O CARÁTER DAS ANDORINHAS

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O CARÁTER DAS ANDORINHAS
“O CARÁTER DAS ANDORINHAS”
“Esta historia es para la pareja Ferndo Uziraga Navarro y su esposa Flor de Mayo
Uziraga porque me dio jugo de naranja y miel para curar la fiebre del amor en el borde
de la fatalidad”.
Resguardado pela sombra do abacateiro Theodoro Alcama recebeu a
notícia de sua exoneração sumária.
Tinha visto crescer aquele rapaz do correio que chegou de pé sobre um
único pedal da bicicleta e a estancou saltando para o chão bem na frente de
seu portão.
“Senhor Theodoro, telegrama!”, gritou o mensageiro com a cara de
meio índio batizado tostada de sol e o uniforme cáqui empapado num suor
tão abundante que lhe tingia a farda de manchas arredondas e mais escuras
que o tecido, plenamente inadequado ao escaldante clima subequatorial, “É
do governo”, completou, sacudindo o envelope como se a importância do
remetente determinasse a urgência da leitura.
“Morreu mais um?”, indagou o ancião, levando avante o pescoço sem
se erguer da cadeira de vime recostada ao tronco da frondosa árvore.
“Não sei, doutor. Não é permitido ler o conteúdo das mensagens”,
respondeu Jano Tchucã, estendendo o braço para além do portão de taipas e
chacoalhando entre os dedos o pequeno envelope pardo.
“Eu autorizo!”, afirmou o velho corpulento, fitando entre as pálpebras
arroxeadas aquele mestiço honrado que apenas uma vez na vida lhe chamara
de padrinho.
O rapaz não se moveu nem balbuciou qualquer palavra. Apenas
permaneceu ali, silencioso, circunspeto como a estátua de bronze que sua
figura inspirava, o braço estirado de viés no vão das ripas, os olhos negros
cravados no rábula nomeado há trinta anos ou mais por Don Eustáquio de
Lucana — um bispo déspota com pendores políticos a quem servira como
guarda-livros em Claudiana do Meio e que por nebulosa gratidão intercedera
junto ao governador a fim de enviá-lo como ilustre causídico da comarca às
fronteiras mais ermas, “Visto que, muito cá entre nós meu governador, caso
este filho de égua parideira resolva pôr a boca no mundo, estaremos todos
arruinados para sempre!”.
Durante aquele secular minuto de inércia Theodoro Alcama invejou a
dignidade crioula que corria nas veias daquele moço. Desejou tê-la possuído
também em época devida. Enfim, cabia-lhe agora expiar seus pecados,
segundo entendia, no desterro de um outono solitário, a bem de abastado.
Ergueu o corpanzil flácido, caminhando com lentidão para fora das
sombras duras que pareciam cravadas na relva como se fossem pinturas
permanentes. A custo evitava os abacates apodrecidos espalhados pelo chão.
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“Índio tolo... Índio tolo... Dê aqui essa porcaria...”, rumorejou antes de
tomar o envelope daquela pequena mão escurecida, suspensa no ar e depois:
“Espere aí, espere aí. Vamos ver quem morreu... Sempre preferi ouvir notícias
de morte que as ler. O papel com as letras é a própria lápide entre as mãos,
entende?... Mas o que se há de fazer quando se tem por carteiro um nativo
digno?”.
Jano Tchucã recolheu o braço, encostou a bicicleta na cerca e ficou
bem de frente para homenzarrão que firmava as vistas na mensagem, num
vai e vem focal como se lhe faltasse a mira para atingir o alvo.
“Caro doutor Theodoro Alcama, a partir desta data seus louváveis
préstimos não são mais necessários à nossa Comarca. Muito agradecemos a
inestimável colaboração através de tantos anos. Assinado: Miguel Abranos
Callixto, Secretário Geral do Governo Novo”.
E então completou por conta: “Ah, é o filho de rameira gasta com asno
de asas que fez isto!”.
O índio permaneceu mudo contemplando aquela figura gigante num
ângulo peculiar, era como se espiasse a sólida torre de uma catedral
tangendo as morosas nuvens do céu, cortando-as, misturando-se a elas,
maculando-as com sua presença medonha e perdigotos de ira.
A verdade é que por décadas Theodoro Alcama reinou absoluto,
esquecido naquelas paragens isoladas a desfrutar de um exacerbado
prestígio público sem nunca sequer ter movido da própria dentadura um
único fiapo de palmito.
Mensalmente, Jano Tchucã lhe trazia um envelope lacrado a sinete
com soldo. E antes do índio, o próprio Manoel Caolho — finado telegrafista e
fundador do correio local o fazia com prazer, já que o falso causídico lhe
franqueava dúzias de abacates arrebanhados em sacos ou baldes que depois
vendia ou repassava a um quitandeiro.
Eis que sete governos igualmente corruptos ou indiferentes se
sucederam até que algum cioso funcionário do Estado, candidato à chefia,
encontrasse nos arquivos poeirentos a ficha pálida de um certo Theodoro
Alcama e indagasse ao departamento financeiro quem era aquele que nos
confins do inferno amealhava mês a mês tantos cobres.
De forma que lá estava agora o índio ouvindo agravos contra um tal
Miguel Abranos Callixto, que em síntese, nem o próprio exonerado conhecia,
embora blasfemasse sobre sua figura com absoluta intimidade.
Finalmente quando cessou o furioso turbilhão das ofensas impúdicas,
Jano Tchucã se sentiu à vontade para retomar o guidão da bicicleta e cumprir
seu operoso expediente.
“Espere”, disse Theodoro Alcama enquanto picava o telegrama,
recolhendo os pedacinhos para a palma da mão direita e depois de algum
tempo: “Se alguém perguntar, diga que morreu mais um, alguém importante,
importantíssimo está bem?”.
“Está!”, resumiu o rapaz já fazendo montaria.
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Theodoro julgava que podia contar com a honradez daquela palavra e
isso não o inquietou; quiçá lançasse agora este convite por algum tipo de
remorso ou mesmo abatido pela solidão e decadência: “Venha amanhã
apanhar uns abacates.”, bradou ao ver a bicicleta já em movimento.
Então fez jorrar acima de sua cabeça uma breve chuva de papel picado
e voltou à cadeira assombreada, da qual apreciava o gradativo apodrecer das
frutas no terreiro e da vida.
Atrás dele, após a árvore, jazia a ampla habitação escurecida e já
parcialmente arruinada pela implacável ação do tempo e do desleixo humano.
Nesse dia de perda rememorou o júbilo da conquista.
Era um moço com o curso de contabilidade incompleto quando chegou
a diocese empunhando nada além da pequena maleta esgarçada com duas
mudas de roupa e um papel amarfanhado repleto de letrinhas tortas a compor
frases quase incompreensíveis, intermeadas de latim, dialeto caboclo e
língua oficial que, em suma, nada significavam aos olhos de um bispo bemnascido, guindado à cúria por inconformadas mãos escravagistas e que só
não jogou o papel às chamas da inconcebível lareira tropical porque no
rodapé da folha havia a insígnia dos missionários penitentes.
Foi por causa daquela heráldica franciscana — e só por ela, não pelo
rapaz maltrapilho e extenuado de longa viagem em lombo de mula — que
resolveu chamar um diácono bibliotecário a fim de que traduzisse logo aquilo
e o deixasse em paz com seus sais coloridos para enxaqueca, apertados em
ânforas cristalinas que lhe enviaram de Roma, aplacando-lhe as queixas de
um desterro desleal em nome do santo-ofício.
Ao saber que era um pedido de guarda e emprego enviado dos confins
da pátria pelo padre André Francesco Genoveze, seu amigo e contemporâneo
do seminário de Florença, pediu ao diácono que verificasse as aptidões do
rapaz e lhe arranjasse um leito de noviço — afinal, havia nebuloso interesse
naquelas terras de variados minérios ainda desconhecidos, cujo clero
oscilava no parecer entre o divino e o diabólico e conforme atestava o laudo
de um tal engenheiro especialista em geologia, chamado, William Oliver
Shimit — contratado a peso de boa libra pelo Departamento Nacional de
Minas a fim de prospectar carvão — tratava-se de algo ainda a ser codificado
pela ciência, já que luzia no escuro e crepitava no fogo.
“Carvão, ora veja!”, rumorejou o bispo olhando-os sumir numa espécie
de diátiro que levava aos dormitórios.
Foi assim, sem saber, que Dom Eustáquio de Lucana acabara de
receber aquele seu futuro homem de confiança. E também o guarda-livros
que se tornaria grande ameaça ao insuspeito bispado ao qual pertencia
Claudiana do Meio e mais oito províncias.
O jovem Theodoro Alcama não tardou a mostrar destreza no manejo
das intrincadas contas diocesanas. Organizou os livros caixa dos últimos dez
anos, implantou sistema de arquivos, inventou o “dízimo dos dízimos” para
tudo o que as paróquias circunscritas angariavam dos fiéis mais remotos,
estabeleceu valores para encomendas de almas de acordo com os bens do
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moribundo, atribuiu correções escalonadas nos batizados e missas de sétimo
dia, adquiriu um moinho de milho e uma fazenda em Claudiana da Esquerda
para que os órfãos aprendessem ofícios dando lucro do plantio à moagem,
permutou uma prensa de Gutemberg por bênçãos vitalícias à combalida
Fundição Germânia e estabeleceu uma prosperidade tão vigorosa e completa
que fez crescer os olhos do próprio Vaticano e esfriou por completo a gana de
repatriamento do senhor bispo.
Por longos anos, Theodoro Alcama gozou todo prestígio e fama como
editor de um periódico chamado, “O Báculo” — a princípio produzido com a
tal prensa de Gutemberg — e que, de certa forma, rompeu o restrito círculo
eclesiástico para ser apreciado também no meio político. Nele, cardeais
empertigados surgiam ao lado de senadores larápios, deputados demagogos
versavam sobre os louváveis idealismos de arcebispos vaidosos, governantes
orgulhosos mostravam os casamentos das filhas em catedrais estrangeiras —
tudo com a solene conivência de Dom Eustáquio de Lucana que mantinha
uma coluna na terceira página com sua efígie de moeda romana pendurada
no cabeçalho.
Mas o destino do ilustre administrador começou a mudar quando quis
transformar o sítio do bispo em estância para idosos endinheirados.
Não que o clérigo se opusesse a engordar seus inexplicáveis proventos
de magnata santificado, porém tocar naquela propriedade herdada de uma
beata agradecida era assunto inconcebível. Afinal, justificava entre convicto
e irritado que ali praticava seus retiros silenciosos, jejuns purificadores,
leituras sublimadas por rosas silvestres, além das tão necessárias
meditações quaresmeiras e íntimas liturgias natalinas. Ademais, necessitava
de seu inadiável descanso semanal sob a modorra dos campos e beneplácitos
das águas sulfurosas. De sorte que o que o sítio ‘Paz Celeste’ era não apenas
intocável, constituía-se, sobretudo, um mistério ainda maior que os da fé.
Muito tempo se passou até que um certo sacristão de nome Heleodoro
Xavier Santelmo caducasse em definitivo e pusesse os carrilhões a soar árias
fúnebres antes que os galos cantassem, anunciando a súbita morte do Papa
aos párocos confusos e sonolentos que assomavam à torre, tentando em vão
livrá-lo do sobe-e-desce na ponta daquela corda atada à própria cintura.
Chamaram o doutor que lhe mediu as febres, tomou o pulso, espiou as
pálpebras, perscrutou o coração, fez meia dúzia de perguntas e prescreveu —
não a ele, mas aos condoídos presbíteros ao redor do leito — paciência, muita
paciência. Caducara de fato. Diagnóstico consumado: alternaria até o fim dos
dias momentos de lucidez e devaneio. Horas apaziguadas e rompantes de
fúria, melancolia e risonha exaltação.
“Ao menos o Papa não morreu!”, sussurrou um noviço abstraído.
Os dias posteriores transcorrem lentos e sem novidades, até que na
última tarde da primavera, Theodoro Alcama encontrasse o sacristão parado
no terreiro dos fundos contemplando com pueril alegria o anual balé das aves
nômades.
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O homem de boca aberta e mãos na cintura que breve esboçaria traços
iniciais de uma revelação assombrosa, fitava agora com olhos infantis os
distintos bandos de andorinhas inebriadas pelo amor e apetite. Deliciava-se
com as acrobacias magistrais, assombrava-se com os mergulhos suicidas
sobre os campos da diocese, agradecia a chuva de titica benta — pois tudo o
que provinha dos céus devia ser glorificado — e girava o pescoço,
acompanhando a revoada como um maestro que rege sua orquestra em suave
sinfonia.
“Vai voar bem alto também, seu Heleodoro?”, indagou o eminente
administrador no tom brincalhão de quem apenas passa sem pretender se
fixar em assunto algum.
“Não, doutor Theodoro, só estou apreciando as andorinhas. Estas são
até mais belas e graciosas do que as cativas lá no ‘Paz Celeste’, embora
aquelas, certamente, sejam mais úteis e obedientes.”, disse o homem senil
sem abandonar a regência surda de sua orquestra com intrigantes indícios de
autônoma.
Ao ouvir o nome daquela propriedade tão cingida de mistérios fluir
naturalmente na boca de um velho amalucado, Theodoro Alcama, que já ia
adiante, estancou. Os clichês metálicos de “O Báculo” caíram pesados sobre
o solo junto aos medalhões de titica esbranquiçada — conquanto benta.
Deixou lá mesmo as urgentes matrizes da próxima edição e, agora
afável, retornou ao sacristão absorto.
“O que torna estas andorinhas tão diferentes daquelas cativas lá no
‘Paz Celeste’, compadre Heleodoro?”, inquiriu arguto, forjando um tipo de
identidade monástica que jamais tiveram.
“Estas são felizes, o senhor sabe...”, disse o outro, para depois desviar
os olhos do céu e pousá-los carregados de lirismo nos clichês espalhados pelo
chão.
“O que foi, diga!”, sintetizou Theodoro Alcama, quebrando um pouco o
timbre angelical que os envolvia.
Então o velho Heleodoro Javier Santelmo apontou para as chapas de
metal e explicou: “Aquelas jamais cagariam sobre uma coisa tão importante,
olhe só como estas procedem, doutor. Isso se chama: liberdade”, foi só o que
ele disse, depois deu de ombros, fez meia-volta e se retirou cruzando o
terreiro de olhos presos nas próprias botas. Ou nas formigas, quem sabe.
Era uma terça-feira e Theodoro Alcama esteve inquieto até o sábado. A
edição de “O Báculo” circulou na quarta com uma estranha mancha escura
em forma de sol e tamanho de boa moeda a um palmo do cabeçalho,
justamente sobre o louvável depoimento do arcebispo de Montereis a
respeito do último Concílio Ecumênico.
Despediram um aprendiz de tipógrafo pelo desastrado ato de derramar
a famigerada gota de ácido na chapa matriz e a cagadela passou anônima.
Dia seguinte o rapaz surgiu morto. Tripas corroídas, língua caída no
pomo-de-adão. Envenenara-se com a química de sua desgraça deixando uma
carta na qual jurava inocência e pedia perdão à mãe por envergonhar a
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família; ao irmão mais novo legava seu relógio de pulso e a missão de adquirir
no natal umas chinelas de pele de lebre à avó querida, conforme prometera.
Acertariam as contas no além.
Dom Eustáquio de Lucana tranqüilizou a família garantindo severa
investigação e um cortejo fúnebre digno de ministro da fé, com missas
periódicas à cada manhã durante um ano.
No sábado já estava o assunto consumado e o pontífice partira ainda
pela manhã ao seu inadiável retiro bucólico.
Theodoro Alcama aguardou pelo crepúsculo deitado em seu invejável
leito de conselheiro episcopal em cujo espaldar havia o entalhe de nuvens,
arcanjos e querubins. Dali, podia ver o céu alaranjado morrer atrás das
montanhas geminadas, cobertas do verde queimado e desigual dos trópicos.
Aos poucos ia rememorando a época de sua chegada. Revivendo os
longínquos dias de expectativa em que atravessara aquelas mesmas
montanhas no lombo de uma velha mula, com sua única mala de cartão cru,
duas mudas de roupa e a carta amarrotada do bom padre André Francesco
Genoveze a recomendá-lo.
Era não mais que um jovem aldeão, trêmulo diante do senhor bispo.
Um exausto e silencioso filho bastardo de camponesa viúva prostrado a meio
metro da divindade austera e alegórica que talvez nem carne possuísse por
baixo da tunicela arroxeada, tão rica em enigmáticos bordados de ouro que
fazia doer e confundir as vistas.
Guardava ainda na memória o fragmento pictórico de Dom Eustáquio
despachando-o em companhia do diácono bibliotecário: o detalhe dos dois
dedos unidos, varrendo o ar — como se ao mesmo tempo os abençoasse e
indicasse a saída —; o pormenor daquela bandeja prateada sobre a coluneta
móvel às suas costas, na qual cintilavam pequenos potes de sal colorido; o
poder teatral oriundo daqueles gestos ensaiados, simultaneamente pesados
e comedidos sob os impressionantes afrescos de Adão e Eva expulsos do
Paraíso.
Então, naquele sábado, com um pôr de sol deslumbrante, pendurado
na janela como um quadro imemorial que desde sempre apontou a ínfima
importância humana, Theodoro Alcama, já maduro e um tanto corpulento,
deitado no leito acolhedor de fronhas mimosas — recendentes à alfazema das
beatas servidoras —, compreendeu que jamais deveria ter cruzado aquelas
montanhas.
Perdera não apenas a inocência da juventude, mas, sobretudo a fé.
Corrompera-se sob a tutela de um velhaco abatinado, tentando agradá-lo
desde o primeiro dia, chegando-se à sombra de seu poder como um cão que
se deita aos pés do dono aguardando um afago, uma ordem, uma palavra que
o distinga no mundo entre servos e estranhos.
Jamais conhecera seu pai e quando chegou à diocese imaginou que se
tivesse um, deveria ser como o senhor bispo: poderoso, refinado, digno. Por
isso, o obedeceu cegamente e lhe prestou um tipo de reverência tão sincera
quanto silenciosa que, em tempo algum, fora percebida ou agradecida pelo
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eqüidistante eclesiástico, sempre às voltas com os intangíveis mistérios da
fé.
No decorrer dos anos crescera a distância entre ele e a figura paterna
que um dia elegera como ideal. Tornara-se, isso sim, cúmplice e artífice do
descabido patrimônio daquele avaro, corregedor de miudezas e amante de
uma estranha nobreza cor-de-rosa, mais fútil e insustentável a cada dia por
quem devia estampar na alma os lírios da pureza e humildade.
Quando a noite caiu e as montanhas se consumiram, fazendo jorrar
para o céu de veludo dezenas de estrelas, Theodoro Alcama se levantou
refeito das terríveis memórias e foi chamar o cavalariço.
O moço estranhou o pedido, mas não questionou. Preparou a charrete
com as arandelas laterais para iluminar o caminho e atrelou ao coche o mais
destemido e obediente animal do bispado — corria que onças famintas
andavam açoitando patas de bois indefesos pelo peso das próprias cangas e
arrastando novilhas mata adentro bem aos olhos de seus pastores
atemorizados.
“É melhor levar a espingarda, doutor.”, disse o rapaz, “A estrada desta
Claudiana é a mais perigosa das três. O senhor sabe...”.
Por cerca de quatro horas rodaram sacolejando no ventre da noite
tendo o solitário testemunho da lua de São Jorge, brilhando quase acima de
suas cabeças como auréola única.
O trote ritmado do animal aguçava o coaxar dos sapos pantaneiros e,
mais além, fazia incendiar os vaga-lumes fugitivos.
Não trocaram uma só palavra até que se avistassem as muitas janelas
da casa, fartamente iluminadas por candeeiros a querosene.
“Pronto, lá está ele: o sítio ‘Paz Celeste’, doutor”, disse o cocheiro,
talvez aliviado por não ter topado com nenhuma onça faminta.
“Toque”, sintetizou o nobre passageiro, vislumbrando a silhueta do
casarão crescer na massa de trevas. Logo surgiram luzes menores, cerosas e
dispersas atrás da porteira, porém muito aquém da casa. Ao se aproximar
notaram a presença de muitos coches estacionados num tipo de jardim
arborizado, alguns condutores mantinham acesas as arandelas das charretes
e conversavam entre si a espera de seus patrões.
“É uma festa, doutor?”, indagou o cavalariço, num misto de euforia e
surpresa.
“Talvez.”, laconizou novamente o guarda-livros há muito promovido à
mandatário, antevendo, quiçá, o último limite de tudo aquilo que o seu
indigesto arrependimento poderia conceber como admissível a um ministro
do clero. Imediatamente o prelúdio cifrado pelo caduco Heleodoro Javier
Santelmo começou a fazer sentido. Sórdido sentido.
A porteira estava aberta e o rapaz parou o coche próximo aos demais.
Theodoro Alcama saltou sem dizer nada. Apenas esticou o vinco das
roupas e alisou o cabelo com a palma das mãos. Então seguiu.
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Uma escada de mármore com meia dúzia de degraus separava o pátio
ajardinado da imponente construção. Dois discretos archotes ladeavam a
porta de arcada alta, iluminando a entrada.
O homenzarrão sombrio atravessou a soleira, calcando o capacho de
sisal onde se lia o nome da propriedade. A sua frente havia um salão amplo
com poucos móveis, ali dois militares armados riam e conversavam,
empunhando copos de vinho frutado. Suas sombras múltiplas dançavam no
piso ao sabor dos vários candeeiros instalados em pontos diferentes.
Acordes distantes e incertos de violino impregnavam o ambiente com
todos os matizes da mais profunda melancolia.
“Auto lá!”, disse um dos soldados precipitando-se para ele, e logo:
“Quem é o senhor?”.
“Conselheiro vitalício de Dom Eustáquio de Lucana.”, disse o visitante,
impondo seu porte e firmeza de voz.
“Entre... Desculpe, fazemos a guarda do senhor governador e somos
obrigados a interpelar a todos os que entram. Não fosse pela segurança, seria
pelo sigilo.”, justificou-se o militar.
“Compreendo”, disse Theodoro Alcama antes de seguir em frente,
tentando revelar alguma familiaridade com o local.
Enveredou pela porta à esquerda e deu com uma cabocla picando
frutas na cozinha. Ela apenas o olhou e prosseguiu sua tarefa em silêncio,
passando os nacos para um tacho de ferro.
“Onde está ele?”, indagou Theodoro. A mulher não respondeu.
Despejou o vinho de uma grande talha de barro para tacho das frutas e
mexeu com a colher de pau, enquanto o choro longínquo do violino se
mesclava ao “chept-chept” da mistura em rotação.
Percebeu, encolhido sob a mesa, a presença assustada um menino
maltrapilho que acabara de perder seus dentes de leite. Jamais esqueceria
aquele olhar de terror e calada súplica.
“Onde está Dom Eustáquio de Lucana?”, insistiu ele para a mestiça
que via a sombra do próprio rosto redondo refletir no remanso escarlate da
bebida.
Ela apenas fez com a cabeça um breve sinal que remetia ao pavimento
superior. Então Theodoro Alcama voltou ao saguão de onde tinha vindo e, ao
perceber os militares lá fora, fumando junto dos cocheiros, subiu com muita
destreza as escadarias que principiavam do lado direito.
Deu com um corredor de muitas portas iluminado por um único
candeeiro. Parou diante daquela que guardava a precária melodia de violino e
girou a maçaneta...
Januário Tchucã bateu palmas no portão. Tinha o característico rosto
suado do fim de expediente.
Theodoro Alcama surgiu na varanda, fixou os olhos inchados e de
pálpebras roxas no ponto humano que saltava da luz diáfana.
“Sou eu. O senhor disse que eu podia vir hoje apanhar uns abacates”.
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“Ah, é você, índio tolo!”, alegrou-se o velho exonerado, “Entre, entre...
Apanhe quantos puder e deixe que eu lhe conte como foi que vim parar
nestas abençoadas fronteiras por ver um bispo honrado pederasta levar no cu
enquanto um governante desafinado assistia e tocava rabeca”.
Então caminhou sorridente para a eterna cadeira abaixo do abacateiro
contemplando o rapaz adentrar com a bicicleta.
“Apanhe aquele ali, está bem maduro”, disse, apontando para uma
das frutas e prosseguiu: “Imagine só índio tolo: caso eu possuísse o teu
caráter não estaria aqui agora indicando abacates na relva. És andorinha
livre, índio tolo”.
© Copyright, Gilberto Namura – 2004
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