HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA NO BRASIL: do Século

Transcrição

HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA NO BRASIL: do Século
THIAGO PEREIRA
HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA NO BRASIL:
do Século XIX ao XX
Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes
Montes Claros/MG
Março / 2014
THIAGO PEREIRA
HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA NO BRASIL:
do Século XIX ao XX
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Estadual
de Montes Claros, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em História.
Área de Concentração: História Social
Linha de Pesquisa: Poder, Trabalho e
Identidades.
Orientadora: Profª Drª Simone Narciso Lessa
Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes
Montes Claros/MG
Março / 2014
"La cultura material no existe porque sí. Alguem
la produce. Y es producida para algo. Por lo tanto
no refleja passivamente la sociedade – mas bien
crea la sociedade por médio de las acciones de las
acciones de los indivíduos.”
Ian Hodder. Interpretación em arqueología. Barcelona,
1994.
"Nada é uma ilha, fechada em si mesma. todo
homem é uma parte do continente, da terra firme."
John Donne
Fotografia: Índio Kaapor e o antropólogo Darcy Ribeiro.
RIBEIRO, Darcy. Diários Índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
P436h
Pereira, Thiago.
História e arqueologia no Brasil [manuscrito] : do século XIX ao XX /
Thiago Pereira. – Montes Claros, 2014.
244 f. : il.
Bibliografia: f. 238-244.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2014.
Orientadora: Profa. Dra. Simone Narciso Lessa.
1. História Social – Brasil. 2. Pré-história. 3. Arqueologia. 4. Cultura
material. 5. Lund, Peter Wilhelm (1801 – 1880). 6. Historiador –
domínios. I. Lessa, Simone Narciso. II. Universidade Estadual de Montes
Claros. III. Título. IV. Título: Do século XIX ao XX.
Catalogação: Biblioteca Central Professor Antônio Jorge
AGRADECIMENTOS
Ao final desta pesquisa tenho uma importante vitória; resultado da colaboração de
tantas pessoas e instituições, que temo esquecer nomes importantes. Espero conseguir
agradecer aos mais presentes.
A Yahweh, Senhor do universo. A glória é tua!
À minha família e amigos, pelo incentivo, apoio e torcida.
À minha orientadora Simone Narciso Lessa. Necessito afirmar que tive sorte em tê-la como
orientadora, a melhor do planeta! Sempre presente, com sugestões, críticas e profissionalismo;
Grato por acreditar em mim, desde a graduação.
Ao professor João Batista de Almeida Costa. “Joba”, sua contribuição é imensurável; está
expressa ao longo de todo o trabalho (como a contribuição do “Brasil dos franceses”).
À doutora Jeaneth Xavier de Araújo pela dedicada atenção e contribuição como integrante da
banca de qualificação.
Ao professor Pedro Paulo Funari, pela trajetória construída. É um prazer tê-lo compondo a
banca de avaliação.
À Regina Caleiro, pelo incentivo constante desde a graduação. Grato por proporcionar-me
viagens sensacionais a partir dos naturalistas viajantes do século XIX. É um Brasil incrível!
À Filomena Luciene Cordeiro, Marta Verônica Vasconcelos Leite e Rejane Meireles.
Professoras queridas desde a graduação; sempre me encorajou para esta etapa da formação
acadêmica. Filó, grato por investir tempo e esforços, o resultado está aqui!
À Universidad Nacional de Córdoba (UNC), Argentina. Ao arqueólogo e doutor Eduardo
Berberián – principal nome da arqueologia argentina e discípulo de Rex González, pai da
arqueologia desse país. Ao historiador e amigo Julián Salazar pelo empenho e contribuição
neste debate historiográfico.
À equipe da Cátedra de Prehistoria y Arqueología da UNC que dedicou tempo para minhas
reflexões em laboratórios e no campo: a querida Drª Valéria Franco; ao Dr. Sebastían Pastor,
que me mostrou os “grabados” rupestres; e aos doutores Diego Eduardo Riveiro e Gustavo
Rivolta. Além dos acadêmicos empenhados, Martin Aguero e Rocio Molar, que toparam o
convite para esta aventura! Martin e Rocio, sucesso!
À Marta Sayago Marques (em memória) por sorrir com minha vitória, pelo empenho para que
eu tivesse uma estadia confortável em seu país. Quantas saudades! À Ana Maria Sayago de
Warner, por ser “uma guia incrível” e pelas discussões e diferenciações das sinalizações
rupestres argentinas. Um beijo grande Ana!
À Faculdad de Ciencias Antropológicas de la Universidad Autónoma de Yucatan (UAY). Em
especial, às doutoras Lilia Fernández Souza e Genny Mercedes Negroe Sierra, pela
disposição, convite e interesse por esta pesquisa para estância acadêmica na UAY, México.
Haverá ainda oportunidades!
Ao senhor Jens Olesen, cônsul-geral da Noruega no Brasil, por enviar fontes e referências
raras como Caderno de Esboço de Brandt.
À Niède Guidon, por uma vida inteira de trabalho e legado. Pelas orientações, sugestões,
críticas e por incentivar o meu crescimento. Grato pela fotografia gentilmente cedida.
Ao Luiz Quintino, o Luquinha, grato pela ajuda em meio aos apuros!
À professora Madu Gaspar, (Maria Dulce Gaspar) do Museu Nacional pela disposição.
À historiadora Mary del Priore, pela presença constante nesta fase da minha formação.
Ao Eduardo Gomes, por gentilmente ceder fotografias e informações preciosas.
Ao arqueólogo Fabiano de Paula Lopes, pela disposição e convites de consultorias e
discussões.
À professora Ilva Ruas pelos debates e atenção durante as nossas aulas. Suas considerações
foram preciosas!
Ao Fábio Parenti, arqueólogo italiano, pela atenção, apesar da distância continental.
Ao amigo e professor, Alessandro de Almeida.
À Secretaria de estado de Cultura do Estado de Minas Gerais (SEC) por notas e ofícios,
expressando incentivo às minhas pesquisas, bem como, apoio institucional para que eu
cumprisse atividades de campo como as da UNC, Argentina.
Ao PPGH/Unimontes (Programa de Pós-graduação em História) pelo apoio institucional para
o desenvolvimento da minha primeira estância acadêmica no exterior!
A todos os meus colegas de turma, dentre estes, quero destacar a atenção de Rozalina e
Renata Mirian; Irineu com uma humanidade incrível; Path e Renatinha, André (Carlos André)
e Cris, pelas gargalhadas.
RESUMO
A materialidade está articulada com a vida social. Esta dissertação trata da relação da história
com a materialidade; dos debates da história com outros campos como arqueologia e a
antropologia no Brasil. Inicialmente, objetivava-se apresentar somente a materialidade
indígena pré-histórica; porém, no decorrer da pesquisa, houve a necessidade de rastrear a
materialidade por fontes diversas, desde os sítios arqueológicos aos registros dos naturalistas e
viajantes dos séculos XVI e XIX. Ainda assim, a materialidade dos povos indígenas é a mais
exemplificada. A pesquisa está dividida em 03 capítulos, que apresentam desde a relação da
história com a materialidade, a diversidade de correntes teóricas para os campos que tratam
com a materialidade no Brasil, destaque para a arqueologia; até as contribuições de países
como a França e de novas correntes como a arqueologia social, nascida na América Latina.
Objetivou identificar o início dos estudos entre história, arqueologia e cultura material no
Brasil, apresentando o trabalho do dinamarquês Peter Lund, no século XIX pela região da
então província de Minas Gerais. Além de uma explanação sobre áreas de possibilidades de
vestígios materiais de partes do norte de Minas Gerais. Refletir sobre a materialidade e sua
articulação com a vida social poderá fundamentar pesquisas empíricas de diferentes períodos
históricos e espaços geográficos no Brasil e América Latina, resultando em análises que
contribuem para revisões da história de índios, africanos e seus descendentes; ou seja, destes
povos, mas também de histórias nacionais. Os pressupostos para esta história foram
procurados fora, mas principalmente, dentro de nossos domínios... Os da história!
Palavras-chave: História Social, História, Arqueologia, Pré-história, Cultura Material, Lund,
Brasil, Domínios do historiador.
ABSTRACT
Materiality is articulated with social life. This dissertation is about the relationship between
history and materiality; history with other fields such as archeology, anthropology. Initially,
we aimed to present only the prehistoric indigenous materiality, but during the research,
understood the need to move, tracking the materiality by sources such as archaeological sites,
but also the records of traveling naturalists of the sixteenth century. Still, the materiality of
indigenous peoples is the most displayed. The research is divided into 03 chapters, which
present since the diversity of theoretical approaches to the field dealing with materiality in
Brazil, especially archeology, the contributions of countries such as France and new currents
such as social archeology, born in Latin America. Aimed to trace the beginning of the study
of history, archeology and material culture in Brazil, featuring the work of the Danish Peter
Lund in the nineteenth century by the then province of Minas Gerais. In addition to an
explanation of areas of possible material traces of the northern part of Minas Gerais. Reflect
on the materiality and its relationship with social life may support empirical research from
different historical periods and geographic areas in Brazil and Latin America, resulting in
analyzes that contribute to revisions of the history of Indians, Africans and their descendants,
ie, these people but also domestic stories. The assumptions for this story were sought out, but
mostly within our domains ... The history!
Key-words: Social History, History, Archaeology, Prehistory, Material Culture, Lund, Brazil,
domains historian.
LISTA DE SIGLAS
a.C.
antes de Cristo
CNPq
Conselho Nacional de Pesquisas
CODEVASF
Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba
COPASA
Companhia de Saneamento de Minas Gerais
DF
Distrito Federal
FAPEMIG
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
FUMDHAM
Fundação Museu do Homem Americana
FUNAI
Fundação Nacional do Índio
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IEPHAN/MG Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais
IHGB
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
IPH - PARIS
Instituto de Pré-História de Paris
IPH USP
Instituto de Pré-História da USP
IPHAN
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MG
Minas Gerais
PI
Piauí
PNSC
Parque Nacional Serra da Capivara
PPGH
Programa de Pós-Graduação em História (Unimontes)
PRONAPA
Programa Nacional de Arqueologia
SAB
Sociedade de Arqueologia Brasileira
SECMC
Sociedade de Educação e Cultura de Montes Claros
UFBA
Universidade Federal da Bahia
UFPE
Universidade Federal de Pernambuco
UFMG
Universidade Federal de Minas Gerais
UFU
Universidade Federal de Uberlândia
UNESCO
United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
UNC
Universidad Nacional de Córdoba (Argentina)
Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros
UNIVASF
Universidade Federal do Vale do São Francisco
USP
Universidade de São Paulo
LISTA DE TABELAS
Tabela 1
Os Naturalistas europeus no Brasil por categorias.
p. 125
Tabela 2
Sítios arqueológicos em Montes Claros/MG pelo IAB.
p. 174
Tabela 3
Sítios arqueológicos em Montes Claros/MG por Bryan e Gruhn.
p. 174
Tabela 4
Sítios arqueológicos pelo IAB.
p. 175
Tabela 5
Zonas estratigráficas da Lapa Pequena de Montes Claros/MG.
p. 175
Tabela 6
Quadro-cronológico da Lapa Pequena de Montes Claros/MG.
p. 176
LISTA DE FIGURAS
Figura 1
Theatrus Orbis Terrarum, 1570.
p. 24
Figura 2
Irmãos Bôas.
p. 31
Figura 3
Os Bôas, 1950.
p. 32
Figura 4
Cláudio e Orlando Bôas, 1960.
p. 33
Figura 5
Carta de Rondon.
p. 34
Figura 6
Darcy entre fronteiras.
p. 35
Figura 7
Darcy Ribeiro.
p. 35
Figura 8
O jovem Darcy.
p. 36
Figura 9
Darcy Ribeiro e João Carvalho com índios.
p. 37
Figura 10
Mulher Tikuna processa alimentos.
p. 38
Figura 11
Bertha Ribeiro e Darcy.
p. 39
Figura 12
Traçado com buriti & mãos.
p. 40
Figura 13
Traçado com buriti.
p. 41
Figura 14
Arte plumária bororó.
p. 42
Figura 15
Quilombo do Palmares – Século XVII.
p. 55
Figura 16
Escavações na Serra da Baleia / Alagoas.
p. 56
Figura 17
Paulo Duarte e Paul Rivet.
p. 64
Figura 18
Leroi-Gourhan, Paul Rivet e Paulo Duarte.
p. 65
Figura 19
Mapa do Brasil de Lopo homem, 1519.
p. 81
Figura 20
Recorte do Mapa do Brasil de Lopo homem, 1519.
p. 83
Figura 21
Peixe-bois.
p. 86
Figura 22
Homem do Estado do Pará.
p. 86
Figura 23
Tartaruga-marinha.
p. 88
Figura 24
Ovos de tartaruga.
p. 89
Figura 25
Cédulas de R$ 2,00 (moeda nacional brasileira).
p. 90
Figura 26
Colmeia Pintura rupestre da toca da entrada/ PI.
p. 91
Figura 27
Xilogravura francesa de 1551.
p. 93
Figura 28
Índios de Léry.
p. 94
Figura 29
Tucano.
p. 98
Figura 30
Família Tupinambá.
p. 99
Figura 31
Abacaxi.
p. 100
Figura 32
Onça pintada.
p. 101
Figura 33
Araras.
p. 102
Figura 34
Papagaio.
p. 103
Figura 35
Os executores Tupinambá.
p. 104
Figura 36
Combate Tupinambá.
p. 105
Figura 37
Lamentações Tupinambá.
p. 106
Figura 38
Igaraçu de Standen.
p. 107
Figura 39
Porto Superagui.
p. 108
Figura 40
Porto em Santa Catarina.
p. 109
Figura 41
Arquipélago dos Alcatrazes, São Paulo.
p. 110
Figura 42
Luta dos Tupinambás contra os Tupiniquins e portugueses.
p. 111
Figura 43
Captura de Hans Standen.
p. 112
Figura 44
Captura de Standen.
p. 113
Figura 45
Trecho da Carta de Caminha.
p. 114
Figura 46
Ernesto Guevara, 1960.
p. 121
Figura 47
Guevara no Uruguai.
p. 122
Figura 48
Jornal Diário do Oriente, 1967.
p. 123
Figura 49
Capitão Prado, 1967.
p. 124
Figura 50
Che Guevara sob custódia na Bolívia.
p. 126
Figura 51
A casa de campo Roselund.
p. 135
Figura 52
Cópias de Lund.
p. 136
Figura 53
A família Lund.
p. 137
Figura 54
Mapa do Brasil de Giovanni Ramusio, 1556.
p. 141
Figura 55
Vista do Rio de Janeiro a partir de São Bento.
p. 143
Figura 56
“A cidade africana”
p. 144
Figura 57
O Rio de Janeiro e a baía.
p. 145
Figura 58
Nova Friburgo.
p. 146
Figura 59
Praça da vila de Curvelo retratada por Brandt.
p. 152
Figura 60
Arte gráfica a partir de Brandt.
p. 153
Figura 61
Folha do caderno de Brandt.
p. 154
Figura 62
Samambaia, Rio de Janeiro.
p. 156
Figura 63
Tropeiros e mulas do Brasil.
p. 156
Figura 64
Porteirinhas, Curvelo.
p. 158
Figura 65
Fazenda Porteirinhas, Curvelo.
p. 164
Figura 66
Auto-retrato de Brandt.
p. 165
Figura 67
Casa D’água de Brandt.
p. 166
Figura 68
Sepultura de Brandt.
p. 167
Figura 69
Caminho para Lagoa Santa.
p. 168
Figura 70
Casa de Lund em Lagoa Santa.
p. 170
Figura 71
Anatomia Comparada.
p. 171
Figura 72
Dente de animal pré-histórico.
p. 171
Figura 73
Lund em fotografia.
p. 173
Figura 74
Lapa Vermelha.
p. 174
Figura 75
Montes Claros no norte de Minas Gerais.
p. 176
Figura 76
Maciços calcários da Lapa Grande.
p. 177
Figura 77
Maciços calcários.
p. 178
Figura 78
Plínio Ribeiro observa crânio retirado da Lapa Pintada de Montes
p. 179
Claros/MG.
Figura 79
Crânio e esqueletos extraídos de escavações da SECMC na região da
p. 180
Lapa Grande.
Figura 80
Visita à Lapa Grande em 1991.
p. 184
Figura 81
Arqueologia na região da Lapa Grande.
p. 185
Figura 82
Visita á região do Parque da Lapa Grande.
p. 186
Figura 83
Pinturas rupestres da Lapa Pintada de Montes Claros/MG.
p. 188
Figura 84
Parque Estadual Lapa Grande.
p. 189
Figura 85
Rio Lapa Pintada.
p. 189
Figura 86
Pinturas rupestres da Lapa Pintada de Montes Claros/MG.
p. 190
Figura 87
Capitão Enéas/MG.
p. 191
Figura 88
Mapa de Capitão Enéas/MG.
p. 192
Figura 89
Estrada de terra pelos distritos de Capitão Enéas/MG.
p. 192
Figura 90
Gruta do Mercado de Santana da Serra, Capitão Enéas/MG.
p. 193
Figura 91
Representações rupestres de antropomorfo e zoomorfos na Grutat do
p. 194
Mercado de Santana da Serra, Capitão Enéas/MG.
Figura 92
Pinturas rupestres.
p. 195
Figura 93
Jequitaí (mapa).
p. 196
Figura 94
Jequitaí, norte de Minas Gerais.
p. 196
Figura 95
Zoomorfo da Lapa Pintada de Jequitaí/MG.
p. 199
Figura 96
Ponte sobre o córrego do Sítio em Jequitaí/MG.
p. 200
Figura 97
Trecho da ponte do Córrego do Sítio.
p. 200
Figura 98
A subestação da COPASA na Lapa Pintada.
p. 201
Figura 99
Sítio Lapa Pintada de Jequitaí/MG.
p. 202
Figura 100
Entorno do sítio.
p. 203
Figura 101
Painéis rupestres do sítio.
p. 203
Figura 102
Visão geral dos painéis.
p. 204
Figura 103
Lapa Pintada de Jequitaí.
p. 205
Figura 104
Imagens de santos na Lapa Pintada dos anos 1980.
p. 206
Figura 105
Imagem de santo na Lapa Pintada de 2011.
p. 206
Figura 106
Reprodução de pichações históricas e pinturas rupestres.
p. 208
Figura 107
Fotografia de 1963 da Lapa Pintada.
p. 209
Figura 108
Tinta industrial na Lapa Pintada.
p. 209
Figura 109
Fotografia de 2007.
p. 210
Figura 110
Fotografia de jequitainhenses.
p. 210
Figura 111
Serra do Cabral em Minas Gerais.
p. 211
Figura 112
Arte rupestre da Serra do Cabral.
p. 212
Figura 113
Cervídeo rupestre da Serra do Cabral.
p. 213
Figura 114
Sítios cadastrados no IPHAN em Joaquim Felício/MG.
p. 214
Figura 115
Sítios cadastrados em Lassance/MG.
p. 214
Figura 116
Lítico (tipo “lesma”) em quartzito.
p. 218
Figura 117
Ponta ineira em quartzo.
p. 218
Figura 118
Lapa da Dança/bloco 1.
p. 219
Figura 119
Lapa da Dança/bloco 1. (2)
p. 219
Figura 120
Lapa da Dança/bloco 2.
p. 220
Figura 121
Lapa da Dança/bloco 3.
p. 221
Figura 122
Lapa da Dança/bloco 3. (2)
p. 221
Figura 123
Lapa da Dança/bloco 3. (3).
p. 222
Figura 124
Lapa dos peixes, Serra do Cabral.
p. 223
Figura 125
“Serra” do Palmito.
p. 223
Figura 126
“Serra” do Palmito. (2).
p. 224
Figura 127
Igreja inacabada de Pedras (Igreja de Matosinhos) em Barra do
p. 228
Guaicuí, distrito de Várzea da Palma/MG.
Figura 128
Lateral da Igreja inacabada de Pedras em Barra do Guaicuí.
p. 228
Figura 129
Parte Central da Igreja de Pedras com visão do pórtico e altar mor.
p. 229
Figura 130
Gameleira de 90 anos na Igreja de pedras.
p. 229
Figura 131
Traslasierra, Mina Clavero, Córdoba, Argentina.
p. 231
Figura 132
Equipe de estudo de campo da UNC, Argentina – 2012.
p. 231
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................
17
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA E CULTURA MATERIAL .....................................................................
22
1.1 – Novos Domínios da História .................................................................................
46
1.2 – História e Arqueologia no Brasil ...........................................................................
52
1.2.1 – Arqueologia e Paleontologia no Brasil .....................................................
54
1.3 – Visões do Brasil: Cronistas Viajantes ..................................................................
74
1.3.1 – História de Viagens feitas à Terra do Brasil ............................................
77
Os Tupinambás “dos franceses" ...........................................................................
78
O Apóstolo dos Tupinambás ................................................................................
79
Jean de Léry: Uma viagem feita à Terra do Brasil ...............................................
94
Hans Standen: As Viagens ao Brasil e o canibalismo .......................................... 107
A Carta de Caminha: A primeira peça .................................................................. 114
1.4 – América Latina & Materialidade: História de uma Procura ................................. 118
1.4.1 – Da Revolução Cubana à Bolívia: Os achados dos Restos de Che ............ 121
CAPÍTULO 2
AS MINAS GERAIS DE PETER LUND: o dinamarquês que descobriu o Brasil
132
2.1 – Nasce Peter Wilhelm Lund .................................................................................... 135
2.2 – O Império do Brasil: preparando para o grande salto! .......................................... 139
2.3 – O Palco da Grande Festa ....................................................................................... 143
2.4 – O Retorno à Europa ............................................................................................... 148
2.5 – Em Curvelo, uma parada ....................................................................................... 150
2.6 – Peter Andreas Brandt ............................................................................................. 153
2.7 – O Salitre e Fósseis do Sertão ................................................................................. 159
2.8 – O Legado de Peter Lund ........................................................................................ 169
CAPÍTULO 3
ARQUEOLOGIA PRÉ-HISTÓRICA DE MONTES CLAROS/ MG: Contextualizada
com o Centro Norte Mineiro – Jequitaí, Capitão Enéas e Francisco Dumont/Serra do
Cabral ............................................................................................................................ 176
3.1 – Síntese dos Estudos Pré-históricos de Montes Claros/MG - BRASIL .................. 179
3.2 – AS LAPAS PINTADAS NO NORTE DE MINAS: Em Jequitaí, Capitão Enéas e
Montes Claros, um uso cultural e histórico do lugar ...................................................... 188
3.3 – Capitão Enéas/MG - BRASIL ............................................................................... 191
3.4 – Jequitaí/MG - BRASIL .......................................................................................... 196
3.4.1 – Lapa Pintada, uma das inúmeras áreas de Jequitaí ............................................. 200
3.5 – Francisco Dumont e a Serra do Cabral/MG - BRASIL ......................................... 212
3.5.1 – A SERRA DO CABRAL: A Lapa da Dança ..................................................... 117
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 226
REFERÊNCIAS
17
INTRODUÇÃO
O diálogo da história com outras áreas de humanidades e demais ciências sociais
como a arqueologia e a antropologia tem se intensificado e tomado novos rumos para os
historiadores. A palavra história desde o seu surgimento mudou muito de conteúdo. “O tempo
é um ponto de vista dos relógios”, estas palavras de autoria do poeta gaúcho Mario Quintana,
apresentam a partida para a realização desta dissertação: é um ponto de vista, situado no
tempo, precisamente, nos primórdios da segunda década dos anos 2000 e localizado
geograficamente, no norte do estado de Minas Gerais, Brasil.
Esta dissertação trata da reflexão histórica sobre a materialidade; sobre a relação
da história com campos afins. As várias tentativas sucedidas ou não, que objetivaram perceber
artefatos e paisagens, corpos e estruturas urbanas como partes do produzir o conhecimento
foram procurados. Percebemos que os maiores esforços estiveram às margens da
historiografia e que por simples exercício mental, podemos supor que a facilidade maior de a
historiografia foi tratar com fontes ditas escritas, devido a sua vocação consolidada. Teria
então, uma relação da história com a cultura material? Seria possível (ainda) identificar uma
história de parte dos povos ameríndios a partir da identificação da sua cultura material (e
imaterial) extraída de fontes como sítios arqueológicos e relatos dos viajantes nos primórdios
do Brasil? A materialidade é pensada a partir da história? Que outros campos esforçaram para
estudar o passado humano a partir dos vestígios materiais? Qual a história da gênese dos
estudos pré-históricos (cultura material) no Brasil? E a identificação de um provável potencial
arqueológico – vestígios materiais no norte de Minas Gerais.
O primeiro contato com as pinturas rupestres de Jequitaí/MG em 2007
possibilitou compreender o patrimônio arqueológico do município como objeto de trabalho de
conclusão de curso, defendido em 2010 e apresentado ao departamento de História da
Unimontes (Universidade Estadual de Montes Claros). Esta trajetória foi determinante para o
caminho até esta dissertação, como que “entrada” à Pré-história. Esta trilha impulsionou a
escrita do projeto apresentado ao PPGH (Programa de Pós-graduação em História - Mestrado)
da Unimontes.
Inicialmente, intitulado A LAPA PINTADA DE JEQUITAÍ: Lugar de Vivências e
Memórias de Sua Gente objetivava compreender as relações dos moradores (o sujeito) de
Jequitaí com a Lapa Pintada, um dos seus bens patrimoniais; o qual possui traços
(experiências e as vivências) desde os períodos primitivos de ocupação à contemporaneidade,
18
que caracterizam a comunidade jequitaiense. O local foi ocupado ao longo da história
jequitaiense, sendo sítio arqueológico, lugar de lazer, do banho às margens do volumoso
Jequitaí, bem como lugar de brincar das crianças, do pescar dos moradores do município,
enfim, a Lapa Pintada faz parte do viver e ser jequitaiense.
O desenvolvimento das disciplinas do programa, as reflexões e reuniões com a
orientadora, a professora Simone Narciso Lessa; somados as discussões que participei junto à
Universidad Nacional de Córdoba (UNC), Argentina, a convite do arqueólogo Eduardo
Berberián; os debates com o historiador e amigo, Julián Salazar, geraram a necessidade de
uma discussão mais ampla no espaço, tanto o geográfico, quanto o historiográfico. Esta
discussão em confluência com os debates locais, regionais, até os níveis do nacional e
América Latina, contribuíram para a forma de outra discussão e trabalho, abordando a cultura
material e a relação desta com a história e outros domínios; esta discussão encontrada aqui é
intitulada de HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA NO BRASIL: do século XIX ao XX, dividida em
03 capítulos.
Objetivamos descrever o melhor que conseguimos uma história da cultura
material. Fizemos uso de referenciais teóricos como uma proposta interdisciplinar, desde o
campo da história, arqueologia e antropologia; além de análise de fontes historiográficas
diversas e artefatuais, como pinturas rupestres, fotografias, textuais históricas, bem como, das
anotações feitas em campos e laboratórios que participamos no Brasil e Argentina.
Acreditamos que a materialidade está intrinsecamente vinculada a vida social e, portanto, a
história de quem a produz.
A cultura material está presente na vida humana desde o nascimento até a morte,
e pode ser compreendida como tudo aquilo que é produzido e modificado pelo homem; ela faz
parte do cotidiano das pessoas, independente do tempo ou até do espaço. São as estruturas, os
objetos e as alterações que compõem os nossos espaços de moradia, lazer, trabalho entre
outros. Estes objetos materiais são importantes para a história porque possuem a capacidade
de vencer barreiras do tempo e do espaço, unindo muitas vezes, estas dimensões. Ultrapassam
as barreiras do tempo, porque perduram além de sua época e de espaço, porque muitas vezes
ultrapassam seus locais de origens como as penas e algodão da floresta amazônica que foram
encontrados na região dos Andes e machados de cobre e tecidos de lã dos Andes que foram
encontrados na região da floresta amazônica no Brasil, permitindo reflexões sobre trocas entre
os povos indígenas que viviam no atual norte brasileiro com os incas do atual Peru. Refletir
sobre a cultura material é perceber todo um patrimônio constituído por estes artefatos e bens
19
(muitos até perdidos), demonstrando o potencial destes enquanto fonte para a história de
quem os produziu... Para a história.
A diversidade teórica sobre a cultura material da história e campos afins foi
debatida no capítulo 1, como as contribuições oriundas da França e em menor proporção dos
Estados Unidos, determinantes para uma arqueologia acadêmica no país; além da atenção
tímida, mas crescente de uma corrente da arqueologia, denominada arqueologia social,
moldada no próprio terreno da América Latina, que tem o México como vanguarda, mas que
“seus raios” estão cada vez mais intensos sobre as “terras brasílicas”.
Ainda sobre a diversidade teórica, a contribuição da antropologia à história “por
baixo”, a partir do folclore, refúgio dos estudos da materialidade ao longo do século XX. O
olhar histórico-antropológico contribuindo perceber as culturas de grupos e indivíduos a
partir de elementos que explicariam as realidades sociais. Estes elementos: ações do cotidiano
de pessoas comuns, lendas e ritos, até então, marginalizado pelas interpretações dos
historiadores.
Através da estância acadêmica no exterior foi possível reflexão sobre os avanços e
limitações dos historiadores no Brasil; os historiadores escavando e dedicando pesquisas
acerca da Pré-história pela América do Sul. Um interesse crescente de historiadores que
debruçam nos seus livros, laptops e tabletes, mas também no campo com suas escavações,
seguida de estudos de laboratórios (muitas vezes, enviadas aos setores da biologia), como
vivenciei na Argentina central – historiadores que arregaçam as mangas e escavam. Apesar
das condições climáticas como o frio, as chuvas e sol forte, a experiência é rica e bela,
especialmente, nas regiões como Traslasierras, na Argentina, os paredões da Serra da
Capivara, no Piauí ou das belas chapadas, vales e rios do norte mineiro.
Dando “corpo” à discussão e diálogo entre a história e a materialidade, história,
arqueologia e antropologia. O termo “corpo”, aqui empregado apresenta uma preocupação em
uma história encarnada com jovialidade para viagens marítimas entre o gelado Reino da
Dinamarca e as terras quentes do Império “Brazileiro”; as mãos e os pés escavando as grutas
calcárias de Curvelo até Lagoa Santa; as mãos que pintaram reproduzindo as pinturas
rupestres, cumprindo também o registrar e comunicar. O capítulo 2 é esta história encarnada
do trabalho do dinamarquês Peter Lund, no século XIX, na então província de Minas Gerais,
no vasto Império tropical do Brazil. Este dinamarquês soube estabelecer seus estudos e os
colocar nas mais altas discussões da academia na Europa. Se a academia europeia é tão
prestigiada nos nossos dias, imaginemo-la no século XIX. O trabalho e técnicas de um artista
20
norueguês, Andreas Brandt, ilustrador e assistente de Lund, também foi contemplado. Ao
contrário da sua obra, Brandt tem sido desconhecido por muitos.
O trabalho inovador de Birgitte Holten, Michael Sterll e Jon Fjeldså, foi
responsável pelos holofotes sobre este norueguês, integrante da nossa história. A obra dos três
historiadores dinamarqueses deságua em confluência com o objetivo desta dissertação por
pertencer ao campo da história e tratar da gênese dos estudos arqueológicos nacionais.
A atenção do senhor Jens Olesen, cônsul-geral da Noruega no Brasil, tornou
possível o nosso acesso a todo o Caderno de Esboço de Brandt, tão raro neste lado do
Atlântico, mas decisivo por conter as primeiras representações de Lagoa Santa, representações
de Curvelo, vila do norte de Minas (atualmente, inserida na região central mineira), local do
encontro de Brandt e Lund. Inclusive Brandt, produziu pinturas sobre o cerrado do centro e
norte mineiro, ou seja, a nossa região tem contribuição significativa para (re) escrever esta
parte da história do Brasil tão desconhecida pela maioria dos brasileiros.
O terceiro e último capítulo apresenta possibilidades arqueológicas do Brasil, de
diversos lugares no norte de Minas, tomando o Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC),
como área arqueológica de referência para o norte mineiro, por ser a área mais pesquisada no
país (por ter um trabalho fixo nas próprias áreas arqueológicas, ao contrário da maior parte
dos grandes centros) e por expressar parte da história desconhecida do Brasil, além de ser o
principal projeto arqueológico do mundo de maior impacto social.
A capa da dissertação traz uma obra de Brandt que retratou as pinturas rupestres
do carste de Lagoa Santa no século XIX. A folha de rosto traz uma fotografia, de ação da
Missão franco-brasileira no Piauí, com a arqueóloga Niède Guidon escavando o Boqueirão da
Pedra Furada nos anos 1980. A fotografia foi gentilmente cedida pela doutora Guidon para as
nossas pesquisas. A folha da epígrafe também é acompanhada por uma fotografia que
registrou o encontro do antropólogo montesclarense Darcy Ribeiro com um índio Kaapor, na
fronteira entre o Pará e o Maranhão entre 1949 e 1951.
Pertencente ao Diário Índios de Ribeiro, expressa o interesse de um jovem
pesquisador para com a riqueza cultural dos índios. O envolvimento com os relatos e com o
rico material iconográfico foi determinante, afinal, partilho da mesma condição, sou um
jovem montesclarense também interessado em pesquisar sobre a diversidade cultural dos
povos indígenas, mas, sobretudo da cultura do povo brasileiro.
21
O convite está feito, os pressupostos foram buscados para serem estabelecidos.
Historiadores sintam-se à vontade, afinal, apesar dos convidados (destaque para arqueólogos,
geógrafos e antropólogos), ainda estamos dentro dos nossos domínios!
22
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA E CULTURA MATERIAL
A história e sua relação com a materialidade; possibilita a compreensão das
aproximações e rupturas. “De precariedade à rejeição; o divórcio é antigo, profundo e difícil
de superar, e a constatação tem ao menos um duplo sentido.” (REDE, 2012, p. 133) Estas
considerações do historiador Marcelo Rede apontam sobre a relação entre a história e a
cultura material como parte dos novos domínios da história1. O duplo sentido se dá, primeiro
pela observação de que os historiadores desprezaram ou falharam em considerar
adequadamente as articulações entre a vida social e a materialidade, mesmo com a grande
diversidade de teorias sobre a experiência histórica, raramente reconhece-se a importância da
dimensão material da existência humana. Segundo, porque a historiografia foi tímida ou
totalmente inapta em incorporar fontes materiais ao processo de geração de conhecimento,
devido a sua vocação consolidada, escolheu privilegiar as fontes escritas de toda espécie,
legando à cultura material, no máximo papel ilustrativo ou de auxiliar.
Na perspectiva inversa, a situação não é das melhores, em outros domínios como
arqueologia, antropologia, história da arte e análises de tecnologias entre outros – os estudos
apresentam-se em sua geração de conhecimento, centrados excessivamente sobre a cultura
material (atributos físicos dos objetos, características técnicas e plásticas), colocando à
margem, dimensões fundamentais caras às abordagens historiográficas como contextos
sociais e a dinâmica temporal; os resultados tornaram de modo geral, muito precisos quanto
aos estilos e formas, as tipologias e séries, mas debilitados para a compreensão das sociedades
historicamente (REDE, 2012, p. 133).
Nas ciências humanas ocorreram várias tentativas com sucessos e fracassos, que
buscaram mobilizar realidades físicas como artefatos e paisagens, corpos e estruturas urbanas
para a produção de conhecimento; mas os maiores esforços estavam distantes da
historiografia, o que sugere a reflexão sobre essas tentativas no âmbito das ciências humanas e
também de possível uso da cultura material como fonte histórica (REDE, 2012, p. 134).
Refletir sobre estas tentativas, talvez seja como afirmou Burke, trilhar o caminho em que é
necessário, “O autor partilhar as dificuldades com o leitor no decorrer da narrativa. Em outras
1
Há outras reflexões diferentes das do Rede (2012), destaque para esta relação a partir de outros domínios como
antropologia e arqueologia.
23
palavras, como alguns romancistas e críticos contemporâneos, tentarei contar uma história e,
simultaneamente, refletir sobre ela e mesmo, às vezes, solapá-la.” (BURKE, 2000, p. 12).
Para Rezende (2012, p. 5), refletir sobre a história e a cultura material, a
elaboração de uma sequência temporal de registros como os arqueológicos, pode contribuir
para formação de modelos arqueológicos, históricos e antropológicos, “que tenham como
objetivo tratar das sequências cronológicas de um determinado espaço ou região.” (2012, p.
5). Este capítulo trata desta reflexão e enfrenta pontos onde apresenta questionamentos e
sugestões teóricas para a observação da cultura material e sua articulação com a vida social.
“Em sua síntese, esta é uma tentativa teórica de trabalhar a questão, ciente das limitações e
implicações das sugestões, críticas e ponderações sobre o assunto.” (2012, p. 5). Pontua-se
que “Sempre que se começa uma história, pode-se dizer que teria sido melhor começar antes.”
(BURKE, 2000, p. 12). Este capítulo começa com o século XIX, que poderia ser denominado
como o Século da Materialidade.
O século XIX viu o emergir da cultura material como segmento das atividades
humanas, embora houvesse todo um período precedente, destaque para a caça aos tesouros
das minas e jóias escondidas, que podem ser consideradas como o antepassado desastroso,
mas vivo da arqueologia moderna (LEROI-GOURHAN, 1995, p. 89); foi neste século da
marcha imperialista que a cultura material foi entendida como parte da experiência social e
objeto para estudiosos e colecionadores. Neste período, os monarcas europeus possuíam e
enriqueciam gabinetes de curiosidades. A cultura material era compreendida como toda
matéria processada pelo homem, informando da sua evolução cultural. Esse foi o conceito que
marcou as primeiras definições na arqueologia e antropologia, o que permitiu uma narrativa
da trajetória humana em modelos como as consagradas Três Idades – Pedra, Bronze e Ferro,
formulados em meados de 1850 (ALMEIDA, 2012). O próprio contexto histórico do século
XIX foi determinante para esta compreensão da cultura material, o que o historiador inglês,
Eric Hobsbawm denominou como a era dos impérios:
Era muito provável que uma economia mundial cujo ritmo era determinado por seu
núcleo capitalista desenvolvido ou em desenvolvimento se transformasse num
mundo onde os ‘avançados’ dominariam os ‘atrasados’; em suma, num mundo de
império. Mas, paradoxalmente, o período entre 1875 e 1914 pode ser chamado de
Era dos Impérios não apenas por ter criado um novo tipo de imperialismo, mas
também por um motivo muito antiquado. Foi provavelmente o período da história
mundial moderna em que chegou ao máximo o número de governantes que se
autodenominavam ‘imperadores’, ou que eram considerados pelos diplomatas
ocidentais como merecedores desse título. (HOBSBAWM, 2002, p. 87-88)
24
“Avançados e atrasados”, o que definia e distinguia esta classificação em si
mesma, estática e simples era mudança; sendo que estas mudanças eram em termos de e em
função da região do Atlântico norte – parte nuclear do capitalismo mundial. As mudanças
eram em níveis distintos, mas até os mais distantes territórios eram tocados pelos tentáculos
imperialistas. Os países mais avançados ensinavam a lição – adaptação do progresso frente a
um passado “atrasado”, apesar da resistência de camadas e parcelas da sociedade em qualquer
lugar do globo. (HOBSBAWM, 2002, p. 46)
A colonização no fim do século XV para o XVI e a Era do Imperialismo, colocou
os europeus em contato com populações distintas e a antropologia emergente do período,
acompanhou e fez parte do processo desta expansão e conquistas, “coube o esforço intelectual
de inserir tais sociedades, vistas como ‘primitivas’, em uma linhagem evolutiva que tendia ser
universalizante e situava a Europa no cume civilizacional.” (REDE, 2012).
A iconografia europeia surgida sobre a América (Novo Mundo) nos três séculos
seguintes das viagens de Colombo, Cabral e Vespúcio possibilita uma noção desta linha
evolutiva, situando a Europa civilizada como referência, legando a América e África lugares
distantes da civilidade.
Figura 01 – Frontispício do Theatrus Orbis Terrarum, atlas de Abraham Ortelius, publicado em Antuérpia, 1570.
Gravura em cobre, cópia aquarela à mão. Acervo da Biblioteca Nacional da Cróacia.
Fonte: Oliveira, Carla Mary, 2012, p. 4.
25
Sobre uma estrutura retabular, que convida o leitor a penetrar no “Teatro de Todo
o Mundo” oferecido por Ortelius, destaca-se a representação da Europa, “a senhora do
mundo”, superior a todas as outras partes do globo, sentada sob um caramanchão que sustenta
uma frondosa parreira carregada de uvas. Na mão direita, a mulher porta um cetro, com a
esquerda segura à cruz de um armilar, sobre sua cabeça repousa uma coroa. Expressando
poder, força e domínio sobre os demais continentes. A Ásia é representada à esquerda,
vestindo saia e um corpete bordados, barriga à mostra e uma tiara ornamentada com pedrarias
sobre os fartos cabelos. Na mão esquerda, traz um recipiente com incenso fumegante. Seus
elementos expressam exotismo e mistério dos povos orientais. À direita, a representação da
África, de torso nu e genitália parcamente recoberta por um tecido simples e sem ornamentos,
trazendo na mão direita um ramo florido de erva cidreira. Na cabeça, os raios de sol
transmitem a ideia então corrente, de que a cor escura dos africanos se devia à proximidade do
continente com o sol.
A porção mais interessante da ilustração, certamente, é a inferior, onde há a
representação feminina da América: nua, a mulher tem longos cabelos que se estendem até as
próprias nádegas; sobre a cabeça, um gorro peruano; na mão direita, na esquerda, uma cabeça
masculina decepada; na testa, uma joia adorna o semblante da americana; na panturrilha
direita, um tipo de tornozeleira metálica; sob as pernas, um arco e duas flechas. Ao lado da
mulher, um busto feminino aludindo à Magellanica (atual Terra do Fogo no sul americano,
que inicialmente Fernão de Magalhães pensou ser outro continente), atrás, uma rede de dormir
pendurada à parede. Selvageria e lascívia, canibalismo e violência: são estas as qualidades dos
habitantes da América que a alegoria destaca oposição diametral à civilização, à religiosidade
e imponência da Europa, tão distante da Europa.
Assim, houve grande fluxo de objetos materiais como machados, vasilhas,
colares, plumas e arcos que formaram grandes coleções nas metrópoles e foram fontes para
interpretações de estudiosos e de suas formações sociais dentro de uma escala evolutiva até a
civilizada Europa. As coleções que abarrotaram “os gabinetes” das metrópoles eram
marcadores da formação da antropologia, mas não firmou no sentido de norteador da
disciplina.
Em termos materiais, em termos de conhecimento e de capacidade de transformar a
natureza, parecia tão patente que a mudança significava avanço, que a história – de
todo modo a história moderna – parecia sinônimo de progresso. (HOBSBAWM,
2002, p. 46)
26
Ao se estabelecerem como disciplinas no século XIX, história e antropologia
pouco dialogavam com seus métodos, teorias, fontes e temas (REDE, 2012). De uma margem
do rio, os historiadores atentavam para pesquisas empíricas e diacrônicas com base em fontes
escritas sobre as sociedades ditas históricas; da outra, os antropólogos e as culturas ditas
primitivas, e não históricas com uma visão de sincronia (comparativa).
A primeira ruptura historiográfica dentro da disciplina antropológica é a de
colocar as sociedades dotadas de escrita como zona de interesse e assim, afirmar o documento
escrito; deixando para os arqueólogos e pré-historiadores, as sociedades sem escrita. O estudo
dos objetos foi gradualmente marginalizado e legado aos museus, que privilegiavam a coleta e
acúmulo, classificação e análises a partir e nos próprios artefatos, embora para Rede (2012, p.
136), não deixou de tornar visível uma linha evolutiva em que a Europa, seguida pelos
herdeiros Estados Unidos da América, reforçava a superioridade de sua civilização, herdeira
direta de grandes civilizações de outrora como gregos e romanos, “em oposição a povos que,
no passado ou no presente, situavam em escala inferior ou nas bordas da linha dominante do
progresso.” (REDE, 2012, p. 136).
No século XX, o campo do folclore foi refúgio de estudos da cultura material,
mesmo que empobrecida de perspectivas históricas e de profundas pesquisas. O folclore é
portador de sentido para o historiador, devido a sua marginalidade. A antropologia conquistou
a história nesse ponto, “por baixo”, pelas expressões menos formuladas da vida cultural – as
crenças populares, os ritos do cotidiano, os artefatos de pedras, em resumo, o folclore
(BURGUIÈRE, 1998, 149).
Desde então, a história do cotidiano, a atuação das pessoas comuns, foram temas
relevantes para os historiadores: de camponeses, mulheres, degredados e escravos, antes à
margem das interpretações históricas, passaram a compor as preocupações e interpretações
históricas. Os povos ameríndios e os africanos, que eram tradicionalmente percebidos pelos
historiadores como (apenas) mão de obra e vítimas passivas dos sistemas opressores ou
extremamente portadores de culturas tradicionais prestes a desaparecer pelas observações dos
antropólogos e folcloristas, passaram a ser percebidos como múltiplos e variáveis sujeitos
ativos. O olhar histórico-antropológico permitiu perceber as culturas dos povos, dos grupos e
indivíduos como elementos que explicariam as realidades sociais, “entendendo-os do ponto de
vista histórico e social, os historiadores contribuíram para desconstruir a ideia essencialista de
cultura.” (ALMEIDA, 2012, p. 154).
27
Edward Palmer Thompson, historiador marxista inglês foi fundamental nesse
sentido. Thompson valorizou o cultural, associando-o ao conceito de classe e consciência de
classe para estudar a classe operária inglesa. Para o autor, os dois conceitos se formam
conjuntamente, no processo histórico, em que um fazer-se contínuo combina-se a ação
humana e os condicionamentos. Para Thompson, cultura é um produto histórico e dinâmico
que necessita ser aprendido ao longo do processo (histórico) – homens e mulheres vivem suas
experiências (THOMPSON, 1981, p. 182). Cultura e classe, são percebidas enquanto
processo, associam-se e são formadas através do tempo, pela experiência dos atores sociais.
Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do
“obsoleto” tear manual, o artesão “utópico” e mesmo o iludido seguidor de Joana
Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da posteridade. Seus
ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo
industrialismo poderia ser retrógrada. Seus ideais comunitários podiam ser
fantasiosos. Suas conspirações insurrecionais podiam ser temerárias. Mas eles
viveram nesses tempos de aguda conturbação social, e nós não. Suas aspirações
eram validas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da
história, continuam a ser, condenados em vida, vítimas acidentais. (THOMPSON,
1987, p. 13).
O conceito de classe é pelo “fazer-se”, ou seja, o processo de formação. A classe
operária não é um produto determinado pela industrialização, mas condição para que esta
aconteça. É a própria classe em suas relações sociais e culturais no processo histórico que
envolve as experiências dos trabalhadores que a define. Para Thompson, o autoreconhecimento dos trabalhadores como classe – que conduz à formação das organizações
operárias e ao estabelecimento, por meio de luta de classes, de novas realidades como a
relações entre capitalistas e operários – encontra se na base da grande indústria moderna. Ao
pensar a diversidade de fatores sociais, culturais do cotidiano e as tradições dos trabalhadores,
Thompson critica o determinismo econômico presente nas correntes marxistas tradicionais.
Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma serie de acontecimentos
díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência
como da consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe
como uma “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que
ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas.
(THOMPSON, 1987, p. 9).
28
Thompson revelou o caráter (auto) criador e ativo popular, esse fazer-se que se dá
na relação de experiência social e cultural entre os atores sociais, no caso, os trabalhadores,
valorizando as longas tradições e o cotidiano das pessoas comuns envolvidas neste processo
histórico.
A origem do modelo teórico que foi usado no século XX pela arqueologia –
campo que encabeçou a valorização da materialidade aconteceu no século XIX. Este modelo
foi denominado de Evolucionismo Cultural – visão etnográfica que objetivava explicar as
diferentes culturas que os europeus se depararam com a expansão pela Ásia, África e
América. (REZENDE, 2012, p. 7). Os trabalhos realizados a partir desta visão baseavam nas
ideias de nomes como Lewis Morgan, Hebert Spencer e Edward Burnett Taylor; que
procuravam encaixar as sociedades dentro de um modelo evolutivo retilíneo de 03 estágios:
iniciado pela selvageria, passado pela barbárie até o estágio final, que era a civilização
(patamar dos europeus). A base deste modelo era a fé na crescente expansão capitalista e na
crença no progresso.
O cenário social e econômico nos anos 1920 para 1930 eram desfavoráveis para a
expansão capitalista, base do modelo Evolucionismo Cultural; principalmente, após o período
do que Hobsbawm denominou de era da guerra total:
‘As luzes se apagam em toda a Europa’, disse Edward Grey, secretário das Relações
Exteriores da Grã-Bretanha, observando as luzes de Whitehall na noite em que a
Grã-Bretanha e a Alemanha foram à guerra [...] viam a guerra mundial como o fim
de um mundo, e não foram os únicos. Não foi o fim da humanidade, embora
houvesse momentos, no curso dos 31 anos de conflito mundial, entre a declaração de
guerra austríaca à Sérvia, a 28 de julho de 1914, e a rendição do Japão, a 14 de
agosto de 1945 – quatro dias após a explosão da primeira bomba nuclear –, em que o
fim de considerável proporção da raça humana não pareceu muito distante.
(HOBSBAWM, 1995, p. 30).
O Evolucionismo Cultural entrava em declínio juntamente com “o grande edifício
da civilização do século XX desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas
ruíram. Não há como compreender o Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra.”
(HOBSBAWM, 1995, p. 30). A crise no período do entre guerras (1918 – 1939), houve uma
necessidade na Europa de autoafirmação dos Estados Nacionais e a Pré-História integrou esta
preocupação: a de identificação de momentos “de uma pré-história local que pudesse aguçar e
exaltar as identidades locais era estimulada, especialmente por governos nacionalistas.”
29
(REZEDE, 2012, p. 8). Ao mesmo tempo deste desmoronamento, a ideia de que diferentes
tecnologias, sociedades e culturas eram disseminadas por um processo de difusão ganhava a
academia, tendo em Franz Boas o ponto de partida.
No início do século XX, obras como de Bronislaw Malinowski e Franz Boas e
parte da antropologia anglo-saxônica pretendiam o campo e temáticas como formas religiosas
e os rituais, trocas econômicas e trocas simbólicas, organizações de instituições, marcando
outra ruptura – de identificação técnica pela via dos vestígios materiais para análises do
comportamento social pela observação, sem grande contribuição do documento material. A
escola boasiana surgiu afirmando o difusionismo como forte reação ao modelo evolucionista
cultural, ao afirmar que as sociedades eram frutos de um processo de criação, pouco frequente
e transmissão cultural, mais frequente. Qualquer elemento cultural poderia ser passado e
repassado e as sociedades, durante o momento que estudadas, seriam a síntese de uma
assimilação maior que invenção.
Apesar da utilidade comprovada do difusionismo (escola boasiana), houve
limitações para a arqueologia. Por ser uma perspectiva que necessita ser elaborada quando já
acumulou significativa quantidade de dados, obtidos de preferência em um espaço geográfico
amplo, objetivando traçar rotas de difusão de determinados traços culturais (apesar de
extremamente complexo é de grande importância científica). (REZENDE, 2012, p. 9). Como
uma imensa parte da Pré-História estava (e ainda hoje, está) para ser conhecida:
O máximo que os novos arqueólogos histórico-cultururalistas poderiam fazer,
naquele momento, era buscar a formação de quadros históricos para um maior
entendimento das ocupações locais. Em regiões onde havia grande carência de dados
arqueológicos, o estabelecimento destas sequências já representava por si só um
grande desafio. Guardadas as devidas proporções, essa prática ainda é utilizada em
regiões pouco estudadas até os dias atuais. (REZENDE, 2012, p.9).
Neste contexto, não havia ainda, a preocupação com as mudanças que as
sociedades (e, portanto, a cultura material) sofriam. Uma carência na formulação de
explicações para as sequências temporais estabelecidas é constatada. A realidade da
arqueologia e da história da cultura material, bem como dos campos afins, necessitavam mais
de informações do que explicações e justificativas dos seus achados. (REZENDE, 2012, p.
10).
30
Além da contribuição da antropologia francesa que viria através de Durkheim e
Marcel Mauss2, priorizar uma concepção de “fato social” abstrata, institucional e relacional,
legando para as margens para a cultura material durante a primeira metade do XX no campo
das ciências sociais, porém na arqueologia “o material” permaneceu no centro.
Em 1919, foi criada por Lênin através de um decreto, a Academia de História da
Cultura Material da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), expressando a
relação da história com a cultura material, a importância que os marxistas atribuíam à cultura
material e suas relações privilegiadas com a história. A nova academia “assumia as
atribuições da Comissão Arqueológica do regime czarista, designando assim o método
arqueológico como a melhor via de acesso à história da cultura material, terminaremos de
delinear os contornos da noção e da pesquisa que a reivindicava” (PESEZ, 1998, p. 177). A
certidão de nascimento da cultura material da URSS não é uma novidade, mas expressa
maturidade do pensamento científico, moldado no século XIX e construindo uma nova
trajetória após a partilha da filosofia por disciplinas distintas. Este desenvolvimento das
humanidades e sociais traz consigo, uma nova arqueologia – que tomou consciência da
cultura material, a arqueologia pré-histórica a partir de Boucher de Perthes de 1860.
Apesar de a cultura material pertencer e acompanhar toda a vida humana, seu
conceito surgiu nos fins do século XIX com os estudos de Pré-História, sendo que o geólogo
francês Boucher de Perthes foi um dos primeiros a empregar o conceito para a análise dos
objetos produzidos pelo homem durante a Pré-história. Após Perthes, o termo foi difundido
até ser institucionalizado em 1919, ano da criação da Academia de História da Cultura
Material da URSS. (FUNARI; CARVALHO, 2009, p. 4-5).
Uma vertente tradicional da arqueologia debruçou, sobretudo sobre os objetos,
sendo sua contribuição maior, o estabelecer relações entre os materiais arqueológicos e os
perfis culturais aos que os fabricaram, afinando cronologias e distribuição espacial dos
achados arqueológicos. Entretanto, empobrecida de interpretação histórico-social, apesar de
esforços de estudiosos como Vere Gordon Childe sobre as “revoluções agrícolas e urbanas”,
sob influência marxista, objetivava explicar a transição do neolítico e o emergir de sociedades
complexas no antigo Oriente Próximo.
2
O fato social incluiria todos os fenômenos humanos, tanto os de natureza econômica, cultural, política e
religiosa entre outros, de uma complexa interação que envolve indivíduos e o coletivo destes. Através do
conceito de fato social de Durkheim (fato social como coisa, objeto a ser estudado) para o fato social total,
assim, trocas em tribos da América expressariam suas instituições religiosas, judiciais, morais, enfim, a vida
coletiva. Anotações a partir da disciplina Teoria da História, do programa de Pós-graduação em História
(PPGH/Unimontes); Maus: Para mais informações em MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Disponível
em: http://www.scribd.com/doc/39041509/Marcel-Mauss-Sociologia-e-antropologia >.
31
No Brasil, os irmãos Bôas (Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas), foram
membros da expedição Roncador-Xingu, nos anos 1940 durante o governo de Getúlio Vargas,
que percorreu regiões inexploradas do Brasil central, objetivando desbravamento destas áreas
e criação de pousos e estradas, motivado pelo temor de nacionalistas de que com a Segunda
Guerra (1939 – 1945), houvesse grandes fluxos migratórios de europeus para estas partes
inexploradas do país. (FUNAI, 2013). Os irmãos Bôas dedicaram ao contato amistoso e a
proteção dos índios que viviam na cabeceira do rio Xingu, pertencentes a uma família de
classe média paulista e outro irmão mais novo, Álvaro Villas Boas, apesar de não ter
acompanhado seus irmãos mais velhos, trabalhou e foi presidente da FUNAI (Fundação
Nacional do Índio).
Figura 02 – Os irmãos Villas-Bôas da esquerda para a direita – Orlando, Leonardo e Cláudio na
Expedição Roncador Xingu.
Fonte: Portal Educar Brasil. 2013.
Em 1944, a expedição contatou o povo Xavante, ainda hostil. Em 1946,
estabeleceram contatos amistosos com 14 povos com diversidade cultural e linguística plural
das Famílias Tupi, Aruak, Karib e Jê, encontrados desde antes, pelo etnólogo alemão Karl von
den Steinen no século XIX, o primeiro a chefiar expedição ao longo do Xingu. No encontro
com os irmãos Bom, estes povos estavam com baixas demográficas devido a epidemias e
32
gripes, devido ao contato de alguns índios com os “homens brancos”, levando com que os
Boas desenvolvessem um projeto positivo de defesa do índio, mantendo contato com
Marechal Rondon e outros indigenistas.
Figura 03: Índios kuikuro recebem roupas por ocasião do contato com a expedição Roncador-Xingu, dos irmãos
Villas Bôas.
Fonte: Acervo Museu do Índio, década de 50.
Os Villas Bôas com sua política indigenista brasileira buscou nas idéias do
Marechal Rondon. Pautando por uma expressiva preocupação protecionista e preservacionista
relativamente aos povos indígenas, com a mínima interferência possível. Esta política foi
expressa no contato com as tribos indígenas da região para proteção dos povos indígenas
xinguanos diante da marcha de penetração estabelecida pelo Estado brasileiro. As
33
preocupações que os Bôas possuíam eram distintas da orientação de Rondon, levando à
compreensão da diversidade cultural e social dos índios. Segundo Darcy Ribeiro:
Os Villas Bôas dedicaram todas as suas vidas a conduzir os índios xinguanos do
isolamento original em que os encontraram até o choque com as fronteiras da
civilização. Aprenderam a respeitá-los e perceberam a necessidade imperiosa de lhes
assegurar algum isolamento para que sobrevivessem. Tinham uma consciência
aguda de que, se os fazendeiros penetrassem naquele imenso território, isolando os
grupos indígenas uns dos outros, acabariam com eles em pouco tempo. Não só
matando, mas liquidando as suas condições ecológicas de sobrevivência.”
(RIBEIRO, Darcy. 1997, p. 194)
Os irmãos Bôas mantinham contato com Rondon, enviando para este, artefatos
indígenas e informações sobre os trabalhos desenvolvidos juntos aos índios e povos do Xingu.
Figura 04: Cláudio e Orlando Villas Bôas com índio do Xingu, circa 1960.
Fonte: Acervo da Família Villas Bôas / Google.com.br.
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Figura 05: Carta de Rondon aos Bôas. Escrita de próprio punho, Rondon agradece pelos “novos conhecimentos
etnológicos da bacia do Xingú” e pelo envio de informações, artefatos indígenas e quaisquer outras notícias de
descobertas novas. Dizia-se que o marechal só escrevia de próprio punho para sua filha e para os Villas-Bôas.
Rondon
Fonte: Acervo da Família Villas Bôas / Google.com.br.
Em 1952, as questões dos índios e dos irmãos Bôas, foram levadas até a
Presidência da República e em 1961, após longo embate, o Congresso Nacional definiu as
fronteiras do Parque Nacional do Xingu com a aprovação do decreto Nº 50.455. (FUNAI,
2013).
Ainda no Brasil, a partir de 1947, o montesclarense Darcy Ribeiro foi contratado
para trabalhar no Serviço de Proteção ao Índio (SPI), casando-se com Bertha Gleiser (após o
casamento em 1948, tornou-se conhecida como Bertha Ribeiro). No SPI, fez diversas viagens
de pesquisa de campo, dedicando-se a estudar os índios Kadiwéu e os Urubus-Kaapor, além
de ter visitado aldeias dos Terena, Kaiwá e Ofaié-Xavante e de ter feito viagem de estudos ao
Xingu. Em 1952, foi à Bolívia e ao Peru, detendo-se na observação dos povos Quíchua e
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Aimará. No mesmo ano, organizou o Museu do Índio, inaugurado oficialmente em abril de
1953. (FUNAI, 2013).
Figura 06: Diários de campo escritos entre 1949 e 1951, quando Darcy Ribeiro anotou o que viu e ouviu
nas duas expedições que fez às aldeias kaapor, na fronteira entre o Pará e o Maranhão.
Fonte: RIBEIRO, DARCY, 1996.
Figura 07: O diário de Darcy começa rendendo saudações de amores a Bertha Ribeiro: Berta, abro este
diário com seu nome. Dia a dia escreverei o que me suceder, sentindo que falo com você. Ponha sua mão
na minha mão e venha comigo. “Vamos percorrer mil quilômetros de picadas pela floresta, visitando as
aldeias índias que nos esperam, para conviver com eles, vê-los viver, aprender com eles.”.
Fonte: RIBEIRO, DARCY, 1996.
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Figura 08: O jovem e entusiasmado Darcy descreve os índios com seus costumes acumulados pelo
conhecimento acumulado e passado pelas gerações.
Fonte: RIBEIRO, DARCY, 1996.
Em 1954, Darcy Ribeiro colaborou com Jaime Cortesão na organização da parte
indígena da "Grande Exposição de História do Brasil", montada em um edifício especialmente
construído para ela, por Oscar Niemeyer, no conjunto do Ibirapuera, por ocasião das
comemorações do IV Centenário de São Paulo. No mesmo ano ele fez sua primeira viagem à
Europa, a convite da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em 1955, com o auxílio do prof. Eduardo Galvão e com patrocínio da Capes,
Darcy Ribeiro organizou no Museu do Índio o primeiro Curso de Pós-Graduação em
Antropologia Cultural realizado no Brasil, que veio a formar muitos pesquisadores
destacados. Também assumiu a cadeira de Etnografia Brasileira e Língua Tupi da Faculdade
de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. No ano seguinte,
integrou uma equipe organizada pela UNESCO para estudar as relações inter-raciais no Brasil
e, devido a uma crise no SPI, acabou sendo demitido da instituição, em 1957.
37
Ainda em 1957, foi contratado por Anísio Teixeira para dirigir a Divisão de
Estudos Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), do Ministério da
Educação e Cultura. Ele levou o Curso de Pós-Graduação que organizara no Museu do Índio,
ampliando-o na área de Sociologia.
Em 1959, Darcy assumiu o cargo de vice-diretor do Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos, como principal colaborador do prof. Anísio Teixeira. No mesmo ano foi eleito
presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e também planejou e dirigiu, no
CBPE, um ambicioso Programa de Pesquisas Sociais e antropológicas.
Figura 09 – Darcy Ribeiro e João Carvalho com mulheres kaapor, Maranhão de 1950.
Fonte: Clarice Cohn, Biblioteca Nacional, abril de 2013, p. 18.
38
Bertha Ribeiro tem papel importante para o conhecimento das artes dos povos
indígenas no Brasil ao longo da segunda metade do século XX. Para a antropóloga, os estudos
da cultura material dos povos indígenas perderam força à medida que os estudos da
antropologia deixaram os museus e passou para os centros acadêmicos entre 1950 e 1980.
Apesar da redução de publicações, o interesse não acabou. Berta Ribeiro sintetiza seu trabalho
em um artigo de uma coletânea do MEC (Ministério da Educação), intitulado As Artes da
Vida do Indígena Brasileiro em 1994. Inicia com uma descrição sobre o procedimento do
barro / argila até a preparação para obtenção de uma cerâmica característica de quem a
fabricou, distinguindo de muitos outros grupos.
Figura 10 – Mulher Tikuna processa alimentos dentro de um vaso de cerâmica. Aldeia de Belém do Solimões.
Fonte: Foto de Jussara Gruber/ RIBEIRO, Bertha. Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994, p. 136.
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Figura 11: Bertha e Darcy Ribeiro.
Fonte: Acervo FUNDAR (Fundação Darcy Ribeiro).
A pesquisadora ainda prossegue demonstrando sua contribuição para a história
indígena, para a cultura material ao debruçar sobre os traçados, que “nesta arte, das mais
antigas que a humanidade pratica, os índios do Brasil alcançaram alto grau de domínio.”
(RIBEIRO, 1994, p. 137). O traçado indígena pode ser caracterizado por dois macro estilos:
um pelo traçado da palha – folíolos do olho da folha de palmeira e o outro, pelo traçado feito
de tala (material mais firme), oriundo do buriti (Mauritia flexuosa) ou de gramíneas como o
Arumã (Ischosiphon Aruma).
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Figura 12 – Traçado com buriti & mãos.
Fonte: Foto de Fred Ribeiro/ RIBEIRO, Bertha. Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994, p. 137.
O tecer alcançou o mesmo desenvolvimento que o traçado e a arte plumária entre
os povos indígenas do território do atual Brasil. Bertha Ribeiro distinguiu duas divisões para a
forma do tecer indígena brasileiro: o trabalho em trama – feito com um uso descontínuo e o
outro é o trabalho em malha – feito com um fio contínuo. Há três tipos básicos de tear na
classificação de Ribeiro (1994, p. 138): 1) formado de duas barras horizontais – as urdideiras
– porque nelas é passado o urdume, amarradas as duas traves na vertical. Denominado na
literatura etnológica de tear amazônico ou tear aruak; 2) um segundo, mais estendido que o
primeiro, possui dois esteios fincados no chão em torno dos quais é passada a urdidura em
sentido horizontal e por fim, 3) formado por uma vara dobrada em forma de ferradura, com
pontas amarradas a certa distância, uma da outra. No intervalo e na dobra é passado o urdume,
este é “o tear em U”. São nestas formas que são fabricados adornos para os braços e pernas.
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Figura 13 – Traçado com buriti.
Fonte: Foto de Fred Ribeiro/ RIBEIRO, Bertha. Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994, p. 140.
A arte plumária talvez seja a maior contribuição de Bertha Ribeiro para os estudos
da história e cultura material dos indígenas ou nas palavras da antropóloga “A arte plumária,
talvez seja a mais bela expressão estética dos povos indígenas do Brasil” (RIBEIRO, 1994, p.
140). Para a pesquisadora, todas as tribos que apreciavam o valor decorativo da plumagem
dos pássaros deviam atribuir-lhes algum significado simbólico, além do estético, o qual é
óbvio. “Essa mensagem se perdeu para sempre no caso dos Tupinambá, que deixaram de si o
testemunho de seus mantos de penas” (RIBEIRO, 1994, p. 140). Podendo ter no mínimo duas
categorias: o estilo suntuoso, devido à associação de penas longas e suportes mais complexos,
como os de povos que o fazem até o presente (Bororó, Karajá e Kayapó) e um estilo mais
simples, capazes de serem aplicados nos corpos como os dos índios Kaapor e Erikpatsa.
Dentre vários motivos e simbolismos da arte plumária, podem-ser destacados; uma
representação e admiração as aves das penas que confeccionaram o utensílio; finalidades
religiosas; perspectivas estéticas e de todo tipo de classificação social e comunicativa como a
oralidade.
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Figura 14 – Arte Plumária bororó – caracterizado por penas caudais de aves como as araras.
Fonte: Foerthmann/ RIBEIRO, Bertha. Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994, p. 141.
Nos anos 1960 surgia a New Archaeology, contra o que entendia de acomodação
descritiva e classificatória. Para “os novos” arqueólogos, mais do que tipologias de objetos
culturais e culturas, isto é, técnica de obter informações, a arqueologia deveria ser de fato,
uma ciência social, que explicaria os processos de transformações das sociedades, portanto,
arqueologia processual. Uma atenção para as relações de grupos com o meio ambiente e as
adaptações destes grupos com este meio. Para a história e a cultura material, o que interessa a
43
esta dissertação, houve um ganho positivo (especialmente para a cultura material), enquanto
campo documental – os objetos e os sítios eram percebidos como dados estáticos e passaram a
participar de um contexto social e até um depósito arqueológico desta trajetória dos objetos.
Para a história especificamente, a New Archaeology, posicionou de forma tradicional, sendo
caracterizada como anti-histórica, por gerar dois efeitos colaterais que “devem ser notados
pelo historiador” (REDE, 2012, p. 137): o esvaziamento da diacronia, dificultando a
percepção das mudanças sociais e marginalização das dimensões e sistemas simbólicos.
No findar dos anos 1970 e início dos 1980, Ian Hodder, terá grande papel na
arqueologia pós-processual, ao perceber uma análise e dinâmica histórica, quanto aos limites
e modelos estruturalistas, levando outra corrente a buscar autores como Pierre Bourdieu e
Anthony Giddens, para uma prática social na qual, os indivíduos atuariam em limitações e
mutações das estruturas sociais, além de uma aproximação com a historiografia dos Annales,
que começava a destacar estudos e fenômenos representacionais. Predominou analogia entre
cultura material e o texto, ou seja, o uso de ferramentas da lingüística e semiótica para “ler” os
elementos materiais. A leitura dos objetos materiais imperou amplamente na arqueologia
como nomes como o de Chistopher Tilley e na antropologia como Miller (ALMEIDA, 2012,
p. 154).
A cultura material percebida como linguagem e, portanto, decifrar códigos era
necessário. Os sinais da contribuição da linguística e suas ferramentas eram percebidos desde
os anos 1960, pelas influências estruturalistas de correntes como de Ferdinand de Saussure3 e
da semiologia e linguística de Lévi-Strauss. A cultura material foi compreendida como
sistema comunicativo em que as sociedades criaram e criam expressões de conteúdos
discursivos como são os códigos verbais. Estas perspectivas foram determinantes e
penetrantes também na arqueologia, destaque para o trabalho de James Deetz sobre a cultura
material e o passado colonial norte-americano em 1977, que a partir de artefatos, outrora
disponíveis aos folcloristas, permitiu interpretação, antes reservada aos historiadores, por se
tratar de períodos de documentação escrita, abrindo um veio para a consolidação da
arqueologia histórica. A partir de então, os estudos de sociedades modernas e
“A língua já não é agora livre, porque o tempo permitirá as forças sociais que atuam sobre ela, desenvolver
seus efeitos, e chega-se assim ao princípio da continuidade, porém, implica necessariamente a alteração, o
deslocamento mais ou menos considerável das relações.” Saussure. Para Saussure, o modo de pensar e fazer a
história, não era o mesmo e a língua, permeia as formações discursivas de épocas, influenciando, materializando
e cristalizando discursos ao longo do tempo. Para mais informações, consulte COSTA, Hilda Rodrigues da.
Sausurre e os Estudos Linguistícos no século XX: Linguistíca Aplicada. In. Anais do SILEL. Volume
1.Uberlândia: EDUFU. 2009.
Disponível também em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/gt_lg07_artigo_5.pdf> Acesso em:
11/05/2013.
3
44
contemporâneas, beneficiaram-se da análise da cultura material, como eram para os estudos
dos grupos pré-históricos.
Os franceses contribuíram também ao contraporem os modelos estruturalistas da
New Archaeology e da visão científica por demais eurocêntrica, abrindo espaço para
interpretações mais fluídas e abordagens multifocais com contribuições de várias
perspectivas, destaque para Foucault e Jacques Derrida. Os objetos e artefatos passaram de
inertes para resultados e intervenções que demonstram o sujeito pesquisador, criando
significados pelos “leitores com o seu texto”, isto é, seus objetos materiais. Para Almeida
(2012, p. 153) por parte dos historiadores, desde os Annales, houve um dialogo maior com as
demais ciências sociais; aproximando da antropologia ao assumir novas temáticas e
abordagens a partir de 1970 e 80 (BURKE, 2000).
É desafiador analisar as abordagens sobre a cultura material na historiografia;
autores que buscaram e esforçaram para este desafio dentre eles, Maria Regina de Almeida e
Marcelo Rede, pontuam que não há nada (dentro da historiografia) que equipara aos debates
arqueológicos ou antropológicos entre nós, historiadores. Basta uma consulta aos periódicos
disponíveis na rede mundial de computadores ou nas bibliotecas acadêmicas, para perceber os
debates intensos e calorosos de arqueólogos e antropólogos e a escassez no campo dos
historiadores. Apesar destes problemas disciplinares (ALMEIDA, 2012), foi com “os
Annales”, que houve maior diálogo e a cultura material recebeu atenção pelos historiadores
franceses. Rede por sua vez, acredita que não foi considerada a cultura material, seriamente
como elemento da operação historiográfica (REDE, 2012, p. 142), mesmo que seja lembrado,
Civilisation Matérielle, économie et capitalisme de Fernand Braudel em 1979, inserindo
dimensões materiais em uma história econômica, o autor não teria trabalhado com a cultura
material propriamente, mas realçado elementos por trás de noções abstratas do sistema
capitalista. No ano de 1978, a obra coletiva de Le Goff, Chartier e Revel, possuía um capítulo
dedicado à cultura material de Jean-Marie Pesez, o que ainda para o autor (REDE, 2012, p.
142), somente saudava um aumento documental e possibilidades que se abriam, sem fornecer
nenhuma orientação de tratamento sólido. Entretanto, concorda-se com Almeida (2012) na
compreensão de ser um avanço na historiografia tomado como fonte para esta discussão.
(PESEZ, 1998).
Entre 1984 e 1992, a contribuição do historiador francês Pierre Nora para os
estudos ligados ao patrimônio cultural, especialmente com a noção de “lugares de memória” é
determinante. (GONÇALVES, 2012, p. 27). Ao debruçar sobre os anos 1980 em que a França
estaria mergulhada em uma “era comemorativa”, não por parte do Estado francês ou de
45
estudiosos, mas por determinados grupos; Nora trouxe contribuições para a discussão ao
propor uma problemática dos lugares, entre a memória e a história; ou nas palavras do autor:
“a curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este
momento particular de nossa história. Momento de articulação onde a consciência de ruptura
com o passado se confunde com um sentimento de uma memória esfacelada” (NORA, 1981,
p. 7), ou ainda, “há locais de memória porque não há meios de memória” (NORA, 1981, p. 7).
Para Nora (1981), memória e história estão longe de serem sinônimos e enquanto
a primeira “é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em
permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas
deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações” (NORA, 1981, p. 8), a
história por sua vez, é problemática, “é a reconstrução sempre problemática e incompleta do
que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno
presente: a história, uma representação do passado.” (NORA, 1981, p. 8).
A cultura material, antes classificada como estatística, ora como documentação,
dentro das correntes pós-modernas, a partir de 1980 é compreendida como tudo o que é
produzido ou modificado pelo homem que, constantemente é interpretado pelas pessoas.
(FUNARI; CARVALHO, 2009, p. 6). A documentação da Arqueologia não revelaria o
passado (ou presente), mas permitiria responder os anseios do presente sobre as múltiplas
culturas. Um exemplo desta perspectiva é a obra do arqueólogo inglês Matthew Johnson na
obra Archaeology of capitalism de 1996.
Em Archaeology of capitalism, Johnson traça um mapeamento das mudanças
ocorridas na paisagem e na cultura material da Inglaterra durante a transição da Idade Média
para a Idade Moderna. A busca pelo nascimento do capitalismo é uma indagação própria do
autor, no seu tempo e contexto próprio. O autor estuda estruturas como as de igrejas do
período transitório e através de suas análises espaciais, a possibilidade de relacionar as
distinções sociais do período e os usos daqueles espaços geográficos. Para Johnson, a cultura
material seria produzida em uma sociedade desigual e expressaria e reforçaria estas
disparidades.
Funari e Carvalho (2009) sugerem traçar o caminho de Johnson (1996) para o
nosso tempo, como a materialidade das escolas. A disposição de salas, carteiras de alunos e
professores, a arquitetura do prédio, entre vários elementos, conduzem professores e alunos a
comportamentos socialmente aceitos, ou nas palavras do historiador Funari “não lemos regras
e nos tornamos membros do rebanho de alunos, na escola; são as estruturas materiais de
controle, no edifício “ESCOLA”, que nos transforma em rebanho.” (FUNARI, 2003, p. 15).
46
1.1 – NOVOS DOMÍNIOS DA HISTÓRIA: a cultura material está ligada à História e à
Arqueologia
A cultura material ainda é essencialmente ligada à história. O novo domínio é um
campo mais dos arqueólogos do que, os historiadores. Entretanto, foi no âmbito da história,
não separada da arqueologia, que ela encontrou seu terreno predileto. “Tudo acontece como se
só nele ela fosse uma ferramenta conceitual útil e eficiente. É licito espantar-se com isso, pois
ela não deveria parecer menos útil em etnologia. Aliás, seria excesso afirmar que a etnologia a
ignora.” (PESEZ, 1998, p. 178). A antropologia cultural anglo-saxã e o próprio termo cultura
material são presentes em etnologia e centros destes estudos.
Pesez no seu artigo que apresenta a historiografia, novas possibilidades, pontua
que é impossível ignorar as pesquisas tecnológicas de Leroi-Gourhan, porque sua própria obra
é determinante para a construção de uma história da cultura material, percebendo Gourhan
como um etnólogo e pré-historiador. A obra de Gourhan é divisora de águas, (ainda hoje, após
tantos avanços), à medida que a cultura material na França estava relegada apenas aos
trabalhos preparatórios (simplesmente analíticos e descritivos da etnologia), salve exceções e
que não entrava muito menos nas sínteses do historiador; “que não estava habituado a separar
a elaboração de suas teses da análise dos materiais que a ela concorrem, nem a dissociar os
esquemas explicativos das realidades vividas, em que se exprime a cultura material” (PESEZ,
1998, p. 179).
Adotando elementos do estruturalismo de Lévi-Strauss, arqueólogos como LeroiGourhan e Deetz, sugeriram uma abordagem estruturalista para a arqueologia. Na
busca pelas estruturas do pensamento e suas significantes na cultura material, a
arqueologia estruturalista procura associar o material arqueológico aos significados
maiores da cultura, buscando uma explicação para os padrões de confecção-estilorepresentação dentro de um todo cultural, que está refletido na cultura material.
(REZENDE, 2012, p.15).
A cultura material refletiria senão o todo, parte deste todo cultural, e, portanto, a
sociedade que a produziu. Leroi-Gourhan acrescenta à arqueologia, a historia e a relação
destes dois campos acadêmicos:
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Pode ser encontrado um acréscimo feito por André Leroi-Gourhan muito valioso.
Percorrendo o curso da história, na passagem das estruturas sociais dos grupos
primitivos para os primórdios da economia agrícola, o autor cita sítios no Oriente
Médio que mostram durante dois milênios a passagem quase imperceptível entre
sociedades caçadores-recoletoras a agrupamentos com cultivo de trigo e criação de
cabras. Essa mudança na perspectiva temporal, acrescenta uma possibilidade não só
real, como verificável no registro estratigráfico. Grandes variações são mais
facilmente percebidas, entretanto, uma sequência de datações, aliada a uma análise
criteriosa na disposição estratigráfica da sequência dos vestígios pode revelar
pequenas transformações em curso. Seria como focalizar a imagem e obter melhor
nitidez na resolução. (REZENDE, 2012, p.15).
A criação da Academia e institutos de história da cultura material da URSS e na
Polônia no início do século XX, atestam que o domínio da cultura material é mais dos
arqueólogos que dos historiadores, impulsionaram as pesquisas nestes institutos criados pelo
regime socialista. No ocidente, os historiadores contribuem, debatem e praticam mais
recuados o novo campo, mas é lugar dominado pelos arqueólogos, como era o caso da Itália
de 1970 e 1980 por Andrea Carandini, Massimo Quaini e Diego Moreno, nas palavras de
Pesez (1998, p. 179):
E o primeiro editorial da revista Archeologia Medievale fazia da cultura material o
tema principal, destinado a reunir os trabalhos dos arqueólogos medievalistas. Na
França, embora ainda não haja cátedras universitárias atribuídas à história da cultura
material, as primeiras direções de estudos que reivindicaram esse título na École
Pratique dês Hautes Études foram as dos arqueólogos. Sua atividade no novo campo
de pesquisas se explica sem dificuldade pelas suas fontes: são fontes materiais
aquelas através das quais os arqueólogos abordam as sociedades do passado, de
maneira que, nas reconstituições que propõem, os aspectos materiais das civilizações
prevalecem naturalmente. Todavia, deve-se recordar que, durante muito tempo, a
arqueologia buscou essencialmente, nos vestígios concretos, as manifestações das
representações mentais sob todos os seus aspectos religiosos e artísticos. Portanto, a
arqueologia não chegou de uma só vez à cultura material: foi-lhe necessário o
exemplo da pré-história e o impacto da renovação das ciências humanas.
“A arqueologia não chegou de uma só vez à cultura material: foi-lhe necessário o
exemplo da pré-história”, os conceitos de pré-história foram cunhados no findar do século
XIX e primórdios do XX. Na Europa, refere-se ao período do surgimento do homem aos
primeiros ideogramas há cerca de 3.500 a 4.000 a.C.. O conceito na América se aplica ao
período anterior a chegada dos europeus às terras do atual continente, em 1492 e no caso
específico do Brasil, todo o período anterior à 1.500. Funari; Noelli (2006) propõem o
emprego do termo de forma crítica e apenas para sistematização dos estudos do período – que
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na América conta com outras fontes como os relatos e escritos de cronistas e viajantes acerca
dos povos que viviam nas terras “encontradas”.
Para Gourhan (1995, p. 89), os caminhos da pesquisa sobre a história antes da
escrita são dois: o estabelecido pelo historiador e o outro pelo arqueólogo. O arqueólogo mais
à vontade, conduzindo e interpretando a pesquisa pré-histórica através do conhecimento
cronológico estratigráfico e o historiador, geralmente, mais tímido, dirigindo no sentido da
etnologia, da interpretação e construção historiográfica sobre o conhecimento a partir das
superfícies e tecnologias visitadas pelo homem fóssil. Estabelecer a antiguidade de ambos os
caminhos é difícil, pois toda a escavação gera cortes e conhecimento do passado e a história
sempre existe nos lábios e ações dos homens; para ter uma noção, as explorações de minas e
pedreiras, possibilitaram adquirir conhecimento, bem antes do surgimento da preocupação e
estudos em retirar do solo, os testemunhos e o “passado” dos homens.
A partir do século XVIII, com metodologias nada sofisticadas, “os arqueólogos,
em sentido amplo, dispuseram dos dois meios necessários para compreender a totalidade do
fato arqueológico” (GOURHAN, 1995, p. 89), fazendo com que, (pré) historiadores e
arqueólogos se distanciassem em busca da mesma preocupação: a pré-história. Desde o início
do século XIX, o divórcio foi estabelecido, os pré-historiadores, adotando as interpretações
estratigráficas e historiográficas, sem a preocupação com os aspectos da pesquisa de
escavações e materiais; enquanto os arqueólogos examinavam os solos das cidades, templos e
ocupações, sem percebê-los como documentos, mas como enormes quantidades de entulhos
sobre o sítio e monumento, que se propunham a descobrir. Portanto, até o século XX, préhistória e arqueologia eram percebidas distintamente, pelo menos na França (influenciadora
dos estudos por todo o mundo) e Brasil.
Os materiais do pré-histórico no sentido amplo (com o emprego no cenário global
e na América), principalmente, feitos de pedras e ossos de animais, levaram os investigadores
a procurarem o que em modelos a partir da geologia e paleontologia. Acerca das limitações e
possibilidades, tanto do arqueólogo, quanto do pré-historiador, Gourhan contribui:
De fato, trata-se apenas de uma questão de proporções, e o arqueólogo, se deseja
renovar a informação, tem tanta necessidade do socorro da zoologia e da
estratigrafia quanto o pré-historiador. De maneira, semelhante, este último, se nunca
teve o contato com monumentos consideráveis, tem mais que qualquer um
necessidade de uma percepção direta do espaço habitado. Poderíamos reunir essa
situação recente considerando que, tanto para um como para outro, só falta ampliar
verticalmente em noventa graus o campo de seu interesse, um para cima e outro para
baixo. (GOURHAN, 1995, p. 90)
49
Os arqueólogos podem aprender com o historiador e seus domínios, a partir das
mutações sociais e históricas, enquanto que os historiadores podem apropriar do campo dos
arqueólogos, as visitas e escavações de campo. Além da contribuição das ciências físicas nos
domínios de ambos os lados, pois a biologia, que até os anos 1980, proporcionava
conhecimentos e características morfológicas como crânios, a partir dos anos 1990,
possibilitam informações como os genes e conhecimentos como alimentações, causas de
mortes, idades entre outros. Desde os estudos dos pólens, a técnica do carbono 14 e as
escavações; a zoologia pode contribuir para a percepção das estratégias humanas e em
sociedades a partir dos estudos de paleoclimas.
Sem a intenção de desvalorizar a importância das pesquisas estratigráficas que
indiscutivelmente são preciosas; acredita-se que o estudo-histórico-temporal de sítios
arqueológicos pode ampliar a produção do conhecimento. Nesta compreensão, os estudos
práticos têm seus limites, bem como, pesquisar excessivamente o vetor temporal é outra
extremidade. Embora, nenhuma destas extremidades seja ruim, defende-se o produzir de
conhecimento a partir das mais variadas formas multidisplinares. A arqueóloga Maria Dulce
Gaspar descreve sinteticamente um sítio, o sambaqui Jabuticabeira II em Jaguaruna/SC, que
teve através de datação, informação de ocupação ininterrupta durante mil anos, além de
informações através da tipologia. Sem as datações, as informações foram possíveis,
entretanto, os dois tipos de levantamentos, lançaram uma base sólida para as considerações
posteriores. (GASPAR, 2004, p. 45). Resende (2012, p. 24) aponta como exemplificação
bem-sucedida, o trabalho de Paulo Seda da arte rupestre do centro-norte de Minas Gerais,
estabelecendo momentos estilístico regionais na Serra do Cabral, um possível centro de
convergência deste momento entre a Tradição Planalto (característica da região de Lagoa
Santa) e a Tradição São Francisco (característica da região do norte de Minas Gerais). A
conclusão do pesquisador é que apesar do problema comum de datação para pinturas
rupestres, ainda assim, é um desafio complexo e reflete o quanto a datação é importante e sua
ausência em fontes como as pinturas, limita modelos mais complexos.
Tanto o caminho da pré-história do (pré) historiador, quanto o trabalho
arqueológico do arqueólogo são importantes, mas o primeiro tem caminhado mais moroso e
tem sido de difícil trajetória em busca de estudos e espaços nos centros universitários, isto é, a
“pré-história horizontal”.
50
Ainda que não se deve pensar que os métodos surgiram de um nada total. Boas
escavações de estruturas de habitats pré-históricos tiveram lugar desde o século
XIX, nos confins da pré-história e da arqueologia, nos países do norte e nordeste da
Europa. Aplicadas a sítios que ainda ofereciam uma certa dose arquitetônica
(megalitos, túmulos, superfícies que tinham conservado madeiras de construção),
deram lugar a um registro frequentemente preciso. Mas a transposição para os
habitats paleolíticos não se fez imediatamente, mesmo na Europa central ou na
URSS, onde as condições dos depósitos são eminentemente favoráveis: foi
necessário esperar até perto de 1930 para que as primeiras interpretações fossem
feitas. Dessa forma, a pré-história ‘horizontal” teve mais de meio século de atraso
com relação à pré-história estratigráfica. Esse atraso encontra-se longe ainda de ser
superado. (GOURHAN, 1995, p. 91)
A história antes da escrita é a história da mão antropiana conforme Gourhan, aliás,
não da mão, porque há poucos esqueletos “de mãos”, mas no sentido do conteúdo que chegou
até o presente, isto é, a história dos produtos cognitivos do homem que a mão exteriorizou que
são os seus instrumentos diversos: pinturas rupestres, suas urnas funerárias, enfim, o próprio
homem. Para o arqueólogo, os esqueletos, pedras talhadas e datações por radioatividade, são
como que tripé de sua pré-história estratigráfica; para o (pré) historiador, são documentos préhistóricos, mais que um calendário, como um texto. Sua atividade essencial de pesquisa: além,
da reflexão interpretativa sobre os objetos e pesquisas dos arqueólogos, tem uma leitura do
documento que é constituída e escrita pela descoberta a partir de escavações (não
necessariamente suas); pedras, restos de ossos, possibilitando organizar parte das experiências
humanas. Sendo que
O texto vale o que valeu o trabalho de preparação do manuscrito e a interpretação
valerá o que valia o texto. Em outra palavra, a superfície do solo posta a descoberto
falará na medida em que o pesquisador souber torná-la legível e, uma vez o
documento inexoravelmente destruído, daí não se poderá tirar dele mais que aquilo
que a dissecção minuciosa terá sabido colocar em estado que possibilite um registro.
O futuro de qualquer pesquisa sobre um sítio pré-histórico (inevitavelmente
destruído pela escavação) repousa portanto, sobre a ação pessoal do pesquisador e
sobre um registro [...] não se encontra em nosso propósito detalhar as técnicas do
registro: planos, sumários fotográficos integrais, das superfícies sobre as quais a
limpeza conduziu a uma apresentação clara de todos os vestígios do lugar [...] cabe
ao pesquisador improvisar os procedimentos próprios para não deixar escapar
qualquer elemento de documento possível. (GOURHAN, 1998, p. 93).
A finalidade do registro é ser exaustivo e integral quanto à compreensão da
estratigrafia para os arqueólogos e pré-historiadores, mas também, preservacionistas para toda
a comunidade e sociedade. Cabe ao pesquisador improvisar parte dos seus próprios
procedimentos. Nesta sequência, o pré - historiador passa de meditação vertical (a partir dos
51
estudos e resultados estratigráficos) para a meditação horizontal (construção de suas
pesquisas historiográficas), “concentrando sua atividade principal na pesquisa do homem em
seu meio desaparecido. No fundo, pouco importa que se trate de fazer reviver a intimidade
doméstica de uma família camponesa do VI milênio ou a de uma família de Australantropos
caçadores” (GOURHAN, 1998, p. 93).
Os resultados obtidos até aqui sobre o conhecimento das culturas pré-históricas
podem parecer inadequado aos procedimentos padrões acadêmicos (GOURHAN, 1998),
principalmente na pré-história horizontal, praticada pelo historiador, entretanto, o pouco que é
conhecido sobre a organização social dos homens da pré-história (mundial e brasileira),
mesmo que não muito extensa, possibilita perceber fragmentos de suas economias, crenças e
vida estética. O historiador é convidado a fazer “biografias” de blocos de pedras utilizados
“para guarnecer as lareiras, blocos cujos fragmentos reunidos e colocados em ordem podem
fornecer a ordem de sucessão das diferentes habitações que se serviram das pedras ainda
utilizáveis” (GOURHAN, 1998, p. 96).
O pré-historiador foi levado a tomar ciência do caráter “lugar”, informador, até do
menor vestígio. Além das estruturas evidentes, que são trazidas pela escavação do arqueólogo,
há estruturas latentes que “não poderiam ser percebidas no decorrer da escavação e que por
conseqüência era necessário armazenar os elementos para submetê-los a uma análise ulterior.”
(GOURHAN, 1998, p. 94). Assim, buracos de estacas, bases de cabanas, lareiras, silos,
podem explicar as sociedades que as fizeram, ou pelo menos falar parte delas, ou
simplesmente, representá-las, quando não forem encontradas em seus restos fósseis,
permitindo ao pesquisador “o tempo de refletir sobre o solo dissecado tal como um historiador
pode fazer sobre o original de um documento, para permitir o registro fotográfico vertical e
oblíquo dos vestígios estruturados.” (GOURHAN, 1998, p. 94).
Apesar das críticas, “os Annales”, possibilitaram uma preocupação com a cultura
material, destaque para a história antropológica, que não é objeto deste trabalho, mas aborda a
relação da história dos homens a partir de objetos – a cultura material integra a infraestrutura,
apesar de não as recobrir, exprimem no concreto, nos e pelos objetos. A relação do homem
com seus objetos, sendo ele próprio, em seu corpo físico, objeto material. Braudel fora
criticado pelo arqueólogo italiano Andrea Carandini por não ter definido o objeto no seu livro,
ou por colocá-lo muito abstrato. Entretanto, para Le Goff e Pesez (1998), Braudel não apenas
trabalhou a cultura material, como a subordinou a um fenômeno propriamente histórico: o
capitalismo.
52
Um exemplo apresentado por Pesez (1998, p. 197) é sobre uma casa. A casa é um
terreno de encontro para historiadores, geógrafos, arqueólogos e etnólogos. Entre todos estes,
o historiador é o menos a vontade, pela trajetória de uma documentação limitada às
construções de prestígios ou dados econômicos. Talvez, lhe seja, mais adequado pontuar
sobre o período medieval, apresentando um castelo ou uma casa burguesa do que uma casa
camponesa, construída com materiais mais precários (PESEZ, 1998, p. 197). A documentação
escrita apresenta-se limitada e a partir dos dados arqueológicos que historiadores como Pierre
Chaunu souberam apropriar, foi possível apresentar sobre a sociedade medieva francesa e
seus traços de construção. Na arte do carpinteiro do século XVII e XVIII, que os arqueólogos
encontraram a trajetória das casas camponesas: de madeira, depois de pedra, a casa dos
camponeses desenvolveu um projeto a partir dos testemunhos.
Os pesquisadores como historiadores continuam procurando se encontrar na
história com a materialidade; ela ainda não soube forjar seus conceitos, nem desenvolver
todas suas implicações, esta dissertação é um esforço quanto a estas questões e domínios.
Apesar das grandes dificuldades, Pesez (1998) já convidava aos historiadores franceses e
todos que o lesse, que apesar das dificuldades, a história não pode deixar apenas para outros o
nosso trabalho. Apresentando honrosamente o trabalho de Gourhan em Evolução e Técnicas,
critica que o grande pré-historiador e arqueólogo debruçou demasiadamente sobre as técnicas.
Portanto, apesar das limitações do historiador, os domínios deste lhe pertencem e assim, como
há muitas teorias técnicas que extraem o que os vestígios não apresentam por parte de muitos
arqueólogos, estudiosos de técnicas; é possível construir uma pré-história horizontal.
1.2 – HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA NO BRASIL: perspectivas e reflexões por uma
contribuição de historiadores
A arqueologia tende a se ver mais como uma ciência social, para a qual palácios ou
tesouros muitas vezes são menos importantes do que as questões que eles podem
responder”, diz Roger Bagnall, o diretor do Instituto para o Estudo do Mundo
Antigo da Universidade de Nova York, nos EUA. O britânico Robin Boast, curador
do Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade de Cambridge, na
Inglaterra, concorda: “Mais para o fim do século 20, houve uma grande mudança de
interesse, que migrou de ‘civilizações’ para ‘culturas’ e ‘sociedades’4
4
OSSE, José. Arqueologia: às favas com os poderosos. In: Revista Super. Rio de Janeiro: Editora abril. nº 255 a.
2008.
53
O homem ao contrário dos animais que nascem equipados para sobreviverem e
interagirem com o meio ambiente, precisa construir mecanismos e instrumentos que garantam
sua sobrevivência e subsistência como roupas, carros, casas e prédios. Desde os primórdios,
buscando abrigos para proteção das variações climáticas, escondendo de animais, enfim, por
sua sobrevivência. É necessário aprender e aperfeiçoar – passar o conhecimento adquirido de
geração após geração, de técnicas de fabricação e apropriação de matérias-primas.
A arqueologia é uma ciência social que objetiva estudar os antigos e novos
processos históricos pela via dos inúmeros vestígios materiais deixados pelo homem.
(SCATAMACCHIA, 2005, p. 19). Nos países como Grécia, Egito, México e Peru que
possuem estruturas monumentais, pesquisas arqueológicas acontecem por longa data, bem
como, ampla divulgação, resultante destas tradições de trabalho. No Brasil, os estudos
sistematizados são recentes, o que torna importante, uma abordagem sintética sobre os
estudos arqueológicos no país e dos resultados e divulgação destes. O estudo da arqueologia
é variável pelas diferentes tradições, formações e escolas acadêmicas. Neste trabalho deterá
no tornar-se arqueólogo no conceito amplo, isto é, também, pesquisadores afins.
Segundo Funari (1999-2000, p. 75), nos Estados Unidos, a maior parte dos
arqueólogos é constituída por antropólogos, devido à antropologia americana incorporar
estudos de linguística e da arqueologia; apesar de uma menor parte, os arqueólogos clássicos
(estudos sobre a Grécia e Roma); historiadores, devido à história e a história da arte
especificamente abarcarem estes estudos; os arqueólogos egiptólogos e assiriólogos, os dos
estudos bíblicos (arqueologia bíblica) e ainda, os da biologia e geologia. A outra grande
vertente ou linha é formada pelos arqueólogos e pré-historiadores, classicistas ou
medievalistas de tradições históricas filológicas alemãs e francesas. Em alguns centros de
pesquisas, a arqueologia integra a história da arte, em outros a história ou a línguas, raramente
faz parte da antropologia. Os ingleses levaram mais consolidada à independência
epistemológica da arqueologia enquanto ciência, com cursos de graduação específicos em
arqueologia, ao contrário de ser uma especificação, após uma formação acadêmica em outras
áreas das ciências humanas e sociais.
A formação do arqueólogo brasileiro insere-se numa realidade tão generalizada
quanto. Assim como acontece no âmbito mundial, não há uma única linha de formação e
tradição, “não se pode, entretanto, fazer um balanço da formação do arqueólogo no país, sem
primeiro analisar, ainda que brevemente, a história da disciplina em nosso meio e o ambiente
acadêmico que ela se desenvolve” (FUNARI, 1999 - 2000). Não foi procurado apresentar
54
todos os ramos da arqueologia mundial e no país, mas de apresentar os estudos a respeito de
uma etapa da história brasileira, preterida pela maioria dos historiadores, mas próxima do
arqueólogo e da arqueologia, que tem como “objeto de estudo [...] o passado.” (NAJJAR,
2005, p. 12). A própria palavra arqueologia remete ao estudo do passado que pode ter meses,
dezenas, centenas ou milhares de anos. O arqueólogo pode estudar desde uma fazenda
abandonada ou uma casa dos anos 1950 quanto uma caverna pré-histórica, o que será alterado
é sua tipologia de fonte: nas fazendas e casas, pode ter como fonte além dos vestígios
materiais, documentos escritos, plantas, fotografias, liberações de obras; nas cavernas préhistóricas, têm-se apenas os restos materiais que chegaram até o presente como fogueiras,
pinturas rupestres e gravações, fogueiras e cerâmicas, que possibilitam o estudioso analisar o
comportamento humano.
1.2.1 – Arqueologia e Paleontologia no Brasil: síntese de Lund à formação da
arqueologia acadêmica com os estrangeiros
A arqueologia pré-acadêmica tem longa trajetória no Brasil. O século XIX
inaugura os estudos de naturalistas europeus por aqui, bem como o IHGB (Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro), destaque para as pesquisas de Peter Lund, na região de Lagoa Santa,
em Minas Gerais, considerado pai da arqueologia e da paleontologia brasileira. Embora haja
registros e menções anteriores feitos por cronistas, religiosos europeus sobre vestígios préhistóricos: “As notícias sobre a arte rupestre no Brasil surgem nos séculos XVI/XVII
acompanhadas por interpretações religiosas” (PROUS, RIBEIRO, 2009, p. 396).
A maior parte do conhecimento arqueológico produzido no Brasil trata do período
pré-cabralino. A arqueologia feita (por arqueólogos, antropólogos e historiadores) “é
essencialmente uma arqueologia de sociedades indígenas extintas que viveram em um
passado distante, deixando como testemunho de sua existência somente restos materiais.”
(BARRETO, 1999 – 2000, p. 33), Uma abordagem dos restos materiais ou cultura material
destes povos extintos, embora, não de maneira arbitrária, porque exemplos da arqueologia
histórica farão parte da explanação entre história e arqueologia.
O diálogo da história com a antropologia tem tido exemplos excelentes em sítios
da arqueologia histórica, enquanto novas tendências. Encontrando nos mais recentes estudos
sobre as sociedades da América colonial e pós-colonial, sendo que povoas indígenas e
africanos foram sendo inseridos, ao longo de quatro séculos, em condições de extrema
55
violência e exploração. Almeida (2012, p. 151) contribui ao traçar a contribuição deste
diálogo, sobretudo com a antropologia. “Se até meados do século passado, esses povos eram
vistos pela historiografia basicamente como mão de obra e/ou vítimas de sistemas opressivos
que anulavam suas possibilidades de ação, em nossos dias, essas abordagens já não se
sustentam” (ALMEIDA, 2012, p. 151). Esta nova perspectiva história, ou melhor, perspectiva
histórico-antropológica tem fundamentado inúmeras pesquisas empíricas em diferentes
períodos e espaços geográficos na América, sendo que índios, africanos e seus descendentes,
são percebidos como sujeitos ativos nos processos históricos nos quais se inserem. Estas
análises contribuem para revisões da história desses povos, mas também das histórias
regionais e nacionais (AMEIDA, 2012).
Destaque para os estudos que há mais de 20 anos vem ocorrendo na Serra da
Barriga, no município de União dos Palmares, alguma das principais pesquisas da arqueologia
histórica no Brasil. A área é reconhecida nacionalmente e internacionalmente como a
principal região do quilombo dos Palmares (IPHAN, 2012, p. 19), os arqueólogos da
Universidade Federal do Alagoas (UFAL) têm descoberto significativo acervo de cerâmicas,
demonstrando trocas e convívios durante os 100 anos de quilombo.
Figura 15 – Única imagem do século XVII retratando o Quilombo dos Palmares.
Fonte: Gaspar Barleus, 1647 / IPHAN, 2012, p. 21.
56
Figura 16 – Fotografias das escavações na Serra da Baleia, Alagoas as fotografias de cima (1 e 2) mostram
escavações em áreas intermediárias e abaixo a foto 3, apresenta um cachimbo.
Fonte: Montagem do autor / Site do Parque Quilombo dos Palmares.
Apresentar uma história da arqueologia no Brasil “é acompanhar o confronto do
brasileiro ao longo destes anos com um passado pouco conhecido, que traduz as diversas
formas de identificação ou rejeição das raízes indígenas por parte da sociedade nacional, e que
nem sempre corresponde aos ideais de uma (pré) história nacional.” (BARRETO, 1999 –
2000, p. 33). Ao contrário de alguns países vizinhos que os sítios arqueológicos e seu status
de patrimônio arqueológico são movidos pdas populações atuais, a nossa história é por
rupturas irreversíveis: a do extermínio das sociedades indígenas e construção de uma
sociedade nacional branca aos padrões do Reino luso-brasileiro ou do Império brasileiro, mas
que não tenha os padrões indígenas. Assim, a própria legislação de proteção desta vertente de
patrimônio cultural é fomentada de “cima para baixo”, por uma pequena elite intelectual de
forma paternalística ou autoritária pelo Estado, enquanto que em outros países, a legislação de
proteção é resultado de demanda de grupos regionais ou nacionais que querem fortalecimento
de suas tradições (BARRETO, 1999 – 2000, p. 33).
Além desta falta de identificação étnica e cultural com o passado indígena, não há
no Brasil, estruturas monumentais (grandes pirâmides, criações de sociedades altamente
57
hierarquizadas), como apresentado inicialmente; agravado pelos desafios de preservação e
conservação, acentuados por ações de vandalismo, o que intensifica a falta de identificação
entre o patrimônio arqueológico e a sociedade em geral. Para Funari e Noelli (2006, p. 9),
para se falar em pré-história brasileira, deve-se falar do Brasil como Estado Nacional, modelo
organizacional político e econômico recente, construído ao longo dos últimos 500 anos
(HOBSBAWM, 1990). Para que a compreensão do leitor ao referir ao Brasil seja remetida a
partir de 1822, ou anterior a isso até 1500 – como parte do Império ultramarino português;
caso tempos anteriores sejam tratados, “estamos nos referindo ao território que hoje faz parte
do nosso país, e não ao nosso Estado nacional” (FUNARI; NOELLI, 2006, p. 11) enfim,
“quando se estudam os habitantes do Brasil antes da chegada dos portugueses, é preciso
inicialmente lembrar que o país é uma criação política recente, cujas fronteiras atuais não
correspondem a limites entre as populações pré-históricas” (PROUS, 2006, p. 7), como os
índios Guarani atuais, existentes tanto no Brasil como no Paraguai.
Prous em O Brasil antes dos brasileiros apresenta ao público em geral, o cuidado
de não inclinar para a tendência de limitar as populações pré-históricas nas divisões
territoriais posteriores e a de perceber estas populações estaticamente, como as remanescentes
ou a partir dos viajantes e naturalistas europeus como Jean de Léry, Hans Standen, André
Thevet, Gabriel Soares de Souza em seu Tratado Descritvo do Brasil, jesuítas como Fernão
Cardim que descreveu os sambaquis ou os soldados do capitão-mor Feliciano Coelho que em
1598 observaram inscrições rupestres. O estudo do passado antes de 1.500 não dispõe dos
textos escritos deixados pelos integrantes destas sociedades, como possibilidades para os
historiadores, sociólogos, antropólogos analisarem estes textos ou pela via da observação e
com métodos como a história oral.
Há apenas os vestígios materiais, deixados voluntariamente ou involuntariamente,
o que “nem historiadores nem antropólogos estão acostumados a tratar” (PROUS, 2006, p. 8),
o que lega principalmente aos arqueólogos esta tarefa do estudo do passado por técnicas e
métodos sobre os vestígios materiais.
Os arqueólogos através de teorias e interpretações apoiadas na antropologia
procuram interpretar indícios disponíveis da cultura material.
Portanto, estudos
interdisciplinares, com cruzamentos de dados e considerações da história, arqueologia e
antropologia, podem gerar avanços para as interpretações e entendimento histórico das
sociedades extintas (REDE, 2012, p. 133). Os estudos sobre este passado não encontra uma
totalidade (verdade absoluta), mas como que interpretação ou interpretações sobre os
vestígios materiais, variáveis pelo momento histórico, as tendências e formação dos
58
arqueólogos, antropólogos e dos historiadores que enfrentam os problemas e desafios que para
REDE (2012, p. 133), é duplo e em geral, os historiadores tem falhado ou desprezado em
considerar adequadamente as articulações entre a vida social e a materialidade com sua
diversidade.
Para Barreto (1999 – 2000, p. 34), as poucas histórias da arqueologia brasileira
escritas por nomes como Mendonça de Souza de 1991; Prous em 1991; Schmitz em 1994,
tratam do conhecimento sobre as antigas populações indígenas e iniciam sobre as descrições
feitas por Pero Vaz de Caminha ou outros cronistas, mas que apesar de serem fontes para
historiadores, arqueólogos e etnohistoriadores, nem sempre são percebidas por um olhar
arqueológico- histórico.
No fim do século XIX, os governos brasileiros, especialmente Dom Pedro II,
mostrou particular interesse pelos estudos Lund, incentivando a pesquisa arqueológica no
Brasil através do Museu Nacional e de promoções de expedições brasileiras, dentre elas, as
expedições de Ferreira Penna que documentaram pela primeira vez sítios da cultura
marajoara; as escavações como as de Rath nos sambaquis paulistas em 1876 e as de Carlos
Wiener e Roquete Pinto nos sambaquis do sul brasileiro em 1876 (MENDONÇA DE
SOUZA, 1991 / BARRETO, 1999 – 2000). O findar do século foi de efervescente produção
arqueológica, tanto de objetos primários, oriundos das escavações, quanto de hipóteses e
teorias sobre a origem dos ameríndios no Brasil, assim, o tardio surgimento das universidades
brasileiras, deu lugar para que as teorias e pesquisas arqueológicas e históricas acontecessem
dentro dos museus brasileiros.
Os museus como o Museu Paulista em São Paulo, o Museu Paraense em Belém e
o reformado Museu Nacional no Rio de Janeiro, refletiam novos ideais trazidos da Europa por
uma elite intelectual brasileira, em torno de evolucionismo, positivismo e naturalismo
(SCWARCZ, 1989), destaque para o evolucionismo, pois antes mesmo de Darwin e Wallace,
as hipóteses de Lund, sobre os restos fósseis de Lagoa Santa/MG, levantavam
questionamentos aos paradigmas do período e sobre a antiguidade destas populações,
questões que estendem até o presente. Os museus legaram espaços próprios a arqueologia e
etnologia, entretanto, menores às ciências “verdadeiras” – naturais. Destaque para a
preocupação de estudos antropológicos e biológicos, enfatizando características cranianas e
trações raciais como as tipologias “o homem de Lagoa Santa” e “o homem dos sambaquis”. A
arqueologia com o papel de documentar vestígios humanos mais antigos; destaque para a obra
de Ladislau Netto, diretor do Museu Nacional em 1879, que publicou a primeira síntese de
arqueologia e pré-história brasileira: Investigação sobre a Archeologia Brasileira (1885).
59
O Museu Paulista, inaugurado após o fim do Império em 1894, possuía um
projeto cientifico mais rígido e estrutural aos moldes alemães, através do seu diretor, o
zoólogo Hermann Von Ilhering, que publicou mais de 20 obras; ele possuía uma preocupação
cultural, que dedicava mais as questões técnicas do que as dimensões humanas, não aquém
como outrora a realidade global. O Museu Paraense, reformulado por Emílio Goeldi, zoólogo
suíço, havia uma forte influência e domínio estrangeiro. Para Barreto (1999 – 2000, p. 39), a
arqueologia institucionalizada nos museus brasileiros do período, reflete um processo que
ocorreu à margem da dinâmica histórica e social da época, a nova República e seus ideais
românticos, o que resultou em uma arqueologia reservada aos poucos especialistas, na sua
maioria, estrangeiros. Uma arqueologia mais “popularizada” surgiu no Brasil fora dos
museus, em sociedades históricas e geográficas. Em 1920, se findava a era dos museus e
apenas o Museu Nacional manteve atividades constantes de arqueologia, que ficou sozinha,
dentre outros motivos, pela mudança das preocupações e paradigmas da antropologia
nacional, preocupada com o povo brasileiro moderno, sua miscigenação racial e imigrações
européias.
No Brasil, a antropologia ressurgiu com estes novos paradigmas nas
universidades, abandonando a arqueologia, que integraria os centros universitários apenas
tardiamente, dissociada da antropologia e “como apêndice da História, isto é, como préHistória.” (BARRETO, 1999 – 2000, p. 40). A pré-história, um dos campos da história, desde
então, dominada pelos arqueólogos. Entretanto, continua sendo um dos campos do historiador
que não pode ignorar, mas conquistar espaços e domínios do ofício e empenho do fazer
histórico.
Em 1935, Luis de Castro Farias, atuante na proteção do patrimônio arqueológico,
fundou um centro de estudos arqueológicos, posteriormente, absorvido pelo Museu Nacional,
servira de modelo para as pesquisas e instituições acadêmicas no Brasil. Em São Paulo, seria
assim também, a criação da comissão de Pré-história, criada pela luta política conhecida de
Paulo Duarte.
A universidade brasileira desenvolveu-se a partir dos anos 1930, com
características estruturais peculiares do país tem-se uma “sociedade brasileira, patriarcal,
dominada por uma estrutura social hierárquica secular, produziu muito tardiamente a
universidade, séculos depois das primeiras congêneres hispano-americanas.” (FUNARI, 19992000, p. 76) A sociedade é refletida dentro da estrutura acadêmica, com deficiências
estruturais de origem histórica. No período de 1964 a 1985, período militar houve maior
60
intensidade de uma academia brasileira a serviço do poder e a arqueologia não fugiria desta
realidade geral:
Publiquei esse estudo na minha revista Anhembi e no Estado de São Paulo também.
Nessa ocasião, fez até certo escândalo, porque havia um grupo, principalmente de
proprietários da Criminologia – porque havia proprietário de tudo antes da
Universidade. Havia o proprietário da Medicina, o do Direito, o da Engenharia, e por
aí a fora. E esses proprietários da Criminologia, ou da Assistência Social, ficaram
com medo do adiantamento que nós apresentávamos no sentido de reformar essas
coisas. (DUARTE, 1977. Entrevista II, p. 4).
Após a Segunda Guerra Mundial, inicia-se uma arqueologia acadêmica, com
Paulo Duarte (1899 – 1984), advogado e um dos fundadores da USP (Universidade de São
Paulo) que cria o Instituto de Pré-história (IPH) da USP em 1962 à linha do IPH de Paris,
França, consequente da sua relação com Paul Rivet, diretor do Museu do Homem de Paris. O
interesse pessoal do professor Paulo Duarte e de sua atuação no IPH em Paris foi motivo de
duas entrevistas do Projeto “História da Ciência no Brasil” coordenado por Simon
Schwartzman entre 1975 e 1978. O projeto gerou 77 entrevistas com cientistas brasileiros.
Nas palavras do próprio Duarte, percebe-se o interesse desde criança por temas ligados à Préhistória:
Essa questão de inclinação científica, inclinação artística, pode-se dizer que é uma
coisa quase genética. A gente já nasce com isso. A primeira atuação que tive pela
ciência foi através de um livro que meu pai me deu quando eu tinha 12 anos.
Chamava-se O Homem Primitivo, de Figuier, numa tradução portuguesa. A vida
inteira eu tenho procurado um exemplar, como lembrança apenas, e não encontro.
Ele estudava o que havia de divulgação científica nesta época, que seria mais ou
menos 1911, 1912. Daí em diante nunca mais fiquei desatento com relação à
Antropologia. Sempre procurei estudá-la, tanto que, na Faculdade de Direito, onde
eu encontrei, na realidade, apenas dois professores dignos do nome de professor, que
foram Reinaldo Porchat e Gama Cerqueira.... (DUARTE, 1977. Entrevista II, p. 1).
Paulo Duarte sempre fora um autodita nos estudos pré-históricos, mas seu exílio
na Europa proporcionou contatos importantíssimos com diversos estudiosos ligados aos
estudos como Lucien Febvre e Paul Valéry, que mesmo afirmou essas relações com estes
estudiosos “lixaria seu autodidatismo no esmeril do museu” – no coração dos estudos da
capital dos franceses, conhecidos por sua preocupação aos estudos da humanidade:
61
Ao viver na França, entre os anos 30 e 40, ele se tornou amigo do diretor do Museu
do Homem de Paris, Paul Rivet. Ao ser apresentado ao diretor, Paulo Duarte contoulhe sobre seus estudos solitários de antropologia e da pré- história e declarou que
queria “lixar o autodidatismo no esmeril do Museu”. Rivet colocou à sua disposição
os laboratórios e gabinetes, tendo o jornalista a chance de conviver com professores
de diversas áreas tais como Marcel Mauss, Paul Valéry, Lucien Febvre, Pe. Teilhard
de Chardin, dentre outros. Os cursos possibilitavam a Duarte livrar-se desse
autodidatismo que o incomodava, a fim de obter, no campo científico, o
reconhecimento esperado. Integrar-se aos meios universitários sempre foi seu grande
objetivo, desde que participou da fundação da Universidade de São Paulo.
(HAYASHI, 2004, p. 176)
O próprio Duarte revela detalhes de como sua trajetória (ainda no campo do
Direito) possibilitou conhecer Paul Rivet a partir do seu interesse pelo socialismo de origem
francesa, posteriormente de origem russa, mas formalizando sua própria concepção socialista
(distinta do socialismo russo), mas na perspectiva da liberdade de pensamentos e ideias, todas
estas considerações permitem perceber não apenas a trajetória de Paulo Duarte, mas a luta
política de instalação de uma arqueologia brasileira aos moldes estruturais e acadêmicos
internacionais:
Em 1935, se não me engano. Nunca me desviei deste caminho, por que quanto mais
eu aprofundava meu estudo do socialismo, a começar pelos socialistas franceses e a
terminar pelos socialistas russos, mais eu me convencia de que os russos não
estavam certos, sob o ponto de vista filosófico, ponto de vista ideológico. Assim, fiz
até intimidade com Leon Blum, que era um dos homens mais inteligentes que
conheci. Ele era, por assim dizer, no socialismo, discípulo de Henri Barbusse e de
Jean Jaurais. E ele me deu até os primeiros livros, interessantíssimos, sobre essa
diferença nítida que há entre o socialismo e o socialismo totalitário. O socialismo
tout court tem que ser democrático, dentro do verdadeiro sentido e não dentro desta
terminologia de propaganda política, de política errada que está dominando até hoje
no Brasil. Ora, a Antropologia Criminal me levou à Antropologia Geral, do
Juventino Filho. Aí, fui conhecer Paul Rivet, que era presidente do Museum de
Paris, em que há uma parte da pesquisa pura e essencial da Sorbonne. Rivet era o
presidente. (DUARTE, 1977. Entrevista II, p. 5)
A formação intelectual à moda francesa de Rivet expressa uma nova roupagem da
arqueologia brasileira, uma busca por especialização, formação em geologia, antropologia,
paleontologia, paleontologia humana e etnologia. Acerca dos seus exílios, Paulo Duarte
aproveitou para se especializar junto ao Museu do homem, toda esta sua formação contribuiu
decisivamente para os primórdios do IPH da USP e do seu formato a partir da influência da
França:
62
No primeiro exílio, logo no princípio. Eu procurei os programas de conferências
científicas, e encontrei um curso que Rivet ia dar, de Etnologia, lá mesmo no Jardim
das Plantas, que era sede do Museum. Fui assistir essas conferências. Lá a gente
pode... As conferências duram às vezes meia hora e as perguntas duram duas, três
horas, conforme o interesse daqueles que queiram perguntar. E devido as minhas
perguntas, Rivet tornou-se meu amigo. E eu comecei, então a estudar a Pré-História.
E para estudar a Pré-História, fui obrigado a me aprofundar em Geologia e
Paleontologia, sem o que não se podia fazer Pré-História, evidentemente. Como é
que eu iria estudar Paleontologia Humana, se eu soubesse Paleontologia? Rivet me
convidou para fazer alguns serviços de laboratório no Museu do Trocadero, porque
não existia ainda o Museu do Homem. Eu fiz, mas voltei para o Brasil, e o fato do
Armando Sales de Oliveira ter sido nomeado interventor de São Paulo me arrastou
para um caminho que eu não queria percorrer, que era o caminho da política. Com o
Armando Sales de Oliveira eu fui deputado e, como deputado, me enfronhei muito
mais nesta parte social, porque nunca apresentei nenhum projeto que não estivesse
ligado ao problema social. Tive que entrar numa campanha muito séria, até muito
arriscada, que era a campanha contra a corrupção, que já penetrava na política do
Brasil. Os Anais da Assembléia Legislativa estão aí para mostrar a minha ação, que
foi uma ação quase que diária. Isso durou até 1937. A 10 de novembro foi declarado
o Estado Novo. Fui preso e expulso do Brasil, logo no início. Ainda a bordo do
navio que me levava para o exílio, recebi um telegrama do Rivet, do Museu do
Homem – aí já existia o Museu do Homem, que havia sido fundado pelo próprio
Rivet em 1937 – dizendo que as portas estavam abertas para mim. Fui, e tive, então,
a oportunidade de conhecer alguns tipos extraordinários dentro da ciência francesa
que era, como é ainda hoje, principalmente na sua parte intelectual e doutrinária,
uma das mais importantes do mundo. Conheci, por exemplo, La Pique, Pierre Janet,
a grande mestra da Psicologia; conheci Bérgson, que estava velho, mas
perfeitamente lúcido – fazia cursos ainda; e conheci, principalmente, o maior vulto
científico que foi até hoje, que foi o padre Teillard de Chardin do qual fui discípulo
num curso que ele deu no Museu do Homem, antes de também ser expulso da
França, não pelo Governo, mas pela Companhia de Jesus, da qual ele fazia parte. Ele
achava até que isso foi uma inspiração divina – a expulsão dele – porque ele dizia
que o homem devia ter um intermediário entre o Antropóide e o Homo-sapiens, que
não se conhecia ainda, mas se ia conhecer. Nessa ocasião que Darte e Broom
descobriram os primeiros austrolapitecos. (DUARTE, 1977. Entrevista II, p. 5 - 6)
Ainda na segunda metade do XX, sob orientação francesa e americana, houve
avanço significativo das pesquisas por alunos destes mestres estrangeiros, no primeiro
momento com missões francesas. Nos anos 1960, o Projeto Nacional de Pesquisa
Arqueológica (PRONAPA), e vinda dos americanos Betty Meggers e Clifford Evans; além de
uma terceira proposta, a arqueologia clássica liderada por Eurípides de Paula da USP. Uma
sociedade dos arqueólogos foi fundada em 1980, a SAB (Sociedade de Arqueologia
Brasileira)5, com uma centena de profissionais de mais de 20 instituições pelo território
nacional. Atualmente os arqueólogos giram em torno de 3 mil arqueólogos graduados no país
(VILELA, 2014) (parte destes de profissionais afins como historiadores, geógrafos e
antropólogos), é necessário refletir sobre a formação deste profissional, já que existe desde
5
Para conhecimento mais profundo sobre a SAB, ver o artigo de GASPAR, Maria Dulce; SOUZA, Sheila M.
Mendonça. A Sociedade de Arqueologia Brasileira – SAB: Perspectiva de maioridade. In: Anais do IX
Congresso da Sociedade Brasileira de Arqueologia. Rio de Janeiro. Agosto de 2000 CD-ROOM.
63
graduação a pós-graduação, e de modo geral, o arqueólogo brasileiro é formado nos
programas de pós-graduação, posteriormente depois da graduação em História ou
Antropologia, apesar destes cursos em sua maioria não ter tanta tradição dos estudos da Préhistória e cultura material (FUNARI, 1999 -2000, p. 79).
A graduação em arqueologia oferece as vantagens de uma especialização precoce
mas pode ser uma armadilha, caso o curso não esteja bem articulado a áreas de
conhecimento afins, em particular a história, a antropologia, mas também a
geografia, a biologia ou, até mesmo, a literatura, a fotografia (e.g. Olivier 1999), o
jornalismo (e.g. Cotter 1999:8), para mencionar apenas algumas.Os bons cursos de
graduação em arqueologia no exterior não deixam de inserir-se nas ciências afins e o
mesmo princípio (FUNARI, 1999 - 200, p. 79)
Os primeiros centros acadêmicos, os mencionados e o centro de ensino e
pesquisas arqueológicas da Universidade Federal do Paraná em 1956, pela atuação pessoal de
José Loureiro Fernandes, que traçou importantes campanhas de proteção aos sambaquis,
foram frutos de uma política preservacionista que tinha como preocupação inicial, a proteção
e o direito à pesquisa científica de um patrimônio em constante destruição. Os projetos
acadêmicos no Brasil foram traçados inicialmente, por gerações e especialistas estrangeiros.
Os franceses foram os mais atuantes na arqueologia acadêmica, e o modelo
francês, como o estudo do passado do pré-histórico humano com todas as suas problemáticas,
foi introduzido no Brasil. Enquanto que na Europa, a pré-história era todo o período anterior à
escrita, no caso brasileiro, foi “hoje elegantemente corrigido por arqueólogos brasileiros com
o uso da expressão ‘pré-colonial’ ao invés de ‘pré-histórico’” (BARRETO, 1999 – 2000, p.
41).
A partir do modelo de pesquisa praticada pelo Museu do Homem de Paris e das
pioneiras e ousadas expedições de Paul Rivet, que as influências francesas chegaram ao
Brasil. Rivet, convidado por seu amigo, Paulo Duarte, integrou o grupo de historiadores,
sociólogos e etnólogos franceses que fundaram as ciências sociais da Universidade de São
Paulo (USP). O papel das missões arqueológicas francesas no Brasil está no nível maior,
dentro de um projeto de missões pela América Latina, que tinham objetivos de conhecer
culturas pré-históricas menos conhecidas do que as famosas maias, astecas e incas.
64
Figura 17 – Paulo Duarte e Paul Rivet observando objetos indígenas brasileiros, coletados por Claude LeviStrauss. Esta fotografia reflete as preocupações dos primórdios científicos da arqueologia no Brasil, claro, à
molde francês.
Fonte: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/71/71131/tde.../02Capitulo2.pdf.
Além de apoio intelectual, Rivet enviou orçamentos financeiros para a criação do
laboratório na USP e do casal Emperaire, foi trazido por Rivet, Joseph Emperaire que era
geógrafo e a sua esposa, Annete Laming, uma arqueóloga. Eles contribuíram tanto na
introdução de métodos e técnicas, sendo feitas as primeiras datações de carbono 14 (C14) no
Brasil; além de uma geração de arqueólogos brasileiros formados. Tinham como bagagem
metodológica, ensinamentos de mestres e colegas como Leroi-Gourhan, aplicados no contexto
dos sítios franceses, presente nos métodos de escavação ampla nos sítios pré-cerâmicos
presentes até a atualidade nos centros de estudos do país. (PROUS, 2006 / BARRETO 1999 –
2000, p. 42).
65
Figura 18 – Leroi-Gourhan (mais à esquerda), Paul Rivet observando objetos e Paulo Duarte (mais à direita) no
Museu do Homem em Paris, anos 1930. Esta foto é expressão da arqueologia internacional e da arqueologia
brasileira.
Fonte: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/71/71131/tde.../02Capitulo2.pdf.
A arqueologia pré-histórica, surgida no século XIX, meramente como campo
descritivo e pontual, ficou até o período de entre guerras (primórdios da década de 1920 até o
findar dos anos 1930), caracterizada pela execução de pequenas e médias sondagens,
raramente, grandes sondagens ocasionais. Após este trabalho de campo, os materiais eram
levados para laboratórios e classificados. Após o entre guerras, houve avanços, com o modelo
francês, proposto por um jovem pesquisador do Collège de France, Leroi-Gourhan. Gourhan
apropriou-se de um modelo de Wheeler, arqueólogo britânico e inaugurou uma arqueologia
pré-histórica de grandes escavações (ALVES, 2002, p. 11).
Leroi-Gourhan começou a escavar em áreas semi-fechadas (grutas) e abertas (sítios
a céu aberto) e em amplas superfícies a partir de método topográfico (ao nível
tridimensional) com o desenvolvimento de ataques verticais – na execução de Perfis
(para detecção da estratigrafia do sítio), na execução de Trincheiras (para detectar os
mais diversos tipos de vestígios como fogueiras, sepultamentos, etc.) e de ataques
horizontais em áreas férteis do ponto de vista de concentração de cultura material
detectada verticalmente, com a realização de ‘decapagens por níveis naturais’
(LEROI-GOURHAN, 1950.). (ALVES, 2002, p. 11)
66
O objetivo do método de Gourhan é gerar informações pela evidenciação e
posteriormente, interpretação dos vestígios. Ao “evidenciar” a espacialidade dos documentos
materiais, tem-se o “contexto arqueológico”, que é “espaço, tempo, cultura e sociedade e as
escavações representam ‘revelações’ (a serem decodificadas) sobre as populações sem texto.”
(GOURHAN - LEROI, 1983). Este tipo de arqueologia pré-histórica foi classificada por
arqueologia etnográfica, por demonstrar as questões sociais a partir de interpretações dos
vestígios.
Problemas de ordem metodológica foram herdados ao transpor técnicas
específicas do contexto europeu para o atual continente americano, dentre eles, de tomar sítios
isolados como exemplos típicos de unidades maiores desconhecidas; ao longo das últimas
décadas, estes problemas foram minimizados, sanados e tratados pelos estudos e contextos
locais pela geração de arqueólogos influenciados pelos franceses e que permanecem hoje com
as missões francesas no Piauí, Minas Gerais e Mato Grosso. Todas elas, com suas
particularidades e diferenças, priorizam estudos do período pré-colonial, realizam escavações
de superfícies amplas e continuam a lidar com documentação e análise da arte rupestre.
A arqueologia apesar de próxima da história, não absorveu a forte influência dos
historiadores marxistas ingleses, tão influentes nos estudos do período colonial e da história
econômica no Brasil; e tampouco a influência francesa “dos Annales”, significativamente
forte nos departamentos de história do país. Além de isolada da corrente da arqueologia
social, desenvolvida pela América Latina; franceses e em menor grau, estadunidenses,
deixaram marcas na arqueologia brasileira por toda a segunda metade do século XX e
primórdios do XXI. A antropologia por sua vez, aproximou da história e de 1970 aos anos
2000 ampliou o diálogo com a história, o que tem resultado em novos pressupostos teóricos e
conceituais para analisar relações de contatos entre povos de cultura e etnia distintas,
especialmente para índios e africanos:
Excelentes exemplos sobre essas novas tendências encontram-se nos mais recentes
estudos sobre as sociedades da América colonial e pós-colonial nas quais povos
indígenas e africanos foram sendo inseridos, ao longo de quatro séculos, em
condições de extrema violência e exploração. Se até meados do século passado,
esses povos eram vistos pela historiografia basicamente como mão de obra e/ou
vítimas de sistemas opressivos que anulavam suas possibilidades de ação, em nossos
dias, essas abordagens já não se sustentam. A perspectiva histórico-antropológica
tem fundamentado inúmeras pesquisas empíricas em diferentes tempos e espaços na
América, nas quais índios, africanos e seus descendentes são enfocados como
sujeitos ativos nos processos históricos nos quais se inserem. (ALMEIDA, 2012, p.
151)
67
No início dos anos 1970 e 80, Luciana Pallestrini e Niède Guidon partiram para a
França. A primeira para sua livre docência em 1974, e a segunda para seu doutorado em 1984.
Pallestrini formou inúmeras gerações de arqueólogos na direção do Museu Paulista (setor de
arqueologia). Tanto Pallestrini, quanto Guidon receberam contribuições do professor Paulo
Duarte que as transferiu para o Museu Paulista. O método de estratigrafia etnográfica de
Gourhan foi amplamente desenvolvido por madame Emperaire e continuado pelo trabalho de
André Prous à frente dos estudos do Museu de História Natural (MHN) da UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais). Prous desenvolveria pesquisas no norte do estado de
Minas Gerais posteriormente. No Rio de Janeiro e em partes do estado de São Paulo, a
arqueóloga Maria da Conceição Beltrão desenvolveu o método de escavação ampla de
Gourhan. Niède Guidon fez escola na região de São Raimundo Nonato, Piauí desde os anos
1970 e 1980, em um projeto franco-brasileiro, com missões francesas e um trabalho que
transformou a região em parque nacional e patrimônio da humanidade pela UNESCO. Suas
pesquisas de campo no sudeste piauiense questionaram as teorias clássicas de povoamento das
Américas. Guidon é professora convidada da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e
foi responsável pela criação de uma graduação em arqueologia e patrimônio arqueológico da
UNIVASF (Universidade do Vale do São Francisco) em São Raimundo Nonato – PI. Em
Pernambuco conta com o apoio e colaboração da equipe da arqueóloga Gabriela Martín,
responsável por inúmeros quadros de mestres e doutores do nordeste brasileiro. No estado da
Bahia, o professor Carlos Etchervane do Museu de Etnologia da UFBA (Universidade Federal
da Bahia) desenvolve desde os anos 1980, o método da estratigrafia ampla nos moldes
franceses (ALVES, 2002, p. 22).
Pontuando acerca do PRONAPA, programa de arqueólogos brasileiros,
coordenados pelos estadunidenses Betty Meggers e Clifford Evans, contou com o
financiamento do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas) e do Smithsonian Instituion com o
apoio do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), durou de 1965 –
1970.
O PRONAPA organizou três seminários: o primeiro em Mar Del Prata, Argentina
no XXXVI Congresso Internacional de Americanistas em 1966; o segundo, em Belém do
Pará, em 1968 e o terceiro, em Lima, Peru e encerrado em Washigton, EUA no XXXIX
Congresso Internacional de Americanistas em 1972. (ALVES, 2002). O Museu Emílio
Goeldi publicou os resultados dos encontros e trabalhos do PRONAPA de forma avulsa. O
68
PRONAPA estava fundamentado na Arqueologia Processualista americana e na Ecologia
cultural – que procurava apresentar a influência do meio para a cultura.
Meggers propôs que as condições ambientais da várzea amazônica impediram o
desenvolvimento local de sociedades complexas (BARRETO, 1999 – 2000, p. 44) e que os
Andes6, eram o centro de difusão das culturas que ela pesquisou na ilha de Marajó e por todo
o norte brasileiro. Entretanto, Meggers, ignorou os processos históricos, sua arqueologia
distanciou-se da contribuição da historia “ignorando as informações históricas dos efeitos da
colonização portuguesa que gerou pressão (deslocamentos de populações indígenas de várzea
para terra firme), desarticulação de tribos e extinção de muitas. As teorias de Meggers, pouco
questionadas na época, foram aos poucos sendo refletidas e refeitas pela mesma autora e hoje,
constituem referências para pesquisadores que ao questionarem as teorias difusionistas,
começam a montar um novo cenário das sociedades que povoaram os espaços geográficos e
territórios atuais do norte do Brasil.
Há outra perspectiva, a de Anna Roosevelt7, que concebia a região da ilha de
Marajó e Amazônia como um todo, enquanto área arqueológica complexa, portadora de
culturas também complexas, ao contrário das culturas “pobres” percebidas por Meggers
(ALVES, 2002 e BARRETO, 1999 – 2000, p. 44).
As inovações no desenvolvimento e escrita da arqueologia pré-histórica no Brasil
foram iniciadas nos anos 1980, em decorrência na maior parte, da influência conceitos,
pressupostos e postulados da arqueologia pós-processualista, baseada em nomes como os
ingleses Ian Hodder, Michael Shanks e Christopher Tiller e o estadunidense Mark Leone. Para
uma noção, Trigger, através do enfoque historiográfico percebia as mutações sociais e
culturais; Hodder percebeu que era necessária maior relação da arqueologia com a História,
reconhecendo em maior ou menor medida a ação dos indivíduos na história.
Hodder já apontava sobre a relação cultura material e comportamento, enfatizando
um papel ativo da cultura material, bem como reconheceu que esta relação tem constituído
6
Meggers adotou um projeto difusionista de Steward. O autor acreditava que a região dos Andes era o centro
difusor cultural por ter abrigado uma sociedade mais complexa, os incas. Entretanto, na atualidade, tais teorias
de determinismo ambiental e pressupostos são questionados. Avanços continuam, dentre eles, ver o artigo
BERTAZONI, Cristiana. A Cordilheira e a floresta. In. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8. Nº
91. Abril de 2013. p. 24 – 26. A historiadora é coordenadora do centro de estudos mesoamericanos e andinos da
USP e lançou tese sobre a pouco conhecida relação entre os incas e os índios amazônicos, revelando intensas
trocas culturais e de resistências à expansão do império inca.
7
Roosevelt retomou a perspectiva de Lathrap. Arqueólogo estadunidense, que pesquisou a Amazônia peruana,
mas não conseguiu pesquisar a Amazônia brasileira. Para Lathrap, a Amazônia era uma grande área arqueologia
de grande complexidade e teria abrigado culturas de mesmo nível. Atualmente, Anna Curtenius Rooselvet,
prossegue estudando a Amazônia Brasileira e regiões da África como pesquisadora da University of Illinois,
EUA.
69
uma dificuldade fundamental para a arqueologia e pode-se afirmar que também para esta
dissertação e para a história:
A cultura material atua por sua vez sobre a sociedade, formando uma relação
bipolar: comportamento cultura material [...] A cultura material não existe por
si mesma. Alguém a produz. E é produzida para algo. Por tanto, não refleti
passivamente a sociedade, mas bem cria a sociedade por meio das ações dos
indivíduos. (HODDER, 1994, p. 27 e 20).
Hodder criou o esquema abaixo (HODDER, 1994 p. 27), que apresenta a
perspectiva da cultura material atuando sobre a sociedade e sendo também, produto dos
indivíduos, de sua história.
Comportamento  Cultura material
Indivíduo
Cultura
História
A arqueologia pós-processualista é dividida em três correntes teóricometodológicas:
1 – Estruturalistas: Esta corrente é inspirada nos conceitos estruturais de LéviStrauss, no avanço dos estudos da Linguistica de Noam Chomsky e no estudo de arte rupestre
do paleolítico de André Leroi-Gourhan, no qual, ele usou os princípios estruturalistas. Os
estruturalistas acreditam que as ações humanas são norteadas por crenças e conceitos
simbólicos, sendo o objeto de estudo propriamente a estrutura do pensamento e ideias
existentes nas mentes dos agentes humanos que elaboraram os artefatos e criaram o registro
arqueológico. Para eles, existem padrões constantes no pensamento humano em culturas
distintas, sendo considerados como polos opostos (cozido/cru; esquerda / direita; sujo/limpo;
homem/mulher) (ALVES, 2002, p. 28).
2 – Marxista: Baseada na teoria materialista da história elaborada por Marx e
Engels. É representado pela arqueologia social Latino-americana, tem como seus principais
teóricos: Luis Felipe Bate, Luís Guilhermo Lumbreras, Iraida Vargas Arenas, Mario Sanoja
Obediente e Oscar Fonseca Zamora. Seu precursor foi Gordon Childe, “o primeiro arqueólogo
a sustentar que a arqueologia é uma ciência social (1947) que ‘contribui para entender a
70
história, estudou e aplicou a teoria da evolução social no trabalho do arqueólogo’ (ALVES,
2002, p. 29). Para Childe e seus colegas da arqueologia latino-americana, a evolução social é
um fenômeno social, isto é, objeto de conhecimento da arqueologia e explicação do processo
de mudança social, através do método materialista histórico. Inspirado no marxismo histórico
surgiu o marxismo estruturalista, (também denominado de Neomarxismo), em que há ênfase
maior da ideologia do pesquisador na interpretação da mudança cultural (a ideologia é a
superestrutura), subordinado à infraestrutura (que é a base econômica da vida social).
3 – Interpretativista: também chamada de Hermenêutica, inspirada e estruturada
na linha da escola de Frankfurt, seus principais nomes são Hodder, Shanks e Tilley. Esta
corrente considera que todo o conhecimento é histórico, com comunicação distorcida, e que
qualquer aspiração ao conhecimento “objetivo” é ilusório. Seu enfoque interpretativo buscou
uma perspectiva que superasse as limitações dos sistemas de pensamentos existentes.
Afirmando tratar de maneira científica temas sociais. Os aspectos da teoria crítica desta
corrente são dois. Um é o estudo da estética e o outro da cultura contemporânea, que divulga
ao grande público o passado pré-histórico nos museus e na televisão (HODDER, 1988, p.
184).
A arqueologia pós-processualista objetiva avançar com o método arqueológico
em dois níveis: as pesquisas de campo, determinantes para ampliação dos estudos e
conhecimentos e na interpretação dos símbolos, inseridos nas culturas de seus produtores
como estudo do passado pré-histórico. Nesta perspectiva, procura superar quatro dicotomias:
1) indivíduo e norma; 2) estruturas e processos; 3) ideal e o material e 4) sujeito e objeto.
Dentre as questões propostas nos estudos dos pós-processualistas, pode-se destacar:

As relações entre as normas e regras com o indivíduo, considerando a atuação
dos indivíduos na sociedade;

A relação entre os processos históricos (difusão, migrações, convergências e
divergências); os processos adaptativos (aumento demográfico, uso de
recursos, comércio) e as culturas, criadas dentro destes processos pelo
estruturalismo e marxismo;

A reconstrução rigorosa dos significados, subjetivos, sendo temas importantes
para muitos dos pesquisadores;
71

A reconstrução da subjetividade de culturas pré-históricas, relacionadas às
estratégias do poder contemporâneas para superar a separação do sujeito e
objeto, da teoria e fato (ALVES, 2002, p. 29).
A arqueologia pós-processualista (re) valorizou as escavações pontuais e
regionais, em sítios selecionados para pesquisas a partir do método da arqueologia
estratigráfica, com métodos de revelação do empírico, pela completa evidenciação e posterior
interpretação dos contextos arqueológicos, inseridas no tempo pela realização de datações
pelo carbono 14 e Termoluminescência.
No Brasil, desde os anos 1970 e 1980, pela interpretação “dos registros rupestres
X cultura material de ocupações pré-históricas em abrigos do Parque Nacional Serra da
Capivara [...] em pesquisas de campo, coordenadas por Guidon e análise das cenas, figuras,
símbolos, etc. desenvolvidos por Niède Guidon, Anne-Marie Pessis e equipe.” (ALVES,
2002, p. 31). A nova abordagem de Pessis é inspirada na semiótica e concebe as pinturas
rupestres como fontes de dados sobre a pesquisa da pré-história, contemplando quatro
perspectivas: cronologias, significados, descrições e interpretações. Cada uma das
perspectivas possui sua importância e valor particular. Nesta abordagem, passa pelo
pressuposto da impossibilidade de identificação de parte dos significados que as
representações gráficas tinham para seus autores.
O método da semiótica no Brasil foi introduzido por Pessis e por Carlos Xavier de
Azevedo Netto em O Signo e o Significado, financiado pela Universidade Estácio de Sá. Uma
inovação estabelecida na USP e na UFPE é o uso de métodos e técnicas das ciências exatas
como microscopia de luz transmitida, difratometria de Raios X e Microscopia de varredura
para análises da tecnologia cerâmica pré-histórica desde 1970. Além de inovações e estudos
computadorizados, oriundos também da UFPE, sob coordenação de Cláudia Alves de
Oliveira, que reconstroem de forma computadorizada, parte da cerâmica perdida pelo tempo,
a partir de bases, pontas e bojos.
A própria arqueologia latino-americana, apesar de tímida no Brasil, tem sido
proclamada para estudos regionais e comparativos no nível de América do Sul e América
latina. Ao conceber a arqueologia como ciência social, está ampliando as possibilidades e
avanços no subcontinente, retirando as dependências e problemas metodológicos trazidos
pelos estadunidenses e europeus.
A história propõe que tanto o legado das missões francesas, quanto o dos
pesquisadores americanos, e mais timidamente pela arqueologia social latino-americana,
72
demonstra como as particularidades e metodologias trazidas para o Brasil, não podem ser
explicadas apenas por si mesmas, mas também (e principalmente) pelos resultados gerados no
país. Entendidas dentro dos contextos históricos particulares do Brasil são possíveis, a
percepção e a compreensão dos avanços, rupturas e desafios atuais.
Tornar-se arqueólogo e ou pré-historiador no Brasil, é perceber que qualquer
visita técnica (escavações e prospecções, análises de sítios arqueológicos como os rupestres
para a história e história da arte), deve culminar em publicações científicas, acessíveis à
comunidade científica no Brasil e exterior. (FUNARI, 1999 – 2000, p. 82). A produção do
conhecimento a partir de estudos e pesquisas de áreas como história, arqueologia, etnologia,
antropologia é uma das fontes para a construção da identidade cultural brasileira, através de
suas políticas públicas e conjuntos de leis, que apresenta a responsabilidade social dos
estudiosos, pelo valor e importância social e política.
Na atualidade, estes estudos têm sido expressões de militâncias individuais e
coletivas que fazem dos estudos pré-históricos e arqueológicos, um campo ligado ao passado
em conexão com o presente. Das pinturas rupestres da Serra da Capivara, aos ossos das grutas
de Lagoa Santa - MG, até as pinturas rupestres da Lapa Pintada de Jequitaí e outros
quadrantes do município norte mineiro, são “parte significativa da história do continente
americano [que] repousa em solo brasileiro.” (HETZEL; NEGREIROS, 2007, p. 121). Em
Jequitaí há a existência desde pinturas rupestres, a ossos e materiais líticos. Pelo pouco
pesquisado, o passado pré-histórico precisa de mais incentivos às pesquisas, preservação e
zelo pelo patrimônio arqueológico pré-histórico pela sociedade e Estado. Portanto até mesmo
os livros, artigos científicos sobre os estudos, necessitam ser catalogados, arquivados /
agrupados e organizados para o entendimento e testemunho dos avanços ou retrocessos desta
parte da história do Brasil, percebendo as continuidades e rupturas.
A arqueologia concebida como fenômeno social está enterrando o difusionismo e
a própria arqueologia processualista americana (ALVES, 2002, p. 36 / Visita Técnica à
Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, 2012), ao empregar um novo olhar para a
arqueologia pré-colonial do continente americano e para a etnologia das sociedades indígenas
contemporâneas. A arqueologia latino-americana busca três conceitos centrais:

Modo de vida – A partir da “ideologia alemã” de Marx;

Modo de produção – Centrado em “O Capital” de Marx;

Cultura de Tylor, Primitive Culture (1871); a Kroeber O Super Orgânico
(1949); a Lévi-Strauss em O Pensamento Selvage, a Geertz Interpretações de
culturas (1978), com expressões de fenômenos regionais.
73
A proposta da arqueologia social latino-americana possui a perspectiva de uma
arqueologia antropológica. A partir do conceito de fazer social através dos tempos, concebe a
história mais antiga do continente americano, sendo a história das sociedades indígenas
anteriores às conquistas dos europeus, sejam elas, as conquistas espanholas, as portuguesas ou
as treze colônias inglesas. Esta posição rompeu de imediato com uma concepção
excessivamente etnocêntrica: a de história e pré-história. A história mais antiga das Américas
está sendo escrita pela arqueologia social latino-americana (e pelas escavações e pesquisas
arqueológicas como um todo), e os historiadores são convidados ao campo, tanto no sentido
da interpretação e construção historiográfica sobre o conhecimento que tem sido adquirido a
partir das superfícies e tecnologias do homem nas Américas, seja em tempos atuais ou mais
antigos; embora, o convite pode ser estendido para uma percepção direta do espaço habitado,
pontuado por Gourhan ainda na segunda metade do século XX. O campo mais distante do
historiador pode enriquecer suas habilidades e dimensões, sobre os campos de seu interesse e
domínios, que possibilitam o conhecer do homem, sua história através de documentos que
serão forjados pelo próprio historiador.
Neste capítulo, buscou-se refletir sobre a história e a cultura material, com suas
rupturas, alterações e continuidades; apresentar o processo e formação de modelos históricos e
arqueológicos. Acredita-se ter esclarecido que trabalhar com estas mudanças e continuidades
é uma tarefa complexa, desafiante, dentre vários aspectos, pela dificuldade de sistematização
sobre esta reflexão. (REZENDE, 2012, p. 26). Fez-se necessário, reunir a maior quantidade de
informações possíveis. No âmbito teórico, as dificuldades permanecem grandes, pelo divórcio
por parte da história, aproximações e novos distanciamentos, entretanto, os diálogos cada vez
mais intensos entre a história e campos como arqueologia e antropologia tem resultado em
novos pressupostos teóricos e conceituais para analisar a vida social a partir da materialidade.
A apresentação de várias dificuldades quanto ao estabelecimento cronológico nos
estudos teóricos, podem ser favorecidas a partir de dados e conhecimentos produzidos em
campo e laboratórios, porém, questionamentos e reflexões teóricas, podem gerar conjuntos de
ações práticas para correção de “vícios” que até então, passavam despercebidos. (REZENDE,
2012, p. 27). Percebeu-se que a observação da cultura material é feita por lentes. A história
exige boa observação e reflexão, nada melhor que, lentes variadas para rastrear e melhorar as
imagens, ou mesmo, os vestígios produzidos pelo homem, ou simplesmente, chamados de
cultura material.
74
“O mundo real avança sobre os gabinetes e impõe aos intelectuais a tarefa de
questionar conceitos e teorias para procurar entender e explicar a realidade que se apresenta.
Historiadores e antropólogos têm aceitado o desafio, e de sua interlocução crescente resultam”
novas formas interpretativas a partir de abordagens interdisciplinares, possibilitando que
“povos indígenas, africanos e seus descendentes ganham novo lugar nas histórias do Brasil e
da América.” (ALMEIDA, 2012, p. 166), nesta dissertação pelas visões de Brasil a partir de
cronistas viajantes do século XVI. Nestas visões, os povos ameríndios “saltam” das páginas
dos relatos e ganham formas, movimentos e identifica-se, bem como, extrai sua cultura
material, como os ameríndios carregando pau-brasil no mapa atribuído a Lopo Homem; os
tupinambá deslizando suavemente de suas canoas para capturar os peixes-boi (relato de Y’ves
D’Evreux); o mel colhido nos relatos do “apóstolo dos tupinambá” e captura secularmente
como pode ser observado na pintura rupestre da Serra da Capivara, Piauí. A leitura dos diários
dos viajantes possibilita enxergar mesmo com os olhos fechados, “visões do Brasil”.
1.3 – VISÕES DO BRASIL: Cronistas Viajantes
A arqueologia não é feita apenas pela coleta de objetos isolados, mas na
possibilidade de relacionar os vestígios encontrados entre si para reconhecimento das
estruturas sociais também chamadas de estruturas arqueológicas e arriscar interpretação da
vida cotidiana. Os vestígios são encontrados em conjuntos denominados de sítios
arqueológicos. (PROUS, 2006, P. 14).
De acordo com André Prous (2006, p.7), há uma tendência para pensar as
sociedades dos povos que habitavam o território do atual Brasil com os grupos indígenas
remanescentes e contemporâneos, ou então, procurá-los em uma imagem a partir dos relatos
de cronistas dos séculos XVI e XVII como Jean de Léry, Hans Standen, André Thevet,
Gabriel Soares de Souza e padres jesuítas8. O arqueólogo francês pontua estas reflexões para
que sejam percebidas as transformações das sociedades indígenas ao longo do tempo, ou seja,
as sociedades encontradas pelos europeus eram sociedades adaptadas ao longo do tempo e no
espaço geográfico, posteriormente, denominados Brasil e América.
8
A história da América espanhola e portuguesa em sua dimensão político-religiosa foi, em grande parte,
concebida através de relatos marcados pelo pensamento dominicano, exemplo de Las Casas; pelo pensamento
jesuíta como, padre José de Anchieta, Joseph de Acosta, e pelo pensamento franciscano de Frei Bernardino de
Sahagún ou Frei Gerônimo.
75
Ora, sabemos hoje que as sociedades indígenas estavam implantadas no Brasil há
mais de 12.00 anos e tiveram muito tempo para se transformar. Por outro lado, os
‘índios’ descritos pelos cronistas são essencialmente os Tupi e os Guarani do litoral,
cujas sociedades e costumes eram muito distintos das tribos de outros grupos
linguísticos ou étnicos existentes naquela época. Estamos acostumados a estudar as
sociedades a partir dos textos escritos que alguns de seus integrantes deixaram
(sobretudo quando se trata de sociedades passadas) ou da observação direta (quando
é o caso de populações vivas). Dessa forma, os historiadores analisam sobretudo os
documentos escritos, enquanto os sociólogos e antropólogos privilegiam a
observação direta e os testemunhos orais. (PROUS, 2006, p. 7-8)
As devidas precauções e cuidados apresentados por Prous são pertinentes; embora
o próprio autor às vezes descuide como exemplo, “sociedades indígenas estavam implantadas
no Brasil há mais de 12.000 anos”. O território denominando de Brasil pelo pesquisador é
uma formação política recente. Os descuidos podem alcançar a todos, apesar da preocupação
de evitá-los.
Acredita-se (até por estar à margem do rio dos domínios de historiadores e
antropólogos) que apesar dos índios descritos pelos cronistas serem apenas parte das
sociedades que povoavam o território do atual Brasil e América do Sul; das sociedades
encontradas pelos europeus serem resultante de um processo longo de adaptações, bem como,
estas crônicas e relatos estarem carregadas de uma perspectiva do “olhar europeu”; é possível
extrair informações que permitem reconhecer também, estruturas sociais e arriscar uma
interpretação da vida cotidiana de pelo menos, parte dos povos indígenas.
Nos primeiros séculos de expansão marítima e das descobertas, Portugal e
Espanha não detinham um corpo organizado cientificamente, capaz de debruçar sobre estudos
e conhecimentos das terras descobertas. A ausência deste corpo é justificada e acrescida pela
característica predatória deste procedimento denominado expansão marítima. Ao estabelecer
o regime de monopólio para as potências ibéricas, tinha garantida a exclusividade das terras
colonizadas.9
Apesar da exclusividade lusitana, o Brasil foi centro de interesses de portugueses
envolvidos na empresa colonizadora de navegadores que praticavam o contrabando e até
curiosos e franco-atiradores na busca de novas descobertas. “A produção literária que adveio
9
Em A Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Junior tem-se uma discussão importante sobre as
potências marítimas. Nesta obra, o historiador marxista propõe uma síntese da colonização portuguesa,
contextualizando “o período dos descobrimentos” e colonização do que viria a ser o Brasil, como parte de um
contexto maior: os de interesses da metrópole e de modo geral, do comércio europeu. PRADO JUNIOR, Caio. A
Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras: 2011.
76
desse período constrói representações sobre os nativos, as riquezas naturais e as terras,
revelando um conteúdo comprometido com uma visão colonial e etnocêntrica.” (LEITE,
1996, p. 40); mas que permite interpretar numa perspectiva crítica, sobre os povos ameríndios.
No século XVIII, Portugal iniciou expedições científicas de fato, (patrocinandoas), seguindo a vinda da corte Portuguesa em 1808 – abertura dos portos, somada com a vinda
dos naturalistas viajantes durante todo o século XIX. Para a antropóloga Ilka Boaventura
Leite (1996), a curiosidade pelo Brasil não era desinteressada:
“O sucesso de tais empreendimentos dependia do investimento de grande
quantidade de capitais e de muitos esforços por parte dos pesquisadores. Quando não,
dependia de publicação da obra e do interesse que ela viria a despertar nos países de origem”
10
(LEITE, 1996, p. 40). Faz sentido pensar nestas produções sobre o Brasil, por viajantes e
cronistas nos século XVI e XVII e posteriormente com os naturalistas viajantes no século
XIX como fruto também das exigências impostas pela expansão e contornos comerciais. Para
Leite (1996), a denominada literatura de viagem – escritos produzidos sobre o atual Brasil
podem ser agrupados em três momentos históricos distintos11:
As pesquisas produzidas sobre o Brasil indicam interesse e relações demarcadas em
três momentos históricos distintos. O primeiro período foi marcado pela influência
portuguesa (século XVI ao XVIII); o segundo, pela influência europeia, sobretudo a
Inglaterra (século XIX); e o terceiro pela norte-americana (século XX). Essa
produção assumiu, em cada período, características distintas, tanto do ponto de vista
do comprometimento direto com os governos de cada país como, indiretamente,
através das academias científicas. Seguiram, portanto, influências e orientações
distintas. Para demonstrar tais fatos procurei resgatar os registros sobre o Brasil,
produzidos nos dois primeiros períodos. (LEITE, 1996, p. 40)
10
Ver Os Bajuladores da majestade. Artigo de Ana Carolina Delmas que trata das dedicatórias impressas que
serviam de objeto de troca simbólica de poder e favores entre letrados e D. João VI no Brasil. Para Delmas,
ainda que de forma gradual e lenta, a prática das homenagens impressas (por parte de um seleto grupo) é
percebida ao longo de quase todo o século XIX, trilhando caminho próprio em sua manifestação no Brasil. A
dinâmica de troca de favores por meio dos livros e dos impressos no Brasil crescia em conjunto com o Reino,
tendo os autores disputando o título de “o mais fiel e humilde vassalo”, espécie de encerramento-padrão dos
elogios ao rei, e posteriormente, ao imperador, com a implantação do futuro Império. DELMAS, Ana Carolina.
Os Bajuladores da Majestade. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 8. Nº 93. Junho de 2013. p. 40 –
43.
Também a antropóloga Leite trata a formação recente do Brasil como “natural” – de forma não intencional, ao
invés (expressando a dificuldade existente em pensar na) da formação construída gradualmente. Neste subtítulo
haverá a preocupação apenas com o primeiro momento, para contextualizar as crônicas e textos destes, fazendo
“uma viagem” aos relatos destes escritores que foram responsáveis por parte das representações sobre a América
Portuguesa e dos povos autóctones, sobretudo nos séculos XVI, XVII em diante, produzindo seus relatos no
contexto e a partir de viagens, elaborando-os através de experiências vividas em lugares nada acessíveis e
desconhecidos para a maioria dos seus conterrâneos. A ponto de que no século XIX a denominada “literatura de
11
77
Os relatos de viagem ao Brasil, enquanto fontes de informações possibilitam
leituras inesgotáveis. São como as jazidas que possuem variadas pedras preciosas. Segundo
Leite (1996) os viajantes são citados tanto para demonstrar questões como caráter
democrático de questões raciais como fizera Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, mas
também para confirmar a presença do racismo como em Florestan Fernandes em Brancos e
negros em São Paulo, demonstrando a possibilidade de armadilhas presentes nos textos.
Todavia, pontua Ilka Boaventura Leite e concorda-se com ela, que é o lado mais fascinante da
viagem: o empreendimento pela leitura dos relatos de viagem. As armadilhas são muitas,
como observara Prous (2006); sendo o próprio estudo e pesquisa numa destas possíveis
armadilhas: “por mais fina a peneira, sempre foi possível selecionar um cascalho, ao invés de
uma pedra preciosa.” (LEITE, 1996, p. 14).
A proposta deste subtítulo após leitura de diários dos cronistas e viajantes dos
séculos XVI e XVII foi coletar e construir informações e relações sociais sobre os povos
ameríndios do território do atual Brasil, o que para Leite (1996) seria uma etnografia cujo
campo está limitado no tempo por uma produção datada. As visões do Brasil – cronistas
viajantes, responsáveis por apresentar em suas viagens, os habitantes “da terra do Brasil,
também chamada América.”.
1.3.1 – HISTÓRIAS DE VIAGENS FEITAS À TERRA DO BRASIL - OS ÍNDIOS DOS
PRIMEIROS CONTATOS: Os índios vistos pelos franceses e alemão
O ponto de partida foi uma pergunta simples: “Como entrevistar os viajantes,
como lê os seus relatos de viagem?” Seguindo o trabalho antropológico de Leite, que ao lê
sobre os diários das viagens a Minas Gerais no século XIX, por informações de escravos, dos
libertos e dos indivíduos do sistema escravista implantado no Brasil, abriu mão de métodos
aplicados pela crítica histórica, método etnográfico e crítica literária. Ampliamos esta
pergunta para uma conversa com os viajantes e cronistas, encontrando muitas respostas e
silêncios – que também foram interpretados; desavenças entre textos e viajantes. Os relatos
viagem” passou a ter status diferenciado no mercado editorial, sobretudo na Europa. O segundo momento tratase dos naturalistas viajantes do século XIX que ocupa destaque ao longo de todo o capitulo II.
78
tratam de textos pré-etnográficos, sendo percebidos e valorizados numa perspectiva mais
ampla, como o seu contexto e importância na narrativa sobre os povos ameríndios.12
Cada viajante constrói o texto, sistematizando fragmentos e informações de outros
viajantes. O lugar de pesquisador para ler, selecionar e interpretar estes relatos possibilitou
apreendê-los ora como um gênero próprio, produtor de representações sociais ou resultantes
da experiência viagem. Não foi demasiadamente documento histórico, nem demasiadamente
literatura ficcional ou científica, mas um gênero capaz de conter muitos outros, de tudo poder
abrigar. Por entrelinhas há documentos históricos e literários de gêneros diversos – diários,
memórias, testemunhos, entrevistas transcritas, e fragmentos ficcionais, às vezes contestados
por outros autores; dando vigor, emoções, aventuras, presentes em aventuras de viagens. A
viagem a partir do texto, ganha vários contornos. É expressão de uma visão, um trajeto, uma
escrita e distintas leituras. Como leitor/viajante/historiador, o norte foi tomado a partir da
carta da carta de Pero Vaz de Caminha (que foi ponto de partida e embora apenas como
norteadora) e dos textos de cronistas franceses, principais concorrentes dos portugueses;
somado com os relatos de Hans Standen. Examinar criticamente os relatos dos cronistas é
justificado pela ampla utilização dessas fontes pela História, Antropologia e Crítica Literária
na atualidade (LEITE, 1996).
Os Tupinambás “dos franceses”
A baía de Guanabara foi conhecida e visitada a partir da primeira década de 1.500.
Segundo o autor anônimo de Histoire dês choses admirables (1561), os franceses eram seus
visitantes assíduos pelo menos desde 1525. Quando os franceses da expedição de Cillegagnon
chegaram à Guanabara em 1555, a ocupação não foi limitada à ilha que tomaria seu nome,
mas estendeu-se à terra firme, surgindo um núcleo consolidado denominado de Henrry Ville,
em homenagem ao soberano de França. Nos primórdios do século XVII, é notório o objetivo
francês de colonização do Maranhão, que originou a fundação da cidade de São Luís pelos
franceses em homenagem ao seu rei. (MOREIRA NETO, 2009, p. 15).
“O Brasil correu o enorme risco de ser francês. Na primeira metade do primeiro
século de colonização, a costa esteve tão cheia de franceses como de portugueses. Eram
12
Os diários de viagem foram percebidos como campo, sendo os viajantes, informantes. Portanto, dois
ingredientes indispensáveis para a inserção ou diálogo aos domínios dos antropólogos. Objetivando um
deslocamento, distanciamentos ou aproximações para dialogar com os viajantes, bem como, o fizeram com as
populações descritas em seus diários e relatos. (LEITE, 1996, p. 14).
79
náufragos ou aventureiros, que aprenderam a viver com os índios” (RIBEIRO, 2009). Estas
palavras do reconhecido antropólogo Darcy Ribeiro demonstram uma contribuição de valor
duplo: primeiro, sobre o esforço continuado dos franceses para fazer sua colonização na
América, gerando, portanto uma documentação preciosa; segundo, a contribuição do próprio
Darcy Ribeiro, que reconhecia nestas leituras, atrações e leituras informativas sobre o próprio
Brasil e os povos ameríndios.
A publicação da coleção Franceses no Brasil séculos XVI e XVII pela Fundação
Darcy Ribeiro é um antigo projeto do fundador e patrono que está em confluência com esta
dissertação: a de perceber os povos que viviam no território do atual Brasil e como foram
percebidos pelos europeus, sejam eles, portugueses, espanhóis ou franceses. Dos quatro
volumes da coleção, de autorias de Nicolas Durand de Villegagnon; de André Thevet, Jean de
Léry e de Yves d’Evreux; foram selecionados dois de maneira específica: o de Léry, jovem
calvinista francês que chegou à França França Antártica – colônia francesa na região da
Guanabara, atual Rio de Janeiro por volta de 1557 e o do padre cappuccino Yves d’Evreux,
que esteve na colonização da França Equinocial, na região do Maranhão, nos anos de 1611 e
1614. As escolhas de ambas as referências foram dentre várias, porque entre Léry e o frade
franciscano André Thevet, o primeiro ficou mais tempo que o segundo; portanto, o segundo
foi consultado como fonte para a cosmografia do rei francês (e desta ocupação francesa e dos
tupinambás); a carta de Yves d’evreux nos apresenta a aventura francesa no Maranhão pela
ótica cappuccina, também sobre os tupinambás.
O Apóstolo dos Tupinambás
O livro do padre Yves d’Evreux narra os dois anos que ele passou no Maranhão e
constitui um dos mais coloridos e melhores relatos “sobre a cultura e a sociedade dos índios
Tupinambá, este grande povo indígena que dominava quase todo o litoral brasileiro, do Rio
Grande do Sul ao Rio Grande do Norte, em sítios do litoral do Ceará, na Serra da Ibiapa, na
foz do rio Amazonas e por vários lugares do interior” (GOMES, 2009, p. 75), são
considerações do antropólogo Mércio Pereira Gomes, que compreender que esta obra possui o
poder descritivo de abrir.
uma janela para o mundo indígena do Brasil, faz-nos desejar está lá, naquele tempo,
e viver a experiência desse francês que fez parte de um projeto colonizador e queria
cristianizar os Tupinambás [...] nos leva àquele tempo prístino da ilha de São Luís
80
onde viviam 12.000 índios Tupinambá e onde o mundo europeu se encontra num
estranho diálogo, ora sincero, ora condescendente, ora falso, com o mundo indígena.
(GOMES, 2009, p. 75)
A região do nordeste que compreende o atual Maranhão (e também o Piauí) foi
das últimas partes do litoral brasileiro colonizadas, apesar dos desejos lusitanos. A primeira
tentativa colonizadora aconteceu em 1535-38 por uma expedição entre João de barros, Ayres
da Cunha e Álvares de Andrade13, que haviam recebido duas capitânias hereditárias, que
estendiam a costa nordestina, até a desembocadura do rio Amazonas, incluindo a ilha (atual)
de São Luís. A expedição comportava dez navios e 900 marinheiros e potenciais colonos,
além de 120 cavalos, porém naufragou nos bancos de areia da ilha de São Luís. Os relatos dos
náufragos (menos de 200) que conseguiram regressar para Portugal, sugerem a acreditar que a
ilha era habitada naquele período, por índios ditos gentes tapuias – os índios que não eram de
língua e cultura tupi, mais hostis aos europeus. Apesar dos “ventos contrários”, “alguns
portugueses ficaram na região e se ‘nativizaram’, isto é, passaram a viver com e como os
índios, sendo eventualmente incorporados em sua sociedade.” (GOMES, 2009, p. 76). 15 anos
depois, dois filhos de João de Barros aportaram na ilha para retomar os direitos do pai,
passando 05 anos sem conseguir firmar uma colônia.
13
Procurar mais informações acerca do período colonial em HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da
Civilização Brasileira. Volume I. A Época Colonial. 2ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989. p. 105 e
81
Figura 10 – Mapa do Brasil atribuído a Lopo Homem por volta de 1519 e 1520.
Fonte: Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores – Brasil.
Figura 19 – Mapa atribuído a Lopo Homem.
Fonte: Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores – Brasil.
Os direitos hereditários eram compreendidos e integrados ao primeiro projeto
português de colonização de seus domínios no Novo Mundo pelo Tratado de Tordesilhas de
1494. O Rei dom João III dividiu o território do Império português na América em terrenos
denominados capitanias, modo como a Coroa lusitana encontrou para que nobres do Reino se
responsabilizassem pelas terras distantes, garantindo reduções nos gastos e consolidação dos
em Gabriel Soares de Souza, no seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587 (SOUZA, Gabriel Soares. Tratado
Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Edusp, 1971, p. 46 e 51).
82
seus domínios. Uma capitania era doada pelo rei em forma de cartas reais para o que seria
chamado de donatário. O período das capitanias hereditárias foi de 1534 a 1548, formando 15
lotes, 12 capitanias para 13 portugueses. (FARIA, 2009, p. 20-21).
Os filhos de João de Barro não conseguiram firmar colonização e Gomes (2009, p.
76) sugere que a partir de 1560, os índios Tapuias foram forçados a sair da ilha pelas pressões
migratórias dos Tupinambá, vindos do leste, com o estabelecimento dos portugueses do litoral
para “dentro”. Os Tapuias teriam subido o rio Itapecuru, um dos rios formadores da bacia de
São José, e posteriormente os índios foram chamados de “índios barbados” pelos relatos de
cronistas portugueses. Todas estas ponderações, adicionadas com outras questões políticas e
econômicas, impossibilitaram o consolidar colonizador lusitano no Maranhão, reforçado pelo
controle ameaçado pela instalação de uma colônia francesa, a França Equinocial a partir de
1612, quando uma expedição francesa fundou esta colônia, localizada a noroeste da ilha de
São Luís, entre os rios Bacanga e Anil, com isso, iniciou-se o Maranhão dos franceses.
Yves d’evreux descreve detalhadamente o modo que os Tupinambá recebeu os
franceses no Maranhão e como ocorreu a instalação da colônia. Para o padre, sem os índios
não havia o prover das necessidades básicas da colônia, nem a permanente troca comercial do
pau-brasil para a exportação, ou seja, sem os índios, não haveria parte deste capítulo da
história do Brasil. De acordo com Gomes (2009, p. 79), há uma riqueza de informações
etnográficas sobre os Tupinambá, de maneira que nada foi acrescentado de inovador
posteriormente, a não ser pelos missionários jesuítas nas missões dos territórios do atual
Paraguai e Sul brasileiro.
83
Figura 20 – Índios carregando o pau-brasil. Recorte do mapa atribuído a Lopo Homem. Apesar do brasão da
Coroa portuguesa está no atual norte do Brasil e uma embarcação também no litoral norte/nordeste, os franceses
eram visitantes assíduos dos índios, pau-brasil e costa brasileira.
Fonte: Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores – Brasil.
Nesta perspectiva, se o cálculo de Claude d’Abbeville14, reverendo que ficou
meses na França Equinocial junto com Yves d’Eveurex, estiver correto, havia
aproximadamente entre 10 a 12 mil índios Tupinambá na ilha de São Luís em 1612 – possui
uma área de 2.200 km², contendo em torno de 27 aldeias que estavam ligadas entre si através
dos cursos dos rios Bacanga e Anil. Assim, a densidade demográfica é de ordem de 04 (ou até
mais de 05) pessoas por quilômetro quadrado, taxa significativa para a época, encontrada
igualmente ou superior, junto ao rio Amazonas.
Os escritos de Yves d’Eveurex comparam a construção da capela de São
Francisco em São Luís no Maranhão à construção do templo do rei hebreu Davi e menciona o
salmo 28 para agradecer pelo êxito da empreitada. Yves enxerga nos ameríndios, “almas,
conquistadas pela doçura do Evangelho, se deixam levar suavemente até a porta do
Tabernáculo de Deus, onde são lavadas no grande mar do batismo e oferecidas á face do
O livro de Claude d’Abbeville, a História da Missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras
circunvizinhas . Belo Horizonte: Itatiaia, 1975 é determinante para a leitura da obra de Yves d’Eveurex, bem
como compreensão da colônia francesa e sobre os povos ameríndios.
14
84
Sancta Sanctorum.” É possível enxergar os povos ameríndios movimentando, vivendo e a
partir de uma análise crítica, extrair da visão etnocêntrica, as informações antropológicas
importantes de partes dos ameríndios que viveram, povoaram e transformaram o território
atual de nosso país.
Algo semelhante aconteceu-nos, a nós que chegamos a este país cheio de
infidelidade e ignorância de Deus, repleto de diabos oprimindo cinicamente as
pobres almas cativas, para dar-lhes a luz do Evangelho, acabar com a descrença,
expulsar demônios, implantar e construir a Igreja de Deus. Pois nós celebramos no
espaço de quatro meses ou mais, os santos sacríficos sob uma bela tenda em meio a
árvores verdejantes. Depois, tendo uma parte de nossa equipe voltado à França para
obter reforços, e a outra ficado para fundar a colônia, mandamos construir a capela
de São Francisco do Maranhão num lugar bonito e agradável, junto ao mar,
enriquecido por uma bela fonte que nunca seca. Foi ali o lugar que escolhi para
minha morada que mais tarde serviria de convento aos religiosos que eu esperava em
reforço. (Y’ves D’ Évreux, 2009, p. 98)
A capela terminada na véspera do Natal – data apropriada por celebrar o
nascimento do “verdadeiro sol Jesus Cristo” (Y’ves D’Évreux, 2009, p. 98) e próxima a
devoção que tinha o seráfico padre São Francisco, santo que recebeu dedicação pela
construção da capela. A capela? Era simples, feita de madeira, coberta de palma ou nas
palavras do franscicano, era mais próxima do “presépio de Belém que aos grandes e preciosos
templos da Europa.”.
A colonização francesa aconteceu na construção de fortes e capelas, para
alimentar tanto o corpo quanto o espírito. A alimentação do espírito era feita com os santos
sacramentos, por sua vez, a alimentação do corpo:
Tínhamos apenas farinha da região, com a qual fazíamos mingau, isto é, uma papa
com água, sal e pimenta, que eles chamam de ionker, e era só com isso que
sustávamos nossa vida. Alguns, que não podiam comer essa farinha seca, a
dissolviam na água e assim a comiam. Aqueles que na França constumavam comer
alimentos finos achavam deliociosos os legumes da região, quando podiam obtê-los.
(Y’ves D’ Évreux, 2009, p. 102)
Para remediar a essassez, pescavam “vacas marinhas” a cerca de 30 e 40 léguas da
ilha de São Luís. As vacas marinhas chamadas pelos franceses eram os manati dos índios ou o
mesmo que peixe-boi para os portugueses. O religioso francês apresenta como era feita a
85
pesca do animal aprendida com os indígenas, apresentando a lente religiosa e cultura que
moldava sua vida e colônia:
Esses animais-peixes têm a cabeça de vaca, todavia sem chifres, duas patas
dianteiras sob as mamas. Elas têm seus filhotes como as vacas, e os alimenta com
seu leite. O vitelinho tem uma qualidade digna de se ressaltar aqui para que nos sirva
de lição: ele abraça sua mãe pelas costas com suas duas patinhas, e nunca a larga,
mesmo quando ela morre. Assim os pegamos vivos e os levamos até a ilha ainda
com vida; eles são muito delicados. Que isso sirva às crianças para executarem o
mandamento de Deus de honrar pai e mãe. (Y’ves D’ Évreux, 2009, p. 103)
Os indígenas silenciosamente os apanhavam no pasto, na erva que crescia na beira
marítima, além de fazerem uso do sal marítimo – de qualidade superior aos de França e
Espanha.
Os selvagens deslizam silenciosamente suas canoas por trás delas, de onde as fisgam
com dois ou três arpões. Assim que estão mortas, são levadas para a terra, cortadas
em pedaços e salgadas [...] o sal, necessário para salgar essas vacas como para outras
coisas, se encontra a cerca de quarenta léguas da ilha, em imensas planícies
arenosas, onde ele se forma naturalmente, duro e reluzente como cristal, por causa
do vaivém do mar que beira estas planícies. Quando o mar se retira, o sol vem
cozinhá-lo com seu calor. Esse sal é muito melhor que o da França e o da Espanha.
É preciso ir buscá-lo antes da estação das chuvas, pois elas inundam o lugar onde se
encontra. (Y’ves D’ Évreux, 2009, p. 103 - 104)
86
Figura 21 – Indivíduos da espécie Trichechus
Fonte: Google.com.br, 2013.
manatus – Peixe-bois.
Figura 22 – Homem do Pará segurando um peixe-boi.
Fonte: Google, 2013.
87
Os franceses aos poucos se misturaram com os povos indígenas pelo costume dos
tupinambás de ter hospedeiros ou compadres. Uma relação de trocas de mercadorias até
relações estreitas como darem suas filhas aos franceses e estas usarem nomes como Maria e o
sobrenome francês para designar a aliança com o europeu. Este costume foi gradativamente
proibido, sendo continuado às escondidas e determinou para a construção do que viria a ser os
atuais Maranhão e Brasil.
Para Fonseca (2008, p. 201), os povos que habitavam a atual Amazônia,
(incluindo a região do atual Maranhão) no período dito pré-colombiano, conheciam pela
adaptação e uso das terras, as áreas para pescas, agricultura, sendo estes atraídos pelas
riquezas naturais em no mínimo 2 mil anos atrás. Eram áreas densamente povoadas e ao
tempo da conquista, de disputas. Nesta região que os povos praticaram um comércio
diversificado, posteriormente, adaptado por vezes, pelo colonizador. Dentre os produtos,
pode-se destacar: Há registros de que no período pré-colombiano, havia o comércio deste
produto, trazido pelos grupos andinos, que tinham acesso a grandes depósitos de sal naquela
região, para permuta pelo peixe seco. (FONSECA, 2008, p. 206).
Bertazoni (2013, p. 24) também contribui acerca da pouco conhecida relação entre
os incas e os índios amazônicos, apresentando intensas trocas culturais e de resistência à
expansão do império andino. Estas informações são importantes e integram a novas
interpretações e críticas a autores como Betty Meggers, que não perceberam a dinâmica
cultural dos povos das várzeas amazônicas. As novas pesquisas como de Bertazoni,
apresentam um avanço acerca da visão dicotômica e polarizada, que até o presente (segunda
metade dos anos 2000) é apresentada pela maioria dos livros de História: duas áreas culturais
separadas e incomunicáveis – os incas, uma sociedade numerosa, complexa e sofisticada e os
povos da Amazônia, simples, esparsos e com conhecimentos rudimentares. O intercâmbio
cultural entre estes povos vinham de séculos de convivência. Habitam áreas geográficas
próximas, “compartilhavam costumes, línguas, canções, histórias e sabedorias. A floresta
tropical comportava um número expressivo de habitantes e a dinâmica social dos grupos lá
estabelecidos era bem mais complexa do que se pensava.” (Bertazoni (2013, p. 24).
Os incas precisaram ter uma postura flexível e diplomática para tentar conquistar
os povos indígenas que viviam na Amazônia. Enquanto penas, algodão, tecidos e plantas
subiam a cordilheira, metais (machados de cobre) e tecidos de lã desciam a floresta. Além do
sal mineral que provavelmente era oriundo dos Andes, além de sais vegetais e os marítimos.
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O capítulo V do tratado de Yves possui duas primeiras folhas desaparecidas, na
terceira folha o manuscrito já é iniciado com informações sobre as tartarugas, também fonte
de alimentação dos colonos franceses, mas sobretudo, base alimentícia dos tupinambás:
...frequentemente em abundância, os selvagens põem fogo às moitas e silvados, nos
quais estes répteis (tartarugas) se escondem. Há três espécies: as terrestres, que
vivem nas matas; outras, de água doce, que habitam as margens desse rio e os
lugares pantanosos; as terceiras são marinhas, e vivem no mar, mas vão botar
grandes quantidades de ovos nas areias mais próximas, cobrindo-os habilmente com
a mesma areia. Esses ovos se assemelham aos de galinha, só que não têm a casca tão
dura, mas sim flexível e mole, e não são tão grandes nem pontudos, mas redondos.
São muito gostosos, seja quentes, seja de outra forma qualquer. (Y’ves D’ Évreux,
2009, p. 110)
Figura 23 – Ovos de Tartaruga-marinha.
Fonte: Projeto TAMAR, 2013.
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Figura 24 – Ovos de Tartaruga-marinha.
Fonte: Projeto TAMAR/Google.com.br, 2013.
As tartarugas migram dos rios para as lagoas e várzeas entre fevereiro e junho.
Desde o período anterior a colonização, durante o processo colonizador e ainda hoje, a
população da região norte do Brasil utiliza a tartaruga e seus ovos como alimentação, por isso,
a importância de campanhas em proteção e preservação das tartarugas.
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Figura 25 – Cédulas de R$ 2,00 (nova e velha) do Real (moeda nacional brasileira), apresentando a
tartaruga para a finalidade de educação e preservação da população. Considerando que a cédula
circula pelo país. O lançamento da cédula foi em 13 de dezembro de 20011 (modelo antigo) e o
relançamento foi em 29 de julho 201 (modelo mais novo).
Fonte: Google, 2013.
O francês Y’ves descreve as árvores que ornam as margens dos rios, as cássias e o
forte potencial medicinal desta vegetação, tão promissor até o tempo da escrita deste trabalho.
A vegetação é “imensa a perder de vista, cobertas de erva macia e fina [...] as florestas de
árvores altas, ainda virgens, enobrecidas por várias espécies de madeiras excelentes, quer na
cor, quer nas qualidades medicinais, são habitadas por selvagens que lá se encontrava o paubrasil.” (Y’ves D’Éxreux, 2009, p. 11). Esta vegetação das terras do Maranhão abrigava
inúmeros animais, grandes como veados, mas pequenos como “enxames de abelhas pequenas
(cerca de metade das nossas), mas muito mais habilidosas, pois fazem um excelente mel
liquido e claro como água de fonte.” (Y’ves D’Éxreux, 2009, p. 11). O padre Y’ves, detalha
os favos de mel: “Esse mel está contido em pequenos frascos aos nossos frasquinhos de
91
vidros, suspensos nos ramos de uma arvorezinha feita também de cera. Esta arvorezinha de
cera está ligadae colada aos galhos, ao trono ou então nas cavidades das árvores.” (Y’ves
D’Éxreux, 2009, p. 11).
Figura 26 – Toca da Entrada do Baixão da Vaca – Parque Nacional Serra da Capivara – PI. Cena
em torno de uma colmeia. Há cenas que aparecem até varas para manter distância e proteger das
ferroadas.
Fonte: Imagens da Pré-história, Anne-Marie Pessis, 2003.
O mel tinha uma qualidade que fazia um vinho excelente, semelhante em gosto,
ao vinho das Canárias. O padre francês teve contato com outros povos ameríndios, os
chamados Tabaiares (Tabajara) e suas habitações, feitas de folhagens e abertas a ação dos
ventos.
Os tupinambás insistiam para que os franceses viajassem com eles junto ao
Amazonas, “entretanto, “não havia grande possibilidade de deixar a ilha, por sermos poucos
para defendê-la dos ataques dos portugueses, que nos ameaçavam desde esses tempos.”
(Y’ves D’Évreux, 2009, p. 114). O próprio Hans Standen de Homberg, navegou ao Brasil no
navio Penteado como artilheiro e pontuou “o capitão desse navio [...] detinha licença para
capturar navios que negociassem com os piratas. Também “lhe era permitido pilhar navios
franceses que negociassem com os selvagens no Brasil.” (HANS STANDEN, 2010, p. 31).
92
As considerações sobre a esperteza de guerra dos Tupinambá são significativas.
Os Tupinambás iam pelas madrugadas e capturavam os inimigos pelo imprevisto dentro de
suas choças, salvando poucos homens habilidosos, ao contrário dos velhos, mulheres e
crianças. O primeiro passo para a guerra dos tupinambá é a farinha de guerra, feita pelas
mulheres, também descrita por Gabriel Soares em seu tratado descriptivo. A raiz da mandioca
era secada em fogo lento, depois raspada e moída no pilão. Posteriormente, peneirada e
misturada para ser torrada.
O segundo passo é a construção e reparo das canoas pelos homens. Havia canos
com capacidade de até 300 pessoas com suas provisões. O terceiro passo é a escolha e
preparação das plumagens para a cabeça, braços e ancas, além das plumagens para as armas.
As plumagens da cabeça segundo Y’ves,
fazem uma peruca de plumas de passarinhos vermelhas, amarelas, azuis e lilases que
prendem aos cabelos com uma espécie de goma; na testa, [...] grandes pumas de
araras e outros pássaros semelhantes, vermelhas, amarelhas e azuis em forma de
mitra, que amarram atrás da cabeça.(2009, p. 117).
Nas ancas, as plumas são como caudas de avestruz, suspensas por dois cordões de
algodão tingidos de vermelho, cruzados nas costas do guerreiro. Tanto André Thevet, quanto
Jean de Léry descreveram com precisão esta ornamentação, entretanto, o padre Y’ves
apresentou-o num valor simbólico, afinal:
De fato, quis saber por meu intérprete por que eles usavam aquelas penas de
avestruz nas ancas. Responderam-me que seus pais lhes deixaram esses costume
para ensinar-lhes como deviam se comportar na guerra contra seus inimigos,
imitando o jeito da avestruz. Quando esta se sente a mais forte, ela se joga
ousadamente sobre aquele que a persegue. Se ela se sente a mais fraca, levanta as
asas para receber o vento e foge, jogando, com as patas, areia e pedra sobre seu
inimigo. ‘assim devemos fazer’, diziam eles. Tive a oportunidade de observar esse
jeito numa pequena avestruz cativa na aldeia de Usaap, a qual era atacada
diariamente por todos os meninos do lugar. Quando ela percebia que atrás dela só
havia dois ou três, voltava-se e, com o estômago, os jogava no chão. Mas, se o grupo
era muito forte para ela, ela fugia. (Y’ves D’Évreux, 2009, p. 117).
O religioso tem convicção de que muitas pessoas (europeias) se espantariam com
o fato dos “selvagens” tirarem os modos de comportamento dos animais. Ao pontuar esta
consideração, percebe importantes informações do mundo simbólico e cultural dos
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tupinambá, dentre elas, os dentes de onças, como exemplificação, há vestígios encontrados na
Lapa do Tapuia, em Coração de Jesus, norte de Minas Gerais, que revelou um colar de dentes
de onça:
Esses selvagens imitam em tudo o que podem a perfeição dos pássaros e animais de
seu país, sobre a qual compõe todas as canções que acompanham suas danças. Como
esses pássaros essencialmente três cores, vermelho, amarelho e azul, eles gostam dos
panos e roupas dessas mesmas cores. Como as onças e javalis [porcos do mato e
espécies próximas, porque não há javalis no Brasil] são os animais mais bravos de
sua terra, pegam os dentes deles e os encaixam em seus lábios, bochechas e orelhas
para parecerem mais bravos. As plumas das armas são colocadas nas pontas das
espadas e dos arcos. Enfim, tudo isso preparado, eles se põem a beber publicamente
de seu vinho feito de moay para dizer adeus aqueles que ficam. (Y’ves D’Évreux,
2009, p. 118).
Os europeus, neste caso, os franceses, eram seduzidos pelos costumes dos povos
ameríndios, quer por estranhá-los, quer por admirá-los. Em uma festividade em honra do rei
da França, Henrique II e da rainha Catarina de Médicis, celebrada em Rouen em 1551, houve
uma simulação de 50 índios tupinambá, às margens do Sena para a entrada triunfal do casal de
monarcas. A xilografia que retrata esta festividade é considerada uma das mais belas sobre os
indígenas do território do atual Brasil. (TEIXEIRA LEITE, 1996, 38).
94
Figura 27 – Xilogravura de autor desconhecido, intitulada Figure des Brisilians, publicada por Jean Le Prest
no opúsculo C’est la Déduction du Sumptueux Ordre Plaisantz Spectacles em 1551, em Rouen.
Fonte: TEIXEIRA LEITE, 1996, p. 39 / Coleção Franceses no Brasil.
Cerca de 50 índios do atual Brasil que já viviam na cidade de Rouen, participaram
da festa com outros 150 marinheiros fantasiados de indígenas (TEIXEIRA LEITE, 1996, 38).
A festa terminou com uma simulação de combate entre dois grupos guerreiros. Assim, Yves
d’Eveurex contribuiu significativamente para o interesse dos povos autóctones na Europa.
Jean de Léry: Uma Viagem feita à Terra do Brasil
O calvinista Jean de Léry (1534-1611) descreveu os tupinambás com riqueza de
detalhes, do parto ao funeral. Seu livro virou o que se chama atualmente de “verdadeiro bestseller”, publicado na Europa.
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Figura 28 – Imagens presente no livro de Léry. (página 30).
Fonte: Léry. História de uma viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, 2009, p. 30.
O sucesso do livro de Léry, publicado em 1578, 20 anos após sua volta à Europa
teve sucesso imediato, traduzido em várias línguas e com inúmeras edições até a morte do
autor em 1611. Para Moreira Neto (2009, p. 16), excluídos os trechos de tensões entre Léry,
protestante e o frade católico André Thevet e com Villegagnon, inevitáveis nesse período; o
livro de Léry é “testemunho cheio de curiosidade e de calor humano em relação ao novo
mundo e seus habitantes. Esses são descritos com grande percepção e objetividade, raramente
toldadas pelo sectarismo religioso do missionário calvinista.” (MOREIRA NETO, 2009, p.
16).
Léry chegou ao território do atual Brasil com 22 anos (em 1557). Havia cerca de 5
anos que uma leva de jesuítas chegara à Bahia, dentre eles, José de Anchieta, nascido em
1534, como o jovem calvinista. (semelhantes e opositores). Ambos escreveram sobres os
povos ameríndios. Léry permaneceu dez meses no Brasil e após sua expulsão da ilha de
Villegagnon, passou parte do tempo em contato direito com os índios da região da Guanabara.
Estas condições foram determinantes e são aconselhadas até mesmo, na atualidade para os
pesquisadores pelos manuais e orientações de antropologia. Em seu livro, o diálogo tupi-
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francês, contribuiu (apesar de seu limitado conhecimento da língua) para a linguística. Seus
escritos são usados nos anos 2000 pelas graduações de letras no Brasil.
Acredita-se que os croquis que foram feitas as gravuras ilustrativas do livro,
tenham sido elaborados por Jean Gardien. (MOREIRA NETO, 2009, p. 39). O autor apresenta
as dificuldades da viagem e das tempestades, dos calores que o incomodava sobre o Equador,
afinal, “o sol era fortíssimo e grande o sofrimento causado pelo calor, e, fora de duas parcas
refeições, não tínhamos água doce nem outra bebida em quantidade suficiente.” (LÉRY,
2009, p. 92). A primeira vista da terra e dos seus habitantes por Léry, geraram as seguintes
afirmativas:
De fato, já se haviam passado cerca de quatro meses que não víamos porto e
flutuávamos no mar, não raro com a ideia de que nos encontrávamos em um exilio
sem saída. Por isso, logo que verificamos ser terra firme o que víamos (muitas vezes,
no mar, nos enganávamos com as nuvens que se dispersam quando o vento é
propício), velejamos para a terra e, no mesmo dia, com nosso almirante á frente,
ancoramos [...] os selvagens eram da nação dos Margais / Maracajá, aliada dos
portugueses e por consequência tão inimiga dos franceses [...] e logo foi-nos
possível admirar as florestas, árvores e ervas desse país que, mesmo em fevereiro,
mês que o gelo oculta ainda no ventre da terra todas essas coisas em quase toda a
Europa, são tão verdes quanto na frança em maio e em junho. E isso aconteceu
durante todo o ano nessa terra do Brasil. (LÉRY, 2009, p. 98)
Os franceses tiveram a preocupação de ficarem longe do alcance das flechas dos
“selvagens” e promoveram trocas com facas, espelhos e pentes em troca de víveres. “desse
modo, nosso contramestre obteve farinha feita de certa raiz, usada por eles em vez de pão, e
pernis e carne de uma espécie de javali, e frutas e outras coisas que o país produz.” (LÉRY,
2009, p. 98). O javali provavelmente seria a carne de capivara. Neste encontro, o francês
registrou os costumes dos primeiros índios que vislumbrou:
Como eram os primeiros selvagens que eu via de perto, é natural que os observasse
atentamente e, embora os descreva minuciosamente mais adiante, quero desde já
dizer alguma coisa a seu respeito. Tantos os homens como a mulher estavam tao nus
como ao saírem do ventre materno mas, para parecer mais graciosos, tinham o corpo
todo pintado e manchado de preto. Os homens usavam cabelo cortado na frente à
maneira de coroa de frade e comprido atrás, aparado em torno do pescoço como
entre nós as pessoas que usam cabeleira. Todos tinham o lábio inferior furado ou
fendido e traziam no beiço uma pedra verde e polida, como que engastada, do
tamanho de uma moeda e que podia ser tirada ou recolocada, como bem
entendessem. Por certo usavam tais coisas para se enfeitar, mas, na realidade, sem a
pedra, o corte do lábio inferior se assemelhava a uma segunda boca, o que os tornava
bastante mais feios. Quanto à mulher, além de não ter o lábio furado, usava os
cabelos compridos como as daqui; mas tinha as orelhas furadas tão cruelmente que
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era possível atravessá-las com os dedos e nelas levava grande pendentes de ossos
brancos que lhe chegavam até os ombros. (LÉRY, 2009, p. 99)
Ao desembarcarem no forte de Coligny, foram acolhidos por Villegagnon e
renderam uma oração juntos. Em 21 de março, “pela primeira vez celebramos a Santa Ceia de
Nosso Senhor Jesus Cristo no forte de Coligny” e o próprio Villegagnon, inicialmente trocou
cartas com Jean Calvino, reformador. Posteriormente, as relações entre os calvinistas e
Villegagnon seriam rompidas. Sobre os habitantes da América:
Para começar pelo principal e proceder com ordem, direi que os selvagens da
América, habitantes na Terra do Brasil, chamados Tumpinambá, entre os quais vivi
durante quase um ano e com os quais tratei familiarmente, não são maiores nem
mais gordos nem menores de estatura do que os europeus; nem têm os corpos
monstruosos ou estranhos a nosso ver, são porém, mais fortes, mais robustos, mais
entroncados, mais bem-disposto e menos sujeitos a moléstias, encontrando-se entre
eles, poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios. Apesar de chegarem muitos a
100 ou 120 anos (sabem contar a idade pela lunação), poucos são os que ao
envelhecer têm os cabelos brancos ou grisalhos [...] todos eles parecem beber da
Fonte da Juventude. (LÉRY, 2009, p. 129)
Léry informa sobre a pele dos tupinambá, sobre sua nudez e sobre seus cabelos:
Quanto a sua cor natural, apesar da região quente em que vivem, não são negros; são
apenas morenos como os espanhóis ou os provençais. Coisa não menos estranha e
difícil de acreditar para os que não os viram é que andam todos, homens, mulheres e
crianças, nus como ao saírem do ventre materno. Não só não ocultam nenhuma parte
do corpo, como também não dão o menor sinal de pudor ou vergonha. Não são como
alguns imaginam e outros querem fazer crer, cobertos de pelos ou cabeludos [...] nos
homens, são desde a juventude tosquiado bem rente na parte superior e anterior do
crânio, como uma coroa de frade, e na nuca à moda dos nossos antepassados ou dos
que deixam crescer a cabeleira, mas aparam os pelos do pescoço. (LÉRY, 2009, p.
129)
A formosura do recém nascido era medida pelo nariz afilado. Quanto às pinturas
feitas nos corpos, Léry informa que:
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Os nossos brasileiros pintam muitas vezes o corpo com desenho de diversas cores e
escurecem tanto as coxas e pernas com o suco de certa fruta que eles chamam
Genipat/ Janypápa “jenipapo”, que ao vê-los de longe, pode-se imaginar estarem
vestidos de calça de padre. Essa tintura preta do fruto do Genipat imprime-se de tal
maneira na carne que, embora os silvícolas se metam na água e se lavem com
frequência, dura de dez a doze dias. Usam também crescentes de osso liso, brancos
como o alabastro, a que dão o nome de Jacý “lua”, e trazem-nos pendurados ao
pescoço por meio de cordões de algodão. (LÉRY, 2009, p. 130)
Os tupinambás criavam galinhas, trazidas pelos portugueses e usavam suas penas
e as tingiam com pau-brasil, semelhantes aos tupinaki (tupiniquins). Acerca dos ornamentos e
imitações aos animais como apresentado nos relatos de Y’ves de Évreux, neste caso, imitando
o “Toucan” (tucano):
Quanto ao ornato da cabeça, além da coroa de frade e da melena na nuca a que me
referi, eles amarram penas vermelhas ou de outras cores, tiradas de asas de certas
aves, em ornatos frontais muito semelhantes aos que acostumam as senhoras usarem
em França e em outros países daqui, parecendo até que se tenham inspirado nesta
invenção, cujo nome entre os selvagens é Yempenambi. Também usam nas orelhas
ornatos de osso branco quase da mesma forma que os rapazes usam em seus lábios
furados. Existe no país uma ave, o Toucan / Tucán “tucano”, [...] que tem a
plumagen negra como a do corvo, á exceção do papo, de quase quatro dedos de
comprimento por três de largura, todo coberto de penas miúdas, amarelas e orladas
de preto na parte inferior. Tiram a pela desse papo, a que denominam Toucan como
a ave, e depois de seco pregam-no com uma cera chamada Yra-Yet /iraintý “cera”,
nas faces, abaixo das orelhas, de modo que lembram as chapas de cobres usadas nas
cambas dos freios dos cavalos. (LÉRY, 2009, p. 132).
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Figura 29 – Tucano nas ladeiras de São João Del Rei/MG.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2010.
Sobre a formação da guerra, prisioneiros mortos em cerimônia e vestuários
semelhantes ao avestruz, provavelmente as penas das emas.
Quando vão à guerra, ou quando matam, com cerimônia, um prisioneiro para comêlo, os selvagens brasileiros enfeitam-se com vestes, máscaras, braceletes e outros
adereços de penas verdes, encarnadas ou azuis, de incomparável beleza natural, a
fim de mostrar-se mais belos e mais bravos. Muito bem misturadas, combinadas e
amarradas umas às outras sobre treliças de madeira e com fios de algodão, formam
vestuários que parecem de pelúcia e que podem rivalizar com os dos melhores
artesão de França. Do mesmo modo, enfeitam as guarnições de suas espadas e clavas
de madeiras, as quais, assim decoradas, produzem um efeito deslumbrante. Na
confecção de seu vestuário, usam grandes penas de avestruz, obtidas com seus
vizinhos. isso comprova a existência, em alguma região do país, dessas enormes
aves, mas não posso dizer que as tenha visto. As plumas, que são pardas, ligam-se
pela haste central, ficando soltas as pontas que se encurvam à maneira de uma rosa
para formar grandes penachos denominados Araroye/Aráruáia “rabo de arara”, os
quais são atados à cintura por um cordel de algodão. E como a parte larga fica para
fora e a estreita junto da carne, parece que, assim adornados, carregam à cinta uma
porção de frangos. (LÉRY, 2009, p. 135).
100
Léry mostra de maneira ampla e sintética o que conheceu sobre os tupinambás e
afirmar como que uma legenda para uma ilustração de “uma família tupinambá”: “Podereis
agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem conformado e proporcionado
de membros, inteiramente depilado, de cabelos tosados como já expliquei
com lábios e faces rachados e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas
perfuradas e igualmente adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de
preto com o suco de genipat, e com colares compostos de uma infinidade de
pequenos fragmentos de conchas que eles chamam Vignol, pendurados ao pescoço,
e haverei de vê-lo como é ordinariamente em seu país e tal como o vereis retaratado
mais adiante, com apenas seu crescente de osso bem polido sobreo peito e sua pedra
no buraco do lábio. Colocai-lhe na mão seu arco e suas flechas e o vereis retratado
bem garboso ao vosso lado. Em verdade, para completar o quadro, colocamos junto
a esse tupinambá uma de suas mulheres, como filho preso a uma cinta de algodão e
abraçando-lhe as ilhargas com as penas. Ao lado de ambos, há que por ainda um
leito de algodão feito como rede de pescaria e suspenso no ar. E acrescentamos o
fruto chamado Ananas/ nanã “ananás, abacaxi”, que mais tarde descreverei e que é
um dos melhores da terra. (LÉRY, 2009, p. 133 - 135)
Figura 30 – Família Tupinambá. (página 134).
Fonte: Léry. História de uma viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, 2009, p. 134.
O calvinista francês nos apresenta informações importantíssimas sobre a
alimentação dos ameríndios (ou pelo menos de parte destes), mostrando o abacaxi, além das
duas espécies de raízes (aypi e o maniot/mandioca), que crescem dentro da terra em três ou
101
quatro meses. Após crescerem, as mulheres tupinambás as arrancavam, secavam-nas ao foco,
ralavam-nas e ainda frescas sobre uma prancha de madeira as reduzia a farinha branca.
(LÉRY, 2009, p. 139), esse preparo ficou gravado na mente de Léry, “a ponto de, após o meu
regresso à França, ao encontrar-me certo dia em local onde se preparava o amido, o cheiro da
preparação me recordar logo o das casas dos selvagens quando nelas se fazia farinha de raiz.”
(LÉRY, 2009, p. 139).
Figura 31 – Recorte para apresentar o abacaxi, saindo do interior da Terra. (página 134).
Fonte: Léry. História de uma viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, 2009, p. 134.
“Dentre os animais que serviam de base de alimentação, há a cutia” “do tamanho
de um leitão de mês, tem a pata fendida, a cauda muito curta, o focinho e as orelhas quase
como as da lebre e é de sabor agradabilíssimo”. (LÉRY, 2009, p. 139). A paca, o gambá, que
por possuir mau cheiro, não era agradável, mas se retirada à gordura, “a carne é tenra e boa e
não deixávamos de comê-la.” (LÉRY, 2009, p. 151). Além do “tatou”, tatu, que se arrasta
pelas moitas, “coberto de escamas fortes e duras, capazes de resistir a um golpe de espada.
Com essa carapaça, fazem os selvagens cestinhos chamados caramemo [...] a carne do tatu é
branca e muito saborosa.” (LÉRY, 2009, p. 151), os tupinambás comiam também, jacarés,
que eram levados vivos para as casas e as crianças ameríndias brincavam. Há nos registros de
102
Léry, o “touous” / teju ou ainda tiu, lagarto que cinzento de pele como lagartixas. Desprezada
inicialmente por Léry, quando comida, foi uma das melhores que saboreou na América a
ponto de “não cessei de pedir lagarto.” Além de sapos grandes, serpentes, preparadas em
pedaços e cozidas. Acerca dos animais, Léry aponta o jaguára, provavelmente a onça pintada
que era temida pelos tupinambás “pois naquela semana, ele comera três pessoas numa de suas
aldeias” (LÉRY, 2009, p. 153).
Figura 32 – Onça pintada em Buritis, noroeste mineiro.
Fonte: Google.com.br, 2013.
Sobre as aves, o francês ficou maravilhado com as Arat/arár “arara”, de penas das
asas e de causas, metade vermelho-escarlate, metade azul-celeste “do mais brilhante que
possa existir”. “Quando essa ave se expõe ao sol, como comumente acontece não se fartam os
olhos humanos de contemplá-la.” (LÉRY, 2009, p. 158). além da Canindé, “tem a plumagem
do peito amarela como o ouro puro; o dorso, as asas e a cauda são de azul belíssimo, e
passamos ante tanta beleza ao vê-la como que vestida com um tecido de ouro” (LÉRY, 2009,
p. 158).
103
Figura 33 – Arara Canindé e arara vermelha na FUMDHAM (Fundação Museu do Homem Americano) –
Piauí.
Fonte: Acervo Pessoal de Thiago Pereira, 2010.
Os papagaios também ganharam linhas no livro de Léry, “pronunciava ela tão
perfeitamente tanto as palavras da língua selvagem quanto as da francesa, que não era
possível distingui a sua voz da de um homem”. Léry informa de uma destas aves, que
pertencia à mulher indígena. A ave dançava e cantava junto com a sua dona.
104
Figura 34 – Papagaio.
Fonte: Google, 2013.
Além de tantos outros animais que ao serem apresentados por Léry, possibilitam
uma (re) construção do mundo dos tupinambá, de sua alimentação, do seu habitat, enfim,
deles mesmos: o pavão, o pássaro vermelho, o guainumbý (beija-flor), apesar de pequeno,
“prima no canto”. Além dos morcegos e as abelhas, também descritas por Y’ves de Évreux:
“as abelhas da América não se parecem com as nossas; assemelham-se mais às pequenas
moscas pretas que temos no verão” (LÉRY, 2009, p. 162). Segundo Léry, os tupinambás
sabiam manusear o mel e aproveitá-lo em troncos ocos de árvores. “Comem o mel da maneira
como o fazemos e juntam a cera, que é quase tão preta quanto piche, em rolos pretos da
grossura de um braço.” (LÉRY, 2009, p. 162). Até mesmo os “ton / túng, que são os bicho-depé, foram descritos por Léry. Eles acometiam os pés, penetrando na carne, sob as unhas do pé
ou mesmo da mão, provocando coceiras. Para a pesca, tanto as flechas, quanto espinhos e
anzóis eram usados. O francês presenciou cerimoniais de guerra e como os prisioneiros eram
mortos e comidos.
Logo que chegam, eles não somente são bem alimentados, mas ainda lhes concedem
mulheres (mas não marido às prisioneiras), não hesitando mesmo um possuidor de
prisioneiro em oferecer a este a própria filha ou irmã em casamento. Tratam bem o
prisioneiro e lhe satisfazem todas as necessidades[...] depois de ter bebido e cantado
105
com os outros durante seis ou sete horas, ele é agarrado por dois ou três dos
personagens mais importantes do grupo e, sem que oponha a menor resistência é
amarrado pela cintura com cordas de algodão ou outras feitas da casa de uma árvore
[...] deixa-lhe os braços livres e o levam assim pela aldeia, como troféu, durante
algum tempo. . (LÉRY, 2009, p. 133 - 193)
Posteriormente, os tupinambá esticam as cordas e com pedras e cacos de potes,
entregam ao prisioneiro para “vingar antes de morrer”. O prisioneiro começa a lançar os potes
e pedras contra todos. Após acabar as pedras e potes, o guerreiro designado para golpear, sai
de sua casa (pois estava distante da festa) e com uma espada de madeira emplumada mata o
prisioneiro.
Figura 35 – Os executores costumavam bater com habilidade na testa ou nuca, de maneira, que não era
necessário repetir o golpe.
Fonte: Léry. História de uma viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, 2009, p. 195.
106
Figura 36 – Combate dos tupinambás.
Fonte: Léry. História de uma viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, 2009, p. 195.
Os tupinambás não davam melhor alimentação para os doentes, a menos que estes
solicitassem. A vida seguia com suas rotinas, danças, cânticos, bebidas e diversões até mesmo
junto a vitima. Porém se o doente viesse a falecer, a cantoria dava espaço para súbito pranto
em alto som, sobretudo, as mulheres, com lamentações e gritos altos como “cães ou lobos”.
107
Figura 37 – Lamentações e choros tupinambá.
Fonte: Léry. História de uma viagem feita à Terra do Brasil, também chamada América, 2009, p. 241.
HANS STANDEN: As Viagens ao Brasil e o Canibalismo
O germânico Hans Standen de Homberg dirigiu-se a Lisboa, Portugal e engajouse num navio artilheiro chamado Penteado, que objetivava navegar ao Brasil como navio de
comércio, embora detivesse licença para capturas de navios piratas e pilhagens de navios
franceses, famosos por contrabandos e trocas com os “selvagens do Brasil.” (STANDEN,
108
2010, p. 31). Além de deixar prisioneiros no Brasil, como punição de degredo. O Penteado era
um navio equipado: “Com todo o armamento necessário para a guerra no mar. Éramos três
alemães a bordo, Hans, de Bruchhausen, Henrich Brandt, de Bremen, e eu.” (STANDEN,
2010, p. 32).
Nesta primeira viagem marítima de Standen, abasteceram em Madeira, ilha do rei
de Portugal, rica de viveres e vinho. Na noite de Todos os Santos, (01 de novembro de 1548)
o navio afastou da costa marroquina e “em meio a forte tempestade” rumou para o Brasil. Ao
chegarem próximo ao Equador, fazia muito calor e houve calmaria de ventos. Em 28 de
janeiro, 1549, alçaram o porto de Pernambuco, onde os portugueses estabeleceram um porto
chamado Olinda. Os prisioneiros foram entregues em Olinda e seguiram viagem por um novo
carregamento. Ainda em Pernambuco, houve os primeiros contatos com os selvagens que
quiseram destruir um estabelecimento dos portugueses:
Por culpa dos portugueses, eclodiu um tumpulto dos selvagens numa região, a dos
Caetés, que até então tinha sido tranquila, e o capital do país, nos implorou pela
graça de Deus que acorrêssemos em ajuda à localidade de Igaraçu, a cinco milhas de
Olinda e que os selvagens estavam prestes a tomar. Os habitantes de Olinda, frente à
qual estávamos ancorados, não podiam socorrera a outra localidade, pois temiam
eles mesmos sofrer um ataque dos selvagens. (STANDEN, 2010, p. 37)
Houve um sítio de um mês pelo selvagens contra Igaraçu.
Figura 38 – Igaraçu.
Fonte: Standen. Duas viagens ao Brasil, 2010, p. 39.
109
O navio que Hans Standen estava partiu de Pernambuco, atingiu a terra da
Paraíba, onde carregaram pau-brasil e queriam mantimentos. Entretanto, encontraram um
navio da França que carregava pau-brasil. O navio foi atacado e não foi tomado porque
conseguiu danificar o mastro com um tiro e escapou. Com o mastro danificado, retornaram a
Portugal, chegando a Lisboa aproximadamente em 08 de outubro de 1549, depois de uma
viagem de dezesseis meses.
A partida da segunda viagem de Standen foi a partir de Sevilha, Espanha por volta
de 1549. Não acharam o porto indicado e chegou ao porto de Sueragui, treze milhas da ilha de
São Vicente, pertencente ao rei de Portugal. Os nativos de Superagui eram os Tupiniquins,
que segundo Standen eram amigáveis.
Figura 39 – Frente ao porto Superagui.
Fonte: Standen. Duas viagens ao Brasil, 2010, p. 46.
Deixaram o porto e rumaram para “a ilha” de Santa Catarina. Aportaram mais de
dois dias na ilha de santa Catarina e fizeram fogo, cortaram uma palmeira e comeram palmito.
Adentraram a baía no outro dia e viram uma mensagem em espanhol “Se viene por ventura
aqui la armada de su Majestad, tiren um tiro, ahí habrán recado”.
110
Figura 40 – Porto em Santa Catarina.
Fonte: Standen. Duas viagens ao Brasil, 2010, p. 48.
As pessoas da vila informaram que estavam no porto que procuravam no porto de
Jurumirim, como os nativos diziam, ou simplesmente, no porto de Santa Catarina, como os
que o descobriram, batizaram. Nas palavras de Standen:
O cristão perguntou então donde vinhamos, e respondemos que pertencíamos à
esquadra do Rei da Espanha e que queríamos ir para o Rio da Prata. Havia outros
navios a caminho; esperávamos pela graça de Deus, que eles também chegassem
logo, pois queríamos nos encontrar naquele porto. Então ele disse que o ouvia com
prazer e agradecia da localidade de Assunção, na província do rio da Prata,
pertencente aos espanhóis, para o mar, a uma distancia de trezentas milhas.
(STANDEN, 2010, p. 50)
Foram chamados e tratados ao modo dos selvagens carijós, que trouxeram muita
caça e pescado. Para a desgraça de Standen e do grupo, o navio maior afundou no porto,
impedindo a realização da viagem planejada. Ficaram dois anos na selva e correndo perigo e
passando fome ou comendo ratos, lagartos. Parte do grupo decidiu procurar São Vicente,
111
Upaû-Nema na língua dos nativos e encontraram uma ilha após dois dias de viagem, a ilha
dos Alcatrazes (localizada no atual estado de São Paulo), encontrando ali muitas gaivotas
(chamadas alcatrazes), e encontravam muitas gaivotas, matando-as facilmente e colhendo
ovos para cozinhar no navio.
Figura 41 – Arquipélago dos Alcatrazes, São Paulo.
Fonte: Instituto de Química de São Carlos, Universidade de São Paulo, 2013.
Standen pontua informações sobre a ilha de São Vicente e sobre os dois
povoados: São Vicente e a outra Enguaguçu (atual Santos/SP). Segundo Standen “os
portugueses que vivem ali são amigos de uma tribo dos brasileiros, os Tupiniquins, cujo
domínio se estende por cerca de oitenta milhas para dentro da terra” (STANDEN, 2010, p.
56). Os Tupiniquins possuíam inimigos ao norte (os Carijós e os Tabajaras), os quais
causaram muitas perdas aos portugueses, que por isso devem tomar grande cuidado.
112
Figura 42 – Luta dos Tupinambás contra os Tupiniquins e portugueses na ilha de Santo Amaro.
Fonte: Standen. Duas viagens ao Brasil, 2010, p. 57.
Standen pontua informações sobre a ilha de São Vicente e sobre os dois
povoados: São Vicente e a outra Enguaguçu (atual Santos/SP). Segundo Standen “os
portugueses que vivem ali são amigos de uma tribo dos brasileiros, os Tupiniquins, cujo
domínio se estende por cerca de oitenta milhas para dentro da terra” (STANDEN, 2010, p.
56). Os Tupiniquins possuíam inimigos ao norte (os Carijós e os Tabajaras), os quais
causaram muitas perdas aos portugueses, que por isso devem tomar grande cuidado. Standen
viu as miscigenações, expressas nos mamelucos, descendentes dos tupiniquins e portugueses,
dentre muitos, “cinco irmãos. O pai deles era português (Diogo de Braga), e a mãe, uma
mulher brasileira [...] e dominavam ambas as línguas.” (STANDEN, 2010, p. 56). Eram estes
mamelucos, João de Braga, Diogo, Domingos, Francisco e André de Braga.
Os relatos de Standen são ricos, portanto, optou-se por apresentar apenas uma
parte simples, para expressar a importância dos seus relatos para o conhecimento dos povos
que habitavam o território antes e durante a colonização e que formaram também o atual
Brasil.
113
Andando pela floresta, Standen escutou gritos dos dois lados da trilha, típico dos
“selvagens”. Vieram homens na direção do alemão, cercando-o, dirigindo arcos e flechas
contra ele. O grito veio da alma de Standen: “Que Deus ajude minha alma!”. Bateram-no,
lançando-o ao chão e levaram-no em direção as suas canoas.
Figura 43 – Captura de Hans Standen.
Fonte: Standen. Duas viagens ao Brasil, 2010, p. 62.
Até as guerras tribais entre contra os Tupiniquins, Standen vivenciou. Um
selvagem carijó foi morto; por estar doente, jogaram a cabeça e as tripas no fogo e dividiram
o corpo entre as tribos. Os hábitos tupinambás eram de deferir um golpe e cortar os pedaços;
dança em torno dos seus prisioneiros.
114
Figura 44 – Captura de Hans Standen.
Fonte: Standen. Duas viagens ao Brasil, 2010, p. 111.
Standen presenciou dois cristãos sendo assados com bebidas. Posteriormente as
bebidas, esquentaram a carne novamente e a comeram. O alemão foi levado por um navio
francês que o livrou do cativeiro ou em suas palavras: “Assim, Deus todo-poderoso, Deus de
Abraão, Isaac e Jacó, ajudou a me livrar do poder desses horríveis e cruéis selvagens. Seja Ele
louvado, enaltecido e hornado na pessoa de Jesus Cristo, seu filho querido, nosso salvador.”
(STANDEN, 2010, p. 121).
Standen presenciou dois cristãos sendo assados com bebidas. Posteriormente as
bebidas, esquentaram a carne novamente e a comeram. O alemão foi levado por um navio
francês que o livrou do cativeiro ou em suas palavras: “Assim, Deus todo-poderoso, Deus de
Abraão, Isaac e Jacó, ajudou a me livrar do poder desses horríveis e cruéis selvagens. Seja Ele
louvado, enaltecido e hornado na pessoa de Jesus Cristo, seu filho querido, nosso salvador.”
(STANDEN, 2010, p. 121).
A CARTA DE CAMINHA: A primeira Peça!
A contribuição das cartas, relatos destes registros são de uma importância singular
para a história, para a arqueologia, antropologia, enfim, para os brasileiros. “Esta parte do
capítulo 1 é finalizada com alguns apontamentos da carta de Pero Vaz de Caminha,
115
tradicionalmente denominada de “carta do descobrimento” ou de “certidão de nascimento do
Brasil”. Entretanto, aqui é apresentada como “carta do achamento” das terras já povoada.
Para Castro (2012, p. 9) a carta de Caminha integra a literatura de testemunho,
juntamente com outros portugueses como Pero Lopes de Sousa, Gabriel Soares de Sousa,
Pero Magalhães Gandavo, Ambrósio Fernandes Brandão, Fernõ Cardim, Simão de
Vasconcelos, Antônio Vieira. Castro (20012) utilizou textos de Léry, Standen, Thevet e
Antonil para complementação das análises sobre a carta de Caminha. Nesta dissertação, o
caminho foi contrário: o de apresentar os registros conhecimentos em menor proporção pela
maioria dos brasileiros e por fim, concluindo o subtítulo com “a primeira e preciosa peça”
(CASTRO, 2012, p. 10).
Figura 45 – Trecho da carta de Caminha.
Fonte: Bittencourt, Lúcia. Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994, p. 40.
116
A carta é composta de 07 folhas, cada um destas de 04 páginas, com medida de
296 por 299 milímetros, típica para a época (CORTESÃO 1967, p. 133-34). A ortografia da
carta reproduz a escrita fonética típica dos textos lusitanos até o século XV e de acordo com
Castro (2012, p. 11) é notável pela racional coerência das transcrições e não apresenta a
costumeira indisciplina nas margens dos textos manuscritos do período. Caminha usa a
pontuação de maneira expressiva. Iniciada com uma típica epístola, seguida de um verdadeiro
diário atípico para o rei, Dom Manuel de Portugal.
Endereça ao rei detalhes da viagem de Pedro Álvares Cabral, desde Belém, Lisboa
no dia 09 de março, 1500, passando pelas ilhas Canárias no dia 14 pelo Cabo Verde no dia 22;
longos dias navegando em alto mar até o dia 21 de abril de 1500: “o achamento do Brasil”.
Dia 22 de abril, os primeiros contatos com a terra; no dia 23 a ancoragem
tranquila das 12 naves no Porto Seguro. Em 24 de abril, a mudança de ancoragem para a baía
de Cabrália, onde o próprio Caminha desembarca. O contato com a terra e a gente da Terra
em uma narração praticamente cotidiana até o 1º de maio, véspera da partida da carta em
direção ao reino por meio da nave Gaspar de Lemos, enquanto que Caminha e os
companheiros partem para as Índias com as 11 naves restantes.
Do contato com os indígenas, “a cena se coloca no início com a presença de sete
ou oito personagens, logo depois transformados em dezoito ou vinte, e, mais adiante com a
concreta e objetiva ação dos dois jovens índios levados a bordo pelo piloto Afonso Lopes”
(CASTRO, 2012, p. 14).
E na carta de Caminha que se conhece os quatros portugueses que ficam nas terras
achadas. Um deles é Afonso Ribeiro, e mais outro desconhecido, condenado à morte e mais
dois jovens:
Creio Senhor, que com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois
grumetes que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais
não retornaram mais. E cremos que ficarão aqui porque amanhã, aprazendo a Deus,
fazemos nossa partida daqui. (CAMINHA, 2012, p. 112)
O guia da vida religiosa da expedição é frei Henrique de Coimbra, que consagrada
“as descobertas” para a verdadeira fé cristã. Ele ministra a primeira missa no Brasil nas terras
do atual Brasil, diante dos olhos curiosos dos ameríndios, rezando pela glória lusitana, guardiã
da cristandade. Na expedição há oito sacerdotes e religiosos franciscanos. Cinco destes
117
morreriam sob o assalto dos mouros em Calicute em 12 de dezembro de 1500, no mesmo
assalto da morte de Caminha. A presença indígena é em maior parte, coral, isto é, com pouco
destaque para personagens individuais. Dentre as poucas personagens individuais:
Imediatamente, e era já de noite, Afonso Lopes levou os dois mancebos até o
Capitão, em cuja nau foram recebidos com muitos agrados e festa. A feição deles é
parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem-feitos.
Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar
suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Ambos os
dois traziam o lábio de baixo furado e metido nele um osso branco e realmente osso,
do comprimento de uma mão travessada, e da grossura de um fuso de algodão,
agudo na ponta com um furador [...] os cabelos deles são corredios. E andavam
tosquiados, de tosquia alta, mais que verdadeiramente de leve, de boa grandeza e,
todavia, raspado por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da covinha, de
fonte a fonte, na parte de trás, uma espécie de cabeleira feita de penas de ave,
amarela, do comprimento de um coto, muito basta e cerrada, que lhe cobria a nuca e
as orelhas. (CAMINHA, 2012, p. 90)
Caminha apresenta momentos do primeiro contato lusitano – ameríndios
expressos pelos tupiniquins:
Mostram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo: pegaram-no logo com
a mão e acenavam para a terra, como a dizer que ali os havia. Mostraram-lhes um
carneiro: não fizeram caso dele; uma galinha: quase tiveram medo dela – não lhe
queriam tocar, para logo, depois toma-la, com grande espanto nos olhos. Deram-lhe
de comer: pão e peixe cozido, confeitos, bolos, mel e figos passados. Não quiseram
comer quase nada de tudo aquilo. E se provavam alguma coisa, logo a cuspiam com
nojo. (CAMINHA, 2012, p. 91)
Muitos tupiniquins chegaram e juntaram junto aos dois mancebos. A ponto dos
portugueses tê-los perdido de vista. Caminha apresenta considerações sobre os modos dos
ameríndios e das mulheres:
Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade de sua própria cor, e
metade de tintura preta, como azuladas; e outros quartejados de escaques. Ali
andavam entre eles três ou quatro moças, muito novas e muito gentis, com cabelos
muito pretos e compridos, caídos pela espádua e suas vergonhas tão altas e tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não
tínhamos nenhuma vergonha. (CAMINHA, 2012, p. 94)
118
A carta de Caminha apresenta um indígena protagonista, que oferece uma pedra
verde ornamental ao capital Cabral na praia. É um texto estruturado numa trama de relações
humanas e com seu território. Recursos estilísticos variados compõem o texto, desde o uso da
ironia, até usos do diminuitivo e coloquialismo, resultando no todo, em uma direção realista
para um destinatário real.
Revisar os cronistas enquanto ampla utilização como fonte histórica e etnográfica
é uma necessidade urgente. As críticas raciais, sociais e etnocêntricas feitas até os dias atuais
não abalaram a autoridade e riqueza dos relatos produzidos pelos viajantes do século XVI
(LEITE, 1996). Os registros do viajante são complexos, eventualmente contraditórios,
necessitando ser decomposto nos seus elementos. Para Candido em (LEITE, 1996, p. 8),
cobra-se dos viajantes coisas que não eram possíveis em seus tempos, sendo que o essencial
“é a tentativa bem conduzida de usar o material para um intento duplo: estudar a formação do
observador e usar este estudo para montar uma visão da realidade” (LEITE, 1996, p. 8). A
tentativa de montar uma visão da realidade dos contatos foi posta a partir do estudo e
formação do observador do século XVI (e pesquisador do presente que pesquisa os cronistas);
quanto ao próximo capítulo, a mesma tentativa de compreensão e montagem de uma visão foi
posta, no caso: a partir dos naturalistas viajantes do século XIX, que teve Peter Lund como o
primeiro a pesquisar sistematicamente a pré-história e paleontologia do atual Brasil e
Américas.
1.4 – AMÉRICA LATINA & MATERIALIDADE: História de Uma Procura!
A América Latina do século XXI possui países democráticos que no passado
recente estiveram submetidos a regimes autoritários. Em sua agenda atual, há discussão
acerca do tratamento que dever ser dedicado às violações dos direitos humanos ocorridas no
período das décadas de 1960 – 1980. Os processos de verdade e memórias destes períodos
ditatoriais seguem trilhas distintas a depender de cada país, apesar do consenso de que esta
discussão deva estar presente nessa fase pós-ditatorial, também denominada de “justiça
transicional” ou “justiça de transição”.
Nesse contexto, a produção cientifica sobre a materialidade deste capítulo da
história latina é essencial para as questões contemporâneas. Talvez pareça estranho pensar em
119
arqueologia para este período recente, devido a uma visão da arqueologia ligada ao exótico e
ao passado distante. Apesar de ser parcialmente correta, esta visão sobre a arqueologia –
centralizada nos estudos das sociedades ditas pré-históricas, não apresenta a mudança que tem
ocorrido dentro da disciplina, tendo por certo sua atenção à cultura material:
Seu precípuo fazer está tradicionalmente assentado na cultura material. Produzida
pelos seres humanos, em todos os tempos e lugares passados, ela é presentificada
por objetos, artefatos, espaços e coisas transformadas e simbolizadas pela ação
humana. Portanto, fazer arqueologia implica trabalhar com passados distantes e com
passados contemporâneos. (FUNARI; ZARANKIN, 2008, p. 23).
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), importantes
transformações sociais ocorreram, dentre elas, os movimentos pelos direitos civis e uma
divulgação pelo respeito e heterogeneidade das sociedades, sendo que as ciências humanas e
sociais muito têm a contribuir, “numa atuação científica, uma proposta multidisciplinar que
combina análise e referências artefatuais, textuais históricas e orais, imbricadas em
contribuições” (FUNARI; ZARANKIN, 2008, p. 23) de vários campos, como história e
“Atuando a partir da cultura material, a arqueologia traz um rico potencial científico
elucidativo que vai somar ao já conhecido e divulgado sobre o passado recente da era das
ditaduras na América Latina.” (FUNARI; ZARANKIN, 2008, p. 24).
A partir dessas novas perspectivas, a arqueologia – compreendida como o estudo
das pessoas através da cultura material, possibilita gerar visões alternativas às da história
escrita ou contribuir para avanços e reescrita da história a partir da materialidade.
As ditaduras latino-americanas surgiram dentro de um contexto político
internacional: a Guerra Fria e a Revolução Cubana de 1959. A Guerra Fria foi um período
longo que vai de 1945 até 1991:
Os 45 anos que vão do lançamento das bombas atômicas até o fim da União
Soviética não forma um período homogêneo único na história do mundo. [...]
dividem-se em duas metades, tendo como divisor de águas o início da década de
1970. Apesar disso, a história desse período foi reunida sob um padrão único pela
situação internacional peculiar que o dominou até a queda da URSS: o constante
confronto das duas superpotências que emergiram da Segunda Guerra Mundial na
chamada ‘Guerra Fria’. (HOBSBAWM, 1995, p. 223).
120
A Guerra Fria entre EUA e URSS que dominou o cenário internacional possuiu a
peculiaridade de em termos objetivos, não existir perigo iminente de guerra mundial, mesmo
com a retórica apocalíptica de ambos os lados, na prática, havia uma “paz fria”.
A Segunda Guerra Mundial mal terminara quando a humanidade mergulhou no que
se pode encarar, razoavelmente, como uma Terceira Guerra Mundial, embora uma
guerra muito peculiar. Pois, como observou o grande filósofo Thomas Hobbes, ‘a
guerra consiste não só na batalha, ou no ato de lutar, mas num período de tempo em
que a vontade de disputar pela batalha é suficientemente conhecida’.
(HOBSBAWM, 1995, p. 224).
As superpotências dividiram o mundo de forma desigual, mas não contestada. A
URSS controlava uma parte do globo ou exercia sobre ela influência predominante e os EUA
controlavam ou predominavam sobre o resto do mundo capitalista, além do hemisfério norte e
oceanos, como que herdeiro da velha hegemonia imperial das antigas potências europeias. Em
troca, não intervinha na zona de hegemonia soviética. A América Latina devido à
instabilidade política generalizada sentiu a Guerra Fria de perto através de golpes militares,
guerrilhas e intervenções.
A política da superpotência Estados Unidos para com o subcontinente foi marcada
por doutrinas. A Doutrina Monroe foi a primeira política; conhecida amplamente pela frase:
“América para os Americanos”, foi desenvolvida pelo presidente James Monroe e passou a
vigorar em 1823 no contexto de revoluções anticoloniais no continente. A doutrina Monroe
foi substituída pelo presidente Franklin Roosevelt, quando a Política da Boa Vizinhança
passou a ser adotada – baseada em uma mudança de perspectiva em relação à política anterior
declaradamente militarista e intervencionista.
No início da Guerra Fria, uma nova política doutrinária, a Doutrina de Segurança
Nacional – objetivando manter a influência estadunidense e conter um possível avanço
vermelho sobre o subcontinente, sendo expressa por ações do governo dos EUA em apoiar a
implantação de regimes ditatoriais na América Latina: as ditaduras militares nos anos 1960 –
1980. (HOBSBAWM, 1995). A arqueologia foi fundamental para a história do passado
recente da América Latina ao encontrar os restos mortais de Ernesto Che Guevara e seus
guerrilheiros na Bolívia em 1997.
121
1.4.1 – DA REVOLUÇÃO CUBANA À BOLÍVIA: Os achados dos Restos de Che
Guevara
A Revolução Cubana era “tudo”: romance, heroísmo nas montanhas – um povo
exultante, num paraíso tropical pulsando com os ritmos de rumba. Além de ser saudada por
toda a esquerda revolucionária do subcontinente e do mundo. (HOBSBAWM, 1995, p. 427).
A Revolução tomou a ilha caribenha em 1º de janeiro de 1959, por Fidel Castro (1927 - ),
figura não consolidada na política latina; mas um jovem forte e carismático de família
proprietária de terras, de centralidade política, decidido pela causa de liberdade contra o
governo do general Fulgêncio Batista (com um golpe tomou o poder em 1933).
Inicialmente parte do bando de pistoleiros da política estudantil da Universidade
de Havana, Fidel decidiu o caminho da rebelião contra o governo pela via do método ativista:
um ataque a um quartel do exército em 1953, cadeia e exílio e invasão de Cuba por uma força
guerrilheira, que obteve êxito apesar de mal preparada. “Che Guevara, o médico argentino
altamente talentoso como líder guerrilheiro, partiu para conquistar o resto de Cuba com 148
homens, que se elevaram a trezentos quando já praticamente o conseguira” (HOBSBAWM,
1995, 426). A revolução foi sentida como “uma luz-de-mel coletiva”. Posteriormente,
Guevara lutaria no Congo e Cuba enviaria tropas para apoiar os regimes revolucionários do
Chifre da África e de Angola em 1970.
O exemplo de Castro inspirou intelectuais militantes em toda a América Latina e
Cuba passou a estimular a insurreição continental, exortada por Che Guevara, “o defensor da
revolução latino-americana e da criação de ‘dois, três, muitos Vietnãs’.” (HOBSBAWM,
1995, p. 428). Sob a bandeira de Castro, Trostski ou Mao Tsé-tung houve grupos de jovens
intelectuais, vindos inicialmente das classes médias em lutas de guerrilha (até camponesas
como as FARC na Colômbia).
Na Argentina, no Brasil, no Uruguai e o “próprio Che Guevara na Bolívia”. Em
1964, a tomada do poder pelos militares ocorreu no Brasil contra os herdeiros de Getúlio
Vargas (183-1954) e na Bolívia contra uma provável revolução de influência cubana, “onde o
próprio Che Guevara morreu numa improvisada tentativa de insurreição guerrilheira”
(HOBSBAWM, 1995, p. 430). Imagens de Guevara passaram a ser carregadas como ícones
por manifestantes estudantis em Paris e Tóquio. (HOBSBAWM, 1995, p. 428).
122
Após 30 anos da morte de Guevara, a partir dos métodos arqueológicos,
encontraram-se os restos mortais deste personagem importante do século XX e da história.
Para Suárez (2008, p. 29) a arqueologia se constituiu no caso de Guevara, como instrumento
metodológico fundamental, pois ao permitir a participação multidisciplinar, sustentou a busca
dos restos dos guerrilheiros assassinados durante a contenda boliviana de 1967. O ano de
1997 tornou-se internacionalmente marcante no significado da figura do guerrilheiro latino
americano, seus companheiros de guerrilha e por ter tornado símbolo de uma luta de gerações
que transcendeu os limites continentais na figura captada pela fotografia imortalizada de
Alberto Korda.
Figura 46: Fotografia de Ernesto Guevara pelo cubano Alberto Korda em 05 de março, 1960 numa
cerimônia que Guevara participara à memória das vítimas de uma explosão de barco que matou
136 pessoas. Fonte: Google.com.br.
123
Suárez descreve como se constituiu a busca arqueológica dos restos mortais e,
portanto, a história do achado dos restos de Che Guevara, determinante para revisões e
rescrita para a historiografia. O antropólogo e arqueólogo Suárez debruçou sobre o modelo
utilizado, os métodos e instrumentos para aplicabilidade em contextos de sepultamentos
semelhantes ou até distintos, entretanto, buscou-se a partir de seu interesse, extrair uma
história sobre a procura dos achados do guerrilheiro.
A região andina até a chegada de Guevara havia sido usada como zona de
passagem de focos guerrilheiros. No fim de 1966, Ernesto Che Guevara, uma das célebres
figuras da Revolução Cubana, teórico da Guerra de Guerrilhas, conhecedor da realidade
política e social latina, escolheu a Bolívia devido a circunstâncias e conjunturas para iniciar
uma luta que alcançaria toda a América, entrou no país com a falsa identidade de Adolfo
Mena González em 03 de novembro de 1966, um economista uruguaio.
Figura 47: Guevara como a identidade falsa de economista uruguaio.
Fonte: Google.com.br.
A zona serrana de Ñancahuazú, quase 300 km da cidade de Santa Cruz de la
Sierra, Bolívia é de vegetação pouco densa, clima úmido e irregular, tornou-se o cenário onde
os guerrilheiros começaram suas ações. Este cenário natural das zonas rurais seria o
treinamento e reconhecimento da zona de operações nos primeiros meses, após esta etapa e
124
discretas, mas persistentes vitórias resultariam no enfraquecimento do inimigo. Entretanto, em
1967, o grupo de guerrilheiros comandados por Guevara foi encurralado na Quebrada del
Yuro.
Figura 48: Jornal Diário do Oriente, imprensa Boliviana de 30 de março de 1967. Santa Cruz,
Bolívia.
Fonte: Diáriosobreche, 2014.
Na madrugada do dia 8 de outubro de 1967, ao receber a denúncia de que
guerrilheiros andavam pela região da Quebrada del Yuro, o capitão da 8ª divisão do Exército
boliviano, Gary Prado, não pensou duas vezes: arregimentou rapidamente 50 de seus
melhores homens e os conduziu até o topo do cânion no qual, de fato, encontravam-se Che
Guevara e parte de seu grupo armado.
125
Figura 49: O capitão Prado em 1967 durante a campanha que captura Guevara na selva boliviana.
Fonte: Acervo Pessoal de Prado/ Uol.com.br, 2014.
De acordo com o capitão Brado, após intensa troca de tiros, Guevara foi preso e
conduzido ao vilarejo de La Higuera, onde foi executado a mando do presidente boliviano,
René Barrientos. O capitão boliviano15 relembra a reação de Che ao se capturado:
Eu tenho duas imagens do Che neste momento. A primeira é a de um homem
acabado, que se rendia. Muita gente me pergunta: o que você sentiu quando se viu
na frente do Che? E eu digo: me deu pena. Era um homem em péssimo estado físico,
com a roupa suja, e seu estado de ânimo não era melhor. Ele estava totalmente
deprimido. Nas horas em que combateu nossos soldados, Guevara viu morrer vários
15
Entrevista do capitão Gary Prado, concedida ao portal UOL em 09/01/2014.
http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2014/01/09/fiz-coisas-mais-importantes-na-vida-dizmilitar-que-capturou-che-guevara.htm. Acesso em: 23/01/2014
126
de seus companheiros e, quando já estava sob nosso controle, me disse: "isso está
acabado". Porém, curiosamente, ao perceber que o tratávamos bem, seu estado de
ânimo melhorou. Foi nesse momento em que ele começou a se preocupar com seu
futuro e a perguntar o que iríamos fazer com ele. Nesse momento não havia
nenhuma instrução do que não deveríamos fazer com os prisioneiros e minha
resposta foi simples: você será julgado em Santa Cruz de la Sierra, que é a sede do
comando da divisão que o capturou. Ele provavelmente imaginou que seu
julgamento se transformaria em uma causa célebre. São essas as duas imagens que
tenho dele naqueles instantes: o homem deprimido logo após a captura e uma pessoa
mais otimista em La Higuera.
A última vez que o capitão boliviano teria visto Che Guevara vivo teria sido em
09 de outubro de 1967, a fotografia abaixo retrata momentos antes da morte do guerrilheiro
latino.
Foi manhã do dia 9 de outubro, quando chegou a La Higuera de helicóptero o
comandante da minha divisão, o coronel Joaquín Zenteno. Eu lhe entreguei meus
dois prisioneiros [Che Chevara e o boliviano Simeón "Willy" Sanabria] e os
materiais capturados na operação. Zenteno me pediu para levá-lo até a zona em que
havíamos prendido os guerrilheiros. Após observar a área, ele me disse que tinha
que falar com La Paz e voltou a La Higuera. Eu fiquei perto da Quebrada del Yuro,
pois tinha que fazer uma varredura para acabar com os guerrilheiros que ainda
restavam na zona. Matamos mais dois guerrilheiros em um combate e então
regressamos a La Higuera. Quando chegamos ao vilarejo, um major veio até mim:
"o Che foi executado. Ordens de La Paz". Durante todo o dia, havia um helicóptero
transportando corpos de soldados e guerrilheiros entre La Higuera e Vallegrande, e a
ordem do coronel Zenteno era que o corpo de Che fosse levado na última viagem. O
cadáver dele já estava sendo amarrado aos patins do helicóptero. Eu me aproximei
do corpo e amarrei meu lenço em volta de sua mandíbula, para que seu rosto não
deformasse. Ele ficou parecendo com uma pessoa com dor de dente. Essa é a última
imagem que eu tenho dele, o momento em que ele partia no helicóptero.
127
Figura 50: Che Guevara sob custódia no vilarejo de La Higuera, momentos antes de ser executado.
Fonte: Acervo Pessoal de Prado/ Uol.com.br, 2014.
Após a morte de Che Guevara, o governo boliviano desejou informar que o
guerrilheiro teria sido morto em troca de tiros, mas diversos camponeses o viram saindo vivo
e caminhando da Quebrada de Yuro. Após 30 anos, as páginas brancas da historiografia
podem ser preenchidas com o apoio de uma arqueologia da procura, dos restos mortais de
Guevara e seus combatentes.
Em 1995, o jornalista estadunidense Joh Lee Anderson, coletava dados para
escrever a biografia de Che, objetivando o acesso a documentos inéditos, como o diário
pessoal do guerrilheiro. O jornalista conseguiu entrevistados que aceitaram falar pela primeira
vez das suas experiências com um dos líderes da Revolução Cubana. Entretanto, o jornalista
não esperava que aquela entrevista específica acabasse com um mistério de três décadas: o
desaparecimento dos corpos do grupo guerrilheiro de Guevara.
128
Segundo Anderson em entrevista à UFRJ (Universidade Federal do Rio de
Janeiro), o general boliviano aposentado Mario Vargas Salinas o recebeu em sua casa, uma
espécie de fazenda; de personalidade afável e aberta ao diálogo. De repente, “Com o passar da
entrevista, me senti confiante para fazer perguntas sobre Che”, até que no final da entrevista,
perguntas surgiram: “Onde está o corpo de Che? O que aconteceu com ele?”. Embora
desconfiado, o general revelou o paradeiro do líder guerrilheiro16.
A matéria foi publicada no The New York Times e reproduzida por meios de
comunicação do mundo todo. . Consciente de que havia violado um segredo militar, Mario
Vargas escondeu-se e negou tudo. Contudo, a entrevista havia sido gravada pelo repórter, o
que impossibilitou qualquer forma de defesa por parte do militar. O então presidente da
Bolívia, Gonzalo Sánchez de Lozada, criou a comissão para procurar os restos de Che
Guevara, solicitada pela ASOFAMD (Associação de Desaparecidos da Bolívia).
Mario Vargas afirmou que Che Guevara havia sido enterrado em uma vala
comum, na área da pista velha do aeroporto de Vallegrande, o que era contrário à versão de
que seus restos haviam sido incinerados. Apesar de contrária, sua fala foi determinante.
Em dezembro de 1995 iniciou as escavações na pista do velho aeroporto:
começaram numa área da zona sul do aeroporto. A equipe Argentina de Antropologia
Forense, representada pelo antropólogo Alejandro Incháurregui, Patrícia Bernardi e Carlos
Somigliana foi solicitada. Apoiada por soldados para início das obras!
A primeira fase foi feita com a operação de um geo-radar, operado pelos
argentinos, mas sem resultados positivos quanto aos restos mortais. Simultaneamente, a partir
de informação obtida de uma testemunha, foram localizados os restos mortais de 03
guerrilheiros na região da Cañada de Arroyo, uns 5 km do aeroporto de Vallegrande.
(SUÁREZ, 2008, p. 35). O Dr. Jorge González, representante dos familiares de guerrilheiros
cubanos assassinados na contenda boliviana se juntou à investigação.
A ausência de financiamento forçou a equipe argentina a abandonar o trabalho, e
uma nova equipe – formada por cubanos, continuou a busca. Segundo Suárez (2008, p. 35), a
ausência dos dados oficiais, somada com os dados oficiais declarando situação oposta quanto
aos restos mortais, prejudicou a investigação histórica. Mais de 15 instituições científicas
16
Entrevista com o jornalista John Lee Anderson à ADURF, durante sua visita ao Rio de Janeiro, Brasil e sua
oficina de reportagem na cidade. A entrevista está disponível em: A Seção Sindical dos Docentes da UFRJ.
http://www.adufrj.org.br/index.php/destaque3/1068-bi%C3%B3grafo-de-che-guevara-ministrou-oficina-dereportagem-no-rio.html. Acesso em: 20/01/2014
129
estiveram envolvidas na fase de criação deste comitê e uma procura por uma metodologia de
trabalho multidisciplinar.
A informação do general Salinas exigiu uma pesquisa além do campo da
arqueologia e antropologia forense, mas uma pesquisa do campo de História, exigindo uma
minuciosa investigação histórica que ampliou a informação dos lugares e sepultamentos dos
grupos guerrilheiros nos arredores de Vallegrande. “Este foi um processo chave para o êxito
da busca.” (SUÁREZ, 2008, p. 37).
A metodologia multidisciplinar estabelecida foi em cinco etapas:
 Investigação histórica;
 Estudos básicos;
 Prospecção;
 Escavação arqueológica;
 Identificação dos restos humanos.
A fase inicial da pesquisa dependia essencialmente da investigação da História e
durou até abril de 1996. Houve o cruzamento de dados. No caso específico da cova de
Guevara, existiam as seguintes informações: de que a cova teria sido escavada com um trator
ou máquina que moveu volume expressivo de terra. A documentação coletada revelou o
número de pessoas e a identificação destas, que foram mortas junto com Che, de maneira que
haveria de ser confirmar caso acontecesse o achado. Houve plena coincidência entre os
achados e o resultado da investigação histórica.
Os trabalhos de prospecção começaram em janeiro de 1997, numa área de vinte
hectares do aeroporto, devido os resultados da investigação histórica, ficaram determinadas 12
zonas de 25 por 30 metros cada uma, totalizando 9 mil m².
A partir desta fase foi necessário adquirir informações e conhecimento do terreno
para sugestões para as prospecções e escavações. Resultando estudos mais detalhados dos
solos de Vallegrande, gerando dados dos últimos 10 mil anos de sua existência, através de
testes como fotos aéreas, técnicas geofísicas e geoquímicas. As fotografias foram desde
películas normais até o infravermelho, para possíveis contrates no terreno. (SUÁREZ, 2008,
p. 38).
130
Essas fotos indicaram modificações resultantes de movimentação da terra, tais como
umidade e temperatura diferenciadas e/ou mudanças de cor que poderiam ser
detectadas mediantes tais procedimentos. Das técnicas geofísicas disponíveis foram
aplicadas as de capametria, de resistividade elétrica, de condutividade elétrica,
sísmica e geo-radar. (SUÁREZ 2008, p. 38).
Dentre os testes geoquímicos, a análise de fosfatos é uma das técnicas de estudo
de solo comumente usada e comprovada na arqueologia. Utilizado basicamente à agricultura e
ramos afins, tem permitido coletar informações valiosas. Dado o fosfato ser proveniente do
tecido ósseo, fezes, restos de carne e pele, resulta óbvio sua utilidade como método de
prospecção na detecção da presença de restos cadavéricos. O fósforo em forma de fosfato
possui a particularidade de ter estabilidade química, ou seja, permanece muito tempo no local.
Embora nem toda acumulação orgânica possa corresponder os restos humanos, é possível
determinar a origem da “contaminação.” (SUÁREZ, 2008, p. 40).
Em 28 de junho de 1997, às 09 horas e 30 minutos, sob uma chuva permanente e
baixa temperatura, resultou no achado que se comprovaria como o enterro coletivo do grupo
do comandante Ernesto Che Guevara. “A cova se localizava a aproximadamente uns 50
metros de distância do muro posterior do velho cemitério do povoado, sobre a antiga pista do
aeroporto de Vallegrande.” (SUÁREZ, 2008, p. 41).
A pesquisa histórica foi fundamental “para a localização da cova principal, mas
também de outros sepultamentos efetuados nesta cidade, em áreas limítrofes a ela, e mesmo
em outras mais distantes, levando-se em conta que os mortos iam sendo enterrados à medida
que os guerrilheiros recuam.” (SUÁREZ, 2008, p. 42).
As condições sociopolíticas na Bolívia e no cenário internacional foram
determinantes para o avanço das pesquisas. Mudança de governo na Bolívia, em maio de
1997, Gustavo Villoldo, chefe na época da equipe da CIA, enviou carta a Aleyda Guevara,
filha de Che, se oferecendo para colaborar por se considerar um dos protagonistas daquela
história e devido à falta de eficiência que legava aos cubanos. O consenso entre Cuba e
Bolívia foi determinante para o êxito da procura, apesar do ultimato boliviano, de que
recorreria a Villoldo caso não encontrasse.
A posição dos corpos encontrados sugeria que haviam sido despejados da
caçamba de um caminhão basculante, estacionado a ré no setor que correspondia à borda
norte da escavação. Os restos esqueléticos de quatro indivíduos, numerados de 04 a 07,
encontravam-se uns sobre os outros. Posteriormente, o estudo antropológico pelo qual se
determina a tetralogia identificava (idade, sexo, raça e estatura) trouxe importantes dados no
131
processo. A arqueologia articulando de forma interdisciplinar desempenhou um papel
importante no estudo de atividades humanas, neste caso, os achados dos guerrilheiros
liderados por Che Guevara.
132
CAPÍTULO 2
AS MINAS GERAIS DE PETER LUND: o dinamarquês que descobriu o Brasil!
Por que estou fazendo isso? Por que sofrer? Por que sede, calor, poeira, fome,
desconforto, perigo, risco de vida? Pelo salário ou porque tenho prazer no que faço?
Pelo salário ou porque quero fazer uma carreira científica, técnica, vencer em minha
profissão, quero ser a melhor? Quero fazer o que nunca ninguém fez? Ou será que
quero gravar meu nome, minha saga na pedra, como aqueles homens pré-históricos
que deixaram sua história gravada em todo o nosso Parque [Parque Serra da
Capivara, Piauí]? Quais respostas vocês escolhem? Boa Sorte!
Niède Guidon17
“Gravar meu nome, minha saga na pedra, como aqueles homens pré-históricos
que deixaram sua história gravada” é uma afirmação de uma das principais arqueólogas do
país na atualidade, mas reflete como convite a remeter ao tempo do Brasil do século XIX, que
como toda a América do Sul era uma das partes do mundo pouco conhecida, despertando
interesses de estudiosos, os naturalistas viajantes e instituições de pesquisas de vários países
europeus. Destaque para a passagem de Charles Darwin na década de 1830 nas ilhas
Galápagos, Argentina e Brasil.
“Graças a D. João VI, os estrangeiros descobriram o Brasil, ainda que com três
séculos de atrasado.” (GOMES, 2007, p. 112), de acordo com a catalogação de MORAES
(1949), 266 viajantes europeus foram responsáveis por escritos sobre o povo, a geografia,
riquezas minerais e política do Brasil: “No Rio me deparei com um mundo inteiramente novo,
em que me atirei para reproduzir o que via, dia e noite, até cair exausto” estas palavras são de
Thomas Ender, pintor austríaco que veio junto com a arquiduquesa austríaca Dona
Leopoldina. O estudo dos anos 1949 demonstrou que parte deste número de estudiosos,
chegou durante as primeiras décadas após a abertura dos portos em Salvador, Bahia e Rio de
Janeiro por Dom João às nações amigas. Os registros em livros, cartas e relatórios do meio
científico ou de caráter oficial, ou seja, à serviço de Estados europeus contribuem para tornar
este período, um dos mais documentados da história do país. O livro-reportagem 1808
contribui para a informação de forma acessível ao público leigo, destacando a contribuição
dos naturalistas viajantes.
Os viajantes que passaram pelo Brasil no tempo da corte, podem ser agrupados
em no mínimo, cinco categorias:
17
GUIDON, Niède. Epígrafe. In: BASTOS, Solange. O Paraíso é no Piauí, a descoberta da arqueóloga Niède
Guidon. São Paulo: família Bastos editora, 2010.
133
NATURALISTAS VIAJANTES EUROPEUS NO BRASIL POR CATEGORIAS
SÉCULO XIX
Categorias
I – Comerciantes e Negociantes
Observações
Os comerciantes, mineradores e pessoas ligadas ao negócio
como Luccock e John Mawe.
II – Nobres e Diplomatas
Os nobres, diplomatas, funcionários de governos e
militares, como o cônsul inglês Henry Chamberlain;
III – Os Cientistas
Os cientistas como os botânicos Auguste Saint-Hilaire, Von
Martius e Spix e Peter W. Lund.
IV – Os Pintores
Os pintores e paisagistas, como Jean Baptiste Debret e o
austríaco Johann Moritz Rugendas.
V – Aventureiros
Aventureiros e curiosos ou que chegaram por acaso: Maria
Graham, inglesa que chegou acompanhar a vida da
imperatriz Leopoldina.
Quadro-tabela 01 – Os Naturalistas europeus no Brasil por categorias.
Fonte: Elaborado por Thiago Pereira, 2013.
Em 28 de setembro de 1825, um dinamarquês partia para o Brasil, chegando ao
Rio de Janeiro em 08 de dezembro. Este dinamarquês, Peter Wilhelm Lund, colocaria Minas
Gerais no “mapa” dos estudos pré-históricos e paleontológicos – discussões da academia
europeia e desta “representação cartográfica”, o estado permanece e promete contribuições
por tudo o que até agora, fora encontrado. Lund juntamente com Peter Claussen, foram os
únicos naturalistas dinamarqueses mencionados por Darwin em Origem das espécies, com
grande respeito.
O propósito específico deste capítulo é apresentar parte pequena do acumulado
conhecimento sobre o naturalista que é o pai da arqueologia e da paleontologia do Brasil, mas
também, um intelectual que interagia com a sociedade que viveu, pesquisou e morreu: Lagoa
Santa. Foi médico da população da vila com consultas gratuitas; ministrava aulas, fundou e
financiou a banda da cidade, compositor e pianista, falava no mínimo, cinco idiomas.
Curiosamente, na segunda metade do século XX, escavações dos franceses em áreas
estudadas por Lund, encontrariam crânios, que possuíam dentre eles, o mais antigo das
Américas até o presente.
Lund é percebido como exemplo para as pesquisas contemporâneas, pelos seus
métodos e registros sistemáticos, tanto pelos seus eventuais enganos quanto pelos seus
resultados e achados, o que nas palavras do paleontólogo Cástor Cartelle, “parece-me, hoje, o
notável cientista seja o maior elo entre o Brasil e a Dinamarca. Patrimônio comum”
(CARTELLE, 2011, p. 9).
134
Neste capítulo analisaram-se as perspectivas históricas por fontes diversas como
as pinturas, fotografias, litografias e desenhos de Warming, Brandt, Rugendas e Ferdinand
Denis, que perpassam o contemplativo para comporem a interpretação analítica do leitor;
artigos sobre a vida e estudos de Lund, trabalhos como dissertações e teses da literatura
científica a respeito do mundo acadêmico de sua época, com destaque para o livro P.W. Lund
e as Grutas com Ossos em Lagoa Santa dos historiadores dinamarqueses HOLTEN;
STERLL, traduzido e publicado no Brasil em 2011, que trouxe colocações históricas
respaldadas por fontes inéditas, interpretadas por seus autores que conhecem bem o trabalho
de Lund, (tanto na Dinamarca quanto no Brasil), por terem participado de escavações atuais
em Lagoa Santa – MG; pesquisas no Museu Zoológico da Dinamarca e Biblioteca Real
Dinamarquesa, quanto na trajetória específica de Brigitte Holten, que morou nas
proximidades da cidade que seu compatriota, chegou ao século XIX.
Além de séries como a Bem Cultural – Pré-história em Minas Gerais, (2012) da
Rede Minas (afiliada TV Cultura), que em seus cinco episódios descreve a trajetória dos
estudos pré-históricos do estado até a atualidade.
“As grutas com ossos, a Pré-história, Lagoa Santa, Maquiné, O Sumidouro”, são
palavras que expressam a contribuição de Peter Lund, reconhecido como pai da Arqueologia,
Paleontologia e da Espeleologia do Brasil, mas vai além dos limites nacionais, já que “foi o
primeiro a estudar sistemática e continuadamente essas disciplinas no Novo Mundo, obtendo
resultados e registros absolutamente originais”, (CARTELLE, 2011, p. 10), portanto, é o pai
destas disciplinas em toda a América. Pesquisar os trabalhos de Lund é estar inserido nas
discussões mais atuais sobre a pré-história americana e brasileira: na medida em que amplia
possibilidades entre trabalhos de historiadores, arqueólogos e paleontólogos tanto do Brasil
quanto da Dianamarca, considerando que ainda há muito que pesquisar e historiar, publicar e
discutir estas publicações.
Neste capítulo, tão importante quanto o primeiro propósito é percebido a partir da
obra mencionada dos historiadores dinamarqueses Birgitte Holten e Michael Sterll, o livro é
como que ponto de partida, para que historiadores brasileiros contribuam para os estudos da
Pré-história, da Arqueologia, Paleontologia e história da ciência, na medida em que, além de
naturalista, necessita-se de uma reflexão sobre a sensação de perda que existe acerca do
trabalho deste dinamarquês “brasileiro”, no sentido de que, após interromper seus estudos,
Lund enviou para a Dinamarca seus resultados, registros e fósseis. Aqui há uma possibilidade
enorme para os historiadores brasileiros, dentre elas, a de analisar e pesquisar as coleções de
história natural, talvez mais desafiador para a maioria dos historiadores, e o material escrito,
135
resultados, correspondências e até de um conjunto de jornais brasileiros do século XIX que
serviram para proteger os fósseis da coleção, expressões de seus estudos que se encontram no
museu e biblioteca botânica, partes do Museu de História natural da Dinamarca.
2.1 – NASCE PETER WIILHELM LUND: o menino cresceu, agora está pronto para o
grande salto!
Em 1801, em Copenhagen, capital da Dinamarca, nascia Peter Wilhelm Lund,
filho de um próspero comerciante de tecidos oriundo de família camponesa ramificada da
Jutlândia, região peninsular e norte do país. Henrik Lund estabeleceu-se na rua nova, perto da
praça velha (Gammeltorv), num período de comércio florescente para a Dinamarca, cujas
conjunturas favoreciam a frota mercante do país que optou pela neutralidade nas guerras
europeias, lideradas pela França de Napoleão Bonaparte que declarou o Bloqueio continental
contra a Inglaterra. Em 1807, a Inglaterra bombardearia Copenhagen por sua neutralidade; os
Lund iriam adquirir a casa de campo Roselund na Jagtvej (estrada da caça), por causa da
frágil saúde dos filhos (Troels Frederik e Peter Wilhelm eram bem adoentados), a casa
parcialmente em ruínas pelo bombardeio.
136
Figura 51 – A casa de campo Rosenlund, lugar de vivências e infâncias dos Lund.
Fonte: Holten; Sterll, 2011, p. 36.
A vida em família era modesta, sólida e respeitada pela energia da mãe e brandura
e interesse do pai pela natureza – expressa na leitura da obra de história natural do conde de
Buffon. Essa fora uma das principais heranças para os filhos; destaque para Peter Wilhelm, na
escolha da profissão, mas os demais também foram marcados, como descreve o historiador
Troels Frederik Troels-Lund, o filho mais novo de Henrik Ferdinand e sobrinho de Lund:
[...] Minha primeira forte impressão de profundo e sincero amor pela natureza
manifesta-se a partir delas. Quando eu era pequeno, meu pai contava, às vezes, a nós
filhos, sobre seu irmão mais querido, que agora vivia no Brasil, com quem, em sua
juventude, tinha passado felizes dias em Frederiksdal. As lembranças e sensações
podiam, ainda, enchê-lo, de modo que ele quase se esquecia de nós e descrevia,
meio que para si mesmo, as impressões. Eu fiquei, cedo, sensível ao clamor da
natureza aqui [...] acho que eu mesmo vivenciei aqueles dias; guardo-os, em todo
caso, como uma parte de minha memória (TROELS-LUND apud HOLTEN;
STERLL, 2011, p. 39)
137
Figura 52 – Cópias feitas por Peter Lund das ilustrações do livro do conde de Buffon.
Fonte: Família Lund / Holten; Sterll, 2011, p. 39.
Aos 19 anos, Peter Lund perdeu seu pai, Henrik Lund que morreu (1820),
deixando significativa soma de valores para os filhos do seu segundo casamento18. Os filhos
mais velhos, Johan Christian e Carl Sigvardt continuaram os negócios do pai, mas após a
morte de Carl Sigvardt, Johan desistiu do comércio para cuidar de suas propriedades e
questões de política no conselho municipal da capital, que existia desde 1661. Ferdinand
seguiu carreira no Banco Nacional até o posto de chefe do departamento jurídico e
PeterWilhelm tomou o caminho da universidade, dois anos antes do falecimento do pai
ingressou na Universidade de Copenhagen.
18
Henrik Lund casou-se duas vezes. Pouco se sabe sobre os filhos dos primeiro casamento, que eram cinco e
morreram jovens e sem descendentes. O que indica que ficaram a margem da partilha da fortuna, designada aos
filhos do segundo casamento com Marina Magdalena Lohbeck, que eram cinco: Troels Frederik, Johan
Christian, Carl Sigvardt, Peter Wilhelm e Henrik Ferdinand. Informações a partir de HOLTEN;STERLL, 2010.
p. 37.
138
Figura 53 – A família Lund e o interesse pela natureza, expresso pelas plantas e por animais nas mãos das
crianças. Da esquerda para a direita: Troels Frederik, Carl Sigvardt, Johan Christian, Peter Wilhelm e Henrik
Ferdinand.
Fonte: Família Lund / Holten; Sterll, 2011, p. 38.
Lund ao cursar medicina, se sentia familiar por ter como professor de história
natural, o médico da família, o professor Johan Daniel Herhold do hospital de Frederik, dando
significativas noções de anatomia aos estudantes interessados. Após dois anos de estudos,
Peter Wilhelm trocou o hospital pelo jardim botânico, dirigido pelos professores Jens Wilkens
Hornemann e Joakim Frederik Schouw. No museu real de história natural na Stormgade,
Lund conheceu o professor que mais influenciou seu tempo de estudo, o norueguês Hohannes
Christoffer Reinhardt (o Reinhardt mais velho, porque o seu filho seria correspondente de
Lund anos depois). O norueguês que seria pastor protestante; trocou a carreira religiosa pelo
apoio de Martin Vahl para estudar com um grande nome da época, o francês Georges Cuvier.
Mais tarde, Lund e o seu colega e amigo, Daniel Frederik Eschricht, também visitariam
Cuvier.
139
De acordo com Holten; Sterll (2011, p. 40) não havia lugar para mulheres na
academia e as ciências naturais eram vias auxiliares para estudantes de medicina e de teologia.
Uma das condições para os estudantes que se destinavam aos ramos auxiliares era de não
poder prestar exame de conclusão de curso em suas especialidades, porque era possível
apenas em Teologia, Direito ou Medicina, neste momento da história da universidade, os
naturalistas “passeavam” por entre vários campos do conhecimento, que posteriormente, seria
mais definida com as especificidades nascidas da filosofia.
A universidade abria anualmente, a inscrição de uma tese destes estudos. Lund
enviara uma tese para universidades alemãs, com o título Uma investigação realizada com
faca e injeção de crustáceos dinamarqueses decápodes, para elucidar a dúvida existente
acerca do sistema circulatório sanguíneo nesses animais, defendida em 1824, e
homenageando muitos dos fundadores das ciências naturais (Saussure, Lavoisier, Cuvier ente
outros). Quando fez sua grande viagem pela Europa em 1830, seu trabalho foi mencionado
em muitas das cidades que visitara. Com duas medalhas de ouro e seis anos de estudos, Peter
Wilhelm Lund, possuía grande base para avançar com os estudos por terras pouco conhecidas
do globo, ele estava pronto para o grande salto!
2.2 – O IMPÉRIO DO BRASIL: preparando para o grande salto!
No Lusco-fusco da tarde de verão, olhos azuis e globulosos refletiram a galeota
enfeitada que se aproximou da embarcação [...] a dona dos olhos azuis: a
arquiduquesa Maria Leopoldina [...] da Áustria, desde menina, ela sonhara em
conhecer a América. Apreciava a natureza e veio acompanhada por cientistas,
botânicos e pintores. Era fruto de uma família afetuosa e de uma árvore genealógica
em que se cruzavam os nomes das maiores dinastias da Europa.19
Seis anos de estudos e reconhecimento pela Europa, além de duas medalhas de
ouro, era o que Lund carregava como bagagem. Com o valor da herança, possuía recursos
para suas pesquisas e não passou pelos desconfortos e desafios das solicitações de recursos
para os seus estudos. Obteve apenas apoio para as coletas que enviaria para o Museu Real de
19
A chegada de Leopoldina, arquiduquesa austríaca e primeira imperatriz do Brasil. In: PRIORE, Mary Del. A
Carne e O Sangue: A Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a marquesa de Santos. Rio de Janeiro:
Rocco, 2012, p. 12.
140
História Natural. A escolha do destino era importante e norteado pelas diretrizes de outros
pesquisadores. Alexander Von Humboldt20, o mais celebre dos viajantes, mostrara em 1799 –
1804, o caminho: A América (especialmente, Venezuela, Peru, México e América Central),
ao atravessar o rio Amazonas, desde a sua fonte, fez estudo comparativo entre os dois
sistemas fluviais: o do amazonas e do orinoco. Sua contribuição foi mostrar novas
perspectivas, além de uma percepção critica sobre as questões políticas das colônias
espanholas. Possibilitou um interesse para expedições semelhantes para os jovens estudiosos,
que o tomaram como incentivo.
A América espanhola e a portuguesa eram áreas territoriais restritas por suas
legislações e pactos coloniais, pouquíssimos estudiosos foram autorizados para viajarem
nestas regiões. A América do sul era uma região virgem, mais próxima que a Ásia e menos
insalubre que o continente africano. O contexto das guerras napoleônicas afrouxou esta
relação colônias e metrópole, no caso da Espanha, porque no caso de Portugal, em 1808, o
príncipe regente, Dom João VI com toda a sua corte, transferiu-se para os trópicos.
Por que o Brasil? Nem mesmo, Humboldt conseguiu permissão para viajar na
América portuguesa, então esta era uma grande oportunidade de inovação, superação e
destaque. Além de outras expedições e resultados destas, publicados nos anos de 1820 como o
trabalho do príncipe Maximiliano Von Wied-Neuwied, entre 1815 - 1817 sobre a natureza e
índios do sudeste do Brasil. O ano de 1817 foi um marco na pesquisa do Brasil. A chegada de
Leopoldina, arquiduquesa da Casa dos Habsburgo, trouxe uma comitiva de artistas e cientistas
para a exploração e pesquisa do seu novo império, desde Áustria, “a reação da jovem à
proposta de casamento foi aproximar-se da gente, da língua e da paisagem que extraía dos
livros.” (PRIORE, 2012, p 15). Durante 84 dias de viagem, Leopoldina trouxe macacos e
papagaios da ilha da Madeira, na escala que fizera e como anotou um observador sobre ela:
“mui discreta, desembaraçada e comunicável, fala, além de sua língua pátria, o francês, o
“Os naturalistas que vieram ao Brasil do século XIX reivindicaram a influência Humboldtiana, dentre eles,
Von Martius, Spix e Auguste de Saint-Hilaire. O naturalista alemão Alexandre Von Humboldt é o exemplo mais
conhecido do naturalista que compreendia a viagem como insubstituível; a sua obra “Kosmo” é destaque do seu
legado. Para Humboldt, as impressões experimentadas pelo viajante em cada região, compõem a própria
atividade científica e não podem ser substituídas, quer por descrições ou amostras de lugares que foram
coletadas. Humboldt era leitor de Bernardin de Saint-Pierre, e com este compartilhava que o gosto e a
sensibilidade são parte integrante do ato de conhecimento” (KURY, 2001. p.865), ultrapassando a questão
estética e alcançando a preocupação por parte do naturalista pelas paisagens peculiares com suas distribuições de
vegetais ao redor do planeta: Cada região da terra, por razões climáticas, geográficas e topográficas, acolhe
espécies vegetais distintas, que compõem diferentes fisionomias”. (KURY, 2001. p.865).” In: PEREIRA, T. A
Contribuição dos Naturalistas Europeus do Século XIX e de Memorialistas do Século XX para a Conservação e
a Promoção do Patrimônio Natural e Arqueológico do Norte de Minas (Parte 1). CAMPINAS:
Historiaehistoria, 2011.
20
141
inglês e o italiano; alguns conhecimentos de belas-letras e não menos de botânica” (PRIORE,
2012, p. 15).
Os mais importantes e conhecidos cientistas que vieram com a arquiduquesa, foi o
médico e botânico Von Martius e o zoológo Spix, que lançaram grande expedição científica
de três anos no Brasil. Provavelmente, Lund teve contato com os três volumes publicados por
Martius, porque Spix morrera prematuramente. Qualquer dos motivos que tenha levado Lund
a escolher o Brasil, em 08 de dezembro de 1825, o jovem da gelada Dinamarca, chegou às
terras tropicais do recém-nascido Império do Brasil, proclamado em 1822.
O Império do Brasil integra os Estados e sociedades após a Revolução Francesa e
suas preocupações eram em torno dos problemas de nacionalidade e de construção da nação.
Para Hobsbawm, historiador britânico neo-marxista, o Estado moderno típico do XIX, apesar
de ter sido antecipado pelos Estados-Nações principescos do século XVI e XVII, era inovador
em muitos aspectos. “Era definido como um território (de preferência contínuo e inteiro)
dominando a totalidade de seus habitantes; e estava separado de outros territórios semelhantes
por fronteiras e limites claramente definidos.” (HOBSBAWM, 1990, p. 101). Enfim, “o
Estado dominava sobre um ‘povo’ territorialmente definido e o fazia como a agência
‘nacional’ suprema de domínio sobre seu território, e seus agentes cada vez mais alcançavam
os habitantes mais humildes do menor de seus vilarejos” (HOBSBAWM, 1990, p. 101).
Na obra Nações e Nacionalismo desde 1780, Hobsbawm, concentra-se na
discussão sobre o nacionalismo, principalmente no século XIX e início do XX, quando o
assunto é bastante eurocêntrico, nesta perspectiva, abordar este momento histórico do Brasil
de Peter Lund é perceber essas relações entre América e Europa, ou seja, Brasil e Portugal.
Antes de 1822, isto é, antes da proclamação do Império do “Brazil”, o Brasil não
existia; pelo menos como é atualmente: um país com território amarrado e integrado, com
fronteiras e habitantes que se definem como brasileiros (o próprio conceito de brasileiro
estava a ser moldado). A vinda da família real portuguesa, movida pela invasão de tropas de
Napoleão Bonaparte, mudaria e contribuiria para consolidar e assegurar este território, que
outrora era um amontoado de regiões com determinadas autonomias, com estradas escassas,
quando existiam; sendo Lisboa, do outro lado do Atlântico, um dos poucos pontos de
referência comum. Ao contrário da América espanhola, que inúmeros Estados – nacionais
republicanos foram formados.
Com a vinda da família real em 1808, o mapa territorial do Brasil estava bem
parecido com o atual: embora Dom João VI resolvera anexar em 1817, a província da
Cisplatina, que pouco mais de dez anos, declararia sua independência como atual Uruguai;
142
exceção do atual estado do Acre, que seria comprado da Bolívia apenas no início do século
XX; além das tentativas e investidas de Dom João sobre as possessões da França ao norte do
Brasil (Guiana Francesa). Deve-se considerar que o tratado de Madri de 1750, redesenhou as
fronteiras coloniais portuguesa e espanhola, embasada na ocupação efetiva sobre o território.
Figura 54 – Mapa do Brasil de 1556, elaborado por Gionvanni Ramusio, mostra cena da vida indígena. Este
mapa está orientado com o norte do lado direito (do mapa) e o sul do lado esquerdo. Apresentado neste capítulo
em retângulo para melhor observação de detalhes.
Fonte: Museu de Topografia Laureano Ibrahim Chaffe / UFRS, 2012.
Esta era a colônia portuguesa, que após a vinda de todo o aparato do império
português, tornou-se vice-reino do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Um imenso
território, pouco povoado, em torno de 3 milhões de habitantes. A cada três brasileiros, um era
escravo. Os indígenas eram estimados em 800.000 indivíduos (GOMES, 2007, p. 112). O
povoamento ainda era concentrado no litoral e alguns povoamentos e vilas em Minas Gerais e
em São Paulo. Minas Gerais era a província mais populosa da colônia, estimativas de sua
143
população giram em torno de 600.000 habitantes, o Rio de Janeiro ocupava o segundo lugar,
com 500.000, depois Bahia e Pernambuco. O botânico francês, Auguste de Saint-Hilaire,
ficou até surpreso com a disparidade entre as províncias, sendo que “foi calculada a população
de Minas, no ano de 1834, em 730.000 habitantes; por consequência, em São Paulo há 19
habitantes, em Minas há 40. Fica-se surpreso, a princípio, com tão grande diferença numérica
entre a população de Minas e de São Paulo” (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 211).
2.3 – O PALCO DA FESTA: A Baía de Guanabara, lugar do grande salto!
O palco da festa, o Rio de Janeiro, era um dos portos com melhor localização do
mundo, por seu intercâmbio com a própria América, África, Europa e Índias Orientais. A
visão da cidade pelo mar, era entre os morros do Castelo de São Bento, o pão de Açúcar, o
morro da Mesa e o Corcovado, que apesar de ainda não ter o Cristo Redentor, não menos tão
bela. O motivo da festa? O 7º parto da imperatriz Leopoldina, que demorou cinco horas, até
que nasceu o menino com 47 centímetros e de boa aparência, “um filho que correspondeu a
todos os meus anseios” declarou a imperatriz à inglesa Maria Graham. (PRIORE, 2012, p.
144). Houve muita celebração na capital, até o dia 09 de dezembro, data do batizado do
menino. No dia 08 de dezembro, em plena festa, Lund chegava ao Rio de Janeiro, portal do
império tropical. Ao longo dos seus muitos anos por aqui, desenvolveu um interesse crítico
pelas questões da política e sociedade brasileira, como quem se encontrava em um laboratório
a céu aberto.
144
Figura 55 – Vista do Rio de Janeiro, tomada da Igreja de São Bento.
Fonte: Ferdinand Denis, 1838 (Editora Itatiaia, 1980, p. 111).
Havia pouco tempo, que a cidade do Rio de Janeiro melhorara sua estrutura
arquitetônica, iniciada a partir de 1808. Apesar das belezas naturais, a cidade era suja e
abandonada, cercada de mangues e charcos, sofria com a falta de água e higiene. Animais
pelas ruas, lixo por toda a parte. Penicos despejados pelas janelas e portas, além do enorme
número de negros, escravos ou não, que formavam uma “Rio de Janeiro africana” com
homens e mulheres da Costa da Mina e Congo, além de Moçambique e de Angola. Após a
cidade tornar-se sede da monarquia lusitana e com a proclamação de um império autônomo
em 1822, os moradores do Rio de Janeiro incorporaram produtos, outrora desconhecidos ou
proibidos como os livros, apesar de alguns censurados como os de Voltaire e Rosseau.
145
Figura 56 – “A cidade africana”.
Fonte: Ferdinand Denis, 1838 (Editora Itatiaia, 1980, p. 160).
Nos lugares de cafés, empregados serviam limonadas, vinho verde de Portugal
junto à água e cervejas suecas, que colocavam a margem o tão habitual beber licor de caju e
cachaça. Na Rua do Ouvidor, velhos casacos, sapatos, perucas, chapéus amarrotados,
mostravam que a moda europeia burguesa, alcançava “a todos”. Europeus chegavam aos
montes, movidos pela curiosidade e conhecimento do continente, outros para sondar os novos
mercados que se abriam desde 1808 com abertura dos portos do Brasil às nações amigas.
146
Figura 57 – O Rio de Janeiro, entre a baía da Guanabara e o Oceano Atlântico. Lund e todos os que residiam em
Niterói, navegavam pela baía para chegar à capital do Império.
Fonte: Rugendas, 1827 (Acervo digital da Biblioteca Nacional do Brasil).
Este era o lugar do salto do dinamarquês, ou seja, lugar da sua primeira estadia, a
região do Rio de Janeiro foi onde morou, tanto na capital como seus arredores. Inicialmente,
escolheu Niterói, do outro lado da baía de Guanabara, com a mesma família que tempos antes,
hospedara o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. Neste tempo, estudou a vida animal
desta baía e enviou 40 espécies de peixes ao museu de história natural de Copenhagen, sendo
147
que 05 eram novas. Posteriormente, Lund retornou ao Rio de Janeiro, mas não se adaptou
com o calor e a vida social, escolhendo as montanhas ao norte, na colônia de suíços, a Nova
Friburgo, distando 137 km do Rio, percurso considerável para a época, depois, voltaria para a
capital. Sua estadia no Brasil durou 03 anos, a maior parte gasta nas proximidades da capital,
estudando e coletando animais, aves e insetos e principalmente plantas, em que escreveu
relatórios, em 1829, enviou sua coleção a Copenhagen e partiu em um navio para a Europa
aproximadamente em janeiro de 1829, com manuscritos e anotações para tecer tratados e
redes de estudos (LUNA FILHO, 2007, p. 23).
Figura 58 – Nova Friburgo.
Fonte: Ferdinand Denis, 1838 (Editora Itatiaia, 1980, p. 100).
148
2.4 – O RETORNO À EUROPA: tecendo a teia científica, a partida da mãe e a coragem
à brasileira
Na viagem pela Europa entre 1829 a 1831, foi a Kiel, até então parte do Reino da
Dinamarca, onde se tornou doutor em filosofia natural em 05 de novembro de 1829 com tese
de 29 páginas em latim sobre pássaros do Brasil; partiu para Berlim, Dresden, Praga e Viena,
esta última se destacava por ter a melhor coleção natural da Europa. Posteriormente, rumou
em 1830 para cidades da península itálica, como Roma, Veneza, Nápoles e Bolonha. Em
Palermo, recebeu grande acolhimento do cônsul dinamarquês, que o apresentou aos melhores
membros daquela sociedade; nesta cidade recebeu cartas de Troels Lund e de Ferdinand, que
comunicava o falecimento de sua mãe. “O luto abateu sobre o filho apegado a sua idosa, mas
vigorosa mãe.” Fora para Genebra e depois Paris.
Na França, fora encaminhado em recomendação a Auguste de Saint-Hilaire, que
havia estado no Brasil, porém, este não se encontrava em Paris. Nesta estadia, encontrou com
o zoólogo Henri Milne-Edward, seu maior crítico com quem acertaria os ponteiros das
discussões sobre os crustáceos, e foi o próprio Edward quem apresentou Lund ao fundador de
uma renomada revista científica (Annales dês Sciences Naturelles), o naturalista Jean Victor
Audouin. Este por sua vez, o encaminhou ao barão Georges Cuvier, a rede estava tecida e
Lund triunfara sobre seu salto, conheceria grandes nomes como os já mencionados e outros
como Humboldt.
Cuvier21 estabeleceu um paradigma no século XIX, o catastrofismo – pensando
que havia uma série de catástrofes que substituiu uma das primeiras interpretações da ciência
que foi de Lamarck sobre uso e desuso – em que os seres seriam condicionados pelo meio,
assim, os órgãos e sentidos seriam mantidos ou não de acordo com o ambiente. Rejeitadas as
ideias de Lamarck, entraram em cena, as teorias de Cuvier – haveria então, uma série de
dilúvios, que traziam catástrofes: “Deus criava, vinha uma catástrofe, recriava outra catástrofe
e assim sucessivamente” (CARTELE, 2012).
Cuvier uniu a Paleontologia estabelecida por longa data à anatomia comparada.
Além de ativo na política, como integrante do conselho de Estado de Napoleão e após este,
ocupou posição importante para acesso aos fósseis para estudos. Apesar das mudanças, ainda
21
Anotações através dos comentários do paleontólogo Castor Cartelle, da arqueóloga Maria Elisa Solá e Rogério
Avelar, prefeito de Lagoa Santa – MG. In: Série Bem Cultural – Pré-história em Minas Gerais, (2012) da Rede
Minas (afiliada TV Cultura), que em seus cinco episódios descreve a trajetória dos estudos pré-históricos do
Estado de Minas Gerais até a atualidade. 2012.
149
hoje, quando os paleontólogos encontram um crânio com uma base forte na nuca, tem-se a
interpretação de que esta seria um apoio para a musculatura, atribuindo esta última como
sendo sólida e bem desenvolvida. Este é um elemento oriundo do modelo de anatomia
comparada de Cuvier; outro é o esforço de estabelecer as relações de fósseis com espécies
atuais.
A França desde este tempo era um importante centro de estudos paleontológicos,
dentre vários motivos: a chamada bacia sedimentar parisiense, muito rica em fósseis; as
coleções enviadas pelos naturalistas franceses, pioneiros para estudos nas terras distantes;
além de que, os exércitos de Napoleão, enriqueceram as coleções de seu império, saqueando
lugares que ocupava: destaque para um crânio fóssil enviado pelo botânico Aimé Bonplandt,
que junto com Humboldt encaminhou para o Museu de História natural de Madri, Espanha. O
crânio vindo do Paraguai era totalmente desconhecido, que com as análises de Cuvier,
demonstrou-se pelo princípio da correlação, que era uma preguiça gigante extinta, porém
muito semelhante às preguiças modernas e menores, possibilitando reconstruir todo o animal,
pela anatomia comparada.
Antes da partida de Paris rumo à Copenhagen, Lund enviara carta e havia
recebido resposta de Ferdinand sobre seus projetos, até então, decidiu permanecer em Paris,
para conclusão de seus estudos, mas percebeu que não sanaria seus questionamentos:
Desde que deixei Copenhagen, havia escolhido Paris para minha permanência, pelo
menos por um tempo mais longo, mas não queria dizer nada sobre isso, com receio
de que pudesse causar uma impressão desagradável à nossa abençoada mãe. Esse
vinculo agora rompeu-se e como a Providência também abriu-me esperança de
poder dedicar-me de forma mais preocupada ao meu plano preferido, isso
certamente satisfazer-me-ia agora como antes, se não fosse uma série de
experiências inesperadas (LUND, Peter apud HOLTEN;STERLL, 2011, p. 84)
Lund apresentava ao irmão Ferdinand, um pesquisador em pensamentos e
questionamentos a jorrar, que possuíam importância maior que a própria vontade. São
perguntas que devem ser buscada na sua fonte, isto é, no Império tropical do Brasil. O Brasil
jamais saiu da cabeça de Peter Lund.
Na natureza tem-se que contentar em realizar observações assim como elas se
apresentam, e, somente depois de ter-se uma grande quantidade se pode pensar em
ordená-las e obter algo delas. Eu tenho, dessa forma, reunido uma grande quantidade
de questões que tenho que ter respondidas, antes de convencer-me a deixar algo de
meu trabalho ser revelado, e para obter essas respostas não me resta nada além de
150
voltar à fonte onde colhi minhas observações. (LUND, Peter apud HOLTEN;
STERLL, 2011, p. 84)
No verão de 1831, Peter Wilhelm chegou à Dinamarca para rever a família e por
lá permaneceria por pouco mais de 01 ano, era a última vez que estaria no seio familiar Lund.
A pauta de Lund em sua estadia era as revelações do exótico e distante Brasil, além de
encontros na sociedade cientifica e de tratados. Em 1831, a família pedia que ficasse os
amigos o incentivava, ansiosos pelo que poderia enviar-lhes dos trópicos, apesar de adiar a
viagem, motivada pelas crises políticas da abdicação do imperador Pedro I, no Brasil. Lund
partiria e nunca mais veria sua Dinamarca. Era preciso ter coragem:
Parece que tu não está satisfeito com meu plano de voltar ao Brasil, tudo o que posso
dizer com relação a isso é: que não posso justificar para mim mesmo omiti-lo, pois
estou convencido de que posso fazer muito mais para a ciência, ao fazer uma nova
viagem de revisão para lá, do que deixar-me depender somente da primeira. Apesar
de eu, inegavelmente e de fato, “preferir ficar na Europa civilizada”, o pensamento
iria constantemente irritar-me de que, por covardia ou comodidade, perdi uma
oportunidade que, entretanto, somente está à disposição de poucos. Acredito,
portanto, que faço o mais correto em executar aquilo que considero, por assim dizer,
como minha obrigação e um chamado, e deixar o resto para a Providência. (LUND,
Peter apud HOLTEN; STERLL, 2011, p. 90) Aspas nossas.
Peter Wilhelm ao vencer a comodidade, legaria uma contribuição para a ciência e
a humanidade, que seria o primeiro a sistematizar e encontrar o homo sapiens em estado
fóssil, em uma região geográfica impensável, o Novo Mundo. Há controvérsias sobre a
segunda viagem de Lund para o Brasil, mas a data aqui adotada será a de 16 de janeiro de
1833, (admitida pelos historiadores dinamarqueses tão mencionados). Embora por ventos
desfavoráveis, o navio entraria apenas no dia 20 de janeiro, ao desembarque, três dias foram
suficientes para contemplar euforicamente os trópicos, o Rio de Janeiro continuava lindo!
2.5 – EM CURVELO, UMA PARADA: encontrando a “Dinamarca” no sertão
A impressão que me causa rever essa terra, onde passei tantos momentos adoráveis
no gozo da natureza incomparável, que dessa vez me parece, se é que é possível,
ainda mais bonita e maravilhosa que antes, e todos os sentimentos, que me
ocorreram nesses três dias, não posso te descrever, caro Ferdinand. Parece-me,
ainda, como um meio sonho e custo a acreditar que agora posso entrar em uma
floresta virgem, assim que o desejar. (LUND, Peter apud HOLTEN; STERLL, 2011,
p. 103)
151
O Rio de Janeiro que recebeu Lund desta vez era uma capital mais aberta ao
espírito liberal e de preços consideráveis, a ponto do naturalista desejar adquirir escravos para
si. Nos anos da Regência (1831 – 1840), o açúcar deu lugar ao café, como principal produto
brasileiro, São Paulo que vivia à margem tornara a região mais próspera do Império, inclusive
ao longo do Segundo reinado (1840 – 1889), inaugurado com a maioridade de Pedro II a
partir de 1840.
A ideia inicial de Lund era ficar um tempo provisório na capital e posteriormente
adentrar ao interior, pouco conhecido do Império e bem diferente do Rio de Janeiro
europeizado. Mas Lund, logo fora pego, pela vida social, desde ao convite do embaixador
diamarquês, o conde Frederik Ditlev Reventlow para morar em sua casa de campo na baía de
Botafogo, (ao lado do Pão de Açucar), Peter Lund ficaria por 04 meses. A casa do embaixador
que mudaria para Lisboa, “era um centro para a vida social” (HOLTEN; STERLL, 2011, p.
105), e lá que Riedel, representante do Czar visitara Lund. O representante do governo russo
estava em transferência para o Brasil, além de ter casado com uma jovem de boa família,
prevendo uma carreira no jardim botânico imperial. Riedel prepara uma viagem longa para o
interior e Lund aceitou o convite.
Depois da partida do conde R [Reventlow, embaixador dinamarquês]; alugamos em
parceria uma linda pequenina casa de campo nas proximidades do Rio, onde
podíamos nos dedicar a nossos estudos sem ser incomodados. Eu tive em tudo um
proveito muito rico em botânica. Nesse sentido, o fruto de nossas contínuas
excursões, e agora, em parte durante essa e em parte em minha estadia anterior aqui,
já investiguei bastante a região do Rio. Penso, portanto, agora em deixar esta cidade,
e como se me oferece uma oportunidade tão boa, estimo desta vez entrar mais fundo
no interior do país que das vezes anteriores. Planejamos, então, o Sr. R. e eu, uma
viagem em conjunto para o interior do país e pensamos começá-la no início de
setembro. Ela passará através da província de St. Paul para o centro da província de
Goyaz, de lá para Minas Gerais e, então, de volta para o Rio [...] e vai levar
aproximadamente um ano. (LUND, Peter apud HOLTEN; STERLL, 2011, p. 106)
Esta grande viagem até Goiás consistiu de uma equipe composta por Lund, Riedel
e quatro negros, além de oito animais, um cavalo e sete burros. A viagem produzira riqueza de
conhecimento, sobretudo cartográfico, mas também fracassou na perspectiva de recursos no
final da viagem. Quando retornaram de Goiás, atravessaram o rio São Francisco e passaram
por Paracatu, “a última parte da viagem através do Norte de Minas foi mais fácil, a paisagem
mais amena, e Lund escreveu extasiado sobre buritis e a rica vida a dos pássaros e sobre
152
dormir ao ar livre sob o céu infinito e estrelado” (HOLTEN; STERLL, 2011, p. 116), até que
chegaram à vila de Santo Antônio de Curvelo, onde encontraria com a “Dinamarca” em pleno
sertão mineiro, isto é, com um conterrâneo, o também dinamarquês Peter Claussen. Em
Curvelo, Peter Lund revela ao mundo o que não tinham sido encontrados antes, restos fósseis
e consigo várias perguntas suscitadas pelos próprios fósseis, teorias e paradigmas do período.
A cidade de Curvelo foi, em muitos aspectos, um ponto importante em nossa
viagem. Com ela terminaram as caminhadas através de grandes sertões desertos e
nos encontramos com uma região mais populada [...] o tempo pior forçou-nos a ficar
algum tempo em uma propriedade próxima, e utilizamos essa estadia para empacotar
e enviar uma parte de nossas coletas. Para mim essa estadia teve consequências mais
importantes, e a cidade de Curvelo vai, provavelmente ser no futuro o ponto central
de uma estadia demorada. Isso porque nas proximidades dessa cidade descobriu-se
várias grutas, algumas das quais contem restos fósseis. Tive a oportunidade de
examinar vários desses e conve-me que eles pertencem ao período que, na
geognosia, chama-se diluviano. Como, até agora, em nenhum país tropical,
encontraram-se restos deste período, esses tornaram-se de especial importância, e
vários problemas, como a existência de espécies animais tropicais desse período nas
regiões polares, têm dado motivo para levantar, por exemplo, a hipótese de um
súbito esfriamento da temperatura da Terra, ou um deslocamento da eclíptica e
outros, vão somente ser resolvidos quando a população e os moradores das terras
tropicais nesse período forem elucidados. Se portanto, as circunstâncias o
permitirem, pretendo voltar mais tarde a esse interessante lugar; mas, no momento,
tenho que continuar a viagem; pois ainda existem várias regiões interessantes do
Brasil para visitar, e como estou com o pé na estrada, quero primeiro completar
minha viagem. (LUND, Peter apud HOLTEN; STERLL, 2011, p. 118)
Um mito sobre a estadia de Lund no país, o encontro em Curvelo teria acontecido
em uma venda, com o dinamarquês que se fixou como fazendeiro, a uma região de um dia de
viagem ao sul de Curvelo. A região produzia salitre, desde Formigas, atual Montes Claros até
Curvelo, é o que nos apresenta o barão de Eschwege, intendente das Minas do Ouro e curador
do gabinete de mineralogia no Rio. O fato histórico que é os achados de Lund em Curvelo,
região central do estado e também parte setentrional, traz contribuição para a atualidade, pois
de Curvelo por todo o norte de Minas (aqui se considera mais que a macro-região política, ou
seja, a inclusão do noroeste, nordeste do estado e vales do Jequitinhonha e Mucuri), há uma
significativa concentração de áreas pré-históricas conhecidas, catalogadas desde os
naturalistas viajantes, o que sugere no mínimo a necessidade de fomento às pesquisas na
atualidade interdisciplinares, bem como, promoção de políticas públicas para a preservação
destes sítios de valor singular.
Lund seguiu viagem até a atual cidade de Ouro Preto, mas antes se dirigiu à gruta
de Maquiné, encontrando uma magnífica visão e aonde fez sua primeira escavação, conhecida
153
pouco mais de 05 anos, naquele tempo. Caiu em conta que em Lagoa Santa tinha um ponto
estratégico22. No começo de abril, voltaria a Fazenda Porteirinhas, onde encontraria com os
irmãos de Clausen e um norueguês, Peter Andreas Brandt, um professor de desenhos,
comerciante e editor no seu país, que por dívidas fugira para os trópicos. O norueguês seria o
grande colaborador e artista do trabalho sobre as grutas.
Figura 59 – Esboço de Brandt da Praça de Curvelo, norte de Minas Gerais. Na atualidade é a macrorregião
Central do estado de Minas Gerais.
Fonte: Brandt, XIX / Holten; Sterll, 2011.
2.6 PETER ANDREAS BRANDT: o artista desconhecido e as grutas
Uma alma mais dócil, carinhosa, honesta e confiável, se a escolha fosse dada a mim,
eu dificilmente teria encontrado, por mais que procurasse, alguém que demonstrasse
ao menos uma tão completa devoção a meu serviço como ele continuamente tem
demonstrado. (LUND apud REINHARDT, J. TH. 1888/ HOLTEN; STERLL, 2012,
p. 62)
Anotações através dos comentários do paleontólogo Castor Cartelle. In: Série Bem Cultural – Pré-história em
Minas Gerais, (2012) da Rede Minas (afiliada TV Cultura), que em seus cinco episódios descreve a trajetória
dos estudos pré-históricos do Estado de Minas Gerais até a atualidade. 2012.
22
154
Um pintor norueguês que atuou por alguns anos da primeira metade dos 1800
como ilustrador na província de Minas Gerais, no Império do Brazil e foi responsável por
documentar todas as primeiras escavações sistemáticas da pré-história nas Américas pelo
dinamarquês Peter Lund, iniciados em Curvelo, no norte mineiro e deslocados para Lagoa
Santa – MG. Nascido na Noruega em 1792 morreria no planalto brasileiro 70 anos após. Sua
existência estranha e anônima, quase sempre citada às sombras de Lund, pode ser perseguida
através dos poucos documentos que deixou (poucas cartas de próprio punho, mas
principalmente de suas aquarelas e esboços) bem como, da obra peculiar dos historiadores
noruegueses Holten, Sterll e Jon Fjeldså23 publicada em português no ano de 2012.
23
É necessário reconhecer a enorme dívida com Jens Olesen, cônsul geral da Noruega no Brasil e da Câmara do
Comércio Dinamarquês-brasileira. Sua atenção e singular apreço pela relação do Brasil com a Noruega e a
Dinamarca expressas através de Lund e Brandt em Minas Gerais, foram determinantes para o acesso a todo o
caderno de esboço de Brandt, tão raro no Brasil (parte dele, já o era conhecido, desde os anos 1980, quando o
professor Castor Cartelle, fotografou algumas páginas em Copenhagen, Dinamarca). Sem esta atenção e envio de
fontes e referências dos historiadores dinamarqueses, esta dissertação não teria tido estes contornos.
155
Figura 60 – Arte gráfica a partir do desenho de Brandt. No original, há um auto-retrato.
Fonte: Brandt, XIX / Holten; Sterll, 2011.
Este subtítuto objetiva “colocar mais luz e holofotes sobre” Brandt, apresentando,
mesmo que de forma sintética, “o seu mundo” enquanto viveu no Brasil, apresentando suas
vivências também, ao apresentar em suas obras, além dos fósseis do “Doutor Lund”, mas as
ruas de Lagoa Santa, as mulas que transitavam entre o Rio de Janeiro, adentrando as minas,
perpassando os gerais, da chamada província de Minas Gerais e trabalhando como fontes os
esboços do seu caderno, embora, alguns já foram usados anteriormente nesta dissertação.
Figura 61 – Folha mostrando o local que Brandt provavelmente adquiriu o seu caderno. A Rua do Ouvidor era
destino certo de fluxos das mais diversas mercadorias.
Fonte: Brandt, XIX / Holten; Sterll, 2011.
156
Brandt teve papel importante nas várias tentativas de criação dos primeiros jornais
noruegueses, embora com fracassos. Viveu na gelada Noruega24 até 1834, e com seus 42
partiu para os trópicos: Brasil.
Uma alma mais dócil, carinhosa, honesta e confiável, se a escolha fosse dada a mim,
eu dificilmente teria encontrado, por mais que procurasse, alguém que demonstrasse
ao menos uma tão completa devoção a meu serviço como ele continuamente tem
demonstrado. (LUND apud REINHARDT, J. TH. 1888/ HOLTEN; STERLL, 2012,
p. 62)
“No início de 1835, Peter Andreas Brandt decidiu deixar o Rio de Janeiro e viajar
pelo longo caminho até a pequena cidade de Curvelo, no Norte de Minas Gerais. Em sua
segunda carta para a Noruega [...] com a intenção de encontrar o famoso Dr. Lund”
(STERLL, 2012, p. 67) e claro, “ oferecer-lhe sua assistência.” Lund juntamente com Riedel,
estava há mais de anos adentrando o interior do Brasil. Provavelmente, Brandt teve acesso ao
roteiro da expedição, o que não era de conhecimento comum, para ter uma noção, o
naturalista e conde Frederik Christian Raben, também dinamarquês, correspondente de Lund,
tentou certa vez encontrá-lo, tal encontro nunca ocorreu.
A viagem do Rio de Janeiro para Curvelo (Gerais) era frequentemente feito por
tropas – caravanas de mulas lideradas pelos tropeiros – comerciantes experientes, com
escravos ou não. Apesar de parecer primitivo estas caravanas, era um sistema organizado, a
ponto de que o próprio Lund enviara de Lagoa Santa e recebia mercadoria como pianos, neste
sistema. Saint-hilaire observou atentamente tropas como a apresentada por Brandt [figura 15],
“Está o Brasil cortado por uma infinidade de caminhos” (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 127).
Até com enchentes nos rios, “várias tropas vindas de Minas e São Paulo continuaram a
caminhar carregadas de toucinho e fumo.” (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 127). Quanto aos
tropeiros, homens acostumados com as dificuldades encontradas pela “infinidade de
caminhos”, o francês registrou as seguintes anotações: “A água não faz mal algum à maior
parte destas mercadorias e quanto ao fumo, que importa, diziam os tropeiros, esteja molhado?
Pesará mais!” (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 127). Outras tropas vinham e iam com sacos de
sal, preferindo molhar a perder dia e com isso aumentar suas despesas.
24
A trajetória de Brandt na Noruega não foi contemplada neste subtítulo, entretanto, pode ser melhor discutida e
refletida em HOLTEN, Birgitte. Encontrou Tarde a Tranquilidade que Precisava. In: HOLTEN;STERLL;
FJELDSA. O Artista Desaparecido. Belo Horizonte: editora UFMG. 2012. P. 67 – 67 – 114.
157
Figura 62 – Samambaia, próxima à Petrópolis. As cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis não possuíam as
modernas ligações como a rodovia. Era necessária, uma viagem de barco pela baía rumo a um dos dois portos
pequenos e então, partir com as tropas. De autoria de Brandt, retrata a capela de Nossa Senhora do Amor Divino,
distando poucas horas do porto da Piedade. Até pouco tempo, era atribuída a Eugene Warming como se fosse a
região de Lagoa Santa.
Fonte: Caderno de Esboços de Brandt, 2012. Holten, 2012.
Figura 63 – Tropeiro e mulas tão presentes no “Brasil de Brandt e de Lund”.
Fonte: Brandt, XIX.
158
Por que Brandt foi para Curvelo? Ao encontro de Lund. Por que veio para o
Brasil? É mais desafiador, talvez tenha sido pela notícia de que seu cunhado conseguira
construir uma carreira na América do Sul (no Chile), como sugerem Wilhelmina Brandt (sua
filha) e Birgitte Holten (2012), caso, estejam certas, questões mais subjetivas como a escolha
de partir para Curvelo e ser contratado por Lund, o tenha mudado de ideia em partir para o
Chile. Nas palavras de Brandt:
Mais forçado pela situação que por vontade própria [...] [viajou para Minas] onde,
como desejava, encontrei-me com o Doutor Lund de Copenhague, que, com
propósitos científicos e apoiado pelo Príncipe Christian, viajou por essa província e
por outras vizinhas. (BRANDT apud HOLTEN; 2012, p. 38)
Nesta expedição outrora mencionada, Lund encontrara com outro dinamarquês,
Peter Claussen ou como gostava de ser chamado pelas terras Gerais, Pedro Cláudio
“Dinamarquez”. Pouco é conhecido acerca de Claussen, dentre eles, que provavelmente era
mais novo que Lund, que teria vindo da Dinamarca primeiro. O pouco que tem registrado são
anotações de pessoas de sobrenome Claussen que entraram no Brasil e em Minas, feitas pela
polícia imperial. Provavelmente, a inspiração de Claussen em vender peças fósseis para a
Europa tenha surgido a partir da expedição científica do prussiano Friedrich Sellow ao sul do
império. Após vários anos, radicou-se como fazendeiro nas redondezas da vila de Santo
Antônio de Curvelo.
159
Figura 64 – Porteirinhas, Curvelo.
Fonte: Brandt XIX. Holten, 2012, p. 68
2.7 – O SALITRE E FÓSSEIS DO SERTÃO: os naturalistas e o encontro de Brandt e
Lund
“A população dessa região tinha uma importante fonte de renda na extração do
salitre da terra de dentro das grutas. O salitre é um dos componentes principais da pólvora, e
como as guerras napoleônicas interromperam o fornecimento da Europa houve [...] produção
local” (HOLTEN, 2012, p. 38). Segundo Holten (2012) a extração na região era feita com
base na retirada de toda a terra dentro das grutas e dissolvendo o salitre com água, o que
sugere uma noção de perda de prováveis sítios arqueológicos e restos fósseis. Em Formigas,
atual Montes Claros, Auguste de Saint- Hilaire também dedica anotações para esta exploração
local brasileira nos Gerais:
160
O salitre é para essa região, uma riqueza muito sólida. Essa substância se encontra
em grande parte do deserto, e é permitido indistintamente a todos os particulares
explorar terras salitradas em qualquer lugar que seja. Ouvi um rico fazendeiro
queixar-se de que assim se privava aos colonos de um dos produtos de suas terras, e
se expunham suas propriedades a depreciações. Na verdade, dizia o mesmo
fazendeiro, a lei estipula que aqueles que exploram terrenos salitrados indenizem os
colonos dos prejuízos que lhes causam; como, porém os que se ocupam desse
trabalho em terras de outrem são geralmente homens pobres, a indenização
raramente são paga. Existe por todos os arredores dessa povoação de Coração de
Jesus grande número de grotas de onde se extraem terras salitradas. Os arredores da
povoação de Formigas produziram também muito salitre; atualmente, porém, as
jazidas dessa zona estão quase esgotadas. Censura-se, aliás, aos que tinham as terras
salitradas das grotas em que se encontram, de terem eles próprios posto um fim a
esse gênero de produção, não devolvendo jamais às cavernas a terra dela extraída
(SAINT-HILAIRE, Auguste de. 1980).
Saint-Hilaire ao falar da extração do salitre no atual município de Coração de
Jesus – MG, que já estava em período de escassez, traz considerações sobre Formigas que
ainda se extraia a substância, além de retratar os modos de vida no sertão, os modos de
locomoção e caracterizações do espaço geográfico:
Aproveitei minha permanência em Formigas [Montes Claros – MG], para ir ver uma
grota de onde se extraía salitre, provavelmente a única região que, por essa época,
ainda fornecia a substância. Depois de atravessar, por espaço de cerca de uma légua,
catingas absolutamente semelhantes às da 7ª divisão, cheguei a uma casinhola
denominada Lagoinha, cujo dono era o proprietário da caverna. Fizeram-me subir
para um desses carros de boi em uso na região, e em breve cheguei a rochedos que
estão dispostos por estratos horizontais, e formam uma espécie de muralha
perpendicular ao solo. Exatamente por baixo desses rochedos está à entrada da
caverna. Antes de os homens terem começado a trabalhar aí, ela já fora escavada
pela natureza em uma área de cerca de trinta passos de comprimento por oito ou dez
de largura (SAINT-HILAIRE, Auguste de. 1980).
O botânico relata a experiência de visitar a atual Lapa Grande de Montes Claros, e
a retrata como lugar de vivências dos homens da região com suas formas peculiares de extrair
o salitre, em relação ao restante do Brasil, além de considerar espécies da fauna que tiveram
seu espaço invadido devido à extração na Lapa Grande:
Por ocasião de minha viagem havia três anos que se tirava terra salitrada dessa
caverna, e ela se prolongava muito adiante sob a rocha, formando várias
sinuosidades. Penetrei até o lugar a que tinham chegado os trabalhadores,
caminhando quase sempre encurvado [...] o rochedo serve de cobertura a essa
galeria; por toda a parte a terra é muito fortemente salitrada; quanto ao mais não vi
nada que me parecesse digno de nota. A postura, que se é obrigado a tomar na
caverna, não permite que se tire a terra nessas grandes bacias denominadas bateias,
que estão em uso no País. Empregam-se, por isso, carretas extremamente pequenas,
semelhantes a brinquedos de crianças, e que são feitos pelo modelo dos grandes
161
carros de boi. O que me pareceu muito digno de nota, é que os próprios filhos do
proprietário é que trabalhavam na extração do salitre. Os mais velhos cavavam o
solo e conduziam o carro de boi destinado a transportá-los; os mais jovens tomavam
essa terra em tinas e atiravam=na para o carro. Os trabalhadores queixavam-se
bastante de uma pequena mosca que os incomodava horrivelmente. A caverna era
também, ao que parece, o asilo de uma grande quantidade de morcegos; mas como
se tinha acabado de escorraça-los, não vi nenhum. (SAINT-HILAIRE, Auguste de.
1980).
Saint-Hilaire, demonstra nos relatos preocupação com um possível potencial
geológico da Lapa Grande, bem como considerações de fósseis de outros locais do sertão
mineiro como a Vila do Fanado, atual Minas Novas:
Seria para desejar que algum geólogo visitasse como cuidado as grotas do deserto.
Encontraria aí provavelmente ossos fósseis, pois que me deram em Vila do Fanado
[Minas Nova – MG], um dente de mastodonte, que está atualmente no Museu de
Paris, e me disseram ter sido encontrado em um terreno salitrado do sertão. Não sei
bem mesmo se não me falaram de ossadas gigantescas descobertas nessa região
(SAINT-HILAIRE, Auguste de. 1980).
Em seus registros, precisamente em notas de rodapés, faz apontamentos a outros
naturalistas: Spix e Von Martius e Eschwege, que visitaram a região com considerações
acerca do salitre desta região que Lund, Brandt e todos estes outros naturalistas passaram.
Depois que esse capítulo foi redigido vi, pelo livro dos Srs. Spix e Martius, que eles
realizaram o voto que eu exprimira. Os geólogos provavelmente não lerão sem
interesse a descrição que esses sábios deram da caverna vizinha de Formigas que
chamaram Lapa Grande, e onde encontraram ossadas de tapires, coatis, onças e
megalonyx. Parece, aliás, que a Lapa Grande já não era mais explorada quando foi
visitada pelos Srs. Spix e martius – Antes desses viajantes, Casal, na sua Corografia
Brazilica, impressa em 1771, falara já das ossadas fósseis encontradas em grande
número em várias províncias do Brasil. Disse que, no fim do último século, se
descobriu, no termo de Vila do Rio das Contas, uma carcaça que, embora danificada,
ocupava um espaço de mais de trinta passos; que as costelas mediam palmo e meio
de largura; as pernas eram do tamanho de um homem de estatura média; um dente
molar, sem as raízes, pesava quatro libras, e que foram necessárias todas as forças de
quatro homens para destacar o maxiliar inferior [...]Lê-se também, na última obra do
Sr. Eschwege que, visitando as grutas de Bem Vista, entre Formiga e Bambuí, na
entrada do sertão, na comarca de S. João del-Rei, ele aí encontrou um fragmento de
osso fóssil que verossilmente pertencera ao braço de um homem. O mesmo escritor
[Eschwege] acrescenta que, sem falar dos fósseis, vêem-se, na superfície das
mesmas grutas, muitas ossadas [...] que ele em particular encontrou um crânio
humano [...]. (SAINT-HILAIRE, Auguste de. 1980).
162
Percebe na obra do francês, as diferenças entre o sertão da província e as regiões
mineradoras, o que reafirma o norte de Minas como região detentora de modo de vida
peculiar:
Nessa região, onde não se existem médicos, encontram-se, em grande número de
povoações, pessoas de idade, que se dedicam a procurar conhecer vegetais úteis, que
recolhem as tradições de seus antepassados; fazem às vezes experiências, e dão
conselhos aos doentes. [...] muitas vezes, mesmo fui obrigado a privar-me de coisas
de que necessitava, porque não me podiam arranjar troco. Como não se extrai ouro
das terras do sertão, os bilhetes denominados de permuta não tem curso ali. Não se
conta, outrossim, por vinténs de ouro, como nas regiões auríferas da província, mas
por vinténs de vinte réis, como se pratica no Rio de Janeiro e numa porção doutros
lugares. (SAINT-HILAIRE, Auguste de. 1980).
Esta região era (é) potencialmente rica e foi nela que Claussen, apresentou a Lund,
as grutas e fósseis. Ainda acerca do norte mineiro e central, tem-se o próprio Charles Darwin
mencionando achados em Formigas (Montes Claros):
The next notice of the Megalonyx which I have consulted, in the hope of meeting
with additional and more precise information as to its real generic characters, is an
account given by the learned Professor Doellinger, of some fossil bones, colleted by
the accomplished travelers Spix and Martius in the cave of Lassa Grande [Lapa
Grande], near the Arrayal de Torracigos, in Brazil. (DARWIN, 1839, p. 67 e
também citado por FILHO, 2007, 88) 25.
Os próprios Spix e Von Martius na renomada obra Viagem pelo Brasil (18171820) descrevem o achado e caracteriza a Lapa Grande de Montes Claros:
A Lapa Grande [...] Foram encontradas as tais ossadas de animais primitivos. Está
situada a légua e meia a oeste do arraial, na denominada Serra do Vicente ou
Cabeceiras do Rio dos Bois. Esta montanha baixa eleva-se, quando muito, a uns 450
pés acima de Formigas, e consiste em três cadeias, separadas por vales raros.
Transpusemos a primeira dessa série. [...] A boca da gruta era de 70 pés de altura e
80 de largura, e a negrura lúgubre do fundo era acentuada pelos bancos e rochas de
caleita branca, que se destacam do centro e das paredes da entrada com as suas
prodigiosas formas [...] no fundo dessa gruta, subimos por dezoito degraus quase
regulares, igualmente recobertos de carbono de cálcio, estendendo-se em forma de
cascata. [...] Cavamos na argila fina, que reveste esta região da caverna com uma
camada de 4 a 8 polegadas, e foi grande a nossa alegria, ao acharmos, não ossos
grandes, é verdade, mas alguns fragmentos, que nos deram a certeza de se tratar de
restos de um Megalonix; sobretudo achamos vértebras, metacarpos e últimas
falanges. Nunca as ossadas estão incrustadas na própria pedra calcária, porém, jazem
25
O próximo aviso de Megalonyx que eu consultei, na esperança de se encontrar com informações adicionais e
mais necessária quanto às suas personagens é um relato do Professor Doellinger, de alguns ossos fósseis,
coletadas pelos viajantes Spix e Martius na caverna de Lassa Grande [Lapa Grande], próximo ao arraial de
Torracigos (Formigas, atual Montes Claros), no Brasil. Tradução livre de responsabilidade do autor, 2013.
163
mais ou menos encobertas, soltas e sem ordem, na terra. No caminho de volta,
ahcamos ossos de antas, quatis e onças de época bem recente, espalhados na parte da
frente da caverna e pareciam ser restos da presa que aqui foi devorada. (SPIX,
MARTIUS, 1995.)
Prosseguem em descrever a Lapa Grande de Montes Claros, com significativos
detalhes com sua formação e a vegetação do entorno:
Toda a montanha é de uma pedra calcária compacta, cinza-azulada, em geral em
camadas horizontais, inclinadas em 3º grau que parece pertencer à formação calcária
de transição [...] é esta a mesma pedra calcária que está espalhada desde o Rio Verde
até o Rio das Velhas, e ao outro lado do mesmo até ao Rio Abaeté, contendo, ali e
acolá, jazidas de gesso, com argila amarelo-ferruginosa ou caulinita branca [...] A
vegetação predominante aqui parece ser, quase em geral, de catingas e campos
ressecados. Pelo alto portão de entrada, alcançamos uma abóboda, que tem 30 a 40
pés de largura, e outro tanto de altura, e cujo chão desigual, coberto de montículos
de calcitas sonora, vai gradualmente descendo. Depois de termos dado uns 100
passos, verificamos que a caverna se dividia em diversas galerias naturais. Tomamos
por um desses caminhos, o qual subiu logo, em curvas, e obrigou os curiosos a se
porem de joelhos, pois as paredes ásperas, recortadas em formas grotescas e
rasgadas se estreitam; porém, repentinamente, alarga-se de novo a galeria, e termina
numa gruta espaçosa, cujas paredes estão cobertas, aqui e acolá, de calcita
avermelhada ou com brancos prismas cristalinos compridos, hexaédricos, de espato
calcário. No fundo dessa gruta, subimos por dezoito degraus quase regulares,
igualmente recobertos de carbonato de cálcio, estendendo-se em forma de cascata.
Foi aqui, sobre um dos degraus de cima, que um dos nossos guias achou, há sete
anos, uma costela de seis pés de comprimento e outros restos de ossadas de um
animal primitivo. (SPIX, MARTIUS, 1995.)
Os naturalistas germânicos nos seus relatos levantam hipóteses para as
particularidades da gruta, como suas paredes polidas, cor e demais qualidades físicas,
sugerindo, por exemplo, que as paredes da gruta teriam outrora, sido alcançadas por águas e
que estas poderiam ter possibilitado o enterramento de possíveis fósseis; o que provavelmente
os levou a ficarem horas escavando no local:
É uma terra muito fina, de cor castanha ou avermelhada, raramente amarela ou
cinzenta, que aparece nas cavidades da pedra calcária, e sobretudo, no chão, em
buracos, ou embaixo de saliências, na espressura de algumas polegadas até um pé,
pegadas em massas informes, porosas, que têm muita semelhança com a terra dos
grandes formigueiros. Na cor e mais quailidades físicas, esta terra é exatamente
igual à de fora da caverna, somente é mais fina e como que mais lavada. Tanto por
esta particularidade, como pela circunstância de serem polidas as paredes nas curvas
da caverna, e, em diferentes alturas, haver eflorescências de marga, parece provável
que antigamente as águas passaram violentamente pela caverna, enterrando talvez
também aquelas ossadas dos animais primitivos. Depois de havermos, durante várias
horas, revolvido a terra em busca de resto de ossadas, percorremos ainda algumas
164
galerias. Quando saímos desta extraordinária caverna, era noite fechada, e
encotramos os guias, ocupados em alimentar uma fogueira, que tinham acendido à
entrada. As altas chamas, refletindo-se na pedra, deitavam longe os seus clarões
vacilantes, por entre os troncos nus da mata, pondo em debanda inúmeras varas de
assustados caititus [...] a fumaça enxotava das gretas das rochas bandos de
numerosos morcegos, que esvoaçavam pipiando aflitos, em volta de nós,
proporcionou-nos ensejo de conhecer algumas espécies desses animais fantásticos.
Pegamos três diferentes espécies de morcegos que aqui se alinhavam em comum.
Estas espécies são extremamente abundantes em todo o sertão de Minas, porém
especialmente no Rio São Francisco, onde as muitas fendas e lapas, nas montanhas
calcárias sem vegetação, lhes oferecem bons abrigos; os morcegos às vezes atacam o
gado, à noite, em tão numerosos bandos, que os habitantes são obrigados a
abandonar as suas fazendas e retirar-se para regiões mais sossegadas. Não é,
portanto nada raro que se façam campanhas contra esses sugadores de sangue
perturbadores da paz. Outro objeto, para o qual se volvia a nossa observação, era o
salitre, que já tinha sido extraído daqui aos milhares de arrobas. [...] Formigas
negocia com os produtos do sertão: gado e cavalos, couros crus de boi, de veados,
estes últimos curtidos grosseiramente, toicinho, porém, sobretudo salitre, extrado em
grande quantidade das cavernas calcárias próximas. Estas grutas também eram de
grande interesse para nós, porque deviam conter ossada de enormes animais
desconhecidos, dos quais já muitas vezes nos havia falado no sertão. No distrito de
Formigas existem várias cavernas de salitre: a Lapa do Rio Lagoinha, a Lapa do
Miréllis no Ribeirão Pacuí, da qual se extraíram 4.000 arrobas de salitre; as Lapas do
Cedro, Buriti, Boqueirão etc. A mais importante, porém entre todas, pareceu-nos a
Lapa Grande. (SPIX, MARTIUS, 1995.)
Segundo Luna Filho (2007, p. 88), estes achados ao redor de arraiais da província
de Minas Gerais como Formigas e Curvelo foram determinantes para os rumos que Lund
tomaria por toda a vida. Foi ao redor de Curvelo, na fazenda Porteirinha, que Claussen
apresentou Lund, fósseis encontrados de suas extrações de salitre, tão abundante nesta região.
A partir do encontro de Lund e Brandt por volta de 1834, ambos trilhariam uma trajetória e
construiria cada qual com o seu trabalho, os primórdios dos estudos pré-históricos brasileiros
(e americanos). Um escavando sistematicamente, o outro registrando e catalogando tudo,
embora, os dois, desenvolvessem um único trabalho.
165
Figura 65 – Fazenda Porteirinhas, Santo Antônio de Curvelo. Lugar de Encontros: Lund e Claussen / Lund e
Brandt.
Fonte: Warming, XIX. Holten, 2012.
O trabalho de Lund e Brandt durou em torno de 10 anos na região de Lagoa Santa,
bem distante de Curvelo, ou melhor, de Claussen. A casa de Lund ficava no centro de Lagoa
Santa e Brandt, pouco abaixo da rua. Lund narra em uma de suas cartas, como era a boa
relação com Brandt:
Tu saberás o suficiente de minhas cartas antigas, de como o destino adicionou essa
pessoa ao início da minha nova trilha por aqui e como eu prezo infinitamente por
esse tesouro da providência, que em tão alto grau promoveu meu trabalho e tornou
minha estadia aqui suportável. Eu tive tanta sorte de encontrar nele não somente um
artista, mas também um colaborador verdadeiro e perseverante em todas as minhas
atividades. Ele passa a limpo meus tratados (pois ele possui uma excelente
caligrafia), e serve como elitor quando estou cansado do trabalho, me acompanha
em minhas viagens e é o mais zeloso trabalhador nas grutas, cuida de mim quando
estou doente, e assume a função de empregado servindo as visitas quando tenho
hóspedes em casa; em resumo, ele se sacrifica da manhã até da noite, quando fico
doente. Dia e noite a meu serviço e tudo isso com uma boa vontade que não me
canso de apreciar. (LUND apud REINHARDT, J. TH. 1888/ HOLTEN, 2012, p. 41)
166
Figura 66 – Auto-retrato de Brandt.
Fonte: Warming, XIX. Holten, 2012
Tanto Lund quanto Brandt objetivaram, inicialmente, o retorno à Europa. Brandt
em várias vezes procurou sem sucesso, partir; Lund tinha muito trabalho por aqui e percebeu
primeiro, que permaneceria no Brasil. Em torno de 1842, Lund estava com valores por
receber do amigo e colaborador, entretanto, nunca quis oprimi-lo por tal. Brandt é percebido
como mal humorado, entretanto, mais do que humor, a distância de filhos, esposa, enfim,
família, gera:
Em alguns dias viajo com esses senhores por seis milhas daqui até as grutas, o que
poderia ser demasiado interessante se não estivesse acometido da mais dolorosa
saudade de casa, significativamente originada por saber que minha esposa e minhas
crianças estão na mais desamparada situação, o que me torna impossível ficar
tranquilo neste país, mesmo oque me circundassem com todas as grandezas da
Terra. Para qualquer outra pessoa o clima maravilhoso deste país teria algo de
extremamente atraente quando se estivesse em condição de reparar em tudo em
comparação com o habitual verão europeu, mas atualmente não pode me acalmar. O
mais profundo amor pela minha verdadeira esposa amada e filhos cuja lembrança
não se afasta sequer por uma hora de mim e que frequentemente ter desejado minha
existência tão curta quanto possível; não devo reclamar, mas meu destino é amargo.
Apesar dos esforços tanto do doutor Lund quanto de Claussen e sua família para me
distrair, cada dia me parece longo, pois não saber se algum dia poder rever minha
família me machuca amargamente. A bela natureza que me cerca não possui nada de
atraente, produz uma riqueza e um esplendor que não podemos nem sequer imaginar
em nosso país. (BRANDT apud HOLTEN; 2012, p. 59)
167
Melancólico, assim Brandt ficou até a morte. Embora com muitos projetos de
retorno, fracassou e jamais reviu sua “amada esposa e amados filhos”. Apesar do rabugento
desprezo pela vida como citou Lund, o excelente colaborador teve aventuras nas grutas e em
sua casa d’Água, talvez para lembrar-se de sua terra natal.
Figura 67 – Casa D’Água de Brandt. Fotografada por Eugene Warming nos anos de 1860.
Fonte: Warming, XIX. Holten, 2012, p. 62.
Na sua casa de água, havia um barco ancorado, que deu distrações agradáveis
como festas de batizados de barco aos passeios simples. Até que em 1861, adoeceu e em 20
de setembro de 1862 faleceu. Seu enterro foi fora do centro de Lagoa Santa – MG, em um
terreno comprado por Lund, para este objetivo, pois sabia que Brandt, tinha repulsa em ser
enterrado num cemitério católico. Apesar da repulsa quanto ao cemitério, não hesitou na
benção do vigário católico, quando comprada, previamente antes de sua morte. Lund narrou
que toda a comunidade de Lagoa Santa compareceu ao velório.
Como ele com frequência expressou para mim a sua repugnância em ser enterrado
na igreja, comprei em tempo um pedaço de terra em uma bela região de campo, que
fiz murar e cercar com um portão. No meio desse lugar fiz erguer uma grade e
decente cruz de aroeira, que foi consagrada pelo vigário. Em 21 de setembro,
domingo de manhã, sua jornada terrestre encontrou lugar, a mais tocante que Lagoa
168
Santa testemunhou, toda a população em massa, sem diferença de posição, idade ou
sexo o conduziu para seu lugar de repouso, e desde esse tempo o belo caminho que
fiz abrir para o local tem sido um local de passeio preferido dos moradores, que até
então não conheciam esse tipo de distração, assim como eu mesmo diariamente
caminho até lá e sacrifico alguns momentos ao lado da sepultura do velho e leal
companheiro. (LUND apud HOLTEN; 2012, p. 64)
“Focalizar e enquadrar para fotografar” Brandt é perceber as primeiras pesquisas
da pré-história e arqueologia em Minas Gerais, no Brasil e em toda a América, por ser
juntamente com as próprias coleções, o único registro das pesquisas desenvolvidas pelo
Doutor Lund e acerca da Lagoa Santa do século XIX; até mesmo a fotografia, porque os
registros de Warming como a casa d’Água de Brandt, a casa de Lund, pessoas de Lagoa
Santa, são os primeiros registros fotográficos feitos em Minas Gerais. É um caminhar inicial,
mas que sugere que refletir acerca deste pintor norueguês, pode proporcionar conhecimento
peculiar acerca da história dos mineiros contemporâneos, afinal, Brandt viveu e fez história
aqui.
Figura 68 – Sepultura de Brand. Atualmente há um busto de Lund no local, bem como melhorias pela vinda do
príncipe herdeiro Frederick em 1999 e em 2012.
Fonte: Warming, XIX. Holten, 2012.
169
Figura 69 – Caminho para Lagoa Santa. A igreja no meio da imagem. Tem ao seu lado direito, a casa de Lund.
Fonte: Brandt, XIX / Holten; Sterll, 2011, p. 39.
2.8 – O LEGADO DE PETER LUND: de pesquisa isolada em Minas às maiores
discussões da academia na Europa
The existence in South America of a fossil horse, of the mastodon, possibly of a
elephant, and of a hollow-horned ruminant, discovered by MM. Lund and Clausen in
the caves of Brazil, are highly interesting facts with respect to the geographical
distribution of animal. Journal of Researches into the natural history and geology of
the countries visited during the voyage round the world of H.M.S. Beagle. 11.ed.
London: John Murray, p. 138, 1913 – DARWIN.26
A existência de “cavalo” fóssil, de mastodonte, possivelmente de um elefante, e de um ruminante chifre oco,
descobertos pelos senhores Lund e Claussen nas cavernas brasileiras, são fatos muito interessantes no que diz
respeito à distribuição geográfica destes animais. Jornal de Pesquisa sobre história natural e geologia dos países
visitados ao redor do mundo do Beagle. Tradução livre, de responsabilidade do autor da dissertação.
26
170
Os achados de Lund estavam articulados e esperados pela academia e ciência da
Europa. Darwin menciona os achados de Peter Lund em Minas Gerais por três vezes para
falar da evolução. Uma ideia que Lund estava presente, porque o próprio dinamarquês
percebeu que não havia os cortes propostos pelo catastrofismo, além de identificar na análise
da anatomia comparada que existia uma semelhança como que uma sequência ou adaptação
destas espécies. Um naturalista dinamarquês em Minas Gerais estava integrando
conhecimento, hoje fragmentados por áreas como a paleontologia, arqueologia, história e
antropologia.
De forma indireta foi responsável por outra contribuição para a Ciência, pouco
conhecida pelos mineiros e brasileiros; após a morte de Brandt em 1862, recebeu um
estudante dinamarquês, Eugênio Warming em Lagoa Santa, que 14 dias antes de sua chegada
à casa de Lund, fizera um curso rápido de fotografia (que incluía a química para revelação), o
que levaria a um acervo fotográfico, que é uma importante fonte de informações sobre a
população e lugares de Lagoa Santa. Warming passou dois anos com Lund. Ao retornar a
Dinamarca, publicou seus estudos orientados por Lund, sobre a fauna e flora (cerrado) de
Minas Gerais e inaugurou uma nova ciência, que está na “moda científica” do século XXI, a
ecologia. Warming, portanto é o pai da ecologia animal27.
27
Para os interessados, maiores informações sobre a história da Ecologia encontra-se em síntese de SANTOS,
Flávio Antônio Maes. Uma visão histórica. Ecologia de População de Plantas. Campinas: Unicamp, 2007.
Disponível em: http://www2.ib.unicamp.br/profs/fsantos/nt238/2007/NT238-1.pdf. Acesso em: 17/06/12.
171
Figura 70 – Casa de Lund em Lagoa Santa.
Fonte: Warming, XIX.
Lund, “foi o primeiro a pesquisar metodicamente a paleontologia, a arqueologia e
espeleologia, expressos nos fósseis, no homem e o mundo das cavernas a nível americano.”28
Esta é uma informação preciosa na história da ciência brasileira, americana, mas também a
nível mundial. Ele, não apenas descobriu vários animais extintos como gliptodontes que
possuíam couraças contínuas e ferrão na calda; mastodontes, tatus gigantes, preguiças
gigantes, mas também encontrou animais atuais como, por exemplo, o gambá, anta, lobo
guará para servir ao método comparativo, o qual jamais abriu mão.
28
Anotações através dos comentários do paleontólogo Castor Cartelle, da arqueóloga Maria Elisa Solá e Rogério
Avelar, prefeito de Lagoa Santa – MG. In: Série Bem Cultural – Pré-história em Minas Gerais, (2012) da Rede
Minas (afiliada TV Cultura), que em seus cinco episódios descreve a trajetória dos estudos pré-históricos do
estado de Minas Gerais até a atualidade. 2012.
172
Figura 71 – ANATOMIA COMPARADA - Desenhos de Brandt, os dois primeiros são crânios de roedores de
tamanho médio (Paca) (o primeiro é fóssil, o segundo atual). Ossos de macaco de duas espécies aparentadas (o
primeiro é do extinto Callithrix antiquus, o segundo e menor ao Callithrix atual, que vive na região de Lagoa
Santa).
Fonte: Brandt, XIX. Modificações do autor do presente trabalho.
Figura 72 – Dente de animal pré-histórico na figura da esquerda e desenho e “reconstituição” na figura da direita.
Ao longo das pesquisas, Brandt aprimorou suas técnicas e habilidades.
Fonte: Brandt, XIX.
173
Um dos grandes legados de Lund foi fazer um registro completo e sistemático de
cada peça encontrada – um método cientifico moderno, que estava à frente do seu tempo:
cada osso encontrado está documentado onde foi retirado com o auxílio de muitas das obras e
desenhos de Brandt. Na Biblioteca Real da Dinamarca em Copenhagen têm-se as cartas que
enviou para a família, sendo portando uma fonte de conhecimentos e de uma possível
reconstrução de uma rota (turística) dos caminhos e trabalhos feitos por Lund, em grande
parte conhecidos pelos mineiros (HOLTEN, 2011).
Na segunda metade do século XX, a Lapa Vermelha foi escavada pela missão
franco-brasileira dirigida por Annete Laming-Emperaire (1917 – 1977), encontrando vários
esqueletos, dentre eles, o crânio que posteriormente seria “reencontrado” no Museu Nacional
do Rio e estudado por Walter Neves, datado de cerca de 11.500 anos, “Luzia” como foi
batizado o crânio, é até o presente, o mais antigo das Américas. Da missão franco-brasileira, o
francês André Prous, permaneceria no país, tornando-se um dos principais estudiosos de
Minas e do Brasil, estendendo suas pesquisas para o norte de Minas Gerais à Montalvânia e
vale do Peruaçu pela UFMG. Nos anos 1990, a equipe de Neves, iniciou estudos sistemáticos
que tem demonstrado esqueletos da população de Lagoa Santa, que é distinta dos ameríndios
recentes, com traços mongóis. A contribuição de Lund é percebida em pleno século XXI.
O dinamarquês que é o pai da arqueologia brasileira soube colocar seu trabalho,
até então limitado à província de Minas Gerais, em debate e tema de discussão da academia
na Europa. Portanto, o parque nacional do Sumidouro, especificamente o sítio e gruta do
sumidouro, pode ser patrimônio da humanidade, pelo seu legado à história da ciência, por ser
o lugar que primeiro contestou as ideias de Cuvier, o catastrofismo. No início de 1880, Lund,
ficou doente, com pouco menos dos 80 anos, perdera quase toda a audição e visão, e vindo a
falecer em 25 de maio do mesmo ano. O enterro? O pedido de Lund foi atendido, um enterro
com muita festa e músicas entoadas pela banda que fundou e toda a população da vila
compareceu ao “evento”.
174
Figura 73 – Lund, na segunda foto tirada por Warming.
Fonte: Warming, XIX.
Ainda hoje, o legado de Lund continua vivo, sendo referência para os estudiosos
da Pré-história, arqueologia e paleontologia do Brasil, pela sua possibilidade de transformar
suas limitações e ir à frente do seu tempo, o que os seus contemporâneos, os pesquisadores na
Europa em suas escrivaninhas ou museus, jamais ousaram chegar! O Brasil pré-histórico
ainda é muito desconhecido após dois séculos do Brasil encontrado por Lund, os desafios
ainda tão grandes como o vasto império tropical de outrora. Minas Gerais em especial, possui
um patrimônio cultural pré-histórico tão vasto, que ainda não entrou no orgulho e no apreço
de sua gente. Não mereceu políticas públicas que de fato, valorizem seu patrimônio
arqueológico.
175
Figura 74 – Entrada da Lapa Vermelha, próxima a Lagoa Santa, foi explodida com a produção de cimento.
Fonte: Brandt, XIX.
O conhecimento sobre a vida e trajetória de Lund em Maquiné, Lagoa Santa e
Sumidouro, certamente trará novos avanços aos pesquisadores como historiadores e
arqueólogos, mas também, a promoção e interesse da própria população de mineiros e
brasileiros. Dessa maneira, mais do que uma contribuição da história da ciência, veremos uma
longa vida desta “vasta riqueza” arqueológica, como é percebível nas palavras do próprio
Lund: “eu tenho que considerar como meus filhos, os seres de outra espécie, que me foi
concedido chamar a vida, pelos quais eu exercitei tanto cuidado, e cujo nome e memória, eu
espero que venham viver mais que eu, como um pai deve querer pelos seus filhos.” No Brasil
do XXI, as plataformas foram postas, avanços aconteceram; quanto aos desafios, o grande
salto ainda pode ser dado.
176
CAPÍTULO 3
ARQUEOLOGIA PRÉ-HISTÓRICA DE MONTES CLAROS /MG:
Contextualizada com o Centro Norte Mineiro – Jequitaí, Capitão Éneas e
Francisco Dumont / Serra do Cabral 29
Montes Claros é um munícipio do Estado de Minas Gerais. É importante destacar
que Minas Gerais é o 4º Estado brasileiro em extensão, com cerca de 587 mil km² e uma
população em torno de 19.597.330 hab. (IBGE, 2010). A maior parte dos estudos sobre
contextos geográficos de Minas Gerais, o estado possui a particularidade sobre as
diversidades regionais, socioeconômicas, aspectos ambientais e culturais. (LEITE; PEREIRA,
2008, p. 29).
O norte de Minas Gerais é uma das 12 mesorregiões instituída pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), com uma área de 128.602 km² e uma população
de aproximadamente 1.473.367 habitantes (LEITE; PEREIRA, 2008, p. 30). No contexto
estadual, o norte de Minas é uma região de baixos índices de desenvolvimento
socioeconômico e representa uma zona transitória do sudeste como o nordeste brasileiro, além
dos aspectos socioeconômicos; a região individualiza-se por ser transição do cerrado/caatinga,
sendo, portanto, zona transitória ambiental. Esta zona transitória tende para climas de
semiaridez, bem como, de dificuldades e precárias condições de vida, em tempos de secas,
aproximando-se das condições de vida do sertão nordestino. Nesta região está localizado o
munícipio de Montes Claros, que se individualiza por ser seu centro mais desenvolvido.
Montes Claros está localizado nesta região, entre as coordenadas geográficas 16º
04 57’ e 17º 08’ 41 de Latitude sul e entre as Longitudes 43º 41’ 56’ e 44º 13’ 1’ oeste de
Greenwich, distando cerca de 420 km de Belo Horizonte, capital do estado; sua área territorial
é de 3.582 km².
29
Este capítulo é resultado de consultorias, prestações de serviços e noções a partir de EIA (Estudos de Impactos
Ambientais) e RIMA (Relatórios de Impactos Ambientais), sendo demonstração das possibilidades do trabalho
do historiador. Gostaria de agradecer ao arqueólogo Fabiano de Paula, que com sua experiência e trajetória, tem
incentivado e apoiado minha formação. Ao Eduardo Gomes, por gentilmente, ceder fontes e informações a partir
dos seus estudos de espeleologia e ambientais.
177
Figura 75 – Montes Claros no norte de Minas Gerais.
Fonte: Metamorfose do Espaço Intra-urbano de Montes Claros/MG, 2008, p. 30.
O município está incluso na área mineira do polígono da seca e limita-se com os
seguintes municípios: ao norte São João da Ponte, a nordeste com Capitão Enéas, a leste com
Francisco Sá, a sudeste com Juramento e Glaucilândia, ao sul com Bocaiúva, a sudoeste com
Claro dos Poções, a oeste com São João da Lagoa, Coração de Jesus e a noroeste com
Mirabela e Patis.
Da perspectiva geomorfológica, Montes Claros localiza-se em uma área de
Superfícies de Aplainamento, com Níveis Elevados, representados pelo Planalto São
Franciscano que constitui um conjunto de plataformas aplainadas, com níveis de chapadas em
amplos degraus tabulares, com altitudes variando de 500 a 1200 m, cobertas, geralmente pelos
cerrados, com litologias da formação Urucuia e Grupo Bambuí.com presença de calcários e
siltitos. As formações calcárias de Montes Claros e norte mineiro conservam registros da
ocupação humana pré-histórica.
O homem primitivo no norte de Minas deixou seus registros no que se
denominam pinturas ou inscrições rupestres – designações mais populares, presentes por
vários municípios da região, nos painéis têm figuras sem maiores mistérios como outras mais
complexas, além de outros vestígios, sendo seus próprios restos fósseis, também registros. De
178
acordo com o arqueólogo André Prous e Leonardo Campos (1983, p, 48) a maioria das
sinalizações rupestres norte mineiras tem ente 4 a 6 mil anos a. C. Abordando temas como a
caça de animais reproduzidos nas superfícies das rochas, armadilhas, os chamados jequis;
animais como veados, onças, tatus, cutias, jacarés e aves. Os peixes ocupam lugar importante
na temática geral próximo aos rios. As figuras antropomorfas – representações humanas,
geralmente possuem traços lineares; motivos geométricos (linhas retas, horizontais, verticais e
paralelas, interrompidas ou quebradas, simples ou duplas). Há também círculos, simples ou
concêntricos, espirais, retângulos e triângulos e motivos astronômicos.
Figura 76 – Maciços calcários na região do Parque Lapa Grande.
Fonte: Arquivo Pessoal de Eduardo Gomes, 2013.
179
Figura 77 – Maciços calcários na região do Parque Lapa Grande.
Fonte: Arquivo Pessoal de Eduardo Gomes, 2013.
3.1 Síntese dos Estudos Pré-históricos de Montes Claros/MG - BRASIL
Historicamente, a extinta Sociedade de Educação e Cultura de Montes Claros
(SECMC) foi à primeira instituição (oficializada) a estudar os sítios pré-históricos no norte
mineiro, apesar de raramente ser mencionada por equipes de pesquisas dos grandes centros do
país. Dentre os integrantes da SECMC, podem ser mencionados Plínio Ribeiro dos Santos,
Simeão Ribeiro Pires, Arthur Jardim de Castro Gomes, Luiz Pires, Konstantin Christoff e
Francolino Santos.
180
Figura 78 – Plínio Ribeiro dos Santos, presidente da SECMC observa um dos crânios da Lapa Pintada de Montes
Claros.
Fonte: CAMPOS, 1983, p. 89.
Por volta dos anos 1960, a SECMC realizou visita e retirada de várias ossadas
humanas primitivas do abrigo Lapa Pintada, na região do atual Parque Estadual Lapa Grande,
Montes Claros. Eram diversos esqueletos enterrados quase completos: corpos flexionados,
mãos sobre a cabeça (CAMPOS, 1983, p. 75). A Lapa Pintada está à lesta da Lapa Grande, no
mesmo maçico calcário desta e também da Lapa Pequena, tem cerca de 40 metros de
comprimento, 25 de largura e 30 de altura. O calcário estratificado com lentes de ardósia
contribuiu para desmoronamentos, resultante da ação de águas, que formou a cavidade. A
SECMC realizou apenas um estudo métrico, o qual concluiu semelhanças entre os crânios da
Lapa Pintada com o chamado “homem de Lagoa Santa”, não procurou obter datações para os
diferentes níveis de escavações.
181
Figura 79 – crânio e outras partes das escavações da SECMC da Lapa Pintada de Montes Claros.
Fonte: CAMPOS, 1983, p. 89.
Em 1970 com o Programa de Pesquisas do Vale do São Francisco
(PROPEVALE), coordenado por Ondemar Dias Jr. e arqueólogos vinculados ao Instituto de
Arqueologia Brasileira (IAB). As atividades dentro deste programa podem ser definidas como
levantamentos extensivos no entorno da região metropolitana de Montes Claros que
resultaram na identificação de 04 sítios arqueológicos, sendo 03 destes em abrigos e o outro a
céu aberto. Durante as atividades de campo em 1974, um destes sítios identificados, foi alvo
de intervenções de sub-superfície, no qual foi possível identificar a presença de ossos
humanos e animais, carvão e material lítico. Apesar do potencial percebido, não houve
avanços nas sondagens.
182
04 Sítios Identificados
1 - Lapa da Chica Doida
2 - Cachoeira do Bananal
3 - Cana Verde
4 - Sítio das Lages
Tabela 02 – Sítios Identificados pelo IAB
Fonte: IAB. Organizado por Thiago Pereira, 2013.
Ainda nos anos 1970, precisamente nos anos de 1976 e 77, a pesquisa foi
“retomada” com a vinda dos antropólogos canadenses Alan Bryan e Ruth Gruhn; objetivando
identificar, caracterizar e escavar sítios arqueológicos do norte mineiro. A escavação resultou
na identificação de novos sítios e na escavação parcial de um sítio com publicações
vinculadas ao Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
(BRYAN; GRUHN, 1977).
07 Sítios Identificados
Informação do Sítio
1 - Lapa das Garças
Abrigo
2 – Lapa Pequena
Abrigo
3 – Lapa Pintada abrigo
Abrigo
4 – Fazenda Quebrada 1
Céu aberto
5 – Fazenda Quebrada 2
Céu aberto
6 – Cabeceiras 1
7 – Cabeceiras 2
Abrigo
7 – Cabeceiras 2 (abrigo)
Tabela 03 – Sítios Identificados por Bryan e Ruth Gruhn, 1977
Fonte: Bryan; Gruhn Organizado por Thiago Pereira, 2013.
A maior parte dos sítios identificados por Bryan e Gruhn são abrigos e os
vestígios arqueológicos encontrados há líticos lascados e polidos, cerâmica, restos faunísticos,
restos vegetais, ossos humanos, gravuras e pinturas rupestres. Para os canadenses, apenas a
Lapa Pequena e Cabeceira 1, eram sítios intactos, Cabeçeira 2 e Lapa das Garças estavam
bem preservados e os três outros, destruídos ou mal preservados, (Fazenda Quebrada 1,
Fazenda Quebrada 2 e Lapa Pintada). Neste mesmo período de Bryan e Gruhn, pesquisas do
183
IAB por equipe formada por Claro Calazans, Leonardo Campos e Fabiano de Paula
identificou novos sítios:
02 Sítios Identificados
1 - Lapa d’Água
2 – Lapa da Bandeirinha
3 – Lapa do Tião
Tabela 04 – Sítios Identificados pelo IAB
Fonte: IAB. Organizado por Thiago Pereira, 2013.
As escavações de Bryan e Gruhn (BRYAN; GRUHN, 1977) na Lapa Pequena de
Montes Claros ocorreu em uma área com 8 m², situada a 10 m ao norte da parede sul da Lapa
Pequena (entretanto, apenas 4 m² da sua porção sul foi escavada). A área escavada foi
dividida em duas quadras, denominadas de F2 e G2. As escavações foram realizadas em
níveis artificiais de 10 cm, possibilitando registrar as medidas horizontais e verticais dos
vestígios encontrados in sítio. Tanto a quadra F2 quanto a G2 foram escavadas em 300 cm de
profundidade. (BUENO; BARBOSA; GOMES, p. 53). Foram definidas três zonas
estratigráficas principais de acordo com as anotações de Bryan e Gruhn (BRYAN;GRUHN,
1977 / BUENO;BARBOSA;GOMES, p. 53).
Zona (Unidade) Estratigráfica
Profundidade
1 – Zona A
0/80
cm
2 – Zona B
80/220
cm
3 – Zona C
220/300 cm
Tabela 05 – Zonas Estratigráficas e suas respectivas profundidades – Lapa Pequena de Montes Claros / MG.
Fonte: Bryan;Ruth, 1977/Bueno;Barbosa;Gomes. Organizado por Thiago Pereira, 2013.
A unidade ou Zona C não apresentou nenhum vestígio arqueológico, entretanto é
importante pontuar que a escavação não atingiu a profundidade final do abrigo, mas desde a
184
superfície até os 220 cm de profundidade, os vestígios arqueológicos aparecem
ininterruptamente.
Amostra
Profundidade
(Cm)
Zona
Data (AP)
Sigma
Registro
(Unidade)
1
10 – 20
A
530
100
Birm 908
2
70 – 80
A/B
7.590
100
Birm 909
3
100 – 110
B
7.600
130
Birm 911
4
130 – 140
B
7.530
120
Birm 910
5
150 – 160
B
7.400
150
Birm 912
6
160 – 170
B
7.030
100
Birm 913
7
180 – 190
B
7.800
160
Birm 914
8
200 – 210
B
7.780
100
Birm 915
9
220 – 230
B
8.240
160
Birm 868
Tabela 06 – Quadro-tabela cronológico – Lapa Pequena de Montes Claros / MG.
Fonte: Bryan;Ruth, 1977/Bueno;Barbosa;Gomes. Organizado por Thiago Pereira, 2013.
Em 1988, na administração do prefeito Mário Ribeiro (1988 – 1992), houve
preocupação em decretar a região da Lapa Grande como área de utilidade pública e durante a
gestão de Athos Avelino Pereira (2005 – 2008), o secretário Paulo Ribeiro, assessorado por
Eduardo Gomes efetivou a ideia.
185
Figura 80 – Visita à Lapa Grande para avaliar a criação de Parque Municipal no Governo de Mário
Ribeiro que chegou a decretar a área de utilidade pública para fins de desapropriação.
Fonte: Arquivo Pessoal de João Batista de Almeida Costa, 1991.
Segundo Lucas Bueno e assistentes (BUENO; BARBOSA;GOMES, 2008, p. 54),
as evidências possibilitam afirmar que a Lapa Pequena foi ocupada entre 8.240 AP e 530 AP,
sendo o período entre 7.800 e 7.400 foi o de ocupação mais intensa. O material lítico lascado
recolhido foi basicamente de sílex e quartzo; além do material lascado, foram identificados os
quebra-cocos tanto na superfície, quanto nos níveis 9 e 19 da tabela acima; além de inúmeras
fogueiras ao longo da estratigrafia do abrigo. Há também os artefatos de argila, basicamente
em cerâmica, mas há também os roletes que podem ser naturais ao invés de artefatos. O
material de cerâmica em torno de 17, aparecem em cerca de 50 cm superficiais, com maior
concentração nos 20 cm. Nos níveis 6 e 20 ocorrem com maior frequência artefatos de ossos e
hematitas. Há de salientar amostras de ossos calcinados. Acerca das amostras, Bryan e Gruhn
levantam a seguinte hipótese:
186
Os habitantes da Lapa Pequena tenham desenvolvido uma economia baseada
principalmente no consumo de grandes lesmas terrestres e cocos de palmeiras, com
uma adição ocasional de grandes e pequenos mamíferos e pássaros, além de conchas
de águas doces. Quanto a tecnologia e à mudança cultural, a partir da análise e
caracterização preliminar dos artefatos coletados nas diferentes matérias-primas, os
autores apontam para a existência de um cenário marcado pela estabilidade e
continuidade ao longo do tempo. (BUENO;BARBOSA;GOMES, 2008, p. 59 - 60)
De acordo com os próprios pesquisadores canadenses: “There is no basis for
dividing the continuous sequences of occupations into arbitrarily defined phases or even
assemblages” (BRYAN; GRUHN, 1978, p. 299). Recentemente, nos anos 2000, Lucas Bueno
retomou os trabalhos na região da Lapa Grande, especialmente na Lapa Pequena, iniciando
seus trabalhos a partir da coleção coletada pelos canadenses. (BUENO; BARBOSA; GOMES,
2008).
Figura 81 – Arqueologia na região da Lapa Pintada por volta da segunda década dos anos 2000.
Fonte: Arquivo Pessoal de Eduardo Gomes, 2013.
187
Nos anos 1980, sem grandes programas, novos sítios foram identificados, como a
Gruta do Salitre, Lapa do Pilão, Lapa do Bolívar, Lapa do Bolívar 2, Lapa da Divisa, Lapa da
Mandinga e Sítio do Engenho (PAULA; SEDA, 1979/1980). Em meados de 1990 o grupo de
espeleologia Peter Lund iniciou atividades e exploração do potencial das grutas da região de
Montes Claros. As visitas do espeleogrupo Peter Lund, das proximidades da Lapa Grande,
Lapa Pequena e a Lapa Pintada com a área urbana, resultou numa catalogação que hoje
ultrapassa mais de 45 sítios arqueológicos de uma região que foi tombada como Parque
estadual, o Parque estadual Lapa Grande, conforme o decreto nº 44.204, de 10 de janeiro de
2004, com uma área de 7.000 hectares, tem como objetivo proteger e conservar o complexo
de grutas e abrigos da Lapa Grande, que abriga sítios arqueológicos e sítios espeleológicos,
além de abrigar os principais mananciais de fornecimento de água para a comunidade de
Montes Claros e dos municípios vizinhos. (IEF, 2013). O Parque Estadual Lapa Grande está
em processo de alterações e ampliações durante o ano de 2013.
Figura 82 – Visita à região do atual Parque Estadual da Lapa Grande Fábio Marçal, Eduardo Guimarães, Malba
Tahan, Dona Jaci, Professora. Ivete e o último à direita, o saudoso Marcelo Condé. A Lapa Pintada de Montes
Claros, abrigo que faz jus o seu nome, pelos registros arqueológicos gravados.
Fonte: Arquivo Pessoal de João Batista de Almeida Costa, 1991.
188
3.2 AS LAPAS PINTADAS NO NORTE DE MINAS: Em Jequitaí, Capitão
Enéas e Montes Claros, um uso cultural e histórico do lugar
Em Montes Claros, em Capitão Enéas e em Jequitaí, o homem primitivo deixou
“lapas pintadas”, ou nas palavras de Campos (1983) “Parece ser mania do norte-mineiro
batizar reentrâncias nas rochas contendo sinalizações rupestres de ‘lapas pintadas’.” (Campos,
1983, p. 124). Cada um destes três municípios norte-mineiros mencionados, possui uma Lapa
Pintada. Os (três) abrigos foram e são utilizados de maneira diacrônica e as intervenções
humanas expressam um processo cultural contínuo de compreensão, os usos e representações
de um dado lugar, nestes casos, “as lapas pintadas”. (FAGUNDES; BAGGIO, 2011, p. 3).
Nesta perspectiva, buscou-se a compreensão destes sítios e como estes são
interpretados e utilizados como espaços e lugares. Baseado nesta interpretação é possível
observar que estes abrigos são em si, patrimônios regionais, fato comprovado pelo seu uso ao
longo do tempo. De certa maneira, faz parte do imaginário e do cotidiano das comunidades
que estão inseridas; elas os usam como acampamentos, para visitas turísticas, pesca ou banho,
enfim, lugar de lazer.
Nos anos 1980, a Lapa Pintada de Jequitaí foi utilizada como um santuário
religioso, recebendo inúmeras imagens de santos e construções históricas para contenção de
água. Na mesma década Campos (1983) cavalgava pela Lapa de Santo Antônio e Lapa
Pintada, no povoado de Santana da Serra, município de Capitão Enéas. Estes dois sítios
ficavam na propriedade do fazendeiro José Ferreira de Barros (o Zé de Adolfo). Esta região
havia recebido visita de pesquisadores do Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB) que
recolheram acervos.
A área do atual Parque estadual da Lapa Grande no município de Montes Claros/
MG pode ser tomada como fio condutor para conduzir através dos apontamentos dos
memorialistas do século XX as considerações e análises feitas pelos naturalistas europeus do
século XIX, embora de forma proposital, se fará considerações dos estudos destes estudiosos
que fogem a região, para situá-los enquanto pesquisadores e referências, além de
apontamentos atuais, demonstrando a necessidade da preservação do patrimônio arqueológico
e pré-histórico da região.
189
Figura 83 – Pinturas Rupestres da Lapa Pintada de Montes Claros, MG.
Fonte: Arquivo Pessoal de Eduardo Gomes, 2013.
Para Ribeiro; Gomes; César Junior (2005. p.60), “a área abrange a região central
da fazenda Lapa Grande, ao longo do rio de mesmo nome, oferecendo atrativos naturais e
diversificados. No trabalho, os autores propõem considerações sobre uma esperada criação do
atual parque estadual da Lapa Grande: “os primeiros proponentes tinham em mente a
preservação do mais extenso potencial espeleológico, arqueológico e histórico do Norte de
Minas, formado por grutas” (2005. p. 60). Barbosa (2005. p.73), afirma a Lapa Grande como
local de visitação de todos os visitantes ilustres que passaram pela região. Dentre eles pode-se
mencionar o barão Eschwenge, Auguste Saint-Hilaire, Spix e Martius e o Príncipe
Maximiliano Neuwided.
190
Figura 84 – Parque Estadual Lapa Grande.
Fonte: Fábio Marçal / Prefeitura Municipal de Montes Claros – MG.
Figura 85 – Rio Lapa Pintada de Montes Claros, MG.
Fonte: Arquivo Pessoal de Eduardo Gomes, 2013.
191
Figura 86 – Pinturas Rupestres da Lapa Pintada de Montes Claros, MG. Fonte: Arquivo Pessoal de Eduardo
Gomes, 2013. Modificado.
3.3 Capitão Enéas/MG – BRASIL
O município de Capitão Enéas está localizado no norte do estado, a 66 km da
cidade de Montes Claros – MG e a 492 km de Belo Horizonte, MG, é servido pela rodovia
federal BR 122.
192
Figura 87 – A cidade possui vias largas, o que pode ser facilitador para visitantes.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2009.
Integra o circuito turístico Sertão Gerais, o que o torna de fácil acesso, por ser
próximo a Montes Claros, cidade polo que é servida de serviços fundamentais para o turismo
como aeroporto e rede hoteleira. Capitão Enéas – MG possui significativo patrimônio
arqueológico. A região do povoado de Santana da Serra, 18 km a frente da sede do munícipio
apresenta um rico potencial arqueológico. Nos anos 1980, Campos recolheu materiais
cerâmicos em inúmeros cantos laterais da Lapa de Santo Antônio, embora não tenho visto
nenhuma pintura rupestre, porque já havia entardecido.
193
Figura 88 – Capitão Enéas no norte de Minas Gerais e próximo a Montes Claros.
Fonte: Atlas Brasil. http://www.atlasbrasil.org.br/2013/perfil/capitao-eneas_mg. Acesso em 30/07/2013
Pode-se investir nas potencialidades do seu patrimônio natural e cultural. Porém,
melhorias nas estradas que levam ao distrito de Santana da Serra tornam-se necessárias, com
suas importantes figuras rupestres e demais vestígios materiais encontrados como os de
cerâmica polida. Deve destacar que todo dia 13 de junho, o sítio rupestre Lapa de Santo
Antônio (próximo da Lapa Pintada) recebe uma celebração de missa e queimas de fogos de
artifícios. (CAMPOS, 1983, p. 124).
194
Figura 89 – Trecho da estrada para o distrito de Santa da Serra, Capitão Enéas – MG. Fonte: Arquivo Pessoal de
Thiago Pereira, 2009.
O município necessita investir em ações de educação patrimonial para que seus
moradores conheçam seu acervo arqueológico e seja ao lado do poder público, seu guardião.
Campos (1983) afirmou na década de 1980, o descaso com o acervo arqueológico de Capitão
Enéas – MG. Desde 1980, o descaso tem permitido a depredação e o desaparecimento de
precioso material para estudos do norte de Minas.
Figura 90 – Gruta do Mercado, no distrito de Santana da Serra, Capitão Enéas – MG.
de Thiago Pereira, 2009.
Fonte: Arquivo Pessoal
195
Figura 91 – Representação de antropomorfo e zoomorfo na Gruta do Mercado de Capitão Enéas – MG. Fonte:
Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2009.
Em visita às grutas, em 13 de junho de 1979, Campos encontrou uma escada
improvisada na Lapa de Santo Antônio, sítio arqueológico que junto com a Gruta do
Mercado, estão localizados em terras particulares. Em visita técnica de 2009 foi constatada a
mesma realidade descrita por Campos (1983), uma escada improvisada, para visualização das
pinturas rupestres na parte superior do paredão da Lapa de Santo Antônio, o que também
possibilita o vandalismo. Para divulgação deste patrimônio, será necessário estruturar os sítios
para visitação, bem como, articulação entre o poder público local com os proprietários da
fazenda para receber os visitantes, além, de cursos para guias e equipamento de segurança. A
cidade de Capitão Enéas – MG possui todas estas possibilidades, havendo investimentos,
melhorias na qualidade de vida da população local naturalmente atrairão visitantes, trazendo
um desenvolvimento articulado com a preservação dos bens citados, portadores de referências
a essa gente, quer os da herança ameríndia ou da tradição da missa anual de 13 de junho.
196
Figura 92 – Fotografia mostrando zoomorfo semelhante a uma coruja, balaio e demais instrumentos geométricos.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2007.
3.4 Jequitaí/MG – BRASIL
A cidade de Jequitaí está localizada na região norte, a 93 km da cidade de Montes
Claros, polo regional e a 415 km de Belo Horizonte, MG, é servida pela rodovia federal BR
365. A cidade é uma das 08 que integram o circuito turístico Serra do Cabral.
197
Figura 93 – Jequitaí, no norte de Minas Gerais e em relação a Montes Claros.
Fonte: Atlas Brasil. http://www.atlasbrasil.org.br/2013/perfil/jequitai_mg. Acesso em 30/07/2013
Figura 94 – Jequitaí, norte de Minas Gerais por satélite.
Fonte: wikimapia.org. Acesso em 30/07/2013
198
Com vegetação típica de cerrado e grande quantidade de pinturas rupestres e
demais vestígios arqueológicos, Jequitaí possui uma concentração importante de áreas
arqueológicas. São mais de 10 sítios catalogados no sistema de gerenciamento do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Tobias Jr. (2010, p.67), pontua que os
primeiros registros de sítios arqueológicos identificados na região do município de Jequitaí,
foram realizados na década de 1970 por equipe do IAB-RJ (Instituto de Arqueologia
Brasileira), no âmbito do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), sob a
coordenação do Prof. Dr. Ondemar Dias Júnior. Tanto Tobias Jr. (2010, p.67-68). Fagundes e
Baggio (2011, p. 10), pontuam que “ainda naquela mesma década, os arqueólogos canadenses
Alan Bryan e Ruth Gruhn visitariam a região em parceria com o recém-criado Setor de
Arqueologia da UFMG, sob a coordenação do professor André Prous. O professor Francês
André Prous teria enviado arqueólogos a Jequitaí em 1978 (Paula 1978/9). Fabiano de Paula
retornou a região nos anos 1980, como membro do Setor de Arqueologia da UFMG,
contratado pela Companhia do Vale do Rio São Francisco (CODEVASF), juntamente com
Wilfred Brandt, encontrando novos sítios arqueológicos. enquanto naquele mesmo ano, uma
equipe do Centro de Pesquisas Geológicas (CPG) vinculado à UFMG fazia visitas aos abrigos
rochosos da região, retornando no ano seguinte junto com CETEC (Fundação Centro
Tecnológico de Minas Gerais)” (TOBIAS JR, 2010, p. 67). Em 2004, a arqueóloga Juliana
Cardoso colaboradora do Laboratório de Arqueologia da FAFICH/UFMG pesquisou nas
proximidades de Jequitaí, especificamente em Buritizeiro – MG.
Os estudos no sítio cemitério Caixa d’água no centro de Buritizeiro, encontrado
nos anos 1980, possibilitou reflexões e questionamentos que “chegaram” por via fluvial, isto
é, percebendo o rio Jequitaí como possibilidade de deslocamento de prováveis populações
(encontradas) em Buritizeiro. Em 2007, enquanto André Prous, representando a UFMG,
enviava Martha Maria de Castro e Silva, Vanessa Linke e o egresso do curso de história, o
Rogério Tobias (TOBIAS JR. 2010, p. 69); Thiago Pereira havia ingressado em Jequitaí num
trabalho social e teria contato com as áreas arqueológicas. Estes "dois braços do rio" de 2007
resultariam nos estudos mais recentes acerca de Jequitaí. Segundo Fagundes e Baggio:
Especificamente para Jequitaí, mais recentemente, temos o trabalho de Rogério
Tobias Júnior, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais;
que em 2010 defendeu a dissertação intitulada “A arte rupestre de Jequitaí entre
práticas gráficas “padronizadas” e suas manifestações locais: Interseções estilísticas
no sertão mineiro”. [...] Finalmente, cabe destacar o trabalho de Thiago Pereira
199
(2010), que realizou trabalho monográfico tendo como tema específico a Lapa
Pintada. (FAGUNDES;BAGGIO, 2011, p. 15 – 16)
As pesquisas de campos distintos resultaram em trabalhos acadêmicos defendidos
ambos no ano de 2010. Um do campo da antropologia (setor de arqueologia), que intitulada A
Arte Rupestre de Jequitaí entre práticas gráficas “padronizadas” e suas manifestações
locais: Interseções estilísticas no sertão mineiro de autoria de Rogério Tobias Jr. e
apresentada ao Programa de Pós-graduação em antropologia da UFMG, preocupou em
contextualizar as práticas gráficas de Jequitaí num contexto mais amplo, percebendo assim, as
semelhanças, mas também as particularidades; movido por questões acerca da ocupação préhistórica de áreas próximas a Jequitaí. Tobias apoiou-se em perguntas de Fabiano de Paula
para pensar suas questões acadêmicas, ou em suas palavras:
Fabiano de Paula havia observado (Engevix, 1996)que a região de Jequitaí estava
localizada estrategicamente entre diversos conjuntos arqueológicos muito bem
conhecidos pelos arqueólogos. Ali poderiam ser observados os possíveis vestígios
da presença de pelo menos dois grandes conjuntos rupestres definidos a partir de
sítios em outras regiões: Tradição São Francisco e Tradição Planalto. (TOBIAS JR,
2011, p. 70-71)
O trabalho monográfico apresentado ao departamento de história da Unimontes
(Universidade Estadual de Montes Claros) intitulado O PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
DE JEQUITAÍ/MG: O Sítio Lapa Pintada (PEREIRA, 2010), preocupou com a Lapa Pintada
por ser o sítio mais próximo da comunidade jequitaiense, por depredação no sítio e a
possibilidade do uso do sítio arqueológico para a educação patrimonial. Pereira (2010) buscou
na contribuição da arqueóloga Niède Guidon e no seu trabalho social incluso no projeto
arqueológico no sudeste piauiense; perspectiva para pensar a educação patrimonial como
ferramenta para incorporar a herança pré-colonial indígena (expressa pelas figuras rupestres) a
memória social e histórica da comunidade jequitaiense.
200
Figura 95 – Representação de zoomorfo na Lapa Pintada de Jequitaí – MG. Fonte:
Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2008.
3.4.1 LAPA PINTADA, UMA DAS INÚMERAS ÁREAS DE JEQUITAÍ
O Sítio Lapa Pintada é formado por uma saliência do paredão que acompanha o
rio Jequitaí na margem direita. Tomando a principal praça denominada de “Cristo Redentor”,
no centro da cidade de Jequitaí, como referência para se chegar a Lapa Pintada: deve-se seguir
no sentido sul, pela Rua do Sítio, no bairro Alta Varginha, até a Ponte do “córrego Sítio”, a
partir deste trecho, a estrada é de cascalho e se desdobra em duas vias, sendo a via direita a
alternativa para se chegar a Lapa Pintada. Em sentido reto até a subestação da Companhia de
Saneamento de Minas Gerais (COPASA), no final da estrada à margem direita do rio; em
tempo de seca atravessa-se o rio a pé em leito de seixos rolados ainda pela margem direita,
dista da sede aproximadamente 2,6 km, ou seja, está localizado ainda em perímetro urbano.
Qualquer morador de Jequitaí conhece bem a região da Lapa Pintada, tanto porque está
localizada a subestação da COPASA quanto porque a região é um dos pontos de lazer e de
pesca da população.
201
Figura 96 – A ponte do Sítio, após este trecho é de terra e um pouco mais a frente o trajeto com
automóveis é mais difícil, porque vai encolhendo, mas dá para chegar.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2010.
Figura 97 – A ponte do Sítio, após este trecho é de terra e um pouco mais a frente o trajeto com
automóveis é mais difícil, mas dá para chegar. Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2010.
202
Ao chegar avista-se a subestação da COPASA, mas as pinturas se concentram no
paredão mais abaixo, sendo necessário descer uma escada quase que natural até o paredão que
as pinturas se encontram (que está apresentado nas figuras abaixo).
Figura 98 – A subestação da COPASA, a partir deste trecho já se concentra o que chamamos de
área de influência do sítio, porque pode concentrar possíveis materiais líticos, vestígios e ossos.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2010.
203
Figura 99 – A seta preta indica que é a lateral da Subestação, e os eclipses vermelhos,
é o lugar da escadinha que será demonstrada na foto seguinte (figura X).
Fonte: Arquivos Pessoais de Thiago Pereira, 2010.
204
Figura 100 – A escadinha.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2010.
As pinturas se concentram no paredão apresentado na foto abaixo:
205
Figura 101 – Os eclipses de vermelho revelam a localização dos painéis do sítio rupestre, bem com a presença
das pichações. Fonte: Arquivo de Thiago Pereira, 2010.
Figura 102 - É uma foto que mostra uma visão geral dos painéis da esquerda. Os eclipses brancos representam
ações de depredação e vandalismo no paredão, nota-se que nos debaixo, a tinta é spray sobre as pedras.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2011.
A Lapa Pintada é uma saliência do paredão direito do rio Jequitaí, revelando uma
temática rupestre variada. A Lapa Pintada provavelmente foi utilizada em períodos sazonais e
de curtas paradas (PEREIRA, 2010; CAMPOS, 1983). Nas visitas de Campos em 1979, o rio
Jequitaí estava tão cheio, que as vazantes ultrapassaram os limites, deixando o sítio rupestre
submerso por vários dias. Pereira buscou uma metodologia de painéis mais livre, seguindo as
concentrações dos grafismos e definindo aproximadamente 08 áreas de concentração, sendo
um destes, bem distante do bloco que 97% estão concentradas; por sua vez, Tobias Jr. definiu
XII painéis, mas teve conclusão semelhante quanto às áreas concentradas.
206
Figura 103 – Representação de zoomorfo na Lapa Pintada de Jequitaí – MG.
Fonte: TOBIAS JR, 2010, p. 131.
O nicho na rocha de quartzito revela temática rupestre variada, utilizada inclusive
para cerimoniais, de acordo com o trabalho de Campos (1983, p, 107). Na década de 1980, o
autor citado menciona um santuário religioso na Lapa Pintada, que até 2011 ainda existiam
imagens religiosas.
207
Figura 104 – Imagens de Santos na Lapa Pintada na década de 1980.
Fonte: CAMPOS, 1983.
Figura 105 – Imagens de Santo na Lapa Pintada, 2011
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2011.
208
Em julho de 2013 já não havia nenhuma das imagens religiosas que eram
expressão do santuário que existia desde 1980. (PEREIRA, 2013). A temática rupestre do
sítio registra exemplos de sinais, instrumentos, zoomorfos, antropomorfo, motivos
astronômicos. Tendo como cor predominante, o vermelho escuro, além do vermelho claro,
laranja e amarelo.
Há representação de um pássaro, idêntico ao que aparece no sítio da Lapa do Sol,
no mesmo município, parecendo com a letra “M” distorcida para representar o voo, diante de
quatro círculos, uns dentro dos outros, que devem significar um sol radiante. Existe também,
uma meia-lua, com pequenas cruzes, talvez sendo representações de estrelas. O pássaro e os
círculos são na cor laranja; os outros homocêntricos são em vermelho ou em laranja. A meialua também é laranja e as linhas que cruzam são vermelhas. São vários os zoomorfos de
tamanhos variados e espalhados ao longo da rocha. Há representações de lagartos, outros mais
alongados dando a ideia de jacarés, tendo como cor o vermelho forte e um dos desenhos em
vermelho claro. Nas figuras de peixes, sempre de perfil, duas merecem atenção: uma, em
vermelho, porque parece representar a espécie flechada na cabeça; a outra pela beleza, já que
o corpo tem uma longa barbatana em cima e duas menores em baixo, além de duas linhas
centrais em cima e duas menores em baixo. Sua cor é laranja. Há mais, um camundongo
estereotipado.
Em vermelho claro, uma forma ovulada, vista de cima, com duas pernas ou
barbatanas de cada lado, lembrando inseto ou peixe. Em Jequitaí peças líticas já foram
encontradas, machados chamados de pedras de raio, acabam sendo enterrados ou lançados em
rios por superstições ou por temores de atrair raios. Além do fácil acesso que possibilitou a
degradação de alguns grafismos rupestres presentes no sítio em estudo.
209
Figura 106 – Painéis da Lapa Pintada, 2011 bem como, pichações históricas.
Fonte: Arte de TOBIAS JR, 2010.
210
Figura 107 – Fotografia de 1963, mostrando as depredações no fundo, presentes desde 1939.
Fonte: Gentilmente cedida pela professora e geógrafa Aparecida Costa/Arquivo Pessoal de Thiago Pereira,
2011.
Figura 108 – Fotografia de 2012 mostrando a tinta industrial presente desde 1939.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2011.
211
A região do sítio Lapa Pintada em Jequitaí é também área de banho, de
piqueniques e de pescas. Portanto, a educação patrimonial é uma ferramenta importante para o
conhecimento histórico e cultural do local. (FAGUNDES; BAGGIO, 2011, p.6). Além da
Lapa Pintada declarada sob a preservação (nominalmente) nos anos 1980, há também
importantes áreas arqueológicas, como a região das Bibocas e o Curral das Pedras.
Figura 109 – Fotografia de 2007 mostrando a população jequitaiense em piqueniques.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2007.
Figura 110 – Fotografia de 2007 mostrando a população jequitaiense em piqueniques.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2007.
212
3.5 Francisco Dumont e a Serra do Cabral/MG - BRASIL
O munícipio de Francisco Dumont também banhado pelo rio Jequitaí, está
encravado na Serra do Cabral. A Serra do Cabral localiza-se no médio vale do São Francisco,
entre dois de seus afluentes, o Jequitaí e o rio das Velhas, nos territórios dos munícipios de
Buenópolis, Joaquim Felício, Lassance, Várzea da Palma e Francisco Dumont. A serra é
inserida ao complexo da Serra do Espinhaço, embora esteja isolada por uma depressão de 40
km de largura, cortada pela rodovia que liga Montes Claros – Belo Horizonte.
Figura 111 – Mapa do Estado de Minas Gerais com a Serra do Cabral em destaque.
Fonte: Cavalcante, 207/2008.
A arte rupestre de Francisco Dumont, banhada pelo Jequitaí, está associada ao
contexto da Serra do Cabral. Até o presente não foi encontradas gravuras rupestres, mas uma
quantidade abundante de pinturas em todos os sítios. Os principais temas das pinturas
rupestres da Serra do Cabral são os zoomorfos (representações de animais) com 58,3% das
representações; seguida de signos e ideomorfos com 37,5% e 4,2% de representações
antropomórficas (representações humanas). (CAVALCANTE, 2007-2008, p. 49).
213
Figura 112 – Arte Rupestre da Serra do Cabral.
Fonte: Cavalcante, 207/2008, p. 38.
As cores das pinturas da Serra do Cabral são geralmente o vermelho (84,8%),
além do amarelo (12,4%), do branco (2,4%) e o preto com 0,3%. Os mamíferos representam
40,8% das representações zoomórficas, seguida dos peixes com 39,5%, o que pode ser
justificada pela presença desta fonte de proteínas ao longo do Jequitaí, rio das Velhas e São
Francisco desde os tempos pré-históricos. (SEDA, 1998; PEREIRA, 2010); há também
representações de répteis com 13,3% e de aves com 5,3%. Os mamíferos geralmente são
cervídeos (60,4) como uma representação presente no sítio Lapa Pintada de Jequitaí, região
próxima. Além de possíveis sinais geométricos, pontuadas desde os anos 1990 por André
Prous (1992, p. 515 – 521). Seda traz considerações importantes, ao pontuar que a arte
rupestre da Serra do Cabral é arte transitória entre a arte rupestre de Lagoa Santa e a arte
rupestre do norte do atual estado de Minas Gerais e Vale do Jequitinhonha. (SEDA, 1998).
Para Seda, teria tido um primeiro momento de semelhança com as pinturas do
norte de Minas e do Jequitinhonha, que recebeu um segundo momento, com influências da
214
arte de Lagoa Santa, resultando uma arte rupestre própria, mas que é fruto desta confluência e
transição.
Figura 113 – Cervídeo da Serra do Cabral.
Fonte: SEDA, p. 289.
Segundo Cavalcante (2007-2008), a região da Serra do Cabral foi prospeccionada
pela primeira vez em 1972 pelo Programa de Pesquisas Arqueológicas do Vale do São
Francisco (PROPEVALE). Criado em 1970 pelo IAB (Instituto de Arqueologia Brasileira) foi
coordenado pelo Dr. Ondemar Dias Jr.. O PROPEVALE partia da mesma metodologia do
PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas), programa desenvolvido após
conferências dos arqueólogos americanos Betty Meggers e Clifford Evans, em parceria do
IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e da Smithsonian Institute,
objetivou prospecções e testes (pequenas escavações), visando elaborar sem demora, um
quadro geral das culturas brasileiras. A distinção do PROPAVALE é que restringiu ao estado
de Minas Gerais.
Seda pontua que:
é interessante notarmos que muitas das regiões do norte mineiro pesquisadas pelo
Setor de Arqueologia da UFMG já havia sido anteriormente trabalhadas por equipes
do IAB durante o PROPEVALE.Contudo, ao longo de todos esses anos, estas duas
instituições deram exemplo de um trabalho harmonioso, com cooperação e troca de
informações, apesar de, por vezes, divergirem metodologicamente. (SEDA, 1998, p.
84).
215
As primeiras pesquisas de 1972 foram em Lassance e Joaquim Felício,
identificando três sítios arqueológicos. Em 1974, Joaquim Felício foi novamente visitado,
identificando mais um sítio. Em 1983, Buenópolis foi visitado, tendo tido mais oito sítios
registrados. Na atualidade, há 10 sítios registrados no município de Lassance registrados no
IPHAN.
Figura 114 – Três cadastros de sítios no Sistema do IPHAN no munícipio de Joaquim Felício/MG.
Fonte: IPHAN, 2013.
216
Figura 115 – Lista dos sítios registrados em Lassance/MG.
Fonte: IPHAN, 2013.
Os estudos de Fabiano de Paula participam das referências consultadas para o
registro do sítio Lapa do Santo Antônio nos fins da década de 1980 por Carlos Magno
Guimarães (em 1989), responsável pela maioria dos registros. E o sítio Lapa da Onça foi
registrada em dezembro de 1989 pelo arqueológo Fabiano de Paula, tendo produzido 40
fotografias coloridas.
Em 1990, devido ao pontecial arqueólogico regional da Serra do Cabral foi criado
Projeto de Pesquisas Arqueológicas Serra do Cabral, sob coordenação geral do doutor Paulo
Seda, com verbas da Fundação Banco do Brasil e do CNPq. Em 1991, a Smithsonian
Institution enviou financimentos e em 1999 veio verbas da National Geographic Society. E
apoio da Prefeitura Municipal de Buenópolis e de moradores da cidade, que funcionou como
“area core” para as pesquisas, elevando o número de 66 sítios arqueológicos. Em 2006, o IAB
é contactado por uma empresa foi registrado 98 sítios arqueológicos na Serra do Cabral,
alcançando o munícipio de Várzea da Palma/MG e Francisco Dumont/MG. A estudante
Munique Cavalcante, participou destes últimos estudos como estudante de história da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), além de ter pesquisado em seu mestrado a
arte rupestre da Serra do Cabral, vinculada ao Mestrado de Arte Pré-histórica da Universidade
de Trás-os-Montes, Portugal.
Segundo Tobias Jr. (2010, p. 67), pesquisadores como André Prous, Fabiano de
Paula, Lorendana Ribeiro, Isnardi já haviam pontuado sobre a variação nos conjuntos
rupestres da região de Jequitaí e entornos. Em 2002, após de mais de uma década de estudos,
a arqueológa Juliana Cardoso retornou a região para novos estudos de impactos abientais
objetivando licenças prévias, sendo o próprio Tobias Jr. seu estágiario.
Além das pesquisas em Buritizeiro, no Cemitério Caixa D’Água, que revelaram
quase 50 sepultamentos primários datados entre 6000 e 4500 AP (Antes do Presente); gerando
novos problemas que exigiam pensar contextos regionais; há contribuição da tese de
Lorendana Ribeiro sobre a variação cultural das pinturas rupestres do Brasil Central e estudos
na região de Diamantina por Isnardi (TOBIAS JR, 2010). Todas estas pesquisas acumularam
conhecimentos, mas também indagações para pesquisadores do Setor de Arqueologia da
UFMG que voltaram suas atenções e pesquisas para a região de Pirapora e rio Peruaçu,
consequentemente chegando à Jequitaí e região, o que aconteceu em 2007, com o envio de
217
Martha Maria de Castro e Silva, Vanessa Linke e Rogério Tobias JR. por parte de André
Prous à Jequitaí.
O Projeto Arqueologia nas planícies e afluentes do alto-médio São Francisco:
munícipios de Jequitaí e Buritizeiro foi aprovado pelo CNPq, de autoria da doutora Maria
Jacqueline Rodet também do Setor de Arqueologia da UFMG, possibilitou que pesquisas na
região de Jequitaí acontecessem, bem como estudos específicos e produção da dissertação A
Arte Rupestre de Jequitaí entre práticas gráficas “padronizadas” e suas manifestações locais
(2010) de autoria de Tobias JR. Deve ressaltar ainda que em 2009, os arqueólogos Tânia
Porto e André Isnardi visitaram a região de Jequitaí, vinculados aos projetos hidroagrícolas da
CODEVASF.
Portanto, a região de Jequitaí, Francisco Dumont e municípios próximos,
demonstram rico potencial arqueológico, sendo a arqueologia de contrato determinante para a
identificação de novas áreas arqueológicas, devido à demandas da construção civil tão em alta
nos anos 2000, no Brasil e na região específica, destaque para o projeto Jequitaí, grande
investimento do governo federal na região.
3.5.1 A SERRA DO CABRAL: A Lapa da Dança
Munique Cavalcante dedicou dissertação acerca das pinturas rupestres do sítio
arqueológico Lapa da dança, localizado na Serra do Cabral. Cavalcante escolheu o
sítio,utlizando de analogia com o contexto europeu.
A Lapa da Dança é um conjunto de cinco blocos com pinturas, localizado na
margem direita do córrego do Buriti (distante aproximadamente 500 metros) de um local
denominado de “serra” do Cuba. A Serra do Cuba é uma extensa região na margem direita do
rio de mesmo nome, marcada por maçicos quartizíticos, não muito altos. É uma região
bastante mexida, portanto, com uma paisagem bastante alterada. Área de predominância de
campos rupestres, além de plantas de porte médio e grande como o pequizeiro (Caryocar
brasiliense); além de buritis (SEDA, 1998).
Escavações foram feitas no sítio em julho de 1999 e de 2002, mês de seca,
portanto de melhor facilidades para alcance do local. No material escavado, foi colhido
significativo resíduo de lascamento (CAVALCANTE, 2007-2008, p. 58). Além de coletas de
218
carvão para possíveis datações pelo Carbono 14; restos alimentações como ossos de animais e
coquinhos.
A Lapa da Dança, juntamente com a Lapa Pintada III (sendo esta última, o
principal sítio da região) são os únicos sítios que foram detectados como possíveis para
escavações. Segundo Cavalcanti:
Ambos são abrigos quartizíticos, com solo arenoso e destacam-se sobremaneira,
entre seus componentes culturais, instrumentos sobre plaquetas de quartzitos,
destacando-se plano-convexos, raspadores e raspadeiras duplas. Contudo, de
imediato, nota-se um forte contraste entre as dimensões das peças dos respectivos
sítios. (CAVALCANTE, 1998, p. 58).
Duas técnicas de lascamento foram identificadas na Serra do Cabral e no sítio em
questão. A unipolar e a bipolar. A técnica unipolar é a mais clássica e considerada por Prous
como “o artesão ou o experimentador segura um bloco (núcleo) de matéria-prima na mão
direita”. Escolhendo uma superfície adequada, (o plano de percussão), bate nela para retirar
uma lasca do bloco. Num plano igual ou inferior a 90 graus. A lasca obtida por esta técnica
apresenta as seguintes características:
- face interna (a que se refere no interior do núcleo, antes da retira da lasca;
- face externa (a que se encontrava no exterior);
- bulbo (na face interna, uma excrescência de forma conchoidal);
- ponto de impacto (ponto contra o qual, a força foi utilizada);
- ondas (são côncavas em direção ao ponto de impacto) e o talão.
A bipolar é portanto, segundo Prous (1998), bloco a ser debitado e colocado sobre
uma bigorna (suportes como seixos achatados ou blocos com faces planas que sirvam de
apoios para os objetos que serão lascados); e em seguida, golpiado violentamente pelo autor.
Nesta técnica o bulbo pode ou não estar presente, as faces internas e externas quase
indistintas; as estrias em várias direções e o talão cede lugar para a linha de esmagamento.
Segundo Cavalcante (2007-2008, p. 63), na Lapa da Dança, há a predominância
da técnica unipolar, o quartzito é a matéria-prima principal (seguido do quartzo e do sílex). A
técnica bipolar ocorre somente no quartzo. As lascas são pequenas dimensões (2,5 X 0X1,5
média). Foram classificados em 1) instrumentos brutos; 2) instrumentos polidos e picoteados
e 3) instrumentos lascados. A coleta do material até 2008 foi de 84 instrumentos (sendo 80
219
lascados; 03 brutos e 01 lascado). Além de sete exemplares de líticos plano-convexos tipo
“lesmas” e vinte e oito exemplares de artefatos reduzidos ou danificados.
Figura 116 – Instrumento lítico plano-convexo tipo “lesma” em quartzito.
Fonte: Arquivo do Instituto Brasileiro de Arqueologia.
Figura 117 – Ponta inteira em quartzo hilialino.
Fonte: Arquivo do Instituto Brasileiro de Arqueologia.
Dos cinco blocos que formam a Lapa da Dança, apenas o bloco 1 possui outros
vestígios que não sejam as pinturas rupestres.
220
Figura 118 – Lapa da Dança, bloco I.
Fonte: Cavalcante, 2007-2008, p. 71.
O bloco 1 foi dividido em cinco painéis. O bloco 1 está voltado para norte, sendo
o painel mais alto do bloco, sendo que a parte mais alta encontra-se a 5,5 m de altura do solo
onde encontram-se os demais vestígios de ocupação humana do abrigo. Destaca-se
visualmente neste painel um antropomorfo fálico em meio a zoomorfos e ideomorfos
(CAVALCANTE, 2007 – 2008, p. 72).
Figura 119 – Lapa da Dança, bloco I. Fonte: Cavalcante, 2007-2008, p. 72.
221
Encontra-se 1,5 m abaixo do Painel 1. Neste painel encontram-se antropomorfos
e zoomorfos muito esquematizados, em meioa uma infinidade de ideomorfos. É o maior
painel do sítio, mas encontra-se muito danificado pelas intempéries. (CAVALCANTE, 2007 –
2008, p. 74).
Figura 120 – Lapa da Dança, bloco II.
Fonte: Cavalcante, 2007-2008, p. 73.
O painel III – chega-se a ele subindo-se até uma laje de pedra. Embora seja o que
fique mais alto em relação ao solo arqueológico, em relação à laje de pedra encontra-se ao
alcance das mãos. Há pinturas chegando quase até o chão. Porém, diferente dos outros painéis
que são vistos de imediato por quem chega ao sítio, este é menos visível, encontra-se mais
abrigado que os primeiros e por isso suas pinturas encontram-se melhor preservadas.
Destacam-se, neste painel, um antropomorfo esquemático que parece estar dançando, uma
associação de peixe-cervídeo, neste caso em que dois peixes estão superpostos a um cervídeo
bem realista, além de dois cervídeos, um macho e uma fêmea, também bem realistas,
222
provavelmenteem atitude de cópula. Temos ainda outros zoomorfos, alguns mais realistas e
outros bem esquematizados, além de ideomorfos. Há uma grande variedade de motivos
superpostos, bem como dois estilos diferentes bem marcados.
Figura 121 – Lapa da Dança, bloco III.
Fonte: Cavalcante, 2007-2008, p. 74.
O painel IV está no teto, em frente do painel III, a 2 metros de altura da laje,
sendo constituído por uma grande representação de cervídeo.
Figura 122 – Lapa da Dança, bloco III.
Fonte: Cavalcante, 2007-2008, p. 77.
223
Além do painel V que é nincho distante dos demais e representa também um
cervídeo.
Figura 123 – Lapa da Dança, bloco III.
Fonte: Cavalcante, 2007-2008, p. 77.
A Lapa da Dança ocupa lugar distinto quanto aos demais sítios, tanto por ser um
dos poucos que possui outros registros além das pinturas rupestres na Serra do Cabral, bem
como, na trajetória de estudos e pesquisas da região. A superposição de pinturas, dentre elas,
cervídeos e peixes, além de questões como, a Serra do Cabral não é uma região rica em
peixes, por seus rios serem encacheirados, entretanto, os peixes ocupam espaço significativo
na temática rupestres local, sugerindo seu cárater simbólico, já que não corresponde a um
reflexo direto da realidade.
224
Figura 124 – Lapa dos peixes, Serra do Cabral.
Fonte: Cavalcante, 2007-2008, p. 100.
Além de que boa parte dos painéis da Lapa da Dança e de outros sítios da Serra do
Cabral estão voltados para “a serra” do Palmito – aglomerado quartizítico que se destaca na
paisagem como “montanha”, sugerindo um possível lugar e significado simbólico.
Figura 125 – “Serra” do Palmito. Fonte: Cavalcante, 2007-2008, p. 101.
225
Figura 126 – “Serra” do Palmito.
Fonte: http://www.juanjosemora.com.ve.
A Serra do Cabral portanto, abriga um potencial arqueológico que está por ser
descoberto, pesquisado e interpretado por gerações de pesquisadores, mas principalmente pela
população local, que tanto conhece deste patrimônio natural, que outrora abrigou as
populações pré-históricos que deixaram suas marcas, transformando a Serra em também,
patrimônio cultural.
226
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa objetivou a partir dos domínios da história, refletir a relação da
história com a materialidade de uma perspectiva interdisciplinar com campos como
arqueologia e antropologia. Esta perspectiva integra ao diálogo dos historiadores com outros
pesquisadores das áreas de humanidades e sociais em articular a vida social à materialidade
para a existência humana.
A cultura material, termo cunhado com mais de um século e meio, passou a
ocupar papel de centralidade para os estudos da história, antropologia e arqueologia, em maior
importância para esta última ciência. Passou a ter diferentes significados, desde a
compreensão como os vestígios construídos pelo homem (isto é, os artefatos), pelas práticas
arqueológicas do ramo Histórico-Cultural – herdeiro dos nacionalismos do século XIX. A
cultura seria a soma de todas as ideias, ações e materiais que caracterizam a natureza de um
determinado grupo humano. (FUNARI; CARVALHO, 2009, p. 5) Uma herança social, um
compartilhar de elementos como tradições, instituições e modos de vida. (CHILDE, 1956).
Os artefatos ainda nos domínios do ramo teórico do Histórico-Cultural foram
percebidos como uma documentação palpável (por isso, objetiva) para estudar os modos de
vida. A objetividade dos artefatos os colocaria como dados corretos, ou seja, inquestionáveis
sobre as culturas estudadas. Esta objetividade segundo Leroi-Gourhan possibilitaria a
arqueologia não encontrar limites espaciais ou temporais aos estudos, podendo elaborar
sínteses gerais e particulares de objetos analisados. A partir de 1980, essa perspectiva foi
questionada pelos pós-processualistas, além de que as ciências humanas e a arqueologia em
especial, se debruçaram para redefinições de conceitos como cultura e a objetividade do
pesquisador, devido às novas teorias do pós-modernismo. (FUNARI; CARVALHO, 2009,
p.5). Assim, conceitos estáticos para cultura e cultura material como as do HistóricoCultural, nos dias de hoje, são percebidos como múltiplos e fluídos, ou seja, cultura seria
tudo o que é produzido pelo homem, bem como, constantemente interpretada pelas pessoas.
No decorrer desta dissertação, preocupou-se em apresentar a vida social de parte
dos povos ameríndios, articulada à sua materialidade, relatos sobre estes e a reflexão a partir
do campo da história. Os povos ameríndios possuíam uma pluralidade cultural e
conhecimento acumulado que apesar de desprezado, ainda é possível rastrear parte a partir da
materialidade. O conhecimento passado de gerações permitiu desenvolver tecnologias como
227
captura do mel, de carnes e ovos oriundos das tartarugas marinhas e das de águas doces;
fabricação de mingau. Sobre (parte) do mundo simbólico, em tempos de guerras tribais, os
tupinambá usavam penas, ornamentos e adornos para fazê-los assemelhar com as emas –
assim, se o inimigo fosse mais forte, correriam como arma de guerra; mas se menos
numerosos e fracos, eram atacados com força e intrepidez, semelhante a esta ave firme. Além
da prática do canibalismo por parte dos ameríndios, (não todos), que acreditavam receber o
vigor e a força do inimigo. O tratamento legado ao doente, aparentemente deixado à margem,
se viesse a morrer, toda a tribo, especialmente, as mulheres tupinambá gritavam em alta voz.
No capítulo 2, tratou-se de dar corpo ao debate da história e cultura material, a
partir de uma história que apresentasse o início dos estudos de escavações no Brasil. Iniciadas
no Brasil do século XIX, especificamente, a então, província de Minas Gerais, as primeiras
escavações sistemáticas foram feitas por Peter W. Lund, reconhecido hoje, como pai da
arqueologia e da paleontologia nacional. Procurou-se traçar a curva de um destino, situar os
pontos que passou essa curva, colocando acerca de um homem de uma singular vitalidade e
interesse com a materialidade, povos ameríndios e fauna extinta do Brasil, bem como as
relações entre o indivíduo e a coletividade. Uma biografia de Peter Lund? Não, uma opinião
sobre Lund e seu mundo, nada mais. Objetivou a história de Lund, entrelaçando-a com a de
uma época inteira: as Minas Gerais do Império do Brazil do XIX.
No capítulo 3 foram apresentadas (partes das) potencialidades da cultura material
ameríndia no norte de Minas Gerais. As áreas escolhidas do norte mineiro (Montes Claros,
Capitão Enéas, Jequitaí, Francisco Dumont e a Serra do Cabral) foram escolhidas a partir da
subjetividade do pesquisador: os contatos de pesquisas, os estudos e as possibilidades
orçamentárias e geográficas. As considerações do capítulo foram feitas a partir de trabalhos
de consultorias e EIAs/RIMAs (Estudos de Impactos Ambientais e Relatórios de Impactos
Ambientais), que integram as realidades contemporâneas da construção civil no Brasil e no
mundo.
A região norte mineira possui potencialidades vinculadas com a articulação da
vida social com a materialidade quanto à existência humana. São inúmeros sítios
arqueológicos pré-históricos e históricos; alguns (re) conhecidos internacionalmente e
nacionalmente como o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu entre Januária e
Itacarambi/MG, no nível do estado de Minas Gerais como Parque Estadual Lapa Grande em
Montes Claros/MG, bem como inúmeras áreas de conhecimento local e regional,
marginalizados pelas ações de proteção do Estado como os inúmeros sítios arqueológicos da
materialidade ameríndia (pinturas rupestres, flechas e outros vestígios) em Jequitaí/MG; os
228
sítios arqueológicos também com pinturas rupestres e gravuras em Santana da Serra, distrito
de Capitão Enéas/MG; além de construções como a Igreja de pedras inacabada do século
XVII, junto ao encontro do rio das Velhas com o rio São Francisco em Barra do Guaicuí,
distrito de Várzea da Palma/MG.
Os desafios empíricos são enormes, mas não podem ser ignorados pelos
historiadores de uma região com tal potencialidade. Finalizando a dissertação às margens do
rio das Velhas, precisamente, no encontro com o São Francisco, percebe-se a potencialidade
regional quanto aos sítios arqueológicos e as lacunas presentes nos registros e historiografia
oficial. Está perante os olhos, uma igreja colonial de pedras inacabada.
A história da Barra do Guaicuí, ou simplesmente “da Barra” (para um garoto que
tanto visitou seus tios avós, tios e primos) é uma exemplificação deste potencial da cultura
material. Recheada de acontecimentos que remetem ao século XVII, quando o local foi
povoado por índios Cariris, emigrados de Santana do Cariri, no Ceará, que chegaram à região,
segundo os historiadores, provavelmente em busca de caça e pesca abundante. A posição
geográfica da Barra lhe reserva importância turística e ecológica, sendo, portanto, pedaço
precioso do sertão e norte de Minas Gerais.
A partir das lacunas da historiografia oficial, de conversas com moradores e
geração de anciãos que possui significativo conhecimento da história, do folclore e das lendas
locais, torna-se conhecido de que a região foi primeiramente ocupada pela Bandeira de Fernão
Dias, chefiada por Manuel de Borba Gato, que teria descido o rio das Velhas desde o território
da atual Sabará. A primazia da ocupação também é atribuída aos grandes fazendeiros baianos,
que desceram com o gado pelo rio acima. Além da tradição popular, associar a presença de
padres jesuítas no local, durante os séculos XVII e XVIII, época em que teriam construído
históricas edificações que hoje se encontram em ruínas na região. Inclusive há versões de que
os índios teriam sido os que ergueram o templo inacabado, há outras que apontam os escravos
africanos, os responsáveis pela construção e que a obra parou por pestes e doenças.
As edificações históricas, hoje, percebidas como produtos “finais” podem ser
usadas como fontes materiais que apresentam a história da Barra do Guaicuí, do norte de
Minas Gerais e do Brasil.
229
Figura 127 – Igreja Inacabada de Pedras (Igreja de Matosinhos) em Barra do Guaicuí/ Várzea da
Palma/MG.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira.
Figura 128 – Parte esquerda da igreja inacabada.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira.
230
Figura 129 – Parte central da Igreja, com visão para a nave e altar mor.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira.
Figura 130 – No fundo da Igreja de Pedras cresceu há cerca de 90 anos, uma gameleira.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira.
231
O caminho traçado procurou persegui a relação da história com a materialidade,
tentando rastreá-la para a compreensão das aproximações e das rupturas. O divórcio “antigo,
profundo e difícil de superar” (REDE, 2012, p. 133), tornou-se desafiante para nossa pesquisa
ao menos por duplo sentido: pela observação de que em no nível institucional, quanto
subjetivo, há um distanciamento e falha em considerar as articulações da vida social e a
materialidade; mesmo com grande diversidade de teorias acerca da experiência histórica.
Apesar disso, os avanços dentro da historiografia acontecem como a obra do historiador
medievalista francês Jacques Le Goff, que acabo de ter em mãos. Em Uma História do Corpo
na Idade Média, Le Goff e Nicolas Truong, apresentam o corpo e seu importante papel na
história, considerando-o como parte da cultura e não apenas da natureza. Para os autores, o
corpo é responsável por constituir a história, bem como, estruturas econômicas e sociais e
representações mentais – produtos e agentes do corpo.
Le Goff pontua que perceber a materialidade do corpo é avançar uma história
tradicional e desencarnada, dando corpo à história, bem como, uma história ao corpo. O livro
resultou da busca do corpo, seu lugar na sociedade medieval, sua presença no imaginário,
realidade e cotidiano, desde a dicotomia corpo/alma, passando pelo interior proibido do corpo,
o desprezado do corpo (carne), a salvação da cristandade pela mortificação da carne (corpo) e
os vários atores sociais como o monge que mortifica o corpo, a gula e a luxúria.
Os historiadores no norte mineiro, no Brasil e na América Latina, podem
decididamente contribuírem para os estudos da cultura material; apesar de que os arqueólogos
ficam mais à vontade quanto ao campo, a “A arqueologia não chegou de uma só vez à cultura
material: foi-lhe necessário o exemplo da pré-história”, os historiadores mexicanos estão
arvorando nova bandeira (a arqueologia social) que derrubam os conceitos de pré-história,
que foram cunhados nos séculos XIX e XX para um contexto geral, diferente das
particularidades do continente; os historiadores argentinos da Universidad Nacional de
Córdoba (UNC) estão encabeçando pesquisas e escavações por toda a argentina andina e
fronteiras com o Brasil, o Chile e o Paraguai; formando escola a partir da Cátedra de Préhistória. Os historiadores argentinos foram determinantes para esta pesquisa, possibilitando
que esta reflexão considerasse os avanços que estão ocorrendo na Argentina central a partir
das (nossas) escaladas por sítios arqueológicos de Traslasierra, região montanhosa próxima a
Mina Clavero, Argentina, permitindo o entendimento das limitações no Brasil e em nossa
região.
232
Figura 131 – Traslasierra, Mina Clavero, província de Córdoba, Argentina.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2012.
Figura 132 – Equipe de Estudo de campo, formada por pesquisadores da Cátedra de Pré-história da Universidad
Nacional de Córdoba e Thiago Pereira, pesquisador convidado do PPGH. Traslasierra, Mina Clavero, província
de Córdoba, Argentina.
Fonte: Arquivo Pessoal de Thiago Pereira, 2012.
233
Uma contribuição também importante veio dos historiadores, antropólogos e
arqueólogos mexicanos, vinculados a Faculdad de Ciencias Antropológicas de la Universidad
Autónoma de Yucatan, localizada em Mérida, sul mexicano, responsáveis pelas escavações,
pesquisas e interpretações de sítios de culturas como os povos maias. Entretanto, devido a
limitações de tempo, orçamentárias e de conclusão da dissertação, não foi possível participar
de escavações e debates acadêmicos junto aos colegas do continente30. Entretanto, ao longo
do tempo da pesquisa e escrita desta dissertação, houve estreitamentos e contatos com
pesquisadores e centros de pesquisas espalhados por diversos pontos do Brasil e demais países
da América Latina, possibilitando maior compreensão dos avanços, das limitações e das
rupturas ocorridos no Brasil e estabelecendo inferir que, uma aproximação cada vez mais dos
arqueólogos e historiadores brasileiros com os outros colegas latinos, gerará avanços para
questões que ainda são verdadeiras lacunas e indagações quanto a vida social dos povos que
ocuparam o território da atual América Latina.
Quanto aos caminhos para a pré-história brasileira e para a história dos povos
autóctones, as palavras de Leroi-Gourhan são valiosas: há o caminho do arqueólogo como o
caminho do historiador. Nele, estamos a escrever, lacunas, mas também, novas interpretações
acerca dos povos que nos formaram e que fazem parte da nossa história.
30
Objetiva-se mencionar honrosamente e com gratidão a atenção dos pesquisadores vinculados a Faculdad de
Ciencias Antropológicas de la Universidad Autónoma de Yucatan especialmente a doutora Lilia Fernández
Souza pela disposição por supervisionar estância de pesquisa de campo e gabinente desta pesquisa, bem como,
pela atenção e interesse para como os debates relativos a relação da história e a arqueologia no Brasil e da
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