JR ainda alternativa (1)

Transcrição

JR ainda alternativa (1)
O desafio da responsabilidade.
Justiça restaurativa procura seu lugar
PEDRO SCURO NETO
H
Á MAIS DE UMA DÉCADA pesquisadores do Centro Talcott 1 abriram no Brasil uma
senda que atualmente oferece milhares de oportunidades de trabalho com potencial
criativo e transformador. Algo a princípio impossível de prever, até porque os
gestores que aderiram à justiça restaurativa, um dos componentes do trabalho do Centro,
queriam-na somente na base de trabalho voluntário. Os pesquisadores, por sua vez, estavam
convencidos que procedimentos restaurativos devem ser testados, mostrar vantagens em
comparação ao que habitualmente se usa para abordar conflitos, e a partir daí implantados em
caráter experimental. Tinham plena consciência que todo procedimento inovador precisa
contemplar os níveis de qualificação, competência e ética exigidos pela divisão de trabalho das
redes e sistemas em que são aplicados. Rejeitavam, portanto, o “antiprofissionalismo” dos
pioneiros da justiça restaurativa no estrangeiro, ainda hoje moeda corrente na maior parte das
iniciativas brasileiras.
O antiprofissionalismo revela-se, por exemplo, na obra do pioneiro norueguês que
insistia na redução da dependência em relação a especialistas. Segundo ele, advogados,
professores, psicólogos, policiais etc., simplesmente “roubam” os conflitos de seus legítimos
“donos”, as pessoas envolvidas.2 Era o caso também do norte-americano que pregava a
substituição do modo convencional de Justiça, “retributivo”, centrado em punição, rotulagem e
atendimento, por um “novo paradigma” 3, a justiça restaurativa, protagonizado por
“facilitadores” capazes de mostrar que os envolvidos podem resolver sozinhos seus próprios
problemas. Processos como “círculos restaurativos”, em que simples objetos (“peças de
palavra”) passam de mão em mão determinando a vez e o direito de cada participante dirigir-se
aos demais.
Na singeleza desses objetos está corporificado um dourado sonho de liberdade: os
envolvidos progressivamente se desatrelam dos intermediários, incluindo de facilitadores. Algo
desmentido, no entanto, pelo poder do facilitador de “convidar os envolvidos a participar,
montar cenários e persuadir as pessoas que procedimentos restaurativos as autorizam [melhor
dizendo, as fazem assumir responsabilidades] a buscar soluções”.4 Circunstâncias que
obrigaram os pioneiros e seus seguidores a admitir que “encontros restaurativos” precisam de
coordenação qualificada, profissional, exercida mediante regras rigorosas e princípios nítidos.
Autor de Sociologia geral e jurídica (7ª edição, 2010) e de Eu e a sociedade: fundamentos de análise sociológica
(2013). Consultor em transformação de cultura organizacional. Coordenou os primeiros projetos de justiça
restaurativa no Brasil. Concebeu e foi o primeiro diretor do centro de pesquisas da Escola Superior da
Magistratura (RS).
1 PSN, Justiça nas escolas: função das câmaras restaurativas. O Direito é aprender (L. N. Brancher, M. M. Rodrigues e A.
G. Viei, org.). Fundescola/MEC/Banco Mundial, vol. 1, 1999: 47-58.
2 Nils Christie, Conflicts as property. British Journal of Criminology, vol. 17, 1977: 1-15.
3 Howard Zehr, Changing lenses. A new focus for crime and justice. Scottsdale, 1990.
4 Jennifer L. Sawin e Howard Zehr, The ideas of engagement and empowerment. Handbook of restorative justice (G.
Johnstone e D. W. Van Ness, org.), Cullompton, 2007: 53.
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Insistem, porém, que essas regras são controvertidas e que o debate sobre se devemos nos ater a
elas está longe de termina – até mesmo porque “à medida que as práticas restaurativas se
expandem e exigem facilitadores profissionais, aumentam as dúvidas acerca da sua condição de
legítimos representantes da comunidade e fidelidade ao espírito envolvente e autorizador da
justiça restaurativa”. Ressaltam, a esse respeito, o caso da mediação, cada vez mais conduzida
por profissionais, geralmente psicólogos e advogados.5
1. Subjetivismo em crise
O modo restaurativo de fazer justiça concede grande valor ao fato de vítima e infrator se
encontrarem pessoalmente, na presença de um coordenador (ou “facilitador de resolução de
conflitos” focado num futuro ideal) que estimula diálogo, capacidade de ouvir, entender e
considerar os sentimentos, experiências e posturas dos demais.6 Quando isso não é possível,
pode ocorrer aproximação através de carta, fita gravada, mensagens etc. Contudo, somente
encontrar não basta para dar ao procedimento um caráter restaurativo, que se configura pela
convergência de cinco elementos (reunião, relato, emoção, entendimento, acordo), decisivos
para dar ao encontro um sentido restaurativo. No procedimento judicial costumeiro as partes
podem, quando muito, observar o que o outro diz a terceiros, ao passo que no padrão
restaurativo vítima e infrator interagem, relatam o ocorrido com suas próprias palavras,
mostram como os incidentes os afetaram, como encaram o ato infracional e as suas
consequências.
No encontro restaurativo, segundo a perspectiva original da JR, entra em jogo a
subjetividade, que favorecia o interlocutor integral, bem como a emoção propiciada pelo relato e
resultante do incidente. Uma e outra são fatores reprimidos pelos procedimentos da Justiça
formal, impessoal e racional, descartando seu poder curativo. Outro fator é o entendimento, que
surge da empatia, da pessoa se sentir na pele da outra; o que, se não faz o interlocutor encarar o
outro de um modo positivo, pelo menos leva a considerá-lo de um ângulo mais “natural”, de
acordo com a ordem das coisas, menos traumatizante. O derradeiro elemento é o acordo, que
estabelece uma base produtiva e consequente para o que virá depois do encontro, dependendo
do ponto de vista das partes, das circunstâncias e da vontade de cada um, da convergência de
seus interesses e de suas decisões, e não simplesmente da perspectiva dos autos de um processo
fundado apenas no contraditório.
Dos cinco fatores talvez não resulte reconciliação. Mesmo assim, devem contribuir para
elevar a capacidade de cada interlocutor de enxergar a si mesmo e ao outro como pessoa que
merece respeito, identificar-se através de experiências, e eventualmente chegar a um acordo,
independentemente das impressões que cada um tinha no príncípio e que davam razão de ter
medo e sentir hostilidade. Contudo, a exagerada ênfase no subjetivismo, no encarar realidade,
Reza a “lenda” entre os restaurativistas que enquanto a mediação serve apenas para resolver conflitos, a JR ajuda a
transformá-los.
6 John Heron, The complete facilitator's handbook. Kogan Page, 1999
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verdade e valores a partir de “sentimentos humanísticos”, pode ter desviado a atenção da JR de
algo mais importante: assumir responsabilidade pelas ações que causam incidentes e danos, o
que não compete apenas a quem se imputa um ato nocivo. O foco em subjetividades é
precisamente o fulcro de crítica pelos abusos cometidos pelo emprego indevido da justiça
restaurativa: “corrupção do processo legal”, “trivialização” da violência, “criminalização de
incivilidades”, “inclusão de conflitos banais na área de criminalização”, etc.7 Reparos justificados
pelo embaraço restaurativista diante da necessidade de conceituar responsabilidade:
Paul Mc Cold e Ted Wachtel dizem que um sistema social produz ‘janelas de disciplina social’
segundo uma combinação de duas forças vetoriais que denominam ‘controle’ e ‘apoio’. Esses
fatores, que podem corresponder à clássica dicotomia punição-tratamento, podem ser também
relacionados à combinação entre políticas públicas de ‘segurança’ e ‘assistência’, ou ainda ao que
na Educação os pedagogos relacionam a uma combinação de ‘afetos’ e ‘limites’. Uma combinação
ideal, ou seja, com boas doses de ambos os componentes, é o que, segundo os autores, daria lugar
a uma disciplina social restaurativa, ou ao que poderíamos denominar de um modelo de um
modelo de responsabilidade social restaurativa. 8
Responsabilidade coletiva
“O procedimento restaurativo busca a responsabilização, não como punição, mas que o
ofensor assuma a culpa, dê-se conta da gravidade do que fez, perceba quanta gente
sofreu em função de um ato que cometeu”. 9
“Antes de encontrar um dos assassinos de meu pai eu não sabia o que era justiça
restaurativa. Fui vê-lo depois que me escreveu, trinta anos depois do ocorrido, vinte dos
quais cumprindo pena. Na ocasião nos uniu o espírito de perdão, e a partir daí por meio
de emails e encontros desenvolveu-se um improvável relacionamento. Como ele mesmo
diz, é incrível como “vítima e agressor têm tanta coisa em comum”. Sou facilitadora,
trabalho com a capacidade de cura das palavras, das histórias, da poesia. Howard Zehr
escreveu o prefácio de um livro meu, dizendo que ao encorajar o diálogo em
profundidade sobre a vida depois de um crime, eu mostro como o encontro nos permite
ver o nosso verdadeiro eu e tomar posse de tudo que somos”. 10
Na verdade, vítima e ofensor nesse caso estão atrelados por noções de responsabilidade,
pessoal ou solidária, que a JR focada em subjetividades assim como a Justiça convencional
encaram em relação à culpa que imputamos a um agente moral pelo dano causado por um ato que
cometeu. Noções restritivas, individualizantes, indicativas de justiça baseada em retaliação,
represália ou desforra, que restringe o Direito ao ator e ao ato a partir do princípio da retribuição,
obscurecendo por sua vez a própria noção de responsabilidade.11 Diferentemente de
Allison Morris, Critiquing the critics: a brief response to critics of restorative justice. The British Journal of
Criminology, 42, 2002: 596-615; Leonardo Sica, Justiça restaurativa: críticas e contra críticas. Revista IOB de
Direito Penal e Processo Penal, 8 (47), dez. 2007/jan. 2008: 158-189.
8 Projeto Justiça para o Século 21, ‘Responsabilização’, http://www.justica21.org.br/j21.php?id=83&pg=0
9 F. depoimento (condensado), funcionário. Fundação de Atendimento Sócio-educativo (Rio Grand do Sul) – Justiça
para o Século 21, http://www.justica21.org.br/j21.php?id=372&pg=0
10 Cf. Margot Van Sluytman (condensado), Forum Europeu de Justiça Restaurativa (grupo de debate), julho, 2012.
11 PSN, Sociologia Geral e Jurídica. Introdução ao estudo do Direito, instituições jurídicas, evolução e controle social.
Saraiva, 2010: 16.
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responsabilidade coletiva, foco da justiça restaurativa, que não exige vinculação de culpabilidade
ou responsabilidade moral a este ou aquele indivíduo, não localiza a fonte da “responsabilidade
baseada em culpa” na livre vontade de um agente moral individual, mas na culpabilidade do
grupo, estabelecendo a ação coletiva como descritor de responsabilidade moral. 12
“Existe entre os seres humanos uma solidariedade que faz de cada um de nós responsável
por todo erro e toda injustiça, especialmente em caso de crimes cometidos na nossa
presença e/ou do nosso conhecimento. Se não faço tudo que posso para prevenir tais
crimes, também sou culpado”. 13
Escamotear o sentido verdadeiramente restaurativo de responsabilidade tem como
consequência a continuidade dos sofrimentos até que se resolva prevenir os efeitos dos erros e
injustiças – como ocorre com a sociedade brasileira em relação à síndrome de corrupção,
violência e impunidade gerada pela ditadura militar, um período que a maioria concorda em
esquecer. Da mesma maneira seguem sofrendo todos que, focados em subjetividades, retringem a
noção de responsabilidade – caso da mencionada facilitadora acima, que só quis perdoar o
matador arrependido: “O outro, há anos foi a um programa de tv e ficou se exibindo, falando do
crime como se tivesse sido uma façanha. Minha família e eu fomos convidados, mas não
aceitamos, e não me arrependo por isso”.
O fascínio da justiça restaurativa advém principalmente da alegação que punir causa
mais problemas do que resolve. Contudo, a possibilidade de “fazer justiça restautiva” continua a
ser questionada, em particular em circunstâncias de endurecimento das leis. Restrições que têm
a ver com a indigência teórica da justiça restaurativa e a confusão conceitual de seus adeptos, a
quem falta clara perspectiva de controle social da violência e de redução de reincidência,
especialmente no caso dos infratores mais graves. Carências peculiares a quem prefere
conceituar de forma apaixonada e supor, por exemplo, a existência de um “consenso
comunitário” resistente à delinquência, mas nunca dizer o que entende por “comunidade”.
Avultam assim críticas à justiça restaurativa por ser “um movimento sem futuro”, que “não diz a
que veio”, “mais preocupado com sentimentos humanísticos [amiúde confundidos com valores]
que em demonstrar eficácia”, suscitando problemas sem solução. 14
2. Justiça restaurativa e desregulamentação
“Sou a hora, e a hora é de assombros e toda ela escombros
dela” (Fernando Pessoa, Hora absurda).
Os fatores que contam para determinar o encanto da justiça restaurativa (ênfase no
subjetivismo e denúncia da punição) se explicam no enraizamento da JR numa ampla tendência
ideológica, a New Age ou “nova espiritualidade” marcada por esquemas desvinculados de
hierarquias e focados nos valores, problemas e disposições do eu, individualidade apreendida
metafisicamente. Tipicamente “pós-moderna” e do período histórico de hegemonia mundial dos
Cf. Marion Smiley, Collective responsibility, http://plato.stanford.edu/entries/collective-responsibility/.
Karl Jaspers, The question of German guilt. Capricorn, 1961: 36.
14 Robert M. Regoli, John D. Hewitt, Matt DeLisi. Delinquency in society: the essentials. Jones and Bartlett, 2011: 425
(citando Sharon Levrant, Adam Crawford, Todd Clear e outros).
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Estados Unidos, a New Age expressa ideias, apegos e opiniões que refletem uma busca frenética
por “força e significação dentro de si mesmo” e pela determinação do “eixo” (da sociedade ou
dos indivíduos) sem recorrer necessariamente aos padrões “paternalistas e autoritários” das
instituições convencionais.15 Em vez disso, para manter o rumo os atores usam seus próprios
“giroscópios” 16 alinhados às exigências do mundo moderno e em particular aos modos como os
outros vivem, consomem, ganham, possuem, crêem e se posicionam em relação a trabalho,
política, tempo livre, etc.
Essa comunidade “majoritária” se tornou na prática a principal “fonte restauradora de
confiança” em relação a qual o eu procura, usando “recursos comprometidos com a simbologia
em curso”, expressar e resolver os problemas de identidade gerados pelas formas
contemporâneas de viver.17 Por sua vez, as próprias instituições que por tanto tempo se
impuseram mediante conhecimentos, práticas e padrões indiscutíveis, na pós-modernidade
tiveram de “destradicionalizar-se”, adotar maneiras “flexíveis”, princípios e expectativas
acomodados às circunstâncias, condições e ao prestígio de indivíduos e grupos “médios”.
Conformismo que reflete os anseios, necessidades e interesses desses atores, e que mais do que
simplesmente aceitar sem questionar padrões sociais estabelecidos repercute em escala
generalizada uma disposição a se acomodar para obter a aprovação dos demais. 18
Num tal contexto não é incomum encontrar atores insatisfeitos com os meios e objetivos
disponíveis, que flutuam entre a certeza e a incerteza e, por isso, procuram em “instituições
alternativas respostas para seus anseios mais profundos”.19 Razão pela qual, desconfiados das
estruturas tradicionais, “suspeitas ou desprovidas de genuína autoridade”, transferem sua
lealdade a sedutores movimentos cuja normatividade supostamente mais arejada permite o que
as “organizações estabelecidas” não toleram. Não obstante, segue vigorando a sacralidade do
eu, a individualidade ressentida com determinações externas (tradição, autoridade), porém nas
quais continua buscando refúgio, porém cada vez mais incomodada pela obrigação de colocar
juízos “oficiais” acima dos seus. Essa personalidade pós-moderna não enjeita coerção nem
alocação de direitos e responsabilidades, mas não perde a ocasião de mostrar sua preferência
por desregulamentação, que previne os efeitos indesejáveis da ação institucional e produz
resultados que através dessa ação não ocorreriam.
O alvo preferencial da desregulamentação é o próprio Direito, a mais poderosa
referência de vida civilizada, capaz de converter vínculos condicionados, por exemplo, através de
Marilena Chauí, Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. Brasiliense, 1994: 108.
David Riesman, Nathan Glazer e Reuel Denney, The lonely crowd: a study of the changing American character. Yale
University Press. 2001 [1951].
17 David Lyon, Jesus in Disneyland. Religion in postmodern times. Polity, 2000; Paul Heelas, The New Age movement.
The celebration of the self and the sacralization of modernity. Blackwell, 1996: 173.
18 Não admira Robert K. Merton (Social theory and social structure, The Free Press, 1968) ter sugerido que na
sociedade atual somos todos, mesmo oscarentes de estruturas e de meios, majoritariamente conformistas.
Algo que no Brasil custamos a entender, achando que conformismo é temporâneo, politica e moralmente
negativo, “disperso no interior da cultura dominante” (Chauí).
19 Pontifício Conselho para a Cultura, Jesus Christ, the bearer of the water of life. A Christian reflection of the ‘New Age’.
Vaticano, 2003.
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grupo ou raça, em subordinação especificamente legal, o que permite à ordem normativa
dispensar modalidades tradicionais de legitimação e autoridade. A erosão do rigor analítico do
Direito e perda do seu potencial explicativo, no entanto, há bastante tempo contribuem para
torná-lo objeto de constantes críticas. No início do século XX, por exemplo, produziram-se
consistentes tentativas de mudar a “intenção” do Direito, deixando de lado o “formalismo”,
positivista, calcado em normas enunciadas, e em vez disso buscando o “sentido real” da norma
focada nos objetivos e necessidades da vida social.20 Contudo, os agentes, “veículos” de tal
transformação somente se destacaram na pós-modernidade, associando o “real sentido” da
norma à tendência dos setores a se autocomporem e regularem seus próprios conflitos. Um
direito com intenções “pluralistas”, configurado através de
[R]edes de legalidade justapostas ou paralelas, resultantes não apenas de decisões emanadas de
instituições governamentais, como o Legislativo e o Executivo, mas, igualmente, de negociações e
deliberações nos diferentes sistemas e subsistemas que compõem a economia e a sociedade. [Um
direito] cuja produção normativa cada vez mais se dá em instâncias não legislativas, motivo pelo
qual seu conteúdo normativo não é determinado apenas pelo Estado, mas pactuado por diferentes
atores – empresas, fundações, associações comunitárias, entidades de classe, órgãos de
representação corporativa e organizações não governamentais.21
Uma das versões mais singelas (e menos exclusivistas) desse direito é sem dúvida a
justiça restaurativa, cujas diretrizes se definem pela via negativa, isto é, a partir da subversão
das características do sistema convencional (ou “justiça retributiva”, caracteristicamente
iluminista, formalista, estatal e punitiva). 22
Justiça retributiva
Justiça restaurativa
Infração: noção abstrata, violação da lei, ato
contra o Estado
Infração: ato contra pessoas, grupos,
comunidades
Controle: sistema de justiça penal
Controle: atores
Compromisso do infrator: pagar multa, cumprir
pena
Compromisso do infrator: assumir
responsabilidades, compensar o dano
Infração: ato e responsabilidade exclusivamente
individuais
Infração: ato e responsabilidade com dimensões
sociais e individuais
Pena eficaz: ameaça de castigo altera condutas e
coíbe a criminalidade
Castigo tão-somente não muda condutas, além de
prejudicar a harmonia social e a qualidade dos
relacionamentos
Vítima: protagonista: vital para o
encaminhamento do processo e a solução dos
conflitos
Infrator: definido por sua capacidade de reparar
danos e relacionamentos
Vítima: ator periférico no processo legal
Infrator: definido por suas deficiências
Hermann Kantorowicz, Die Epochen der Rechtswissenschaft (1914). Vorschule der Rechtsphilosophie (Gustav
Radbruch, org.), Scherer, 1947: 63 e seg.
21 Cf. José Eduardo Faria, Sociologia jurídica: Direito e conjuntura. Saraiva, 2008: 7.
22 PSN, Por uma justiça restaurativa ‘real e possível’ (2004). Cf. Juliana Cardoso Benedetti. Tão próximos [e] tão
distantes: a justiça restaurativa entre comunidade e sociedade. Dissertação de mestrado, Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, 2009.
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Preocupação principal: estabelecer culpa por
eventos passados (Quem foi e o que fez?)
Ênfase: relações formais, adversativas,
adjucatórias e dispositivas
Preocupação principal: resolver o conflito,
enfatizando deveres e obrigações futuras (Que
precisa ser feito agora?)
Ênfase: diálogo e negociação
Finalidade: impor sofrimento para punir e coibir
Finalidade: restituir para compensar as partes e
reconciliar
Comunidade: marginalizada, representada pelo
Estado
Comunidade: viabiliza o processo restaurativo
Sem embargo, acentuar diferenças da era pós-moderna em relação aos períodos
anteriores não é unamidade entre os analistas, cada vez mais desconfiados de periodizações que
interpretam a história de forma sequencial como enredos que invariavelmente terminam em
degeneração e declínio. Argumentam em contrário que no mundo real ocorre, por exemplo, uma
“transferência entre destradicionalização e retradicionalização, configurando processos em que
são preservados conhecimentos, valores, memórias e outros construídos”.23 Reafirmam assim a
doutrina preferida da burguesia, o darwinismo focado na sociedade cada vez mais secularizada
e “melhor” graças aos mais aptos, à ciência, à tecnologia e ao liberalismo (cada vez mais
articulado à social-democracia e seu reformismo que rejeita a polarização entre capitalismo e
socialismo).24
Secularização e secularismo
Os analistas geralmente confundem secularização – conceito a princípio restrito a
privatização ou estatização da propriedade eclesiástica, mas depois associado à perda de
influência da religião “sobre as diversas esferas da vida social” [Anthony Giddens e Philip
W. Sutton, Sociologia. Penso, 2012: 495-496] – e secularismo, espírito de oposição à
religião. Este último denota transformação das estruturas sociais e separação dos valores,
porém não como algo peculiar, restrito à sociedade moderna, mais “reflexiva” ou
“secular” que as outras, mas uma série de modelos elaborados gradualmente em
mudanças históricas que decurso há muito tempo:
(1) deslocamento do “centro” do universo: homem → natureza → matéria (a realidade
objetiva, independente da consciência e nela refletida);
(2) diluição da dualidade homem/universo diante da primazia da matéria e do ser
humano submetido à férrea lógica das leis naturais;
(3) transformação do homem, de unidimensional a entidade funcional, estereotipada,
programada e alienada da sua essência e sua própria existência;
(4) desencanto (desmitificação) da natureza e transformação do mundo (homem,
natureza e sociedade) em espaço assolado por conflitos permanentes (que “sempre foram
desse jeito”);
(5) mundo destituído de propósito, sentido ou objetivo, evolução não inerentemente
progressiva nem predisposta a crescente complexidade, mas à diversificação cada vez
mais acentuada (mesmo assim, o mundo pode ser controlado pelo conhecimento e os
interesses de indivíduos, grupos e povos dispostos a conquistá-lo e explorá-lo);
23
24
Paul Heelas, op. cit.
PSN, Eu e a sociedade: introdução à análise sociológica (2013, Capítulo VII).
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(6) todas as sociedades acabam se encontrando e se submetendo ao modelo
natureza/matéria, prevalecendo a racionalidade instrumental e dando ensejo (com a
universalização da forma derradeira de governo, a democracia liberal ocidental) ao “fim
da história” e da evolução ideológica da humanidade.
A partir dessa ótica não existe contexto social propriamente “moderno” nem “pósmoderno”, mas cruzamento, “hibridação” de ideias e práticas, por exemplo, de justiça produzida
e distribuída em “fragmentos”, frangalhos de natureza ética, intelectual, cultural e política,
frequentemente contraditórios e até mesmo antagônicos. Caso da própria justiça restaurativa,
em se combinam “formas jurídicas burocráticas com elementos de justiça informal”, justiça
“bíblica” ou justiça “indígena” (as “primeiras nações” do mundo anglo-saxão, bem entendido).25
A intenção é dar à justiça um caráter subjetivo, “natural”, espontâneo, pré-predicativo, de
condição preliminar ao processo de humanização (centrado preferentemente nos países que
atualmente dominam o planeta). Procura-se desmentir, portanto, que a justiça seja produto
histórico determinado pela consciência da classe social hegemônica, no caso a burguesia e a sua
preferência por normatividade negociada, informal, flexível, não-legislativa, composta de regras
genéricas que se ajustam às particularidades da situação. Tendências predominantes nos
tribunais que julgavam questões comerciais já na Idade Média.
Nesses tribunais, o procedimento era marcadamente rápido e informal, de vez que “tempo é
dinheiro” e justiça algo que deve ser feito “enquanto os mercadores ainda estivessem com os pés
empoeirados”, ou “entre uma maré e a próxima”. Não havia recurso nem advogado e “cada qual
contava os fatos em sua defesa da melhor maneira que podia” [W. Mitchell, An essay on the early
history of the law merchant. Cambridge University Press., 1904: 14-17, 20]. Procedimentos que
retratavam a relativa autonomia da comunidade dos mercadores, mas também que eles eram
pessoas sujeitas a princípios éticos, devidamente aprovados pelo Direito Canônico e concretizados
em tribunais eclesiásticos. Contribuíram muito, nesse particular, as medidas sumárias do papa
que o papa Clemente V introduziu em sua bula Saepe contingit, de 1306. Certos tipos de causa
deveriam ser tratados de modo “simples, direto, sem a argumentação formal e ritualística do
processo ordinário”. Aos tribunais também não caberia exigir a petição por escrito e o magistrado
podia rejeitar qualquer medida percebida como protelatória. Desse modo, em vez de ficar ouvindo
a “gritaria” dos advogados e promotores, o juiz tinha a prerrogativa de “interrogar as partes
quando solicitado pelas mesmas ou por sua própria iniciativa, sempre que a disposição de
reconhecer igualmente o direito de cada um assim exigisse”. 26
3. Justiça restaurativa e sistemas sociais
O real desafio é aclarar, à luz das questões fundamentais da justiça
restaurativa, como os sistemas de justiça, ensino etc. concretamente
funcionam. Só assim é possível fazer do processo de fazer justiça o
núcleo da questão, reduzir a preocupação acerca do quantum de
Chris Cunneen, Reviving restorative justice traditions? Handbook of restorative justice (G. Johnstone e D. W. Van
Ness, org.), Willan, 2007: 117-118.
26 PSN, Globalização do Estado de direito: sentido e consistência (Parte I). Revista Sociologia Jurídica, nº 4, 2007.
Disponível em http://www.sociologiajuridica.net.br
25
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punição alguém deve sofrer por ter infringido esta ou aquela norma, e
avaliar se nossas normas e decisões dão mesmo conta dos danos.
Menos focados em normas e decisões poderemos assumir a obrigação
de reunir os envolvidos e ajudá-los a chamar para si a
responsabilidade de colocar as coisas no seu devido lugar.27
Vimos até aqui que os vínculos da justiça restaurativa nos esquemas mentais de hoje em
dia e nas formas contemporâneas de viver, assim como na própria gênese do Direito como o
entendemos, comprovam a sua condição de modelo positivo e, se encarado corretamente,
apropositado para mudar e melhorar o quadro atual. Bem diferente da perspectiva subjetiva e
impressionista daqueles que, desconhecendo a complexidade dos sistemas sociais e as sutilezas
das tradições jurídicas, procuram descartar a JR e impor-lhe a coima de ideia “fora de lugar” 28,
destoante do contexto social, assumem uma atitude que inviabiliza intercâmbios, desvia
esforços, desperdiça recursos e deita abaixo projetos preciosos para a sociedade.
A ameaça concreta ao modelo JR é, além da mofada ênfase em subjetividades, sua
identificação com a pós-moderna conjuntura de “estilhaçamento”, redutora de cidadãos à
condição de meros solicitadores ou consumidores de direitos.29 Conjuntura que – na base de
mensagens que dão curso a concepções levianas sobre “escolha racional”, “liberdade de opção”,
“centralidade da inovação”, agentes facilitadores, etc. – submete as “estruturas que servem de
obstáculo à lógica do mercado puro” a um sistemático questionamento. 30 A partir daí, ações
políticas episódicas, refratárias a discursos universalizantes, as subclasses sociais são
demonizadas administrativamente, os excluídos (“gente que não é e jamais será como a gente”)
sujeitos a estratégias vingativas, relegados à condição de irremediável e perigosa alteridade:
A orientação do desenvolvimento histórico das modernas instituições, notadamente o sistema carcerário, é
deslocar o centro das emoções populares “do castigo para a pena”, mediante ampliação do poder de controle
estatal exercido por profissionais. Deixando para trás o tradicional espetáculo em que o Estado e a turba se
solidarizavam contra seus inimigos comuns, a instituição da pena tornou-se veículo para inculcar hábitos de
ordem adequados à sociedade democrática. Políticas neoliberais, por sua vez, como a “Megan’s law”
[designação informal para a obrigação das autoridades americanas de disseminar amplamente o registro dos
condenados por infrações de natureza sexual] contituem desvios desse processo de modernização, em
particular ao concederem aos promotores de justiça um papel preponderante na definição do que é “risco”
para a sociedade.31
“Bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer. Lamento apenas somente um dos rapinantes
tenha sido enviado para o inferno. Fica o conselho para o policial: melhore sua mira...”. Esta é a manifestação
de um promotor de justiça que pede arquivamento do inquérito que investigava as circunstâncias em que um
policial civil matou um homem que, acompanhado de um comparsa, tentara roubar o automóvel conduzido
Restorative justice international (grupo de debates), julho de 2012, http://restorativejusticeinternational.com
Luciano Oliveira, Pluralismo jurídico y derecho alternativo en Brasil. Notas para un balance. Derecho y sociedad en
América Latina. Um debate sobre los estúdios jurídico críticos (M. García e C. A. Rodriguez, org.), Instituto
Latinoamericano de Servicios Legales, 2003; Juliana C. Benedetti, op. cit.
29 Conforme, por exemplo, um curioso mapeamento que — empregando critérios mercadológicos e índices de confiança
do consumidor — tenta inferir a percepção da população acerca dos serviços prestados pelo Judiciário e, a
partir daí, deduzir a legitimidade da Justiça. Cf. Raio-X da confiança na Justiça. Revista Getúlio, Escola de
Direito, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2009: 35-41.
30 Pierre Bourdieu, L’essence du neoliberalisme, Le Monde Diplomatique, dez. 1998.
31 J. Simon, Managing the monstrous. Sex offenders and the new penology. Psychology, public policy and law, 4, 1998.
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pelo agente. Na versão do policial o suspeito tentou atirar nele, motivo pelo qual reagiu. “O agente matou um
fauno que objetivava cometer assalto contra ele, agindo absolutamente dentro da lei”, escreveu o promotor
usando a tática de desumanizar o suspeito morto no episódio, comparando-o ao ser mitológico, meio homem
meio animal. O pedido de arquivamento foi aceito pela Justiça.32
Na realidade, refletindo de um modo geral as draconianas consequências das políticas
criminais da atualidade, a função do promotor de justiça incorpora as mesmas pressões a que os
policiais e os infratores estão expostos. A alternativa seria o promotor encarar a sua função de
forma diferente, a partir dos princípios e da prática de justiça restaurativa; contudo, não pode
fazê-lo sozinho nem isoladamente, e somente com incentivo e/ou pressão externa.
A maioria dos promotores de justiça configura sua ação como de proteção da cidadania cuja
segurança torna-se viável somente através de virtual ou efetiva punição severa de quem, na visão
dele, atenta contra os direitos ou prejudica o exercício dos deveres. Conspira nesse sentido a
doutrina que acentua a necessidade de impor regras e decisões mais duras, ajustando-se
incomparavelmente à ênfase no incremento das prerrogativas e do poder discricionário do
Ministério Público. 33
Vale o mesmo em princípio para os demais sistemas sociais e todo agente com função de
representar contra acusados de violar fórmulas indicativas ou prescritivas de maneiras corretas
de agir e raciocinar. O Direito segue sendo, porém, em qualquer circunstância o indexador,
conforme observou Durkheim há muito tempo: a “vida social não pode estender-se e prevalecer
sem que ao mesmo tempo e em relação direta a vida jurídica também amplie o seu domínio”. As
variações correm por conta do espírito da época, do clima intelectual e cultural, mas
principalmente, acredito, em razão do regime político-econômico. Assim, nos regimes
neoliberais a penalização tende a ser talvez mais sujeita ao clima eleitoral, mais vulnerável à
opinião pública, e as políticas criminais consequentemente mais duras. Nos regimes
corporativistas, por sua vez,
[a que] correspondem “economias coordenadas de mercado” com coalizões partidárias e
burocracia estatal atuante na formação de políticas e práticas de governo, ênfase em estabilidade,
seguridade e inclusão, as políticas criminais são menos duras e procuram articular gestão racional
do sistema com uma abordagem “humana”, focada em reabilitação. Tradições parecidas, mas com
relativo desmantelamento do Estado previdenciário, endurecimento de políticas penais
dependentes de poder estatal, encarceramento e determinação judiciária, condicionam regimes
híbridos, como no Brasil.34
As tradições jurídicas e políticas de Brasil e Austrália, por exemplo, permitem identificar
os membros das subclasses sociais como vítimas de mudanças estruturais sobre as quais eles
“Promotor aconselha policial a melhorar mira para matar ladrão”. Reportagem, Folha de S. Paulo, 17 set. 2011.
Liane Rozzell, Restorative justice international (grupo de debates), julho de 2012.
34 P. A. Hall e D. Soskice, An introduction to the varieties of capitalism, Varieties of capitalism (Hall e Soskice, org.).
Oxford University Press, 2003; M. Tonry, Thinking about crime: sense and sensibility in American penal
culture. Oxford University Press, 2004; N. Lacey, The prisoners' dilemma: political economy and punishment
in contemporary democracies. Cambridge University Press, 2008; PSN, Regimes político-econômicos, Direito
e globalização: autonomia ou engate estrutural? Departamento de Ciência Política, Universidade Federal de
Minas Gerais, 2009.
32
33
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não têm qualquer influência. São considerados, portanto, “gente como a gente”, seus filhos são
também “nossas crianças”, pois a sua situação atual é patogênica, passível de ser remediada por
políticas públicas. Consequentemente, por conta dessa tradição, a Austrália, mesmo sendo um
dos primeiros países do mundo a adotar políticas criminais neoliberais, depois de algum tempo
as repeliu para implementar medidas de objetivos específicos: redução de reincidência mediante
aumento das oportunidades de emprego e renda, redução dos riscos relacionados com o
consumo de álcool e drogas, justiça restaurativa, parcerias para a reintegração de infratores, etc.
35
Enquanto isso, no Brasil ocorria algo parecido. O nível de emprego cresceu enormemente,
mas desvinculado de políticas mais amplas, teve impacto apenas simbólico, à exceção dos
trunfos angariados pela mensagem de que o Estado brasileiro se preocupa com as condições de
vida de todos os seus cidadãos. 36
Isso não quer dizer, contudo, que somente determinado regime político-econômico
torna o país imune à Justiça orientada basicamente à incapacitação dos infratores – e até
mesmo quando os excluídos não representam perigo algum (caso recente da internação de
imigrantes ilegais em campos de concentração no deserto meridional da Austrália). Afirmamos,
em verdade, que o impacto dessa Justiça de exclusão pode ser abrandado de forma eficaz, como
no caso da resposta das autoridades australianas ao consumo ilegal de drogas – bem diferente
da abordagem militarista empregada com entusiasmo e aplicação pelos Estados Unidos e outros
países:
Uma ameaça é concebida e simultaneamente identificada com algumas fontes de risco
(estrangeiros produtores de drogas, traficantes internacionais em países de democracia
fracassada, drogas perigosas cujas propriedades “escravizam” os indivíduos, “monstros” –
geralmente negros e latino-americanos – que comercializam e usam o produto), para compor uma
agenda com objetivos morais e militares. O resultado é exclusão pela via das armas, com
destruição ou neutralização dos identificados com fontes de risco que representam o “mal”. 37
As diferenças de abordagem também são de ênfase. A Justiça americana prioriza
técnicas para enfrentar (e eliminar) riscos específicos associados à composição de substâncias e
a categorias ou tipos de pessoas. No caso australiano, por outro lado, são concebidas estratégias
de objetivos a longo prazo, focadas em modos operacionais de minimização dos riscos de saúde,
corrupção, propriedade, produtividade, etc., criados pelos contextos e modos de fabricação,
fornecimento, consumo e difusão das drogas. A ação do sistema de justiça é mínima,
mediatizada por tecnologias e programas com os objetivos específicos acima elencados.
Expedientes que permitiram refrear o crescimento de seus índices de encarceramento 38, ao
J. Pratt, Governing the dangerous. Dangerousness, law, and social change. Federation Press, 1997.
Perry Anderson, Lula’s Brazil. London Review of Books, 7 (31). 2011. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/nec/n91/a02n91.pdf
37 Pat O’Malley, Globalising risk? Distinguishing styles of neoliberal criminal justice in Australia and the USA. Criminal
justice and political cultures. National and international dimensions of crime control (T. Newburn e Richard
Sparks), Willan, 2004: 39.
38 Capacidade de gerenciamento que pode ser medida, por exemplo, pelo nível de ocupação das prisões, em números
oficiais: 105% na Austrália (2000), 166% no Brasil (2010). International Centre of Prison Studies, 2011.
35
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passo que no Brasil, cujas taxas já foram menores que as australianas, com o recrudescimento
das fórmulas políticas e econômicas neoliberais praticamente quadruplicaram.
Índices de encarceramento por 100 mil habitantes
Austrália
Brasil
Ano
Índice
Ano
Índice
1992
89
1992
74
1995
96
1995
92
1998
107
1997
102
2001
116
2001
133
2004
120
2004
183
2007
129
2007
220
2011
129
2011
260
4. Síntese e conclusão
A justiça restaurativa no Brasil foi a princípio proposta apenas com mais um utensílio
em uma mesma caixa de ferramentas: o Projeto Jundiaí: viver e crescer em segurança, com
múltiplas vertentes, quadrienal (um ano de planejamento e três de implementação), conjugando
teoria e prática 39, ação afirmativa e pesquisa científica. Promovia um experimento social
controlado com 26 escolas (aproximadamente 38.000 alunos), para testar um programa de
melhoria de condutas e prevenção de desordem, violência e criminalidade. Os objetivos práticos
incluíam (1) ajudar as escolas a estabelecer capacidade de auto-regulação da conduta de seus
alunos, mediante normas inteligíveis, expectativas claras e condições físicas de segurança
adequadas; (2) encorajar as famílias a estabelecer disciplina e vínculos emocionais nítidos e
consistentes. Os resultados esperados: (1) aumentar a transparência das normas e a consistência
da sua aplicação; (2) melhorar de forma sensível a organização e a administração das salas de
aula; (3) incrementar a capacidade da escola de promover comportamentos adequados e elevar
a frequência de sua comunicação com as famílias e a comunidade. 40
O Projeto percebia deficiências próprias a determinadas escolas e as integrava em uma
matriz de transformação institucional gerada por protagonismo e corresponsabilidade de
todos os atores, capacitando-os a transformar a realidade e melhorar as condições de existência
mediante ações estratégicas, sistêmicas e multiinstitucionais. Criou, dessa maneira, “um novo
sistema de disciplina e organização para as escolas brasileiras”, incorporando os componentes
do empreendimento em um modelo para “resolver conflitos e problemas disciplinares, na
‘Paradigma de médio alcance’ que requer ativa participação da cidadania em “áreas anteriormente exclusivas do
Estado, promovendo confiança nas reformas e na possibilidade de futura cooperação entre governo e
comunidade”. Lynette Parker, op. cit.
40 PSN, Câmaras restaurativas: A Justiça como instrumento de transformação de conflitos. Encontros pela Justiça na
Educação (Afonso A. Konzen, org.), MEC/Banco Mundial, 2000: 601-639. Variações tiveram efeito em
projetos de Mairiporã, Guarulhos, Heliópolis, São Caetano do Sul, Campinas.
39
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perspectiva da construção de um sentido de ordem e segurança nas escolas”. 41 Na atualidade,
esse modelo de “controle da escola pela própria escola” 42 pode estar ressurgindo, por exemplo,
com a gradativa implementação do Sistema de Proteção Escolar na rede pública estadual de São
Paulo. Nela, destaca-se o “professor mediador escolar e comunitário”, profissional cujas
atribuições incluiriam “práticas de mediação de conflitos”, “ações e programas de justiça
restaurativa”, análise de “fatores de vulnerabilidade e de risco” etc. 43
Por enquanto, contudo, o que a evolução confirmou foi apenas JR como ferramenta de
atendimento, conforme preconizado na fórmula “se o crime machuca, a justiça deve curar”, que
deveria tornar o encontro entre quem feriu e quem foi ferido o âmago do processo de fiat
justitia. 44 Foi assim na Inglaterra, embora o próprio ministro da Justiça afirme que justiça
restaurativa deva não somente cuidar de traumas, incluindo “traumas de crimes no futuro”, mas
também abrir caminhos para “romper o ciclo da reincidência, economizar o dinheiro do
contribuinte, e reabilitar o infrator”. Tudo isso baseado talvez nos índices positivos dos
procedimentos JR acerca da satisfação das vítimas e, em escala bem menor, sobre a conduta
positiva dos infratores pós-JR. Daí a disposição do governo de Sua Majestade em seguir
implantando JR em bases localizadas em cada vez mais áreas e na maior parte das
circunstâncias envolvendo crimes de menor potencial ofensivo, treinar 18 mil policiais e gastar
quase dois milhões de libras na capacitação de servidores no sistema prisional e na Justiça de
Infância e Juventude. 45
Justiça restaurativa essencialmente como atendimento parece estar decidido também
pela sua inclusão na tendência pró-vítima, manifesta desde os anos setenta na legislação penal
européia – assim como na Argentina. A saber, (a) obrigação da polícia de incluir no inquérito
informações sobre as vítimas; (b) direito de a vítima anexar declaração e se manifestar em juízo;
(c) menos penas menores e mais medidas extrajudiciais; (d) “transação pela promotoria” em
casos de condenação improvável, falta de provas, interesse público, considerações técnicas; (e)
persecução suspensa até que as condições sejam satisfeitas no tempo estabelecido pela
promotoria, quando de compensação integral ou parcial dos danos, prestação de serviço não
remunerado, medida sócio-educativa; (f) vítimas podem requerer reparação durante o
inquérito; (g) projetos JR para tratar traumas e sentimentos de culpa (atualmente em mais de
60% dos casos), embora sem nenhuma influência no processo ou na sentença 46, de modo a
"expandir além do juridicamente relevante, ao que está oculto ou subentendido”.47
Lynette Parker, El uso de práticas restaurativas en América Latina. Justicia restaurativa en Costa Rica.
Acercamientos Teóricos y Prácticos (F. B. Acevedo e S. C. Vargas, org.), Comisíon Nacional de Mejoramiento
de la Justicia (Costa Rica), 2006: 78-81.
42 Renato Tadelli Pereira, Projeto Jundiaí, relatório semestral do gerente de campo, agosto, 1998.
43 Resolução SE-1, de 20-1-2011
44 John Braithwaite, Restorative justice and de-professionalization. The Good Society, 13 (1), 2004: 28–31.
45 The future place of restorative justice in the criminal justice system, Grupo Parlamentar Pluripartídário sobre
Assuntos Penais, jul. 2012.
46 PSN, curso de especialização em ciências penais, Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal
e Territórios, abril de 2011.
47
J. Braithwaite, op. cit. 41
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Nada a ver, portanto, com justiça restaurativa como “matriz de transformação
institucional” ou “promessa de amplas transformações para a sociedade”, que os observadores
mais atentos reconheciam nas minhas propostas.48 Muito a ver, no entanto, na mais conhecida
iniciativa brasileira, cada vez mais inserida na “rede de atendimento ao adolescente em conflito
com a lei a partir do sistema de justiça” e articulada com os demais sistemas sociais mediante
políticas de Segurança, Assistência, Educação e Saúde. 49 Tudo a ver, por fim, com uma justiça
restaurativa focada em subjetividades, psicologizante e relativista (todos os pontos de vista são
igualmente válidos), componente menor de um estado de permanente tensão entre o modelo
terapêutico e o modelo retributivo de justiça, direitos do infrator e necessidades da vítima, o
dever de proteger a sociedade e a obrigação de reabilitar o execrado. 50
A solução dessas contradições, conforme ficou estabelecido neste curto ensaio, parece
residir na disposição dos gestores de executar o que na Física e na Química se conhece por salto
quântico, que ocorre quando uma partícula ganha energia, o movimento se acelera e os
elementos se afastam do núcleo originário. No caso da justiça restaurativa, cheia de energia
graças a décadas de experiência e debate, o “salto” seria a evolução do conceito primitivo de
responsabilidade, ainda formatada segundo o padrão retributivista, à noção de responsabilidade
coletiva, propriamente restaurativa. Algo obtido em larga margem já na primeira experiência JR
no Brasil, há mais de trinta anos, pelo regime penitenciário conhecido pela sigla APAC:
A metodologia APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) cria um sentido de
comunidade que constrói responsabilidade e uma ética de atendimento nos próprios prisioneiros.
Primeiramente, eles aprendem a cuidar e a ser responsáveis observando os voluntários e os
colegas que assumem a obrigação de administrar a penitenciária. Em segundo lugar, toda atenção
é dada igualmente às diversas dimensões da existência dos prisioneiros, inclusive do ponto de
vista espiritual. Terceiro, à medida que os prisioneiros respondem positivamente à confiança que
lhes é depositada, adquirem maiores responsabilidades pelo funcionamento da penitenciária. 51
Soli Deo Gratia
Lynette Parker, Developing restorative practices in Latin America. XI United Nations Congress on Crime Prevention
and Criminal Justice, Bancoq, 2005: 11-12; Leoberto N. Brancher, comunicação pessoal, dez. 2006.
Projeto Justiça para o Século 21, http://www.justica21.org.br/j21.php?id=99&pg=0
50 Marian Liebmann, Restorative justice: how it works. Jessica Kingsley Publishers, 2007: 33
51 Mario Ottoboni, Kill the criminal, save the person: The APAC methodology. Prison Fellowship International, 2000;
Daniel W. Van Ness, Trends in prisons around the world and in Latin America. Seminario-taller: Análisis y
perspectivas del sistema penitenciario en Panamá, PFI, mai. 2001.
48
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