vadiava um terceiro tipo de gente – pedintes,
mendigos famintos, ladrões, saqueadores, doentes e aleijados, velhas e velhos decrépitos –, por termo, toda a miséria
da cidade devastada e do porto, juntando as sobras de comida jogadas pelo quartel. Os soldados jogavam a essa turba pedaços de ossos com restos de carne, migalhas de pão
amanhecido, legumes e frutas passadas.
Na cidade de Baku, era esse o único lugar onde essa
multidão de famintos podia apaziguar a sua fome, e eles
iam ali procurar os restos. Não havia trabalho. O comércio
estava fechado, a vida parou e a fome terrível reinava nas
ruelas solitárias. Não faltavam entre esse amontoado de
gente, loucos varridos, histéricos, pessoas descontroladas,
que ainda não se recuperaram dos terríveis sofrimentos do
corpo e da alma durante o cerco de Baku, do bombardeio e
da carnificina.
Leon, durante vários dias, via no meio da multidão
de miseráveis e famintos um homem que sempre ficava
próximo a ele. Era um camponês russo, barbudo e cabeludo, vestido de farrapos, um boné caído sobre os olhos,
alpercatas nos pés desnudos. Esse homem aparecia de manhã e cochilava em cima de um monte de pedras. Sempre
ficava de cabeça baixa - cantarolava... a face coberta com as
mãos, olhos fechados, cobertos com o boné, as costas curvadas... ninguém o notava.
Só Leon reparou nele, e concluiu que se tratava de
um excepcional, alienado do mundo. Como todos os seres
anormais despertam curiosidade nas pessoas equilibradas,
este chamou a atenção do moço. Quem é ele? Por que fica
371
ali e não noutro lugar? O que cantarola para si? Começou a
prestar atenção. Ouviu um som monótono, repetitivo, trêmulo, estático. Compunha-se de um som e de duas sílabas,
sempre repetias. Era um caso estranho, fora do comum e
irritante...
Chegou perto do demente e começou a escutar, e
qual foi sua surpresa ao ouvir o seu nome repetido no som
cantarolado.
-Le... on, Le... on, Le... on...
Não compreendia o porquê daquele nome ser repetido pelo estranho. Chegou ainda mais perto e fixou o olhar
com interesse no desconhecido. O outro parou de cantarolar
e levantou a cabeça lentamente. Naquele instante, o sangue
de Leon gelou. Viu o olhar apagado de olhos azuis fixos
nos seus. Surpresa, dúvida, insegurança, alegria, felicidade,
tresloucado deleite – tudo encerrou-se num só murmúrio:
- Stephan, meu irmão!
O pobre homem, sentado em cima das pedras, negava com a cabeça, como se não conseguisse assimilar essas palavras. De novo abaixou a cabeça e cobriu os olhos
azuis com o boné. Leon ficou perplexo. Encostou o peito
num poste de madeira, segurando-se para não cair, crispava
as mãos convulsivamente; queria ter a certeza que não estava sonhando, que realmente via aquele homem. As suas
pernas tremiam... queria correr ao encontro dele... afogou o
grito no peito, ficou em dúvida... assustou-se...
– Será que é apenas semelhança ilusória? Mas não!
Não! Por que esse indivíduo cantaria o meu nome durante
tanto tempo? – raciocinou Leon.
Pois estava cantarolando de novo...
- Le... on, Le... on, Le... on...
Um sorriso celestial deslumbrado pairava nos seus
lábios, não trazia sombras, estava iluminado pelo sol da
372
felicidade. Eram os lábios do seu irmão. Era a figura do
Stephan, naquele vagabundo vestido de andrajos.
Leon estava parado no lugar, como que colado à
terra, quando o indivíduo levantou-se pesadamente de cima
das pedras, cantarolando sua singular cantiga, arrastou-se
em direção menos conveniente; seguiu para a cloaca feita
de tábuas brutas, entre as valas abertas destinadas aos cadáveres e a caserna dos soldados. A latrina era comum, tanto
para os soldados como para os homens que enterravam os
mortos. A privada situava-se em frente das valas, cheia de
excremento exposto, tinha um tapume que vedava os olhos
curiosos às necessidades íntimas.
O mendigo, no qual Leon reconheceu o irmão Stephan, sumiu atrás daquele tapume. Mas antes de sumir olhou para trás, e com um disfarçado movimento da cabeça,
chamou Leon para vir atrás dele; este voltou ao seu posto
de trabalho, cavou mais um pouco de terra e jogou a pá, e
ligeiro, pegou o rumo da latrina. Assim que virou atrás do
tapume, mãos trêmulas agarraram-no.
- Leon! Leon!, meu irmão - ouviu-se o murmúrio
ansioso do homem.
Agora não tinha mais dúvida. Essas eram as mãos,
os olhos, a face do irmão Stephan. As cabeças encostadas
dos dois jovens, com suspiro de indescritível felicidade,
com gemido de saudade e dor, caíram um nos braços do
outro e lágrimas de alegria rolavam pelos seus rostos.
No asfixiante fedor da cloaca, dos odores de defuntos apodrecendo nas valas, eles viveram este momento sagrado do reencontro, do aconchego ao peito, do abraço dos
dois nesta terra estranha e longínqua. O grito de felicidade
assomava-lhes à garganta, mas deviam manter o silêncio.
Pulsava neles um só coração e um só sangue corria nas suas
veias.
373
De repente, ouviram passos de alguém que se aproximava. Os dois irmão se afastaram rapidamente, cada um
para o lado oposto da latrina e simulando estarem urinando
nas valas, trataram de não chamar a atenção dos outros; mas
assim que o homem foi embora, voltaram a se aproximar.
- Por que não podemos ficar juntos em público? –
perguntou Leon.
- Tenho medo! Os tártaros me conhecem e os russos
também, pois sou desertor do exército russo. Podem me
reconhecer e por vingança entregar-me ao comandante.
Esse mandaria matar-me e agora não quero morrer – disse
soluçando Stephan, abraçando o irmão.
- Como conseguiu encontrar-me? – indagou Leon.
- Encontrei... só isso basta - disse com sorriso terno.
Os seus olhos encheram-se de lágrimas, que nesse
momento romperam as comportas do suplício da alma.
Com surdos soluços encostou a cabeça no peito do irmão.
Leon amparou-o com carinho e afagou a sua cabeça com
mãos trêmulas, como fazia quando eram crianças.
- Quando nos encontraremos outra vez?
- À noite venho até aqui, fico esperando neste monte
de pedras, onde fico sempre - disse Stephan.
- Às sentinelas fazem ronda em volta da caserna.
- Eu conheço os lugares onde passam as sentinelas
da noite. Não foi só uma noite que aqui esperei pensando
que podias aparecer, venho aqui após a meia-noite - informou Stephan.
- E de onde você vem? – perguntou Leon.
Stephan descreveu um semicírculo com a mão, abrangendo o sul.
- Mas donde? – perguntou Leon.
- Do mundo, do sul da Rússia.
- Falaram para mim que você morreu em combate
no Mar Negro - comentou Leon.
374
Nesse momento, ele uivou de alegria, como um cão.
- Mas você não morreu! Não morreu! Oh!, que felicidade que sinto!
- E você também está vivo, e eu estou muito feliz
por encontrar-te, meu irmão – disse Stephan, abraçando-o.
Graças a Deus que conseguimos encontrar-nos.
- E onde você esteve todo esse tempo?
- Eu vim para a Criméia com as tropas do general
Suworow. Depois do infausto cerco de Sebastópolis, com a
derrota que sofremos, houve uma grande desordem no regimento, aproveitei a confusão e desertei. Viajei muito,
procurando-te por toda parte, assim cheguei até o Cáucaso,
soube da batalha de Baku e tive esperanças de encontrar
você aqui. Viajei como mendigo para não ser reconhecido esclareceu Stephan.
- Você sofreu muito, não? Pobre Stephan!
- Agora vamos fugir de volta para a Polônia, quer?
- Oh, como quero! Voltaremos juntos, meu irmão.
- Isso! Isso! Nós dois juntos, Leon!
Abraçaram-se mais uma vez com toda força e ternura. Alguém vinha chegando novamente para a cloaca,
Leon voltou lentamente para o seu trabalho com a pá e Stephan sumiu na sombra da paliçada.
***
O domínio turco na cidade de Baku, marcado pelo
bom senso e pela boa vontade, refreando os bárbaros morticínios, saques e pilhagens, não permaneceu por muito tempo.
O tratado de Versalhes obrigou a Turquia a se retirar de Baku e da região, permitindo que as terras litorâneas
do Mar Cáspio conseguissem uma relativa independência
para a criação de um país de nome de Azerbaijão. Mas esse
Estado não permaneceu por muito tempo, pois a Rússia
aniquilou o povo e dominou o país.
375
Naquele outono tardio iniciaram-se os movimentos
dos regimentos russos para oeste. Leon e Stephan preparavam-se para abandonar Baku. Depois da saída dos turcos,
moravam juntos, vivendo na penúria, esperavam a ocasião
propícia para a fuga, juntavam fundos para a viagem; trabalhavam, ganhando como e o que podiam.
Com dificuldade conseguiram comprar botas, calças, camisas, jaquetas e bonés, sobretudos forrados de lã de
carneiro, para enfrentar o inverno rigoroso que se aproximava. Mas ainda lhes faltava muita coisa, que para uma
pessoa que saiu do estado de barbarismo é tão indispensável
como camisa e calçado.
Não tinham dinheiro para comprar remédios para
debelar a febre e a fraqueza que os acometia, intermitente,
devido ao estado de desnutrição a que foram sujeitos durante muito tempo. Juntavam dinheiro para pagar a passagem na diligência que os levaria até Kiew. Através das estepes da Ucrânia, viajariam disfarçados de mujiques.
Em Kiew esperava-os um amigo conterrâneo, agente
secreto político, polonês, de nome Edmund Mucha; este
prometeu ajudá-los na volta para Polônia. Stephan falou-lhe
sobre a sua participação na guerra da Criméia e a sua fuga
do regimento russo que sitiava Sebastópolis. Do seu deslocamento através da Rússia, atravessando fronteiras, deslizando clandestino, sorrateiro, para alcançar o Mar Cáspio,
onde pelas notícias, encontrava-se seu irmão.
Empregou astúcia, muitos disfarces, ardis, esforços
inimagináveis; fazia-se de doente, de bobo, desentendido,
vasculhava, procurava rastros da passagem do irmão, seguia
rumos, agüentava piadas, gracejos malévolos, todas as aflições, privações, perseguições, miséria e fome, até que disfarçado de aldeão imbecil encontrou o irmão como coveiro
em Baku. Agora não podia desistir.
376
O conhecimento do país russo, após cinco anos de
ali viver, sua língua, dialetos, costumes e vícios, facilitoulhe o caminho e a possibilidade de transformar-se em diversos personagens.
Mas a guerra colocou no caminho dificuldades tão
insuperáveis que só o amor fraterno, ilimitado, poderia superar. Esse sentimento impelia e conduzia-o na imensidão
das estepes russas, onde o homem comum perdia o alento.
Esse amor pelo irmão Leon dava-lhe forças quando
era preciso esperar... esperar para que o perigo passasse;
para a autorização de livre trânsito, a fiscalização, testemunhos diversos, fichas, controles. Tudo isso exigia paciência
diante da prepotência, caprichos, má-vontade, infame prazer de prejudicar por prejudicar, diante do despotismo dos
comissários, senhores absolutos, autocratas, assumindo
poses de imperadores, sendo apenas simples funcionários.
Esse sentimento forte de amizade pelo irmão, que
buscava, e que não podia deixar nos confins da Rússia e
voltar sozinho para casa, dava-lhe ânimo para resistir quando estava na prisão, quando viajava nas comitivas de mascates ambulantes, quando fazia papel de palhaço no circo,
ou caminhando a pé com a multidão que se dirigia para o
leste.
Assim, aprendeu a mentir com perfeição, inventar
aventuras jamais vividas, representar papéis, ser idiota, fanfarrão, adulador; bajulava, era servil, mas persistia sempre
no intento de encontrar o seu irmão Leon, e voltar com ele
para Polônia, para a casa dos pais. Aspiravam e sonhavam
agora em dois. Planejavam o retorno à pátria, mas não podiam ignorar as dificuldades que encontrariam pelo caminho, até chegarem em casa.
Teriam que atravessar as montanhas geladas, de
ventos cortantes e desfiladeiros profundos da cordilheira do
Cáucaso, na Geórgia, seguindo as trilhas beirando precipí377
cios, pela passagem de Dariel, para chegar ao Mar Negro e
ao porto de Batum.
Saíram de Baku acompanhando uma caravana que ia
em direção à Tbilsi, capital da Geórgia. A viagem foi difícil
e demorou mais de um mês para alcançarem o porto de Batúm. Em seguida, partiram a caminho de Odéssa, de navio,
como dois operários que trabalhavam nas minas de manganês e ferro, e agora por causa da paralisação do trabalho
estão voltando para casa em Kiew.
Possuíam passaportes falsos, que conseguiram por
intermédio de um funcionário que era favorável ao seu retorno, e ao suborno que lhe foi dado. Vestidos nos típicos
trajes operários, conversando entre si em perfeita fala moscovita, cujos segredos possuíam num grau incomparável,
eram na aparência “amigos” da ordem estabelecida. Com
isso realizaram em paz a viagem de navio até Odéssa.
Mas de Odéssa a Kiew eram mais mil quilômetros
de distância, duma viagem exaustiva, cheia de contratempos. A segunda parte da viagem seria por terra e apresentava-se muito mais difícil. Viajaram em diligências puxadas
por oito cavalos através de estradas lamacentas. O carro
parava sempre, e ficava parado nas estalagens por muitos
dias, até que o tempo melhorasse.
Sem razão alguma detinha-se e, sem saber quando,
arrancava do lugar, não dando atenção alguma para os passageiros que ficassem para trás. Precisavam estar alertas
nos seus assentos, para não ficar por acaso nas estepes ucranianas. Vinham conversando no dialeto local até que
perceberam a indiferença dos outros passageiros e começaram a falar em polonês.
- Quanto tempo ainda levará? - indagou Stephan
preocupado – será que conseguiremos chegar ao destino?
- Para a Polônia? – perguntou Leon, distraído.
- Sim! Sim! Para a Polônia! – respondeu.
378
- Deus há de nos proteger, e algum dia chegaremos.
A viagem até Kiew prolongou-se por muitos dias. A
diligência, danificada pelas más condições das estradas, foi
arrastada, pelos cavalos exaustos, até o subúrbio da histórica cidades dos vikings. Mas não era esse o objetivo dos
dois irmãos, portanto, precisavam trocar de personagens e
de roupas. Ficaria difícil simular operários russos pretendendo viajar para a Polônia.
Leon e Stephan procuraram o agente polonês,
Edmund Mucha, que os ajudou, arrumando alojamento,
comida e roupa, e eles transformaram-se em mujiques ucranianos, para não chamar a atenção da polícia. Os dois
estavam ansiosos para conhecer Kiew, passeavam na companhia de Mucha pela cidade e admiravam as diversas curiosidades e belezas locais.
Kiew e o centro da história da antiga Rússia, concentrando, desde o início da colonização eslava, uma intensa atividade política e militar. Foi a primeira capital do
Estado Russo, fundado entre o rio Volga e o Oka. Em 988,
o príncipe Wladimir de Kiew proclamou o cristianismo
como religião do Estado; mandou construir a Igreja de
Santa Sofia e o monastério de Petchersk para a residência
do metropolita, chefe da Igreja Ortodoxa russa.
No século XII, Kiew sofreu sucessivos ataques
mongóis vindos do leste, que terminaram por conquistá-la,
e por diversas vezes foi arrasada pelos exércitos tártaros. A
partir de então a cidade entrou em franca decadência, perdendo sua posição hegemônica para Moscou.
Foram necessários longos anos de desenvolvimento
econômico e social das populações ucranianas para que a
cidade recuperasse o antigo prestígio e esplendor, o que só
conseguiu por volta do século XVIII, quando passou a ser
capital da Ucrânia.
379
Nessa época, Catarina II transformou-a em centro
militar importante, transferindo para a cidade numerosas
guarnições e instalando manufaturas que forneciam material bélico e outros tipos de suprimento para o exército.
Mandou construir um magnífico palácio para sua residência ocasional. E é esta cidade antiga e bela que os dois
irmãos Gryczynski estavam conhecendo, na companhia do
amigo Mucha. Porém, não era conveniente expor-se muito
e demorar-se nesta capital de palácios de pedras brancas,
residências de diversos czares russos.
Tinham comida nos restaurantes públicos onde eram exigidos documentos com o registro do trabalho que
executavam, mas o agente polonês tinha providenciado
tudo. Esperaram em Kiew só o tempo necessário para conseguir lugar na diligência que levava diversos sobreviventes
de guerra, do front nas montanhas do Cáucaso, do Mar
Negro e das estepes, até a fronteira polonesa. Obtiveram os
documentos necessários e, forçando, entraram na condução,
que estava superlotada.
Se a viagem desde o litoral do mar Cáspio era longa
e sofrida, então esta de Kiew até a fronteira foi uma verdadeira tortura. No caminho por Zitomir, Rowno, na cidade
ou subúrbio, no campo aberto ou na estrada pela floresta, o
carro parava, nas estalagens, faziam consertos, alimentavam
os cavalos, descansavam por horas ou dias inteiros.
Os passageiros impacientavam-se, pediam para que
se apressasse, mas o condutor, que era uma autoridade sobre os reemigrantes, explicava secamente que era necessário fazer consertos na diligência para poder prosseguir a
viagem.
A última parada aconteceu a dez verstas de Lwow.
Por algum acaso quebraram-se duas rodas do carro, e o cocheiro avisou que não iria mais adiante por preço nenhum.
Uma parte dos passageiros, os mais impacientes e os fortes
380
fisicamente, partiram a pé para a cidade fronteiriça; entre
eles, estavam os dois irmãos Gryczynski.
Carregavam os poucos pertences nas costas, alternando-se na carga. Chegaram a Lwow já tarde da noite. Ao
procurar acomodação para dormir, encontraram abrigo na
casa pobre de um alfaiate meio polonês, meio ucraniano.
Pagaram-lhe o pernoite em rublos, que juntaram com esforço, durante muito tempo.
Levantaram cedo e foram informar-se da partida da
próxima diligência com passageiros para a Polônia. Conseguiram informação de que um comboio de diversas diligências, levando grande quantidade de reemigrantes, seguiria
para a Polônia, mas assinalaram de longe que não havia
mais lugar para ninguém e que de Lwow não levariam mais
uma só viva alma.
Os dois irmãos, preocupados, procuraram as pessoas
de influência da agência de transporte para conseguir os
dois lugares no comboio. Depois de andar muito, implorar e
pagar uma taxa extra ao funcionário russo corrupto, conseguiram os tão desejados bilhetes que lhes davam o direito
de viajar na diligência. Aguardavam a chegada do comboio,
desde muito cedo.
E de repente, no silêncio da madrugada, ao longe,
ouviu-se o trotar surdo de inúmeras patas de cavalos, o tilintar dos sininhos e o ranger das rodas. O prenúncio desejado da chegada das diligências. Parados, os dois mantinham-se à escuta na penumbra da estação pouco iluminada,
triste e vazia. O trotar aproximava-se, aumentava, crescia...
Finalmente, o primeiro carroção enorme, com os
cavalos soltando vapor pelas ventas, estacou na estação.
Seguiram-se-lhe mais seis diligências, com as janelas e portas cobertas pela neve e gelo. Veneráveis estalactites pendiam como tufos de pêlos daquela coluna de caixas em movimento, fechadas hermeticamente.
381
Quando Leon pulou e tentou abrir uma ou outra porta das diligências, em vão forçava os dedos e torcia as
mãos. Todas as portas estavam inacessíveis, cerradas. Da
última carruagem avançou um homem, e ligeiro dirigiu-se à
estação à procura da autoridade. Os dois irmãos atiraram-se
a ele e sem perguntar quem era, encheram-no de pedidos,
para que os deixasse entrar na carruagem, apresentando os
bilhetes adquiridos.
Confirmou-se que era o engenheiro Bariatynski, o
guia condutor do comboio, mas ele não podia fazer nada,
não tinha mais nenhum lugar vago em qualquer uma das
carruagens. Estavam superlotadas. Em cada parada havia
revista e conferência de papéis dos autorizados a viajar.
Pelo contrabando mesmo de um só passageiro, havia uma
ameaça de castigo sumário, com pena de morte.
- Não posso, sinto muito, senhores, não posso!Ainda
mais duas pessoas, não posso! - gemia o engenheiro.
Aconselhava que esperassem o próximo transporte
que chegaria em breve, com certeza não estaria tão lotado, e
poderiam embarcar.
Leon pedia, suplicava, gemia...
Stephan chorava... beijava as mãos do condutor, mas
de nada adiantou. Ele não podia ajudar.
- Esperem o próximo, não me condenem, eu que sou
também polonês, será morte certa, pois respondo com a
vida pela execução correta das ordens que recebo.
Os irmãos não queriam ouvir as justificativas do
guia. De modo ríspido e decisivo, Leon informou que embarcaria de qualquer maneira, pois já fazia seis anos que
estavam longe da pátria, lutando por uma causa que não era
deles, sacrificando a vida. Que tinham o direito de voltar
para sua terra, e ele os mandava esperar mais? Para uma
nova recusa? Por que os outros podiam viajar e eles não? –
reclamava, com voz alterada.
382
Bariatynski de novo começou a explicar que não são
só eles, mas muitos outros soldados em Lwow não poderiam embarcar. Simplesmente porque não havia mais lugar
nas carruagens. Enquanto eles estavam assim questionando,
aproximou-se, por trás, um outro homem, também passageiro desta mesma comitiva.
Ouvia a discussão calado. Quando o engenheiro
respondeu com toda a prepotência, negando o embarque, o
homem puxou Leon e Stephan pela jaqueta e empurrou-os
para trás de uma das diligências.Virou-se e falou ao engenheiro:
- Morte? Morte por levares esses dois?
- Sim! Morte! – gritou o engenheiro.
- Pode ser, tudo é possível, mas nós vamos levá- los.
- Eu não vou levar! - gritava alto o guia - Não levo!
Não levo! Está decidido!
- Não é você que vai levá-los, mas eu! Jogue a culpa
por cima de mim, você não sabe de nada, nunca ouviu e
nem viu nada. Eu os levo em segredo e em segredo perante
você os escondi. Eu respondo por eles com a minha vida.
Fim! – disse o homem, com decisão.
O engenheiro gesticulou, bateu os pés, gritou impropérios, ameaçou furioso, mas o outro homem magro,
alto, levemente corcunda, empurrou os dois irmãos à sua
frente e mandou correr até a última carruagem, subiu no
degrau e com dificuldade abriu a porta, que rangia seca e
congelada.
Gritou para eles uma ordem:
- Empurrem-se lá no fundo, embaixo dos bancos,
deitem-se e fiquem quietos, nenhum suspiro, ouviram?
Os dois irmãos seguiram a ordem do homem e, assim que entraram, ele fechou a porta com o cadeado e desceu os degraus. Não demorou muito o comboio seguiu em
383
frente. Os cavalos arrancaram com violência; as rodas rangeram roucamente.
- Estamos viajando – sussurrou Leon.
- Estamos finalmente regressando, graças a Deus falou Stephan, em voz baixa.
- Está se aproximando o fim do nosso exílio.
Já tinham viajado de Baku a Lwow, três mil quilômetros de distância, numa viagem exaustiva, cheia de contratempos, que durou quatro meses. Ainda tinham uns mil
quilômetros de estrada para percorrer, até chegarem na casa
dos pais, em Mazowsze, na Polônia.
De sobretudo comprido de lã, encurvado, alto e magro, o personagem não esqueceu dos dois homens, que por
sua graça embarcaram no grande carroção de suprimentos,
do comboio dos reemigrantes e dos ex-combatentes. Na
primeira parada, quando conseguiu um bule com água
quente e um pouco de açúcar enrolado numa folha de jornal, um pedaço de pão preto e uma panela com kascha, levou tudo ao carroção de carga, escondido, para que ninguém desconfiasse. Comeram em silêncio, agradeceram
com o olhar.
Acreditaram que Deus havia mandado este homem
para socorrê-los e, apesar de toda a dificuldade, ele trazia o
alimento e água todos os dias. Recomendava murmurando
para que eles se escondessem bem, porque a fiscalização
podia aparecer inesperadamente. Pois, às vezes, no meio do
caminho, apareciam patrulhas de policiais russos, e tudo era
revistado minuciosamente. Conferiam papéis e pertences, e
tudo o que era de ouro, como anéis, correntes, relógios, era
confiscado. Até arroz e aveia levavam embora.
Os dois irmãos mergulhavam por entre os caixotes e
cobertores, ainda porque, o frio era intenso. De vez em
quando aparecia o bom samaritano, misterioso, com atenção, fornecia o caldeirão de sopa ou kascha e o bule com
384
água quente. Quando um dos irmãos pedia-lhe alguma informação, colocava o dedo sobre a boca, recomendando
silêncio, paciência e cuidado. Num certo dia, veio com outro homem mais velho. Entraram os dois dentro do carro de
carga - confabulavam. O personagem mais velho dirigiu-se
a Leon e murmurou:
- Em Warszawa vão procurar um homem chamado
Mariusz Zagloba. É pessoa conhecida, informem-se. Fale a
ele de nós, é nosso amigo, ele vai orientá-los e protegê-los.
Saíram em seguida e trancaram a porta à chave.
Os irmãos não sabiam quanto tempo já tinham viajado pelos campos de neve e rios congelados, entre as florestas e estepes infinitas e vazias, silenciosos. Ainda transcorreram muitos dias de viagens, e quanto mais perto estavam dos limites da terra polonesa, as fiscalizações tornavam-se mais duras e rigorosas.
Enfim, propagou-se entre os viajantes a boa nova:
fronteira!
As diligências pararam no meio do campo. As portas estavam fechadas. Esperavam naquela prisão ambulante
pela misericórdia dos inclementes condutores.
Os dois irmãos ainda estavam no interior do carroção de carga, quando apareceu o samaritano e mandou que
saíssem depressa misturando-se a outros passageiros que
desciam das carruagens, retirando os seus poucos pertences
que tinham sobrado dos confiscos.
Corriam gritando e chorando, empurrando-se, ultrapassando um ao outro pelo caminho lamacento, dirigindose às casas que apareciam do outro lado da fronteira; corriam cada vez mais rápido, como se alguém os quisesse
impedir; rezando, chorando e rindo alcançavam a cerca,
atrás da qual estavam diversos soldados poloneses de uniformes cinzentos e barretes azuis.
385
A multidão de gente desviava as casas da beira de
estrada e dirigia-se à cidadezinha de Rawa-Russkaia, que
ficava na fronteira, e já apareciam suas casas de madeira
pintadas de cor-de-rosa. Os irmãos também dirigiram-se
para lá. Depois da angústia, sufoco, falta de ar e de espaço
no carroção de carga, fechado, os seus pulmões aspiravam
ar puro com toda a força; abriam os braços para essa terra
que era a sua pátria, como se abraçassem novamente a liberdade.
Empurravam-se, abrindo caminho entre a multidão,
num rebuliço tamanho como se fossem náufragos remanescentes, que buscavam a praia para salvar-se. O portão estava aberto, e deixavam passar as pessoas uma a uma, em
fila.
Chegou a vez de Leon e Stephan; apresentaram os
papéis fornecidos pelo engenheiro Bariatynski, na última
hora, quando já iam atravessar o portão. O oficial polonês
pegou os papéis dos dois irmãos, olhou, colocou em cima
da mesinha e carimbou os dois documentos. Os viajantes
finalmente atravessaram o portão da divisa. Entraram na
Polônia... seu país... estavam de volta...
Os dois irmãos prosseguiram a viagem até a cidade
histórica de Lublin, uma distância de cento e cinqüenta quilómetros pegando carona ou a pé, pois não possuíam mais
dinheiro para pagar a passagem de condução. Comida e
pouso iam pedindo pelo caminho. Ao chegarem em Lublin,
procuraram um quarto onde pudessem ficar por alguns dias,
para trabalhar em qualquer serviço que aparecesse, ganhando o suficiente para comer e comprar os bilhetes de trem
para Warszawa.
Ao chegarem à capital procuraram Mariusz Zagloba, o homem indicado pelo samaritano. Esse cidadão
orientou-os e ajudou-os muito, pois era alto funcionário no
recém-criado Ministério do Tesouro.
386
Deu aos dois irmãos emprego temporário no seu
gabinete, e recomendou que dessem aula de língua russa
aos oficiais naturais da Galícia, que foram transferidos para
Warszawa. O senhor Zagloba especialmente queria informações a respeito da mãe dos dois moços, Julka, pois conhecera-a ainda mocinha, já havia muito tempo, na cidade
de Lublin, onde moravam.
Pedia que repetissem muitas vezes os diversos acontecimentos, tudo que era relativo à sua vida. Leon contava
com detalhes a vida de sua mãe e Pan Zagloba concentrava
a atenção em tudo o que ouvia. Sim, ouvia com lágrimas
nos olhos, e uma vez durante a narrativa chorou amargamente. Os dois irmãos não podiam entender por que esse
homem, que não via a mãe deles havia muito tempo, desde
que ela se casara, emocionava-se e comovia-se tanto.
Mas Pan Zagloba, cerimonioso e elegante burocrata,
era um cavalheiro com atitudes de diplomata, pessoa meticulosa e fiel servidor; ele mesmo explicou-lhes quando
conversavam intimamente. Confessou de um modo calmo e
frio, como se discutisse algum negócio financeiro, sem
sombra de afetação, de falsa vergonha, ou fingido sentimento, que tempos passados, na juventude, amou muito a
mãe deles. E só a ela amou na vida.
- Era naquele tempo um modesto funcionário do
correio em Lublin. Não poderia igualar-se em condições
com David, o pai deles, que chegou da capital, coberto com
a aura do sucesso; era supervisor geral de vendas, da Companhia Têxtil da capital. Casaram-na com o melhor pretendente, nada de estranho...
- Quem? Que pais poderiam rejeitar um tal partido?
– disse. Casou-se e foi embora para sempre. Uma jovenzinha linda que nunca consegui apagar da minha lembrança, e
agora só lembro o seu nome: Julieta... Julka...
387
Pan Zagloba afirmou friamente aos dois que nunca
pegou na mão da mãe deles, que jamais declarou em palavras o seu amor a ela.
- Uma vez... uma carta... mas isso não vem ao caso...
não influiu em nada na decisão dela. Portanto, não tem nada
de mais. Nunca mais a vi. Que dor, meu Deus! – disse soluçando, e grossas lágrimas caíram dos seus olhos. - Stephan é a imagem e semelhança da senhorita Julka, os seus
olhos são tão azuis como os dela.
Zagloba gostava de conversar com eles; fechavamse amiúde numa sala e trocavam lembranças por horas. Não
havia pormenor, versão, anedota que não interessasse ao
homem idoso, se fosse referente à ela. Os irmãos encontravam particular prazer nas conversas sobre a mãe.
Sucedia-lhes, às vezes, que assim como Pan Zagloba a descrevia, eles viam-na jovenzinha, bela, alegre, e a
reconheciam como “senhorita Julka”, pela qual havia se
apaixonado até a loucura, até ao delírio, um jovem moço
de Lublin. Ele falava desse sentimento puro tranqüilamente,
apenas com o olhar sonhador.
Esta era uma nova imagem da mãe, um retrato novo
que estavam conhecendo agora, uma transformação da velha senhora sofrida, chorando em desespero ao ver partir
para a guerra os dois filhos queridos. Leon e Stephan choraram sentidos lembrando-se do momento. E com ele, recordaram novamente a jovem e linda imagem da mãe.
Permaneceram em Warszawa por alguns meses, mas
precisavam seguir para Mazowsze, onde o velho pai David
necessitava de sua ajuda no trabalho do campo e na hospedaria.
O senhor Mariusz Zagloba, o único protetor deles
na grande cidade, não os retinha e nem os animava a ir embora, pois sentia-se feliz na companhia dos dois moços e
para ele a idéia de sua partida era uma tortura, era uma tris388
teza sem consolo. Assim resolveram logo a questão. Os
dois irmãos viajariam no outro dia de manhã por navio,
pelo rio Vistula até Ciechocinek, e de lá, de carruagem até a
cidadezinha de Mazowsze, que distava 25 km do rio.
O navio aportou no cais, em Warszawa, às 6 horas
da manhã. O rio Vistula estava resplandecente com os primeiros raios do sol que nascia. Leon e Stephan não se despediram de Zagloba, pois ele detestava despedidas. Embarcaram e após algumas horas de viagem chegaram a Ciechocinek. Já na plataforma do porto, os dois irmãos procuraram um veiculo de aluguel. Encostados perto do muro
achavam-se diversos fiacres.
- Para onde vamos? - perguntou o cocheiro.
- Para a propriedade Gryczynszczyzna – respondeu
alegremente Leon.
O condutor, bem vestido, cumprimentou os moços
com entusiasmo, pois voltavam da guerra, felizmente salvos. Ele mesmo também voltou da guerra, intacto, pois só
desempenhou a função tranqüila de ordenança de um dignitário, altamente posicionado.
Anoitecia. O sol lançava os últimos raios sobre o
rubro horizonte. Leon e Stephan subiram para o assento e o
condutor pegou as rédeas nas mãos fortes, hábeis, e com
visível satisfação, brandiu o longo chicote.Os cavalos arrancaram do pátio do cais como um raio, e rumaram pela
estrada de terra. Quando os alazões tomaram alento e aparelharam o passo, a condução parecia que voava pelos campos.
Era depois da chuva, a estrada estava lisa e cheia de
buracos, em que ainda permanecia a água amarela de barro,
mas as altas rodas do coche apenas roçavam nessas poças
de água, que atiradas para longe, pareciam pérolas jogadas
em cima da grama.
389
Bartosz, o cocheiro, saiu da estrada principal para
um caminho lateral estreito, entre as casinhas dos camponeses, onde duas carreiras de árvores à beira da estrada dividiam os lotes. O caminho estava marcado pelas rodas das
carroças que corriam paralelas, como se fossem trilhos de
estrada de ferro.
Cercas carcomidas, de cerne nodoso, alcançavam
até a altura dos assentos do fiacre. A estrada parecia feita
especialmente para o trânsito dos leves carrinhos puxados
por dois velozes cavalos. O barro argiloso lançado pelos
cascos dos cavalos e pelas rodas em forma de patacões, e os
esguichos de água, caíam atrás da condução, que ia em disparada.
O vento do outono assobiava nos ouvidos. O prazer
da força da natureza, a consciência da saúde, a extraordinária energia do organismo, a feliz convivência com o movimento e a velocidade e acima de tudo a curiosidade da juventude transparecia na fronte de todos os ocupantes do
coche.
Correr... correr... rápido... o que haverá no final deste caminho? O que terá atrás deste pé de pereira selvagem?
E o que haverá adiante ainda? O cocheiro, estalou o chicote
com força. Subitamente puxou as rédeas para si. Os cavalos
viraram rápido para o lado.
Aconteceu o inesperado. A condução leve, correndo
pela estrada argilosa, lisa, foi jogada em semicírculo, e deslizou como se estivesse em cima do gelo, bateu de lado na
cerca com as rodas traseiras, perdeu o equilíbrio e tombou.
As rodas giravam no ar, enquanto os passageiros foram
cuspidos dos seus assentos como flechas.
Bartosz, que segurava firmemente as rédeas, caiu na
poça de barro mais próxima. Stephan, que não tinha nenhum apoio, caiu longe, rolou pelos canteiros plantados e
só na quarta cambalhota, encontrou um obstáculo que o
390
segurou. Entretanto, Leon, no vôo do seu assento alto para
o chão, bateu com os dentes na parte de trás da cabeça do
cocheiro Bartosz.
Por sorte os cavalos pararam, indiferentes à sorte
dos seus donos, e começaram a mordiscar por entre os freios os gostosos brotos de capim. Leon ergueu-se do chão
com dificuldade, procurou o seu chapéu, que estava enlameado e amassado, e em voz baixa lamentou:
- Como vou me apresentar ao meu pai nessa situação?
- Ai! Ai! – gritava Stephan, olhando para Bartosz,
que segurava a cabeça que sangrava com a dentada de Leon. Mas com a ajuda um do outro, conseguiram juntar os
ossos, e por sorte estavam inteiros. E por força da colaboração, desviraram o veículo, ajeitaram os cavalos, subiram
cautelosos no coche, partiram novamente...
O cocheiro instigou os cavalos, que correram duas
vezes mais rápido, seguiram pelas encostas e campos úmidos, pelos vales e beira de rios, que pareciam ser estradas
normais, mas eram apenas trilhas sinuosas.
Já escurecia quando avistaram um belo solar antigo.
Entraram num caminho ladeado de velhas árvores, e no
final da alameda brilhava uma luz.
- Vê, Stephan, aquela luz?
- Claro que vejo.
- Então, irmão, alegra-te, alegra-te.... é a nossa casa!
É a Gryczynszczyzna, não reconheces?
Stephan sentiu uma leve inquietação. Receava alguma coisa, e em desacordo com a sua natureza, temia algo,
estava angustiado. Premonição?
Os cavalos entraram no pátio largo e pararam em
frente da varanda comprida. Na área profusamente iluminada, ouviam-se vozes alteradas de homens e mulheres, que
chamavam:
391
- Leon, Stephan, irmãos, sejam bem-vindos!
Os dois irmãos foram puxados dos seus assentos por
muitas mãos ansiosas e abraçados afetuosamente.
Na claridade dos lampiões e velas, distinguiam-se
diversas pessoas. Uma senhora idosa, alta, magra, de movimentos enérgicos e cheia de autoridade, era a avó Elzbieta, mãe de David. Ao lado dela estava Marcela, uma moça
loura de 17 anos, de lindos olhos azuis, Jan, de 16 anos, e
Roman, de 14 anos, eram os três irmãos dos recém-chegados.
Um senhor de meia-idade, de grisalhos e bastos bigodes caídos em volta da boca, alto e magro, denotava um
caráter forte ao olhar com os olhos expressivos; era Pan
David, o pai dos jovens, que os recebia com ar circunspecto
e tristonho.
Stephan beijou a mão de sua avó, abraçou o pai e os
irmãos. Leon cumprimentava todos com um olhar de tristeza, sentia a falta de sua mãe, que falecera dois anos depois
da partida deles para o front da guerra na Criméia. A conversa estava tão caótica que não se entendia nada, todos
falavam ao mesmo tempo, fazendo perguntas e não esperando pela resposta, perguntavam mais ainda.
Nada disso era de estranhar...
Leon, primogênito da família, e o irmão Stephan,
voltavam da guerra, inteiros, salvos, trigueiros, queimados
pelo sol da Criméia, apesar das vicissitudes por que passaram. Estavam magros e abatidos. Entraram para a sala de
jantar, onde a refeição seria servida.
- Jantar! Finalmente um jantar digno dos heróis de
guerra – dizia o caçula dos irmãos, e chegava à mesa olhando guloso para a tigela de sopa.
- Estou morto de fome - reclamou Leon.
- Ei! Vais comer! E é agora! E é hoje!
392
- Alcance-me essa sopa! Passe-me a vitela... meu
Deus do céu... isso é um banquete - falava Stephan.
- E a salada, você mesma preparou? - perguntou
Leon à irmã.
- Quanto à salada fique tranqüilo - disse Marcela.
- O que você falou? - perguntou o pai, atencioso,
alcançando a travessa com salada.
Foi um esplêndido jantar, particularmente feito para
agradar os irmãos recém-chegados. Durante o prato de peixe e dos molhos, a conversação foi muito animada. A sopa
de galinha foi servida com macarrão feito pela gorda Hanka, a cozinheira. Frango assado, carne estufada, repolho em
conserva e passas. Pudim de arroz doce para sobremesa.
Durante todo esse tempo, a avó, sentada no largo
sofá, não falou nada, seguia os netos com o olhar triste,
lágrimas escorriam-lhe dos olhos azuis, pela face murcha.
- A vovó Elzbieta está chorando - observou Stephan.
- Vocês podem conversar e rir alto como queiram;
eu choro de alegria pela volta de vocês, mas também pela
ausência de Julka, a mãe de vocês – respondeu a avó.
Os dois heróis bebiam tudo o que lhes era posto no
copo e comiam o que lhes serviam no prato, estavam esfomeados e sedentos. Todos os escutavam com a maior atenção, quando desfiavam os seus feitos de guerra.
Depois todos voltaram para a grande sala de visitas,
e a conversa continuou animada. Chegaram ainda o administrador da herdade, senhor Dambicki e duas tias idosas,
Aniela era viúva, e Viktoria, solteirona. A conversa animou-se mais ainda.
O velho empregado Maciej não conseguia a tempo
abrir as garrafas de vinho que trouxera da adega duma safra
especial. Pediu ajuda a Leon. Tomaram muitas garrafas do
vinho inebriante até ficarem fracos das pernas. Assim transcorreu o jantar da primeira noite na casa paterna. A alegria
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era imensa pela volta dos heróis. Apenas a lembrança da
mãe falecida colocava sombras no ambiente festivo. Stephan mais sensivel, estava tristonho, pensativo... com lágrimas nos olhos azuis.
- Vocês devem estar cansados, exaustos mesmo comentou o pai - saíram de Warszawa hoje?.
- Sim, saímos hoje de manhã muito cedo.
- Vocês não acham que está na hora de descansarem
pelo menos um pouco até amanhã cedo? - concluiu a avó,
que ouvia a conversa, sentada na poltrona.
- É, realmente estamos cansados - respondeu Leon.
E dirigiram-se todos para o interior da casa, onde
ficavam os quartos de dormir. No outro dia, já descansados,
Leon e Stephan acordaram muito cedo. A chuva batia nos
vidros das janelas e o vento frio assobiava lá fora, balançando os galhos das bétulas do parque.
***
O solar tinha dois pavimentos, suas paredes eram de
pedra, se estendia por uma área considerável, a fim de proporcionar acomodações às muitas pessoas que acompanhavam Pan David Gryczynski em suas visitas periódicas à
propriedade rural. Ele morava com a família na cidadezinha
de Mazowsze, sede do distrito e da paróquia e a apenas 6
quilômetros de distância da propriedade.
Pan David ocupava-se da administração de sua hospedaria próspera e muito procurada na época do verão pela
beleza da região dos lagos, pelos campos verdes e sua proximidade de Ciechocinek, à margem do Vistula. Da legendária cidade de Plock, capital do antigo principado, da dinastia dos Piast Mazovianos; com as ruínas do castelo e da
fortaleza.
Leon e Stephan tiveram uma interessante introdução
na vida cotidiana da herdade rural. Na manhã do segundo
394
dia em casa, um jovem aldeão mais ou menos da idade deles apareceu no solar, em busca de uma autorização do Pan
David, que, sentado numa poltrona de espaldar alto, esperava para ouvir as solicitações dos seus aldeões.
- Excelência, pretendo casar-me.
- Já encontrou a noiva?
- Já sim, é Klementyna, a filha do sapateiro.
- Ela quer casar-se com você?
- Oh! sim, excelência. E ela espera que possamos
ocupar a casinha que era da velha Zofia.
- Zofia morreu?
- Não. Ela deixou a casa... durante a parte mais fria
do inverno.
- Mas pode voltar.
- Pode sim, excelência. Mas agora ela vive com a
minha tia e sua habitação se encontra vazia. Suplico à Vossa Excelência!, permita-me ocupá-la.
Ficou evidente que Pan David decidira logo no primeiro momento permitir que o rapaz se casasse com Klementyna e ocupasse o chalé vazio. Na terceira manhã, Leon
andava pela aldeia, quando se encontrou com o jovem pretendente. Eles se falaram e timidamente o camponês perguntou:
- O senhor Leon poderia me conceder a honra de
cumprimentar a minha prometida?
Leon concordou e foi levado para uma cabana perto
da extremidade da aldeia. As paredes da casinha estavam
decoradas alegremente, havia canteiros de flores a desabrochar em toda volta.
- Klementyna! - chamou o rapaz.
Uma moça de grande beleza apareceu na porta baixa; a cintura fina, os cabelos cor de linho, presos em tranças
que iam até a cintura, um sorriso grande no rosto largo. Um
ritmo poético na maneira como erguia a cabeça e mexia
395
com as mãos. Leon pensou que nunca conhecera antes uma
moça que exprimisse com tanta intensidade a alegria de ser
jovem, bonita e apaixonada pela vida.
Ele notou especialmente que o vestido forrado não
era de tecido comum, mas de um material escuro e aveludado, costurado com pregas largas, e enfeitado de taxas
brilhantes, douradas e multicoloridas, em toda a volta da
barra. Um colete bordado cingia-lhe a fina cintura. Como
esse homem é afortunado, pensou Leon, enquanto se adiantava para ser apresentado à jovem. Para sua surpresa, no
entanto, o camponês mostrou-se desapontado e perguntou à
moça:
- Onde está Klementyna?
Antes que ela respondesse, ele explicou a Leon:
- Esta é Anusia, irmã da minha noiva.
Leon sentiu que um peso enorme tinha sido removido do seu coração. Ele passou a maior parte do tempo,
nos dias subseqüentes, naquela cabana de uma só peça;
linda por fora, mas humilde e quase miserável por dentro.
O chão era de terra batida, os únicos móveis eram uma mesa, armário de prateleiras para um pouco de louça, bancos
de três pernas, as camas encostadas na parede, e um fogão
de pedras no canto; praticamente mais nada, além da bancada em que o pai consertava os sapatos. Mesmo assim, era
uma das residências mais felizes da aldeia, um local de
muita alegria, pois as duas filhas eram lindas, havia pão e
os pais conservavam os dentes.
Anusia acompanhou a irmã ao solar na manhã em
que ela e seu jovem namorado se apresentaram ao Pan David, para receberem a permissão formal de casar e ocupar o
chalé da velha Zofia. As irmãs formavam uma linda dupla.
Klementyna, um pouco mais alta, Anusia um pouco mais
risonha e alegre, dava a impressão de sempre estar sonhando com a felicidade.
396
- Tenho certeza que vai ser um bom casamento declarou Pan David ao se levantar para beijar a noiva na
face rosada.
As moças também apareceram juntas no sábado,
quando a aldeia promoveu uma reunião, em que a filha do
sapateiro e seu jovem enamorado foram festejados. Prolongaram-se as danças por três dias turbulentos, em que o violino, a flauta e o violoncelo mantiveram todos em constante movimento. Ali, Leon, Stephan e os irmãos assistiram à dança vigorosa e artística do camponês mazoviano,
muito animada, natural do seu povo, cheia de coreografias.
Leon notou em particular a maneira cativante com
que Anusia girava o vestido pesado se levantando e voltando, ficando paralelo ao chão. Os lindos olhos faiscando,
enquanto virava a cabeça para um lado e outro, movimentando os braços, ora segurando o vestido, ora agitando-os
acima da cabeça, acompanhando o ritmo da música. Ela
estava deslumbrante. A própria essência da juventude; a
moça a flertar rindo, como a sussurrar para os rapazes da
aldeia:
- “Aqui estou eu, Anusia, a filha do sapateiro, a bela dançarina, clamando por amor”.
O jovem Leon sentia-se perigosamente atraído por
ela. Depois de dançar com Anusia por várias vezes na prolongada festa, saía a passear com ela pelos arredores da
aldeia, quando o violino e a flauta paravam de tocar.
Embora o pai David fosse o responsável pelos camponeses dessa aldeia, foi somente por intermédio de Anusia
que Leon soube como era a vida numa aldeia.
- Nós, moças jovens, somos como borboletas, belas,
apenas por um pequeno espaço de tempo... - declarou Anusia, um dia, numa confissão extraordinária - depois casamos... parimos os filhos... e engordamos... perdemos um
dente aqui e outro acolá, nossa face murcha... e além de
397
tudo somos analfabetas... Solteiras, somos submissas ao
pai, depois, devemos obediência ao marido; não somos
donas dos nossos atos e curvamo-nos ao nosso destino. Ela
fez uma pausa indicando as mulheres que circulavam pela
aldeia, e continuou comentando:
- Já somos velhas aos 27 anos, e as nossas coloridas
roupas e fitas são abandonadas. Morremos aos 38 anos e
nossos maridos casam novamente, para tudo recomeçar. E
assim continua indefinidamente.
Leon e Anusia passaram a se afastar cada vez mais
da aldeia em seus passeios. E houve o dia em que foram até
o pequeno bosque de faias, por onde passava um regato, e
ali ficaram sentados, com os pés dentro da água, conversando e rindo, ocultos de todos, como já acontecera com
incontáveis casais antes.
Deixaram que todo fluxo primaveril da paixão os
envolvesse. Rolaram pela relva como animais no cio, e deixaram que a natureza exuberante que ansiava dentro deles
tomasse conta dos seus corpos febris de volúpia; e a vida
não perdeu a oportunidade de introduzir-se no ventre de
Anusia para perpetuar-se mais uma vez.
Anusia, mesmo sabendo, o escândalo que resultaria
se engravidasse, não podia perder aquela oportunidade fugaz de fazer amor com um homem sensível, que sabia como
ninguém proporcionar-lhe aquele prazer indescritível.
A irmã Klementyna alertou-a:
- Oh! Anusia, você está fazendo uma coisa muito
errada e de terrível conseqüência. Nenhum homem desta
aldeia vai querer você depois que ele for embora.
- Não me importo! – gritou Anusia, assumindo uma
atitude de desafio perante o fato.
Klementyna resolveu chamar a atenção da mãe.
- Anusia está se destruindo, mãe, fale com ela.
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- O tempo implacável destrói a todas nós - declarou
a mãe, sem comentar mais nada.
- Ele a deixará – preveniu a irmã – e com um filho,
certamente. Quando isso acontecer, sua vida vai tornar-se
um inferno. Que Deus tenha piedade dela.
Mas Leon não tencionava abandonar aquela moça
extraordinária, tão sincera e apaixonada. Anusia era a mulher mais excitante e provocante que já conhecera. E foi
então que ele teve uma idéia. Depois de uma noite insone,
ele se levantou cedo, atravessou a aldeia silenciosa até a
cabana do sapateiro. Bateu na porta de madeira e avisou
que desejava falar com Anusia. Para sua surpresa, foi Klementyna que abriu a porta. Ela lhe disse sombriamente:
- Anusia foi embora... para sempre.
- Como? Mas por quê? - perguntou Leon, a angústia
transparecendo na sua voz.
- O administrador Dambicki esteve aqui ontem à
tarde e levou-a ao solar, pensei que para falar com você,
mas não era para nada disso. O Pan David disse que ela
deveria deixar esta aldeia para sempre... que não tinha mais
lugar para ela aqui. O administrador trouxe-a de volta e
disse a todos nós:
- “Se ela dormir aqui esta noite, vocês perderão o
chalé e a bancada de sapateiro, inclusive o casamento da
outra será proibido”.
- O que aconteceu? – implorou Leon.
- Preparamos uma pequena trouxa com suas roupas,
seu vestido enfeitado, sua costura... e ela partiu à procura de
algum lugar para morar e trabalhar.
- Para onde ela foi?
- Quem pode saber? - ao dizer isso, a irmã recuou
para dentro da casa - o responsável por isso foi você! E
agora, peço-te que vá embora. Deixe-nos em paz, ou perderei também o meu noivo e a cabana.
399
Leon voltou para casa desesperado, correu para os
estábulos, pulou num cavalo já selado e destinado ao passeio matinal do Pan David. Esporeando-o cruelmente, galopou pela estrada que Anusia devia ter seguido, chamava-a
em vão.
Era uma trilha estreita, se estendia por clareiras floridas e perdia-se na imensidão dos campos mazovianos. Ao
chegar ao ponto em que não mais se podia avistar outra
aldeia, ou sequer habitação, ele compreendeu que Anusia
deveria ter seguido por outro caminho para o seu exílio.
Leon inclinou-se sobre a cabeça do cavalo e chorou
muito... a perda do seu amor pela intransigência do pai. Os
primeiros quatro dias foram sombrios, porque o pai se mostrava visivelmente contrariado com o comportamento dele,
mas não lhe dirigira qualquer palavra de recriminação. Stephan mostrou-se solícito e condoído da sorte do irmão.
- Ela era muito bonita e inteligente – comentou.
- Alguma vez já conheceu o amor? – perguntou-lhe
Leon. O amor de verdade, por uma moça maravilhosa?
- Oh! Não – respondeu Stephan prontamente – ainda
não sei o que é.
Cavalgavam em silêncio rumo à cidadezinha de Mazowsze, residência da família. Triste e desgostoso com a
atitude do pai em relação ao seu envolvimento com Anusia,
o moço resolveu voltar para Warszawa e procurar o amigo
Mariusz Zagloba. O pai não se pronunciou a respeito.
A recepção na capital não poderia ser melhor.
- Então você voltou?– falou contente o velho amigo.
- Sim, desentendi-me com meu pai. Procuro a sua
proteção – respondeu Leon acabrunhado.
Pan Zagloba hospedou-o na sua casa e planejou darlhe trabalho no seu gabinete; mas uma inesperada ordem,
vinda do Ministério da Fazenda, onde exercia a função de
400
vice-ministro, designava-o para uma viagem a Paris, para
resolver negócios urgentes, referentes ao Ministério.
Este fato fez Zagloba mudar de planos em relação a
Leon. Tinha parentes em Lubartow, cujo proprietário atual
era o conde Stanislaw Lubartowski, seu cunhado, e foi para
lá que enviou o seu jovem protegido, munido de uma carta
de recomendação à sua irmã Zofia e a seu cunhado. Encontrava-se também na herdade o filho mais velho do casal,
Ambrozy, que voltara recentemente da guerra na Criméia.
Seriam uma boa companhia um para o outro.
Leon e Mariusz Zagloba despediram-se na manhã
seguinte, cada um seguindo o seu caminho.
***
O aposento de Leon era bastante espaçoso e alto,
com as paredes caiadas de branco e teto de madeira. As
janelas e a porta estavam embutidas em grossos muros, o
que lembrava, na realidade, um velho parlatório, ou sala de
reuniões, ou ainda, um recinto de orações.
O jovem, já em excelente disposição, levantou-se
cedo, lavou-se e penteou-se com cuidado, vestindo-se em
seguida. Debruçou-se pela larga janela de seu quarto. A
varanda, com fundação de pedras, era ainda mais alta do
que o aposento. As escadas levavam para o andar superior,
onde pessoas caminhavam pesadamente e conversavam.
Ao abrir a porta para o jardim, Leon avistou o parque, que não notara na noite anterior, devido à escuridão. A
área arborizada era extensa, descia da elevação, onde estavam localizados os quartos de hóspedes, para abaixo do
solar de dois pavimentos, rodeado de plantações e duma
grande piscina de água cristalina.
A casa grande era de madeira, com reforçados alicerces de pedra que deviam sustentar antigamente alguma
outra construção maior. No parque alinhavam-se avenidas
401
largas, que seguiam para o campo e os distantes matagais.
Uma dessas alamedas tinha em volta bancos de madeira,
que estavam cobertos de folhas secas, molhadas pela chuva
da noite. Todas as vias e ruelas estavam cobertas de neblina
úmida, que para Leon, possuía um encanto místico. Com
prazer vagueava pelos longos caminhos laterais, não encontrando viva alma.
Enrolado na sua capa impermeável, sentindo o calor
ameno de outono, estava feliz, inebriado e saciado com a
saúde física e serenidade da alma. Cantava à meia voz, para
si mesmo, uma canção alegre, um tanto sem nexo quanto à
letra. Já havia esquecido o seu drama de amor. Parecia-lhe
que fora apenas um sonho.
Pobre Anusia! Só ela estava amargando o seu deslize amoroso. Sem lar, sem trabalho, carregando no ventre o
fruto deste amor ocasional, repudiada pela família, vagava
pelas aldeias à procura de alguém que a acolhesse. Esse era
o destino da mulher na sociedade patriarcal.
Uma das ruas arborizadas com carvalhos seculares
levou Leon do parque para a sede da fazenda. Entre paióis,
pilhas de trigo, estábulos, cavalariças, monturos de adubo e
esterqueiras. Lá havia já muitas horas, as pessoas estavam
atarefadas, e quando ele passou foi cumprimentado com
grande reverência. Saiu rapidamente desse local de trabalho; e não se sentiu bem com a demonstração de servilismo
dos camponeses. A servidão tinha sido abolida em 1863 e
ele era adepto e defensor do código Napoleônico: “ de Liberdade e Igualdade do Homem”.
Caminhando por acaso, entrou no campo de hortaliças e depois num viveiro de pássaros. Noutro cercado de
arame passeavam as galinhas, ciscando e cacarejando, enquanto os galos desfilavam imponentes, anunciando vez por
outra a sua autoridade com comunicado barulhento.
402
As galinhas d´angola gritando: Psiakrew! Psiakrew!
caminhavam em fila atrás do seu rei, fazendo grande alarido. As peruas grasnando, vasculhavam a terra atrás de
minhocas, enquanto os perus eriçavam a sua plumagem
dourada e abriam a cauda em leque, gaguejando os gritos
selvagens, com mania de grandeza. Um magnífico pavão
pousava na cerca, imóvel como se esculpido em bronze
multicolorido, seguro da beleza das suas penas e do brilho
metálico da sua crista.
As desleixadas marrecas beliscavam a comida, sujando os bicos, patas e barrigas no cochinho baixo de madeira. Os gansos emitiam grasnidos roucos de admiração
sobre tudo, não entendendo nada. Nesta comunidade havia
tanta vida surpreendente que Leon formalmente ficou distraído observando aquele curioso mundo das aves.
Uma cena muito cômica veio atrapalhar a sua contemplação. Apareceu nas proximidades dos viveiros e dos
galinheiros uma senhorita delgada, magra, flexível como
uma vara de marmelo, hóspede ou pensionista da mansão.
Saiu da casa onde Leon havia pernoitado; era com certeza,
recém-chegada da cidade, parente de algum oficial, porque
de maneira citadina ficava surpresa com tudo o que via na
fazenda; parava perto do cercado, enchia de perguntas todos
que passavam por perto dela.
Descalça, e com as saias arregaçadas até os joelhos,
observando tudo, a jovem entrou no meio das galinhas
d‟angola, cujo bando todo pôs-se a gritar. O que ela fez a
esse espécime africano, não se sabe. De repente, aconteceu
um fato inesperado e curioso: o líder mais velho, de pescoço inclinado, desproporcional, e pequena cabecinha azul,
de crista eriçada, o paxá daquele barulhento harém, jogouse em cima da frágil senhorita, com as garras afiadas e o
bico perigosamente aberto.
403
Pulava do chão até a cintura da jovem, muda de espanto. A cauda da ave, sempre virada para baixo, agora
tornou-se mais uma arma do atacante feroz. A saliência
azul da cabeça, inclinada para trás, era uma nova garra para
ataque. O estridente grito das galinhas d´angola, praguejando:
-Psiakrew! Psiakrew! Psiakrew! - e o ataque súbito
desta colônia cinzenta, que com inúmeras garras, esporões e
bicos, apavorou tanto a jovem que com grito de pânico, que
abafou até o barulho da ave, lançou-se à fuga. Pernas,
mãos, cordões, cintos, fitas, tranças, babados da calçola,
voavam no ar, e o choro desesperado enchia a atmosfera de
outono. A ave não se deu por vencida, não se deixou iludir
com esta demonstração de capitulação, mas atirou-se na
corrida atrás da menina em fuga, com gritos do bando, que
cada vez mais enchia-se com perigosos acentos de guerra.
Apavorada, a jovem correu rumo às acomodações
da casa, cada vez mais rápido. Finalmente chegou à larga
varanda, do lado do pátio. Gemendo e chorando chamava
por socorro, subindo as escadas e os corredores, até que no
alto, bateu a porta atrás de si. Silenciou, afinal, na segurança do quarto. A ave pintada ainda nem aí parou.
Correu valente atrás da vítima até a varanda de alicerces de pedra, pulou para dentro, foi até a escada e parou
ameaçadora perante os degraus, onde a perseguida tinha
sumido da sua vista, e por muito tempo ainda anunciava ao
mundo a sua vitória, desafiando a todos com o grito: Psiakrew! Psiakrew!
Trabalhadores, mulheres dos cômodos, moças da
fazenda, há muito tempo que não tinham tal diversão. Alguns homens deitavam no chão, de tanto rir, olhando a cena. Mesmo quando a ave, de rabo curto, cheia de triunfo e
glória, voltava da perseguição até a sua comunidade, a habitante da cidade grande não ousou sair do quarto.
404
O frio do outono, no entanto, penetrou nos ossos de
Leon, que observava a cena, divertido. Resolveu voltar ao
solar, conhecê-lo de dia, beber e comer algo quente. Tinha,
apesar de tudo, sincera intenção de repartir as impressões
matutinas com a senhorita Angelina, e acima de tudo, saber
dela quem fora tão valentemente atacada pela ave africana.
Pensava até em conhecer a parte vencida e trocar
idéias a respeito de galinhas d´angola. Em silêncio deu a
volta no solar, porém, não encontrou ninguém. Todas as
janelas estavam ainda fechadas, e o silêncio imperava no
interior da casa. Todos ainda estavam dormindo.
A residência da fazenda era muito grande, com o
telhado em quebradas. Embaixo deste telhado, estendiam-se
ramos de trepadeiras floridas. Encontrando as já conhecidas
escadas, Leon subiu e entrou na varanda principal; a porta
do lado da varanda estava aberta, levava para a sala de jantar, onde na véspera tinham jantado. Estava vazia. E já fora
retirado tudo que lembrava a festa do dia anterior. O fogo
ardia no fogão de pedras, e a chama aquecia o recinto.
A visão do crepitar da lenha, diante do frio da manhã, proporcionava um bem-estar melancólico. A contemplação do fogo trazia à mente recordações, devaneios, sonhos, o sofrimento da alma, pensamentos do passado, turvas resoluções do insensato, do vivido e do sonhado – constituía o verdadeiro peso da existência, é como olhar ao redor e reconhecer o jugo da sorte.
Pois ele tinha vivido um amor intenso, sonhado com
o futuro ao lado da bela Anusia, e no entanto, tudo ruiu,
como ceifado pelo destino.
Mas esses momentos de nostalgia foram logo perturbados e ele teve uma pausa nos seus pensamentos. A
porta abriu-se e entrou na sala de jantar a jovem Angelina
em pessoa. Vestida com desabilee - que na verdade era uma
camisola curta e transparente.
405
Dormiu, pelo que parecia, próxima ao refeitório e
veio direto da cama esquentar-se ao fogo. Calçava macias
pantufas sem meias, os cabelos soltos emaranhados. Parada
em frente do fogão, Angelina começou a fazer exercício abaixava e espichava -se, flexionando os braços e as pernas.
Certamente, no intuito de se aquecer ao fogo, levantava a
curta camisola e de novo cobria-se quando esquentava de
mais. Cantarolando e balançando-se no ritmo da canção,
penteava os longos e dourados cabelos.
Executava com a perna direita e a esquerda leves
passos, em direção ao fogo, como se estivesse só, em cena,
e dançava em ritmo lento, para a alegria da platéia sentada
abaixo, no andar térreo.
Leon estava fascinado com este espetáculo, mesmo
que não estivesse sentado no rés do chão, como os outros,
mas no interior da sala. Nunca teve diante de seus olhos
formas de mulher tão harmoniosas e belas, de carnes firmes, juvenis. Cada movimento da junta do corpo da moça
era pleno, de fascinante encanto. Todavia, era embaraçosa
demais a longa exposição da jovem beleza. Portanto, o moço, depois de refletir, tossiu e falou alegremente:
- Temo que o seu cabelo possa pegar fogo, então... –
não teve tempo para terminar a frase, alertando-a sobre o
perigo do fogo, porque Angelina deu, de repente, um grito
igual à menina que fugia da galinhola, e correu para a porta
com tanto ímpeto, que por pouco não a arrancou das dobradiças. A velha e deformada porta ainda durante muito tempo balançou e gemeu nos apavorados ganchos.
O fogo da lareira parecia contorcer-se, estourando
de rir com redobrada força, como se lá no fundo realmente
estivesse uma multidão muito alegre aplaudindo a peripécia
de Angelina. Leon não sabia se continuaria sentado no
mesmo lugar, ou se envergonhado, levantava e ia embora.
406
Ficou. O velho empregado Wojtus viu o hóspede
sentado no sofá, preocupou-se, quase chorou:
- Mas como! Ainda não trouxeram o desjejum, e o
visitante, querido amigo e parente dos senhores, espera? –
questionava o mordomo.
Ocupou-se logo em mandar servir o café da manhã.
Trouxeram cestas com broa de centeio, pão doce,
biscoitos, brioches, mel, confituras, conservas, sucos, omelete de ovos, salame, fatias de presunto, café com leite,
manteiga e queijos. A mesa parecia posta para banquete.
Leon estava com fome, portanto, deixando de lado a
boa educação, não esperou pelos hospedeiros, começou a
servir-se das delícias que estavam sobre a mesa. Ao perguntar se ninguém da casa tinha levantado ainda, o velho
Wojtus respondeu:
- Todos estão dormindo ainda, a senhorita Angelina
já tinha levantado, mas voltou para a cama porque não se
sentia bem.
- Verdade? Ela adoeceu? – afligiu-se, como se não
soubesse de nada.
- Parece... dor de cabeça. Febre, por causa da mudança do tempo - respondeu o mordomo.
Mas nem todos estavam dormindo, porque Ambrozy, filho dos proprietários e amigo de Leon, entrou na
varanda e encaminhou-se à sala de café. Num minuto estava sentado à mesa e comia com grande apetite.
Após ter saciado a fome, levantou-se e dirigiu-se à
sala ao lado, onde encontrou Wojtus, ao qual perguntou:
- Onde está a senhorita Angelina? Ainda dorme?
- Sim, a nobre senhorita parece hoje adoentada.
- Está de cama?
- Deus nos livre! Não está acamada, mas indisposta.
- Entendo! Pensei convidá-la para cavalgar conosco!
Então, Leon, vai comigo? - perguntou Ambrozy.
407
- Mas claro que vou!- respondeu Leon prontamente.
Saíram ruidosamente para o pátio pavimentado com
pedras. As cavalariças localizavam-se no final desta área.
De portas abertas, o cavalariço Jedrek esperava já com os
cavalos selados, prontos para montar. Ambrozy aproximouse do belo cavalo castanho, acariciou o animal no focinho e
passou a mão no pêlo liso e brilhante. Tinha lágrimas nos
olhos e a felicidade estampada no rosto.
Musculoso, delgado e forte, o corredor de quatro
anos estremecia debaixo da sela e batia com a pata nas pedras do pátio. Ambrozy pegou as rédeas e pulou na montaria. Leon acompanhou-o e saíram num galope veloz, pelo
longo caminho cheio de curvas e desvios. Cavalgaram a
manhã toda pelos campos verdes e floridos; voltaram esfomeados e sedentos.
O lacaio Wojtus saiu ao seu encontro e com voz
submissa convidou-os para o almoço, que foi servido ao
meio-dia em ponto. Eram seis pessoas sentadas ao redor da
grande mesa: o conde Stanislaw Lubartowski, proprietário
de Lubartow, a esposa, condessa Zofia, Ambrozy, Leon,
Jadwiga, sobrinha da condessa; Angelina, prima de Ambrozy, parente por parte do pai.
Uma grande floreira com arranjo de flores do campo enfeitava o centro. Os lacaios se esforçavam para que os
comensais fossem dignamente atendidos. Os sucos de frutas
e o vinho eram servidos pelo velho mordomo Wojtus. A
grande variedade de pratos com iguarias, dispostos ao longo
da mesa, atiçava o apetite. O almoço transcorreu em alegre
conversação entre os convidados.
***
A senhorita Jadwiga Wodzinska (Jadzia) já tinha
completado dezesseis anos, mas não conseguia passar da
408
quinta para a sexta série da escola pública em Lublin. E lhe
aconselharam que fosse para casa e aprendesse a cozinhar.
Os esforços do pai, Anton Wodzinski, alto funcionário público em Lublin, não adiantaram nada, porque realmente Jadzia não se habilitava para a sexta série, porquanto,
tudo o que a professora ensinava, mesmo que ela ouvisse,
imediatamente saia voando da pobre cabeçinha.
O infeliz pai ficou furioso e não queria nem olhar
para esta atrapalhada criatura. A mãe, Valéria, mandou a
incorrigível “burra” para a mansão de verão da irmã Zofia,
condessa Lubartowska. Assim, pelo menos por um pouco
de tempo, ela desapareceria dos olhos do pai e do seu pesado punho.
Justamente foi esta senhorita que Leon viu, quando
ela fugia do ataque da vingativa galinha d`angola. Jadzia
tinha uma qualidade que a justificava, tocava piano com
paixão. Nada entrava na sua cabeça, só a música. Podia
tocar o dia todo, não comendo nem bebendo nada – podia
não dormir, e nem saber se estava viva, apenas queria que a
deixassem tocar piano. Portanto, tocava...
Os pais gastavam fortunas com os honorários dos
mestres. Estes mexiam a cabeça e unânimes garantiam: ela
tinha uma habilidade extraordinária e um ouvido assombroso. Inaudita memória para a música, um verdadeiro talento musical.
A jovem Jadzia não tinha ambição, ela tocava só
pelo amor à música. Embriagava-se com o som como um
bêbado com aguardente. Sua vinda para Lubartow foi providencial, pois no solar havia um piano antigo, mas de cuja
existência ela não sabia, e a infeliz andava vagando pela
propriedade como uma ovelha perdida.
Passados alguns dias da sua permanência na mansão, a tia Zofia reparou que Jadzia, quando sentada à mesa,
mexia automaticamente com os dedos sobre a mesa e utili409
zava um fictício pedal. Lágrimas caíam dos olhos da “banida”, quando também simulando, tocava na mesa do escritório do tio Stanislau na ausência deste.
A jovem Angelina falou sobre a saudade de Jadzia
pelo seu piano e todos da casa começaram a pedir à condessa a permissão para que ela pudesse tocar no piano antigo da mansão.Tia Zofia, com alguma oposição, consentiu,
e a menina Jadzia imediatamente começou a tocar... a tocar... Era-lhe permitido executar a sua arte, mas nas seguintes condições: 1º - antes do almoço; 2º - quando não
houver visitas; 3º - quando ninguém estiver dormindo; 4º quando ninguém protestasse.
Leon e Ambrozy, voltando do passeio pelos campos,
ao entrar no grande salão, ouviram, maravilhosamente executada, a Polonaese de Chopin. Padre Lourenço, que almoçara na mansão, informou aos moços quem tocava, e contou
em detalhes a história de Jadzia, porém recomendou rigorosamente para que não a atrapalhassem, que sentassem quietos no salão de jantar e tomassem alguma bebida.
Mas os dois heróis que voltaram do passeio felizes
e bem-humorados, estavam com outras idéias, resolveram
justamente o contrário; queriam conhecer de perto a jovem
pianista. Ambrozy foi o primeiro a abrir a porta da esquerda
do salão, e puxou consigo o amigo. Leon imediatamente
reconheceu nela a vítima da perseguição da ave africana.
Estava parada em frente do antigo piano, atemorizada como uma pensionista com a entrada dos dois jovens
cavalheiros. Um deles era... Oh, desespero! Ambrozy, seu
primo, herdeiro de Lubartow e de todas as aldeias próximas. Fez uma reverência diante dos jovens e com tímida
expressão, deu-lhes a mão, que eles apertaram com carinho.
Apresentou-se melhor ali do que na fuga pelo pátio.
Era uma adolescente esguia, mas já apresentando
formas adultas. Tinha as pernas e os braços compridos, ca410
belos longos, louros, arrumados numa grossa trança. Nos
olhos azuis uma expressão particular, profunda, assombrada, como se não fosse deste mundo.
Ao insistente pedido de que não deixasse de tocar,
Jadzia ficou pálida como cera. Virou-se para o lado e mexia
com os dedos desesperada. Leon ficou condoído da adolescente. Lembrou-se que ele tocava piano com a mãe toda
tarde, a quatro mãos, e destas lições de música adquiriu
considerável experiência ao piano.
Propôs a Jadzia:
- Você não gostaria de tocar comigo a quatro mãos?
“A dança Húngara” de Liszt? – música que ainda lembrava
bem de memória. Ela concordou com aceno da cabeça. Sentaram os dois ao piano e tocaram. Assim que começaram, a
jovem readquiriu não só o domínio sobre si, mas dominou
também o parceiro – não falando da primazia que detinha,
ao recitar a peça.
O semblante da jovem transformou-se, reviveu, iluminou-se, ficou bela. Sempre que se voltava para o companheiro do piano, um invulgar brilho, o resplandecer de uma
inteligência superior assomava - e o gênio da música ardia
nos seus olhos azuis. Vieram ao salão todos os moradores;
sentaram-se nos sofás e ouviram a música extasiados.
O concerto musical foi interrompido pelo lacaio, avisando que a mesa do jantar estava posta. Jadzia suspendeu as mãos das teclas, levantou-se, obediente, silenciosa, e
com mesura saiu do salão para o seu quarto. Durante o jantar, Angelina interessou-se pelos assuntos discutidos à mesa, só estava distante em relação a Leon e tratava-o com
frieza e soberba. Evitava olhar para ele, e quando virava o
rosto para o seu lado, as pálpebras cobriam os seus olhos.
Leon queria esclarecer essa situação incômoda e
não se permitia o menor sorriso ao encará-la. Relatava alegremente aos presentes a cavalgada da manhã e de propó411
sito colocava-se em situações cômicas, para com o riso,
afastar o mal-estar entre os dois, mas não teve sucesso.
Num certo momento, o moço ficou profundamente
surpreso, pois quando procurava a paz entre os dois, ela,
encontrando-se perto do armário, atrás das costas dos outros
comensais, mostrou-lhe a língua, tão comprida quanto conseguiu, fazendo careta ao mesmo tempo. Essa vingança
incomum praticada por Angelina foi só por um momento,
após o que, com passos lentos, ela retirou-se da sala. Leon
foi atrás dela.
- Senhorita Angelina - disse - esqueça o acontecido,
sejamos amigos sinceros. Peço-lhe por favor.
- De onde tens tanta certeza da sinceridade?
- Porventura não será melhor a senhorita ter aqui – e
no mundo, um bom amigo?
- Seria melhor, com certeza - respondeu toda rubra ter um amigo. Mas dá para acreditar num homem?
- Não acredite nos homens, mas por favor, acredite
em mim...
- Veremos... - respondeu rindo, mas envergonhada.
- Em todo caso, para o começo, paz!- disse Leon, estendendo-lhe a mão
- Paz!- respondeu ela, apertando a mão estendida.
Entre uma e outra excursão pela fazenda, Leon dava
largas à sua curiosidade, queria travar conhecimento com a
vida na sua autenticidade e essência. Escapulia para os palheiros e participava na grande operação da debulhada do
trigo nas trilhadeiras movidas a força animal, sentava no
celeiro ou nas cavalariças e estábulos e ficava olhando, ao
aterrarem os montes de batatas e no corte de repolho para
conserva. Os grandes celeiros ficavam abertos durante as
colheitas.
As máquinas faziam barulho com as rodas puxadas
por cavalos e o vento soprava nas palhas e folheiros, le412
vantando extensa poeira. Os homens gritavam em voz alta,
apressando os cavalos e dando ordens aos trabalhadores,
tentando sobrepujar o ruído das máquinas. Mas apesar dos
zunidos, rangidos e gritos, vencia sempre a alegre cantiga
das moças que recolhiam a palha do chão amarrando-a em
feixes.
Leon, para ter oportunidade de agradecer à jovem
Angelina pelo trabalho de passar sua roupa de passeio, ia
procurá-la no salão, quando viu-a descendo a escada, cantarolando. Rápido, entreabriu a porta do seu quarto e apareceu no portal.
Ela gritou de espanto, quis correr... mas ele pediulhe para que entrasse no dormitório, porque tinha uma coisa
importante para lhe dizer. Angelina, olhando para todos os
lados, passou para dentro na ponta dos pés. Assim que a
porta fechou-se, Leon agarrou-a pela cintura e começou a
dançar defronte do espelho. Ela falava baixinho:
- Alguém pode ouvir o barulho, ou pode entrar e aí
eu estou perdida...
- Pshh... Não fale. Apenas me abrace e aperte com
força. Ninguém vai nos ver - disse, rodopiando com ela.
- Solte-me, alguém pode entrar e ver que eu estou
com você no teu quarto... - implorava a moça.
Oh!, mas nada disso adiantou, dançavam na ponta
dos pés silenciosamente, sem parar. Quando ela começou a
pedir com insistência para que a largasse, senão estaria perdida a sua reputação e a sua virtude, ele fechou seus lábios
falantes com um longo beijo.
Ela emudeceu por um longo e inesquecível momento, no peito o seu coração parou do insaciável prazer,
tudo ao redor desapareceu. Mas a jovem Angelina acordouse da embriaguez do amor e com forte empurrão do cotovelo, afastou o importuno dos seus lábios, e de olhos fechados sussurrava:
413
- Por favor, o senhor não me comprometa, não me
faça nada de mal!
- Mal? E o amor é por acaso mal?
- Peço de coração, não me faça mal.
- Então a senhorita vá, avarenta... repulsiva... mas
antes... só uma vez... não aqui perto da porta... venha até a
cama... sente-se aqui...
Ela não resistiu a ele... Leon pôs a mão abaixo da
cintura dela. Angelina o abraçou enquanto ele pousava a
cabeça sobre seus seios.
- Preciso tanto de você - disse ele.
Leon aproximou-se mais, e seu corpo tornou-se tenso e rígido, ela debruçou-se sobre ele e os dois caíram na
cama. Leon começou devagar, com carícias, um contato
suave, ele foi explorando a sensibilidade, os sentidos. E foi
desenvolvendo e aumentando para um ritmo frenético, até
se tornar desvairado, selvagem, uma orgia de prazer. O
membro duro de Leon acariciava e arremetia, enchia-a por
completo, até que ela sentiu vontade de gritar com o prazer
intenso. Ela se achava no centro de um arco-íris. Sentia-se
arrebatada por um maremoto que a elevava mais e mais.
Houve uma súbita explosão dentro dela e todo o seu
corpo começou a tremer. Gradativamente, a tempestade se
desvaneceu. Angelina fechou os olhos e puxou Leon contra
si, sentindo o coração dele bater contra o seu. Pensou:
- Agora eu sei. Pela primeira vez, eu sei como é o
amor. Mas o que será de mim, agora? Será que ele vai casar comigo? Se não me quiser, estarei perdida, pois não sou
mais donzela - raciocinava ela.
No entanto, o seu sorriso perplexo era feliz, e os
seus lábios encontraram novamente outros lábios, passaram longos momentos nessa despedida. Afinal, soltou-se,
acenou com a cabeça e silenciosamente abriu a porta; correu alucinada pelo corredor, em direção ao seu quarto, jo414
gou-se na cama aos prantos. Chorava pela sua virgindade
perdida e pela incerteza do seu futuro. Naquela noite Angelina não dormiu.
A lembrança daquele encontro reacendeu a sua inquietação. Mas ela ansiava por ele. Fechou os olhos e começou a relembrar os momentos de prazer vividos tão intensamente. Estava perdidamente apaixonada. Revirou-se
no leito; grossas lágrimas cairam no seu travesseiro...
Leon sentia a felicidade transbordando no seu peito,
como se o beijo dado e recebido corresse ainda em todas as
suas veias, queimando, até a medula dos seus ossos. Novamente estava excitado. Olhou pela janela, não havia ninguém ali. Refletiu:
- Podíamos nos beijar e fazer amor pelo menos por
mais uma hora. Agora não vai aparecer uma oportunidade
tão logo.
Mas ele enganara-se redondamente. Tinha alguém
que espionava diligente esses encontros ocasionais e viu
bem os beijos trocados, abraços e os gemidos de prazer, os
quais não entendia - era a jovem pianista. Quando Angelina
saiu da casa da tia Zofia, Jadzia saiu às escondidas e foi
atrás dela até as escadas. Jamais para espionar, mas para
aliviar o seu coração.
Mas viu e ouviu do seu esconderijo na escada
quando Angelina conversou com ele e entrou no seu quarto.
Impulsionada por uma indomada curiosidade, Jadzia, em
silêncio e com agilidade de um gato, chegou perto da porta
de Leon e, pelo buraco da fechadura, viu a dança, os abraços, os beijos e o rolar dos seus corpos na cama.
Que terrível explosão abalou o seu peito, queimando na profundidade da sua alma. Parecia-lhe que não ia
agüentar, que iria começar a bater com os punhos na porta,
gritar aos céus, arrancar os cabelos, ou sumir no espaço...
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Embora Jadzia não possuísse encantos que chamassem a atenção de Leon, ela sentiu os efeitos das flechas de
cupido. Assim que o viu, ficou fascinada. Eletrizante calafrio passou-lhe pelo corpo: - É esse! – pensou ela. Quando
Leon sentou perto dela para tocar o piano a quatro mãos,
louca paixão, verdadeiro vulcão explodiu no seu coração de
adolescente.
Mandada embora da escola, despedida da casa paterna, não sabia sequer distinguir um sentimento que chamavam de amor. A jovem simplesmente adoeceu no profundo da alma. Seu estado era uma incessante saudade, embriaguez que levava ao total domínio da razão. A adolescente vivia num turbilhão celeste. A figura de Leon perdia-se, esvaecia-se em suave e lânguida nuvem azul.
Quando ele não estava, o mundo ficava vazio, árido,
surdo, frívolo, cheio de escuridão e enfadonho. Não havia
força que pudesse desviar os pensamentos e o sentimento
de Jadzia em outra direção. A voz dele, ouvida de longe,
ressoava no seu ouvido como uma melodia singular.Ensaiava, às vezes, traduzir, transferir para a música o timbre da
sua voz alegre ou triste. Tocava para si mesma, algo que
ninguém entendia. Jadzia guardava o seu segredo a sete
chaves, ninguém sabia.
Tinha certeza que morreria desta, para ela, incompreensível doença que tomou conta de sua alma, ao defrontar-se com este estranho homem que a desconhecia.
E, naquele dia, quando Angelina dançou, beijou e
amou-se com Leon, Jadzia desceu as escadas pálida, como
um defunto, como fantasma noturno, para chorar às escondidas. Agora compreendeu porque Leon nunca olhava para
ela, não conversava como com as outras pessoas. Ela viu,
pela primeira vez, alguém se beijando e amando, mas entendeu bem o seu significado.
416
Essa visão lançou-se sobre ela como dardo do inferno, penetrou no seu coração, igual farpa de três ganchos,
a qual não é possível arrancar do peito sem feri-lo mortalmente. Apertava os olhos, desfalecia, agonizava diante desta perspectiva. Enfiava o lenço na boca para não gemer...
não soluçar, pois essa visão sempre e sempre estava diante
de seus olhos.
Alguns dias depois, chegou a Lubartow uma carta,
endereçada à Angelina. Wojtus, o lacaio, recebeu-a e dirigiu-se para entregá-la à destinatária. Era a carta do seu pai.
A jovem, após lê-la, ficou pálida e chorou muito; o pai
chamava-a de volta para casa em Lwow, mas a moça não
estava nada animada com a notícia. Não queria voltar. Tia
Zofia aconselhou-a a acatar as ordens paternas. Não havia
outra alternativa, portanto, Angelina arrumou as malas e
todos os seus pertences.
O dia da partida chegou rápido. Era ainda muito
cedo quando uma carruagem, puxada por quatro ágeis cavalos, encostou em frente da mansão. Wojtus comandava o
carregamento dos baús. Enquanto isso, entraram para a sala
de jantar todas as pessoas da família: a condessa Zofia, o
conde Stanislau, seu marido, o tio Miguel, gordo e baixo,
ainda sonolento após uma noite de orgia, as duas tias solteironas Antonia e Eva, a sempre sonhadora Jadzia, Ambrozy,
Leon, triste e abalado pela partida de Angelina, pois estava
começando a amá-la; fariam-lhe falta o seu amor e seus
longos beijos. Finalmente apareceu Angelina, em prantos.
Levava nas mãos a maleta com os principais pertences. Entre abraços, recomendações à família, a doce Angelina voltou para Lwow.
Lá chegando, inscreveu-se, de novo, na faculdade de
filosofia, para continuar os estudos, que era o desejo do seu
pai e o motivo da sua volta. Os dias de férias passadas em
Lubartow ficariam na sua memória como uma experiência e
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uma doce lembrança, e se propôs firmemente a esquecer
Leon, pois não aninhava nenhuma esperança a seu respeito.
Jadzia, sem maldade no coração, viu que o destino
estava ajudando-a, afastando do seu caminho ao coração de
Leon a forte rival Angelina. Exultou de alegria intimamente. Correu para o piano e bateu as teclas furiosamente. Leon
que passava por ali naquele momento, olhou pela porta,
atraído pelo alto som do piano e dos acordes inéditos.
- Posso tocar com você a quatro mãos? – perguntou .
- Pode, se é esse o seu desejo – disse, trêmula.
Ele sentou-se no tamborete e colocou as mãos sobre
as teclas brancas daquele esplêndido e antigo piano. Bateu
com força uma, duas vezes. Ouviu o som perfeito do instrumento. O ressoar particular acordou a jovem do enlevo
em que se encontrava, esqueceu a sua insegurança. As suas
mãos tocavam-se na execução da melodia.
Ela transformou-se totalmente pelo encanto da música. Já não tremia, com o temor virginal, ao pensar na proximidade do homem que amava. Aprumou-se, instalou-se
melhor, como rainha no trono.
A tímida e indecisa mocinha converteu-se em audaciosa heroína, a qual joga-se à luta com as prepotentes forças do sentimento. Executava a música dedicada ao belo
jovem que estava ao seu lado, e por quem nutria uma paixão avassaladora. Leon acompanhava-a, tocava, mas os
seus pensamentos estavam nos seus problemas recentes,
que era a partida repentina da jovem que estava começando
a amar. Batendo com as mãos firmes, a complicada e nervosa dança dos dedos ia desenrolando a meada de sua saudade por Angelina. Podia-se pensar que não ouvia a música
executada pelas suas próprias mãos. Estava em outro mundo.
E, terminada a composição que tocavam juntos, as
mãos de ambos pousaram-se sobre as teclas, Leon ainda
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dedilhava os últimos acordes. De repente, sentiu, com profunda surpresa, que Jadzia, com a mão direita estendida, em
vez de tocar as teclas pretas ou brancas, colocou-a em cima
das suas mãos.
Fria como gelo pela emoção que tomava conta dela,
tremendo, apertou a mão de encontro às teclas – os dedos
magros e finos, com força, agarraram os dedos de Leon.
Este ficou sentado por alguns momentos, sem se mexer,
rendendo-se a este aperto, completamente alheio, sem saber
o que fazer.
Levantou os olhos para o rosto da jovem, que tinha
nos lábios um sorriso tênue e lágrimas nos olhos. Segurava
fortemente a sua mão. Leon retirou a mão com cuidado e
delicadeza. Olhando para ela, adivinhou a razão desse procedimento. A reação ao inesperado ato da pianista, confundiu e desconsertou-o. Daquele dia em diante, não viu mais
nela a adolescente ingênua e tímida, mas uma mulher jovem que desabrochava como uma flor.
Estava agora com dezessete anos. De porte delgado,
nariz delicado, a boca rubra, fronte alta e pensativa, cabelos
louros arrumados em longa trança e os olhos sonhadores da
cor de safira. Todo este porte evocava uma deusa esbelta e
bela. Pela primeira vez, Leon olhou-a com atenção redobrada. Seguidamente acompanhava-a ao piano, esmerandose em ressuscitar-lhe a alma ferida pela sua indiferença.
Uma verdadeira metamorfose realizou-se com Jadzia. De uma menina feia, apagada e triste, transformou-se
em uma linda donzela. Emanava dela agora o encanto, a
ação profunda, talvez inconsciente, de um temperamento
exuberante, escondido até agora, numa concha de timidez.
Estava despertando para o mundo, para a vida. Ela mesma
não se reconhecia naquela menina tímida e assustada.
Leon logo esqueceu Angelina, que fora apenas uma
aventura passageira. Ficou seduzido por esta nova Jadzia.
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Apaixonou-se por ela. Amava o seu sorriso, o seu andar, a
sua voz, o seu olhar. Como também adorava os seus gracejos bondosos e amigos – suaves e aprazíveis. Esperava ansioso por suas silenciosas confidências; pelas conversas
com ela sobre o cotidiano ou fatos invulgares. Não havia
nela nada de pecaminoso, tudo era ingenuidade e amor.
Falava-se em casamento.
Como Jadzia não tinha grandes posses, a família e o
conde Lubartowski decidiram dar-lhe um dote, resolveram
que o melhor seria dar-lhe de presente a aldeia Kozlowka,
propriedade próxima a Lubartow. Assim seriam vizinhos
por toda a vida. Leon, ao encontrar-se sozinho com o conde
Lubartowski, pediu-lhe conselhos a respeito do seu compromisso com Jadzia.
- Devo ir a Warszawa comunicar o fato ao meu protetor Mariusz Zagloba e à minha família em Mazowsze? –
perguntou Leon.
- Sim! Esse é o procedimento correto – respondeu o
conde. Vá sem demora, utilize a minha carruagem; darei
ordens ao lacaio Wojtus a respeito, para que providencie
tudo para a viagem.
Muito se alegrou pela volta do seu protegido, já bastante envelhecido Mariusz Zagloba. Muito mesmo!
No gabinete oficial do Ministério da Fazenda, onde
Zagloba era alto funcionário, Leon foi procurá-lo, mas era
difícil conversar com ele, porque constantemente entravam
e saíam pessoas. Zagloba convidou o jovem para ir à sua
residência particular. No próximo dia, era um “Dia Santo”.
O moço anunciou-se logo de manhã. A governanta abriu a
porta e convidou-o a entrar, informando que infelizmente o
senhor vice-ministro iria atrasar-se um pouco, porque nesse
dia tinha muitas visitas importantes.
Leon entrou e sentou-se no canto da sala, conhecia
já esse grande aposento, o qual tinha saída para um pequeno
420
jardim interno. Galhos das plantas cruzavam as largas e
brilhantes vidraças das janelas. A porta para o próximo aposento, melhor, para o quarto de dormir, estava vedada por
uma pesada cortina de veludo bordô. A grande sala estava
mobiliada caprichosamente, havia móveis antigos, bem
dispostos, um grande tapete persa bem no centro. Na parede, um armário aberto, com livros de capas de couro e letras
douradas; diversos quadros pendurados na parede, com
retratos pintados por famosos artistas poloneses.
Quando Pan Zagloba chegou em casa, começou
perguntando ao jovem amigo sobre as impressões de sua
estada em Lubartow. Mas ele falou-lhe pouco a respeito.
Queria ganhar tempo para chegar ao assunto principal e o
objetivo de sua visita até ali. Veio solicitar algum emprego
rendoso, para poder fazer frente às despesas futuras. Leon
conseguiu esse trabalho, que ia render-lhe um bom ordenado, no escritório do seu protetor.
Trabalhava com afinco o dia todo. Conferia papéis,
contava, somava, anotava, fazia balanço, analisava montanhas de papéis que o vice-ministro trazia para casa. Leon
era inteligente, e o seu protetor incentivava essa capacidade
no trabalho.
Ganhava bem e economizava quase tudo.
Certa noite, quando fazia uma visita ao senhor Zagloba, tomou coragem para falar-lhe de Jadzia.
- Pan Zagloba, quando retornei das férias, o senhor
perguntou-me a respeito da minha estada em Lubartow; eu
desviei o assunto naquele dia. O senhor respeitou a minha
posição, mas quero-lhe falar agora.
- O que tem de tão importante?- perguntou admirado.
- Conheci em Lubartow uma jovem chamada Jadwiga Wodzinska – a moça impressionou-me muito, pela
sua beleza e candura.
421
Zagloba mostrou uma grande surpresa e perguntou:
- Wodzinska? De Lublin? O pai chama-se Anton e a
mãe Walerja?
- Mas como? O senhor os conhece?
- Ora! Ora! Walerja é minha irmã!
- Que surpresa agradável! - disse Leon contente –
pois eu e Jadzia conhecemo-nos na mansão da condessa
Zofia, sua irmã, onde Jadzia passava as férias de verão.
- Então Jadzia estava passando férias? E a música?
Ouviu-a tocar piano? – perguntou o tio.
- Nós costumávamos tocar a quatro mãos, ela toca
maravilhosamente bem, é uma criança ingênua e modesta,
que toca piano tal como cantam os passarinhos... Dessa
convivência quase diária, surgiu um grande afeto, nos apaixonamos um pelo outro, pretendemos nos casar.
- Mas que belo romance! – divagou Pan Zagloba.
- Mas para isso preciso de dinheiro para poder arcar
com as despesas do casamento, para a roupa, móveis, casa e
demais necessidades. Eu sou sozinho. Fugitivo da casa do
meu pai. Não posso contar com ele, preciso trabalhar e ganhar dinheiro do qual necessito – desabafou Leon.
- Oh! Meu querido filho - disse enternecido – por
que não me falou antes? Jadzia é minha sobrinha e você o
meu protegido, não se preocupe com essa parte financeira.
Entre eu, condessa Zofia e Wodzinski, arranjaremos tudo.
Volte para Lubartow e marque a data do casamento - concluiu.
- Mas meu pai ainda não sabe, vou escrever para ele.
Devo solicitar-lhe que venha e peça a mão de Jadzia ao pai
dela para mim? – perguntou aflito.
- Sim! Sim! Esse é o costume - respondeu.
Leon escreveu a carta, despachou urgente para Mazowsze. Nela pedia desculpas ao pai pelo seu mau comportamento; pedia também que viesse, logo que pudesse à
422
Lubartow pedir a mão de Jadzia para ele, em casamento.
Marcariam a data para logo. O pai podia ficar em Lubartow, esperar a festa do casamento. E pedia também com
carinho a presença dos irmãos.
O pai de Leon, David, já quase com cinqüenta anos,
viúvo, cuidava da hospedaria e da propriedade rural com os
filhos. Durante muitas noites chorara escondido, sentia falta
de Leon, e também por sua teimosia. Quando recebeu a
carta, tremendo de emoção e alegria, começou a ler. Grossas lágrimas caíam-lhe dos olhos. Queria ver o filho, sentiu
uma saudade imensa dele. Estava magoado, sim, mas que
coração de pai não perdoa o filho?
Não resistiu. Respondeu a carta no outro dia, prometendo ir em breve para o noivado. Os irmãos iriam depois para o casamento.
Era primavera de 1848. Leon tinha passado quase
seis anos fora da casa do pai. Agora ia casar-se e continuaria longe dos seus. Stephan estava noivo de uma bela e rica
jovem, cujos pais eram comerciantes em Grudziadz, e a
irmã Marcela já tinha casado. Os irmãos mais novos trabalhavam junto com o pai.
A festa do casamento de Leon Gryczynski e Jadwiga Wodzinska foi um lindo acontecimento social, comemorado com banquetes, músicas e danças que duraram
três dias. Realizou-se na mansão em Lubartow, com a presença dos pais da noiva, Anton e Walerja Wodzinska, que
moravam em Lublin.
Anton descendia de uma antiga nobreza, não era
um homem rico, mas contava com uma pequena renda da
sua propriedade, perto de Lublin, além do seu salário generoso do Ministério da Fazenda, onde era um alto funcionário.
423
Mariusz Zagloba, tio da noiva, apareceu com um belíssimo presente, um jogo de jantar, café e chá completos,
com 180 peças, de valiosa porcelana chinesa.
Vieram, de Poniatowo, o conde Poniatowski com a
família. O príncipe Czartoryski que estava passando férias
em Pulawy, compareceu na festa com a esposa e filhos;
presenteou Jadzia com um lindo piano de cauda Kisting,
dádiva que mais a agradou. As famílias eram vizinhas de
Lubartow e se visitavam com freqüência.
Compareceram todos os membros da família do
noivo: o pai David; Stephan com a noiva; Marcela com o
marido; Jan, Roman e a avó Elzbieta.
Jadzia e Leon, depois do casamento, foram morar na
aldeia Kozlowka, numa bela residência, mandada construir
pelo conde Lubartowski, onde viviam muito felizes.
***.
No palácio do príncipe Czartoryski, em Pulawy, fora
programada uma grande festa para comemorar o Natal e o
aniversário da princesa Marcela. Compareceram, o conde
Poniatowski com a família, o conde Stanislau Lubartowski,
com a esposa Zofia, e personagens importantes, convidados
e amigos da família.
Um pinheirinho trazido do campo fora colocado no
lugar de destaque no grande salão, era a árvore de Natal.
Foi ornamentado com bolas de vidro multicoloridas, enfeites diversos, flocos de algodão imitando a neve e pequenas
velas acesas davam o encanto especial. Grandes e pequenos
embrulhos de presentes foram colocados embaixo da árvore. Crianças corriam em volta, curiosas e inquietas, esperando a chegada do Papai Noel.
Na recepção de Natal sempre havia muita música.
Jadzia fora convidada para tocar no antigo piano
Pleyel, todo em ébano lustroso, com teclas de marfim, relí424
quia da família. Tinha um som cristalino, extraordinário.
Fora colocado num lugar estratégico, no grande salão de
festas, que estava iluminado feericamente. Os hóspedes já
tinham se acomodado nas poltronas e sofás colocados em
volta do piano.
Jadzia adiantou-se; usava um vestido leve, branco,
com a cintura justa logo abaixo dos seios, cingida por uma
fita de veludo azul; os cabelos louros soltos, adornados com
uma flor. Pareceu indecisa por um momento, mas quando
se inclinou para ajustar o tamborete, exibiu tanta confiança
que ficou evidente que já estava no controle total.
Depois, sorriu para os convidados, fez uma leve
reverência e disse:
- Esta noite terei o maior orgulho em tocar para tão
seleta audiência composições como “Grande Polonaise”, a
“Balada em Sol Menor”, o “Concerto em Fá Menor” e a
“Valsa do Adeus”, do compositor polonês Frederyk Chopin.
Da numerosa platéia, ouviram-se sussurros de aprovação. Acomodou-se cuidadosamente, ajustando o vestido branco, experimentou a distância para o teclado e fez
uma longa pausa; depois, subitamente, ela projetou-se para
frente, as mãos ágeis, os dedos finos, tocando as cinco notas
suaves, que constituíam o tema de abertura.
Ela tocava maravilhosamente bem, alternando força
e delicadeza. A audiência não fez qualquer barulho, estava
um silêncio total. Quando a balada chegou ao fim, os ouvintes aplaudiram de pé, entusiasmados.
Jadzia inclinou-se graciosamente e agradeceu. Ela
tocou mais, com a delicadeza e inspiração que se podia
esperar. Leon veio acompanhá-la e tocaram a quatro mãos
músicas maravilhosas, que deixaram os espectadores extasiados. Depois, ela levantou-se e disse:
425
- É Natal! Tocarei como um presente especial para a
princesa Marcela, nossa anfitriã, a música que nós, poloneses, sempre adoramos cantar no Natal e que nos lembra as
reuniões nesta noite, em volta da árvore de Natal com a
família.
Logo em seguida, acordes reapareceram, suaves,
melodiosos, e várias pessoas começaram a cantar juntas...
Wsród nocnej ciszy glos sie rozchodzi
Wstancie pasterze Bóg sie wam rodzi
Czemprendzej sie wybierajcie
Do Bet leem pospieszajcie
Powitac Pana, powitac Pana ...
As pessoas ficaram comovidas. Lenços foram retirados das bolsas para enxugar as lágrimas de saudade, que
lhes escorriam pelas faces. Naquela noite todos se alegraram com as músicas tocadas por tão talentosa pianista. Foi
aplaudida de pé pelos distintos ouvintes.
***
Leon e Jadzia moravam na aldeia Kozlowka; o ordenado dele mais a renda da propriedade davam-lhes uma
vida tranqüila sem preocupações financeiras.
O casal teve seis filhos. O mais velho, Jakub, nasceu em 1849, em Lublin, na casa da avó materna. Desde
pequeno, adorava correr pelos campos, subir em árvores e
pescar nos córregos próximos. Freqüentou a escola primária
na aldeia natal; mais tarde, foi para Lublin, onde ficou hospedado na casa dos avós. Terminado o curso secundário, foi
para Warszawa continuar os estudos e trabalhar.
Já então estava com 21 anos.
426
Era hóspede e protegido da condessa Maria, casada
com o conde Miguel Poniatowski. No verão de 1870 passava as férias em Poniatowo, herdade da família, no solar
antigo. Estavam no grande salão, quando a condessa Maria
puxou uma cadeira para perto de Jakub e comentou:
- Você já está com 21 anos, portanto, precisamos arrumar-lhe um bom casamento.
Antes que ele pudesse fazer qualquer comentário, a
condessa, com o realismo que a caracterizava:
-Temos que lhe encontrar uma esposa com dinheiro. Tudo que você tem a oferecer é uma boa aparência e um
nome respeitável. A isso terá de acrescentar um bom dote
da moça escolhida. Reconhece a verdade do que estou dizendo, Jakub?
Ele não teve outro jeito, senão confirmar:
- Reconheço, mas que posso fazer?
- Dinheiro é tudo, onde vai conseguir dinheiro?
E a condessa respondeu por ele:
- Somente pelo casamento com a filha de algum rico
comerciante, ou de um nobre proprietário de terra.
Jakub protestou contra este arranjo, mas ela falou:
- A quem vai escolher, Pan Jakub? Não pode casarse na família de um magnata e não deve ficar à deriva, terminando por casar-se com a filha de algum pequeno nobre,
tão pobre quanto você.
- Morando num solar antigo, numa propriedade de
nossa família em Poltawa, na Ucrânia, existe um parente
distante, de nome Adam Poniatowski; ele é, como nós, isto
é, como meu marido, descendente direto de Janusz Poniatowski, é um nobre, mas com poucas posses, pois todos os
seus bens foram confiscados pelo governo russo, por seu
envolvimento em conspirações. Adam tem uma filha de 17
anos, de nome Jozefa - comentou a condessa.
427
Foi para lá que ela viajou com Jakub nos próximos
dias. Depois de uma semana de viagem, chegaram ao solar
da família. Pan Adam recebeu-os na porta.
- Querido parente, vim apresentar-lhe o meu jovem
amigo Jakub Gryczynski, de boa família, que eu gostaria
que fizesse parte da nossa. Ele veio conhecer sua filha Jozefa - disse a condessa Maria.
Entraram para a sala de visitas.
- Mas não seria justo com Jozefa - retrucou Adam, e
abriu a porta que ia para o interior da casa, chamando:
- Jozefa, minha filha, quero que se apresente dentro
de um quarto de hora na sala de visitas.
- Acho que Deus deve ter ordenado que o meu Jakub conhecesse a sua Jozefa. Esses dois jovens precisam
um do outro... È uma união determinada pelo destino - comentou a visitante.
- Mas acabei de conhecer esse rapaz, e ele ainda
nem viu a minha filha Jozefa – argumentou Adam.
- É verdade, mas às vezes as coisas são definidas no
céu, e esta é uma delas.
Passados alguns minutos, apareceu na porta uma jovem linda, esbelta, cintura fina, os cabelos castanhos presos em tranças, olhos azuis brilhantes. Um sorriso no rosto
bonito e um ritmo poético no andar. Vestia um vestido simples, de organza azul, de saia esvoaçante, que lhe realçava a
graça e a juventude. Jozefa adiantou-se para cumprimentar
a condessa e o moço que a acompanhava.
- Esta é sua parente, condessa Maria Poniatowska, e
este é Jakub Gryczynski, seu protegido.
Inclinaram-se cortesmente. Jakub, pegou a mão estendida de Jozefa e falou:
- Eu estou muito feliz em conhecê-la, senhorita.
- E eu também - disse - olhando-o firme nos olhos.
428
Alguma coisa lhe dizia que era este o seu príncipe
encantado. Ele correspondeu ao olhar com admiração.
A condessa beijou e abraçou a moça afetuosamente.
No dia seguinte, de manhã, os jovens sairam a passear pelo parque, e no final da semana reuniram-se com
Pan Adam e a condessa para confirmar a proposta.
- Desejo que o casamento se realize em meu palácio,
em Poniatowo, pois passei a amar esse rapaz como meu
filho e lhe desejo muito bem - assim decidiu a condessa.
Ficou acertado que o casamento seria dentro de trinta dias. Os pais de Jakub, Leon e Jadzia, deveriam comparecer às núpcias no castelo. Eles moravam agora na cidadezinha de Mazowsze, para onde se transferiram após a
morte de David, pai de Leon.
Jakub, após o casamento, foi morar no solar antigo
da família Gryczynski, nas proximidades da cidadezinha.
Era uma propriedade extensa, com diversas aldeias,
e bastante terra para cultivar. Ele era o primogênito e a ele,
por direito, pertencia a herdade.
X
A MALDIÇÂO DA PEDRA
A província de Warszawa (Varsóvia) estende-se na
baixada Mazoviana, nas duas margens do médio Wisla
(Vistula). A sua localização central favoreceu o seu desenvolvimento. O início da cidade-fortaleza de Warszawa alcançou o século XIII e XIV. No ano de 1413, o príncipe
mazoviano Janusz I transferiu a capital do principado dos
Piast, de Czersk para esta cidade.
E desde 1596 Warszawa passou a ser a capital da
Polônia, quando o rei Zygmunt III, Waza, mudou a residência real de Krakow para esta cidade, reformou e embe429
lezou o Castelo Real, que pertencera aos príncipes mazovianos. Entre os edifícios famosos, parques e monumentos
históricos de Stare Miasto (Cidade Velha), estão as mansões renascentistas dos magnatas.
Construído em 1674, o palacete da família Poniatowski era o exemplo de riqueza e de bom gosto. Todo o
interior era decorado em estilo italiano; fora realizado por
competentes artífices e mestres italianos e franceses. Completou-se a seleção dos móveis, quadros, tapeçaria, faianças finas, porcelanas e objetos de arte, que foram importados da Inglaterra, Itália, França e Holanda.
Atrás do palácio fora projetado e construído um
magnífico parque com lago no centro, ladeado por estátuas
em mármore branco, de figuras da mitologia grega; fontes
e cascatas de água, que corria num riacho por entre as árvores, até o lago, no centro do bosque. O parque de carvalhos
seculares fora preservado, assim como as aléias margeadas
por plátanos, que ofereciam ao transeunte uma visão de
beleza e mistério.
O conde Miguel Poniatowski, neto de Janusz, possuía em Ciechanow, não muito distante da cidadezinha de
Mazowsze, uma esplêndida residência de verão, além de
grande quantidade de morgas de terras férteis, que estavam
sob a administração de Jakub Gryczynski.
Ciechanow era antiga fortaleza de castelãs e residência dos príncipes de Mazowia no século XIII. Portanto,
existiam ali castelos seculares e igrejas barrocas daquelas
épocas.
A família do conde vinha com freqüência para a
mansão, onde passavam grandes temporadas durante o verão; nessas ocasiões visitavam a família Gryczynski, que
eram seus parentes distantes, por parte de Jozefa, a esposa
de Jakub. Numa destas visitas houve a sondagem sobre a
430
idéia de levar Stephania para Warszawa. Ao despedir-se, a
condessa Maria perguntou à moça:
- O que você acha de ir morar conosco em Warszawa?
A jovem de 16 anos sempre sonhara em conhecer a
capital, mas diante da proposta da condessa Maria para que
ocupasse o cargo de dama de companhia dela e das duas
filhas, morando no palácio, sentiu-se triste e contrafeita.
Mesmo sendo a sua vida na casa dos pais simples e austera,
ela não se sentiu atraída pela oferta.
- O pai é que decide - respondeu ela, acostumada a
obedecer ao pai autoritário.
Jakub não admitia que seus filhos vivessem na ociosidade e, por isso, exigia deles trabalho; incumbia-os das
mais variadas tarefas no campo e na hospedaria e cobravalhes os resultados.
Wladyslaw, Aleksander, Stephania e Ksavera, os
quatro filhos do casal Jakub e Jozefa, nasceram e cresceram
na fazenda Gryczynszczyzna, como carvalhos novos, fortes
e saudáveis, aprenderam e tinham consciência da sua obediência ao pai exigente. A mãe nada fazia para modificar
esse costume rígido, ao qual ela mesma se submetia calada.
Todavia, quando a condessa Maria propôs levar Stephania
para Warszawa, ela ficou apreensiva.
- Os Poniatowski são na verdade aparentados conosco - comentou, tentando acalmar-se.
- Sim!São de fato! Mas é um parentesco muito distante - respondeu o pai.
- Tens razão. Portanto, nós nunca nos impomos a eles. Mas quanto a isso não se preocupem, eu os conheço,
são pessoas extremamente bem educadas e estou convicta
que darão a você toda atenção - conciliou a mãe.
431
- Com certeza nada mais humilhante do que esta benevolência para com os parentes pobres - questionou ainda
Jakub.
- Você não tem razão alguma, filha, você não vai
como hóspede residente, vai desempenhar uma função, um
trabalho, serás dama de companhia da condessa Maria e das
filhas – explicava Jozefa.
Não foi sem resistência que Stephania aceitou a idéia; mas ficou sensibilizada, quando no dia marcado, parou em frente de sua casa, em Mazowsze, uma bela carruagem puxada por dois lindos cavalos negros. A condessa e a
filha vieram buscá-la. Podiam ter mandado uma simples
dorozka, como para levar uma empregada - pensou Stephania, comovida.
Mazowsze ficava a 160 quilômetros de Warszawa,
portanto, após dois dias exaustivos de viagem, chegaram à
capital.
Pela primeira vez na vida Stephania encontrou-se
com refinado conforto, com arranjos sem precisa utilidade,
dos quais, porém, a beleza e o valor não reconheceu de imediato.
O idoso conde Poniatowski, sereno, jovial, bondoso,
com toda paciência introduziu-a nos segredos dessas coisas
maravilhosas. Desvendou-lhe o encanto e o brilho das cores
nas geniais composições da escola flamenga, chamou-lhe a
atenção para a incomparável arte nas obras de pintura
histórica de Jan Matejko e Michalowski.
Mostrou-lhe os bronzes da época do Primeiro Império. Fez a jovem conhecer a qualidade e o valor da porcelana chinesa e das finas faianças inglesas; dos cristais da
Boêmia em taças e vasos. O palácio era enorme, cercado de
jardins, protegidos por um maciço de árvores do parque.
Stephania ia exercer as funções de dama de companhia, como exigia a tradição entre esses fidalgos orgulho432
sos. A família compunha-se do casal de meia idade, o conde Miguel e a condessa Maria, a filha viúva sem filhos e a
outra solteira. Todos eram muito educados, meigos, corteses, duma gentileza cativante. Entre os parentes e visitantes
que freqüentavam o palácio, havia diversas pessoas singulares.
O interior dessa magnífica residência compunha-se
de inúmeros salões e uma infinidade de quartos, tudo decorado com requinte e bom gosto.
Do salão de estar, através de duas grandes portas laterais abertas, avistava-se a mesa posta da sala de jantar.
Os pratos de carne de caça e as entradas, os guardanapos
alvos dobrados, que coroavam cada grupo de talheres de
prata, os pratos de porcelana de Sèvres e as taças de cristal,
e no meio da mesa vasos cheios de flores coloridas, pareciam alfinetar o apetite dos convivas.
Todos tomaram lugar nas cadeiras dispostas em volta da grande mesa. Os olhares recaíam sobre a variedade de
iguarias oferecidas.
Um tanto atrasado, chegou um homem corpulento,
trajando camisa russa, cinzenta, apertada à cintura por um
largo cinto. Usava botas de couro preto, e as calças formavam um balão sobre os joelhos. Dava a impressão de ser
um bom sujeito, mas um tanto distraído. Ao tirar o sobretudo à entrada, não tirara o cachecol e conservava nas mãos
o chapéu redondo de feltro.
Conde Miguel, dono da casa, foi ao seu encontro
com os braços abertos:
- Bem-vindo, Pan Laurenti Orlowski, como vai a
família? E a esposa Delfina?
- Está bem, obrigado, mandou abraços a todos e especialmente à condessa Maria. Peço desculpas pelo meu
atraso. Fatos imprevistos impediram-me de chegar no horário, perdoe-me, meu amigo.
433
- Estás perdoado, o importante é a sua presença disse o conde.
Laurenti foi conduzido à mesa, sentando-se a esquerda do conde, lugar a ele reservado; à direita sentava-se
a condessa. Falaram por algum tempo de política, quando
surgiu o assunto sobre os tumultos universitários em Petersburgo e Moscou. Laurenti Orlowski era um grande industrial moderno, espírito prático bem dotado e inteligente.
Tinha para com o regime moribundo o duplo ódio,
do ricaço fabuloso que teria podido comprar todo o tesouro
do Estado e do homem do povo que chegara a cumeeira de
uma carreira estonteante. Escondia proscritos em casa, fornecia advogados aos acusados de crimes políticos. Era um
homem notável e sua esposa Delfina estava à sua altura. O
conde tinha por ambos uma admiração entusiástica.
Após o almoço, reuniram-se na biblioteca para fumar. Um lacaio de uniforme branco e luvas servia o café e o
licor.
A biblioteca era uma linda sala, de paredes cobertas
por tapetes e quadros. Do teto, que era decorado por pinturas de colorido suave, descia um antigo lustre veneziano. O
assoalho era coberto totalmente por um soberbo tapete
vermelho. Numa das paredes estava dependurado um antigo
Gobelem, com o brasão da família Poniatowski. Num recanto ficava a lareira de mármore branco que no inverno
aquecia o ambiente luxuoso.
Enegrecidos pelo tempo, estavam enfileirados na
parede os retratos dos antepassados. Personagens de bigodes espessos caídos ao redor da boca, com as cabeças raspadas à moda mongol; cinturões, botões de diamantes, gorros de pele de urso, chapéus com penas de avestruz, uniformes militares. Ao lado, senhoras com decotes ousados,
cobertas de jóias, de penteados extravagantes; senhoritas
sorridentes e crianças gorduchas.
434
Stephania fazia companhia às senhoras que se ocupavam de trabalhos manuais, enquanto tagarelavam alegremente; ela olhava encantada as prateleiras com os livros
da enorme biblioteca do palácio.
Havia ali obras dos séculos passados e da época atual, escritas em diversas línguas e de vários autores. Ficavam alinhados como soldados durante o desfile, os quais
nunca foram chamados para a luta. Publicações anuais parisienses, londrinas, de Petersbugo, de Roma, das quais obtinham informações; pareciam colocar em silencioso desprezo os seus ausentes primos poloneses.
Stephania, ingenuamente perguntou:
- Por que não há aqui revistas polonesas?
Ao que a condessa Maria respondeu:
- Oh! querida, para quê? As nossas publicações colhem todas as informações das similares da Europa? Então
não é melhor tê-las em primeira mão?
Apesar de tudo, essa gente despertava simpatia na
jovem. Antigos, históricos sobrenomes, tinham para ela
inexplicável atração, pois associavam-se a toda história da
Polônia. Os Lubomirski, Sapieha, Ossolinski, Potocki,
Czartoryski, Zamojski, Sobieski, Poniatowski, Leszczynski.
Por acaso esses personagens não determinaram os
capítulos notáveis ocorridos na história desta nação?
Eles, porém, em competição entre si pelo poder,
doutras vezes impulsionados pelo sincero amor pela pátria,
uma vez elevavam-na aos picos da glória, outras vezes precipitavam-na ao fundo do poço da decadência e ruína.
Como Stephania podia vasculhar, sem nenhum obstáculo, na soberba biblioteca do palácio, foi procurar o livro
de genealogia da família. Estudou as sucessivas gerações,
analisou e procurou a sua origem. Entre muitos sobrenomes, encontrou o da sua mãe, de cujos antepassados já sabia alguma coisa. Aqui conferiu dados ainda por ela des435
conhecidos. E pelo que ali ela viu, não tinha mais dúvidas,
descendia por parte do pai, dos antigos judeus que emigraram do sul da Europa para a Polônia.
- É necessário conhecer as nossas origens e saber
sobre os ancestrais que nos transmitiram os traços do seu
caráter - raciocinava a jovem.
Mesmo sabendo que descendia do ramo pobre dos
Poniatowski, Stephania sentia-se feliz. Recebia o afeto que
todos da casa lhe dedicavam. Viajava com a família, em
longas férias, em passeios pelo país e para o exterior; para
praias de Nice, estações de esqui na Suíça e cassinos de
Monte Carlo, onde o conde Miguel fazia grandes apostas.
Foram assistir ao 1º concerto dado por Ignacy Paderewski, na cidade de Warszawa. O interesse por esse espetáculo atraíra um imenso auditório que superlotou a sala da
Ópera Municipal .
Durante mais de três anos Stephania viveu feliz em
casa da condessa. Nada vinha perturbar-lhe a tranqüilidade,
nem mesmo a saudade dos seus pais e irmãos, pois visitavaos com freqüência, e nesse tempo seu irmão Wladyslaw
veio estudar em Warszawa.
***
Na estação de Warszawa, o trem parou por curtos
quarenta minutos. No vagão de passageiros, encontrava-se
um lugar vago na poltrona em frente do tenente Zbigniew
Orlowski, e nele sentou-se uma jovem que colocou ao seu
lado uma mochila de viagem de couro marrom, que era toda
sua bagagem; acomodou-se para fazer um trajeto que deveria durar apenas algumas poucas horas.
A recém-chegada teria mais ou menos, dezesseis
anos. A sua cabeça realmente bela, apresentava o tipo eslavo em toda sua pureza - tipo um pouco severo, que a tor436
nava mais formosa que bonita, quando, passados alguns
anos, as suas feições estivessem de todo acentuadas. De
uma espécie de toucado, soltavam-se-lhe em profusão os
cabelos castanhos. Os olhos castanho-esverdeados e o nariz
delicado e fino marcavam as faces rosadas. A boca firmemente desenhada, parecia sempre pronta a sorrir.
Era alta, de formas graciosas, tanto quanto se podia
adivinhar sob as dobras da ampla peliça que a cobria. Era
evidente que esta moça devia ter tido um passado de
bem-estar e o futuro, sem dúvida, se lhe apresentava de
cores auspiciosas, mas não era menos certo que ela tinha
sabido lutar e que estava resolvida a batalhar pelo que sonhava. A sua vontade devia ser decidida e firme sem se
deixar abater ou irritar facilmente.
A jovem passageira trajava com elegância sóbria. O
casaco comprido de cor escura, debruado de azul, abotoavase-lhe graciosamente no pescoço. Por baixo desta peliça
via-se uma saia curta, também escura, caindo sobre um vestido que terminava nos dedos dos pés e cuja barra era guarnecida de bordados coloridos. Calçava nos pés bem feitos e
pequenos botinas de couro lavrado, de sola grossa, pretas,
com ilhoses dourados.
Para onde iria esta moça completamente só e numa
idade em que o apoio de um pai ou de uma mãe, ou a proteção de um irmão, se torna de todo indispensável? Algum
parente ou amigo esperá-la-ia na chegada do trem?
Zbigniew Orlowski observava-a com interesse, mas
com toda reserva, não tentando sequer um pretexto para lhe
dirigir a palavra. A jovem levantou-se do seu assento, foi
até a janela do vagão; debruçou-se para fora, o vento esparramava o seu cabelo castanho pelo rosto bonito. Ela olhava
os campos semeados de trigo que se estendiam até os últimos planos da colina. A brisa da tarde balançava as espigas
douradas como ondas do mar.
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Dez quilômetros antes de chegar à estação de Plock,
no ponto onde a via férrea fazia uma curva, sentiu-se no
trem um choque de certa violência. Passageiros assustados
gritavam, houve confusão e desordem geral dentro dos vagões. Antes que o trem parasse, as portas dos vagões foram
abertas e os passageiros apavorados só pensavam em abandonar o trem.
Enquanto os viajantes do compartimento onde ambos estavam, fugiam atropelando-se e gritando, a moça
continuou tranqüila no seu lugar. Ela não fizera nenhum
movimento para descer do trem, ele também não. Ambos
continuavam impassíveis. Entretanto, o perigo sumira. O
choque resultara de ter-se avariado uma roda do vagão de
carga. O atraso do trem foi apenas de uma hora.
Desembaraçada a linha, o trem retomou a marcha, e
às cinco horas da tarde chegaram a Aleksandrow, na fronteira da Prússia. O movimento crescente na estação, as idas
e vindas dos carregadores, o aparecimento da polícia, as
pessoas que vinham esperar os passageiros, tudo era indício
da chegada do trem.
Fazia frio, e através da bruma viam-se operários de
japonas longas e botas de feltro, que atravessavam as linhas. O condutor fez soar o apito ainda com a composição
em movimento e saltou. Antes que alguém tivesse saído dos
vagões, já os agentes da polícia de fronteira revistavam os
passageiros.
Concluída a inspeção, abriram-se as portas dos vagões e os viajantes impacientes desembarcavam um por um.
Zbigniew Orlowski não tivera tempo para dirigir-se à jovem. Ela já tinha descido rapidamente e desaparecido entre
a multidão aglomerada na estação de Aleksandrow.
O tenente pensava na bela jovem que, durante algumas horas, tinha sido sua companheira de viagem. E nem
sabia o seu nome. O militar viajava no trem que vinha de
438
Bialistok; passando por Warszawa, dirigia-se a Torun. Ia
fazer uma visita à tia viúva, irmã da sua mãe. Estava de
férias do serviço militar; já fazia dois anos que servia no
quartel da Sétima Brigada de Cavalaria de Bialistok.
Estava sentado na sua poltrona pensativo... a jovem
passageira não lhe saía da cabeça. Quem seria? O que vinha
fazer aqui?
***
Stephania era jovem, tinha o mesmo temperamento
apaixonado do pai, independente, egocêntrica, autoritária...
Jakub, seu pai, era um paradoxo, homem liberal em
muitos assuntos, mas como pai era muito exigente; exercia
a posição de chefe de família com total seriedade. Tinha
herdado muitas das antigas tradições de um tirano familiar.
O trabalho na capital e a vida com o pai, que ela respeitava
e amava, constituíam as suas mais felizes memórias.
Recebeu rigorosa educação de severas freiras, na
exclusiva escola para moças em Plock, isso lhe permitiu
que ingressasse nos escalões elevados da sociedade, que
tinham eleito Warszawa como Paris da Europa Oriental.
Havia um infindável círculo de cultura, trivialidades
e romance no ar. Stephania era uma jovem extremamente
bonita; sua agenda ficava repleta de compromissos. Como
muitos dos que viajavam pelo mundo, ela desenvolveu um
elevado grau de sofisticação, apreciando flertes e namoros.
A jovem tomava parte nos divertimentos da numerosa sociedade que se reunia no palácio Poniatowski.
Quase todos os meses havia uma proposta de casamento a ponderar e a descartar. Ela amava sua liberdade.
Mantinha suas amizades com uma sutil frieza. Sentia-se
contente e feliz em Warszawa. Era o seu lugar.
Realizava-se a festa anual dos oficiais da Sétima
Brigada, no Bristol Hotel. A corporação possuía uma série
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particularmente longa de grandes e gloriosos feitos, os
quais poderiam ser traçados a partir do rei Kazimierz Wielki, na Idade Média. Por isso, a reunião da Sétima Brigada
atraía o melhor da sociedade.
O conde Miguel Poniatowski, a condessa Maria,
Stephania, e a filha mais nova, entraram pela escadaria
principal do Bristol Hotel. Stephania parou um pouco no
vestíbulo e olhou para o salão de danças, todo iluminado.
Estava cheio de distintos oficiais poloneses de uniforme e de elegantes senhoras vestindo os últimos figurinos
de Paris, bem como de barbudos e esqueléticos diplomatas
estrangeiros. Era um salão de teto alto, com painéis de
mogno escuro. O assoalho era de madeira polida ao extremo, refletia as pessoas dançando. Espelhos que iam do teto
ao chão alternavam-se com tapetes persas.
Outros, que também pendiam das paredes, representavam sérios heróis poloneses em esculturais cavalos brancos com crinas encapeladas liderando tropas numa batalha.
O imenso lustre de cristal faiscava.
Elegantes pares circulavam em torno da sala ao ritmo de uma valsa lenta. E, quando a música parou, os cavalheiros curvaram-se e beijaram as mãos das damas. Algumas responderam com olhares enamorados detrás dos leques, enquanto outras desviavam o olhar, enfastiadas.
Fora nesta noite festiva que Stephania reencontrara
Zbigniew Orlowski. Como sempre, ela estava rodeada por
um amplo grupo de oficiais solteiros. Ao fim da primeira
hora de agitadas polkas e mazurkas, a jovem retirou-se ao
toalete na companhia da sua madrinha e protetora.
A condessa Maria era uma senhora inteligente; mãe
de duas filhas, ainda mantinha a peculiar elegância parisiense e a beleza madura, apesar de já estar entrando na
meia idade.
Stephania estava enfadada.
440
- O problema é com você, Stephcia! Você sempre
afasta todos os pretendentes sérios. É uma jovem muito
exigente.
- Tenho sentido um desejo de quebrar alguns desse
crânios quando eles se curvam e lambem as minhas mãos.
- Eu gosto disso. Bem, minha jovem afilhada, não
vá acordar numa certa manhã e descobrir que todos os bons
partidos já se foram, estão casados ou compromissados.
Pegue um estúpido qualquer e eduque-o à sua maneira.
A moça sorriu e abraçou a sua protetora.
- Vamos, querida, vá tentar mais uma vez.
Ela refez a maquilagem e voltou ao salão de baile de
braço dado com a condessa.
As duas viram-no ao mesmo tempo, de fato, cada
par de olhos parecia ter-se concentrado na porta, quando
por ela entrou um oficial polonês, de uniforme de gala da
Sétima Brigada da Cavalaria. Era o tenente Zbigniew Orlowski.
Após um segundo de breve surpresa, os seus olhos
se encontraram. Reconheceram-se instantaneamente. Ambos eram os passageiros do trem de Warszawa à Torun, que
viajaram no mesmo compartimento e que se separaram sem
ter sequer trocado uma palavra.
- Quem é ele ?- perguntou Stephania.
- Esqueça-o, querida. Você perderá o seu tempo,
ninguém ainda foi capaz de prendê-lo.
- É mesmo?
- Alguns dizem que ele é um monge tibetano que
tomou votos de castidade. Outros dizem que tem amantes
por toda a cidade de Warszawa.
- Mas afinal, quem é ele?
- O tenente Zbigniew Orlowski.
- O aventureiro dos ulanos?
Condessa Maria suspirou e disse:
441
- Bem, tenho de voltar para junto do meu marido.
Stephania reteve a amiga e protetora por mais uns instantes
- Será que o conde, seu marido, poderia apresentarme ao tenente Orlowski?
- Bem, bem! – pedirei a ele – respondeu ela rindo.
Quando o conde Miguel apresentou o tenente à jovem, ele curvou-se e beijou-lhe a mão, cumprimentando-a
polidamente.
- Não guardei o seu nome - disse Stephania.
- Mas eu sei o seu, senhorita Gryczynska, estou encantado.
- Tenho livre a próxima dança, tenente Orlowski.
Zbigniew, vagarosamente, colocou os braços em
torno dela e levou-a para o salão de baile. Todos os olhares femininos da sala os observavam com inveja, disfarçada
atrás dos leques. Stephania estava furiosa consigo mesma
por se comportar como centenas de moças já o teriam feito
antes.
Mas ela apreciava estar nos seus braços, eles eram
acolhedores e firmes. Isto a tornou ainda mais zangada, pois
ele estava procedendo de forma a exprimir a sensação de
que, se quisesse, poderia estar dançando com uma vassoura.
O pensamento de colocar este egocêntrico cavalheiro nos
eixos deliciou-a. Como seria adorável terminar a noite dando ao tenente Orlowski o suficiente para torná-lo esperançoso, e então bater-lhe com a porta na cara.
- Gostaria que, mais tarde, você me levasse para
minha casa - disse-lhe Stephania.
- Talvez o seu par não goste - respondeu ele.
- Vim na companhia do conde e da condessa Poniatowski, sou a dama de companhia da senhora. Sou completamente livre, tenente... ou é necessário que eu obtenha uma
ordem do seu coronel para que você possa acompanhar uma
dama?
442
- Oh! Não é preciso tanto! Será um prazer para mim.
Quando as carruagens estavam sendo conduzidas
para a porta de saída, o conde ofereceu-lhes um lugar na
condução. Viajaram em silêncio até a mansão. Ao chegarem, Stephania sugeriu:
- Está tão calma e agradável a noite! Por que não
caminhamos um pouco, tenente?
- Se me concederes este prazer!- respondeu o moço.
Era tarde e as ruas estavam vazias, ouvia-se apenas
o som dos seus próprios passos e o rumor de uma dorozka
passando. De repente, ela parou na calçada.
- Fui terrivelmente estúpida e grosseira - disse elanão deveria tê-lo forçado a acompanhar-me até minha casa.
- Bobagem, sinto-me feliz em fazer-lhe companhia.
Na realidade - disse Orlowski- foi oportuna a sua idéia do
passeio, eu precisava esclarecer um assunto que está me
intrigando.
- Qual assunto? – perguntou ela surpresa.
- Não quero parecer indelicado, mas, diga-me, o que
estava fazendo naquele trem de Warszawa-Torun, e por que
desceu em Aleksandrow?
- Esqueça isso - respondeu ela.
- Não, diga-me, pois não consegui tirá-la do meu
pensamento desde então.
- Mas um famoso ulano como você? Todas aquelas
jovens que o adoram.
- Nada tenho a ver com elas - respondeu enigmático.
- Por quê?
- Não quero estragar a sua noite com detalhes da
minha vida, mas você não respondeu a minha pergunta: o
que foi fazer em Aleksandrow, fale, se puder responder-me.
- Ora, nada de misterioso, meus pais moram na cidadezinha de Mazowsze, a quinze quilômetros de Aleksan-
443
drow, e meu pai esperava-me na estação. Como vê, fui visitar a minha família.
Na volta, caminharam em silêncio.
Ambos tinham chegado muito rapidamente a um estranho sentimento de angústia, com a descoberta de que se
sentiam, de súbito, atraídos terrivelmente um pelo outro, e
isso inquietava-os e atemorizava.
Orlowski comportou-se de maneira respeitosa e gentil; quando a moça parou diante do portão do palacete,
Wojtek, o guardião, veio abrir para ela entrar.
- Boa noite, senhorita - despediu-se o tenente.
Eles apertaram-se as mãos, um estranho sentimento
tomava conta dos seus corações.
- Tenente Orlowski, gostaria de vê-lo novamente.
Ele retirou vagarosamente a sua mão de entre as dela, e respondeu:
- Gostaria muito, mas creio que não será possível,
tão logo. Devo voltar ao quartel em Bialistok; minhas férias
terminaram.
Stephania não dormiu aquela noite. Levantou-se tarde, estava triste e pálida.
- Nunca pensei que algo tão simples pudesse ser tão
doloroso. Quero vê-lo tanto que me sinto como se fosse
explodir, não sei o que faço - lamentava-se à sua madrinha.
- Querida, e se eu pedisse a meu marido, conde Miguel, para convidar o tenente Orlowski para almoçar hoje
conosco, antes de ele ir embora para Bialistok?- sugeriu a
condessa.
- Deus Todo Poderoso! nem sequer posso ter o coração despedaçado? – desesperou-se a moça.
- Não!, pois, parece-me que lá existe um jovem tão
enamorado e sofredor quanto você. Nós o apreciamos, e
será bem recebido em nossa casa.
444
Almoçaram juntos naquele dia. Seus ternos olhares
denunciavam o grande afeto que os dominava.
Passados dois meses, isto é, na primavera de 1889,
ficaram noivos...
Ele era filho de Laurenti Orlowski, russo de origem,
mas residindo desde a adolescência em Warszawa, quando
seu pai foi nomeado, pelo governo russo, para um cargo
administrativo no Reino da Polônia, com sede em Warszawa. Desde então, integrara-se na comunidade polonesa,
participando da sua vida. Laurenti amava esta bela cidade.
Zbigniew nasceu na Polônia.
Os pais de Stephania aprovaram a escolha, mas opunham-se a um casamento apressado, aconselhando-a a
esperar um pouco. Não sabiam que Zbigniew estava impedido de casar-se por estar prestando serviço militar, só estaria liberado em dois anos.
Quando soube da resolução do pai em emigrar para
o Brasil, ficou desconsolada, não aceitava essa idéia radical.
Suplicou-lhe para que a deixasse na Polônia, em casa do
casal Poniatowski, que também não admitiam deixá-la partir, pois ali era tratada como membro da família, e a afeição que lhe dedicavam era algo admirável.
Tinha chegado o dia da viagem de Stephania para
Mazowsze, onde ia reunir-se à família. Já estavam com a
data marcada para seguirem viagem rumo ao porto de
Hamburgo, e de lá viajariam de navio para o Brasil.
Marcaram um encontro na residência do conde,
para a despedida final. O acaso colaborou com o clima de
nostalgia. No dia marcado, o céu amanheceu triste e cinzento. Já eram dez horas da manhã e as gotas da pesada
chuva que caíra durante a noite ainda permaneciam nos
vidros das janelas altas e nas folhas dos carvalhos seculares,
como se fossem lágrimas de despedida dos dois jovens apaixonados.
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Estavam passeando pelo parque do castelo, caminhavam pelas aléias ladeadas de flores; a brisa da manhã
balançava as folhas das árvores, em mudo adeus.
- Stephania querida - falou Zbigniew, passando-lhe
o braço pelos ombros - queria que você antes de partir me
desse pelo menos um pouco de esperança, dum reencontro
no futuro; alguma lembrança a qual possa me apegar na tua
ausência.
- Querido, você não avalia o quanto estou sofrendo
com esta separação, mas nada posso fazer, meu pai está
irredutível.
- Meu amor, eu entendo a posição do teu pai. Ele
não quer deixá-la na Polônia, sozinha, solteira. Eu não posso seguir com você e nem casar-me agora, pois sou oficial
da ativa do exército russo e a lei do czar não permite. Se eu
proceder à revelia serei preso e fuzilado, e se desertar, serei
caçado e morto como animal.
O casal abraçou-se; as lágrimas incontroladas escorriam pelo seus rostos.
Stephania tirou do pescoço um cordão de ouro com
crucifixo e entregou-o ao noivo.
- Fique com esta jóia, que é uma peça muito antiga,
ganhei-a da minha madrinha, a condessa Maria, no dia do
meu aniversário. Não a tire nunca do pescoço, ela vai proteger você dos perigos da vida.
Ele trazia no dedo da mão esquerda um largo anel
de ouro puro, com uma pedra de opala negra incrustada no
meio. Em volta da pedra estavam gravados estranhos hieróglifos egípcios. Seu pai tinha trazido o anel do Cairo, quando por lá esteve em missão diplomática. Comprou o anel
num antiquário, cujo proprietário era um muezim árabe. Ao
vender a jóia, o homem avisou:
- Este anel possui um poder misterioso, sobrenatural. Pertenceu a uma sacerdotisa da deusa Ísis. Cuidado com
446
a energia poderosa deste amuleto, ele pode influenciar a sua
vida.
O comprador era uma pessoa descrente, não deu atenção ao aviso do muezim. Mas nunca usou o anel.
Numa ocasião, Zbigniew estava vasculhando a gaveta da cômoda do quarto do pai. Achou o anel entre objetos e papéis diversos, experimentou, achou-o interessante
e ficou com ele. Usava-o ocasionalmente, e na naquela tarde estava com ele no dedo anular.
Ao receber o cordão de ouro da namorada, tirou o
anel e disse:
- Em troca dou-te o meu talismã. Stephania você
nunca vai esquecer de mim, porque este anel vai lembrar-te
sempre o quanto eu te amei.
Esta fora uma despedida muito dolorosa para os
dois. Nunca mais se viram, os seus destinos tomaram rumos
diferentes. O amor deles já nasceu condenado, pois ambos
não foram felizes durante suas vidas.
***
Era o ano de 1890.
Numa tarde de inverno, o administrador foi à casa
de Jakub Gryczynski com a informação secreta de que um
oficial da cavalaria desejava falar com ele, imediatamente.
Surpreso e confuso, ele se deixou levar para um bar perto
da escola, onde um grupo de homens, agitados, falava em
voz baixa, que às vezes se alterava num tom mais ousado.
Jakub foi informado que estava em curso uma conspiração contra o governo russo, e se estendia por todo o
território da Polônia. A luta tinha caráter guerrilheiro. O
secreto e clandestino Governo Nacional, bem como as suas
determinações, eram respeitadas e obedecidas pelos guer447
rilheiros. Garantiam que o país podia conquistar e defender
a sua liberdade.
Gryczynski ficou impressionado com a constituição
do grupo. Havia filhos de magnatas, pequenos nobres, filhos de mercadores e um punhado de estudantes. Eram sete
os oficiais da cavalaria que, ansiosos, manifestavam a opinião que os patriotas deviam deslocar-se para o sul de imediato, a fim de apoiar o que seria um grande levante.
Jakub formulou uma pergunta:
- E podemos derrotar a Rússia?
A resposta veio de um dos oficiais:
- Vamos tentar!
Estava no poder o czar Alexandre III. Como rei do
Reino da Polônia, foi coroado, o irmão do czar, arquiduque
Konstanty, e como governador de Warszawa, foi nomeado
o general Paulo Szuwalow. Os poloneses tentaram lutar
contra o imenso poder russo, mas foram sendo derrotados,
presos e aniquilados, um por um. A insurreição foi abafada
mais uma vez. O mais forte venceu, mas não conseguiram
exterminar o sonho de liberdade de um povo.
Jakub Gryczynski pagou caro por sua participação.
Detido pela polícia russa e encarcerado “preventivamente”,
permaneceu na prisão, seus bens foram confiscados. Não
conseguiram provas contra ele e foi solto, mas continuava
sob vigilância dos espiões russos. Estava inquieto e inseguro quanto ao futuro.
Todos esses fatos o motivaram a repensar sua segurança e a da família. Como a maioria de seus bens foi confiscada, sobrou-lhe apenas o antigo solar e um pouco de
terra, cuja renda era insuficiente. A hospedaria em Mazowsze tinha ficado para seus irmãos.
No auge da “Febre Brasileira” de emigração, Jakub
reuniu a família para conversar. Estava bastante impressio-
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nado pelas notícias sobre o Brasil; da abundância de terras e
principalmente pela apregoada liberdade.
Ficou resolvido que venderiam a propriedade e o
restante das terras, sem alarde, no silêncio, para não chamar
a atenção das autoridades russas. Naquela semana foi providenciar os passaportes para todos. Prometeram-lhe que
ficariam prontos dentro de 15 dias. E aí também funcionou
a corrupção moscovita, Jakub deu 100 rublos ao funcionário, pelo sigilo e pela rapidez, e no dia seguinte, foi buscar
os documentos que já estavam prontos. Eram válidos por
três meses.
Naquele sábado de fins de abril de 1890, Jakub reuniu alguns amigos e parentes na casa da herdade para despedir-se deles, pois iria realmente partir com a família para
o Brasil.
Contra a expectativa do dono da casa, que convidara apenas pessoas muito íntimas, compareceu também o
pároco da igreja local, Anton Czychala, que procurava ser
agradável com todos, e, depois de tirar o chapéu e ajustar o
colarinho da batina num gesto automático, dirigiu-se para a
sala de visitas, com a gravidade de quem carrega um andor
em dia de festa.
Os vizinhos entraram e foram cumprimentar Jozefa,
a dona da casa, séria, um tanto chorosa, sentada numa postura rígida. Perto dela em pé, estava a filha Stephania, de
uma beleza juvenil, de grandes olhos castanho-esverdeados,
de tez alva e pura como um floco de algodão; os longos
cabelos castanhos, enrolados em grossas tranças, brilhavam
com tons dourados; descobriam a fronte e caíam em volta
do pescoço. Seu traje era de uma simplicidade original.
Tinha sobre o vestido branco um saiote azul preso à cintura
por um fita larga, formando um laço que caía as costas. Os
lábios vermelhos, de sorriso provocador, davam a este rosto
um poder de sedução irresistível.
449
A outra moça, Ksavera, de 19 anos, estava sentada
próxima à irmã, no banco encostado à parede. Era um tipo
inteiramente diferente do de Stephania; não competia com
ela. Alta, o rosto rosado queimado pelo sol, de olhos escuros, cabelos castanhos, presos em tranças, com fitas nas
pontas; o sorriso triste dava a este semblante um ar de seriedade. Vestida com simplicidade, ouvia as palavras do pai
com atenção.
Os dois filhos homens, Wladyslaw e Aleksander, estavam de pé próximo ao pai, que recebia as visitas à porta.
Wladyslaw estava com 16 anos, era de estatura mediana,
um tanto atarracado, de cabelos castanhos e olhos castanhoesverdeados, parecia-se um pouco com a mãe.
Já Aleksander, que tinha 15 anos, era alto para sua
idade, magro, parecia uma vara, tinha olhos e cabelos escuros, a pele amorenada; era muito parecido com o pai, até no
modo de falar.
Jakub, com expressão grave, falou aos convidados:
- Sabem com quanta dor no coração abandono este
país. Aqui estabeleceram-se e viveram meus antepassados.
- Trabalharam e criaram seus filhos, apesar das dificuldades criadas pelos invasores da nossa pátria. Mas não
vejo horizontes de paz para o trabalho profícuo, portanto,
vou procurar outras plagas; terras onde há promessa de paz
e liberdade; onde poderei ter garantias de propriedade. Existe terra em abundância, tanto quanto possa comprar.
Pois, este é o sonho de todo polonês, que ama a terra acima
de tudo.
Todos escutavam em silêncio. Cabeças baixas, meditavam sobre as palavras que estavam sendo proferidas
pelo seu amigo e vizinho. Davam-lhe toda razão. Muitos
deles seguiram os seus passos e emigraram para o Brasil.
Duas pessoas da família revoltaram-se, não queriam
ir embora. Stephania que estava noiva do tenente Zbi450
gniew Orlowski ao qual amava muito, e não queria abandoná-lo.Tinha uma vida confortável no palacete da família
Poniatowski, onde trabalhava.
Wladyslaw era o terceiro filho do casal Jakub Gryczynski e Jozefa Poniatowska. Nasceu no dia seis de março
de1874, em Gryczynszczyzna, propriedade rural da família. Criou-se brincando e correndo pelos campos, junto com
os meninos da aldeia; igual a potros selvagens. A aldeia
possuía uma escola primária, que era freqüentada pelas
crianças locais, como também pelos filhos do proprietário.
Wladyslaw também estudou nesta escola; seguiu
depois para Warszawa, onde faria o Curso Médio. Para
vencer as dificuldades, principalmente as materiais, devem
muito aos parentes Poniatowski. A condessa descobriu o
talento e o gosto pelo estudo do menino, e estendeu-lhe a
mão. Hospedou-o na sua casa, onde já estava sua irmã Stephania.
A cidade grande exerceu grande influência no despertar dos seus sentimentos patrióticos. Nas longas e frias
tardes neste recanto do país, reuniam-se as pessoas pelas
casas, para com as janelas vedadas e escurecidas, levar
sigilosas conversas sobre como poderiam expulsar os inimigos da Pátria. Durante as férias escolares, Wladyslaw,
com o seu idealismo estudantil, tomava parte ativa nessas
reuniões; não via perigo nessa atividade. Não queria abandonar os estudos, acostumara-se à vida citadina.
Jakub, prevendo o perigo que o estava ameaçando,
e a sua família, decidiu apressadamente abandonar as propriedades e fugir pela fronteira verde para a Prússia, e de lá
via porto de Hamburgo na Alemanha, para o Brasil.
O pai exigiu que toda a família o acompanhasse na
viagem. Não deixaria ninguém para trás. Foi categórico na
sua autoridade paterna. Não teve proposta que o demovesse
da idéia de emigrar com toda a família.
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No dia 17 de abril de 1890 embarcaram no navio
Darmstadt, alemão, Jakub Gryczynski, a esposa Jozefa, e
os filhos, Ksawera, Stephania, Wladyslaw e Alexandre.
Durante 22 dias eles viajaram pelo Oceano Atlântico enfrentando o mar, às vezes calmo, outras revolto, formando ondas gigantes que faziam o navio balançar perigosamente.
Eram 2.600 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, dividindo o espaço apinhado do navio. Fugiam da
injustiça, arbitrariedade e opressão reinantes na sua pátria.
Cheios de esperança, o camponês, o operário e o pequeno agricultor se deslocavam através dos mares para esse
encantado Brasil, à procura de trabalho, terra e liberdade.
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