Ary Barroso - Lilian Fontes
Transcrição
Ary Barroso - Lilian Fontes
ARY BARROSO, das marchas e sambas à gaitinha pelo gol. Compositor, locutor de rádio, chefe de família e boêmio, flamenguista doente, autor de uma das músicas brasileiras mais tocadas: Aquarela do Brasil, considerado o segundo hino nacional brasileiro, já em 1943 corria mundo fazendo parte de filme de Walt Disney sobre o papagaio Zé Carioca. É hora de lembramos de Ary Barroso (1903-1964), o homem cujo conhecimento de música clássica, de samba e de ritmos brasileiros mudou inteiramente a música popular desse “Brasil, meu Brasil brasileiro”. Órfão de pai e mãe aos oito anos foi criado por tia Ritinha que, ao examinar-lhes as mãos, determinou que, no dia seguinte, começaria as aulas de piano. Eram três horas por dia, de segunda a sexta. Na cidade de Ubá, interior de Minas Gerais, onde nasceu em 7 de novembro de 1903 aquele pequeno menino se tornaria aos dezesseis anos um pianista que parentes e amigos ficavam admirados. Executava peças clássicas, de Pour Elise à “patética” de Beethoven. Fato curioso é que tias Ritinha e Ary, faziam o fundo musical dos filmes do Cine Ideal e no Cine Avenida. Eram pianistas de cinema, profissão que não existe mais. Ary, ainda muito jovem, sabia adequar com precisão o fundo musical para um movimentado filme de faroeste ou para uma cena de amor. Foram anos de vida e uma vasta obra. Mais do que o compositor de Aquarela do Brasil, Na Baixa do Sapateiro, ou dos sambas que João Gilberto cantou nos primeiros tempos da bossa nova, foram valsas, canções, marchas carnavalescas e os sambas que Ary Barroso acrescentou uma bossa rítmica própria, meio batuque, meio jongo. Na década de 30, na chamada Época de Ouro, compôs pelo menos uma obra-prima por ano: Faceira, Inquietação É Mentira, Oi, Foi ela, Tu, Camisa amarela, Perdão, Sem ela, Caco Velho, Falta de Consciência, Sentinela, Alerta, Estrela da Manhã, Mão no remo, as duas últimas com Noel Rosa. Com Lamartine Babo compôs No rancho fundo, Na virada da montanha. E ainda fez O correio já chegou e Grau dez, Bahia, Quando eu penso na Bahia e No tabuleiro da baiana. Mas, já naquela época, a vida de músico não era fácil e por isso, Ary teve de se desdobrar em várias outras atividades, a começar pelo rádio. Dirigiu o famoso “Calouros em desfile” e tornou-se locutor de futebol, lembrado ainda hoje pelo uso da gaitinha em lugar do grito pelo gol. Flamenguista até o fundo da alma, não conseguia ser imparcial ao narrar um jogo do Flamengo. Quando o time adversário atacava, ele virava de costas e dizia ao microfone: “Não quero nem ver!”. Além da música, futebol era o seu assunto. Foi um dos que brigou para que o estádio do Maracanã fosse construído para a Copa do Mundo de 1950. Ary mudou-se para o Rio em 1921 iniciando a faculdade de Direito, profissão que não chegou a exercer já que a música se fez mais forte. Com 22 anos conheceu Ivone, mulher de vida inteira que na época tinha apenas 13 anos de idade. O sogro, um major, era contra o casamento da filha com um “músico boêmio”. Ary era pianista do cinema Íris e do Odeon. “Fiz do piano a minha enxada”, disse em entrevista ä revista manchete, em 1962. Mas ao vencer o concurso da Casa Edison com a marchinha Dá nela, Ary Barroso se posicionou diante da família de Ivone e em 1930 casaram-se. Tiveram dois filhos: Flávio Rubens e Mariúza. A família: um alicerce na vida de Ary Barroso. “Mamãe era quem dava estrutura a vida de papai, inclusive na parte financeira porque papai era muito desorganizado. Ela aceitava a vida boêmia que ele tinha. Com isso, ele teve o sossego para poder brotar em todo o seu esplendor, tendo segurança e paz, podendo explodir na sua criatividade”. Conta Mariúza, num relato pleno de admiração. “Sua cabeça estava sempre na frente dos meros mortais. Ele ajudava a gente a pensar e por isso acho que eu e meu irmão temos uma agilidade mental muito grande para perceber as coisas. Era um pai presente e exigente, severo, pai mineiro que cuida das notas do colégio”. Morou a maior parte da vida no Leme na Rua Gustavo Sampaio, 74. Uma casa com quintal, onde Ary instalou um galinheiro, plantou laranjeira, onde uma cobra vivia trepada a seu tronco. No fundo, os bichos do mato: cobras, lagartos, sapos e pássaros. “Eu notava que ele não era um pai igual aos outros, pois enquanto os outros chegavam para jantar, meu pai saía”. A boemia de Ary Barroso foi inteiramente absorvida pela família. Ele costumava chegar às quatro da manhã com uma quentinha contendo algum prato delicioso que havia experimentado nas suas andanças noturnas e acordava a todos para degustá-las de madrugada “E nós tínhamos que comer e estar às sete e meia de pé para irmos à escola”. Ele enchia a casa de vida e alegria. Gostava de passear na Urca, muito porque sua amiga Carmem Miranda morava lá. Aos domingos, fazia passeios de carro com a família pelo bairro, fazendo questão de acelerar na subida da ponte do famoso “quadrado” para ao descer, causar aquele friozinho na barriga em todos. A casa era um ambiente alegre, ele era acessível a todos. “O seu telefone estava no catálogo. Todo mundo que queria aparecer era bem recebido”. “Eu e ele éramos muito iguais. Saíamos juntos, assistíamos muito esporte. Eu me tornei secretária dele”. Mariúza o acompanhava aos jogos do Flamengo e todo domingo à noite se juntavam com a turma dos flamenguistas no Restaurante Recreio, na Praça José de Alencar no Flamengo. “Ele colocava na minha boca aquela picanha mal passada com farofa e dizia: Olha que delícia!”. Tinha muitos amigos, Lucio Rangel, Fernando Lobo, Antonio Maria, Ciro Aranha e tantos outros. “Muitos pensavam que ele e Antonio Maria eram inimigos, mas não, eram grandíssimos amigos. Antonio Maria fazia samba de fossa e papai samba alegre”, conta Mariúza. Costumavam discutir com veemência na TV o que dava ao telespectador a impressão de que eram irreconciliáveis. O samba de Antonio Maria, Ninguém me ama, Foi o pivô de discussões entre os dois. Ary considerava um samba abolerado e, no entanto, era o maior sucesso de Antonio Maria. Discutiam, mas nada abalava a amizade dos dois, colegas de boemia. Seus momentos em família eram de grande alegria, conta Mariúza. Aquarela do Brasil nasceu numa noite chuvosa, que o prendeu em casa. Enquanto as crianças dormiam, Ivone e o cunhado conversavam na sala, Ary sentou-se ao piano e acometido de um sentimento patriótico, compôs este “hino brasileiro”. “Senti, então, iluminar-me a idéia: a de libertar o samba das tragédias da vida, do sensualismo, das paixões incompreendidas, do cenário sensual já tão explorado. Fui sentindo toda a grandeza, o valor e a opulência da nossa terra” gigante pela própria natureza”. (...) de dentro de minh’alma extravasava um samba que eu há muito desejara, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes, desenhasse a grandeza, a exuberância da terra promissora, da gente boa, laboriosa e pacífica, povo que ama a terra em que nasceu. Esse samba divinizava, numa apoteose sonora, esse Brasil glorioso”. Disse em depoimento a jornalista e historiadora Marisa Lima e publicada no Diário de Notícias, em outubro de 1958. Carmem Miranda fora uma grande amiga. O seu sucesso nos Estados Unidos, a falsa baiana que a consagrou tendo sido a estrela mais bem paga de sua época, a levou a ser a “empresária” de Ary Barroso cantando e falando de suas músicas nos filmes e shows que fazia pelos Estados Unidos. E, com o sucesso de Aquarela do Brasil, Walt Disney, Zé Carioca, a Republic Pictures decidiu contratar Ary Barroso para escrever as canções de uma de suas próximas produções: Brasil. Fazendo parte da estratégia da Política de Boa Vizinhança que o presidente Franklin Roosevelt incluiu entre as suas prioridades quando os Estados Unidos entrou oficialmente na II Guerra Mundial, em dezembro de 1941, o Brasil foi um dos países da América Latina que mais despertou interesse por ter uma extensa costa atlântica, sendo o ponto mais próximo da África num tempo em que o combustível era precioso. A aproximação se deu por um “intercâmbio cultural” através do cinema, do teatro, da música, da dança e qualquer manifestação popular. O escritório de Assuntos Interamericanos dirigido pelo magnata Nelson Rockefeller contratara Walt Disney para através de seus desenhos estreitarem relações com o espectador latino-americano. Ary Barroso foi recebido pelos desenhistas dos Estúdios Disney, em Los Angeles, em 1944. Na época, os norte-americanos já estavam familiarizados com o samba brasileiro. Aquarela do Brasil tinha sido convertida em “Brazil”, O filme The three caballeros onde Zé Carioca contracena com Pato Donald teve dois sambas seus: O s Quindins de Iaiá e Na Baixa do Sapateiro. Mas o filme Brasil foi um fracasso de crítica e de bilheteria inclusive aqui, no seu país. As canções Quando a noite é serena, Café, a arrebatadora Isto é o meu Brasil foram feitas para o filme. No entanto, os produtores norte-americanos não desanimaram acenando mais duas tentadoras possibilidades para Ary Barroso: um filme a ser bancado pela Fox e um musical para a Broadway, ambos previstos para estrear em 1945. O filme contaria uma história romântica passada no Copacabana Palace e teria no elenco Carmem Miranda, June Haver, Dick Haynes e outros do primeiro time do estúdio. As canções seriam de Ary com letras em inglês de Mack Gordon. Para o musical da Brodway, Ary escreveu vinte canções. Seria a historia de D. Pedro I com a Marquesa de Santos e teria o nome de Pedro Songs. Ary estava animado e chegou a dizer em uma entrevista a uma emissora de rádio que essa sua obra lhe daria um lugar onde só os grandes nomes como Gershwings, Jerome Kern, Cole Porter tinham acesso. Mas tanto o filme quanto o musical não chegaram a ser realizados pondo fim à carreira americana de Ary Barroso. A morte de Ary Barroso foi uma vivência difícil para a família. “Nós estávamos preparados para a festa e não para a doença”. Disse a filha. O que a princípio foi tratada como uma hepatite, aos poucos foi se revelando uma cirrose hepática que o deixou de cama, debilitado por alguns anos. No Natal de 1963, internado na Casa de Saúde São José, no Humaitá, Ary Barroso recebeu a visita de Antonio Maria conhecido como seu rival não só pelas músicas que compunham, mas também porque Ary era Flamengo e Antonio Maria, Vasco. A visita tinha como intenção acabar com as rivalidades absolutamente bobas. Ary recebeu o amigo com cordialidade e um tanto já enfraquecido pela doença. Falaram sobre futebol, até que Ary, de repente, fez um pedido para Maria: - Maria, por favor, cante Aquarela do Brasil... Antônio Maria tentou se esquivar, mudar de conversa, mas Ary insistiu: - Maria, já lhe pedi, cante Aquarela do Brasil... Não teve como escapar e, baixinho, começou: - Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato izoneiro, vou cantar-te nos meus versos... E foi assim até o final quando então foi surpreendido por outro pedido de Ary. - Agora, Maria, peça para eu cantar Ninguém me ama. Antonio Maria vendo o amigo enfraquecido alegou que seria muito esforço para ele cantar o sucesso que ele, Antonio Maria, compusera. - Maria, estou lhe ordendando que me peça para cantar Ninguém me ama... Constrangido, se entregou: - Ary, cante Ninguém me ama. A sua reação foi de espanto quando Ary, com a voz rouca, murmurou: - Não sei Maria, não sei... Sua morte ocorreu em 9 de fevereiro de 1964. Tinha então 60 anos. Era domingo de carnaval e a Escola de Samba Império Serrano preparava-se para desfilar com o enredo Aquarela Brasileira. O corpo foi levado para a Igreja Santa Teresinha, e ao sair do carro, seu filho Flávio Rubens foi abordado pelos integrantes de um bloco carnavalesco do Morro da Babilônia e que, ao saberem de quem se tratava, fizeram questão de participar do velório. E assim, palhaços, colombinas e pierrôs fizeram a despedida de Ary Barroso. Aquarela do Brasil Ary Barroso (1939) Brasil, meu Brasil Brasileiro Meu mulato izoneiro Vou cantar-te nos meus versos O Brasil, samba que dá Bamboleiro que faz gingá O Brasil do meu amor Terra de Nosso senhor Brasil! Brasil! Prá mim...prá mim... Ô, abre a cortina do passado Tira a mãe preta do serrado Bota o rei congo no congado Brasil! Brasil! Deixa cantar de novo o trovador A merncória luz da lua Toda a canção do meu amor Quero ver a “sá dona” caminhando Pelos salões arrastando O seu vestido rendado Brasil! Brasil! Prá mim...prá mim... Brasil, terra boa e gostosa Da morena sestrosa De olhar indiscreto O Brasil, verde que dá Para o mundo se admirá O Brasil do meu amor Terra do nosso senhor Brasil! Brasil! Prá mim... prá mim... Ô, esse coqueiro que dá côco Oi onde amarro a minha rêde Nas noites claras d luar Brasil! Brasil! Ô ôi essas fontes murmurantes Ôi onde eu mato a minha sede E onde a lua vem brincá Ôi, esse Brasil lindo e trigueiro É o meu Brasil brasileiro Terra de samba e pandeiro Brasil! Brasil! Prá mim...prá mim... Lilian Fontes