Leia um trecho do livro

Transcrição

Leia um trecho do livro
O Infiltrado
O Infiltrado
Minha vida secreta
nos bastidores da
lavagem de dinheiro
do Cartel de Medelín
ROBERT MAZUR
E D I T O R A N O S S A C U LT U R A
Título Original: The Infiltrator
Copyright © 2009 Robert Mazur
Todos os direitos reservados pela Editora Nossa Cultura Ltda, 2010.
Editor-chefe: Paulo Fernando Ferrari Lago
Editores Assistentes: Renata Sklaski e Claudio Kobachuk
Tradutores: Christian Schwartz e Liliana Negrello
Revisoras: Tania Growoski e Adriana Gallego Mateos
Capa: Silmara Takazaki Egg
Diagramação: Silmara Takazaki Egg
Nota: a edição desta obra contou com o trabalho, dedicação e empenho
de vários profissionais. Porém podem ocorrer erros de digitação,
impressão ou dúvidas conceituais. Pede-se que seja comunicado à
editora no caso de existir qualquer das hipóteses acima mencionadas,
para maiores esclarecimentos.
EDITORA NOSSA CULTURA LTDA
Rua Grã Nicco, 113 - Bloco 3 - 5º andar
Mossunguê
Curitiba - PR - Brasil
Tel: (41)3019-0108 - Fax: (41)3019-0108
www.nossacultura.com.br
e-mail: [email protected]
***
Dados internacionais de catalogação na publicação
Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira
Mazur, Robert, 1939O infiltrado / Robert Mazur ; tradutores:
Christian Schwartz e Liliana Negrello. - Curitiba :
Nossa Cultura, 2010.
392 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-98580-83-8
Tradução de: The infiltrator.
1. Tráfico de drogas. 2. Lavagem de dinheiro.
3. Drogas – Controle. I. Título.
CDD ( 22ª ed.)
363.45
Para Evelyn, minha esposa, cujo amor e apoio
são maiores do que mereço.
SUMÁRIO
Prefácio: O dia do acerto de contas . ................................................ ix
1.
O começo............................................................................................. 3
2.
O nascimento de Robert Musella...................................................... 15
3.
Preparando a cena para os colombianos............................................ 31
4.
O Banco de Crédito e Comércio Internacional................................. 44
5.
O Joalheiro......................................................................................... 55
6.
O anzol de ouro................................................................................. 69
7.
A magia do Panamá........................................................................... 83
8.
Dando a partida................................................................................. 95
9.
Política..............................................................................................110
10. Los Duros e Los Angeles................................................................ 127
11. Atraindo os homens do cartel.......................................................... 135
12. A luta antes de ir à Europa.............................................................. 152
13. O plano europeu............................................................................... 166
14. Medelín invade Paris........................................................................181
15. Revelações....................................................................................... 202
16. O inimigo interno.............................................................................218
17. A primeira grande prisão................................................................. 235
18. O confessionário.............................................................................. 257
19. Fios soltos........................................................................................ 270
20. O fim da operação............................................................................ 289
21. Batalhas........................................................................................... 307
22. Os julgamentos.................................................................................316
Epílogo: O que se seguiu......................................................................... 339
Glossário de Nomes................................................................................ 347
Agradecimentos...................................................................................... 359
Índice...................................................................................................... 361
P r e f ácio
O dia do acerto de contas
Corte Distrital de Tampa, Flórida, Estados Unidos
26 de março de 1990
Guardas armados me levaram até uma sala pequena e sem janelas no
Fórum Distrital de Tampa, nos Estados Unidos. Através das brilhantes
paredes de mogno, antecipavam-se as vozes dos advogados discutindo e as
manifestações de uma desobediente multidão. Do outro lado da porta, eu
estava prestes a enfrentar alguns dos melhores advogados de defesa que o
dinheiro pode comprar. Pela primeira vez, desde o desmascaramento de Bob
Musella – meu disfarce como criminoso que lavava dinheiro – meia dúzia
de homens que acabavam de saber que eu não era um deles, iriam colocar
os olhos em mim.
Enquanto os minutos se arrastavam eu reunia forças para a batalha
que me aguardava, pensando em minha mulher e em meus filhos, que tinham
passado anos suportando as dificuldades de meu trabalho. Com a operação
encerrada, nós todos estávamos ansiosos para ter de novo nossa vida como
era antes, até sabermos que alguns dos 85 homens trazidos à justiça, na
primeira leva de denúncias, tinham colocado um prêmio de 500 mil dólares
pela minha cabeça. Minha família e eu fomos realocados e passamos a
viver protegidos por nomes falsos. Eu sabia que não suportaria viver, se
meu papel em derrubar cartéis e seus financiadores, fosse trazer qualquer
risco para aqueles que eu amava. A angústia e o trabalho pesado dos últimos
quatro anos não teriam significado nada. Eu precisava reunir toda a força e
determinação que pudesse, para passar os próximos três meses no banco de
testemunhas.
— Eles estão prontos para te ouvir agora — disse o oficial de justiça
encarregado, abrindo a porta e me tirando de meus devaneios. Ele me
conduziu pelo tribunal lotado de repórteres e espectadores, onde também
x
|
pr e f á c io
estavam as esposas e crianças dos réus, com quem eu tinha passado bastante
tempo. Elas não diziam nada, mas seus rostos gritavam: Como você foi
capaz? No piso da sala, os seis réus estavam unidos a uma constelação de
advogados.
Rudy Armbrecht, um dos maiores organizadores do cartel de Medelín,
tinha trabalhado lado a lado com toda a comissão do cartel para preparar
algumas das mais sensíveis operações nos Estados Unidos. Se a organização
precisava comprar um conjunto de aviões ou se era necessário checar a
viabilidade de algum esquema global de lavagem de dinheiro, era Rudy
que eles chamavam. Com a cara de um Jack Nicholson louco, ele possuía
a inteligência extraordinária e a capacidade filosófica de Hannibal Lector.
Pablo Escobar escolheu a dedo o chefe de Armbrecht, Gerardo Moncada
– também conhecido como Don Chepe, para controlar uma grande porção
do seu império. Armbrecht, confidente e amigo deles, foi quem agiu como
intermediário entre Don Chepe, Pablo Escobar e eu. Quando o olhei da
cadeira de testemunhas, Armbrecht ajeitou a gravata e, com uma aparência
um pouco demente, acenou para me dar olá.
Perto de Armbrecht, estava sentado o peixe ensaboado Amjad Awan,
um executivo sênior do Banco de Crédito e Comércio Internacional (BCCI),
que lavava dinheiro para alguns dos mais notórios criminosos do mundo.
Entre seus clientes estavam o Presidente Zia, do Paquistão, o general Manuel
Noriega, do Panamá e traficantes de alto escalão dos Estados Unidos. Filho
do ex-chefe geral do ISI – equivalente paquistanês da CIA – Awan apoiou um
grupo, na época conhecido como Guerreiros pela Liberdade do Afeganistão,
hoje conhecido como Talibã. Awan se mantinha calmo, com movimentos
estudados, como alisar sua gravata. De seu terno impecável e feito sob
medida, ele inclinou a cabeça para frente e olhou sem baixar o nariz, como
que insultado, do alto de sua realeza, pela minha presença.
Ao lado de Awan estava seu melhor amigo e colega do BCCI, Akbar
Bilgrami, com quem Awan dividia a responsabilidade de desenvolver novos
negócios do banco em toda a América Latina – onde eles procuravam
abertamente se relacionar com qualquer tipo de negócio sujo que pudessem
encontrar. Nascido e criado em Islamabad, Bilgrami falava um espanhol
fluente e passou longas temporadas de sua carreira na Colômbia, onde
conheceu sua terceira esposa. Bilgrami me encarou firmemente, mexendo-se
em sua cadeira e esfregando as mãos. Mesmo quando eu estava sob disfarce,
tinha dificuldade em deixá-lo à vontade. Não há dúvida que ele antecipava
que este dia ia chegar.
Ian Howard, um executivo do BCCI nascido na Índia, administrava
a filial do banco em Paris e fazia o trabalho sujo para seu chefe, Nazir
pr e f á c io
|
xi
Chinoy. Terceiro no mais alto escalão de executivos de um banco com
19 mil empregados, Chinoy dirigia todas as filiais da Europa e do norte
da África. Depois que ganhei a confiança de Chinoy em Paris, ele trouxe
Howard para nossos negócios. Chinoy estaria sentado no banco dos réus
também, se não estivesse ocupado tentando não ser extraditado de Londres,
onde as autoridades o prenderam e o estavam mantendo, sem possibilidade
de habeas corpus. A antiga prisão londrina, onde ele amargava seus dias,
fazia a maioria dos presídios americanos parecerem hotéis quatro estrelas.
Seu capacho, Howard, me encarava, mas nem seu corpo nem seu rosto se
moviam.
Também vindo de Paris, o braço direito de Howard, Sibte Hassan,
se viu preso na rede de operações em que trabalhei disfarçado. Hassan
era a mão que empurrava o dinheiro ao redor do mundo, de acordo com
a direção que Chinoy apontava. Mais novo e menos experiente que seus
colegas, Hassan nunca tinha entrado nos Estados Unidos antes de sua prisão.
Ele demonstrava confiança e subordinação a seus superiores até mesmo no
tribunal. Observava a todo tempo os outros réus para ver como deveria se
comportar.
O último do time era Syed Hussain, um executivo da área de
contabilidade da filial do BCCI no Panamá. Hussain via em mim uma forma
fácil de atingir a meta de atrair todo tipo de dinheiro, desde que a verba
ajudasse a aumentar os dividendos no balanço final do banco. Hussain foi
detido a caminho do que julgava ser minha despedida de solteiro. Quando
as algemas clicaram em torno de seus pulsos, ele riu. Surpreso, o policial
perguntou o que era tão engraçado. “Já estive em despedidas de solteiro como
estas, em que as mulheres se vestem de tiras e agem como se estivessem
prendendo você”, ele disse, rindo. “Onde estão as mulheres?” Os policiais
acharam graça, balançaram a cabeça em desaprovação e disseram: “Amigo,
você tem que acordar e tomar um café. Isso não é nenhuma fantasia. Você
está sendo preso”.
Como agente federal, passei anos disfarçado como criminoso
que lavava dinheiro internacional do submundo, infiltrado no zênite de
uma hierarquia criminosa salvaguardada por um círculo de banqueiros e
executivos sujos que, serenamente, moldam o poder em todo o planeta. Eles
me conheciam como Bob Musella, um executivo ricaço conectado à máfia e
vivendo a boa vida. Nós fazíamos festas em suítes de hotel que custavam mil
dólares o pernoite, vivíamos em casas faraônicas, dirigíamos conversíveis da
Rolls Royce, voávamos de Concorde e em jatos privados. Bob Musella era da
turma deles. Bob Musella tinha uma empresa de investimentos de sucesso e
sociedade em uma firma de investimentos de Wall Street, comandava uma
xii
|
pr e f á c io
rede de joalherias – ele tinha tudo. O que eles não sabiam é que eu não era
de fato Bob Musella. Esse nome e estilo de vida eram mentiras que eu vivia
com o único intuito de conseguir acesso à suas vidas secretas no submundo
criminoso.
Debaixo de meus ternos Armani ou de minha pasta Renwick,
minigravadores capturavam provas cabais de nossos parceiros no crime,
que eu então passava a meus chefes no governo. Depois de uma dramática
operação policial que aconteceu numa falsa festa de casamento (a minha),
mais de 40 homens e mulheres foram presos, julgados e enviados à prisão. No
ano e meio entre o fim da operação e o início do primeiro julgamento, uma
equipe de dedicados agentes e eu, gastamos 18 horas por dia transcrevendo
febrilmente mais de 1.400 gravações clandestinas. Elas se tornaram golpes
devastadores nos julgamentos que se seguiram, e a operação C-Chase se
tornou uma das operações de disfarce mais bem-sucedidas na história do
poder judiciário americano.
A história do meu papel no drama alimentou capas de revistas e
primeiras páginas de jornais por anos: New York Times: “Desmascarando o
banco do submundo”, Wall Street Journal: “Executivos do BBCI acusados de
lavagem de dinheiro”, New York Post: “Agente federal em disfarce de playboy
expõe gigantes das drogas”, San Francisco Examiner: “Narcobanqueiros
– Por dentro do mundo secreto da lavagem internacional de dinheiro das
drogas”. Mas o valor dessas denúncias perdia força se comparado às cifras
bombeadas para dentro dos bolsos dos advogados de defesa dos homens
que eu encarava do banco de testemunhas. Oficiais do governo, mais tarde,
calcularam que 42 milhões de dólares saíram dos acionistas do BBCI –
milionários sauditas e barões do petróleo – diretamente para os cofres da
defesa, com o intuito de garantir a absolvição dos executivos do banco – os
mesmos indivíduos que tinham cuidado de todas as minhas necessidades de
lavagem de dinheiro.
E essa cifra fica mirrada em comparação aos 400 a 500 bilhões de
dólares de receitas geradas pelo comércio de drogas a cada ano, de acordo
com estimativas do governo americano e da Organização das Nações Unidas.
Uma vasta soma, sem dúvida, mas o governo americano não consegue
rastrear nem 5% dessa riqueza. Bancos da Suíça, Panamá, Lichtenstein e
outros paraísos fiscais continuam a dar cobertura para dinheiro sujo, mas
meu trabalho como infiltrado disfarçado juntou evidências de que outros
locais menos tradicionais estão em ascensão. Os cartéis estavam começando
a mover seu dinheiro para lugares como Abu Dhabi, Bahrein, Dubai e Oman.
Esses bancos conduzem seus negócios em árabe, resistem a investigações
pr e f á c io
|
xiii
do judiciário de países ocidentais e florescem num comércio de dinheiro
baseado no dólar.
Os banqueiros criminosos em todos esses lugares ajudam a controlar
impérios multibilionários de traficantes de drogas que controlam suas
organizações como se fossem empresas públicas. Contadores, advogados e
conselheiros de finanças, as raízes vão fundo dentro das comunidades, e eles
vão lavando bilhões de dólares por ano, manipulando complexos sistemas
de finanças internacionais para servir aos senhores da droga, políticos
corruptos, fraudadores de impostos e terroristas. Sutis e sofisticados,
crescem no anonimato, oferecendo discretos serviços de primeira classe,
não importando quanta sujeira ou sangue o dinheiro protegido por eles possa
custar. E estão se dando bem a cada dia.
Esta é a história de como eu ajudei a derrubá-los. É também a história
de como um agente infiltrado conseguiu subir nas hierarquias, de como
informantes são cativados e vínculos de confiança são criados. Este é, de
um ponto de vista geral, um penoso olhar para dentro do mundo secreto da
lavagem internacional de dinheiro das drogas. E, do ponto de vista particular
e mais íntimo, é uma história de fugas penosas, escorregadas perigosas, e de
como a justiça ajudou enquanto meus colegas agentes e eu desvendávamos
o esquema, pista a pista.
Como tudo aconteceu é uma coisa que nunca compartilhei – até agora. Tudo
começou com uma taça de champanhe.
O Infiltrado
1
O começo
Staten Island, Nova York
Década de 50
Quando eu era criança, minha mãe me contou — à moda de uma fábula
com moral edificante — que meu bisavô, Ralph Cefaro, administrava
uma transportadora de fachada, para levar garrafas de uísque, durante a
Lei Seca, a Charlie “Lucky” Luciano, um dos mais notórios gângsteres
dos Estados Unidos, em Lower East Side, Manhattan.
Meu avô, Joe, e seus irmãos trabalhavam na transportadora com
caras que pertenciam a uma das gangues de Lucky. Quando Thomas
Dewey, um agressivo promotor, iniciou uma perseguição a Lucky e
toda a sua organização, um dos caras da turma, já fichado na polícia, foi
pego — não por engarrafar uísque — e enfrentou tempos difíceis como
reincidente. Meu avô, um verdadeiro homem, correto e honrado, assumiu
sua culpa. Depois de ficar um tempo preso, ele se mudou com a família
da rua East 14th para um pequeno apartamento de dois dormitórios,
próximo aos diques secos de Staten Island. Como muitos dos rapazes
da vizinhança à época, ele tinha um apelido: “Duas Cervejas” — que
ganhou porque, assim que o apito tocava marcando o fim do turno, ele se
dirigia ao bar Friendly Club e pedia, imediatamente, duas cervejas.
É unanimidade na família que eu era seu favorito — o que explica
por que, quando eu tinha apenas cinco anos, ele começou a me levar
ao Friendly Club para me exibir aos seus amigos. Como todo garoto
italiano daquele tempo, eu tocava acordeão e meu avô não resistia ao
impulso de me empurrar até o bar para que os amigos pudessem assistir
seu neto tocar sem olhar para a partitura. Cercado por barris de cerveja
4
|
o i n f i lt r a d o
e amplas nuvens de fumaça de cigarro, ele dava uma olhada para o
recinto em torno dizendo com os olhos: Ei, calem a boca. Nós vamos
ouvir o pequeno Bobby tocar agora. Todos os caras do bar silenciavam
de imediato para ouvir, enquanto eu maltratava o acordeão com uma
canção. Era terrível, mas ninguém ousava brincar com “Duas Cervejas”
Cefaro sobre os talentos musicais de seu neto.
Mais de uma década depois que ele morreu, consegui um trabalho
de verão na Brewers Dry Dock como carpinteiro, pintor e armador. No
meu primeiro dia, um dos caras que trabalhava ali há quase vinte anos
me perguntou:
— Ei, garoto, como diabos você conseguiu esse trabalho?
— Bem, meu avô trabalhou aqui algum tempo atrás e ele tinha
muitos amigos — eu disse, humildemente. — Um dos caras que ele
conhecia me ajudou.
— Ah, sim, e quem é seu avô? — ele perguntou, inclinando a
cabeça.
— Bem, ele morreu há algum tempo, mas todos o conheciam como
“Duas Cervejas” Cefaro.
— Tá de brincadeira — o cara respondeu, em choque. — Todo
mundo conheceu o Duas Cervejas! Ele era um cara e tanto.
Depois que a notícia de que eu era neto do Duas Cervejas se
espalhou, o chefe do sindicato da AFL-CIO, Steve, se aproximou.
— Ei, garoto, precisamos de sua ajuda hoje — disse. — Depois
que você se arranjar, venha me ver no cagador.
“Se arranjar”, na gíria das docas, significa ir pela manhã até o
chefe de sua área — carpintaria, no meu caso — para saber qual é o
trabalho que precisa ser feito durante o dia. E o cagador é exatamente o
que a palavra diz: um local onde ficam os banheiros, no centro do pátio.
Quando apareci, Steve explicou que eu devia ficar ali fora e bater
na parede se percebesse a aproximação de qualquer pessoa que não
trabalhasse no pátio. Minha tarefa coincidia com a visita de um tomador
de apostas local, que vinha recolher os palpites para números, cavalos
e jogos, dentro do cagador. Steve escolhia a dedo alguns de nós para,
num sistema de rodízio, fazer aquela função de olheiro. Mas antes que
Steve pudesse me pedir o favor uma segunda vez, um outro sindicato
substituiu a AFL-CIO, e Steve perdeu seus poderes. Foi uma importante
— e indolor — lição sobre lealdade e respeito.
o c om e ç o
|
5
Alguns anos depois, na faculdade Wagner, de Staten Island, dei de
cara com um anúncio de um cargo na Divisão de Inteligência da IRS1. Eu
não tinha nenhuma ideia do que a vaga poderia ser, mas era trabalho em
tempo integral para o verão e parcial para os meses de aula, além de uma
chance de conseguir um emprego depois da graduação.
Juntando informações sobre a função, tive a chance de falar com
um agente especial da divisão. Da forma como ele me descreveu, eles
não pareciam auditar e perseguir os joões-ninguém. Carregavam armas e
insígnias e trabalhavam lado a lado com outras agências, incluindo o FBI,
em operações conjuntas. Eles aplicavam a expertise contábil em casos
de crime de sonegação cometidos por traficantes de drogas, gângsteres
e grandes fraudadores fiscais. Com frequência ele usava aquele velho
ditado, de que a caneta é mais leve que a espada, terminando com: “Você
sabe, Al Capone foi mandado para a prisão por sonegação fiscal. Se não
fosse a gente ter levantado as evidências para cercá-lo, ele jamais teria
sido mandado para Alcatraz”.
Eu já estava tendo aulas de contabilidade e negócios, e isso tudo
soava muito mais divertido do que me tornar um contador mão-de-vaca
com um CPA (Certificado de Contador Público). Alguns anos antes, o
Chase Manhattan Bank and Montgomery Scott, firma de investimentos
no centro de Manhattan, havia me contratado como carimbador de
documentos — e eu tinha odiado. Queria uma carreira da qual pudesse
ter orgulho, que me mantivesse interessado, que não me encarcerasse
em uma rotina tediosa todos os dias. Foi sem dúvida minha experiência
extremamente penosa no Chase and Montgomery Scott que me empurrou
para meu contato com a IRS.
No primeiro dia de trabalho na rua Murray, 120, eu estava elétrico
de ansiedade para saber quem seria o gângster ou cabeça de organização
que nós iríamos derrubar até o final da tarde. Na verdade, levei um
verdadeiro choque. Depois de me instalar, o Agente Especial Morris
Skolnick, um sujeito de, certamente, seus 70 anos, veio se insinuando ao
meu redor e disse:
— Ei, garoto, vou te mostrar como fazer algumas coisas.
Ele agarrou um punhado de lápis número dois de sua mesa e
lentamente se dirigiu a um apontador manual. Enquanto lutava para
1 Internal Revenue Service, a Receita Federal americana. (N.T.)
6
|
o i n f i lt r a d o
deixar cada lápis bem apontado, olhando para mim, suspirou e murmurou
alguma coisa sobre como era importante começar o dia com seus lápis
bem apontados.
Então, ele me arrastou até a máquina copiadora, colocou um
esquema de horários no vidro e apertou o botão. Enquanto a máquina
devolvia as folhas, ele me explicou a importância de fazer “verdadeiras”
cópias e sempre compará-las ao documento original. Minha cabeça
começou a girar. O que tinha acontecido com a intrigante e aventureira
atividade de colocar caras maus na cadeia? Este não era o supertrabalho
de tira que fora anunciado. Pensei que tivesse comprado gato por lebre.
Mais tarde naquele dia, Tony Carpinella me resgatou. Supervisor
jovem na divisão, ele explicou que o escritório tinha duas facções:
os pilotos de escrivaninha, como o Skolnick, e caras como ele, que
gostavam de ver as coisas funcionando. Tony estava à frente do Grupo
Strike Force, uma dentre as várias unidades que Bobby Kennedy, como
procurador-geral, tinha estabelecido. Os agentes que se reportavam ao
grupo de Tony estavam trabalhando em casos de grandes gângsteres e
policiais sujos da cidade. Tony ainda me apresentou ao cara da unidade
de narcóticos, que estava juntando evidências contra Nicky Barnes, um
dos maiores traficantes de heroína do estado.
Um ex-veterano do Vietnã, Barnes liderava um círculo de servidores
corruptos que estavam mandando heroína para dentro dos Estados
Unidos em sacos colocados dentro dos corpos de soldados mortos no
Vietnã. Sua droga era vendida em todo o nordeste dos Estados Unidos. O
“homem da mala” de Barnes carregava pastas estourando com centenas
de milhares de dólares em dinheiro para uma agência do banco Chemical.
Agentes processaram com sucesso alguns empregados do Chemical, e
o banco pagou uma multa que era, como punição, pouco mais do que
um tapinha na mão. Sem os banqueiros, o dinheiro de Barnes era inútil.
Isso despertou em mim a suspeita de que o calcanhar de Aquiles do
comércio das drogas eram os bancos que prestavam serviços de lavagem
de dinheiro. Foi um primeiro gostinho da minha vida por vir.
Minha esposa e eu tivemos nosso primeiro filho enquanto eu
estava trabalhando como agente especial na cidade de Nova York. Tudo
correu bem com o bebê, mas Evelyn sofreu severas complicações. Ela
suportou meses de tratamento e, durante esse tempo, queimei minhas
férias e licença de saúde tomando conta dos dois. Ela ainda precisava de
o c om e ç o
|
7
cuidados, então contei a meus chefes na IRS sobre o problema e pedi um
adiantamento de licença para levá-los de carro para Tampa, onde meu
irmão e minha cunhada moravam e se dispuseram a cuidar deles.
Meus chefes me surpreenderam no dia seguinte quando disseram:
— Ei, você é mesmo sortudo. Há uma ordem de enviar alguém por
três meses a Tampa, e nós estamos escolhendo você.
Não havia ordem nenhuma. Eles tinham mexido os pauzinhos para
criar uma oportunidade para me ajudar.
Fui para Tampa, trabalhei em alguns casos e trouxe minha família
de volta a Nova York três meses depois. Quando voltei, minha divisão
me ofereceu uma transferência permanente para Tampa, e aceitei.
Na ensolarada Flórida, traficantes de drogas e criminosos que
lavavam dinheiro eram mais comuns que palmeiras. Para combater
o problema, a Divisão de Inteligência da IRS fez uma parceria com a
Alfândega dos Estados Unidos formando uma força conjunta chamada
Operação Greenback, criada para caçar quem estava lavando dinheiro.
Os casos, normalmente, requeriam disfarces e agentes infiltrados entre os
grupos que lavavam o dinheiro das drogas, mas a Divisão de Inteligência
só permitia que os agentes trabalhassem disfarçados se tivessem passado
por uma escola para infiltrados na cidade de Washington. Agora estava
ficando interessante.
A ideia de me passar por criminoso e ter que tomar decisões que
poderiam afetar um caso — e também minha vida — em segundos, me
agitava imensamente. Essa posição me colocaria na linha de frente, que
era exatamente onde eu queria estar.
Depois de suportar por algum tempo minha campanha de implorar
sem trégua, meu chefe finalmente me deu uma chance, e encontrou um
encaixe para mim. Qual não foi minha surpresa ao entrar na classe, em
Washington, e dar de cara com Joe Hinton, um antigo amigo da Divisão
de Inteligência em Nova York. Joe e os outros agentes que ensinavam
por lá nos passaram todos os truques que conheciam. Duas dessas dicas
chamaram minha atenção e ficaram na minha cabeça desde então.
Primeiro: apesar de existirem pessoas dentro das divisões que
podem ajudar agentes sob disfarce a conseguir falsos documentos
de identidade, Joe sustentava: “Não use a sua divisão. Consiga os
documentos, sozinho”. Se você conseguir os documentos, sozinho, pode
ter certeza de que eles são quentes e nenhum atalho foi tomado para
8
|
o i n f i lt r a d o
chegarem até você. Se recebê-los de alguém da seção de disfarces em
Washington, com uma conexão em um banco ou uma empresa de cartões
de crédito, pode estar certo de que uma marca vermelha no arquivo da
empresa o identificará como um contato do governo no caso de você
furar a conta. Esses pequenos deslizes administrativos poderiam acabar
com você se o seu alvo tivesse altas conexões.
Segundo: quando você criar seu disfarce, procure fazê-lo o mais
próximo de sua experiência de vida real, para minimizar o número de
mentiras que terá que contar. Se você é originalmente da cidade de
Nova York e trabalhou no distrito financeiro, sua nova identidade deve
trazer esses mesmos elementos essenciais. Você não pode oferecer uma
experiência de vida que não conheça intimamente para seu personagem.
O diabo mora nos detalhes.
Quando voltei a Tampa, comecei a trabalhar em meu primeiro
disfarce e ler pilhas de livros sobre como criar novas identidades e checálas para saber se são verdadeiras. Com mais ajuda de Washington do que
eu jamais aceitaria em futuros disfarces, criei Robert Mangione — bem
a tempo para uma tarefa inesperada e para meu primeiro trabalho como
agente infiltrado.
A operação Greenback, em Tampa, juntou forças com o FBI e o
2
DEA para se infiltrar em um enorme esquema de tráfico de maconha.
A organização criminosa ficava em São Francisco, mas os responsáveis
por lavar dinheiro estavam convenientemente baseados 96 quilômetros
ao sul, em Sarasota.
Com a ajuda de um alcaguete, a força-tarefa criou um plano
para que eu e dois outros agentes disfarçados, posássemos de grandes
traficantes de cocaína, que precisavam de ajuda para lavar seus lucros.
Buddy Weinstein, um esguio e falador agente do DEA de Chicago,
interpretou seu papel de chefe do grupo perfeitamente. Jim Barrow, um
agente negro do FBI, com uma voz grossa e um corpanzil enorme, se
passava pelo guarda-costas. Eu era Robert Mangione, que mantinha os
livros contábeis e respondia a Weinstein.
O trabalho de Weinstein o levou a São Francisco, e Barrow e eu
tivemos a tarefa de lidar com o advogado Jack Dubard e um contador,
Charlie Broun, em Sarasota. Como muitos dos meus futuros colegas em
2 Departamento antidrogas do governo dos Estados Unidos. (N.T.)
o c om e ç o
|
9
disfarce, Jim não precisava de documentos ou da cobertura de ninguém
para convencer criminosos de que era um deles. Ele só precisava entrar
pela porta. Jim tinha coragem de sobra, mas atenção em falta, na hora
de cuidar dos detalhes que protegiam sua identidade. Mais de uma vez,
enquanto estávamos dirigindo, eu o vi quase pagando a gasolina com
o cartão de crédito do governo. Ele também tentou levar sua arma e
insígnia quando íamos decolar para São Francisco e visitar o cabeça
da organização na qual queríamos nos infiltrar. Minha cabeça também
estava em jogo, e não economizei saliva para lembrá-lo disso. Juntos,
devíamos parecer algo como o Chester e Spike3, dos antigos desenhos
animados.
Jim e eu gastamos um mês em preliminares com Broun e Dubard,
que estavam levando grandes quantias para Bruce Perlowin, em São
Francisco. Como um teste dos seus talentos, dei aos dois a oportunidade
de me levar a Las Vegas e me apresentar aos seus contatos nos cassinos.
O prometido era que os garotos trocariam as notas pequenas — de cinco,
dez e vinte –, que nós diríamos que tinham sido coletadas de nossas
vendas de drogas, por notas de cem fresquinhas.
Em Vegas, Broun e Dubard me apresentaram a Joe Slyman, dono
do Royal Casino — uma operação pequena comparada a outros cassinos
como o The Dunes, que Broun disse que também lavava dinheiro
sujo. Slyman nem mesmo piscou ao ouvir que precisávamos de ajuda
em nossos negócios com cocaína. Ele fez os acertos com o gerente do
cassino para que nossas notas pequenas fossem trocadas por cédulas de
cem e para que fossem arrumados papéis que nos fizessem passar por
jogadores sortudos que tinham ganhado os tubos por lá.
Depois que Broun e Dubard abriram seus contatos em Vegas,
faltava um advogado na Flórida que conseguisse conexões com empresas
estrangeiras, que seriam usadas na abertura de contas bancárias fora dos
Estados Unidos. E tudo foi feito num piscar de olhos.
O Washington National Bank, nas Ilhas Cayman, abriu seus braços
e bolsos para nós e nossa horda de cédulas de cem. Broun transportou o
dinheiro em um avião comercial para Cayman — onde, em seguida, fez
documentos de empréstimo para justificar a transferência do dinheiro
3 Dois cachorros, um enorme e um pequenino, personagens do desenho animado Looney Tunes.
(N.T.)
10
|
o i n f i lt r a d o
de volta aos Estados Unidos. Tudo pareceria um inocente empréstimo à
empresa americana que eu controlava. E, assim, notas de cinco e dez se
transformaram em financiamento legítimo para uma empresa americana.
Mais tarde, Broun e Dubard acabaram sabendo que procurávamos
uma conexão no mercado da maconha para um cliente que já operava no
negócio com toneladas de erva de primeira qualidade. Então, eu disse
que se nos ajudassem a achar um contato, reservaríamos uma fatia do
bolo para eles. Rapidamente foi arranjado um encontro entre todos nós e
o cabeça da operação de São Francisco.
Bruce Perlowin, um gênio frágil, de rabo de cavalo e óculos fundo
de garrafa, parecia mais um estudante de psicologia do que o cabeça
de uma organização criminosa que movimentava centenas de toneladas
de maconha, da Tailândia e da Colômbia para os Estados Unidos, em
cargueiros, rebocadores e navios de pesca. Hollywood jamais o escolheria
para interpretar seu próprio papel e, por instantes, logo que entrou no
quarto de hotel em Sarasota para nos encontrar, ele não impressionou.
Porém, quando abriu a boca e começou a falar, esse homem mostrou que
sua inteligência chegava a patamares que a maioria das pessoas jamais
imaginaria.
— Ganhei meus primeiros 100 mil dólares quando ainda usava
calças curtas — ele se gabou, admitindo em seguida que, quando
trabalhou em Miami, dirigiu uma das maiores organizações ilegais
que o país jamais viu. Ele possuía dezenas de lanchas, navios de pesca,
barcos pesqueiros, e tinha pago 3 milhões de dólares por apenas seis
dos muitos barcos de sua enorme frota. Mas tinha deixado Miami há
alguns anos porque o comércio de drogas na Flórida estava corrompido
por assassinos.
Ele foi, então, pioneiro de toda uma nova operação em São Francisco,
onde gastou 500 mil dólares por semana em despesas operacionais —
adquirindo barcos, docas e depósitos e cooptando pessoal. Desde que
se estabelecera na Califórnia, tinha comandado 17 viagens, nenhuma
delas interceptada pela polícia. Seu parceiro tinha um negócio legítimo
de 30 milhões de dólares, financiado pela importação de 10 toneladas de
haxixe por ano nos últimos dois anos. Bruce mesmo explicou:
— Sabemos onde a Guarda Costeira fica... Tenho toda a informação.
Sei onde cada barco de merda da Costa Oeste está. No ano passado,
fizemos a viagem ‘T’ [da maconha tailandesa]. Nós seguramos o barco
o c om e ç o
|
11
fora da costa por duas semanas porque havia um bloqueio massivo da
Guarda Costeira procurando um enorme carregamento de heroína vindo
do México. Sabíamos que eles estavam procurando pelo cargueiro The
Cyrus. Sabíamos onde ambos os aviões [da Guarda Costeira] estavam
voando. Sabíamos a rota que eles tomariam. Sabíamos onde estava cada
um dos barcos da Guarda Costeira, e havia mais barcos espalhados do
que em qualquer situação anterior. Não acreditávamos que ficariam ali
muito tempo. Eles não têm tanto dinheiro para ficar tanto tempo, mas
ficaram. E nós simplesmente esperamos eles saírem — e então passamos.
Weinstein e eu explicamos que estávamos contentes por termos
cruzado nossos caminhos com o dele. Perlowin reagiu anunciando que
tinha se sentido livre para falar conosco porque podia sentir que não
éramos tiras. Weinstein — que poderia ter sido um comediante em vez
de um agente federal — não se conteve. “Eu pareço com o J. Edgar
Hoover4?”, ele brincou. (Isso aconteceu antes da publicação de A Vida
Secreta de J. Edgar Hoover, de Anthony Summers, com alegações sobre
suas práticas de transformismo, mas ainda assim...)
Alguns dos minutos mais longos da minha vida se passaram
enquanto Perlowin, de pernas cruzadas em posição de lótus na cama do
hotel, balançava a cabeça, olhava por baixo dos óculos e estudava cada
um de nós, sua cabeça girando como o telescópio de um tanque.
— Vocês não são policiais — ele proclamou, finalmente. — Não
é que vocês não pareçam, mas não sinto cheiro de polícia em vocês. Se
vocês fossem tiras, eu saberia. Sou muito intuitivo.
Perlowin nos convidou para visitá-lo em Ukiah, na Califórnia, onde
Weinstein, Barrow e eu passamos alguns dias dentro de seu território
seguro. Do topo das montanhas da Califórnia, Perlowin supervisionava
o movimento de enormes quantidades de maconha, escondidas dentro de
barcos que flutuavam em direção à ponte Golden Gate — bem embaixo
dos narizes de tiras cuja imaginação não podia competir com a de
Perlowin.
A pequena mansão em que ficamos tinha constantes ruídos vindos
de aparelhos eletrônicos futuristas, capazes de envergonhar a tecnologia
da CIA. Grades elétricas escondidas embaixo dos carpetes poderiam
surpreender os invasores indesejados. No andar mais alto da casa ficava
4 John Edgar Hoover foi, durante 48 anos, o chefe do FBI. (N.T.)
12
|
o i n f i lt r a d o
um centro de comando com paredes de aço, linhas internacionais gratuitas
e sofisticados equipamentos de rádio, usados para fazer a comunicação
com os capitães dos barcos que traziam maconha das costas da Colômbia
e da Tailândia. Câmeras escondidas por toda a casa vigiavam os passos
de todo mundo, e sensores espalhados por toda parte detectavam
absolutamente tudo. Num paiol da propriedade, Perlowin mantinha
um trailer cheio de aparelhos eletrônicos que, em momentos críticos,
ele despachava para o topo de uma montanha no Skyline Boulevard, na
península de São Francisco, onde se podia ligar a sala de aço do comando
aos contatos na Colômbia e capitães no Pacífico e monitorar os barcos da
Guarda Costeira americana.
Depois de meio ano de trabalho infiltrado e doze encontros gravados
com Broun, Dubard e Perlowin, nós tínhamos evidências mais do que
suficientes para derrubá-los — e muitas outras pessoas na organização
criminosa viriam junto. Meu desafio final no caso era preparar o bote.
Broun e Dubard tinham ido para Biloxi, no Mississipi, onde estavam
começando a operar em franquias de hotéis. Eu precisava passar algum
tempo com eles para descobrir onde Perlowin estava escondido — para
que, então, pudéssemos cercá-lo — e depois prender também os dois.
Em Biloxi, Broun e Dubard literalmente me estenderam tapetes
vermelhos. Eles estavam operando na rede de hotéis Red Carpet Inn.
Pensavam que eu vinha visitá-los porque meus financiadores — quero
dizer, os Mangione — estavam suficientemente à vontade para chegar
diretamente neles e testar seus talentos em transações maiores. Broun
e Dubard realmente acreditavam que eu estava trabalhando para
bacanas de Nova York que precisavam que seu dinheiro fosse lavado e
reinvestido. Eu disse a eles que chegaria primeiro e meus chefes viriam
no dia seguinte.
Na casa de Broun, Dubard e sua esposa estavam preparando um
banquete. Broun me recebeu com um abraço e todos sentamos para uma
refeição sulista, incrementada e feita em casa, digna de Elvis. Enquanto
cada qual se acomodava em sua cadeira, Charlie e Jack, sentados ambos
a meu lado, estenderam-me as mãos. Charlie abaixou a cabeça com
grande seriedade e disse:
— Vamos todos dar as mãos e abaixar nossas cabeças. Senhor, nós
vos damos graças por trazer à nossas vidas esse ser humano maravilhoso:
o Bob. Nós somos muito abençoados por essa bondosa, afetuosa e leal
o c om e ç o
|
13
amizade. Senhor, nós vos agradecemos do fundo de nossos corações.
Amém.
Assim que erguemos novamente as cabeças e abrimos os olhos,
precisei de toda a sinceridade que pude conseguir para dizer a todos ao
redor da mesa que eu também me sentia abençoado e valorizaria suas
amizades por toda a vida.
Depois do jantar, Charlie Broun me deu as pistas sobre Perlowin
— que estaria voando para Chicago no dia seguinte. Broun me passou
detalhes suficientes para que os agentes pudessem coordenar a prisão.
No dia seguinte, levei Broun, e mais tarde Dubard, a um hotel nas
proximidades para o que eles pensavam ser um encontro secreto com
meus chefes de Nova York. Pouco depois de deixar os dois, equipes de
agentes desceram e os levaram algemados. Foi um imenso alívio que
tanto Broun quanto Dubard tenham decidido cooperar imediatamente.
Enquanto os agentes estavam se cumprimentando e proclamando vitória,
mandados de busca eram executados e nós fomos comemorar. Mas, por
algum motivo — um motivo que eu não conseguia explicar — não me
sentia no clima das celebrações.
Na manhã seguinte, liguei para Ev e contei o que acontecera.
Enquanto eu falava, lágrimas rolavam pela minha face e minha voz
tremia. Não era tristeza, mas eu não conseguia entender o que estava
acontecendo. Estava sentindo algo que nunca tinha sentido antes.
Depois de gastar seis meses infiltrado nas mentes e corações de
Broun e Dubard, uma pequena parte de Bob Mazur tinha incorporado
uma parte de Bob Mangione. Aqueles dois homens tinham cometido
crimes e mereciam ser processados. O único jeito de fazer a operação
dar certo era mentir para eles. Mas eu tinha mentido a mim mesmo que
gostava deles e agora estava pagando o preço emocional por isso. A
pequena parte de mim que se tornara Bob Mangione sabia que as vidas
deles e de suas famílias tinham mudado para sempre. Eu havia traído sua
confiança mais profunda. O que conflitava com tudo que aprendera com
meu avô.
Mas estava apenas fazendo meu trabalho. Nunca perdi de vista
quem eu era e o que estava fazendo, mas a força de interagir com eles de
tão perto me fez suscetível à suas dores. Em algum nível eu me importava
com eles; não se consegue fingir isso — não por meses ou anos. Alguns
veem isso como uma fraqueza, mas para mim é o custo de fazer a coisa
14
|
o i n f i lt r a d o
certa, uma espécie de efeito colateral. Foi minha disposição em me expor
à dor deles que me permitiu ganhar os corações de meus alvos.
Bruce Perlowin também cooperou depois de sua prisão, que levou
a centenas de outras. Mas foi a ajuda de Charlie Broun que se destacou.
Eu e os outros agentes responsáveis pelo caso apoiamos totalmente uma
redução de pena para ele. Seu último recurso deu em cinco anos de
prisão. Poderia ter sido muito pior.
O advogado que ajudou Broun a estabelecer as conexões com as
empresas estrangeiras e com o banco das Ilhas Cayman foi indiciado.
Mas depois que a procuradoria apresentou o caso, o juiz considerou que
os testemunhos de Broun e Dubard, sobre as conversas entre eles e o
advogado, não poderiam ser considerados. O juiz arquivou o caso e nós
aprendemos uma lição valiosa. As pessoas que dão seu testemunho sobre
crimes cometidos precisam ter provas sólidas do que realmente aconteceu.
E para que o caso seja totalmente à prova de furos, a testemunha que
gravou as conversas deve ser um agente infiltrado. De outra forma, juiz
nenhum acreditaria que um advogado tinha lavado milhões de dólares
propositadamente. Também ficou claro quão enorme era a burocracia na
IRS. Os agentes especiais da IRS encaram uma burocracia monumental
em contraste com a virtual falta de regras na Alfândega. Agentes da IRS
precisavam de cinco aprovações superiores para fazer o que os agentes
alfandegários faziam por conta. Então, quando Paul O’Brien, o agente
no comando do escritório da Alfândega em Tampa me fez uma proposta
de me juntar à sua equipe, foi uma decisão fácil. Ele me ofereceu um
emprego, para o qual eu teria que fazer treinamento de novo e para o
qual eu teria uma redução de salário. Mas valia a pena, por conta da
oportunidade de fazer mais do que eu mais queria fazer.
Foi uma decisão fácil, que mudou minha vida.
2
O nascimento de Robert Musella
Crooked River State Park, St. Marys, Geórgia
26 de setembro de 1983
Ele não sabia que o informante estava usando uma escuta.
O proeminente advogado de Tampa, George Meros, estava dando
cobertura a um gigantesco esquema de tráfico, de centenas de milhares
de quilos de maconha, para o sudeste do país, em navios de pesca de
camarões. Ele não apenas financiava os negócios e lavava o lucro das
drogas como, depois de limpar o dinheiro por meio de contas na Suíça,
enxertava milhões no desenvolvimento de um enorme complexo de
veraneio na praia.
Steve Cook, um antigo colega da IRS que também tinha se
juntado à Alfândega como agente especial, procurou Meros no sistema e
descobriu que eu estava em sua cola. Cook me chamou e me deu acesso
a um informante preso que tinha algumas dicas quentes para desvendar
as atividades desonestas do advogado.
Instruímos a esposa do informante a fazer contato com Meros e
explicar que seu marido seria transferido de uma prisão “pó-de-arroz”
no Sul da Geórgia, para uma em Tampa — onde ele passaria por um
interrogatório sobre a origem do dinheiro que financiava seus negócios.
Meros voou o mais rápido que pôde até a Geórgia para instruir o
informante, mas ele não sabia que o homem estava usando uma escuta.
O caso logo se tornou uma enorme e promissora ação.
Com a ajuda de várias agências e de Bill King — um dos mais
brilhantes promotores públicos que este país jamais viu — enviamos
agentes para vigiar a firma de advocacia de Meros, enquanto eu escrevia
16
|
o i n f i lt r a d o
uma notificação que pudesse autorizar a procura no local, por registros
que o ligassem a seus anos de financiador desonesto. Com o mandado em
mãos, obtivemos as evidências mais destruidoras que se possa imaginar
— que incluíam registros da conta na Suíça e um complexo passo a passo,
escrito à mão, de como era operado o esquema de lavagem de dinheiro.
Esses registros e o testemunho de meia dúzia de traficantes apavorados
renderam a Meros uma sentença de 40 anos de prisão.
Para impedir que minhas tendências de trabalhador compulsivo
afetassem a qualidade de meu trabalho, Paul O’Brien e eu começamos
a correr e a sair juntos. Ele adorava softball e virtualmente forçava todo
o escritório, incluindo eu mesmo, a jogar no time. Na verdade, um dos
episódios mais estranhos de minha carreira no governo aconteceu numa
noite em que tínhamos planos de jogar softball. Dois agentes de nosso
time não poderiam aparecer porque precisavam efetuar uma prisão. Eles
abordaram o criminoso, algemaram-no e o jogaram no banco de trás, mas
seguiram as regras de Paul, de que nossa liga esportiva era prioridade.
No caminho para a prisão local, passaram ao acaso pelo campo, onde
viram que nosso time tinha três pessoas a menos e estava para perder o
jogo.
Um dos agentes virou para o prisioneiro e disse:
— Você sabe jogar softball?
O prisioneiro respondeu:
— Não apenas sei jogar, como sou o cara.
— Fechado — o agente decidiu. — Tire as algemas dele. Ele vai
jogar.
Então, voltou-se para o criminoso e acrescentou:
— Olha, estamos todos armados. Se você fugir, vamos te matar.
Eles tiraram as algemas, providenciaram uma camiseta do time e
ainda fizeram o criminoso jogar de interbase, para que sempre houvesse
algum policial na primeira e na terceira bases, que pudessem impedi-lo
de fugir. O cara se mostrou um excelente jogador e era o único homem
na base, no final do último tempo, quando a bola foi lançada por sobre a
cabeça do último campista. Ele se esforçou tanto para pontuar a última
corrida que estirou o tendão do joelho — quase deu para ouvir o estalo.
O time o ajudou a ir até o banco de reservas e brincou que seus feitos
heróicos no campo o qualificavam para uma redução de sentença. Então,
os agentes o levaram e o ficharam.
o n a s c im e n t o d e ro b e r t mus e l l a
|
17
Enquanto estávamos trabalhando no caso Meros, O’Brien e eu
discutíamos os benefícios de construir uma identidade falsa sofisticada
que eu pudesse usar para me passar por um criminoso que lavava
dinheiro. Impressionado com meus avanços desde que chegara ao
escritório, O’Brien me deu carta branca e, mesmo eu já tendo frequentado
a Escola de Infiltrados da IRS, me mandou para a Escola de Infiltrados
da Alfândega — uma exigência da agência.
A preparação das acusações contra Meros e seus traficantes tomou
a melhor parte dos três anos seguintes à sua prisão. Durante a cantilena
sem fim de mandados de busca, prisões, entrevistas, depoimentos e
rastreamento de pistas, comecei a me preparar para meu trabalho pósMeros. Com a aprovação de O’Brien, iniciei o desenvolvimento da falsa
identidade de um homem de negócios ítalo-americano, administrador de
companhias que poderiam servir de veículo para a lavagem de grandes
somas de dinheiro sujo.
Forjar uma identidade é como envelhecer vinho. Você não pode
apressar o processo e precisa seguir alguns passos. Mais importante
ainda, é necessário ter uma base sólida: uma certidão de nascimento. E há
apenas duas formas de conseguir uma. A primeira: você pode caminhar
por um cemitério, procurar por túmulos de crianças que morreram e
anotar nomes e datas de nascimento. É preciso achar uma que tenha a
data próxima à sua e um nome que condiga com sua descendência. Com
essa informação em mãos, você deve entrar em contato com os cartórios
da cidade para pedir uma cópia autenticada da certidão de nascimento.
Se esta não for uma opção viável, um bom laboratório pode falsificar uma
identidade — mas é preciso falsificá-la perfeitamente, porque o formato
dos carimbos, assim como a esposa de César, precisa estar acima de
qualquer suspeita.
Entre os materiais que tínhamos conseguido na fortaleza de Bruce
Perlowin, estavam arquivos que continham documentações de mais de
200 identidades falsas que sua equipe desenvolvera. Nesses arquivos se
escondia a combinação perfeita: Robert Musella. Ele era ítalo-americano,
nascido com apenas alguns anos de diferença em relação a mim e na
mesma vizinhança. Mais importante ainda, seu primeiro nome era
Robert (em situações de estresse é duro não reagir usando seu primeiro
nome verdadeiro). E seu sobrenome começava com “M” (iniciais são
pistas óbvias).
18
|
o i n f i lt r a d o
De modo que eu me apropriei do trabalho que a equipe de Perlowin
tinha desenvolvido nessa identidade e a melhorei com a ajuda dos
laboratórios do FBI e da CIA, na cidade de Washington, que faziam o
trabalho de falsificação para nossa unidade de infiltrados. Um amigo
na IRS localizou um Número de Seguridade Social, com apenas alguns
dígitos diferentes do meu, e que a Previdência Social não tinha emitido.
Esse número me ajudou a conseguir uma carteira de motorista da Flórida.
A partir daí, com a ajuda de amigos de confiança em vários bancos, abri
várias contas, comecei investimentos e tirei cartões de crédito.
As regras da Alfândega permitiam fazer esses documentos e
abrir essas contas, mas ironicamente não havia verba para patrocinálas. Minha cabeça estaria em risco, portanto, e valia a pena transferir
milhares de dólares das minhas finanças pessoais. Meus depósitos nas
contas de investimento de Musella serviram como garantia para um
empréstimo bancário que — somado à utilização de cartões de crédito no
mesmo nome — ajudou a estabelecer um histórico bancário para minha
nova identidade. Com a ajuda de outro amigo, consegui regularizar um
endereço residencial e um histórico de empregos. Em um ano, Robert
Musella estava recebendo mais ofertas de cartões de crédito que eu e
minha esposa.
As carreiras de agentes vivem ou perecem de acordo com a qualidade
de seus informantes, e informantes são conseguidos nas mais diferentes
situações. Os mais confiáveis de minha carreira eram vira-casacas —
caras que ajudei a processar e que decidiram cooperar. Se eles optavam
por cooperar 100%, um vínculo para toda a vida se formava. Eles
cortavam seus laços com o mundo do crime e sua forma de subsistência
passava a depender do sucesso dos casos que traziam a mim. Esses
homens funcionavam como meus olhos e ouvidos no submundo e,
como bônus, tinham acesso a fontes normalmente não disponíveis para
agências e agentes.
Com isso em mente, desenvolvi um relacionamento com dois caras
sujos, ligados a importantes famílias criminosas de Nova York. Não
revelarei seus nomes em nenhuma circunstância — e, como informa a
página de catalogação bibliográfica no início deste livro, alguns detalhes
foram modificados para proteger suas identidades — mas eles foram
instrumentos de muito valor. Não eram literalmente mafiosos — ou seja,
o n a s c im e n t o d e ro b e r t mus e l l a
|
19
homens de descendência italiana que completaram o pré-requisito de
matar em nome da organização para se juntar à família criminosa — mas
tinham trabalhado em diferentes grupos criminosos traficando drogas,
repassando armas, cometendo extorsões e fazendo trabalhos como
guarda-costas. Aparentavam ser simpáticos, mas por baixo da superfície
ambos eram calculistas e letais. Pessoas à sua volta tinham o hábito de
aparecer com múltiplas marcas de tiros na nuca.
Dominic, um valentão quebra-ossos, coletava dívidas para um
dos grupos de traficantes financiados por Meros. Dominic e eu nos
conhecemos em sua audiência, enquanto nos encarávamos, separados por
uma mesa no tribunal do júri. Como um galo de briga, corajoso e com uma
encorpada e compacta compleição, ele sempre penteava seu cabelo para
trás meticulosamente. Nossos registros de suas conversas telefônicas, que
documentavam seu papel em inúmeros crimes, o mantinham preso pelas
bolas — e ele sabia disso. No começo da audiência, apresentamos ao juiz
as gravações do Dominic real, bem diferente do atencioso e devotado
pai de família que seu advogado estava vendendo. Quando as gravações
começaram a tocar, o juiz ouviu Dominic dizer:
Vocês têm o peixe pequeno, juro pelos meus filhos — escutem,
antes de eu ir para cadeia, ouçam bem, eu vou levar os outros malditos
comigo... Vou fazer alguma coisa com o Jeff. Vocês entendem o que
quero dizer? Eu o peguei naquela porra de casa. Fiquei escondido nos
arbustos por duas semanas… Digam ao Jeff que eu não vejo a hora de
encontrá-lo quando pegarem o pai dele. Nós iremos para a piscina. Vou
pelado para que ele não se preocupe de eu estar armado. Porque vou
morder o pau desse filho da puta e cuspi-lo na boca da mulher dele.
Os olhos do juiz se esbugalharam e Dominic foi mantido em prisão
cautelar, o que me deu a chance de negociar com ele. Levou algum tempo,
mas Dominic ganhou minha confiança quando deixou claro que iria
cooperar completamente. Apesar de sua aparência truculenta, alguma
coisa me convenceu de que ele era do tipo que late mas não morde.
Acabamos nos conhecendo bastante bem enquanto eu o preparava
para testemunhar contra Meros e seus clientes. Quando soube que
Dominic andava cobiçando seu café da manhã favorito — o sanduíche de
croissant com queijo, ovo e bacon do Burger King — passei a escorregá-lo
para ele toda vez que fazia uma visita à prisão com o intuito de interrogálo sobre detalhes de sua vida no crime. Em contrapartida, ele me divertia
20
|
o i n f i lt r a d o
contando histórias mais interessantes que as de O Poderoso Chefão. Uma
delas era a que ele tinha administrado um dos postos de comando de
drogas a partir da cobertura de um hotel em Fort Lauderdale. Desse ponto
privilegiado, ajudava a orientar os carregamentos marítimos de maconha
para seus destinos — de onde a droga era colocada em dúzias de lanchas,
para ser descarregada em lugares protegidos por policiais corruptos.
Para fazer seu trabalho como coletor de dívidas nos círculos da droga,
ele carregava uma maleta Halliburton, que chamava carinhosamente de
“kit matador”, contendo uma arma automática Mac-10 com silenciador,
mais uma granada 380 automática e luvas cirúrgicas.
Por encomenda de um dos clientes de Meros, uma vez ele ludibriou
um distribuidor cheio de dívidas, marcando um encontro tarde da noite
no restaurante Nathan, no bairro de Eltingville, em Staten Island. Levou
a vítima até um Cadillac estacionado nas proximidades e, em sua voz
grave com um forte sotaque que revelava que ele vivera em Staten Island,
mas tinha nascido e se criado no Brooklin, explicou:
Quando nós trouxemos o maldito para perto da parte de trás do
carro, eu abri o porta-malas, dei uns socos rápidos no nariz dele, joguei
o cara para dentro e acelerei em direção ao cemitério de Todt Hill. Meu
parceiro e eu pegamos o idiota e jogamos seu traseiro numa cova recémcavada. Enquanto o cara gritava para que o deixássemos sair, começamos
a jogar terra nele. Disse ao cara que não queria matá-lo, mas infelizmente
a ordem tinha sido dada.
Nem é preciso dizer que Dom conseguiu o dinheiro da dívida e
depois deixou o cara ir embora.
Na época em que Musella estava para entrar em cena, Dominic
estava solto. Ele tinha testemunhado em vários locais do país e colocado
algumas dezenas de pessoas na cadeia, tornando-se não apenas uma
testemunha de ouro para o governo no caso Meros, como também
em outros casos de mafiosos. O cara realmente tinha nove vidas. Ele
ajudou a tirar do jogo o chefe de uma família criminosa de Nova York
e, mesmo assim, não foi morto. Quando pressionado, afirmava que os
mafiosos presos tinham quebrado duas regras capitais de suas famílias,
envolvendo-se no tráfico e no uso de drogas, e por isso ele não teria
problemas.
É preciso virar um psicólogo amador para fazer o relacionamento
com um informante funcionar. Não se pode confiar em alguém que
o n a s c im e n t o d e ro b e r t mus e l l a
|
21
não esteja emocionalmente comprometido com você. E convencer
alguém como Dom a pensar em aceitá-lo como amigo, enquanto você
desenha uma linha emocional que ele nunca vai cruzar, é uma tarefa
que exige muita habilidade. Ele era uma fonte, e tudo o que falava ou
fazia precisava ser comprovado. Porém, o que quer que eu dissesse a ele,
não podia revelar essa necessidade paranoica de minha parte. Ele não
tinha qualquer razão para estabelecer um comprometimento emocional
comigo. Portanto, foi um imenso alívio quando, depois de contar para ele
que pretendia iniciar uma enorme operação como infiltrado, ele disse:
— Bob, sou grato por tudo que você fez por mim, então, se tiver
qualquer coisa que eu possa fazer para ajudá-lo, é só pedir.
Expliquei que imaginava estar em breve lidando com alguns caras
muito da pesada, da Colômbia. Precisava chegar até eles como um homem
de negócios bem relacionado com a máfia por duas razões. Primeiro,
porque essas credenciais me dariam credibilidade aos olhos do pessoal
do submundo — que estava procurando por um sólido contato para o
negócio de lavar dinheiro. Igualmente importante, eu estaria lidando
com grandes quantidades de dinheiro e com pessoas muito cruéis, que
poderiam tentar me enganar. Eles precisavam saber que não iam foder
comigo. Eu disse a Dom que seria de grande ajuda se ele pudesse fazer
algumas aparições como ator secundário, interpretando meu primo e
parte da minha turma. Ele rescendia a gente da máfia. Depois de dois
minutos em sua presença, ficava absolutamente óbvio que ele era um
marginal com conexões importantes e com quem era melhor não mexer.
Falei assim para ele:
— Os pilotos de escrivaninha do meu departamento não apreciam
caras como você, que têm sexto sentido em relação às pessoas. Caras
como você e esses colombianos podem sentir o cheiro de um tira a um
quilômetro de distância. Não tem ninguém no escritório que possa atuar
bem como você nesse papel, porque você simplesmente não precisaria
estar atuando. Você não precisaria se esforçar. Você já viveu isso.
Dom olhou para mim, desapontado:
— Bobby, você não precisa me vender toda essa história. Já disse
antes, farei qualquer coisa por você. Conte comigo para o que precisar.
Frankie, um amigo de Dominic, tinha trabalhado com ele nos
negócios da maconha. Quando Frankie e eu nos conhecemos, ele já
tinha sido enquadrado por entregar um caminhão lotado de drogas para
22
|
o i n f i lt r a d o
um agente infiltrado do DEA. Solto enquanto esperava o julgamento,
ele ajudava o DEA com o intuito de tentar reduzir sua pena ao mínimo
possível. Diferente de Dom, Frankie era um homem de negócios
discreto, bem educado e sofisticado — do tipo negociador de Wall
Street. Seu bigode bem aparado, unhas feitas e o tipo mediterrâneo
eram uma camuflagem natural para suas atividades no crime. Além de
ocasionalmente fazer entregas, ele também mantinha os registros de
Dom com centenas de milhares de quilos de maconha que entravam pelo
esquema de Fort Lauderdale.
Depois que foi pego, Frankie voltou para Staten Island e, em
conformidade com sua figura, foi trabalhar numa firma de vendas de Wall
Street que pertencia a seu tio. Tinha uma passagem pela polícia, portanto
não podia trabalhar como vendedor registrado, mas isso não impediu
sua família de assinar sua carteira de trabalho como administrador.
Como Dom, Frankie testemunhou contra um punhado de mafiosos que
controlavam o esquema de Fort Lauderdale. Ele estava aguardando a
sentença e, com a autorização do tribunal, seria um bom candidato para
dar apoio a Bobby Musella.
Expliquei a Frankie que pretendia me infiltrar entre os grandes
chefes da Colômbia e entre os grupos de lavadores de dinheiro que
serviam a eles. Depois de passar o conceito da operação, eu disse:
— Frankie, não tem jeito de essa operação ser impulsionada
somente com as ferramentas que o governo pode me fornecer. As pessoas
a quem estaremos caçando tem se dado bem há décadas porque são mais
espertas que o governo. Para isso funcionar, preciso da ajuda de caras da
vida real, como você.
— Dominic estará envolvido? — ele perguntou.
Eu não podia mentir.
— Sim — eu disse —, mas num nível diferente do seu. Então você
não terá contato direto com ele.
— Bem — ele respondeu pausadamente —, vamos ouvir o que eu
posso fazer para ajudar, mas eu não quero que Dominic saiba de meu
envolvimento.
— Olha — eu disse. — Ele vai ter que saber que você está na
equipe, mas não precisa conhecer os detalhes. Assim como no caso
de Dominic, eu gostaria que você atuasse como um dos meus primos.
No seu caso, realmente ajudaria se os colombianos e seus lavadores de
o n a s c im e n t o d e ro b e r t mus e l l a
|
23
dinheiro pensassem que eu tenho um papel importante numa firma de
investimentos e que desvio parte do dinheiro de meus clientes para contas
bancárias. Francamente, se conseguíssemos convencê-los a colocar seu
dinheiro sujo na firma, impediríamos o governo de tomar as contas
quando a operação terminar. Além disso, Frankie, essa ação chamaria a
atenção do juiz quando ele for considerar sua sentença.
— Acho que posso fazer isso — ele disse —, mas vou ter que
contar a verdade para o meu tio. Não acho que ele vá fazer nenhuma
objeção, já que isso vai me ajudar também.
Logo depois, Frankie ligou e disse que estava dentro. Eu disse a
ele que, em seu papel como meu primo, em várias ocasiões estaríamos
pessoalmente com os alvos, mas eu precisava ter sua palavra de que nem
ele, nem qualquer outra pessoa ligada a ele, tentariam fazer qualquer
contato independente com as pessoas a quem eu o apresentasse. Se ele
tentasse, o juiz responsável por sua sentença ficaria sabendo. Frankie era
um homem de negócios. Melhor explicar os termos de um contrato do
que cruzar espadas.
Então, me aproximei de Eric Wellman, um ex-executivo de banco
que eu tinha entrevistado anos antes, quando levantava informações
para um caso contra seus chefes: o diretor-executivo e o presidente do
Palm State Bank. O banco de Tampa vinha aceitando milhões de dólares
em dinheiro de clientes ligados à máfia e, claro, nunca reportava essas
transações, como exigido por lei. Um decente e insuspeito executivo
médio de banco, Eric desprezava — patrioticamente — o fato de o país
estar perdendo a guerra contra as drogas e, após descobrir o que seus
empregadores estavam fazendo, testemunhou contra eles. Era apenas
uma das muitas faíscas numa fogueira de corrupção, mas ajudou a leválos para a cadeia.
Depois deste julgamento, Eric se tornou presidente de outro
banco e, em seguida, continuou crescendo numa nova carreira como
administrador de uma empresa que comandava uma rede de joalherias
na Costa Leste. Ele trabalhava no prédio administrativo da organização,
localizado, uma vez mais, em Tampa.
Quando começamos a conversar sobre o lance do meu trabalho
como infiltrado ele me disse:
— Bob, eu gostaria muito de ajudá-lo. Você sabe que tenho filhos
pequenos. Estou muito preocupado com a vida que eles vão ter no futuro.
24
|
o i n f i lt r a d o
Tudo o que eu puder fazer para ajudar você, no seu trabalho, vai ajudálos também. Tenho uma empresa de investimentos que não está ativa, a
Financial Consulting, com um histórico documentado. Se isso ajudar,
pode usá-la. Se você precisar aparentar ter raízes no mundo dos negócios,
posso dar uma mão com isso também. Vamos falar mais sobre isso e
levantar todas as alternativas.
Ele concordou ainda em alugar secretamente uma das salas de
seu escritório para o governo e em me receber — ou melhor, a Robert
Musella — como executivo de uma de suas empresas. Arrumou uma linha
telefônica para mim em seu PABX e, sem informar seus funcionários de
minha identidade real, instruiu todos a atenderem meus pedidos. Ele me
deu livre acesso à sua sala de conferências, a seus computadores e até
mesmo a seu Rolls Royce. Eric e sua esposa permaneceram nos quadros
da desativada Financial Consulting e agregaram Robert Musella como
vice-presidente. Depois, realmente fazendo mais do que eu podia esperar,
ele criou a Dynamic Mortgage Brokers, uma empresa de hipotecas
dirigida por mim, por ele e por sua esposa.
A próxima providência da lista de necessidades de minha
identidade era uma casa bem cara, com as particularidades do estilo de
vida de um jovem mafioso, um lugar onde eu pudesse reunir os alvos de
nosso esquema. O apartamento de 400 dólares por mês que meus chefes
na Alfândega queriam alugar não ia colar. E o melhor que poderíamos
conseguir com esse montante era um cortiço infestado de baratas num
bairro pobre perto do aeroporto. Como diabos eu poderia convencer
traficantes globais de drogas a me dar milhões dos seus dólares para
investir, se morasse num cafofo?
Expliquei o problema a O’Brien. Frequentemente muquirana e
perdido em cifras mesquinhas quando se tratava da verba do governo, ele
sugeriu que eu dissesse aos alvos que aquela era uma casa segura e que eu
não trazia pessoas para minha casa verdadeira. Claro, isso funcionaria.
E como é que eles se sentiriam sendo obrigados a me receber dentro de
suas casas e me deixar entrar em suas cabeças?
Enquanto me batia atrás de uma solução viável, me ocorreu que
talvez Dom pudesse ajudar.
— Sabe — disse a ele em sua casa em Tampa —, o que precisamos
é de uma casa que, por sua aparência, dê a impressão de ser ocupada
por alguém importante e bem de vida. Para ser perfeito, ela teria que se
o n a s c im e n t o d e ro b e r t mus e l l a
|
25
parecer com a sua — lindamente mobiliada, num lugar reservado e bem
conservada.
— Nenhum problema — Dom disse sorrindo, quando percebeu a
indireta. — É sua a qualquer momento que quiser. Se você nos der um
teto, Ana, eu e as crianças podemos estar fora daqui em um dia, e você
pode nos colocar num hotel pelo tempo que precisar.
A casa de Dom, de um estilo colonial espanhol, tinha telhas
azulejadas e uma calçada de pedras. Por dentro, a sala de jogos tinha
uma TV enorme, um bar e uma mesa de sinuca. O quarto principal,
decorado com estátuas de santos, escondia um imenso cofre dentro do
armário. E a mobília mediterrânea, exageradamente ornada, tinha a
obrigatória proteção de plástico transparente. Pode parecer a descrição de
uma decoração máfia-brega, mas me lembrava as casas de mafiosos dos
melhores bairros de Staten Island. Era exatamente o que precisávamos.
Durante 24 horas, todos os dias da semana, funcionava um
completo sistema de segurança, com uma câmera presa a um tripé por
dentro da janela da frente, bem escondida. Dom, periodicamente revia
as fitas e observava atentamente para ver se ninguém tinha rondado
a casa enquanto ele estava fora. Era perfeito. Dom, meus chefes e eu
concordamos que, quando criminosos do alto escalão ganhassem o
direito de me visitar em casa, colocaríamos Dom e sua família num hotel
próximo e usaríamos sua casa para as negociações.
Para conseguirmos as evidências necessárias e para que nossa
operação funcionasse, eu precisava de equipamentos de escuta de alta
qualidade e de confiança, que pudessem ser escondidos em uma pasta —
e tinha que conhecê-los muito bem. Qualquer agente infiltrado que valha
seus sapatos precisa saber operar e manter um equipamento de escuta.
Você não pode chamar o suporte técnico do governo para um pequeno
reparo no meio de uma emboscada. Um dos melhores fornecedores
privados de equipamentos eletrônicos para disfarces no país, Saul
Mineroff, da Mineroff Electronics, tem uma loja em Long Island que
vende as mais modernas e melhores escutas disponíveis. Ele é um gênio
nesse segmento. Saul e eu colocamos nossas cabeças para trabalhar
juntas e desenhamos um sistema de gravação estéreo totalmente novo,
escondido dentro da tampa de couro de ovelha de uma pasta Renwick. O
modelo de pasta que escolhemos tinha uma tampa profunda pouco usual,
que Saul reconstituiu dando folga de um centímetro para criar um falso
26
|
o i n f i lt r a d o
compartimento, atrás do qual escondemos um microgravador, um jogo
de microfones estéreo e um botão remoto de liga e desliga.
Saul recomendou que usássemos um gravador SME 700, capaz
de rodar em baixa velocidade, 7 centímetros por segundo — o que me
daria três horas de fita. O escudo que envolvia esse gravador era feito de
um metal especial que impedia a emissão de frequências oscilatórias,
normalmente emitidas pelos gravadores mecânicos. Os criminosos
sofisticados estavam usando aparelhos manuais que detectavam essas
frequências e os alertavam quando um gravador estava presente. O
aparelho também tinha um circuito e um filtro especiais que reduziam
o barulho de fundo e permitiam ótimas gravações de múltiplas vozes ao
mesmo tempo.
Saul ligou os fios dos microfones escondidos, um atrás de cada
fechadura na frente da pasta. Com qualidade estéreo, a tecnologia de
áudio permitiria depois, ouvir o som num sistema de playback com ajuste
e filtro de decibéis e, ainda, reduzir o ruído ambiente. Dois microfones
separados também garantiam uma excelente cobertura onde quer que a
pessoa estivesse posicionada em relação à mala.
Durante o processo preparatório, um veterano informante da
Colômbia repassou a um dos agentes de nosso escritório informações
sobre Gonzalo Mora Jr., um pequeno negociador de Medelín. Esse
informante nos alimentava com informações sobre grupos que traziam
de cinco a dez quilos de cocaína para Tampa em lanchas infláveis, mas
dessa vez tinha recebido a informação de que Mora estava lavando
narcodólares. Quando O’Brien ouviu sobre o assunto, disse:
— Ei, esse Gonzalo pode ser um bom alvo para a operação de
lavagem de dinheiro que você quer fazer. Interrogue o informante e me
diga o que você quer fazer.
Meu parceiro no interrogatório era Emir Abreu, um excelente
agente veterano da Alfândega de Aguadilla, Porto Rico. Ele podia não
ter tantos anos de educação formal quanto outros, mas tinha doutorado
na Universidade da Vida. Enquanto estava dentro de um avião cargueiro
a caminho do Vietnã, soube que toda a sua família mais próxima — os
pais e o irmão mais novo — tinham se afogado, quando o carro em que
estavam caíra dentro de um canal em Miami. Seu pai, um mecânico de
aviões, repassara a Emir muitos dons, mas o melhor de todos era uma
capacidade aguçada de conhecer as pessoas e saber lê-las. Ele exercia
o n a s c im e n t o d e ro b e r t mus e l l a
|
27
esse dom com uma habilidade para além da compreensão — sem dúvida,
uma das razões de ele ter se dado tão bem como agente infiltrado.
Ninguém era capaz de interpretar um espertalhão criminoso das ruas
melhor do que ele.
Emir também era o maior piadista que já conheci. Uma vez, ele
e um grupo de agentes federais foram a um jogo de baseball em que
a cerveja era barata e o sol estava muito quente. Quando começaram a
ficar bêbados, Emir passou a comparar sua foto na credencial com a dos
outros do grupo — inclusive do nosso bom amigo Mike Miller. Mike
inocentemente entregou sua credencial a Emir e voltou à conversa que
estava tendo com outra pessoa. Emir rápida e cuidadosamente colou uma
foto de um rastafári banguela em cima da imagem de Mike e devolveu a
credencial. Mike não suspeitou. Alguns dias depois, ele foi a uma prisão
local para entrevistar uma pessoa. Deslizando sua credencial por baixo
do vidro à prova de balas, anunciou orgulhoso ser um agente federal que
precisava ver um certo prisioneiro. A policial por trás do vidro abriu a
credencial e olhou de cima para baixo, de Mike para a foto da credencial.
— Este não é você — ela disse, enquanto devolvia a credencial.
Mike olhou para a credencial sem acreditar e, então, ficou vermelho
como uma beterraba.
— Tinha que ser o Emir — murmurou enquanto, humildemente,
retirava a foto do rastafári.
Até esse momento, Emir já tinha feito, como infiltrado, incontáveis
compras de drogas e sobrevivido a vários tiroteios. Com o interrogatório,
eu e ele iniciamos um relacionamento de trabalho bastante próximo, que
progrediu para uma amizade de irmãos para o resto da vida.
Depois de ouvir a história do informante, Emir e eu concordamos
com O’Brien que Gonzalo deveria ser o primeiro alvo de minha operação
de longa duração como infiltrado. Gonzalo era um pequeno operador na
Colômbia. Sua família vendia dez quilos de coca, por vez, nas ruas de
Los Angeles e Miami. Antes de nos conhecer, não podia movimentar em
segurança mais de 50 mil dólares do dinheiro sujo por semana, porque
não tinha verdadeiras conexões. Para converter o dinheiro da venda de
drogas nos Estados Unidos para pesos colombianos, ele contava com
membros de sua família — nos Estados Unidos — que andavam pela
cidade usando dinheiro vivo para comprar cheques administrativos em
valores de 3 mil dólares ou menos, bem abaixo dos 10 mil máximos
28
|
o i n f i lt r a d o
que poderiam gerar uma investigação do governo. Sua família e seus
amigos nos Estados Unidos depositavam esses cheques em contas
pessoais. Gonzalo tinha talões dessas contas e, quando sua família o
alertava de que havia 50 mil em caixa, ele preenchia um dos cheques em
branco no mesmo valor. Depois, trocava esse cheque com um negociante
colombiano que tinha pesos, mas queria dólares. Dezenas de milhares
de importadores colombianos estão sempre procurando comprar dólares,
porque fazem comércio em zonas francas — onde o pagamento preferido
é em moeda americana. Com o círculo completo, Gonzalo então, usava
pesos colombianos para pagar fornecedores ou para custos do negócio.
Se, por meio de um informante, Gonzalo ficasse sabendo da
existência de Musella — um veterano lavador de dinheiro para o crime
organizado — e Musella se fizesse de difícil, Mora se tornaria a fonte
perfeita para nos levar ao coração do maior cartel colombiano. Uma
vez dentro, poderíamos nos infiltrar em todo o sistema de lavagem de
dinheiro.
Mas o momento não era o ideal. Eu tinha agendado uma semana
de férias com a família e amigos em Florida Keys. Junto com a máscara
de mergulho e as margaritas, tinha também minha pasta, com tudo o que
eu ia precisar para desenhar a operação.
Em Islamorada, quatro de meus amigos e eu pescamos cerca de
150 lagostas em alguns dias, usando dois pequenos barcos. Nenhuma
façanha se você sabe o que está fazendo. No resto da semana, entre a
interminável movimentação de caudas de lagostas e margaritas, escrevi
uma proposta para uma operação de longa duração como infiltrado —
que se aproveitaria das necessidades de Gonzalo Mora.
Enquanto minha família e amigos tiravam proveito de nossa
frutífera caçada às lagostas, eu planejava a operação numa cadeira de
jardim, com caneta e papel na mão, ignorando tudo e todo mundo — com
exceção da obsessão de como arrastar um cavalo de Troia para dentro
dos portões do cartel. Sequer reparei nos olhares de admiração, que
se perguntavam o que poderia ser tão importante para estragar o que
deveria ser um feriado perfeito.
— Sabe — Ev disse —, nós não temos muita chance de estar num
lugar como este. Você não pode fazer isso depois?
— Querida, você não entende — tentei explicar. — Nós precisamos
conseguir enviar essa proposta e aprová-la o quanto antes. Temos uma
o n a s c im e n t o d e ro b e r t mus e l l a
|
29
oportunidade que vai morrer ao léu a menos que eu consiga terminar
isso. Desculpe, querida, mas preciso me esforçar nisso aqui e fazer dar
certo.
Ela não ficou feliz, mas fez o possível para me apoiar.
Um dos problemas na formulação do plano era que, naquela
época, pelas regras da Alfândega, se pedíamos 60 mil dólares ou mais
para financiar uma operação, Washington tinha que revisar e monitorar
tudo. A experiência nos tinha ensinado que envolver a burocracia de
Washington significava o beijo da morte. Os administradores de plantão
a veriam como sua passagem premiada para a promoção, e eles não
mais tomariam decisões baseadas em fatos e necessidades do caso. E,
então, quando estivéssemos prontos para estourar o círculo da lavagem
de dinheiro, interfeririam com o intuito de beneficiar suas carreiras
ou prioridades externas. O que significava que seríamos obrigados a
contar com 59 mil de caixa, tendo, portanto, de manter todas as decisões
operacionais na Flórida. Felizmente as regras da agência permitiam usar
os lucros da operação para abater despesas. É uma espécie de justiça
poética o fato de que teríamos, literalmente, rios de lucro no negócio da
lavagem e que os criminosos estariam financiando sua própria queda.
Um dos itens que não estavam incluídos no orçamento era o
investimento na aparência. O governo não via problema em gastar
milhões em equipamentos superfaturados, mas dar mais de um centavo
para roupas apropriadas não caía bem. Até mesmo levantar o problema
podia colocar sua credibilidade em cheque com seus superiores. Eles
suspeitariam que você estava tentando usar o recurso em benefício
próprio.
Mas Dominic tinha me avisado. Criminosos experientes observam
cada milímetro de um cara novo, e uma falha no menor dos detalhes
poderia transformar uma relação de camaradagem em morte súbita.
Esses detalhes incluíam, certamente, as roupas.
— Nas roupas, você deve gastar alguns tostões, especialmente
nos sapatos — Dom avisou. — Os caras que atuam nesse negócio estão
sentados no dinheiro e gastar mil dólares num terno é coisa do dia a dia
para eles. Quanto aos sapatos, você deve se lembrar que vai se sentar
diante de uma mesa de centro jogando conversa fora e, quando cruzar
as pernas, eles vão estar bem à vista dos caras. Você não pode ter furos
na sola ou estar com uma marca vendida no K-Mart. Lembre-se: quando
30
|
o i n f i lt r a d o
você está viajando com esses caras, tudo o que você deixa no quarto do
hotel é inspecionado. Você nunca vai saber se eles têm acesso à segurança
do hotel ou não. Faça um favor a você mesmo. Arranje umas becas legais.
E cuidado com sua linguagem corporal. Há alguns maneirismos que
alguns policiais não conseguem esconder. Eu me lembro de um cara da
narcóticos tentando se aproximar de mim nos velhos tempos, e quando ele
saiu do seu carro com a porta do motorista parcialmente aberta, apoiou
sua mão direita no topo da porta do carro e colocou a outra mão no
quadril. Eu já tinha visto oficiais da polícia fazerem essa pose uma dúzia
de vezes e, por conta disso, parei de falar com o cara. Ah, claro, e não use
linguagem de tira. Vocês falam coisas como “meliante”, “positivo”, “tá
oká”, “redondezas” e merdas como essas. Ouça com atenção da próxima
vez que estiver no seu escritório. Você não pode falar essas merdas. Você
sabe um pouco de italiano. Use-o.
Por recomendação de Dom, a Surrey, uma sofisticada loja de
roupas, me vendeu vários ternos Carlos Palazzi sob medida, um par de
sapatos Moreschi, gravatas de seda e lenços de bolso. Envergonhado de
nossas malas Samsonite padrão, comprei um conjunto de malas Hartman.
Os cuidados com a aparência me custaram entre 5 e 10 mil dólares —
num período em que Ev e eu estávamos equilibrados a dois salários de
distância do zero e tínhamos problemas em guardar algum dinheiro para
a universidade dos nossos filhos.
Cada vez que ela pegava alguma conta de cartão de crédito, ficava
espumando de raiva. Eu argumentava de forma egoísta que havia algo de
diferente nesse caso, que ele tinha tudo para se tornar o caso da minha
vida.
— Não acredito que você gastou todo esse dinheiro — ela gritava.
— Sou eu que tenho que equilibrar todas as dívidas. Quando é que você
vai perceber que ninguém na Alfândega dá a mínima?
E, no final das contas, ela estava certa — mas Robert Musella
estava pronto para entrar no submundo.