MESTRADO TEXTO UNICO - Unifesp – Campus Guarulhos

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MESTRADO TEXTO UNICO - Unifesp – Campus Guarulhos
 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS WILLIAM ZEYTOUNLIAN “LE CARACTÈRE DES GRANDS ESPRITS”: Práticas de silêncio em textos de frequentadores de um salon do
século XVII
GUARULHOS
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS “LE CARACTÈRE DES GRANDS ESPRITS”: Práticas de silêncio em textos de frequentadores de um salon
do século XVII
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-­‐Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Bruno Feitler. GUARULHOS
2014
ZEYTOUNLIAN, William “Le caractère des grands esprits”: Práticas de silêncio em textos de frequentadores de um salon do século XVII. / William Zeytounlian – Guarulhos 2014. 154 pp. Dissertação de Mestrado (História) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2014. Orientador: Prof. Dr. Bruno Feitler. Título em Inglês: “Le caractère des grands esprits”: The uses of silence in texts from a XVIIth century French salon. 1. França Moderna. 2. Cultura Letrada. I Título 2 WILLIAM ZEYTOUNLIAN “LE CARACTÈRE DES GRANDS ESPRITS”: Práticas de silêncio em textos de frequentadores de um salon do século XVII Dissertação apresentada ao Programa de Pós-­‐Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Bruno Feitler Aprovado em 11 de dezembro de 2014. _____________________________________________ Prof. Dr. Luis Filipe Silvério Lima – UNIFESP/EFLCH _____________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Bentes Monteiro – UFF/ICHF SUPLENTE _____________________________________________ Profª Drª Íris Kantor – USP/FFLCH 3 A Efrazuhi
Zeytounlian:
lua otomana, epiderme reluzente revela o germe, a ária sóbria sobre a areia: sopros somos antes passados. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador prof. Dr. Bruno Feitler pelo acompanhamento atencioso e paciente. Agradeço ao prof. Dr. Luís Filipe Silvério Lima, membro da banca de qualificação e orientador que tanto ajudou na elaboração do projeto desta pesquisa, à profª. Drª Laura de Mello e Souza pela honra de tê-­‐la em minha banca de qualificação e ao prof. Dr. Guilherme Ignácio da Silva, a quem devo muitas reflexões e referências. Devo mostrar gratidão a quem se manteve mais perto de mim durante este tempo: Fábio Zuker, Vanderley Mendonça, Francesca Cricelli, Xavi Nueno Guitart, Maurício Ianês, Lauren Zeytounlian, Rachel Pacheco e Laura Schichvarger. Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio. 5 Comme c’est le caractère des grands esprits
de faire entendre en peu de paroles beaucoup
de choses, les petits esprits, au contraire, ont
le don de beaucoup parler, et de ne rien dire.
[Como é do caráter dos grandes espíritos fazer
entender muitas coisas em poucas palavras, os
pequenos espíritos, pelo contrário, têm o dom
de muito falar, e nada dizer.]
François VI de La Rochefoucauld, máxima
142.
6 RESUMO
Considerando que o reconhecimento e síntese formal dos excessos e medidas tinham sua função nos meios aristocráticos nos quais predominavam as práticas da conversação regulada por decoros, este estudo acompanha a trajetória de vida e de escrita de três moralistas para, em seguida, mapear e analisar proposições sobre o silêncio correntes na França do século XVII. Para tanto, se baseia na leitura de escritos de frequentadores do salão de Madeleine de Souvré, marquise de Sablé (1599–1678): La Rochefoucauld (1613–1680), o abade Jacques Esprit (1611–1677), além da própria Sablé. Pensados no âmbito das práticas de convívio e escrita das elites letradas do Antigo Regime, os discursos e usos do silêncio serão analisados como 1) gesto de cordialidade e amizade nas trocas epistolares, 2) pressuposto decoroso para o estabelecimento de vínculos de familiaridade, em especial na conversação (ideal de honestidade aplicado à fala), 3) prerrogativa de discrição na manutenção de segredos (ideal de confidencialidade) e 4) aspecto problemático das artes dissimulatórias e simulatórias (ideal de transparência social). O debate decorrente irá abordar facetas variadas da sociabilidade mundana, como as polêmicas religiosas (em especial o jansenismo) e os embates entre Corte, nobreza e salões. Palavras-­‐Chave: Práticas de silêncio. Conversação. Salões franceses. Moralistas franceses. 7 ABSTRACT
Considering that the acknowledgement and formal synthesis of excessive and moderated behaviours had a function in aristocratic milieus where conversation were regulated by a precise decorum, this research follows the lives and writings of three French moralists to track and analyse propositions on silence in XVIIth century France. To do so, we ground this study on the writings of three habitués of the salon of Madeleine de Souvré, the marquise of Sablé (1598–1678): La Rochefoucauld (1613–1680), the “abbot” Jacques Esprit (1611–
1677) and the marquise of Sablé herself. Understood among the practises of conviviality and writing of the Ancien Regime’s lettered elites, the discourses and uses on silence will be interpreted as 1) gestures of cordiality and friendship in epistolary exchanges, 2) an assumed decorum for the establishment of friendly links, specially in conversations (the ideal of honesty applied to speech), 3) an assumed discretion on the maintain of secrets (the ideal of secrecy) and 4) an problematic aspect of feigning and dissimulating skills (the ideal of social transparency). The debate that follows broaches different aspects of noble sociability, as religious polemics (specially Jansenism) and the conflicts between Court, nobility and salons. Keywords: Uses of silence. Conversation. French salons. French Moralists. 8 “LE CARACTÈRE DES GRANDS ESPRITS”:
Práticas de silêncio em textos de frequentadores de um salon do século XVII
I. APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................ 10 II. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 12 PARTE 1 TRAJETÓRIAS DE VIDA E FORMAÇÃO DE UM CÍRCULO DE CONVIVAS III. A MARQUESA DE SABLÉ ....................................................................................................... 24 III.A. A FORMAÇÃO DE UMA PRECIOSA DEVOTA ........................................................................................ 26 III.B. A MATURIDADE DE UMA DEVOTA MUNDANA ................................................................................... 31 IV. FRANÇOIS VI DE LA ROCHEFOUCAULD ........................................................................... 36 IV.A. O PRÍNCIPE DE MARCILLAC: GUERREIRO DE PROVÍNCIA, REBELDE E MUNDANO. ..................... 36 IV.B. O DUQUE DE LA ROCHEFOUCAULD: DAS ARMAS À PENA. .............................................................. 43 V. JACQUES ESPRIT ...................................................................................................................... 53 ESPRIT: MENOS QUE ABADE, MAIS QUE MUNDANO ................................................................................... 53 VI. A FORMAÇÃO DE UM CÍRCULO DE CONVIVAS ............................................................... 61 PARTE 2 PRÁTICAS E MORAL DO SILÊNCIO NA FRANÇA SEISCENTISTA: ESTUDO A PARTIR DA OBRAS MORALISTAS DO SALÃO DA MARQUESA DE SABLÉ VII. DEBATE PRELIMINAR: A PRECEDÊNCIA LÓGICA DO SILÊNCIO E O DESLOCAMENTO EM EIXO TRÍPLICE DOS DISCURSOS SOBRE ELE .............................. 65 VIII. CIVILIDADES EPISTOLARES: SILÊNCIO E GESTOS DE DECORO ............................ 74 IX. HONESTIDADE NA CONVERSAÇÃO: FAMILIARIDADE E MANUTENÇÃO DAS DISTÂNCIAS .................................................................................................................................... 89 X. A MANUTENÇÃO DO SEGREDO: POLÍTICA, HONNÊTETÉ E RELIGIÃO ................... 107 X.A. POLÍTICA: O SECRETÁRIO E O POLÍTICO ............................................................................................ 109 X.B. HONNÊTETÉ: CONFIDÊNCIA E AMIZADE NA CONVERSAÇÃO .......................................................... 115 X.C: RELIGIÃO: A (FALSA) CONFIDÊNCIA HUMANA E A CONFIDÊNCIA DO CRISTÃO .......................... 122 XI. UM IDEAL DE TRANSPARÊNCIA SOCIAL: O PROBLEMA DA REAL IMAGEM DE SI
.......................................................................................................................................................... 128 XI.A. A FALSA PACIÊNCIA E A FALSA CONTENÇÃO ................................................................................... 132 XI.B. A GRAVIDADE DO CORPO E DAS PALAVRAS COMO FALSA VIRTUDE ............................................ 136 XI.C. A FALSA MODÉSTIA DAS MULHERES ................................................................................................. 139 XII. CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 144 XIII. BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 147 XIII.A. FONTES PRIMÁRIAS ......................................................................................................................... 147 XIII.B. FONTES SECUNDÁRIAS .................................................................................................................... 147 XIII.C. LEITURAS DE APOIO ......................................................................................................................... 149 9 I. APRESENTAÇÃO
O presente trabalho tem como tema o silêncio. Não se trata, no entanto, da
preocupação constante de muitos artistas, críticos, filósofos e escritores de nossos dias
com a falência da palavra e a estética do silêncio, como Samuel Beckett, Paul Celan,
Maurice Blanchot ou Giorgio Agamben. Não se trata de um estudo das comunidades
pitagóricas nas quais os iniciantes deveriam permanecer anos em silêncio; dos textos
de Plutarco, que via no silêncio “alguma coisa de profundo, de misterioso e de
sóbrio” 1 ou das divindades egípcias, gregas e romanas cujos dedos indicadores
cruzavam seus lábios evidenciando o respeito devido ao sagrado. Não se trata, por
fim, de uma leitura de uma interpretação da omertà.2 Dentre uma quantidade sem fim
de variedades, escolhemos um silêncio seiscentista, moralista e francês.
Os poucos exemplos acima já são capazes de, por um lado, apontar para um
tema indiscutivelmente grande e um campo de estudos evidentemente rico, mas, por
outro, pouco explorado e problematizado. Peter Burke nos explica que “o silêncio
muda de significado de lugar para lugar, no sentido de que a proporção de fala em
relação ao silêncio em uma situação social varia muito entre culturas”.3 Aproveitando
a consideração, podemos afirmar que o silêncio muda de tempo em tempo. As
possibilidades são muitas. O texto de Peter Burke, no entanto, são “anotações”, como
indica o próprio título. O historiador inglês atenta para o fato de que alguns estudiosos
se lançaram ao empreendimento de investigar esse “oposto complementar da história
social da linguagem”.4 O tema da conversação cortês, explica Benedetta Craveri, foi
alvo de interesse crescente dos pesquisadores na Europa e Estados Unidos desde a
década de 1970.5 Isso não nos impedirá de constatar que ainda resta pouca literatura,
especialmente historiográfica, acerca de seu oposto complementar.6
1
PLUTARCO apud FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 410.
2
Prática siciliana que consiste em certa “relutância em falar com forasteiros sobre os assuntos
da comunidade, especialmente sobre os negócios da Máfia, quer essa relutância seja induzida
por lealdade ou por outros motivos”. “Anotações para um história social do silêncio no início
da Europa moderna”. In. BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo: Editora da
UNESP, 1995, p. 164.
3
Idem, p. 167.
4
Idem, p. 161.
5
CRAVERI, Benedetta. L’âge de la conversation. Paris: Gallimard, 2005, p. 623.
6
Dentre alguns estudos destacamos DUBOURDIEU, Anne. “Divinités de la parole, divinités
du silence dans la Rome antique”. In: Revue de l'histoire des religions, tomo 220 n°3, 2003,
pp. 259-282, disponível online na plataforma online Persée e o capítulo 5 do livro de Courtine
10 Como se aproximar e percorrer os caminhos de um campo aberto e tão rico? É
possível nos perdermos em meio a dezenas de exemplos inquietantes de silêncio sem
sequer compreendê-los em suas particularidades, variedades, usos e – aqui o mais
importante – historicidades. Corre-se, enfim, o risco de trocar o tema dos “silêncios”
como práticas e discursos que, muitas vezes, eram norteadores, disciplinadores,
ritualísticos, que eram alvo de debates e controvérsias, por um singular “silêncio”,
digno – talvez – de uma nota. No presente estudo cuidamos para não cair nesse erro e
nos abrimos a algumas das diversas possibilidades de um tema que, para muitos, pode
parecer marginal, irrelevante, pouco prolífico ou somente estranho. Buscamos
compreender em nossas fontes primárias e secundárias alguns dos usos e discursos
sobre o silêncio em suas relações com as práticas morais e culturais.
Tendo em mente que o silêncio é uma prática antiga e plural, mas de forma
alguma uniforme, estática, vazia de significados e usos, o presente trabalho visa
compreender
algumas
práticas
de
silêncio
na
França
seiscentista,
mais
especificamente, aquelas formuladas e praticados pelos convivas do salão de
Madeleine de Souvré, a marquesa de Sablé. Trata-se, portanto, de investigar silêncios
segundo as formulações de importantes moralistas como François de La
Rochefoucauld, Jacques Esprit e a própria marquesa de Sablé. São silêncios de
prudência e honestidade, impostos ou costumeiros, que denotavam sabedoria,
civilidade, desaprovação, infelicidade, retenção, autoridade, constrangimento; que
tinham significação e ajudavam a nortear a interação entre os sujeitos.7 Silêncios que,
inseridos no quadro de controle e observação das expressões e paixões, dos gestos e
dos afetos, delineavam perfis de discrição e excesso. Partindo dessa perspectiva, o
silêncio não será ausência de significado, um parênteses de incomunicabilidade em
uma sociedade na qual a conversação foi elevada à condição de arte. O silêncio, aqui,
será uma forma de conversa.
e Haroche dedicado à história do controle da expressão na modernidade. COURTINE, JeanJacques, HAROCHE, Claudine. Histoire du visage. Paris: Rivage, 1988.
7
Como se observará, o termo “sujeito” foi muito utilizado ao longo do texto, onde muitas
vezes poderíamos ter recorrido à palavra “pessoa” (“indivíduo” nunca pareceu adequado).
Este recurso não foi acidental. Antes, remete a uma das leituras à qual mais devemos a
presente reflexão: os estudos de Michel Foucault sobre as práticas e técnicas de si, em
especial a já citada Hermenêutica do sujeito. Guardadas as adequadas proporções de porte,
importância, recorte e objetivos, nossa pesquisa quis também colocar problemas sobre a
relação entre sujeito e verdade na medida em que o moralismo francês é herdeiro e
interlocutor direto dos teóricos clássicos que lançaram as bases da noção de cuidado e
conhecimento de si.
11 II. INTRODUÇÃO
A pesquisa que empreendemos transita entre algumas referências e temas que
tornaram a elaboração do problema possível: será entre esses autores e livros que
buscaremos inserir nossa contribuição. Em primeiro lugar, nosso estudo reconhece
sua dívida com os muitos autores que se debruçaram sobre a história das artes da
conversação e que, por sua vez, se inserem mais ou menos diretamente na tradição
interpretativa do chamado “processo civilizador” desenvolvida por Norbert Elias.
Colocando o acento ora sobre o papel das mulheres (Craveri), a elucidação filológica
de termos e categorias fundamentais à produção seja escrita ou oral do período
(Auerbach e Fumaroli), sobre a produção e circulação de impressos na constituição da
cultura letrada moderna (Chartier), ora sobre as práticas de controle dos gestos,
palavras e expressões (Jean-Jacques Courtine e Claudine Haroche) todos esses autores
trouxeram luzes e contribuições diferentes ao entendimento de práticas características
do processo civilizador ocorrido desde fins da Idade Média, intensificado nos séculos
XVI, XVII e XVIII. Nossa investigação não poderia deixar de se fundamentar no
debate sobre o desenvolvimento da civilidade mundana, das normas sociais e dos
ideais de depuramento de si.
De acordo com a italiana Benedetta Craveri, a chegada dos ideais de polidez e
civilidade na França pode ser compreendida em um contexto de crise identitária da
nobreza. Embasada na hipótese de Davis Bitton, Craveri ressalta as naturezas
econômicas, psicológicas e sociais de tal fenômeno em meio a mudanças radicais
geradas pelas guerras de religião, desenvolvimentos econômicos e científicos. Sem se
ater a detalhes de tal processo, a historiadora aponta para um grupo social
tradicionalmente importante – a nobreza – que viu suas funções na defesa do reino
serem cada vez mais contestadas, bem como cargos de administração local
favorecerem plebeus enriquecidos, que se infiltraram no corpo da nobreza. Disso
decorreu que, como resposta a incertezas identitárias, a ideologia nobiliária deu
uma “nova definição de sua própria pertença”, enfatizando não mais o valor das
armas, mas sim o das genealogias e do estilo. Desse modo, a nobreza buscou novos
símbolos e signos distintivos para aqueles auto-reconhecidos – segundo a própria
etimologia da palavra “aristocrata” – como os melhores.8 O estilo compunha uma
maneira de viver – o saber viver (savoir-vivre), na verdade – pela qual esse grupo
8
CRAVERI, B. Op. Cit., pp. 26 - 27.
12 poderia se distanciar dos demais por ares e costumes cultivados. 9 Mais do que em
campo de batalha, ou nos carrosséis, foi nos espaços da cortês sociabilidade, da
conversação polida e regrada, da moralidade político-religiosa da cortesania, que os
nobres fundamentaram seus hábitos de distinção.10 A cultura da cortesania produziu,
durante três séculos, um vasto corpo de textos (tratados, manuais, memórias,
máximas), que ajudou a difundir regras de civilidade que “visaram submeter as
espontaneidades e as desordens, assegurar uma tradução adequada e legível da
hierarquia dos estados, desenraizar as violências que dilaceravam o espaço social”.11
As artes da conversação ofereciam exemplos e normas com os quais podiam
se munir os interessados em regular seus menores gestos, palavras e expressões de
modo que pudessem agradar nos círculos da alta sociedade. Tal forma de aprendizado
se caracterizou primordialmente como algo prático: Craveri privilegia os círculos
restritos como o lugar de censura e difusão das mais novas regras de decoro. Nessas
reuniões, um pequeno grupo de seletos se reunia para jantares, conversas e jogos. Não
se tratava de uma corte ritualizada e povoada, mas de um grupo pequeno, autoselecionado e gerenciado pelas figuras femininas. Seguindo a fórmula postulada por
Guazzo, seu número ideal era de três a nove nobres.12
Nos salões, as mulheres eram as responsáveis por policiar os costumes,
reprovar e louvar, desgraçar ou receber um novo conviva. Esse papel central nas
novas práticas que compunham a arte de viver, ou arte mundana, configura um
importante deslocamento nas funções socialmente atribuídas às mulheres e cujas
consequências nem um pouco negligenciáveis Benedetta Craveri foi capaz de
demonstrar em seu estudo. A partir do reinado do Valois Francisco I (1515–1547), a
presença feminina na corte deixou de se restringir ao círculo familiar. Ali, elas
participavam das festas de homenagem de ostentação cavalheiresca, cujo culto à
9
N’A sociedade de Corte de Norbert Elias, a palavra ou quase conceito de “distância” talvez
seja um dos termos-chave para compreendermos a postura comum, a estratégia e objetivo
final da reformulação comportamental operada no processo. ELIAS, Norbert. A sociedade de
corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar ed., 2001, passim.
10
CRAVERI, B. Op. Cit., p. 27.
11
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Editora
UNESP, 2004, p. 45.
12
GUAZZO apud CRAVERI, B. Op. cit., p. 184. “(...) que o banquete deve começar pelas
Graças e terminar pelas Musas: quer dizer que o número de convivas não seja menor do que
três nem maior do que nove”. [“(...) que le banquet faut commence par le Grâces et finisse par
les Muses : c’est a dire que le nombre des convives ne soit pas moindre de trois ny plus haut
que de neuf”] (Tradução livre).
13 mulher herdado da Idade Média permaneceu central na ambígua identidade nobiliária
masculina que transitava entre a misoginia (da mulher como emblema vivo dos
perigos da queda original) e elevação (pelo amor, pela virtude, pela beleza), mas
também exerciam influência por confiança e proximidade aos soberanos.13 Assim
permaneceu essa presença desde então, certamente amplificada pela autoestima
política feminina inflada pelas três rainhas que em menos de um século governaram a
França em nome de seus filhos (Catarina de Médici – regente entre 1547 e 1559 –,
Maria de Médici – regente durante a minoridade de Luís XIII – e Ana de Áustria –
rainha regente de 1643 a 1651), bem como as frondeuses que se levantaram contra
Mazarino: a partir de 1620 – e por mais de vinte anos – a literatura e a iconografia
francesas se alimentaram dos arquétipos da “mulher forte” difundindo amazonas com
capacete e empunhando espadas.14 Tais poderes femininos, mais ou menos pacíficos
ou belicistas, foram casos importantes, mas excepcionais. Concomitantemente a esse
fenômeno, em meados do século XVII o que se observa é o deslocamento da
influência aristocrática feminina, até então restrita, para outra zona “a meio caminho”
do espaço doméstico e a esfera oficial da corte.15 Atrasado pelas guerras civis de
religião, o ideal quinhentista da conversação de uma Itália toute catholique chegou à
França de Henrique IV (1589–1610).16
Francisco de Sales (1567–1622) publicou seu livro Introduction à la vie
dévote no início do século XVII (1609). Ambos Marc Fumaroli e Benedetta Craveri
destacam a influência do pensamento do clérigo cujo processo de beatificação teve
início logo em seguida à sua morte. Segundo Marc Fumaroli, foi Francisco de Sales
quem deu forma à mundanidade cristã feminina no século XVII: nela foram criadas as
grandes senhoras – como Rambouillet e Sablé – cuja missão constituía a
“espiritualização dos lazeres nobres, a começar por seus parceiros masculinos, sem
por isso torná-los sombrios ou clericalizá-los”.17 Delineava-se em de Sales certa
ascese intramundana pela qual a mulher deixaria de ser mera espectadora dos jogos
sociais e, de todo modo, passaria a executar no seio deles o papel central de
reguladora moral. No século XVII, em nenhum momento, tal posição foi consenso: as
críticas aos divertimentos agregaram em torno de si partidos importantes. Destaque 13
Idem, pp. 33–36.
Idem, p. 49.
15
Idem, p. 41.
16
FUMAROLI, Marc. La diplomatie de l’esprit. Paris: Gallimard, 2001, p. 296.
17
Idem, pp. 324–325. (Tradução livre)
14
14 se, porém, a importância da doutrina salesiana na constituição da civilidade cristã
feminina que via usos edificantes nos lazeres: depois de Francisco de Sales “as
manifestações da polidez, ‘a face e as palavras ornadas de felicidade, alegria e
civilidade’, poderiam agora se tornar expressão da alma e um testemunho eloquente
da presença de Deus”.18 A posição delicada (ou contraditória, segundo Craveri) da
dama mundana cristã – “chamada a consagrar-se a Deus e a viver no mundo, a dar-se
em espetáculo e nada conceder de si mesma” 19 – ficará mais evidente aos nos
determos ao estudo do caso da marquesa de Sablé.
Nos salões, aprendiam-se os códigos de reconhecimento compartilhados pela
elite, a honnêteté, os decoros, o puro e bom uso do francês: além da corte, a
convivência mundana era a pedagogia prática que servia de ritual de iniciação à
identidade nobiliárquica. Era o espaço de difusão e de conservação dos ideais de
nobreza em franca reelaboração. Mas não somente isso – e aqui reside a ambiguidade
do salão no processo tratado, enfatizada por Benedetta Craveri. Fundado tanto sobre o
princípio de exclusão – como toda sociedade restrita, com signos e códigos próprios –
e da cooptação – pois era sociedade auto-selecionada fundada também no mérito
moral de seus participantes –, o salão servia tanto à definição da identidade
nobiliárquica quanto à ascensão social. Segundo Craveri, “os elementos mais
empreendedores e ambiciosos da burguesia observavam, copiavam, interiorizavam o
modelo de comportamento aristocrático e não cessavam de imitá-lo”. 20 Para muitos
homens, o salão era meio de aprendizado e ascensão, pois ali a honesta masculinidade
era obra feminina e justamente ali era posta à prova da sociedade.21 Mesmo o salão da
senhora de Rambouillet, reconhecido pela posteridade como o bastião desse novo
corpo de valores tinha, em um de seus mais assíduos e engenhosos frequentadores,
um burguês: Vincent Voiture.22 Fora dos salões, no âmbito da corte, um dos críticos
mais revoltados e atentos ao fenômeno de ascensão de plebeus foi o duque de SaintSimon, cujos rígidos valores de pureza de linhagem foram atentamente analisados por
Emmanuel Le Roy Ladurie. Ironicamente, o próprio duque não tinha linhagem na alta
18
CRAVERI, B. Op. cit., p. 41. (Tradução livre)
Idem, p. 40. (Tradução livre)
20
Idem, p. 52. (Tradução livre)
21
FUMAROLI, M. Op. cit. (2001), p. 332.
22
Idem, pp. 80–107.
19
15 nobreza, uma vez que seu avô alcançara uma graça que o elevara.23 Dentre os “líderes
intelectuais da época”, segundo a formulação e extensa listagem empreendida por
Erich Auerbach, “são poucos os que pertenciam inequivocamente à velha aristocracia
feudal”.24
Tudo indica, portanto, que as fronteiras da vida da nobreza se deslocavam
constantemente, pois eram definidas em um processo orgânico, pluricentrado no corte
e nos salões, tendo como juízes, nesse último caso, as mulheres. Presidentes do
cerimonial mundano, legisladoras das bases sobre as quais seriam julgados os mais
amáveis, polidos e espirituosos, os mais refinados, os mais honestos, as mulheres do
grand monde ajudaram a definir a identidade cultural francesa na era da
conversação.25 Se o estilo se estendia em muito ao vestuário e às aulas de dança que
remodelavam a postura, para as mulheres, “a obrigação de parecer não se limitava à
representação corpo e à elegância dos gestos, ela implicava igualmente a arte da
palavra.26 De fato, sublinha Craveri, não é coincidência que o aumento do papel
feminino na sociedade polida do século XVII tenha se dado em um terreno no qual o
Estado vinha, especialmente depois de Richelieu e da Academia Francesa (1635), se
lançado à empreitada de reformas e dominação no âmbito da política cultural: a
língua.27 Aliás, Richelieu interrompeu as reuniões do cercle Conrart – grupo mundano
e masculino de convivas, voltado às conversações de diversão e livres – para
submetê-los ao Estado, criando, assim, a Academia Francesa.28
23
LE ROY LADURIE, Emmanuel. Saint-Simon, ou o sistema de corte. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004, p. 11: “Efetivamente, Luís era de ‘boa’ família ainda que de
pequena nobreza; a ascensão social da qual se beneficiou o progenitor, ou seja, Claude,
primeiro duque de Saint-Simon, havia deixado para o filho, além do título ducal, riquezas
bem consideráveis (...) Saint-Simon pai tornou-se, na época do reinado precedente, o
protegido de luís XIII, do qual era pajem de cavalariça; ele sabia soprar na trompa de caça
sem cuspir dentro, qualidade inestimável do agrado desse soberano então chamado Luís, o
Justo”.
24
AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental – Filologia e crítica. São Paulo: Ed.
34, 2007, p. 255. Um dos que fugiu à “regra” foi justamente François VI de La
Rochefoucauld, herdeiro de um dos sobrenomes mais antigos da França.
25
CRAVERI, B. Op. cit. p. 51.
26
Idem, p. 40. (Tradução livre)
27
Idem, p. 45.
28
Sobre a gênese e funções atribuídas à Academia cf. o capítulo “La Coupole” em
FUMAROLI, M. Trois institutions littéraires. Paris: Gallimard, 1994, pp. 9–110 e
HAROCHE, Claudine. “Le pouvoir absolutiste face aux manières conviviales des cercles au
XVIIe siècle”. Politiz, 1994, volume 7, número 26, pp. 67–75, disponível online na base
Persée.
16 Esta sociabilidade mundana fundamentada na arte da conversação cortês se
tornou a marca distintiva da França (onde “passou por quatro séculos por um esporte
nacional, e mesmo especificamente parisiense”)29 e dos franceses, autoridades no
assunto até o século XVIII, “quando a Europa falava francês”. 30 Importante no
surgimento da opinião pública, nos debates sobre o bom gosto e o estilo, na ascensão
e desgraça social, a forma de convívio ordenada pelas mulheres foi um fenômeno
caracteristicamente urbano e aristocrático. É o que podemos inferir do paralelo entre,
por exemplo, os diálogos de Castiglione, os estudos de Craveri e Fumaroli que
embasam nossa pesquisa e outros documentos franceses, com alguns trechos do
estudo de Emmanuel Le Roy Ladurie acerca dos camponeses franceses,
especialmente no momento em que trata de seu universo mental no século XVIII.
Baseando-se em Rétif de La Bretonne (1734 – 1806), Le Roy Ladurie consegue nos
descrever e analisar um pouco da sociabilidade familiar camponesa do século de Luís
XV. Se pelo menos desde O cortesão de Castiglione temos documentado
detalhadamente o papel feminino na organização das conversações, na limitação e
ordenação das falas masculinas, da represália aos excessos verbais, segundo Le Roy
Ladurie, em Rétif de la Bretonne – já no século XVIII – temos um retrato
absolutamente distinto e que muito provavelmente corresponde com a estrutura básica
da sociabilidade dos camponeses franceses do Antigo Regime. O papel de falar,
interromper e distribuir a fala pertencia ao pai, autoridade total no lar. Ele falava
sobre religião, sobre as cidades vizinhas – pois era ele quem se deslocava –, sobre o
tempo e a lavoura. Ele realizava as leituras em voz alta, disciplinava igualmente
filhos, empregados e mulher. Sua autoridade – como a das mulheres nos salões nobres
– servia para calar e obrigar à fala.31 Tal exemplo distante temporal e socialmente
daquele por nós circunscrito nos ajuda a refletir sobre quanto se diferenciaram as
práticas da cidade e da corte – seguindo de perto o ritmo das mudanças culturais e
políticas – e do campo – seguindo mais intimamente o ritmo da produção da terra. O
fenômeno que estudamos, da forma como estudamos, foi, antes de mais nada,
urbano.32
29
FUMAROLI, M. Op. cit. (2001), p. 284. (Tradução livre)
FUMAROLI, Marc. Quand l’Europe parlait français. Paris: Hachette, 2003.
31
LE ROY LADURIE, Emmanuel. História dos camponeses franceses: da Peste negra à
Revolução. 2º volume. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 213–214.
32
Tenha-se em mente, como defesa desse argumento, o próprio termo urbanità, equivalente
italiano da civilité, que deriva etimologicamente do latim urbanitas.
30
17 ***
As artes da conversação eram motivo de debate entre seus praticantes,
moralistas e críticos. O Chevalier de Méré (1607 – 1684) (que foi amigo de La
Rochefoucauld), escrevendo em 1677, traçou um paralelo entre corte e alta sociedade,
defendendo que “há muita diferença entre uma e outra”. Se a “corte que é tomada
como modelo é uma afluência de todo tipo de gente” tem “seus defeitos e seus
limites”, por outro lado, “a alta sociedade que se estende por toda parte é mais
perfeita”.33 Uma contraposição interessante entre a corte – no Louvre, Fontainebleau
e, rumo ao fim do século, em Versalhes – e os círculos nobres, distribuídos em ruelles
e chambres pelos castelos e por Paris. Se a “bela conversação” era marcada pela
intimidade e auto-seleção dos convivas, a corte era o espaço da ambição, dos
cortesãos de profissão e dos excessos. Aproveitando a analogia proposta por Marc
Fumaroli, se a conversação mundana, que caracterizou o reinado de Luís XIII, era
uma “questão de harmonia entre os espíritos” como o concerto de câmara sem
ouvintes,34 no qual os instrumentistas tocam para o próprio deleite, a corte – que sob
Luís XIV se tornou um ambiente de convivência e conversação – era uma orquestra
grande e complexa que tocava em torno de um maestro, sob os olhos de muitos.
Na França, a cultura mundana se desenvolveu ao longo dos séculos XVII e
XVIII por uma vasta literatura sobre as artes de viver em sociedade, um corpo grande
de referências (como metáforas, lugares-comuns e máximas) que facilitassem o
aprendizado, sem falar nos vários ideais de comportamento. Essa cultura,
indissociável da moralidade cortês e cristã, por mais rígida e normatizada que fosse
(com seus escrúpulos e formas de tratamento) não deixou em nenhum momento de
provocar debates entre seus praticantes e interessados. Os mais versados e aplicados
em realizar a síntese formal e/ou a crítica desses costumes foram chamados de
moralistas. Hoje chamamos de moralista um grupo heterogêneo de pensadores
provenientes das mais diferentes classes e profissões, imbuídos dos mais diferentes
propósitos, alinhados às mais diversas tendências do pensar e munidos de variados
instrumentos para realizar essa tarefa. Moralistas foram homens e mulheres, nobres e
33
GOMBAUD, Antoine, Chevalier de Méré. In. MORRELET (et al.). A arte de conversar.
São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 13.
34
FUMAROLI, M. Op. cit., (1994), S/p. Legenda à ilustração número 10.
18 burgueses, laicos e clérigos, retratistas, satiristas, fabulistas, dramaturgos. Por ser
“moralista” uma definição essencialmente anacrônica – mas não de todo inoperante –
é natural que a mesma definição transpusesse fronteiras e abarcasse em torno do
universo que cria uma massa bem dissemelhante de escritores e textos. 35
Por ora vale ressaltar que uma pesquisa que pretenda investigar a fundo os
elementos constitutivos dos usos e normas de taciturnidade no século XVII deve ter
em mente que no período tratado as práticas de disciplinamento surgem no seio da
cristandade em meio à luta contra as heresias, sob um Estado em pleno processo de
reformulação de suas prerrogativas e rituais, entre os espaços das cortes e os círculos
mundanos. No que diz respeito ao Estado, autores como Michel Senellart ou Reinhart
Koselleck contribuíram para o entendimento do segredo na política moderna: o
primeiro aproximando concepções como a de arcana imperii e práticas como o
secretariado, a criptografia e o sigilo diplomático ao desenvolvimento da noção de
razão de Estado; 36 o segundo, demonstrando que, no século XVIII, a burguesia
desenvolveu pela participação comum no segredo que preservava as lojas maçônicas
(e que emulava os mistérios da Igreja ou do Estado) uma “forma social própria”
fundamentada no monopólio da moral, central ao desenvolvimento da opinião pública
Iluminista.37
O Estado não permaneceu alheio às mais diversas estratégias de contenção da
palavra. Além do segredo, diversas fontes atestam que o autocontrole da fala por parte
do rei ou dos cortesãos – cujo convívio na corte era caracterizado por disputas entre
cabalas – ajudou na elaboração de certo cálculo social fundamentado no uso público
da prudência. Na corte e nos salões, o silêncio se tornou, gradativamente, o partido
mais seguro para a preservação dos limites de si e a apresentação adequada das
próprias capacidades.
***
35
A primeira definição de dicionário que encontramos é a do Dictionnaire de l’Academie
Française de 1762 (4ª edição): “MORALISTE. subst. m. Écrivain qui traite des moeurs. Un
bon moraliste”. Dentre os exercícios mais extensos e metódicos de definição do moralista,
estão VAN DELFT, Louis. Le moraliste classique. Essai de définition et de typologie e Les
moralistes. Une Apologie. Paris : Gallimard, 2008, além de BÉNICHOU, Paul. Morales du
grand siècle. Paris: Gallimard, 2010.
36
SENELLART, Michel. As artes de governar. São Paulo: Ed. 34, 2006, pp. 272–273.
37
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo
burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999, pp. 56–88.
19 A temática do silêncio é ampla; suas abordagens também. Uma história que
pretenda dar conta, em alguma medida, da totalidade dos comportamentos silenciosos
em certo período se mostra tão incontornável quanto inexequível, pois os saberes,
ideais e normas constituídos em torno da taciturnidade não podem ser delimitados a
um ou outro campo de análise (a política, a cultura, o sagrado) sem negligenciar suas
interpenetrações, empréstimos e intervenções recíprocas. Tomemos o círculo dos
convivas em torno da marquesa de Sablé como exemplo desse problema teóricometodológico:
como
compreender
as
formulações
partilhadas
entre
La
Rochefoucauld, Esprit e Sablé? Sob o viés do jansenismo de Sablé, o agostinianismo
e libertinismo de La Rochefoucauld, a teologia austera de Jacques Esprit? 38 Ou
deveríamos buscar no pessimismo de La Rochefoucauld e Esprit a oposição e
perseguição levada a cabo por Mazarino? Não confluiriam nas máximas da Sablé
outros elementos senão aqueles digeridos do convívio mundano do hôtel de
Rambouillet ou na corte, os lugares-comuns do prudencialismo mundano? Ou ainda,
invertendo um pouco a ordem do questionamento, não seria a moral mundana um
assunto religioso ou o jansenismo um affaire político?39
Em nossa pesquisa, a leitura das fontes moralistas considera que os lugarescomuns sobre o silêncio – abarcando o dito e o não dito – exerciam funções
normatizadoras no quadro das práticas civilizatórias, religiosas e políticas. Nos salões
onde a arte da conversação regrada era praticada, os ideais de honestidade e
adequação serviram de critério aos quais todos deviam se submeter e pelos quais os
mais hábeis eram capazes de se destacar. Quanto à palavra, um indicativo disto é a
máxima 142, escrita pelo duque de La Rochefoucauld, da qual escolhemos uma parte
como título desta dissertação. Para o moralista, as pessoas de inteligência e agudeza
limitadas falavam muito e diziam pouco, enquanto o traço dos mais hábeis – “le
caractère des grands esprits” – era a maestria precisa da palavra (no caso, a
38
Sobre o agostinismo, o principal estudo é o de LAFOND, Jean. La Rochefoucauld –
Augustinisme et littérature. Paris: Éditions Klincksieck, 1977. Sobre a temática do
libertinismo de La Rochefoucauld, cf. MINOIS, Georges. “Le temps des libertins” In. La
Rochefoucauld. Paris: Éditions Tallandier, 2007, pp. 109–150.
39
Conforme os recentes estudos de KOSTROUN, Daniella. Feminism, Absolutism, and,
Janenism. Cambridge: Cambridge University Press, 2011 e GAY, Jean-Pascal. “Le
jansénisme des Dames Maltaises. Genre, savoir théologique et publicité (Toulouse, 1659–
1661) [I e II]”. In. Revue de l’histoire des religions. Tomo 230, nº 3, Julho–Setembro de
2013, pp. 354–383 e Tomo 231, nº 1, janeiro–março de 2014, pp. 71–99.
20 brevidade).40 O axioma é um indício da hipótese que seguimos, pela qual os usos da
taciturnidade faziam parte do cálculo de distinção das elites letradas em questão.
Nesse contexto, as atitudes decorosas que em seu conjunto constituíam um verdadeiro
adestramento social do sujeito funcionavam como artifícios de eloquência cuja
instrumentalização visava a ascensão social e, fator privilegiado aqui, consolidador
dos vínculos de amizade. Isso tudo sem esquecermos que as duas décadas anteriores à
Fronda e as duas décadas em seguida ao conflito, além do período em que se
desenvolveu com mais vigor a cultura de salão na França seiscentista, foi também
marcado pelo desenvolvimento de uma postura intelectual crítica. Das mazarinades e
Fábulas às Provinciais passando por moralistas e libertinos dos mais diferentes
matizes, a cultura mundana cujo berço é o salão viu nascer uma postura combativa,
cujas críticas podiam se voltar à Corte, aos jesuítas e jansenistas, mas ainda: a si
mesmos. O salão, locus amoenus do divertimento, foi para muitos a antítese do que
significava a corte, o locus terribilis do interesse. Essa postura e este espaço só
vieram a ser eclipsados com o governo pessoal de Luís XIV, iniciado em 1661, mais
intensificado com a transferência definitiva da Corte para Versalhes, em 1682. Não à
toa, o ressurgimento dos salões no século XVIII coincidiu precisamente com o
desenvolvimento do Iluminismo francês.
Dividimos a presente investigação em duas partes. Na primeira delas
acompanhamos a trajetória da marquesa de Sablé, de La Rochefoucauld e Jacques
Esprit, investigando a formação recebida, os nichos sociais frequentados e a atuação
deles. Desse modo, menos do que explicar – como uma fórmula – os fatores que os
levaram a desenvolver certa moralidade ou obra, tentamos apenas destacar os
elementos que tornaram esse mesmo processo (o devir moralista) possível. O
movimento proposto pode somente contribuir com a posterior análise e interpretação
das fontes, já que são cruciais os aspectos que aproximam (ideais, formas literárias,
críticas morais, o convívio) e particularizam cada moralista (idade, formação, classe
social, referências, atuação política, tom).
Feito isso, analisaremos as principais práticas de silêncio encontradas na
leitura dos documentos, sejam eles máximas, tratados, retratos, reflexões ensaísticas
ou cartas dos moralistas em questão. As principais fontes utilizadas foram as cartas da
40
Máxima 142: “Comme c’est le caractère des grands esprits de faire entendre en peu de
paroles beaucoup de choses, les petits esprits, au contraire, ont le don de beaucoup parler, et
de ne rien dire”.
21 marquesa de Sablé, Jacques Esprit e La Rochefoucauld; as máximas de La
Rochefoucauld e da marquesa de Sablé e as reflexões mais extensas de La
Rochefoucauld e Jacques Esprit. Os usos foram divididos, em grupos que abrangem
desde as civilidades epistolares e dialógicas, até problemas de consciência
relacionados à adequada apresentação de si em sociedade. Assim, a segunda parte da
dissertação se inicia com um debate preliminar sobre a precedência lógica do silêncio
em relação ao bem falar. Em seguida, analisaremos quatro modalidades de silêncio
encontradas nas fontes: a) o silêncio como justificativa decorosa com vistas a reforçar
os laços de amizade (capítulo amplamente baseado nas cartas da marquesa de Sablé);
b) o silêncio de concessão do apanágio de fala como prática fundante do ideal de
honestidade (baseado principalmente nas máximas e reflexões de La Rochefoucauld,
mas também em Sablé); c) o silêncio em sua articulação com os usos do segredo, seja
na política, na confidência mundana ou na ascese cristã (a partir de La Rochefoucauld
e Esprit, mas também Mazarino e Accetto) e d) a crítica ao silêncio artificioso como
problema para a adequada e verdadeira apresentação de si (das leituras de Esprit e La
Rochefoucauld).
22 PARTE 1
TRAJETÓRIAS DE VIDA
E FORMAÇÃO DE UM CÍRCULO DE CONVIVAS
23 III. A MARQUESA DE SABLÉ
A vida de Madeleine de Souvré, a marquesa de Sablé, permanece um tanto
obscura, mesmo para os mais familiarizados com a história da França seiscentista.
“[A marquesa de Sablé], tão conhecida por seu espírito e pela singular consideração
que soube adquirir e conservar durante toda a sua vida” “foi o ornamento de seu
século, as delícias de seus amigos, um bem geral, e deixa com sua morte um vazio
enorme no mundo”. 41 O leitor ou pesquisador que se depara com um depoimento
como o do duque de Saint-Simon (1ª citação) ou a emocionada homenagem póstuma
do abade d’Ailly (2ª citação) logo se pergunta se estes elogios seriam outros exemplos
das hipérboles e adjetivos característicos da escritura seiscentista – e sobre os quais
não podemos nos fiar sem grandes ceticismos –, ou se algo ocorreu para que o nome
da marquesa tenha se tornado menos recorrente em estudos, suas máximas menos
vistas nas estantes.
Ironicamente, a mesma tradição crítica nascida dos estudos de Victor Cousin,
a tradição que trouxe à luz e ao conhecimento gerais os principais documentos e
cartas relativos à vida da marquesa de Sablé, foi também a responsável por “rebaixála” a um posto menor na produção de sua época. Por um sutil anacronismo, Victor
Cousin ou Nicolas Ivanoff, por exemplo, gravaram a imagem de Madeleine de Souvré
como alguém muito importante para seus amigos, mas cujas máximas medíocres
ficariam sempre à sombra de um La Rochefoucauld.42 Com um marido negligente e
um tanto medíocre, foi Madeleine quem “fez” o nome Sablé: mas o fez ajudando aos
outros, içando seus amigos ao reconhecimento. O sutil anacronismo de que falamos
fica mais evidente posto desta maneira: a excelência dos amigos da marquesa seria
medida pelo sucesso literário ou os feitos estético-filosóficos logrados em suas obras
(destaques para Pascal e La Rochefoucauld); mas muito certamente, estes feitos não
significavam ou queriam dizer a mesma coisa no século XIX – quando escreveram
41
Respectivamente SAINT-SIMON apud LAFOND, Jean. “Mme de Sablé et son salon” In.
Images de La Rochefoucauld – Actes du tricentenaire (1680–1980). Paris: Presses
universitaires de France, 1984, pp. 202–203 e D’AILLY apud COUSIN, Victor. Madame de
Sablé – Nouvelles études sur la société et les femmes illustres du XVII siècle. Paris: Didier et
cia., 1859, p. 369. “[La marquise de Sablé] si connue par son esprit et par la singulière
considération qu’elle sut s’acquérir et se conserver toute sa vie” e “a été l’ornement de son
siècle, les délices de ses amis, un bien général, et laisse par sa mort un si grand vide dans le
monde”. (Tradução livre)
42
IVANOFF, Nicolas. La marquise de Sablé et son salon. Paris: Les presses modernes, 1927.
24 Sainte-Beuve ou Cousin – e no século XVII – quando escreveram seus convivas e
contemporâneos. O papel desempenhado pela marquesa de Sablé na época em que
viveu vai muito além da produção escrita, sobre a qual muitos ainda tendem a se fiar
para destacar a importância de um agente histórico. Sablé foi grande dame preciosa e
devota das mais influentes, e isso poderia ter sido sem que tivesse escrito mais que
seu contrato de casamento, cartas e bilhetes.
Se quisermos obter outra compreensão da relevância da marquesa de Sablé no
período em que viveu e um entendimento mais seguro sobre o desenvolvimento de
suas ideias morais, será preciso partir de premissas e problemas distintos. Qual era sua
atuação, em que espaços transitava a marquesa? Que influências e conflitos
convergiram na formação de suas ideias e atitudes? Se acompanharmos sua trajetória
em paralelo com as de La Rochefoucauld e Jacques Esprit, fazendo-as se cruzarem
pelas conversações e trocas epistolares, conseguiremos vislumbrar os limites da
aproximação e particularização da obra de cada um, misto de trabalho coletivo e
individual.
***
O não muito extenso grupo de estudiosos que acompanhou a trajetória
biográfica da marquesa de Sablé realizou esforços interessantes em periodizar sua
longa vida. Victor Cousin organizou seu estudo em capítulos que parecem seguir
Madeleine por seus diferentes apartamentos e habitações: infância na Touraine,
morada próxima ao Louvre, apartamento da Place Royale e, enfim, Port-Royal.
Assim, a mudança dos espaços de vida seguiria a mudança de estilo de vida, de
objetivos, acompanharia mesmo os eventos políticos no contexto.
Nicolas Ivanoff, por outro lado, realizou sua periodização cindindo a vida da
nossa marquesa em dois arquétipos, os quais ela teria sido/exercido durante sua
primeira vida (da juventude até a idade adulta) e sua segunda vida (de sua vida adulta
até a velhice). Em um primeiro momento, Sablé seria a preciosa: frequentando por
mais de 20 anos a paradigmática ruelle bleue do hôtel de Rambouillet,
Stéphanie/Parthénie – Madeleine teve vários apelidos de preciosa – teria construído
ali um conhecimento sólido sobre o uso do bom francês, os hábitos em sociedade, os
tipos de amor, a galanteria... Até que em algum momento na década de 1640 houve
sua conversão em devota: deste momento em diante, os esforços de Madeleine se
25 direcionariam mais e mais à única meta de preservar sua vida e alma, sua saúde e
Port-Royal.
Ambas periodizações são enriquecedoras. Antes de se excluírem, as duas se
complementam muito bem. Os espaços nos quais viveu e frequentou Madeleine dão
subsídios para traçarmos sua sensibilidade, escolhas e responsabilidades como grande
dame seiscentista. São espaços de naturezas diferentes: aqueles nos quais Sablé
escolheu viver, onde exerceu a liberdade consentida a uma mulher de classe
privilegiada e aqueles nos quais Sablé não escolheu viver, mas que as circunstâncias
escolheram para ela (isolamento conjugal, problemas financeiros, fuga de conflitos
políticos). E é possível observar um movimento em sua vida que direciona – da
juventude à velhice – da sociedade ao isolamento. Um movimento marcante: e aqui
está o problema. Pois em nenhum momento as escolhas de Madeleine pressupuseram
qualquer tipo de exclusão definitiva. O mundanismo e a religiosidade, o preciosismo
do salão e o pudor cristão marcaram momentos diversos de sua existência pela
intensidade com que foram exercidos, mas se entrelaçaram de forma tão estreita em
sua
moralidade
que
é
impossível
desassociá-las,
senão
nuançar
quando
predominaram. E é justamente desta conciliação de vidas e círculos, e justamente para
que ela fosse possível, que se desenvolveu a conduta moderada que tantos
comentadores e contemporâneos destacam.43
III.a. A formação de uma preciosa devota
Madeleine de Souvré nasceu na Touraine, sudoeste da França, em 1598, filha
de uma família muito bem posicionada. O pai Gilles de Souvré (1542–1626), marquês
de Courtenvaux, barão de Lezines, cavaleiro das ordens do Rei teve com Françoise de
Bailleul (? – ?), senhora de Renouard, um total de sete filhos. Gilles ocupou cargos
consideráveis durante o reinado de Henrique III, Henrique IV e Luís XIII. Ligado ao
duque de Anjou, a quem seguiu em campanha na Polônia, quando este se tornou o rei
Henrique III, Gilles se tornou maître de garde-robe e capitaine du château de
Vincennes. Deste ponto em diante, a trajetória de Gilles parece ter sido de ascensão
ininterrupta: em 1588 se tornou governador da Touraine, em 1589 obteve entrada,
43
Dentre eles destacamos especialmente o capítulo “Madame de Sablé: A Jansenist code of
moderation” In. CONLEY, John. The suspicion of virtue – Women Philosophers in
neoclassical France. Ithaca-Londres: Cornell University Press, 2002, pp. 20–44.
26 serviço e voz deliberativa no Parlamento de Paris. Durante o reinado de Henrique IV
foi designado preceptor do delfim Luís XIII, a quem serviu em seguida e de quem
obteve o título de Maréchal de France.
Ainda que saibamos pouco sobre a infância de Madeleine – nascida de um
experiente e bem posicionado pai de cerca de 56 anos –, sabemos que em 1610, aos
11 ou 12 anos, já era demoiselle d’honneur da rainha regente Maria de Médici. Que
formação obteve ela durante este período? Em termos práticos é difícil de saber o que
lia, por quem fora educada, que meios frequentava: falta documentação. O que é
possível saber e está documentado é que Madeleine se casou muito bem, com
Philippe Emmanuel de Laval, marquês de Sablé, filho de uma figura ilustre, o
marechal Urbain de Laval Boisdauphin. O que também é possível saber com certa
precisão é que o casamento foi marcadamente infeliz para a jovem nobre, devido à
conduta de seu marido. Em todo caso, a união foi celebrada em 1614, quando
Madeleine tinha apenas 15 anos. Os anos de 1618 e 1619 foram passados no campo,
nos domínios de Sablé.
Retornar a Paris deve ter sido definitivo para Madeleine; e acabou sendo para
a alta sociedade. A frequentação de três grandes salões marcam a vida de nossa
marquesa. Na década de 1620 frequentou assiduamente o hôtel de Rambouillet. Sablé
tinha 10 anos a menos que Arthénice (Cathérine, 1588–c.1665) e sete anos a mais que
Julie (1605–1671, casada Montausier): isso a colocava estrategicamente entre duas
gerações de grandes damas, entre duas levas sucessivas da nova civilização mundana
que marcou a França após o reinado de Henrique IV.44 Esta frequentação assídua
durou cerca de vinte anos e firmou Sablé no lugar que ela ocuparia com mais ou
menos intensidade o resto de sua vida: o de influente preciosa mundana. Foi muito
provavelmente neste período que ocorreu a aproximação entre a marquesa e a cultura
espanhola.
Se a primeira metade do século XVII foi o momento de mais intenso
florescimento da cultura mundana de salão, a Fronda veio instaurar uma cisão. Menos
que uma cisão, na verdade, observa-se um eclipse temporário, pelo menos em
intensidade. O que não impedia que toda uma geração habituada de longa data à
frequentação mundana se reunisse em novos lugares. 45 A chambre bleue se
despedaçou em vários cacos que, reorganizados de maneira distinta, deram
44
45
CRAVERI, B. Op. Cit., p. 166.
Idem, p. 167.
27 nascimento a outras ruelles. Aqui já chegamos à experiência da marquesa, entre o fim
dos anos de 1640 e início de 1650 (inclusive durante a Fronda), quando frequentou os
famosos samedis de Mlle de Scudéry. O salão era heterogêneo no que diz respeito a
classes e qualidades, como sempre foram os encontros promovidos pela própria Sablé.
Nos sábados da senhorita de Scudéry cultivavam-se a poesia leve e epigramas
satíricos, e o lugar-comum do amor era discutido entusiasmadamente. No roman à
clef de Scudéry, o Grand Cyrus, a marquesa de Sablé aparece sob o pseudônimo de
princesa de Salamis. Segundo Scudéry, ninguém sabia tão perfeitamente quanto Sablé
das diferentes formas de amor: o amor puro e de palavra, o sincero e o fingido, o amor
interessado e heroico. A esta altura, a marquesa já parece reputada como moralista
especializada nos topoi do afeto.
Um pouco mais adiante na década de 1650, Sablé frequentou o salão de
senhorita de Montpensier. Era um espaço familiar: muitos de seus amigos iam às
reuniões, dentre eles a senhora de Sévigné, de Lafayette e François de La
Rochefoucauld. Foi neste grupo que se desenvolveu a voga dos portraits, a arte da
descrição engenhosa dos vícios e virtudes – morais ou físicos – de alguma pessoa em
particular. A própria senhorita de Montpensier fez circular um retrato da marquesa de
Sablé, sob o pseudônimo de Parthénie, sublinhando o traço excêntrico mais
comumente associado à sua personalidade: a hipocondria e pavor de doenças.
Em torno de si, a marquesa teve dois salões sucessivos. Primeiramente em sua
estadia na Place Royale, onde dividia apartamento com a condessa de Maure.
Segundo Nicolas Ivanoff, Sablé recebeu ali a “flor da nobreza e dos belos espíritos”,46
o que provavelmente é acurado, ainda que a marquesa demonstrasse grande
predisposição ao isolamento. Sablé teria recolhido os “escombros” do hôtel de
Rambouillet, do qual continuou a tradição.47 Não eram reuniões de todo nobres: o
mérito pessoal trazia ao salão pessoas de diferentes qualidades e opiniões.48 Tanto a
46
IVANOFF, N. Op. Cit., p. 27. (Tradução livre)
COUSIN, V. Op. Cit., p. 55.
48
Idem, p. 56. É necessário cuidado ao realizar esta precisão. Dizer que os salões recebiam
pessoas de diferentes qualidades não quer dizer que recebiam pessoas de diferentes
condições. Um nobre podia ter suas contas arruinadas, um burguês ser ou não rico, mas
ambos podiam se encontrar no salão. A diferença entre os dois é de qualidade, não condição
financeira. O que não se veria mesmo era um camponês ou um serviçal entre comensais de
um hôtel. Veja-se um exemplo do verbete qualité do dicionário da Academia Francesa
(1694): “Qualité, se dit aussi des Titres qu'on prend à cause de sa Naissance, de sa Charge, de
sa Dignité, de quelque prétention, &c. Il prend la qualité de Prince, de Duc, &c. qualité
d'Écuyer. qualité de bourgeois de Secrétaire du Roy”. A qualidade neste caso se aparenta à
47
28 natureza dos convidados, nobres e influentes burgueses, quanto a grande liberdade
com a qual conversavam atraíram a atenção de Mazarino já em 1644, antes da Fronda
dos príncipes. Conforme consta em seu Carnet do ano em questão, havia
Grande inteligência com a marquesa de Sablé… Na casa de
Sablé há um contínuo comércio com d’Andilly, a princesa de
Guéméné, d’Enghien, sua irmã, Nemour, e muitos outros; e lá
se fala de tudo livremente. É preciso ter alguém ali que possa
advertir o que se passará.49
Robert Arnauld d’Andilly (1589–1674), irmão do grand Arnauld, autor da
Fréquente communion: figura muito influente na corte de Maria de Médici;
acompanhou Luís XIII na campanha contra os huguenotes (1620–1622): ligado ao
jansenismo. A princessa de Guéméné, Anne de Rohan (1604–1685) – dois amantes
mortos no cadafalso: François de Montmorency-Bouteville por desrespeitar a
interdição aos duelos e François-August de Thou, por participar da conjuração de
Cinq-Mars –, convertida ao jansenismo com grande fervor, até sua participação na
Fronda. Nemours: Charles-Amédée de Savóia (1624–1652), morto em duelo por seu
cunhado, o duque de Beaufort, durante a Fronda, da qual aliás foi um dos chefes.
Eis algo sobre os nomes que atraem a atenção de Mazarino. A espionagem e o
acesso aos segredos dos súditos eram centrais nas técnicas políticas do cardeal. Sablé
não escapou às tentativas da corte e seus ministros de colocarem ouvidos nos espaços
privados onde se reunia a nobreza, estamento tradicionalmente rebelde. Mas o traço
distintivo do caráter da marquesa, a característica à qual será inevitavelmente
associada pela posterior tradição – o mesmo traço, inclusive, que marca
inconfundivelmente seu sistema moral, suas máximas –, foi a virtude que a salvou de
maiores perseguições e atraiu mesmo a estima de Mazarino: sua inegociável
moderação, suas habilidades diplomáticas em sociedade. Mesmo cercada de rebeldes
e jansenistas, ela mesma sendo uma patrona de Port-Royal, Sablé conseguiu manter
ideia de honestidade, de um ideal moral que transcende classes sociais: a adequada
apresentação da própria condição. Aliás, como enfatiza Jacques Wilhelm, baseando-se em
Georges Mongrédien, não há tarefa mais difícil do que dividir o todo da sociedade
seiscentista em classes, pois “a sociedade do século XVII é uma sociedade de ordens e não de
classes”. MONGRÉDIEN apud WILHELM, Jacques. Paris no tempo do Rei-Sol. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 38.
49
MAZARINO apud COUSIN. Idem, p. 57, n. 2. “Grande intelligenza con la marchesa di
Sablé… In casa di Sablé vi è un continuo commercio d’Andilly, la principessa di Ghimené,
Anghien, sua sorella, Nemur, e molti altri; e vi si parla di tutti liberamente. Bisogna aver
qualcheduno là chi possi avvertire di quello vi passerà”. (Tradução livre)
29 uma posição de conciliação entre diversos partidos, fiel à corte e a seu salão, à coroa e
a seus amigos. Em 1651, durante a Fronda, Mazarino escrevia em sua
correspondência que “sempre tive grande estima pela marquesa de Sablé e favoreci as
pessoas que ela estima ao ponto que se viu”.50 Nesta ocasião Mazarino favoreceu
René de Longueil (marquês, ou président de Maisons), nomeado por fim
superintendente de finanças (em 1650), somente depois de René de Longueil haver
ajudado a marquesa de Sablé a organizar suas próprias economias, no período crítico
que viveu após a morte de seu marido.51
O período da ruelle bleue marcou a formação de Madeleine em assuntos e
saberes do viver em sociedade. Destacada précieuse, Sablé acessou entre seus amigos
e amigas o conhecimento comum de assuntos morais, especialmente sobre o amor,
associados comumente a uma concepção espanhófila de galanteria. Foi o momento
em que a marquesa estabeleceu seu círculo de amizades e referências, em que se
moldou aos costumes e máximas da sociedade polida e também aos quais trouxe sua
contribuição, sendo uma das chefes do nascente preciosismo.
O momento em que viveu na Place Royale foi distinto, cheio de sofrimentos.
Em 1639 havia perdido o marquês d’Armantiers, um amante querido.52 Em 1640,
perdeu seu marido o que foi um choque menos pela ausência – é certo que Philippe
foi um péssimo esposo –, do que pela situação financeira em que deixou a marquesa.
Os anos de 1642–43 cruzam a trajetória de Madeleine com as polêmicas jansenistas, o
que devia ser, no mínimo, alarmante. Talvez o pior golpe foi em 1646: a perda de seu
filho, Guy de Laval, em Dunquerque. Em breve viria a Fronda. Não só a idade trouxe
moderação à marquesa. Sem marido, sem alguns dos filhos, falida financeiramente,
entrando em seus 50 anos, era preciso levar uma vida condizente com as
possiblidades e com as circunstâncias. Tudo isso permanecendo fiel a si mesma, às
suas convicções e consciência. Era preciso manter seu único apoio – os amigos – e era
preciso cuidar de sua salvação.53 Foi nesse momento de sua vida que a marquesa de
50
MAZARINO apud IVANOFF, N. Op. Cit., p. 36. “(...) j’ai toujours eu une grande estime
pour la marquise de Sablé et j’ai obligé les personnes qu’elle estime au point qu’on a vu”.
(Tradução livre)
51
COUSIN, V. Op. Cit., p. 53. Em 1648, o parlamento atribui a terra de Sablé a René. Em
1652, Abel Servien compra o marquesado inteiro, recebendo também o título a ele associado.
52
LAFOND, J. Op. Cit., p. 203. Lafond se baseia em Tallement des Réaux, o que deve alertar
o ceticismo do leitor.
53
Sablé recebia pensão do Estado, mas consideramos que a manutenção da mesma é fato
indissociável do exercício de sua influência.
30 Sablé construiu o apartamento contíguo ao convento de Port-Royal. Ali recebeu seus
convivas, cuidou da saúde e de sua alma. Assim começou o salão dentro do convento.
III.b. A maturidade de uma devota mundana
Devido à controvérsia pessoal sobre a comunhão ocorrida a alguma altura do
ano de 1642, a marquesa começou a direcionar sua consciência ao jansenismo. Tudo
começou por causa de um baile. Sablé se preparava para ir a ele com a princesa de
Guéméné que, informada de que sua amiga havia comungado naquela mesma manhã,
ficara inquieta com a revelação. Para a princesa de Guéméné – e segundo os rigores
de seu diretor de consciência –, o fato de Sablé ter comungado implicaria na
suspenção de toda e qualquer atividade profana. Confusa e instigada pelos
questionamentos da amiga, Sablé interrogou seu confessor, jesuíta, que preparou um
comentário por escrito. O texto chegou às mãos do confessor da princesa, ninguém
menos que o abade de Saint-Cyran. 54
A carta do confessor da marquesa de Sablé dava a ver o tipo de laxismo moral
que foi mais tarde alvo privilegiado dos críticos associados ao jansenismo. Instigado,
o abade de Saint-Cyran – perseguido e encarcerado em Vincennes – incentivou
Antoine Arnauld a escrever uma refutação pública. Em 1643 apareceu o tratado De la
fréquente communion. O livro encontrou um número enorme de entusiastas: o
rigorismo jansenista oferecia uma resposta radical à crise religiosa pela qual
atravessava a aristocracia devota.55 “Rezar como se tudo dependesse de Deus e agir
como se tudo dependesse de nós”: a teologia praticada pelos partidários de Jansenius
não concedia facilmente a absolvição. A contrição sem reservas (praticada “como se
tudo dependesse de nós”) não garantia a salvação, pois o estado de graça e a salvação
fugiam ao escopo da ação humana (“como se tudo dependesse de Deus”). A resposta
jansenista à incerteza da salvação e à natureza decaída que entravava as possibilidades
de uma vida autenticamente santa, foi a opção por uma devoção penitente, resignada,
que se pretendia sem concessões ao profano. Igreja e mundo o máximo separados se
tornou a grande bandeira jansenista. O debate aberto pelas duas amigas Sablé e
Guéméné e a adesão à causa que se seguiu à controvérsia fez com que La
54
55
CRAVERI, B. Op. Cit., pp. 153–154.
Idem, p. 156.
31 Rochefoucauld chamasse as amigas, com direito a hipérboles é claro, de “fundadoras
do jansenismo”.56
Na realidade, a separação entre mundano e sagrado e a condenação dos
divertimentos em função de uma contrição radical pelos partidários de Jansenius não
foi sem concessões.57 Em termos estritamente práticos, as solitárias de Port-Royal –
atiradas nas polêmicas de consciência sem jamais poderem ou sequer proporem
debater questões teológicas – precisavam da defesa de patronos e patronas influentes
que pudessem conquistar entre cortesãos o apoio necessário à própria existência do
convento. Além da já citada Anne de Rohan, a princesa de Guéméné, Louise-Marie
de Gonzaga-Clèves, princesa de Mântua e futura rainha da Polônia foi ativista
igualmente importante na causa das solitárias. Isto sem falar em outras figuras
proeminentes como Marie-Angélique d’Aragon, Anne-Geneviève de Bourbon
(duquesa de Longueville) e as marquesas de Sévigné e Cheverny.58 Estas belles amies
de Port-Royal eram também damas mundanas e atraiam para o convento a
complacência de uma boa parcela dos nobres. Eram os pivôs de apoio às solitárias
dentro do monde, do qual as últimas se subtraiam, e que faziam o desespero do padre
Rapin, jesuíta que via no hôtel de Nevers o (perverso) lar do jansenismo, mistura de
pessoas da corte e da cidade, dos prazeres da boa mesa, divertimentos polidos e
novidades teológicas.59
A escolha da marquesa de Sablé de construir seu apartamento em Port-Royal é
emblemática deste equilíbrio conveniente entre o sagrado e o profano. Localizado a
meio caminho entre Paris e Port-Royal-de-Paris, ou seja, entre a cidade e o convento,
uma porta do apartamento se abria à rua – pela qual a marquesa saia e pela qual
entravam seus amigos – e outra porta se abria ao coro do convento, de onde a
marquesa tomava parte nos serviços religiosos. 60 Nesta morada, Sablé já idosa
conciliava longos períodos de solidão, com a frequentação social – in loco ou via
epistolar – e a defesa de Port-Royal. Datam deste período sua participação nos
56
Idem, pp. 158–159.
Lembre-se, nesse sentido, as reformas que Angélique Arnauld realizou no convento,
introduzindo nele a Regra Beneditina associada à radical austeridade de Saint-Cyran. Cf.
KOSTROUN, D. Op. Cit., especialmente os capítulos “Jansenism as a ‘Woman Problem’” e
“Controversy and Reform at Port-Royal”. pp. 1–77.
58
Idem, pp; 56–57.
59
CRAVERI, B. Op. Cit., pp. 160–161.
60
Idem, p. 182.
57
32 debates que levaram à Paz Clementina de 1669 e a intensificação do processo de
produção de máximas.
Desde 1665, nos primeiros anos do reinado pessoal de Luís XIV, houve maior
acirramento na perseguição do Estado às religiosas de Port-Royal. O édito real de 29
de abril de 1664 foi um marco nesse processo, pois ali Luís XIV contrapôs mais
nitidamente do que antes a consciência das solitárias à sua própria consciência. Nos
éditos anteriores, a exigência para que as religiosas assinassem o formulário denotava
que o rei apoiava as resoluções conjuntas com o Papa e os Bispos franceses; aqui, o
Estado francês assumiu uma atitude de recrudescimento (“absolutista” diria Kostroun)
que se intensificou de forma gradual e não linear até a destruição de Port-Royal-desChamps em 1709.61
Durante as perseguições, a marquesa se manteve sempre ao lado do convento.
Interveio junto à rainha mãe, ao senhor de Comminges e mesmo junto aos Jesuítas
(via padre Ferrier). Em 1664 doze freiras foram dispersas, dentre elas a madre Agnès.
Com a imposição real de Dorothy Perdreau como abadessa perpétua em 1665, os
conventos de Paris e dos Campos se separaram permanentemente. Muitas das freiras
deixaram a sede de Paris. A marquesa de Sablé, todavia, não as acompanhou. O
ambiente do vale de Chevreuse, onde ficava o convento era um pântano malsão e não
devia agradá-la nem um pouco, temerosa de adoecer: somente entre 1623 e 1625, 27
de 60 freiras morreram ali, acometidas de malária.62 A situação, 40 anos depois, não
devia ser muito melhor. Sablé deixou temporariamente seu apartamento de Port-Royal
e foi hospedada por seu irmão, o comendador de Souvré, na rua des Petits-Champs.
Sua permanência, mais uma demonstração de sua moderação sempre manifesta, não
foi vista com bons olhos por alguns de seus amigos jansenistas que esperavam de
Madeleine uma postura mais radical. Foi nesse período e desde Paris, entretanto, que
Sablé incitou moderação em seus amigos, exortando para que se comportassem de
forma conciliatória63 e que pediu a intervenção direta do cardeal de Rospigliosi,
sobrinho do Papa, para que a perseguição ao convento tivesse uma trégua (isto em
1667).64 A Paz Clementina foi obtida em 1669.65
61
KOSTROUN, D. Op. Cit., p. 142.
Idem, p. 27.
63
COUSIN, V. Op. Cit., pp. 219–221 e 383–384; respectivamente a carta da marquesa de
Sablé a Gilbert de Choiseul, datada de 20 de julho de 1664, e a carta não datada a Arnauld
d’Andilly.
64
CONLEY, J. Op. Cit., p. 28.
62
33 No período de Port-Royal, a marquesa e seus convivas produziram, corrigiram
e fizeram circular suas máximas. Sabemos pela troca epistolar entre nossos três
convivas que a partir de 1658 e 1659 há referências à produção de máximas e que se
falou em algum tempo de um “fundo comum” de sentenças. Mas em algum ponto,
aparentemente em 1663, cada um tomou seu rumo, apostando em perspectivas e
formatos diferentes nas suas reflexões, sempre corrigindo e opinando sobre as
máximas dos outros. A marquesa de Sablé não demonstrou intenções em publicá-las:
devia se deleitar com a leitura e tradução de aforismos do ainda inédito na França
Baltasar Gracián; com a composição de algumas sentenças para uso pessoal e de seus
frequentadores; com a correção e divulgação das máximas de seus amigos. La
Rochefoucauld controlou bem sua inquietação sobre ver impressas suas máximas: era
preciso dissimular, sua condição não condizia com a de autor. Fez circular
intensamente suas criações, buscou avidamente a opinião de seus contemporâneos e
publicou-as em 1665. Jacques Esprit, o único que realmente assumiu a profissão de
autor, trabalhou bastante na circulação e correção das máximas de seus amigos, mas
preparou para as prensas uma obra completamente distinta em fôlego, forma e
intenções.
Assim seguiu sua vida a marquesa de Sablé após 1668, quando retornou a
Port-Royal: na tranquilidade passageira da Paz Clementina, na quietude de sua idade
já avançada, recebendo em intervalos cada vez mais largos seus amigos que se
desesperam com seus sumiços. Conforme documenta o necrólogio de Port-Royal, a
marquesa de Sablé morreu em 16 de janeiro de 1678 e foi enterrada sem pompas nem
cerimônias, como uma pessoa do povo, no cemitério da paróquia de Saint-Jacques-deHaut-Pas, na rua Saint-Jacques, a mesma via onde morou por todos estes anos. A
simplicidade deste fim condiz com a devoção à qual dedicou boa parte de sua vida,
com o beato desprezo que demonstrou pelas distinções de sangue e classe,66 mas
65
LAFOND, J. Op. Cit., p. 206.
Conforme a própria marquesa de Sablé, nas máximas 30 e 72, “Les liens de la vertu doivent
être plus étroits que ceux du sang (…)” e “Ceux qui sont assez sots pour s’estimer seulement
par leur noblesse méprisent en quelque façon ce qui les a rendus nobles, puisque ce n’est que
la vertu de leurs ancêtres qui a fait la noblesse de leur sang”. “Maximes de la marquise de
Sablé”. In. LAFOND, J. (Org.) Moralistes du XVII siècle. Paris: Robert Laffont, 1992, pp.
249 e 254.
66
34 condiz igualmente com o esquecimento induzido ao qual foram sujeitos vários nomes
ligados ao jansenismo.67
67
Lembremos o caso de Godefroy Hermant, influente escritor jansenista, reitor da Sorbonne,
autor de vários tratados morais, compilações de tradições da igreja e libelos de combate aos
jesuítas. Figura conhecida no final do século XVII, o esquecimento de Hermant foi –
acreditamos – induzido pelo fato de ter sido jansenista. O principal indício disso é a carta do
ministro Pontchartrain direto de Versalhes aos confrades de Hermant: “Sua Majestade [Luís
XIV] achou belo e bem feito [o epitáfio ao túmulo de Hermant], mas pouco conveniente a um
homem do caráter do senhor Hermant que tanto afetou em se distinguir por máximas
particulares. Também, Sua Majestade não quer que ele seja colocado: é o que vós fareis, por
favor, dar a conhecer em todo o capítulo, a fim de que assim seja”. PONTCHARTRAIN apud
DONCOEUR, Paul. “Un grand janséniste historien inconnu de la Pucelle” In. Revue de
l’histoire de l’Église de France. Volume 41, número 136, pp. 61–62. Disponível online na
base de Persée. (Tradução livre)
35 IV. FRANÇOIS VI DE LA ROCHEFOUCAULD
A vida de François VI, nascido príncipe de Marcillac, tornado duque de La
Rochefoucauld após a morte de seu pai, pode ser dividida em dois grandes períodos,
um que vai de sua juventude à idade adulta, outro começando após a Fronda dos
príncipes, marcando sua experiência e velhice. Isso menos por uma mudança
substancial em sua moralidade ou mentalidade do que por uma imposição que sua
própria ventura lhe impôs. Até o início da década de 1650, o príncipe de Marcillac
sonhava com a glória de sua casa, de seus amigos e do reino: lutou guerras dentro e
fora do reino da França, disputou a todo custo honras para sua família, especialmente
para sua mulher, lutou ao lado dos príncipes rebeldes. 1652: ferido gravemente na
Fronda dos príncipes, La Rochefoucauld foi lançado a uma vida ociosa com a qual
não sonhava, pelo menos ainda. Parcialmente inválido, sua condição só piorou com os
anos, pois ao tiro de mosquete que lhe tomou um olho somou-se a gota, mal que o
atormentou por anos. Algo entre o exílio e o retiro, o duque passou a se dedicar a dar
forma primeiramente às suas Memórias e posteriormente às suas Máximas. Homem
do mundo e libertino, nobre rebelde, mas reconhecidamente polido, La
Rochefoucauld conjugou em seu pensamento tanto a postura combativa e de
autonomia em relação à casa real e seus ministros, quanto o saber comum do grand
monde, suas máximas e lugares-comuns.
IV.a. O príncipe de Marcillac: guerreiro de província, rebelde e mundano.
François VI, filho de François V e de Gabrielle du Plessis-Liancourt, nasceu
em Paris, rua des Petits-Champs, no dia 15 de setembro de 1613, em uma família
muito bem posicionada. Seu batismo foi ministrado por Antoine de La
Rochefoucauld, bispo de Angoulême; seu padrinho foi o homônimo François de La
Rochefoucauld, bispo de Senlis e a madrinha Antoinette de Pons, marquesa de
Guercheville, a avó da criança. Ser um La Rochefoucauld no início dos século XVII
significava ter um nome e ancestrais ilustres. Seus numerosos ramos geravam quase
infalivelmente sucessivas gerações de militares e clérigos. Foi especialmente na Igreja
que os La Rochefoucauld enraizaram seu poder como família.
François II, conde de La Rochefoucauld (1494–1533), obteve de Francisco I
(1494–1547) – de quem era favorito – terras e privilégios, tornando-se também
36 príncipe de Marcillac. Um título curioso: “como o primogênito do rei da Inglaterra é
príncipe de Gales, o primogênito do rei da França, delfim, o primogênito dos La
Rochefoucauld é príncipe de Marcillac”. 68 “Título vão sem qualquer posição ou
distinção”, escreveu mais tarde Saint-Simon, cuja família vivia em longa querela com
os La Rochefoucauld.69 Assim, em 1613, antes mesmo de seu pai obter o ducado em
1622, quando com apenas um mês de vida François VI foi carregado à pia batismal, já
era portador do título de príncipe de Marcillac.
Os La Rochefoucauld possuíam uma vasta clientela no Angoumois onde
ficava o château de Verteuil, umas das propriedades da família. Quando do chamado
de Luís XIII, François V teria providenciado 1500 gentis-homens armados ao rei,
garantindo ao monarca que “não há entre eles um sequer que não seja meu parente”.
No funeral de seu pai, o autor das máximas estava rodeado por mais de 700 nobres da
região do Angoulême.70 O duque-pai de La Rochefoucauld foi, portanto, muito ligado
ao Angoumois onde governava sua clientela: não poderia ter sido diferente com o
príncipe de Marcillac. François VI era o primogênito trazido à luz por Gabrielle du
Plessis-Liancourt e recairia sobre ele a administração dos domínios de sua família.
Por outro lado, nascera em Paris; ali constituiu boa parte de suas relações, sem falar
nas obrigações que o levariam constantemente à corte. Foi neste vai-e-vem entre Paris
e a província que o príncipe de Marcillac passou sua juventude e idade adulta.
Como membro da alta aristocracia do início do século XVII, o príncipe de
Marcillac não poderia ter ficado imune aos sonhos de glória militar. Menos imune
ainda poderia ter ficado em relação aos complôs e revoltas liderados por nobres
rebeldes – independente da posição tomada. Seu pai fora um servidor fiel de Luís
XIII, tanto em sua luta contra os protestantes, quanto contra sua mãe, Maria de
Médici. Em 1619, o rei lhe conferiu o colar de suas ordens: Saint-Esprit, SaintMichel, Notre-Dame-du-Mont-Carmel e Saint-Lazare. Um grande exemplo em casa.
Entre 1629 e 1630 chegou sua primeira oportunidade de aprender a guerra. Quando o
rei e Richelieu deixaram Paris à cabeça do exército, o jovem Marcillac se integrou ao
regimento de seu tio, d’Estissac, e foi à Itália participar de uma demonstração de força
contra o duque de Mântua. Ao final da campanha, era promovido a mestre de campo,
dando seu nome a um regimento. Tinha então 15 anos. Era o momento de cumprir
68
MINOIS, G. Op. Cit., p. 22.
SAINT–SIMON apud MINOIS, Idem, Ibidem. (Tradução livre)
70
Idem, p. 29.
69
37 com as obrigações das armas; um ano antes, com 14 anos, já havia cumprido com as
da casa: esposara Andrée de Vivonne, filha do barão de Chataigneraye.
Outras campanhas ainda viriam em 1635 e 1636, agora no norte da França,
sob o comando dos marechais de Châtillon e de Brézé. Desta vez, o inimigo era a
Espanha e o principal aliado, improvável do ponto de vista religioso e perfeitamente
lógico do ponto de vista político, eram os Países Baixos. Avançando sobre Liège, a
tropa de 20.000 homens obtivera êxito no norte da França, mas por conta de uma má
coordenação com o exército do príncipe de Orange, as tropas francesas ficaram
inativas e se puseram a violentar os povoados locais. Marcillac decidiu então voltar a
Paris com um grupo de jovens oficiais, onde trouxeram à Corte duras críticas à
condução da campanha. Todos os envolvidos foram afastados temporariamente. Este
evento vale ser ressaltado por dois motivos. Em primeiro lugar, o afastamento se deu
por uma imprudência de linguagem, o que nos dá indícios sobre o quanto a
permissividade e censura sobre o dito deviam nortear as relações entre soberano e
súdito. E em consequência disso, o quanto o silêncio ou a ponderação da fala deviam
fazer parte do repertório de capacidades do cortesão. Em segundo lugar, o evento é
marcante de uma (primeira?) tomada de posição explícita de Marcillac contra suas
autoridades.
Os anos seguintes de sua vida foram caracterizados por esta rebeldia.
Marcillac permaneceu exilado da corte em seus domínios do Angoumois por alguns
meses, até 1637, quando seu pai reentrou em favor e Marcillac retornou à corte. O que
não durou por muito tempo... No mesmo ano, mais rebeldia, mais um complô. Desta
vez algo um tanto mais grave, o caso das cartas espanholas. De forma bem resumida,
a rainha Ana de Áustria (1601–1666) se utilizou de uma complexa rede de
informantes e cartas codificadas para fazer chegar a seus irmãos (o rei da Espanha
Felipe IV, entre eles) informações sobre as intenções do governo francês e os
movimentos de tropas.71 O príncipe de Marcillac – que nutria mútuas desconfianças
com o cardeal de Richelieu – era uma das peças de um complexo tabuleiro de
servidores que faziam as missivas irem e virem. Marcillac se tornou íntimo da rainha
e da senhorita de Hautefort, dama de honra de Ana de Áustria por quem o príncipe
tinha especial afeto. Ele ajudou a senhora de Chevreuse – participante ativa no
complô – em sua fuga à Espanha quando a trama foi descoberta. Esta enviou-lhe uma
71
Idem, p. 87.
38 grande soma de dinheiro e joias preciosas para que guardasse, caso fosse pega. Pego
foi Marcillac, descoberto pelos espiões de Richelieu. As contas que prestou ao cardeal
não foram suficientes: o príncipe de Marcillac foi emprisionado na Bastilha. Não
muito tempo depois foi solto, mas se exilou novamente em Verteuil por dois anos.
Novamente um episódio exemplar sobre como a circulação de informação, a criação
de rede de confidentes e o uso de cartas cifradas, enfim, todo tipo de uso de segredo e
contra-segredo (espionagem) fazia parte das articulações políticas nas quais se
envolviam os agentes das classes privilegiadas do período. Novamente o príncipe de
Marcillac deveria pagar por suas imprudências; desta vez não de sua fala, mas por seu
papel na transmissão de segredos do Estado. Uma vez liberto, em 1639, voltou ao
exército para os combates de Saint-Venant-sur-Lys e do Forte Saint-Nicolas.
Richelieu julgou a ocasião oportuna para oferecer-lhe um posto de marechal de
campo, atraindo assim sua gratidão como dívida. Após consultar a rainha, François VI
recusou a oferta do cardeal, preservando relativa liberdade frente a ele.
Ainda que não demonstrasse interesse maior do que o de um diletante seja na
leitura, seja na escritura, o príncipe de Marcillac esteve durante toda a sua vida em
contato com os meios literários e intelectuais de Paris e da província. Frequentou
salões e a corte, encontrou nesses meios dramaturgos como Racine e Corneille, poetas
como La Fontaine (que, inclusive, dedicou-lhe mais de um de seus poemas),
acadêmicos, moralistas, filósofos e diletantes de todo tipo; jansenistas, jesuítas,
libertinos e “espíritos fortes”. Todos frequentavam os salões parisienses, reunindo-se
em torno das grandes damas como La Fayette, Sablé, Sévigné, Ninon de Lenclos ou
em mansões como a de Rambouillet, de Nevers e o próprio hôtel de Liancourt, no
qual se hospedava Marcillac/La Rochefoucauld quando em Paris. A convivência de
salão exerceu um papel fundamental na vida de La Rochefoucauld. Nestes espaços ele
manteve contato com alguns dos principais autores e pensadores desse momento de
querelas e efervescência intelectual; mas também foi nestes círculos que estreitou suas
relações com alguns nobres do período, o que foi decisivo em sua trajetória política.
Alguns desses nobres são os principais nomes das casas de Condé e Bourbon:
a senhora de Longueville, o duque d’Enghien e o príncipe de Conti. A fidelidade com
que serviu aos interesses destes nobres, tomando parte ativa nos complôs e guerras
por eles entravados, foi um fator que o impulsionou à rebeldia e – especialmente
segundo a interpretação proposta por Georges Minois – ao libertinismo. AnneGeneviève de Bourbon, casada Longueville (1619 – 1689), foi amante de La
39 Rochefoucauld por vários anos. Os dois chegaram a ter um filho bastardo, o que era
fato de comum ciência dos contemporâneos. Sua participação ativa nos levantes de
nobres rebeldes de meados do século XVII é tão fascinante quanto o conjunto da
trajetória de sua vida. Inicialmente destinada à carreira religiosa, Anne-Geneviève
abandonou a vocação e se envolveu com todo tipo de querela política e amorosa
enquanto adulta. Ao fim de sua vida, derrotada a Fronda e adentrando uma idade
menos propícia à galanteria, a senhora de Longueville retornou ao caminho da
religiosidade, o que não foi menos polêmico: tornou-se defensora assídua do
jansenismo.
Devotado de tal forma à duquesa de Longueville (sua irmã) que a relação
atraiu suspeitas de incesto, Armand de Bourbon, o príncipe de Conti (1629 – 1666),
foi comandante dos exércitos rebeldes durante a Fronda. Sua trajetória de vida é
análoga à de sua irmã. Destinado à vida religiosa, passou a juventude e a idade adulta
se enfrentando na política para, por fim, virar devoto. Antes da Fronda, a relação de
confidencialidade entre os irmãos Conti e Longueville era tão grande que o próprio La
Rochefoucauld reconheceu em suas memórias ter sido manipulado pelos dois: “e ele e
ela, em concerto, cegaram-no de tal forma, que quatro anos mais tarde ele ainda não
desconfiava do que se tratava”.72 Conti acabou sendo preso por sua participação na
Fronda. Quando reentrou em graça – comumente alude-se ao seu enlouquecimento na
prisão –, dedicou-se radicalmente à fé, chegando mesmo a publicar em 1666 um
Traité de la comédie et du spectacle selon la tradition de l’Église tirée des conciles et
des saints pères.
O duque d’Enghien, o futuro “Grand Condé” (1621 – 1686), tinha toda a
devoção do príncipe de Marcillac. Seu talento militar era reconhecido por todos.
Segundo o cardeal de Retz, “Senhor o Príncipe nasceu capitão, o que aconteceu só a
ele, a César e a [Don Ambrogio?] Spinola”. 73 Suas campanhas com o exército
trouxeram a ele mais do que fama de comandante. A cabala que Condé liderou
durante a Fronda ficou conhecida como o partido dos “petits maîtres”. Segundo
72
Em muitos trechos das Memórias, La Rochefoucauld fazia referência a si mesmo na
terceira pessoa. É o caso desta citação. MINOIS, G. Op. Cit., p. 123. “(...) et lui et elle, de
concert, l’avaient tellement aveuglé, que plus de quatre ans après il ne se doutait encore de
quoi ce que soit”. (Tradução livre)
73
Idem, p. 120. “Monsieur le Prince est né capitaine, ce qui n’est jamais arrivé qu’à lui, à
César et à Spinola”. (Tradução livre)
40 Voltaire, eram chamados assim “porque queriam ser os mestres do estado”.74 Georges
Minois – seguindo um pouco sua predileção exagerada pela narrativa biográfica que
enfatize escândalos e polêmicas amorosas e sexuais – destaca que os “petits maîtres”
eram um bando de jovens aristocratas liderados por Condé, que passavam noites de
deboche. Minois liga a revolta de Condé à sua formação libertina e “quase ateia”,
como se este comportamento de liberalidade de costumes e pensamento fosse uma
porta para a insubordinação.75 E desta forma, por tabela, associa a formação de La
Rochefoucauld, como moralista radical e nobre rebelde, à lealdade que prestou a
Condé por toda sua vida (Minois chega a afirmar que o príncipe de Marcillac fez parte
dos “petits maîtres”, “e este não é o episódio mais glorioso de sua vida”).76
Este era o trio Condé em 1643: dois jovens nobres e um adolescente,
militantes dos interesses de sua casa, nobres belicosos e defensores de ideias de ódio
ao governo do cardeal Mazarino. Jansenismo, libertinismo e rebeldia: as principais
formas de exercício de liberdade de consciência religiosa, política e de costumes que
se abriam aos nobres de meados do século XVII se manifestaram, de alguma forma e
em algum momento, nestas três peças fundamentais do cenário da época. E por um
período de mais de uma década, o príncipe de Marcillac se ligou estreitamente a estes
irmãos em suas lutas, ideais e em laços de sangue (seu filho bastardo com
Longueville).
Nos salões, o príncipe de Marcillac travou contato ainda com as grandes
damas, como a senhora e senhorita de Rambouillet. Na década de 1640, a ruelle bleue
já tinha deixado seus dias mais brilhantes e quase hegemônicos para trás, mas também
tinha se fragmentado em muitos outros círculos, para os quais serviu de referência.
Marcillac, quando em Paris, podia ser visto nas recepções destas outras anfitriãs.
Haviam as “más frequentações,”77 como Cristina, a rainha da Suécia (1626 – 1689) e
Ninon de Lenclos (1620 – 1705). Seu acesso ao salão desta última não foi difícil, pois
Ninon era amiga próxima de Anne de Villiotret, esposa de seu tio, Benjamin de La
Rochefoucauld. Sem falar que Condé e Gourville (1625 – 1703), o célebre intendente
do príncipe de Marcillac, haviam passado pela cama da afamada dama. Ninon chegou
74
“(...) parce qu'ils voulaient être les maîtres de l'état”. VOLTAIRE. Le siècle de Louis XIV.
Capítulo
III:
“La
guerre
civile”.
Consultado
online
pelo
endereço:
http://c18.net/vo/vo_textes_siecle.php?div1=3. (Tradução livre)
75
MINOIS, G. Op. Cit., p. 119.
76
Idem, p. 121.
77
Idem, p. 352
41 a emprestar dinheiro a La Rochefoucauld que, por sua vez, segundo o abade Brotier,
pediu sua opinião sobre algumas máximas (como a 257, por exemplo). Des Maizeaux
sugere que La Rochefoucauld teria endereçado a Ninon a célebre máxima póstuma “O
inferno das mulheres é a velhice”.78 O salão de Ninon certamente aproximou La
Rochefoucauld dos nobres e pensadores ditos epicuristas.
Pelo fim da década em 1640, o príncipe de Marcillac já havia tido uma
formação mundana prática e completa. Já frequentara os principais salões do período,
tornando-se conviva de significativos nomes da elite das letras (membros da
Academia, poetas, romancistas), da Igreja (polemistas jansenistas, jesuítas e pessoas
de cargos proeminentes), mas principalmente das grandes senhoras da sociedade.
Adquiriu ali uma sólida educação prática nas maneiras, lugares-comuns e polêmicas
em voga nos altos círculos: do aprendizado do bom uso da língua vulgar, da
honestidade masculina, os decoros, até questões de moral e religião. Mas pouco
importava ao príncipe de Marcillac dedicar-se ao pensamento moralista e à escritura
de suas máximas: o que o motivava era política e honra, principalmente disputada por
armas.
Em dezembro de 1648, o príncipe de Marcillac abandonou de vez o cardeal
Mazarino e passou para o campo dos frondeurs. No partido de Condé, se tornou um
dos principais combatentes da revolta. As campanhas das quais participou o levavam
constantemente a Paris, Poitou e Bordeaux. Em 8 de fevereiro morreu seu pai: o
príncipe de Marcillac se tornou, enfim, duque de La Rochefoucauld. Pormenores da
guerra civil interessam pouco aqui. Basta ressaltar que o duque de La Rochefoucauld
permaneceu fiel aos príncipes que – ora encarcerados, ora livres – fracassaram em
todas as tentativas de paz até 1652. Neste ano, justamente, houve um recrudescimento
do conflito, a chamada “terceira guerra”. La Rochefoucauld participou de batalhas em
Agen e Bléneau, e em abril foi recebido triunfalmente, com Condé, em Paris. Em 2 de
julho, durante uma batalha em pleno faubourg Saint-Antoine, La Rochefoucauld foi
seriamente ferido de um tiro de mosquete em seu rosto. O rei entrou vitoriosamente
em Paris e não restou opção ao Condé senão se retirar no Flandres. Ainda que
anistiado pelo rei em 21 de outubro como parte das negociações da paz em Bourg, La
Rochefoucauld obteve um passaporte e deixou Paris em novembro. Era preciso cuidar
78
Máxima 562: “L’enfer des femmes, c’est la vieillesse”. LA ROCHEFOUCAULD; François
VI. Oeuvres completes. Edição Bibliothèque de la Pléiade (Pl). Paris: Gallimard, 2010, p.
482.
42 de seus ferimentos e recuperar o que sobrou da visão. Foi com toda a família a
Damvilliers, no Luxemburgo francês, onde seu cunhado o marquês de Sillery era
governador. Junto com sua saúde, acabava a época das intrigas.
IV.b. O duque de La Rochefoucauld: das armas à pena.
Durante os últimos conflitos da Fronda, o duque de La Rochefoucauld – já
ferido – tentou ainda participar de intrigas com Condé e os espanhois, mas seu
debilitado estado de saúde o impedia de ir muito longe. A gota aumentava, seu rosto
não estava bem e, para piorar o quadro, as idas e vindas com as tropas haviam
deixado suas finanças em estado de desordem. Com quarenta anos de idade, o duque
deve ter considerado muito atentamente que sua situação não era mais propícia para
continuar com o mesmo tipo de vida que mantivera até então. Era o momento de
colocar ordem em sua saúde e nos seus assuntos.
Mesmo conduzido pelos acontecimentos a uma existência cada vez mais
sedentária, a primeira coisa que La Rochefoucauld se pôs a redigir não foram suas
máximas ou memórias. Ainda em 1653, o duque redige duas vezes seu testamento:
sua saúde ainda era débil. Com a ajuda de seu sempre fiel Gourville – que fora
intendente de seus assuntos por vários anos – La Rochefoucauld começou a organizar
suas contas, conseguiu retornar para o Angoumois, Verteuil e La Rochefoucauld.
Reestabelecido em suas propriedades, iniciou a redação das suas memórias, de forma
a constituir um relato sobre tudo o que aconteceu durante a guerra, desde sua própria
perspectiva. Esperava muito provavelmente que esta narrativa circulasse entre seus
conhecidos e seus familiares.
A vida continuava. Em 1656, o duque já estava de volta aos salões parisienses
e sabemos que neste mesmo ano frequentava assiduamente as recepções de Cristina
da Suécia. Sua reintegração aos altos círculos e sua circulação pelos espaços de Paris
tendeu a melhorar após 1657 quando o tratado dos Pirineus com a Espanha recolocou
Condé em graça, o que reaproximou La Rochefoucauld da corte. Em 1659, La
Rochefoucauld reentrou em favor na corte e voltou a receber uma pensão nada
desprezível. Sua casa se reergue: no mesmo ano, casa seu filho, o príncipe de
Marcillac François VII (1634 – 1714) com a prima Jeanne-Charlotte du Plessis 43 Liancourt (1644 – 1669). Este filho se tornaria em breve um favorito de Luís XIV. É
muito provável que esta situação mais favorável tenha intensificado ainda mais seu
retorno à sociedade. Começou, então o período das publicações, fossem elas privadas,
piratas ou autorizadas.
Primeiro veio o portrait de si mesmo para a segunda edição da antologia de
retratos publicada pela senhorita de Montpensier sob o título de Recueil des portraits
et éloges en vers et en prose, acabado de imprimir em janeiro de 1659. O retrato que o
duque nos deu de si mesmo nos proporciona uma pintura incompleta de quem era na
época (1658), mas muito provavelmente bem verossímil: nele descreve um homem
melancólico, espirituoso e de nariz grande, mas deixa de retratar, por exemplo, as
cicatrizes faciais obtidas na Fronda. As primeiras linhas, como de costume neste tipo
de portrait, descrevem seus atributos físicos, como nariz, boca, cabelos e porte. Em
seguida, passa à descrição de suas característica internas, começando pelo humor (o
que norteará o restante da descrição).
Eu sou melancólico, e o sou a certo ponto que, depois de três ou quatro
anos, dificilmente viram-me rir três ou quatro vezes.79
Média de uma risada por ano. É uma melancolia que vinha de si mesmo, de dentro,
mas também de fora, o que o detinha constantemente sobre seus pensamentos,
distanciando-o dos outros:
(…) e o que me ocorre me enche de tal forma a imaginação e me ocupa
tanto o espírito, que na maior parte do tempo, ou sonho sem dizer nada, ou
quase não me atenho ao que digo. Sou muito fechado com aqueles que
não conheço, e também não sou muito aberto com a maioria dos que
conheço.80
O que seria insuportável para os outros que devessem conviver com ele, caso essa
disposição não fosse compensada por outros atributos morais ou inteligência. “J’ai de
l’esprit”, afirma o duque sem dificuldade: pois tentar atenuar as qualidades que
sabemos ter é uma forma afetada de modéstia que visa aumentar – às vezes acima da
medida – nossos atributos. Este espírito, engenhosidade ou inteligência, era “gasto”
79
Idem, p. 4. “je suis mélancolique, et je le suis à un point que, depuis trois ou quatre ans, à
peine m’a-t-on vu rire trois ou quatre fois”. (Tradução livre)
80
Idem, Ibidem. “(…) et ce qui m’en vient me remplit de telle sorte l’imagination et
m’occupe si fort l’esprit, que la plupart du temps, ou je rêve sans dire mot, ou je n’ai presque
point d’attache à ce que je dis. Je suis fort resserré avec ceux que je ne connais pas, et je ne
suis pas même extrêmement ouvert avec la plupart de ceux que je connais”. (Tradução livre)
44 pela melancolia.81 Positivamente, isto conferia ao duque um controle grande de sua
própria língua (“je possède assez bien ma langue”), uma memória boa (“j’aie la
mémoire assez heureuse”) e fazia-o pensar nas coisas de forma lógica (“je ne pense
pas les choses fort confusément”). Mais adiante, La Rochefoucauld destacará esta
capacidade de controlar a fala, enfatizando sua habilidade em manter segredos.
Sou muito secreto [secret] e ninguém teria menos dificuldade em calar o
que me foi dito em confidência. Sou extremamente regular à minha
palavra; nunca falto com ela, não importa a consequência que possa ter o
que prometi e toda a minha vida fiz disso uma lei indispensável.82
O mesmo governo da língua se estende à sua educação:
Tenho uma civilidade muito exata entre as mulheres e creio nunca ter dito
na frente delas algo que pudesse causar desgosto.83
Sua inteligência lhe dera a predileção por conversas sérias (“j’aime qu’elle soit
sérieuse et que la morale en fasse la plus grande partie”), mas ainda que não fosse de
fazer muitas brincadeiras (nunca é demais lembrar que se trata de um melancólico), o
duque era capaz de apreciar as “bagatelles bien dites”.84 Escrevia bem em prosa e
fazia bons versos que podiam dá-lo fama, se fosse “sensible à la gloire”; gostava de
ler, especialmente em companhia de alguém.85 Tudo na descrição do duque reforça o
estereótipo de um homem inteligente e muito sério o que converge com a sua
autodefinição como melancólico, mas também com seu ideal máximo de moralidade:
a honestidade.
Tenho os sentimentos virtuosos, as inclinações belas, e um desejo tão
forte de ser verdadeiramente um homem honesto que meus amigos não
poderiam me dar prazer maior que o de sinceramente me alertar de meus
defeitos.86
A honestidade era, sobretudo e antes de mais nada, um ideal moral relacionado à
convivência mundana. Tanto na corte como na cidade, o acesso às altas esferas era
81
Idem, Ibidem.
Idem, p. 6. “Je suis fort secret et j’ai moins de difficulté que personne à taire ce qu’on m’a
dit en confidence. Je suis extrêmement régulier à ma parole ; je n’y manque jamais, de
quelque conséquence que puisse être ce que j’ai promis et je m’en suis fait toute ma vie une
loi indispensable”. (Tradução livre)
83
Idem, Ibidem. “J’ai une civilité fort exacte parmi les femmes et je ne crois pas avoir jamais
rien dit devant elles qui leur ait pu faire de la peine”. (Tradução livre)
84
Idem, p. 4.
85
Idem, p. 5.
86
Idem, Ibidem. “J’ai les sentiments vertueux, les inclinations belles, et une si forte envie
d’être tout à fait honnête homme que mes amis ne me sauraient faire un plus grand plaisir que
de m’avertir sincèrement de mes défauts”. (Tradução livre)
82
45 possível por um belo nascimento, é claro, mas também pela distinção por
excepcionalidade moral de um determinado sujeito. Neste contexto, destacar-se era
fruto de um trabalho de educação social possível pela frequentação da “escola do
mundo”, na qual as mulheres eram as principais pedagogas.87 Assim se entrecruzam
amizade e moralidade: pois entrar na sociedade implicava o reconhecimento por parte
dos membros mais antigos dela e este vínculo era possível por meio do fortalecimento
de laços de estima, confidencialidade e admiração construídos sobre um ideal de
instrução e divertimento comum. O eixo central deste sistema, ao mesmo tempo
prerrogativa e meta, possibilidade de abertura e escrúpulos frente aos decoros, forma,
conteúdo e moeda de troca na moral da conversação era a síntese de um conjunto de
valores representados por diferentes termos: honnêteté, civilité, humanité, politesse,
bienséance. Nada surpreende que o duque tenha relacionado diretamente o tema da
honestidade com o da amizade como correção moral.
A mesma melancolia que lhe conferia qualidades, pesava-lhe igualmente.
Negativamente, o duque diz que se “aplicava”, ou seja, dava muita atenção aos males
que afligiam, como um melancólico com ideia fixa, levando-o às vezes a se exprimir
mal. O que ele devia saber dosar, pois “a conversação das pessoas honestas é um dos
prazeres que mais me tocam”. O duque dizia seus sentimentos “com um pouco de
liberdade demais”, o que podia ofender as pessoas. Descreveu seus defeitos como
uma delicadeza excessivamente escrupulosa e uma critica excessivamente severa.88
Quem já leu suas máximas não tem como discordar. Redigidas após este retrato, elas
só viriam confirmar o que fora dito, juntamente com as opiniões escandalizadas de
algumas de suas leitoras.
O retrato nos descreve o La Rochefoucauld pós-Fronda, recuperado de seu
ferimento, mas atormentado pela gota. Um homem que havia renunciado às armas e
passava a se dedicar a uma vida ociosa, cuidando de sua casa, sua saúde e
frequentando a sociedade. Isto é explícito no conteúdo do portrait. Algumas poucas
linhas podem ser lidas como justificativa de sua participação na guerra –
Tenho todas as paixões bem afáveis e bem regradas: quase nunca me
viram em cólera e nunca tive ódio por alguém. Não sou, entretanto,
87
FUMAROLI, M. Op. Cit., (1994), em especial o capítulo II (“La conversation”), onde trata
de três elementos que aqui nos interessam particularmente: 1) o papel da honneste
femme/grande dame na condução da conversação, 2) as exigências de um aprendizado prático
(“l’école du monde”) e 3) as categorias que distinguiam alguém na conversação.
88
LA ROCHEFOUCALD. Pl., p. 5.
46 incapaz de me vingar, se me ofenderam e se trata de minha honra
ressentir-me da injúria que me infligiram. Ao contrário, estou seguro que
o dever faria em mim muito bem o trabalho do ódio, que buscaria minha
vingança com muito mais vigor que qualquer outro.89
–, mas sublinham suas capacidades morais, intelectuais e sociais. O duque estava
pronto para se tornar escritor.
Memorialista, primeiro. O duque já trabalhava em suas Mémoires desde 1653.
Elas deviam circular entre seus íntimos e familiares e é provável que não tivesse
nenhuma pretensão de publicá-las. 90 Terminado o conflito, o duque gostaria
simplesmente de deixar por escrito, como uma segunda espécie de testamento, a sua
versão dos fatos, um tipo de apologia suplente (a primeira, Apologie du Prince de
Marcillac, fora escrita em 1649, antes do ápice da Fronda). Fez circular alguns
manuscritos entre seus amigos até que em 1662 surgiram duas surpresas um tanto
perigosas. O duque de La Rochefoucauld havia dado um manuscrito a Arnauld
d’Andilly para que corrigisse, “particulièrement sur la pureté de la langue”.91 Segundo
Segrais, durante uma visita a d’Andilly, o conde de Brienne soube dos papeis e pediu
que deixasse com ele as duas ou três noites que permanecesse em sua casa. Ainda que
um tanto inverossímil dado a extensão do manuscrito e a quantidade de tempo de
séjour, Segrais narra que o conde de Brienne passou dias e noites a tomar cópia,
mesmo sem autorização de d’Andilly. Em seguida, vendeu-o à Berthelin, casa
impressora de Rouen. Uma vez ciente disto, o duque deve ter ficado muito
incomodado. A solução encontrada foi tentar sumir com todos os exemplares
possíveis da Relation des guerres civiles en France, depuis le mois d’août de l’année
1649 jusqu’à la fin de 1652 e indenizar a viúva do livreiro a quem fora dado o
manuscrito.
O momento era bom para a prudência. Ainda em 1662, o duque fora
promovido para a ordem do Espírito Santo, uma honraria que dificilmente gostaria de
perder. Eis que surge uma segunda edição em Amsterdam, impressa por Van Dyck,
com o título de Mémoires de M. D. L. R. sur les brigues à la morte de Louis XIII, les
89
Idem; Ibidem. “J’ai toutes les passions assez douces et assez réglées : on ne m’a presque
jamais vu en colère et je n’ai jamais eu de haine pour personne. Je ne suis pas pourtant
incapable de me venger, si l’on m’avait offensé et qu’il y allât de mon honneur à me ressentir
de l’injure qu’on m’aurait faite. Au contraire, je suis assuré que le devoir ferait si bien en moi
l’office de la haine, que je poursuivrais ma vengeance avec encore plus de vigueur qu’un
autre”. (Tradução livre)
90
Idem, p. 15.
91
LA ROCHEFOUCAULD. Pl. p. 15.
47 guerres de Paris et de Guyenne, et a la prison des Princes. O escândalo veio
principalmente dos seus próximos mais interessados, Condé e Longueville. A
marquesa de Sablé foi uma das amigas influentes a quem o duque se justificou,
esperando talvez que o resto das pessoas soubesse.92 O caso era grave e a solução era
redigir e imprimir uma versão oficial e autorizada das Mémoires. Isso tudo aconteceu
no mesmo ano, 1662 e com muito sucesso; foram duas edições originais. Nos anos
seguintes, novas reedições: a terceira em 1663, a quarta em 1664, a quinta em 1665 e
a sexta em 1669.
Estes mesmos primeiros anos da década de 1660 formam o período mais
intenso na composição de máximas, fato atestado pelo que nos restou da troca
epistolar entre o duque, Sablé e Esprit. Ocioso homem de sociedade e memorialista,
La Rochefoucauld partilhava o tempo que sua saúde lhe proporcionava entre uma
vida tranquila, mas debruçada sobre textos, cartas e assuntos privados, e o convívio
dos salões. Tanto por escrito, quanto oralmente, colocou em circulação alguns de seus
axiomas, esperando o feedback de seus amigos quanto à moral e à língua. Novamente,
como no caso de suas memórias, era algo para fruição restrita de um grupo de
conhecidos, familiares e convivas; mas novamente, não tardou para que surgisse uma
edição contrafeita. A chamada edição apócrifa ou pré-original foi publicada em Haia,
nas Províncias Unidas, em 1664, com o título de Sentences et maximes de morale. O
in-8º compreendia 188 máximas. Cheio de erros – o que, segundo Georges Minois,
indicaria a pressa com que fora elaborada –, foi logo desmentido pelo duque que via
nele uma “méchante copie” de seu trabalho. E isso empurrava-o à condição de autor,
mesmo contra sua vontade. Era preciso elaborar uma edição autorizada e original.
Antes de vender o manuscrito a Claude Barbin, no entanto, era preciso saber a
opinião comum das pessoas da alta sociedade acerca do conteúdo. Isto condiz com os
receios de La Rochefoucauld acerca do escândalo que suas opiniões poderiam causar
– e causaram –, mas também com seu ideal moral, segundo o qual a honestidade
consistiria em submeter-se ao julgamento de pessoas honestas para corrigir-se. A
marquesa de Sablé foi a responsável pela pesquisa de opinião. Fez circular por cartas,
entre homens e mulheres, nobres e clérigos, algumas das máximas, pedindo-lhes uma
opinião. A reação normal entre as mulheres foi de escândalo. A princesa de Guymené,
apenas após ter lido as primeiras máximas, já contestava que aquilo que vira parecia
92
Idem, Ibidem.
48 “mais fundado no humor do autor do que na verdade”.93 A senhora de Liancourt
testemunhou que o manuscrito “começava tão cruelmente contra as virtudes, que me
escandaliza”94; La Fayette, ciente de que se tratava de La Rochefoucauld, também se
escandalizou, exclamando um pouco incrédula “Ah!, Senhora, que corrupção é
preciso ter no espírito e no coração, para ser capaz de imaginar tudo isso!”.95 “Estas
máximas são perigosas”, advertiu a senhora de Schomberg.96
Nem todas as opiniões eram negativas. Muitas das réplicas recebidas pela
marquesa de Sablé foram mais benevolentes com as máximas; algumas até bem
entusiasmadas. As cartas e fragmentos que chegaram até nós são de autores
desconhecidos e em uma delas o comentarista pede para permanecer anônimo. Em
geral, as respostas destas cartas são mais extensas e desenvolvem argumentos
filosóficos e mesmo teológicos, o que nos leva a pensar que foram compostas por
homens, provavelmente acadêmicos e clérigos. Vemos nelas comentários sobre o
estilo, paralelos com Sêneca, santo Agostinho, o livro de Eclesiastes, Epiteto,
Montaigne e Charron. Lidas em paralelo com as respostas dadas pelas grandes dames,
surpreende também a quantidade opiniões favoráveis ou mais complacentes. Um
deles adverte que o escrito pode ser bom em boas mãos, mas perigoso em posse de
libertinos;97 outro mostra os mesmos receios e fica dividido entre desaprovar sua
moral perigosa e louvar seu estilo fascinante, pois admite que o autor é um “orador
eloquente e um filósofo mais crítico do que douto”. 98 Mas o comentário mais
entusiasmado foi, sem dúvidas, o daquele comentador que pediu à marquesa de Sablé
que dissesse ao autor das máximas que
93
Idem, p. 711. “(...) plus fondé sur l’humeur de l’auteur que sur la vérité” (Tradução livre)
Idem, Ibidem. “(...) débutait si cruellement contre les vertus, qu’il me scandalisa”.
(Tradução livre)
95
Idem, p. 712. “Ha!, Madame, quelle corruption il faut avoir dans l’esprit et dans le cœur,
pour être capable d’imaginer tout cela!”. (Tradução livre)
96
Idem, p. 713. “Ces maximes sont dangereuses”. (Tradução livre, grifo no original)
97
Idem, p. 715.
98
Idem, p. 716. “(...) orateur éloquent et un philosophe plus critique que savant”. (Tradução
livre)
94
49 quando não tivesse no mundo mais do que seu escrito e o Evangelho, eu
gostaria de ser cristão. Um me ensinaria a conhecer minha misérias, e o
outro a implorar meu libertador; estes são os dois primeiros graus da vida
espiritual (...).99
A média das opiniões deveria ter levado o duque a abandonar a impressão de
suas máximas; se todavia essa fosse a intenção da pesquisa de opinião promovida por
ele e pela marquesa de Sablé. Pois na verdade, o que se preparava a partir dos
comentários dos consultados não era um veredito sobre publicar ou não a edição: com
uma cópia clandestina em circulação, o duque devia considerar esta necessidade
incontornável. O que se preparava, no fundo, era uma contra-argumentação, uma
apologia em defesa de sua moral, o que aconteceu na ocasião da primeira edição.
A investida foi dupla. De um lado, a marquesa de Sablé elaborou um artigo
para o Journal des Savants. Corrigido e talhado por La Rochefoucauld, que retirou do
artigo a exposição dos argumentos contra sua obra, a nota publicada em 9 de março
de 1665 exaltava a “grande qualidade” de quem se passava “por autor destas
Máximas”, afirmando a utilidade moral e religiosa do texto e exaltava a
espirituosidade e capacidade de penetração do “autor”.100 Em paralelo, outra investida
em defesa de La Rochefoucauld veio pelo “Discours sur les Réflexions ou Sentences
et Maximes de Morale”, atribuído a La Chapelle-Bessé, impresso como preâmbulo à
primeira edição, em 1665. Neste discurso relativamente extenso, La Chapelle-Bessé
elaborou uma série de refutações baseadas nas críticas mais comuns sofridas pelos
manuscritos das Máximas, especialmente quanto à piedade religiosa de seu conteúdo
e seu autor. Defendia que as reflexões não destruíam as virtudes e que elas não
tomavam em conta somente ações más e indiferentes (deixando de lado verdades e
virtudes sólidas), apenas apresentavam o coração do homem em seu estado
corrompido.101 Contra a crítica de que era injusto aplicar a todo o gênero humano a
acusação dos erros de alguns homens e de que o autor era obscuro, defendia que sem
este tom, as reflexões perderiam “tout le sel et toute la force”.102 E também, que a
beleza das máximas não foi feita para todo mundo.103
99
Idem, p. 721. “(...) quand il n’aurait que son écrit au monde avec l’Évangile, je voudrais
être chrétien. L’un m’apprendrait à connaître mes misères, et l’autre à implorer mon
libérateur ; ce sont les deux premiers degrés de la vie spirituelle (…)”. (Tradução livre)
100
Idem, pp. 724–725
101
Idem, pp. 389–392.
102
Idem, pp. 394–395.
103
Idem, p. 394.
50 O sucesso da edição foi grande. No ano seguinte apareceu a segunda edição.
Nela sumiu o “Discours” de La Chapelle-Bessé, o que pode indicar uma menor
preocupação – devido à recepção? – de La Rochefoucauld com sua possível má-fama.
Em contrapartida, várias modificações foram feitas. Como nota Georges Minois,
dentre as modificações, exclusões e acréscimos (60 máximas foram suprimidas e 44
incluídas), percebe-se uma ligeira revalorização da amizade. Provavelmente por causa
das críticas. 104 Enquanto vivo, La Rochefoucauld ainda trabalhou em mais três
reedições junto com Claude Barbin: a de 1671 (40 acréscimos, 22 modificações e uma
exclusão); de 1675 (com o acréscimo de 72 máximas); e 1678, última em vida e que
se tornou a edição base para as posteriores (106 acréscimos, 14 supressões e 18
modificações). Além disso, entre a expiração e a renovação do privilégio real
concedido a Barbin, no ano de 1672 surgiram duas reedições, uma em Rouen e outra
em Lyon. Em 1676 surgiu uma edição de contrafação na Holanda, feita a partir da
versão de 1665.
As Máximas se tornaram uma ocupação frequente do duque em suas últimas
décadas de vida. Em meio ao escândalo e ao reconhecimento, La Rochefoucauld foi
associado gradativamente à sua obra. La Fontaine dedicou-lhe dois poemas.
“L’homme et son image – Pour M. L. D. D. L. R” e “Discours à Monsieur le duc de
La Rochefoucauld [fábula das lebres]” são elogios sinceros, de amigo e admirador. O
autor das Máximas já se tornara uma referência aos moralistas de sua época e iria, em
breve, ser exaustivamente consultado, copiado e refutado. Ainda no século XVII,
surgiu um exército de “continuadores” de La Rochefoucauld. Sergé, Vernage,
Boucher, Mailly, Leven de Templery. Junto com fragmentos de cartas, as obras destes
moralistas são as melhores fontes à disposição do pesquisador acerca da recepção das
máximas.105
A década de 1670 foi uma década de reconhecimento e sofrimento. La
Rochefoucauld teve uma vida longa para os padrões da época, o que lhe permitiu
sofrer a morte sucessiva de vários conhecidos. Sua mulher morreu em 1670 e sua mãe
em 1672. Duros golpes em seus filhos, no exército e em campanha no Reno –
François VII é gravemente ferido; Jean-Baptiste (quarto filho) foi ferido mortalmente,
como também o jovem duque de Longueville, filho bastardo de La Rochefoucauld
104
MINOIS, G. Op. Cit., p. 448.
Estudo já empreendido, com destaque para Jacqueline Plantié. “Les ‘continuateurs’ de La
Rochefoucauld à la fin du XVII siècle”. In. Images de La Rochefoucauld.
105
51 com o a duquesa de Longueville (que morreu alguns anos depois, em 1679). Duas
mortes que devem ter feito o duque sofrer em 1678: a marquesa de Sablé e Jacques
Esprit. Em meio aos sofrimentos, as velhas aflições físicas deve ter feito a saúde do
duque se deteriorar ainda mais, o que não o impediu, ou talvez tenha até
impulsionado, a trabalhar em suas Máximas. Até 15 de março de 1680 quando
recebeu a extrema unção. La Rochefoucauld, nobre bem nascido, duque rebelde,
frondeur mundano polido e memorialista morreu na madrugada do dia 17 de março,
como moralista.
52 V. JACQUES ESPRIT
Mais difícil de traçar e acompanhar é a trajetória de Jacques Esprit. De
extração social mais baixa do que a marquesa de Sablé e La Rochefoucauld, Jacques
Esprit, ou “abade” Esprit foi uma figura com relativo destaque em sua época:
frequentou grandes salões, fez parte do conselho real, foi protégé de nobres
importantes e teve ainda uma cadeira na Academia Francesa. O que sabemos sobre
ele, entretanto, nos vêm em grande parte de estudos e fontes relacionados a seus
amigos, especialmente a marquesa de Sablé e o duque de La Rochefoucauld, com os
quais manteve intensa troca epistolar, íntima relação de amizades e fidelidade.106 Se
La Rochefoucauld ficou conhecido por sua obra escandalosa, a despeito de uma vida
atribulada e rebelde, Jacques Esprit, inversamente, chamou a atenção destes
estudiosos mais por sua vida um tanto calma e de constante alpinismo social, do que
por sua extensa e polêmica obra, La fausseté des vertus humaines, de 1677.
Esprit: menos que abade, mais que mundano
Esprit não era parisiense e não era nobre. Filho de um médico de Toulouse,
nasceu em Béziers, no Languedoc, no ano de 1611. Era de família burguesa e foi
encaminhado, assim como seu irmão, para que os estudos religiosos. Após estudar
com os jesuítas seu irmão Thomas o fez entrar, em 1629, aos 18 anos, como noviço
do Oratório (no seminário de Saint-Magloire, em Paris) onde este mesmo havia
estudado. Cultivou-se bastante para que pudesse entrar no mundo letrado;
familiarizou-se com a tradição da Igreja, o latim, provavelmente o grego e com
autores antigos com os quais dialogaria em seus futuros escritos. O noviço completou
sua formação em 1634, mas, pronto para sair do seminário, recusou os votos, o que
não foi motivo para que abandonasse um tipo austero e conformista de moral cristã
que defendeu pelo resto da vida, ainda mais após tornar-se defensor dos jansenistas.
106
Nesse sentido, algumas das referências sobre Esprit que articulamos ao longo da pesquisa
se encontram nos estudos já citados de Nicolas Ivanoff (Capítulo IV “Les œuvres qu’a vu
naître le salon de la marquise de Sablé”, segmento C: “La Fausseté des vertus humaines”)
Victor Cousin (capítulo III, pp. 124–128) e Georges Minois (passim). A correspondência
consultada é a que foi encontrada na edição da Pléiade. O estudo mais relevante que
consultamos é o ainda não citado livro de Henri Berna. BERNA, Henri. Pensées, maxims et
sentences de Jacques Esprit – Considérations sur les vertus ordinaires. Paris: Le Manuscript,
2003.
53 Aparentemente Esprit demonstrava predileção pela carreira política e
mundana. Seu irmão deve ter percebido isto. Em 1634, quando Jacques tinha algo em
torno de 23 anos, Thomas o levou e apresentou aos convivas do hôtel de Rambouillet.
Auxiliado também por outro clérigo mundano, o abade e poeta Germain Habert (1615
– 1654), Esprit fez sua entrada definitiva no grand monde. Sua trajetória nos faz
pensar em um jovem muito inteligente, erudito e cheio de aptidões para o convívio em
sociedade: Esprit caiu nas graças de poderosos importantes e manteve contato com
pessoas proeminentes do período.
O primeiro destes vínculos foi com o chanceler Séguier. Pierre Séguier (1588–
1672), nobre e magistrado parisiense de uma ilustre família do Languedoc era um dos
homens políticos mais importantes do período. Presidente à mortier do parlamento de
Paris, intendente da Guyenne, chanceler, membro fundador da Academia Francesa (da
qual tinha a cadeira de número um) e protetor da mesma após a morte de Richelieu,
em 1642: Séguier não somente abriria portas para Jacques Esprit. Ele era, em si, uma
porta escancarada de oportunidades. Em 1636 o chanceler colocou Jacques a serviço
de sua filha, em qualidade de secretário e intendente, conferindo-lhe uma generosa
renda. A proteção de Séguier foi crucial para que Esprit fosse nomeado conselheiro de
Estado, tornando-o um alto servidor da monarquia. Neste meio tempo o erudito
secretário e conselheiro Esprit frequentava o cenáculo de Valentin Conrart, círculo a
partir do qual Richelieu criou, em 1634, a Academia Francesa. Séguier era um dos
mais influentes membros da recém-nascida Academia; mais uma vez Esprit tirou
vantagem desta valiosa proteção, sendo nomeado à cadeira antes pertencente a
Philippe Habert.
Estamos em 1639, Jacques tinha 28 anos, e já se misturava a grandes
personalidades da política e da cultura. Tudo ia muito bem, até que uma reviravolta
em 1644 fizesse com que caísse em desgraça com seu protetor. Marie Séguier (1618–
1710), filha do chanceler, era casada com Pierre César de Cambout, marquês de
Coislin, tenente-general dos exércitos reais e sobrinho do cardeal de Richelieu. Um
militar de destaque e filho de uma ilustre estirpe, portanto, mas que, todavia, morreu
em combate em 1641. Na época, a viúva tinha apenas 23 anos e encontrou uma nova
paixão pouco tempo depois, Guy de Laval Boisdauphin, filho da marquesa de Sablé.
O matrimônio foi selado de forma escandalosa (c. 1644), em segredo e sem
consentimento dos pais. Furioso com o que entendia ser uma imprudência e uma
indecência, Séguier dispensou Esprit de seu serviço. Sua percepção devia ser a de que
54 um servidor tão próximo à casa de Séguier-Coislin (da qual era secretário) e da casa
de Sablé-Laval (da qual era conviva e amigo) não poderia ter passado sem saber de
uma união dessas. Séguier supunha que Jacques Esprit havia escondido dele o
segredo. Para nosso moralista, estava em jogo um dilema interessante de fidelidade e
imprudência: se Esprit calasse, seria fiel a Marie e Guy de Laval; se falasse, seria fiel
a Pierre Séguier. Escolheu o silêncio e pagou por ele. Ironicamente caiu em desgraça
por uma imprudência de palavra que sequer pronunciou. Esta temática foi retomada
(indiretamente?) por La Rochefoucauld, anos depois, em sua reflexão De la
confiance.
Jacques Esprit não ficaria muito tempo sem outro protetor. Na verdade, passou
quase que imediatamente ao serviço de Anne Geneviève, senhora de Longueville, da
casa de Bourbon-Condé. Segundo o testemunho dado pelo jesuíta Réné Rapin (1621 –
1687), a própria marquesa de Sablé teria providenciado Esprit para Longueville,107 o
que é bem verossímil. Longueville conseguiu a mesma pensão de 2000 livres de renda
que o acadêmico tinha enquanto trabalhava para os Séguier–Coislin e ele chegou a
viajar com a grande dama para Münster quando das negociações da paz da Vestfália,
em 1648, que puseram fim à Guerra dos Trinta Anos. Segundo o próprio Rapin, o que
deve ser lido com mais ceticismo, Jacques Esprit foi o responsável pela “conversão”
da senhora de Longueville ao jansenismo, partido que, sabemos bem, esta nobre
defendeu fervorosamente em sua velhice. Mas o jansenismo parecia ser o menor dos
problemas da grande dame neste momento. Em 1648 despontavam as tensões da
Fronda dos príncipes e a protetora de Jacques Esprit era apenas uma das principais
personagens da trama. Servindo à senhora de Longueville, Esprit não somente
acompanhou de perto as disputas da Fronda, mas também teve a oportunidade de se
ligar em amizade e confraternidade com o poeta Jean-François Sarrasin (1614–1654)
e François de La Rochefoucauld, amizades que marcaram o acadêmico.
Nicolas Ivanoff – baseando-se em Tallement de Réaux – afirma que neste
momento Esprit vivia uma crise religiosa, o que o levou a se retirar pela segunda vez
no seminário de Saint-Magloire.108 Trabalhar para a senhora de Longueville durante a
Fronda: é bem mais provável que a crise de Esprit fosse de outra natureza. Esprit se
retirou temporariamente de cena. Permaneceu adepto da doutrina de Jansenius,
envolveu-se – como acadêmico – na querela literária entre uranistas e jobelinos
107
108
RAPIN apud IVANOFF, N. Op. Cit., p. 183.
Idem, Ibidem.
55 (1649) e manteve uma austera vida devota por alguns anos, só retornando ao monde
após a Fronda.109
É muito difícil propor uma datação e uma narrativa precisa da sucessão dos
fatos na vida de Esprit. Além de não haver muita documentação – e o que existe não
estar acessível para a pesquisa atual –, há problemas sérios de datação na narrativa
que propuseram alguns dos estudiosos. Henri Berna, em um livro dedicado apenas a
Esprit, parece fugir da necessidade de datar: trata a anistia do príncipe de Conti e a
passagem do nosso acadêmico a seu serviço como fatos quase encadeados, sem
maiores precisões. 110 Se Esprit passou ao serviço de Conti já por volta de 1654–1655,
o que explicaria sua atividade em Paris, uma vez que o príncipe dividiu seu tempo
entre a Catalunha e o Languedoc, onde estava a sua corte pessoal? Se isso tivesse
ocorrido, Esprit nunca poderia ter sido o interlocutor que foi entre La Rochefoucauld
(em Verteuil) e a marquesa de Sablé (em Paris), o que nos atesta a correspondência do
duque.
Já as páginas que Ivanoff dedicou a Esprit são mais vagas ainda. O estudioso
nos conta que em 1658 Esprit se curou de suas “loucuras ascéticas” (devido à solidão
do retiro em Saint-Magloire, durante a Fronda), entrou para o serviço de Conti e se
casou. Depois disso, sua vida “s’achève en idylle”.111 Idílio logo após 1658, bem no
período em que começou sua mais intensa troca epistolar com La Rochefoucauld,
bem no momento em que estava em Paris – como acadêmico e conselheiro – e
frequentava a casa da marquesa de Sablé? O texto de Ivanoff errou até no nome da
esposa de Esprit (Bollain, grafada Rollim), erro não incluído na extensa lista de
errata: o tropeço não deve ter sido de impressão.
O esclarecimento quanto ao nome da mulher de Esprit está na base de
genealogia online geneanet: Geneviève Bollain, filha de Amable Bollain e Marie
Barbier, morta em 1693, se casou com Jacques Esprit no dia 28 de fevereiro de 1658.
Outra informação valiosa: o casamento ocorreu na ingreja de Saint-Eustache, em
Paris.112 Logo, em 1658 Esprit ainda não havia ido ao Languedoc ou, se tivesse ido,
não teria ficado por muito tempo. Pois a correspondência de La Rochefoucauld nos
109
Embate de opiniões entre os admiradores do Sonnet d’Uranie, de Vincent Voiture (1597 –
1648), e do Sonnet de Job, de Isaac de Benserade (1613 – 1691). A cabala de Uranie tinha as
marquesas de Longueville e Sablé, o marquês de Montausier e as mulheres em geral; o
príncipe de Conti capitaneava os jobelinos. Esprit era pelos jobelinos.
110
BERNA, H. Op. Cit., pp. 26–27.
111
IVANOFF, N. Op. Cit., p. 183.
112
Consultada no endereço: http://gw.geneanet.org/pierfit?lang=fr&p=genevieve&n=bollain
56 atesta que o acadêmico estava em Paris até pelo menos 24 de outubro de 1660,
quando o duque pede a Esprit que mostre a Sablé algum livro;113 quiçá até 1663,
quando o duque escreveu à marquesa de Sablé que soube dela por intermédio de
Esprit.114
Propomos então a seguinte narrativa. Terminada a Fronda, Jacques Esprit saiu
de seu retiro junto aos religiosos do Oratório em Saint-Magloire. Uma vez que a
duquesa de Longueville se retirou do mundo, Esprit passou para o serviço do amante
de sua protetora, La Rochefoucauld, que tinha por intendente Jacques de Serisay,
morto em 1654.115 Sem Serisay, o duque precisava de outro bom letrado para auxiliálo com os problemas financeiros de sua casa, dilacerada em suas contas pelo conflito
armado. Esprit assumiu o cargo e deve ter sido desta forma que aprofundaram seus
laços de amizade e cooperação intelectual. Neste meio tempo, permaneceu em Paris
onde frequentava a boa sociedade, o conselho real e a Academia. Casou-se em 1658,
dotado pelo príncipe de Conti e pela duquesa de Longueville e por volta da mesma
época começou uma agitada troca epistolar de máximas com o duque de La
Rochefoucauld e a marquesa de Sablé; o próprio Esprit não parece ter se dedicado
nesta época a escrever alguma obra de sua própria pena.
Consideramos que Esprit permaneceu em Paris até pelo menos 1663, que ali
se casou e trocou máximas com Sablé e La Rochefoucauld, mas sabemos que também
se tornou, em algum momento preceptor dos filhos do príncipe de Conti. Quando isto
ocorreu?
Conti foi anistiado pelo Rei não muito tempo depois da Fronda terminar. Para
apaziguar seus ânimos, a corte lhe concedeu o vice-reinado da Catalunha e o título de
generalíssimo da mesma região. O príncipe se estabeleceu então no Midi,
especialmente na corte do Languedoc em Pézenas, e levou consigo vários de seus
servidores. Foi nesta época (1654–1656) que o príncipe libertino foi patrono da trupe
de Molière. Esta proteção não durou muito tempo e foi interrompida pela “conversão”
radical do príncipe. Tendo contraído uma “mauvaise maladie”, ou seja, alguma
doença venérea, Conti passou a dedicar seu tempo ao comando do Languedoc, da
Catalunha, da sua família e à salvação da sua alma. Segundo Henri Berna, sua
113
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 608.
Idem, p. 614.
115
MINOIS, G. Op. Cit., p. 328.
114
57 residência em Pézenas se transformou em uma espécie de monastério.116 É certo que
Conti entrou para a companhia do Santo-Sacramento, escreveu obras religiosas e
abriu até colégios pios, mas continuou seus esforços de perpetuação de sua casa. Em
1661 nasceu seu primeiro filho, Louis-Armand de Bourbon-Conti (1661–1685), e em
1664 o segundo, François-Louis de Bourbon–Conti (1664–1709).
As crianças precisavam de um preceptor. Havia muito que o príncipe
abandonara sua vida libertina, passara a condenar o teatro e demonstrava tendências à
devoção jansenista. Escolheu como educador das crianças alguém de confiança,
reconhecidamente inteligente, habilidoso e devoto, alguém originário do Languedoc e
que pudesse ajudar com outros assuntos da sua célebre maison: Jacques Esprit. Era o
momento oportuno para o acadêmico voltar ao sul, deixar a agitação de Paris e cuidar
também de seus assuntos. Com mais de 50 anos, seus filhos começaram a nascer e ele
tinha em mente algumas obras de sua própria lavra. Béziers, onde nasceu, fica a
pouco mais de vinte quilômetros de Pézenas e dali podia cuidar de todas as
responsabilidades que lhe cabiam. Começou em algum momento por volta de 1665 o
idílio de que falou Ivanoff.
Em Béziers e Pézenas, Jacques Esprit se pôs a escrever as duas obras que
chegaram a nós. O fato de ele fazer parte da Academia Francesa há muitos anos não
tinha nenhuma relação com ter publicado algo antes, possuir uma extensa obra. Isto
serve para muitos outros membros da instituição. Desde sua criação – e assim
permaneceu por muitos anos –, o corpo da Academia – cuja função era a verificação
das palavras francesas – foi constituído por não-especialistas aprovados por Richelieu.
Claude Bachet de Méziriac era matemático. Marin Cureau de la Chambre médico.
Bautru e Servien diplomatas e não esqueçamos Pierre Séguier, chanceler, magistrado,
parlamentar etc. 117 Muitos deles não tinham escrito uma linha sequer e ocupavam
cadeiras que podiam ter sido entregues – seguindo um raciocínio anacrônico quanto
ao reconhecimento que a Academia visava conferir e sua função – a homens como
Corneille, para ficarmos com um exemplo. A expertise, explica Fumaroli, é
contraditória com a ideia aparente e enganosamente especializada da instituição.118
116
BERNA, H. Op. Cit., p. 27.
FUMAROLI, M. Op. Cit., (1994), p. 34.
118
Idem, Ibidem. Segundo o estudioso, a Academia Francesa ia, inicialmente, se chamar
Academia de Eloquência.
117
58 Jacques Esprit teve dois principais períodos de escritura em sua idade de
experiência. Os dois culminaram em obras diferentes. O primeiro, supomos, vai de
1658 até cerca de 1664 e terminou com a publicação das Maximes politiques mises en
vers em 1669.119 A periodização coincide com a permanência de Esprit em Paris e vai
até a data de publicação do libelo. Principalmente, a forma escolhida pelo moralista
apenas corrobora a proposição. É uma compilação de máximas organizadas em
versos, duas práticas de escritura recorrentes nos salões, sendo a máxima a forma
mais explorada pelo círculo da madame de Sablé que, como vimos, estava em plena
atividade na virada da década de 1650 e início de 1660.
Esprit não estava só debatendo, mas escrevendo máximas no mesmo momento
em que La Rochefoucauld e Sablé. A obra se insere, entretanto, em um grupo maior
de trabalhos publicados na mesma década: as artes de governar e de bem educar o
príncipe. Maria Teresa de Espanha deu luz ao primogênito de Luís XIV, o grande
Delfim, em 1661. Do nascimento decorreu o surgimento de várias obras, mais ou
menos esquecidas, dedicadas ao Delfim e que propunham ideias e máximas para sua
educação. Em 1662 o padre Sénault do Oratório publicou Le Monarque ou Les
Devoirs du Souverain; em 1666, Conti lançou seu o tratado Les Devoirs des Grands.
O duque de Montausier colocou em circulação suas Maximes Morales et Politiques
que, ainda que não tenham sido publicadas em libelo, chegaram às mãos do futuro
preceptor do Delfim: Bossuet. 120 Foi ao duque de Montausier que Esprit, mais
autorizado à escrita por sua posição social, dedicou suas máximas versificadas,
assumindo “a ambição que tenho de que o Rei digne-se lançar os olhos sobre o Poema
que vos ofereço”.121 Deve estar suficientemente claro que Esprit era habilidoso em
angariar influência.
O segundo período de escrita foi mais longo, alargamento cronológico
condizente com a forma, o estilo de vida e o lugar que convergiram na obra que
seguiu. Gestada em um período de 12 anos que vai de 1664 a 1676, La fausseté des
119
Maximes politiques mises en vers. Par Monsieur l’abbé Esprit. Paris: Denys Thiery e
Claude Barbin, 1669. O privilégio real foi concedido a Barbin, que acordou parte do trabalho
a Thiery.
120
Todas as referências foram tiradas de JANET, Paul. “Rapport sur un ouvrage de M. de
Nourrisson intitulé La politique de Bossuet” In. VERGÉ, Charles. (Dir.) Séances et Travaux
de l’Académie de Sciences Morales et Politiques. Paris: Daurand et Laurière, 1868, pp. 199–
202.
121
ESPRIT, J. Maximes Politiques mises en vers, “Êpitre” s.p. "(...) l’ambition que j’ay que le
Roy daigne jetter les yeux sur le Poëme que je vous offre”. (Tradução livre)
59 vertus humaines foi escrita após a volta de Esprit ao Languedoc, durante um momento
de dedicação à vida familiar, aos assuntos do austeríssimo príncipe de Conti, ao idílio
e à retraite. Terminou impressa em 1678, pouco antes da morte do abade moralista.
La fausseté des vertus humaines foi levada ao prelo por Guillaume Desprez, livreiroimpressor da rua Saint-Jacques. Foi preciso dividir o trabalho em dois tomos de um
total de 1166 páginas organizadas em 56 capítulos, cada um correspondendo a uma
(falsa) virtude humana. A edição possuía ainda uma gravura por frontispício, prefácio,
sumário e a dedicatória ao mesmo Delfim para quem o moralista escreveu as máximas
em versos.
Dessa leitura imaginamos o espírito em que o acadêmico imergiu ao cabo de
sua vida. Afastado de Paris, dos assuntos mundanos e, principalmente, das pessoas
que frequentavam assiduamente a Corte e os salões, Esprit teve muito tempo para
cuidar de sua salvação. De uma certa forma, cumpria pelo isolamento e pelo estudo
solitário o ideal anunciado em sua obra: o de que somente uma entrega total ao mais
austero cristianismo pode purificar aquilo que o humano e o mundo corrompem. Ao
cabo de todos os 56 capítulos, Esprit nega uma falsa virtude e defende a “verdadeira”
virtude cristã. Mas, o que é “verdadeiramente” cristão? Tão ampla e pessoal quanto
pode ser a interpretação a esse tipo de formulação, a vida resignada e devota que
Esprit e Sablé viveram em seus últimos anos nos apontam a uma leitura. Pois
especialmente no caso de Esprit, a crítica moralista que realizou pressupunha
conhecer o mundo por dentro, “les vuës secrètes de l’amour-propre”, como um mapa,
seus “chemins détournez”, como um teatro, a “varieté de personagens qu’il joüe”;122
mas não bastava. A obra só podia ser levada ao termo por um grande desprezo por
esses mesmos mecanismos e artifícios: a rejeição final ao mundo. A vida como
crítica: finda a obra, findou-se a vida. Esprit morreu no dia 11 de junho de 1677 em
Béziers.
122
ESPRIT. Tomo 1, “Êpitre”, s.p.
60 VI. A FORMAÇÃO DE UM CÍRCULO DE CONVIVAS
Pelas informações de diferentes fontes e estudos, o mais correto parece ser
pensar que os três convivas se encontraram pela primeira vez na ruelle de madame de
Rambouillet, bem como nos círculos análogos a este. Como vimos, Esprit foi
introduzido nas reuniões por seu próprio irmão, Thomas. La Rochefoucauld foi
casado com Andrée de Vivonne, prima de Catherine de Vivonne (a marquesa de
Rambouillet), mas seria muito difícil que a condição genealógica extremamente
favorável em que nascera não o conduzisse naturalmente às reuniões mais restritas da
alta sociedade. Imagine-se que em meados da década de 1630 Jacques Esprit já
recusara seus votos e optara pelo serviço – laico – de algum grande senhor, o qual
poderia conciliar com a escrita; da mesma forma, La Rochefoucauld, dois anos mais
novo, conciliava uma carreira militar ansiosa de glória com a necessidade de manterse informado dos assuntos da nobreza. Ambos com um pouco mais de 20 anos
mostravam-se a uma geração de damas solidamente estabelecidas na sociedade (a
despeito de casamentos infelizes e problemas financeiros). A marquesa de
Rambouillet, era duas décadas mais velha que os jovens arrivistas, pois nasceu em
1588. A marquesa de Sablé era de 1598. A “incomparável Julie”, filha da marquesa
de Rambouillet, nasceu em 1607, mesmo ano que Madeleine de Scudéry. Era a elas
que os convivas falavam; a elas que deviam agradar. Elas, por sua vez, engendravam
e formavam uma nova geração tão preciosa quanto a anterior.
Quando Esprit e La Rochefoucauld empreendiam a entrada no monde, a
marquesa de Sablé já estava nele há muito, desde 1618 ou 1619, como vimos. Ela
integrava a primeira geração de frequentadores da ruelle bleue. Isto porque é possível
distinguir em três fases a ascensão e eclipse do salão de Rambouillet. De 1620 a 1625
viveu uma intensa fase inicial na qual foi frequentado por Richelieu (então bispo de
Luçon), as senhoras de Clermont e Paulet, a princesa de Conti e escritores como
Malherbe, Racan, Vaugelas, Conrart, Segrais e Chapelain. O segundo período, que foi
de 1625 a 1648, foi o momento dos grandes senhores. Além de La Rochefoucauld, os
duques d’Enghien (aliás o Grande Condé) e Montausier (futuro marido de Julie de
Vivonne) dividiram salão com Voiture, Sarasin e Benserade, entre outros. Este
período é cindido pela Fronda que reorganizou a alta sociedade parisiense e outros
traumas no cercle. Em 1645 Julie se casou. Em 1648 Voiture e Pisani, filho da
marquesa de Rambouillet, morreram. Depois veio a guerra civil. De 1648 a 1665 o
61 salão existiu, ou subsistiu, mas eclipsado por outras sociedades que nasceram na
segunda metade do século. Esta foi sua terceira “fase”.123
Dentre os novos salões, o da marquesa de Sablé na Place Royale e em PortRoyal. Como destacou Nicolas Ivanoff, se os habitués da marquesa eram
heterogêneos em proveniência, devoção e opiniões, todavia compartilhavam
interesses em comum. Dentre as mais próximas a Sablé encontram-se a duquesa de
Longueville, a princesa de Guémené e a duquesa de Liancourt (três protetoras de
Port-Royal); a duquesa de Schomberg, as senhoras de Montausier e Lafayette e a
condessa de Maure. Este nomes estão em maior ou menor medida simultaneamente na
intersecção que abrange o jansenismo e o preciosismo. Jesuítas como Bouhours e
Rapin participaram de suas reuniões, este último chegando a escrever que “elle
recevoit des gens par contrebande, et je la voyois fort souvent alors, parce qu’elle
avoit besoin de moy”.124 Este contrabando levava ao salão pessoas de diferentes
ocupações e condições. Médicos como Antoine Menjot e Cureau de la Chambre;
abades como d’Ailly e Esprit e o matemático, teólogo e moralista Pascal, que
conjugava ao mesmo tempo quase todos os interesses da marquesa. Isso sem falar dos
grandes senhores, La Rochefoucauld, Conti, Montausier, Saint-Évremond e, segundo
Ivanoff, que folheou o portefeuilles Vallant, Philippe d’Orléans, irmão do rei.
Tematicamente a teologia (beirando o interdito; muitas vezes com tom de luta
contra a heresia), a medicina e física (pois médicos e matemáticos eram presença
constante) e a moral, base da cultura da conversação. No âmbito dos divertimentos,
como bem mostrou Lafond, é questionável que as máximas fossem um jogo de
sociedade exercido in loco, parecendo mais verossímil que tenha sido um jogo de
escritura, mantido por via epistolar, consistindo na correção e aperfeiçoamento de
sentenças. Quanto a nós tendemos a acreditar que as reuniões deviam ter como eixo
central a mesa de jantar. Não são poucas as cartas de La Rochefoucauld sobre o
assunto, tampouco era o único a fazer referências à sua cozinha, e é de conhecimento
123
A periodização e informações se devem não somente a Benedetta Craveri, mas também ao
apaixonado
trabalho
amador
de
Karine
Merdrignac
e
seu
site
http://17emesiecle.free.fr/Salons.php
124
RAPIN apud COUSIN. Op. Cit., p. 90.
62 comum o gosto da marquesa pelo refinamento gastronômico.125 O que nos leva a
imaginar que a conversação devia se dar, antes de tudo, em torno da mesa.
Sobre o escritos que nos testemunham essa convivência, foram dois os
principais tipos de documentos deixados pelos frequentadores: livros e cartas. Tanto
um quanto outro apontam para práticas privadas de escrita, realizadas em solidão, mas
cujo produto era submetido constantemente à intervenção alheia, chegando mesmo a
impossibilitar a identificação de qualquer autoria. São máximas compartilhadas quase
palavra por palavra, ideias idênticas que migram de um texto ao outro, de um axioma
a um discurso. Menos no caso de Esprit, que podia empreender desimpedidamente um
projeto autoral, as cartas precediam os livros. A impressão de um libelo por La
Rochefoucauld se deve à circulação excessiva de suas ideias, em cópias manuscritas e
pirateadas. O da senhora de Sablé, à carinhosa homenagem póstuma de um amigo:
D’Ailly nada mais fez do que compilar aquilo que a marquesa fez correr de mão em
mão, ouvido a ouvido, em suas cartas e conversas.
Esta é a imagem que temos do salão da marquesa de Sablé: uma congregação
heterogênea em todos os sentidos. Não há muitos testemunhos das reuniões que a
nobre realizava. Pelas muitas reclamações que seus amigos fizeram em cartas acerca
de seu isolamento, podemos conjecturar que antes de meados da década de 1660
(momento em que o afastamento se acentua) elas deviam ocorrer com certa
regularidade. A década que antecede a este isolamento, momento de grande consulta
mútua entre La Rochefoucauld, Esprit e Sablé parece ter sido particularmente intenso,
pelo menos em matéria de produção escrita. Esse é o período de gestação das obras do
salão da marquesa de Sablé, em que o trabalho (ou jogo de máximas) conjunto foi
mais vigoroso.
125
Edouard de Barthélemy notou muito bem que a única a desdenhar esses prazeres foi a
duquesa de Longueville. BARTHÉLEMY, Edouard. Les amis de la marquise de Sablé –
Recueil de lettres. Paris: E. Dentu, 1865, p. 129.
63 PARTE 2
PRÁTICAS E MORAL DO SILÊNCIO NA FRANÇA SEISCENTISTA:
ESTUDO A PARTIR DA OBRAS MORALISTAS DO SALÃO DA
MARQUESA DE SABLÉ
64 VII. Debate preliminar: a precedência lógica do silêncio e o deslocamento em eixo
tríplice dos discursos sobre ele
O homem agudo da cidade que agregava em torno de si a atenção dos
convivas ilustres dos salões aristocráticos e o espirituoso cortesão, capaz de articular
habilmente sua rede de amizades e confidências sem se deixar trair – sem deixar de
atrair a atenção do rei com sua conversação leve e divertida; o secretário sagaz que
comunicava os interesses do príncipe por cifras e que tinha um conhecimento
impecável de seus interlocutores e o Rei, cujas palavras realçavam a majestade de sua
condição; o religioso, cujos gestos e retórica faziam lembrar a graça do próprio Jesus
orador, e ainda a devota exemplar em santa contenção. Todos esses homens e
mulheres sonhados tão eloquentes, circunspectos, discretos e agradáveis nos tratados,
máximas, retratos e tantos outros gêneros de escritura moralista dos séculos XVI,
XVII e XVIII eram homens e mulheres da palavra. Suas falas, quando atingiam
algum ponto próximo à perfeição idealizada pelos moralistas, eram o emblema mais
valioso de uma obra completa de cuidado de si. Por outro lado, o momento em que a
corte voltava a seus aposentos, em que os salões adiavam a conversa vencida pelo
cansaço para um próximo encontro; o momento em que o descanso chegava ao jovem
secretário, aliviando-o de sua “servidão gentil”,126 mas também o retiro de volta ao
claustro do devoto: nesses momentos a palavra se extinguia, dispersava, ou melhor, se
encerrava de volta no recipiente-corpo. E vinha o tempo do silêncio.
Mas teria o silêncio um domínio exclusivo (o da circunspecção privada, do
“apagamento da linguagem” 127 , da taciturnidade estudiosa) apartado daquele da
palavra (a ruelle, a promenade, o Mundo?).128 A composição da eloquência, dos ares
e das expressões e os cuidados básicos da vida social, política e religiosa, não exigiam
eles o domínio do silêncio justamente para que a palavra pudesse cumprir suas
funções: mostrar aquele que fala, agradar os convivas, articular os afetos dos
interlocutores, etc.?
Em 1771 o abade Joseph Dinouart (1716–1786) – que, aparentemente, colheu
os frutos da fortuna alheia pela Arte de calar129 – reproduzia no século XVIII um
126
“Servir da segretario” In. ACCETTO, Torquato. Rime amorose: a cura di Salvatore Nigro.
Torino: Einaudi 1987, p. XI.
127
COURTINE, Jean-Jacques, HAROCHE, Claudine. Op. cit., p. 179.
128
Sobre termos entre parênteses, cf. AUERBACH, E. Op. cit., pp. 211 – 278.
129
DINOUART, Joseph-Antoine-Toussaint. A arte de calar. Tradução de Luis Filipe Ribeiro.
São Paulo: Martins Fontes, 2011.
65 importante princípio formulado por um outro abade, este do final do século XVII,
Jean–Baptiste Morvan de Bellegarde (1648–1734). Segundo Bellegarde, não se
tratava de oscilar entre a palavra e o silêncio, como de uma esfera a outra, de um
aposento privado ao mundo. Pelo contrário, à performance satisfatória da palavra era
indispensável a maestria e primazia do silêncio. Se o sábio do Eclesiastes já havia
fixado que para tudo há um tempo,
Tempo de rasgar,
Tempo de costurar;
Tempo de calar,
Tempo de falar,130
Bellegarde, lembrava em seus “Princípios necessários para calar” que
(...)
2. Há um tempo de calar, assim como há um tempo de falar.
3. O tempo de calar, deve ser primeiro na ordem, & nunca se
sabe bem falar, se antes não se aprendeu a calar.131
Bellegarde estabeleceu certa sequência, por assim dizer, dos elementos
apresentados de forma binomial no texto bíblico. Não somente há um tempo para
calar e outro para falar, isso é certo: o importante para o argumento defendido por
Bellegarde e retomado quase 80 anos depois por Dinouart era o de que o tempo certo
de calar sempre precede o da fala. A formulação tem valor axiomático: não deixa de
ser uma simplificação retórica, um tanto modesta, do complexo raciocínio
desenvolvido mais adiante na mesma obra e que deixa evidente até que ponto a
relação entre silêncio e fala na construção da eloquência deveria ser uma relação
dialética, de conciliação entre contenção e doação de si. Pensando dessa forma, o
terceiro princípio de Bellegarde – de que “o tempo de calar, deve ser primeiro na
ordem (...)” – não deve ser compreendido como o estabelecimento de qualquer
espécie de precedência cronológica do silêncio em relação à palavra: tratava-se, antes,
de certa precedência lógica.
Visto desta perspectiva, o estudo da tradição moralista acerca da arte da
conversação deve privilegiar a análise e interpretação dos discursos formulados em
130
ECLESIASTES 3:7, segundo a tradução da Bíblia de Jerusalém, p. 1074.
BELLEGARDE, Morvan. Conduit pour se taire et pour parler, principalement en matière
de Religion. Paris: Simon Benard; 1696, p. 7. “2. Il y a un temps pour se taire, comme il y a
un temps pour parler./3. Le temps de se taire, doit être le premier dans l’ordre, & on ne sçait
jamais bien parler si l’on n’a sçû auparvant se taire”. (Tradução livre, grifo nosso)
131
66 torno dos topoi do silêncio, bem como a elucidação das práticas de taciturnidade seja
por suas diversas funções sociais – civilizatórias, políticas, religiosas –, seja pelos
ideais de comportamento visados por essa pedagogia da contenção. A leitura de fontes
moralistas pode contribuir para a compreensão das variadas práticas de adestramento
corporal – o dito e o não-dito compondo também essa esfera – enquanto estratégia de
ascensão social, consolidação dos vínculos de amizade e artifício de eloquência. Nos
séculos XVI e XVII, em efeito, os corpos dos súditos foram visados por práticas
disciplinares e se tornaram alvos privilegiados de novos discursos normatizadores:
tais embates – em um período de grave crise religiosa, de profundas transformações
das estruturas e funcionamento do Estado, de importantes modificações culturais e
identitárias dentre as elites – não são passíveis de serem ignorados.
É, sem dúvida, um caminho vasto a ser percorrido e a própria execução de tal
tarefa exige a mínima elucidação prévia – um esboço ao menos – de traçado a ser
seguido. Pois em cada tratado, em cada coletânea de máximas, em cada narrativa de
memórias é possível destacar elementos que contribuam com o debate no qual
pretendemos inserir esta pesquisa. Entretanto, consideramos pertinente seguirmos o
traçado desenhado por autores referenciais na matéria estudada. Sem dúvida, o texto
mais pertinente sobre o silêncio ao qual tivemos acesso é o capítulo de Histoire du
visage, de Claudine Haroche e Jean-Jacques Courtine, no qual os autores realizam
“une archéologie du silence”.132 Haroche e Courtine propõem não somente a análise
de uma série diversificada de documentos, mas realizam uma interpretação de
conjunto, uma visão do processo de deslocamento dos usos e discursos sobre o
silêncio baseada fundamentalmente em seu deslocamento das práticas religiosas à
práticas de civilidade e destas últimas à esfera da representação política.
Em primeiro lugar, o silêncio cristão. Courtine e Haroche enfocam
especialmente no que chamam de “tradição ascética e mística do socratismo cristão” e
qual seria o lugar da taciturnidade dentro dessa forma de ascese. Em linhas gerais, a
ideia central é a de que o socratismo cristão privilegiava a humildade como virtude
cardial da devoção cristã, bem como o conhecimento de si. Nesse sentido, os
religiosos deviam a um só tempo “se apagar e se recolher em êxtase diante de Deus”
132
COURTINE, J-J; HAROCHE, C. Op. cit., p. 179.
67 para, desse modo, conseguirem “procurar Deus em sua morada, no mais profundo de
[si mesmos], no próprio interior de [suas] almas”.133 Assim, constatam:
(...) não há virtude sem humildade, nem humildade sem
silêncio interior, nem silêncio sem esse conhecimento e
possessão de si mesmo que permite o abandono contemplativo
de Deus, ou o respeito de uma conduta nele inspirada. A
virtude moral da humildade repousa sobre um controle das
aparências, do corpo e do gesto, uma ascese da palavra.134
Da humildade decorreriam também os preceitos da “modéstia” e a “contenção”,
essenciais em tratados de civilidade cristã.135 Desde cedo na história das ordens
monásticas o silêncio entrou nessa fórmula, como um dos meios de se atingir as
virtudes indispensáveis à devoção. O paradigma beneditino que irá se tornar matriz
para a elaboração de muitas outras regras nos mostra que a divisão de obrigações no
monastério passava pela posse da palavra – que pertencia ao superior – e seu papel em
reprimir os transgressores: tudo isso em nome da submissão e da humildade, meio
pelos quais se esperava atingir a santidade.
O silêncio, na tradição cristã, não era somente uma virtude em si, mas um
meio para se atingir outros feitos virtuosos como a modéstia, a humildade; a
disciplina, a ordem hierárquica, o fim da heresia. Importante destacar isso, pois, ainda
que as práticas monásticas permaneçam em vigor durante toda a modernidade – e
ainda hoje
136
–, os objetivos visados pelo silêncio vão sendo deslocados
gradativamente da esfera puramente religiosa, impregnando o pensamento civilizador
em pleno desenvolvimento nos séculos XVI e XVII. É nesse sentido que argumentam
Jean-Jacques Courtine e Claudine Haroche, sendo esse o segundo movimento do
processo que nos interessa aqui: o da transformação do silêncio religioso que buscava
a humildade, em silêncio civil, cujo fruto devia ser – principalmente – a prudência.
Por não conseguirmos sintetizar melhor, citamos os autores.
A exigência de silêncio interior diante de Deus desliza
lentamente para o silêncio exterior da igualdade de sinais face
133
Idem, p. 184.
Idem Ibidem. (Tradução livre)
135
Idem, p. 185. Os autores destacam Antoine de Courtin e Jean-Baptiste de la Salle.
136
Além das regras monásticas ainda em vigor em monastérios, uma ilustração do que
afirmamos é a produção de 2005 dirigida por Philip Gröning, Die Große Stille (Into great
silence, em inglês; O grande silêncio, em português). Rodado ao longo de seis meses, o filme
mostra o cotidiano dos monges da ordem dos cartuxos no maciço da Chartreuse (Alpes
franceses).
134
68 aos outros. E o sentimento religioso de humildade se converte
em signos sociais de prudência. A busca de conhecimento
interior de Deus em si mesmo é substituída pelo exercício de
vigilância constante da própria conduta, suas expressões, seus
propósitos. Na civilidade cristã, é a religião e a sociedade
juntas que exigem que o corpo se cale.137
Os discursos da civilidade e mundanidade eram desde seus primeiros teóricos
modernos completamente impregnados da temática da retenção da palavra,
reproduzida em metáforas do corpo, em citações bíblicas e na produção moralista. A
questão do silêncio foi deslizando – em suas metas e metáforas – “progressivamente
da fé aos costumes”.138 Os séculos XVI, XVII e XVIII assistiram à era da civilidade,
inicial e fundamentalmente cristã, ser progressivamente conduzida por suas próprias
regras. Desenvolveu-se nesse período a pedagogia da retenção, da reserva e da
reticência na vida social.
A questão do silêncio é um índice crucial da lenta
transformação das práticas religiosas em práticas civis, um
ponto de encontro entre cristianismo e sociedade, um
elemento essencial da civilidade cristã. 139
O convívio social sedimentado na prática da conversação exigia dos
envolvidos o domínio das regras de decoro e o conhecimento prático das técnicas de
interação nos círculos nobres e na corte. Se alguns religiosos apresentaram suas
críticas à “febre” da conversação que tomou a França nos séculos XVII e XVIII,
vendo nessa prática mundana os perigos da dissipação do si face aos outros, o
pensamento moralista laico respondeu aos críticos dos divertimentos reforçando as
exigências de contenção. 140 Mesmo o movimento de oposição aos prazeres da
conversação e da civilidade política esteve longe de ser unanimidade dentre os
religiosos. A recorrente metáfora da ânfora-corpo capaz de conter o líquido-palavra
exemplifica o ideal do sujeito “guardião das fronteiras de seu corpo”:141 para a maior
parte dos moralistas, a questão não repousava tanto em evitar o convívio social, mas
137
COURTINE, HAROCHE. Op. cit. p. 187. (Tradução livre)
Idem, p. 182.
139
Idem, p. 183. (Tradução livre).
140
Idem, p. 188. Sobre a crítica aos divertimentos – em especial ao teatro – cf. COSTA, Leila
Aguiar. Antigos e modernos: a cena literária na França do século XVII. São Paulo:
Nankin/Edusp, 2009.
141
Idem, p. 188.
138
69 sim de tomar parte nele segundo os preceitos de uma calculada economia corporal e
verbal.
Tal cálculo social respondia a muitas finalidades, todas proximamente ligadas.
Saber usar convenientemente das palavras era a um só tempo método de conservação
social, estratégia política, forma de agradar e ascender. Na corte era preciso manter
uma rede segura de confidentes, era preciso articular relações e reagir
convenientemente a situações que oscilavam entre o ritualístico – como em todas as
representações políticas cotidianamente repetidas – e o espontâneo – olhares, reações,
encontros e conversas inesperados. Em toda parte, era indispensável saber guardar
segredos e possuir suas próprias amizades seguras, devia-se agir conforme sua
qualidade ou posição social, adequar as formas de falar ao interlocutor. Na conversa
havia maneiras e modos de falar, ares, gestos, expressões, que se adequavam a
situações e pessoas sem nenhuma lei fixa, pois compreendiam um campo de
conhecimento prático – afinal, era uma “arte”, a “arte de conversar” – cujo
aprendizado exigia o convívio dos salões regidos pela autoridade das mulheres, pela
corte – sob controle do príncipe – e pela leitura dos livros de conhecimento
especializado, livros moralistas. A civilidade se tornou a moeda de troca, condição
sine qua non da vida social e política. E talvez ainda mais do que isso, segundo
Claudine e Haroche, que veem no processo uma cisão profunda.
O homem se destaca de Deus, a vida civil se impregna de uma
religião disseminada em suas práticas, de uma religiosidade
moral. O homem silencioso se espalha pelo mundo: o homem
humilde se torna o homem prudente. 142
O Estado logo fez uso das civilidades na constituição de um espaço ordenado,
no qual a violência dos interesses das famílias, cabalas e dos súditos em geral são
normalizados por etiquetas e decoros teatralizados no convívio da corte. Jean-Jacques
Courtine e Claudine Haroche destacam o papel central do cardeal de Richelieu no
estabelecimento do uso regras de civilidade, “de um ritual obrigatório e meticuloso
visando o menor gesto, o menor olhar, [como] o meio privilegiado de dominar, de
domesticar; de controlar, de disciplinar os corpos, as expressões, os propósitos”.143
Para eles, o Testamento político de Richelieu é um dos documentos onde se vê
idealizar um espaço político no qual as violências são apaziguadas em prol das
142
143
Idem, p. 194. (Tradução livre)
Idem, pp. 195–196.
70 condutas de civilidade. Foi, porém, na construção e transferência da corte para o
palácio de Versalhes que o projeto tomou sua forma mais acabada. E da dinâmica
inscrita nesse cotidiano, os relatos de Louis de Rouvroy, o duque de Saint-Simon
(1675 – 1755) são, talvez, os mais detalhados.
Com seus olhares, ritos, silêncios e represálias; sua economia de
favorecimentos, mercês, afastamentos e ruinas, Luís XIV – que “quis a ordem e a
regra”144 – e seus ministros puderam, se não exercer o poder absoluto como quisera
certa historiografia, ao menos apaziguar os ânimos de uma nobreza cujos sonhos de
liberdade145 haviam arrastado o reino da França a um século de guerras civis e
insurreições consecutivas. A política de disciplinamento dos corpos pelo rei exigia
também o disciplinamento de seu próprio corpo.146 Regendo a corte de modo que seus
movimentos fossem ordenados pelos preceitos civis, pois, “para o rei, a etiqueta não é
apenas um instrumento de distanciamento, mas também um instrumento de
dominação”, 147 o rei ele mesmo acabou por se tornar “prisioneiro da etiqueta”,
segundo a expressão de Norbert Elias.148 O rei não somente era rei a todo o momento:
todos os momentos se inseriam na engrenagem de funcionamento da corte e em todos
os momentos o rei devia parecer um rei. E de tal forma que Jean de La Bruyère
(1645–1696) constatou que “nada falta a um Rei, a não ser as doçuras da vida privada
(...)”.149
Além disso – e eis um ponto não enfatizado por Claudine e Haroche – o
sistema político da corte era fundamentado em cabalas que disputavam influência em
torno de figuras ligadas proximamente ao rei, como propõe em suas análises
Emmanuel Le Roy Ladurie. 150 Nesse cenário complexo de ligações por amizade,
144
SAINT-SIMON, Louis. A côrte de Luiz XIV – Memórias de um cortesão. Tradução de
Miroel Silveira e Isa Silveira Leal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. No original, “Il aima
la gloire, il voulut l’ordre et la règle”.
145
Sonhos de proximidade ao poder real e honra, conforme proposto e analisado por
CONSTANT, Jean-Marie. La folle liberté des baroques (1600–1661). Paris: Perrin, 2007.
146
COURTINE, J-J; HAROCHE, C. Op. cit., p. 198. “Silencioso, o Rei deve apresentar a
todo instante uma máscara impenetrável. A fixação, a opacidade, a vigilância do rosto real
são a incessante recordação de seu poder. A impassibilidade, seu rosto silencioso, traço
essencial da arte de comandar, responde às exigências de um modelo político”. (Tradução
livre).
147
ELIAS, N. Op. cit. (2001), p. 132.
148
Idem Ibidem.
149
LA BRUYÈRE, Jean de. Les Caractères. In. LAFOND, Jean (Dir.). Les moralistes du
XVII siècle – de Pibrac à Dufresny, p. 832, axioma 15. “Il ne manque rien à un roi que les
douceurs d’une vie privée (...)”. (Tradução livre)
150
Eixo central de toda a análise contida em LADURIE; E. Op. cit., (2004).
71 sangue, prestígio militar e moral, as exigências de confidencialidade, de segredo e
contenção dos impulsos eram primordiais. Os cortesãos deviam não somente buscar a
perfeição diante dos olhos do rei, maestro da corte, espectador e protagonista
principal, mas deviam se manter seguros e o mais intactos o possível aos olhos e
ouvidos de seus ministros, de seus pares.
Por mais correta que pareça e seja a perspectiva dos dois historiadores acerca
do desenvolvimento, no âmbito do Estado monárquico, dos rituais políticos decorosos
norteados pelo silêncio como um processo decorrente da difusão das mesmas normas
no interior da sociedade civil, é inegável a afirmação, em contrapartida, de que não
houve uma tensão constante entre as duas esferas. É comum encontramos em textos
moralistas a crítica à Corte e aos cortesãos, muitas vezes em um segmento à parte,
extenso e inteiramente dedicado a esse propósito. Dentre os críticos encontramos
muitos frequentadores da Corte; mesmo assim, vários deles se inquietavam com a
corrupção, a falsidade e o teatro de aparências montado em torno do rei.
De semelhante maneira, dentre estes mesmos críticos encontramos dezenas
que se identificavam com as belas conversações e convívio mundano, entendido em
contraponto à vivência palaciana. Quando essa identificação ocorria, ou seja, quando
a crítica de costumes em sociedade ressaltava as virtudes da civilidade, marcando
certa cisão com o modelo da Corte, o que observamos é a redefinição e reinvindicação
dos ideias morais em vigência, com a ressalva de alguns deslocamentos. É o caso dos
decoros, para citarmos um exemplo. Se depois de Richelieu a Corte passou a utilizarse sistematicamente dos rituais e reverências como reguladores da interação entre
súditos e o monarca (ditando, por exemplo, como deviam funcionar as reuniões do
Conselho ou com ministros); ou se para Mazarino a habilidade e o autocontrole eram
instrumentos de manipulação e acesso à intenções alheias; a cultura mundana,
derivada do preciosismo, deu outro sentido às mesmas normas. Se os políticos usaram
as normas de civilidade como meio de sujeitar, nos salões do período estas regras
foram entendidas de forma um pouco inversa, como uma forma de liberar os
indivíduos para a intimidade compartilhada. Em seu entrecruzamento com a crítica
moralista, a literatura de salão colocou em jogo um fator usado apenas
instrumentalmente na Corte: a amizade.
A análise de fontes que apresentamos a seguir distingue quatro usos e
discursos sobre o silêncio no quadro dos ideais e decoros que pautavam a civilidade
mundana, cada uma correspondendo a um capítulo: a) o silêncio como gesto de
72 decoro e reafirmação da estima nas civilidades epistolares, b) o aquietamento de si e o
deslocamento do apanágio de fala ao outro como postura honesta na conversação, c)
os ideais de confiança e confidencialidade honestas, ou seja, o papel do segredo, d) o
ideal de transparência social e o problema da adequada apresentação de si. Os textos
documentos escolhidos são de diferentes naturezas. Eles abrangem as cartas, máximas
e reflexões escritas pela marquesa de Sablé, La Rochefoucauld e Jacques Esprit. Se a
hipótese central de nossa pesquisa considera que houve no século XVII uma grande
normatização dos comportamentos silenciosos como parte de um processo mais
amplo entendido como civilizador ou normatizador, de forma mais geral, partimos
igualmente do juízo de que a crítica moralista responsável por debater e colocar essas
ideias em circulação se desenvolveu, em grande medida, em meio caminho – para não
dizer “disputa” – entre uma corte instrumentalizadora e os salões, bem mais
“idealistas”. Ou, para retomar os termos propostos por Fumaroli, entre o Olimpo e o
Parnasso.151
151
Sobre o embate entre Corte e salões durante o affaire Fouquet, consultar especialmente o
capítulo 1: “L’Olympe et le Parnasse” In. FUMAROLI, M. Le poète et le Roi – Jean de La
Fontaine et son siècle. Paris: Fallois, 1997, pp. 49–129.
73 VIII. CIVILIDADES EPISTOLARES: SILÊNCIO E GESTOS DE DECORO
A marquesa de Sablé, pelo lugar que ocupava na sociedade e o tipo de vida
que isso implicava, manteve intenso comércio epistolar. Estas cartas que chegaram a
nós somente de forma parcial são algumas das fontes mais ricas que temos acerca de
suas relações. Elas nos atestam sua participação em polêmicas políticas e religiosas,
sua autoridade em assuntos como o bom uso do francês ou moral e dão uma dimensão
da natureza e amplitude de seu círculo de amizades. A maior parte das cartas que
chegaram até nós compõem um conjunto de documentos mantidos na Biblioteca
Nacional da França denominado portefeuilles Vallant. Muitas outras estão nos
manuscritos de Conrart, primeiro secretário da Academia Francesa, fontes que se
encontram na Biblioteca do Arsenal. Estes são os dois principais conjuntos de fontes
epistolares da marquesa e o primeiro a consultá-los pacientemente foi Victor Cousin.
Conrart – “curioso universal”152 –compilou manuscritos os mais variados de
sua época, sem nunca prestar serviço à marquesa de Sablé. Se mantiveram relação de
amizade ou convívio, não sabemos. Já Vallant, docteur Vallant, tinha a privança da
marquesa. Quando se mudara para junto de Port-Royal, em meados da década de
1650, a famosa hipocondríaca levou consigo seu médico particular que, além disso,
também lhe servia de intendente e secretário. Segundo Cousin, Sablé queimou muitos
de seus papeis quando se mudou para Port-Royal, mas, para nossa sorte, confiou a seu
doutor-serviçal a função de administrar suas missivas, que seriam arquivadas. Após a
morte da marquesa, Vallant organizou os papeis e os entregou à abadia de SaintGermain-des-Prés, via pela qual puderam chegar à Biblioteca Nacional.153
Ao médico devia caber a exaustiva função de copiar, redigir e responder cartas
que se endereçavam a pessoas como os irmãos Blaise e Jacqueline Pascal, La
Rochefoucauld, Maure, La Fayette entre outros. São pessoas de diferentes condições,
em contato por motivos diferentes. São freiras e polemistas jansenistas com os quais
discutiu os problemas de Port-Royal e de sua alma; senhoras nobres com as quais se
inteirava dos assuntos referentes à corte ou banalidades do monde; escritores com os
quais discutia moral e livros. Dentre estes Esprit. E La Rochefoucauld, que além de
dividir máximas exigia em suas cartas receitas, iguarias e até medicamentos.
152
153
COUSIN, V. Op. Cit., p. 2
Idem, p. 3.
74 O teor das cartas remete à heterogeneidade de assuntos e interlocutores que
frequentavam os salões. E como os salões, a arte da correspondência amical e familiar
– ampliação escrita, ou continuidade distanciada da conversação – era também uma
arte feminina. Não que fossem as únicas referências e praticantes. Retomando a
explicação de Marc Fumaroli, havia um embate entre “dois sentimentos de língua”
metaforizados por Animus e Anima.154 Um sentimento associado ao masculino e outro
ao feminino: um inspirado no latim, “paternal e vigoroso” e o outro na “’maternidade’
do francês, língua que Montaigne acusava de ser privada do antigo vigor, e que o
próprio Malherbe estabeleceu em melodiosa ‘doçura’”.155 Divisão que correspondia a
espaços diferentes que, por sua vez, dividiam os gêneros segundo suas funções
atribuídas: o latim, magistrado, clerical e acadêmico, la langue de l’Histoire, la
langue de l’Église, segundo o clichê; e o francês dos salões, do lar, da galanteria, e
gradativamente, da poesia e das obras de espírito.
Na contramão dessa explicação, poderíamos evocar a famosa frase atribuída a
Carlos V: “Eu falo francês com os homens, italiano com as mulheres, espanhol com
Deus e alemão com meu cavalo”. Os documentos da época testemunham, entretanto,
que no que dizia respeito ao uso da língua vulgar e antes de terem sido ridicularizadas
em suas versões burguesas, as preciosas mundanas eram consultadas antes de muitos
doutos: o francês era a língua para se falar com e como as mulheres. Bom uso oral e
bom uso escrito. Pois como nos salões – o locus por excelência dessa paideia francesa
e cristã 156 – todos os aspirantes ao reconhecimento por excepcionalidade moral
buscavam se colocar sob os olhos e julgamento das mulheres, capazes de medir suas
virtudes (no escrever, no portar-se, no pensar), e corrigir seus excessos pela bússola
de sua idealizada sensibilidade.157 Além disso, não é pouco lembrar que Carlos V teria
dito a famosa frase no século XVI, e não no XVII, momento em que ecoava, de certo
modo, a visão cara a Castiglione – de quem gostava Carlos V – de que os franceses
154
FUMAROLI, M. Op. Cit. (1994), p. 151.
Idem, Ibidem.
156
Entendemos, com Marc Fumaroli, que a mundanidade em sua face francesa derivou da
urbanità italiana, mas também em grande parte da civilidade cristã de Francisco de Sales.
FUMAROLI, M. Op. Cit. (2001), passim.
157
FUMAROLI, M. Op. Cit. (1994), p. 150. “Ce sont avant tout des femmes qui ont asservi
leurs hommes à la carte de Tendre, et leur parole aux dentelles du sentiment”.
155
75 eram um povo viril, bem-sucedido nas armas, enquanto os italianos eram um povo de
poetas, que não cessava de fracassar nas guerras.158
Ora, a marquesa de Sablé era uma destas autoridades. Como vimos em sua
trajetória de vida, fora formada no preciosismo do hôtel de Rambouillet e outros
salões que nasceram deste. Vários de seus amigos reconheciam e rogavam por sua
habilidade com as palavras. Arnauld d’Andilly consultou a marquesa e pediu que ela
repassasse anonimamente seus textos a seus amigos da Academia, 159 como La
Rochefoucauld lhe pedia correções em suas máximas. Gaspard, conde de Tende,
tendo escrito seu tratado De la traduction (1660) sob o pseudônimo de sieur de
L’Estang, dedicou-o à marquesa de Sablé (cujas próprias máximas eram, muitas
vezes, traduções de Gracián) alegando que
(…) sei que os mestres de nossa língua vos consultam em suas dúvidas,
fazem-vos árbitra de suas divergências e se submetem a vossas decisões.
Com efeito, sois a pessoa do mundo que melhor sabe todas as leis e todas
as regras do discurso, que melhor sabe exprimir com graça e clareza
vossos sentimentos e pensamentos, que melhor sabe empregar aquelas
formas belas de falar tão engenhosas, tão encantadoras e tão naturalmente
francesas, e enfim, que melhor sabe todas aquelas delicadezas e todos
aqueles mistérios de estilo dos quais fala o Sr. de Vaugelas.160
Elogio reforçado e ampliado pelo abade d’Ailly que, tendo organizado e publicado
postumamente as máximas da marquesa, teceu-lhe uma emocionada loa enaltecendo,
entre outras coisas, a “perfeita união entre todas as virtudes da sociedade civil com as
virtudes cristãs” e sua “eloquência natural e inimitável”.161
Em sua escrita o mesmo. Na Rélation de l’Isle Immaginaire (1659), romance
precioso escrito pela grande Mademoiselle (1627 – 1693), neta de Henrique IV, a
marquesa de Sablé foi representada em conjunto com sua amiga a condessa de Maure.
158
Essa noção percorre os diálogos de Castiglione, especialmente no primeiro e segundo
livros.
159
Carta de 29 de novembro de 1659. COUSIN, V. Op. Cit., pp. 374–375.
160
Gaspard de Tende, aliás L’Estang. Carta dedicatória in. De la traduction, ou règles pour
apprendre à traduire la langue latine en la langue française. Apud COUSIN. Idem, pp. 365–
366. “(...) je sais que les maîtres de notre langue vous consultent dans leurs doutes, vous font
arbitre de leurs différends et se soumettent à vos décisions. En effet, vous êtes la personne du
monde qui savez le mieux toutes les lois et toutes les règles du discours, qui savez le mieux
exprimer avec grâce et netteté vos sentiments et vos pensées, qui savez le mieux employer ces
belles formes de parler si ingénieuses, si charmantes et si naturellement françoises, et enfin
qui savez le mieux toutes ces délicatesses et tous ces mystères de style dont parle M. de
Vaugelas” (Tradução livre, grifo nosso)
161
D’AILLY apud COUSIN. Idem, p. 368. (Grifo nosso)
76 O texto é revelador da consciência de gênero e de quão transgressoras eram suas
intimidades e práticas. Em seus escritos, explica-nos a grande mademoiselle,
aprendia-se toda a polidez de estilo e a mais delicada maneira de falar
sobre todas as coisas. Não há nada do que elas não tenham conhecimento:
(...) É de seu tempo que a escritura foi posta em uso: antes só se escreviam
contratos de casamento, e de cartas, não se ouvia falar; portanto, devemos
agradecer-lhes por algo tão cômodo ao comércio.162
É duvidoso que Maure e Sablé tenham de fato inventado o costume feminino de
escrever cartas. Mais crível, porém, é a atribuição às duas amigas do hábito de
escrever bilhetes, diferentes das cartas na medida em que são mais abandonados,
menos formais, com ar menos oficial e mais amical.163
O que devemos ter em mente é que ao lermos as cartas da marquesa de Sablé
estamos acessando documentos de uma pessoa que não somente tinha perfeito
conhecimento e domínio das normas de polidez e decoro, como também era uma
referência e exemplo. Este é um primeiro ponto a ser abordado. O segundo, que
articulado ao primeiro nos ajudará a compreender melhor os usos do silêncio nas
cartas consultadas, é referente ao papel da amizade no século XVII. A questão pode
ser vista por diferentes ângulos. Arlette Jouanna, no verbete amitié que consta no
Dictionnaire de l’Ancien Régime organizado por Lucien Bély distingue entre amizade
social – de cunho utilitário, ou solidário – e a amizade privada – de cunho
desinteressado. A primeira é sintetizada conceitualmente como rede de amizade
(réseau d’amitié), dentre as quais se enquadram, por exemplo, as clientelas, a
parentela e a vizinhança. Já a amizade privada é tocada como um vínculo em estado
de progressivo desenvolvimento na época moderna, cuja importância é crescente, mas
ainda em gestação. Um exemplo emblemático é o laço que unia Montaigne e La
Boétie, o ami parfait.164
Na História da vida privada, Maurice Aymard propõe uma abordagem que
enfoca os laços criados em paralelo ou em complementação ao suporte familiar.
Estabelecendo uma crítica à superestimação do papel da família, Aymard argumenta
162
MONTPENSIER apud COUSIN, V. Idem, p. 86. “(...) on apprendroit toute la politesse du
style et la plus délicate manière de parler sur toutes choses. Il n’y a rien dont elles n’aient eu
connaissance : (…) C’est de leur temps que l’écriture a été mise en usage : auparavant on
n’écrivoit que des contrats de mariage, et des lettres il ne s’en entendoit pas parler ; ainsi nous
leur avons l’obligation d’une chose si commode pour le commerce”. (Tradução livre)
163
Idem, pp. 376–377.
164
JOUANNA, Arlette. Entrada “Amitié” de BÉLY; Lucien (org). In. Dictionnaire de
l’Ancien Régime. Paris: Presses Universitaire de France/Quadrige, 2002, pp. 56–57.
77 que “para o indivíduo fora da família ou contra ela, nunca faltaram mediações,
intermediários e recursos”.165 Para além da família, as amizades do colégio – escolas
militares ou não –, os clubes, os salões, a amizade com servidores – preceptores, por
exemplo –, a franco-maçonaria e outras sociedades brotam ao longo de toda a
modernidade, apenas ampliando o leque de possibilidades de vínculos espirituais e de
suporte mútuo.
Já Benedetta Craveri insistiu sobre o sentido dos vínculos de amizade entre
mulheres em uma sociedade como a parisiense de meados do século XVII. A amizade
das preciosas, sinalizada constantemente pelo uso de hipérboles e sinais públicos de
amor mútuo, pode ser compreendida como resposta ou compensação a uma lógica
matrimonial que excluía os sentimentos e até mesmo lapsos de afeto maternal. Essa
sublimação da amizade entre mulheres, que caracterizava a “ideologia preciosa” em
si, constituiria – sempre segundo Craveri – uma ameaça ao equilíbrio mundano, pois
chegavam mesmo a concorrer com a galanteria. A amizade em hipérbole como um
amor contre la nature.166 Não nos esqueçamos que a marquesa de Sablé, após a morte
de seu marido, viveu com uma de suas amigas, Anne d’Attichy, a condessa de Maure.
Essas três interpretações subsidiam a compreensão do epistolário da marquesa
de Sablé. É muito difícil definir certeiramente os limites e motivações de seus
vínculos. Pois mesmo relações exaltadas pela afinidade espiritual – o que não deve
surpreender se tratando de uma preciosa – podiam ser norteadas pelo interesse, uma
vez que a marquesa foi mediadora de conflitos e um elo entre sujeitos. Exemplo disso
foi sua posição de intermediária entre Port-Royal (Angélique, Arnauld, Jacqueline
Pascal) e Roma (Rospigliosi, sobrinho do Papa) ou sua troca de favores com Des
Maisons, que a hospedou na Fronda, mas se favoreceu da benevolência de Mazarino
para com a marquesa. Um caso ainda mais familiar a nós foi sua amizade com La
Rochefoucauld, troca de grande proximidade, fundamentada no compartilhamento
(para fruição) de receitas e máximas, mas que encontrou seu clímax, por assim dizer,
na preparação do terreno para a publicação das Maximes (pesquisa de opinião,
correções etc). Esta amizade exemplifica bem a transição rápida do “desinteresse” (o
165
AYMARD, Maurice. “Amizade e convivialidade” In. CHARTIER, Roger (org.). História
da vida privada (volume 3) – Da Renascença às Luzes. São Paulo: Companhia das letras,
2009, pp. 439–440.
166
CRAVERI, B. Op. Cit., pp. 169–180.
78 jogo mundano de composição das máximas) para a solidariedade (defender a
reputação de La Rochefoucauld).
A comunicação epistolar tinha um tom formal e era guiado pelos decoros
sociais. A estrutura das cartas, mesmo entre amigos, seguia rigores de tratamento e
hierarquia que, mais do que banalidades, serviam para reforçar os vínculos existentes
e fiar novas possibilidades de ligação. O que constatamos da leitura das cartas da
marquesa de Sablé é que dentro de suas estruturas discursivas, reproduzidas segundo
os interlocutores, quase sempre há um momento dedicado à justificação das distâncias
e ao lapso de comunicação.
Uma relação de amizade que depende da proximidade – seja ela virtual, por
carta, ou não, pela frequentação – é colocada em risco assim que os interessados
cessassem de se ver ou falar. Para que essa distância pudesse ser compreendida, era
preciso que um motivo legítimo fosse alegado. Este decoro visava aceirar um laço que
uma das partes pode ter acreditado fragilizado. É o caso da carta não datada que a
marquesa de Sablé endereçou à senhora de La Trémouille. No primeiro período da
carta, Sablé afirma acreditar não haver outra pessoa que honrasse mais. No segundo,
em contrapartida, inicia uma longa justificativa sobre não ter escrito antes:
Bastaria para vos persuadir de que sou indigna de vossas boas graças e de
vossa lembrança, apenas ter ficado tanto tempo sem vos escrever (...).167
O argumento se desdobra ainda em uma alegação de 1) inocência (“je me sens si
innocente dans mon âme”); 2) afeto (“j’ai tant d’estime, de respect et d’affection pour
vous qu’il me semble que vous devez le connoître à cent lieus d’ici, encore que je ne
vous en dise pas un mot”); 3) de doença (“j’ai commencé de faillir par force, ayant eu
beaucoup de maux”) e 4) de segurança no perdão de sua amiga, ao que segue o envoi.
Em síntese: a matéria inteira da carta é a justificativa de não tê-la escrito antes.
Nem todas as cartas são inteiramente justificativas; muitas delas têm outro
assunto. Era comum, porém, que muitas se iniciassem com a justificativa sobre o
silêncio. É o caso da carta da madre Angélique à marquesa de Sablé (“si vous jugez
que je vous oublie, ma très chère sœur, parce que je ne me donne point l’honneur de
vous écrire, vous feriez un jugement téméraire”);168 do senhor d’Avaux a Sablé169 ou
167
SABLE apud COUSIN, V. Op. Cit., p. 75. “Ce n’étoit pas assez pour vous persuader que
je suis indigne de vos bonnes grâces et de votre souvenir, que d’avoir manqué fort longtemps
à vous écrire (…)”. (Tradução livre)
168
ANGELIQUE apud COUSIN, V. Idem, p. 200, carta de 4 de junho de 1660.
79 de Sablé a d’Andilly. Estas duas últimas exemplificam bem um tema utilizado como
justificativa (a morte) e os dois sentidos pelos quais era abordada: a morte como
motivo para se romper o silêncio e a morte como motivo para ter se mantido em
silêncio. Quando da morte de Guy de Laval, filho da marquesa, no cerco a
Dunquerque (1646), Claude de Mesmes, o conde d’Avaux, escreveu a Sablé
endereçando-a seus sentimentos. Antes de mais nada, era preciso se desculpar,
dizendo-se duplamente infeliz: pela morte de seu filho e por ter de “rompre le silence
par un si fâcheux entretien”.170 A resposta aflita da marquesa surpreende, pois a morte
de seu próprio filho não a eximiu de ter que se desculpar por tardar a resposta:
Compreendestes tão bem a aflição que sinto pela perda que tive, que não
duvido que também compreendereis bem a dificuldade que tenho em
escrever sobre o assunto e, assim, creio que concedereis a mim facilmente
a graça de me perdoar se tardei até esta hora em responder à carta que
fizestes a honra de me escrever.171
A morte reaparece como pretexto à demora em uma carta da marquesa de
Sablé a Robert Arnauld d’Andilly. O irmão do grand Arnauld foi autor e um dos mais
importantes tradutores de obras religiosas de sua geração. Ele se submetia, como
tantos, ao julgamento da marquesa de Sablé, para que esta opinasse sobre a qualidade
de seu trabalho. Àquela época, 1670, já havia publicado poemas religiosos, traduções
de discursos de Jansenius (1642), sua tradução às confissões de santo Agostinho
1649), além de mais uma dúzia de obras, todas religiosas. Prestes a imprimir sua
tradução ao Caminho da perfeição, de santa Teresa de Ávila, d’Andilly enviou uma
cópia do texto à marquesa de Sablé que demorou muito para responder. Sua réplica
atrasada tem movimentos muito claros. Inicialmente, o reconhecimento da falta e as
desculpas:
Que pensastes de meu silêncio? Parece-me a maior ingratidão do mundo
calar-se por tanto tempo sobre um assunto tão belo.172
Em seguida, a justificativa – uma morte importante;
169
Idem, pp. 50–52.
D’AVAUX apud COUSIN, V. Idem, p. 50
171
SABLÉ apud COUSIN, V. Idem, pp. 51–52. “Vous avez si bien compris l’affliction que je
sens de la perte que j’ai faite, que je ne doute pas que vous ne compreniez bien aussi la
difficulté que j’ai d’écrire sur ce sujet-là, et ainsi je crois que vous me ferez aisément la grâce
de me pardonner si j’ai tardé jusqu’à cette heure à répondre à la lettre que vous m’avez fait
l’honneur de m’écrire.” (Tradução livre)
172
Idem, p. 390. “Qu’avez-vous pensé de mon silence ? Il me semble que c’est la plus grande
ingratitude du monde que de se taire si longtemps pour un si beau sujet”. (Tradução livre)
170
80 Mas eu estava tão aflita com a morte de Madame [Henriqueta de
Inglaterra], que fiquei como que estupefata, e tão acometida de calor que
não podia eu mesma ler nem escrever.173
e votos de estima:
Posso, todavia, assegurar-vos que estáveis sempre presente em meu
espírito, que admirava o vosso (...)174
Somente após o cumprimento destes deveres de civilidade a marquesa opinou sobre o
tema da tradução em si.
Em sentido um pouco inverso, um amigo podia constranger o outro à fala. Isso
podia se dar em duas ocasiões diferentes:
1) quando se constatasse certa distância. Vemos em várias cartas uma lógica
de dever na amizade, que autorizava a cobrança de comprometimento por uma das
partes. É evidente que esta cobrança só era possível entre interlocutores cujo vínculo
era horizontal ou que possuíam intimidade. Era o caso, por exemplo, do laço que unia
a madre Angélique e a marquesa de Sablé. Após longo silêncio, a religiosa de PortRoyal pôde escrever de forma mais enfática que
É verdade que vosso silêncio me surpreendeu, mas eu pensava que vossos
males frequentes [marquesa de Sablé e suas doenças imaginárias...] eram
a causa, ou que estáveis na espera das coisas que a acontecer, o que
produzia em vós, como ela fez comigo, o silêncio com as criaturas. De
resto, quando há um ano não me dizíeis algo, eu nunca acreditei que fosse
por frieza.175
Mesmo que tivesse se retirado a uma porta de distância de Port-Royal, a
frequentação da marquesa de Sablé ficou extremamente restrita nos últimos anos de
sua vida. Um afastamento tão radical em relação ao mundo – especialmente na
velhice – era um ideal posto amplamente em prática no Antigo Regime. A calma da
solidão era vista como uma promessa de salvação entendida como diametralmente
173
Idem, Ibidem. “Mais j’ai été si affligée de la mort de Madame [Henriette d’Angleterre],
qu’elle m’a rendue comme stupide, et tellement incommodée de la chaleur que je ne pouvois
lire moi-même ni écrire (…)”. (Tradução livre)
174
Idem, Ibidem. “Je puis pourtant vous assurer que vous avez été toujours présent à mon
esprit, en admirant le vôtre (…)”. (Tradução livre)
175
ANGELIQUE apud COUSIN, V. Idem, p. 197. “Il est vrai que votre silence m’a étonnée,
mais je pensois que vos maux ordinaires en étoient la cause, ou que vous étiez dans l’attente
des choses à venir, qui produisoit en vous, comme elle fait en moi, le silence avec les
créatures. Au reste, quand vous ne me diriez mot d’un an, je ne croirois jamais que ce fût par
froideur”. (Tradução livre)
81 oposta à vivência corrupta da corte. Entretanto, o júbilo espiritual que poderia fruir
uma pessoa afastada da vida agitada era experienciado, em muitos casos, como uma
tristeza pelos amigos dela, especialmente por aqueles que dela precisassem. Diversas
cartas de La Rochefoucauld testemunham esse desespero frente à inacessibilidade da
marquesa e também alguns bilhetes da senhora de Lafayette, que cobrava
veementemente ser autorizada para uma visita.176
2) Um amigo podia constranger o outro à fala quando se exigia que tratasse de
algum assunto, fosse ele polêmico ou não. Eis dois exemplos. A abadessa de
Fontevrault, Marie-Madeleine de Rochechouart (1645–1704) havia tido um conflito
com sua irmã, Gabrielle de Rochechouart, senhora de Thianges (1631–1693): ao que
parece, questionava a devoção de Gabrielle que, todavia, era envolvida com intrigas
na corte. Como a marquesa de Sablé era amiga das duas e desejava dissipar as
tensões, enviou uma carta a Fontevrault, pedindo que a abadessa falasse sobre o
assunto. Assumindo um tom de facilidade, mas constrangida a falar de um assunto
polêmico, a abadessa iniciou sua carta dizendo que
Alegra-me, Senhora, que percebestes meu silêncio e ordenais que eu vos
dê a razão. É muito fácil que eu o faça (...).177
E termina sua longa missiva justificando que
Se me prolonguei um pouco, recordareis, por favor, que havíeis ordenado
que eu vos dissesse todas as minhas opiniões sobre o caso...178
176
“Je suis résolue à avoir l’honneur de vous voir, quand vous seriez ensevelie dans le plus
noire de vos chagrins. Je vous donne le choix de lundi ou de mardi, et de ces deux jours-là je
vous laisse à choisir l’heure, depuis huit du matin jusques à sept du soir. Si vous me refusez
après toutes ces offres-là, vous vous souviendrez au moins que ce sera par une volonté trèsdéterminée que vous n’aurez pas voulu me voir, et que ce ne sera pas ma faute” e “Ce mardi
au soir. De peur qu’il n’arrive quelque changement à la bonne humeur où vous êtes, j’envoie
vitement sçavoir si vous voulez me voir demain. J’irais chez vous incontinent après diné, car
je vous cherche seule ; et si vous envisagez des visites, remettez-moi à un autre jour. Il est
vrai qu’il faut que vous ayez de grands charmes, ou que je ne me sois guère sujette à
m’offenser, puisque je vous cherche après tout ce que vous m’avez fait”. LA FAYETTE
apud COUSIN, V. Idem, p. 103.
177
FONTEVRAULT apud COUSIN, p. 267. “Je suis trop heureuse, Madame, que vous vous
soyez aperçue de mon silence et que vous m’ordonniez de vous en rendre raison. Il m’est très
aisé de le faire (…)” . (Tradução livre, grifo nosso)
178
Idem, p. 269. “Si je m’y suis un peu étendue, vous vous souviendrez, s’il vous plaît, que
vous m’avez mandé de vous dire toutes mes pensées sur cette affaire…”. (Tradução livre,
grifo nosso)
82 Mesmo a intromissão em assuntos familiares – que devia ser mediada ainda mais
cuidadosamente por decoros – era uma forma de demonstrar amizade e zelo.
O segundo exemplo de constrangimento à fala por amizade é de uma carta
escrita durante a pesquisa de opinião que a marquesa de Sablé realizou antes da
publicação das Máximas de La Rochefoucauld. Como sabemos, a amiga íntima do
duque moralista enviou vários de seus axiomas a amigos de diferentes ocupações,
sexos e posições, esperando deles uma contrapartida. A contrapartida era uma
opinião. Segundo as normas de decoro que temos constatado a partir das fontes, uma
opinião ou explanação só deveria ser dada ou feita quando houvesse autorização do
condutor do diálogo, mesmo quando escrito. No caso a marquesa. Dirigindo-se a uma
mulher reconhecida por sua fala e pensamento, um anônimo tomou todas as
precauções de civilidade. Antes de mais nada, mostrar lisonja:
Agradeço-vos imensamente por ter feito um juízo tão vantajoso de mim,
acreditando que eu era capaz de dizer meu sentimento sobre o escrito que
mandastes.179
Depois, afetação de humilhação e modéstia – ironizando o autor desconhecido – :
Protesto, Senhora, com toda a sinceridade do meu coração, ainda que o
autor do escrito não acredite verossímil [que haja sinceridade de coração],
que dela sou capaz, e que nada entendo de coisas tão sutis e delicadas
(...).180
Mas o rompimento do silêncio tem uma justificativa –
já que comandais, devo obedecer. Dir-vos-ei, pois (...).181
Inicia, então a exposição de sua opinião, aliás pouco favorável, temerosa de que as
máximas confirmassem as opiniões de libertinos.
Esse caso de chamado à fala nos remete a outro, presente nos diálogos do livro
d’O Cortesão, de Baldassare Castiglione, que ilustra muito bem como a responsável
pela condução da conversação podia estimular o discurso – cedendo a palavra e
comandando as participações – ou gerar silêncio – censurando excessos e
179
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 715. “Je vous ai beaucoup d’obligation d’avoir fait un
jugement de moi si avantageux que de croire que j’étais capable de dire mon sentiment de
l’écrit que vous m’avez envoyé.” (Tradução livre)
180
Idem, Ibidem. “Je vous proteste, Madame, avec toute la sincérité de mon cœur, quoique
l’auteur de l’écrit n’en croie point véritable, que j’en suis incapable, et que je n’entends rien
en ces choses si subtiles et si délicates (…)”. (Tradução livre)
181
Idem, Ibidem. “(...) puisque vous commandez, il faut obéir. Je vous dirai donc (…).”
(Tradução livre, grifo nosso)
83 intromissões. Escrito em outro lugar e em outra época, o texto italiano pode em muito
nos ajudar a compreender questões referentes à cultura mundana francesa, por ser um
dos livros mais influentes no reino da França do início do século XVII, sendo
considerado até um dos fundadores da moderna civilidade polida. O Cortesão traz os
diálogos ocorridos na corte de Urbino sob os olhares de Elisabetta Gonzaga (1471 –
1526), mulher do duque Guid’Ubaldo da Montefeltro (1472 – 1506), que enquadrava
a discussão nos limites de preceitos morais que julgava adequados, de forma a
interromper os inoportunos, combater desvios de assunto que poderiam entediar ou
desvirtuar o jogo e estabelecer os parâmetros pelos quais deveriam se nortear os
interlocutores.
Um fragmento do texto mostra bem esta função em exercício. Castiglione
descreve assim o momento em que escolhiam um jogo.
mas a senhora duquesa de súbito disse – Uma vez que dona Emília não
quis se dar ao trabalho de buscar algum jogo, seria o caso de que outras
mulheres desfrutassem a mesma comodidade e fossem também isentas de
tal fadiga esta noite, estando presentes tantos homens que não há perigo
de que venham a faltar jogos. – Assim faremos – respondeu a senhora
Emília; e, impondo silêncio a dona Constanza, dirigiu-se a dom Cesare
Gonzaga, que estava sentado a seu lado e lhe ordenou que falasse.182
Neste momento dos diálogos, algumas propostas surgiram, mas a dama palaciana
Emília se recusou em dar uma sugestão. Dessa forma, Elizabetta sinalizou para dona
Constanza, outra dama palaciana, que esta tampouco deveria propor uma diversão,
deixando passar sua palavra, concedida a Cesare Gonzaga. Não se trata de uma
desfeita. Da mesma forma que o jogo surgia ao acaso, suas regras eram geradas
contingencialmente. Nesse sentido, o ato da duquesa não representou tanto uma
imposição negativa, mas uma forma de indicar qual seria o papel dos homens e aquele
das mulheres na brincadeira. As figuras femininas, e não somente a duquesa,
desempenharam a função de gerentes da conversa sendo que os homens foram
encarregados de discursar. Discurso literalmente ordenado e coordenado pelas
mulheres, que cumpriam essa prerrogativa. Na hierarquia do salão, cujas regras eram
definidas pela chefe do grupo, os homens tendiam a ser dirigidos e corrigidos pelas
mulheres. O mesmo, como vemos, se dava na correspondência escrita, uma vez que
era possível exigir de alguém que se manifestasse sobre um assunto.
182
CASTIGLIONE, B. Op. Cit., p. 20. (Grifo nosso)
84 A título de contraexemplo, como se daria a troca de opiniões entre duas
pessoas com bastante intimidade, cuja relação fosse muito mais próxima? Nenhuma
ligação da marquesa de Sablé deve ter sido tão forte quanto com a condessa de
Maure. Quando lançou em 1659 a Rélation de l’isle imaginaire, a Grande
Mademoiselle, Anne–Marie–Louise d’Orléans (1627–1693), buscou sufrágio de uma
série de pessoas da alta sociedade e, segundo Cousin, foi a condessa de Maure quem
se apressou em pedir a opinião da marquesa de Sablé. Era uma forma das duas nobres
fazerem a corte à Primeira Princesa de Sangue e Neta de França, a grande
Mademoiselle. Nesta época as duas já haviam vivido alguns anos juntas, o que
autorizava Sablé a escrever que “je mourois d’envie de vous dire mon avis sur la
Relation de l’Isle imaginaire”, mas que se sentia desencorajada, pois a senhorita de
Scudéry (que “pense bien mieux que je ne fais sur toutes choses, et qu’elle sait aussi
bien mieux exprimer ses pensées”) já havia se manifestado sobre o assunto. Assumiu
a inquietação que a levava romper o silêncio (“dans l’impossibilité de me taire”),
justificando o envio de trechos (grifados no impresso, ao que parece) de passagens
“qui m’ont donné le plus de plaisir et d’étonnement”. 183 Igualmente repleta de
civilidades, votos de estima e afetações de modéstia, há algo que diferencia essa carta
das demais consultadas: pelo grau de intimidade, nela Sablé pôde assumir que o que
motivara sua manifestação não era um estimulo exterior (a exigência de um
julgamento), mas uma força interior (seu desejo e incapacidade de calar). Diferença
sutil, ainda que saibamos que a carta não devesse ser de todo desinteressada.
Dizer que na França do século XVII as mulheres exerciam autoridade em
temas e espaços, que suas opiniões autorizavam e desautorizavam nos salões e nas
conversas, é muito diferente de dizer que as mulheres ocupavam lugares privilegiados
no interior desta mesma sociedade. Pois em toda parte se observa uma contradição
fundante da lógica ou mentalidade mundana tecida na cortesania cristã. Nos termos
desta tensão, a mulher era vista como promessa de sublimação, ou purificação pelo
amor e a beleza, na mesma medida em que era memento da queda e ameaça de
corrupção. Em que medida a relação entre esses tratamentos tão díspares seria
dialética? Seria o cavalheirismo uma resposta à brutalidade muitas vezes esmagadora
da exclusão dos círculos oficiais de decisão do Estado e da Igreja? Ou o
183
SABLE apud COUSIN, V. Op. Cit., p. 83. (Grifo nosso)
85 cavalheirismo funcionava como uma concessão complementar ao paternalismo
vigente, reforçando por negatividade, uma compreensão inferiorizante da mulher?
É difícil responder, mas tudo isso serve para dizer que os espaços reservados à
mulher permaneciam muito restritos (o que nem sempre se dava sem resistências184).
No limite e correndo muitos riscos, poderíamos pensar que quanto mais complexa se
tornava a organização do Estado, da Igreja e da sociedade civil como um todo, mais
definidas eram as distâncias, mais claras as fronteiras e restrições entre os sujeitos,
mais profundas as hierarquias de classe e gênero. Um caso exemplar de transgressão e
da severidade crescente com a qual o Estado lidava com esse tipo de conduta foi a
tensão entre as solitárias de Port-Royal e Luís XIV. Na virada do século XVII para o
XVIII, o problema do jansenismo parece cada vez menos ser um problema teológico
para se tornar um problema de Port-Royal, ou seja, um problema de insubmissão
feminina aos desígnios do Estado francês. Problema que foi resolvido com a própria
destruição do convento e a dispersão das freiras.
A marquesa de Sablé foi ativa na causa de Port-Royal, mas nunca abandonou
a tão comentada postura moderada quer tratasse de moral, religião, política ou intrigas
da corte.185 Sabia muito bem os limites que lhe eram impostos, bem como e quando
transgredi-los. Essa forma de contravenção podia se expressar pela ação direta –
lembremos da senhora de Longueville na Fronda – ou pela fala. No âmbito verbal,
consistia, é claro, em tratar de temas interditos, rompendo com o silêncio esperado.
Na correspondência da marquesa de Sablé encontramos um bom exemplo desse tipo
de liberdade autoconcedida.
Em 1667, Luís XIV já havia assumido seu reinado pessoal e fechara o cerco
contra Port-Royal. Isso era motivo de grande preocupação para as solitárias e também
para a marquesa de Sablé, que morava em um apartamento contíguo ao convento.
Inquieta de que a situação poderia piorar – e viria a piorar após sua morte –, Sablé fez
uma intervenção junto ao cardeal Rospigliosi, sobrinho do papa Clemente IX.
Segundo Cousin, o sobrinho tinha grande influência sobre as decisões do tio.186 Era a
forma mais segura de chegar ao papa, logrando a paz da Igreja, ainda mais porque, em
uma breve estadia em Paris, Rospigliosi parece ter ouvido e falado de Sablé, sem se
184
Cf. CRAVERI, B. Op. Cit. e KOSTROUN, D. Op. Cit.
O que John Conley chama de “jansenist code of moderation”. CONLEY, J. Op. Cit.,
Capítulo 1.
186
COUSIN, V. Op. Cit., p. 220.
185
86 encontrarem. 187 A marquesa iniciou dessa forma a sua carta, lamentando o
desencontro. Em seguida, exaltou as “belas e grandes” qualidades do cardeal para
delas se utilizar.
Mas, por estas mesmas qualidades que dão tantos motivos de tomar
confiança em Vossa Eminência, eu tomaria a liberdade, Monsenhor, de
falar-vos sobre um assunto do qual todo o mundo deve se interessar, quero
dizer, sobre a paz da Igreja; e, como não é possível de não esperá-la de
Sua Santidade, que tem a alma belíssima, grandíssima e afabilíssima, eu
tive ainda mais ímpeto de sobre ele vos escrever.188
Essa liberdade era temerosa, pois falamos de um assunto em que se
mesclavam política e teologia, o Estado francês e Roma – muitas vezes divergentes
entre si em tom e tolerância, disputando entre si, por vezes, poder – e um grupo de
religiosos e religiosas apoiados por membros da nobreza, da burguesia e do clero.
Pela natureza e seriedade da questão, a marquesa de Sablé não devia sequer tocá-la.
Confessou: “J’avois quelque honte, n’étant qu’une femme, d’oser vous parler sur ces
choses-là (…)”, tenho medo pois não passo de uma mulher.189 Mas explica que o que
a impulsionou à escrita não foi o gosto por quaisquer novidades religiosas, mas o
comprometimento com o convento:
como mandei construir uma casa em Port-Royal para de vez em quando
me retirar do mundo, e que se trata do lugar onde as contestações que há
na Igreja causaram e ainda causam muitas divisões, não achareis tão
estranho que eu tente vos dizer (...).190
Sua defesa sequer entra em matéria de religião. A marquesa de Sablé se ateve a fazer
precisamente o contrário, agindo conforme o argumento retomado por décadas e
décadas pelas freiras, de que não assinariam o formulário por não poderem fazê-lo de
consciência tranquila, uma vez que os livros de Jansenius foram escritos em latim,
187
“(…) la joie que je ressens de la grâce que vous m’avez faite de vous souvenir de moi en
partant de Paris est si grande, qu’elle a redoublé le déplaisir que j’ai d’avoir été privé de
l’honneur de vous voir”. SABLE apud COUSIN, V. Idem, Ibidem.
188
Idem, pp. 220–221. “Mais, par ces mêmes qualités qui donnent tant sujet de prendre toute
confiance en Votre Éminence, j’aurois pris la liberté, Monseigneur, de vous parler sur un
sujet où tout le monde doit prendre intérêt, je veux dire, sur la paix de l’Église ; et, comme il
n’est pas possible de ne la point espérer de Sa Sainteté, qui a l’âme si belle, si grande et si
douce, j’ai eu d’autant plus de passion de vous en entretenir”. (Tradução livre, grifo nosso)
189
Idem, Ibidem. (Grifo nosso)
190
Idem, p. 221. “comme j’ai fait bâti une maison dans le Port-Royal pour me retirer
quelquefois du monde, et que c’est le lieu où les contestations qui sont dans l’Église ont causé
et causent encore le plus de divisions, vous ne trouverez pas si étrange que j’entreprenne de
vous dire (…)”. (Tradução livre, grifo nosso)
87 língua que sequer compreendiam. 191 A carta termina com um novo pedido de
desculpas pela liberdade (“vous me pardonnerez cette liberté”) e votos de estima.
Os exemplos acima são de tipos bem diferentes. São escusas pelo silêncio,
escusas pela fala, exigências de satisfação e chamamentos à conversa. O elo que une
todos é o lugar que o silêncio ocupava dentro do reconhecimento mútuo dos laços que
uniam as pessoas. Tal observação dos sinais de estima correspondia a uma prática de
amizade recorrente entre as elites letradas, prática caracterizada pelo uso dos decoros
como forma de fortalecimento dos vínculos que consolidavam solidariedades mútuas
em uma sociedade em tudo clientelista. Se o convívio mundano era o ponto onde o
exercício da polidez e da intimidade se davam de forma mais intensa e emblemática, a
troca epistolar se mostra como uma continuação, a virtualização desse tipo de
convivialidade, seguindo normas e estruturas de condução muito semelhantes à
frequentação propriamente dita.
Disso inferimos que nossa hipótese de que na modernidade o silêncio era um
comportamento normatizado, teorizado e aplicado, permanece operante. Carecendo
ainda de maiores evidências, essa constatação pode ser melhor observada quando nos
voltamos a documentos de tom mais prescritivo, como por exemplo os textos
moralistas de La Rochefoucauld e Jacques Esprit. Neles, é possível que nos
debrucemos sobre as formas pelas quais os comportamentos taciturnos se
enquadravam dentro dos sistemas morais concebidos no período em questão. Em
poucas palavras, como o silêncio era entendido em relação ao ideal de honestidade?
191
Idem, Ibidem, p. 221. “(...) qu’il y avoit dans cette abbaye cent ou six-vingts religieuses,
toutes filles d’excellentes en esprit et en paix, qu’on en a ôté quatre-vingts, qui, par tendresse
de conscience, craignent de blesser la vérité en disant que ces propositions sont dans un livre
qu’elles ne sauroient entendre, parce qu’il est dans une autre langue que la leur”.
88 IX. HONESTIDADE NA CONVERSAÇÃO:
MANUTENÇÃO DAS DISTÂNCIAS
FAMILIARIDADE
E
A conversação mundana constituía uma das práticas mais difundidas e
emblemáticas da identidade das classes dominantes na França do século XVII. A
cultura mundana era centrada na ideia da polida e educada interação entre os sujeitos
que, no limite, define bem a concepção alargada de conversação da qual nos
utilizamos (convivência, viver junto, sem primazia ao verbal). Interpretativamente,
podemos dizer que a conversação era um momento-chave onde convergiam, em sua
totalidade, as práticas e discursos que melhor caracterizam o processo civilizador.
Dentre os ideais associados ao mais perfeito depuramento moral, segundo o
entendimento da época, estava a honnêteté, virtude primordial no sistema deduzido
dos escritos de La Rochefoucauld. Após definições e constatações preliminares sobre
a moral seiscentista, analisaremos os contornos assumidos pelas práticas de silêncio
na composição do ideal de honesto conversador, partindo sempre das máximas e
reflexões de La Rochefoucauld. Isto nos dará subsídios para o entendimento da
relevância da manutenção dos vínculos de amizade na sociedade francesa do século
XVII.
***
Associado prontamente ao arquétipo do moralista, o homem mundano e
posteriormente autor La Rochefoucauld escreveu em várias circunstâncias de sua vida
e os textos que produziu tiveram usos diferentes. Seus retratos faziam parte de um
jogo coletivo de sociedade. Suas Memórias visavam informar primeiro seus amigos e
familiares, posteriormente seu público de suas razões e envolvimento com os
conflitos da Fronda. Já suas máximas e reflexões devem ter constituído uma prática
de diversão intelectual realizada em grupo, nos salões que frequentava, ou
individualmente, pois o duque escreveu prolificamente enquanto se retirava em seus
domínios.192 Máximas, reflexões, memórias e retratos: todos os gêneros explorados se
aproximam em maior ou menor medida de inquietações de fundo moralista.193
192
MINOIS, G. Op. Cit., capítulo X: “Le temps des Maximes”.
A relação é evidente nos retratos, pois a estrutura do texto que parte da prosopografia, ou
descrição física, à etopeia, descrição moral, contempla o sublinhar dos vícios e virtudes de um
determinado sujeito. Leila de Aguiar Costa, tomando como referência o Figures du Discours,
193
89 Em sua totalidade, o pensamento de La Rochefoucauld é embasado por
algumas ideias-motor bem características. A principal delas, é certamente a de que
existe uma contradição ou, para usar o vocabulário de Jacques Esprit, uma falsidade
fundamental em quase todos os atos considerados como virtuosos, a saber: eles
apenas
mascaram
disposições
profundas
viciosas.
Bem-sucedido
em
sua
esquematização, Georges Minois caracterizou este sistema como um gráfico circular
semelhante à ilustração didática das camadas que compõem a Terra: o núcleo mais
interno é o amor-próprio, onde são gestados outros vícios (ciúmes, preguiça, orgulho,
vontade de dominação etc.) que compõem o segundo círculo. A primeira
circunferência é onde o homem interior se esconde. Nada de novo em uma cultura
fundamentada na crença da natureza hereditária e universalmente decaída. A novidade
de La Rochefoucauld consistiu em relacionar este manto interno, nuclear, a uma
crosta aparentemente virtuosa. As virtudes aparentes do homem social (fidelidade,
piedade, bondade, doçura, moderação etc) não apenas escondem da vista de todos os
vícios. O tour de force da moral rochefoucauldiana é concatenar a paternidade dessas
virtudes a vícios. As qualidades de alguém não somente nos impedem de ver seus
piores defeitos: elas foram geradas por eles.194
Na época, essa ideia se desdobrava em problemas difíceis de serem
concebidos e resolvidos, porque não bastava educar determinada pessoa para que
de Pierre Fontanier, explica que “(...) a etopeia ‘é uma descrição que tem por objetos os
costumes, o caráter, os vícios, as virtudes, os talentos, os defeitos, enfim, as boas ou más
qualidades morais de uma personagem real ou fictícia’; a prosopografia, por sua vez, e ainda
segundo Pierre Fontanier, ‘é uma descrição que tem por objeto o rosto, o corpo, os traços, as
qualidades físicas, ou simplesmente a aparência exterior, o porte, o movimento de um ser
animado, real ou fictício, isto é, de pura imaginação (...)”. COSTA, Leila de Aguiar. Antigos e
modernos – A cena literária na França do século XVII. São Paulo: Nanquin; Edusp, 2009, p.
180. O mesmo nas máximas e reflexões, com importantes diferenças. De modo esquemático,
as máximas e reflexões de La Rochefoucauld são gêneros diferentes que partem do uma
mesma operação: o isolamento e desvelar da natureza de um determinado objeto. A principal
distinção sendo – além da forma – a de que nos retratos o “objeto” isolado é um amigo,
inimigo ou si mesmo, enquanto que as máximas e reflexões tratam de qualidades, defeitos,
vícios, virtudes, tipos, sentimentos, práticas e caráteres generalizantes: a complacência, a
teimosia, o amor-próprio, a honestidade, os príncipes, o ódio, a conversação, os avarentos etc.
É pelo movimento de adentar as motivações, os feitos virtuosos e viciosos dos agentes
históricos que o gênero memorialístico pode ser cuidadosamente colocado frente ao pano de
fundo da escritura moralista, pois ao narrar na prática ações civis e bélicas o memorialista
colocava em circulação a caracterologia de tipos cuja exemplaridade não perdiam em nada
para textos declaradamente prescritivos.
194
MINOIS, G. Op. Cit., p. 503.
90 parasse de esconder seus vícios.195 Estava-se lidando com configurações muitos mais
internas, cuja maestria chega a parecer insolúvel em certos axiomas; é essa a
percepção que fez com que tantos preconizassem quase em uníssono o “pessimismo
de La Rochefoucauld”. Esta característica marcante não deve nos impedir de constatar
que o pensamento moral de La Rochefoucauld é, porém, bastante propositivo. Para
além da crítica caracteristicamente mordaz que tende a eclipsar os valores “reais”
defendidos pelo duque, há em seus escritos menção e positivação de muitas virtudes.
Suas Mémoires justificam suas intenções na Fronda, identificando-as com uma atitude
honrada: a fidelidade aos Condé e a briga por uma banqueta na corte para sua mulher
(símbolo da proeminência de sua casa). Em um autoportrait, não hesitou tecer
encômios a si mesmo, alegando que “je me suis assez étudié pour me bien
connaître”.196
Dentre os termos recorrentemente alegados, a honnêteté é o que mais se
destaca. A dificuldade em defini-la é compreensível pela discrepância entre seu
sentido corrente e aquele atribuído na época. Isto é válido para o francês, mas também
para o português. Pois quando dizemos que alguém é “honesto”, indicando seus
escrúpulos quanto a desvios de conduta – como um comerciante é honesto ao não
passar a perna em seu cliente, ou o político é honesto ao não se corromper por
interesses particulares –, ficamos aquém do leque semântico que a palavra abria no
século XVII: honestidade, hoje em dia, é sinônimo de probidade. A tradução do termo
honnêteté demonstra bastante as escolhas do tradutor. Pois ao mesmo tempo em que
somos tentados a traduzi-lo por honestidade, imaginando na semelhança entre os
termos a etimologia que deveria liga-los a honra (honneur), por outro lado, devemos
ponderar que palavras como pudor e decência podem ser muito esclarecedoras quanto
ao sentido clássico da palavra. Honestidade poderia, dessa forma, ser definida como a
“atitude em conformidade com a moral” ou “conduta decorosa”, entendida como
attitude bienséante.
A honestidade era um ideal tão primordial na cultura mundana seiscentista,
que é mais fácil apreender seu sentido em relação a outros valores, como a civilité e a
politesse. O Dicionário da Academia Francesa de 1694 propôs que honnêteté
195
Essa foi a percepção de muitos dos contemporâneos de La Rochefoucauld, evidente nas
cartas que circularam pouco antes da publicação das máximas: a de que o duque não
acreditava, de forma alguma, na possibilidade de qualquer virtude.
196
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 4.
91 “signifie aussi Civilité”,197 enquanto Antoine Furetière explicou que a civilidade é
“une manière honnête, douce et polie d’agir, de converser ensemble”.198 Esses valores
aparentados entre si serviram durante três séculos de meta e moeda de troca entre as
elites europeias, dentre as quais os franceses se destacaram com maior ênfase.199 As
civilidades, longe de serem apenas um indicativo superficial de educação, um rocaille
banal, cumpriram papel crucial no apaziguamento das violências no interior da
sociedade civil, como nos ensinam os estudos clássicos de Norbert Elias. A maestria
dos comportamentos de modo que se adequassem a um ideal coletivo de decência se
tornou, no limite, a forma de organização cotidiana da sociedade de corte.200
***
La Rochefoucauld iniciou a reflexão número 2, sobre o tema da sociedade,
diferenciando entre “sociedade” e “amizade”, que são “très différentes”. A amizade
tem mais mérito e elevação, argumenta: uma boa sociedade busca se assemelhar à
amizade. Com isso, o duque limitou tematicamente o objeto que iria analisar na
reflexão, deixando de lado os laços mais nobres da fraternidade, restringindo-se ao
“commerce particulier que les honnêtes gens doivent avoir ensemble”.201 Como se em
paralelo à amizade se desenvolvesse uma outra gama de relações de sociabilidade,
relações de menor estatuto moral, mas fundamentais à manutenção da harmonia
social. A sociedade é a sociabilidade, o comércio das pessoas honestas, ou seja, as
197
Disponível em ferramenta online no site http://www.lexilogos.com/
FURETIERE. “Civilité”. In. Essais d'un dictionnaire universel. Paris: 1684, s.p. (grifo
nosso)
199
BURKE, P. Op. Cit. (1995), p. 120. “Afirma-se às vezes que a arte da conversação, da
mesma forma que o amor e a haute cuisine, é uma invenção francesa. Entretanto,
argumentarei aqui que as mudanças importantes no modo e no estilo da conversação
ocorreram na Itália da Renascença e na Inglaterra do século XVIII, da mesma forma que na
França em seu ‘grande século’”. Marc Fumaroli, evidentemente, é muito mais francófilo em
sua visão do processo, sem deixar de creditar à Itália a concepção moderna de savoir-vivre.
Repare-se que mesmo Burke, ao periodizar os polos-chave da civilidade, dá lugar de destaque
à França no século XVII, destacando a Itália do XVI e a Inglaterra do XVIII. A título de
contestação poderíamos nos juntar a Fumaroli, tratando o século XVIII como o período
“quand l’Europe parlait français”, ou enfatizando uma negligência bem comum: a do papel de
primeira ordem da galanteria à la espanhola e o espanholismo no início do século XVII. De
um jeito ou de outro, qualquer interpretação reforça a compreensão da civilidade como ideal
comum europeu.
200
Na medida em que próprio monarca era “prisioneiro da etiqueta e das chances de
prestígio”. ELIAS, N. Op. Cit. (2001), capítulo 6.
201
LA ROCHEFOUCAULD. Pl, p. 504.
198
92 pessoas civilizadas e polidas. Os tópicos abordados por La Rochefoucauld tocam, em
sua totalidade, um conjunto de aptidões que deviam ser colocadas em prática no
entretenimento mundano. Por isso, a leitura que propomos aqui colocará em paralelo
a reflexão 2, De la société, e a reflexão 4, De la conversation. No contexto, a
sociabilidade civilizada e polida não é outra coisa senão a conversação regrada.
O problema central que motivou a reflexão do duque reside em uma tensão
fundante aos vínculos sociais: ao mesmo tempo em que a sociedade é necessária aos
homens que se utilizam dela para o aperfeiçoamento e suporte mútuo, este mesmo
desígnio é ameaçado pela inaptidão geral em agradar uns aos outros. Quando
determinado sujeito busca extrair dos seus vínculos somente aquilo que lhe diz
respeito, ele rebaixa o outro a um mero instrumento de seu amor-próprio, o que pode
ferir a sensibilidade da pessoa menosprezada. Em contrapartida, um comércio
fundamentado em duas ou mais pessoas que sabem se respeitar e agradar-se
mutuamente é um contubérnio capaz de durar. Logo, a polidez, o respeito e a
confiança faziam parte de um cálculo de estima que visava fortalecer a comunhão
entre os sujeitos na sociedade civil.202
A inteligência (esprit) é um fator importante na edificação de uma sociedade,
mas não é suficiente. É preciso que as afinidades sejam reguladas pelo bom senso
(bon sens), os humores (humeurs) e a consideração mútua (égards). Se os humores
são contrastantes, o trato tende a falhar; sem respeito e apreço pela sensibilidade
alheia também. O duque defende mesmo que é possível que se estabeleça uma
sociedade entre pessoas de qualidades e nascimentos desiguais, desde que o sujeito
privilegiado não abuse de sua condição.203 Como demonstrou Erich Auerbach, a
honestidade não era um ideal de classe, mesmo consolidando em torno da aristocracia
seu arquétipo adequado de tipo polido. Um burguês podia ser honesto; um homem ou
mulher nobres podiam ser honestos; mesmo um camponês podia se dizer honesto.204
Para burgueses, nobres militares, campônios e mesmo o rei, ser honesto era o justo
202
Enfatizamos a relação civil segundo o modelo construído nos salões, pois na corte, como
mostraram Elias e Ladurie, as solidariedades e conflitos se equilibravam por outros
mecanismos: casas, cabalas e o rei, por exemplo.
203
LA ROCHEFOUCALD. Pl., p. 505.
204
“(…) o que mantinha o salon não era sua cultura – isto seria unilateral e moderno demais –,
mas a noção muito discutida, e muitas vezes definida, de honnêteté. Não era um ideal de
classe, pois essencialmente não era algo que dependesse do nascimento ou da maneira de
viver de nenhuma casta em particular (…) Estava ao alcance de qualquer pessoa desejosa e
capaz de cultivar a sua pessoa interior e exterior de acordo com o espírito da época”.
AUERBACH, E. Op. Cit., pp. 250–251.
93 adequar-se ao lugar, qualidade e profissão ocupada. Lembremos, a título de exemplo,
a amizade desigual entre La Rochefoucauld e Jacques Esprit.205
O sucesso da sociabilidade é obtido pela atenção à liberdade, polidez,
variedade de espíritos, confiança e facilidade que, juntos, deveriam gerar o efeito de
“igualdade” entre as partes. A liberdade era a ausência de constrangimento em manter
alguém preso à conversa e a folga em não mantê-los presos a você mesmo.206
Significava, igualmente, não obrigar a si e aos outros à fala.207 A polidez é interpelada
de modo bastante específico, consistindo na tolerância que evita com que choquemos
os outros e a nós mesmos com o que é dito, especialmente quando a conversa abeira o
escárnio (raillerie).208 Ter variedade no espírito é conseguir transitar e dar espaço de
forma equilibrada a diferentes assuntos e talentos.
É tocando a confiança e a facilidade que o duque se volta ao controle da fala e
aos usos do silêncio. A confiança era um dos pilares que garantiam a liberdade, pois
para que a conversa pudesse fluir, era preciso parecer ser uma pessoa segura e discreta
(“que chacun ait un air de sureté et de discrétion”).209 A confidencialidade ligada a
segredos e opiniões é central na sociedade francesa do século XVII, e abordaremos
este assunto mais adiante, no capítulo seguinte. Quanto à facilidade, ela compreende
algumas habilidades de taciturnidade instrumental particularmente caras à arte da
conversação. Ela se desdobra em duas principais atitudes. A primeira delas envolve
não demonstrar espanto e tolerar as tolices e defeitos daqueles com quem
conversamos, pensamento já lapidado na máxima 384: “On ne devrait s’étonner que
de pouvoir encore s’étonner”, devíamos nos surpreender com ainda podermos nos
surpreender.210 Neste ponto, o duque está de acordo com a marquesa de Sablé em sua
205
Segundo Jouanna, no verbete “Amitié” do Dictionnaire de l’Ancien Régime, “des liens
d’amitié peuvent unir un supérieur et un inférieur. Ils deviennent alors difficiles à distinguer
des liens de clientèle. Il est possible de les identifier cependant au fait que l’inférieur conserve
son indépendance”. JOUANNA, A. “Amitié”. In. BÉLY; L. Op. Cit., p. 57.
206
Máxima n. 242: “On incommode souvent les autres quand on croit ne les pouvoir jamais
incommoder”.
207
Máxima n. 556. “Il n’est jamais plus difficile de bien parler que quand on a honte de se
taire”.
208
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 506. Um definição do esprit de raillerie é encontrada
mais adiante, na reflexão 16, De la différence des esprits: “La raillerie est un air de gaieté qui
remplit l’imagination, et qui lui fait voir en ridicule les objets qui se présentement (…)”.
Idem, p. 528.
209
Idem, p. 506.
210
Idem, p. 454.
94 máxima 33, que diz qu’“Il faut s’accoutumer aux folies d’autrui et ne se point choquer
des niaiseries qui se disent en notre présence”.
A segunda atitude, mais complexa, é a de fazer, por meio de sutilezas e
delicadezas, que eles percebam por si mesmos estes defeitos e que atribuam a si
mesmos o mérito de tê-los corrigido. Não se chocar com os defeitos de alguém não
impede que a sociedade cumpra sua vocação de moralização/civilização dos
comportamentos. Os salões de conversação eram espaços de aprendizado prático das
normas sociais pelas quais era possível identificar os mais habilidosos, bem como
reprimir e corrigir os excessos dos discrepantes. Nessa medida, a conversação é o
ponto convergência entre o ideal de honestidade e uma concepção mundana de
pedagogia. Na mesma medida em que “le plus grand effort de l’amitié n’est pas de
montrer nos défauts à un ami; c’est de lui faire voir les siens”211 – máxima 410, sobre
a qual o espanhófilo e conhecedor da civilidade ibérica Amelot de La Houssaye
(1634–1706)212 anotou: “No hay mejor espejo que el amigo viejo” –, assim também
“C’est être véritablement honnête homme que de vouloir être toujours exposé à la vue
des honnêtes gens”.213 Resumidamente: para La Rochefoucauld, a suave correção dos
defeitos de alguém era constituinte das práticas de sociabilidade, sendo vista como
uma forma conferir durabilidade às ligações. A honestidade consistia em se submeter
a esse esforço coletivo de depuração.
A reflexão 2 tem uma cisão de sua metade para o fim. Se até o momento onde
propõe as qualidades que salvaguardam a liberdade necessária para o estabelecimento
de uma sociabilidade perfeita La Rochefoucauld defendeu, por assim dizer, a
transposição de limites, a cautelosa invasão do terreno do outro com vistas à
edificação mútua, o fim do texto chama a atenção aos perigos nisto implicados. O
último e longo parágrafo do texto se volta aos perigos da familiaridade e excessos de
intimidade, reafirmando, em contraponto ao resto do texto, o afastamento entre as
pessoas. Parece-nos que as normas de civilidade visavam, antes de mais nada,
equilibrar e normatizar dois extremos muito imbricados: a distância e a intimidade.
Pois os mesmos preceitos que davam aparatos formais com os quais pudessem
211
Idem, p. 410.
Amelot de La Houssaye foi tradutor de Gracián em 1683, data da primeira edição do
jesuíta na França. Sobre a difusão da obra de Gracián na França, consultar o recentíssimo
livro de Marc Fumaroli. FUMAROLI, M. Le sablier renversé – Des Modernes aux Anciens.
Paris: Gallimard, 2013, pp. 19–254.
213
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 430.
212
95 interagir adequadamente (modos de tratamento, tons de voz, fórmulas de autohumilhação e escusa etc) acabavam por servir de fronteira, estabelecendo os volteios
necessários para se tocar o outro, bem como os limites a serem respeitados.214
O duque construiu seu argumento constatando que é difícil encontrar pessoas
que compartilhem os mesmos interesses, mas é primordial, para a sociedade, que estes
ao menos não sejam opostos. Podemos ir adiante em um assunto que nos interessa se
constatarmos que ele é útil ao interlocutor, trazendo-o à tona (o assunto) sem sermos
bruscos. Se o tema não agrada é preciso sabermos interrompê-lo sem sermos
agressivos ou abruptos. É o caso de quando falamos de matérias que concernem os
nossos amigos. Podem ser tratados na medida em que estes permitam e, mesmo
assim, com grande comedimento. A questão é delicada.
Há polidez, e às vezes até humanidade, em não avançar muito pelas
dobras do coração; às vezes, incomoda-lhes mostrar tudo o que sabem, e
incomoda-lhes ainda mais quando adentramos aquilo que não sabem.215
A consideração consiste em entender e respeitar que as pessoas podem querer manter
questões suas em privado, sem que venham à luz. Resguardar as zonas sensíveis do
outro é a proposta final do duque para assegurar que a sociedade seja douce e,
voltamos ao termo usado no início da reflexão, honesta.
Ainda que o comércio que pessoas honestas têm juntas lhes dê
familiaridade, e forneça-lhes um número infinito de assuntos para falar
sinceramente, quase ninguém tem sensibilidade o bastante e bom senso
para receber bem muitas opiniões necessárias para manter a sociedade:
queremos ser corrigidos até certo ponto, mas não o queremos em todas as
coisas, e tememos saber todos os tipos de verdades.216
Familiaridade regulada pela polidez não significava a destruição das
distâncias, mas a reelaboração das fronteiras e possibilidades de interação. Isto
214
BURKE, P. “Les langages de la politesse”. In. Terrain, nº 33, setembro de 1999, pp. 111–
126, disponível online no endereço http://terrain.revues.org/2704
215
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 506. “Il y a de la politesse, et quelquefois même de
l’humanité, à ne pas entrer trop avant dans les replis du cœur ; ils ont souvent de la peine à
laisser voir tout ce qu’ils en connaissent, et ils en ont encore davantage quand on pénètre ce
qu’ils ne connaissent pas”. (Tradução livre, grifos nossos)
216
Idem, pp. 506–507. “Bien que le commerce que les honnêtes gens ont ensemble leur donne
de la familiarité, et leur fournisse un nombre infini de sujets de se parler sincèrement,
personne presque n’a assez de docilité et de bon sens pour bien recevoir plusieurs avis qui
sont nécessaires pour maintenir la société : on veut être averti jusqu’à un certain point, mais
on ne veut pas l’être en toutes choses, et on craint de savoir toutes sortes de vérités”.
(Tradução livre, grifo nosso)
96 decorre da invariabilidade da existência de zonas sob a proteção do amor-próprio as
quais deviam ser respeitadas. Condição paradoxal das normas de civilidade, quanto
mais definidas são as zonas concernentes a cada sujeito, mais potencializada é a
sociabilização.217 A conclusão da reflexão 2 –
Como devemos manter as distâncias para ver os objetos, também é
preciso manter para a sociedade: cada um tem seu ponto de vista, de onde
quer ser visto; temos razão, frequentemente, em não quereremos ser
alumiados de perto demais, e quase não há um homem que queira, em
todas as coisas, deixar-se ver tal qual ele é 218
– ecoa as máximas 256 (“Dans toutes les professions chacun affecte une mine et un
extérieur pour paraître ce qu’il veut qu’on le croie. Ainsi on peut dire que le monde
n’est composé que de mines”)219 e 104 (“Les hommes et les affaires ont leur point de
perspective. Il y en a qu’il faut voir de près pour en bien juger, et d’autres dont on ne
juge jamais si bien que quand on en est éloigné”).220
O convívio, seguindo esta lógica, não estava assentado na demonstração das
próprias aptidões expressivas, mas antes pela limitação das mesmas na medida em
que se aproximasse do território do outro. Ao limitar-se, porém, inversamente o
conversador terminava por gerar o mesmo efeito de mise en scène de sua habilidade:
La Rochefoucauld considerava a autocontenção uma competência reconhecível e
primordial para a conversação honesta, conforme assevera o conjunto de argumentos
da reflexão 4, De la conversation.
Na conversação mostrava-se as próprias aptidões a um grupo de pessoas das
quais se esperava a aprovação. Nestas circunstâncias o desejo de conduzir os
interlocutores por temas caros a si, e a vontade de falar sobre eles, muitas vezes podia
sobrepujar a “distribuição igualitária dos ‘direitos do falante’”.221 Uma nova inversão
irônica: aquele que fala demais querendo atrair para si as atenções e elogios da
reunião, termina por agradar menos, falhando em seu intento. Para o moralista, esta
era a regra.
217
Máxima 260: “La civilité est un désir d’en recevoir (…)”. Idem, p. 438.
Idem, p. 507. “Comme on doit garder des distances pour voir les objets, il en faut garder
aussi pour la société : chacun a son point de vue, d’où il veut être regardé ; on a raison, le plus
souvent, de ne vouloir pas être éclairé de trop près, et il n’y a presque point d’homme qui
veuille, en toutes choses, se laisser voir tel qu’il est”. (Tradução livre, grifos nossos)
219
Idem, p. 438
220
Idem, p. 417.
221
BURKE, P. Op. Cit. (1995), p. 122.
218
97 O que faz com que tão poucas pessoas sejam agradáveis na conversação, é
que cada um pensa mais no que quer dizer do que nos que os outros
dizem.222
A edição de Brotier apresenta uma variante no primeiro período.
O que faz com que tão poucas pessoas sejam agradáveis na conversação, é
que cada um pensa mais no que tem vontade de dizer do que no que os
outros dizem, e quase não ouvimos quando temos muita vontade de
falar.223
O texto padrão, além de buscar a brevidade, ateve a questão da raridade de
habilidosos no próprio fenômeno, enquanto vemos na variante de Brotier um
deslocamento da questão para o âmbito das paixões (indicado pelo uso das palavras
dessein e envie, vontade e desejo). O que a variante nos alerta já no primeiro período
e que ficará evidente na continuidade da edição final é que para La Rochefoucauld a
conversação era um momento em que afloravam disposições internas excessivas ou
defeituosas, incontroláveis por vezes, o que em si justificaria ser a conversação um
tema do moralista (i.e. crítico dos vícios e virtudes de sua época). A envie, para La
Rochefoucauld, era antes de mais nada um vício, uma disposição majoritariamente
negativa, 224 o que dificulta a tradução do termo, pois em nosso entendimento
moderno, “vontade” e “desejo” são categorias descarregadas do mesmo peso moral,
enquanto “cobiça”, “ganância” e “ambição” são rapidamente associadas a exigências
materiais. A palavra “avidez” eventualmente pode transmitir o caráter ao mesmo
tempo silencioso da envie (ansiedade, impaciência, inveja) e aparente (voracidade,
ímpeto). Manteremos, por via das dúvidas, a palavra em francês.
222
La ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 509. “Ce qui fait que si peu de personnes sont agréables
dans la conversation, c’est que chacun songe plus à ce qu’il veut dire qu’à ce que les autres
disent”. (Tradução livre)
223
Idem, p. 846, n. 3. “Ce qui fait que si peu de personnes sont agréables dans la conversation,
c’est que chacun songe plus à ce qu’il a dessein de dire qu’à ce que les autres disent, et que
l’on n’écoute guère quand on a bien envie de parler”. (Tradução livre, grifos destacando
variações)
224
São poucos os casos em que a palavra envie é usada com o sentido de disposição neutra.
Apenas para deixarmos um contraponto a nosso argumento, citamos o retrato de La
Rochefoucauld por si mesmo: “J’ai les sentiments vertueux, les inclinations belles, et j’ai si
forte envie d’être tout à fait honnête home que mes amis ne me sauroient faire un plus grand
plaisir que de m’avertir sincèrement de mes défauts”. Idem, p. 5.
98 Para La Rochefoucauld, a envie é uma disposição das mais profundas e,
portanto, das mais escondidas.225 É um vício que chega mesmo a motivar ações
virtuosas, pois se traveste da roupagem que for necessária para atingir seus
objetivos.226 Ela coloca o eu à frente dos outros quando – o argumento da reflexão
continua – “Il faut écouter ceux qui parlent, si on en veut être écouté ; il faut leur
laisser la liberté de se faire entendre, et même de dire des choses inutiles227”.228 O
mesmo argumento é encontrado quase em sua extensão na sentença moral número
139, partilhada por La Rochefoucauld e a marquesa de Sablé.
Uma das coisas que faz com que encontremos pouquíssimas pessoas que
pareçam razoáveis e agradáveis na conversação, é que quase não há quem
não pense mais no que quer dizer do que em responder precisamente ao
que lhe dizemos. Os mais hábeis e complacentes se contentam em mostrar
somente o rosto atento, ao mesmo tempo que vemos, em seus olhos e
espírito, uma dispersão sobre o que dizemos e uma precipitação em voltar
ao que eles querem dizer, ao invés de considerarem que é um péssimo
meio de agradar os outros, ou de persuadi-los, procurar tanto agradar a si
mesmo, e que ouvir bem e bem responder é uma das maiores perfeições
que podemos ter na conversação.229
225
Idem, p. 406, máxima 27. “On fait souvent vanité des passions même les plus criminelles;
mais l’envie est une passion timide et honteuse que l’on n’ose jamais avouer”.
226
Idem, p. 465, máxima 475. “L’envie d’être plaint ou d’être admiré fait souvent la plus
grande partie de notre confiance”.
227
Tolerância de La Rochefoucauld que ecoa a máxima 33 da marquesa de Sablé: “Il faut
s’accoutumer aux folies d’autrui et ne se point choquer des niaiseries qui se dissent en notre
présence”.
228
LA ROCHEFOUCAULD. Pl, p. 509.
229
Idem, p. 421. “Une des choses qui fait que l’on trouve si peu de gens qui paraissent
raisonnables et agréables dans la conversation, c’est qu’il n’y a presque personne qui ne pense
plutôt à ce qu’il veut dire qu’à répondre précisément à ce qu’on lui dit. Les plus habiles et les
plus complaisants se contentent de montrer seulement une mine attentive, au même temps que
l’on voit, dans leurs yeux et dans leur esprit, un égarement pour ce qu’on leur dit, et une
précipitation pour retourner à ce qu’ils veulent dire, au lieu de considérer que c’est un
mauvais moyen de plaire aux autres, ou de les persuader, que de chercher si fort à se plaire
soi-même, et que bien écouter et bien répondre est une des plus grandes perfections qu’on
puisse avoir dans la conversation”. (Tradução livre). Com algumas variantes, a sentença da
marquesa de Sablé diz: “Une des choses qui fait que l’on trouve si peu de gens agréables et
qui paraissent raisonnables dans la conversation, c’est qu’il n’y en a quasi point qui ne
pensent plutôt à ce qu’ils veulent dire qu’à répondre précisément à ce qu’on leur dit. Les plus
[LR : habiles et] complaisants se contentent de montrer une mine attentive, au même temps
qu’on voit dans leurs yeux et dans leur esprit un égarement et une précipitation de retourner à
ce qu’ils veulent dire, au lieu qu’on devrait juger [LR : au lieu de considérer] que c’est un
mauvais moyen de plaire [LR : aux autres] que de chercher à se satisfaire si fort [LR : se
plaire à soi-même], et que bien écouter et bien répondre est une plus grande perfection [LR :
qu’on puisse avoir dans la conversation] que de parler bien et beaucoup, sans écouter et sans
répondre aux choses qu’on nous dit”.
99 O reconhecimento que muitos obtém (“les plus habiles et les plus complaisants”) é
obtido pelo uso de uma máscara exterior com a qual afetam interesse, da qual se usam
para não ferir o orgulho da pessoa com quem conversam (aparentando desinteresse
descaradamente, por exemplo), mas sem se aprofundarem na matéria do que lhes é
dito. La Rochefoucauld enumera em seguida várias condutas a se evitar e realizar:
Ao invés de contradizê-los ou interrompê-los, como se faz
frequentemente, devíamos, pelo contrário, adentrar-lhes o espírito e o
gosto, mostrar-lhes que escutamos, falar-lhes do que lhes toca, louvar o
que dizem o tanto que deve ser louvado, e mostrar que é mais por escolha
que por complacência que louvamos. É preciso que se evite contestar
sobre coisas indiferentes, raramente fazer questões, que quase sempre são
inúteis, não dar a impressão de que queremos ter mais razão que os outros,
e ceder facilmente o direito de decidir.230
Ouvir, entender e dar um retorno (falar e elogiar). Note-se que o nexo de todas as
técnicas (não contradizer, não interromper, não questionar, louvar o que é dito,231
louvar quem o diz, mostrar interesse, falar do que interessa, não querer ter razão,
permitir que o outro tenha razão), o argumento central em torno de qual todas
gravitam, é o de que a melhor forma para se construir a conversação agradável seria
deslocando o apanágio inteiramente ao outro. Para aquele apto a fazê-lo, a grandeza
desse gesto resultaria da alienação de direitos de fala, resignados em prol não só de
uma igual distribuição dos mesmos, mas antes de uma concessão desproporcional ao
interlocutor.
A conversação mais perfeita era a do locus amoenus do salão em que se
buscava o prazer e edificação coletivos. Era preciso evitar disputas, o que não quer
dizer que a conversa devia transitar somente por assuntos sem importância ou banais.
Motivos sérios eram debatidos, como sabemos: aconteciam diálogos sobre teologia,
política e moral. Antes, era preciso facilidade e leveza para que a troca não se tornasse
230
Idem, p. 509. “Au lieu de les contredire ou de les interrompre, comme on fait souvent, on
doit, au contraire, entrer dans leur esprit et dans leur goût, montrer qu’on les entend, leur
parler de ce qui les touche, louer ce qu’ils disent autant qu’il mérite d’être loué, et faire voir
que c’est plutôt par choix qu’on le loue que par complaisance. Il faut éviter de contester sur
des choses indifférentes, faire rarement des questions, qui sont presque toujours inutiles, ne
laisser jamais croire qu’on prétend avoir plus de raison que les autres, et céder aisément
l’avantage de décider”. (Tradução livre)
231
Uma questão problemática para La Rochefoucauld e os moralistas para os quais o louvor
quase sempre beirava a adulação. Na maxima 144, La Rochefoucauld já alertava: “On n’aime
point à louer, et on ne loue jamais personne sans intérêt. La louange est une flatterie habile,
cachée et délicate, qui satisfait différemment celui qui la donne et celui la reçoit : l’un la
prend comme une récompense de son mérite ; l’autre la donne pour faire remarquer son
équité et son discernement”. Idem, p. 422.
100 disputa. O equilíbrio difícil entre as duas vocações da arte da conversação, deleitar e
instruir, o desprezo pelo conflito e a linguagem especializada sem deixar de pretender
a instrução comum, encontra seu precedente e analogia antiga no sermo (praticado no
otium), contraposto à eloquentia (das negotia do Fórum).232
Devemos dizer coisas naturais, fáceis e mais ou menos sérias, segundo o
humor e a inclinação das pessoas com quem entretemos, não apressá-las a
aprovar o que dizemos, nem mesmo respondê-lo.233
A escolha de assuntos fáceis e amenos sem adentrar em polêmicas e
sentimentos delicados criaria um terreno comum e neutro em que o diálogo pudesse
começar. La Rochefoucauld qualifica esse movimento como um tipo de etapa da
polidez. A matéria-prima da conversação é o lugar-comum, substância básica, de
propriedade coletiva.234 Os topoi forneciam um arsenal de temas com os quais se
podia construir e abordar um argumento. A palavra latina locus communis é mais do
que adequada para o contexto dos salões – o que é representativo de sua permanência
na língua francesa. O locus amoenus não era somente o espaço perfeito para o locus
communis: o locus amoenus era ele mesmo um dos mais antigos locus communis. O
conjunto da literatura moralista francesa do século XVII nos adverte de o quanto o
salão – segundo o modelo emblemático d’O Cortesão de Castiglione – foi
processualmente sendo entendido como contraposto ao locus horridus ou terribilis da
Corte, dominada pelas cabalas.235 Como tudo o que se refere às normas de civilidade,
a impressão é que os topoi normatizam a distância entre os praticantes para melhor
ordenar a aproximação.
Quando dessa forma tivermos satisfeito os deveres da polidez, podemos
dizer nossos sentimentos, sem prevenção ou teimosia, mostrando que
buscamos apoiá-los na opinião daqueles que escutam.236
232
FUMAROLI, M. Op. Cit. (2001), pp. 289–290. A distinção é ciceroniana.
LA ROCHEFOUCAULD. Pl, p. 509. “On doit dire des choses naturelles, faciles et plus ou
moins sérieuses, selon l’humeur et l’inclination des personnes que l’on entretient, ne les
presser pas d’approuver ce qu’on dit, ni même d’y répondre”. (Tradução livre)
234
FUMAROLI, M. Op. Cit. (2001), pp. 285–288.
235
“(…) opposer un honnête homme à cette peste de cour (…)”. RACINE, Jean. Théatre
Complet de Racine. Paris: Garnier frères, 1950, p. 237. A citação se encontra no segundo
prefácio à tragédia Britannicus.
236
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 509. “Quand on a satisfait de cette sorte aux devoirs de
la politesse, on peut dire ses sentiments, sans prévention et sans opiniâtreté, en faisant paraître
qu’on cherche à les appuyer de l’avis de ceux qui écoutent”. (Tradução livre). “Sans
prévention et sans opiniâtreté”. Opiniâtreté: a teimosia: é preciso ser flexível, tolerante e fácil.
Prévention: o dicionário da Academia Francesa de 1694 apresenta dois significados para o
substantivo Prévention. O primeiro deles, no sentido análogo ao contemporâneo, de tomar
uma precaução, ter a opinião avisada antes de algo, até mesmo premeditação. O dicionário
233
101 Posta dessa forma, a prática da conversação devia ser, antes de mais nada,
restritiva. Na reflexão, “Il faut éviter de parler longtemps de soi-même, et de se
donner souvent comme exemple”. 237 Nas máximas, preferimos falar mal de nós
mesmos do que não falar;238 e o prazer que disso tiramos devia nos deixar temerosos
em nada contribuirmos para quem nos escuta.239 A polidez dita que não se deve falar
da própria mulher, mas poucos sabem que não se deve falar de si mesmo,240 ávidos
que somos de mostrarmos de bom grado nossos defeitos, mas apenas da forma que
nos serve.241 Os assuntos abordados deviam se adequar à pente e à porté (inclinação e
alcance)242 da inteligência de quem tratamos, e nunca deveríamos querer que eles se
esgotassem em nossa opinião: que os outros sempre tenham algo a pensar e dizer.
Se o intuito da conversação não é a disputa nem a contradição, e
etimologicamente ela em si significa convívio, tautologicamente sua finalidade é a
própria conversação: melhor se conversa para melhor conviver, a boa socialização
garante uma boa sociedade. Por isso, nesta reflexão como na Da sociedade, La
Rochefoucauld volta ao ponto da facilidade e naturalidade. Destacando-se do espaço e
do tempo comum, o salão funcionava sobre o princípio da anulação assistida da
desigualdade de condições. Logo, todo ar de autoridade devia ser banido, significando
que uma opinião não deveria ser sustentada nem por teimosia, nem por posição, nem
por argumento de autoridade.243 A regra era respeitar os sentimentos e opiniões de
todos. Era perigoso querer ser mestre da conversa, tentando encaminhá-la apenas por
aquilo que se sabe. O esprit devia ser flexível em suas opiniões (facilidade) e
profundo em sua sabedoria (erudição não afetada). Segrais – que aparentemente não
gostava de Racine – nos deixou uma anedota com a suposta fonte dessa ideia,
originada em máxima:
adverte ainda que prévention pode ser tomada no sentido de preocupação. Assim, de que
forma poderíamos entender esta afirmação de La Rochefoucauld? Acreditamos que no
sentido de temer. Pois, no limite, o argumento é o de que é preciso que sigamos certo decoro
na escolha dos assuntos para que possamos, somente depois, adentrar em temas mais
profundos (sem que pareçamos teimosos). Resumindo, a polidez dita que tratemos de
assuntos naturais e fáceis para depois falarmos de (nossos) sentimentos (ou do outro).
237
Idem, Ibidem.
238
Idem, p. 421, maxima 138.
239
Idem, p. 446, maxima 314.
240
Idem, p. 451, maxima 364.
241
Idem, p. 454, maxima 383.
242
Conforme a tradução de Leda Tenório da Motta. LA ROCHEFOUCAULD. Máximas e
Reflexões. Trad. Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 110.
243
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 510. “On ne doit jamais parler avec des airs d’autorité, ni
se servir de paroles et de termes plus grands que les choses”.
102 É por causa de Despréaux e de Racine que o Senhor de La Rochefoucauld
estabeleceu a máxima na qual diz que é uma grande pobreza não ter mais
que um tipo de espírito; a conversa deles só se desenrola sobre a poesia;
tire-os dali, e não sabem mais nada.244
A referência foi adulterada por Segrais para efeito de ênfase. A máxima em questão é
413: “On ne plaît pas longtemps quand on n’a qu’une sorte d’esprit”,245 ou seja, “Não
agradamos muito tempo quando só temos um tipo de espírito”. A pluralidade de
aptidões diletante (que é amadora e é por deleite) é abordada, por exemplo, no retrato
que o duque fez de si mesmo, em que se descreveu como alguém que ama conversar,
ama a leitura em geral – sozinho ou em boa companhia – sabe escrever em prosa e em
poesia e assim por diante. A sapiência diletante remetia à idealização da honestidade
praticada na própria escritura moralista que não se pretendia douta ou acadêmica,
como postula a máxima 550: “Il est plus nécessaire d’étudier les hommes que les
livres”.246 Sabedoria que talvez possamos remeter ao topos do polímata, vinculado
igualmente ao homo universalis humanista.247
Ao fim da reflexão, o silêncio é enquadrado dentre as técnicas do senso de
adequação e é diferenciado em suas modalidades. Não importa quão honesta e
espirituosa seja uma conversação, é preciso que o juízo de conveniência seja capaz de
adaptar o orador ao interlocutor: nem toda conversa é “également propre à toute sorte
d’honnêtes gens: il faut choisir ce qui convient à chacun, et choisir même le temps de
le dire”.248 Isso nos leva a pensar na diversidade de tópicos abordados nos diferentes
tipos de salão do período e a identidade que alguns salões adquiriram em temas e
formas específicos. No salão de Sablé se discutiu medicina, religião, moral, física até.
O salão de Nevers tinha maior pendor para o jansenismo e disputas de religião. No
caso limite dos salões que agrupavam os libertinos, seus convivas eram escolhidos
segundo uma disposição mais desimpedida. Na época moderna, a leitura e adaptação
244
Idem, p. 732. “C’est à l’occasion de Despréaux et de Racine que Monsieur de La
Rochefoucauld a établi la maxime par laquelle il dit que c’est une grande pauvreté de n’avoir
qu’une sorte d’esprit; tout leur entretien ne roule que sur la poésie; ôtez-les de là, ils ne savent
plus rien”. (Tradução livre, grifos no original)
245
Idem, p. 457
246
Idem, p. 550.
247
É curioso contrapor a crítica que Segrais fez a Racine (“tire-lhe a poesia e não sabe mais
nada”) ao elogio diametralmente oposto que Saint-Simon fez ao dramaturgo: “rien du poète
dans son commerce, et tout de l'honnête homme”. O que explicaria a disparidade de opiniões?
Círculos de amizade? Cabalas literárias? Referências distintas (mundanas X cortesãs)?
Gerações?
248
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 510.
103 às circunstâncias já havia sido enfatizada nos diálogos de Castiglione quando – frente
à dificuldade em se criar leis para a conversação –, foram enumeradas duas regras
ditas “universais”: 1) evitar a afetação e 2) respeitar as circunstâncias.249 O moralista
francês fez eco a ambas quase um século e meio depois. Se a sprezzatura se aparenta
à facilidade e ao naturel, no que concerne à segunda norma, a semelhança entre os
textos de Castiglione e de La Rochefoucauld é enorme:
CASTIGLIONE: (...) considere bem aquilo que faz ou diz, e o lugar onde
faz, na presença de quem, em que ocasião, a causa que o leva a fazê-lo,
sua idade, a profissão, o fim para o qual se tende e os meios que àquilo
podem levá-lo (...)250
Por isso, quem tiver de se habituar a conversas com tanta gente, deve se
orientar por seu próprio juízo e, conhecendo as diferenças de um e de
outro, troque de estilo e maneiras a cada dia, conforme a natureza
daqueles com quem se disponha a dialogar.251
LA ROCHEFOUCAULD: É preciso escolher o que é de seu gosto [da
assembleia], e o que convém à sua condição, sexo, talentos, e escolher
mesmo o tempo de dizê-lo. Observemos o lugar, a ocasião, o humor em
que se encontram as pessoas que nos escutam (...).252
Lugar, ocasião, sexo, humor, talentos: os fatores que criam uma
“circunstância” são muitos, o que implica que deveria haver muita arte em bem falar.
É certo. Mas La Rochefoucauld coloca a ênfase em seu oposto complementar. A
pluralidade de circunstância e erros possíveis exigia o artifício do silêncio: “mais s’il
y a beaucoup d’art à savoir parler à propos, il n’y en a pas moins à savoir se taire”.253
Ao que segue a enumeração de algumas modalidades loquazes de silêncio e
gestualidade:
Há um silêncio eloquente: ele serve às vezes para aprovar e condenar; há
um silêncio zombador; há um silêncio respeitoso; há, enfim, ares, tons e
maneiras que fazem amiúde o que há de agradável ou desagradável, de
249
CASTIGLIONE. Op. Cit., p. 92.
Idem, Ibidem.
251
Idem, p. 102.
252
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 847: variante da reflexão conforme a edição de Brotier
apresentada em nota na Pléiade. “Il faut choisir ce qui est de leur goût, et ce qui est
convenable à leur condition, à leur sexe, à leurs talents, et choisir même le temps de le dire.
Observons le lieu, l’occasion, l’humeur où se trouvent les personnes qui nous écoutent”.
(Tradução livre)
253
Idem, p. 510.
250
104 delicado ou chocante na conversação; o segredo de bem usá-los é
confiado a poucas pessoas (...).254
Voltamos ao mote inicial – de que há poucas pessoas agradáveis na conversação –
mas enriquecido de um tour de force: a inversão que coloca mais ênfase no silêncio e
na expressividade corporal para êxito comunicativo do que na própria oralidade.
Voltamos também – em um recuo maior – à despretensão modesta e altamente
propositiva dos conversadores de Castiglione que, dizendo-se incapazes de criar leis
fixas para a conversação, terminam justamente por prescrever. La Rochefoucauld
encerra:
e mesmo aqueles que fazem as regras às vezes se enganam; a mais segura,
a meu ver, é a de não ter nenhuma que não se possa mudar, de antes
aparentar negligência que afetação no que se diz, de ouvir, de falar pouco,
e de nunca se forçar a falar.255
As premissas e a dinâmica de raciocínio que La Rochefoucauld construiu para
as duas reflexões aqui utilizadas são, em essência, as mesmas. Dentre as premissas,
ambas partem do juízo de que 1) os vínculos sociais são importantes e 2) estes
vínculos estão em risco pela inaptidão da maioria dos sujeitos em geri-los. Em termos
menos abstratos, a sociabilidade fortalece os vínculos entre os homens, mas estes,
frequentemente, buscam apenas seu próprio prazer; e a conversação é uma prática
fundamental desta sociabilidade, constantemente ameaçada pelo monopólio e mau
uso do direito de fala. Tencionando estes fatores, La Rochefoucauld construiu uma
visão de aptidão comunicativa no interior da qual o mais competente seria aquele apto
de controlar sua voracidade verbal deslocando para o outro a primazia dialógica. A
maestria/silêncio das palavras – indelicadas, não-apropriadas, excessivas – devia ser
acompanhado da maestria/silêncio moral – da envie, do amor-próprio. Por
conseguinte, no sistema moral rochefoucauldiano centrado na honestidade, as normas
de taciturnidade e moderação implicadas na prática da polidez mundana visavam
regular a lonjura decorosa entre os sujeitos para melhor presidir a aproximação. É
254
Idem, Ibidem. “Il y a un silence éloquent : il sert quelquefois à approuver et à condamner ;
il y a un silence moqueur ; il y a un silence respectueux ; il y a enfin des airs, des tons et de
manières qui font souvent ce qu’il y a d’agréable ou de désagréable, de délicat ou de choquant
dans la conversation ; le secret de s’en bien servir est donné à peu de personnes (…)”.
(Tradução livre)
255
Idem, Ibidem. “ceux mêmes qui en font des règles s’y méprennent quelquefois ; la plus
sûre, à mon avis, c’est de n’en point avoir qu’on ne puisse changer, de laisser plutôt voir des
négligences dans ce qu’on dit que de l’affectation, d’écouter, de ne parler guère, et de ne se
forcer jamais à parler”. (Tradução livre, grifos nossos)
105 uma questão de precedência lógica: a apropinquação pressupunha o afastamento, a
sociabilização pressupunha desobrigação, a comunicação pressupunha o silêncio.
106 X. A MANUTENÇÃO
RELIGIÃO
DO
SEGREDO:
POLÍTICA,
HONNÊTETÉ
E
Em “La cour et la ville”, Erich Auerbach defende a um só tempo uma hipótese
interpretativa sobre os embates intelectuais na França do século XVII e também
propõe uma periodização. Para o filólogo, é inegável que a corte foi referência em
matéria de comportamentos, seguindo a proposição de Taine, de que a sociedade do
século XVII foi “monárquica e aristocrática”. A precisão aventada por Auerbach
consiste em defender que “certamente este não era o caso na primeira metade do
século [XVII]”, do que se infere uma cisão, ou periodização: “no primeiro [segmento
do século], racionalismo, reforma linguística, heroísmo romântico e tendresse vivem
lado a lado e em misturas instáveis, numa época marcada por partidarismos políticos e
religiosos. No segundo, todas essas correntes são subjugadas e sintetizadas para
formar uma cultura homogênea”. A corte só veio a se instaurar e fazer-se valer como
fonte de modelos com a tomada de poder de Luís XIV, por volta de 1660.256
A cultura de salão se desenvolveu na França sob os ideais do preciosismo,
embasados na conversação à la italiana e na galanteria à la espanhola. Se houve um
fenômeno essencialmente francês dentre as diferentes facetas da cultura mundana da
Europa “civilizada”, este fenômeno foi o preciosismo, e se desenvolveu em paralelo à
corte. “Mme de Rambouillet e seu grupo, os criadores do preciosismo, mantiveram-se
afastados da corte como medida de precaução”.257 Mas precaução em relação ao quê?
A literatura moralista nos dá indícios sobre isso. Toda a primeira metade do século
XVII até o momento da eclosão da Fronda assistiu à progressiva divisão da sociedade
aristocrática entre os grupos de influência em torno da casa real, dos ministros e das
famílias mais antigas e influentes. Os salões, nos quais eram discutidas as bagatelas
do grand monde e o caráter sublime do amor, eram também o ponto de encontro da
alta nobreza inspirada nos modelos heroicos do Astrée de Honoré d’Urfé. Distintos da
Corte, mas não apartados dela, essas sociedades auto-selecionadas eram o ambiente
perfeito para a auto-idealização moral de uma elite que, progressivamente nas
primeiras décadas do século, contrapôs a Arcádia de seus valores e o Parnasso de sua
cultura à corrupção do Olimpo do Louvre. Como bem destaca Fumaroli, o período da
Fronda é o clímax da uma postura intelectual cujo principal traço é a “franqueza”
256
257
AUERBACH, E. Op. Cit., pp. 217–219.
Idem, Ibidem.
107 [franchise], constatação válida desde o Pascal das Provinciales até os anônimos
provocadores das mazarinades. 258 Parece-nos evidente que as plumas de La
Rochefoucauld, Esprit e Sablé se moviam deste espírito.
Propõe-se que houve um choque de gerações entre aqueles criados nos salões
e cercles do início do século e os cortesãos de profissão pós-tomada de poder de Luís
XIV. Não à toa que boa parte da geração mundana cultivada à parte da corte, pouco
tempo antes da subida ao trono de Luís o Grande tenha participado da Fronda –
afrontando os ministros reais em prol de uma governança mais próxima ao Segundo
Estado259 – e, após ela, tenha encontrado refúgio no jansenismo.
A corte e os salões foram inundados por toda uma literatura normativa que
munia seus frequentadores de modelos e ideais a serem seguidos. Se nos dois casos
era preciso policiar os costumes, adequar-se à assembleia com a qual conversava,
conter-se, mas também exteriorizar as habilidades, vários dos moralistas que
escreviam de forma mais mordaz construíam suas críticas denunciando as práticas da
corte. Se a cidade e os salões eram idealizados por sua constituição seleta, onde a
amenidade dos hábitos buscava a edificação mútua e prazerosa, a corte, em
contrapartida, não podia deixar de ser vista como um antro de falsidade, simulação e
corrupção, justamente por colocar toda a arte – ou artifícios – a serviço de interesses.
Nas máximas e reflexões de La Rochefoucauld há um relativo silêncio no que
concerne à corte, explicável pela situação do duque quando escreveu e publicou suas
máximas: tendo conquistado o perdão real e seu filho bem encaminhado como
favorito de Luís XIV, era preciso calibrar a crítica para não colocar tudo a perder. O
que não nos impede de, por uma leitura mais atenta, constatar a predileção do duque
pela sociedade da ville e pontadas contra o mundo palaciano, especialmente em suas
reflexões extensas. Os momentos em que dá mais indícios sobre aquilo que acreditava
ser o honesto portar-se, são os mesmos momentos em que trata do comércio mundano
e da conversação (reflexões 2 - De la société, 3 – De l’air et des manières, 4 - De la
conversation, 5 – De la confiance). Por outro lado, as duas reflexões mais mordazes,
em que o escárnio é usado amplamente, são as que mais parecem se dirigir à corte:
mais sutilmente a reflexão 11 – Du rapport des hommes avec les animaux – que nos
faz pensar em uma admiração mútua entre La Fontaine e La Rochefoucauld; e
finalmente a mais longa de todas as reflexões, a 17 – Des évenements de ce siècle, na
258
259
FUMAROLI, M. Op. Cit., (1997), p. 104.
Cf. CONSTANT, J–M. Op. Cit.
108 qual narra acontecimentos e feitos absurdos de altivos monarcas e aristocratas. Essa
constatação entre os diferentes registros da escrita de La Rochefoucauld nos ajuda a
elucidar seu lugar de enunciação e, consequentemente, esclarecer seus objetivos,
interlocutores e alvos.
É possível observar a incidência de temas similares em textos políticos, ou
destinados a leitores que precisassem se adequar à norma do palácio, e aqueles
surgidos dos círculos mundanos. A arte de simular, emular e dissimular; o maintien
social (composição dos ares e gestos); a arte de bem falar (facilidade, brevidade etc.)
são alguns exemplos. Assim se passava também com temas como o acesso e
manutenção de segredos, a confiança e a confidencialidade, relacionados à prática do
silêncio. A diferença, menos do que temática, reside especialmente no espectro da
crítica e no matiz dos objetivos. Se políticos como Mazarino ou Retz viam no acesso
aos segredos uma ferramenta de exposição e fragilização dos súditos, moralistas como
La Rochefoucauld, Sablé e Jacques Esprit debatiam o mesmo assunto em
consideração a outro propósito: a manutenção da amizade. Uma abordagem que
condiz com o manadeiro de onde brotou: o preciosismo de salão.
X.a. Política: o secretário e o político
Destaquemos dois usos do segredo como prerrogativa para o exercício de
funções políticas para, em seguida, analisarmos o mesmo tema na literatura moralista.
Primeiramente, portanto, o segredo do secretário e do político.
1) Salvatore Nigro, na coletânea de caracterização e análise de tipos sociais
intitulada O homem Barroco, dedica seu capítulo ao ofício de secretário. 260 Seu
estudo se inicia justamente por um paralelo que aponta para a gênese da literatura de
secretários em paralelo com a d’O Cortesão de Castiglione. Segundo Nigro, se a
“cidade em forma de palácio” de Urbino foi o “cenário” para o perfeito cortegiano de
Castiglione, uma oficina tipográfica em Veneza, repleta de polígrafos profissionais,
foi “cenário implícito” de nascimento da literatura do perfeito segretario: ali surgiu O
príncipe, de Giovan Battista Nicolucci, que não demorou para criar uma geração de
260
NIGRO, Salvatore. “O secretário”. In. VILLARI, Rosario (Dir). Lisboa: editorial Presença,
1995, pp. 81 – 93.
109 êmulos,261 chegando a tornar-se em si um gênero: o da literatura de secretário, pois se
tratava de livros escritos por/para secretários.262
A simples etimologia da palavra “secretário” não podia deixar de atrair nosso
interesse para a função. Afinal, “seu nome provinha de ‘segredo’. Ou de secretum:
gabinete e arquivo, lugar onde se escreviam e guardavam os textos secretos”.263 Todas
as aptidões do secretário deviam ser desdobramentos de um profundo silêncio que
guardava hermeticamente os segredos do príncipe. Essa era sua virtude motora, sua
prerrogativa. Se a obra de Castiglione tratava do cortesão, do nobre ao príncipe e a
dama palaciana sob um olhar geral, idealizador, a literatura de secretário assumiu, em
seu conjunto, um tom mais focado, pragmático. Isso porque o secretário,
compreendido como “privado”, ou seja, aquele que tem “privança”, ou “frequentação
doméstica do Príncipe”, era também “privado de vontade própria a fim de melhor
servi-lo”:
264
suas funções se fundamentavam sobre uma gama de saberes
especializados que abrangiam praticamente todos os momentos de sua vida.
Um aspecto marcante desta literatura especializada são as metáforas utilizadas
pelos autores para demonstrar as aptidões necessárias ao secretário. Ele devia ser “um
anjo” gravitando em torno do astro do príncipe.265 Um fantoche ou autômato animado
apenas pelos interesses de seu príncipe. Uma ânfora hermética, segundo a analogia do
corpo-recipiente da palavra,266 com a boca selada.267 O secretário precisava conhecer
261
Idem, p. 83. Após O príncipe de Nicolucci em 1561, encontramos ainda os Il segretario do
plagiador de Nicolucci, Francesco Sansovino (1565), Giulio Cesare Capaccio (1589),
Torquato Tasso (1594), Guarini (1594) e Gramigna (1620), mas ainda os tratados Del buon
segretario, de Ingegnieri (1594), o da L’idea del segretario, por Zucchi (1606), o Ritratto del
privato politico cristiano, de Virgilio Malvezzi (1632), o tratado Del segretario, de Panfilo
Persico (1656) e assim a lista segue adiante.
262
PÉCORA, Alcir. “Apresentação: o livro do prudente secretário”. In. ACCETTO,
Torquato. Da dissimulação honesta. Tradução de Edmir Míssio. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. VIII.
263
NIGRO, S. Op. cit., p. 89.
264
PECORA, A. In. ACCETTO, T. Op. cit. (2001), p. IX.
265
Se as relações entre as camadas altas e baixas se fundamentavam em uma ordem social que
correspondia à ordem cósmica, o príncipe-Deus devia atrair e conduzir seus secretários-anjos
ao perfeito governo do mundo. NIGRO, S. Op. cit., p. 84.
266
“O preciosíssimo licor procura um vaso capaz, fundo, impenetrável, inteiro; se for pequeno
e estrito, o licor sai para fora das bordas”.ROSSI, P. apud NIGRO, S. Idem, p. 89.
267
“A um secretário convém a proteção de Harpocrátes, adorado pelas gentes do Egito, com o
dedo na boca simbolizando o silêncio”. ROSSI, P. apud NIGRO, S. Idem, p. 89.
110 a si mesmo e suas disposições humorísticas para melhor se conter. 268 A inabalável
segurança do segredo e das intenções bem guardadas no interior do peito do homem
habilidoso devia se assemelhar ao tesouro protegido em uma fortaleza. Ou melhor
ainda, e essa é outra metáfora utilizada por Accetto, assemelhava-se à segurança de
um edifício seguro: o palácio ou o templo.269
À mão cabia servir ao príncipe com a pena: o secretário era, antes de mais
nada, responsável pela escritura e conservação das missivas, fossem elas secretas ou
não. À boca cabia falar convenientemente; mas, mais ainda, cabia calar. Isso porque
ao secretário não convinha a frequentação dos espaços de conversação.270 O mais
temível dos limiares pelos quais o segredo podia escorrer era a boca. Pois as reações
corporais deixavam entrever as intenções traídas ou constrangimentos. Mas a temível
boca, “mediadora entre o interno e o externo”,271 podia entregar em detalhes opiniões,
planos, afetos e desafetos, palavras ofensivas. Em 1602, Tomaso Costo não somente
aconselhava seu neto que estava prestes a exercer a função de secretário a se manter
longe das conversações – porque não “não há melhor do que escapar o mais possível à
conversa, e agradar-me-ia sumamente que comesses sozinho no teu quarto, porque à
mesa, entre cortesãos, há normalmente muitas bisbilhotices e raramente honestas” –,
como também listava algumas palavras a serem evitadas, por serem potencialmente
tomada em duplo sentido “(...) como, por exemplo, fulano, vossa natureza, montar,
matéria e forma, fissura e outros, que podem ser interpretados no mau sentido”.272
De homens ou jovens em quem tanto confiavam e dos quais tanto dependiam
os príncipes esperava-se certa medida de reclusão: quanto mais os corpos fossem
subtraídos dos espaços de convívio, dos perigos da palavra desavisada e livre, dos
268
“Aquele em quem prevalece o sangue, a melancolia, a fleuma ou o humor colérico, tem
pouca disposição para dissimular. Onde há abundância de sangue ocorre a alegria, a qual não
sabe facilmente ocultar sendo demasiada aberta por sua própria qualidade. O humor
melancólico, quando desmedido, produz tantas impressões que dificilmente as esconde. O
excessivamente fleumático, por não fazer conta dos desprazeres, está pronto para uma
manifesta tolerância; e a cólera, que é desmesurada, é chama demasiado clara para
demonstrar os próprios sentidos.” ACCETTO, T. Op. Cit., p. 23.
269
“Admira-se, como grandeza dos homens de alta posição, permanecer nos limites dos
palácios, ali nas câmaras secretas, cercados de armas e homens a guardar suas pessoas e seus
interesses, e não obstante é claro que, sem tanto gasto, todo homem pode, ainda que exposto à
vista de todos, esconder seus negócios na vasta e ao mesmo tempo secreta casa de seu
coração, pois ali costumam existir aqueles templos serenos (...)”. Idem, p. 80.
270
NIGRO, S. Op. Cit., p. 87.
271
Idem, p. 89, (Grifo no original).
272
COSTO, T. apud NIGRO, S. Idem, pp. 86–87.
111 encontros aos quais a urbanidade constrange, melhor. Mas uma vez saídos da
segurança do gabinete, do secretum, cabia a eles a discrição e a dissimulação.
Salvatore Nigro constata que “ninguém retratava o secretário”, que “não era possível
fazê-lo”. O secretário era, por seu corpo, gestos, vestuário e falar, como sublinha
Nigro, “empurrado para a sombra”.273
Assim, nos espaços de convívio político (reuniões de serviçais ou jantares
palacianos), a presença do secretário era como que delegado, ou seja, ele não
representava a si, mas o governante, o príncipe. Diferentemente dos salões das belas
conversações onde devia haver certa igualação dos convivas, era em circunstâncias
análogas a esta que o secretário devia ser apenas mão, pena e boca, o autômato do
príncipe. Diferente do otium da conversação galante, em que o locus amoenus exige a
honestidade, as negotia das quais era encarregado o secretário exigiam atenção às
intrusões alheias que podiam dar a perder os desígnios do príncipe. Neste sentido, o
exercício do segredo pelo secretário é a prática mais primordial de sua sujeição:
adquirindo a privança, ele deveria abdicar de uma parcela de sua vida social. O
segredo hierarquiza.
2) O Breviário dos políticos é a conhecida compilação de reflexões e técnicas
elaborada pelo cardeal Giulio Mazarino. Destinado aos políticos – ocupados em lidar
com homens do Estado, da corte, das altas esferas da sociedade, bem como seus
serviçais –, o Breviário é composto por máximas, axiomas e sentenças breves, mas
também por pensamentos mais extensos sobre quais o cardeal se deteve. De uma
forma ou de outra, a formulações do cardeal divididas em duas grandes partes,
distinguem-se igualmente como que em dois grupos de reflexões: de um lado as mais
generalizantes, nas quais o cardeal delineou caracteres morais – o tratante, o
efeminado, o glutão, o novo rico –, circunstâncias comuns – públicas e privadas como
conversações, conselhos, quando se escreve, jantares – e considerações gerais; do
outro, há formulações de natureza mais prática, nas quais se apresentam desde
métodos de manipulação – como extrair segredos e opiniões, como manter boa
reputação etc. – a técnicas de si, de aperfeiçoamento subjetivo tendo em vista o
desenvolvimento de aptidões específicas.
273
Idem, pp. 86–89.
112 Se logo na “Introdução” ao breviário o cardeal Mazarino deixa muito claro
que os preceitos sobre os quais irá discorrer pertencem ao universo das práticas ou
artes simulatórias e dissimulatórias centrais da tratadística civilizatória, não
surpreenderá a abundante presença de prescrições acerca da apresentação social do
político no que diz respeito ao controle de seus gestos, expressões e palavras.274 Se
um dos pontos centrais do sistema de autodefesa traçado por Mazarino constitui no
acesso à verdade do outros, na conquista e manipulação de seus segredos e afetos,
essa ânsia de onisciência que era condição do exercício do poder só poderia se fazer
lograr pelo exercício calculado da discreta astúcia.
Acerca da temática do silêncio, podemos agrupar em três grupos as
prescrições de Mazarino: 1) as formulações sobre a contenção da fala, ou o falar
pouco, 2) as formulações sobre os assuntos e situações em que devia silenciar e 3) as
formulações que concernem à manipulação e uso dos segredos, central no breviário
do cardeal Mazarino.
A terceira, que nos interessa aqui e que consiste em um grande conjunto da
formulações sobre o segredo, é um eixo capital do breviário. Central na construção da
ética política de Mazarino, o domínio dos segredos representa o terreno sobre o qual o
político podia dominar os outros, conquistando-os, ou se preservar, escondendo-os.
Pelo segredo era possível realizar os próprios cálculos, manipular interesses, articular
cabalas de aliados, descobrir e afastar adversários. De forma geral, as formulações a
respeito do segredo se desdobram em duas chaves: a) descobrir os segredos dos outros
e b) não dar a descobrir os próprios.275
O caminho mais aconselhado para descobrir os segredos dos outros é a
espionagem, pois descobri-lo pessoal e diretamente poderia implicar em certa forma
de comprometimento e responsabilidade dos quais o político deveria se distanciar.
Mas Mazarino permanece ambíguo nesse ponto. Se o axioma 15, ao fim do Breviário,
adverte para que “não deixes um segredo se aproximar de ti, não mais que um
prisioneiro evadido que teria jurado degolar-te”, 276 nos surpreendemos com o
274
MAZARIN, Jules. O breviário dos politicos. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34,
1997, p. 35.
275
Idem, p. 41: “deves ter informações sobre todo o mundo, não confiar teus próprios
segredos a ninguém, mas colocar toda a tua perseverança em descobrir os dos outros”. Na p.
200: “[Axioma 9] Deves saber tudo sem jamais dizer nada, mostrar-te afável com todos e não
dar tua confiança a ninguém” e na p. 205: “Jamais confies segredos a ninguém”.
276
Idem, 201. Cf. p. 170. “Acolhe com indiferença as acusações, mesmo pronunciadas pelos
teus. Quanto aos segredos, recusa ouvi-los, ou senão guarda-os com total fidelidade”.
113 conselho de que “se a ocasião se apresentar, [poderás] imitar os médicos, misturando
ao alimento destinado a alguém um daqueles filtros que provocam a euforia e soltam
a língua”.277 O uso dos serviços de discretos espiões era salutar: pressupunha-se a
capacidade de discernir os homens capazes de guardar segredos, na escolha de aliados
e lacaios.278 Dos servidores escolhidos pelo político pressupunha-se também a aptidão
de guardar segredos, especialmente no caso do secretário, com o qual compartilhava
sinais279 e estratagemas, documentos e “missões”. Em que medida o italiano Giulio
Mazarino – cientista do segredo – fora influenciado pela literatura de secretário?280
As funções delegadas ao secretário de Mazarino, entretanto, divergem em
alguns pontos daquelas analisadas por Salvatore Nigro. Se Nigro enfatiza a etimologia
da palavra secretário, que remete ao secretum onde eram mantidas as cartas do
príncipe, e portanto, o papel dos secretários em escrever missivas e cartas cifradas ou
não, Mazarino aconselhava que a maior parte dos documentos secretos fosse escrita
pelo próprio político, evitando-se possíveis indiscrições. Se necessário ditá-los, que
usasse códigos de modo discreto, compreensíveis a todos, mas ambíguos o bastante
para não levantar suspeitas (como os utilizados por Trittenheim em sua
Poligrafia281).282
277
Idem, p 46.
Os galantes mulherengos e beberrões não eram vistos como seguros; os excessos aos quais
estavam associados dava a imagem do transbordamento para além dos limites de si, de
descontrole que transcende as fronteiras do próprio corpo e que remete à euforia: “uns são
escravos de suas amantes, os outros, após beberem, não conseguem se impedir de falar a torto
e a direito”. Idem, p. 47.
279
Idem, pp. 159–160: “Para circunstâncias como essa [em que discutem contigo], podes
igualmente ter previsto que, a um sinal combinado, um de teus secretários te traga uma carta;
após tê-la aberto, exclamarás que te anunciam uma excelente notícia e assumirás um ar
maravilhado que desarmará teu adversário; ou então diz que é forçado a te ocupar de imediato
de uma questão urgente”
280
Questionamo-nos pois a escolha deste tipo de servidor toma a atenção do ministro italiano.
“Eis como te assegurares de que alguém saberá guardar teus segredos. Escolhe primeiro um
homem a quem farás uma confidência sob promessa de sigilo. Depois faz o mesmo com um
segundo. A seguir, coloca um terceiro a par de teu estratagema, encarrega-o de reunir os
outros dois e de fazer alusão, durante a conversa, ao segredo que lhes confiaste. Poderás
assim avaliar o caráter deles e saber qual dos dois te trairá primeiro. Se, tomando
conhecimento de que os três são depositários do mesmo segredo, um dos dois permanece
calado, saberás que lidas com uma pérola rara e poderás com segurança fazer dele teu
secretário”. Idem, p. 56. Cf. p. 50: “Poderás facilmente julgar a capacidade de um homem de
guardar um segredo se ele não te revela os segredos de outrem sob pretexto de amizade. Um
excelente método é enviar-lhe um homem teu que lhe faça confidências, para ver se ele vem
te contá-las em seguida, ou que procure fazê-lo revelar segredos que lhe confiaste”.
281
A edição consultada traz nota acerca de Johannes Tritemius (ou Tritheim, 1460–1516),
teólogo beneditino abade de Spanheim, homem de letras estudioso da cabala e alquimia, mas
278
114 Contenção, “silenciamento” e segredo formam três grupos de formulações sob
as quais podemos reunir o pensamento do cardeal acerca do silêncio. Cada um deles
participa do conjunto de técnicas desenvolvido no âmbito da sociedade de corte na
qual a participação ativa da sociedade, nas conversações, reuniões, conselhos e
menores conversas, constituía o meio privilegiado de ação política. A formação de
redes de influência, a desarticulação de cabalas opositoras, o desmascaramento dos
interesses alheios, a atração dos favores dos príncipes e poderosos exigia tanto o
rigoroso estudo livresco pelo qual se aprendia caracteres, artimanhas retóricas e
fórmulas discursivas, quanto a prática constante, de si e da sociedade, de modo que se
pusesse em prática tais preceitos. Entre máximas generalizantes que vão da
fisiognomonia à política, referências eruditas de livros antigos e modernos, métodos
pontuais de ação voltados aos outros e ao cuidado si, Mazarino sintetizou breve e
formalmente a moral prática do que se tornava a civilidade política na França do
Antigo Regime, cujas articulações se dividiam entre uma corte cada vez mais
populosa e círculos de convívio aristocrático cada vez mais difundidos: simular e
dissimular.
X.b. Honnêteté: confidência e amizade na conversação
Há uma reflexão do duque de La Rochefoucauld que se detém sobre o tema do
segredo. É a reflexão 5, De la confiance. Nela, o duque levanta um problema moral
relacionando o ideal de honestidade à escolha entre a amizade e a confidencialidade.
A abordagem se diferencia dos usos políticos acima analisados. Se em Mazarino, ou
na literatura do secretário, o uso do segredo é ditame imprescindível para fazer lograr
algum projeto político, sujeitando a si mesmo (no caso do secretário), sujeitando os
outros (no caso do político); La Rochefoucauld abordou o mesmo tema tendo em vista
um dilema essencialmente moral. Quem é mais honesto: quem reforça uma amizade
sem maiores detalhes acerca dos métodos da Poligrafia e universal escrita cabalística (1518).
Idem, pp. 82, n. 3.
282
Idem, pp. 82-83. Mesmo que não estivesse tratando da escrita, ainda vale aqui relacionar o
pensamento citado acima a outro no qual Mazarino adverte, de modo semelhante, contra os
perigos de ser descoberto como astucioso – e que nos remete vagamente ao “não usar sempre
a máscara” de Accetto: “Não adotes como regra absoluta esconder tua emoção quando te
sucede uma infelicidade, pois, sempre que permanecesses silencioso, as pessoas deduziriam
automaticamente que a sorte acaba de te golpear”.
115 revelando um segredo ou quem reforça uma amizade mantendo um segredo? Pois um
ganha com a abertura confidencial; outro com a discrição.
O duque inicia seu argumento diferenciando sincérité [sinceridade] e
confiance [confiança]. Segundo o moralista, a sinceridade consistiria em uma
“abertura de coração”, na “repugnância de se esconder”, “desejo de desforrar seus
defeitos”, diminuindo-os pelo “mérito de os confessar”.283 “É o amor da verdade”.284
Por sua vez, a confiança não se permitiria tal liberdade, pois suas regras são mais
restritas: ela pede “mais prudência e contenção” e nem sempre podemos confiar
aquilo que sabemos. O motivo é simples: aquilo que está sob a possibilidade da
sinceridade é de nossa restrita responsabilidade; já aquilo que é passível de ser
confiado, mistura os interesses dos outros aos nossos. 285 Em outras palavras: é
daquele que é sincero confessar suas faltas e verdades, como é daquele que é
confiável não revelar o que diz respeito aos outros. A confiança é relacional.
Como bem indicaram os editores da Pléiade, Jacques Esprit retomou
posteriormente o argumento de La Rochefoucauld. Dizemos posteriormente pois a
formulação “la sincérité est une ouverture de coeur”, presente na reflexão que é
póstuma, foi reformulada na máxima de número 62 da edição de 1678,286 mas já
estava presente na edição holandesa de 1664:
A sinceridade é uma natural abertura de coração: encontra-se eu
pouquíssimas pessoas: a aquela que se pratica normalmente, não passa de
uma fina dissimulação, para atingir a confiança dos outros.287
Neste estágio de seu pensamento, La Rochefoucauld não teria ainda diferenciado
sinceridade e confiança, termos que aparecem lado a lado na máximas? Em Jacques
Esprit a diferenciação tampouco aparece. O pensamento é reelaborado de modo a
colocar ainda mais ênfase na instrumentalidade da sinceridade.
A sinceridade é uma abertura de coração que tende a abrir-nos o de nossos
amigos ou uma franqueza habilidosa... ou o temor de se passar por
velhaco, ou uma inclinação natural em dizer o que se pensa, ou a ambição
283
LA ROCHEFOUCAULD. Pl, p. 510.
Idem, Ibidem. Pense-se aqui na gravura do frontispício, cuja legenda à figura do anjo que
desmascara o busto de Sêneca diz “L’amour de la vérité”, criando assim uma inegável
relação entre o dizer sincero e o ódio aos artifícios mascarantes.
285
Idem, p. 510–511. “(…) il ne s’agit pas de nous uniquement, et nos interets sont mêlés
d’ordinaire avec les interets des autres”.
286
Idem, p. 411. “La sincérité est une naturelle ouverture du cœur: on la trouve en fort peu de
gens: et celle qui se pratique d’ordinaire, n’est qu’une fine dissimulation, pour arriver à la
confiance des autres”. (Tradução livre)
287
Idem, p. 329.
284
116 delicada de que tenham uma consideração cega por nossas palavras. Nos
falsos sinceros, a sinceridade é uma falcatrua hábil.288
Em todo caso, ainda que – e isso é raro de se dizer – La Rochefoucauld pareça mais
“otimista” do que Esprit no que concerne à sinceridade, os dois partilham de uma
mesma premissa: a de que é difícil para um fraco ser verdadeiramente sincero, mas
ele o pode ser viciosamente.289 Por lidar com um domínio que diz respeito apenas a si
mesmo, a sinceridade exigiria mais força moral para se expor – “Les personnes
faibles ne peuvent être sincères” 290 –, enquanto a confiança maior força para a
contenção. Ela precisa da retenue [recato, retenção]; justesse [justeza] para não
entregarmos os nossos amigos.291 A confiança pode ser objeto de barganha social: ela
agrada quem a recebe, é um tributo que pagamos ao mérito de alguém, o depósito
feito em sua fé, a concessão de um direito sobre nós mesmos e uma forma de
dependência à qual nos sujeitamos voluntariamente,292 pois uma vez que algo é
confiado a nós, ou confiamos algo a alguém, gera-se um vínculo novo de
responsabilidades. O que normalmente não seria um problema em si, caso não fosse
interesseiro. Cada parte tira sua vantagem.293
Ciente do tipo de objeção que receberia, o duque justifica que este tipo de
crítica não visa destruir a confiança, “si nécessaire entre les hommes, puisqu’elle est
le lien de la société et de l’amitié”. Seu único objetivo – e aqui voltamos a dois dos
288
Citação de ESPRIT In. LA ROCHEFOUCAULD. Pl, p. 818, n. 5. “La sincérité est une
ouverture de cœur qui tend à nous ouvrir celui de nos amis ou une franchise habile… ou une
crainte de passer pour fourbe, ou une inclination naturelle à dire ce que l’on pense, ou une
ambition exquise qu’on ait une déférence aveugle pour nos paroles. Dans les faux sincères, la
sincérité est une tromperie fine”. (Tradução livre)
289
Máximas 609: “Nous n’avouons jamais nos défauts que par vanité” ; 327 : “Nous
n’avouons de petits défauts que pour persuader que nous n’en avons pas de grands” ; e 24 :
“Nous avouons nos défauts, pour réparer le préjudice qu’ils nous font dans l’esprit des autres,
par l’impression que nous leur donnons de la justice du nôtre”.
290
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 446. Articulada ao tema da honestidade, a máxima 202
também trata da sinceridade: "Les faux honnêtes gens sont ceux qui déguisent leurs défauts
aux autres et à eux-mêmes ; les vrais honnêtes gens sont ceux qui les connaissent
parfaitement, et les confessent”.
291
Idem, p. 511.
292
Idem, Ibidem.
293
A máxima 116, que na verdade trata da liberalidade e interesse em dar conselhos, nos
auxilia aqui o entendimento: “Rien n’est moins sincère que la manière de demander et de
donner des conseils : celui qui en demande paraît avoir une déférence respectueuse pour les
sentiments de son ami, bien qu’il ne pense qu’à lui faire approuver les siens, et à le rendre
garant de sa conduite ; et celui qui conseille paye la confiance qu’on lui témoigne d’un zèle
ardent et désintéressé, quoiqu’il ne cherche le plus souvent, dans les conseils qu’il donne, que
son propre intérêt ou sa gloire”. Idem, p. 418. (Grifo nosso)
117 valores mais alegados pelo duque – é torná-la “honnête et fidèle” [honesta e fiel].294
Torná-la sempre verdadeira e sempre prudente, de modo que não tenha fraqueza
[faiblesse], nem interesses.295 Qual seria a fraqueza de que fala La Rochefoucauld?
Poderíamos conjecturar que se trata da adinamia inerente a uma relação em que há um
ponto-fraco, como um segredo o qual todos assediem. A máxima 239, contudo,
oferece uma chave mais plausível para a interpretação:
Nada afaga mais o nosso orgulho do que a confiança dos grandes, pois
nós a vemos como efeito de nosso mérito, sem considerarmos que
normalmente ela vem mais da vaidade, ou da impossibilidade de manter o
segredo.296
A faiblesse é, no limite, a impuissance [impotência]. A palavra foge dos
limites do corpo por imprudência ou falta de controle. Essa motivação viciosa, ou
antes, fruto de uma debilitação moral desprovê a relação de confiança e
confidencialidade de seu potencial virtuoso. A guarda dos segredos só pode ser
honesta e prudente se suas motivações as mais profundas o forem também. É o que
nos comprova a sequência do argumento:
Muitas vezes, confia-se mais por vaidade, por vontade de falar, pelo
desejo de conquistar a confiança dos outros, e para fazer troca de
segredos.297
Por mais seguros que sejamos, a recíproca nem sempre se aplica, o que gera
uma situação desproporcional de confiança. É o caso de quando alguém nos confia
seus segredos – certos que somos seguros – e esperam que em contrapartida
retribuamos o voto de fé, confiando-lhes nossos segredos. La Rochefoucauld ensina,
294
Idem, p. 511.
Idem, Ibidem.
296
Idem, pp. 435–436. “Rien ne flatte plus notre orgueil que la confiance des grands, parce
que nous la regardons comme un effet de notre mérite, sans considérer qu’elle ne vient le plus
souvent que de vanité, ou d’impuissance de garder le secret”. (Tradução livre, grifo nosso)
297
Idem, p. 511. “On se confie plus souvent par vanité, par envie de parler, par le désir de
s’attirer la confiance des autres, et pour faire un échange de secrets”. (Tradução livre). O
argumento já havia sido desenvolvido quando da edição de contrafação holandesa de 1664:
“Rien ne nous plaît tant que la confiance des grands, et des personnes considérables par leurs
emplois, par leur esprit, ou par leur mérite. Elle nous fait sentir un plaisir exquis, et élève
merveilleusement notre orgueil, parce que nous la regardons comme un effet de notre fidélité.
Cependant nous serions remplis de confusions, si nous considérions l’imperfection et la
bassesse de sa naissance : car elle vient de la vanité, de l’envie de parler, et de l’impuissance
de retenir les secrets. De sorte qu’on peut dire, que la confiance est un relâchement de l’âme,
causé par le nombre et par le poids des choses dont elle est pleine”. Idem, p. 327. (Grifos
nossos). Ainda sobre esta mesma fraqueza, a maxima 584: “Comment prétendons-nous qu’un
autre garde notre secret, si nous ne pouvons le garder nous-mêmes ?”, Idem, p. 490.
295
118 nesse caso, um pequeno artifício de fazer legères confidences.298 No caso oposto, o de
termos uma pessoa de cuja fidelidade estamos convencidos “pela escolha e pela
estima”, devemos manter uma postura semelhante de guarda. Nem tudo deve ser
revelado. O que nos concerne é confessável. Não devemos esconder nossos defeitos,
segundo as máximas 206 – “C’est être honnête homme que de vouloir être toujours
exposé à la vue des honnêtes gens” – e 202 – “Les faux honnêtes gens sont ceux qui
déguisent leurs défauts aux autres et à eux-mêmes ; les vrais honnêtes gens sont ceux
qui les connaissent parfaitement, et les confessent”. Tampouco devemos exagerar
nossas qualidades: “Le vrai honnête homme est celui qui ne se pique de rien”.299 E
assim o duque definia, difusamente, suas prescrições morais quanto à fala.
Voltando à reflexão, o terreno interdito é o do segredo dos outros. Por não
poderem ser revelados, normalmente fazemos “meia-confidência”, o que constrange
quem faz e não satisfaz quem recebe. Isto, segundo o duque, autorizaria o interlocutor
a se sentir curioso de saber a questão em sua totalidade, o que motiva sua indiscrição
e intrusão. A curiosidade, longe de ser uma simples “amor pela novidade”, é
interesseira.300 Melhor do que remediar a situação, “Il est plus sûr et plus honnête de
ne leur dire rien, que de se taire quand on a commencé à parler”.301 No limite, lemos
aqui uma aplicação bem mais exemplificada da máxima 413, o principal axioma sobre
o silêncio escrito por La Rochefoucauld:
O silêncio é o partido mais seguro de quem desconfia de si mesmo.302
Fora isso, são traçadas outras regras, segundo a própria terminologia do
moralista. Uma delas é ter em mente – como uma máxima – que, quanto mais
importantes são as coisas que nos foram confiadas, mais necessárias são a prudência e
a fidelidade. Para isso, deve-se formar um julgamento adequado quanto à natureza e
importância do segredo, pois não consultamos ninguém a não ser nós mesmos sobre
298
Idem, p. 511.
Máxima 203. Idem, p. 430.
300
Máxima 299: “La curiosité n’est pas, comme l’on croit, un simple amour de nouveauté : il
y en a [une] d’intérêt, qui fait que nous voulons savoir les choses pour nous en prévaloir ; et il
y en a une autre d’orgueil, qui nous donne envie d’être au-dessus de tous ceux qui ignorent les
choses, et de n’être pas au-dessous de ceux qui les savent”. Idem, pp. 377–378.
301
Idem, p. 511.
302
Idem, p. 413. “Le silence est le parti le plus sûr de celui qui se défie de soi-même”.
(Tradução livre)
299
119 aquilo que deve ou não ser dito. Como se todos soubessem que um segredo é um
segredo, portanto irrevelável, mas poucos aplicam esse rigor, como se considerassem
algo confidenciado menos digno desse estatuto. E sobre a natureza dos segredos,
novamente uma formulação lapidar, “il y a peu de secrets de tous les temps et le
scrupule de les révéler ne dure pas toujours”.303
No penúltimo parágrafo da reflexão o dilema é articulado claramente. A
maioria das relações de amizade são sedimentadas em relações de confidência. Isso
acontece pela convivência frequente que cria aberturas e liberdades. A mesma
convivência gera, também, o conhecimento recíproco dos comportamentos e atitudes
dos envolvidos. De tal forma, que os amigos são capazes de perceber quando algo nos
inquieta, no caso de termos que manter sigilo. Nossa inquietação contagia o amigo
que, por sua vez, se inquieta igualmente, ora por preocupação e ora por curiosidade,
passando a nos constranger à fala ou mesmo bisbilhotar nossos sentimentos. De nossa
parte, sentimo-nos impelidos a revelar aquilo que nos pesa e tendemos a não hesitar,
já que o amigo é reconhecido por fidelidade. Não obstante, havíamos prometido não
revelar o segredo a ninguém. O que fazer? Deve-se reafirmar a amizade revelando o
que se guarda? ou deve-se reafirmar a “fé do segredo” [la foi du secret], ainda que
isto custe a amizade “traída” em sua esperança de abertura total?304 A situação é
grave, mas La Rochefoucauld responde o dilema de forma simples.
Este estado é, sem dúvida, a mais rude prova de fidelidade; mas ele não
deve abalar um homem honesto: é então que lhe permitido preferir-se aos
outros; seu primeiro dever é indispensavelmente o de conservar o depósito
intacto, sem medir as consequências: ele deve não somente gerir suas
palavras e tons, deve ainda gerir suas conjecturas, e nunca mostrar o que
for, em seus discursos ou em seu ar, que possa orientar o espírito dos
outros àquilo que ele não quer dizer.305
Autocontrole corporal e moral. Corporal, pois o honnête homme é hábil o
bastante para modular seu tom de voz, gestos, expressões e outros sinais físicos que
denunciem o segredo. É o que diz a máxima 249: “Il n’y a pas moins d’éloquence
dans le ton de la voix, dans les yeux, et dans l’air de la personne, que dans le choix de
303
Idem, p. 512.
Idem, Ibidem.
305
Idem, Ibidem. “Cet état est sans doute la plus rude épreuve de la fidélité ; mais il ne doit
pas ébranler un honnête homme : c’est alors qu’il lui est permis de se préférer aux autres ; son
premier devoir est indispensablement de conserver le dépôt en son entier, sans en peser les
suites : il doit non seulement ménager ses paroles et ses tons, il doit encore ménager ses
conjectures, et ne laisser jamais rien voir, dans ses discours ni dans son air, qui puisse tourner
l’esprit des autres vers ce qu’il ne veut pas dire”. (Tradução livre, grifo nosso)
304
120 paroles”.306 Moral, pois é aqui que o controle da palavra adentra o brio do honnête
homme que devia ser capaz de domar as paixões que o impulsionassem a agir de
forma contrária a seus imperativos categóricos. E moral novamente, pois o honnête
homme de La Rochefoucauld vai sempre mais além do controle dos efeitos externos
de suas ações. Tornar-se honesto é operar uma profunda mutação em si. Por isso era
preciso controlar as próprias conjecturas, ou seja, ser apto a construir julgamentos e
ações sólidos sobre si, os outros e a natureza dos segredos.307
A desgraça de Jacques Esprit com o chanceler Séguier não seria um exemplo
de vivência deste dilema muito próximo ao duque de La Rochefoucauld? Vimos que
de 1639 a 1644 Jacques Esprit serviu à casa de Coislin-Séguier, cuidando primeiro
dos assuntos do chanceler e depois de sua filha. Quando da morte do marido desta,
sobrinho de Richelieu, a viúva de 23 anos se casou secretamente com o filho da
marquesa de Sablé, Guy de Laval Boisdauphin. Isto era escandaloso, especialmente se
tratando de famílias tão importantes, logo, zelosas pela manutenção de seu status.
Séguier – considerando que alguém tão próximo às duas casas envolvidas, os SabléLaval e os Coislin-Séguier, não poderia desconhecer o projeto – dispensa Esprit de
seu serviço, tirando-lhe o cargo e a pensão. Ora, considerando que Esprit realmente
sabia do acontecimento – o que é mera conjectura –, o dilema do acadêmico teria sido
outro senão o mesmo apresentado na reflexão de La Rochefoucauld? É evidente que
não havia aqui uma relação de amizade em sentido estrito, mas em todo caso, Esprit
devia escolher entre a fidelidade aos noivos ou ao seu senhor. Não importava qual
fosse sua conduta: qualquer uma implicaria em traição. Escolheu manter o segredo e
caiu em desgraça. Mas isto é apenas uma conjectura. La Rochefoucauld teria
considerado este caso ao escrever a reflexão?
O argumento do último parágrafo vai no sentido de afirmação do honnête
homme em relação a seus amigos. Não sempre, nem em todas as circunstâncias. A
“força” [force] e a “prudência” [prudence] são necessárias nas circunstâncias em que
os amigos se valem da confiança recíproca para exercer sua “tirania” [tyrannie] sobre
nós. Os limites da amizade são bem traçados, circunscrevendo os domínios
correspondentes ao eu e ao outro.
306
Idem, p. 437.
Do verbete “conjecture” do Dictionnaire de l’Academie Française: “CONJECTURE. s. f.
Jugement probable, opinion que l'on fonde sur quelques apparences touchant quelque chose
obscure & incertaine”.
307
121 Nunca se deve deixá-los estabelecer este direito [de amizade] sem
exceção: há ocasiões e circunstâncias que não são de sua jurisdição (...).308
Não seriam a polidez e as normas de civilidade, que embasam a aproximação dos
sujeitos pelo reconhecimento e manutenção da distância, as práticas cruciais no
estabelecimento desse tipo de amizade? O descumprimento a esse parâmetro de
respeito serviria de alerta para o honnête homme cioso de seus compromissos:
(...) mas se [os amigos] continuarem injustos, deve-se sacrificar a amizade
ao dever, e escolher entre dois males inevitáveis, dos quais um [perder a
amizade] se pode reparar, e outro [revelar o segredo e ser tomado por
incauto] não tem remédio.309
É crucial não lermos essa conclusão com uma defesa do indivíduo em
detrimento da amizade; de um eu elevado sobre os outros. Todo o pensamento de La
Rochefoucauld analisado até aqui visa, pelo contrário, criticar falsas virtudes em
sociedade como meio de propor uma nova moralidade. Esta transformação era, em
essência, mundana. Não devemos esquecer: quando La Rochefoucauld diz que diante
do dilema de preservar o segredo ou revelá-lo é permitido ao honnête homme preferirse a si mesmo [lui se préférer aux autres], ele pressupõe na existência do segredo um
ligame: a associação entre revelador e depositário, onde “nos intérêts sont mêlés
d’ordinaire avec les intérêts des autres”.310 Ou seja: não se lê na reflexão a profissão
de fé no indivíduo, o que seria anacrônico, mas a profissão de fé na fidelidade.
X.c: Religião: a (falsa) confidência humana e a confidência do cristão
Esta abordagem foi retomada por Jacques Esprit em La Fausseté des vertus
humaines, mas sob uma perspectiva diferente – cristã, de matiz jansenista – e com
ênfases distintas, se partirmos de reflexões similares como “De la confiance” e “La
fidelité du secret”. Para Esprit, três motivos impulsionavam o homem à fala e em
especial à confidência.
308
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 512. “On ne doit jamais leur laisser établir ce droit sans
exception : il y a des rencontres et des circonstances qui ne sont pas de leur juridiction (…)”.
(Tradução livre)
309
Idem, Ibidem. “(…) mais s’ils demeurent injustes, on doit sacrifier leur amitié à son devoir,
et choisir entre deux maux inévitables, dont l’un se peut réparer, et l’autre est sans remède”.
(Tradução livre)
310
Idem, p. 511.
122 1. Como em La Rochefoucauld, um deles era de natureza social: a revelação
de segredos reforça o vínculo entre os homens. Pois a) a fidelidade “est une voye
honnête pour parvenir”;311 b) guardar o segredo de alguém confere status de privança
e confidência, ou seja, promove a intimidade; c) é uma via constante, pois enquanto
houver o segredo, haverá a contribuição mútua entre os envolvidos (confia-se vida,
honra, liberdade);312 e d) se não temos acesso a informações sigilosas da vida dos
outros, atrasamo-nos em relação a eles: é-se como que excluído dos negócios do
mundo.
2. Motivo “físico”. O corpo teria necessidade da fala, como da medicina. Falar
seria algo terapêutico para o coração humano que transborda. O homem é imperfeito
o bastante para não conter em si a palavra. A mesma metáfora é evocada duas vezes,
em dois momentos diferentes do longo tratado. Citando Guarini (poeta
constantemente aludido por Esprit), o coração humano “est un vaisseau trop petit pour
pouvoir contenir tout ce qui luy vient du dehors & tout ce qui naît de luy-même”.313
Além disso, às vezes, as pessoas “ressemblent à ses vaisseaux felés qui s’enfuyent à
mesure qu’on les remplit”.314 Corpo-ânfora, uma das mais recorrentes metáforas sobre
a autocontenção e o governo de si. Este, como o próximo argumento ressaltam o
caráter invariável e, por assim dizer, inato da fraqueza humana, o que propulsa à fala.
3. Motivo moral: a frivolidade humana. O homem sente-se compelido, por
natureza, seja pelo prazer da fofoca, seja por fraqueza de espírito, seja pelos dois: “la
crainte de s’ennuyer, l’attrait de la nouveauté, & la pente naturelle qu’on a à se
communiquer”.315 A prova disso, exemplifica Esprit, é que nem o “homme du monde
311
ESPRIT, Jacques. La Fausseté des Vertus Humaines. Tomo 1. Paris: Guillaume Desprez,
1678, p. 590.
312
Idem, Tomo 1, pp. 193–194. “Il est si certain qu’on traite bien ceux en la fidélité desquels
on se repose par le besoin qu’on en a, que l’on n’a jamais plus de considération pour eux que
lors qu’on a plus d’intérêt de s’assurer de leur fidélité. C’est pourquoy il n’est point de
confidents que les hommes ménagent avec tant de soin, que ceux qui peuvent devenir leurs
accusateurs & nuire à leur réputation & à leurs affaires. Cela se voit en ce que les mauvais
sujets qui ont conspiré contre l’État, ont toute leur vie de grands égards pour ceux à qui ils ont
été forcés de découvrir leurs desseins, & qu’ils en traitent beaucoup mieux les domestiques
dont ils se sont servis pour donner des rendez-vous, & qui ont été témoins de leurs
conférences secrètes”.
313
Idem, pp. 581–582.
314
Idem, pp. 185–186.
315
Idem, pp. 186–187.
123 le plus froid & et le plus fermé” resiste ao teste de uma longa viagem. Tudo se revela
durante o percurso na tentativa de remediar o tédio.316
Fundamentado sobre essas três premissas, o problema da confidencialidade
para Esprit consistiria no acúmulo de fraquezas e vícios. Somos impulsionados à fala
por motivos pecaminosos e somos impelidos à fidelidade por razões estritamente
humanas.317 Em nenhum momento se expressa qualquer tipo de virtude verdadeira.
Toda a astúcia – cuja a habilidade seria erroneamente tida por virtude – positiva
apenas a constituição original do humano: a de ser decaído. Na contramão dos
defensores das artes simulatórias e dissimulatórias, Esprit revela a contradição do
enunciado que louva a astúcia:
(...) não são pessoas fracas sem forças para reter o que dizemos em último
segredo, nem levianos que saem revelando indiferentemente a todo o tipo
de gente; eles são infiéis judiciosos & prudentes distribuidores de
segredos.318
Contra qualquer instrumentalização do segredo, Esprit denuncia os falsos
virtuosos da Corte –
o que deveríamos pensar & dizer das falsas confidências que fazem os que
estão nas intrigas da Corte, para descobrir reciprocamente seus desígnios,
ou para escondê-los; para alimentarem uns aos outros com desconfianças
de suas mais fieis amizades, & com as quais não têm outro fim senão o de
se enganarem319
316
A recomendação em não se falar durante as viagens, em carros compartilhados: este já era
um topos antes do tratado de Esprit? ou os moralistas do XVII são os responsáveis por esse
tipo de advertência. Questionamo-nos pois este tema seria retomado um século e meio depois
na novela de Honoré de Balzac, Uma estreia na vida. “Écoute, mon Oscar, dit-elle en
reprenant aussitôt sa voix tendre, tu as de la propension à causer, à dire tout ce que tu sais et
tout ce que tu ne sais pas, et cela par bravade, par un sot amour-propre de jeune homme; je te
le répète, songe à tenir ta langue en bride. Tu n’est pas encore assez avancé dans la vie, mon
cher trésor, pour juger les gens avec lesquels tu vas te rencontrer, et il n’y a rien de plus
dangereux que de causer dans les voitures publiques. En diligence, d’ailleurs, les gens comme
il faut gardent le silence”. BALZAC, Honoré. Un Début dans la Vie. Paris: Gallimard, 2011,
pp. 55–56.
317
Há “trafic de secrets comme il y a des Marchands qui font trafic de perles”. ESPRIT, J.
Op. Cit., Tomo 1, pp. 586–587. Lembre-se que no mito bíblico, o pecado original é
concretizado por uma cadeia de fala e escuta que vai da serpente a Eva e de Eva a Adão.
318
Idem, pp. 589–590. “(...) ce ne sont pas des gens foibles qui n’ayent pas la force de retenir
ce qu’on leur a dit dans le dernier secret, ni des étourdis qui l’aillent révéler indifféremment à
toute sorte de monde ; ce sont des infidèles judicieux & de prudens dispensateurs des
secrets”. (Tradução livre, grifo nosso)
319
Idem, p. 196. “que doit-on penser & que doit-on dire des fausses confidences que se font
ceux qui sont dans les intrigues de la Cour, pour découvrir réciproquement leurs desseins, ou
pour les cacher ; pour se donner les uns aux autres des défiances de leurs plus fidèles amis, &
dans lesquelles ils n’on point d’autre but que de se tromper”. (Tradução livre, grifo nosso).
Sempre critico à Corte, entendida como a confluência de tudo o que há de terreno, Esprit
124 – e defende uma modalidade particularmente austera de cristianismo como a única
forma de verdadeira confidência. As únicas confidências dignas de louvor são aquelas
que rejeitam as bagatelas do mundo e da corte. Aquelas que servem à salvação da
própria alma [à nôtre salut]. Aquelas que não se regozijem dos nossos defeitos e dos
outros.320 O moralista está em sintonia com a crítica jansenista aos divertimentos em
geral, considerados dispersivos (por mais que relativizado que esse discurso deva ser).
Os cristãos, em contraponto aos mundanos e aos cortesãos, são os únicos capazes de
realizar a vocação primordial da palavra da “primeira idade do mundo”, a palavra
inocente e segura da Igreja primitiva.321 Ainda que não formule nestes termos, o ponto
ao qual Esprit parece conduzir é o de que a confiança, a confidência virtuosa, seria, no
limite, a confissão, em que “nous reconnoissons humblement les nôtres, & cherchons
les moyens de nous corriger”.322
***
Após percorrermos os diferentes usos do segredo, vê-se como o mesmo
assunto é tomado com rigores e objetivos diversos pelo simples deslocamento do
lugar de enunciação. No âmbito político, o segredo é entendido como arcana do
poder, uma ferramenta que visa a blindagem dos projetos e intenções. Já no caso da
cultura de salão, no interior da qual situamos o moralismo de La Rochefoucauld, o
segredo é revestido dos ideais de honnêteté. Pressupunha-se, na política, a
desconfiança generalizada em relação a estranhos e conhecidos, perigosamente
fundada na instrumentalização desses mesmos agentes. La Rochefoucauld, em
contrapartida, utilizando-se da mesma desconfiança, rejeita qualquer forma de
argumenta que para ser introduzido nela, basta ter a capacidade de fazer os outros falarem.
“(…) il faut faire observer qu’il y a une espèce de gens qui ont le talent de faire parler les
autres ; ce talent est singulier, & il suffit pour introduire un homme à la Cour & le mettre bien
avec les personnes les plus qualifiées”. Idem, p. 189.
320
Idem, p. 196.
321
Idem, p. 596. “Il n’y a que le Christianisme qu’on peut justement regarder comme le
renouvellement du premier âge du monde, qui y ait rétabli la foy & la loyauté. Elle reluisoit si
fort dans les mœurs des premier Chrétiens, que dans le portrait que Pline second en fait à
l’Empereur Trajan, il marque la fidélité comme une qualité que les rendoit reconnoissables :
‘Leur vie, dit-il, est très-innocente, ils s’acquitent de toutes leurs promesses, & rendent
fidèlement les dépôts qu’on leur a confiés”. Ainda sobre o tema da idade de ouro da palavra,
Esprit escreveu que “Les premiers hommes, disent-ils [filósofos e poetas ; nesse caso
específico, Sêneca], étoient véritables dans leurs paroles, fidelles dans leurs promesses, &
équitables dans leurs procédés (…)”. Idem, p. 286.
322
Idem, p. 196.
125 manipulação, sedimentando sua moral na mais rigorosa fidelidade. É como se, onde a
moral política se questionava sobre a melhor forma de manipular os segredos, a moral
mundana, do honnête homme, propusesse um rigor inteiramente voltado à
autocontenção. Para tanto, os dois discursos articulavam artifícios e técnicas para o
domínio de si: maestria dos gestos, da fala, dos tons.
A mesma rejeição da instrumentalização dos segredos era partilhada por
Jacques Esprit. A ênfase, entretanto, recai sobre a inclinação pecaminosa que
carregamos em nós, herança do pecado original. Ela nos leva a falar por falta de
controle e a não falar por astúcia. A única solução ao dilema sobre como ser virtuoso
em um mundo decaído é rejeitar inteiramente esse mesmo mundo. Por esses rigores, o
moralismo de Esprit é mais radical. Enquanto Mazarino blindava seu político de
astúcia para enfrentar a Corte, ou enquanto La Rochefoucauld blindava seu honnête
homme de virtudes para encarar os vícios que a convivência em geral deflagrava,
Esprit, por sua vez, insistia no afastamento e rejeição do mundo como um todo, no
que via a possibilidade de salvação. Levando o argumento ao seu possível desfecho,
somente a vida religiosa, conduzida pela vocação (como freiras e monges) ou pelo
retiro (como faziam aqueles que abandonavam a Corte e o grand monde para
cuidarem de suas almas) era possível ser realmente virtuoso.323 Mas quem diz isso
somos nós: todas estas alternativas devem ser relativizadas. Como veremos no
capítulo seguinte, Esprit criticou os contemporâneos que idealizavam a retraite,
argumentando que de nada adiantava se afastar do mundo se os mesmos pensamentos
pecaminosos continuassem a impedir uma completa reforma da alma.
Em resposta às tensões de uma sociedade em que a política se centralizava na
Corte e na Cidade, nas quais desaguavam cada vez mais interesses e agentes, e na
qual se formulavam, sem cessar, novas estratégias de ascensão e suplantação, vemos
323
A tragédia Atália, de Jean Racine, nos dá exemplos dessa visão que creditava ao
afastamento em relação à Corte a possibilidade de manter-se virtuoso, inocente. A
personagem de Eliaciano/Joas é mantida protegida por Joad contra os ataques de Atália, que
queria destruir os judeus. Sobre Eliaciano é dito que “Longe do trono criado ignorais, por
enquanto,/ Dessa honra perigosa o venenoso encanto;/ Da adulação covarde a sedutora voz,/
E do poder total os inebriantes nós./ Em breve vos dirão que as mais sagradas leis,/ Donas do
povo vil, obedecem aos reis;/ Que um rei, por freio, só a própria luz conhece;/ Que deve
imolar tudo a seu brilho e interesse;/ Que às lágrimas e ao suor o povo condenado,/ Com mão
de ferro quer sempre se governado;/ Que, não sendo oprimido, há de oprimir no fim/ De
armadilha em armadilha e abismo em abismo, assim,/ De vosso ser gentil destruindo a
ingenuidade,/ No fim conseguirão que odieis toda verdade,/ Pintando-vos em negro a virtude,
a honra e a fé”. Atália, ato IV; cena 3. In. RACINE, Jean. Fedra, Ester, Atália. Tradução
Jenny Klabin Segall. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 235.
126 em La Rochefoucauld e Esprit duas alternativas de austeridade moral: no primeiro o
fortalecimento dos laços que ligam o sujeito a seus deveres e amigos; no segundo, o
desenvolvimento de uma moral absolutamente metafísica, que coloca a promessa – ou
menos: a possibilidade – de salvação na total repulsa aos valores mundanos.
127 XI. UM IDEAL DE TRANSPARÊNCIA SOCIAL: O PROBLEMA DA REAL
IMAGEM DE SI
Em um de seus caracteres, La Bruyère colocou o honnête homme na Corte.
É preciso que um homem honesto tenha tateado a Corte: entrando ali ele
descobre como que um mundo novo que lhe era desconhecido, onde vê
reinar igualmente o vício e a polidez, e onde tudo lhe é útil, o bom e o
mau.324
É um verdadeiro homem de bem, escrupuloso. Movido pela virtude e avesso à
maldade. Talvez porque acreditasse na compensação ao bem e no poder destrutivo do
mal. Ali, este homem honesto tem revelações nunca imaginadas. Como um novo
mundo. Ou antes, o monde em seu arquétipo mais sintético.325
A Corte, na descrição de La Bruyère, é um lugar ambivalente. É ali que se
encontra o que há de mais polido e refinado, especialmente as pessoas.326 “Qui a vu la
Cour a vu du monde ce qui est le plus beau, le plus spécieux et le plus orné
(…)”. 327 Por outro lado, é ali que se encontra o vício em suas formas mais
diversificadas. Sem vaidade ou interesse, “les cours seraient désertes, et les rois
presque seuls”.328 Só pela aparição do príncipe, os rostos ficam irreconhecíveis.329 O
ar na Corte é contagioso,330 e quem deixa a Corte, se livra de “bien de peines, de bien
de veilles, et quelquefois de bien de crimes”. 331 Não deve ir à Corte quem é
desinteressado332 ou desinteressante.333
Voltemos então para a citação que abre o capítulo. O palácio real é o espaço
onde reina o vício e a polidez, le vice et la politesse. A oposição poderia passar
desapercebida, mas atrai o interesse do leitor. Ao invés de contrapor o vício a seu
324
LA BRUYERE. “Les Caractères”. In. LAFOND, J. Op. Cit (1992), p. 793. “Il faut qu’un
honnête homme ai tâté la Cour : il découvre en y entrant comme un nouveau monde qui lui
était inconnu, où il voit régner également le vice et la politesse, et où tout lui est utile, le bon
et le mauvais”. (Tradução livre)
325
“(…) qui méprise la cour, après l’avoir vue, méprise le monde”. Idem, p. 812.
326
Idem, p. 793. “La Cour est comme un édifice bâti de marbre, je veux dire qu’elle est
composée d’hommes fort dures, mais fort polis”.
327
Idem, p. 812.
328
Idem, p. 793.
329
Idem, Ibidem.
330
Idem, Ibidem.
331
Idem, p. 812.
332
Idem, p. 799. “Vous êtes homme de bien, vous ne songez ni à plaire ni à déplaire aux
favoris, uniquement attaché à votre maître et à votre devoir ; vous êtes perdu”.
333
Idem, p. 796. “Il n’y a rien à la Cour de si méprisable et de si indigne qu’un homme qui ne
peut contribuer en rien à notre fortune ; je m’étonne qu’il ose se montrer”.
128 antônimo natural, a virtude, La Bruyère apresenta como oposto complementar a
polidez, o que não deixa de ser emblemático. A Corte é o lugar dos interesses, o que o
moralista não cessa de apontar. Quanto ao que ela é capaz de produzir de mais
esplendoroso, seu caráter incomparável, não adentramos o terreno das disposições
virtuosas. A Corte excele no refinamento. Mesmo as metáforas e comparações usadas
por La Bruyère demonstram isso: as tapeçarias, confeitaria e bordados,334 o mármore
bem polido, o teatro.335 Em síntese, o argumento é o de que a moral é comandada pelo
interesse e a habilidade pela astúcia. E assim, a Corte é colocada em movimento.
Deita-se na corte e desperta-se sobre o interesse; é o que se come de manhã
e de tarde, dia e noite; é que faz pensar, falar, calar e agir (...).336
Alguns anos antes de La Bruyère, continuador de La Rochefoucauld, um
amigo do duque criticava a corrupção da corte de maneira igualmente perspicaz. La
Fontaine representou-a como um “antro” que suga os sujeitos e os impede de sair,337
seja pelo mau governo do Rei, seja pela busca de recompensas movida por
ambição.338
Defino a corte o país onde gente
Triste, feliz, pronta e indiferente,
São o que ao Príncipe apraz, ou que
Senão tratam ao menos de assim parecer,
Povo camaleão, povo macaco do mestre,
Veja: um espírito em mil corpos age;
É lá que as pessoas são só engrenagens.339
O fabulista retrata a carreira de cortesão como perigosa porque cortesãos são
perigosos: ninguém está a salvo dos julgamentos alheios. São as raposas em torno do
334
Idem, p. 793.
Idem, p. 812.
336
Idem, p. 796. “L’on se couche à la cour et l’on se lève sur l’intérêt ; c’est ce que l’on
digère le matin et le soir, le jour et la nuit ; c’est ce qui fait que l’on pense, que l’on parle, que
l’on se tait, que l’on agit (…)”. (Tradução livre)
337
“mais dans cet antre/ Je vois fort bien comme l’on entre,/ Et ne vois pas comme on en
sort”. LA FONTAINE, Jean de. “Le Lion malade et le Renard”. In. Fables. Paris:
Flammarion, 2007, p. 193.
338
“J’avais prévu ma chute en montant su le faîte./ Je m’y suis trop complu; mais qui n’a dans
la tête’ un petit grain d’ambition”. Idem, “Le Berger et le Roi”, p. 304–306.
339
Idem, “Les obsequies de la Lionne”, p. 246. “Je définis la cour un pays où les gens/
Tristes, gais, prêts à tout, à tout indifférents,/ Sont ce qu’il plaît au Prince, ou s’ils ne peuvent
l’être,/ Tâchent au moins de le paraître,/ Peuple caméléon, peuple singe du maître,/ On dirait
qu’un esprit anime mille corps ;/ C’est bien là que les gens sont de simples ressorts”.
(Tradução livre)
335
129 leão, que adulam, mentem e por isso ascendem.340 Era preciso fazer os animais
falarem, pois especialmente as palavras deviam ser cautelosamente ponderadas,
artificiosas. A adulação excessiva e a sinceridade, respectivamente vício e virtude,
eram igualmente perigosas. O mais habilidoso respondia en Normand, como um
normando, quer dizer, de modo ambíguo, sem dizer sim ou não, de forma evasiva.341
Se o século XVI viu os ideais de simulação e dissimulação se firmarem no rol
das práticas políticas, com especial menção ao discutido tratado de Maquiavel, o
século XVII foi, de fato, o “grande secolo della dissimulazione”.342 Como indica
Villari, este status adquirido pela prática transcende a mera justificação da
dissimulação como instrumento de/do poder e atitude da corte. Seminal nas
discussões sobre a razão de Estado, a popularidade das técnicas de dissimulação se
estende para além das habilidades do bom príncipe: ela se torna “consigliabile al
cortigiano e a certe condizioni tollerabile nell’uomo comune”.343 Como bem destaca
Villari, a dissimulação se tornou um instrumento de poder e resistência, de dominação
e oposição política. Mas se tornou também um regra geral.344
340
Cf. “Selon que vous serez puissant ou misérable,/ Les jugements de cour vous rendront
blanc ou noir”. Idem, “Les animaux malades de la peste”, p. 205. “Le mal se rend chez vous
au quadrupule du bien./ Les daubeurs ont leur tour d’une ou d’autre manière:/ Vous êtes dans
une carrière/ Où l’on ne se pardonne rien”. Idem, “Le Lion, le Loup et le Renard”, pp. 232–
233. “Amusez les Rois par des songes,/ Flattez-les, payez-les d’agréables mensonges,/
Quelque indignation dont leur cœur soit rempli,/ Ils goberont l’appât, vous serez leur ami”.
Idem, “Les obsèques de la Lionne”, p. 247. La Rochefoucauld, que também usou de animais
para refletir sobre os vícios humanos, descreve as raposas como bichos “qui vivent
d’industrie, et dont le métier est de tromper”. LA ROCHEFOUCAULD. Op. Cit, (Pl.), p. 517.
341
A origem da expressão, segundo Walter Gottschalk, viria de uma antiga lei normanda que
previa que, após assinado um acordo, o signatário tinha por 24 horas o direito de se desdizer.
Por isso, os normandos teriam sido associados a uma postura pouco fiável, rusé [astuto,
manhoso, matreiro, ardiloso] ou, em sentido mais figurado, madré [malhado, raiado,
mosqueado]. A título de exclusiva curiosidade, note-se que a expressão tem correspondentes
em castelhano, una respuesta a la gallega, e búlgaro: resposta de bizantino. Explicação
encontrada em http://www.expressio.fr/expressions/une-reponse-de-normand.php. Um
exemplo desse tipo de estratégia retórica pode ser deduzida da moral de uma das fábulas de
La Fontaine: “Ne soyez à la cour, si vous voulez y plaire,/ Ni fade adulateur, ni parleur trop
sincère,/ Et tâchez quelquefois de répondre en Normand”. LA FONTAINE. Op. Cit., “La
Cour du Lion”, p. 212.
342
VILLARI, Rosario. Elogio della dissimulazione – La lotta politica del Seicento. Bari:
Laterza & Figli, 2003, p. 25. O século XVII reelabora a ars dissimulatoria, “svolgendo e
portando a nuovi sviluppi una tematica già delineata, nei suoi tratti essenziali, nel secolo
precedente”.
343
Idem, pp. 25–29.
344
Idem, p. 29. “Anche se il punto di partenza è la corte, le sue massime e riflessioni indicano
regole che valgono per la società nel suo complesso”.
130 O debate travado sobre os usos da dissimulação ocorreu sobre a legitimidade e
autorização em praticá-la. Em que medida se aparentava ou se afastava da prudência?
em que medida era virtuosa? cristã ou honesta?345 Também: quais são os limites do
que é ou não dissimulação? A dificuldade aqui residia em caracterizar precisamente a
fronteira entre a astúcia e a malícia, entre a omissão e a mentira, entre a dissimulação
e a simulação.
Moralistas, políticos e teólogos divergiam. Figuras como Gracián ou Mazarino
são as primeiras a virem em mente quando pensamos numa postura mais receptiva aos
artifícios dessa ordem: Gracián por representar em muito o que se entende hoje como
a casuística jesuítica sobre a prudência; Mazarino pelo uso inescrupuloso de
artimanhas. Por outro lado, pensadores associados ao jansenismo ocupavam a
antípoda oposta, pelo menos em seus escritos, críticos que tendiam ser do laxismo
moral difundido por esses autores. Pascal é o mais célebre deles; mas Jacques Esprit é
um dos nomes que poderiam ser citados, especialmente pelos rigores com os quais
tratava a matéria.
Jacques Esprit via, antes de mais nada, uma grande diferença entre o que
considerava virtudes cristãs e as virtudes humanas. As virtudes deste mundo não são
antagônicas às virtudes cristãs. Antes, elas são uma perversão das ações e objetivos.
Desta perversão decorre que o exercício humano das chamadas virtudes acarretaria
em algo como um passo certo na direção errada. É preciso ser moderado, corajoso,
modesto, etc.: as metas do cristão são essas. O que torna a busca vã é a inclinação
viciosa na intenção ou na meta. O passo errado é o desvio das virtudes em relação ao
que devia ser sua única fonte e objetivo – Deus –, para a glória, o desejo de ascensão
e aceitação, a fama e assim por diante.
Se as virtudes fazem o papel de máscara das virtudes, uma questão que
atravessa todos os capítulos é a de como esse jogo de espelhos e efeitos adultera a real
imagem de si. O homem representa um papel que manipula, por meio de artifícios,
aquilo que os outros pensam dele. Se La Rochefoucauld formulou que “on est
quelquefois aussi différent de soi-même que des autres”, 346 Esprit defendia
analogamente que
345
346
Idem, p. 28.
Máxima 135. LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 420.
131 (...) o homem deve ser tão verdadeiro em suas ações quanto em suas
palavras; & como ele é obrigado a nunca dizer o contrário do que pensa,
assim nunca deve parecer diverso do que ele é.347
Esprit e La Rochefoucauld não estão sós nessa percepção: eles ecoam a tradição
moralista da qual, é bem provável, derivaram tal pensamento. Montaigne havia
aludido a Sêneca (Magnam rem puta unum hominem agere, “Saiba que é grande feito
ter unidade em sua conduta”) quando escreveu que “se trouve autant de différence de
nous à nous-mesmes, que de nous à autruy”. Pascal, que frequentava a mesa da
marquesa de Sablé definia já em 1658 (mesmo período de escritura das máximas de
La Rochefoucauld), no tomo 2 de seu opúsculo De L’Esprit Géométrique et de L’art
de Persuader que “Il n’y a point d’homme plus différent d’un autre que de soi-même,
dans les divers temps”.348
Antes de mais nada: o que motiva um homem a enganar os demais? O que o
leva a não ser verdadeiro em sua ações? A resposta de Esprit é a mesma que de La
Rochefoucauld, o que demonstra a proximidade de pensamento entre os dois: o amorpróprio, “plus habile que le plus habile homme du monde”.349 Ele é astuto, pois ainda
que seu caráter seja ardente, inquieto, impaciente e impetuoso, que sua ação seja
irregular e precipitada, ele encontra mil formas de se diversificar, esconder e
fantasiar.350 Não seria possível contar as infinitas formas que assume, suas adresses e
finesses “pour se dérober à la connoissance de ceux qui ont l’esprit pénétrant”.351 Das
que possuem uma maior relação com o silêncio e que mais sublinham a falsa imagem
construída sobre si, estão a paciência/constância, a gravidade, e a modéstia.
XI.a. A falsa paciência e a falsa contenção
O problema, para Esprit, repousa no fato destas duas virtudes não serem mais
do que autocontrole calculado. O corpo silencia, enquanto, por dentro, o homem é
movido pelas mesmas paixões que poderiam levá-lo a falar. Nos soberanos, é uma
“dissimulation politique”, “conduite habile” que “tend à faire voir qu’ils sont dignes
347
ESPRIT, J. Tomo 2, p. 475. “(...) l’homme doit être aussi véritable dans ses actions que
dans ses paroles ; & comme il est obligé de ne dire jamais le contraire de ce qu’il pense, il
l’est aussi de ne jamais paraître autre qu’il est”. (Tradução livre)
348
Devemos a comparação aos editores da Pléiade. LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 824, n.
7.
349
Máxima 4. Idem, p. 403.
350
ESPRIT, J. Op. Cit., Tomo 2, pp. 461–462.
351
Idem, pp. 463–464.
132 de leur rang, & qu’ils n’ont pas moins de pouvoir sur eux-mêmes que sur les peuples
qui leur sont assujettis”.352
Nos sábios, alvo de mais críticas por parte de Esprit, a questão central não é
demonstrar poder. Quando lhes são ditas palavras injuriosas, a paciência em tolerá-las
adviria do medo dos inconvenientes e consequências que a vingança acarretaria. É o
tipo de relação emblemática entre virtude motivada por vício: o medo torna o sábio
paciente à injúrias.
Da mesma forma, Possidonius, estoico citado em anedota por Esprit, sucumbia
a uma insuportável gota, mas sem bradar uma palavra. Nele não se notava “aucune
altération sur son visage, & il ne sortoit pas la moindre plainte de sa bouche (…)”.353
Esta atitude valeu comentários de outros filósofos, com os quais Esprit busca diálogo
e reforço de autoridade. Catão, notava que “il y a un grand rapport entre les joüers de
gobelets & les Philosophes”. O jogo de “gobelet”, ou “bonneteau” como também
dizem os franceses, é o nosso jogo do monte de três cartas no qual o croupier ou
antes, o charlatão embaralha três cartas, ou esconde uma bolhinha sob um copinho
rapidamente misturado com outros dois diante dos jogadores, que devem indicar a
carta ou copo correto. Nesse sentido, a sabedoria dos filósofos ironizada por Catão
não passaria de um artifício de dissimulação e desvio da atenção do público. Um
truque. Em elegante formulação, La Rochefoucauld havia escrito que “la constance
des sages n’est que l’art de renfermer leur agitation dans le cœur”.354 Cícero também
comentou a paciência de Possidonius, dizendo que o filósofo “bravoit la douleur par
ses paroles pendant que son âme en étoit accablée & y succomboit”; Montaigne foi
mais mordaz ainda: só a língua deste filósofo foi fiel à sua seita.355 Esse tipo de
postura buscava apenas gerar efeitos exteriores, consistindo apenas na “patience de
faste” de alguém “dont le cœur brûloit d’ambition”.356 Novamente, o vício gera um
efeito virtuoso.
O falso constante é um enganador, não um grande homem. Sua habilidade
“n’est qu’un masque de fermeté qu’ils prennent pour tromper les autres, & qui les
trompe souvent eux-mêmes”.357 O princípio da diferença em relação a si mesmo, de
352
Idem, p. 399.
Idem, 416–417.
354
Máxima 20. LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 405.
355
ESPRIT, J. Op. Cit., Tomo 2, p. 417.
356
Idem, p. 416.
357
Idem, pp. 443-444.
353
133 uma reação plácida em meio à tormenta sentimental, é uma violência contra si
próprio. Para Epicuro, citado por Esprit, estes sábios – pela forma como se punem –
estão como que “enragez contr’eux-mêmes”. Pitágoras aconselhava que não se
reprimisse os tédios e desprazeres profundos que consumissem interiormente alguém.
As citações feitas por Esprit formam um crescendo que desembocam no argumento
de maior identidade com suas ideias. Assim, Zenon, terceiro autor citado, adverte que
é preciso ser sincero na expressão e na ação para que ninguém pense que somos mais
fortes ou melhores do que somos na verdade.358 A representação de si deve estar em
perfeita sintonia com o ser.
O caso contrário é o do cortesão grosseiro o bastante para não conseguir
esconder o artifício. Quando se encontra favorecido, faz confissões a seus amigos
desenhando a condição positiva. Cheio de presunção, diz que se caísse em desgraça
não se surpreenderia. Que ainda que seu posto fosse cobiçado por muitos, ele o
abandonaria facilmente. Que em meio às flutuações da fortuna jamais mostraria sua
fraqueza. E tão cedo quanto a desgraça cai sobre eles, acusam instantaneamente o
golpe recebido, evidenciando um enorme vazio interior:
(...) este golpe é tão sensível, incomoda-lhes & abate-lhes tanto, que não
veem nada dentro de si mesmos que ajude-lhes a suportá-lo; eles
mostrariam a desordem em que estão, não viesse seu orgulho em socorro
& desse-lhes força para recompor o rosto.359
O movimento da crítica de Esprit vai, então, do falso sábio antigo ao falso
moderado da Corte. O palácio principesco educava seus frequentadores no comércio
de interesses e nas intrigas, excluindo um tanto naturalmente os menos aptos ou os
menos relacionados. Para Esprit, um homem que viveu por muito tempo na Corte era
como que infectado por uma doença que lhe perseguiria pelo resto da vida.360 Qual a
cura para essa situação? Segundo a prática e o ideal recorrente no século XVII,
retirar-se do mundo era uma forma de evitar um novo contágio com sua corrupção.
Um antigo ministro, vendo se aproximar sua morte, incapacitado de exercer suas
358
Idem, pp. 444–445.
Idem, pp. 446–447. “(…) ce coup leur est si sensible, les trouble & les abat si fort, que ne
voyant rien au dedans d’eux-mêmes qui les aide à le supporter ; ils feroient voir le désordre
où ils sont, si leur orgueil ne venoit à leur secours & ne leur donnoit la force de composer leur
visage”. (Tradução livre)
360
Idem, p. 448. “(…) on conclut que ceux qui ont goûté la Cour sont comme ceux qui ont été
mordus de la Tarent, qui ne guérissent jamais ”.
359
134 funções de outrora, se isola em suas propriedades no campo, e aproveita a paz de seu
jardim. Ele estará a salvo ali? Não para Esprit:
É enganar-se crer que um belo campo & as longas alamedas de um jardim
tenham a virtude de pacificar o homem, & de tirar-lhe suas maiores
aflições.361
A empreitada de crítica moralista de Esprit era tão irrestrita que o autor não se
ateve somente ao desmascarar das virtudes e dos vícios praticamente indiscutíveis.
Esprit partiu em ataque contra as soluções ou curas normalmente defendidas à época.
É aqui o caso da retraite: afastar-se do mundo não era promessa de salvação ou
reforma espiritual. Não bastava afastar um homem da luta generalizada pela glória se
os mesmos pensamentos continuavam a mover sua mente.362 O que era ação se tornou
rememoração, conforme os versos do próprio Esprit:
Felicidade passada
Que não voltará,
Tormento de meu pensar
Perdendo a ti, não te perdi do lembrar.
Mas ah! não há resto
Do meu contentamento
Só o lembrar funesto
Que mo converte, toda hora, em tormento.363
Vemos que o topos horaciano do fugere urbem é pintado de forma menos
nobre por Jacques Esprit que rejeitava qualquer possibilidade de salvação no simples
deslocamento espacial. Seu argumento nos remete, antes, a outros dos lugares-comuns
mais recorrentes na tradição ocidental, o da et in Arcadia ego, que trabalha sobre
metáfora análoga da mácula à beleza. Não esqueçamos que Nicolas Poussin, pintor de
ao menos dois quadros sobre o tema, era contemporâneo de Esprit. Na pintura, a
morte, representada pela tumba, quebra a monotonia bucólica da Arcádia; em Esprit, a
tranquilidade do jardim francês onde se retirara o cortesão é maculada por suas
361
Idem, p. 450. “C’est s’abuser que de croire qu’une belle campagne & les lõgues allées d’un
jardin ayent la vertu de pacifier l’homme, & de luy ôter ses plus grands chagrins”. (Tradução
livre)
362
Esprit cita Sêneca: “J’ai vu plusieurs personnes sécher d’ennui dans les plus belles maisons
du monde ; & d’autres pleins de soucis & toujours agitez dans les lieux les plus retirés & les
plus paisibles”. Idem, Ibidem, p. 450. Não é sem interesse Esprit citar Sêneca, autor tão
criticado por ele e La Rochefoucauld.
363
Idem, pp. 449–450. “Félicité passé/ Qui ne peux revenir,/ Tourment de ma pensée/ Qui
n’ay-je en te perdant, perdu ton souvenir. // Hélas ! il ne me reste/ De mon contentement/
Qu’un souvenir funeste./ Qui me le convertit à toute heure en tourment”. (Tradução livre)
135 rememorações e desejos ávidos. Isolar-se não bastava. De outra forma, a falsa virtude
era praticada por incapacidade, e não por um impulso íntegro, conforme a máxima 93
de La Rochefoucauld: “Les vieillards aiment à donner de bons préceptes, pour se
consoler de n’être plus en état de donner de mauvais exemples”.364
Era preciso que a consciência e as ações do verdadeiro cristão fossem
virtuosas no mundo. Seria de maior serventia um cristão realmente pio em meio à
corrupção do que um falso pundonoroso retirado e cujos pensamentos se mantivessem
intactos. O capítulo sobre a constância termina com a defesa da virtude cristã em
contraposição à pagã. (Esprit parece usar o termo “pagão” para “terreno”). A ação
virtuosa em questão é o martírio, suportar abertamente as penas do mundo, sem ter
medo de confessar este sofrimento. Termina fazendo alusão a são Casimiro (1458–
1484), santo polaco que viveu no século XV. Casimiro era príncipe da corte da
Polônia, filho da rainha Isabel da Áustria e Casimiro IV da Polônia e ficou conhecido
por viver de forma severa, mesmo na Corte. Rodeado por todo o conforto possível, e
destinado à carreira política, Casimiro realizava jejum e flagelos corporais no próprio
palácio real, vivendo na medida do possível sua vocação religiosa.
Toda a moralidade do tratado vai nesse sentido. Seja destinado à vida religiosa
ou à Corte, o verdadeiro cristão não deve ser munido de habilidades enganosas e
artifícios vãos. Antes, deve abdicar das práticas dessa sorte e assumir o martírio nisso
implicado. Somente assim suas ações estarão em sintonia com seus pensamentos e,
mais especificamente, suas palavras em acordo com seu coração.
XI.b. A gravidade do corpo e das palavras como falsa virtude
No tratado de Esprit, a segunda falsa virtude que tem relação direta com o
controle da fala é a gravidade. A gravidade seria o ar e a postura, uma forma de agir,
certa expressão ou sprezzatura grandiloquente no portar-se e no falar que visa gerar
efeitos de respeito. Ela é a tranquilidade afetada pelo uso da seriedade e da lentidão,
muito usada por
364
LA ROCHEFOUCAULD. Pl., p. 415.
136 homens graves, estes homens afetados & compostos (...) [que] aparecem
em público com um ar sábio & sério, medem seus passos & ponderam
todas as suas palavras (...).365
Essa atuação de firmeza buscaria a aprovação geral pela impressão de força interior.
Um homem que se porta gravemente quer “qu’on croye que les mouvements de leur
corps, & que leur extérieur est l’image de leur intérieur”;366 que pensemos que é
senhor e intendente de suas paixões, governador de si. E aqui voltamos ao problema
da inadequada tradução de si por meio de efeitos artificiosos. Pois, para Esprit, ares,
gestos, porte e palavras calculados dessa forma só enganam, criando uma imagem
mentirosa.
Atuar gravidade e não sê-lo interiormente é uma “singerie sérieuse”, uma
“honnête pédanterie”. Em geral, o homem é movido à fala pela concupiscência.367 A
gravidade é uma das formas que o amor-próprio assume para se esconder.368 No falso
grave é uma lentidão afetada. Este tipo de enganador – que não tem “ni esprit ni
sçavoir”369 – conta palavras e passos, modula o tom de voz, fala com mais ou menos
segurança, pois fora a atuação, não tem nada a oferecer. Não são capazes de discutir
assuntos grandes e delicados. Quando estes vêm à tona, os falsos graves compõem
gestos e expressões, mas não falam nada. Se constrangidos a falar, dizem só “deux ou
trois mots, qu’ils ne prononcent pas même distinctement, ou ils s’expliquent d’une
manière obscure & mystérieuse”.370
Seu contraponto é o Sábio [Sage] com “s” maiúsculo. Nele, o uso das palavras
graves é similar à música. No canto, a harmonia não consiste nem na lentidão, nem na
rapidez do entoar, tampouco na adequada mistura entre um e outro, mas no respeito à
regras “de leur nature”. Com isso, Esprit quer dizer que em si a lentidão ou a rapidez
do canto, sua maior ou menor gravidade, não são suficientes para gerar efeitos
lânguidos ou de alegria, caso estes não se adaptem às circunstâncias e aos assuntos
365
ESPRIT, J. Op. Cit., Tomo 2, p. 468. “hommes graves, ces hommes contraints &
composés (...) paroissent en public avec un air sage & sérieux, mesurent leurs pas & pèsent
toutes leurs paroles (…)”. (Tradução livre)
366
Idem, Ibidem.
367
“(…) de sorte que comme l’aiguille d’une montre ne s’arrête ou ne va trop vîte que par
quelque mauvais ressort qui la dérègle ; de même, l’homme ne prononce ses paroles & ne fait
ses actions trop promptement ou trop lentement que par les impressions qu’il reçoit de la
concupiscence, & selon qu’elle est diversement ébranlée”. Idem, pp. 483–484.
368
Idem, p. 461.
369
Idem, p. 479.
370
Idem, pp. 479–480. Não deixa de ser um dos usos da réponse de Normand, à qual fizemos
alusão a partir da fábula “La Cour du Lion”, de La Fontaine.
137 “qui le font agir ou parler”.371 A adequada harmonia dos elementos precipitados e
lentos (na fala, no canto) dependeria, antes de mais nada, da intelecção das ocasiões
em que são convenientes, o que depende, da mais humana das capacidades: a razão,
guia do discernimento e do julgamento. As crianças, que não têm a razão
desenvolvida, correm e falam sem parar, e muitos homens crescidos continuam assim.
O Sábio, porém, é o único a quem “les Dieux on donné l’intelligence de l’ordre & de
l’harmonie”, diz Esprit junto com Platão.372 Pela razão, portanto, o Sábio se difere do
falso grave, que faz suas macaquices. Pois se o Sábio age gravemente, esse efeito
apenas reflete sua condição intelectual precedente, a de julgar adequadamente as
ocasiões, os sujeitos com quem interage e o que deve ou não ser dito.
A falsa gravidade é a afetação da seriedade e serenidade. Nesse sentido, seu
contraponto é o naturel, o seu natural. Caracteriza a naturalidade ser atributo moral
profundo e não comportamento construído habilmente, o que leva, mais uma vez,
Esprit deslocar o sentido de uma virtude amplamente reconhecida para uma definição
metafísica, ou melhor, teológica: é somente pela graça de Jesus Cristo que o homem
se torna natural.
É somente ela [a graça] que lhe tira todas suas afetações & falsidades, &
que dá a todas as suas ações & a todos os seus movimentos interiores esta
justeza que os torna tão harmoniosos & agradáveis (...).373
Esprit se utilizou convenientemente da ambiguidade da palavra grâce para
fazer valer sua contraposição entre virtude mundana e virtude cristã. Entendida como
“graciosidade”, ou elegância, a grâce não passaria de um expediente perspicaz que
em nada contribui para a saúde da alma de alguém. Por outro lado, na acepção
teológica, a grâce se referiria à Graça divina, a disposição positiva de Deus – por
perdão, afeição ou benquerença – em favor de alguém. Esta graça é maior porque
compõe a gravidade do homem destruindo a concupiscência que motiva a maior parte
de suas ações, em especial a fala.374 Não afetando a graça, mas buscando-a em Deus,
371
Idem, pp. 470–471.
Idem, p. 472.
373
Idem, p. 484. “C’est elle seule qui luy ôte toutes ses affectations & toutes ses faussetés, &
qui donne à toutes ses actions & à tous ses mouvements intérieurs cette justesse qui les rend si
harmonieux & si agréables (…)”. (Tradução livre). Ao que se conclui que “Ce n’est que par la
grâce de JESUS-CHRIST que l’homme devient naturel”.
374
Idem, pp. 483–484. “Or c’est la concupiscence qui donne le branle à toutes les puissances
de l’âme (…) de même, l’homme ne prononce ses paroles & ne fait ses actions trop
promptement ou trop lentement que par les impressions qu’il reçoit de la concupiscence, &
selon qu’elle est diversement ébranlée”.
372
138 o homem lutaria contra a “malheureuse inclination” que herdou de Adão.375 Suas
palavras se tornariam naturais, verdadeiras e virtuosas, em “parfaite conformité de son
extérieur avec son intérieur” 376 uma vez reestabelecido o estado de inocência
primordial, anterior à queda.
Vê-se claramente mais um exemplo de como Jacques Esprit relacionava
logicamente seu sistema teológico-moral com as artes de controle e adestramento do
corpo de das palavras. Antes de negar a necessidade de falar/agir grave e
graciosamente, Esprit submete o mesmo enunciado a outro critério de entendimento.
Tomando como ponto de partida as mesmas virtudes cristãs ressignificadas pelos
teóricos da moderna civilidade (por mais cristãos que fossem), Esprit reverte – ou
revoluciona, na medida em que remete a seu ponto inicial – seu significado. No
tratado da Fausseté des vertus humaines – em pleno meio do caminho do processo
civilizador –, a autocontenção é deslocada do plano das artes de saber viver,
reportando-se uma vez mais à tradição da Igreja que, como se sabia e sabe-se muito
bem, possui um vasto e antiquíssimo repertório de práticas neste sentido.377 Por
críticas como esta, à nova feição (mundana) das práticas de controle de si, podemos
aparentar as obras de Jacques Esprit e Godefroy Hermant, comumente associados ao
jansenismo: defensores de uma austera revolução moral cristã em um fin de siècle em
tudo artificioso.378
XI.c. A falsa modéstia das mulheres
375
Idem, p. 485.
Idem, Ibidem.
377
HERMANT, Godefroy. Tradition de l’Église sur le silence Chrétien et monastique. Paris:
François Muguet, 1697.
378
“Mr Hermant Docteur de la Maison & Société de Sorbonne, mort en 1690”, era natural de
Beauvais, de cuja catedral foi cônego. Com cerca de trinta anos foi reitor da Universidade de
Paris entre 1646 e 1648. Aberto defensor do jansenismo, pelo qual entrou em diversas
disputas, Hermant se tornou “um dos mais notáveis partisans sorbonistas de Port-Royal.
Autor prolífico, a produção de Hermant foi publicada durante sua vida e mesmo após ela,
anonimamente, por pseudônimos ou de forma autoral. Dentre seus escritos anônimos,
chamam a atenção suas muitas apologias – feitas em nome da Universidade de Paris – contra
os jesuítas. Dentre seus escritos publicados sob o seu nome ou pseudônimos, figuram uma
série de estudos sobre vidas de santos exemplares, como são João Crisóstomo e são Basílio. A
obra citada acima, uma compilação de tradições da Igreja sobre as práticas de silêncio, foi
uma das obras cuja leitura mais contribuiu para o alargamento de nossa compreensão sobre os
usos de silêncio.
376
139 O terceiro aspecto que tem relação com o controle da palavra no tratado de
Esprit é a modéstia das mulheres. Se no caso masculino a modéstia equivaleria à
atitude mais ou menos receptiva frente a elogios durante uma conversação, escolha
que transitaria na maioria das vezes entre a vanterie (autolisonja presunçosa, para
Esprit) e a flatterie (lisonja aduladora), no caso feminino a modéstia diria respeito
antes ao pudor em não falar palavras desonestas.
O movimento é o mesmo dos demais capítulos, o que funciona como um
efeito retórico do acadêmico: Esprit indica vários motivos (mundanos) pelos quais o
assunto tratado é uma virtude para, ao cabo, inverter ou desfazer essa definição e,
enfim, revelar uma nova acepção (cristã). O mesmo para a modéstia feminina. Grande
parte do capítulo é dedicada a enumerar as razões por que as mulheres têm maior
pendor para não dizer palavras ruins, ou desonestas. São quatro pontos.
a) frieza de temperamento, o motivo “natural”. Frieza de temperamento
equivale a dizer que existe uma menor queda por exaltações e rompantes de violência.
Assim, se a inclinação natural do homem o predispõe à cólera e ao conflito, as
mulheres, em contrapartida, seriam – e eis aqui um clichê ainda em voga – doces e
agradáveis. Dado essa constituição mais cômoda, as palavras das mulheres tenderiam
à modéstia e à retenção [retenue].379
b) A educação das mulheres é o segundo princípio de sua modéstia verbal.
Desde cedo o pudor é inculcado em seu comportamento, criando “horreur pour les
paroles & pour les actions déshonnêtes”. Quando impressões pudicas deste tipo são
ensinadas desde os primeiros anos, fixam-se, crescem e se fortificam com a moça.380
As damas que fogem a estes bons modos, que têm “des façons de faire libres &
immodestes”, são imediatamente desprezadas por todo mundo, vistas que são como
“filles qui ont renoncé à la pudeur de leur sexe”.381
c) o terceiro e quarto motivo se assemelham, pois dizem respeito às razões de
sociabilidade implicadas no pudor. Com uma pequena nuance. Ambas as modalidades
de modéstia são praticadas em vista de manter a reputação honrosa que a mulher deve
ter. Aqui, razão é não criar má reputação. Mesmo mulheres que praticam a galanteria
controlam suas ações e fala nos mínimos detalhes para evitar que seus feitos venham
379
ESPRIT, J. Op. Cit., Tomo 2, p. 92.
Esprit usa de uma metáfora, comparando o gravar dos bons costumes a um nome que se
escreve na casca de uma árvore e que, a despeito da ação do tempo, cresce e nela permanece.
381
ESPRIT, J. Op. Cit., Tomo 2, pp. 92–93.
380
140 ao conhecimento geral. A reputação é o freio mais capaz e poderoso para deter as a
língua feminina, pois “il n’y a rien qui avilisse si fort & qui ruine tant la réputation,
que d’avoir des mœurs assez dissoluës pour ne pas craindre de dire des paroles qui
blessent ouvertement la pudeur”. A mulher não deveria ser associada a maus
costumes, “mises au rang des femmes perduës & débauchées”.382
Ainda sobre a metáfora do freio usada por Esprit, encontramos já em
Agostinho de Hipona (354 – 430) a metáfora da língua como um animal selvagem
que precisa ser domado.
O homem doma as bestas mais ferozes, mas não doma sua
própria língua; ele doma leões, mas ele não coloca um freio em
sua boca para reprimir os discursos vãos; é ele quem doma, mas
ele não doma a si mesmo. Ele doma aquilo que teme; e não se
doma pois não teme aquilo que deveria temer. 383
Tal metáfora terá ainda vida longa e integrará, inclusive, a tradição emblemática
como podemos verificar, por exemplo, pela Iconologia de Cesare Ripa (1560 – 1645)
publicada e traduzida sucessivamente desde sua primeira edição em 1653. Nela, a
metáfora do leão domado condizia não somente com o silêncio, mas dele não se
afastava. É o exemplo, do emblema “Dominio di se stesso” [Domínio de si], no qual
vemos um “Huomo à sedere sopra un Leone, che habbia il freno in boca, & regga
con una mano detto freno, & con l’altra punga esso Leone con uno stimolo”.384 De
semelhante modo, a “Ética” de Ripa – que em sua mão esquerda leva um
arquipêndulo – segura com sua mão direita freios que estão presos à boca de um leão.
Essa imagem faz par com a “Ragione” [Razão], que com a mão direita segura uma
espada e com a esquerda um leão com freios na boca.385 A Regra de são Bento de
Nórcia (c. 490 – 574), Patriarca dos Monges do Ocidente, datada de cerca de 540 d.C,
em seu capítulo 6, De Taciturnitate, incitava os monges assim:
382
ESPRIT, Tomo 2, pp. 93–94.
AGOSTINHO apud HERMANT, G. Op. Cit., p. 62. “L’homme dompte les bêtes les plus
farouches, mais il ne dompte pas sa langue ; il dompte des lions, mais il ne met pas un frein à
sa bouche pour réprimer ces vains discours ; c’est lui qui dompte, mais il ne se dompte pas
soi-même. Il dompte ce qu’il craignoit ; & pour se dompter il ne craint pas ce qu’il devroit
craindre”.
384
RIPA, Cesare. Iconologia. Veneza: Nicolò Pezzana, 1669, p. 166. Disponível online na
base do Google Books.
385
Idem, p. 517. Note-se que no emblema da “Razão de Estado” (Idem, p. 518) o leão já está
sem freios, domado.
383
141 Façamos o que diz o Profeta: coloquei um freio em minha boca. Mantive
o silêncio. Fiz-me pequeno e não falei nem mesmo em coisas boas.
(Salmo 38: 2 – 3). 386
d) em complemento ao argumento anterior, a mulher deveria ser associada a
bons costumes. Nada auxiliaria tanto no comércio do mundo do que ser tida como
honnête femme, preciosa.387 Aqui, justamente onde Esprit reconhece na prática do
pudor e da polidez uma forma de distinção social, que começam os problemas. A
modéstia feminina faz parte de um cálculo de distinção:
Este tipo de modéstia se encontra mais frequentemente nas pessoas
qualidade; & e é a vontade de mostrar que elas não têm menos
superioridade sobre as mulheres de baixa condição por sua polidez &
honestidade de costumes, do que por seu nascimento.388
O refinamento que decorre dessa economia comportamental é problemática na
medida em que sua motivação remete à sociedade. E somente a ela. Se o mundo é
cavo e as relações nele entravadas, ainda que polidas, mascaram interesses vãos, logo
todo o decoro exigido para triunfar é falsa virtude. E as únicas mulheres capazes de
verdadeira modéstia são, é claro, as cristãs. Nelas, a modéstia não é praticada por
destreza, tampouco sua primazia é determinada por seu fins. As verdadeiras cristãs
são modestas por que este é o meio adequado à salvação de suas almas, por isso o
paralelo entre a habilidade e a castidade. A “modestie des paroles c’est la chasteté de
la langue”: a modéstia é para a língua o que a castidade é para o corpo. A modéstia é
o “caractère de l’honnêteté” feminina se todas “leurs actions & toutes leurs paroles
honorent Dieu”.389
***
386
“Capítulo 6: GARDER LE SILENCE: 1) Faisons ce que dit le Prophète : J'ai mis un frein
à ma bouche. J'ai gardé le silence. Je me suis fait petit et je n'ai même pas parlé de choses
bonnes (Psaume 38, 2-3. Tradução livre a partir do francês disponível online pelo endereço
http://belloc.pagesperso-orange.fr/rb_chp_6.htm. Outra tradução em português disponível no
endereço http://www.cristianismo.org.br/regra-04.htm.
387
“Il y en a même qui pour se mettre sur le pié de femme pretieuses affectent une si grande
modestie, qu’elles ne peuvent souffrir non seulement les paroles effrontées ; mais celles aussi
qui font entendre d’une manière délicate des choses tant soit peu contraires à l’honnêteté”.
ESPRIT, Op. Cit., Tomo 2, pp. 94–95.
388
Idem, p. 95. “Cette sorte de modestie se rencontre le plus ordinairement dans les personnes
de qualité ; & c’est une envie de faire voir qu’elles n’ont pas moins d’avantage sur les
femmes de basse condition par la politesse & par l’honnêteté de leurs mœurs, que par leur
naissance”. (Tradução livre)
389
Idem, p. 98.
142 Os três aspectos destacados, a paciência/contenção, a gravidade e a modéstia
se articulam a algumas das práticas de maestria das palavras comumente normatizadas
pela tratadística, a pedagogia e a frequentação dos altos círculos da sociedade.
Conforme a premissa por nós adotada, e que parece procedente após a leitura de
fontes e estudos, a sociedade de Corte e dos salões eram reguladas por cerimônias e
decoros que exigiam a formulação de atitudes artificiosas e dissimuladas. Esprit via
nessa práxis – reconhecida como habilidosa – uma contradição fundamental com os
ideais cristãos de inocência e veracidade. Seu extenso tratado pretendia atravessar em
sua totalidade este único argumento: o de que a manipulação dos afetos em uso no
mundo, i.e. a prática das virtudes humanas, colocava em cheque a fidedignidade que o
cristão devia apresentar em todas as suas ações.
Fosse pela polidez desinteressada – que visava mediar a relação entre os
sujeitos – que cultuava a amizade e a sociedade entre os homens, fosse pela arte de
manipular os efeitos que os comportamentos geram sobre outrem, Esprit viu nos dois
aspectos da moralidade mundana o mesmo problema da falsificação e inadequada
tradução dos impulsos internos. A mesma perquisição levada a cabo por La
Rochefoucauld, quando este moralista denunciou o desajuste entre ação (considerada)
virtuosa e intenção viciosa. Entretanto, por sua particular concepção de cristianismo,
Esprit deslocou o argumento para o debate religioso. É como se, para La
Rochefoucauld, a honestidade e a polidez bastassem à adequada relação entre os
homens, o que vimos em suas diversas reflexões. O abade moralista foi menos
“permissivo”: contra o que é “humano”, defendeu uma moralidade em tudo
metafísica. A única virtude, ou no limite, a única moral digna deste nome é a divina.
Vemos em operação a lógica agostiniana que contrapõe à graça a moral ditada pela
natureza, o reino dos homens à civitate Dei.
143 XII. CONCLUSÃO
De constituição heterogênea, o salão da marquesa de Sablé agregou homens e
mulheres de diferentes qualidades e ocupações. Nos ambientes de frequentações
diversificados que a grande dame manteve ao longo de sua vida, questões relativas à
moralidade, à religião e ao preciosismo eram debatidos por figuras proeminentes na
vida cultural e política da Paris de meados do século XVII. Período marcado pela
Fronda, querelas religiosas e linguísticas, essa atmosfera crítica atravessava os salões,
as conversações e a produção escrita de seus praticantes. Nesse sentido, entende-se
que as obras moralistas de Jacques Esprit, Sablé e La Rochefoucauld – mas não
somente eles – traduz a vivacidade contestadora que o pensamento moralista dos
círculos paralelos à Corte desenvolveu. Se a cultura mundana era alimentada de usos
estimulados pelos costumes e leituras fundantes das artes simulatórias e
dissimulatórias tão em voga no século XVII, em muitas vezes a tradução que os
círculos restritos fizeram destes discursos se deu como antagonista à Corte, associada
a uma imagem corrupta, pouco sublime e interesseira.
Os usos e morais sobre o silêncio enunciados pelos moralistas analisados
figuram dentre estes discursos e práticas. Como vimos, o pensamento em voga na
época, anterior aos escritores em questão, entendia que o silêncio era uma
prerrogativa indispensável ao bem falar, imperativo do homem cultivado, ou honnête
homme. Por isso inferimos que o silêncio possuía precedência lógica sobre a fala: na
medida em que uma pessoa verdadeiramente articulada devia ser, antes de mais nada,
uma pessoa capaz de (se) calar. Como quis o abade Morvan de Bellegarde, já no fim
do século, a arte da conversação pressupunha a arte de calar. Nesse mesmo sentido, as
máximas e reflexões de La Rochefoucauld dão a entender que o ideal de honestidade
aplicado à conversação – seminal em seu pensamento – constituía principalmente na
concessão do privilégio de fala ao interlocutor. Ciente do constante fermentar das
paixões que o amor-próprio gera no interior do peito de alguém, o honnête homme
devia ser capaz de anular seu ímpeto comunicativo e cabotino em prol da igualitária
distribuição dos direitos de fala.
Essa atitude constituía uma dentre as muitas que compunham o decoro da
época. Essa atitude decorosa deveria embasar toda a interação entre os sujeitos, fosse
pessoalmente, por meio de reverências e maneirismos de tratamento, seja por escrita,
por delicadezas e sinais de estima. No século XVII monárquico e aristocrático, a
144 política era exercida por proximidade, reciprocidade e clientelismo, num conjunto
hierarquizado em cascata de níveis. Esse funcionamento se estendia da Corte à cidade
e às províncias, começando pela proximidade em relação à família real, passando
pelas casas, ordens, cabalas, cercles e clientelas. Nesse circuito de influência, a
amizade representava um importante elo que vinculava pessoas cujos interesses
coincidiam e que poderiam, eventualmente, solidarizar-se mutuamente. Unindo os
dois fatores, as relações hierárquicas da ordem que tratamos dependiam das fórmulas
de decoro de modo a traduzir adequadamente os signos de amizade. Esse signos de
amizade regulavam a interação entre os sujeitos, ajustando as distâncias para,
posteriormente, possibilitar a aproximação entre um e outro. Vimos nas cartas da
marquesa de Sablé que este ritual de amizade era parte indispensável da estrutura
discursiva epistolar: o silêncio, ou ausência de comunicação, sempre devia ser
justificado para que não se desse a entender que um dos interlocutores se encontrava
em má disposição na relação.
A amizade prescindia, também, da confidência. Como tentamos demonstrar, o
uso do segredo foi uma prerrogativa recorrente no exercício das funções políticas do
século XVII, tanto pelos ministros e príncipes da alta política, quanto para os
secretários e servidores em geral. Nos textos de La Rochefoucauld, em contrapartida,
os mesmos mecanismos e capacidades de fidelidade eram louvados, mas por motivos
totalmente distintos. Se a tratadística política via nos segredos uma forma de
fragilizar, manipular e sujeitar os demais, La Rochefoucauld – moralista expoente da
cultura de salão – tinha uma visão mais “pura”, ou seja, menos instrumental do
segredo. Para o duque, a confidência e a fidelidade eram traços distintivos do ideal de
honestidade cuja última finalidade era a de distinguir-se – como honnête homme – e
preservar o amigo que confiara o “depósito”. Vimos também que Jacques Esprit
defendia um ideal de confidência bem mais próximo ao cristianismo, o que condizia
com sua formação e valores. Para o “abade” Esprit, a necessidade de confidenciar um
segredo é indicativo da condição decaída do homem. Na maioria das vezes, essa
confidência era usada como uma forma de mercadejar confiança, motivo pelo qual o
moralista defendeu que os únicos capazes da “verdadeira” confidencialidade seriam
os cristãos. Isentos, em tese, de qualquer interesse no comércio de segredos, a
confidência deles seria algo muito parecido com a confissão.
Essa ideia está diretamente ligada com os usos de silêncio analisados, também
a partir de Esprit, no último capítulo da pesquisa. O verdadeiro cristão, para Esprit,
145 devia ser capaz de mostrar-se exteriormente da mesma forma que é interiormente. Os
artifícios simulatórios colocavam em jogo, para o moralista, um problema sobre a real
imagem de si. O silenciamento era usado como meio de representação de gravidade,
paciência, modéstia e confiança que não necessariamente implicavam na reforma da
alma de alguém. De nada servia a capacidade de se adestrar e modelar o próprio
comportamento em sociedade, o que era muito idealizado e difundido na época. Esprit
defendia, antes disso, uma austera reforma dos próprios comportamentos de modo que
absolutamente nada precisasse ser mascarado do resto da sociedade.
A partir das leituras das cartas da senhora de Sablé é possível imaginarmos
com mais clareza qual era, na prática, a aplicação das ideias do silêncio no decoro que
norteava as relações cotidianas entre os sujeitos. Muitas dessas ideias estão presentes
nas reflexões da marquesa e de La Rochefoucauld. Ainda nos parece um pouco difícil
definir os objetivos e aplicações idealizados por Esprit, tendo em vista a radical
austeridade que prega em seu tratado. O moralista detestava o que é “terreno”, tudo o
que é “humano”, ao mesmo tempo que rejeitava a “solução” mais quimerizada: o
retiro, o isolamento. O que pretendia, então? Ainda não conseguimos responder. Mas
sobre a gênese dessa crítica, conjecturamos sobre o salão de Sablé como um todo. Os
três eram conhecedores e habituados das altas esferas da sociedade, um universo que
abarcou nobres, religiosos e laicos, libertinos, moralistas e cortesãos da geração
imediatamente anterior e posterior à Fronda. Era uma geração desiludida com as
mortes e derrotas; receosa de ser superada pelas levas de cortesãos mais habituados à
forma de fazer política do novo rei; desenganada com as transformações das artes de
viver e da moral. Resignados e conservadores, os mundanos e moralistas que
envelheciam na segunda metade do século XVII foram os responsáveis pelo despontar
de um pensamento crítico que denunciava a corrupção de um mundo que, assim
acreditavam, decaía. Foi a geração que buscou abrigo no jansenismo, em suas grandes
propriedades, nos conventos de Port-Royal, Saint-Cyr e tantas outras maisons de
retraite, enquanto tantos outros viriam afluir a Versalhes. O pensamento moralista foi
uma das formas de autoafirmação e exercício de liberdade dessa geração.
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