- Portal Capoeira

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- Portal Capoeira
Revista Textos do Brasil
Br
- Edição nº 14 – Capoeira
A edição traz fotografias de Pierre Verger e desenhos do Carybé, que ilustram entrevistas e artigos
de pesquisadores, mestres de capoeira e autoridades ligadas à cultura brasileira, na qual se
destacam as significativas implicações da capoeira para a cultura e a vida social, como modalidade
de jogo, dança, música e oportunidade para inserção social.
A capoeira é uma arte que está fortemente relacionada com a história
africana e que marcou profundamente a cultura brasileira.
A obra foi apresentada pelo mestre Vila Isabel, do Núcleo de Capoeiragem
Beribazau de Brasília e dois mestres brasileiros de capoeira de Angola,
mestre Cobra Mansa e Mestra Janja no lançamento do livro, no Centro de
Formação de Jornalistas
Jornalistas (Cefojor) que faz parte da programação
programaçã da semana
do Brasil em Angola (Novembro de 2008).
A Revista:
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Prefácio
Os desafios contemporâneos da capoeira
As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira
A repressão à capoeira
O Capoeira
A Guarda Negra: a capoeira no palco da política
Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem
A performance ritual da roda de capoeira angola
A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos
mítico
Capoeira: metáforas em movimento
A música na capoeira angola da Bahia
A mulher na capoeira
Entrevista com a Senhora Rosângela C. Araújo (Mestra Janja)
As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX
Benefícios educacionais, físicos e psicológicos da capoeira
Capoeira e inclusão social
A internacionalização da capoeira
Carybé
Pierre Verger
Comentários:
Aproveitamos o excelente material disponibilizado pelo Ministério das Relações Exteriores, para
presentear os amigos e leitores do Portal Capoeira com uma compilação especial para o Natal da
Revista Textos do Brasil - Edição nº 14 - Capoeira. Trata-se de uma composição reunindo todos os
textos da Revista em um único arquivo organizado, disponível para download em nosso site.
Fica ainda uma enorme satisfação ao ler a revista e encontrar em suas belíssimas páginas a
presença de grandes amigos e parceiros que nos ajudam no dia a dia a construir o nosso Portal e
contribuem para a disseminação com coerência e qualidade da nossa capoeiragem.
Saudações Capoeirísticas
Luciano Milani
Editor Portal Capoeira
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios Bloco H - Palácio Itamaraty
Anexo II - Sala 11 Brasília, DF - Brasil - 70170-900
Tel: (61) 3411-6713 Fax: (61) 3411-9226
A capoeira é uma das expressões mais características
da cultura brasileira. É comum encontrarmos definições de
que o “jogo da capoeira” consiste numa atividade esportiva,
praticada em clubes, academias ou nas ruas, atividade sem
regras fixas, mas que segue um protocolo característico,
com música própria, no qual o instrumento musical que
comanda o desenvolvimento do jogo e da roda é o berimbau. Trata-se, não obstante, de uma definição que reduz a
prática da capoeira a seus aspectos puramente esportivos,
preterindo todas as suas demais dimensões presentes na
sociedade brasileira. O intuito desta publicação é justamente expor os elementos da capoeira que transcendem
a atividade física, abordando as significativas implicações
que sua prática engendra em diversas áreas da vida social,
razão pela qual pode ser considerada como uma das mais
complexas manifestações culturais brasileiras.
Os aspectos mítico-religiosos da capoeira, por exemplo,
integram uma dimensão do “sagrado”, marcante no Brasil,
permeando as crenças, os modos de vida, os sonhos e as
lutas de sua sociedade. Evidentemente, trata-se, como bem
definiu Sérgio Buarque de Holanda, de uma religiosidade
intimista e familiar, transigente a diversas contribuições
espirituais e paradigmática da cordialidade que esse autor
atribuiu ao brasileiro. Desse modo, o componente de magia
que reveste o universo da capoeira, embora proveniente
do imaginário popular, expressa o vasto campo de significados dessa manifestação afro-brasileira e de suas ligações
com o sagrado, assim como muitas das manifestações e
tradições da cultura popular no Brasil.
Também o léxico da capoeira revela um pouco da relação idiossincrática do brasileiro com o meio ambiente.
Com efeito, os nomes de movimentos e golpes da capoeira remetem, freqüentemente, a elementos da natureza, denotando a forte relação dessa prática com a observação do meio ambiente. Outro exemplo é a própria
etimologia do termo “capoeira”, que, de origem indígena,
significa “mata extinta”.
Ademais dos aspectos sociais, pela história da capoeira revelam-se também determinados aspectos significativos da história do Brasil. As mutações ocorridas no jogo
da capoeira refletem muitas das transformações ocorridas
no país nos últimos séculos. Nesse sentido, a abordagem
histórica não poderia deixar de fora comentários sobre a
repressão da capoeira, verificada sobretudo ao longo do
século XIX e início do XX. A despeito das iniciativas para re-
primi-la, a capoeira superou todos os óbices que lhe foram
impostos. Talvez isso tenha ocorrido justamente devido
ao fato de se tratar de uma manifestação cultural ampla e
profunda da índole brasileira, não sendo, por conseguinte,
elemento de fácil repressão.
Produto da cultura popular brasileira, a capoeira era
vista com certas reservas pela elite, que a associava à badernagem, à vadiagem e à ausência dos bons costumes.
Nesse sentido, é interessante notar que a capoeira é atualmente utilizada para resolver mazelas sociais das quais no
passado era tida como causadora. Com efeito, a capoeira
tem se mostrado excelente instrumento de inclusão social.
Isso se deve, em boa medida, ao fato de que as atitudes dos
capoeiristas na roda privilegiam a relação equilibrada entre
os opostos, entre os diversos, num constante exercício de
humildade e paciência.
Em 2007, o Ministério das Relações Exteriores teve
oportunidade de patrocinar a realização de mais de 50
eventos de capoeira em todos os continentes. Essa expansão da capoeira para outros países tem provocado um interessante processo de fortalecimento e de dinamização de
sua prática. Existem, atualmente, diversos mestres estrangeiros que jogam capoeira tão bem quanto os brasileiros.
Desse modo, talvez não seja exagero dizer que, embora a
capoeira seja uma manifestação cultural originada no Brasil, e carregue, portanto, símbolos inquestionáveis de brasilidade, sua prática já é tão comum em âmbito internacional
que se constitui em mais uma contribuição brasileira para
o patrimônio cultural da humanidade. Prova disso são algumas das ilustrações dessa publicação – fotografias de Pierre Verger e desenhos de Carybé, ambos estrangeiros, mas
que, por meio de sua arte, revelam ter apreendido adequadamente as peculiaridades da capoeira.
Como anexo da presente edição da coleção Textos do
Brasil, há um trecho do documentário “Mestre Bimba: a
capoeira iluminada”, gentilmente cedido pela Lumen Produções. Inspirado no livro “Mestre Bimba: Corpo de Mandinga”, de Muniz Sodré, o filme apresenta depoimentos de
antigos alunos e imagens, inéditas no cinema, da trajetória
de vida de uma das principais referências do universo da
capoeira. Desse modo, ao leitor que ainda não teve oportunidade de presenciar uma roda de capoeira, é apresentada
uma amostra de seus movimentos, música e ritual. Quiçá
a publicação e o documentário o incitem a tomar parte no
fascinante mundo da capoeira...
COORDENAÇÃO DE DIVULGAÇÃO
Os Desafios Contemporâneos
da Capoeira
Luiz Renato Vieira e Matthias Röhrig Assunção
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Além da esfera estritamente acadêmica
e do universo próprio da arte, a capoeira
está cada vez mais presente em muitas
outras esferas sociais, desde os palcos de
teatro e salas de cinema aos anúncios de
publicidade.
Os Desafios Contemporâneos
da Capoeira
A percepção da capoeira também mudou radicalmente. De ofensa contra a ordem pública, passível de correição
imediata com açoite, e de costume bárbaro de negro, obstáculo ao progresso que precisava ser erradicado, passou
a ser vista como folclore exótico, digno de preservação e
matriz de uma luta genuinamente brasileira. Mais recentemente, cresceu a enfâse sobre a dimensão cultural da arte,
que está na iminência de ser declarada patrimônio imaterial do Brasil e da humanidade. A globalização da capoeira transformou-a numa expressão brasileira daquilo que o
sociólogo Renato Ortiz, muito acertadamente, denominou
cultura internacional-popular.
Desde os anos 1980, a capoeira tornou-se também
campo de reflexão acadêmica, em que se entrecruzam
pesquisas de mestrado e doutorado realizadas, no Brasil
e no exterior, em áreas como antropologia, história, sociologia, ciências da educação e educação física. Os próprios
grupos de praticantes espalhados pelo Brasil e pelo mundo
discutem os estudos sobre capoeira em círculos de debate
ou nos eventos que organizam. Além da esfera estritamente acadêmica e do universo próprio da arte, a capoeira está
cada vez mais presente em muitas outras esferas sociais,
desde os palcos de teatro e salas de cinema aos anúncios
de publicidade.
A geração de capoeiristas que se formou a partir dos
anos 1980 está, de fato, participando de uma transição
fundamental na história dessa arte. Se os atuais praticantes se acostumaram a ouvir de seus mestres e professores
histórias sobre perseguição, rodas interrompidas pela polícia e correrias nas praças e festas de largo, a realidade que
passaram a viver é, regra geral, completamente diferente.
A capoeira tem-se inserido nas instituições e no contexto
político mais amplo por muitas vias, alterando dramaticamente sua prática e seu significado. Este cenário acelerado
de mudança traz novos desafios tanto para os capoeiristas
quanto para o Estado e os produtores culturais.
A FORMAÇÃO DO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO DA
CAPOEIRA. Voltemos um pouco no tempo, para explicar
melhor a emergência da capoeira contemporânea. No início
dos anos 1970, os capoeiristas ainda tinham algo de exótico. A própria capoeira era vista como uma manifestação
cultural que buscava se afirmar como esporte, cujo lugar
“natural” seriam as comunidades mais pobres e periféricas,
de população predominantemente afrodescendente. Em
instituições mais elitizadas, a capoeira ainda causava estranheza e, de fato, muitas delas fechavam suas portas para
essa prática. Era necessário, portanto, um grande esforço
de “organização”, dando continuidade à trajetória iniciada
pelos capoeiras da primeira metade do século XX.
Assim, as décadas de 70 e 80 se caracterizam como
a época dos grandes projetos relacionados à capoeira, a
maioria deles com algum grau de pioneirismo (embora
houvesse muitas e importantes iniciativas isoladas anterio-
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Foto: Alexandre Gomes
res): capoeira na escola, na universidade, para portadores
de necessidades especiais, nos cursos de licenciatura em
educação física, em institutos de reeducação de menores
infratores, como terapia, como “ginástica brasileira” e como
objeto de dissertações e teses acadêmicas. Há na literatura
sobre a capoeira diversos registros de trabalhos relevantes,
em todas essas áreas e em algumas outras e não é nossa
proposta aqui enumerá-los. O importante é destacar esse
momento de mudança na história contemporânea da capoeira. Foi nas décadas de 70 e 80, também, que a capoeira
conquistou seu lugar no cenário esportivo nacional, ainda
sob a égide da Confederação Brasileira de Pugilismo, e obteve reconhecimento de vários órgãos governamentais ligados ao esporte e à educação. No início, as competições
de capoeira assemelhavam-se às de outras modalidades de
luta, não considerando toda a riqueza da arte, reduzindo-a
a um simples esporte de combate. Aos poucos, foi-se chegando a formas mais elaboradas e completas de avaliação
dos capoeiristas e as competições ficaram muito parecidas com as próprias rodas de capoeira. Convém lembrar
o papel das competições de capoeira dos Jogos Escolares
Brasileiros (JEBs) nesse processo, como laboratório para a
construção de uma visão mais global da capoeira.
É importante destacar que os anos 1980 foram também
a década da expansão nacional dos grandes grupos de capoeira.1 Firmou-se esse modelo na organização da nossa
arte, apesar dos esforços de alguns pela adoção do modelo
tradicional das federações. Esse, sem dúvida, foi o passo que
mais se destacou na história contemporânea da capoeira: a
consolidação da lógica da organização na forma de grupos,
em que o professor ou mestre que se forma e organiza sua
escola procura vincular-se a uma instituição já reconhecida
no mercado. Pode-se, inclusive, discutir em que medida essa
forma de organização contribui para preservar a diversidade
e a riqueza cultural da capoeira e para o fortalecimento coletivo da arte como forma de resistência cultural.
Outra tendência importante, a partir do início dos anos
1980, foi a revalorização das tradições e dos “velhos mestres”, juntamente com o fortalecimento dos grupos de capoeira angola, que ganharam muito espaço à medida que a
comunidade da capoeira começava a questionar os caminhos da desportivização.2 Iniciou-se, assim, uma trajetória
de reafricanização da capoeira, principalmente nos centros
de prática mais tradicionais, que se refletiu nas linguagens
próprias da capoeira: na musicalidade, na instrumentação
musical e até mesmo na abordagem histórica dos pesqui-
(1) Cabe, aqui, um esclarecimento: no universo da capoeira, um grupo representa uma escola
fundada por um ou mais mestres e reúne, sob um mesmo nome, os núcleos de ensino
constituídos por seus alunos que alcançam a condição de professores ou mestres. Há grupos
pequenos, reunindo dois ou três núcleos de ensino de capoeira, e grandes grupos, organizados
juridicamente em moldes empresariais e disseminados em todo o mundo. Com certa freqüência,
ocorre de o capoeirista já formado se desligar de um grupo e aderir a outro, já na condição
de professor, por razões profissionais. Essas circunstâncias modificaram profundamente o
significado da relação mestre-aluno no mundo da capoeiragem. Se, até os anos setenta, o
nome do mestre era praticamente o sobrenome do capoeirista (p. ex. Mestre João Pequeno de
Pastinha), atualmente o praticante se identifica pelo grupo do qual faz parte.
(2) É importante observar que durante a década de 70, período marcado pela vigência do regime
militar e por intenso espírito de modernização e de desenvolvimento econômico, enfatizou-se
a abordagem da capoeira a partir de seus aspectos esportivos e de “arte marcial brasileira”.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Esse, sem dúvida, foi o passo que mais
se destacou na história contemporânea
da capoeira: a consolidação da lógica da
organização na forma de grupos, em que
o professor ou mestre que se forma e
organiza sua escola procura vincular-se a
uma instituição já reconhecida no mercado.
sadores, que passaram a acentuar as origens africanas e
buscar lutas ancestrais e “irmãs” da capoeira, como a ladja, da ilha caribenha Martinica, e o moringue, do Oceano
Índico. O nacionalismo simplista, anteriormente tão forte,
passou a dar lugar a uma visão mais global da cultura e do
processo de formação da capoeira, inserindo-a na história
da resistência dos africanos escravizados e de seus descendentes mundo afora. Viu-se que a capoeira precisava ser
tratada como um esporte, mas que a arte não poderia ser
reduzida somente ao seu aspecto desportivo. Essa abordagem culturalista, então, foi muito enfatizada a partir dos
anos 1980, quando as palavras “resgate” e “bagagem” passaram definitivamente a fazer parte do vocabulário comum
dos capoeiristas. Sintomaticamente, os capoeiristas, que tinham passado a utilizar atabaques com tarraxas, mais funcionais e fáceis de afinar, voltaram a preferir os tambores
trançados com grossas cordas de sisal. É nessa perspectiva
– como cultura, e não como modalidade esportiva – que a
Os Desafios Contemporâneos
da Capoeira
Foto: Lilia Menezes
capoeira ganha o mundo nos anos 1990. Passada a fase da
afirmação de sua riqueza no Brasil, a capoeira torna-se um
fenômeno cultural de massa em escala mundial.
Passou-se do perfil aventureiro do capoeirista que ia
arriscar a vida no exterior nos anos 1970 para uma visão
estratégica, de conquista de mercados. Assim, atualmente não há grupo consolidado no Brasil que não tenha os
seus representantes sediados no exterior. A capoeira é facilmente vista e reconhecida como tal em qualquer grande
cidade do mundo, com poucas exceções. Já é possível ver,
com certa facilidade, professores autóctones, formados
por brasileiros, ensinando capoeira em seus países. Esse é
o desafio que se coloca para nós, estudiosos e praticantes:
compreender a nova inserção da capoeira como fenômeno incorporado à cultura internacional-popular, em que em
alguns momentos se destacam suas raízes brasileiras ou
sua inserção no mercado de consumo e, em outros, se va-
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Capoeira
Os Desafios Contemporâneos da Capoeira
loriza sua ancestralidade africana e seu potencial de crítica
à cultura ocidental. É fundamental, portanto, entender essa
expansão internacional no contexto da dinâmica da cultura
globalizada, mas também na sua lógica interna, que reflete
essas contradições.
OS ESTILOS NA CAPOEIRA CONTEMPORÂNEA. A
modernização e a desportivização da capoeira a partir da
década de 1930 resultou na formação de dois estilos distintos. O primeiro estilo moderno, a capoeira regional, foi criado
pelo Mestre Bimba (1900-1974) apoiado por um grupo de
alunos. Bimba partiu de uma crítica da antiga “vadiação baiana”, que não estaria à altura das novas lutas que vinham desafiando a capoeira nos ringues de luta livre da época. Bimba
selecionou as técnicas que lhe pareciam mais adequadas,
eliminou outras que considerava ultrapassadas e integrou
alguns golpes novos – geralmente de grande eficácia – à
sua “luta regional baiana”. Mais importante ainda foi o de-
vida de que representa um estilo novo, que se definiu não
somente a partir da continuidade com a capoeira baiana
como se praticava na década de 1930, mas também a partir da oposição sistemática ao estilo regional. Ou seja, se,
por exemplo, na regional utilizavam-se balões, os angoleiros condenavam seu uso, mesmo que esses existissem na
capoeira baiana “tradicional”. Além do mais, é preciso lembrar que a capoeira baiana antes da modernização não era
homogênea e uniforme, mas que cada mestre ensinava um
conjunto específico de movimentos, ritmos e rituais. Tanto
que a capoeira de outros mestres antigos como Waldemar,
Cobrinha Verde ou Canjiquinha podia ter características
bastante distintas da forma ensinada por Pastinha.
Dessa maneira, nunca houve tradição única e monolítica na capoeira baiana antiga, o que, por sua vez, facilitou
que posteriormente cada grupo ressaltasse elementos diversos e mesmo conflitantes da “tradição”. Por outro lado,
convém salientar que ambos os estilos – regional e angola
Foto: Acervo Luiz Renato
Foto: Acervo Luiz Renato
senvolvimento de uma didática, a formalização do ensino na
academia – treinos com uniforme – e a imposição de uma
disciplina e uma ética desportiva. Mas, apesar de grande sucesso, principalmente a partir da década de 1960, seu estilo
não logrou unanimidade entre os capoeiras baianos.
Outra corrente, liderada a partir da década de 1940 por
Mestre Pastinha, se propôs a manter justamente aqueles
elementos da antiga capoeira que a regional decidiu descartar, como as “chamadas”, o “jogo de dentro” mais lento,
a teatralidade na roda, assim como uma série de rituais (começando pelas ladainhas iniciais). Enquanto Bimba destacava a inovação, Pastinha e seu grupo enfatizavam o resgate da tradição. Por essa razão, escolheram a denominação
capoeira (de) angola para designar seu estilo, ressaltando,
dessa forma, a continuidade em relação às origens africanas da arte. Mas, apesar dessa postura tradicionalista – de
resto, característica dos angoleiros até hoje – não resta dú-
– coincidem na sua ruptura com a malandragem antiga,
transferindo a prática da capoeira da rua para uma academia, com treinos regulares, uniformes e regulamentos,
expandindo o ensino a grupos maiores de alunos e recrutando novos segmentos da população brasileira: crianças e
jovens da classe média e mulheres.
A expansão da capoeira moderna pelo Brasil a partir
desses dois estilos baianos complicou ainda mais a questão. A difusão ocorreu de várias maneiras: (1) por meio de
alunos já formados pelos mestres baianos que se fixaram
em outros estados, sendo que a grande maioria migrou
para cidades do Sudeste; (2) por iniciativa de alunos de outros estados que só receberam instrução ocasional desses
mestres quando iam à Bahia. Nesse caso, o caráter autodidata da prática encorajava mudanças de estilo, como se
pode ver no caso do grupo Senzala do Rio de Janeiro. Além
do mais, as capoeiras baianas vão encontrar em várias ci-
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Em outras palavras a transformação da
capoeiragem – entendida aqui como o
contexto social da capoeira – também
impactou o conteúdo da arte. Acreditamos,
por isso, que é preciso, além da clássica
oposição binária angola–regional,
distinguir vários estilos de capoeira,
dependendo dos aspectos enfatizados: luta,
tradição, cultura, brincadeira ou dança.
Os Desafios Contemporâneos
da Capoeira
dades tradições locais de capoeira. A importância dessas
formas locais para a formação dos estilos contemporâneos
é muito controversa, sobretudo no caso do Rio de Janeiro,
onde professores como Sinhozinho já ensinavam um estilo
de capoeira sem música antes da chegada dos baianos.
Atraídos pela esperança de melhorar suas condições de
vida, muitos baianos migraram para as cidades do Sudeste
entre 1950-1980 (depois dessa data, parte desse fluxo destinar-se-á ao exterior). Entre os capoeiristas-migrantes havia
mestres, alunos formados e praticantes amadores. Fora do
Nordeste, a prática da capoeira virou parte da cultura específica dos migrantes, e como tal, incorporou referências nostálgicas à Bahia que ainda caracteriza a arte até hoje. A situação
de exílio criou laços de solidariedade entre capoeiristas de
estilos diferentes, a ponto de enfraquecer a oposição regional-angola. Houve muitos casos em que professores e mestres de angola e regional ensinavam e criavam grupos juntos,
particularmente em São Paulo (Cordão de Ouro etc.). Mas, de
maneira geral, o estilo angola, mais dependente de todo um
referencial cultural afro-baiano de mais dificil assimilação pelos novos grupos de praticantes, não se logrou impor durante esses anos. Predominou um estilo de jogo mais próximo
da forma ensinada por Bimba, mesmo que fosse sem a sua
didática (como o treino das oito seqüências).3 A música dos
grupos fora da Bahia tampouco era típica da regional. Em vez
dos toques de berimbau ensinados pelo Mestre Bimba, treinava e jogava-se sobretudo ao ritmo de São Bento Grande
de Angola.4 Por essa razão a geração seguinte dos mestres
vivendo fora da Bahia reduziu a ênfase na oposição entre angola e regional, freqüentemente argumentando que “a capoeira é uma só”. Essa postura “ecumênica” tinha e tem várias
vantagens. Primeiro, amenizava conflitos entre capoeiristas,
em um momento em que ainda era necessário convencer a
opinião pública de que sua arte não era “coisa de marginal”.
Segundo, ia ao encontro de toda uma corrente nacionalista
que tinha como objetivo fazer da capoeira não somente um
esporte, mas a luta brasileira, expressão privilegiada da identidade nacional.
Sob os auspícios do regime militar instalado em 1964,
criou-se a Federação Paulista de Capoeira, em 1970, e o departamento de capoeira da Confederação Brasileira de Pugilismo (CBP), em 1972, que reunia as lutas que não possuíam
confederações específicas. Os grupos-membros se comprometiam a implementar regras estabelecidas pela Federação,
que iam da utilização obrigatória do uniforme, da saudação
(3) As “seqüências da capoeira regional”, ou “seqüências de Mestre Bimba” configuram uma das
mais importantes características do método de ensino criado por esse importante mestre
baiano. Consistem em séries de movimentos de ataque e defesa, formando lutas simuladas e
atuando como uma espécie de inventário dos principais golpes e técnicas da capoeira regional.
As seqüências (alguns consideram uma seqüência com oito partes) eram utilizadas para o
ensino dos iniciantes e para o treinamento diário dos capoeiristas em estágio mais adiantado.
(4) Além de fornecer a base rítmica para o desempenho da “bateria” da capoeira, o berimbau
tem um importante valor simbólico significativo na roda. Os toques do berimbau expressam
algumas escolhas do grupo ou do mestre que conduz a roda, determinando a velocidade e
outras características do jogo. Assim, além de diversos outros, existem toques “de angola” e
“de regional”.
14
Capoeira
Os Desafios Contemporâneos da Capoeira
inicial (o “Salve!”, ainda hoje adotado por muitas escolas de
capoeira) até ao regulamento minucioso de competições. Se
essa evolução facilitou a integração da capoeira em atividades escolares e deportivas em âmbito nacional, e, por conseqüencia, outra onda de expansão pelo Brasil afora, gerou,
por outro lado, reações contrárias por parte de capoeiristas
comprometidos com o ideal de resistência.
Diversos grupos, alguns dos quais grandes, não somente se recusaram a aderir à federação, mas buscaram demarcar claramente essa linha, estabelecendo, por exemplo,
sistemas de graduação e seqüências de cores de cordéis
de graduação alternativos. Nesse processo, o resgate das
tradições afro-baianas começou a assumir papel importante, a ponto de alguns deles aproximarem-se da capoeira
angola. Isso coincidiu, é claro, com a revalorização da cultura afro-brasileira pela qual lutava o movimento negro. Esse
processo também favoreceu o fortalecimento da capoeira
angola, que havia passado por longa fase de declínio marcado pela extinção de toda uma geração de antigos mestres
baianos e que culminou com a morte de Pastinha (1981). A
partir da década de 1980, esse estilo passa a formar novos
mestres e a conquistar novos adeptos não só no Brasil, mas
também no exterior. A partir de então, ocorrem tensões entre um estilo angola, cujos grupos invocam uma linhagem
direta com um mestre baiano, e estilos que poderiamos
denominar de “angolizados”, por incorporar parte das características estilísticas dos angoleiros, mas sem abandonar
outras características suas, consideradas “regional” pelos
primeiros. Isso ocorreu a ponto de alguns grupos passarem
a reivindicar a condição de angoleiros, qualificativo que lhes
é negado pelos praticantes do que poderiamos chamar o
“núcleo duro” da angola.
A situação torna-se ainda mais confusa quando nos
referimos ao qualificativo “regional”. Para os angoleiros
em geral, todos os demais estilos são classificados, indistintamente, como pertencentes à Regional, vocábulo que
assume, muitas vezes, conotação negativa em suas falas.
Do outro lado do espectro estilístico, alguns herdeiros diretos de Bimba, que procuram manter o estilo do mestre
sem outras grandes inovações, igualmente proclamam
que só eles merecem o epíteto de regional. Por isso, muitos mestres de capoeira que não pertencem a nenhum
desses dois extremos ou estilos “puros” começaram a se
autodefinir como fazendo capoeira “contemporânea”, ou
afirmar que praticam os dois estilos (o que se afigura vantajoso do ponto de vista do mercado de ensino, cada vez
mais competitivo). Também é comum o uso da expressão
“angonal” como termo depreciativo pelos puristas, para
desqualificar quem está “em cima do muro”, mas reivindicado abertamente por outros.
Falar de capoeira “contemporânea”, no entanto, não
esclarece muito de que capoeira se trata, dado que há muitas formas distintas na atualidade, a começar pela angola
e regional contemporâneas. A saída da capoeira do seu
contexto original e seu ingresso em academias, escolas,
universidades, palcos de dança, competições de luta livre
e até salas de terapia multiplicou sentidos, significados, formas, maneiras de treinar e de jogar. Em outras palavras a
transformação da capoeiragem – entendida aqui como o
contexto social da capoeira – também impactou o conteúdo da arte. Acreditamos, por isso, que é preciso, além da
clássica oposição binária angola-regional, distinguir vários
estilos de capoeira, dependendo dos aspectos enfatizados:
luta, tradição, cultura, brincadeira ou dança.
Foto: Embratur
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Foto: Alexandre Gomes
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Revista Textos do Brasil
Foto: Lilia Menezes
Nessa trajetória de massificação e
expansão internacional – às vezes como
desporto, outras vezes como manifestação
predominantemente cultural – constroemse e reforçam-se diversos estereótipos.
Como em qualquer outro processo
relacionado à dinâmica cultural, há ganhos
e perdas.
Os Desafios Contemporâneos
da Capoeira
DESAFIOS E PERSPECTIVAS. Esse complexo cenário,
que neste texto apenas esboçamos, coloca para a nova
geração de praticantes e, de resto, para os dirigentes de
grupos, academias e gestores públicos, uma série de questões fundamentais para o desenvolvimento da capoeira. Se
as gerações anteriores precisaram lidar com um possível
desaparecimento da capoeira – uma vez que isso, de fato,
ocorreu com outras manifestações brasileiras de danças de
combate ou lutas viris, como o batuque, a pernada carioca
e a tiririca – os dilemas que se apresentam no cenário atual
são de ordem completamente diferente. A capoeira está
presente no dia-a-dia dos brasileiros e difundiu-se como
um dos principais símbolos da cultura brasileira no exterior.
Nessa trajetória de massificação e expansão internacional –
às vezes como desporto, outras vezes como manifestação
predominantemente cultural – constroem-se e reforçamse diversos estereótipos. Como em qualquer outro processo relacionado à dinâmica cultural, há ganhos e perdas.
Por desafios contemporâneos entendemos os temas que,
em nossa opinião, precisam figurar na agenda de discussões
sobre a capoeira nos tempos atuais, seja no debate sobre a
atuação dos capoeiristas no exterior, seja em termos do planejamento da atuação governamental envolvendo os diversos
aspectos relacionados à prática, ensino e à divulgação da arte.
Uma das questões que identificamos como fundamentais no debate contemporâneo diz respeito à transmissão
das tradições e dos conhecimentos ancestrais da capoeira.
Essa temática materializa-se na discussão sobre quais são as
condições exigíveis para que um praticante da arte se torne
professor ou mestre. Afinal, a noção tradicional de mestre
– indivíduo reconhecido pela comunidade e portador de
saberes ancestrais, transmitidos por oralidade e pela convivência cotidiana e prolongada com o discípulo – vem sendo
substituída pelo capoeirista cuja condição de mestre passa a
ser outorgada por determinado grupo, federação ou alguma
entidade de caráter mais ou menos oficial. A comunidade
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Capoeira
Os Desafios Contemporâneos da Capoeira
Foto: Alexandre Gomes
destacaram.5 É importante lembrar a intensa discussão iniciada no final da década de 90 e, com menor ênfase, ainda
em curso, sobre a atuação do professor de educação física
no ensino da capoeira. A lei federal nº 9.696, editada em
1998, regulamentou a atuação do profissional de educação
física e criou os respectivos conselho federal e conselhos
regionais. Ocorre que, em virtude de um entendimento ampliado – e conforme se verificou posteriormente, equivocado – do conceito de “atividade física”, procurou o Conselho
Federal disseminar a concepção de que, a partir da edição
da lei, a capoeira estaria entre as atividades cujo ensino seria de exclusividade do professor de educação física.
Chega-se, assim, a outro tema que, em nossa avaliação,
configura um importante dilema da capoeira nos tempos
atuais, concernente à preservação da diversidade cultural
da arte. Ora, por mais que possamos considerar a capoeira uma linguagem corporal fundamentada em elementos
universais, há diferentes formas de compor seus elementos, produzindo “sotaques” diferentes. E não estamos nos
referindo aqui apenas à distinção angola-regional. Estamos
remetendo a diferenças internas nessas grandes escolas
da capoeira, que vão das características técnicas do jogo
às concepções sobre rituais e padrões éticos que orientam
o capoeirista. O desenvolvimento dos grandes grupos de
capoeira, com sua organização empresarial e sua estratégia agressiva de expansão para o interior do Brasil e para
outros países, chegou a causar apreensão nos estudiosos
quanto à possibilidade do desaparecimento das ricas manifestações da capoeiragem nas comunidades do interior
do Brasil e nas periferias das grandes cidades. Dessa forma, a ação das entidades ligadas à difusão da cultura e,
principalmente, dos órgãos governamentais que atuam na
área, precisa pautar-se pelo princípio de que não há uma
capoeira apenas, mas capoeiras, no plural. Preservar essa
diversidade e difundir uma cultura de tolerância é preservar
um cenário em que cada manifestação particular da capoeira encontra seu lugar.
Em muitos casos, preservar a diversidade da capoeira
envolve assegurar aos capoeiristas condições para que
possam viver de seu ofício. E isso se torna, no Brasil atual,
particularmente complexo no caso de mestres idosos que
vivem nos tradicionais centros da capoeira nacional (cidades como Salvador, Rio de Janeiro e Recife) e também em
pequenas localidades do interior, onde sobrevivem manifestações tradicionais da capoeira. Consideramos esse um
dos importantes desafios a serem enfrentados na imple-
da capoeira está muito longe de um consenso a respeito do
assunto. Embora as principais escolas ou grupos de capoeira
obtenham sucesso na intenção de legitimar os mestres (temos, portanto, o mestre que se firma em virtude do peso da
entidade que representa, além de suas qualidades e saberes
individuais), há todo um universo de prática da capoeira que
se encontra à margem desses espaços de convívio da arte,
onde não há referências claras no que concerne à formação
de um professor de capoeira.
Esse tema se torna ainda mais complexo quando tratamos da expansão internacional da capoeira. Afinal, há uma
tendência natural das entidades e indivíduos que acolhem
o capoeirista brasileiro no exterior no sentido de querer conhecer suas referências no Brasil. Não há solução simples
para a questão. Algumas alternativas propostas e bastante
discutidas no âmbito da capoeiragem apresentam mais
problemas do que soluções, como, por exemplo, autorizar determinada federação ou entidade governamental a
implementar um cadastro “oficial” de mestres ou pessoas
autorizadas a ensinar a arte. O tema precisa ser aprofundado, e caminhos precisam ser definidos, ainda que não
seja viável definir critérios aplicáveis a todos os estilos para
a obtenção do grau de professor ou mestre. Os mestres
pioneiros na expansão da capoeira pelo exterior sempre
manifestaram preocupação com a chegada de capoeiristas, muitas vezes desconhecidos no Brasil e sem qualquer
experiência de ensino, que estabelecem trabalhos e, muitas
vezes, se auto-intitulam mestres. Esse fenômeno, da utilização indevida dos títulos de professores ou mestres, já
foi uma preocupação no Brasil, mas, atualmente, a difusão
da capoeira e a formação de um mercado próprio, com o
esclarecimento da população, coibiu significativamente a
atuação de professores sem a devida qualificação. O mesmo, entretanto, ainda não ocorre no exterior.
À falta de uma discussão aprofundada sobre a questão,
formou-se um cenário complexo, em que alguns atores se
(5) É importante observar que, pela legislação em vigor no Brasil, não há exclusividade assegurada
às entidades de organização esportiva como federações ou confederações. Não se pode,
portanto, considerar tais entidades “oficiais”, no sentido de terem maior respaldo do poder
público do que quaisquer outras no que concerne à organização e representação dos
praticantes de uma determinada modalidade. Pode haver para uma mesma modalidade
esportiva – e, de fato, em muitos casos há – mais de uma federação por Estado ou mais de
uma confederação de âmbito nacional. Isso sem falar nas ligas e outros tipos de associações,
que, em relação ao tema aqui abordado, têm as mesmas prerrogativas na representação dos
praticantes que federações. No caso da capoeira, alguns grupos constituíram suas próprias
federações, confederações ou ligas.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
O Departamento Cultural do Ministério
das Relações Exteriores (MRE), por meio
de suas embaixadas e consulados, tem
assegurado apoio aos capoeiristas que
atuam fora do Brasil, mas entendemos que
esse suporte pode ser mais sistemático.
Os Desafios Contemporâneos
da Capoeira
mentação de uma política pública de valorização da capoeira como patrimônio cultural brasileiro.
Nesse sentido, cumpre registrar a importância do projeto Capoeira Viva, do Ministério da Cultura (MinC), lançado
2006, no Rio de Janeiro, com o objetivo de promover a capoeira e lançar as bases de uma iniciativa governamental
consistente para o setor.6 O projeto consiste basicamente
no apoio, mediante regras publicadas em edital de ampla
divulgação, a projetos relacionados à capoeira em diversas
áreas, da organização de acervos documentais a ações
relacionadas ao ensino da arte em comunidades pobres.
Outras ações do governo federal foram lançadas anteriormente, e algumas remontam aos anos 1980. Entretanto, o
que peculiariza o projeto Capoeira Viva, em nossa avaliação, é o esforço no sentido de assegurar a transparência
na definição de critérios para a seleção de projetos a serem
financiados e a ampla divulgação de seus resultados. Dessa
forma, tem-se, no início do século XXI, uma primeira ação
governamental, de caráter sistêmico, relacionada ao desenvolvimento da capoeira.
Em relação ao importante movimento de resgate das
tradições ancestrais da capoeira, gostariamos de salientar
o caráter restrito da apropriação da memória histórica e de
diversos outros saberes relacionados à capoeira. Infelizmente, o esforço na direção do aprofundamento das pesquisas
sobre a capoeira não tem encontrado correspondência em
ações de divulgação desses saberes para a comunidade de
praticantes e para a sociedade em geral. Ou seja, a pesquisa, que tem nos antigos capoeiras e nas comunidades
algumas de suas principais fontes, acaba promovendo um
deslocamento desses saberes, fomentando a produção de
uma elite de grupos e de capoeiristas com formação acadêmica elevada, mas com pouca consciência acerca da importância da existência de mecanismos de democratização
desses conhecimentos. Identificamos aí mais uma frente
de atuação do Estado como promotor da cultura popular
e da cidadania, não somente no sentido de viabilizar a pesquisa, mas de, junto com ela, criar as condições para que se
fortaleça o ambiente em que ela se produz como expressão da vida das comunidades.
Finalmente, é necessário discutir as possibilidades de
apoio aos mestres e professores de capoeira no exterior.
O Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores (MRE), por meio de suas embaixadas e consulados,
tem assegurado apoio aos capoeiristas que atuam fora do
Brasil. As embaixadas poderiam, entretanto, fortalecer seu
papel de pontos de referência da cultura brasileira, proporcionando, bibliotecas e videotecas para os mestres e
professores e demais interessados. Gostaríamos de sugerir,
ainda, a criação de conselhos informais de capoeira, apoiados pelas respectivas embaixadas, nos países onde ela já
alcançou expressão significativa. Caberia a esses conselhos
(6) O sítio eletrônico do projeto se encontra no endereço: www.capoeiraviva.org.br
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Capoeira
Os Desafios Contemporâneos da Capoeira
opinar na hora de assegurar registro dos profissionais de
ensino – sempre preservando a pluralidade dos estilos – ou
contribuir para a transparência nas decisões e patrocínios
que concernem à capoeira. Como já foi apontado no caso
do Capoeira Viva, é necessário que o crescente fluxo de financiamentos para a capoeira através das diferentes leis de
incentivos culturais sejam submetidos ao controle social,
garantindo o acesso aos editais e a fiscalização dos resultados. Acreditamos que a capoeira e as políticas públicas que
a apóiam podem, inclusive, servir de exemplo para a globalização de outras manifestações culturais brasileiras, o que
já está ocorrendo de forma incipiente com as batucadas de
samba e os maracatus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS. O processo de globalização
da capoeira constitui-se em um momento privilegiado para
a reflexão sobre a expansão da cultura brasileira pelo mundo. Entendemos que, em um mundo marcado pela circulação da informação pela Internet em velocidade instantânea, com recursos como os sítios de compartilhamento de
vídeos (ferramenta amplamente utilizada pelos capoeiras
de todo o mundo), não se pode pensar no papel do Brasil a
partir de uma ótica essencialista. Ou seja, afirmar a brasilidade da nossa arte pode ser importante, mas não é mais suficiente para garantir ao Brasil papel de destaque no mundo
contemporâneo da capoeira.
O protagonismo do Brasil no universo atual da capoeira
só pode se justificar a partir de um conjunto de ações que, de
fato, valorizem a cultura da capoeira como tradição e como
fazer cotidiano, incorporado às diversas instâncias da sociedade brasileira. Apenas assim, para além de ter o privilégio de
sediar os mitos de origem e de ser o cenário em que ocorreram os feitos dos grandes capoeiras do passado, o Brasil
seguirá sendo reconhecido, em todo o mundo, como a fonte
da memória histórica e de novas experiências relacionadas
ao jogo, à musicalidade e ao ensino da capoeira.
Foto: Alexandre Gomes
Luiz Renato Vieira. Doutor em Sociologia da Cultura.
Consultor Legislativo do Senado Federal na área de assistência social e minorias. Mestre de Capoeira do Grupo Beribazu e coordenador do Projeto Capoeira Comunitária da UnB.
Membro do Conselho de Mestres do Projeto Capoeira Viva
(MinC). Autor do livro “O Jogo da Capoeira: Corpo e Cultura
Popular no Brasil” (Rio de Janeiro: Sprint, 1998).
E-mail: [email protected]
Matthias Röhrig Assunção. Doutor em História. Professor do Departamento de História da Universidade de Essex
(Inglaterra) e professor visitante no Mestrado em História da
Universidade Federal Fluminense. Bolsista da CAPES. Autor
do livro “Capoeira. The History of an Afro-Brazilian Martial Art”
(London:Routledge, 2005)
E-mail: [email protected]
19
As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história da
capoeira
Guilherme Frazão Conduru
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A interpretação da obra dos cronistas
viajantes estrangeiros – que passaram a
nos visitar com maior freqüência a partir
da chegada da família real portuguesa
em 1808 – muito tem contribuído para a
reconstituição dos costumes e da sociedade
brasileira do período. Nesse sentido, parece
ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858)
a primeira descrição da capoeira (1835).
As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história
da capoeira
Deve-se reconhecer, entretanto, que a definição acima
é historicamente definida. Sua aplicação indiscriminada –
como, por exemplo, ao jogo de capoeira tal como praticado
nos tempos da Independência ou nos tempos do Segundo
Reinado – constituiria exemplo de anacronismo. A identificação das metamorfoses da capoeira e das transformações
na forma de sua inserção na sociedade constitui o tema
que, a seguir, se explora.
1. AS PRIMEIRAS REFERÊNCIAS (C. 1770-1830).
Há quem fale na prática da capoeira desde os tempos
do Quilombo dos Palmares. 1 A associação da capoeira com a história da resistência negra à escravidão é,
com efeito, instigante: seria ela não só um folguedo,
por meio do qual os escravos se esqueciam momentaneamente das agruras de sua condição, mas também
um instrumento de luta para a conquista da liberdade. O estádio atual da pesquisa histórica, todavia, não
permite identificar a prática do jogo da capoeira entre
quilombolas. 2 Pode-se, no máximo, encontrar referências que remontam à segunda metade do século XVIII,
e num ambiente urbano.
O memorialista Luis Edmundo descreve o capoeira dos
tempos do Vice-Reinado no Rio de Janeiro como uma figura soturna, aventureira e astuciosa, que, no entanto, não
deixava de reverenciar as imagens sacras dos oratórios
públicos, então muito presentes na paisagem urbana da
capital da colônia.3
Na obra de Elísio de Araújo sobre a história da polícia na
antiga capital4, encontra-se testemunho distinto – menos
literário e mais convincente. Citando o ilustrado Dr. J. M. Macedo, sem, contudo, mencionar a obra, discorre:
Já no tempo do Marquês de Lavradio, em 1770,
existia na pessoa de um oficial de milícias, o Tenente João Moreira, por alcunha “o amotinado”, que,
dotado de prodigiosa força, de ânimo inflamado,
talvez fosse o mais antigo capoeira do Rio de Janeiro, porque, jogando perfeitamente a espada, a
faca e o pau, dava preferência à cabeçada e aos
golpes com os pés.
Esta informação sugere que “o amotinado” teria sido
um antecessor do célebre major Vidigal, homem de confiança do primeiro intendente de Polícia do Brasil, Conselheiro Paulo Fernandes Viana, que fora nomeado pelo
Príncipe Regente Dom João. Vidigal ficou imortalizado
(1) Ver, por exemplo, a entrevista do Mestre Almir das Areias ao jornal Movimento em 13.09.1976,
citada por Roberto Freire em Soma, uma terapia anarquista, vol. 2/Prática da Soma e capoeira,
p.160-168, Editora Guanabara-Koogan, Rio de Janeiro, 1991. Da mesma forma, no filme
Quilombo (1983), do diretor Cacá Diegues, aparecem cenas que sugerem a utilização de golpes
de capoeira.
(2) Cf. Memorial de Palmares, de Ivan Alves Filho, Xénon Editores, Rio de Janeiro, 1988.
(3) Cf. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, Athena Editora, Rio de Janeiro, s/d.
(4) Cf. Estudo histórico sobre a Polícia da Capital Federal de 1808 a 1831, Primeira parte, Imprensa
Nacional, Rio de Janeiro, 1898, p. 56.
22
São Salvador
J. M. Rugendas, 1802 - 1858
(...) Os negros têm ainda um outro folguedo
guerreiro, muito mais violento, a capoeira: dois
campeões se precipitam um contra o outro,
procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente
hábeis; mas, lançando-se um contra o outro,
mais ou menos como bodes, acontece-lhes
chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça,
o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo
ensangüentando-as.8
como personagem das Memórias de um Sargento de
Milícias que impunha às ruas do Rio de Janeiro sua discricionária “inquisição policial”.5 A fama do major Vidigal
teve origem no seu infatigável combate aos quilombos,
candomblés e capoeiras. Teria sido o criador da temida
sessão de tortura conhecida como “ceia dos camarões”6
reservada aos capoeiras e vagabundos que infernizavam
a vida carioca.
Apesar de a primeira codificação criminal brasileira – o
Código Criminal do Império do Brasil, de 1830 – não especificar os capoeiras, eles estariam enquadrados na categoria
de “vadios e mendigos”, da qual trata o Artigo 295 do Capítulo IV.7 De fato, o praticante da capoeira era identificado
como integrante de grupos de bandidos, sem ocupação
definida, verdadeiros marginais. Resta, contudo, averiguar
de que forma esse estigma social de marginalidade se conciliaria com a idéia de um “inocente” folguedo de escravos
e de negros.
A interpretação da obra dos cronistas viajantes estrangeiros – que passaram a nos visitar com maior freqüência
a partir da chegada da família real portuguesa em 1808 –
muito tem contribuído para a reconstituição dos costumes
e da sociedade brasileira do período. Nesse sentido, parece ser de Johann Moritz Rugendas (1802-1858) a primeira
descrição da capoeira (1835):
Além dessa descrição, o artista alemão deixou duas gravuras que retratam a prática da capoeira e que constituem,
com razoável probabilidade, os mais antigos documentos
iconográficos sobre o assunto. Na primeira delas, intitulada
São Salvador, a capital soteropolitana - vista de algum pon-
(5) Cf. Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, Irmãos Pongetti
Editores, Rio de Janeiro, 1963, prefácio de Marques Rebêlo, p. 28.
(6) Cf. Almeida, op. cit.; Waldeloir Rego, Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico, Editora Itapuã,
Salvador, 1968, p. 295; e Raimundo Magalhães Júnior, Deodoro: a espada contra o Império, Cia.
Editora Nacional, São Paulo, 1940, vol. 2, p. 183.
(7) Cf. Rego, op. cit., p. 291
(8) Johann Moritz Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil, Livraria Martins, São Paulo, 1940,
p. 197.
23
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Vale a pena frisar que em nenhuma
destas gravuras aparece o berimbau – o
que permite a formulação da hipótese de
que esse instrumento não estava, naquele
momento, associado à capoeiragem.9 Um
detalhe de cunho técnico, do ponto de vista
da luta, merece, ainda, ser observado: os
punhos cerrados dos capoeiras na segunda
gravura.
As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história
da capoeira
to próximo à Igreja de Nosso Senhor do Bonfim – ocupa o
fundo enquanto no primeiro plano um pequeno grupo de
três negros e quatro negras assiste à contenda de dois outros negros. Apesar da ausência de qualquer instrumento
musical visível, sente-se o pulsar de um ritmo pelas posições dos contendores e da platéia. É de notar não só a
presença de mulheres, como também o assédio de um dos
assistentes sobre uma delas.
Em outra gravura, denominada Jogo da Capoeira, vê-se
um grupo de dez negros e negras, dispostos em semicírculo, que se entretêm assistindo ao embate entre dois negros.
Aqui está representado o atabaque e um dos assistentes
bate palmas. À exceção de uma negra, que serve algo de
comer para um ancião, todos parecem hipnotizados pelo
ritmo e pelos movimentos dos capoeiristas, inclusive uma
que traz à cabeça um cesto de abacaxi. Esse último detalhe
permite inferir que o cenário é urbano.
Vale a pena frisar que em nenhuma destas gravuras aparece o berimbau – o que permite a formulação da hipótese
de que esse instrumento não estava, naquele momento,
associado à capoeiragem.9 Um detalhe de cunho técnico,
do ponto de vista da luta, merece, ainda, ser observado: os
punhos cerrados dos capoeiras na segunda gravura.
A obra de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), apesar de
não conter de referências explícitas à capoeira, fornece por
meio de duas aquarelas, e de suas respectivas explicações,
subsídios importantes para a reconstituição histórica da capoeira. Na descrição da prancha intitulada Enterro do filho
de um rei negro o artista francês escreve:
A procissão é aberta pelo mestre-de-cerimônias.
Este sai da casa do defunto fazendo recuar a
grandes bengaladas a multidão negra que obstrui a passagem; erguem-se o negro fogueteiro, soltando bombas e rojões e três ou quatro
negros volteadores, dando saltos mortais ou fazendo mil cabriolas para animar a cena.10
Enterro do filho de um rei negro
J. B. Debret, 1768-1848
(9) Cf. O berimbau-de-barriga e seus toques, Kay Shaffer, MEC/FUNARTE/INF, Monografias
folclóricas, 1981.
Detalhe
Jogo de Capoeira, J.M Rugendas
24
O negro trovador
J. B Debret, 1768 - 1848
É interessante constatar a presença num cortejo fúnebre desses “negros volteadores”, cujos movimentos
acrobáticos serão incorporados, no século XX, ao jogo da
capoeira, seja como “floreios”, para eludir o oponente, seja
como intimidações, ou, ainda, como demonstrações de habilidade e destreza físicas de apelo turístico.
Na aquarela O negro trovador, Debret representa um
ancião cego que toca o urucungo ou berimbau.
Nesse período aproximado de 1770 a 1830, pode-se
conceber a capoeira sob, pelo menos, duas perspectivas.
Sob uma ótica, por assim dizer, etnográfica, como um divertimento de negros (portanto, de origem africana), praticado
a céu aberto, a ponto de possibilitar a sua reprodução por
viajantes estrangeiros. Sob um prisma sociológico, não se
pode ignorar ter sido a capoeira objeto de forte perseguição policial, uma vez que seus praticantes, em geral escravos ou negros libertos, eram identificados como assaltantes
e baderneiros, que faziam uso da capoeira para perpetrar
crimes e atentar contra a ordem pública.
Esses trovadores africanos, cuja facúndia é fértil
em histórias de amor, terminam sempre suas ingênuas estrofes com algumas palavras lascivas
acompanhadas de gestos análogos, meio infalível
para fazer gritar de alegria todo o auditório negro, a cujos aplausos se ajuntam assobios, gritos
agudos, contorções e pulos, mas cuja explosão
é felizmente momentânea, pois logo fogem para
outros lados a fim de evitar a repressão dos soldados da polícia que os perseguem a pauladas.10
2. AS MALTAS: “PROFISSIONALISMO” E SERVIÇOS
POLÍTICOS (C. 1830-1890). Apesar de toda perseguição
que sofreu, a capoeira conseguiu sobreviver e, ao longo da
Regência e do Segundo Reinado, chegou a expandir-se socialmente. De alguma maneira e em algum momento deixou de ser coisa exclusivamente de negro ou de escravo. É
claro que são negros e mulatos os que compõem a maior
parte da galeria de capoeiristas famosos do século passado.
Não eram, contudo, os únicos conhecedores da arte.
De fato, a incapacidade da repressão para acabar com
a capoeira (e com outras manifestações da cultura negra,
Corroborando a hipótese formulada acima, a partir das
gravuras de Rugendas, pode-se concluir, de forma provisória, que capoeira e berimbau não estavam associados, pelo
menos, até a terceira década do século XIX. Fato surpreendente uma vez considerada a visceral relação que prevalece entre os dois, desde, pelo menos, a década de 1930.
(10) Cf. Debret, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo,
1989, tomo II, p. 164-165.
25
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Assim, num esquema político de eleições
fraudulentas, os serviços das maltas
organizadas podiam ser considerados
“profissionais”: o ingresso em uma delas
representava alternativa de sustento para os
membros da numerosa classe de homens
livres e pobres. Era, portanto, na ampla
camada de desocupados, vadios e biscateiros
onde se iam buscar, de uma maneira
geral, os contingentes de capoeiras que
integravam as maltas.
As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história
da capoeira
como o candomblé) permitiu sua difusão para outras camadas da população, ainda durante o Império. No centro desse contraditório processo de criminalização e alastramento
encontra-se a formação das maltas de capoeira. Não foi por
acaso que cronistas como Lima Campos e Coelho Neto se
referiram ao tempo de Dom Pedro II como o da fase de
apogeu da capoeira: “Durante o Segundo Império, a capoeira chegou ao auge, foi verdadeiramente, aquela época, a do
seu pleno domínio e máximo desenvolvimento”.11
Por um lado, o florescimento das maltas se relaciona
com o crescimento urbano do Rio de Janeiro na segunda
metade do século XIX, que foi acompanhado de um forte
incremento demográfico provocado pela imigração, principalmente nas camadas mais pobres da população livre.12 Por
outro lado, o que explica, em grande parte, a organização
das maltas, apesar da perseguição, é o seu aproveitamento
político para fins eleitorais. Sobre esse aspecto, o seguinte
comentário de Melo Morais Filho é bastante eloqüente: “(...)
Ao seu ombro tisnado escorou-se, até há pouco, o senado
e a câmara, para onde, à luz da navalha, muitos dos que nos
governam, subiram”.13
A julgar pelas informações de Lima Campos e de Melo
Morais Filho, as maltas do Rio de Janeiro possuíam uma estrutura disciplinar interna que não dispensava uma rígida
hierarquia e uma espécie de “progressão funcional”. Esses
agrupamentos tanto podiam ser formados a partir de bairros (Glória, Lapa, Largo do Moura, Santa Luzia etc.) como a
partir de ocupações (Carpinteiros de São José, Conceição
da Marinha).
Em um determinado momento, segundo Lima Campos,
ocorre a fusão destas diferentes maltas em duas grandes
“nações”: os “guaiamus” e os “nagôs”. O interesse político
na preservação das maltas consistia na sua utilização para
“serviços eleitorais”; daí, a constante e audaciosa presença
dos capoeiras, que gozavam de relativa impunidade em razão da conivência das autoridades. Cada uma das “nações”
se associara a um dos partidos da monarquia: os liberais e
os conservadores. Entre os serviços possíveis incluíam-se a
dissolução de comícios, o roubo ou falsificação de urnas eleitorais e a coação de eleitores, além de vinganças pessoais
contra políticos do partido rival. Assim, num esquema político
de eleições fraudulentas, os serviços das maltas organizadas
podiam ser considerados “profissionais”: o ingresso em uma
delas representava alternativa de sustento para os membros
da numerosa classe de homens livres e pobres. Era, portanto, na ampla camada de desocupados, vadios e biscateiros
onde se iam buscar, de uma maneira geral, os contingentes
de capoeiras que integravam as maltas.
(11) Lima Campos, “A Capoeira”, artigo publicado na revista Kosmos, Rio de Janeiro, 1906, apud
Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, Rio de Janeiro em prosa e verso, Livraria
José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965, p. 191-194.
(12) Sobre a expansão urbana do Rio de Janeiro nos meados do século XIX, cf. de Maurício de
Abreu, Evolução urbana do Rio de Janeiro, IPLANRIO/ Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
(13) Cf. Festas e tradições populares do Brasil, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, Edusp, São Paulo,
1979, p. 257-263, apud Rego, op.cit., p. 280.
Detalhe
Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas
26
Capoeira
As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira
Não eram eles, contudo, os únicos praticantes de capoeira. Filhos de boa família se tornaram valentes brigões graças ao conhecimento adquirido no convívio com capoeiras.
Coelho Neto, confesso admirador da capoeiragem, menciona “vultos eminentes na política, no professorado, no
Exército, na Marinha” que teriam aprendido os segredos da
capoeira ao se associarem, de alguma forma, às maltas.14
A conivência das autoridades com as atividades das
maltas de capoeira atinge o paroxismo com a criação da
Guarda Negra, que era uma espécie de associação secreta, cujo objetivo declarado era a defesa da Princesa Isa-
bel. Chegou a contar com verbas da polícia do Governo
de João Alfredo e atuou como força paramilitar contrária
às mobilizações do ascendente movimento republicano.
Aproveitando-se dos sentimentos de simpatia provocados
pelo fim da escravidão, a Guarda Negra arregimentou seus
membros junto aos capoeiras – cujo elevado nível de organização e mobilização devia-se à estrutura interna das
maltas – e na variada camada de delinqüentes e malandros,
que transitavam socialmente entre a criminalidade e a ordem. A Guarda Negra – que teve como um dos seus idealizadores José do Patrocínio – foi, assim, a responsável pela
dissolução de vários comícios e reuniões dos republicanos
e representava uma alternativa desesperada do governo
para salvar a Monarquia. Durante os acontecimentos que
culminaram com a proclamação da República, a denúncia
de que o quartel do Primeiro Regimento de Cavalaria seria atacado pela Guarda Negra teria servido como pretexto
para o início da insubordinação militar.15
Ao tratar da capoeira durante o Império, não se pode
deixar de fazer uma referência especial a uma fotografia
de Christiano Júnior, tirada entre 1864 e 1866, que reproduz em estúdio o que seria uma lição particular de
capoeira.16 Um jovem negro inicia um menino negro na
capoeira, ensinando-lhe o que parece ser os rudimentos
da “ginga”. A foto sugere a idéia de que a transmissão da
técnica da capoeira envolvia, já naquele tempo, alguma
espécie de metodologia e uma relação do tipo mestre/
discípulo. A existência de uma rígida hierarquia no interior
das maltas, caso confirmada, poderia contribuir para fundamentar essa hipótese.
Por fim, deve-se mencionar que os capoeiras ocupavam um lugar ambíguo no imaginário social da época:
ao mesmo tempo em que aterrorizavam a população
com as badernas e pancadarias que promoviam, eram
admirados pelas façanhas realizadas contra os representantes da ordem e do poder estabelecido. Sobre esta
discussão, vale a pena reproduzir trecho de uma crônica
de Machado de Assis:
(...) que estou em desacordo com os meus contemporâneos, relativamente ao motivo que leva
o capoeira a plantar facadas nas nossas barrigas.
Diz-se que é o gosto de fazer mal, de mostrar
agilidade e valor, opinião unânime e respeitada
como dogma. Ninguém vê que é simplesmente
absurda.17
(14) Coelho Neto cita Juca Paranhos, o futuro Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores
de 1902 a 1912, e patrono da diplomacia brasileira, “que, na mocidade, foi ‘bonzão’ e disso
se orgulhava nas palestras íntimas em que era tão picaresco”, apud Magalhães Júnior, op.cit.,
p. 185.
(15) Cf. Rego, op.cit., p. 313-315; Magalhães Júnior, op.cit., vol. 1, p. 326-327, 341-342, 373-376;
vol. 2, 63-64, 183, 228.
(16) Cf. Escravos Brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr., Paulo Cesar de Azevedo e
Maurício Lissovsky (orgs.), Editora Ex Libris, São Paulo, 1987, figura 71.
(17) Machado de Assis, Crônicas (1878-1888), W. M. Jackson Inc. Editores, 1938, vol. IV, p. 227-228,
apud Rego, op.cit., p.280-281.
Lição particular de capoeira
Christiano Júnior
27
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A constante freqüência dos capoeiras
na crônica policial das últimas décadas
do Império levou a que recebessem um
tratamento diferenciado por parte da
legislação penal brasileira.
Coelho Neto, por sua vez, idealizava o capoeira, com
nostalgia e romantismo, ao atribuir-lhe elevada dignidade
moral uma vez que não usava navalha (sic), não batia em
homem caído e, caso defendesse causas nobres, como o
abolicionismo, o fazia por idealismo e não como mercenário (sic). Exaltando a valentia dos capoeiras, Coelho Neto
relata o terror que produziam na própria polícia.18
3. ANOS DE REPRESSÃO E ESQUECIMENTO (C.
1890-1930). A constante freqüência dos capoeiras na
crônica policial das últimas décadas do Império levou a que
recebessem um tratamento diferenciado por parte da legislação penal brasileira. Com efeito, o Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1890, estabelecia
em seu Capítulo XIII:
Dos Vadios e Capoeiras / Artigo 402: Fazer nas
ruas e praças públicas exercícios de agilidade e
destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem; andar em correrias com
armas ou instrumentos capazes de produzir
uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou
incutindo temor de algum mal: / Pena: de prisão
celular de dois a seis meses. / Parágrafo único: é
considerada circunstância agravante pertencer
a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeças
se imporá a pena em dobro (...).19
As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história
da capoeira
Tem-se, assim, juridicamente tipificada, a criminalização
da capoeira – uma capoeira intimamente ligada à marginalidade e que estava caracterizada tanto como uma técnica
de luta corporal quanto pelo manuseio de armas como navalhas, facas e porretes.
Ainda antes da entrada em vigor, por decreto, do Código Penal, a capoeira seria alvo de ferrenha perseguição
oficial. Na atmosfera de instabilidade política que marcava
os primeiros momentos da República, o Marechal Deodoro da Fonseca nomeou para a chefia de Polícia o Doutor
Sampaio Ferraz, que exercera o cargo de promotor público e fora, como jornalista, violento opositor da Monarquia.
Ao entregar-lhe o cargo, o Presidente conferiu-lhe amplos
poderes para erradicar da capital todos os desordeiros, a
começar pelos bandos de capoeiras.
Assim, Sampaio Ferraz deu início a formidável campanha contra as maltas de capoeira. Para que a cidade efetivamente se livrasse daqueles bandos, a pena aplicada foi a
da deportação. Segundo José Murilo de Carvalho, esta prática fora iniciada no final do Império, com a deportação de
Detalhe
Jogo de Capoeira,
J. M. Rugendas
(18) Cf. Coelho Neto, crônica “O nosso jogo”, in Bazar, Livraria Chandron, de Lello e Irmãos Ltda.,
Porto, 1928, apud Magalhães Júnior, op.cit., p. 136-138.
(19) Código Penal Brasileiro, pelo Doutor Manuel Clementino de Oliveira Escorel, Tipografia da Cia.
Ind. de São Paulo, 1893, apud Luiz Renato Vieira, Da vadiação à capoeira regional, tese de
Mestrado para o Departamento de Sociologia da UnB, 1991.
28
Capoeira
As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira
menta que esta possibilidade de mistura social presente na
capoeira ocorria tradicionalmente nas irmandades religiosas e nas organizações assistencialistas de auxílio mútuo.
Eram “ocasiões de auto-reconhecimento” da população
do Rio de Janeiro, que vivia a transição de um espaço urbano típico de uma cidade colonial e escravista para o de
uma moderna metrópole capitalista. Como exemplos de
movimentos que simbolizam a construção de espaços de
confraternização, cita a popularização da festa da Penha, a
participação de políticos conhecidos nos centros de candomblé, a gradual ascensão social do samba e a difusão do
futebol entre as classes mais pobres. No plano político, entretanto, a ausência de cidadania engendrava a indiferença
e o cinismo e, além disso, a tendência para a carnavalização
do poder e das relações sociais.21
Estas considerações ajudam a problematizar o tema da
tardia aceitação social da capoeira. A repressão empreendida por Sampaio Ferraz pode ser considerada um sucesso
na medida em que provocou o virtual desaparecimento
da capoeira. Segundo um viajante francês, que residiu na
capital por alguns meses, em 1883, as estatísticas policiais
capoeiras para o Mato Grosso. Sampaio Ferraz teria prendido e desterrado para Fernando de Noronha, sem processo, cerca de 600 capoeiras. O mesmo autor observa que
“havia muitos brancos e até mesmo estrangeiros” entre os
capoeiras: das 28 pessoas presas, em abril de 1890, sob
a acusação de capoeiragem, cinco eram pretas, dez brancas, das quais sete estrangeiras. “Era comum aparecerem
portugueses e italianos entre os presos por capoeiragem. E
não só brancos pobres se envolviam”.20
De fato, naquele mês de abril de 1890 uma crise ministerial foi quase desencadeada a partir da prisão do famoso
capoeira e baderneiro Juca Reis, rapaz de rica família portuguesa, proprietária do jornal O Paiz, que fora dirigido por
Quintino Bocayuva, então Ministro das Relações Exteriores.
Diante da prisão e da iminente deportação do burguês “valentão”, Quintino ameaçou demitir-se: ou libertavam o filho
de seu ex-patrão, o que implicava na demissão de Sampaio
Ferraz, ou ele se retiraria do Governo. Chegou-se, enfim,
a uma solução de compromisso pela qual ao capoeira da
elite seria facultado o embarque para o exterior tão logo
chegasse a Fernando de Noronha.
O episódio demonstra o grau de difusão social alcançado pela capoeira. Na capoeiragem, com efeito, era possível
o convívio entre classes sociais distintas. Carvalho argu-
(20) Cf. José Murilo de Carvalho, Os bestializados/ O Rio de Janeiro e a República que não foi, Cia.
das Letras, São Paulo, 1987, p. 179, nota 25 e p. 155.
(21) Carvalho, op.cit., p. 156-160.
Jogo de Capoeira
J. M. Rugendas (1802 – 1858)
29
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A partir dos anos 1930, tem início longo
processo cujo sentido será o de gradual
desvinculação da capoeira da criminalidade
e do mundo do crime. Trata-se da lenta
ascensão e aceitação sociais da capoeira.
As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história
da capoeira
computariam aproximadamente 20.000 capoeiristas entre
a população carioca. Cerca de vinte anos depois, no prefácio ao livro Educação Física Japonesa, o Capitão-Tenente
Santos Porto afirmava: “Entre nós, em tempos que já vão
longe, os exercícios de agilidade conhecidos por capoeiragem floresceram mesmo entre os filhos das mais distintas
famílias”. O já citado Lima Campos lamentava, em 1906,
a perda de um suposto espírito autêntico da capoeira ao
afirmar que os capoeiristas daquela época “não fazem [do
jogo] verdadeiramente uma arte, uma profissão, uma instituição. (...) são mais, a bem dizer, mazorqueiros, navalhistas,
faquistas, enfim, estriladeiros avulsos, que própria, exclusiva,
profissional e arregimentadamente capoeiras”.22 Carvalho
menciona a versão do chefe de Polícia em 1904 sobre a
prisão de vagabundos em seguida à Revolta da Vacina: das
mais de 2.000 pessoas detidas por vadiagem, apenas 73 o
foram por capoeiragem. À gritaria e ao alarido exaltado das
maltas seguiu-se um silêncio quase total acerca da capoeira. É, no entanto, necessário aprofundar a pesquisa no sentido de comprovar a idéia segundo a qual a capoeira quase
desapareceu a partir da última década do século passado.
Na Bahia a perseguição alcança a década de 1920,
quando ficaram famosas as incursões do delegado Pedro
de Azevedo Gordilho, o Pedrito, contra os candomblés e os
capoeiras. É preciso assinalar que a estratificação social em
Salvador era mais radicalmente marcada pela oposição senhor/escravo (ou branco/negro) do que no Rio de Janeiro.
De qualquer forma, maiores estudos deverão ser conduzidos para se determinar o nível de penetração social da
capoeira ao longo do século XIX na Bahia. Até o momento
não foi possível detectar a presença de maltas na Bahia do
século passado. Rego fala no capoeira-capanga assalariado
por potentados, provavelmente se referindo aos integrantes das maltas cariocas.23 Wetherell, Vice-cônsul britânico
na Bahia de 1842 a 1857, descreve uma luta comum na
Cidade Baixa na qual “(...) [os negros] são todo movimento,
saltando e mexendo braços e pernas sem parar, iguais a
macacos quando brigam (...)”.24
4. “ESCOLARIZAÇÃO”, ACEITAÇÃO SOCIAL E UM
NOVO PROFISSIONALISMO (C. 1930–). A partir dos
anos 1930, tem início longo processo cujo sentido será o
de gradual desvinculação da capoeira da criminalidade e do
mundo do crime. Trata-se da lenta ascensão e aceitação
sociais da capoeira. No decorrer dessa terceira metamorfose, a capoeira se exibirá em recepções oficiais, será reconhecida como autêntica manifestação da cultura popular
nacional, e, sobretudo, começará a ser ensinada em escolas especializadas, as “academias”.
(22) Cf. Santos Porto, prefácio ao livro Educação física japonesa, Cia. Topográfica Brasileira, Rio de
Janeiro, 1905; Lima Campos, apud Drummond e Bandeira, op.cit., p.193.
(23) Cf. Rego, op.cit., p. 315.
(24) Cf. James Wetherell, Brasil: apontamentos sobre a Bahia 1842-1857, Ed. do Banco da Bahia. O
tradutor identifica a capoeira nesta descrição
Detalhe
Jogo de Capoeira, J. M. Rugendas
30
Capoeira
As metamorfoses da capoeira: contribuição para uma história da capoeira
O desenvolvimento de uma capoeira “acadêmica” a partir da introdução de uma metodologia de ensino teve como
pressuposto uma conjuntura político-ideológica na qual a
questão da identificação e da construção de uma cultura
nacional encontrava-se no centro do debate intelectual. De
fato, nas décadas de 1920 e 1930, intelectuais seguidores de
diferentes tendências estéticas e políticas preocupavam-se
com a construção de uma “brasilidade” ideal, de um referencial de valores culturais “autenticamente” nacionais. No
fulcro desta discussão estava a busca de conciliação entre a
necessidade de modernização e, ao mesmo tempo, de preservar as tradições. Foi, portanto, no bojo das transformações
sociais e políticas relacionadas com o processo de industrialização que se plasmaram as condições para o surgimento de
uma capoeira renovada.
Assim, a Revolução de 1930 assinala o estabelecimento
de novas relações entre o Estado e as classes sociais. Com
discurso e práticas populistas, a nova elite detentora do poder
político procura legitimar a tutela do Estado sobre a sociedade e forja uma “ideologia estatal”, com a participação de intelectuais modernistas, engajados no projeto de construção
simbólica da nacionalidade. As Forças Armadas, imbuídas da
crença na sua missão de “purificadoras” da política, passam
a identificar na educação instrumento de mobilização social,
imprescindível para a (re)construção da nacionalidade. Intentam, desta forma, conciliar educação de massa e os princípios militares de disciplina e hierarquia. Assim, promovem,
a institucionalização da Educação Física como disciplina
escolar. Nesse sentido, o Estado, como agente e promotor
da cultura, apropria-se de manifestações da cultura popular.
É bastante significativa a inclusão da capoeira no programa
curricular da Polícia Especial, criada em 1932, servindo a dois
objetivos pragmáticos: como técnica de luta, considerada
como necessária para a formação profissional do policial, e
como valor cultural, afirmador da nacionalidade.25
Nesse contexto surge uma nova forma de capoeira,
que tem como base programática a noção de eficácia,
cujo marco inicial pode ser simbolizado pela criação, por
Mestre Bimba, da primeira academia em 1932, denominada Centro de Cultura Física e Capoeira Regional da Bahia.
É importante assinalar que até então – e a despeito das
considerações suscitadas pela fotografia de Christiano Júnior – a capoeira era aprendida na rua; a roda se fazia em
espaço público e o aprendizado técnico excluía a idéia de
treinamento formal. Ou seja, aprendia–se jogando, e não
treinando, como hoje. Ao fundar seu novo “estilo” no critério de eficácia da luta, Bimba implicitamente considerava
a capoeira existente como fraca do ponto de vista marcial.
Partindo desta perspectiva, elabora um método de ensino
que, ao priorizar a formação do capoeirista como lutador,
tende a menosprezar o componente lúdico da arte. Tem
início, desta maneira, um processo de “escolarização” da
capoeira, com o declínio do seu aspecto de “vadiação” e o
gradual desaparecimento das rodas de rua.
Além de supervalorizar a capoeira na sua dimensão
marcial, privilegiando a técnica e até introduzindo movimentos originários de outras lutas, Bimba buscava desvinculá-la do estigma da marginalidade. Como observa
Vieira, para ingressar na academia regional, o “aluno” (daí
“escolarização”) deveria ser estudante ou trabalhador, excluindo-se os vagabundos (ou desempregados?). Ao lado
desta segregação, Bimba assimilou aspectos formais próprios da cultura erudita e, portanto, alheios ao ambiente
da cultura popular: exame de admissão, curso básico, cerimônia de formatura e curso de especialização. Procurava,
por esta via, a legitimação da sua capoeira como atividade
educativa e incorporava os princípios militares de hierarquia e disciplina.
A participação de Bimba e de seus alunos no desfile
oficial do Dois de Julho de 1936, a autorização legal para
o funcionamento de sua academia em 1937 (na prática,
descriminalizando a capoeira), a sua atuação como professor no Centro de Formação de Oficiais da Reserva do
Exército, de Salvador, entre 1939 e 1942, e a exibição para
Getúlio Vargas, em 1953, constituem fatos emblemáticos
da aceitação e da ascensão social da capoeira. Com efeito,
houve um contato do mestre com grupos de universitários
interessados em aprender a capoeira, e, além disso, muitos
de seus alunos eram membros da elite social de Salvador.
Por conseguinte, parece não ser destituída de verdade a
afirmação de que a regional teria sido orientada para as
classes mais privilegiadas da sociedade..26
Uma das conseqüências do aparecimento da chamada
“capoeira regional” foi a falsa distinção entre dois “estilos”: a
“angola”, tida como mais antiga e tradicional, e a “regional”,
considerada, pelos puristas, como uma descaracterização.
Na verdade, o conceito de “capoeira angola” surge como
resposta ao advento da regional de Bimba, a partir da iniciativa de Mestre Pastinha (Vicente Ferreira) de criar seu
Centro Esportivo de Capoeira Angola, em 1941, na Bahia.
Ocorre, com freqüência, a confusão entre o “toque” de
berimbau conhecido como “toque de Angola” (isto é, um
determinado ritmo que implica determinado tipo de jogo)
e um suposto “estilo angola” de jogo. Deve-se esclarecer,
antes de tudo, que existem diferentes toques que determinam diferentes formas de jogo, sem que essa variedade de
ritmos implique, necessariamente, a cristalização de diferentes “estilos” ou “escolas” de capoeira.
Um dos efeitos da disseminação das academias foi, por
um lado, o definitivo rompimento do elo que associava a
prática da capoeira à marginalidade. Assim, o estigma de
“coisa de vagabundo” ou “de marginal” foi sendo gradualmente desfeito pela realidade daqueles que compõem o
mundo da capoeira nos dias de hoje. Por outro lado, a difusão social provocada pelas academias teve sua contrapar(25) Cf. Vieira, op.cit., capítulo II.
(26) Cf. Vieira, op.cit., p. 175.
31
Foto: Lilia Menezes
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A participação de Mestre Pastinha e de seu
grupo no Festival de Arte Negra realizado
em Dacar, Senegal, em 1966, pode ter
sido a primeira demonstração, oficial, de
capoeira no exterior. Desde os anos 1970
e, principalmente, desde os anos 1980, um
número cada dia maior de capoeiristas
têm viajado para a Europa ou para os
EUA, ministrando cursos e até se fixando e
desenvolvendo trabalhos de longo prazo no
exterior .
As metamorfoses da capoeira:
contribuição para uma história
da capoeira
(27) É o caso, por exemplo, de Mestre Acordeon, baiano, discípulo de Mestre Bimba, que se
estabeleceu em São Francisco, Califórnia, e de lá trouxe, em 1983, grupo significativo de
alunos norte-americanos para conhecer a capoeira no Brasil. Inúmeros e cada vez mais
freqüentes exemplos poderiam ser citados.
tida tanto na proliferação desenfreada de “mestres” quanto
na conseqüente vulgarização, muitas vezes deturpada, do
sentido original desta categoria. De qualquer modo, a capoeira tornou-se um meio de vida: com as academias, a
profissionalização dos mestres (ou dos professores/instrutores) tornou-se uma realidade.
A utilização, repetida ao longo dos anos, de métodos de
ensino teve também conseqüências ambíguas. A sistematização do treinamento, baseada na repetição de movimentos, e o contínuo intercâmbio entre os diversos grupos no
Brasil e no exterior permitiram, de fato, um aprimoramento
técnico e atlético inimaginável. A ênfase na repetição, no
entanto, produziu certa “mecanização” ou “automatização”
dos movimentos, tendente à padronização das formas de
jogo e dos estilos pessoais.
Outro aspecto relevante da capoeira nos dias atuais
diz respeito a sua difusão pelo mundo. A participação de
Mestre Pastinha e de seu grupo no Festival de Arte Negra
realizado em Dacar, Senegal, em 1966, pode ter sido a primeira demonstração, oficial, de capoeira no exterior. Desde
os anos 1970 e, principalmente, desde os anos 1980, um
número cada dia maior de capoeiristas têm viajado para a
Europa ou para os EUA, ministrando cursos e até se fixando
e desenvolvendo trabalhos de longo prazo no exterior27.
32
Foto: Lilia Menezes
Em suma, a capoeira conheceu diferentes formas históricas e sobreviveu a preconceitos e perseguições. No mundo globalizado do início do século XXI, poderá soar estranho
que há cerca de um século, em plena belle époque, na era
clássica do imperialismo, tenha corrido riscos de desaparecimento. Hoje, a capoeira prospera mundo afora. A tradição
e a especificidade próprias da capoeira, contudo, devem ser
respeitadas e, nesse sentido, deve-se dar especial atenção
à preservação dos vários toques tradicionais de berimbau,
que, em última análise, constituem o mais forte vínculo
com a tradição dos tempos posteriores às maltas.
Guilherme Frazão Conduru. Diplomata de carreira e
capoeirista, foi aluno, no Rio de Janeiro, dos Mestres Sorriso
e Garrincha, ambos do Grupo Senzala, criado em 1966, no
Rio de Janeiro.
33
A repressão à capoeira
Frederico José de Abreu
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Fenômeno que pode ter ocorrido pela via
do tráfico interprovincial e pelo processo
migratório interno. Nessas cidades, a
capoeira – incrustrada nos atos cotidianos
– identificava-se como uso e costume dos
negros, presente mais constantemente nos
mundos do trabalho, da desordem social
(caso de polícia) e da festa negra.
A repressão à capoeira
Nessa época, batuque era um termo genérico, com o
qual se denominavam indistintamente manifestações negras que se expressavam, quase sempre, mediante a união
da percussão com a dança. O canto também entrava nessa
combinação, fossem manifestações de natureza sagrada ou
profana, as quais podiam acontecer em separado, uma de
cada vez, ou em conjunto. Dessa forma, samba, candomblé,
capoeira e outras danças e folguedos negros, apesar de distintos entre si, podiam ser todos denominados batuque.
Parte significativa das observações históricas que obtivemos sobre o Brasil oitocentista deve-se aos olhares e às
impressões dos visitantes estrangeiros, os quais produziram
documentos essenciais para identificar características concernentes aos usos e costumes dos negros, fossem eles
escravos, livres ou libertos, africanos ou crioulos (negros nascidos no Brasil). Assemelhar o Brasil à África era uma constatação muito comum entre os estrangeiros, principalmente
quando seus olhares recaíam sobre o cenário de cidades
como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, pertencentes, pela
ordem, às províncias da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. À época, três cidades portuárias, de vida movimentada,
e incrementadas pelo tráfico de escravos, até a completa
extinção deste em 1871. Nelas, predominava a população
negra, indispensável para o funcionamento da dinâmica da
vida urbana e principal responsável pelos movimentos das
ruas. Por essas condições, essas cidades se transformaram
em campos férteis para os batuques.
Salvador, Recife e Rio de Janeiro – até onde as pesquisas históricas alcançaram – principais núcleos de formação e difusão
da capoeira, foram responsáveis pela migração dessa manifestação para outros locais do Brasil, do século XIX até meados do
XX. Fenômeno que pode ter ocorrido pela via do tráfico interprovincial e pelo processo migratório interno. Nessas cidades, a capoeira – incrustrada nos atos cotidianos – identificava-se como
uso e costume dos negros, presente mais constantemente nos
mundos do trabalho, da desordem social (caso de polícia) e da
festa negra. Tais notícias, encontradas nos relatos dos estrangeiros, provêm também de fontes como: a oralidade, os jornais da
época, a crônica policial e a documentação judicial, dentre outras. A partir desses relatos, pode-se perceber que a repressão à
sua prática foi uma das maiores adversidades enfrentadas pela
capoeira em sua história.
Na primeira metade do século XIX, o Brasil vivenciou um
contexto sociopolítico agitado e permeado por movimentos, conflitos e guerras pela independência, os quais culminaram na libertação da nação brasileira do jugo de Portugal,
em 1822. Na seqüência, aconteceram revoltas populares, tais
como a Sabinada (1831-1833), na província da Bahia, a Cabanagem (1835-1840), na província do Grão-Pará e a Balaiada
(1838-1841), na província do Maranhão. Revoltas cronologicamente antecedidas pela Conspiração dos Alfaiates (1798), movimento rebelde deflagrado em Salvador, que incorporou anseios
de liberdade de uma classe popular e socialmente subalterna
(os escravos), atraída para dela participar com aspirações de ex-
36
Batuque
J.M. Rugendas (1802 – 1858)
sivos provocadores de sons e atos para os batuques. Uma
situação limite colocava-se perante a sociedade escravocrata, dependente do escravo para sobreviver: como poderia tal
sociedade proibir os escravos de praticarem manifestações
para eles indispensáveis, que impulsionavam seu viver e que
a essa sociedade provocava tantos incômodos e temores?
Que incômodos e temores eram esses? Poderiam ser
captados nas queixas da população em jornais da época: “multidões de negros de um e outro sexo, das diversas
nações africanas, falavam, dançavam e cantavam canções
gentílicas ao toque de muitos horrorosos atabaques”; “divertimentos estrondosos”; “sons e vozes dissonantes”; “bárbaros costumes”; “convulsão inebriante e confusão”; “brigas”;
“cenas indecentes e imorais”; ou “danças horrorosas”… As
queixas não se limitavam a desqualificar as manifestações
culturais dos negros do ponto de vista da civilização. Acusavam, ainda, inversões da ordem social: ao ter lugar a prática
dos batuques “onde e quando os escravos queriam”, esses
negros exerciam – mesmo que precária e momentaneamente – autonomia sobre os espaços ao tempo em que esses batuques aconteciam. Como era de costume e quando
permitido, as manifestações negras, mesmo às margens do
tinção da escravatura. Para agravar esse quadro de instabilidade
política, contribuíram os muitos levantes e insurreições escravas
que aconteceram na primeira metade do século XIX, tanto nas
zonas rurais como nas áreas urbanas do País, principalmente
em Salvador, entre 1807 e 1835. A exigüidade do tempo e a
contigüidade geográfica desses acontecimentos na capital
baiana e adjacências sugeriam a existência, nessa província, de
um vigoroso cotidiano de rebeldia escrava.
A vigência de um clima de conspiração negra – evidentemente – pôs em alerta as autoridades e a população de Salvador, receosa da animosidade reinante, quase sempre definida de forma clara ou subjacente em termos raciais. Para
combater as rebeliões escravas, desencadeou-se um esforço
no sentido de identificar suas causas; dentre elas estavam os
batuques negros. Proibir as manifestações que compunham
os batuques não era uma questão de fácil resolução, como
comprovava a renitente desobediência por parte dos negros
em usarem atabaques e também marimbas dentro dos muros e praias da cidade. Esses instrumentos foram proibidos
por posturas municipais, datadas de 1716, que, por força de
lei, pretenderam disciplinar a vida do negro nas ruas da cidade. Os atabaques e marimbas eram instrumentos percus-
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Havia, contudo, na elite, quem defendesse
os batuques. Havia quem os interpretasse
como “folguedos honestos e inocentes”,
a exemplo de alguns eclesiásticos que
argumentavam serem os escravos também
filhos de Deus e, por assim ser, também
teriam direito à folga e ao gozo.
A repressão à capoeira
centro dos acontecimentos, faziam-se presentes nas festas
de rua do calendário católico. De acordo com as queixas,
nessas ocasiões “os toques e cantos dos negros predominavam não se escutando nenhum outro”.
Nos meandros dessas queixas podia-se perceber a importância visceral do batuque para a vida dos escravos e a altivez
que essa manifestação lhes proporcionava. Isso os viajantes
estrangeiros observaram e noticiaram. Cronistas que eram,
admiravam-se com a animação e a disposição com que os
escravos aos batuques se entregavam, após uma pesada jornada de trabalho forçado. Não acreditavam que estivessem
diante de escravos. De acordo com os seus relatos, pela disposição dos negros para os batuques, esses podiam ser interpretados como fontes de prazer, completando-se como função
regeneradora do corpo, maltratado pela dureza da jornada do
trabalho escravo. Diante dessa circunstância, Rugendas, um
desses cronistas viajantes, admirou-se e sentenciou: “não conseguimos nos persuadir de que são escravos que temos diante dos olhos”. A partir desse ponto de vista, pode-se afirmar
que o batuque (capoeira, samba, candomblé e outros folguedos negros) proporcionava ocasiões para o escravo recuperar
sua humanidade brutalizada pela escravidão.
Havia, contudo, na elite, quem defendesse os batuques.
Havia quem os interpretasse como “folguedos honestos e
inocentes”, a exemplo de alguns eclesiásticos que argumentavam serem os escravos também filhos de Deus e, por assim ser, também teriam direito à folga e ao gozo. Até mesmo
alguns senhores viam nos batuques uma oportunidade para
os escravos esquecerem-se, por alguns momentos, da sua
triste condição: o prazer para esconder a dor.
Aquela situação limite a que se fez referência esboçava-se
como um dilema pertinente a toda a sociedade: grave, considerando o contexto histórico da época. Pela existência de um
cotidiano de rebeldia negra, o sistema escravocrata em vigor
tentava evitar todas as atividades que pudessem provocar
ajuntamentos de negros e que acontecessem fora da órbita
e da vigilância dos senhores e da polícia. Nesse caso, enquadravam-se os batuques, pois, para se realizarem, provocavam
ajuntamentos de negros, vistos pelas autoridades como suspeitos de manobras conspiratórias e fontes alimentadoras das
revoltas escravas que estavam tendo lugar na Bahia à época.
Opiniões sobre o batuque emitiam as autoridades governamentais, eclesiásticas, policiais, senhores de escravos,
parlamentares e pessoas do povo. Pensar, opinar e influir na
decisão de reprimir ou permitir a sua prática todos podiam.
Porém, a decisão de fazer isso, considerando a gravidade da
situação exposta nas queixas e ao se associar os batuques ao
cotidiano da rebeldia negra, cabia ao Governo. Até porque,
desde a criação do Calabouço, em 1767, local público de
castigos dos escravos, os senhores não eram mais estimulados a castigar os seus escravos privadamente e o controle
dos negros na rua não era mais da alçada dos seus proprietários, e, sim, do poder público, do Estado e do aparelho policial
a ele subordinado.
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Capoeira
A repressão à capoeira
Negros lutando
Augustus Earle, (1793 – 1838)
tica mais branda em comparação com a do seu antecessor,
recomendando à polícia maior moderação na repressão. Sua
política oscilava entre o permitir e o reprimir os batuques, na
medida em que tentava conciliar duas razões inversas: reprimilos, em função do conteúdo das queixas advindas dos estratos
socialmente mais influentes da população; ou permiti-los, considerando as recomendações dos eclesiásticos e de alguns
senhores de escravos. Os termos dessa conciliação se explicitam nas medidas tomadas pelo governador no sentido de
controlar aquela prática dos negros, determinando os locais e
as oportunidades para acontecerem. Não mais poderiam ser
realizadas a qualquer hora e lugar, como alegavam as velhas
queixas. Em compensação, também estariam assegurados
os momentos de lazer e festa tão necessários aos escravos,
como a qualquer ser humano, de acordo com as solicitações
de religiosos e senhores. Tudo, porém, de forma controlada.
Quanto ao alerta à condição do batuque como fonte
alimentadora das revoltas escravas, o Conde procurava atenuar esse receio, enfatizando serem os ajuntamentos dos
negros oportunidades muito mais favoráveis para a geração
de desentendimentos entre eles, movidos por diferenças étnicas – remontáveis à África e às rusgas provocadas pelas dificuldades existenciais dos negros no Brasil escravocrata. Na
verdade, a política do Conde dos Arcos, quanto aos efeitos,
igualou-se à do Conde da Ponte: os batuques continuaram
perturbando o conforto físico e a paz de espírito da socie-
No plano do poder municipal, responsável pelas posturas
municipais (leis que procuravam disciplinar as pessoas e as atividades exercidas nas ruas), não se conseguia interromper a
ação dos batuques nem bloquear a iniciativa dos negros em
realizá-los. Na verdade, com os recursos de controle vigentes,
as autoridades não tinham mais domínio sobre a situação. Proibir a prática daquelas manifestações ou prender os batuqueiros
(seus participantes) não era mais suficiente, não cessava a causa. Era necessário articular uma nova política de repressão, que
afastasse os temores da população, norteasse as ações policiais
e efetivasse posturas municipais específicas de repressão.
Colocado nesses termos, o primeiro a enfrentar a situação foi o Conde da Ponte, governador da Bahia entre 1804
e 1808. Sua opção foi por uma política de combate sem
tréguas aos batuques, recomendando, inclusive, ações violentas por parte da polícia. A finalidade era radical: extinguir
os batuques. Essa era a única forma, segundo ele, de sanar a
questão: subjugar os batuqueiros e evitar oportunidades que
favorecessem ações conspiratórias dos escravos. Medidas
tomadas em vão, pois os batuques prosseguiram como se
fossem incontroláveis, assim como inevitáveis continuaram
sendo as perplexidades e reclamações dos que se achavam
por eles perturbados. As rebeliões escravas prosseguiram
enquanto o Conde da Ponte governou a Bahia.
Em seguida, de 1808 a 1818, a Bahia foi governada pelo
Conde dos Arcos, que procurou colocar em ação uma polí-
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A repressão à capoeira teve diversas fases,
desde a simples proibição, passando pela
aplicação dos açoites até ser tratada como
uma questão de Estado pelo regime
republicano, que a enquadrou como crime
no Código Penal da República em 1890.
A repressão à capoeira
dade escravocrata baiana. Naquele tempo, como o sistema
escravocrata só podia funcionar dependente da exploração
de trabalho do negro, para este, por sobrevivência, os batuques continuaram indispensáveis. Prosseguiram como se
fossem incontroláveis, assim como inevitáveis, as perplexidades e reclamações dos que se achavam por eles perturbados. Nem as reclamações dos jornais, nem as proibições
impostas pelas posturas municipais, nem os estragos que as
perseguições policiais lhes infligiram, conseguiram interromper o curso da sua história embalada pela incrível força que
têm as coisas quando elas precisam acontecer, como diria o
compositor e cantor brasileiro Caetano Veloso.
Voltando à lista das queixas, vamos encontrar no meio
delas o conceito de barbaridade atribuído aos batuques, preconceito amplamente absorvido e difundido pelas elites dominantes durante todo o século XIX e boa parte do século XX,
e que, na verdade, ainda não morreu de vez. Capoeira, samba,
candomblé, para as elites, comprometiam o modelo civilizador
que desejavam, por não estarem concernentes aos costumes
e procedimentos públicos dos países por elas considerados
mais civilizados (os europeus). Vale dizer que, em nome desse
preconceito, forjaram-se argumentos tanto para afastar das
zonas nobres da cidade a prática dessas manifestações, como
para proibi-las de acontecer. Ficavam no desejo, sustentado
por uma retórica vazia e alguma mentalidade progressista, pois
o modelo civilizador das elites não se concretizava satisfatoriamente, impedido por profundas causas socioeconômicas. Na
verdade, pode-se afirmar que o desenvolvimento econômico,
a modernização e transformação urbana que se registravam
nas principais cidades do Brasil, alinhavam-se com o que se
tinha de mais atrasado para a época em termos do trabalho e
sua organização: a escravidão, condição humana considerada,
àquela altura do tempo (século XIX), uma barbaridade para um
estrangeiro, a quem se pretendia bem impressionar, oferecendo-lhe um modelo europeizado. A escravidão era suficiente
para reverter essa expectativa.
Nessa exposição generalizada de combate ao batuque,
feita até aqui, podem-se identificar os elementos que nortearam as ações repressivas às manifestações negras. Necessário, contudo, é dizer que cada uma dessas manifestações
enfrentou contextos específicos, como também particulares
foram as ações de resistência vivenciadas pelos praticantes
de cada uma delas. Isso fez com que cada qual, apesar do
significativo número dos elementos comuns que possuíam,
tivesse uma história própria à semelhança da capoeira. Sobre essa manifestação encontram-se, desde antes do século
XIX, notícias da sua presença no Brasil. Desde então, tem-se
também notícias sobre a repressão aos capoeiras, fator tão
implícito à antigüidade da capoeira que a história desse tempo, para ser pesquisada, estudada e contada, tem entre suas
principais fontes a crônica e a documentação policial.
Essas fontes devem ser analisadas com cuidado para
delas se eliminar o jargão policial, os preconceitos contidos
na narrativa, a abordagem viciada, que podem contaminar a
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Capoeira
A repressão à capoeira
visão histórica sobre os capoeiras de antigamente. Tomadas
essas precauções, pode-se, por meio desses documentos,
perceber dos capoeiras os anseios, os ritos, os modos de
comportamento social e hábitos, as maneiras como se tratavam, as gírias, a geografia urbana por eles permeada, as armas utilizadas, dados biográficos, dados sobre a cor, a etnia,
o vestuário, a ocupação, a profissão, os rituais de conflitos
entre eles e entre eles e a polícia, e as táticas e os momentos
oportunos para expressarem sua arte.
A repressão à capoeira teve diversas fases, desde a simples proibição, passando pela aplicação dos açoites até ser
tratada como uma questão de Estado pelo regime republicano, que a enquadrou como crime no Código Penal da República em 1890. Antes de chegar a esse ponto, antecederamse muitos conflitos entre os capoeiristas e a polícia. Conflitos
agravados de tal ordem que poderemos definir esse período
(compreendido entre a segunda metade do século XIX e as
primeiras décadas do século seguinte) como tumultuoso,
tendo como cenário principalmente as cidades do Rio de
Janeiro, Recife e Salvador, pelas razões já explicadas.
As tradições da capoeira nessas cidades eram muito parecidas não só na forma de se expressarem, mas também na
equivalência do comportamento social dos seus praticantes.
Os capoeiras dessas cidades, geralmente, eram trabalhadores
de rua (carregadores, carroceiros, vendedores ambulantes, feirantes, serviçais de limpeza) ou ligados à zona portuária (estivadores, trapicheiros e remadores). Cabe salientar que, dentre
as ocupações desses capoeiras, se incluíam algumas consideradas como próprias de vadios e vagabundos, como pescadores, meninos de recado e biscateiros, dentre outras. Sabe-se
também da predileção dedicada aos ambientes festivos. Contraditoriamente, até para muitos daqueles que tinham receio
da presença dos capoeiras nas festas populares, seu comparecimento era considerado essencial para a animação da parte profana das festas, juntamente com o pessoal do samba,
como acontecia na Bahia e no Rio de Janeiro. Mesmo quando
eram acusados pelos tumultos provocados nessas festas.
Comum a todas essas cidades foi o processo repressivo,
muito embora tivesse variado em grau de um para outro local, tendo sido mais veemente no Rio de Janeiro. A repressão
se deu por meio da proibição da prática da capoeira, por posturas municipais, por perseguições e prisões, muitas delas arbitrárias, pelo abuso dos castigos corporais e pelos trabalhos
forçados e deportações. Fez parte da repressão, ainda, o recrutamento forçado para o Exército e a Marinha, práticas remontáveis aos tempos coloniais brasileiros quando ainda não
havia forças armadas profissionalizadas e o recrutamento se
dava na ruas e tinha como foco os considerados malandros,
vadios e criminosos. Além do mais, nesse período, o Exército e a Marinha configuraram-se como casas de correção de
menores, abastecidas pelo recrutamento inclusive de negros
escravos fugidos que, com outros nomes, poderiam, então,
ingressar nas Forças Armadas. É indispensável registrar que a
campanha governamental visava à formação do contingen-
te de “Voluntários da Pátria”, do qual fizeram parte capoeiras
em defesa do Brasil na Guerra do Paraguai (1864-1870).
É necessário dizer que a política e as ações de repressão à
capoeira se sustentavam num estereótipo formulado pela polícia, que considerava os capoeiras como desordeiros, valentões, vadios e malandros. Tipificação essa na qual certamente
não se enquadravam todos os capoeiras e que não era extensiva aos praticantes não negros, dentre esses aristocratas, policiais, membros da elite, estudantes etc. Nesse bloco devem-se
incluir jovens que se rebelaram contra algum autoritarismo familiar e educacional. Eles escolhiam a rua como ambiente de
liberdade e se entregavam à prática da capoeira como forma
de divertimento e um recurso de luta que lhes serviam para se
situarem e se afirmarem no espaço da rua.
Deve-se dizer que no seio da elite em que se encontravam praticantes de capoeira surgiu e tomou corpo a idéia
de que a capoeira era uma ginástica saudável e uma luta
eficiente e que os elementos perniciosos que lhe eram imputados seriam provenientes dos seus praticantes marginalizados (negros, malandros, vagabundos, proletários etc.).
No Rio de Janeiro, em Recife e em Salvador, como reação
à repressão, os capoeiristas agiram colocando em ação táticas
de resistência, delineadas à base de despistes e simulações
para enganar a polícia. Procuravam praticar a capoeira em lugares periféricos, ou nos principais bairros da cidade, quando
e onde a vigilância policial era menos assídua. Essas táticas
eram bem ao uso dos capoeiras baianos de antigamente, que
também incluíram entre suas iniciativas de resistência a negociação com a polícia, conseguindo licença para a vadiação
(sinônimo de capoeira). No plano da resistência, certamente
não faltaram conflitos entre os capoeiristas e as forças policiais,
cujos combates às vezes se decidiam em favor dos primeiros,
que tinham como trunfo maior conhecimento da geografia
das ruas e superioridade nos combates corpo-a-corpo. A história da repressão também enriqueceu o imaginário popular
com narrativas e lendas que atribuíam aos capoeiras poderes
sobrenaturais, como seres humanos capazes de se transformarem em paus, plantas e animais quando perseguidos.
Os tempos tumultuosos da capoeira, como revelam os
dados históricos, foram mais freqüentes e intensos na cidade
do Rio de Janeiro, cidade na qual os capoeiras, tiveram mais
influência e participação na vida cotidiana do que em qualquer outro local no século XIX. O noticiário dos jornais da época dão conta disso ao narrarem as ações das maltas (grupos
de capoeira adversários entre si) em conflito com elas próprias
e a policia, para demarcarem geograficamente parte da cidade, com o fim de exercerem o domínio e o poder paralelo. As
notícias desses jornais acusam a veemente participação dos
capoeiras do Rio em outros aspectos da vida da cidade, como
na vida política, com sérios envolvimentos em eventos como
a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889). Foi muito por conta do comportamento social
dos capoeiras no Rio de Janeiro que se justificou a inclusão da
capoeira como crime no Código Penal da República.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Um nome é destacado como ícone nesse
processo de virada histórica da capoeira,
Mestre Bimba, o primeiro a exercê-la como
um ofício. Aquele que garantiu pela via
oficial o direito de ensiná-la, um precursor
das lições que fariam com que a “vingança
histórica” da capoeira se realizasse: ser
hoje solicitada para solucionar mazelas
sociais das quais no passado era tida como
causadora.
A repressão à capoeira
Ao enquadramento da capoeira com crime no Código
Penal, seguiram-se outras medidas de ordem policial concretizadas na prisão dos principais capoeiras do Rio e sua imediata deportação para a ilha de Fernando de Noronha, que
funcionava como uma colônia penal. Essas ações repressivas
foram determinantes para que a tradição da capoeira carioca perdesse força de continuidade e praticamente desaparecesse. Alguns membros que escaparam da repressão encontraram sobrevida no meio da malandragem boêmia – no
samba e no carnaval. Em Pernambuco, por razões ainda não
bem estudadas, a capoeira no mesmo período entra em decadência e, como manifestação, encontra salvaguarda, moldando os passos vigorosos do frevo, manifestação cultural
pernambucana.
Enquanto isso, a tradição baiana ganha maior vitalidade, mesmo tendo experimentado, ao longo do século XIX,
momentos de repressão e sendo ações dos seus capoeiras
interpretadas como equivalentes às do Rio de Janeiro. Mas,
historicamente, os capoeiras baianos surpreenderam com
outras ações diretamente dirigidas para a preservação e continuação da capoeira como uma manifestação artística, um
divertimento, uma oportunidade para vadiar (folgar, brincar,
divertir-se), mesmo sem eliminar suas possibilidades como
defesa pessoal. Assim, eles desenvolveram relações de afetividade e procuraram afirmá-la socialmente, usando como
um dos instrumentos para isso fazê-la presente no calendário das festas populares da Bahia e transformando-a num
divertimento ao agrado do povo baiano.
A responsabilidade por essas ações pertence a uma geração de mestres que, apesar de ter permanecido praticamente anônima, foi responsável pela formação, a partir dos
anos 30, de mestres na arte de civilizar. Eles vão modificar os
modos e maneiras de comportamento dos capoeiras: refinar
sua forma de jogar; acentuar os aspectos socializadores da
prática, historicamente inerentes a essa manifestação, mantidos mesmo quando vigoraram os momentos conturbados;
atribuir-lhe valores e efeitos socioeducativos; e fazer com que
a capoeira se destacasse como um símbolo de identidade
nacional. Dessa forma, estavam estabelecidas as bases para
transformar a criminalização da capoeira numa incongruência do Código Penal. Um nome é destacado como ícone nesse processo de virada histórica da capoeira, Mestre Bimba, o
primeiro a exercê-la como um ofício. Aquele que garantiu
pela via oficial o direito de ensiná-la, um precursor das lições
que fariam com que a “vingança histórica” da capoeira se
realizasse: ser hoje solicitada para solucionar mazelas sociais
das quais no passado era tida como causadora.
Frederico José de Abreu. Economista. É membro-fundador da Academia de João Pequeno de Pastinha, da Fundação
Mestre Bimba e Instituto Jair Moura. É autor dos livros “Bimba
é Bamba: a capoeira no ringue”; “O Barracão do Mestre Waldemar”; “Capoeiras: Bahia século XIX.”
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O CAPOEIRA
(Oswald de Andrade, 1890-1954)
– Qué apanhá sordado?
– O quê?
– Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada
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O CAPOEIRA
(Oswald de Andrade, 1890-1954)
– Qué apanhá sordado?
– O quê?
– Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada
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A Guarda Negra:
a capoeira no palco da política
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Antes que um fenômeno apertado na
estreita margem entre o 13 de maio de
1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda
deita raízes mais profundas em outra
manifestação da cultura brasileira, que,
somente há poucos anos, começou a ter sua
história retirada das sombras: a capoeira.
A Guarda Negra:
a capoeira no palco da política
Esses negros estariam movidos por sentimentos de subserviência, introjetados durante séculos de escravidão, por isso
não tinham capacidade de perceber que a oposição à Monarquia era bem anterior à Lei Áurea e que o republicanismo fora
alimentado por longos anos também pela perpetuação do regime do cativeiro, obra da Monarquia em toda sua história.
Dominados por sentimentos ultrapassados, pré-modernos, primitivos (na linguagem da época), esses negros
estavam condenados pela modernidade. Seu mundo desapareceria quando o regime monárquico fosse extinto, no
caso após o 15 de novembro de 1889, quando a Monarquia caiu como um castelo de cartas. Esse era o sentimento de grande parte da intelectualidade brasileira da virada
do século XX.
Outra visão emana dos artigos do jornal Cidade do Rio,
dirigido pelo jornalista negro José do Patrocínio. Entusiasta
da Abolição, via a Guarda Negra, nos seus primeiros meses,
como a encarnação da vontade política da gente negra recém-arrancada do cativeiro. Após séculos de servidão, essa
população podia, pela primeira vez, expressar-se politicamente em praça pública, e, logicamente, sua mensagem era
de apoio à medida que a tinha tirado das senzalas, mesmo
que manifesta no calor da hora do radicalismo político do
contexto da Abolição, à sombra do ressentimento de centenas de fazendeiros, antigos pilares do Império, que perderam
suas propriedades e não foram indenizados, e de republicanos irados pela súbita popularidade alcançada pela monarquia, na construção da imagem de “Isabel a Redentora”.3
Essas visões polarizadas foram tragadas pela avalanche
política do Quinze de Novembro. A República colocou-se
como uma pá de cal nesse aceso debate, que foi visto como
parte de um passado já extinto, que tinha de ser jogado nos
museus da memória, substituído pelas novas questões que o
regime recém-implantado colocava na ordem do dia: cidadania, modernização política, emigração, federalismo...
A nova historiografia brasileira, que veio à luz nos centenários da Abolição e da República, ao fim da década de 1980,
trouxe novas temáticas e novas evidências que a história oficial não suspeitava. E por caminhos também inesperados.
A Guarda Negra foi um dos alvos dessa revisão da história brasileira, que ainda não acabou. Antes que um fenômeno apertado na estreita margem entre o 13 de maio de
1888 e o 15 de novembro de 1889, a Guarda deita raízes
mais profundas em outra manifestação da cultura brasileira,
que, somente há poucos anos, começou a ter sua história
retirada das sombras: a capoeira.
(1) A Lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888, extinguindo a escravidão no Brasil.
(2) Para um retrato do sentimento anti-Guarda Negra latente na elite branca da época, ver os
artigos de Rui Barbosa escritos no jornal Diário de Notícias em 1889. BARBOSA, Rui. Campanhas
Jornalísticas. Império (1869-1889. Obras Seletas, v. 6, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1956
(principalmente o artigo intitulado “A arvore da desordem” publicado em 18 de agosto de
1889), pp. 189-192.
(3) Para a construção da imagem da “Loura mãe dos brasileiros” ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Dos
males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira” in GOMES, Flávio
dos Santos & CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase-cidadão: história e antropologias da pósemancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.
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Vista por décadas como manifestação trazida da África,
desenvolvida pelos escravos nas senzalas dos primórdios
da colônia e transplantada para o Quilombo dos Palmares
até alçar vôo como marca da cultura negra, a capoeira
lentamente passa a ser relida como criação da cultura
escrava no Brasil, criada por africanos e crioulos (pretos
nascidos no Brasil) no ambiente urbano, e que teve seu
espaço de atuação nas vilas e cidades do último século
da colonização portuguesa. De forma de resistência aos
senhores e ao Estado escravista, passa a ser vista como
instrumento de dissuasão dos conflitos internos dentro
da própria camada escrava urbana. De brincadeira gerada
em oposição ao trabalho servil e degradante (vadiagem),
passa a ser vista como elemento indispensável no controle por escravos e negros libertos do ambiente de rua, um
verdadeiro poder paralelo, em que vendedores ambulantes e negros de ganho (escravos que vendiam mercadoria
ou serviços no espaço público) controlavam o comércio
informal da cidade colonial.
Assim, a capoeira como tema histórico passou nos últimos anos por uma verdadeira metamorfose de significados
(se bem que não consensuais dentro da comunidade de
pesquisadores). E a política foi uma das dimensões novas
que se abriram nos últimos tempos.
Em meu trabalho4 esforço-me em mostrar o peso que a
Guerra do Paraguai teve na transformação cultural operada
na capoeira no final do século XIX. Maior conflito bélico do
Brasil no século retrasado, com duração de cinco longos
anos, essa guerra abriu caminho para transformações que
acabaram levando ao colapso da ordem monárquica.
No fragor do combate, ela teve um impacto no imaginário da sociedade brasileira que perduraria por décadas.
Para os pretos e pardos pobres, livres e escravos da cidade do Rio de Janeiro, principais praticantes da capoeira na
época, ela se corporificou nos batalhões recrutadores, que
(4) SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os capoeiras na Corte Imperial
1850-1890, Rio de Janeiro: Ed. Access, 1994.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
No combate corpo a corpo, os fuzis de
pederneira, carregados pela boca a cada
tiro, eram de pouca valia após a primeira
descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos
nas ruas da distante cidade do Rio de
Janeiro, eram a arma de que se valia o
soldado negro ou mulato brasileiro, não
apenas do Rio, mas também de Recife
e Salvador. Nos campos da peleja, os
capoeiras forjaram sua lenda.
A Guarda Negra:
a capoeira no palco da política
vigiavam as ruas e invadiam as moradias coletivas em busca de “voluntários” da pátria. Presos, enjaulados, amarrados,
os negros capoeiras eram levados aos magotes a envergar
as fardas do exército imperial nos campos do sul.
No combate corpo a corpo, os fuzis de pederneira, carregados pela boca a cada tiro, eram de pouca valia após a
primeira descarga. Os golpes da capoeira, aprendidos nas
ruas da distante cidade do Rio de Janeiro, eram a arma de
que se valia o soldado negro ou mulato brasileiro, não apenas do Rio, mas também de Recife e Salvador. Nos campos
da peleja, os capoeiras forjaram sua lenda.
A volta para casa foi recebida em triunfo. Saídos como
marginais, obrigados a assentar praça nas fileiras de um desacreditado exército, eles retornaram como heróis. Alguns
cobertos de medalhas, muitos libertos da escravidão pelo
“tributo de sangue” ao servir nas forças armadas (escravos
eram alforriados antes de ingressarem no serviço militar).
Desmobilizados, estavam de novo nas ruas, alguns querendo
reaver os “territórios” perdidos após a remessa para o front.
Mas a elite política tinha outros planos. Impressionados
pela agilidade dos capoeiras no combate, os antigos oficiais
comissionados, agora membros da elite política da cidade
do Rio de Janeiro, pleitearam nas sombras transformar os
ex-combatentes em aliados políticos, capangas à disposição das novas refregas do tempo de paz.
Assim, a capoeira entra no palco da política. Não a
micropolítica dos escravos, como se viu nos cinqüenta
anos do século XIX, mas a política dos salões, dos partidos Liberal e Conservador, das ante-salas do Parlamento,
das eleições concorridas, dos votos cabalados, do regime
parlamentarista.
Era a época da Flor da Gente, grupo de capoeira que
bairr da Glória. Arregimentada por um impordominava o bairro
tante membro do
d Partido Conservador – Duque-Estrada
tradi
Teixeira, de tradicional
família política – ela entra nos embates da alta política
na eleição de 1872. A golpes de napol
valha, rasteira, rabos
de arraia e cabeçadas, os capoeiras
ra
da Flor da Gente – veteranos de combates militares no Rio
Paraguai – varreram
os eleitores liberais das urnas, e os
var
o
candidatos opositores
dos palanques.
A vitória de
d Duque-Estrada para a Câmara de Deputados lançou um novo jargão na imprensa política da época: a Flor da Gente. O apelido nasceu quando DuqueEstrada foi interpelado no Parlamento sobre de quem
era a gente que recebeu ordem para atacar nas ruas
candidatos e eleitores de oposição. Ele respondeu: “Da
gent da flor da minha gente.” Esse apelido perminha gente,
correria vinte
vint anos da vida política da cidade do Rio.
Esses capoeiras
não agiam somente a soldo, como
ca
denuncia a imprensa liberal da época. Eles eram
denunciava
também
mobilizados pela crise da escravitam
dão, que era mundial. Nos Estados Unidos,
uma guerra civil tinha irrompido quando
o presidente eleito Lincoln deixou claro
seus planos emancipacionistas. A derrota dos confederados deixou a elite brasileira sozinha no continente como
mantenedora do regime do cativeiro nas Américas.
A vitória no Parlamento da Lei do Ventre Livre (1871),
apoiada pelo Governo e pelo Partido Conservador, teve forte impacto no imaginário da época. Essa lei decretava serem
livres os filhos de escravos e, por essa razão, foi combatida
por liberais e por facções conservadores temerosas do futuro
da mão-de-obra escrava nas fazendas. O Imperador Pedro II,
sua filha – a regente que assinou o decreto, pois o titular do
trono estava enfermo – e a liderança do Partido Conservador
passaram a gozar de alto prestígio junto à população negra do
Rio de Janeiro.
Os capoeiras sorviam esse clima político, passando a agir
como monarquistas empedernidos, açulados por políticos por
suborno, cumplicidade e impunidade frente aos desmandos
da justiça e da polícia dos brancos. Assim, forjou-se essa estranha aliança: nos dias ordinários, os capoeiras dominavam as
ruas, intimidando rivais, achacando vendedores, protegendo
escravos fugitivos, fazendo pequenos furtos, desafiando a ordem policial com suas maltas (quadrilhas), gozando de proteção de seus patronos políticos, para garantir sua escapada das
celas em caso de algum policial desavisado tê-los prendido.
Nos dias de eleição eles se juntavam nas redondezas dos
locais de voto – na época, invariavelmente igrejas – e atacavam eleitores de oposição (o voto era aberto) ou fraudavam as
urnas fingindo ser eleitores ausentes (os populares fósforos), o
que costumava romper em grossa pancadaria. Também compravam voto e atacavam urnas em que a vitória dos opositores era certa.
Essa fama política logo se alastrou para outros campos.
O eixo da economia do café, por volta de 1870, tinha claramente se deslocado para São Paulo, deixando para a província
fluminense campos devastados e terra esgotada. Esses “novos ricos” estavam marginalizados do jogo político imperial,
amplamente dominado pelas elites tradicionais do Sudeste e
do Nordeste. As políticas emancipacionistas ameaçavam suas
fazendas escravistas, alimentadas pelo tráfico de escravos do
Nordeste e do Norte.
Eles eram a alma do Partido Republicano. Fundado em
1870, era uma agremiação insignificante, mas que reunia
membros renomados da elite intelectual. Seu jornal A República fazia constantes ataques ao governo conservador. É
nesse contexto que temos que entender o primeiro conflito
envolvendo capoeiras e republicanos: a tentativa de “empastelamento” do A República.
Em 28 de fevereiro de 1873, logo após a vitória de DuqueEstrada e de sua Flor, e após candentes denúncias da “promiscuidade” entre políticos e capoeiras, o jornal é vítima de pedras, gritos, tentativa de arrombamento. Um “moleque” sobe
na tabuleta do jornal e a pinta de preto. O Governo é acusado
de cumplicidade.
Por quase toda a década de 1870, o condomínio entre
políticos monarquistas e negros capoeiras deu as cartas na
Corte Imperial do Rio de Janeiro. Em 1878, a chegada ao
poder dos liberais – depois de uma década de ostracismo
– trouxe a primeira campanha policial contra os “capoeiras
políticos”, como era denunciado na imprensa. Campanha
que não deu em nada.
Então, o clima político que propiciou a Guarda Negra estava presente 15 anos antes. Dom Pedro II e sua herdeira do
trono, Isabel, eram vistos como simpatizantes de causas abolicionistas. Os políticos paulistas, que dominavam o Partido
Republicano, eram conhecidos como irados senhores de escravos, que arrancavam crioulos de suas famílias no Nordeste para serem castigados nas senzalas do Vale do Paraíba.
Essa visão não aparecia na época da Guarda por causa
de conveniências políticas: para os defensores, era constrangedor filiar-se a movimentos tidos pela imprensa política como autoritários e criminosos, como eram vistos os
capoeiras da Flor da Gente da década de 1870. Para os que
atacavam, lembrar-se dessa fase recente era escapar do
contexto da Lei Áurea, que podia trazer sombrias lembranças do passado escravista de alguns políticos “liberais”.
Assim, ambos os formadores de opinião pública da
época eram incapazes de compreender a raiz mais profunda que dera origem à Guarda Negra. O primeiro embate
envolvendo-a foi o ataque ao comício de Silva Jardim, na
Sociedade Francesa de Ginástica, na Rua da Travessa da
Barreira, em 31 de dezembro de 1888. Silva Jardim percorria o País, financiado pelos republicanos, aproveitando-se
da súbita impopularidade da monarquia frente às classes
proprietárias, revoltadas com a perda de seus investimentos “semoventes”.
Naquela noite, os membros da Guarda tentaram entrar
à força no recinto onde Silva Jardim discursava. A seleta platéia de assistentes prontamente colocou-se para enfrentar
49
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Esse Partido Capoeira expressava
interesses imediatos de grupos urbanos
marginalizados e trabalhadores, o
repúdio aos políticos mais aferrados ao
sistema escravagista e, também, uma clara
identidade racial.
A Guarda Negra:
a capoeira no palco da política
a “corja de assassinos”. Cercados, eles sabiam que a saída
seria uma autêntica pancadaria. E realmente foi. A polícia –
cuja chefia ficava a alguns metros – foi totalmente omissa.
Havia sérias suspeitas de que a cilada fora armada com conhecimento de altos funcionários do Governo. Mas o que
poucos sabiam é que o rastilho de pólvora tinha sido aceso
meses antes.
Em 12 de julho de 1888, um fato raro desponta nos
anais da história da polícia carioca. Uma malta inteira de
capoeiras foi presa de uma única vez. E não era uma malta
qualquer. Era o grupo que dominava o Campo de Santana,
grande área aberta no coração da cidade. Esse grupo era
conhecido como Cadeira da Senhora, remetendo à imagem de Santa Ana, avó de Cristo, que aparecia no frontispício da Igreja de Santana, antes de ser derrubada para a
construção da estação central da Estrada de Ferro Dom
Pedro II (atual Central do Brasil).
Era raro nos informes de polícia a prisão de toda uma
malta, até por conta da impunidade de que gozavam graças
Co te. Eles
es foram
o a fià ligação com políticos importantes da Corte.
vam que seriam recruchados e os informes de jornais indicavam
ntecessores da década
tados para o Exército – como seus antecessores
de 1860. Mas, estranhamente, foram todos soltos no dia sehas de entrada da Casa
guinte. Seus nomes aparecem nas fichas
dio da cidade.
de Detenção da Corte, o grande presídio
rão, em primeiro de
Esses mesmos nomes aparecerão,
elizmente as fichas da
janeiro de 1889, na imprensa – infelizmente
Casa de Detenção dessa data foram perdidas para sempre
cou a Sociedade Fran– como asseclas do bando que cercou
cesa no fatídico 31 de dezembro. Fica claro que os dois
eventos estão relacionados, assim como a campanha de
ai tem relação com a
recrutamento da Guerra do Paraguai
politização da capoeira na década dee 1870.
O que une os dois eventos é o que a imprensa do
a: uma forma de atuperíodo chamou de Partido Capoeira:
ação política – antes que um grupo específico – centravadores e capoeiras
da na aliança entre políticos conservadores
egressos da Guerra do Paraguai que juntaram forças por
ssem a imprensa do
canais subterrâneos, embora povoassem
do Capoeira expresPaís por quase vinte anos. Esse Partido
sava interesses imediatos de gruposs urbanos marginalizados e trabalhadores, o repúdio aos políticos mais
aferrados ao sistema escravagista e, também, uma
clara identidade racial.
da Negra, ainda
Essa é outra dimensão da Guarda
dernos: ela é a
não trabalhada pelos estudiosos modernos:
mo negro no
primeira instituição que utiliza o termo
sentido positivo e político da palavra, e autonourante
meado. Em outras palavras, negro durante
ativa,
séculos foi palavra fortemente pejorativa,
capaque remetia a escravo, fraqueza, incapacidade de luta, submissão. Africanoss e
crioulos ofendiam-se mutuamente no
Brasil, chamando-se de negros. Essee
50
Capoeira
A guarda negra: a capoeira no palco da política
uso tem relação com o sentido nefasto de “nigger” nos Estados Unidos, até pouco tempo um palavrão no seio do
movimento negro (sic) americano.
A palavra passa a ter um sentido político, não por coincidência no momento histórico em que os crioulos se tornam maioria absoluta na comunidade escrava e de negros
livres do País, fenômeno apontado desde o fim do tráfico
atlântico de africanos em 1850. Esses crioulos criam novos
sentidos políticos – diferentes dos sentidos étnicos imprimidos pelos africanos –, sentidos estes que se cristalizam
na noção de raça negra.
Assim, os crioulos da Guarda Negra jogam frente à racista sociedade brasileira da época um sentido novo para a
palavra negro, que se expressa nos artigos do jornal Cidade
do Rio, principalmente naqueles assinados por Clarindo de
Almeida, o misterioso chefe da Guarda. Esses significados
escapavam aos autores da época e devem ser dimensionados pelos estudiosos atuais como sinais diacríticos de uma
nova linguagem política, racial, abrangente, que foi subitae te calada.
ca ada.
mente
entr Guarda Negra e republicaO segundo conflito entre
nos no Rio foi no dia 14 de julho de 1889, centenário da
m
Tomada da Bastilha, data magna
do republicanismo. Ao
anoitecer, um comício de republicanos desce a Rua
me do caminho, um grupo da
do Ouvidor. No meio
Guarda Negra os espera. Como era previsível,
tudo termina em grossa pancadaria. Mas, dessa
acu e os registros da Casa de
vez, a polícia acudiu
Detenção foram preservados.
Em
Alfredo Emygidio
Prestello, português,
m
18 anos, marceneiro,
morador na Rua
Monte Albino Loureiro de Carvalho,
do Monte;
também português de Vila Real, 21
m
anos, morador
na Travessa do Costa
Velho e Luiz Pinto Pereira, 21 anos,
Velho;
escr
escrevente,
de Minas Gerais, residind na Rua da Gamboa, todos
dindo
bra
brancos,
estavam do lado dos repu
publicanos.
José Carlos Vieira, 22
ano carpinteiro, de cor parda,
anos,
mo
morador
da Rua Pedro de Alcântara e José Antônio, de cor preta,
20 anos, baiano, sem ocupação,
era exemplos dos que formaeram
v o outro lado.5
vam
O conflito ocupou todas
as manchetes dos jornais da
Corte. Estava ficando claro
para os setores médios da
sociedade carioca o clima
insuportável. Militares também se inquietavam com a
inação
in
do Governo e o fracasso
da polícia em estabelecer ordem
na cidade. Tudo indicava que o gabinete João Alfredo era
cúmplice em parte, daquela situação, e os republicanos,
de algozes do regime, se tornaram vítimas de uma conspiração urdida pelos poderosos. A Guarda Negra, de grupo
simpático para alguns intelectuais, que ocupava espaço na
imprensa representando essa parte normalmente excluída
da sociedade (algo inédito para o Brasil naquele tempo) ganhava o estigma de grupo de baderneiros, desordeiros pagos pelo regime, “a canalha das ruas” que viviam em busca
de violência e brigas. As mesmas acusações dos capoeiras
da Flor da Gente em outros tempos.
Esse clima reforçava os pesados estereótipos raciais
que circulavam contra a “raça negra”. Despreparados para
o regime de plena liberdade política, inaugurado em 13 de
maio de 1888, deveriam ser dirimidos pelas forças da ordem policial ou reconduzidos ao trabalho no campo, sob
vigilância do Estado. Os “13 de maio”, como eram chamados os libertos da Lei Áurea, muito pouco tempo depois da
liberdade, já começavam a sentir o peso das novas limitações impostas pela sociedade “liberal” burguesa.
O clima de guerra racial instaurado na época da Guarda Negra deve ter sido elemento importante no imaginário da alta oficialidade brasileira às vésperas do levante
que pôs um fim ao regime monárquico. Mas o colapso da
Guarda começa antes. Em julho de 1889, no mesmo mês
do conflito da Rua do Ouvidor, o gabinete João Alfredo
caía. Subia ao poder o Partido Liberal, na pessoa do Visconde de Ouro Preto.
O que parecia um novo começo arrastou a Monarquia
ainda mais para seu melancólico fim. O Visconde tinha uma
péssima reputação. Em 1880, era ministro da Fazenda, e
foi dele a péssima idéia de criar um novo imposto sobre
as passagens de bonde. A taxação diminuiria ainda mais os
parcos ganhos da população pobre urbana. O resultado foi
a Revolta do Vintém, um movimento espontâneo da população, que derrubou bondes, ergueu barricadas na cidade,
enfrentou tropas do Exército. Os jornalistas da oposição –
republicanos e abolicionistas – entraram em êxtase com o
movimento. Depois de muitos mortos e feridos, o Ministro
pediu demissão e o imposto foi cancelado. A Revolta do
Vintém foi o pano de fundo para as campanhas de rua abolicionista e republicana.
Dias após a proclamação, o generalíssimo Deodoro
convocava o advogado Sampaio Ferraz para assumir a chefia de polícia do Distrito Federal. Ele imediatamente colocou
seus planos em ação.
Há tempos Sampaio acompanhava como promotor
público a ação dos capoeiras. Sabia que o fim do regime e a instalação de um governo provisório ditatorial
era o ambiente ideal para dar um fim às maltas – e, no
processo, eliminar os últimos vestígios da Guarda Negra.
(5) Todas essas fichas estão no Livro de Matrículas da Casa de Detenção nº 4321, 15/07/1889,
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A Guarda Negra ainda passou cerca de um
século esquecida pela historiografia. Teorias
que argumentavam a “anomia social” dos
negros como fiadores da sua incapacidade
de enfrentarem a “nova” ordem burguesa
não estimulavam estudos históricos.
Em poucos meses, centenas de capoeiras, em atividade ou
“aposentados” (muito velhos para entrarem em ação), foram
presos da forma mais arbitrária. Encerrados na prisão de Santa Cruz, foram jogados em um vapor e mandados para Fernando de Noronha, a ilha prisão do governo federal.
Em menos de um ano, Sampaio tinha dado cabo dos últimos vestígios do Partido Capoeira e, de sobra, da Guarda
Negra. Em outubro, era publicado o novo código criminal da
República, tornando a capoeira crime. A maioria dos capoeiras apodrecia no meio do Atlântico. O destino final desses
homens é um mistério. A Guarda Negra ainda passou cerca
de um século esquecida pela historiografia. Teorias que argumentavam a “anomia social” dos negros como fiadores da
sua incapacidade de enfrentarem a “nova” ordem burguesa
não estimulavam estudos históricos. Precisamos esperar o
fim do regime militar de 1964 para revermos alguns fatos da
historiografia oficial e do tema da Guarda Negra.
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TROCHIM, Michael. “The Brazilian Black Guard: racial conflict
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52
Capoeira é defesa, ataque, ginga de
corpo e malandragem
Antonio Liberac Cardoso Simões Pires
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Tratar a capoeira de uma forma geral é
sempre difícil, pela diversidade histórica das
formas de praticá-la e por ser cultuada por
pessoas oriundas de variados grupos sociais.
Capoeira é defesa, ataque, ginga
de corpo e malandragem
Tratar a capoeira de uma forma geral é sempre difícil, pela
diversidade histórica das formas de praticá-la e por ser cultuada por pessoas oriundas de variados grupos sociais. Em
princípio, ela teria sido uma prática dos escravos africanos no
Brasil, fruto das conexões culturais realizadas pelos representantes das diversas etnias africanas que foram trazidas para
cá, após capturas e escravização. Na documentação policial,
datada dos anos 1820, relativa às prisões de escravos por
praticarem capoeira na cidade do Rio de Janeiro, encontramos um grande número de etnias, como, por exemplo: Angola, Congo, Moçambique, Cassange, entre outras.
No século XIX, a capoeira é praticada de forma sistemática e massiva apenas no Rio de Janeiro, mas é reprimida pelas instituições policiais. Relatos sobre os capoeiras
remontam ao final do século XVIII, época do “major Vidigal”, um policial que ficou famoso por usar a capoeira em
suas contendas com escravos fugidos, feiticeiros e com
os próprios capoeiras. Mas foi após a fundação da polícia
civil e militar, que encontramos, com maior constância,
registros dos capoeiras em fontes históricas. No início do
século XIX, os capoeiras já eram bastante conhecidos, na
cidade do Rio de Janeiro. No período de 1810 a 1821, entre as 4853 prisões efetivadas pela polícia nessa cidade,
438 (9%) foram por acusação de prática da capoeira. Nesse período, os capoeiras formaram grupos e interferiram
na relações de poder no espaço urbano da cidade do Rio
de Janeiro, assim como nas relações entre escravos e senhores e entre os próprios escravos.
Os praticantes de capoeira desse período estavam organizados por grupos, chamados de “maltas de capoeiras”,
que tinham como referência os bairros da cidade. Esse
modelo de organização foi relativamente hegemônico por
todo o Brasil. Além da navalha eles utilizavam sovelões, marimbas e paus como armas em suas contendas de grupo.
Sua práticas não se limitaram aos procedimentos da luta,
eles inventaram uma tradição em torno da capoeira que
incluiu nomes e gritos de guerra de cada grupo.
Plácido de Abreu, um dos maiores praticantes amadores
da época, explica que, na segunda metade do século XIX, os
capoeiras estavam divididos em dois grandes grupos denominados nações: “nagoa” e “guaiamu”. Na verdade, cada nação
era formada por diversos grupos de capoeiras que se organizavam geralmente por bairros, ou seja, uma nação significava
a aliança entre um conjunto de grupos, representando certo
domínio sobre áreas específicas da cidade. A historiografia ainda não chegou a uma definição categórica dos termos que
denominavam essas duas grandes nações. As informações de
Plácido de Abreu apontam, entretanto, para diversas características desses grupos e possuem uma importância singular,
pois revelam a linguagem interna. A partir daí, temos um olhar
de dentro, de um indivíduo que participou ativamente dessas
organizações, tendo sido um “amador”.
(1) Amador era a denominação do praticante da capoeira que não pertencia a nenhuma malta.
56
Capoeira
Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem
O autor deixou, sem dúvida, o relato mais fascinante
sobre os capoeiras do século XIX. Escreveu, por exemplo, que os nagoas e guaiamus estavam divididos em
diversos “partidos”. Ele esclarece, ainda, que guaiamu é
o capoeira que pertence aos partidos de São Francisco,
situado no grande centro da cidade do Rio de Janeiro,
Santa Rita, Marinha, Ouro Preto, São Domingos de Gusmão, além de outros grupos menores. Os nagoas pertenciam aos partidos de Santa Luzia, São José da Lapa,
Santana, Moura, Bolinha de Prata, além de outros. Esses
grupos, denominados de “partidos” por Plácido de Abreu,
estavam divididos por freguesias e áreas específicas no
interior das freguesias da cidade. Esses partidos também
estavam demarcados a partir de símbolos, principalmente os que faziam referências às cores: o vermelho dos
guaiamus e o branco dos nagoas. Segundo Plácido de
Abreu, eles emitiam “gritos” de guerra: “É a Lapa. É a Espada. Quando é daquela província. É a senhora de cadeira. Quando é de Sant’ana. É velho carpinteiro. Quando é
de São José. E assim por diante”.
As cantigas eram chamadas de toadas e fizeram parte
do jogo como elemento lúdico e de desafio:
Os guaiamus cantavam:
Terezinha de Jesus
Abre a porta apaga luz
Quero ver morrer nagoa
A porta do Bom Jesus
Os nagoas respondiam:
O castelo içou bandeira
São Francisco repicou
Guaiamu está reclamando
Manoel preto já chegou.
Concomitantemente à repressão desencadeada pelo governo provisório republicano, surgiu um movimento valorizador da capoeira que alcançou diversos grupos sociais. Alguns
parlamentares se lançaram em defesa da capoeira, como o
deputado Coelho Neto, que chegou a organizar um movimento de oficialização do ensino nas Forças Armadas. Isso ocorreu
no mesmo momento em que centenas de capoeiras estavam
sendo presos e processados pelo artigo 402. Nessa fala está
o projeto de uma capoeira modelada pelas lutas marciais e a
idéia de um esporte “genuinamente brasileiro”.
Como afirmou Annibal Burlamaqui, conhecido por
“Zuma”, um exímio capoeira da década de 20 do século XX:
No Brasil já se praticam, pode-se dizer, todos os
sports: temos campeonato de remo, natação,
foot-ball, basket-ball, boxe, luta romana, tênis
atletismo em geral, etc. Atualmente até o pólo
e golfe já são disputados em nossa terra. No
entanto, é de lamentar que, até hoje, nada se
tenha em prol do esporte nacional. Cogita-se de
uma arte nacional, brasileira, da música brasileira. Até mesmo da política brasileira.
Foto: Acervo MRE
Eles possuíam rituais públicos de conflito entre os grupos “Quando, por exemplo, a banda de música saía do
centro da cidade, isto é, a terra dos guaiamus, e dirige-se
para os lados da Lapa, ou Cidade Nova, os capoeiras que
pertencem àqueles partidos acompanham o batalhão, prevenidos para o encontro com os nagoas, visto irem em
terra alheia”.
Havia lugares próprios para treinamentos: “Os ensaios
faziam-se regularmente nos domingos de manhã e constavam de exercícios de cabeça, pé e golpe de navalha e faca.
Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores àqueles
que começavam. A princípio os golpes eram ensaiados
com armas de madeira e por fim serviam-se de próprios
ferros , acontecendo muitas vezes ficar ensangüentado o
lugar dos exercícios”.
Zuma foi um importante inventor dessa nova capoeira
carioca e afirmou que vários golpes foram retirados dos
“batuques” e “sambas”, como no caso do “baú”. Trata-se
de um golpe dado no adversário com a barriga, sendo
próximo aos movimentos do “samba de umbigada”. O
“baú” também era usado nos “batuques lisos”, segundo
Zuma, os mais delicados. Já o “rapa” teria sido um golpe
utilizado nos “batuques pesados”. Ele ainda explica que
haviam os golpes de “tapeação”, que serviam apenas para
enganar o adversário.
Zuma também apontou para algumas regras, exercícios
e treinos para o ensino da capoeiragem: “Primeiramente
idealizei um campo de luta onde, com espaço suficiente, se
pudesse realizar a gimnastica brasileira”.
57
,,
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Um traço comum aos praticantes da
capoeira no Brasil foi adquirir um apelido,
costume que perdura até os dias de hoje.
Ao mesmo tempo em que os praticantes
no Rio de Janeiro projetavam uma
capoeira vinculada às artes marciais, os
praticantes baianos, que não obtiveram
grande visibilidade histórica no século XIX,
despontaram com dois projetos de capoeira
distintos: a capoeira angola e a capoeira
regional. Mestre Pastinha e Mestre Bimba
foram os dois mais importantes praticantes
desses estilos ou modelos de capoeira.
Capoeira é defesa, ataque, ginga
de corpo e malandragem
O campo de luta, idealizado por Zuma, era composto
de um círculo, desenhado em seu interior a letra “Z”. Para
as competições, haveria um juiz para controlar o tempo
de jogo e os movimentos dos jogadores. O tempo de luta
seria de no máximo uma hora, dividida em confrontos de
3 minutos, com descansos de 2 minutos. A cada intervalo
deveria haver a apresentação dos lutadores no meio do
círculo, como uma forma de controle do jogo por parte
do juiz. Em caso de empate, haveria ainda mais meia hora
de tempo com intervalos maiores para descanso. Caso o
jogo continuasse empatado, o juiz passaria para a etapa
da “morte”, quando os jogadores lutariam até cair (nocaute), sem intervalo para descanso. Os embates dar-se-iam
em campos de futebol.
Apesar da forte repressão sobre os capoeiras desde os inícios do século XIX até sua criminalização em 1890, a resistência foi maior e sua prática foi reinventada a partir dos anos 20
do século XX. Seus praticantes a colocaram em um patamar
de símbolo nacional, construindo identidades vinculadas ao
esporte, à dança, á música e às artes marciais, principalmente.
A prática da capoeira na Bahia do século XIX não sofreu uma forte repressão, como no Rio de Janeiro. A polícia baiana não processou ninguém pelo artigo 402 do
código penal de 1890. Entretanto, houve várias prisões
de capoeiras baianos no início do século XX. Os motivos
dos processos eram por agressões físicas (artigo 303 do
código penal de 1890). Os capoeiras baianos também
seguiram o modelo de organização das maltas cariocas,
ou seja, organização tendo como referência principal os
bairros da cidade soteropolitana.
Os capoeiras baianos ficaram famosos e permaneceram na memória coletiva dos praticantes da atualidade
com maior ênfase do que os praticantes cariocas. Aqui
citamos apenas alguns dos principais nomes da época:
Pedro Mineiro, Antônio Boca de Porco, Bemenol, Chico
Três Pedaços, Feliciano Bigode de Sêda e Besouro Mangangá, este último o mais famoso entre eles. Um traço
comum aos praticantes da capoeira no Brasil foi adquirir
um apelido, costume que perdura até os dias de hoje.
Ao mesmo tempo em que os praticantes no Rio de Janeiro projetavam uma capoeira vinculada às artes marciais, os
praticantes baianos, que não obtiveram grande visibilidade
histórica no século XIX, despontaram com dois projetos de
capoeira distintos: a capoeira angola e a capoeira regional.
Mestre Pastinha e Mestre Bimba foram os dois mais importantes praticantes desses estilos ou modelos de capoeira. A
capoeira regional e a capoeira angola apresentam a mesma
estrutura, sendo semelhantes desde o treinamento em série
até a utilização de indumentárias. Suas diferenças fundamentais estão no estilo do jogo e na musicalidade.
A capoeira angola aparece na Bahia nos anos 20,
principalmente com o grupo de Querido de Deus, um
capoeira estivador no Cais de Ouro da velha Bahia. Mas
foi Mestre Pastinha quem sistematizou a capoeira ango-
58
Capoeira
Capoeira é defesa, ataque, ginga de corpo e malandragem
la em suas regras rituais, toques e ritmos de várias belezas e uniformizou os praticantes, dando um caráter também esportivo à prática cultural. Para Mestre Pastinha, a
capoeira angola era parte da cultura nacional brasileira.
Houve uma grande diversidade de praticantes da capoeira angola, como o Mestre Valdemar da Paixão, Mestre
Noronha, Mestre Tibúrcio, Mestre Canjiquinha, Mestre
Caiçara, Mestre João Pequeno e Mestre João Grande,
entre muitos outros. Mestre Bimba, por outro lado, ampliou os golpes e ritmos, dando ênfase aos cantos e ao
regramento dos instrumentos musicais em apenas dois
pandeiros e um berimbau. Invenções que se tornaram
hegemônicas em todo o Brasil.
A capoeira regional, por meio de seus praticantes baianos, rapidamente migrou para todo o Brasil. É raro encontrarmos um município do Brasil onde não exista praticante
da capoeira, a não ser em áreas rurais extremamente distantes. Os praticantes da capoeira angola acompanharam
esse mesmo movimento de expansão da capoeira regional
algumas décadas depois. Mas, quando o fizeram, trouxeram
novo impulso ao processo de cristalização da capoeira como
cultura global. Atualmente, a capoeira é praticada em todos
os continentes e, cada vez mais, torna-se importante prática
cultural e símbolo de nacionalidade.
Com efeito, os olhares discriminatórios da sociedade
e de suas instituições policiais sobre a capoeira perdem
intensidade com o passar dos tempos. Em 1937, a capoeira foi liberada, pois já se encontrava em outro degrau
dos valores sociais. A cultura negra ganhava importância
no processo de transformação dos símbolos étnicos em
símbolos nacionais e o Brasil apresentava a capoeira ao
mundo com um de seus tesouros mais raros e como fruto
de um processo de sincretismo no qual os aportes das
diversas etnias africanas, européias e indígenas se transformam em uma mesma coisa, ou seja, na capoeira, uma
peculiaridade brasileira.
Referências Bibliográficas
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estudos afro-asiáticos, 16, 1989.
SOARES, Carlos Eugênio Libano. A negregada instituição.
Os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ed. Secretaria
Municipal de Cultura, 1994.
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Campinas, Tese de doutorado, Unicamp, 1998.
Foto: Acervo MRE
PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. A Capoeira no jogo
das cores. Criminalidade, cultura e racismo na cidade do Rio de
Janeiro (1890-1930). Campinas, Dissertação de mestrado, Unicamp. 1996.
Antonio Liberac Cardoso Simões Pires. Doutor em
História Social pela Unicamp. Prof. Dr. Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Obras publicadas: “Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá,
Três Personagens da Capoeira Baiana”. Tocantins/Goaiania,
UFT/Grafset, 2001. “A capoeira na Bahia de Todos os Santos”. Tocantins, UFT/Grafset, 2004. (org). “Sociabilidades Negras”, Belo Horizonte, Ministério da Educação, Daliana, 2006.
ALMEIDA, Manoel Antonio de. Memórias de um sargento de
milícias. Rio de Janeiro, Ed. Crítica, 1978.
AGPMERJ – Correspondências recebidas – 16/11/1932.
ABREU, Plácido de Abreu. Os capoeiras. Rio de Janeiro, Tipografia da escola de Serafin José Alves, sd.
DIAS, Luiz Sérgio. Quem tem medo da capoeira? 1890-1906.
Rio de Janeiro, tese de mestrado no departamento de história da UFRJ, 1993, p. 110
Este artigo está baseado na obra do autor intitulada: Movimentos da cultura afro-brasileira, Campinas, tese de doutorado, Departamento de História, Unicamp, 2001.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade. Petrópolis, Vozes, 1988, p.54.
59
A performance ritual da roda de
capoeira angola
Rosa Maria Araújo Simões
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
O auge desse esforço é expresso na
organização do ritual (a roda de capoeira),
no qual há um conjunto de conhecimento
e de linguagens específicas que caracterizam
o trabalho de capoeira angola levado sério.
Entremos na roda...
A performance ritual da roda de
capoeira angola
A capoeira originou-se no Brasil nos tempos da escravidão e, de diferentes formas, ela vem acompanhando o
desenvolvimento de nossa sociedade. De acordo com
Lima (1991: 10-12) há, basicamente, quatro etapas que
caracterizam seu desenvolvimento histórico no País. No
Império, antes da abolição dos escravos, o principal objetivo da capoeira era a defesa. Na República, além de defesa,
a capoeira servia de canal aberto à manifestação cultural
do povo negro; aqui, ela era denominada capoeira angola.1 Já no governo nacionalista de Getúlio Vargas, em meados de 1930, a capoeira começa a ser organizada como
ginástica e, em 1972, ela passa a ser considerada esporte
pelo Conselho Nacional de Desporto. Na década de 30 foi
criado por Manuel dos Reis Machado (Mestre Bimba) um
novo estilo de se jogar capoeira, a luta regional baiana, ou
simplesmente nas palavras de hoje, capoeira regional. Na
atualidade, devido a algumas inovações que Mestre Camisa
do “ABADÁ Capoeira”2 fez na capoeira regional, cria-se a
denominação “capoeira contemporânea” para classificar o
estilo de capoeira que a maioria dos capoeiristas está praticando. Levando em conta a existência de estilos diferentes
de capoeira temos, conseqüentemente, diferentes tipos de
roda3 e diferentes valores a serem transmitidos.
Neste artigo não pretendemos abordar tais diferenças,
o que demandaria outra pesquisa. O objetivo aqui é ilustrar o rigor subjacente à performance4 ritual e, para tanto,
debruçaremo-nos especificamente no estilo denominado
capoeira angola, fazendo uma descrição da roda a partir do
Centro Esportivo de Capoeira Angola – Academia de João
Pequeno de Pastinha (CECA – AJPP)5, o qual é uma referência da tradição da capoeira. Vale destacar que Mestre
João Pequeno de Pastinha (nascido em 27 de dezembro
de 1917), com seus 89 anos, é a própria “história viva” da
capoeira; sua escola vem se disseminando pelo mundo a
partir de alguns de seus discípulos, sendo o principal deles,
nesse processo de disseminação, Mestre Pé de Chumbo.
Nos discursos dos mestres de angola, observamos, de
uma maneira geral, a preocupação com a preservação da
tradição e dos fundamentos da capoeira angola (dentre
os quais podemos destacar, como exemplo, o respeito, a
justiça, a humildade e a paciência). O auge desse esforço
é expresso na organização do ritual (a roda de capoeira),
(1) Vale destacar que em 1922 foi fundado, pela nata da capoeiragem baiana o Centro de Capoeira
Angola Conceição da Praia (Mestre Bola Sete, 2001: 29).
(2) Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da Arte – Capoeira.
(3) A roda é a forma pela qual a capoeira se expressa, é sua performance ritual.
(4) Para Turner (1982: 13), “a antropologia da performance é uma parte essencial da antropologia
da experiência” e, neste sentido, “todo tipo de performance cultural, incluindo ritual, cerimônia,
carnaval, teatro, é explanação e explicação da vida em si, como Dilthey freqüentemente
argumentou”. E, a expressão, por sua vez, é por si só, “um processo pelo qual se compele a uma
expressão que a completa”. Para melhor exemplificar tal afirmação, o autor recorre à etimologia
da palavra performance que, segundo ele, “não tem nada a ver com “forma”, e sim, deriva do
velho francês parfournir, “completar” ou “realizar, cumprir minuciosamente/rigorosamente/
totalmente”. A performance é, portanto, a própria finalidade de uma experiência” [traduções
minhas]. Para um maior aprofundamento teórico-metodológico vide a tese “Da inversão à reinversão do olhar: ritual e performance na capoeira angola” (SIMÕES, 2006).
(5) A sede é localizada no Forte da Capoeira em Salvador (BA), mas há núcleos em São Paulo
(Indaiatuba, Campinas, São Carlos, Presidente Prudente, Bauru, Sorocaba, Capital); Minas Gerais e
em outros países, tais como México, Suécia, Portugal, Espanha, Dinamarca, Estados Unidos etc.
62
no qual há um conjunto de conhecimento e de linguagens
específicas que caracterizam o trabalho de capoeira angola
levado sério. Entremos na roda...
os três berimbaus que vão ser usados durante a roda e
também os de reserva, pois caso o arame de aço (a corda
que é presa de uma extremidade à outra da verga6 dele)
estoure durante a roda, o berimbau deverá ser imediatamente substituído, sem interrupção do jogo.
A performance ritual da capoeira angola consiste na
roda, que representa, por sua vez, “o mundo velho de
Deus” (o universo). Para descrevê-la é necessário que seja
feita uma abordagem que contemple desde a questão da
musicalidade, passando pela questão da corporeidade, hierarquia, valores morais, entre outras. Considerando sempre
os inúmeros pares de oposição expressos, tais como, movimento de resistência versus movimento de submissão,
jogo em cima e jogo embaixo, jogo de dentro e jogo de
fora, alegria e dor (tristeza), luta e diversão, luta e opressão,
lealdade e falsidade, mão versus pé7 etc, a roda apresenta
um panorama do universo simbólico da capoeira.
Mestre Bola Sete afirma que muitos mestres acreditam
que a capoeira, uma criação dos africanos no Brasil, seja
originária de antigos rituais africanos.
Câmara Cascudo (1967: 183) também relaciona a capoeira às danças africanas ao apontar o N´Golo (Dança da
CONTEXTUALIZAÇÃO DA DESCRIÇÃO DA PERFORMANCE RITUAL NA CAPOEIRA ANGOLA.
(...) quase todo objeto usado, todo gesto realizado, todo canto ou prece, toda unidade de espaço e tempo representa, por convicção, alguma
coisa diferente de si mesmo. É mais do que parece ser e, freqüentemente, muito mais.
(Turner, 1974: 29)
Uma das características da performance ritual é a polissemia/multivocalidade. Assim, tanto a decoração da academia
– o que inclui espaço destinado para pendurar os berimbaus,
pintura do arco-íris nas paredes (logotipo do CECA – AJPP),
quadros com fotos de renomados mestres (os quais valorizam a linhagem, contando, conseqüentemente, a história e a
tradição da capoeira angola) – bem como o uso do uniforme,
a movimentação corporal a musicalidade constituem as diversas linguagens na capoeira angola.
Para preparar o espaço ritual, os alunos chegam um
pouco antes do horário previsto para o início da roda, providenciando a limpeza do chão e arrumação dos bancos,
enquanto outros afinam os instrumentos musicais; armam
(6) Verga é toda madeira que “dá o arco” para fazer berimbau. Exemplo de pau para fazer berimbau
é a biriba, inclusive, cantada em versos: “Biriba é pau, é pau/Oi biriba é pau para fazer
berimbau...” (domínio público).
(7) Num corrido de domínio público o puxador (o mestre geralmente, ou outros membros de
posições hierárquicas próximas a ele) canta: “É a mão pelo pé” e o coro responde “O pé pela
mão”; depois o puxador canta “É o pé pela mão” e o coro responde “A mão pelo pé”. Esses
versos são várias vezes repetidos continuamente.
63
Foto Rita Barreto.
Poloca na roda
Nzinga Capoeira Angola
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Na roda são estabelecidas comunicações
entre os instrumentos musicais que
compõem a bateria, o canto (expresso em
forma de ladainha, quadras e corridos) e,
sobretudo, entre os jogadores que, com
seus corpos estabelecem uma comunicação
não-verbal.
Zebra) como dança guerreira que faz parte de um rito de
passagem, marcando a entrada da puberdade em que os
garotos dançam/lutam como exibição às garotas.
Antes da década de 30, a capoeira não era praticada em
recintos fechados (em academias), o que, provavelmente,
indicaria a existência de ritual diferente ao que existe na
atualidade, ou seja, ela existia em forma de luta pela liberdade e sobrevivência e, quando tinha um caráter recreativo,
era praticada nos engenhos, na beira do cais, nas ruas, em
frente aos bares, feiras, nos morros e nos largos dos bairros.
Quando observamos fotos desse período, vemos diferença
no número de berimbaus, na disposição da bateria, na indumentária etc.
As academias de capoeira angola localizadas na cidade
de Salvador (Bahia) são as que procuram manter a tradição
que se tinha na década de 30, as quais seguem a linhagem
de Mestre Pastinha. Os grupos de capoeira angola que se
disseminaram pelo mundo afora também procuram seguir
a linhagem de Mestre Pastinha, por isso o relato sobre a
performance ritual é baseado no CECA – AJPP, uma vez que
Mestre João Pequeno é considerado o principal discípulo de
Mestre Pastinha incumbido pela transmissão dessa arte8.
A performance ritual da roda de
capoeira angola
A RODA DE CAPOEIRA ANGOLA.
(...) uma coisa é observar as pessoas executando
gestos estilizados e cantando canções enigmáticas que fazem parte da prática dos rituais, e
outra é tentar alcançar a adequada compreensão do que os movimentos e as palavras significam para elas. (Turner, 1974: 20)
Na roda, as pessoas sentam-se, geralmente, dispostas
em círculo, mas há também rodas em formato quadrangular/retangular. Cada grupo, no espaço de sua academia, costuma realizá-la, uma vez por semana, durante todo o ano.
Há também um evento de capoeira angola, que congrega
os diferentes grupos, a exemplo dos encontros nacionais e
internacionais. No evento, que costumeiramente é patrocinado e/ou organizado por um grupo específico de capoeira
angola, participam da roda diversos mestres e seus respectivos grupos/discípulos.
Na roda são estabelecidas comunicações entre os instrumentos musicais que compõem a bateria, o canto (expresso em forma de ladainha, quadras e corridos) e, sobretudo,
entre os jogadores que, com seus corpos estabelecem uma
comunicação não-verbal.
(8) Num depoimento de Mestre Pastinha, ele afirmara: Deixo dois mestres de verdade e não
professores de improviso, fazendo referência a Mestre João Pequeno e a Mestre João Grande
(este último mora em Nova Iorque – E. U. A).
64
Capoeira
A performance ritual da roda de capoeira Angola
INSTRUMENTOS MUSICAIS E A HIERARQUIA NA
CAPOEIRA. Numa roda de capoeira angola o principal
instrumento é o berimbau. Ele está no ápice da hierarquia.
É no “pé-do-berimbau”9 que se delineia o jogo que acontecerá. Há três berimbaus: o berra-boi (alguns o chamam
de gunga10), que tem o som mais grave e é considerado o
mestre da roda - geralmente quem o toca é o mestre ou alguém mais próximo do mestre, levando em consideração a
hierarquia (com o sentido de mais experiência e sabedoria)
na capoeira; o médio que tem o som médio e o viola com
o som mais agudo.
Cada berimbau tem seu toque específico a ser feito. O
resultado desse conjunto sonoro resultará em cenas de
movimentos corporais predominantemente lentos, mas
os movimentos rápidos e com maior amplitude articular
acontecerão nos devidos momentos, a depender do ritmo ditado pelos berimbaus. O conjunto dos instrumentos
utilizados na capoeira é denominado bateria e dela fazem
parte, na seguinte ordem: os três berimbaus (gunga, médio,
viola), dois pandeiros (às vezes apenas um), um agogô, um
reco-reco e um atabaque.
Segue exemplo de disposição dos instrumentos na bateria:
Foto: Rosa Simões
Mestre João Pequeno com seu companheiro de jogo
no pé do berimbau. Neste momento, Mestre João Pequeno estava cantando a ladainha de sua composição “Quando eu aqui cheguei” (que será transcrita mais à frente).
A situação de cantar ladainha no “pé do berimbau” geralmente se dá quando o próprio mestre será o jogador.
Assim, a ladainha não foi cantada a partir da posição do
mestre no gunga. Observar que estão tocando somente
os três berimbaus e o pandeiro. A obediência à hierarquia
na bateria é mais rigorosa, geralmente, em relação a tais
instrumentos que são tocados no momento da ladainha,
tanto é que no gunga está o Mestre Moraes; no médio,
Mestre Ciro; no viola Mestre Pé de Chumbo e, no pandeiro, o Professor Topete, todos personalidades significativas
para o universo da capoeira.
(9) Quando os dois capoeiristas estão agachados (de cócoras) de frente para os três berimbaus.
(10) Gunga também é sinônimo de berimbau.
65
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo de
cantiga na qual tanto pode se contar uma
história, como fazer uma oração, uma
louvação, um desabafo, uma provocação, ou
dar um aviso etc. Ela é cantada solo, ou seja,
puxada pelo mestre.
O CANTO NA CAPOEIRA. Antes de se iniciar um primeiro jogo, o mestre ou quem estiver no gunga, ou, ainda, um
dos jogadores que estiver no pé-do-berimbau, canta uma
ladainha. Para ilustrar como a roda é iniciada por Mestre
João Pequeno de Pastinha, segue a transcrição da ladainha
“Quando eu aqui cheguei” de sua composição.
Quando eu aqui cheguei
A performance ritual da roda de
capoeira angola
Iê11
01 - Quando eu aqui cheguei
02- Quando eu aqui cheguei
03 - a todos eu vim louvá,
04 - vim louvá a Deus primero
05 - e os moradô desse lugá
06 - Agora eu tô cantando
07 - cantando canto em louvô
08 - Tô louvando a Jesus Cristo
09 - Tô louvando a Jesus Cristo
10 - porque nos abençoô
11 - Tô louvando e tô rogando
12 - ao pai que nos criou
13 - Abençoe esta cidade
14 - Abençoe esta cidade
15 - com todos seus moradores
16 - e na roda de capoeira
17 - abençoe os jogadores, camaradinho
18 - É mandinguêro (P)12
19 - Iê é mandinguêro, camará (C)13
20 - Oi io io é mandingá (P)
21 - Iê é mandingá, camará (C)
22 - Oi io io sabe joga (P)
23 - Iê sabe jogá, camará (C)
24 - Oi io io joga daqui prá lá (P)
25 - Iê jogue prá lá, camará (C)
26 - Oi io io joga aqui prá cá (P)
27 - Iê jogue prá cá, camará (C)
28 - Oi volta que mundo deu (P)
29 - Iê que o mundo deu,camará (C)
30 - Oi io io que o mundo dá (P)
31 - Iê, que o mundo dá, camará (C)
(11) “Iê” é cantado tanto para dar início à roda, quanto para dar início ao jogo entre mestres e/ou para
reiniciar jogos interrompidos, geralmente, devido a condutas não aprovadas durante o jogo.
(12) Puxador (solista)
(13) Coro.
(14) Para dar suporte à análise, antecedendo cada verso, há um número correspondente a ele. E,
a partir da “chula”, há no final de cada verso a letra (P) que significa puxador e a letra (C), que
significa coro.
(15) Mestre João Pequeno viajou e viaja pelo mundo todo ensinando capoeira angola
(16) Ou “Iê dá volta ao mundo”..
66
A ladainha (versos 1 ao 17)14 é um tipo de cantiga na qual
tanto pode se contar uma história, como fazer uma oração,
uma louvação, um desabafo, uma provocação, ou dar um
aviso etc. Ela é cantada solo, ou seja, puxada pelo mestre. Na
ladainha de Mestre João Pequeno são feitas, simultaneamente,
uma oração e uma louvação que indicam Deus numa posição
superior em relação aos “moradores” (sejam os da cidade onde
ele mora ou das diversas cidades pelas quais ele passa)15.
Assim, ele louva a Deus primeiro, como uma maneira de
pedir proteção dos perigos da vida e, depois, louva os capoeiristas presentes na roda, como uma maneira de agradar o
público e, conseqüentemente, criar um ambiente pacífico,
controlando, assim, a impetuosidade exarcebada. Nesse
momento, os dois jogadores estão agachados ao pé do berimbau, ouvindo atentamente a mensagem (não há jogo).
Os instrumentos que acompanham o canto são apenas os
três berimbaus e o (s) pandeiro (s).
Logo em seguida à ladainha (geralmente após a palavra
“camaradinha (o)” como consta no verso 17), vem a chula (versos 18 ao 31). Nela o “cantador” ou “puxador” (geralmente o mestre) canta um verso e os presentes na roda
respondem em coro, repetindo o verso puxado (cantado).
Os jogadores também respondem ao coro e se apontam,
reciprocamente, elevando ambas as mãos, enfatizando com
tal gesto a afirmação “é mandingueiro”, “sabe joga” etc.
Quando é cantado Oi volta que mundo deu16, os jogadores estão autorizados para começar o jogo. Eles se benzem, fazendo o sinal da cruz e, depois, cumprimentam-se,
pegando um na mão do outro.
A partir daí, começam a cantar os corridos, nos quais
também há resposta de coro, mas, diferentemente da chula, os versos respondidos em forma de coro são constantes
e específicos a cada corrido. Nesse momento, geralmente
os jogadores realizam, um de frente para o outro, uma queda de rim, ambos na direção dos berimbaus, como uma
maneira de cumprimentar os berimbaus, expressando o
respeito às normas do jogo que serão ditadas a partir da
bateria. Exemplo de corrido:
Foto: Rita Barreto
sua posição na bateria) e, a partir do 4o. verso, o coro responde alternadamente a cada verso puxado (o qual pode
ser repetido inúmeras vezes até o jogo “pedir” outro tipo de
canto ou a bateria querer outro tipo de jogo).
Outro corrido que pode ser cantado como forma de reforçar o diálogo corporal (apontando os contrários como parte
deste) e/ou chamar a atenção para que haja perguntas e respostas no jogo, caso estejam ocorrendo “golpes em vão” é o:
Oi sim, sim, sim, oi, não, não, não
Oi sim, sim, sim (P)
Oi não, não, não (P)
Oi sim, sim, sim (C)
Oi não, não, não (C)
Oi sim, sim, sim, sim (P)
Oi não, não, não, não (P)
Oi sim, sim, sim (C)
Oi não, não, não (C)
Oi sim, sim, sim, sim, sim (P)
Oi não, não, não, não, não (P)
Oi sim, sim, sim (C)
Oi não, não, não (C)
(domínio público)
Tem dendê
1 - Tem dendê, tem dendê (P)
2 - O jogo de angola tem dendê (P)
3 - Tem dendê, tem dendê (C)
4 - Jogo de baixo tem dendê (P)
5 - Tem dendê, tem dendê (C)
Levando em conta que o azeite de dendê é um importante tempero da culinária baiana, esse corrido é cantado
quando o jogo está “gostoso”, está bonito, bem elaborado,
em um momento que os jogadores estão, elegantemente,
conversando por meio de seus corpos. Para dar início ao
corrido, os dois primeiros versos são puxados pelo mestre
(ou outro tocador e/ou cantador que esteja assumindo a
Foto: Acervo do MRE
67
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Cada atitude do capoeira, na roda
propriamente dita ou na roda da vida, é
sempre um ato de desafio e de luta pela
justiça social uma vez que, se atentarmos
para a sua performance ritual, notaremos
que não se privilegia nem a direita nem
a esquerda, nem o baixo nem o alto, mas,
sim, a relação equilibrada entre os opostos,
entre os diversos num constante exercício
de humildade e paciência.
A performance ritual da roda de
capoeira angola
CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O JOGO DE CAPOEIRA. Fazem parte da roda, portanto, os mestres, os
discípulos e, até mesmo, a platéia, no caso de uma roda
aberta. Quem não estiver jogando ou tocando qualquer
instrumento presta atenção no jogo e responde ao coro,
pois o jogo de capoeira angola é um jogo consciente no
qual o (a) capoeirista ataca para se defender, procurando
sempre saber o que fazer durante o jogo (o que se estende
para o cotidiano da vida pós roda). É necessário observar o
outro, analisar seu jeito de agir, para, finalmente, saber com
quem se está jogando, ou seja, se relacionando. A atenção
deve ser dirigida não só ao jogo, mas também no que está
sendo cantado. É por meio do canto que o ensinamento da
capoeira é dado, já que ele direciona a comunicação nãoverbal (corporal) dos jogadores.
Assim, os movimentos corporais de ataque e de defesa,
tais como gingas, negativas, rabos-de-arraia, chapas, rasteiras, quedas e tantos outros que fazem parte do jogo de
capoeira angola são realizados de forma que possibilite um
diálogo não-verbal entre os dois jogadores. A principal preocupação que se tem não é a de atacar, mas, sim, de saber
se defender, portanto o respeito, a paciência, a humildade
e a busca pelo equilíbrio e, conseqüentemente, pela justiça,
são os principais valores buscados pelo adepto da capoeira
angola. O sentido de equilíbrio, por exemplo, é tomado de
uma maneira mais ampla, ou seja, extrapola-se a questão
do equilíbrio para a vida em si, quando o “angoleiro” (adepto da capoeira angola) procura ser uma pessoa equilibrada,
não apenas na execução dos movimentos corporais específicos da capoeira, mas também na relação com o outro
no cotidiano.
A partir daí, pode-se falar que, num jogo de capoeira
angola, é exercitado o controle da violência, pois tudo deve
ser feito com educação, diversão (“vadiagem”) e respeito. O
“outro”, o adversário, é o camarada (companheiro de jogo)
com o qual é possível aprender cada vez mais.
Os capoeiras jogam por tempo indeterminado. A duração de cada jogo pode ser de cinco minutos, de dez minutos, meia hora, mas, quando o berimbau “chamar” com
um toque específico e/ou com sua inclinação para a frente,
é avisado o término do jogo; os jogadores deverão voltar
para perto dos berimbaus (e aqui novamente temos uma
situação em que o jogador vai para o pé do berimbau), os
dois se cumprimentam, como todo bom camaradinha e, aí,
entram outros dois capoeiras.
Enfim, os movimentos corporais no jogo de capoeira
angola são realizados com muita astúcia. Cada atitude do
capoeira, na roda propriamente dita ou na roda da vida, é
sempre um ato de desafio e de luta pela justiça social uma
vez que, se atentarmos para a sua performance ritual, notaremos que não se privilegia nem a direita nem a esquerda,
nem o baixo nem o alto, mas, sim, a relação equilibrada entre os opostos, entre os diversos num constante exercício
de humildade e paciência.
68
Capoeira
A performance ritual da roda de capoeira Angola
Referências bibliográficas
BOLA SETE, Mestre. A capoeira angola na Bahia. 3. ed. Rio
de Janeiro: Pallas, 2001.
CASCUDO, L. C. Folclore do Brasil: pesquisa e notas. Portugal: Fundo de Cultura, 1967.
JOÃO PEQUENO, Mestre. Quando eu aqui cheguei. In: Mestre João Pequeno, Mestre João Grande. Programa Nacional
de Capoeira (SEED/MEC): Capoeira Arte & Ofício (disco) Salvador. lado B, faixa 1., 1989.
LIMA, L. A. N. Capoeira Angola: uma lição de vida na civilização brasileira. São Paulo: PUC. (Dissertação de Mestrado),
1992.
PEIRANO, M. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge
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SIMÕES, Rosa Maria Araújo. Da inversão à re-inversão do
olhar: ritual e performance na capoeira angola. 2006. 193p.
Tese de doutorado (Doutorado em Ciências Sociais). Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. UFSCar.
TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura; tradução de Nancy Campi de Castro. Petrópolis, Vozes, 1974.
______ From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of
Play. New York City: Performing Arts Journal Publications,
1982.
Rosa Maria Araújo Simões. Professora das disciplinas
Antropologia das Culturas Populares, Artes Corporais e
Expressão Musical do curso de Licenciatura em Educação
Artística do Departamento de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da
Universidade Estadual Paulista (campus de Bauru). Coordenadora do projeto de extensão universitária “A capoeira
angola de Mestre João Pequeno” (PROEX/UNESP); Doutora
em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos com a tese “Da inversão à re-inversão do olhar: ritual e
performance na capoeira angola”.
69
A capoeira e seus aspectos
mítico-religiosos
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Como dizia o saudoso Mestre Pastinha (Vicente Ferreira
Pastinha, que viveu na Bahia e faleceu em 1980), “a capoeira é tudo que a boca come e tudo que o corpo dá!”. Essa
frase dita por um dos maiores guardiões dessa manifestação demonstra o caráter múltiplo e dinâmico da capoeira,
que se transmuta e se adapta, que se rebela e se acomoda,
que cria e reproduz, que já serviu para se defender e até
matar, e que hoje serve para educar, mas que sempre foi
um grito de liberdade e de reafirmação de uma cultura e
de um povo oprimido, reflexo da triste história de quatro
séculos de escravidão no Brasil.
A capoeira e seus aspectos
mítico-religiosos
Foto: Acervo do Mestre Bola Sete
Dentre os vários aspectos expressados pela
capoeira, o componente mítico-religioso
foi sempre um dos que mais suscitou
curiosidades, debates, opiniões e muitas
histórias contadas e recontadas por meio da
tradição oral presente na cultura popular,
uma das formas mais importantes de
transmissão dos saberes e conhecimentos.
Mestre Pastinha
Dentre os vários aspectos expressados pela capoeira, o
componente mítico-religioso foi sempre um dos que mais
suscitou curiosidades, debates, opiniões e muitas histórias
contadas e recontadas por meio da tradição oral presente
na cultura popular, uma das formas mais importantes de
transmissão dos saberes e conhecimentos.
No imaginário da capoeiragem e dos capoeiras, não
existe figura mais expressiva e representativa do que Besouro Mangangá, Manoel Henrique Pereira por batismo. Ainda
hoje muitos duvidam de sua existência. Houve quem afirmasse categoricamente, como o falecido Mestre Cobrinha
Verde (Rafael França), ter convivido e aprendido capoeira
com Besouro. Apenas recentemente foi encontrada uma
prova de sua existência: seu registro de óbito, localizado na
Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro da Purificação.
Na memória dos mais antigos moradores do Recôncavo Baiano, a figura de Besouro vive e protagoniza inúmeras
histórias e “causos” envolvendo suas peripécias e astúcias
no enfrentamento com a polícia, sua valentia ao brigar e ao
bater em vários oponentes ao mesmo tempo, e, principalmente, sua fama de ter o “corpo fechado” por obra de sua
iniciação nas artes da magia africana que o permitia “virar e
desvirar coisa, toco ou bicho, e até mesmo de sair voando
em caso de precisão”.
72
Capoeira
A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos
Besouro Mangangá, ou Besouro Preto, ou ainda Besouro Cordão de Ouro, como o chamavam seus companheiros
de vadiagem, é o elo com a capoeira do século XIX, afirma
o pesquisador Antonio Liberac Pires1, tradição dos escravos
e das lutas pela liberdade, tempo de conflito entre maltas,
disputas a navalha, capangas eleitorais. Passado lendário de
vadiação, de façanhas memoráveis nas brigas com a polícia. Besouro é cantado, ainda hoje, nas rodas de capoeira,
em prosa e verso. Sua valentia e perspicácia foram e continuam sendo referência para os capoeiras desde há muito
tempo. Pela fama que alcançou, inclusive pelas qualidades
adquiridas de ter o “corpo fechado”, Besouro tornou-se
uma lenda ainda em vida.
poeira é de Deus. Mundo e gentes muitas têm
mandinga, corpo tem poesia, pássaro tem bico.
Capoeira tem axé. Meu pai e meu mestre me
ensinou. E isto não é pouca coisa. Mas mel não
conhece flor nem reconhece abelha. O que me
ensinou capoeira conhecia.
Zum, zum, zum, Besouro Mangangá
Batendo nos soldados da polícia militar
Zum, zum, zum, Besouro Mangangá
Quem num pode com mandinga
não carrega patuá......2
O Mestre João Pequeno de Pastinha (João Pereira dos
Santos), discípulo mais importante de Mestre Pastinha, ainda em atividade e prestes a completar noventa anos, afirma
que Besouro era primo de seu pai, e que, desde menino,
ouvia falar de suas proezas e, por isso, queria aprender capoeira para ser valentão como Besouro. Segundo seu pai
contava, Besouro se escondia de uma pessoa em qualquer
lugar, passava por ela e a pessoa não o via. João assegura
que seu pai também era “preparado” de oração e tinha certas qualidades, inclusive, como Besouro, a de desaparecer:
“Ele andando assim, num caminho e quando avistava uma
pessoa que ele não queria que visse ele, a pessoa não via
mesmo não”.
Adentrando pelo campo da literatura, o personagem
Besouro, que narra suas histórias no belo livro “Feijoada no
Paraíso”, de Marco Carvalho3, conta como aprendeu capoeira com Tio Alípio, “...que já era velho quando conheci, mas
parecia ter sido assim desde sempre. Andava leve, pisando
macio no chão feito bicho gato”. Tio Alípio era um ex-escravo que, quando moço, despertou paixões na sinhá do
engenho, causando a ira do patrão, que mandou matá-lo, o
que só não ocorreu, “porque o moço era já feito na crença
das linhagens de fé do povo iorubá”. Continua o personagem Besouro, revivido por Carvalho:
O jogo da capoeira - Acervo do Instituto Jair Moura
O aspecto mágico e misterioso, conhecido no universo
da capoeiragem como mandinga, é elemento fundamental
para compreensão mais aprofundada sobre essa manifestação. O substantivo “mandinga”, segundo o pesquisador
Waldeloir Rego4, refere-se possivelmente à região Mandinga, na África ocidental, banhada pelos rios Níger, Senegal
e Gâmbia, uma vez que entre os africanos trazidos para o
Brasil havia a crença de que nessa região habitavam muitos
feiticeiros. Assim, no tocante ao envolvimento do capoeira
com a magia, constituíram-se mitos ainda fortes na memória coletiva da capoeira.
Tio Alípio me ensinou de tudo um muito. Com a
calma do parteiro dos anos que a eternidade é
que engendra. Ele era um negro, daqueles uns
que olharam bem fundo no olho da maldade e
viram a única forma de sair vivo de lá. A capoeira
é a arte do dono do corpo e de outros tantos.
Pois se não. O que come primeiro, o ardiloso, é o
que não é nem nunca foi aquele o pé redondo,
o redemunho, o não falado, o tristonho, não. Ca-
(1) Bimba, Pastinha e Besouro Mangangá. Antonio Liberac Pires. Tocantins: NEAB, 2002
(2) Cantiga de domínio público
(3) Feijoada no paraíso: a saga de Besouro, o capoeira. Marco Carvalho. Rio de Janeiro: Record,
2002.
(4) Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico. Waldeloir Rego. Salvador: Itapuã, 1968
(5) O jogo da capoeira: cultura popular no Brasil. Luiz Renato Vieira. Rio de Janeiro: Sprint, 1998.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
O Mestre Cobrinha Verde era um dos que
mais valorizava as “artes da mandinga”,
atribuídas aos ensinamentos que recebeu
de Besouro e de outros conhecedores desses
“ofícios” em Santo Amaro da Purificação,
no Recôncavo Baiano.
O grande Mestre Valdemar da Liberdade, outro também
que já não está mais por aqui, disse uma vez ao pesquisador Luiz Renato Vieira5 que os mestres de antigamente “...
tinham muita mandinga, viravam folha, viravam bicho. Aquilo era próprio para barulho. Besouro era um grande capoeirista, mas tudo debaixo de oração”.
Mestre João Pequeno dá uma das versões da morte de
Besouro, segundo a qual sua mandinga foi quebrada:
A mandinga existe na capoeira, também um
patuá que se usava no pescoço. Dentro do patuá, tinha orações, rezas que preparava o corpo,
rezas que faca não fura. Mas pessoas de corpo
sujo que tem relações sexuais estão despreparados e com o corpo aberto. Foi assim que
aproveitaram para matar Besouro. Ele dormiu na
casa de uma mulher e no outro dia quando vinha voltando, passou por debaixo de uma cerca
de arame, e o arame feriu suas costas, então ele
viu que aquele dia ele tava fraco (...) Foi nesse dia
que mataram Besouro, com uma faca preparada
de tucum, que é uma palmeira que dá no mato.
A capoeira e seus aspectos
mítico-religiosos
João Pequeno também conta que quem lhe deu o primeiro treino de capoeira foi um negro chamado Juvêncio,
que trabalhava de ferreiro, isso quando ainda morava em
Mata de São João, interior da Bahia. Segundo ele, Juvêncio
era amigo de Besouro, com quem conviveu muito tempo,
e, por essa razão, tinha muitas histórias para contar.
O Mestre Cobrinha Verde era um dos que mais valorizava as “artes da mandinga”, atribuídas aos ensinamentos
que recebeu de Besouro e de outros conhecedores desses
“ofícios” em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo
Baiano. Conta ele que esses ensinamentos o ajudaram a se
livrar de inúmeras situações de perigo enfrentadas durante
suas aventuras pelos vários lugares por onde passou, inclusive referentes à sua participação em bandos armados que
percorriam o interior do Nordeste brasileiro:
O breve que eu usava tinha oração de Santa
Inês, de Santo André, de Sete Capelas, tinha
Sete folhas. Depois que eu usava, botava ele
em cima da mesa num prato virgem. Ele ficava pulando, porque era vivo. Mas houve algum
problema, pois ele fugiu e desapareceu de mim.
Foi algum erro que eu cometi e ele foi embora e
me deixou. Quando entrei no bando de Horácio
de Matos com dezessete anos, eu já tinha esse
breve. Foi ele que me livrou de muitas coisas.
Quem me deu esse breve foi um africano que
até hoje, quando eu falo nele, meus olhos ficam
cheios d’água. Ele se chamava tio Pascoal.6
(6) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991
74
Capoeira
A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos
Cobrinha Verde dizia-se católico, mas não deixava de
recorrer também às tradições religiosas africanas para o
“fechamento de seu corpo” com o intuito de se proteger
dos inimigos “desse mundo e do outro”. Uma das orações
que usava é aqui descrita:
percorrer para desenvolver as “artes da mandinga”, processo quase religioso de iniciação, porém sempre tendo como
referência os “antepassados que passaram isso pra gente”,
conclui Eletricista.
Valei-me meu São Silvestre
E os anjos 27 pela sua camisa que veste
Assim como abrandaste
Os corações dos três leões
Em cima do morro cravado de pé e mão
Abrandai eles debaixo do meu pé esquecidos
Mais mansos do que a cera branca
Se olhos tragam, não me enxergarão
Se boca tragam, não me falarão
Se pagam pra mim, não me alcançarão
Se faca tragam pra mim,
É de se enrolar como Nossa Senhora enrolou o
arco celeste
Cacete pra mim é de ser quebrado,
Assim como N.Senhora quebrou os gravetos pra
ferver o leite
Do seu Bendito Filho
Arma de fogo para mim apontada,
É de correr água pelo cano, sangue pelo gatilho,
Assim como N.Senhora
Chorou lágrimas pelo seu Bendito Filho.
Amém.7
João Pequeno e João Grande prontos para iniciarem um jogo (1968) – Foto: Jair Moura
Ao pé do berimbau, os dois capoeiras agacham-se,
prontos para iniciar o jogo. Esse é um momento muito
especial, pois na roda de capoeira angola, segundo a tradição do Mestre Pastinha, o jogo inicia e termina com os
mesmos jogadores. Existe o tempo para que cada jogador
estude seu parceiro, procure decifrar o seu jogo, prepare
com cuidado o seu “bote”, que é dado no momento certo.
Um capoeira considerado mandingueiro é aquele que vai
“cevando” o outro, ou seja, vai aguardando, sem pressa, um
descuido para, então, aplicar seu golpe certeiro.
Por isso, o pé do berimbau, local de entrada e saída do
jogo na capoeira angola, é um lugar sagrado onde se juntam o início e o fim, o passado e o presente, o céu e a terra, o bem e o mal, a vida e a morte. A morte é sempre uma
possibilidade latente. Todo capoeira sente sua presença
ao agachar-se ao pé do berimbau. O coração bate mais
forte, a respiração altera-se e os olhos fixam-se nos do
seu parceiro de jogo, que pode vir a se tornar seu algoz.
Por isso, ao pé do berimbau, alguns capoeiras se benzem.
A mandinga aí se expressa: seja pelo sinal da cruz, sejam
pelos “traçados” que o capoeira faz com as mãos tocando
o chão, hábito que se perde no tempo entre os velhos
“angoleiros”. Seja ainda pela proteção que pede aos orixás
ou aos santos, por meio de gestos próprios, com as mãos
e com o corpo, ou mesmo durante o cantar de uma ladainha. O berimbau ecoa sons ancestrais e pede a proteção
aos antepassados. O berimbau era usado na África para
Os depoimentos dos capoeiras mais antigos evidenciam
a mandinga como componente fundamental da capoeira.
No contexto da capoeira, o termo mandinga designa tanto a malícia do capoeirista durante o jogo, fazendo “fintas”,
fingindo golpes e iludindo o adversário, quanto uma certa
dimensão sagrada, um vínculo do jogador da capoeira com
o mistério das religiões afro-brasileiras.
A mandinga é um dos elementos que diferenciam as
características da capoeira angola e da regional, segundo a
visão de alguns mestres. A capoeira regional, segundo eles,
tem se distanciado cada vez mais dos elementos míticoreligiosos presentes na tradição africana, salvo algumas exceções. Isso acaba determinando uma estética de jogo e
um sistema simbólico próprios, os quais privilegiam muito
mais a objetividade do que a subjetividade, a técnica do
que a malícia, o confronto direto do que a dissimulação,
características estas que, diferentemente das primeiras, se
aproximam mais da mandinga da capoeira angola. Isso não
quer dizer que não existam alguns desses elementos entre
os praticantes da capoeira regional, porém apresentam-se
em menor escala.
Mestre Eletricista (Edílson Manoel de Jesus) diz que “a
mandinga não se ensina...mandinga você aprende”, referindo-se ao percurso individual que cada capoeira tem que
(7) Capoeiras e Mandingas. Cobrinha Verde/Marcelino dos Santos. Salvador: A Rasteira, 1991
75
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
O berimbau ecoa sons ancestrais e pede
a proteção aos antepassados. O berimbau
era usado na África para conversar com
os mortos. Só então os dois apertam-se as
mãos, e o jogo pode iniciar-se.
A capoeira e seus aspectos
mítico-religiosos
A “chamada de angola” sendo executada
Foto: Acervo do Instituto Jair Moura
76
conversar com os mortos. Só então os dois apertam-se as
mãos, e o jogo pode iniciar-se.
Outra situação muito característica da capoeira angola
que traz elementos da mandinga é a “chamada de angola”. A
chamada é um momento de quebra e interrupção no andamento do jogo. É um parêntesis na sucessão de movimentos
de ataque e de defesa, incluindo também a ginga, quando
um jogador promove a ruptura dessa dinâmica, “chamando”
o outro e assumindo uma posição estática e de observação.
O parceiro, então, aproxima-se lenta e cuidadosamente, pois
pode ser surpreendido com um ataque inesperado, até conseguir um contato corporal com o jogador que o “chamou”.
Inicia-se, então, um “bailado” entre os dois, que se deslocam
alguns passos para frente e para trás, sem que seus corpos
se “descolem” um do outro. A tensão entre ambos é visível, pois, a qualquer instante, um deles pode tentar alguma
“mardade” contra o outro. A chamada é interrompida no
momento em que aquele que “chamou” toma a iniciativa
de recomeçar o jogo, convidando seu parceiro por meio de
gestos característicos. E o jogo se reinicia.
Nessa simulação, representada pela chamada de angola,
a mandinga mostra-se na forma como cada jogador lida com
essa situação, demonstrando sua malícia, sua sagacidade e
sua habilidade de expressar-se dissimuladamente, dificultando para o parceiro a interpretação de suas verdadeiras
intenções, quando um certo clima de apreensão paira sobre
os dois capoeiras. A chamada é um momento que sempre
guarda um certo mistério durante uma roda de capoeira
angola. Numa chamada tudo pode acontecer. Os dois ca-
Capoeira
A capoeira e seus aspectos mítico-religiosos
poeiras têm que estar atentos e preparados para possíveis
surpresas, que não raro acontecem nessas situações.
grande valor que é suas mandinga tracueira para
vencer todas parada que apareiza sendo a hora
suficiente si causo não for dezista para outra ocazião porque eziste outro encontro porque quem
apanha nunca cisquece e quem dá não se lembra esta é a malícia do capoeirista (p.18).9
Urgente urgentíssimo ficar prevenido, estar de
alerta em qualquer ocasião, na tocaia das vastas
atalaias, já que toda atenção é pouca. Assim rezam os preceitos da mandinga, uma vez que macaco velho jamais mete a mão em cumbuca. (...)
O segredo da artimanha está dentro de si mesmo,
no íntimo do seu mistério, verdadeiro e único. Já
que o martírio existe dentro das sete chagas de
Cristo, então camaradinho conserve a fé no que
você possui e desconfie até da sombra...com simpatia, disciplina e iluminação na alma.8
A mandinga de Besouro Mangangá - que segundo Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado), criador da capoeira
regional, “era capaiz di sartá di costa i caí de vórta dentru dus
chinélu”10 -, e também de Mestre Noronha, Pastinha, Cobrinha Verde e de tantos outros capoeiras antigos, considerados “mandingueiros”, que povoam o imaginário popular de
Salvador e do Recôncavo, parece exercer sobre o capoeira
de hoje em dia uma influência que vai além daquela referente às “qualidades” de desordeiros e valentões.
Esse componente de magia que reveste o universo da
capoeira, embora proveniente desse imaginário popular,
expressa o vasto campo de significados dessa manifestação afro-brasileira e de suas ligações com o “sagrado”, assim como muitas das manifestações e tradições presentes
no universo da cultura popular no Brasil. A dimensão do
sagrado tem para o povo simples de nosso país um sentido muito especial e profundo, que determina suas crenças,
seus modos de vida, seus sonhos, suas lutas, suas vitórias
e suas derrotas.
Analisar a mandinga na capoeira significa mais do que
identificar alguns aspectos do ritual presentes na roda, da
malícia, do gestual ou do discurso dos capoeiras. Significa
buscar um entendimento mais aprofundado sobre determinados comportamentos que certos “angoleiros” apresentam, os quais podem ser considerados como aprendizados
que se iniciam na roda de capoeira, e, como diz o Mestre
Moraes (Pedro Moraes), expandem-se, posteriormente, para
o cotidiano desses sujeitos, expressando-se nas suas formas
de se relacionarem com o mundo.
Certos procedimentos, crenças, superstições e hábitos
observados, principalmente entre os praticantes da capoeira angola, moradores de Salvador e arredores, que se estendem até o Recôncavo Baiano, são características muito
peculiares de um certo tipo de sujeito social que se difere
justamente por ter adquirido, a partir da vivência na capoeira
angola, um comportamento baseado em outra lógica, que
escapa de uma racionalidade predominante nas sociedades
modernas e que se expressa pela forma como se relaciona
com a realidade em que vive. Normalmente são pessoas que
desenvolvem uma atenção, uma sagacidade, uma presença
de espírito, um sexto sentido mesmo, características estas
um tanto diferenciadas de um comportamento considerado
padrão nas sociedades urbanas contemporâneas.
Essa “outra lógica” relaciona-se com características mítico-religiosas oriundas da cultura afro-brasileira, que, por
meio da capoeira, se expressa de várias formas, desde tempos imemoriais.
O famoso Mestre Noronha (Daniel Coutinho), que viveu as
primeiras décadas do século XX em meio à malandragem da
capoeira baiana, deixou um legado valioso: seus manuscritos,
os quais retratam muitos aspectos da capoeiragem daquela
época, referência importantíssima para historiadores que buscam reconstruir esse período de valentia e desordens. Em um
dos trechos, transcrito fielmente dos originais, ele diz:
(8) Maior é a capoeira, pequeno sou eu. José Umberto. Revista da Bahia, nº 33 – Salvador: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1999
(9) O ABC da capoeira angola: manuscritos do mestre Noronha. Frederico Abreu. Brasília. DEFER,
1993 (foi mantida a grafia utilizada no manuscrito).
(10) Mestre Bimba: corpo de mandinga. Muniz Sodré Rio de Janeiro: Manati, 2002 (p.36)
Eu e meus colega da mesma arte, de capoeira,
porque hoje em dia está nos meios social e no
mundo enteiro porque é uma defeiza pessoal de
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A dimensão do sagrado tem para o povo
simples de nosso País um sentido muito
especial e profundo, que determina suas
crenças, seus modos de vida, seus sonhos,
suas lutas, suas vitórias e suas derrotas.
O capoeirista da atualidade, consciente ou inconscientemente, é herdeiro dessa carga ancestral que a capoeira traz
consigo e não pode ficar imune aos sentidos e significados
implicados no processo de identificação cultural pelo qual
passa um iniciado da capoeira, que acaba adquirindo outras
atitudes, acaba desenvolvendo outras formas de se relacionar com o mundo, com o perigo, com a adversidade, com o
desconhecido, com o inesperado.
A prática da capoeira, nos últimos anos, tem se transformado em mera mercadoria de consumo, servindo para atrair
e deslumbrar turistas por meio de saltos mortais e de um
jogo cada vez mais “espetacularizado”, afastando-se de suas
características mais tradicionais, da ritualidade, da ancestralidade, da mandinga.
Porém, esse processo não se dá sem resistências e
oposições. Ao mesmo tempo, vão sucedendo-se importantes experiências no mundo todo que se caracterizam
pela afirmação do legado histórico da capoeira, a reverência aos seus antepassados e às formas tradicionais de
sua prática, valorizando e dando dignidade à essa manifestação surgida da criatividade, da crença, da alegria e do
sofrimento de um povo.
Pedro Rodolpho Jungers Abib. Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia
Autor do livro: “Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos
saberes na roda” (Edufba/CMU-Unicamp,2005).
Capoeirista formado pelo Mestre João Pequeno de Pastinha
A capoeira e seus aspectos
mítico-religiosos
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79
Capoeira: metáforas em movimento
Eliane Dantas dos Anjos
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Para compreender o sistema denominativo,
ou seja, a terminologia da capoeira, é
importante conhecer suas origens e
trajetória. Até o início do século XIX, não
havia registros escritos ou iconográficos da
capoeira, um jogo que teria se desenvolvido
entre os negros escravos que a utilizariam
para se defender e lutar pela liberdade.
Capoeira:
metáforas em movimento
No entanto, a capoeira reserva um repertório muito
mais extenso, variado e criativo. Aú, bênção, rabo-de-arraia,
meia-lua, sapinho, vôo do morcego, resistência, negaça são
alguns exemplos de movimentos e golpes. A quantidade de
nomes é inumerável, já que cresce de acordo com as habilidades e a criatividade dos capoeiristas. Estes, ao desenvolverem novos movimentos ou variações, criam também
novas denominações. É justamente nesse processo que a
metáfora tem lugar de destaque.
Para compreender o sistema denominativo, ou seja, a
terminologia da capoeira, é importante conhecer suas origens e trajetória. Até o início do século XIX, não havia registros escritos ou iconográficos da capoeira, um jogo que
teria se desenvolvido entre os negros escravos que a utilizariam para se defender e lutar pela liberdade. O desenhista
francês Jean-Baptiste Debret, que veio em missão ao Brasil
a pedido de D. João VI, em 1816, faz referência aos “negros
volteadores dando saltos mortais ou fazendo mil outras cabriolas para animar a cena”. O pintor e desenhista alemão
Johann Rugendas, que esteve no Brasil em 1821, escreveu
uma das primeiras definições de capoeira, descrevendo-a
como um “folguedo guerreiro” dos negros, no qual se procurava atingir o peito do adversário com a cabeça e se defender com saltos de lado e paradas. O desenhista compara
os competidores a bodes, devido aos choques de cabeça
que aconteciam durante o jogo.
Plácido de Abreu, no livro Os Capoeiras, apresenta termos como topete a cheirar e chifrada, ambas variações de
cabeçadas. Essas palavras integravam o vocabulário dos
capoeiras, que eram perseguidos principalmente no final
do século XIX. Após a prática ter sido considerada crime
(1890), subsistiu nos quartéis, onde foram escritos os primeiros manuais de capoeira, considerada um “sport” nacional. Em 1907, foi publicado o Guia do Capoeira ou Gymnastica Brasileira, cujo autor é um militar não-identificado, e em
1928, Gymnastica Nacional (Capoeiragem) Methodizada e
Regrada, de Annibal Burlamaqui, que definiu os movimentos e as regras do jogo da capoeira.
A Bahia foi, no século XX, um verdadeiro celeiro de praticantes desse jogo, que se tornou conhecido no Brasil e no
mundo pela determinação e espírito de liderança de dois
homens: Manuel dos Reis Machado, Mestre Bimba, e Vicente Ferreira Pastinha, Mestre Pastinha.
Aos 18 anos, Bimba começou a ensinar a arte da capoeiragem e formou o Clube União em Apuros, situado no Engenho Velho de Brotas, um bairro de Salvador. Nessa época,
a capoeira era uma só, não havendo distinção entre regional e angola, mesmo porque Bimba foi o responsável pelo
desenvolvimento da modalidade de capoeira denominada
regional. Segundo depoimentos de Mestre Bimba, a regional
teria sido criada em 1928, resultado da inclusão de golpes do
batuque (dança masculina de origem africana), do desenvolvimento de novos golpes e do aperfeiçoamento daqueles já
existentes. A influência da luta livre, por exemplo, aparece em
82
Aú
golpes como a gravata e na seqüência da cintura desprezada, uma série de movimentos de projeção.
Os contatos dos alunos de Mestre Bimba com autoridades baianas contribuíram para que a capoeira fosse legitimada e excluída do Código Penal, na década de 1940.
Com o reconhecimento da luta regional baiana de Bimba, a
capoeira tradicional, que passou a ser referida como capoeira angola, também se fortaleceu, tendo como expoente
Mestre Pastinha.
O sistema denominativo de golpes da capoeira foi criado, então, a partir do desenvolvimento da capoeira regional
e angola, bem como dos focos de resistência da capoeira
carioca. Atualmente, com a expansão da capoeira no Brasil e no exterior, foram criadas variações dos movimentos
básicos e incluídos novos movimentos, o que se reflete
no conjunto de termos. Essa divisão da capoeira também
se repercute nos movimentos, que podem ter execuções
bastante variáveis. O rabo-de-arraia da angola, por exemplo,
corresponde à meia-lua de compasso da regional, um golpe giratório, com apoio das mãos no chão, em que uma das
pernas visa acertar o oponente no plano horizontal; já na
regional é a meia-lua de compasso executada sem o apoio
das mãos no chão; na capoeira carioca é um movimento
semelhante, mas executado no plano vertical.
Com base em materiais escritos sobre capoeira publicados a partir de 1960, pelos mestres Bimba e Pastinha,
por seus discípulos e com apoio também de livros sobre
capoeira de circulação nacional ou com grande divulgação,
foi organizado por Eliane Anjos, em 2003, um repertório de
termos que constituiu o Glossário Terminológico Ilustrado
de Movimentos e Golpes da Capoeira. Esse estudo mostrou
a predominância da metáfora (transferência de nome por
semelhança de sentido) e da metonímia (transferência de
nome por contigüidade de sentido) entre os recursos de
formação de termos desse jogo.
Entre as metáforas dos termos da capoeira, destacamse algumas regularidades associativas com animais, armas
(instrumentos perfuro-cortantes ou traumatizantes), formas
circulares, representações gráficas e objetos do dia-a-dia.
83
As associações com animais são especialmente recorrentes, entre as quais: coice, rabo-de-arraia, sapinho, pulo
do macaco e vôo-do-morcego. O termo galopante, que se
refere a um soco dado com os dedos unidos na região dos
ouvidos do oponente, também está relacionado a uma característica de movimento de animal, os passos do cavalo,
o seu galope. A capoeira, cuja etimologia indígena remete à
mata, ka’a puera, mata extinta, tem em sua origem entre os
negros escravos uma relação forte com a natureza, por isso
utiliza tanto a denominação de animais para nomear novos
conceitos. O movimento é a essência da capoeira, como de
qualquer luta ou expressão corporal, e a observação de animais é uma fonte de criação tanto de movimentos como
de denominações.
A relação movimento-animal torna o sistema denominativo mais vivaz e concreto, facilitando a memorização,
pois ao associar-se a denominação ao conceito no mundo
visível, ao ouvirmos o nome do animal ou de um movimento que a ele se relaciona, visualizamos as características que
tornam o golpe ou o movimento semelhantes a ele. Em sua
descrição da capoeira, Rugendas compara os capoeiristas
a bodes, em virtude da grande quantidade de cabeçadas.
Tanto é assim, que o termo marrada, cabeçada de bodes e
carneiros, foi utilizado por Mestre Bimba em um depoimento gravado no CD Curso de Capoeira Regional. No entanto,
o termo acabou sendo substituído por cabeçada.
Instrumentos que podem ser utilizados como arma
também são denominações muito freqüentes na capoeira. O açoite, o arpão, a chibata, a cutilada, a forquilha,
o martelo e a tesoura demonstram que a capoeira pode
ser entendida como uma arma corporal e que seus movimentos, à semelhança desses citados anteriormente,
podem causar lesão. Movimentos como açoite e chibata
remetem-nos aos instrumentos de punição e tortura, práticas aplicadas aos negros escravos. A relação movimento/arma representa, então, um campo associativo, uma
grande metáfora, mostrando a capoeira como a própria
arma, que um dia foi luta e que atualmente é considerada
um jogo, um esporte.
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Entre as metáforas dos termos da capoeira,
destacam-se algumas regularidades
associativas com animais, armas
(instrumentos perfuro-cortantes ou
traumatizantes), formas circulares,
representações gráficas e objetos do dia-a-dia.
Tesoura de frente
Capoeira:
metáforas em movimento
Outro tipo de associação é a de movimentos com letras
do alfabeto como aú, cuja etimologia – mesmo controversa, já que no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
(1999) a expressão é considerada um africanismo – remete-nos à comparação entre traçado das letras do alfabeto e a posição corporal, com pernas voltadas para baixo,
representando A, e voltadas para cima, o U. O s dobrado
também é um referente que exprime, iconograficamente,
o “desenho” do movimento. As curvas nele contidas, assim
como na meia-lua de frente, na meia-lua de compasso, no
compasso e no rolê refletem a circularidade dos movimentos que representam.
S dobrado
Os termos chapéu-de-couro, gravata e leque, acessórios de vestimenta, são oriundos de associações comuns
do dia-a-dia, assim como balão, chapa, cruz, telefone, pois
o homem tende a relacionar aquilo que cria com algo que
conhece, tomando alguma característica comum, no caso
a forma ou a função.
84
Capoeira
Capoeira: metáforas em movimento
A bênção é um termo irônico que subverte o significado de proteção religiosa e a ironiza, pois, na verdade, diferentemente do movimento realizado pelo padre ao levar as
mãos ao fiel, a bênção da capoeira é um empurrão com o
pé, um movimento ofensivo. Esse caráter irônico e debochado também aparece nos termos bochecho e suicídio,
relacionando-se o ato de bochechar ao efeito do golpe e o
ato de suicidar-se ao risco assumido pelo capoeirista quando
executa o movimento.
A maioria das metáforas ocorre pela semelhança de forma
entre o movimento e o objeto, o animal ou a letra a ele associada. Há, ainda, semelhança por função em termos como
açoite, balão, bênção, bochecho, chibatada e martelo, relacionados à ação do movimento e não a uma semelhança física.
As metonímias referem-se aos efeitos dos movimentos que
lhes servem de denominação como asfixiante, quebra-mão
e quebra-pescoço. Nesse tipo de metonímia, a associação
com o movimento é mais clara, pois se relaciona o efeito que
provoca com o nome do movimento.
Outro tipo de associação metonímica recorrente é a parte pelo todo. Apresenta termos como banda, que relaciona
o nome ao tipo de entrada realizada no movimento (entrada
lateral), cintura desprezada, para referir-se a um movimento
cuja cintura é uma das partes do corpo envolvidas, boca-decalça, região onde se aplica o golpe. Os termos palma e ponteira demonstram as partes do corpo que têm participação
principal no movimento e, muitas vezes, o ponto em que
atinge o adversário.
Termos como negativa, vingativa e resistência, que denominam o golpe por meio de uma referência abstrata, subjetiva, mostram a intenção do capoeirista, o caráter combativo
do jogo, a negação, ou seja, a resistência à escravidão e a
vingança da opressão que subjazem aos nomes dos movimentos.
O caráter irônico, humorístico e de resistência são características do próprio estilo de vida do praticante da capoeira,
notadamente, quando esse jogo era ainda uma manifestação perseguida. Outro exemplo de ironia é o termo godeme,
que se tornou sinônimo de soco desferido pelos ingleses,
que por repetirem com freqüência a expressão “God damn
it!” (Deus amaldiçoe!), eram assim identificados pelos trabalhadores nordestinos de construção.
Segundo a antropóloga Letícia Reis (1993), em sua pesquisa Negros e brancos no jogo da capoeira: reinvenção da
tradição, a capoeira constrói o mundo invertido tanto com
seus movimentos de baixo para cima, realizados no baixo
plano, quase no chão, como pela subversão, pelo riso, pela
inversão de significado da bênção, pelo caráter de resistência
dessa cultura. A autora destaca que a capoeira resiste e passa
uma mensagem pela gramática corporal, pelos movimentos
inversos, manhosos e também por suas denominações.
Quanto à possibilidade de influência de línguas africanas
na terminologia da capoeira, com exceção das etimologias
controversas dos termos aú e gingar, termo ao qual Nei Lo-
pes atribui ao quimbundo jangala, bambolear, no Dicionário
Banto do Brasil (1995), não há qualquer evidência de que
as raízes africanas desse jogo possam ter deixado heranças
lingüísticas. Essa tendência reforça a idéia de que a capoeira
tenha se desenvolvido no Brasil e não supõe a importação
de uma luta preexistente na África.
Assim, o sistema denominativo da capoeira reflete suas
características de luta, de resistência à opressão da escravidão e do preconceito, da circularidade do jogo, da comunhão do homem com a natureza e, acima de tudo, de uma
manifestação cultural brasileira.
Referências Bibliográficas
ABREU, Plácido. Os capoeiras. Rio de Janeiro: J. Alves,
[1886?]
BURLAMAQUI, Annibal (Zuma). Gymnastica nacional (capoeiragem) methodizada e regrada. Rio de Janeiro, 1928.
FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. totalmente revisada e
ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
GUIA DO CAPOEIRA OU GYMNASTICA BRAZILEIRA. 2. ed.
Rio de Janeiro: Livraria Nacional, 1907.
LOPES, Nei. Dicionário banto do Brasil. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura, Prefeitura do Rio de Janeiro,
1995.
REIS, Letícia V. de S. Negros e brancos no jogo da capoeira:
reinvenção da tradição. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
ANJOS, Eliane D. Glossário Terminológico Ilustrado de Movimentos e Golpes da Capoeira: um estudo término-lingüístico. Dissertação (Mestrado em Letras - Filologia e Língua
Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
RUGENDAS, Johann M. (1802-1858). Viagem pitoresca através do Brasil. Tradução de. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins
Editora & Editora da Universidade de São Paulo, 1972.
Ilustrações: Reinaldo Uezima.
Eliane Dantas dos Anjos. Mestre em Letras (Filologia e
Língua Portuguesa) pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
85
A música na capoeira angola da Bahia
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(1) Negacear é o resultado do diálogo de corpos no jogo da capoeira, quando um entra, o outro
sai, um ataca e o outro defende contra-atacando. “Capoeira é defesa, ataque, é ginga no corpo,
é malandragem” .
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A música é executada especificamente para
a realização da roda de capoeira. Com a
função de ensinar e conduzir os jogadores,
obedece a uma ordem criada entre os
capoeiristas. Além das variações rítmicas
e melódicas, temos, ainda, os textos das
canções.
A música na capoeira angola
da Bahia
Os diversos timbres da bateria (é assim chamado o
grupo instrumental) apresentam-se em colorido diversificado, juntando instrumentos com variadas características:
cordofônico –berimbau; membranofônicos – pandeiro e
atabaque; idiofônicos – agogô, reco-reco e caxixi. Em algumas academias ou associações, é utilizado o apito, que
é um aerofônico.
A música é executada especificamente para a realização da roda de capoeira. Com a função de ensinar e
conduzir os jogadores, obedece a uma ordem criada entre
os capoeiristas. Além das variações rítmicas e melódicas,
temos, ainda, os textos das canções. A ladainha, que é o
canto inicial, pode ser épico ou não. Nunca se joga durante
a ladainha. Os angoleiros, acocorados ao pé do berimbau,
aguardam a chula, ou canto de entrada, quando o coro entra em diálogo com o solista, com perguntas e respostas.
Os jogadores se cumprimentam quando se inicia um corrido ou uma quadra. Toca-se uma música que alterna parte
A e parte B, coro e solista. Durante as cantigas de capoeira,
os angoleiros dançam, dialogam, geralmente em duplas.
Existe uma prática pré-estabelecida, um treinamento, mas
sempre há lugar para improvisação nos movimentos. A música também deixa lugar para criações inspiradas no jogo.
Na letra das músicas, muitas vezes expressam-se os fundamentos da arte da capoeira.
O berimbau geralmente assume a posição de “mestre”.
O tocador chama o jogador para o pé do berimbau, onde
são passadas instruções, fundamentos dessa arte. Existem
muitas músicas criadas ou recriadas recentemente, mas
sempre se cantam as tradicionais também, apresentadas
por mestres como Pastinha, Noronha, Bimba. É o berimbau
o instrumento que mais se destaca na bateria da capoeira.
Geralmente são três: gunga, médio e viola, também conhecidos como berra boi, contra-gunga e viola, entre outras
denominações. O fascinante é como esses instrumentos se
harmonizam rítmica e melodicamente, alternando e diversificando os sons, assim como os golpes no jogo.
Durante o jogo, podem ser cantados vários corridos,
de acordo com a habilidade do puxador ou cantador. Diversos corridos têm um significado específico para a realização do jogo. Por exemplo, alguns têm a finalidade de
intensificar o andamento do jogo, como Ai ai ai ai, São
Bento me chama.2 Outros são usados para aumentar o
números de golpes como: Oi ’tá cum medo Toma coragê,
ou O a o aí eu vô batê quero vê caí. As músicas podem
provocar a diminuição do andamento do movimento dos
jogadores, como: Devagâ, devagâ, devagâ devagarinho,
ou pedir para jogar em baixo, O Bujão, o Bujão, o Bujão Capoeira de Angola é rolada no chão o Bujão, para jogar bonito, Ai ai aidê, joga bonito que eu quero vê, entre outros
usos. Lembramos que os corridos são as únicas cantigas
(2) As partes sublinhadas nas letras das cantigas referem-se à parte do coro que responde ao
solista.
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Foto: Acervo Luiz Renato
usadas durante os movimentos dos jogadores de capoeira angola, pois não se joga durante uma ladainha, muito
menos na parte da chula. A dança/luta desenrola-se entre ataques e contra-ataques: o jogador esquiva-se de um
golpe, lançando outro.
Existe também a chamada de um jogador para outro, que demonstra conhecimento, fundamento, ou para
se livrar de uma jogada com resolução muito difícil, ou,
ainda, para um instante de descanso. O angoleiro que
foi chamado deve ir ao local onde se inicia o jogo (pé
do berimbau) e, então, realizar movimentos em direção a quem o chamou. Nessa chamada, os angoleiros
“dançam” à maneira de uma caminhada, quase um
movimento de tango, às vezes meio saltitado, meio encostado. Quem chamou finaliza a chamada com algum
gesto que convide o companheiro a voltar ao combate.
Cada um tem sua performance individual e os limites
são estabelecidos durante o jogo. Há também a “volta ao
mundo”3 para demonstrar malícia, conhecimento, algum
fundamento ou também para um pequeno relaxamento,
descanso. O angoleiro usa malícia, sagacidade e traição
para golpear o camarada distraído.
Durante uma roda, a música tocada pelos berimbaus
chega quase ao máximo de andamento acelerado, é a parte mais rápida; reduz um pouco e torna a aumentar ainda
mais para acabar. No final do jogo, o conteúdo das letras
nas cantigas prepara o fim da roda ou indicam que alguém
vai sair. O próprio tocador de berimbau, por exemplo, pode
assim comunicar sua retirada. Ouve-se também, do mestre
ou de um aluno avançado, o grito Iêh, no início de uma
ladainha e várias vezes durante a chula, algumas vezes nos
corridos e também para interromper ou finalizar o jogo.
Adeus Corina dam dam
Dam daram daram
Dam dam
Vou-me embora
vou-me embora
vou-me embora para Angola
É meia hora só
É meia hora
Eu já vou beleza
Eu já vou embora
Eu já vou beleza
Que chegou a hora
Iaiá vamo dá
Uma volta só
Adeus adeus
Boa viagem
(3) Na capoeira angola, dar volta ao mundo é quando o jogador caminha em círculo dentro da
roda, aparentemente estão dando um simples passeio pela roda, os jogadores podem se dar as
mãos, o que pode ser arriscado, pois, com a proximidade dos corpos fica mais fácil de se acertar
qualquer golpe, além do risco de um puxão pela mão.
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Os praticantes de capoeira, até hoje, são, em sua maioria, meninos e homens, embora não haja restrições, por
parte dos angoleiros, às mulheres que, ao contrário, são até
muito citadas nos texto das cantigas:
Capoeira é pra homem menino e mulher
Eh ê ê Salomé
Olha homem também apanha de mulé
É, é, é pra homem e mulher
Adão, Adão, Cadê Salomé Adão
Cadê Salomé Adão
Foi pra ilha passear
Nhêco, nhêco Salomé
Todo mundo te acompanha
que seu nome é Salomé
Salomé, Salomé
Dona Maria do Cambuotá
Chega na venda ela manda botá
Dona Maria do Cambuotá
Entra na roda e começa a joga
A música na capoeira angola
da Bahia
Vai você vai você
Dona Maria como vai você
Como é que passou como vai vosmecê
A duração de uma roda de capoeira geralmente varia
entre uma a duas horas. Na maioria das vezes, existe uma
seqüência de acontecimentos nas realizações da roda que
pode ser resumida da seguinte forma:
1º - Os berimbaus são armados e afinados, todos os
instrumentos musicais são colocados no local
onde ficarão os músicos e a bateria.
2º - A roda começa a ser formada, os que vão jogar
primeiro ficam nas extremidades da bateria, os
últimos ficam do lado oposto da bateria, frente a
frente.
3º - Neste momento (geralmente quando não se trata de uma apresentação pública), dá-se a transmissão de alguns dos fundamentos da capoeira.
4º - Teste para conferir afinação e harmonia entre os
músicos.4
5º - Início da música. Geralmente, o gunga começa
tocando Angola, seguido pelo médio com São
Bento Grande e o viola com Angola ou São Bento
Grande (esses são alguns nomes dos toques tradicionais no jogo de capoeira angola).
6º - Entram os pandeiros.
7º - Dois angoleiros, com mandinga, caminham para
o pé do berimbau.5
8º - Inicia-se o canto da ladainha.
9º - Passa-se para a chula, com resposta do coro, entram o atabaque, o agogô e o reco-reco.
(4) O 4º às vezes pode vir em 3º, ou mesmo nem existir.
(5) A mandinga nesse caso é expressa pelos gestos do angoleiro, como tocar no berimbau, fazer o
sinal da cruz, a estrela de Salomão, entre outros.
90
Foto: Antonio Carlos Canhada
10º - Inicia-se o canto de entrada e, depois, o primeiro
corrido. É o sinal para o início do jogo propriamente dito. O viola passa a dobrar (fazer variações), repicando mais do que mantendo o toque.
Quem mantém o toque é geralmente o gunga; o
médio normalmente inverte uma parte do toque
do gunga ou reproduz o mesmo toque. Ambos
podem dobrar os toques durante o jogo.
11º - Os dois jogadores, ao pé do berimbau, dão-se as
mãos, cada qual no seu canto, e fazem o primeiro movimento do jogo, “queda de rim”. Partem,
então, para o combate corpo-a-corpo, sem se
tocarem, usando geralmente “negativas” e “rabode-arraia,” ou outros movimentos.
12º - Desde o início da roda, os alunos estarão sob os
olhos do mestre. A correção de qualquer problema de conduta é feita por meio do conteúdo da
letra de uma música ou pela chamada do berimbau, destinada a aproximar o jogador para ser
orientado pelo tocador de berimbau.
13º - Os jogadores alternam-se quando o mestre usa
a chamada ou quando um deles resolva parar o
jogo. Dão-se as mãos ao pé do berimbau e retornam para a roda, voltando a fazer parte do coro
de vozes ou participando da bateria.
14º - Durante a roda, há sempre outras ladainhas, geralmente duas, no mínimo, e seis, no máximo.
15º - Para terminar cantam: Adeus, adeus, boa viagem.
Os músicos levantam-se, continuam a cantar,
viram-se para a direita e caminham dando uma
volta até o lugar onde estavam (a volta ao mundo), em sentido anti-horário.
16º - Depois de, no mínimo, dois minutos cantando
a cantiga Adeus, adeus, boa viagem, a qualquer
momento pode-se ouvir o grito Iêh da boca do
mestre ou de um dos tocadores de berimbau, encerrando a roda da capoeira angola. Geralmente,
o jogo é “comprado”, ou seja, quando algum capoeirista da roda entra entre os dois jogadores e
inicia um novo jogo com um deles.
91
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
No final do jogo, o conteúdo das letras nas
cantigas prepara o fim da roda ou indicam
que alguém vai sair. O próprio tocador
de berimbau, por exemplo, pode assim
comunicar sua retirada.
A música na capoeira angola
da Bahia
92
O artista plástico Carybé, também capoeirista ativo,
descreve a música da capoeira da Bahia, em 1951, da seguinte forma:
A Bahia muito contribuiu, na parte musical, introduzindo o pandeiro, o caxixi e o reco-reco,
em substituição das palmas; e o berimbau de
barriga com corda de aço, com voz mais sonora
e muito mais recursos que o de bôca. Inventou
cantigas e deu regras ao jogo que começa com
as chulas de fundamento tiradas pelo mestre:
Sinhazinha que vende aí?/ Vendo arroz do Maranhão./ Meu Sinhô mandô vendê./ Na terra de
Salomão./ O coro responde: ê, ê Aruandê Camarado/ Galo cantô/ ê, ê galo cantô Camarado/ Cocôrocô/ ê, ê cocôrocô Camarado/ Goma
de engomá/ ê, ê goma de engomá Camarado/
Ferro de matá/ ê, ê ferro de matá Camarado/ É
faca de ponta/ ê, ê faca de ponta Camarado/
Vamos embora/ ê, ê vamos embora Camarado/
Pro mundo afóra/ ê, ê pro mundo afora Camarado/ Dá volta ao mundo/ ê, ê dá volta ao mundo Camarado. Os que vão lutar, escutam as cantigas de cócoras, defronte dos berimbaus, talvez
rezando suas “rezas fortes” para livrar de bala,
de emboscada ou faca; chegam ao centro da
roda virando o corpo sobre as mãos e começam
o gingado que é ao mesmo tempo uma guarda
e um passo da dança.
Capoeira
A música na capoeira Angola da Bahia
O que Carybé designa no texto como “chula de fundamento”, na capoeira angola denomina-se, predominantemente, “ladainha”. Na capoeira regional, assim como para
alguns angoleiros, o mesmo texto é considerado “quadra”.
O trecho que segue uma chula propriamente dita é caracterizado pela resposta do coro, ou seja, o canto de entrada.
No texto de Carybé, não é apresentada a pergunta do solista, o coro entra direto com a resposta. A palavra “camarado”, grafada na citação, refere-se, provavelmente, mais ao
sentido do que à maneira como se falava: “câmara”. Porém,
esse texto não menciona os corridos. Existem outras fontes
que citam os repertórios com as suas respectivas definições e acepções.
A capoeira regional, técnica criada pelo Mestre Bimba,
tem, principalmente nesta época, muito mais proximidade
do que distanciamento com a capoeira angola, como pode
ser observado na seguinte reportagem da década de 40,
realizada por Ramagem Badaró (1980: 47-50):
Qual é o toque? - São Bento Grande Repicado,
Santa Maria, Ave Maria, Banguela, Cavalaria, Calambolô, Tira-de-lá-bota-cá, Idalina ou Conceição da Praia? - Bimba pensou rapidamente e
disse: - Toque Amazonas e depois Banguela. Os
berimbaus começaram a tocar. O crioulo aproximou-se e Mestre Bimba apertou-lhe a mão. E
o povo começou a acompanhar o tin-tin-tin dos
berimbaus, batendo palmas. Bimba balanceou
o corpo e cantou: “No dia que eu amanheço,
Dentro de Itabaianinha, Homem não monta cavalo, Nem mulher deita galinha, As freiras que
estão rezando, Se esquecem da ladainha”. Mas
o crioulo não ficou atrás e cantou, negaceando
o corpo no compasso dos berimbaus. “A iúna
é mandingueira, Quando está no bebedor, Foi
sabida e é ligeira, Mas capoeira matou”. Palmas
festejaram o repente do crioulo. Porém, Bimba
não deu tréguas à vitória do outro. E respondeu:
“Oração de braço forte, Oração de São Mateus,
P’ro Cemitério vão os ossos, Os seus ossos não
os meus”. Novamente o Povo aplaudiu e cantou o estribilho da capoeira: “Zum, zum, zum,
zum, Capoeira mata um, Zum, zum, zum, zum,
No terreiro fica um”. O crioulo, entretanto, não
deixou cair a quadra de Mestre Bimba e replicou:
“E eu nasci no sábado, No domingo me criei, E
na segunda-feira, A capoeira joguei”. A multidão
deu vivas e bateu palmas para os dois lutadores no centro do círculo. Uma preta comentou:
- Bom menino! Se é bom na briga como é no
canto, boa parada para Bimba. […] Tinha vencido a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindo
o rei da capoeira. Bimba abraçou o adversário.
E o crioulo mostrou que era homem mesmo.
Cantou: “Santo Antônio pequenino, Amansador
de burro brabo, Amansai-me em capoeira, Com
setenta mil diabos”. Bimba gostou do elogio e
retribuiu, cantando: “Eu conheci um camarada,
Que quando nós andarmos juntos, Não vai haver cemitérios, Pra caber tantos defuntos”.
Esses “duelos musicais”, como expressão de uma “etiqueta ou até ética capoeirista”, com “adversários cantantes”,
embora cada dia mais raros na capoeira, aproximam essa arte
de outras manifestações da cultura popular brasileira, como
contendas musicais, desafios de cantadores e cururus.
Os grupos de capoeira angola, por via de regra, dizem
obedecer aos ensinamentos da escola de Mestre Pastinha,
chamando o conjunto de instrumentos da capoeira de bateria. Como já se disse, os três berimbaus começam a tocar,
um de cada vez, seguidos pelo pandeiro e juntando-se os
demais instrumentos, reco-reco, agogô e atabaque, no final
da ladainha.
Foto: Delfim Martins/Pulsar Imagens
93
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
No berimbau, combinam-se os três sons
básicos do instrumento às variações
do volume e do timbre, os quais são
regulados pelo controle da posição
e do distanciamento da abertura da
cabaça em relação à região abdominal
do instrumentista e da intensidade da
percussão da vareta.
A música na capoeira angola
da Bahia
A capoeira, geralmente, é jogada com o acompanhamento do berimbau. Os padrões rítmico-melódicos produzidos por esse instrumento são chamados pelos capoeiristas de toques. Esses toques consistem basicamente em
combinações rítmicas e variações de timbre nos três sons
distintos do instrumento: 1 - o mais agudo, executado pela
percussão da vareta na corda do berimbau tencionada pelo
dobrão; 2 - menos agudo, no qual o dobrão fica sobre a
corda, sem tencioná-la; 3 - o mais grave, executado com a
percussão da vareta na corda solta do berimbau.
No berimbau, combinam-se os três sons básicos do instrumento às variações do volume e do timbre, os quais são
regulados pelo controle da posição e do distanciamento
da abertura da cabaça em relação à região abdominal do
instrumentista e da intensidade da percussão da vareta.
Todos os ensinamentos da capoeira angola são transmitidos oralmente e captados pela observação, ensaio e
erro, correções e repetidas demonstrações dos mestres
para os aprendizes. Todo aluno é respeitado no seu desenvolvimento individual, mas é muito comum o mestre insistir
com todos os aprendizes, expressando-se principalmente
pelas cantigas ao “improvisar,” durante as partes do solista,
frases como: O atabaque atravessou (saiu do tempo, por
acelerar ou retardar). Quero ouvir o reco-reco (ou outro
nome de instrumento que esteja sendo tocado com pouca atenção, ou pouco intenso, volume baixo). Quero ouvir
vocês cantar (direcionado para todos os membros do coro
da capoeira).
Durante a roda, geralmente é o mestre quem delibera
quais as pessoas que sentarão nos bancos da bateria e que
instrumentos elas tocarão. Podem ocorrer substituições
voluntárias, com a ausência do mestre ou a convite deste, conforme o desempenho do instrumentista, que pode
passar ou não de um instrumento para outro, considerado
mais fácil ou mais difícil.
Geralmente, começa-se o aprendizado dos instrumentos tocando-se reco-reco, depois agogô, pandeiro ou
atabaque e, por fim, o berimbau. Existem aprendizes que
só tocam reco-reco e agogô. Outros tocam até berimbau,
mas não atabaque. Há quem toque o atabaque e os demais instrumentos da bateria, mas raramente o berimbau.
Quando o angoleiro já conhece todos os instrumentos, ele
mesmo é quem escolhe qual tocará e não lhe será exigido
que toque mais de um. Aparentemente, isso ocorre tanto
na capoeira angola quanto na regional. Muitos capoeiristas
só tocam berimbau. Carybé, por exemplo, só tocava pandeiro. O que mais ajuda no processo de aprendizagem do
angoleiro é a observação.
Devo ressaltar que, na capoeira, todos aprendem a jogar, a tocar todos os instrumentos e a cantar, mesmo que
depois sejam desenvolvidas capacidades específicas na
escolha preferencial dos instrumentos, além do reconhecimento daqueles que têm dom para a criação e apresentação das ladainhas no começo da rodas.
94
Capoeira
A música na capoeira Angola da Bahia
O repertório musical da capoeira transita entre o samba-de-roda e alguns cantos que se aproximam de cantos
de trabalho. Existem também o uso do repertório tradicional do candomblé de caboclo e, alguns casos, até música
de candomblé de orixás.
Atualmente, a capoeira, principalmente sua música, ajuda a difusão da língua portuguesa, especificamente a falada
na Bahia. Além disso, essa expressão cultural catalisadora
e estimulante dos movimentos corporais dos jogadores é
holística na sua visão de integração, mas é brasileira, mostrando, na música, sua principal força criativa.
KOSTER, Henry. Travels in Brasil. 2 ed. 2 v. London: Longman, Hurst, rees, orne, and Brown, Paternoster-Row, 1817.
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Ricardo Pamfilio de Sousa. Mestre em Etnomusicologia pela UFBA, 1997 “A música na capoeira angola.” Membro da Fundação Pierre Verger, responsável pela cultura
digital no projeto Ponto de Cultura Pierre Verger no Centro
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DEBRET, Jean-Batiste. Voyage pittoresque et historique au
Brésil, ou Séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816
jusqu’en 1831 inclusivament. Edição Comemorativa do IV
Centenário da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro,
1965. Rio de Janeiro: Distribuidora Record; New York: Continental News. Fac-simile da edição original de Firmin Didot
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Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1974
95
A mulher na capoeira
Lilia Benvenuti de Menezes
Algumas das grandes referências femininas de força, garra, coragem e segurança retratadas na
história remetem-nos à década de 1940, quando se destacaram as famosas “Maria 12 Homens”,
“Calça Rala”, “Satanás”, “Nega Didi” e “Maria Pára o Bonde”, mulheres que se fizeram passar por homens para poderem conviver no meio da malandragem das rodas da capoeira. Personagens lendárias como Rosa Palmeirão, a capoeirista que serviu de inspiração para Jorge Amado no romance
Mar Morto, é também um desses exemplos. Respeitada e temida como a mulher mais “arretada”
que sacudiu o cenário dominado pelas figuras masculinas, era Maria 12 Homens, uma capoeirista,
assídua freqüentadora das rodas do Cais Dourado e da rampa do Mercado Modelo. O sobrenome
de Maria, não está registrado na memória de Salvador, mas o apelido, segundo a lenda, foi pelo fato
de ter conseguido levar 12 marmanjos a nocaute. Acima de tudo, essas mulheres fizeram o nome
na história e buscaram seu espaço com muita astúcia e malícia. Em busca de liberdade, conseguiram sair vitoriosas, deixando seu registro para a posteridade.
Há vários mitos em torno de mulheres que fizeram de sua honra uma batalha de vida, tornando-se modelos de coragem e de determinação. Conta-se, por exemplo, que Aqualtune, filha do
rei do Congo, comandou um grande exército de dez mil homens quando os Jagas invadiram seu
território. Após tentar defender o reinado, acabou
cabou sendo derrotada e
levada para um navio negreiro como escrava
va reprodutora. Foi obrigada a ter relações sexuais com um escravo,
vo, desembarcando
em Recife grávida. No fim de sua gravidez, organizou uma
fuga com outros escravos para Palmares.
Atualmente, as mulheres, símbolo de vitória
tória e orgulho, vêm alcançando, cada vez mais, posições
es de destaque na política e no mercado, com melhores
es funções e
diversos cargos importantes. Também no esporte,
sporte, a mulher tem conquistado muitas medalhas, troféus
oféus e títulos.
Na capoeira, como não poderia deixar de ser,
er, a participação
feminina tem sido cada vez mais freqüente,
e, ajudando a fortalecer a modalidade. Ela toca, canta, joga, ministra
nistra aulas e participa
de debates com muitos dos renomados mestres
estres da arte. Maria 12
Homens, Calça Rala, Satanás, Nega Didi, Maria
ria Pára o Bonde e Rosa
Palmeirão, onde quer que estejam, têm muitos
tos motivos para
se ufanarem.
cação Física,
Lilia Benvenuti de Menezes. Professora de Educação
professora do Grupo Muzenza e bicampeã mundial pela Super
Liga Brasileira de Capoeira. Autora do livro “Benefícioss Psicofisiológicos da Capoeira”.
Fotos: Marc Ferrez
Entrevista
Senhora Rosângela C. Araújo
(Mestra Janja)
TB: A capoeira é apontada por muitos especialistas como
uma das mais autênticas manifestações culturais brasileiras. Em sua opinião, quais características da capoeira
são reveladoras da idiossincrasia brasileira?
Rosângela Costa Araújo, a Mestra Janja, é uma das
personagens mais conhecidas no mundo da capoeiragem. Formada em História pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e Doutora em Educação
pela Universidade de São Paulo (USP), dedicou mais
de vinte anos de sua vida à capoeira, seja em sua
vertente acadêmica, seja na prática do quotidiano.
Nesta entrevista concedida à revista “Textos do
Brasil”, Mestra Janja emite suas opiniões a respeito
da inserção da mulher no mundo da capoeira, das
transformações ocorridas nessa área nos últimos
anos e dos desafios e perspectivas que a capoeira
terá pela frente.
Janja: Gostaria, inicialmente, de tratar a capoeira como uma
manifestação cultural afro-brasileira. Isso é muito importante
para mim, uma vez que considero fundamental não prosseguirmos pensando o Brasil sem as suas “africanidades”. A
partir daqui, entendo que a capoeira é uma arte reveladora
do jeito de ser do brasileiro, desenvolvendo formas criativas
de ser relacionar com realidades muitas vezes violentas.
É assim que o “gingar”, mais que um movimento específico
da capoeira, se converteu numa habilidade de vivenciar e enfrentar as adversidades, mimetizando luta e dança, e transformando estereótipos negativos em alegrias comunitárias.
TB: A senhora possui uma trajetória de mais de vinte anos dedicados ao mundo da capoeira. Nesse
período, quais foram as principais transformações
que a senhora notou em relação à capoeira?
Janja: Sim, estou na capoeiragem há cerca de vinte e cinco anos e, felizmente, em condições de conhecer alguns dos
seus desdobramentos em vários estados brasileiros e também
em vários países. O que mais me impressiona é a mudança
que caracteriza as novas formas de convivências entre os
grupos e, principalmente, entre os mestres. A possibilidade de
realizarem atividades conjuntas, dialogando com diferentes
públicos ou mesmo com os poderes públicos, ainda que não
elimine antigas desconfianças, estabelece diferentes modelos
de convivência. A crescente presença da mulher é também
um importante fenômeno a ser apresentado e discutido.
TB: Em diversos setores da vida civil, as mulheres conseguiram conquistar significativo espaço que lhes
era cerceado até meados do século XX. Quais são os
progressos que a senhora destacaria no que se refere
à participação da mulher nas rodas de capoeira?
Janja: Começo afirmando que, antes de chegar às rodas de
capoeira, a mulher enfrenta caminhos diferenciados para se
tornar e se fazer reconhecer capoeirista.
Não é novidade para ninguém que a capoeira deixou de ser
algo específico de homens, se é quem algum dia o foi. Hoje
há organizações de capoeira fundadas e lideradas por mulheres, ou mesmo grupos, sobretudo no exterior, em que as
mulheres constituem a maioria dos praticantes. Entretanto,
ainda lidamos com um grande desequilíbrio de representatividade quando pensamos no reduzido número de mulheres que são promovidas pelo sistema de graduação. Temos
visto grupos, com base em certas “tradições” por eles criadas, dizerem que as mulheres não podem tocar o gunga
ou “puxar” uma ladainha, mesmo que esse conhecimento
lhes seja exigido no dia-a-dia dos treinamentos e demais
aprendizados da capoeira.
Mestre Janja
Sendo a roda de capoeira o espaço
de apresentação da identidade, força
e competência dos grupos, ao contrário do exercício da autonomia, as
mulheres vivenciam situações diversas de opressão e violência, concreta
e simbólica, levando-as à formação
de vários coletivos, em diferentes países, que atuam estimulando debates
e constituindo redes de aprendizado
e de solidariedades distintas. Nesse
sentido, temos que entender a capoeira em permanente diálogo com a
sociedade a seu redor, como sendo
a “pequena roda” inserida na “grande
roda”, e que as lutas das mulheres na
sociedade como um todo também
são refeitas na capoeiragem.
TB: Quais são os obstáculos que
ainda devem ser vencidos pelas
mulheres na capoeira?
Janja: Talvez seja este um bom momento para invertermos o prisma desta questão, perguntando: quais são os obstáculos
que precisam ser vencidos pela capoeira
para integrar de maneira respeitosa e
qualificada a presença da mulher?
Assim, podemos levar em consideração dois temas relevantes: a diversidade e a construção do direito à eqüidade. Esse é um desafio que a capoeira
deve assumir, levando em conta que
a presença feminina vai desde o de-
senvolvimento dos conhecimentos
que definem as exigências específicas,
como movimentos, toques, cantos,
história e filosofia da capoeira, etc., até
a sua inquestionável capacidade de
organizar e conduzir grupos, considerados sob o aspecto de organizações
culturais, educacionais e políticas, tanto no interior da capoeiragem quanto
nos debates com os movimentos sociais mais amplos.
Entretanto, para avançarmos, é necessário entender que a capoeira precisa
incorporar novos olhares sobre sua
diversidade estética. Da mesma forma
que entre os grupos tradicionalmente
conduzidos por homens existe uma
diversidade estética muito acentuada,
para definir e indicar a identidade de
cada grupo, de cada mestre, também
é assim que as mulheres buscam ser
valorizadas, compondo um novo cenário, e não necessariamente reproduzir conceitos (inclusive corporais) que
não representam códigos femininos.
TB: É comum escutar que a formação do aluno de capoeira deve
ser global, isto é, abranger não
apenas seus elementos técnicos
e físicos, mas também sua formação moral e ética. Quais são os
valores que a capoeira pode desenvolver em seus praticantes?
Janja: Primeiro a capoeira deve ser
apresentada à pessoa que busca ser
iniciada na sua prática. Isso porque sendo a capoeira uma prática comunitária
(estou falando da capoeira angola), seus
aspectos históricos e filosóficos são necessários na formação da identidade
do grupo. Os seja, um bom começo é
situar tanto o grupo como a pessoa na
sua rede de pertencimento.
A partir daí, valores como hierarquia,
ancestralidade, cooperação, respeito
às diferenças, etc. passam a ser encarados como valores que situa a pessoa
na própria comunidade. Aqui, é importante reafirmar o caráter formador da
capoeira, fazendo do ser capoeirista
algo que reúne, além de habilidades
corporais, musicais, uma conduta que
atesta os conhecimentos orientados
em seu grupo.
TB: A capoeira tem sido utilizada exitosamente como meio de
inclusão e coesão social. Quais
são as características da capoeira que lhe permitem essa
utilização? Quais as principais
iniciativas nesse sentido que a
senhora destacaria como mais
significativas?
Janja: Sim, a capoeira tem cumprido
um importante papel na formação de
comunidades culturais, sobretudo entre crianças e jovens residentes nas
periferias dos centros urbanos. Além
de produzir variados níveis de atração e
envolvimento, trata-se de uma atividade
que tem contado com a dedicação e iniciativa de pessoas envolvidas com a sua
preservação e difusão.
Felizmente, vivemos hoje uma realidade em que o poder público, a partir
de iniciativas do governo federal, tem
reconhecido a importância social da
capoeira por meio de programas, editais e registros, fazendo com que grupos e associações situados em lugares
mais distantes dos eixos de dominância cultural tenham os seus trabalhos
divulgados entre a comunidade de
capoeiristas mais ampla. Entre essas
iniciativas podemos destacar o registro, em curso, de reconhecimento da
capoeira como patrimônio imaterial,
orientado pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – IPHAN;
os programas Cultura Viva, Pontos de
Cultura, Capoeira Viva, entre outros sediados no Ministério da Cultura – MinC;
e a construção de políticas públicas em
algumas prefeituras brasileiras. No exterior, podemos citar, além da proposta
do Programa Mundial de Capoeira do
MinC, ações de mestres e grupos que,
em diversos países, vão estreitando
vínculos com os sistemas de ensino e
vários espaços culturais.
TB: Do seu ponto de vista, quais
são as virtudes que um bom capoeirista deve possuir?
Janja: Ginga, capacidade de ser flexível também na “grande roda”. Abertura para se manter em formação.
Responsabilidade na escolha dos ensi-
namentos, visando à sua formação integral como capoeirista. Exercício permanente da tolerância e acolhimento.
Respeito às diferenças.
TB: A senhora defendeu, em 2004,
sua tese de doutoramento a respeito da capoeira. Não obstante,
até pouco tempo, muitos capoeiristas viam com desconfiança
as pesquisas do meio acadêmico, pois acreditavam que valores
distintos regiam o universo da
capoeira e o da academia. Como
está essa relação atualmente?
Janja: Não creio que esta desconfiança
seja uma especificidade dos capoeiristas. Também aqueles que são iniciados
em outras tradições de matrizes africanas, como o candomblé, só se abrem
para aceitar muitos dos estudos acadêmicos após fazerem parte desse meio.
Assim, é possível encontrarmos, hoje,
em muitos grupos de capoeira, no Brasil e no exterior, a presença de pesquisadores, acadêmicos ou não, realizando
pesquisas e publicações importantíssimas para a capoeira. Aqui, gostaria de
destacar, também, a existência de grupos formados por pesquisadores da capoeira que mesclam esse perfil: o Grupo de Estudos da Capoeira – GECA, de
abrangência nacional, que reúne uma
grande maioria de capoeiristas, sendo
alguns inseridos em programas de pósgraduação e outros que são docentes
de instituições universitárias; e o Grupo
de Estudos Mestre Noronha, projeto do
Instituto Jair Moura, em Salvador.
TB: Existem diversas vertentes
no universo da capoeira. A senhora acredita que essa diversidade pode ser considerada como
um fator revelador da complexidade cultural da capoeira e, logo,
da cultura brasileira?
Janja: Sim, sem dúvida, e talvez seja
esta também a sua maior riqueza na
atualidade. É necessária a composição de distintos quadros de referências para se dar conta das muitas
possibilidades de abordagens que a
capoeira atua.
Entretanto, devemo-nos manter preocupados com certos hibridismos
que descaracterizam a capoeira. Em
lugar de preocuparmo-nos em ficar
inventando nomes para novas marcas e seus subseqüentes patenteamentos, deveríamos empenhar-nos
em revelar, nas complexidades da
própria capoeira, as suas inúmeras
possibilidades de atuação e de colaboração com áreas afins (artes, saúde, educação, direito, etc.).
TB: A capoeira tem se tornado
uma atividade muito popular em
todos os continentes. Em sua opinião, a que se deve esse sucesso?
Como a senhora avalia essa internacionalização da capoeira?
Janja: Acho que a capoeira mantém
atualizada a alma pela juventude.
Ela produz campos individuais e coletivos de expressão que são muito
atraentes por sua plasticidade, musicalidade e demais aspectos de
formação grupal. Isso tem sido evidenciado na medida em que crianças, jovens e adultos de diferentes
origens, culturas, classes sociais se
entregam aos seus ensinamentos,
buscando reconhecer suas redes
de pertencimento, cujas matrizes se
encontram no Brasil, e criando um
fantástico mosaico humano capaz
de reunir pessoas que muitas vezes
estariam separadas pelas desigualdades e conflitos com que várias
dessas diferenças são tratadas no
contexto político mundial.
Por outro lado, é importante que
esses novos capoeiristas reflitam
e reconheçam o sentido histórico e político da capoeira para que
ela não ganhe novos contornos de
folclorização ou seja entendida por
processos de simplificação esportiva. Afinal, não é a maioria dos capoeiristas que querem ver a capoeira
convertida num esporte olímpico.
Da mesma forma, a capoeira devese manter atrelada ao seu passado
como forma de garantir a sua permanência no quadro das lutas dos
povos negros no Brasil, pela conquista da liberdade.
TB: Quais os estereótipos que a
capoeira e os capoeiristas ainda
enfrentam atualmente?
Janja: Acho que tem estereótipos
que devem ser encarados tanto pela
sociedade quanto pelos poderes públicos. A sociedade brasileira precisa
reconhecer e nomear suas africanidades como sendo um aspecto central
na construção da sua identidade nacional, e os poderes públicos devem
assegurar procedimentos necessários
a esse reconhecimento, seja por meio
de revisões nos conteúdos de livros didáticos e demais produções literárias,
seja incentivando, inclusive, iniciativas
que desenvolvam trabalhos qualificados para essas novas formações.
TB: Quais os desafios que a prática da capoeira enfrenta no mundo contemporâneo?
Janja: Desarmar-se de nacionalismos,
culturalismos e demais formas de intolerância que alimentam racismos,
sexismos e xenofobias. Impedir que
sejam transferidas para dentro da capoeiragem as violências políticas que
buscamos eliminar na “grande roda”.
Manter-se promovendo a construção
da liberdade e da eqüidade e, à despeito da sua inserção mundial, refletir
seus processos de massificação.
As relações entre a capoeira e a educação
física no decorrer do século XX
Paula Cristina da Costa Silva
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(1) Volta do mundo é parte de um verso cantado na ladainha, de abertura de um jogo de capoeira.
Esse termo pode ser traduzido como uma senha para o início da movimentação corporal do
jogo e significa também, no mundo capoeirístico, as diversas possibilidades de jogadas a serem
desenroladas durante a roda de capoeira. Alguns autores, como Letícia V. S. Reis (1997), traçam
um paralelo da roda de capoeira aos acontecimentos da vida cotidiana, daí a expressão voltas
do mundo também significar tudo o que é produzido pelos seres humanos no decorrer de
suas histórias.
(2) Neste texto utilizarei o termo Educação Física com as iniciais maiúsculas para designar a área de
conhecimento e educação física com as iniciais minúsculas para tratar da disciplina pedagógica
responsável pela pedagogização dos temas da cultura corporal.
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
As inter-relações entre a capoeira e a
Educação Física iniciaram-se no começo
do século XX, quando não só autores
da Educação Física, mas também da
Educação e das Forças Armadas buscaram
mecanismos para incorporar a capoeira ao
esporte, em plena ascensão no período, e
adaptá-la aos métodos ginásticos.
As relações entre a capoeira
e a educação física
no decorrer do século XX
Esta análise foi construída a partir do meu trabalho de
mestrado, no campo da Educação Física, orientada pelo
Prof. Dr. Lino Castellani Filho, no qual me propus compreender como os estudiosos dessa área de conhecimento se
apropriaram da prática social capoeira e dos estudos derivados desse tema. A partir deste ponto principal, surgiram
outros três questionamentos que complementaram a análise, foram eles: qual a história da prática social capoeira; se
seu percurso histórico corre paralelamente ao da Educação
Física, se se intercruzam em algum lugar e em qual momento; e qual é o entendimento que o segmento vinculado
ao espaço de configuração da regulamentação da profissão
de Educação Física possui, tanto da própria Educação Física
quanto da capoeira, para justificar a subordinação da ação
profissional no âmbito da capoeira aos Conselhos Federal e
Regionais de Educação Física.
Na busca de respostas a essas indagações, foi realizado um estudo bibliográfico referente à capoeira nas áreas
de Educação Física, História, Antropologia e Sociologia, e
também daquelas pertencentes ao mundo capoeirístico3.
Procurou-se complementar o material analisado com dados de fontes bibliográficas originárias de revistas publicadas nos últimos 20 anos que tratam desse tema.
Pude apreender que a história da prática social capoeira
permeou todos os debates desenvolvidos, uma vez que ela
serviu de pano de fundo para a compreensão do desenvolvimento dessa manifestação cultural na sociedade brasileira. E foi a partir da retomada de seu percurso histórico
que pude traçar os paralelos existentes entre a capoeira e
a Educação Física.
Primeiramente, é importante mencionar que a capoeira
tem sua origem ligada aos negros escravos que foram trazidos ao Brasil e que forjaram, a partir do século XVI, várias
manifestações em solo brasileiro: o candomblé, o samba,
a congada, o maracatu, entre outras. A capoeira destacase das demais devido à sua grande expansão nos últimos
anos, alcançando países nos cinco continentes do mundo.
Essa manifestação pode ser considerada como um misto
de luta, dança, brincadeira, teatralização, jogo, esporte.
Conforme pude constatar, as inter-relações entre a
capoeira e a Educação Física iniciaram-se no começo do
século XX, quando não só autores da Educação Física, mas
também da Educação e das Forças Armadas buscaram mecanismos para incorporar a capoeira ao esporte, em plena
ascensão no período, e adaptá-la aos métodos ginásticos4
A idéia principal desenvolvida por esses autores, inclusive
(3) Compreendo como mundo capoeirístico tudo o que é produzido pelos mestres, professores e
praticantes da capoeira fora do âmbito acadêmico.
(4) A implantação da educação física no Brasil é diretamente ligada aos métodos ginásticos
europeus que ganharam força no País a partir do início do século XX. A finalidade desses, assim
como em seus países de origem, era disciplinar os corpos, objetivando o fortalecimento da
população para a produção nas fábricas e desenvolver um plano higienista, sem a preocupação
com o desenvolvimento de políticas sociais de saneamento básico e atendimento médico. Para
se obter mais informações sobre os métodos ginásticos no Brasil consultem as obras Educação
Física: raízes européias e Brasil, de Carmem Lúcia Soares, 1994 e Educação Física no Brasil: a
história que não se conta, de Lino Castellani Filho, 2000.
104
Foto: Ricardo Azoury/Pulsar Imagens
sendo alguns deles praticantes da capoeira, era a de tornála uma modalidade esportiva ou uma luta de defesa pessoal que representasse a nação brasileira, daí a exaltação de
sua brasilidade.
Dessa forma, pautados em um discurso nacionalista e
aderindo à política higienista, em voga no início do século
XX, propuseram sua prática destituída dos valores herdados de suas origens negra e popular5. No entanto, nota-se
uma oportunidade de aproximação de duas camadas díspares da sociedade, a classe abastada, representada pelos
autores citados, e a classe pobre, representada pelos exescravos e trabalhadores. Isso porque o discurso de “disciplinarização” da capoeira passa a servir, em certa medida,
para a sua revalorização pela camada dominada, uma vez
que sua prática em locais públicos havia sido proibida pelo
Código Penal de 1890.
Nesse sentido surgem ações, requerendo para ambas
as partes a legitimidade da capoeira como uma prática nacional, porém divergindo completamente na forma como
propunham sua manifestação. De um lado, tínhamos a ordenação da capoeira com o Método Zuma, que sugeria sua
prática baseada no esporte – principalmente, nos moldes
do boxe – e que era apoiada pela classe abastada. E, do
outro lado, a manutenção de sua prática no interior da camada subalterna por meio das manifestações oriundas da
população negra, como as festas de fundo de quintal e de
largo. Mas, até esse momento, a inter-relação entre a educação física e a capoeira não se manifestava de forma clara
e contundente.
Foi em 1945, com o professor Inezil Penna Marinho,
que se concretizaram, de forma mais evidente, os primeiros passos em direção à apropriação e a busca de um novo
significado para a capoeira por meio da educação física, visando desenvolver uma metodologia para o treinamento
da capoeiragem baseada no Método Zuma. É interessante
apontar que esse processo ocorreu paralelamente ao da
legalização dessa manifestação cultural no período do Estado Novo, década de 1930, demonstrando, novamente, a
luta dos representantes de classes sociais divergentes pela
apropriação da capoeira. No entanto, o resultado dessa luta
foi favorável à proposta advinda dos mestres e praticantes
da capoeira, pautados em sua origem negra e popular, notadamente os representantes da classe subalterna de Salvador (Bahia), em detrimento daquela do professor Inezil.
Mas, apesar disso, é inegável a influência da educação física
e esporte na configuração da capoeira adotada, hegemoni(5) O termo negro e popular refere-se ao modo pelo qual a capoeira é pensada e praticada a
partir de sua concepção como uma manifestação ambígua originária das tradições africanas
no Brasil. Já o termo branco e erudito é usado para designá-la a partir de uma concepção ligada
ao seu enquadramento como método ginástico brasileiro, luta de defesa nacional ou esporte
legitimamente brasileiro. Estes termos foram forjados e discutidos com maior profundidade por
Letícia V. S. Reis, em seu livro O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil, de 1997.
105
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Portanto, considera-se que a primeira
inter-relação concreta entre a Capoeira e
a Educação Física se deu no sentido dos
praticantes de capoeira apropriarem-se
do prestígio da Educação Física da época
para firmarem suas idéias referentes a essa
manifestação cultural.
As relações entre a capoeira
e a educação física
no decorrer do século XX
camente, a partir das idéias dos mestres baianos. De acordo com as análises das obras de Frederico José de Abreu7 e
de Antônio Liberac C. S. Pires8, pode-se constatar que foi a
partir da estrutura esportiva que os mestres e praticantes da
capoeira primeiro demonstraram a possibilidade dessa manifestação integrar o rol de modalidades esportivas – participação da capoeira nas lutas de ringue – e, depois, passaram
a organizar os treinamentos e aulas, servindo-se do prestígio
da educação física, na década de 1930, para posteriormente
apontar a capoeira como a Educação Física do Brasil.
Portanto, considera-se que a primeira inter-relação
concreta entre a Capoeira e a Educação Física se deu no
sentido dos praticantes de capoeira apropriarem-se do
prestígio da Educação Física da época para firmarem suas
idéias referentes a essa manifestação cultural. É interessante mencionar que os mestres soteropolitanos realizaram interpretações próprias sobre a Educação Física e o esporte,
relacionando-os com a prática da capoeira, como podemos
notar nas palavras de mestre Pastinha9: “[...] com franqueza,
já é tempo de zelar pelo esporte. O propósito meu não era
fazer-me melhor que os camaradas, sim valorizar o esporte”10. Ou nas explicações de mestre Bimba, para legitimar
seu método de ensino: “Tenho na parede uma autorização
da Secretaria de Educação. Sou professor de cultura física. Ninguém pode mexer comigo”11. Assim, jogando com
os interesses governamentais e defendendo a prática da
capoeira de forma democrática12, vemos vingar, a partir da
década de 1930, a pedagogia popular13 para o ensino dessa manifestação cultural.
Ao mesmo tempo em que os mestres se utilizaram
da cultura erudita – representada, nesse caso, pelo esporte e pela educação física –, eles a remodelaram de
acordo com seus interesses. Dessa maneira, eles reinventaram sua tradição e consolidaram o discurso da capoeira
como legítima contribuição da Bahia e do negro baiano
na cultura nacional. Percebemos que, com a supremacia
desse discurso, ocorreu a valorização da capoeira como
uma manifestação cultural ampla, sem a negação de sua
origem africana e sem sua restrição a uma modalidade
esportiva ou luta de defesa pessoal. Notamos que os mestres baianos potencializaram o caráter ambíguo da capoeira e, conseqüentemente, de sua prática, pois não recu(7) ABREU, Frederico José de. Bimba é bamba: a capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair Moura,
1999.
(8) PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura afro-brasileira: a formação
histórica da capoeira contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutorado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH), Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
(9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba,
foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol de
atividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimento
pela sociedade brasileira, a partir da década de 1930.
(10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282
(11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30.
(12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra
homem, menino e muié. Só não joga quem não qué”.
(13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entre
uma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominada
erudita emanada da área de Educação Física e influenciada pelo sistema social hegemônico
da época.
106
Capoeira
As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX
Foto: Paula Cristina
saram sua configuração esportiva e reforçaram, em seu
discurso, sua ambigüidade, definindo-a como luta, dança,
música, defesa pessoal, filosofia de vida, etc.
Entretanto, apesar de termos como vencedora a pedagogia popular para o ensino da capoeira nesse primeiro jogo entre a capoeira e a Educação Física, não tardou muito para que
novas propostas emergissem, pleiteando sua inserção no rol
de modalidades esportivas ou de lutas de defesa pessoal.
Uma dessas propostas surgiu da parceria entre a educação física e as Forças Armadas – parceria por sinal muito
recorrente ao longo do século XX. Na década de 1960, o
Primeiro-Tenente Lamartine Pereira da Costa foi a segunda
pessoa ligada à Educação Física a propor a incorporação
da capoeira como um método de defesa pessoal, tendo
sido Fernando de Azevedo, em sua obra Da Educação Física: o que ela é, o que tem sido e o que deveria ser (seguido de Antinoüs), o primeiro estudioso a fazer isso. Em sua
proposta, Lamartine Pereira da Costa sugeria a incorporação da capoeira no treinamento dos soldados da Marinha,
como uma forma de preparação para possíveis lutas. Dessa
sua iniciativa nasceu o livro Capoeira sem mestre, de sua
autoria, no qual se nota claramente o desejo de colocar
em xeque a competência dos velhos mestres de capoeira.
Entretanto, essas idéias não se concretizaram, sendo que,
mais uma vez, não passou de uma tentativa frustrada da
educação física de se apropriar da capoeira.
No entanto, ocorreram mudanças na sociedade brasileira, nas décadas de 1960 e 1970, com a chegada dos
militares ao poder, com o golpe de Estado de 1964. Dentre
os vários acontecimentos desencadeados naquela época, houve a utilização da educação física como válvula de
escape para possíveis “transgressões” no âmbito político
por meio, principalmente, da valorização dos movimentos
esportivos, processo discutido por Lino Castellani Filho, na
obra Educação Física no Brasil: a história que não se conta. Nesse caso, foi constatada nova inter-relação entre a
educação física e a capoeira a partir do fortalecimento do
fenômeno da esportivização no interior da capoeira, acompanhando as mudanças que ocorriam na educação física.
Foi a partir da década de 1970 que houve a ocorrência
mais nítida do movimento de esportivização da capoeira,
com a sua incorporação como modalidade esportiva na
Confederação Brasileira de Pugilismo e da organização dos
capoeiristas em grupos. O mestre de capoeira ainda permanecia como a figura central na hierarquia organizacional
dos grupos, mas, nesse momento, há a entrada no jogo de
novas regras para a capoeira, muito próximas a de outras
modalidades esportivas.
Pode-se dizer, portanto, que, naquele momento histórico, prevaleceu a influência esportiva na capoeira e, conseqüentemente, as influências da educação física, que se
encontrava estreitamente ligada ao fenômeno esportivo.
Mas essa primeira vitória da educação física no jogo não se
mostrou de forma definitiva e plena. Ao contrário, os vários
grupos organizados de capoeira não acolheram homogeneamente a idéia de torná-la uma modalidade esportiva
vinculada à Confederação Brasileira de Pugilismo. Os capoeiristas divergiram em vários âmbitos com relação à transformação da capoeira em manifestação única, configurada
por meio de uma modalidade esportiva. Assim, considera-se
esse fato como um momento chave para se compreender
os desdobramentos ocorridos nessa manifestação cultural,
pois das divergências existentes entre os diferentes grupos
é que foi possível o surgimento de propostas inovadoras
que influenciaram, anos depois, vários estudiosos de diferentes áreas para o repensar da capoeira em nossa sociedade. Um exemplo disso foi o movimento de contestação
da Capoeira Esporte, que fez ressurgir com força as idéias
de mestre Pastinha e a sua proposta da capoeira angola14.
Assim, o movimento desencadeado pelos grupos de
capoeira, organizados de diferentes formas, transgredindo
abertamente as regras estabelecidas pela Confederação
Brasileira de Pugilismo, trouxe ao cenário do jogo a possibilidade de se estabelecer uma inter-relação diferenciada entre a educação física e a capoeira. Mas não se pode
esquecer que, apesar disso, as relações apresentavam-se,
no decorrer dos anos, muito mais complexas, porque ao
mesmo tempo em que havia essa nova perspectiva, tam(9) Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, e Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba,
foram ícones da capoeira baiana e obtiveram êxito na luta para a retirada da capoeira do rol de
atividades incluídas como contravenção penal, em 1890, conseguindo seu reconhecimento
pela sociedade brasileira, a partir da década de 1930.
(10) FILHO, 1997 apud PIRES, 2001, op. cit., p. 282
(11) ABREU, 1999, op. cit., p. 30.
(12) Conforme cantava Mestre Pastinha e outros mestres contemporâneos a ele: “Capoeira é pra
homem, menino e muié. Só não joga quem não qué”
(13) Termo sugerido por Letícia Vidor de Souza Reis (1997) para designar as diferenças entre
uma pedagogia gerada pelos mestres de capoeira denominada popular e outra denominada
erudita emanada da área de Educação Física e influenciada pelo sistema social hegemônico
da época.
(14) Apesar de Mestre Pastinha e Mestre Bimba terem lutado para tirarem a capoeira do rol de
atividades incluídas como contravenção penal, cada qual formulou uma proposta diferenciada
para sua prática. A proposta de Mestre Bimba consistia numa proposta regional baseada na
adaptação de diferentes manifestações culturais como o batuque, e a capoeira até então
praticada, com a mistura de modalidades esportivas e de lutas. A proposta de Mestre Pastinha,
a capoeira angola, tinha como parâmetro a etnicidade baseada na prática da capoeira até
aquele momento histórico, com poucas alterações.
107
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Cabe apontar que a capoeira, como
manifestação cultural brasileira, também
passou a ser valorizada na Educação Física.
Isso devido ao desenvolvimento, a partir de
1980, de novos paradigmas relacionados à
área de Educação Física.
As relações entre a capoeira
e a educação física
no decorrer do século XX
bém existiam grupos de capoeira que apoiavam as idéias
referentes à normalização dessa prática como modalidade
esportiva. Além disso, para acrescentar mais divergências,
na década de 1980 retomaram-se as antigas idéias ligadas
à incorporação da capoeira pela educação física, pautadas
nas propostas dos métodos ginásticos.
Nesse contexto, percebe-se variadas situações, uma delas advinda do já conhecido professor Inezil Penna Marinho
(1982), que propunha a retomada do plano da capoeira como
a ginástica brasileira. Uma outra que, emanada dos favoráveis
pela permanência da capoeira nos moldes esportivos, defendia a capoeira-esporte. Ainda nesse período, houve uma
movimentação ligada à Educação Física e encabeçada por
alguns de seus intelectuais, que visavam repensar o papel social dessa área. Se não bastasse todo esse panorama, repleto
de caminhos díspares, ainda houve alguns grupos de capoeira
que defendiam esta prática no rol das manifestações culturais
desvinculadas das normatizações das instituições legais.
Esse quadro complexo teve seu desenlace em alguns sentidos, permanecendo inalterado em outros aspectos. No que
concerne à incorporação da capoeira no rol de manifestações
culturais, sem vínculos com os órgãos governamentais, ainda
existem setores ligados às organizações de capoeiristas que
apóiam esta idéia, mas são minoria. Isso porque não há clareza nos discursos dos seus defensores, por ser, inclusive, óbvia
a dificuldade em manter viva essa manifestação, sem apoio
institucional, seja representada por órgãos esportivos, setores
ligados à arte, escola, etc. Além disso, as manifestações culturais que fazem parte da formação do povo brasileiro têm
a proteção legal adquirida com a atual Constituição Brasileira.
Dessa forma, a capoeira já possui um amparo institucional, se
encarada como manifestação cultural.
Cabe apontar que a capoeira, como manifestação cultural brasileira, também passou a ser valorizada na Educação Física. Isso devido ao desenvolvimento, a partir de
1980, de novos paradigmas relacionados à área de Educação Física. Nesse movimento, é possível apreender novas
perspectivas, entre elas aquela que sugere à educação física escolar a abordagem da “Cultura Corporal Brasileira”,
de acordo com a obra Metodologia do ensino da educação
física, de 1993. Essa proposta parece ser a mais coerente
entre as existentes na Educação Física porque compreende a capoeira dentro de seus aspectos históricos e sociais,
valorizando sua prática e seu estudo.
Diante desse novo enfoque da capoeira no âmbito da
educação física, é possível denominar de progressista os
professores de educação física partidários da ampliação de
seu trato na área. Em algumas obras da década de 199015,
percebe-se o fortalecimento das inter-relações pautadas
(15) Posso citar as obras de FALCÃO, José Luiz. A escolarização da capoeira. Brasília: ASEFE Royal
Court, 1996; REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreação e lazer na escola.
Brasília: Valcy, 1997 e de ROCHA, Maria Angélica. Capoeira uma proposta para a educação
física escolar. 1990. Monografia (Especialização em Educação Física Escolar) - Faculdade de
Educação Física, Universidade Estadual de Campinas.
108
Capoeira
As relações entre a capoeira e a educação física no decorrer do século XX
no convívio mútuo de situações em que, de um lado ocorre a valorização do mestre de capoeira como detentor do
conhecimento dessa manifestação, e, de outro, o respeito
pelo professor de educação física que deseja trabalhar a
capoeira como conteúdo de suas aulas. No entanto, essa
forma de ação não é recorrente entre ambas as partes,
restringindo-se a poucos profissionais que procuram seguir por esse caminho. Apesar disso, essa pode ser uma
das formas mais ricas e compensadoras para se trabalhar a
capoeira nas aulas de educação física.
Por fim, é importante apontar que a inter-relação mais
rica em termos de produção cultural tanto para a capoeira
como para a área de Educação Física é o ensino de uma
prática consciente, tendo sido construída a partir da história de um povo que foi trazido escravo para o Brasil e teve
a dignidade de, por meio de sua resistência cultural, deixarnos como legado a arte de lutar sorrindo, dançar lutando,
cantar narrando seu passado e relembrar seus antepassados em um jogo corporal chamado capoeira.
Referências bibliográficas
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ringue. Salvador: Instituto Jair Moura, 1999.
AZEVEDO, Fernando de. Da Educação Física: o que ela é,
o que tem sido e o que deveria ser (seguido de Antinoüs).
São Paulo: Melhoramentos, 1960. obras completas.
contemporânea (1890 – 1950). 2001. Tese (Doutorado
em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH),
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
REIS, André Luiz Teixeira. Brincando de Capoeira: recreação
e lazer na escola. Brasília: Valcy, 1997.
REIS, Letícia Vidor de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a
Capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.
ROCHA, Maria Angélica. Capoeira uma proposta para a educação física escolar. 1990. Monografia (Especialização em
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BRACHT, Valter. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica. Revista da Fundação de Esporte e Turismo, v. 1
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CASTELLANI FILHO, L. Pelos meandros da educação física. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v.14, n. 3,
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____ Educação Física no Brasil: a história que não se conta.
5ª ed., Campinas: Papirus, 2000.
Paula Cristina da Costa Silva. Doutoranda da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas,
Unicamp/SP, capoeirista da Escola de Capoeira “Saci Pererê” e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Educação Física Escolar (GEPEFE) e do Grupo de Estudos
de Capoeira (GECA).
COSTA, Lamartine Pereira da. Capoeira sem mestre. Rio de
Janeiro: Edições de Ouro, 1962.
FALCÃO, José Luiz. A escolarização da capoeira. Brasília:
ASEFE Royal Court, 1996.
MARINHO, Inezil Penna. A ginástica brasileira (Resumo do projeto geral), Brasília, 1982.
______ Subsídios para o estudo da metodologia do treinamento da capoeiragem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.
PIRES, Antônio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da
cultura afro-brasileira: a formação histórica da capoeira
109
Benefícios da Capoeira
Benefícios Educacionais
Ricardo Pamfílio de Souza
Filosófico: o despertar dos membros do grupo para os
fundamentos da capoeira.
Social: conscientização do grupo como tal, com responsabilidade, deveres e direitos dos associados.
Físico: aprendizagem dos movimentos corporais da capoeira dentro de limites físicos e mentais, compatíveis com a
experiência e idade.
Artístico: aspectos estéticos referentes à música da
capoeira, às cantigas e aos toques de berimbau, atabaque, pandeiro e agogô, além da dança e da encenação
do jogo.
Não existe um modelo educacional da capoeira, mas sim
diversos modelos que são individualizados pelos mestres,
sendo autônomos nas suas academias ou nos seus grupos,
embora vinculados à tradição recebida pelos seus respectivos mestres. Todo o trabalho realizado, envolvendo processos cognitivos e afetivos na aprendizagem da capoeira,
caracteriza a sistemática de uma prática de ensino na qual
todos aprendem. Um dos exemplos dessa aprendizagem
evidencia-se durante as rodas, quando novos movimentos
corporais são criados pelos aprendizes ou novas cantigas
são improvisadas em cima de um fundo comum compatível com o inconsciente coletivo da capoeira. Trata-se de
um ensino não ligado a uma instituição educacional formal,
mas a uma cultura, a cultura da capoeira angola.
Ricardo Pamfílio de Souza. Mestre em Etnomusicologia pela UFBA, 1997.
Benefícios Físicos e Psicológicos
Lilia Benvenuti de Menezes
A capoeira é uma atividade física que se utiliza de exercícios
dinâmicos, pois há deslocamentos do corpo, envolvendo vários
grupos de músculos de maneira contínua e rítmica. No que diz
respeito ao tipo de contração muscular, os exercícios são isotônicos e isométricos, além disso necessitam de esforço intenso.
Como qualquer atividade física, a capoeira apresenta
efeitos fisiológicos – cardiovasculares, pulmonares e musculares. Há que se levar em conta que, além da idade e do
sexo, muitos outros fatores influenciam as respostas aos
exercícios, tais como a postura, a massa total de músculos
envolvidos no esforço, o ambiente, o estado de hidratação e
o treino físico do indivíduo.
As qualidades físicas desenvolvidas pela capoeira são a
flexibilidade, a força, a resistência, a velocidade, o equilíbrio, a
agilidade e a coordenação.
Considera-se a prática da capoeira um ótimo meio para
adquirir flexibilidade, pelo fato de que os esforços extras
dos músculos e das articulações exigidos para se ter um
desempenho eficaz, ou seja, executar movimentos com
amplitudes máximas, acabam por oferecer ao capoeirista a
elegância do movimento.
A capoeira é também um método satisfatório para se
atingir força muscular, tendo em vista que em muitos momentos usa o peso corpóreo como resistência, como nas
posições de equilíbrio sobre pescoço e membros. Além disso, por ser uma luta, utiliza-se de golpes de ataque e contraataque, saltos e esquivas, nesse caso empregando-se a resistência contra o adversário. Pode-se obter força, também, ao
se praticar saltos, saltitos, paradas de mão e pela movimentação constante entre o jogo de chão e o jogo alto.
Há duas formas de se desenvolver a resistência na capoeira: uma na roda e outra nos treinamentos. Nos treinos,
utiliza-se a chamada resistência específica, ou seja, a capacidade de executar as habilidades técnicas, com movimentos intensos durante a prática esportiva. Na roda, exige-se
do praticante também a resistência geral, a qual considera
o nível de condicionamento físico e de coordenação. A resistência é uma qualidade essencial para o capoeirista, pois
é por meio dela que poderá demonstrar suas habilidades
na roda, devido à sua constante movimentação.
Na capoeira exige-se, em muitos momentos, certa velocidade dos movimentos, seja para se deslocar, para mover
braços ou pernas rapidamente (golpes, ataques), ou para reagir a estímulos externos (contra-ataques, defesa, esquiva),
aprimorando-se os reflexos com agilidade e malícia. Esses
movimentos são acíclicos e caracterizados por não serem
uniformes e manterem acelerações diferenciadas.
Outra qualidade física adquirida com a prática dessa modalidade é o equilíbrio. Durante o jogo de capoeira, muitas
vezes o praticante precisa equilibrar-se em um dos pés, em
ambos ou até em uma das mãos, com os pés suspensos
ou não, durante certo espaço de tempo. O equilíbrio é intensamente desenvolvido em movimentos, como o aú1 e a
bananeira2, para ficar em dois exemplos; ou em golpes como
o martelo3, a benção4 e a ponteira5.
(1) Floreio em que o capoeirista, apoiando as duas mãos no chão, forma uma figura semelhante à
letra “A” e, posteriormente, erguendo as pernas, forma uma figura semelhante à letra “U” para,
em seguida, retornar ao chão, num movimento semelhante ao da estrela.
(2) Floreio em que o capoeirista apóia as mãos no chão e fica parado, verticalmente, de cabeça
para baixo.
(3) Golpe traumático em que o capoeirista, com o dorso do pé, atinge seu adversário no rosto
ou no tronco.
(4) Golpe traumatizante e desequilibrante em que o capoeirista levanta uma perna e a impulsiona à
frente com violência, a fim de atingir o adversário no tronco com a sola do pé.
(5) Golpe traumatizante aplicado com o extremo da planta do pé.
Foto: Lília Menezes
Foto: Lília Menezes
Uma qualidade física estreitamente ligada à capoeira
é a agilidade. Como na luta o praticante tem de levar em
conta a imprevisibilidade dos golpes, é necessário ser ágil
para se defender, atacar, esquivar, fintar e gingar, com
destreza e velocidade. A destreza, nesse caso, facilita a
aplicação dos golpes nos momentos oportunos e auxilia
o praticante a escapar em tempo hábil dos golpes dos
adversários. Com relação à velocidade, o jogo rápido, determinado pelo toque do berimbau, exige dos capoeiristas
movimentos combinados e sucessivos, executados em
várias direções e em alta velocidade, evidenciando alto
grau de coordenação e desenvolvendo, ao mesmo tempo, agilidade, destreza e velocidade.
Por último, mas nem por isso com menor mérito, o desenvolvimento da coordenação é também muito importante para o praticante da capoeira. Caracterizada pelo estilo,
leveza, soltura, naturalidade e performance, a coordenação
pode ser melhorada e desenvolvida no jogo, tendo em vista
que os praticantes utilizam a destreza e a criatividade sem
uma seqüência predeterminada, o que exige o aprimoramento dos reflexos e a coordenação dos movimentos.
A capoeira e o desenvolvimento psicológico. São
de conhecimento geral os benefícios psicológicos e emocionais da atividade física, pois produz relaxamento e estimulação psíquicos, colabora para a melhoria do humor e
Lilia Benvenuti de Menezes. Professora de Educação
Física, professora do Grupo Muzenza e bicampeã mundial
pela Super Liga Brasileira de Capoeira. Autora do livro “Benefícios Psicofisiológicos da Capoeira”.
da auto-estima, ajuda a aliviar a ansiedade e a tensão, reduzindo também os riscos de aparecimento de depressões
e do estresse.
Não tão conhecida pelos leigos, por outro lado, é a psicofisiologia da capoeira.
Em termos gerais, a psicologia pode ser entendida como
a ciência que estuda os comportamentos e emoções, e a
fisiologia como a ciência que se dedica a estudar como o
músculo executa cada movimento. A psicofisiologia, portanto, estuda o efeito emocional e comportamental que o
indivíduo experimenta ao executar uma atividade. O foco
dessa ciência está na interação entre a atividade motora e
as emoções.
Esses conceitos podem ser levados para o universo da
capoeira, usando como exemplo a ginga. Nesse movimento em que se alternam as pernas cadencialmente, o praticante sente-se mais solto e flexível, sensações positivas que
o levarão a aperfeiçoar seu comportamento em situações
do seu dia-a-dia: no relacionamento com os amigos, em tomadas de decisões no trabalho, no estudo, etc. A atividade
faz com que a pessoa lide com as limitações de seu corpo,
passando a conhecer melhor não só essa “vestimenta” física, mas também a si mesmo, tornando-se, conseqüentemente, mais capaz de realizações.
Nesse sentido, pode-se compreender porque não só a
capoeira, mas a prática de qualquer atividade física, pode
ser a causa da melhoria de qualidade de vida ou a cura para
determinadas doenças como pressão alta, diabete tipo 2,
fibromialgia, estresse e outros, pois a energia empregada
ao executar o movimento faz com que o cérebro libere no
organismo neutrotransmissores (substâncias químicas), tais
como a endorfina, adrenalina e noradrenalina que dão a
sensação de bem-estar ao praticante.
A capoeira, como outras lutas, além de fortalecer a
musculatura do praticante, faz com que a pessoa se sinta
mais forte, não só emocionalmente, mas também psiquicamente. Um dos fatos que diferencia a capoeira das demais
lutas é possuir movimentos que se assemelham à dança,
incluindo o ritmo e a música, o que leva o indivíduo a se
sentir mais seguro e livre, já que não executa movimentos
rígidos e sim movimentos amplos, alguns inclusive com característica lúdica, contribuindo para que a pessoa trabalhe
aspectos pessoais negativos que a incomodam e, ao mesmo tempo, reforce os positivos, percebendo que pode se
aperfeiçoar cada dia mais.
Capoeira e Inclusão Social
Gladson de Oliveira Silva
Vinicius Heine
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Um grande mestre não educa apenas para a
roda de capoeira.
A capoeira desempenha um papel fundamental para
promover inclusão, igualdade e cidadania. As diferenças e
contradições sociais estão em todas as partes: nas condições de vida, nas oportunidades de estudo e de trabalho,
no acesso aos serviços fundamentais de habitação, saúde,
segurança, transporte, esporte, lazer e cultura. Tudo isso
vem reafirmando historicamente as desigualdades.
A capoeira, como produto da cultura popular, pode
e deve contribuir para reverter esse quadro e favorecer
a aproximação das pessoas, valorizando-as pelo que são,
em essência, e não pelas suas condições materiais. Contribui, também, para a construção de espaços democráticos,
onde todos tenham direitos e oportunidades iguais; para
a compreensão das relações entre passado, presente e
futuro; e, sobretudo, para despertar a consciência política
e a capacidade de afirmação da cidadania e dos direitos
humanos fundamentais.
Capoeira e Inclusão Social
Clínica de Capoeira CEPEUSP: integração entre grupos
O PAPEL DO MESTRE. Professores e mestres são os
principais agentes da capoeira. São eles que promovem e
transmitem os fundamentos às gerações mais novas, que
determinam os princípios, as normas, os valores e a filosofia
que nortearão o seu trabalho e que influenciarão o comportamento e a formação dos seus alunos. Os alunos refletem,
em grande medida, o exemplo e o modelo apresentado pelo
mestre. Por isso, a responsabilidade desses agentes sociais,
que trabalham diretamente na formação integral dos seus
alunos. O modelo de educação da capoeira é diferenciado
do modelo de educação tradicional de uma escola, já que a
relação entre mestre e discípulo transcende a sala de aula e
integra diferentes aspectos da vida do educando.
Um grande mestre não educa apenas para a roda de
capoeira. Educa para a vida em suas diferentes dimensões.
É preciso conhecer e cuidar de cada aluno o mais profundamente possível, assim como conhecer sua realidade fa-
116
Capoeira
Capoeira e Inclusão Social
miliar, escolar e comunitária. Saber ouvir é fundamental, do
mesmo modo que compartilhar, trocar e estabelecer parceria com os alunos e incentivá-los, apoiá-los, oferecer-lhes
suporte emocional e intelectual, sabendo, é claro, que nem
sempre é possível resolver todos os problemas do aluno.
E essa não deve ser efetivamente a intenção. Trata-se de
oferecer uma orientação que o ajude a encontrar o melhor
caminho. Ser mestre é, em muitos momentos, ser pai, ser
amigo, ser irmão.
praticantes. Em todo o Brasil, têm proliferado os trabalhos
do terceiro setor em diversos projetos junto às comunidades. A capoeira vem ocupando espaço de destaque nesse
contexto e oferecendo contribuições significativas para a
inclusão social.
Projeto Porta Aberta: Capoeira e Cidadania
Evento Projete Liberdade Capoeira: Confraternização
FILOSOFIA INCLUSIVA. Inclusão social é uma filosofia
de trabalho e, para que ela exista, é preciso ter comprometimento com a causa das minorias, dos menos favorecidos
e dos que se sentem excluídos.
Nesse sentido, a inclusão social deve ser entendida
como um processo, uma construção coletiva, que busca
a superação da discriminação, do preconceito, da intolerância, das desigualdades e dos conceitos estereotipados.
Cada um de nós carrega em si uma dificuldade, um limite
que se manifesta no encontro com o outro. Nesse processo de negociação, é preciso enxergar os pontos de vista
pessoais, alheios e coletivos, encontrando respostas equilibradas, que promovam unidade, cooperação e camaradagem. Cada situação do dia a dia oferece-nos oportunidades
de trabalhar em prol da inclusão. Na família, na escola, no
bairro, no trabalho... é preciso gingar sempre no jogo da
inclusão social.
PEDAGOGIA DA INCLUSÃO. A capoeira que se propõe
ser inclusiva deve ser cuidadosa em seus métodos e em
suas bases pedagógicas. Deve promover a reflexão e o exercício diário dos valores. Deve ter como base a afetividade
e o estabelecimento de vínculos saudáveis e construtivos
que contribuam para a formação da identidade dos seus
A fim de que a capoeira se consolide como espaço de inclusão, é necessário que prevaleça a construção do conhecimento, o diálogo e o intercâmbio. É preciso estimular a comunicação, a interação e a participação dos alunos nas ações que
envolvem a capoeira como elemento vivo da sua comunidade.
É preciso entendê-la a partir dos referenciais históricos, sociais
e culturais sobre os quais foi construída. Desde seus primórdios até os dias atuais, a capoeira construiu sua identidade por
meio da luta e da resistência social contra as desigualdades e
injustiças. É essencial respeitar o aluno e tudo o que ele traz
consigo na sua bagagem de vida. Considerar as particularidades de cada aluno é dialogar com a sua identidade, sua história
de vida e sua visão de mundo. Aceitação, tolerância e respeito
às diferenças são pilares essenciais para a construção de uma
cultura de paz para o nosso planeta. É preciso estimular a integração, incentivar potenciais e capacidades. Para ser capoeira é preciso ter vontade de aprender, assimilar as regras e a
dinâmica do jogo e acreditar em si mesmo. A capoeira aceita
todos. Cada um com sua contribuição, cada um com o seu
toque, cada um com a sua ginga e sua presença.
Na capoeira é necessário que prevaleça o princípio da
cooperação acima do da competição. Cooperar significa apoiar, sustentar, compartilhar, somar. Significa que há
sempre espaço e recursos para todos. Pode-se trabalhar,
construir e ganhar em conjunto. Acima de tudo, é preciso
que prevaleça o “jogar com” e não o “jogar contra” para que
117
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusão de
pessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes e
separadas da sua prática.
a capoeira realmente cumpra seu papel de incluir pessoas
com diferentes condições sociais.
Um trabalho com essas características tem como um
dos seus objetivos principais a construção e o desenvolvimento de cidadãos conscientes, verdadeiros líderes comunitários, capazes de promover transformação do seu
entorno imediato e do seu país como um todo. Cidadãos
com capacidade de tomar decisões que promovam o bem
estar e a justiça para a sociedade em que vivem.
“Capoeira é para homem, menino e mulher”
Capoeira e Inclusão Social
Evento CEPEUSP: Dinâmica com os pais
Gradativamente, a capoeira vem promovendo inclusão
de pessoas que, até bem pouco tempo, estavam distantes e
separadas da sua prática. A presença das mulheres, por exemplo, era um acontecimento raro. Havia muito poucas. As que
se arriscavam a entrar na roda ganhavam notoriedade. Aos
olhos do preconceito, capoeira sempre foi coisa para homens,
“como é possível uma mulher pensar em misturar-se neste
ambiente?”. Nos últimos anos, essa realidade vem sendo modificada radicalmente e, em alguns grupos, as mulheres chegam a ser maioria nas aulas e nas rodas. São realizados encontros femininos de capoeira, nos quais são discutidos temas
relacionados com a afirmação e a valorização da mulher na e
por meio da capoeira. Na capoeira não existe distinção entre
roda feminina e masculina. São iguais as possibilidades para
mulheres e homens, que jogam, cantam e tocam de igual para
igual. Existem respeito e integração de gênero.
CAPOEIRA DOS OITO AOS OITENTA. Crianças a partir
de dois anos de idade tem iniciado sua prática em escolas no Brasil e no mundo. Em muitos centros educacionais,
118
Capoeira
Capoeira e Inclusão Social
tem sido reconhecido todo o potencial da capoeira como
instrumento de desenvolvimento integral do ser humano.
Mais recentemente, importantes trabalhos foram realizados
com pessoas idosas, que têm demonstrado ser a modalidade uma excelente aliada na promoção da sua qualidade de
vida. Cada um joga dentro de suas capacidades, dos seus limites e muitas vezes esses limites são mais amplos do que
se imagina. E mesmo quem acreditava não ser capaz, pode
se surpreender com as possibilidades que a capoeira oferece em termos de movimentos e de convivência social.
Além do jogo em si, com seus movimentos de ataque,
defesa e acrobacias, o que mais atrai os idosos à prática da
capoeira é o seu lado lúdico, artístico e sociável. O movimento espontâneo, alegre e prazeroso é essencial. Pertencer a um grupo, estar entre amigos, relacionar-se e interagir
com o outro são aspectos fundamentais para a saúde integral do ser humano em todas as idades e, especialmente,
na terceira idade.
CAPOEIRA ESPECIAL. Quando falamos em inclusão
não podemos deixar de falar dos portadores de necessidades especiais, entre essas o que é mais importante: a
capacidade de acreditar na vida e de superar limites, dar
a volta por cima, desenvolver o seu potencial e alcançar
seus objetivos. Também para essas pessoas, a capoeira tem
representado um grande instrumento de desenvolvimento
biológico, psíquico e social. Os portadores de necessidades
especiais conseguem aderir à prática da capoeira, seja realizando movimentos, tocando ou cantando. Muitas novas
metodologias têm sido desenvolvidas para o ensino da capoeira para essa população. Cada vez mais, vemos a capacidade de inclusão da capoeira ser ampliada. Há grupos de
trabalhos constituídos exclusivamente por portadores de
necessidades especiais e há grupos heterogêneos compartilhando o mesmo espaço, o que tem trazido resultados
surpreendentes. Pessoas são especiais por diversos motivos, mas principalmente por terem um nível de sensibilidade diferenciado. O que em um primeiro momento pode
gerar uma limitação, na verdade passa a ser um desafio,
que, quando superado, traz felicidade e realização pessoal.
CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL. Outro elemento essencial dentro do processo de inclusão por meio da capoeira é a necessidade de capacitar os seus agentes (mestres,
contramestres, professores e monitores) e de oferecer conhecimentos e metodologias que aumentem a capacidade de trabalho desses profissionais. Entre os capoeiristas,
existem pessoas muito criativas, inventivas e com grande
força de vontade e capacidade realizadora, que, apesar dos
poucos recursos materiais, desenvolvem trabalhos extraordinários, dignos de aplausos, reconhecimento e, principalmente, maior incentivo.
No Brasil, o Governo vem reconhecendo cada vez mais
o potencial da capoeira em promover cidadania e vem oferecendo recursos para programas que envolvem a modalidade. No entanto, dada a dimensão e o potencial da capoeira, as ações ainda têm muito a crescer. É preciso atuar
de forma mais consistente, produzindo conhecimento e
promovendo ações sistemáticas, planejadas e continuadas
de capacitação e educação dos seus educadores. O que se
vê são iniciativas isoladas, dentro de alguns grupos. Existe
pouca articulação e troca de informações. Muito do que se
faz é produto da criatividade e da iniciativa individual de alguns mestres e professores de capoeira. Ações integradas
entre Governo, universidades e a comunidade da capoeira
devem ser priorizadas.
CAPOEIRA EM FAMÍLIA. No processo de educação e inclusão por meio da capoeira, a presença e a participação da
família são de grande importância. Pais, irmãos, tios, avós,
primos e filhos são o núcleo de referência mais próximo ao
aluno. É na família que o aluno tem suas primeiras experiências de vida. Em grande parte, o que ele vive no seio da
família influenciará muito o seu caráter, os seus sentimentos, comportamentos e atitudes.
Evento CEPEUSP: a Ludicidade na Capoeira
Infelizmente, sabemos que a realidade de muitas famílias, hoje em dia, é de desestruturação e conflito. Em
especial, os conflitos entre os pais afetam fortemente as
crianças, que podem desenvolver comportamentos inadequados e inabilidades sociais em função desses eventos.
Agressividade, dificuldade de concentração, déficit cognitivo, revolta, dificuldade de integrar-se em grupos, de aceitar
regras, baixa auto-estima, hostilidade com pessoas mais ve-
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A luta da capoeira vem inspirando
milhares de brasileiros a lutarem pela vida,
por si mesmos e por suas comunidades.
O objetivo principal do projeto é a
transformação por meio da prática de
manifestações culturais. É a formação de
cidadãos honestos, sensíveis e participativos.
Capoeira e Inclusão Social
lhas podem ser reações observáveis em crianças que crescem em lares com carência de afetividade e harmonia.
No entanto, o fato de terem enfrentado dificuldades
dentro de casa não deve significar problemas para as crianças. Ao encontrar e conviver com outro ambiente, onde
exista amor, respeito, diálogo, disciplina e compreensão, a
criança desperta em si mesma o amor próprio e a autoestima, desenvolvendo comportamentos pessoais e sociais
adequados. Passa a agir com ética e com equilíbrio tanto
nas suas relações em família quanto na comunidade.
É exatamente neste ponto que a capoeira pode cumprir
um papel decisivo na vida de crianças e jovens, contribuindo
para a sua inclusão social ao representar esse espaço de reestruturação em suas vidas. Para tanto, é preciso que haja diálogo e confiança do mestre para com os alunos, dos alunos
para com o mestre e dos alunos para com os seus pares.
INCLUSÃO MUNDIAL. A capoeira tem alcançado dimensões internacionais. Nos quatro cantos do mundo, em
centenas de países, o som do berimbau se faz presente.
Rússia, Japão, Alemanha, África do Sul, Peru e EUA há muito tempo entram na roda para jogar. Também no Brasil a
capoeira demonstra uma ampla capacidade de incluir. Os
intercâmbios entre capoeiristas de diferentes nacionalidades são uma constante. A cada ano, pessoas no mundo
inteiro viajam para outros países com o propósito de trocar
experiências a respeito da capoeira. Especialmente o Brasil
recebe um grande contingente de adeptos, em busca de
novos conhecimentos e de muita sabedoria.
UM BEM-SUCEDIDO EXEMPLO: PROJETO “PORTA
ABERTA”. Em janeiro de 2001, teve inicio no distrito
do Capão Redondo, periferia da zona sul de São Paulo o
projeto “Porta Aberta”, que tem como atividade principal a
capoeira. O projeto surgiu de uma parceria entre a Secretaria de Saúde do Município de São Paulo, a Associação
Palas Athena do Brasil e a Projete Liberdade Capoeira, com
objetivo de elevar a auto-estima de crianças e jovens e reduzir os índices de violência na comunidade do Capão. O
“Porta Aberta” é um exemplo dos muitos projetos sociais
que se proliferam atualmente no Brasil, demonstrando a
vocação da nossa sociedade para oferecer soluções para
os seus problemas sociais. A luta da capoeira vem inspirando milhares de brasileiros a lutarem pela vida, por si
mesmos e por suas comunidades. O objetivo principal do
projeto é a transformação por meio da prática de manifestações culturais. É a formação de cidadãos honestos,
sensíveis e participativos.
O distrito do Capão Redondo é um grande exemplo
do poder da mobilização da sociedade civil. Ao longo dos
últimos anos, os índices de violência e criminalidade vêm
caindo constantemente, dando lugar à vida, ao respeito e
120
Capoeira
Capoeira e Inclusão Social
Projeto Porta Aberta: Capoeira e Inclusão Social
Referências Bibliográficas
SILVA, Gladson de Oliveira. Capoeira: do Engenho à Universidade. 3ª ed. São Paulo, 2003.
_______________________. Revista de Capoeira. Editora
Três. São Paulo, 1983.
SILVA, Gladson de Oliveira & Heine Vinicius. Capoeira um
Instrumento Psicomotor para a Cidadania. São Paulo, 2007
(no prelo).
LAMA, Dalai. O Caminho da Tranqüilidade. São Paulo: Sextant, 2000.
Todas as fotos são de propriedade dos autores e estão na
página www.projeteliberdadecapoeira.com.br
a paz. O “Porta Aberta” é uma gota no oceano que, com
certeza, faz muita diferença, pois, se ao menos um dos jovens que participam do projeto tiverem seus corações tocados e suas consciências sensibilizadas em prol do bem
e da dignidade, a missão terá sido realizada. Ao longo dos
seus sete anos de existência, o projeto passou por diversos
momentos e algumas reestruturações. Muitos exemplos
de transformação pessoal positiva têm sido observados na
vida dos alunos.
A sociedade civil desempenha um papel fundamental
na transformação da realidade do Brasil. Os grupos de capoeira são instituições civis organizadas e têm um grande
poder de atuação frente às pessoas que deles participam.
Mestres de capoeira são líderes e formadores de opinião e
podem contribuir positivamente para despertar uma sociedade mais consciente, tolerante e fraterna. O processo de
transformação já começou e deve continuar, promovendo
cada vez mais inclusão, justiça e fraternidade entre os homens e entre as nações. Iê volta do mundo camará!
Gladson de Oliveira Silva. Professor de Educação Física e mestre de capoeira do Centro de Práticas Esportivas
da Universidade de São Paulo (CEPEUSP) e do Conjunto
Desportivo Baby Barioni da Secretaria de Esporte Lazer e
Turismo do Estado de São Paulo.
Professor Coordenador do Projeto Porta Aberta – que trabalha com crianças e adolescentes carentes e portadores
de necessidades especiais no distrito do Capão Redondo,
em São Paulo.
Diretor da Projete Liberdade Capoeira – Escola de Capoeira
com núcleos de trabalho em São Paulo, Rio Grande do Sul,
Argentina, Peru e Espanha.
Ministrou cursos em diversos estados do Brasil e em outros
países, em universidades e centros educacionais.
Vinicius Heine. Professor de Educação Física e de Capoeira do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de
São Paulo (CEPEUSP).
Professor coordenador do Projeto Porta Aberta.
Ministrou diversos cursos e palestras sobre a capoeira em
diversos estados do Brasil e em outros países.
Coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas da Capoeira (CEPECAP).
A internacionalização da capoeira
José Luiz Cirqueira Falcão
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Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Nos últimos anos, muitos capoeiras1
saíram do Brasil em busca de melhores
condições de vida e de reconhecimento.
Nesse movimento, além de contribuírem,
efetivamente, com o processo de expansão
de sua arte pelo mundo, colaboram com
a divulgação da cultura brasileira no
exterior por meio de discursos que realçam
a capoeira à condição de prática “exótica”,
“tropical”, “brasileiríssima”.
A internacionalização
da capoeira
Nos últimos anos, muitos capoeiras1 saíram do Brasil em
busca de melhores condições de vida e de reconhecimento. Nesse movimento, além de contribuírem, efetivamente,
com o processo de expansão de sua arte pelo mundo, colaboram com a divulgação da cultura brasileira no exterior
por meio de discursos que realçam a capoeira à condição
de prática “exótica”, “tropical”, “brasileiríssima”.
Se à época da escravidão no Brasil o sangue jorrava da
caneta do feitor2 em sistemáticas investidas contra a capoeira3, nos últimos anos, ela passou a receber do poder
público um tratamento bem diferente, materializado por
algumas iniciativas de reconhecimento e valorização desse
importante símbolo da cultura brasileira.
Em comparação com os dias atuais, os capoeiras de outrora tinham uma relação bem diferente com sua prática.
Porém, assim como hoje, não constituíam um bloco único
e não a cultivavam com a mesma finalidade. Se no Rio de
Janeiro ela teve uma vinculação forte com as maltas, as brigas de rua e a política do Segundo Reinado, em Salvador,
ela tinha uma relação amistosa com os botecos, com as
quitandas, que, por sua vez, se beneficiavam de suas artísticas manobras para atrair fregueses.
Antigamente, os trapicheiros, carroceiros, estivadores,
carregadores, vendedores ambulantes e também desempregados reuniam-se próximo aos botecos, praças e largos
para tagarelar, beber e jogar, utilizando a capoeira como
atividade de lazer ou de disputa de espaço. Hoje, é comum
ver profissionais de diferentes áreas utilizando a capoeira
como atividade de lazer. Muitos utilizam-na como trabalho,
como uma opção profissional, como um modo de sobreviver. Somado a esse contingente, encontra-se expressivo
segmento de jovens que vislumbra, na capoeira, um campo
de emprego nem sempre possível nas instituições e empresas convencionais.
Mesmo de forma precária, mas com grandes pitadas de
criatividade, esses profissionais utilizam-se dessa manifestação cultural como meio de obterem recursos. Buscam
as mais inusitadas possibilidades para escapar da sina daqueles que, considerados pela maioria como os grandes
mestres da capoeira, morreram em situação de miséria
absoluta. Mestres como Pastinha, Bimba, Valdemar da Li-
(1) Para designar os (as) agentes da capoeira (praticantes, mestres (as), professores (as), militantes
etc.), utilizaremos o termo capoeira em vez de capoeirista, por entendermos que o primeiro
tem, na cultura, o seu campo privilegiado de ação, enquanto que capoeirista nos sugere uma
intervenção mais específica, mais especializada.
(2) Em alusão a uma cantiga do Mestre Toni Vargas.
(3) De acordo com Rego (1968), a capoeira foi tratada durante muito tempo como caso de polícia,
“que dormia e acordava no calcanhar dos capoeiras” (p. 43). Alguns dos mais consistentes
estudos sobre a história da capoeira foram realizados a partir da documentação existente nos
arquivos da polícia brasileira. Ver Pires (1996) e Soares (1994 e 2001).
(4) Mestre Pastinha (1889-1981) - principal guardião da Capoeira Angola, fundou em 1941 o
Centro Cultural e Esportivo de Capoeira Angola, em Salvador. Faleceu cego e esquecido. Mestre
Bimba (1899 – 1974) fundou a primeira academia de capoeira do Brasil e foi o criador da
Capoeira Regional, um estilo de capoeira mundialmente conhecido. Faleceu pobre, lutando
por melhores condições de vida, em Goiânia-GO. Mestre Waldemar da Liberdade conduziu nas
décadas de 40 e 50, aos domingos, a roda de capoeira que se tornou o mais importante ponto
de encontro dos capoeiras de Salvador, onde o escritor Jorge Amado e o fotógrafo Pierre Verger
“se alimentavam culturalmente” (ABREU, 2003, p. 43). Morreu, em 1990, na pobreza, como
tantos outros capoeiras célebres.
124
berdade e outros,4 que “experimentaram a encruzilhada da
fome com a fama” (ABREU, 2003, p. 14), apesar de se tornarem os grandes referenciais da capoeiragem no século XX,
são, para as novas gerações de capoeiras, produtos de uma
condição de exploração da qual estas tentam se esquivar.
A internacionalização da capoeira: de símbolo de
brasilidade a patrimônio cultural da humanidade.
Quando muitos capoeiras brasileiros começaram a sair do
País, a partir do início da década de 1970, para “ganhar o
mundo” e trabalhar em grupos folclóricos no exterior, em
busca de apoio e reconhecimento, não tinham idéia da magnitude que esse fenômeno viria a ter três décadas mais tarde.
No início, tudo era muito difícil e a rua era, freqüentemente, o
único espaço que eles encontravam para expressar sua arte
ou para manter contatos com outros artistas do cotidiano,
como palhaços e malabaristas das mais diversas origens.
Nas grandes cidades dos Estados Unidos e da Europa, eles
começaram a dar visibilidade a essa “arte tropical”, influenciando outros movimentos da cultura de rua, como o break,
por exemplo, que surgiu nos Estados Unidos, na década de
1980 e, logo depois, espalhou-se pelo mundo. Certamente,
nessa dança de passos interrompidos e acrobacias desconcertantes existem muitos movimentos herdados da capoeira, como o giro de ponta-cabeça (o pião de cabeça).
Em Nova York, os capoeiras brasileiros costumam reunir-se em praças e avenidas e, freqüentemente, são vistos
em documentários de televisão e espetáculos culturais. Em
1989, o Jornal do Brasil, em matéria intitulada “Capoeira
para americano jogar”, já revelava os primeiros sintomas
desse processo.
Transplantada para os EUA pelos brasileiros, a capoeira está crescendo em popularidade e pode
ser vista em casas noturnas, exibições, competições, escolas, e até em filmes (...) A capoeira é
como o jazz americano em seu início (...) é um
beat, um swing, uma pulsação, um movimento.
E a maneira como as pessoas se movimentam,
pensam e se comportam na capoeira é a maneira como se movimentam, pensam e se comportam em suas vidas (WEELOCK, 1989, p. 8).
Uma questão importante se coloca neste aspecto.
Quais as principais características e contribuições desse
movimento de internacionalização para o desenvolvimento e valorização da capoeira?
O principal motivo da saída de uma avalanche de mestres, professores e iniciados em capoeira para o exterior é
determinado por fatores econômicos e está relacionado
com a busca de reconhecimento e prestígio. Se no Brasil
a mensalidade para se fazer aulas de capoeira é relativamente baixo, nas principais cidades americanas e européias
esse valor é significativamente mais alto.
Foto: Laura Campos
Esse movimento de expansão traz conseqüências inusitadas para a capoeira e é visto por muitos como algo sedutor, embora venha causando inquietações por parte de
alguns preocupados com a “manutenção” das suas tradições. Se, por um lado, muitos alegam que a expansão leva
a certo distanciamento dos princípios e valores que delegaram à capoeira um emblema de “luta de resistência” contra
a exploração, por outro, muitos consideram que esse processo está contribuindo para a valorização das referências
culturais africanas e para despertar um interesse maior pelo
Brasil e pela cultura brasileira.
Muitos autores afirmam que, nos EUA, a capoeira ajuda, também, a revitalizar o elo entre os negros americanos
e a África, cuja relação foi abalada pelo violento processo
de segregação desencadeado em séculos passados. Nesse
sentido, muitos americanos vêm para o Brasil com o objetivo de “beber na fonte” e procuram conhecer os mestres mais representativos dessa arte-luta. Muitos espaços
da cidade de Salvador, considerada a “Meca da Capoeira”,
transformaram-se em verdadeiros templos de peregrinação dos capoeiras de todo o mundo, como a Academia
de João Pequeno5, no Forte Santo Antônio, ou a Fundação
Mestre Bimba, no Pelourinho.
Influenciadas por outras perspectivas, expressivas levas
de capoeiras estrangeiros desembarcam nos aeroportos
125
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
Influenciadas por outras perspectivas,
expressivas levas de capoeiras estrangeiros
desembarcam nos aeroportos brasileiros
para competir nos diversos campeonatos
organizados por grupos com sede no Brasil
e que possuem filiais em outros países6. A
despeito das freqüentes críticas a essa forma
de tratamento, esses campeonatos têm
contribuído bastante para a divulgação da
capoeira no exterior.
A internacionalização
da capoeira
brasileiros para competir nos diversos campeonatos organizados por grupos com sede no Brasil e que possuem filiais
em outros países6. A despeito das freqüentes críticas a essa
forma de tratamento, esses campeonatos têm contribuído
bastante para a divulgação da capoeira no exterior.
Convém destacar que o grande interesse dos estrangeiros pela capoeira se desdobra imediatamente em
dois desejos: conhecer o Brasil e falar o português. Muitos mestres e professores que ministram aulas no exterior, em busca de um apelo ao mais “tradicional”, fazem
questão de se expressarem no idioma português. Na luta
por uma identidade baseada na tradição afro-brasileira,
muitos professores chegam a proibir nos seus trabalhos
que se façam traduções de nomes de golpes, de movimentos, de cantigas e de instrumentos de capoeira. Falar
português nas aulas de capoeira é um requisito que opera
como uma espécie de “selo de qualidade” e vem contribuindo para abrir campos de trabalhos antes impensáveis.
O Hunter College, uma das mais tradicionais faculdades
de Nova York, já oferece cursos regulares de português,
em decorrência da demanda provocada pela capoeira
(NUNES, 2001, p. 3).
Entretanto, ao mesmo tempo em que o ex-frentista
de posto de gasolina, o brasileiro Mestre João Grande, radicado em Nova York há mais de dez anos e ganhador
do título de Doutor Honoris Causa do Upsala College, de
Nova Jersey, em 1996, ministra aulas em sua Academia no
West Village, num autêntico português da Bahia, por outro lado, muitos workshops são traduzidos para outras línguas (inglês principalmente), aqui mesmo no Brasil, como
é o caso do “Capoeirando”, evento organizado por renomados mestres e realizado durante o verão em pontos
turísticos estratégicos do território brasileiro, para onde
se dirige expressiva massa de estrangeiros em busca da
“autêntica” capoeira.
Nesse complexo movimento de internacionalização, a
capoeira vem conquistando espaço nos mais diversos rincões do planeta. Além da internet, os filmes também têm
contribuído para esse processo, sendo o primeiro deles, o
brasileiro “O Pagador de Promessas”, que ganhou prêmios
internacionais. Entretanto, foram as produções norte-americanas, Only the Strong Survive (no Brasil recebeu o título
agressivo de “Esporte Sangrento”) e Roof Tops, que conseguiram emplacar maior difusão da arte-luta.
O movimento de difusão da capoeira no contexto
mundial é mais visível e intenso em direção aos Estados
Unidos e à Europa. Com raras exceções comprometidas
em desenvolver trabalhos de “retorno” dessa arte-luta à
(5) O Mestre João Pequeno é o professor de capoeira mais antigo do Brasil em atividade, atualmente
(2007), está com 89 anos. No dia 18 de dezembro de 2003, recebeu o título de Doutor Honoris
Causa pela Universidade Federal de Uberlândia-MG.
(6) Grandes grupos de capoeira realizam, atualmente, encontros internacionais, com a presença
de mestres e discípulos de vários países, como é o caso da Associação Brasileira de Apoio e
Desenvolvimento da Arte Capoeira (Abada-Capoeira), que é uma entidade que congrega mais
de 30 mil capoeiras em 26 países.
126
Capoeira
A internacionalização da capoeira
África, a maioria das iniciativas destina-se aos chamados
países desenvolvidos.
O fato é que a capoeira ganhou o mundo e se transformou num dos veículos mais significativos de inserção
da cultura brasileira no exterior, uma exuberante propaganda do Brasil. Em 2003, já existiam escolas de capoeira em todos os 50 estados norte-americanos. Somente
em Nova York eram 15 escolas. O surpreendente é que
a demanda por aulas de capoeira naquele país está concentrada, principalmente, nas escolas públicas. Essa prática tem sido bem cotada como atividade capaz de atuar
na recuperação da auto-estima e da confiança de jovens
com problemas de aprendizado e de relacionamento,
constituindo-se, assim, numa “porta de salvação” para jovens vítimas de violência ou envolvidos com drogas ou
álcool (NUNES, 2001). O filme Only the Strong Survive explora essa problemática.
Entretanto, não é somente por meio das escolas públicas que a capoeira vem conquistando os norte-americanos.
Ela vem sendo usada também para “treinar” atores e atrizes
de filmes de ação, como é o caso de Halle Berry, atriz principal do filme Catwoman. Para o diretor do filme, a capoeira
contém movimentos vigorosos, mas com suingue. “Para os
americanos, a capoeira tem um atrativo forte, além do fato
de funcionar como [...] defesa pessoal e fazer bem à saúde.
Ela é exótica, o que confere um certo charme a quem a
pratica” (BERGAMO, 2004, p. 58). Outros filmes produzidos
em Hollywood também divulgam a capoeira a partir de algumas cenas como, por exemplo, Meet the Fockers (2004),
Ocean’s Twelve (2004), The Rundown, The Quest, Harry
Potter and the Goblet of Fire e Batman.
Videogames como Tekken 3, 4 e 5, Eternal Champions,
Dark Resurrection, Street Fighter III, Fatal Fury, Rage of the
Dragons, World of Warcraft, Bust a Groove, Pokémon Hitmontop, The Matrix, WWE Smack Down! e Here Comes the
Pain também contribuem para a disseminação da capoeira
nos quatro cantos do mundo.
Como conseqüência desse processo, algumas “bandeiras” cultivadas e defendidas por seus precursores, como a
oralidade, o improviso, a “mandinga”, a resistência cultural,
são preteridas, para darem lugar a outras categorias mais
“sintonizadas” com o momento atual, tais como: “mercadoria étnica”, “folia de espírito”, “malhação” e “espetacularização” etc. (VASSALLO, 2003b).
Exemplos de experiências significativas com capoeira no exterior. Importantes instituições de ensino e
pesquisa, em especial faculdades de Educação Física, contemplam a capoeira como atividade extracurricular. Em algumas delas, existem trabalhos sistematizados de capoeira
que funcionam como projetos de extensão em que professores brasileiros são contratados por tempo determinado
para ministrarem atividades aos que se interessarem, como
é o caso dos projetos do Estádio Universitário da Universi-
Oficina de capoeira em Oslo na Noruega – 16/08/03 (J. L. C. Falcão)
dade de Lisboa, da Universidade de Varsóvia, da Universidade de Oslo, da Universidade de Bristol e da Universidade
Técnica de Lisboa.
Importantes eventos de capoeira de âmbito internacional acontecem em várias partes do mundo. Esses eventos
permitem um intercâmbio significativo entre as diversas
propostas de trato com essa manifestação.
Embora alguns capoeiras brasileiros tenham realizado
apresentações pela Europa desde 1951, o primeiro trabalho de ensino sistematizado de capoeira no Velho Continente foi empreendido pelo reconhecido Mestre Nestor
Capoeira7, em 1971, na London School of Contemporary
Dance, Londres, Inglaterra.
Ao longo dos últimos trinta anos, o movimento da capoeira na Europa intensificou-se significativamente, fazendo com que ela adquirisse expressiva densidade, mas, no
começo, tudo era difícil pela falta de informação sobre o
que realmente significava esse misto de dança-luta-jogo.
Mestre Umoi, o qual há treze anos reside em Portugal,
destacou que, no início, teve de dar aula na rua para convencer as crianças a fazerem capoeira. Dizia que iria ensiná-las a “dar pernadas”. Segundo ele, precisou utilizar essa
artimanha para levar os “miúdos” a se interessarem pelas
“pernadas do Brasil”.
Quando eu cheguei aqui, em agosto de 1990,
pelo menos na região da Grande Lisboa, onde
eu me instalei, não tinha capoeira. Ninguém
tinha conhecimento do que era capoeira e,
claro, eu vim pra cá na tentativa mesmo de
ensinar a capoeira. Comecei a procurar as academias aqui e a primeira reação dos donos das
(7) Nestor Capoeira foi iniciado por Mestre Leopoldina e graduou-se corda vermelha pelo Grupo
Senzala em 1969. É autor de vários livros e artigos de capoeira. É mestre e doutor em
Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi ator principal do filme
“Cordão de Ouro”, produzido pela Embrafilme (hoje disponível em vídeo pela Globovídeo), sob
a direção de A. C. Fontoura, em 1978.
127
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
É verdade que a capoeira, com esse
“carimbo” de Brasil embutido em suas
cantigas e comportamentos, ramificou-se
e expandiu-se significativamente e tem
servido, atualmente, como veículo de
agregação de povos de vários cantos do
mundo, adquirindo, assim, uma identidade
supranacional.
A internacionalização
da capoeira
academias geralmente era que não queriam
nada com galinheiros aqui em Portugal, porque
capoeira aqui em Portugal significa galinheiro.
Então isso dificultou muito o início do trabalho
aqui (Mestre Umoi, comunicação pessoal, 27
de junho de 2003)8.
A dedicação de muitos mestres e professores deu continuidade à iniciativa implementada por Nestor Capoeira e
contribuiu para que essa manifestação adquirisse densidade, diversidade, visibilidade e prestígio social.
Na Europa, essa densidade expressa-se pelo rico acervo cultural embutido nos seus gestos, cantos e história, os
quais extrapolam as referências de sua baianidade e edificam uma brasilidade, embora idealizada, à medida que não
leva em consideração as evidentes diferenças culturais (e
econômicas) presentes no Brasil. O fato é que essa mobilidade, expressada pela saída de capoeiras de diferentes cidades brasileiras em direção ao Velho Mundo e à América do
Norte, contribui para ampliar as referências culturais dessa
manifestação e ornamentar esse carimbo de brasilidade. Um
professor norueguês afirma que: “hoje em dia, as pessoas já
conhecem bem o que é a capoeira e querem a capoeira (...).
Quem procura a capoeira já tem uma idéia que é uma coisa
brasileira e querem isso!” (Professor Torcha, comunicação
pessoal, Oslo, Noruega, 18 de agosto de 2003).
É verdade que a capoeira, com esse “carimbo” de Brasil
embutido em suas cantigas e comportamentos, ramificouse e expandiu-se significativamente e tem servido, atualmente, como veículo de agregação de povos de vários
cantos do mundo, adquirindo, assim, uma identidade supranacional. O Mestre Umoi, já citado, afirma:
A capoeira está quebrando a barreira do oceano
que divide o Brasil, a África, a Europa, a América
do Norte. A capoeira é do capoeirista. E a gente
já tem muitos bons capoeiristas aqui na Europa.
Você vê muito angoleiro alemão jogando uma
Angola tão boa e até melhor do que muito capoeirista que nunca saiu de Salvador, que nunca
saiu do Brasil. Aí você fala. Ah! é porque é alemão? Não, é porque é capoeirista (Mestre Umoi,
comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de agosto
de 2003).
A experiência de professores de capoeira brasileiros na Europa. A maioria dos mestres e professores
de capoeira que atua na Europa é proveniente do Nordeste Brasileiro, em especial das cidades de Recife e Salvador, mas existem professores de praticamente todos os
(8) Esse e outros depoimentos presentes nesse artigo foram tomados por ocasião de Estágio de
Doutoramento realizado pelo autor entre abril e agosto de 2003, na Europa, e serviram como
fonte para a elaboração do quarto capítulo da tese de Doutorado intitulada: O Jogo da Capoeira
em Jogo e a Construção da Práxis Capoeirana (FALCÃO, 2004).
128
Capoeira
A internacionalização da capoeira
estados brasileiros trabalhando com esta manifestação
no Velho Continente.
Desde o início da década de 1970, Paris vem recebendo muitos capoeiras de diversos grupos brasileiros. A professora Úrsula, radicada na França há mais de doze anos,
argumenta que quando lá chegou poucas pessoas conheciam a capoeira. Atualmente, apesar de alguns despreparados que se dizem mestres, sem nunca terem passado
por uma academia, a capoeira já é bastante difundida e,
freqüentemente, “as mulheres são maioria nas aulas” (CARVALHO, 2002, p. 17).
Essa condição laboral, por vezes clandestina, em que se
inserem os brasileiros responsáveis pela disseminação da
capoeira no exterior, diferencia-se, frontalmente, das carreiras previsíveis, de rotinas estáveis que, até pouco tempo,
caracterizavam os postos convencionais de trabalho.
No entanto, são essas as possibilidades concretas que
se apresentam e elas são agarradas com “unhas e dentes”,
na forma de verdadeiras aventuras pelos jovens “profissionais da capoeira”. Por mais precárias que possam se
apresentar, essas opções concretizam-se efetivamente
e terminam por garantir a manutenção da vida da maioria desses “profissionais” que vivem distantes de sua terra
natal, contribuindo, direta ou indiretamente, para substancializar a capoeira com fortes doses de aleatoriedade e de
improvisação.
A luta pela sobrevivência e o desejo de reconhecimento a partir de novas experiências são os principais motivos
que levam tantos professores de capoeira a deixar o Brasil
e a se “jogar” em promessas incertas de “vida boa” no exterior. Entretanto, o que eles freqüentemente encontram são
opções de trabalhos dispersos, desregularizados e fluídos.
Geralmente atuam como free lancers, como alternativa
para “ganhar a vida”.
A chegada dos professores de capoeira na Europa geralmente é controvertida. O depoimento do Mestre Matias,
mineiro, que se mudou para a Suíça em 1989 e, atualmente, desenvolve trabalhos em várias cidades daquele país, faz
coro com muitas outras experiências de mestres e professores que buscaram melhores horizontes.
Foi muito dura a chegada na Suíça, ralei muito,
toquei berimbau na neve, nas estações de trem,
entendeu, porque os capoeiristas que tinham lá
não faziam roda de rua. Eu ia para a rua sozinho, às vezes tocava o meu berimbau, tentava
saltar, às vezes fazia coisas malucas e também
era um modo de me libertar. O berimbau era o
meu companheiro. Era o modo de eu me livrar
daquela angústia, daquela saudade, daquela
vontade de estar no Brasil, no meio dos alunos,
dos colegas. Aquele país frio, você chega e toma
aquele choque, não conhece ninguém, porque
a língua é outra. Então foi uma barra enorme
Roda de capoeira numa praça de Oslo – Noruega 17/08/03 (J. L. C. Falcão)
que eu enfrentei, mas, graças a Deus, eu superei tudo isso e hoje eu não vou dizer que falo
perfeito o alemão, mas falo bem (Mestre Matias,
comunicação pessoal, Madrid – Espanha, 29 de
junho de 2003).
O fato é que, a despeito de freqüentes desesperos e
até deportações, muitos professores de capoeira vislumbram a possibilidade de conquistar no exterior o status e
o reconhecimento que dificilmente conseguiriam no Brasil.
“Eu sou um pássaro”, “ninguém me segura”, “já me sinto
lá”, eram frases prontas, freqüentemente proferidas por um
dinâmico professor recifense em terras lusitanas, que vem
levando a vida como uma grande aventura mesclada de
flutuações e incertezas nebulosas, mas com muita arte e
alegria contagiante.
As dificuldades para encontrar emprego com estabilidade garantida por benefícios assistenciais fazem com que
os professores de capoeira na Europa, rotulados pela, nem
sempre confortável, condição de imigrante, se “desenrasquem” recorrendo a expedientes e trabalhos precários e
terminem por arranjar dinheiro nos limites do legal, do legítimo, do formal e, com isso, vão construindo trajetórias
não-lineares e imprevisíveis em busca de ascensão e prestígio social.
Misturando sonhos e desejos com inquietações e temores, esses professores vêm tecendo novos horizontes para
o campo conhecido como educação não-formal, que está
ganhando espaço na sociedade em geral, principalmente
em relação às camadas sociais com menor poder aquisitivo. A experiência do Mestre Umoi ratifica essa afirmação.
129
A idéia do trabalho social é uma idéia que me
apaixona. Meu trabalho sempre foi vinculado
com a periferia de Sobradinho, em Brasília, e
aqui não foi diferente. (...) eu entrei como estagi-
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
ário nesse reformatório em Caxias, na Linha de
Cascais, que é um centro de correção. É como
se fosse um presídio de menores. Tinha lá uma
grande problemática, com muito aluno africano,
com muito aluno português, mas tinha até rivalidades raciais mesmo. Eu apresentei lá o projeto
como estagiário. Felizmente a diretora já tinha
passado vinte anos no Brasil. Conseqüentemente, conhecia capoeira e quando leu meu projeto,
não associou a galinheiro, a galinha, nem nada,
e isso foi uma coisa muito boa. Ela me aceitou
como estagiário. De estagiário me contratou e
no final do meu curso eu já fui contratado pelo
Ministério da Justiça, onde estou até hoje lá
(Mestre Umoi, comunicação pessoal, Lisboa –
Portugal, 27 de junho de 2003).
“Você vê muito angoleiro alemão jogando
uma Angola tão boa e até melhor do
que muito capoeirista que nunca saiu de
Salvador, que nunca saiu do Brasil. Aí você
fala. Ah! é porque é alemão? Não, é porque
é capoeirista.”
(Mestre Umoi, comunicação pessoal, Amsterdã, 18 de
agosto de 2003).
A internacionalização
da capoeira
É importante destacar que os professores de capoeira
que saíram do Brasil para trabalhar na Europa se encontram numa condição menos desconfortável em relação
aos demais imigrantes, uma vez que não disputam com
os “nativos” um posto de trabalho. Terminam gozando de
reconhecido prestígio, à medida que são possuidores de
uma habilidade, de uma especialidade made in Brazil que
funciona como um selo de qualidade muito requisitado pelos jovens europeus, em geral. São portadores, portanto, de
saberes “exóticos” e “culturais” que, de certa forma, desafiam os modos tradicionais de entrada no campo produtivo
e terminam redefinindo o sentido do trabalho, atualmente
caracterizado por turbulência e instabilidade.
Na luta pela sobrevivência, inventam formas atípicas de
ganhar dinheiro e terminam demonstrando uma notável capacidade de improvisação. Muitos articulam-se em intrincadas redes de solidariedade, por meio de densa convivência
que se materializa em eventos, W, festas, ou simples visitas
aos “trabalhos” dos seus conterrâneos irmanados pela dupla
condição de capoeira-imigrante. Muitos grupos considera-
Comércio de indumentárias e instrumentos de capoeira – Evento em Madri – Espanha.
Junho 2003 (J. L. C. Falcão)
130
Capoeira
A internacionalização da capoeira
dos rivais no Brasil, ao se instalarem na Europa, terminam por
minimizar e relativizar essa rivalidade para enfrentar os dissabores que a condição de imigrante freqüentemente impõe a
todos os portadores do passaporte verde, indistintamente.
Essas múltiplas alternativas de trabalho com capoeira
materializam-se na forma de shows em casas de espetáculos, de oficinas em instituições educacionais, de orientação
de jovens em situação de risco social. Freqüentemente, o
trabalho do profissional de capoeira na Europa apresentase de forma eventual e temporária. O comércio de apetrechos e adereços de capoeira serve para incrementar o
orçamento desses aventureiros abnegados, isso quando
não constitui atividade principal de muitos.
Ainda assim, a grande maioria dos professores brasileiros sente-se valorizada em trabalhar com capoeira em
terras estrangeiras. Afinal, esses aventureiros destemidos
consideram-se portadores legítimos de uma cultura “exótica”, pela qual o estrangeiro sempre se mostrou fascinado.
Muitos professores conquistam certa segurança, a partir de contratos com instituições públicas e privadas sólidas.
Um mestre que trabalha em Portugal relatou, durante um
evento na Noruega, que se sente muito valorizado como
“professor de capoeira” de uma instituição pública.
Outro aspecto a destacar, a partir das experiências dos
capoeiras brasileiros na Europa, diz respeito ao fato dessa
manifestação cultural aglutinar, por intermédio dos concorridos eventos, pessoas oriundas de diferentes camadas sociais
em um mesmo espaço de convívio. Em geral, um mestre ou
professor alterna trabalhos em espaços nobres com os chamados “trabalhos sociais”. Em regra, nos finais de semana, ou
nos eventos, os integrantes desses diferentes “espaços” encontram-se e confraternizam-se em movimentadas rodas.
O Mestre Barão transita, com suas aulas de capoeira,
em universos aparentemente inconciliáveis da Cidade do
Porto, no norte de Portugal.
Eu dou aula no bairro Lagarteiro, um bairro bem
complicado. É um bairro social que o pessoal
chama aquilo lá de inferno. Dou aula também
para ciganos num outro bairro também complicado do Porto. Eu estou lá fazendo um trabalho
social com eles. Saio desse bairro social e vou
para um ginásio que treina só ricos, que é só
empresários (Mestre Barão, Comunicação pessoal, 8 de junho de 2003).
Essa arte de viver e, em muitos casos, de sobreviver
com e para a capoeira na condição de imigrante nem sempre é bem sucedida, entretanto, chama a atenção para experiências pedagógicas produtivas no campo da educação
não-formal, que se intersecionam e, muitas vezes, complementam o processo de educação formal.
Nesse movimento de internacionalização, a capoeira,
com todas as implicações que uma manifestação cultu-
Oficina de Capoeira na Universidade de Varsóvia – Polônia, maio 2003 (J. L. C. Falcão)
ral engendra, afirma-se como manifestação de expressiva
densidade à medida que mestres e professores “ensinam”
os seus “fundamentos” para pessoas provenientes das mais
diferentes origens e culturas e, com isso, vêm contribuindo
para a quebra de tabus e estereótipos construídos no interior do seu próprio movimento histórico. Se a capoeira “é
brasileira”, se “está no nosso sangue”, como ela pode ser
ensinada a pessoas que não têm o sangue brasileiro nas
veias? Travassos (1999, p. 266) questiona: “Como se poderia ensinar algo que está inscrito no sangue, nos corpos e
nas mentes de uns e não de outros?”
Muitos praticantes europeus de capoeira, além de se
dedicarem exaustivamente a essa prática, interessam-se por
outras manifestações que fazem parte do “acervo cultural”
brasileiro, como é o caso do frevo, do samba, do maculelê e
do maracatu. Com isso, terminam se apaixonando pelo Brasil. Isso pode ser ratificado pelo depoimento de um professor
que ministra aulas em Lisboa, quando diz: “muitos europeus
vivem a capoeira mais que muitos brasileiros e têm, realmente, o Brasil no coração” (Professor Marco Antônio, comunicação pessoal, Lisboa – Portugal, 13 de agosto de 2003).
Com a formação de inúmeros professores de nacionalidade não-brasileira, a capoeira certamente passa a lidar e
incorporar novos elementos nos seus “fundamentos”. Nesse movimento, esses fundamentos são reelaborados a partir de embates permanentes, cujos aspectos de natureza
econômica, cultural e subjetiva se intersecionam.
Em entrevista concedida pelo Mestre Borracha, que
está na Europa desde 1985, fomos informados sobre a
existência do primeiro mestre de capoeira europeu. Tratase do Mestre Coruja, italiano, com mais de vinte anos de
dedicação a essa arte, formado pelo Mestre Canela, do Grupo Mangagá, do Rio de Janeiro. Esse dado aponta para a necessidade de investigações sobre essa nova realidade que,
certamente, trará enormes contribuições para pensarmos
o fenômeno capoeira a partir de uma visão mais ampliada
e complexa.
131
Ministério das Relações Exteriores
Revista Textos do Brasil
A capoeira pode até ser “coisa do Brasil”,
mas também é de todo o mundo, à
medida que para ser ensinada, praticada,
transmitida, construída, ela precisa ser
compartilhada, dividida, multiplicada.
Roda de Rua – Carmingnando de Brenta, Itália, julho de 2003 (J. L. C. Falcão)
É certo que existe uma cobrança prévia por parte dos
mestres e professores brasileiros e até mesmo dos discípulos
em relação aos professores não-brasileiros que, de uma forma ou de outra, se sentem com mais responsabilidade em
dominar os fundamentos da capoeira. O depoimento de um
professor, que ministra aulas na Faculdade de Motricidade
Humana da Universidade de Lisboa, ilustra esses dilemas:
Eu acho que, pelo fato de não ser brasileiro, eu tenho sempre algo mais a provar. Antes de veremme jogar ou de me verem cantar, pensam que eu
vou cantar ora pois, pois...Que eu vou jogar uma
capoeira sem qualidade. Eu já andei em alguns
sítios que nem sequer me dignaram apresentar
como professor, apenas como Arroz Doce, de
Portugal. Mas penso que o que diz respeito a mim
em relação às outras pessoas, mal começa a roda,
esquecem tudo isso. São brasileiros, são europeus.
Capoeira é capoeira. Uma roda é uma roda. Eu
vibro isso, se calhar, mais que muitos brasileiros.
Isso tem uma importância muito grande na minha
vida (Professor Arroz Doce, comunicação pessoal,
Florianópolis-SC, 26 de novembro de 2003).
A internacionalização
da capoeira
Da análise desse intrincado e rico movimento de internacionalização da capoeira, é possível formular três considerações fundamentais: a) a capoeira adquiriu, nos últimos
dez anos, grande densidade, visibilidade e poder simbólico,
e transformou-se em um dos principais cartões postais do
Brasil no exterior; b) o significado que os sujeitos apreendem de suas práticas, emocionalmente compartilhadas,
está vinculado com a intensidade das interações e com a
plenitude da experiência. Nessas práticas intersecionam as
dimensões ético-políticas, históricas, culturais e econômicas da vida em sociedade, e c) a capoeira está sujeita a
estratificação social própria de uma sociedade dividida em
classes, expressando-se em possibilidades diversificadas de
acordo com as classes sociais onde está inclusa.
132
Capoeira
A internacionalização da capoeira
Considerações finais. A realidade de algumas experiências sistemáticas de capoeira no exterior serve como fonte
de inspiração para refletirmos sobre as possibilidades desse
símbolo de brasilidade que vem encantando um número
cada vez mais expressivo de estrangeiros. Desta análise, é
possível depreender que a capoeira consolidou-se como
manifestação interétnica e o seu processo de internacionalização, verificado a partir da década de 1970, não aniquilou
a participação de sujeitos políticos no campo cultural, mas,
sim, criou para eles novos desafios.
Algumas experiências com a capoeira colocadas em prática
no exterior vêm confirmando e ampliando os traços de transnacionalidade que contribuíram para o seu desenvolvimento,
desafiando a fragilidade dos discursos que, ingenuamente, a tratam como uma prática apropriada a determinadas camadas da
população e vinculada a grupos étnicos específicos.
A complexidade e a dinamicidade da capoeira evidenciam-se na intensificação do seu processo de internacionalização, cuja mobilidade se expressa horizontalmente,
pelos trânsitos e fluxos dos capoeiras em todo o mundo,
e verticalmente, pela possibilidade concreta de ascensão
na estratificada sociedade. Apesar de constatarmos uma
sistemática reafirmação de que ela é “coisa nossa”, o que,
em tese, conferiria a todos os brasileiros o direito de exclusividade sobre a sua “mandinga”, as experiências analisadas
demonstraram que esse discurso se constrói sob a égide
do conflito e da ambigüidade. A capoeira pode até ser “coisa do Brasil”, mas também é de todo o mundo, à medida
que para ser ensinada, praticada, transmitida, construída,
ela precisa ser compartilhada, dividida, multiplicada.
A capoeira pode ser interpretada de acordo com valores
e regras sociais. Como construção social e como manifestação cultural que permanentemente se constrói, a capoeira é
influenciada pelo tempo histórico em que se situa, mas também edificada a partir dos interesses e das ações dos sujeitos
que, por meio dela, atuam e disputam poder na sociedade.
Embora parcela significativa de capoeiras a trate como
símbolo étnico (capoeira é brasileira! é africana! é afro-brasileira!), seu movimento de internacionalização leva-nos a pensá-la
como uma manifestação com status de patrimônio cultural da
humanidade. Nessa perspectiva ela não teria pátria, embora
carregaria símbolos de sua inquestionável brasilidade.
FALCAO, J. L. C. O jogo da capoeira em jogo e a construção da
práxis capoeirana. Tese (Doutorado em Educação). Salvador-BA.
Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, 2004.
NUNES, V. Capoeira made in NYC. Correio Braziliense. Brasília-DF, Caderno Coisas da Vida, p. 1 e 3, 13 mar. 2001.
PIRES, A. L. C. S. A capoeira no jogo das cores: criminalidade,
cultura e racismo na cidade do Rio de Janeiro (1890-1937).
Dissertação (Mestrado em História). Campinas-SP, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História,
Universidade Estadual de Campinas, 1996.
REGO, W. Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico.
Salvador: Itapuã, 1968.
SANTANA, J. Velhos mestres. Correio da Bahia. Salvador: Caderno Correio Repórter, p. 1-7, 15 abr. 2001.
SOARES, C. E. L. A negregada instituição: os capoeiras no
Rio de Janeiro, 1850-1890. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1994.
SOARES, C. E. L. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Campinas-SP: Editora
da Unicamp, 2001.
TRAVASSOS, S. D. Negros de todas as cores: capoeira e
mobilidade social. In: BACELAR, J. & CAROSO, C. (Orgs.). Brasil: um país de negros? Rio de Janeiro: Pallas; Salvador-BA:
CEAO, p. 261-271, 1999.
VASSALLO, S. P. A transnacionalização da capoeira: etnicidade, tradição e poder para brasileiros e franceses em Paris. In:
Anais da Quinta Reunião de Antropologia do Mercosul. Florianópolis-SC, 30 de novembro a 03 de dezembro de 2003.
WEELOCK, Julie. Capoeira para americano jogar. Jornal do
Brasil, Rio de Janeiro, 11 Jan. 1989, p. 8, Caderno B.
José Luiz Cirqueira Falcão. Professor do Centro de
Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia.
Referências bibliográficas
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p. 58, 4 fev. 2004.
CARVALHO, L. C. Na roda com a mulher. Revista Praticando
Capoeira. São Paulo, ano II, n. 17, 2002.
133
Carybé
Hector Julio Páride Bernabó, ou Carybé, nasceu em Lanús (Argentina) em 07 de fevereiro de 1911 e faleceu em
Salvador, em 02 de outubro de 1997. Destacou-se pela arte
figurativa brasileira, sobretudo a baiana, com motivos de mulatas lavadeiras, pescadores, e capoeiristas, por meio de estilo que se aproxima da abstração. Apesar de ter nascido na
Argentina e vivido sua infância na Itália, foi no Brasil que teve
sua formação artística e morada definitiva. Mudou-se para
o Brasil em 1919, e freqüentou a Escola Nacional de Belas
Artes entre 1927 e 1929.
Seu primeiro contato com a Bahia foi em 1938, quando
foi enviado pelo jornal Prégon para fazer uma reportagem
sobre o célebre personagem Lampião. Com a falência do
periódico, estendeu sua jornada pelo litoral norte do Brasil,
que lhe inspirou desenhos para sua primeira exposição coletiva, em Buenos Aires, em 1939. Sua relação com o Brasil se
aprofunda na década de 1940, quando verteu Macunaíma,
de Mário de Andrade, para o espanhol. Na década de 1950,
a convite do Secretário da Educação Anísio Teixeira, Carybé
muda-se definitivamente para Bahia, onde auxilia a promover
a renovação das artes plásticas. Em 1955 foi eleito o melhor
desenhista da III Bienal de São Paulo, e em 1961 recebeu o
mérito de expor em sala exclusiva. Em 1957 naturalizou-se
brasileiro, fato que legitimou sua condição de ícone da Bahia.
Com efeito, suas obras visam, sobretudo, a retratar a riqueza
da cultura popular baiana.
Carybé realizou mais de cinco mil trabalhos, entre pinturas, desenhos, esculturas e esboços, incluindo ilustrações
para obras de autores consagrados como Jorge Amado, Rubem Braga, Mário de Andrade e Gabriel Garcia Marquez. Possui murais nas cidades de Salvador, Londres e Nova York, em
que se nota influência de Picasso e Rivera. Entre suas obras
impressas, destacam-se a Iconografia dos Deuses Africanos
no Candomblé da Bahia, resultado de 30 anos de pesquisa, As Sete Portas da Bahia, coletânea de desenhos sobre a
cultura baiana, e Olha o Boi e Bahia, Boa Terra Bahia, ambos
em parceria com Jorge Amado. O escritor baiano, seu grande amigo, em um de seus versos integrantes da Cantiga de
capoeira para Carybé, traça bela descrição da relação de Carybé com a cultura baiana:
“[...] A paisagem, a poesia
e o mistério da Bahia,
ê, ê camarado,
e de quem é?
É de Carybé, camarado,
Ê camarado, ê. [...]”
Pierre Verger
Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novembro de 1902. Desfrutando de boa situação financeira, ele
levou uma vida convencional para as pessoas de sua classe
social até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dos
valores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foi
decisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografia - e
descobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932
até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de
viagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamente da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais,
agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas
e até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-se
uma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas ligados a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - e
fazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as melhores publicações da época, mas como nunca almejou a
fama, estava sempre de partida: “A sensação de que existia
um vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir
vê-lo me levava em direção a outros horizontes”.
As coisas começaram a mudar no dia em que Verger
desembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vivia o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foi
logo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que encontrou na cidade e acabou ficando. Como fazia em todos
os lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, os
lugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidade
e também a sua atenção. Além de personagens das suas
fotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi buscando conhecer com detalhe. Quando descobriu o candomblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade do
povo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás.
Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe
rendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para onde
partiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começou
nessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A história, costumes e principalmente a religião praticada pelos
povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na
Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas
e sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante de
várias universidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou
a casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou de
fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África.
Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de
Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um número maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acervo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiras
publicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pierre Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente,
assumindo assim a transformação da sua própria casa num
centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, deixando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho.
“A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüência de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aquele
que tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin.
Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, a
realçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que ela
conhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses países
sobre suas influências culturais na Bahia”, afirmou Verger no
primeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundação
todo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagens
e pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativos
fotográficos, gravações sonoras, filmes em película e vídeo,
além de uma coleção preciosa de documentos, fichas, correspondências, manuscritos e objetos.
Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa
jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e financeira, que funciona até hoje na
mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na
Ladeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupo
de amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fundação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En-
tre funcionários, diretores e curadores estão algumas das
pessoas que conviveram com Verger mais de perto nos
últimos anos de sua vida.
Principais objetivos da Fundação:
• preservar, divulgar e pesquisar a obra do instituidor Pierre
Edouard Leopold Verger;
• estudar e preparar publicações relacionadas com as influências recíprocas entre o Brasil e a África em geral e,
principalmente, entre a Bahia e o Golfo do Benin;
• proporcionar oportunidades de cooperação interdisciplinar em áreas como artes, antropologia, botânica, música
e história;
• servir como centro de informações e pesquisa;
• estabelecer e manter relações com organizações culturais internacionais interessadas na cultura africana e nos
problemas da diáspora dos africanos no Novo Mundo.
Serviços:
• liberação de direitos autorais e venda das fotografias de
Pierre Verger; e
• disponibilização do acervo a pesquisadores.
Fonte: Fundação Pierre Verger
http://www.pierreverger.org/br/index.htm
Pierre Verger
Pierre Verger nasceu em Paris, no dia quatro de novembro de 1902. Desfrutando de boa situação financeira, ele
levou uma vida convencional para as pessoas de sua classe
social até a idade de 30 anos, ainda que discordasse dos
valores que vigoravam nesse ambiente. O ano de 1932 foi
decisivo em sua vida: aprendeu um ofício - a fotografia - e
descobriu uma paixão - as viagens. De dezembro de 1932
até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de
viagens ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamente da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais,
agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas
e até trocou seus serviços por transporte. Paris tornou-se
uma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas ligados a Prévert e os antropólogos do Museu do Trocadero - e
fazia contatos para novas viagens. Trabalhou para as melhores publicações da época, mas como nunca almejou a
fama, estava sempre de partida: “A sensação de que existia
um vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir
vê-lo me levava em direção a outros horizontes”.
As coisas começaram a mudar no dia em que Verger
desembarcou na Bahia. Em 1946, enquanto a Europa vivia o pós-guerra, em Salvador, tudo era tranqüilidade. Foi
logo seduzido pela hospitalidade e riqueza cultural que encontrou na cidade e acabou ficando. Como fazia em todos
os lugares onde esteve, preferia a companhia do povo, os
lugares mais simples. Os negros monopolizavam a cidade
e também a sua atenção. Além de personagens das suas
fotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foi buscando conhecer com detalhe. Quando descobriu o candomblé, acreditou ter encontrado a fonte da vitalidade do
povo baiano e se tornou um estudioso do culto aos orixás.
Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe
rendeu uma bolsa para estudar rituais na África, para onde
partiu em 1948. Além da iniciação religiosa, Verger começou
nessa mesma época um novo ofício, o de pesquisador. A história, costumes e principalmente a religião praticada pelos
povos iorubás e seus descendentes, na África Ocidental e na
Bahia, passaram a ser os temas centrais de suas pesquisas
e sua obra.. Como colaborador e pesquisador visitante de
várias universidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos, comunicações, livros. Em 1960, comprou
a casa da Vila América. No final dos anos 70, ele parou de
fotografar e fez suas últimas viagens de pesquisa à África.
Em seus últimos anos de vida, a grande preocupação de
Verger passou a ser disponibilizar as suas pesquisas a um número maior de pessoas e garantir a sobrevivência do seu acervo. Na década de 80, a Editora Corrupio cuidou das primeiras
publicações no Brasil. Em 1988, Verger criou a Fundação Pierre Verger (FPV), da qual era doador, mantenedor e presidente,
assumindo assim a transformação da sua própria casa num
centro de pesquisa. Em fevereiro de 1996, Verger faleceu, deixando à FPV a tarefa de prosseguir com o seu trabalho.
“A criação da Fundação Pierre Verger foi a conseqüência de dois de meus amores: o que sinto pela Bahia e aquele
que tenho pela região da África, situada no Golfo de Benin.
Ela se propõe, através de seus objetivos e suas atividades, a
realçar esta herança comum, oferecendo à Bahia o que ela
conhece sobre o Benin e a Nigéria e informar esses países
sobre suas influências culturais na Bahia”, afirmou Verger no
primeiro boletim informativo da FPV. Ele doou à Fundação
todo o seu acervo pessoal, reunido em décadas de viagens
e pesquisas. São dezenas de artigos, livros, 62 mil negativos
fotográficos, gravações sonoras, filmes em película e vídeo,
além de uma coleção preciosa de documentos, fichas, correspondências, manuscritos e objetos.
Criada legalmente em 1988, a Fundação é uma pessoa
jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com autonomia administrativa e financeira, que funciona até hoje na
mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na
Ladeira da Vila América, em Salvador. Gerida por um grupo
de amigos, colaboradores e admiradores de Verger, a Fundação cuida da preservação e divulgação de sua obra. En-
tre funcionários, diretores e curadores estão algumas das
pessoas que conviveram com Verger mais de perto nos
últimos anos de sua vida.
Principais objetivos da Fundação:
• preservar, divulgar e pesquisar a obra do instituidor Pierre
Edouard Leopold Verger;
• estudar e preparar publicações relacionadas com as influências recíprocas entre o Brasil e a África em geral e,
principalmente, entre a Bahia e o Golfo do Benin;
• proporcionar oportunidades de cooperação interdisciplinar em áreas como artes, antropologia, botânica, música
e história;
• servir como centro de informações e pesquisa;
• estabelecer e manter relações com organizações culturais internacionais interessadas na cultura africana e nos
problemas da diáspora dos africanos no Novo Mundo.
Serviços:
• liberação de direitos autorais e venda das fotografias de
Pierre Verger; e
• disponibilização do acervo a pesquisadores.
Fonte: Fundação Pierre Verger
http://www.pierreverger.org/br/index.htm

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