da divina comédia - Editora Peirópolis

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da divina comédia - Editora Peirópolis
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O ESTADO DE S. PAULO
SÁBADO, 26 DE FEVEREIRO DE 2011
Literatura italiana
Relançamentos de traduções da obra máxima de
Dante Alighieri – uma delas com ilustrações feitas
por Botticelli em 1485 – atestam o fascínio que
o livro provoca pelo menos desde o Romantismo
A DIVINA COMÉDIA
Autor: Dante Alighieri
Tradução: João Trentino Ziller
Editoras: Ateliê/Unicamp
(576 págs., R$ 280)
A DIVINA COMÉDIA
Autor: Dante Alighieri
Tradução: Vasco Graça Moura
Editora: Landmark
(894 págs., R$ 88)
REPRODUÇÕES
EDUARDO STERZI
nquanto a assim chamada literatura ocidental puder ser definida
como uma modalidade de preparação para
a morte que passa pela
invocação dos mortos
e pela convivência
com os fantasmas (e o
que são os personagens – literários, teatrais, cinematográficos
– senão fantasmas?), Dante continuará sendo um de seus modelos supremos: incessantemente citado, parodiado, reescrito,
reimaginado. Tem sido assim pelo menos
desde o Romantismo, quando sua obra foi
redescoberta e, sobretudo, reinventada –
menos sob o signo da salvação, condizente
com a concepção do próprio poeta, do que
sob o signo da angústia, condizente com os
novos tempos e sua atração, inclusive no
sentido erótico, pela morte. As ilustrações
de Gustave Doré para a Divina Comédia sintetizam à perfeição esta abordagem parcial:
mesmo as gravuras do Paraíso são marcadas pela orientação noturna e atormentada
suscitada pelo cântico infernal. Se há uma
reconhecível visualidade dantesca em nossa época – a reproduzir-se e renovar-se em
capas de livros e discos, em filmes, em quadrinhos, em jogos eletrônicos, nos quais
muitas vezes a obra mesma de Dante não é
mais que vaga suposição –, esta parece provir em larga medida da interpretação gráfica de Doré e de outros românticos para as
palavras do poeta.
É pelo contraste com essa tradição pósromântica de aproximação a Dante que adquire maior relevância o dado aparentemente superficial da escolha dos desenhos
de Botticelli para ilustrar a edição da Divina
Comédia a ser lançada em março pela Ateliê
em conjunto com a editora da Unicamp.
Não é a primeira vez que os traços botticellianos são utilizados numa edição brasileira da Comédia: basta lembrar os três volumes em que a 34 publicou a tradução de Italo Eugenio Mauro em 1998. Porém, neles,
encontrava-se um único desenho de Botticelli, impresso identicamente em suas capas e na caixa que os envolvia. Na Comédia
da Ateliê/Unicamp, cuja disposição gráfica
esteve a cargo de Henrique Piccinato Xavier, reproduzem-se todos os desenhos remanescentes do códice dantesco preparado pelo artista florentino por volta de 1485.
Se Doré, com suas gravuras, ofereceu para a modernidade uma interpretação per-
E
Inferno. Detalhe
do desenho feito
pelo mestre do
Renascimento
(acima) para o
texto do autor
florentino, a quem
retratou (ao lado)
A VIDA SEMPRE NOVA
DA DIVINA COMÉDIA
versamente heroica do poema, com eviden- Oficial de Minas Gerais em 1953 e já reprote fascinação pelos vigorosos corpos nus posta pela editora Vega em 1978. É uma trados condenados do Inferno, os quais apare- dução mais eficaz no conjunto do que no
cem quase como titãs decaídos numa paisa- detalhe: se a lemos em comparação verso a
gem pedregosa e sombria, Botticelli nos ofe- verso com o original, pode soar claudicanrece uma singular operação histórico-críti- te; mas se a lemos menos atentos à força
ca. Esta começa por uma transformação de singular das formulações vocabulares e fiseu próprio estilo no confronto com a maté- gurativas do que à fluidez da sucessão dos
ria dantesca: nos desenhos, Botticelli, mais fatos, é proveitosa. Veja-se, como exemplo
de 150 anos depois da conclusão da Comé- de malogro no pormenor, o primeiro tercedia e da morte de Dante, renuncia volunta- to de toda a obra: “À meia-idade da terrena
riamente a alguns dos parâmetros mais ca- vida, / perdido achei-me numa selva escuros da técnica renascentista para exercitar ra, / a senda certa estando já perdida”. Onmodos de representação mais próximos do de Dante é direto, tem-se uma inversão:
autor ilustrado e de sua época, como se des- “Nel mezzo del cammin di nostra vita” (lilizasse do que chamamos, talvez impropria- teralmente, “No meio do caminho de nosmente, de Renascimento para aquilo que sa vida”, ou, adequando-se o texto à métrichamamos, talvez mais impropriamente ca, “No meio do caminho desta vida”, coainda, de Idade Média.
mo propuseram Augusto de Campos e, deNesse sentido, o recurso às imagens de pois, Jorge Wanderley).
Botticelli na edição da Ateliê/Unicamp é
Onde Dante evita a recorrência de palauma interessante opção iconográfica, que vras (até porque, em seguida, modularia a
rouba Dante de sua hegemônica interpreta- “selva oscura” do segundo verso na “selva
ção romântica e o leva de volta à passagem selvaggia“ do quinto), há a repetição impedo Medievo ao Renascimento. Ou, antes – rita do adjetivo “perdido”. Além do mais, já
é o caso de Botticelli
se vê aqui a constante
quando realiza sua Cotendência de Ziller de
média sob a influência
trocar o que é concre**
O artista oferece ao
de Savonarola –, a um
to em Dante pelo que é
Renascimento que é
abstrato, e o que é meleitor uma operação
também Retorno do
tafórico por sua interhistórico-crítica, que
Medievo Recalcado.
pretação: é assim que
começa pela alteração
Opção, porém, que, ao
o “mezzo del cammin”
mesmo tempo, projeta
se torna, banalmente,
do seu próprio estilo
Dante numa outra mo“meia-idade”. Trata-se
**
dernidade figurativa
de uma tradução forteque não converge, pelo
mente domesticadora,
menos não imediatamente, com aquela pós- em que a estranheza do texto dantesco –
romântica. Isso se dá sobretudo por meio que é também sua originalidade – é reduzidas soluções que Botticelli elaborou para da ao chavão. Daí que Virgílio, dito “mar di
representar o que há de “irrepresentável” tutto ‘l senno” por Dante, torna-se trivialno Paraíso, soluções que tendem à abstra- mente “fonte da sabedoria”.
ção, com a figura do círculo repetindo-se
Bem mais próxima da singularidade do
por diversos cantos e a derradeira dissolu- original é a versão do poeta português Vasção dos personagens no esplendor lumino- co Graça Moura: “mar de todo o mais saso da divindade – isto é, no branco da pági- ber”. Sua tradução, publicada pela primeina, que se apresenta, como se daria muito ra vez em Portugal em 1995 e no Brasil em
depois também em Maliévitch, como uma 2005, chega agora à sua segunda edição naimagem possível do que não tem imagem.
cional, sempre pela Landmark. É, de todas
Esta edição recupera a pouco conhecida as traduções da Comédia para o português,
tradução da Comédia por João Trentino Zil- aquela que mais de perto segue os frasealer, publicada originalmente pela Imprensa dos, as rimas e mesmo as escolhas vocabu-
lares do original, nem que para isso tenha
de insistir nos neologismos ou nos italianismos mais desabusados. A impressão
que se tem, por vezes, é de se estar lendo
um texto decalcado em folhas de papel vegetal sobrepostas ao poema de Dante. Talvez seja a tradução ideal para quem pretende ler simultaneamente o original ou para
quem, sem ter domínio suficiente da língua italiana, queira estudar Dante.
Se a tradução de Vasco Graça Moura é
elogiável, o mesmo não se pode dizer do
trabalho da Landmark: como já se verificava na primeira edição, a atual traz diversos erros de grafia tanto no texto italiano
como no português, além de reproduzir,
bisonhamente, algumas interferências de
marca-texto sobre as palavras, como nas
páginas 140, 329, 330 e 386. Se a falha talvez fosse desculpável na primeira edição,
na segunda torna-se evidência de desdém
pelo texto e pelo leitor.
✽
EDUARDO STERZI, POETA E CRÍTICO LITERÁRIO,
É DOUTOR EM TEORIA E HISTÓRIA LITERÁRIA PELA UNICAMP E PROFESSOR NO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA ARTE DA FAAP. PUBLICOU, ENTRE OUTROS, POR QUE LER DANTE (GLOBO),
A PROVA DOS NOVE (LUMME) E ALEIJÃO (7LETRAS)
QUADRINHOS
Duas versões em quadrinhos do livro canônico de Dante Alighieri
(1265-1321) saem neste semestre no Brasil.
A editora Peirópolis
programou para os
próximos meses A Divina Comédia ilustrada a
nanquim e aquarela
pelo cartunista e grafiteiro Piero Bagnariol –
a adaptação do texto
do Purgatorio é a clássica feita pela mineira
Henriqueta Lisboa
(1901-1985). Em maio,
a Quadrinhos na Cia
publica a tradução da
edição ilustrada pelo
designer norte-americano Seymour Chwast.