Silvia Oroz, ou o cinema de lágrimas que explica o amor e dá

Transcrição

Silvia Oroz, ou o cinema de lágrimas que explica o amor e dá
Silvia Oroz, ou o cinema de lágrimas
que explica o amor e dá sentido à vida
Silvia Oroz, o el cine de lágrimas que
explica el amor y da sentido a la vida
POR FLÁVIO DI COLA¹
RESUMO
No antigo mundo do melodrama latino-americano, ‘las reinas del cine’— que disputavam
entre si as lágrimas do público— eram várias, porque a tríade pecado-sofrimento-redenção era vivida nas telas em doses monumentais e com intensidade espetacular por estrelas como Maria Félix, Dolores del Rio, Fanny Navarro, Laura Hidalgo, Ninón Sevilla,
Libertad Lamarque ou Zully Moreno, que brilharam nas marquises dos cinemas ao longo
de décadas. Mas no terreno acadêmico dos estudos sobre os gêneros cinematográficos e
seus enlaces com a cultura popular latino-americana, a rainha é uma só, e seu nome é tão
bombástico como os das divas de outrora: Silvia Estela Verga de Oroz, cujas atividades
de pesquisadora, conservadora de acervos, ensaísta, curadora, palestrante e professora
convidada em universidades e institutos da Argentina, do Brasil, da Colômbia, de Cuba,
do México, do Peru e da Venezuela atravessam quatro décadas. No Curso de Cinema e
Audiovisual da Universidade Estácio de Sá, ela leciona desde 1998. Nesta entrevista, concedida à revista “Trama” em seu aconchegante apartamento no bairro da Glória, no Rio
de Janeiro, ao lado de seus três gatos, de pilhas de livros e de lembranças recolhidas pelo
mundo afora, Silvia narra uma trajetória existencial e intelectual sem paralelo no meio
acadêmico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: melodrama, cinema latino-americano, Silvia Oroz
RESUMEN
En el antiguo mundo del melodrama latinoamericano, ‘las reinas del cine’ — que competían entre si las lágrimas de la audiencia— eran muchas, porque la tríada pecado-redención-sufrimiento se vivió em las pantallas en dosis monumentales e intensidad espectacular por estrellas como María Félix, Dolores Del Río, Fanny Navarro, Laura Hidalgo,
Ninón Sevilla, Libertad Lamarque o Zully Moreno, que brillaron en las marquesinas de los
cines durante décadas. Pero em el ámbito académico de los estudios de los géneros cinematográficos y sus vínculos com la cultura popular latinoamericana, la reina es una y su
nombre es tan grandilocuente como de las divas de antaño: Silvia Estela Verga de Oroz,
cuyas actividades como investigadora, curadora, ensayista, conferenciante y profesora
visitante en universidades e institutos de Argentina, de Brasil, de Colombia, de Cuba,
Trama: Indústria Criativa em Revista. Dossiê: A Cidade e as Questões do Urbano.
Ano 1, vol. 1, julho a novembro de 2015: 209-219. ISBN: 1519-9347
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de México, de Perú y de Venezuela pasan por cuatro décadas. E nel Curso de Cinema e
Audiovisual de Universidad Estácio de Sá, ella enseña desde 1998. En esta entrevista para
la revista “Trama”, em su acogedor apartamento en el barrio de Glória, en Rio de Janeiro,
junto a sus tres gatos, pilas de libros y recuerdos recogidos en todo el mundo, Silvia habla
de un viaje existencial e intelectual sin igual em la comunidad académica brasileña.
PALABRAS CLAVE: melodrama, cine latinoamericano, Silvia Oroz
Em cima: Silvia Oroz, Román Gubern, o diretor Ivan Trujillo e Carlos Monsiváis, no
lançamento de "Melodrama: el cine de lágrimas de América Latina", Cidade do
México, 1996. Encontro de diretores na casa de Silvia Oroz: Cacá Diegues, Julio García
Espinosa e Nelson Pereira dos Santos, Rio, 1996 (Fotos: acervo pessoal S. O.)
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Sua mãe era dona de um cinema em La Plata, Argentina — cuja arquitetura era similar à de um palazzo italiano — onde, cada cartaz era, segundo um relato seu, “uma
promessa de amor eterno”. Essa origem vai marcar a sua vida e a do seu irmão para
sempre. Você acreditava piamente nas ilusões proporcionadas pelos filmes? O que
significava para garotas impressionáveis — como você — estar cara a cara com as
deusas da tela?
Vou iniciar esta entrevista com uma confissão: nessa época, achava que quando eu fizesse 15 anos, seria igualzinha a uma estrela de cinema, porque simplesmente acreditava
que essa era a idade em que aconteceria esse tipo de transformação. Então, vivi essa etapa da vida com muita tranquilidade porque eu “sabia” que viraria uma Rita Hayworth².
Ou seja, antes mesmo dos 15 anos, já existia em mim essa coisa que me caracteriza: misturar com muita facilidade o simbólico com a realidade. O que, para mim, era — e ainda
é — a mesma coisa. Quando eu acreditava que tinha o cabelão de Rita Hayworth, era por
que eu queria muito tê-lo.
Ao observar a fotografia da sua mãe
nesta sala — lindamente vestida e elegante, segundo o padrão cinematográfico hollywoodiano — fico pensando
se foi dela que você herdou esse traço
sonhador, embora ela fosse uma empresária...
Sim, antes do cinema, vem mamãe. Ela
nasceu numa família numerosa, com sete
irmãos, entre os quais, cinco eram mulheres. Mas, a que se destacava mesmo, era
ela. Mamãe sempre se comportou como
uma “mulher-espetáculo”, tanto que as
suas referências supremas, masculina e
feminina, foram Carole Lombard e Clark
Gable³, por quem ela tinha verdadeira
adoração.
Como o negócio do cinema entrou na
sua família, numa época em que as
salas eram verdadeiros templos e palácios?
A família de mamãe veio da Itália. Miguel,
meu avô materno, e seus dois irmãos começaram a exploraras salas de exibição
na década de 1930, em La Plata, onde monopolizaram as salas de luxo. Seus três
cinemas foram construídos por eles com
muito esmero, pois minha família também
era proprietária de uma marmoraria, daí
as grandes escadarias nos halls de entrada. Na década de 1970, essas salas foram
transformadas em lojas, quando os grandes cinemas começaram a falir.
Silvia e os felinos: assim como seu compatriota
Jorge Luis Borges, fascinação pelos gatos
(Foto: Flávio Di Cola)
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Essa vivência muito especial que você teve, no seio de uma família que tinha o cinema como negócio, certamente selou o seu gosto cinematográfico. Seu interesse
pelo melodrama nasceu daí? Nessa época, você e seu irmão já haviam desenvolvido
um olhar crítico sobre os filmes?
Excetuando as fitas de guerra, que não assistíamos por causa das matanças, gostávamos
de todos os gêneros e procedências, fossem produções argentinas, espanholas ou americanas. E não éramos nada críticos: tínhamos um gosto aberto e indiscriminado. Quando
entrei na universidade, meu irmão ainda estava terminando o curso secundário, mas ele
já era, digamos, politizado. Num sábado à tarde, fui assistir sozinha ao filme “A batalha
de Argel”4 numa das salas de cinema da família. Fiquei arrasada. Saí enlouquecida da
sessãoe corri os oito quarteirões que separavam o cinema da minha casa a fim de buscar
o meu irmão para assistir ao filme de novo. As sessões estavam abarrotadas, era impressionante. De repente, pareceu que uma venda tinha sido arrancada dos nossos olhos.
Percebemos com “A batalha de Argel”, que tínhamos que mudar o jeito de ver a vida.
Mas, essa experiência com “A batalha
de Argel” fez com que você passasse a
desprezar o cinema popular e industrializado de antes?
Não, não, de jeito nenhum. Só que agora,
eu teria que arranjar um lugar para aquela
outra garota, mais engajada e “neorrealista”, que nascia em mim. Lembro que, na
mesma época, vi “Os pássaros”. Depois
da sessão, cheguei em casa sem conseguir
respirar. Hitchcock havia conseguido passar a mais elementar e existencial experiência de ameaça da minha vida. E era o
mais puro “cinemão”. Foi nessa época, já
meio “neorrealista”, que comecei a namorar Alfredo Oroz, meu futuro marido. Ele
era roteirista e também fazia a faculdade
de cinema. Alfredo era adepto do “cinema
puro” de William Wyler e Ernst Lubitsch⁵.
E se eu quisesse que o nosso namoro desse
certo, teria que conhecer o universo cinematográfico dele. Alfredo me contou como
conseguiu passar no exame de admissão
da faculdade: quando a banca lhe perguntou qual era o seu filme favorito, ele — ao
invés de responder como todo mundo com
“Acossado” ou “Jules e Jim” — declarou
corajosamente que era “Intriga internacional” de Hitchcock.
Delba Lombardi, mãe de Silvia Oroz,
nos anos 1930, inspirada em Carole Lombard
(Foto: acervo pessoal S. O.)
Você se tornou uma das maiores especialistas mundiais do melodrama, em especial o latino-americano. Você poderia
nos explicar, sinteticamente, a importân-
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cia desse gênero na história do cinema, como uma espécie de “educadora das massas”,
como agente de compreensão do mundo e de uma idéia do amor, e hoje — graças principalmente a você — como um importante campo de estudo cultural?
Os primeiros estudos sobre o melodrama começaram na década de 1970 e no quadro dos
estudos culturais feministas, que apontavam esse gênero como representação da castração da mulher, da sua sujeição ao patriarcado e ao mundo normativo. A partir daí, vieram
os estudos do melodrama no cinema.
E você concorda com essa visão condenatória do melodrama?
Claro que não. Aliás, acho que qualquer pessoa que reprove uma arte, como o cinema, por
exemplo, está mal da cabeça. Condenar isto ou aquilo, não leva a nada. O melodrama é uma
forma que — do seu modo — exerce um tipo de pressão sobre a vida social. O mérito dos primeiros estudos culturais foi enxergar em manifestações de origem popular — neste caso, o
melodrama — formas válidas de cultura e à altura de qualquer outra. Grandes teóricos culturais viram essa legitimidade no melodrama, como o jamaicano Stuart Hall, o colombiano
Jesus Martín-Barbero e o argentino Néstor Garcia Canclini. Afinal, os melodramas cinematográficos entravam, de fato, na vida íntima de milhões de mulheres latino-americanas.
Como?
Tenho vários casos pessoais para contar sobre como a nossa vida privada se misturava
com o discurso dos filmes. Começo com duas situações que vivi com Dona Male, mãe do
escritor Manuel Puig6. Ela havia se mudado do México para a Argentina depois da morte
do filho e eu a visitava frequentemente em Buenos Aires. Durante as nossas “conversas de
mulher”, ela sempre me perguntava: “Como estás de amores, Silvita?”. Depois que eu respondia sobre em que pé andava a minha vida sentimental, ela arrematava: “Bem, então
hoje à noite vamos ver tal filme!”. Uma vez, quando eu passava por uma série crise profissional, Male aconselhou: “Vamos assistir a ‘Kitty Foyle!’”, um dramalhão estrelado por
Ginger Rogers⁷, em que a heroína está em dúvida sobre se deve priorizar a vida íntima ou
a profissional, acabando por optar pelo trabalho, sinônimo de segurança e autonomia. Os
filmes também ajudavam a gente a entender a História. “Lawrence da Arábia” de David
Lean, por exemplo, é tão importante como qualquer bibliografia ou fonte textual para se
compreender a origem dos problemas atuais do Oriente Médio.
Você tem algum caso dessa penetração e ocupação dos melodramas na vida pessoal de sua mãe?
Claro! Tem um melodrama mexicano chamado “Uma família de tantas”, feito em 1948,
de um diretor maravilhoso, Alejandro Galindo⁸, que conta a história de uma família estruturada em torno da figura dominante do pai, e de uma mãe repetidora do discurso
patriarcal. Esse esquema vai entrando em crise, conforme a casa vai sendo mobiliada
com símbolos da modernidade, como os eletrodomésticos. Uma noite, resolvi passar esse
filme para a minha mãe, mas tive de parar a exibição no meio, porque ela teve uma crise
de choro: o que era narrado ali, reproduzia exatamente os momentos de tensão que ela
viveu na família dela, com o meu avô. Ou seja, esse melodrama agiu dentro dela com a
mesma força mediadora de uma sessão de psicanálise.
Já que citamos anteriormente os cineastas favoritos do Alfredo Oroz, qual é a lista
da Silvia Oroz de grandes diretores e filmes da história do melodrama?
Todos os filmes de Douglas Sirk⁹, em especial “Palavras ao vento” ¹⁰, e toda a obra do
diretor mexicano Emilio Fernández¹¹, destacando “Maria Candelária” e “A pérola”, mas
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sem deixar de lembrar que existe uma diferença entre os melodramas cinematográficos
norte-americanos e os latino-americanos. Por exemplo, no plano das mensagens morais:
os europeus têm a mania de dizer que nós, latino-americanos, somos mais moralistas
que os povos do hemisfério norte. Acho exatamente o contrário. Esses críticos não têm a
mínima ideia da contribuição trazida pela miscigenação racial na América Latina à nossa
formação, especialmente da vinda dos negros. Essa mistura — junto com o catolicismo —
produziu um olhar sobre a vida que é só nosso e que se traduz através de melodramas,
por exemplo, em que a prostituta é perdoada e acaba se casando. Ou nas histórias em
que os filhos aceitam com naturalidade uma mãe adotiva. Nossos relatos são mais livres
e reais. No melodrama americano, você não vai encontrar esse tipo de coisa, assim como
nunca vai ver uma mocinha descompensada como qualquer ser humano. Já no melodrama latino-americano, as mocinhas sofrem, descabelam-se, arruínam a própria aparência,
embora, raramente cheguem à autodestruição punitiva e moralizante das personagens
vividas por Bette Davis ou Joan Crawford, por exemplo.
Em vários ensaios — e na sua obra clássica “Melodrama: o cinema de lágrimas da
América Latina”¹² — você desenvolveu a tese de que o melodrama latino-americano
deve a sua prosperidade e as suas peculiaridades às condições de modernização forçada, tardia e incompleta das sociedades “periféricas”. Desse movimento, emergem
os nossos grandes centros urbanos e um novo papel social para a mulher. Isso quer
dizer que o melodrama no nosso continente, na sua origem, ainda estava imbuído de
muitos valores do mundo rural, colonial e patriarcal? Explique esse paradoxo.
Neste ponto, é importante diferenciarmos os melodramas produzidos
nos anos 1940 daqueles da década
seguinte. Nos anos 1940, a grande cidade latino-americana ainda era um
ambiente desconhecido. Ninguém
sabia ainda como era a vida no asfalto e no concreto, seus perigos, seus
usos e costumes. As pessoas viviam
imersas em dúvidas, até nas atividades cotidianas. Por exemplo: como se
vestir para um velório? Assim como
hoje, ninguém sabia para onde estava evoluindo a cidade, ou no que ela
se transformaria. O melodrama dessa
década, portanto, retrata o choque e o
convívio de medos e crenças do meio
rural com a vida urbana. Já os melodramas da década de 1950, revelam
um esforço narrativo no sentido de
parecerem modernos, mostrando a
experiência na cidade já assimilada e
construída.
"Melodrama: o cinema de lágrimas da
América Latina", obra seminal para entender o gênero
(Foto: reprodução)
E nos Estados Unidos?
Lá, essa função integradora do melodrama cinematográfico começou ain-
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da mais cedo, exatamente no momento em que chegavam milhões de imigrantes judeus,
poloneses, italianos, irlandeses, no início do século XX. Esses dramas, contados através
de uma linguagem visual direta e simples, se tornaram o gênero mais popular para essa
massa de estrangeiros, a maioria deles iletrada.
Você é uma notória amante do cinema de Jean-Luc Godard. Como esse diretor tão
iconoclasta e polêmico convive com o seu gosto pelos melodramas? Dougas Sirk e
Emilio Fernández não brigam com Godard dentro de você?
Não brigam, não. Eles jantam juntos. [Risos]. Godard entrou na minha vida no momento
certo, ou seja, na virada cultural da década de 1960, que pegou em cheio os meus anos de
formação. Eu seria muito néscia se não prestasse atenção em Godard, até por que ele reinava nos cineclubes da faculdade. Mesmo assim, passei uma década “brigada” com ele e
não vi nada que ele dirigiu. Depois, essa fase acabou e eu precisei correr atrás do que havia perdido. Mas, eu sempre continuava a assistir e a gostar dos filmes americanos. Para
mim, era tudo cinema, e eu preenchia a minha vida com todos os tipos de filmes, numa
espécie de continuidade. Por exemplo, amo tanto Maria Félix como Brigitte Bardot, símbolos máximos de dois mundos cinematográficos completamente diferentes. Maria Félix
teve uma história de vida marcada por repressão e violências. Ela passou toda essa carga
nos seus melodramas, interpretando mulheres fortes que não têm como objetivo o amor
ou o sexo, mas sim o poder. Era uma mulher que não deixava passar nada. Eu queria ser
como ela, pois sou do tipo que deixa passar tudo [Risos]. Tem um filme maravilhoso com
ela, de 1949, chamado “Doña Diabla”, em que o marido, depois de comunicar que está falido, pergunta à mulher, interpretada por Maria Félix: “O que vamos fazer?”. Ela, do alto
de uma escada e olhando com desprezo para aquele homem, dispara: “Eu é que lhe pergunto: o que você vai fazer?”. Eu adoraria ter a coragem de dar uma resposta como essa!
E Brigitte?
Já Brigitte Bardot, era uma moça do tipo “zona sul” do Rio de Janeiro, mas nunca foi forte
perante a vida. Entretanto, mudou as nossas cabeças por assumir, sem nenhuma vergonha, que procurava o deleite sexual. As duas são importantes, compreende?
Maria Félix (1914-2007), referência absoluta da latina fatal no imaginário popular
(Foto: Reprodução)
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Como foi que Nelson Pereira dos
Santos — fundador do Cinema Novo,
herdeiro estético e ideológico do neorrealismo italiano — interessou-se tão
fortemente pelo melodrama, a ponto
de dedicar todo um projeto, e de também “homenagear” o gênero através
de um filme quase metalinguístico. Estou falando de “Cinema de lágrimas”,
de 1995, em que o ponto de partida foi
a sua famosa obra com o mesmo título.
Eu não conhecia o Nelson até o dia
em que ele ligou para mim, na Cinemateca do MAM, no Rio. Esse projeto
foi parte de uma iniciativa do British
Film Institute para homenagear os 100
anos de invenção do cinema, e ao Nelson cabia o tema do melodrama latino. A ideia inicial era mais ortodoxa,
ou seja, um documentário tradicional
sobre o melodrama. Foi Helena Salém¹³ quem pegou o meu livro e disse
ao Nelson: “Por que você não filma a
pesquisa da Silvia?”. O filme foi produzido no México e lá eu interpretei a
mim mesma, ou seja, uma professora
de cinema. Tive de ficar em cima de
Cartaz da adaptação cinematográfica de
uma caixa de madeira para rodar as
Nelson Pereira dos Santos da pesquisa de Silvia Oroz
minhas três aparições, a fim de não
(Foto: reprodução)
parecer muito baixinha na tela. [Risos]
Filmar com o Nelson, se transformou
numa “viagem”, numa experiência lúdica, mas conduzida pela loucura particular dele.
Sua formação acadêmico-profissional – graduação em Cinematografia pela Universidad Nacional de La Plata, mestrado em Comunicação Social pela Universidade de
Brasília, e doutorado “Notório Saber” no México - não corresponde àquela trajetória típica do acadêmico latino-americano que consolida seus estudos nas metrópoles do hemisfério norte, importando conceitos e experiências forjados em contextos muito distantes do nosso. Você, pelo contrário, acumulou uma riquíssima
vivência como docente convidada, pesquisadora, palestrante e curadora em vários
países do nosso próprio continente. Afinal, onde estão as suas “raízes”?
Acho que a resposta para isso passa por uma condição nuclear da minha vida: sou uma
criatura essencialmente híbrida. Passar por todos esses países me deu uma espécie de
“doutorado da vida” latino-americana, moldou uma existência feita de muitos retalhos,
de um mosaico de danças, músicas, sabores, odores, sensações e imagens de todos esses povos, dentro de um percurso que, para mim, nunca vai ter fim. Mas foi o Cristovam
Buarque14, na época ocupando o cargo de reitor da Universidade de Brasília, quem me
ensinou que uma universidade, para ser “universal” e para colaborar - de fato - com um
projeto de país, não precisa necessariamente abrigar apenas autoridades tituladas, mas
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que ela deveria abrir as suas portas para todos
aqueles que detivessem saberes legítimos,
acumulados de forma espontânea dentro da
sociedade. Essa visão de Cristovam é — infelizmente — até hoje considerada revolucionária e inaceitável. Outra coisa que eu apreciava
no Cristovam, era que ele adorava as antigas
estrelas do cinema latino-americano.
Em seus textos, percebe-se o débito e a admiração que você tem pelo historiador das
mídias, o espanhol Román Gubern¹5. A sua
e a minha geração conhecem bem e devem
muito a esse autor, hoje quase esquecido
no meio acadêmico brasileiro. Quais outros pensadores do mundo hispânico que
também deveriam ser relidos hoje?
Eu tenho dois “pais acadêmicos”: o primeiro
é Román Gubern, que preenche todos aqueles requisitos formais considerados imprescindíveis pela academia; e o segundo é um
pensador que não preenche nenhuma dessas
exigências — estou falando do mexicano Carlos Monsiváis16. Foi ele quem deu o ferramental, e o seu próprio exemplo, que me nutriram
com a coragem necessária para que eu não me
Carlos Monsiváis, polêmico autor e jornalista
preocupasse mais com o que os outros pudesmexicano, e "pai acadêmico" de Silvia Oroz
sem, eventualmente, pensar sobre os meus
(Foto: Flávio DI Cola)
escritos. Quando penso num título para um
livro ou artigo, recorro imediatamente a Monsiváis, à sua ironia e criatividade. Sua língua
cortante e seus compromissos sociais o transformaram numa figura popularíssima no México. Até os motoristas de táxi o reconheciam na rua, porque também liam seus artigos.
Para mim, ele sintetiza o que deve ser um verdadeiro pensador de estudos culturais. Ele
era simplesmente genial: discorria sobre Maria Félix, Dolores del Rio ou Cantinflas, no
mesmo tom com o qual falava da Matança de Tlatelolco¹7 ou, do cantor brega gay, Juan
Gabriel. Ele olhava o universo cultural mexicano com complexidade e abertura, onde
tudo se conectava com tudo.
E o legado de Román Gubern?
Gubern mudou completamente a minha visão sobre a história do cinema. Na minha época de faculdade, essa disciplina era contada através da hegemonia ortodoxa e marxista
de Georges Sadoul, um chato. Gubern foi o primeiro autor que estudei que narrou uma
história cultural do cinema. Foi ele quem me ensinou a apreciar Godard até hoje. Embora
antifranquista convicto, ele estudou o cinema da época de Franco com a mesma paixão
e isenção que estudara todos os outros períodos do cinema espanhol. Conheci-o no Rio,
há muitos anos, no Hotel Glória. Lembro-me que consegui arrastá-lo de lá para a minha
casa, só para autografar as obras que eu tinha dele. Quando eu disse para Gubern, sempre muito charmoso, que eu estava preparando um livro sobre o melodrama, ele sorriu e
escreveu para mim: “melodrama, o divã do pobre”.
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Você vem de um país culturalmente muito mais sóbrio que o Brasil — a Argentina —
mas, tem uma paixão pelas chanchadas da Atlântida, que supera a dos brasileiros
mais aficionados. Por quê?
Porque eu adoro a esculhambação.[Gargalhadas] Sou uma pessoa que se dá muito bem
quando está tudo esculhambado. Mas isso é conversa para outro encontro com a revista,
não acha?
NOTAS:
1. Mestre em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ. Jornalista e publicitário. Professor universitário
nas áreas de publicidade & propaganda, cinema e moda. Ex-coordenador dos cursos de Publicidade
& Propaganda e de Cinema da Universidade Estácio de Sá (RJ), onde lecionou por 11 anos. Crítico de
cinema e artes dos sites “Heloisa Tolipan” e “Às na Manga”.
2. Rita Hayworth (1918-1987), celebrizada como “A Deusa do Amor”, foi o maior ícone feminino do
cinema dos anos 1940 e estrela do clássico noir “Gilda” (1946) . Casada com Orson Welles durante
breves anos, seu nome foi pintado sobre a primeira bomba atômica americana.
3. Carole Lombard (1908-1942) e Clark Gable (1901-1960) formaram um dos mais famosos casais da
Meca do Cinema, até a morte trágica dela num acidente aéreo. As comédias sofisticadas perdiam
uma das suas mais finas intérpretes. Gable foi o maior astro da MGM de todos os tempos e carregou
o título de “O Rei de Hollywood” por décadas.
4. “A batalha de Argel” (La Battaglia di Algeri, 1966), dirigido por Gillo Pontecorvo (1919-2006), relata a resistência do povo argelino à ocupação colonial francesa, com forte influência do neorrealismo
italiano e do cinema vérité francês. Indicado a três categorias do Oscar, venceu o Grande Prêmio do
Festival de Veneza de 1967.
5. William Wyler (1902-1981) e Ernst Lubitsch (1892-1947) foram dois expoentes do classicismo de
Hollywood. O primeiro celebrizou-se como diretor de filmes como “Jezebel” (1938), “Os melhores
anos de nossas vidas” (1946) e “Ben-Hur” (1959), e o segundo foi o grande mestre da comédia sofisticada e dono do Lubitsch touch, seu estilo inconfundível para o humor cortante passado através do
uso sutil da imagem.
6. Manuel Puig (1932-1990), escritor argentino conhecido mundialmente pelos romances “Boquitas
pintadas”, “A traição de Rita Hayworth” e “O beijo da mulher aranha”. Viveu por um tempo no Rio
de Janeiro.
7. Ginger Rogers (1911-1995) formou com Fred Astaire a mais famosa dupla de dançarinos da história
do cinema entre 1933 e 1939. Em 1941, conquistou o Oscar de Melhor Atriz pela atuação no melodrama “Kitty Foyle” (1940).
8. Alejandro Galindo (1906-1999), diretor e um dos expoentes da época de ouro do cinema mexicano.
9. Douglas Sirk (1897-1987), diretor de origem alemã, imigrado para Hollywood, onde se tornou o
“Rei do Melodrama” durante os anos 1950 através de obras refinadas e até hoje influentes como “Sublime obsessão”, “Tudo o que céu permite”, “Palavras ao vento” e “Imitação da vida”.
10. Veja a famosa abertura desse melodrama clássico de 1956 acessando: https://www.youtube.
com/watch?v=akP2oG9vf8Q
11. Emilio Fernández (1904-1986), um dos mais importantes diretores da história do cinema e o principal responsável pela consagração e prestígio mundial do cinema mexicano durante as décadas de
1940 e 1950, através de obras-primas como “Flor silvestre” (1943), “Maria Candelária (1943), “La perla” (1945) e “Enamorado” (1946). Curiosamente, no início da sua carreira, passando por Hollywood
em 1928, posou nu como modelo para a criação da estátua do prêmio Oscar da Academia.
12. Rio de Janeiro: Funarte, 1992 (1ª edição). Silvia Oroz também é autora das seguintes obras, entre
outras: “Carlos Diegues, os filmes que não filmei”, Editora Rocco, 1984; “Tomás Gutiérrez Alea, os
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filmes que não filmei”, Editora Anima, 1985; “Jarbas Barbosa: 30 anos de Cinema Novo”, Gráfica da
Cidade/Rio Filmes, 1993.
13. Helena Salém, jornalista e escritora falecida em 1999.
14. Cristovam Buarque foi reitor da Universidade de Brasília de 1985 a 1989 e o primeiro a ser eleito
por votação direta após a ditadura militar.
15. Román Gubern (1934), escritor, ensaísta e historiador de origem catalã, um dos maiores especialistas mundiais em estudos culturais aplicados à comunicação visual.
16. Carlos Monsiváis (1938-2010), escritor, cronista e jornalista mexicano. Sua obra tem forte caráter
crítico a todas as formas de autoritarismo e conservadorismo, e foi quase toda divulgada — inicialmente — através de jornais e revistas.
17. O Massacre de Tlatelolco ocorreu na capital mexicana poucos dias antes da abertura das Olimpíadas do México, em 2 de outubro 1968, quando a polícia disparou contra uma multidão de estudantes
universitários desarmados que foram às ruas se manifestar contra o governo, matando indiscriminadamente manifestantes e transeuntes. Até hoje não se sabe o número exato de mortos que — conforme a versão — oscila entre 40 e 300. As investigações e os julgamentos dos culpados duraram
décadas e até hoje não estão devidamente encerrados.