da obra completa - LabConeSul História Social e

Transcrição

da obra completa - LabConeSul História Social e
Dos intelectuais na política
à política dos intelectuais
Pensadores, escritores e militantes
no diálogo com o poder
Flavio M. Heinz
Organizador
Dos intelectuais na política
à política dos intelectuais
Pensadores, escritores e militantes
no diálogo com o poder
OI OS
EDITORA
2015
© Dos autores – 2015
[email protected]
Editoração: Oikos
Revisão: Luís M. Sander
Capa: Juliana Nascimento
Arte-final: Jair de Oliveira Carlos
Impressão: Rotermund S. A.
Conselho Editorial (Editora Oikos):
Antonio Sidekum (Ed. Nova Harmonia)
Arthur Blasio Rambo (IHSL)
Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)
Danilo Streck (UNISINOS)
Elcio Cecchetti (UFSC e UNOCHAPECÓ)
Ivoni R. Reimer (PUC Goiás)
Luís H. Dreher (UFJF)
Marluza Harres (UNISINOS)
Martin N. Dreher (IHSL – MHVSL)
Oneide Bobsin (Faculdades EST)
Raul Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha)
Rosileny A. dos Santos Schwantes (UNINOVE)
Esta publicação apresenta resultados parciais de pesquisas desenvolvidas no âmbito
do projeto PROCAD-NF/CAPES “Composição e recomposição de grupos dirigentes
no Nordeste e no Sul do Brasil: uma abordagem comparativa e interdisciplinar”, reunindo equipes do PPGH-PUCRS, PPGS-UFS e PPGCP-UFPR.
Editora Oikos Ltda.
Rua Paraná, 240 – B. Scharlau
Caixa Postal 1081
93121-970 São Leopoldo/RS
Tel.: (51) 3568.2848
www.oikoseditora.com.br
[email protected]
I61
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais: pensadores,
escritores e militantes no diálogo com o poder / Organizador
Flavio M. Heinz. – São Leopoldo: Oikos, 2015.
170 p.; 16 x 23cm.
ISBN 978-85-7843-459-5
1. Intelectualismo. 2. Política – Poder. I. Heinz, Flavio M.
CDU 165.63
Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário
Sobre autoras e autores ......................................................................... 7
Apresentação ....................................................................................... 9
Auguste Comte................................................................................... 17
Mary Pickering
A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio .... 39
Eduard Esteban Moreno Trujillo
Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão ..................... 67
Marisângela Martins
As usinas do anticomunismo castrense. Os intelectuais do
nacionalismo de direita na Argentina, 1955-1966 ................................ 89
Juan Manuel Padrón
Escritos de propaganda republicana: estratégias de publicação
e inserção sociopolítica a partir da atuação de
Joaquim Francisco de Assis Brasil e João Capistrano de Abreu
(década de 1880) .............................................................................. 111
Tassiana Maria Parcianello Saccol
Dom Chimango e a torre de marfim: a literatura de Homero Prates
e a política oligárquica da Primeira República (1890-1927) ................ 133
Cássia Daiane Macedo da Silveira
Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução ................153
Jefferson Teles Martins
6
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Sobre autoras e autores
Cássia Silveira é graduada e Mestre em História pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul e Doutora em História Social pela Universidade
Estadual de Campinas. Atualmente é docente no curso de Licenciatura
em História na Universidade Federal do Pampa. Atua na área de História
do Brasil Republicano, com especial interesse em história da imprensa,
história da literatura e as relações entre os intelectuais e a política.
Eduard Esteban Moreno é graduado em Ciências Sociais pela Universidad
Pedagógica Nacional (Colômbia, 2009) e Mestre em História pela Universidad de los Andes (Colômbia, 2011). Foi pesquisador do Centro de Investigación y Estudios Sociales, CIES (Colômbia, 2010-2012), em temas de História Intelectual, História Política e Movimentos Sociais. Na atualidade
cursa o Doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul e desenvolve pesquisas sobre a história das ideias de
esquerda na América Latina desde uma perspectiva comparada.
Flavio M. Heinz é Doutor em História e Sociologia do Mundo Contemporâneo pela Université de Paris-Ouest, Nanterre. Atualmente, é professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná e coordena o Laboratório de História Comparada
do Cone Sul. É autor de Les fazendeiros à l’heure syndicale: représentation
professionnelle, intérêts agraires et politique au Brésil, 1945-1967 (Septentrion/
ANRT, 1998) e organizador, entre outros, de Por outra história das elites
(Editora FGV, 2006) e Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para
uma história comparada da América Latina (Editora Oikos, 2009), História
social de elites (2011) e Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação e
história (2012).
Jefferson Teles Martins é Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre e doutorando em
História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), pesquisa temas relacionados à história social dos intelectuais.
Em 2013, participou de estágio doutoral no Lateinamerika Institut da Freie
Universität Berlin (FUB).
7
Sobre autoras e autores
Juan Manuel Padrón é Doutor pela Universid del Centro de la Provincia de
Buenos Aires (UNICEN), de Tandil, Argentina. Atualmente é docente e
pesquisador na Faculdade de Arte – UNICEN, e membro do Centro Interdisciplinario de Estudios Políticos, Sociales y Jurídicos (CIEP – FCH/FD –
UNICEN) e do Centro de Estudios de Teatro y Consumos Culturales (TECC
– Faculdade de Arte – UNICEN). É um dos coordenadores de Ensayos
sobre vanguardias, censuras y representaciones artísticas en la Argentina reciente (UNICEN, 2010).
Marisângela Martins é Doutora em História pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), instituição e área nas quais concluiu
Mestrado no ano de 2007 e formou-se no curso de Licenciatura Plena
em 2004. Atualmente, é Técnica em Assuntos Educacionais no Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Dedica-se ao estudo dos
intelectuais, especialmente os intelectuais comunistas, e das possíveis
articulações entre política e literatura. É coautora do “Dicionário Ilustrado da Esquerda Gaúcha” (Evangraf, 2008) e autora de “À esquerda
de seu tempo: escritores e Partido Comunista do Brasil (Porto Alegre/
1927-1957)” (tese, UFRGS, 2012).
Mary Pickering é professora da San José State University, Califórnia, onde
leciona metodologia, historiografia e história intelectual e cultural da Europa moderna. É titular de um DEA pelo Instituto de Estudos Políticos de
Paris (Sciences Po) e doutora pela Universidade de Harvard. Biógrafa de
Auguste Comte, Pickering é autora da obra monumental Auguste Comte:
an intellectual biography (3 volumes, Cambridge University Press, 1993-2009).
Tassiana Maria Parcianello Saccol é Licenciada e Bacharel em História
pela Universidade Federal de Santa Maria (2010) e Mestre em História
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013).
Dedica-se à pesquisa da história política no Brasil da segunda metade
do século XIX até a Primeira República, com ênfase nas instituições
político-partidárias e na trajetória de seus líderes. Também se interessa
pela história dos intelectuais e história da imprensa. Atualmente é doutoranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde desenvolve o seguinte projeto: De líderes históricos a opositores: a atuação dos dissidentes do Partido Republicano Rio-grandense
na Primeira República (1889-1923).
8
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Apresentação
O presente volume reúne artigos dedicados à análise das relações
dos intelectuais, nas mais diversas e generosas acepções do termo, com o
mundo da política. Seria excessivo aqui retomar toda a literatura dedicada ao tema intelectuais & política. Muito se discorreu sobre a dupla experiência, de sedução e vertigem, que caracterizou o engajamento político
de escritores, artistas, jornalistas e profissionais universitários, e grandes
autores produziram sínteses relevantes sobre o tema. Na perspectiva da
história social, que é a que anima o grupo de pesquisadores à origem deste volume, um nome incontornável seria o de Christophe Charle, em uma
obra definitiva, Naissance des “intellectuels”, 1800-1900, ou, para citar autores brasileiros, os trabalhos igualmente incontornáveis de Sergio Miceli e
Angela Alonso. Mas reconhecemos que qualquer tentativa de “fechar” o
tema a partir de uma ou outra reivindicação de autoridade acadêmica
seria, neste caso, inútil. Com efeito, os intelectuais foram, desde muito
cedo, apaixonados pela política e pela possibilidade de discutir essa paixão com o público. Assim, muita tinta foi e segue sendo derramada, pelos
atores e por seus biógrafos e historiadores, na tentativa de se explicitar a
natureza íntima dessa relação.
Nossa pretensão é mais modesta. Buscamos recuperar exemplos de
pesquisa que restituam a complexidade da relação, suas zonas de sombra,
suas contradições, não explicá-la cabal e definitivamente. Para fazê-lo, o
aporte da história, a análise empírica fina dos atores e de suas negociações
cotidianas com o poder – e com outros atores, tendo a perspectiva do poder
e o Estado como panos de fundo –, revela-se fundamental. E na perspectiva
histórica, duas dimensões devem ser observadas: primeiro, as condições
sociais de emergência dos ‘intelectuais’ como grupo, suas caraterísticas gerais e diferenciação em relação a outros grupos preexistentes ou emergentes; segundo, os momentos de inflexão – notadamente as crises políticas –,
em relação aos quais tomadas de posição serviram para mapear posições,
9
Apresentação
para identificar proximidades e afastamentos, para reunir/separar/rearranjar
seus membros.
Em relação às condições sociais de emergência dos intelectuais, é
oportuno lembrar a perfeita síntese de Christophe Prochasson: “O grupo
social formado pelos intelectuais – cuja designação e conceituação modernas aparecem progressivamente nos anos 90 do século XIX – se constitui
nas últimas décadas do século XIX, ao mesmo tempo como produção social
(resultado de um reforço de categorias médias, de um lado, e dos efeitos da
massificação da cultura, de outro) e como produção política ligada à aparição de um sistema republicano-democrático no qual o saber está associado
à política (as classes dirigentes devem ser classes instruídas, sendo o Estado
aquele que promove o ensino das massas e que ergue o Panteão dos “grandes homens” – que por vezes se confunde com o Panteão real – no qual
escritores, pensadores e cientistas são maioria)”. Identificando no caso
Dreyfus o momento de entrada do termo intelectual no vocabulário político e social francês, Prochasson sustenta que, naquela ocasião, as “minorias
cultas se definiram como um contrapoder frente ao Estado, do qual passaram a denunciar as derivas, a infidelidade aos próprios princípios que ele
mesmo instituíra e o chamaram à ordem, por diferentes meios, sendo o
mais importante deles a imprensa”.1
Desde a conjuntura que marcou o aparecimento da figura do “intelectual” na sua mais duradoura representação contemporânea, aquela associada ao Émile Zola de J’accuse, o termo intelectual tem se prestado a
toda espécie de tráfico de sentidos e de desejos. Homem de ideias e convicções, fustigador da injustiça perpetrada pelo poder, espécie de consciência
da sociedade e da nação, crítico social, o intelectual responde, é verdade, a
certo senso comum sobre as características que o termo recobre. Contudo,
como bem mostrou Christophe Charle, na sua análise das disputas entre
dreyfusards e anti-dreyfusards, o engajamento político de homens de letras,
publicistas, profissionais ligados ao mundo da cultura, em geral, obedecia
1
PROCHASSON, Christophe. Sobre el concepto de intelectual. Historia contemporânea, v. II, n.
27, p. 803, 2003.
10
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
primordialmente a uma lógica de disputa (e reprodução) de posições, e reafirmação de solidariedades, presentes no campo artístico e literário, e nas
universidades. O acirramento de posições frontalmente opostas no caso
Dreyfus levaria à consolidação de um sentido novo para o termo, como
“profissionais do intelecto que, em nome de sua especificidade social, reivindicam um poder de tipo especial”2.
O propósito desse volume é ir além do senso comum mencionado no
parágrafo acima. E quando reafirmamos a necessidade de irmos além dos
clichês usuais, não o fazemos como uma ressalva apenas à possível percepção equivocada do grande público, mas também aos usos que os próprios
intelectuais fazem desses clichês. Com efeito, os usos sociais da posição de
intelectual não podem ser percebidos, apenas, desde uma perspectiva externalista, sociologicamente ingênua, que ignora a instrumentalização perpetrada e os ganhos simbólicos e políticos auferidos pelos atores em questão.
Trata-se aqui, e fizemos questão dizê-lo no título deste volume – “dos intelectuais na política à política dos intelectuais” –, de nos interessarmos pela
dimensão da atuação dos intelectuais no espaço político, é certo, mas, igualmente, de reconhecer suas estratégias de posicionamento, as percepções
que são as suas, não apenas sobre os temas em debate, mas sobre o lugar
que ocupam no espaço dos intelectuais, sobre como preferem ser representados e percebidos pelo público. Constituiria um truísmo sociológico asseverar que o intelectual é uma personagem ambígua ou multifacetada. Uma
vez que todos os indivíduos recobrem uma gama imensa de características
não redutíveis tão somente à sua imagem exterior, é de se imaginar que a
boa pesquisa “revele” não o novo, mas aquilo que já se poderia imaginar lá
estar, aquilo que se mantinha coberto pelo manto espesso da representação
consagrada do intelectual dreyfusard.
2
CHARLE, Christophe. Nascimentos dos intelectuais contemporâneos (1860-1898). História da
Educação, Pelotas, n. 14, p. 141-156, set. 2003, p. 15.
11
Apresentação
Os textos
O primeiro dos textos aqui reunidos traz à luz o itinerário de Augusto Comte, filósofo, cientista, reformador, um autor que dificilmente se encaixaria, à primeira vista, no modelo bem-sucedido e popularizado de intelectual dos últimos anos do século XIX. Não obstante, pareceu-nos interessante trazer aos leitores este depoimento da biógrafa de Augusto Comte,
Mary Pickering, apresentado no formato de uma conferência ministrada
na Maison de Auguste Comte, em Paris, em janeiro de 2010. Nele, Pickering refaz, de forma necessariamente sintética, o longo percurso de sua investigação sobre o autor do Sistema de Filosofia Positiva, apontando características pessoais do biografado que não apenas influenciariam sua obra
escrita, mas que, igualmente, contribuiriam para a atração de novos discípulos e chegariam a afetar seriamente a continuidade de seu círculo próximo de relações.
O texto de Pickering é especialmente interessante por cotejar, de forma clara e objetiva, a produção da obra com o conjunto de questões e circunstâncias históricas às quais o autor estivera exposto ao longo de sua
longa atividade intelectual. A autora demonstra (em verdade, um trabalho
intensivo de demonstração se encontra nos 3 volumes de sua magistral biografia do fundador do Positivismo) que adesões, filiações e solidariedades
não são produto apenas do enorme fascínio intelectual exercido por Comte
e sua obra, mas são também a resultante de esforços de aproximação e
hierarquização nas relações que o próprio Comte mantinha com seus seguidores.
O segundo texto, de Eduard Moreno, a Conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio, trata das circunstâncias específicas enfrentadas por intelectuais comunistas colombianos na conjuntura de retração
global de ideais comunistas ou socialistas, particularmente o impacto do
processo de liberalização associado à chegada ao poder, na União Soviética, de Mikhail Gorbachev, e à consolidação da Perestroika, após 1985. O
autor analisa estratégias e possibilidades de atuação/reconversão dos intelectuais comunistas na Colômbia – marcados, é preciso frisar, não apenas
pelo impacto global da crise do modelo soviético, mas igualmente pela con-
12
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
turbada experiência do ativismo comunista no país –, na formulação de
uma categoria, a de intelectual-funcionário. Para Moreno, a distinção entre as
categorias de intelectual e intelectual-funcionário se impunha, visto que o
“processo corresponde[ria] às contradições encontradas entre as teorias que
tentam explicar o intelectual e as práticas dos intelectuais vivos, existentes,
aquelas pessoas que encarnam as ideias e são movidas por paixões, utopias,
sonhos e mentiras. Daí que a categoria de intelectual sozinha não correspondia à história que se pretendia contar”. (MORENO TRUJILLO, p. 61-62)
Poderia se advogar que é próprio das categorias consagradas de análise do mundo social, e em particular desses atores de inserção no espaço
público que são os “intelectuais”, que seu conteúdo descritivo não abarque
toda a complexidade das relações ali supostamente contidas. De fato, os
processos de nomeação e classificação dos grupos sociais, tema caro, por
exemplo, à história social dos grupos profissionais, encontra nos intelectuais ‘militantes’ de esquerda um desafio particular. Esse desafio também é
enfrentado por Marisângela Martins em Os intelectuais comunistas no Brasil:
uma breve reflexão.Para a autora, “a expressão ‘intelectual comunista’ evoca
uma determinada imagem de contornos mais ou menos imprecisos”. Martins propõe um panorama historiográfico muito instigante sobre o lugar
dos intelectuais comunistas no âmbito do partido e no espaço dos intelectuais, mostrando, a todo momento, a tensão em se combinar o problema da
desconfiança face à origem de classe, não operária, dos intelectuais e sua
dedicação ao partido. Embora com recorte temporal distinto (aqui se trata
de privilegiar as primeiras décadas de atuação do Partido Comunista, até o
início da década de 1950), o texto serve de contraponto interessante àquele
de Moreno e mostra dificuldades e angústias de indivíduos envolvidos em
diferentes áreas de produção da cultura (mas também de outros profissionais de nível universitário absorvidos circunstancialmente sob a designação de intelectuais) em corresponder às expectativas das instâncias autorizadas do partido acerca da legitimidade de seu engajamento.
O texto seguinte, As usinas do anticomunismo castrense. Os intelectuais do
nacionalismo de direita na Argentina, 1955-1966, de Juan Manuel Padrón, também explora o tema do engajamento político dos intelectuais, mas agora no
extremo oposto do espectro político: os intelectuais anticomunistas e sua
13
Apresentação
recepção nos meios militares, através da análise de dois casos exemplares
de intelectuais nacionalistas de direita argentinos, Jordán Bruno Genta e
Julio Meinvielle. Para Padrón, a fragilidade do encaminhamento da questão do peronismo no período pós-Perón, o ambiente da Guerra Fria e a
autonomia de movimento das Forças Armadas garantiram as circunstâncias favoráveis à recepção da retórica anticomunista no meio. Ainda que, no
tocante às duas últimas circunstâncias, não haja exclusividade do caso argentino, e que se possa encontrar outros exemplos – notadamente sul-americanos, mas não apenas – de aproximação entre intelectuais anticomunistas e meio castrense, o autor sugere certa originalidade na ação dos dois
intelectuais argentinos analisados: o ideal anticomunista articulado a um
“conjunto de conceitos que visavam centralmente desprestigiar a democracia e reclamar para as Forças Armadas um papel central em sua destruição”; a cobrança crítica de maior “zelo antidemocrático ou anticomunista” na ação dos militares; e, finalmente, no longo prazo, a evidência de
sua contribuição “nada desprezível no reforço de um pensamento autoritário, intolerante e violento dentro d[as] [...] Forças Armadas”. (PADRÓN,
p. 107-108)
Os próximos três textos apresentam uma análise em redução de escala,
passando-se do quadro nacional de atuação dos intelectuais a um quadro
regional. Com efeito, os três trabalhos discorrem sobre situações às quais
estiveram confrontados homens de letras do Rio Grande do Sul, da última
década do período monárquico às décadas que seguem à revolução de
1930. Em Escritos de propaganda republicana: estratégias de publicação e inserção sociopolítica a partir da atuação de Joaquim Francisco de Assis Brasil e João
Capistrano de Abreu (década de 1880), Tassiana Saccol mostra a relação de
Assis Brasil, então jovem liderança republicana do Rio Grande do Sul, e
Capistrano de Abreu e sua decisiva influência na publicação de dois livros
do primeiro, A República Federal, com grande repercussão à época, e História
da República Rio-grandense. A autora mostra como Assis Brasil soube utilizarse da amizade com Capistrano de Abreu para ter acesso a espaços de notabilidade literária e política e, assim, obter certo reconhecimento nacional como
uma das lideranças intelectuais do movimento republicano, um resultado
que se poderia supor improvável fossem outras as condições de produção e
14
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
circulação de suas obras. A presença de Capistrano na Corte, sua posição
na Biblioteca Nacional e, sobretudo, a abertura de seu círculo de relações a
Assis Brasil foram funcionais à sua ascensão no plano nacional.
Segue-se o trabalho de Cássia Silveira, Dom Chimango e a torre de marfim: a literatura de Homero Prates e a política oligárquica da Primeira República
(1890-1927), destacando a atuação literária de Homero Prates, autor que
oscilaria entre distintas formas de expressão artística segundo o público e
inserção desejados e que usaria a temática regionalista para posicionar-se
politicamente no contexto local. Como bem resume a autora, o escritor
“transitava por suas redes e ‘jogava’ com as variadas posições e identidades
que ocupava no espaço social. [...] Quando pretendia apresentar-se como
‘artista’, recorria à escrita que considerava mais ‘universal’ e, portanto, superior enquanto arte; quando, ao contrário, pretendia manifestar uma opinião ou tornar um dado ponto de vista ‘oficial’, comunicando-se com um
público mais amplo e transmitindo a ele uma ideia de forma mais objetiva,
recorria a outro modo de escrita, ‘inferior’ na sua escala da arte, mas com
possibilidades mais pragmáticas de interlocução”. (SILVEIRA, p. 149-150)
Last but not least, encerra este volume o texto de Jefferson Teles Martins, Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução, incursão do
autor em uma das mais longevas polêmicas que mobilizaram os intelectuais ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, desta
vez em torno da interpretação da Guerra Farroupilha, no início dos anos
1930. Essa polêmica colocou em posições antagônicas Alfredo Varella, autor da obra citada no título, e Souza Docca e terminaria por atrair a adesão
de outros homens de letras e historiadores do estado, como Walter Spalding. O que Martins nos mostra com detalhes é a riqueza dos embates que
recobriam a polêmica, como aquele, central no período, entre lusitanistas,
apoiadores de uma visão da “preponderância da influência lusitana na formação histórica do Rio Grande do Sul”, e platinistas (de Varella), que destacavam os fortes vínculos da história do Rio Grande do Sul com o Prata,
de viés separatista ou autonomista. Mas não é apenas a matriz historiográfica e a legitimidade desta ou daquela interpretação histórica que estão em
jogo, mas também, como bem mostra o autor, há uma dimensão política
contemporânea na questão. Com efeito, a polêmica recobre também a opo-
15
Apresentação
sição entre defensores de um autonomismo regional (grupos e lideranças
políticas regionais ligadas ao antigo sistema político da Primeira República, gravemente feridos no processo iniciado pela Revolução de 30) e alinhados, no texto, à interpetação varelliana, e o grande campo de vitoriosos e
reconvertidos (locais ou nacionais) à centralização política brasileira da
época, solidários à crítica de Souza Docca.
Por fim, uma palavra sobre o livro em perspectiva ampla. Este é, com
efeito, o terceiro e último de uma série que, ao longo dos últimos anos,
buscou situar ao público acadêmico a ambição que orienta os trabalhos do
Laboratório de História Comparada do Cone Sul, a saber, a de produzir
uma história social de elites, intelectuais e grupos profissionais que seja
metodologicamente clara e cujos resultados sejam escrutináveis, ampliando a possibilidade de comparação dos casos em estudo com aqueles de
outros grupos de pesquisa, nacionais e internacionais, e assegurando a abertura para a rotinização do diálogo e de práticas interdisciplinares concretas,
notadamente com a Sociologia e a Ciência Política. Para fazê-lo, publicamos, em 2011, a obra coletiva “História Social de Elites”, reunindo bons
exemplos da opção metodológica fundadora de nosso coletivo de pesquisa,
a prosopografia; em 2012, foi a vez da coletânea “Poder, Instituições e Elites – 7 ensaios de comparação e história”, que retomou a importância da
dimensão comparativa em nosso trabalho. Superado esse momento de ‘inscrição do perfil metodológico’ do nosso grupo no meio profissional, este
último livro vem trazer à apreciação da área um tema de pesquisa caro aos
nossos pesquisadores e colaboradores eventuais: a relação dos intelectuais
– nas suas mais variadas formas e modos de apreensão – com a política e o
poder. Com este livro, concluímos, portanto, a presente série. A agenda de
pesquisa do LabConeSul permanece nas suas linhas de força – a prosopografia, a comparação, o estudo das elites e das profissões –, mas avança em
direção ao estabelecimento de novos vínculos e parcerias institucionais, além
de uma ampliação na sua rede nacional e internacional de pesquisadores.
Flavio M. Heinz
16
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Auguste Comte1
Mary Pickering
Comecei a escrever a biografia de Auguste Comte há 30 anos, quando aluna de doutorado na Universidade Harvard. Meu orientador era especialista em história da ciência e me incitou vivamente a escrever a primeira
biografia daquele que havia sido seu fundador. Enquanto historiadora da
França do século XIX, aceitei o desafio. Depois de ler, ao longo de vários
anos, as obras de Comte que haviam sido publicadas, fui a Paris para pesquisar, pois Harvard havia organizado tudo de modo a que eu pudesse me
inscrever no DEA2 da Sciences Po.3 Pouco depois de minha chegada, em
1983, fui visitar Henri Gouhier, que, nos anos 1930, havia escrito três volumes sobre a juventude de Comte. Com um brilho no olhar, esse adorável
intelectual desejou-me boa sorte em meu projeto, que consistia em escrever
um estudo sobre toda a vida de Comte. Imagino que soubesse que esse
trabalho levaria décadas para ser concluído.
Passei três magníficos anos na Maison d’Auguste Comte, onde fui
calorosamente recebida por Isabel Pratas-Frescata, Gilda Anderson, Trajano Carneiro e, mais recentemente, Aurélia Giusti e Bruno Gentil. Aurélia e
o Sr. Gentil, que hoje dirigem o museu e a Association Internationale Auguste Comte, foram muito simpáticos e me deram todo o seu apoio. Sou
muito grata a eles. Aprendi muito com o grande número de especialistas
que realizaram estudos extraordinários sobre Comte. Também devo muito
a eles.
Durante os anos em que frequentei a Maison d’Auguste Comte, estudei principalmente as cartas de Comte e a correspondência entre os positivistas, e explorei documentos não indexados. Certo dia, descobri dentro de
Esse texto é a versão escrita de uma apresentação oral da autora na Maison d’Auguste Comte,
em Paris, em 14/01/2010. Tradução de Julia da Rosa Simões. (N.T.)
2
DEA (Diplôme d’études approfondies): diploma francês de estudos superiores avançados. (N.T.)
3
Institut d’Études Politiques de Paris. (N.T.)
1
17
PICKERING, M. • Auguste Comte
uma caixa que pertencera a positivistas do século XX três traduções das
obras de Kant, Herder e Hegel. Elas haviam sido enviadas a Comte por um
amigo, Gustave d’Eichthal, nos anos 1820, e eram consideradas perdidas
desde sua morte. Utilizei esses manuscritos para demonstrar, pela primeira
vez, a possibilidade de uma influência da filosofia alemã sobre o positivismo. Também descobri que discípulos de Comte haviam destruído certos
materiais, como algumas cartas da esposa que poderiam fazê-lo parecer
menos perfeito. Eu estava decidida a procurar em toda parte documentos
sobre ele e seu movimento. Explorei outros arquivos em Paris e em Lyon.
Percorri de ponta a ponta bibliotecas da Inglaterra e dos Estados Unidos.
Por outro lado, li textos de inúmeras fontes secundárias. Ao longo
dos últimos 30 anos, assistimos ao desenvolvimento da história do proletariado, da história das mulheres, da teoria das raças, da história cultural, do
pós-colonialismo, da biografia pós-moderna e, mais recentemente, da história das religiões. Esses domínios da história influenciaram a maneira com
que abordei a vida e as ideias desse homem fascinante.
Minha biografia de Comte refaz as interconexões entre sua evolução
pessoal e sua trajetória intelectual, enfatizando seu desenvolvimento enquanto pensador e a continuidade de sua filosofia. Ao mesmo tempo, procuro situar seu desenvolvimento pessoal e intelectual no contexto do período pós-revolucionário. O ponto mais importante no pós-Revolução Francesa dizia respeito ao problema dos fundamentos e dos fins do poder. As
questões de legitimidade levariam às controvérsias ideológicas que formaram o pensamento de Comte. Essas controvérsias eram constantes, visto
que ao longo de toda a sua vida, de 1798 a 1857, os franceses não conseguiram estabelecer um governo estável. A meu ver, as ideias de Comte emergiram da interação entre as crises do mundo exterior à sua volta e as que
existiam em seu próprio mundo interior. No fundo, o positivismo foi tanto
uma resposta à Revolução Francesa quanto à própria luta de Comte contra
a doença mental. Ele buscava a integração, a harmonia e a unidade, características que faltavam tanto à sociedade em geral quanto em sua própria
vida. Nascido em Montpellier, numa região devastada pela guerra civil,
uma guerra civil que era reproduzida em sua família, cujas crenças monarquistas e católicas ele detestava, Comte procurou criar um novo sistema
social que daria à França a paz e a estabilidade que esta desejava. Ele passou a vida tentando concluir o trabalho da Revolução.
18
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Derivado de minha tese de doutorado, o primeiro volume de minha
biografia de Comte foi publicado em 1993. Esse volume abrange o período
que vai do nascimento de Comte, em 1798, ao ano de 1842, quando terminou o Curso de filosofia positiva. No Curso, Comte afirmava que a teoria sempre precede a prática e que a reconstrução do mundo pós-revolucionário só
poderia ser concretizada depois que o método científico ou “positivo” fosse
estendido ao estudo da política e da sociedade, último baluarte dos teólogos e dos filósofos metafísicos. Adotar o método científico significava ligar
as leis científicas à observação dos fenômenos concretos, particularmente
evitando as especulações que eram invariavelmente teológicas ou metafísicas. Ele cunhou o termo “sociologia” em 1839 para se referir à sua nova
ciência da sociedade. O termo “filosofia positiva” ou “positivismo”, que
talvez venha de Saint-Simon e dos saint-simonianos, referia-se ao conjunto
do sistema de conhecimentos, baseado no método científico. O segundo e o
terceiro volumes de minha biografia sobre Comte foram publicados em setembro de 2009. O segundo volume cobre os anos de 1842 a 1852. Aborda
a resposta de Comte à Revolução de 1848 e sua estreita relação com Clotilde de Vaux. O terceiro volume cobre os cinco últimos anos de sua vida, de
1852 a 1857, e se concentra em sua segunda obra-prima, o Sistema de política
positiva, e outros livros importantes como Síntese subjetiva.
Os dois últimos volumes de minha biografia de Comte cobrem o período de 15 anos que compreende os mais controvertidos de seu desenvolvimento, sua chamada segunda fase. Em 1847, Comte conseguiu transformar em religião, a Religião da Humanidade, seu sistema filosófico baseado
nas ciências. Ele continuou sendo um ardente defensor da sociologia, novo
campo de estudos, mas acrescentou uma sétima ciência, a moral, à hierarquia positivista das ciências. Cultivando o “altruísmo”, palavra que cunhou
em 1850, a moral se focaria no indivíduo. Em 1847, Comte alterou seu
sistema científico para que este se tornasse uma religião, demonstrando
que todas as ciências, assim como todas as nossas atividades e todos os
nossos sentimentos, deveriam futuramente ser dirigidos à sociedade, o sujeito da sociologia. A religião positivista englobava tanto um sistema comum de crenças quanto os processos ritualísticos e socializantes que estimulavam as emoções do povo, unindo-o em torno da veneração da sociedade, isto é, da Humanidade, e que honravam as personalidades que contribuíam para a melhoria do bem-estar do homem. Assim, durante a Revolu-
19
PICKERING, M. • Auguste Comte
ção de 1848, quando os clubes conheceram grande proliferação, Comte
fundou o movimento positivista, ou melhor, a Sociedade Positivista, para
acelerar a transição à era positivista da história, quando esta religião floresceria.
Com frequência essa fase de religião na vida de Comte é vista como
uma contradição ao chamado período científico anterior. Um dos principais argumentos de minha biografia é que não houve uma ruptura súbita
na trajetória de Comte depois que ele concluiu o Curso e depois de sua
relação não consumada com Clotilde de Vaux, ao contrário do que em geral dizem os especialistas. Tratava-se apenas de uma “nova fase do positivismo”, como ele mesmo havia observado em 1847.4
As raízes dessa Religião da Humanidade eram claramente perceptíveis em seus escritos de juventude que preconizavam um novo poder espiritual para substituir o poder temporal, bem como um novo sistema moral e
intelectual. Em 1826, Comte escreveu um artigo intitulado “Considerações
sobre o poder espiritual”, no qual declarava: “O dogmatismo é o estado
normal da inteligência humana, aquele ao qual ela se inclina, por sua natureza, de maneira contínua e em todos os gêneros, mesmo quando mais parece afastar-se dele”. Tanto os céticos quanto os revolucionários dão uma
“forma dogmática” a suas “ideias críticas”.5 Desde o início, Comte procurou fornecer a seus contemporâneos um sistema de crenças que satisfizesse
seus desejos ardentes de certeza e que os unisse como os adeptos de um
credo. Esse sistema obteria certa legitimidade se fundamentado em princípios que pudessem ser demonstrados. Ele seria mais influente se tivesse
uma base institucional num novo poder espiritual. No Curso, Comte se refere especificamente à necessidade de criar uma “Igreja positiva”.6 Em sua
obra, ele também frisava ter compreendido desde o início a importância
dos sentimentos associados à religião. Desde a juventude, considerava as
Carta de Comte a Henri de Tholouze, 18 de dezembro de 1847. In: Auguste Comte: Correspondance générale et confessions. Org. de Paulo E. de Berrêdo Carneiro, Pierre Arnaud, Paul Arbousse-Bastide e Angèle Kremer-Marietti. Paris: Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales,
1973-90, 8 v. v. 4, p. 130.
5
COMTE, Auguste. Considérations sur le pouvoir spirituel. In: Système de politique positive ou Traité
de sociologie instituant la religion de l’Humanité.(Paris, 1851-1854. 5. ed., idêntica à 1ª edição.
Paris: Au Siège de la Société Positiviste, 1929, 4 v. v. 4, Appendice, p. 202-203.
6
COMTE, Auguste. Physique sociale: Cours de philosophie positive, leçons 46 à 60. Org. de Jean-Paul
Enthoven. Paris: Hermann, 1975, p. 696.
4
20
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
emoções como o motor da existência. Elas estimulavam o intelecto e davam-lhe uma direção moral. Ele escreveu, no Curso, que “o amor universal
[...] certamente é mais importante que a própria inteligência, na economia
usual de nossa existência, individual ou social, porque o amor utiliza de
maneira espontânea, para proveito de cada um, até as menores faculdades
mentais; ao passo que o egoísmo desnatura ou paralisa as mais eminentes
disposições – a partir de então muito mais perturbadoras que eficazes – à
real felicidade, seja privada ou pública”.7 O Sistema nada mais fazia que
colocar em obra o programa que Comte havia formulado no início dos
anos 1820.
Além disso, Comte não traiu seu primeiro programa, pois desde o
início de sua carreira afirmava que nunca havia confiado no modelo de
pensamento moral e neutro, “positivista” ou “científico”, que hoje está ligado a seu nome. Ele rejeitava as estatísticas e o empirismo e suas coleções
inúteis e simplistas de fatos e números. Para ele, o poder da razão era limitado. Escreveu que “o espírito humano [...] [estava] muito mais apto a imaginar do que a raciocinar”.8 Para observar um fato qualquer, o espírito precisava imaginar uma hipótese provisória. Em sua opinião, o espírito era
fraco e nunca poderia compreender a realidade e a verdade absoluta. Era
particularmente impossível ter uma compreensão total e objetiva da realidade social, que era extremamente complexa e próxima de nós.
Insistindo na necessidade de fazer juízos de valor, continuou atribuindo a seu sistema filosófico uma missão prática e política, a de concluir a
Revolução Francesa e criar um novo sistema social baseado na justiça para
todos. Desde o início foi motivado pelas reformas sociais e pelo ativismo
político. Nunca glorificou as ciências em si, mas considerava-as uma ferramenta capaz de melhorar o bem-estar social. Recorreu a elas para criar a
nova atitude mental requerida pela sociedade industrial moderna em vias
de emergir. O positivismo desencadearia uma revolução intelectual que levaria a uma ordem moral marcada pelo acordo geral dos indivíduos por
meio da simpatia e, a seguir, a uma transformação política que daria início
a uma nova era positivista de acordo geral e de harmonia social. Apesar de
7
8
Ibid., p. 362.
COMTE, Auguste. Philosophie première: Cours de philosophie positive, leçons 1 à 45. Ed. de Michel Serres, François Dagognet, Allal Sinaceur. Paris: Hermann, 1975, p. 99.
21
PICKERING, M. • Auguste Comte
os críticos terem zombado dos positivistas, criticando sua preocupação exclusiva com fatos insignificantes e a manutenção do status quo, Comte era a
favor das grandes teorias capazes de lançar uma revolução intelectual e moral
de grande alcance.
Embora seja comum pensar que aqueles que controlariam a sociedade positiva de Comte seriam os cientistas, demonstrei que Comte não confiava neles. A especialização os deixava com mentes estreitas e indiferentes
aos problemas da sociedade em geral. Reagindo contra os cientistas, ele
afirmava que os filósofos positivos, homens que haviam sido formados em
todas as ciências e, consequentemente, com um conhecimento mais geral,
possuíam os pontos de vista mais diferentes possíveis e as afinidades mais
diversas. Eles deveriam substituir o clero tradicional e guiar a nova sociedade positivista, conduzindo sua energia rumo a um objetivo comum, o aperfeiçoamento da humanidade. No entanto, Comte avisou para nunca darmos a eles o poder em si, pois tentariam exercer um controle total. Comte
era a favor de um sistema de separação dos poderes. Os filósofos positivos,
que formariam o poder espiritual, seriam fiscalizados pelos industriais, que
constituiriam o poder temporal. Mas Comte criticava muito os industriais,
pois a especialização deles exigida, como a dos cientistas, levava ao orgulho e ao egoísmo. Eles tampouco conseguiam focar sua atenção no bemestar do povo. Como Marx, Comte afirmava que a assustadora luta de classes não era causada pelos operários, mas pela “incapacidade política”, pela
“incúria social” e, principalmente, pelo “egoísmo cego dos empreendedores”.9 Ele esperava, portanto, que os operários constituíssem o poder temporal até que os industriais fossem reabilitados. Estava a dois dedos de preconizar a famosa ditadura do proletariado de Marx.
Comte se encontrava numa situação paradoxal, da qual tinha consciência. Ele recomendava uma filosofia social baseada nas ciências, mas
alimentava uma profunda desconfiança da capacidade do espírito puramente
científico de regenerar o mundo político e social. Além disso, a legitimidade de suas ideias antielitistas que davam prioridade às necessidades do conjunto da comunidade só poderia ser obtida se ele fizesse parte do grupo
elitista dos cientistas. Apesar de tudo, sua filosofia generalista, que destaca-
9
COMTE, Physique sociale, p. 620.
22
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
va a importância do método científico, não satisfazia os padrões da especialização que os novos profissionais do século XIX exigiam. Conforme revelado pelos documentos dos arquivos da École Polytechnique, os cientistas
não o prezavam nem profissional nem pessoalmente. A decepção de Comte
é perceptível na frase que conclui o Curso, que condenava “o cego ou malintencionado impulso dos preconceitos e das paixões próprios de nosso deplorável regime científico”.10 O Curso de filosofia positiva, aparentemente uma
obra científica, tinha como objetivo limitar o espírito científico da idade
moderna, cuja especialização, egoísmo e indiferença social causavam um
prejuízo moral incomensurável.
A meu ver, Comte adotou uma terminologia religiosa tradicional em
parte por razões pragmáticas. Após o declínio das práticas religiosas resultante da Revolução, as ideias religiosas tinham se tornado aceitáveis e correntes no início dos anos 1840. Os românticos enfatizavam a importância
do espiritual. Novas ordens religiosas e escolas privadas proliferaram graças
à Lei Falloux, de 1850, que permitiu a liberdade de educação. Na sequência
de uma aparição da Virgem Maria em 1846,11 a noção de Imaculada Conceição tornou-se dogma em 1854. Impacientes para ajudar a classe operária e as mulheres, muitos socialistas tentaram restabelecer o cristianismo de
uma nova forma, mais igualitária. Não se sentindo à vontade com o agnosticismo, o ateísmo e o ceticismo, Comte queria fazer parte dessa escalada
do fervor religioso, com a audácia que lhe era característica. Ele insistia no
fato de não ser necessário que a razão e a ciência fossem antitéticas à religião. No segundo volume do Sistema, chegou a dizer que “Nossa natureza,
individual ou coletiva, torna-se, então, mais e mais religiosa”.12 Como justificou esse comentário notável? Através do lamarckismo. Comte afirmava
que o aspecto fundamental do desenvolvimento humano era o fato de que,
por meio do exercício, as características únicas da espécie humana – a inteligência e a sociabilidade – se tornavam dominantes, tanto no indivíduo
quanto na sociedade. Assim, as pessoas se tornavam não apenas mais racionais, como mais altruístas, mais ligadas aos outros, em suma, mais religiosas.
Ele acreditava que a essência da religião residia na capacidade de estabele-
Ibid., p. 791.
Aparição da Nossa Senhora de La Salette (nos Alpes franceses) a duas crianças. (N.T.)
12
Système, v. 2, p. 19.
10
11
23
PICKERING, M. • Auguste Comte
cer laços entre os indivíduos. Criticado por ter dado o nome de religião a
seu sistema moral, Comte explicou em 1849 que havia “ousado unir [...] o
nome [religião] à coisa [positivismo] a fim de logo instituir uma concorrência declarada com todos os outros sistemas”.13 Ele queria uma batalha doutrinal bem definida contra o catolicismo e as versões esquerdistas do cristianismo, uma batalha que aceleraria o triunfo do positivismo e o início de uma
nova ordem. Preocupado com o crescente ceticismo do período pós-revolucionário, decidiu formular uma síntese para fornecer a seus contemporâneos ideias e crenças novas e homogêneas, isto é, uma nova fé que pudesse aproximá-los. Somente se fosse ao mesmo tempo emocional e racional é
que essa síntese unificadora poderia levar à concordância geral no domínio
social, necessária para destruir o materialismo e o egoísmo da sociedade
industrial moderna. Ela precisava ser atraente tanto para a esquerda quanto para a direita, a fim de elevar-se acima dos problemas deixados pela
Revolução Francesa e criar a harmonia.
No Sistema de política positiva, Comte imaginou uma cultura religiosa
totalmente nova, que permitiria unir a sociedade. Ele admitia que, nos novos tempos, a ação política utilizasse a religião, a educação e as artes para
formar sentimentos, crenças e representações. Tendo vivido sob os reinados de Napoleão I e de Napoleão III, que fizeram uso da iconografia para
popularizar seus regimes, ele compreendia a importância da cultura visual
para reforçar as mensagens sociais e políticas. Nesse sentido, mandou pintar seu retrato e encomendou um busto de Antoine Etex para imortalizar
sua imagem, concebeu bandeiras positivistas nas quais uma jovem mãe representava a Humanidade, desenhou plantas dos Templos da Humanidade, imprimiu seu próprio esquema do espírito humano e adotou o verde
como cor do positivismo. As pessoas se aproximariam umas das outras por
crenças comuns, mas os laços emocionais, cultivados por imagens específicas e referências visuais, também contavam muito.
Ao apresentar uma visão de conjunto da Religião da Humanidade,
Comte almejava sobretudo reviver o concreto, a intensa espontaneidade
emocional e as predisposições poéticas do primeiríssimo estágio da vida
religiosa, o fetichismo. Apesar de ser conhecido como um apóstolo do pro-
13
COMTE, Quatrième confession annuelle, 31 de maio de 1849. In: Correspondance générale, v. 5,
p. 22.
24
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
gresso, Comte paradoxalmente temia os efeitos da ciência e do pensamento
abstrato, que tornavam as pessoas orgulhosas e egoístas, e estava convencido de que o Ocidente precisava de uma injeção de religião primitiva para
continuar seu avanço. Ele foi um dos primeiros pensadores a celebrar o
fetichismo, que associava à raça negra. Para ele, “os humildes pensadores
da África central” eram mais racionais sobre a natureza humana e a sociedade do que os “magníficos doutores germânicos” e suas “verborragias
pomposas”. Comte dizia que “A tocante lógica do mais simples dos negros
é [...] mais sábia que nossa aridez acadêmica que, sob o pretexto empírico
de uma imparcialidade sempre impossível, consagra diariamente a desconfiança e o receio”.14 Ao contrário dos homens modernos, os adoradores de
fetiches cultivavam seus afetos mais valiosos por meio da veneração, da
confiança e da adoração de todos os seres. Eles admiravam o que era concreto e útil e respeitavam o mundo natural. Comte tentou reproduzir esse
tipo de veneração incentivando o povo a se devotar à Humanidade, o “Grande Ser”, e a respeitar a Terra, o “Grande Fetiche”. Em vez de celebrar as
maravilhas da indústria, enfatizou a importância da humildade e da modéstia demonstrando que todos os povos estavam ligados uns aos outros e à
Terra. Quando modificavam a Terra, as pessoas deveriam aprender os benefícios morais da cooperação social. Se elas se conformassem com mais
inteligência às leis da Terra, tornar-se-iam menos egoístas e mais felizes.
Em suma, o positivismo incorporaria o fetichismo. Paradoxalmente, o estágio mais avançado da civilização representaria um retorno às origens.
Comte foi de fato um dos primeiros adeptos da ecologia.
Condenando o racismo, a escravidão e o imperialismo, julgando que
estes dividiam a humanidade em vez de uni-la, Comte lançaria um desafio
aos estereótipos raciais ao afirmar que um dia “algum pensador negro”
poderia estudar suas obras e dar-lhe seu apoio.15 Apesar de ter adotado uma
posição essencialista segundo a qual os brancos eram inteligentes, os negros eram emotivos e os “amarelos” eram ativos e pragmáticos, ele não
pensava que as diferenças raciais fossem imutáveis ou totalmente determinantes. Uma pessoa negra podia ser emotiva acima de tudo, mas igualmente inteligente e ativa. Comte afirmava que as diferentes raças se pareceriam
14
15
Système, v. 3, p. 99, 121, 155.
Ibid., p. 156.
25
PICKERING, M. • Auguste Comte
cada vez mais à medida que desenvolvessem partes diferentes de seu cérebro, graças às mudanças no meio ambiente. Na era positivista, elas seriam
obrigadas a utilizar e, consequentemente, desenvolver todas as suas capacidades. Ele foi um dos poucos pensadores a louvar os casais de etnias diferentes, afirmando que os casamentos mistos envolviam a partilha das características associadas a cada raça.
Na esperança de acabar com o militarismo e as guerras, Comte desejava disseminar o sentimento de nossa humanidade comum, ou sociabilidade, pelo mundo inteiro. Foi um dos poucos pensadores do século XIX a
promover o cosmopolitismo e a cultura da sociabilidade aos quais os filósofos do século XVIII davam grande valor. Oposto ao nacionalismo extremo
de seus semelhantes europeus, condenou o envolvimento da Inglaterra na
Guerra do Ópio contra a China, sua recusa de ceder Gibraltar e seu tratamento à Índia. Em sua opinião, essas iniciativas imperialistas estavam ligadas a interesses industriais. Também condenava a invasão francesa da Argélia, que, como insistiu repetidamente, devia ser devolvida aos árabes.
Criticava a criação de um império por Napoleão I e Napoleão III. Para ele,
a opressão interna sempre iria de par com a opressão externa. Alguns de
seus discípulos, que acreditavam na missão dos franceses no plano da civilização, ressentiram-se de seu anti-imperialismo. Para opor-se ao nacionalismo e às ambições imperialistas, e principalmente para reduzir a ameaça
de guerra, Comte preconizava que todas as nações fossem divididas em
pequenas repúblicas, onde a sociabilidade seria mais fácil de cultivar e onde
a lealdade das pessoas seria espontânea e voluntária. A França seria dividida em 17 dessas pequenas repúblicas.
A capital desse sistema republicano universal seria Constantinopla, a
cidade que, para Comte, melhor uniria o Leste e o Oeste. Como seus contemporâneos franceses, ele era fascinado pelo Oriente. Dentro de seu objetivo de mostrar o profundo respeito do positivismo pela história como um
todo e uma generosa avaliação das outras religiões, ele frequentemente louvava Maomé e o Islã. Acreditava que os muçulmanos estavam maduros
para uma conversão positivista, pois sua fé era tolerante e simples. Eles se
preocupavam com as necessidades da comunidade e tinham sido preservados das influências anarquistas dos especialistas em metafísica e dos legisladores. Comte chegou inclusive a expressar a esperança de que os argelinos convertessem os franceses ao Islã, em vez de os franceses os transformarem em católicos.
26
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Na era positivista por vir, as 500 repúblicas do mundo inteiro seriam
caracterizadas internamente pela harmonia entre os principais grupos: os
industriais regenerados, que constituiriam o poder temporal, e os filósofos,
as mulheres e os operários positivistas, que representariam as componentes
do poder espiritual. Os filósofos positivistas, que encarnariam a razão,
seriam ajudados sobretudo pelas mulheres, que personificavam os sentimentos, e os operários, que representavam a atividade. Ao contrário da
burguesia masculina no poder, as mulheres e os operários escapariam à
cultura artificial e materialista da época. Comte recorria cada vez mais ao
apoio deles, pois havia sido repelido pelos cientistas de seu tempo.
A partir de 1851, Comte passou a convocar ainda mais as mulheres,
após ter percebido que seria impossível tirar os operários do socialismo.
Alguns intelectuais acusam Comte de ser um “falocrata”.16 No entanto,
tendo lido Uma defesa dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, tendo
se tornado amigo da intelectual inglesa Sarah Austin, tendo ouvido John
Stuart Mill e conhecido o notável trabalho de sua tradutora, Harriet Martineau, Comte deu às mulheres uma identidade positiva. Ele afirmava que,
na qualidade de peritas em matéria de emoções, elas seriam os agentes morais
que poderiam unificar uma sociedade cada vez mais fragmentada. Após a
Revolução de 1848, ele expressou seu temor de que o problema da anarquia
não seria resolvido “enquanto a revolução não tiver se tornado feminina”.17
Tinha medo de que, sem o suporte feminino, seu próprio movimento reformista se visse desacreditado. Aliás, uma razão pela qual ele enfatizava a
Religião da Humanidade é o fato de querer agradar às mulheres, que associava à religião. Seu Catecismo positivista, que consistia num diálogo entre
uma mulher e um sacerdote positivista, dirigia-se especialmente ao público
feminino. Além disso, ele incentivava as mulheres a formar a opinião pública retomando os salões e a escapar à dominação dos homens exercendo um
controle sobre o próprio corpo e tendo filhos sem qualquer participação
masculina. E como elas eram dotadas da melhor característica humana, a
sociabilidade, ele insistia para que as mulheres representassem a própria
Humanidade. Nos templos positivistas, a Humanidade seria sempre repre-
KOFMAN, Sarah. Aberrations: Le Devenir-Femme d’Auguste Comte. Paris: Aubier Flammarion,
1978, p. 233.
17
Carta de Comte a Georges Audiffrent, 7 de junho de 1851. In: CG, v. 6, p. 108.
16
27
PICKERING, M. • Auguste Comte
sentada por uma mulher acompanhada do filho. Essa audaciosa substituição do Deus Pai no sistema positivista reflete a convicção de Comte de que
as mulheres ocupariam a “primeira posição da sociedade normal” do futuro.18 O papel delas ilustra o objetivo de Comte, que era colocar os sentimentos empáticos no centro da vida pública a fim de criar uma sociedade mais
compassiva e mais harmoniosa.
A visão de Comte quanto a uma sociedade futura caracterizada pela
harmonia não era apenas uma reação ao caos de seu tempo, mas também
uma resposta ao caos que existia dentro dele. Ao longo de toda a vida, Comte
precisou lutar contra a psicose maníaco-depressiva. Ele sofria crises de excitação que se alternavam com ondas de profunda depressão. As piores crises
ocorreram em 1826, 1838 e entre 1845 e 1846. Demonstrei o quanto essa
doença o tornou rebelde, paranoico e delirante. Ele lutava todos os dias para
ter boa saúde. Comia refeições simples, dormia entre sete e oito horas por
noite, eliminava o café e demais estimulantes, e dava longas caminhadas todos os dias, para se cansar fisicamente. Intelectualmente, a fim de evitar o
estresse, retirou-se cada vez mais em seu mundo pessoal, recusando-se, em
1838, a ler o que quer que fosse, exceto poesia. Ele afirmava que esse regime
de higiene cerebral seria a única maneira de manter sua pureza enquanto
gênio e reformador moral. Na verdade, a loucura era uma doença comum
nos homens criativos do século XIX. Até mesmo John Stuart Mill teve uma
depressão nervosa. Mas sustento que Comte se retirou do mundo contemporâneo literário e intelectual para preservar seu frágil ego dos ataques dos críticos. Qualquer tipo de controvérsia, ou mesmo um esforço intelectual intenso e emoções violentas, constituíam uma ameaça a seu bem-estar mental, e
ele organizou sua vida de modo a evitar esses perigos. Mesmo assim, o que
mais caracterizou suas relações com os outros foi o conflito, que em geral
resultava em rompimento. Seu temperamento apresentava outro grande paradoxo que considero fascinante: o fundador da sociologia – a ciência que se
especializou no estudo das relações sociais – era um homem que não se sentia à vontade nas associações humanas mais elementares. Ele tinha a impressão de ser um estrangeiro na sociedade que era o objeto de seu estudo. Vários
exemplos explicativos permitirão elucidar a psique de Comte.
18
Carta de Comte a Harriet Martineau, 29 de dezembro de 1853. In: Correspondance générale, v. 7,
p. 160.
28
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Apesar de Comte reivindicar o respeito da família por se distanciar
da filosofia do amor livre dos saint-simonianos, ele estava em constante
desacordo com os membros de sua própria família. Comte acusava a irmã
de conspirar para deserdá-lo. Seus pais não gostavam de seus ataques contra a religião, de seu republicanismo e de sua escolha profissional. Em 1838,
Comte disse ao pai que desejava romper toda comunicação com a família.
Seu pai ficou completamente aturdido. Quase dez anos se passaram antes
que eles retomassem a troca de correspondência. Esta manteve-se fria.
Comte conheceu uma pessoa capaz de preencher temporariamente o
papel de pai: Henri de Saint-Simon. Ao contrário de Henri Gouhier, que
minimizava a importância de sua influência, penso que Saint-Simon deu à
reflexão de Comte um certo direcionamento filosófico. Ao longo do Império napoleônico, Saint-Simon havia sustentado que a criação de um novo
sistema unificado de conhecimentos científicos, centrado no estudo da sociedade, daria início a uma nova era em que os industriais substituiriam os
líderes militares no poder temporal ou secular, e os cientistas tomariam o
lugar do clero no poder espiritual. Quando Comte começou a trabalhar
para Saint-Simon, esse filósofo que começava a envelhecer se voltava para a
organização prática e industrial da sociedade. Mas Comte retomou a missão inicial de Saint-Simon, a fundação do sistema científico, isto é, a filosofia positiva, bem como a ciência da sociedade. Fiel ao conceito de SaintSimon que preconizava que a teoria deveria preceder a prática, Comte desenvolveu as ideias espalhadas ao acaso no conjunto dos escritos irregulares de seu mestre. Contudo, depois de trabalhar em estreita colaboração
com Saint-Simon no jornalismo ao longo de sete anos, com frequência expressando sua afeição por ele, um dia Comte decidiu que não queria mais
relacionar-se com ele. Acreditava que Saint-Simon estivesse roubando suas
ideias. Em suas últimas obras, portanto, chamou Saint-Simon de “charlatão superficial e depravado”.19
Outro mestre foi o célebre cientista Blainville, que Saint-Simon lhe
havia apresentado. Comte jantava uma vez por mês na casa de Blainville.
Em 1850, porém, quando Blainville não pôde mais ajudá-lo financeiramente
19
Carta de Comte a George Frederick Holmes, 18 de setembro de 1852. In: Correspondance générale, v. 6, p. 378.
29
PICKERING, M. • Auguste Comte
e passou a manifestar suas tendências religiosas em obras científicas, Comte
se virou contra ele. Falou duramente de Blainville no discurso durante as
exéquias deste, declarando que sua morte por ataque cardíaco, sozinho dentro de um trem, havia sido adequada, pois ele era egoísta. Muitos foram os
que pensaram que Comte havia sido cruel ao tratar dessa maneira um amigo íntimo.
Vários outros amigos próximos romperiam relações com Comte.
Fisher e Émile Tabarié, amigos de infância, foram rejeitados depois de supostamente terem criticado a esposa de Comte. O melhor amigo de Comte,
Pierre Valat, sugeriu-lhe que tentasse escrever com mais clareza e concentrar-se na epistemologia. Comte respondeu-lhe, furioso, dizendo que já havia passado da “idade da discussão”.20 A amizade de 30 anos chegou ao
fim. Gustave d’Eichthal, amigo e primeiro discípulo, também recomendou
a Comte ser menos abstrato. Sentiu-se distante de Comte com a resposta
que recebeu e desistiu da relação. Conhecidos importantes como François
Guizot e os intelectuais ingleses George Grote, Sarah Austin e Harriet
Martineau se afastaram. Jules Michelet levou uma patada quando visitou
Comte pela primeira vez. Colegas de trabalho, dentre os quais alguns velhos amigos, como Duhamel, acabaram dispensando-o da École Polytechnique. Todos estavam cansados do egoísmo, da paranoia e da beligerância
de Comte.
Problemas similares prejudicaram sua importante relação com John
Stuart Mill, que lhe escreveu em novembro de 1841 para dizer o quanto
suas ideias haviam tido um impacto profundo em seu próprio desenvolvimento intelectual. Mill se uniu a Comte naquilo que ambos consideraram
como o início de uma aliança dos intelectuais mais avançados da época.
Dois anos depois, no entanto, Mill começou a mudar de opinião a respeito
do positivismo quando ouviu falar de um ponto de vista de Comte, que
declarava que a vida conjugal estava baseada nas desigualdades sexuais e
que as mulheres não eram tão inteligentes quanto os homens, conforme
demonstrado pelo tamanho do cérebro. Mill afirmava que a maioria das
defasagens entre homens e mulheres poderia ser minimizada se as mulheres recebessem uma educação melhor. A amante de Mill, que mais tarde se
20
Carta de Comte a Pierre Valat, 17 de setembro. In: Correspondance générale, v. 2, p. 86.
30
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
tornaria sua mulher, a feminista Harriet Taylor, acusou-o de agir covardemente para com Comte. Ela escreveu: “A raiz seca que é esse homem não
representa um adversário de valor”.21 Mill sentiu vergonha. A amizade acabou em 1847, depois de Comte ter insultado Mill e seus amigos, atacandoos por não lhe darem mais suporte financeiro. Mill concluiu: “[Comte] é
um homem que só podemos servir dizendo sempre o mesmo que ele”.22
Alguém concordava com Mill: a mulher de Comte, Caroline Massin.
Tentei reabilitá-la em sua relação com o marido e estudei sua correspondência, revista e publicada em 2006 pelo Sr. Gentil. Ex-diretora de biblioteca, Caroline Massin era uma mulher inteligente e cheia de espírito que ajudou Comte a se recuperar da crise de loucura de 1826. Ela lhe deu todos os
tipos de conselhos para sua saúde, seu trabalho e sua maneira pouco diplomática de tratar as pessoas, especialmente os colegas. Quando Comte se
recusou a ouvi-la, agindo como se ela não existisse, ela o abandonou, em
1842, acusando-o de ser um tirano. Anos depois, escreveu a Comte uma
carta pungente que resumia suas dificuldades: “Sempre fui-lhe muito devotada, mas não era submissa. Com menos devotamento verdadeiro e mais
submissão, as coisas teriam ido melhor entre nós. Quantas vezes você no
fundo teve razão, mas me pedia para ceder em nome de sua autoridade, e eu
me erguia à sua frente enquanto deveria me submeter. Submissa mesmo assim, eis o que eu não soube ser. Mas mesmo assim o amei, veja bem”.23
Furioso por ter sido deixado, Comte puniu-a numa de suas últimas
obras, chamando-a de prostituta. A alegação foi perpetuada pelos discípulos de Comte, que a detestavam porque ela desejava contestar seu testamento. Mas a acusação é muito discutível. Era uma atitude típica da época: as
mulheres eram vistas ou como anjos do lar ou como tentadoras fatais. Como
o espírito independente de Caroline Massin não combinava com o primeiro tipo, Comte colocou-a sob o segundo.
Harriet Taylor, nota a John Stuart Mill, sem data, Mill-Taylor, GB 0097, v. 2, item 327, fólio
723, 723v, 724, 724v, British Library of Political and Economic Science, London School of
Economics. Ver também HAYEK, F. A. John Stuart Mill and Harriet Taylor: Their Correspondence and Subsequent Marriage. London: Routledge and Kegan Paul, 1951, p. 114-115.
22
Carta de J. S. Mill a Mrs. Sarah Austin, 18 de janeiro de 1845. In: ROSS, Janet. Three Generations
of Englishwomen: Memoirs and Correspondence of Mrs. John Taylor, Mrs. Sarah Austin, and
Lady Duff Gordon. London: John Murray, 1888, 2 v., v. 1, p. 200.
23
Carta de Caroline Massin a Auguste Comte, 17 de janeiro de 1850. COMTE, Auguste; MASSIN,
Caroline. Correspondance inédite: l’histoire de Caroline Massin, épouse d’Auguste Comte à travers leur correspondance. Org. de Pascaline Gentil. Paris: L’Harmattan, 2006, p. 250.
21
31
PICKERING, M. • Auguste Comte
A pessoa que correspondia ao primeiro tipo, para Comte, era Clotilde de Vaux. Como Caroline Massin, era muito mais forte, inteligente e
independente do que os biógrafos de Comte a descrevem. Quando conheceu Clotilde de Vaux, em 1845, essa mulher de 30 anos vivia na miséria,
totalmente responsável pela família depois de ter sido abandonada pelo
marido. O que a tornava fascinante era o fato de ser uma jornalista e romancista promissora que, como muitas mulheres do século XIX, tentava
ganhar a vida e se realizar através de seus escritos. Paralisada pelo amor de
seus pais, bem como pelo amor exigente e possessivo dos homens, ela tinha
sede de “liberdade”: “Há momentos em que sinto vontade de morrer sem
laços, tanto sofri por causa deles”.24 Ela almejava sobretudo ter a liberdade
de se entregar a quem quisesse, quando e se quisesse.
Comte cortejou-a deliberadamente para desenvolver sentimentos que,
segundo ele, estavam diminuídos devido às más relações que mantinha com
sua família e sua mulher. Ele estava a ponto de escrever o Sistema que tratava do lado emocional da existência humana, e pensava precisar de mais
profundidade nesse aspecto.
Rejeitando as aspiração jornalísticas de Clotilde de Vaux, sentia dificuldade em respeitar seu desejo, que consistia em limitar suas discussões a
questões intelectuais interessantes. Ele exasperou-a ao insistir que sabia o
que seria melhor para seus interesses e ao afirmar que a achava moralmente
superior. Ela respondeu: “Ainda não encontrei a perfeição, nem nos outros
nem em mim. Há grandes úlceras no fundo de cada ventre humano. Resta
saber como escondê-las”.25 De fato, Clotilde de Vaux recusava a Comte
venerá-la. Tal adoração lhe parecia não apenas artificial, como restritiva.
Mesmo que os positivistas celebrassem seu amor por ele, na verdade Clotilde de Vaux não era tocada pelos estratagemas de Comte. Ela resistia a seus
avanços sexuais e o mantinha à distância, vendo nele apenas um amigo. No
entanto, foi cada vez mais obrigada a contar com sua boa vontade e seus
recursos financeiros quando começou a perder a batalha que travava contra
a tuberculose. Em abril de 1846, morreu em seu quarto. Comte estava a seu
lado e não permitiu que os pais dela entrassem. Queria ser o único a reco-
Clotilde de Vaux à Comte, 5 de dezembro e 12 de dezembro de 1845. In: Correspondance générale, v. 3, p. 221, p. 235.
25
Carta de Clotilde de Vaux a Comte, 25 de maio de 1845. In: Correspondance générale, v. 3, p. 24.
24
32
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
lher seu último suspiro. Incapaz de dominá-la completamente quando ela
estava viva, passou a exercer seu poder sobre ela transformando-a na mulher perfeita, submissa e pura, tudo o que sua esposa, pretensamente detestável, não era. Refletindo a lógica binária intrínseca da identidade sexual
da época, ele transformou Clotilde de Vaux num anjo que inspirava sua
própria bondade, enquanto sua esposa, Caroline Massin, era um demônio
que ameaçava seu trabalho. A veneração de Comte por Clotilde de Vaux
chegou a fazer parte de sua Religião da Humanidade. Silenciada pela morte, ela não podia mais objetar à própria canonização. De fato, representações de mulheres mortas abundam nas artes e na literatura de meados do
século XIX, pois elas permitiam aos homens se sentirem triunfantes sobre
os aspectos ameaçadores da feminilidade.
Não partilho da opinião de John Stuart Mill, nem da de Raymond
Aron, que afirmavam que Clotilde de Vaux foi a causa do declínio intelectual de Comte e que ela mudou a direção de suas ideias. Clotilde de Vaux
reforçou a importância crescente que ele atribuía aos sentimentos e fez renascer o interesse de Comte pela “questão da mulher”, silenciado pela acrimoniosa relação com Caroline Massin. A aliança entre as mulheres e os
filósofos positivistas, que ele já havia promovido no último volume do Curso, tornou-se o centro de sua doutrina.
Esses episódios da vida pessoal de Comte demonstram as dificuldades que ele teve para de fato estabelecer relações pessoais normais. Ele insistia tanto na necessidade de uma harmonia total que, para alcançá-la,
sacrificou a família, em primeiro lugar, depois a mulher e, a seguir, um
amigo depois do outro. É como se tivesse aplicado sua higiene cerebral a
seu círculo social. Sentindo uma necessidade absoluta de harmonia perfeita na própria vida, prescreveu a mesma coisa para a sociedade. O tipo de
sociedade que imaginava não seria formada por grupos de facções conflitantes ou concorrentes, mas por um regime supervisionado por um poder
espiritual encarregado de exercer o controle, que educaria as pessoas e as
inspiraria a entrar em acordo sobre o conjunto de opiniões.
Indiferente às necessidades dos outros, Comte encontrou certa gratificação num amor abstrato pela Humanidade, que lhe permitia evitar as
dificuldades inerentes às relações pessoais. Ele se vangloriava de ser a única
pessoa capaz de compreender as ideias gerais e, ao mesmo tempo, dar provas de altruísmo. Ao fim da vida, reivindicou ser “mais completo que qual-
33
PICKERING, M. • Auguste Comte
quer um dos personagens que, até o momento, ocuparam a cena revolucionária”. Afirmando ser um modelo de virtude, dizia ser o fundador legítimo
de uma sociedade e de uma religião, igualmente novas.
Graças à autoconfiança e à inteligência superior de Comte, tanto
quanto à doutrina aprofundada que dava prioridade ao bem-estar da comunidade e previa um futuro harmonioso, ele granjeou um pequeno número
de adeptos da esquerda e também da direita, na França, na Inglaterra, nos
Estados Unidos e na América Latina. Alguns admiravam suas ideias esquerdistas. Quando a Revolução de 1848 se desencadeou, Comte tentou
incitar os operários a se afastarem do socialismo e fundou a Sociedade Positivista para lançar um movimento positivista. Seu manifesto, o Discurso
sobre o conjunto do positivismo, condenava o extremismo político, especialmente o de direita, preconizava a incorporação dos proletários à sociedade
através da melhoria de suas perspectivas de emprego e educação, e apresentava uma visão geral da ideia de um triunvirato positivista dirigente, saído
inicialmente da classe operária. Ele dizia que apesar do positivismo não
procurar abolir a propriedade privada, ele absorvia e reforçava os princípios
básicos do comunismo, no sentido de que aceitava o fato de que a comunidade deveria intervir para “subordinar [a propriedade] às necessidades sociais”.26 Comte também apoiava os operários que reivindicavam o direito
de trabalhar, uma melhor educação e uma república em que detivessem
mais poder. Invocou esquerdistas renomados como Proudhon, Blanqui e
Barbès, pedindo seu apoio.
Contudo, temendo que os revolucionários se tornassem violentos
demais e anarquistas, por um breve período de tempo apoiou o regime de
ditadura de Luís Napoleão, que esperava converter ao positivismo, o que
seria a primeira etapa para obter os favores do país inteiro. Em dado momento, chegou inclusive a sugerir-lhe que designasse como sucessor, pretendente legítimo, o conde de Chambord. Em 1855, Comte escreveu um
Apelo aos conservadores, para convencê-los a unir-se aos positivistas contra a
esquerda. Comte queria uma aliança com os jesuítas e dirigiu-se aos aristocratas ingleses, ao czar da Rússia e aos dirigentes turcos.
O crescente conservadorismo de Comte lhe custou o apoio dos esquerdistas. Seus discípulos ficaram horrorizados ao descobrir que ele havia
26
Système, v. 1, p. 155.
34
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
perdido não apenas Mill, como também seu adepto francês mais importante, Émile Littré. Ambos haviam dado certa legitimidade ao movimento graças ao renome de que gozavam. Charles Robin e George Henry Lewes eram
outros adeptos que também desertariam.
Mas Comte ainda tinha cerca de 50 discípulos fiéis na Sociedade Positivista. Havia uns 15 operários, mas a maioria era formada por homens
jovens de classe média que vinham de Paris e da província. Eram escritores,
estudantes e médicos.
As pessoas se filiavam ao movimento por um número variado de
motivos, pois liam de maneiras diferentes sua doutrina rica e complexa. A
política era uma razão pela qual muitos aderiram a seu movimento. Alguns
o consideravam um humanista ou um republicano que se interessava pelos
homens do povo. Outros estavam convencidos de que o positivismo era um
baluarte contra a Revolução.
Muitos ficavam fascinados pelo sistema científico de Comte enquanto síntese do saber erudito. Esse sistema parecia explicar as ciências, numa
época sedenta por categorização, e explicava a orientação da história, que
adquiria então estatuto científico. A nova ciência da sociologia parecia fornecer uma maneira racional de absorver os problemas aparentemente insolúveis do modernismo.
Alguns adeptos não se interessavam pelos aspectos científicos do positivismo, mas manifestavam muito entusiasmo pela Religião da Humanidade elaborada por Comte. Esta oferecia ritos e dogmas suficientes para
substituir o cristianismo junto a pessoas que haviam abandonado sua fé
tradicional com grande dificuldade, ou às que nunca tinham adotado uma
religião. A eliminação de Deus por Comte e o sólido sistema moral baseado nos fatos e na transparência pareciam estar livres da hipocrisia e agradavam aos céticos religiosos que agora podiam se orgulhar de si mesmos e de
sua sinceridade. Muitos agnósticos e ateus sentiam a necessidade de acreditar em alguma coisa coerente, abstrata e abrangente. Graças ao estrito sistema moral de Comte, também podiam trabalhar para seu próprio aperfeiçoamento e receber honrarias, como os crentes. Graças a seu elaborado sistema de rememoração, eles podiam alcançar a imortalidade. Também podiam
utilizar sua doutrina para atacar as igrejas tradicionais.
Algumas pessoas se sentiam atraídas pelo positivismo devido à personalidade de Comte. Ele permitia que membros da Sociedade Positivista
35
PICKERING, M. • Auguste Comte
se aproximassem uns dos outros e ficassem orgulhosos de pertencer a um
movimento exclusivo que construía uma nova era. Eles admiravam não
apenas sua visão audaciosa, mas também seu dogmatismo e, acima de tudo,
seu notável senso de certeza. Comte lhes dizia no que deveriam acreditar.
Um professor de Lyon, jornalista republicano, Charles Maynard, foi
um exemplo típico. Apreciava o positivismo porque este eliminava suas ilusões, trazia uma certa clareza à sua visão de mundo e o impedia de tentar
encontrar uma solução a questões que não podiam ser respondidas. O positivismo oferecia “uma solução racional ao problema social”. Ele escreveu a
Comte em 1853:
Meus olhos, como os de São Paulo, se livraram de suas vendas, a luz se fez
em meu espírito, e agora sei onde está a verdade. Graças ao senhor gozo
dessa tranquilidade perfeita que sempre acompanha uma convicção sincera,
e tenho à minha frente um objetivo magnífico que é preciso alcançar. Obrigado, mil vezes obrigado, por ter-me devolvido essa vida do coração sem a
qual a outra não é nada. Permita contar-me entre os que o admiram e amam.27
Muitos discípulos amavam Comte. Mesmo os que não eram discípulos se viam tocados por sua filosofia. Harriet Martineau sempre chorava
quando traduzia o Curso, pois este parecia eliminar todas as dúvidas e refletia a “profunda simpatia humana” de Comte.28
Fica claro que a solicitude de Comte em ouvir os problemas dos solitários e isolados o ajudou a convertê-los. Esses discípulos contavam a Comte
coisas pessoais espantosas. Muitos buscavam os conselhos de Comte para
encontrar uma mulher. Outros tinham relações e perguntavam se deviam
casar com suas amantes. Outros confessavam que frequentavam prostitutas
e que recorriam à masturbação para aliviar seus desejos sexuais. Henry
Edger, de Nova York, contou a Comte suas aventuras sexuais, que o desmoralizavam e davam-lhe “uma dor surda e profunda [...] nos testículos”.29
Em resposta, Comte disse-lhe com a maior honestidade que havia sofrido
problemas idênticos e que os havia resolvido apenas evitando qualquer estimulante. A aceitação de Comte do papel de sacerdote que recebia confis-
Carta de Charles Maynard a Comte, 3 de junho de 1853. Archives de la Maison d’Auguste
Comte.
28
MARTINEAU, Harriet. Autobiography. Org. de Marian Weston Chapman. Boston: James R. Osgood, 1877, 2 v., v. 2, p. 71-82, 90.
29
Carta de Henry Edger a Comte, 22 de junho de 1857. Archives de la Maison d’Auguste Comte.
27
36
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
sões e dava a absolvição era um grande conforto para homens que se sentiam afastados da autoridade religiosa tradicional. Eles o consideravam o
salvador, aquele que os havia tirado das profundezas do desespero, não
apenas intelectual, como também psicológico. Sua própria candura, suas
manifestações de vulnerabilidade e sua tendência natural às emoções comoviam muitos leitores que temiam que seu desenvolvimento emocional
fosse freado pela profissão, pela religião ou pelo papel que desempenhavam
enquanto homens e mulheres. Se o suposto defensor da racionalidade podia se lamentar de suas perdas pessoais no prefácio de seus livros e em suas
cartas, eles sentiam que também podiam expressar suas angústias.
Dada a diversidade dos discípulos em toda a Europa e nas Américas,
não surpreende que tenha havido tensões entre eles e com Comte. Os discípulos se tornaram ciumentos uns dos outros, e a rivalidade para reter sua
atenção prejudicou o movimento, contrariando Comte profundamente. Às
vezes, os discípulos tinham objeções quanto aos aspectos da doutrina de
Comte, sua maneira de tratar as pessoas, como a esposa, e sua política.
Comte raramente dava ouvidos e com frequência respondia com insultos.
Acusou Pierre Lafitte, por exemplo, que era um discípulo muito próximo,
de ser preguiçoso e fraco. Comte era menos paciente com os discípulos que
não lhe davam dinheiro para satisfazer suas necessidades ou que não aceitavam totalmente sua religião. Eles eram, retomando suas próprias palavras, “positivistas incompletos”.30 Comte era de fato o sumo pontífice.
Em 1857, Comte começou a sofrer de um inchaço no estômago. Sua
dor física era agravada por seus distúrbios emocionais. Ficou furioso com
um discípulo, Célestin de Blignières, que publicou um livro sobre o positivismo sem sua permissão. Queria constantemente ocupar uma posição de
controle. Sua arrogância contribuiu para uma morte dolorosa: quando ficou doente, recusou a ajuda dos médicos, mesmo dos que eram positivistas. Em setembro, morreu de câncer no estômago. Depois de sua morte, os
discípulos se digladiaram com sua esposa por décadas a respeito do testamento. Apesar de toda essa confusão que se assemelhava a um drama, o
positivismo se tornou uma força significativa no campo acadêmico – especialmente na filosofia, na sociologia e na historiografia – e no político, não
30
Carta de Comte a Henry Dix Hutton, 27 de dezembro de 1853. In: Correspondance générale, v. 7,
p. 156.
37
PICKERING, M. • Auguste Comte
apenas na França como no mundo inteiro. Continuou tendo muitos sentidos diferentes, como durante a vida de Comte. Conforme sugerido pela
grande especialista em Comte Annie Petit, houve e ainda há muitos positivismos.
Meu trabalho demonstrou que também havia muitos Comte: o engenheiro, o reformador social, o amante frustrado, o poeta inspirado, o moralista rigoroso, o médico, o papa e o devotado reformador religioso. Indivíduo teatral, ele gostava de expor suas diferentes personalidades, como
vários de seus contemporâneos românticos. Ele amava o melodrama, que
utilizou para analisar sua própria vida. O segredo para escrever essa biografia consistiu em não apenas permitir que essas múltiplas personalidades se
mostrassem, como também em assinalar o que havia de constante nos bastidores.
38
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
A conversão de olhares:
os intelectuais comunistas frente ao desafio
Eduard Esteban Moreno Trujillo
“O inventamos, o perecemos compañero!”
(Jaime Caycedo1, 2011).
O intelectual é filho de seu tempo e só pode ser entendido como produto das forças sociais, econômicas, culturais e políticas sob as quais age.
Nesta perspectiva, o seguinte texto tem como propósito expor o processo
de configuração do intelectual comunista da Colômbia e seu papel como
funcionário-intelectual, no marco da crise que originou a queda do socialismo real e do reexame da teoria marxista-leninista das décadas de oitenta e
noventa do século XX, além de salientar as características que condicionaram seu agir no seio do partido e da sociedade.
Para a realização de tal propósito, sugiro a categoria de intelectualfuncionário. Isto tem como objetivo ir além dos clássicos olhares sobre o
intelectual comunista como mero reprodutor acrítico do catecismo socialista2. Pelo contrário, o que se pretende é distinguir a imbricada contradição
inserida no sujeito intelectual como uma constante em seu longo processo
de formação3, e que eu chamo de conversão de olhares. Esta contradição
tem seu fundamento na distinção entre o intelectual como sujeito crítico e
objetivo, que utiliza as ideias para denunciar desapaixonadamente o poder,
Intelectual e secretário-geral do PCC.
Para o caso colombiano ver os trabalhos de Sánchez (1995); Pizarro (1991); Meschkat (2009);
Medina (2007); Delgado (2007, 2009). Na mesma linha, para o caso da América Latina, o
texto do mexicano Jorge Castañeda (1994).
3
Ao falar do processo, não faço referência a um processo que tenha um caminho demarcado e
um fim último. Só pretendo enfatizar a constante reconstrução e reelaboração da figura do
intelectual e também observar uma virada nas formas de leitura de mundo por parte dos intelectuais, mudança que corresponde à rotura de seu campo.
1
2
39
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
e aquele sujeito membro do partido político fechado, que segue incondicionalmente as ordens do aparelho.
Dessa maneira, distinguem-se dois momentos que moldaram a figura do intelectual comunista na Colômbia durante as décadas propostas –
ainda que se possa falar de diferentes características num mesmo período
de tempo: um primeiro período de contradição guiado pelo “seguidismo”
silencioso, que se pode localizar entre 1985 e 1990, e um segundo momento, que tenho chamado de ressignificação e que tem seu ponto de partida na
assimilação do debate sobre a crise no seio do marxismo-leninismo e se
estende até o final do século.
1. O intelectual-funcionário
No marco de uma história intelectual, assumir o intelectual como
protagonista pode ser óbvio e até parece absurdo formular uma dúvida sobre isso. No entanto, quando o historiador sai do mundo das representações e enfrenta as fontes (sejam quais são), as categorias saltam ao rosto e
se tornam mais complexas do que se imaginava. Neste ponto, a categoria
de intelectual (como qualquer outra) fica carregada de ambiguidade, e fazer uma história sobre o intelectual torna-se problemático.
Neste contexto, pretendo propor uma leitura do intelectual confrontado com os fatos, contrastar aquela “objetividade” que comumente se atribui ao intelectual com seu agir subjetivo na história. Além disso, com o fim
de enriquecer a leitura sobre o intelectual, um ser que a priori é extremamente ambíguo4, este é colocado num campo altamente politizado (o comunismo) e num período de plena ruptura para tal campo (a perestroika).
Por outro lado, o intelectual imerso nas lógicas da doutrina comunista, além
de ser um sujeito construído socioculturalmente (ZERMEÑO, 2003, p. 781782) e estar dotado de uma representação de tipo político, adere a um imaginário que preestabelece suas percepções sobre o mundo, afastando-o de
4
É importante advertir, seguindo Michael Löwy, que um intelectual é um ser singular e difícil, já
que “el intelectual puede ser reclutado en todas las clases y capas de la sociedad; puede ser
aristócrata (Tolstoi), industrial (Owen), profesor (Hegel) o artesano (Proudhon). En otros términos: los intelectuales no son una clase sino una categoría social; igual que los burócratas y
los militares se definen por relación con lo político, así los intelectuales se sitúan por su relación
con la superestructura ideológica” (LÖWY, 1978, p. 17).
40
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
uma capacidade de crítica total5. Mas será que este posicionamento frente a
um imaginário que permitiu ao intelectual comunista agir, tanto dentro do
mundo das ideias como no mundo da ação, distancia-o do ser intelectual
como sujeito crítico? Uma possível resposta será desenvolvida nas seguintes linhas.
Para entender as formas de agir do intelectual comunista da Colômbia nas décadas de oitenta e noventa, ele deve ser assumido sob quatro perspectivas. Primeiro, como um sujeito mergulhado numa lógica global de um
imaginário; segundo, como um sujeito homogeneizador de ideias com relação à sua organicidade frente a um bloco histórico particular; terceiro, como
um sujeito que responde a um conjunto de condições do espaço social em
que se encontra; e por último, deve-se assumi-lo como um sujeito comprometido com uma cosmovisão de mundo particular.
Segundo o historiador chileno Alfredo Riquelme (2009), ao falar do
intelectual comunista inserido num imaginário global, faz-se referência a
que o comunismo aparece para o intelectual como a revelação dos meios
necessários para alcançar um “estado ideal” de desenvolvimento humano.
Nesse estado se sobrepõe uma série de crenças que consistem no caminho
correto, nos meios necessários e em uma única narração correta, que levarão a
humanidade à construção de um mundo ideal, um mundo sem classes. Não
obstante, a aquisição dos meios para a mudança só se pode constituir se o
intelectual assume uma função determinada dentro da maquinaria do partido. Assim o diz Lênin e assim se enfatizou no seio do partido:
[...] es necesario que los intelectuales repitan menos lo que ya nosotros sabemos y que nos den más de lo que todavía no sabemos por nuestra experiencia fabril y “económica”, o sea: conocimientos políticos. Estos conocimientos vosotros, los intelectuales, podéis adquirirlos solos y tenéis el deber de
proporcionárnoslo cien y mil veces más [...] debéis ofrecérnoslo no sólo en
5
Para este texto relaciono imaginário com ideologia, já que aquele me permite compreender as
formas como os intelectuais-funcionários do PCC aderem às lógicas de um aparato doutrinal
que em numerosas situações os levou a justificar o injustificável. Assim, concordo com o historiador chileno Alfredo Riquelme quando diz que “[e]l uso de este concepto en la historiografía
se origina en el reconocimiento de que la vida de los individuos y los colectivos en la sociedad
no se limita a las realidades materiales o tangibles, sino que comprende representaciones de sí
mismos que desbordan el límite puesto por la interacción entre la experiencia y la argumentación racional. El imaginario alude, de esta manera, a un vasto y complejo conjunto de representaciones que se constituyen en las esferas, no solo de las ideologías, sino también de la
cultura y las mentalidades […]” (RIQUELME, 2009, p. 42).
41
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
forma de razonamientos [...] sino indispensablemente en forma de denuncias
vivas de todo cuanto nuestro gobierno y nuestras clases dominantes hacen
[...] (LENIN, 1961, p. 103).
Assim, o intelectual comunista colombiano é entendido em sua posição como funcionário, devido à sua assimilação ao comunismo, apresentado na forma de verdades irrefutáveis. Assim lembra o intelectual e funcionário do Partido Comunista Colombiano (PCC) Carlos Lozano ao referirse às lógicas de agir dos comunistas:
[…] estaba esa idea de que todo ya estaba dicho, de que todo estaba ya agotado, que simplemente había una especie de recetario, y que tocaba mirar
que se podía coger de ahí, que nos orientaba más de lo que Marx o Lenin
escribieron en sus libros […].6
Ao aceitar que tudo já estava dito na teoria, o intelectual ficou condicionado, e isto o levou a assumir e justificar posições que na prática não
eram coerentes com seus discursos, embora reconhecesse suas funções como
quadro do partido. Afinal, o importante era que a maquinaria do centralismo “democrático” funcionasse.
O enquadramento do intelectual comunista dentro de um imaginário
global leva-me a pensar nele também como um homogeneizador de ideias.
Segundo o intelectual italiano Antonio Gramsci, todos os homens podem
ser intelectuais, mas nem todos têm na sociedade a função de intelectual
(GRAMSCI, 1967). Isso quer dizer que, num determinado grupo social ou
bloco histórico, alguns sujeitos são chamados a dar coerência às ideias que
homogeneízam e delimitam a atuação do grupo. Isto significa que, além de
serem portadores das características que os relacionam à atividade intelectual7, aquilo que me permite identificar os intelectuais do PCC como intelectuais-funcionários é seu papel dentro do processo de homogeneização
das ideias comunistas na Colômbia8. Assim, os intelectuais têm a função de
configurar as formas culturais e ideológicas que dão unidade ao grupo coEntrevista com Carlos Lozano, 31 de março de 2011.
Neste aspecto é importante sublinhar que os intelectuais-funcionários aos quais se faz referência neste trabalho se identificam por serem docentes universitários, pesquisadores e escritores,
representando o que Gramsci chama de trabalho intelectual.
8
Deve-se esclarecer que com esta afirmação não pretendo reduzir o complexo campo do comunismo colombiano à opinião dos comunistas afiliados ao PCC. No entanto, não é de meu
interesse debater neste curto texto as múltiplas posições que a esquerda em geral tinha sobre o
comunismo como ideologia. Para aprofundar-se neste debate, pode-se ver o trabalho do professor Archila (2009) sobre a história das esquerdas na Colômbia.
6
7
42
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
munista, condição necessária para exercer hegemonia sobre outro grupo
social.
Deste modo, os intelectuais não foram uma classe alheia à massa
social, pelo contrário, constituíram-se na sua relação orgânica com a classe
social que representaram ou pretenderam representar. Por conseguinte, o
caráter orgânico dos intelectuais que outorga homogeneidade a um grupo
social foi uma ferramenta fundamental para caracterizar os intelectuais do
PCC. Porquanto, o desafio para os sujeitos desta história foi procurar a
homogeneidade do grupo a partir da perda de seu principal referente.
Abordar o intelectual como sujeito histórico permite-me enfatizar sua
subjetividade em contraposição à objetividade que pretendiam ter, já que
os protagonistas desta história, além de estar imbuídos dos marcos da ideologia, também foram afetados pelo conjunto de condições do espaço social
dentro do qual se desenvolveram. O intelectual é uma construção social
que corresponde à sua época (ALBA, 1976) e, neste sentido, não pode ser
tratado como um extraterrestre, pelo contrário, deve ser enquadrado sob as
lógicas de todos os seus condicionamentos materiais, impostos pela concretização do momento histórico.
O intelectual também está determinado pelas lógicas que compõem
seu campo intelectual, construído pelas forças de detenção de certo capital
simbólico. Isto é, finalmente, aquilo que permitiu aos intelectuais apresentar “interesses particulares” como “interesses universais, comuns ao conjunto do grupo [que representam]” (BOURDIEU, 2002, p. 10). Nesta perspectiva, e entendendo que o campo “es el producto de un proceso histórico
[y por lo mismo], este sistema no puede disociarse de las condiciones históricas y sociales de su integración [...]” (BOURDIEU, 1967, p. 145), é necessário localizar o intelectual comunista no seu contexto sociopolítico, com o
fim de ir além das simples lógicas do condicionamento ideológico. Com
isto quero afirmar a importância que teve o contexto de violência e repressão no condicionamento das leituras feitas pelos intelectuais do partido, e
que apresentarei mais adiante.
O último elemento que quero salientar no âmago do ser intelectual é
a concepção que Edward Said propõe em seu texto Representaciones del intelectual (1996). No texto, Said fala sobre um intelectual comprometido, aquele
que, sendo estrangeiro em seu próprio território e em sua solidão construída pela força de seu ofício, é capaz de dizer a verdade ao poder, constituin-
43
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
do-se num sujeito duro, eloquente9, imensamente corajoso e aguerrido
(1996). Pontualmente, o que me interessa na proposta de Said é o caráter de
compromisso que o intelectual adquire para revelar as contradições do mundo. Aqui quero relacionar o compromisso com a função, pois esta função do
intelectual, no caso do intelectual comunista, levou-o à escolha do cumprimento de seu trabalho dentro da organização partidária, aquilo que lhe
permitiria encarnar o apparatchik, já que, num primeiro momento, ele é o
aparelho (partido) feito homem (BOURDIEU, 2002). É sua função revelar
o mundo aos demais homens, para que assumam suas responsabilidades
(SARTRE, 1969). Com isto, a contradição do intelectual-funcionário se
agravou ainda mais.
O intelectual-funcionário é, então, um sujeito carregado de subjetividade, multiplicidade e imerso num processo de configuração histórica (ver
gráfico1)10. Assim, proponho a construção de um marco flexível para interpretar o intelectual do PCC nas contradições próprias do contexto que teve
que viver, e os conflitos ontológicos que teve que enfrentar entre sua função
dentro de um aparato burocrático e sua capacidade de ler criticamente o
mundo.
Visto desde a distância, tanto espacial como temporal, a eloquência (assumida também como
coerência) não pode ser atribuída ao intelectual comunista. Mas como romper então os juízos
de valor e estudar o sujeito ou o ser do intelectual na sua forma concreta de existência e representação dentro da sua realidade? Deve-se então admitir, pelo menos nos limites desta proposta, que dentro do mundo vivido pelo intelectual comunista ele se assumiu como um sujeito
eloquente.
10
O gráfico permite construir uma imagem do campo dos intelectuais comunistas e, a partir daí,
conhecer as correlações de força em que se desloca o intelectual /intelectual-funcionário. Além disso,
permite detonar as miradas simplistas sobre um processo de aceitação e transformação intelectual,
colocando os sujeitos de estudo no espaço onde se constroem as regras de seu campo.
9
44
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Em suma, o intelectual-funcionário foi condicionado por três lugares
interconectados de enunciação que corresponderam: 1) à sua materialidade, isto é, à sua concretização como um sujeito histórico, permeado pelo
seu contexto social, político e econômico; 2) ao seu caráter orgânico, ou
seja, à sua intencionalidade de dar coerência a um grupo social determinado11; 3) ao seu compromisso com um projeto de sociedade que, bem ou
mal, tem configurado sua cosmovisão.
2. O contexto
Entre 1985 e 1986, abriu-se para os intelectuais do PCC, e para a
esquerda em geral, um período de expectativas marcado por dois fatos que
afetaram diretamente seu campo de ação. Por um lado, no nível nacional, e
sob o abrigo das conversações de paz entre a guerrilha e o governo da Colômbia, as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC-EP)12 decidiram criar um partido político de esquerda, a Unión Patriótica (UP)13, que
possibilitou a convergência política de um amplo setor da esquerda nacional. Entretanto, no plano internacional, os olhos do mundo comunista viram chegar ao poder do influente Partido Comunista da União Soviética
(PCUS) o “moço” Mikhail Gorbachev, em 11 de março de 1985, figura
paradigmática que foi considerada pelos divulgadores do PCC como um
“gran organizador […] con una excelente capacidad política”14.
Com isto, pode-se pensar que o intelectual-funcionário do PCC se
viu mergulhado num contexto no qual devia responder a dois fenômenos
ideológicos complexos. No plano local os intelectuais-funcionários achavam uma possibilidade de participação política. E no plano global deviam
tentar interpretar um fenômeno que demarcava uma transição no seio do
comunismo mundial15. Isso era, segundo o intelectual-funcionário, dar a
cara à “juventud del socialismo”16, tanto no nível local como no global.
Neste caso, corresponde à militância do partido comunista.
Para uma historia das FARC-EP ver Arenas (1982); Pizarro (1991; 2011); Ferro & Ramon
(2002); Pécaut (2008).
13
Ver Buenaventura (1985); Campos (2003); Dudley (2008).
14
Semanario Voz, p. 13, 14 mar. 1985.
15
Segundo o historiador chileno Alfredo Riquelme, não se trata simplesmente de considerar as relações dos intelectuais do PC com a URSS como um fator de incidência exterior, e sim de entender
cada dimensão da história nacional durante esse período, imbricada em outras histórias.
16
Semanario Voz, p. 13, 14 mar. 1985. Grifo meu.
11
12
45
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
2.1 A relação FARC-UP-PCC como contexto interno
O pano de fundo no qual os intelectuais-funcionários do partido constituem a conversão de seus olhares frente à sua concepção do mundo constitui-se por dois fenômenos contraditórios. Por um lado, vivia-se um período de aumento significativo da violência, e, por outro, iniciava-se um processo de paz que, como veremos, nascia morto.
Ao iniciar a década de oitenta, os esforços do país se centraram num
processo de paz com as guerrilhas. Este esforço se constituía numa urgência, devido ao recrudescimento da violência e ao descontentamento social
(PÉCAUT, 2006); no entanto os diálogos de paz, segundo o historiador
Mauricio Archila (2009, p. 85), estiveram destinados ao fracasso:
[...] no solo porque se desarrollaban en medio de la guerra, manteniendo
cada parte una agenda oculta para fortalecerse militarmente, sino porque se
agigantaba el paramilitarismo, alimentado ahora por instituciones como las
cooperativas Convivir, por los lazos con sectores de las Fuerzas Armadas y
las elites regionales, y especialmente por la financiación del narcotráfico,
que salpica también a la insurgencia en forma creciente.
Assim, no âmago do PCC objetivou-se o agravamento da crise, com
o fim de fazer aumentar as perspectivas de transformação que operavam
sob o processo de paz. Na declaração política do XIV congresso, realizado
em novembro de 1984, exprimia-se que:
La nueva situación que apunta en el país significa una profundización de la
lucha de clases y una ruptura del inmovilismo político. Es un resultado, en
primer término, de los acuerdos de cese de fuego iniciados con el pacto de
La Uribe, entre la Comisión de Paz y las FARC-EP, seguido por los acuerdos
del gobierno con el M-19, el EPL y el ADO. Pero es también la consecuencia
de las múltiples luchas de los trabajadores, el pueblo y las corrientes
progresistas, en los más variados frentes del combate popular, en un momento
en que la crisis económica debilita la capacidad de maniobra de la oligarquía
y pone en movimiento a grandes masas populares que se empobrecen día
tras día.17
A nova situação a que se refere o PCC converge na crença que tinha
a esquerda radical de que as condições objetivas para a revolução estavam
se apresentando (PÉCAUT, 2006; DELGADO, 2007). Este pensamento
conjurado pelos intelectuais-funcionários18 permite estabelecer uma rela17
18
“Declaración Politica del CC del PC” p. 1. Revista Puntos de Vista, n. 16, 1985.
Aqui se pode observar que a dialética entre o funcionário e o intelectual é superada pelo funcionário. O objetivo era homogeneizar a posição do Partido de qualquer modo.
46
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
ção entre as guerrilhas e os partidos de esquerda radical, que o historiador
Daniel Pécaut definiu como a “Constelación FARC-Unión Patriótica-Partido Comunista”. Esta constelação se baseou na premissa de que
[t]anto la UP como el Partido Comunista estaban convencidos de que había
llegado la hora de “profundos cambios democráticos” y que la coyuntura
[era] “prerevolucionaria”. Los activistas de los dos grupos canalizaron los
movimientos de protesta; esto no les impidió incitar a los sectores populares
a “insurgir” contra el ascenso del “fascismo” (PÉCAUT, 2006, p. 359).
Esta relação formou o cenário sobre o qual se apresentaram os diferentes níveis de interpretação, tanto da realidade colombiana como do papel desempenhado pelo PCC dentro dela. Este cenário foi determinado pelo
avanço das guerrilhas, que tiveram suas causas no crescimento das tensões
sociais, na insuficiência das políticas públicas, na disponibilidade de jovens
sem perspectivas, assim como na acumulação de recursos por parte das
guerrilhas, graças ao novo controle do cultivo da planta de coca (PÉCAUT,
2006). Além disso, houve uma crescente fidelidade da população ao processo guerrilheiro, devido ao estabelecimento de proteção por parte da guerrilha e à construção de uma ordem que substituiu as carências do Estado e
limitou as pressões de militares e narcotraficantes sobre algumas regiões.
Finalmente, no tocante às expectativas abertas pelo processo de paz e
as atuações da guerrilha no seio da esquerda, apresentou-se, como já mencionei, a construção da U.P. Este novo partido político foi
una propuesta política [...], ideada por Jacobo Arenas19, surgida de los anhelos de paz y de los acuerdos logrados en 1984 por el gobierno con las FARC,
[propuesta que] fue víctima de la más feroz campaña criminal contra la dirección de un grupo político jamás vivida en Colombia (MORENO, 2001, p. 42).
Deste modo, as estratégias da extrema esquerda e das guerrilhas entraram num processo que Pécaut chamou “la modernización de las reaciones” e que se concretizou porque as reações tanto das FARC como da U.P se
centraram na realização de atos de protesto “frecuentemente muy pacíficos”. Foram atos dentro dos quais se observou uma manifestação de autoridade dos dirigentes e intelectuais comunistas (PÉCOUT, 2006, p. 358-
19
Foi um guerrilheiro colombiano, liderança ideológica das FARC-EP, e uma de suas principais
figuras durante as décadas de oitenta e noventa. Antes de integrar as FARC, Arenas foi militante ativo do PCC, e suas posições sempre estiveram contra a tendência intelectual do PC.
47
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
359) e nos quais se delineou, estrategicamente, sua antiga proposta de combinação das formas de luta20.
O papel dos intelectuais-funcionários consistiu em articular três objetivos históricos: a autodefesa das massas contra a violência reacionária, a
combinação de todas as formas de luta e a transformação da autodefesa em
luta guerrilheira. Esses objetivos reforçaram a dualidade do intelectual comunista frente à luta democrática e à luta armada (PIZARRO, 1991; DUDLEY, 2008; DELGADO, 2009).
No interior do partido, os intelectuais confrontavam a sua dualidade:
a crítica ao partido a partir de sua postura como intelectuais ou a aceitação
muda das contradições como funcionários, como quadros absorvidos pelo
partido. A crise explodiu. Gilberto Vieira21 saiu da secretaria geral do partido em 1991 após um longo período de luta e liderança, mas sua saída foi o
limite da contradição que há anos se vivia no interior do PCC. Por um lado,
agravou-se o enfrentamento interno dos intelectuais-funcionários, entre os
partidários da glasnost e da perestroika e os setores ortodoxos. Além disso, a
crise se fortaleceu pelo “aire renovador que impuso desde la Unión Patriótica gente con mentalidad abierta como Bernardo Jaramillo22 y José Antequera23” 24.
Num discurso pronunciado por Álvaro Delgado durante o XVI Congresso do partido, realizado em agosto de 1991, o intelectual advertia que
“[e]l partido está acabando. Actuando más por defecto de los atropellados
cambios en el mundo del socialismo que bajo una convicción sincera de
A combinação de todas as formas de luta foi contemplada pela primeira vez no PCC durante
seu Congresso nº 11 em dezembro de 1971. Neste congresso se começou a considerar a luta
armada como algo inevitável e necessário para a revolução colombiana (DELGADO, 2008),
mas, com o passar do tempo, esta estratégia foi se convertendo numa doutrina que tinha vida
própria, “[...] en un credo que no podía ser cuestionado bajo ninguna circunstancia” (DUDLEY, 2008, p. 59). Também se deve observar que esta estratégia pretendia harmonizar as perspectivas da luta armada com as lutas politicas e sociais que aconteciam no país, embora também pretendesse dar uma resposta à pugna sobre as vias da revolução encarnada na cisão
chino-soviética dos anos 60.
21
Intelectual e secretário do PCC entre 1947 e 1991.
22
Liderança das lutas agrárias do país, militou no PCC e foi presidente da Unión Patriótica. Foi
assassinado por grupos de extrema direita em 22 de março de 1990.
23
Reconhecido intelectual das Juventudes Comunistas de Colombia (JUCO) e, por um curto período, secretário do PCC. Também foi dirigente nacional da Unión Patriótica. Foi assassinado por
grupos de extrema direita em 03 de março de 1989.
24
El Tiempo, 24 nov. 1991. Citado ap. MORENO, 2001, p. 19-48.
20
48
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
renovación y reencuentro con los colombianos […]”25. Esta crise também
foi precedida pela saída de mais de 30 intelectuais-funcionários do partido;
assim apresenta o jornal El Tiempo em 24 de novembro de 1991: “a la luz de
la lectura de los documentos de renuncia y de las reacciones aparecidas en
‘Voz’, son las revelaciones de guerra sucia interna que se estaba viviendo
dentro del PCC”.26
Finalmente, deve-se falar da violência que permeou todo o período
de estudo e estourou o campo intelectual dos comunistas na Colômbia.
Não precisando aprofundar-se muito nos dados para entender a magnitude
da situação, basta dizer que por volta de 1993 as forças de direita do país
tinham exterminado “7 congresistas, 13 diputados, 11 alcaldes, 69 concejales y alrededor de 3.000 dirigentes y militantes de base”27 que tinham relação com a esquerda. Nesse cenário, as palavras de Jaime Caycedo28 cobram
crucial relevância: “como pensar teóricamente en lo que pasaba cuando
todos los días teníamos que enterrar a un camarada[?]”.29
Desta maneira se constitui o conjunto de circunstâncias internas nas
quais se desenvolveram as lutas pela imposição de sentido, protagonizadas
pelos funcionários-intelectuais do PCC. Além disso, neste marco se desenvolveu a luta interior do ser intelectual da qual se falou no primeiro trecho
deste texto. Agora apresentarei o contexto global, representado no desafio
que a interpretação da queda do mundo comunista pelos intelectuais do
partido implicou, que é outro fenômeno que expõe a dualidade entre o
funcionário e o intelectual.
2.2 Perestroika: a ruptura no nível global
A perestroika é o ponto de não retorno no qual as construções teóricas
dos funcionários-intelectuais do PCC são condicionadas pela necessidade
dos questionamentos. A queda do “socialismo real” foi um acontecimento
que causou impacto no campo intelectual no todo mundo, chegando-se
Discurso de Álvaro Delgado no 16º Congresso do PCC (p. 4 e 5).
El Tiempo, 24 nov. 1991.
27
Corporación para la Defensa y Promoción de los Derechos Humanos REINICIAR, n. 1, p. 4, fev. 2005.
28
Secretário-geral do PCC, docente da Universidade Nacional da Colômbia e vereador de Bogotá. Foi vítima de diversos atentados, durante a década de 80 esteve perto da morte, fato pelo
qual teve que sair do país. Em 1994 assumiu a secretaria geral do PCC, depois do assassinato
do intelectual-funcionário Manuel Cepeda Vargas, que era o secretário.
29
Entrevista com o intelectual Jaime Caycedo Turriago, 19 de abril de 2011.
25
26
49
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
inclusive a propor o fim das ideologias e o fracasso total do marxismoleninismo como cosmovisão válida para a interpretação da realidade social.
No interior do PCC, este acontecimento provocou um ambiente de ceticismo que caracterizou a saída atomizada, mas significativa, de funcionáriosintelectuais do seu interior30.
Mas que foi a perestroika? E que significou para a conversão de olhares do intelectual comunista? A perestroika foi concebida como um conjunto
de reformas aplicadas na União Soviética entre 1985 e 1992. Esta reforma
tinha por objetivo a liquidação do sistema burocrático-autoritário, para construir um organismo social baseado na democracia e autogoverno (GORBACHEV, 1993). Evidentemente o plano falhou. Em pouco tempo, as políticas de reforma que pretendiam combater o estancamento econômico e o
extremo burocratismo levaram à destruição de todo o sistema socialista.
Aliás, este processo de destruição foi reforçado pelo crescente desejo
social de reformas imediatas, principalmente nos países satélites do PCUS,
desejo que, nas décadas anteriores, refletiu-se nos protestos da Hungria
(1956), na greve dos operários industriais da Polônia (1956) e na primavera
de Praga de 1968 (SERVICE, 2009; HOBSAWM, 1995). Assim, o impulso
acumulado de uma necessidade urgente de mudança, além de uma cega
competição armamentista contra o Ocidente, levou a URSS a desmoronar
frente aos olhos atônitos do mundo. O intelectual comunista Jose Arizala31
expressou em lacônicas palavras o sentimento da contradição intelectual:
“Hoy sabemos que […] las promesas no se cumplieron. Algo más. Que las
cosas marchaban hacia un colapso de los gobiernos de los países del Este
aún más dramático del que hemos sido testigos” (ARIZALA, 2007, p. 240).
A perestroika instaurou o ponto de inflexão no qual a teoria marxista
foi posta à prova em relação à prática real de seu agir. Configurando-se
Segundo Delgado, “[l]a desbandada intelectual de los años 90 fue la segunda más grave en la
vida del partido, después de la que se presentó como efecto del ascenso de la violencia política
desde mediados de los años 40 hasta la implantación del frente nacional en 1962. Pero a diferencia de la primera, en la de fines del siglo pasado el resorte no fue propiamente el agravamiento del fenómeno represivo gubernamental sino el copamiento de las filas partidarias por la
intolerancia política y la decapitación de las delgadas normas democráticas que presidian la
vida interna del partido” (DELGADO, 2009, p. 60). Note-se que neste ponto já são dois os
fatos que levaram à saída de militantes do seio do PC.
31
Durante a conjuntura, ele se encontrava na zona do bloco soviético como representante do
partido no jornal internacional (ARIZALA, 2007).
30
50
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
como uma reforma necessária e intensa em nível econômico e social, a
perestroika tentou solucionar as fortes contradições entre os níveis estruturais e superestruturais que se acumularam na sociedade soviética durante
as décadas de setenta e oitenta. Segundo o historiador soviético Kiva Maidanik, a perestroika era uma superação das debilidades, defeitos e deformações, que permitiu encarnar em toda a sua amplitude os ideais de Marx e
Lenin (HARNECKER, 1987).
Não é de meu interesse mergulhar aqui no já longo debate sobre a
queda do socialismo real32. A referencia só será utilizada para marcar o fato
como “divisor de águas” da figura do intelectual-funcionário. Já que, depois de tal acontecimento, o mundo dos “camaradas” corre atrás deles,
parafraseando um grafito nos muros da Sorbonne durante as mobilizações
de 196833. Ainda que esta referência seja anedótica, pode-se lê-la como a
premonição da queda, declarada nos muros e lemas da revolução do “sistema mundo” de 1968 (WALLERSTEIN, 1989).
Em termos gerais, pode-se dizer que a atitude do PCC e da esquerda
nacional frente ao processo de transformação do mundo socialista foi similar à atitude do resto da esquerda na América Latina. O mexicano Jorge
Castañeda (1994) oferece um panorama amplo ao afirmar que a esquerda
latino-americana não soube como responder ao derrubamento do socialismo. A princípio, os partidos comunistas tradicionais reagiram de um jeito
formal e simplista. Constantemente insistiu-se que as mudanças do mundo
socialista não implicavam mais que uma prova adicional da vitalidade do
socialismo e de sua capacidade de renovação. O peso dos funcionários fez
seu trabalho na coerção da crítica do intelectual.
Segundo o historiador colombiano Mauricio Archila, todo o processo de derrubamento do sistema socialista ocasionou, em primeira instância, que os partidos comunistas foram duramente criticados, somando-se a
isto que “la centralidad y el universalismo de la clase obrera se relegaran al
pasado” (2009, p. 81). Neste contexto, apareceram no horizonte novos
movimentos sociais que agenciaram, sob suas numerosas formas de ação, a
descentralização das lutas contra o capitalismo tardio, deixando em eviAlgumas referências sobre este tema foram trabalhadas na minha dissertação (MORENO,
2011, p. 26-70). Também se pode estudar a seguinte bibliografia: Fazio (1992); Gorbachev
(1987, 1993); Harnecker (1987); Poch-De-Feliu (2003); Ferro (1990).
33
Grafito aparecido nos muros da Universidade de Sorbonne na França em 1968.
32
51
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
dência o estancamento do PCC, perceptível de há vários anos (PIZARRO,
1991, p. 24).
Neste cenário, a ruptura se fez evidente. O mundo muda vertiginosamente, e o que antes parecia uma verdade revelada hoje é só uma recordação. O sólido se desmancha no ar, e a velocidade se apropria dos ritmos do
tempo. Os intelectuais-funcionários têm que assumir sua realidade, sua crise. A sua batalha interior de transformação está em seu ponto culminante.
3. A contradição34, a crise, a reconstrução da esperança
A transgressão das análises da realidade pela defesa apaixonada da
ideologia é uma constante contradição dos funcionários-intelectuais. Aqueles sujeitos que tiveram que justificar a validade do comunismo, contra os
erros de seu ponto de referência, entraram numa etapa em que as contradições de anos de silêncio saíram à luz.
Um exemplo histórico que oferece luzes sobre o conflito latente entre
o intelectual e seu papel como funcionário se apresenta na experiência vivida pelo intelectual e militante do PCC Nicolas Buenaventura, que no ano
de 1992 escreveu o livro ¿Que pasó, Camarada?35. Desse texto é interessante
um episódio em particular. Buenaventura conta que, durante a década de
oitenta, foi chamado a participar de uma assembleia sindical como representante do PCC. Nessa assembleia, um grupo de operários empenhou-se
em fazer uma resolução de protesto contra o PCUS pelo confinamento em
presídio do cientista russo Andrei Sakharov, que em 22 de janeiro de 1980
foi levado à cadeia por seus protestos públicos contra a invasão soviética do
Afeganistão em 1979. A ese respeito diz Buenaventura: “[…] la misión mía
era sencillamente detener esa resolución” (1992, p. 29).
Como intelectual e funcionário do PCC, Buenaventura confessa que
assumiu a tarefa de elaboração de um discurso “persuasivo”, que permitiu
dissuadir este grupo de operários. Com este fim, construiu toda uma dissertação a respeito da diferença entre democracia capitalista e democracia
operária, que finalizou da seguinte maneira:
Neste caso, a contradição não pretende gerar uma imagem idílica e oposta entre aquele intelectual do qual Julien Benda (2008) sentia saudade e o intelectual apolítico cooptado pelo
partido. Só se pretende sublinhar a existência de uma contradição dentro de um mesmo ser.
35
Neste texto, o intelectual (que militou no PCC por mais de 40 anos) fala de sua experiência e
exprime diversas críticas ao partido.
34
52
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Yo pregunto a ustedes, compañeros, les pregunto. ¿Es que acaso le vamos a
permitir nosotros a esta minoría que llore, que chille? ¿Es que vamos a tolerarle que se pasee con carteles frente a la fábrica protestando contra la huelga? […] ¡Yo pienso que no!, compañeros. Y estoy seguro de que ustedes
piensan igual, -añadí-. Y por eso digo: ¡No! En la democracia socialista no.
Allí manda la mayoría, una mayoría real, difícilmente construida y estructurada, a menudo con mucha sangre y sacrificio. Pero ¡la minoría no!, no protesta, no llora, no chilla. No tienen ese derecho.
Comencé a insistir sobre la tesis de Lenin en el sentido de que con el gobierno obrero las cosas van en serio. Que allí no hay juegos. Y ello por una
razón, porque la democracia allí es verdad o sea que es el gobierno de la
mayoría. Fue así como se enterró el proyecto de resolución de la asamblea
sindical a favor de la excarcelación de Sájarov en la URSS (BUENAVENTURA, 1992, p. 34-35).
Reafirmam-se todas as peripécias dos intelectuais comunistas para
cobrir os erros do regime soviético. Mas esta experiência exposta pelo Buenaventura não finaliza aqui. A contradição estava por chegar. O mesmo
intelectual termina seu relato da seguinte forma:
[…] la noticia de la libertad de Sájarov ordenada por el jefe del gobierno y
primer secretario del partido soviético Mijaíl Gorbachov […] me impactó
demasiado [sic] por una circunstancia casual. Se encontraba conmigo, cuando la escuchamos, en reunión de partido, a través de un noticiero televisado, el camarada dirigente obrero que me había acompañado a la “asamblea
sindical” mencionada y que me había apoyado y felicitado mucho, entonces, por la “claridad” y la eficacia de mi “intervención” en ese momento
[…] concluida la noticia, los dos, él y yo, nos miramos a los ojos. Éramos
iguales, igualmente honrados. Pero no había nada qué argumentar. Esto no
estaba en el orden del día, había que concluir la reunión (BUENAVENTURA, 1992, p. 35; grifo meu).
Trata-se de contradições obstinadas, no entanto esclarecedoras da falta
de coerência que inundou o campo intelectual do comunismo colombiano.
Os intelectuais-funcionários, como disse o professor Buenaventura, foram
ficando sozinhos em um caminho cheio de meias-verdades e mentiras defendidas com firmeza. Era uma solidão cadavérica que se introduziu entre
os ossos de um partido e de sujeitos que, devagar, assistiram à dissolução de
seu sonho. Dali em diante tiveram que repensar o caminho andado, mas
desta vez com os olhos bem abertos.
Contudo, como as contradições podem constituir o campo intelectual?
Como as forças que impulsionam as cosmovisões dos intelectuais, ou seja, as
formas em que os condicionamentos objetivos (violência social e queda do
socialismo real) e subjetivos (sua capacidade de crítica e análise dos contex-
53
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
tos dentro do PC) mexem nas regras do jogo e determinam o que o intelectual pode ou não pode falar ou fazer? Assim se estrutura a transformação
silenciosa de um campo inteiro.
Outra comprovação das contradições que constituem o campo pode
ser vista no acompanhamento de um espaço particular no PCC. Os intelectuais-funcionários agiram dentro do Centro de Estúdios e Investigaciones
Sociales (CEIS), que se configurou como um projeto com sucesso desde a
década de setenta, pois esteve dirigido ao fomento do estudo da realidade
nacional, baseado nas necessidades criadas pelo devir da luta política (DELGADO, 2009). Entre as décadas de setenta e oitenta, o CEIS se constituiu
no espaço a partir do qual os intelectuais operaram em apoio à crítica pública ao Estado e à homogeneidade ideológica do PCC. Por esta razão, ao
acompanhar a trajetória deste centro, podem-se evidenciar as características do contexto intelectual do comunismo na Colômbia e a lógica de desenvolvimento da sua luta interior frente à ruptura ideológica representada
pela queda do socialismo real.
Do mesmo modo como a contradição rachou o sujeito intelectual,
ela também desestabilizou o CEIS. No meio da década de oitenta, o CEIS
e o jornal Margen Izquierda36 deixaram de existir devido a três elementos
fundamentais. Primeiro pelo difícil contexto de segurança para a esquerda
colombiana, no marco do aumento da violência interna. Segundo, o CEIS
se transformou num foco de crítica e autocrítica ao socialismo real. De tal
modo lembra-o Carlos Lozano numa entrevista:
[…] me acuerdo que el CEIS estuvo a punto de que lo clausurara el partido
porque en un curso se le hicieron algunas críticas a la república democrática
alemana y había unos alemanes que habían invitado, y entonces los cogió
Nicolás Buenaventura y les metió un regaño a esos pobres alemanes, y la
dirección iba a acabar con el CEIS por eso.37
O terceiro fato que levou ao fechamento do CEIS foi, como afirma
Álvaro Delgado (2009), a determinação do partido de afirmar seu compromisso com a luta armada, como via para a revolução social, incentivando,
assim, o desmantelamento do núcleo de intelectuais orgânicos que dirigiam
o CEIS e eram opostos a tal caminho. Sob esta forma, expõe-se uma posição enviesada e retrógrada que caracteriza o PCC e que se complementa
36
37
Órgão de difusão do partido.
Entrevista, 31 de março de 2011.
54
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
com uma posição que não tolerava dúvidas públicas sobre o processo da
esquerda no nível global (ARCHILA, 2009).
Assim, o CEIS se constituiu numa força centrífuga que depurou o
campo intelectual e exigiu uma tomada de posição. O PC, a violência de
direita e o deslocamento da reflexão esmagaram o CEIS e fecharam o campo de ação intelectual. E, nesse contexto, a esquerda viveu um lento processo
de aceitação da crise e de câmbio geracional, que quebrou os antigos olhares
ortodoxos, embora ainda não tenham sido esquecidos por completo.
3.1 A crise
Em 1980, o jornal mexicano Dialética publicou uma entrevista com
os filósofos franceses George Labica e Etienne Balibar, na qual disseram:
[…] El primer problema [que se quería] plantear es si [ellos] piensan que
existe verdaderamente una crisis del marxismo, y si existe, cuáles son los
puntos, digamos las causas básicas de la crisis, o cómo abordan [ellos] el
problema.38
Nessa entrevista, os filósofos fizeram uma série de afirmações que
ratificaram a evidente existência de uma crise no interior do marxismo,
entendendo que esta se achava “no coração da teoria”39.
Faço referência a esta publicação com o fim de acentuar a tardança
com que foi assumido o debate da crise no âmago da intelectualidade comunista. Só dez anos depois (1990) esta entrevista será citada num aparelho de difusão comunista na Colômbia40. Com isto não pretendo dizer que
nos círculos intelectuais do PCC não houvesse um conhecimento prévio de
tal debate, mas o que se consegue ver é que foi só na década de noventa que
os intelectuais do PCC assumiram a crise e começaram a introduzi-la em
seus próprios debates. São duas as perguntas pertinentes ao fenômeno de
crise dentro do campo da intelectualidade comunista. Em primeiro lugar,
cabe perguntar pelas razões da tardança com que foi assumido o debate da
crise. E, em segundo, é importante questionar a forma como foi assumido
esse debate, ou seja, as posições construídas pelos intelectuais-funcionários
na sua virada.
Dialéctica, n. 8, p. 113, jun. 1980. Grifo meu.
Ibid.
40
Ver: Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 1-3, abr. 1990.
38
39
55
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
A primeira questão só pode ser entendida ao se examinar as condições sociais em que viveram os comunistas em geral na década de noventa
na Colômbia. Deve-se, então, fazer referência à perseguição e ao extermínio de que foram vitimas, e a que fiz referência anteriormente. A violência
contra a militância de esquerda gerou um progressivo adiamento do debate
teórico.
A segunda questão sobre a posição dos intelectuais frente à crise pode
ser respondida ao se acompanhar os textos escritos nas suas publicações41.
Para eles, “[e]l marxismo [solo] entraría en crisis cuando ya no pueda decir
nada sobre los problemas que agobian al hombre contemporáneo”42. Neste
sentido, o marxismo ainda era válido, já que as condições de contradição
social nas que vive a sociedade são claras e evidentes. Já nas reflexões feitas
pelo intelectual comunista Gilberto Vieira entre 1993 e 1995, o funcionário
do PCC afirmava:
Consideramos que […] lo que ha fracasado no es la teoría marxista-leninista
sino su deformación; y de allí se desprende una enorme cantidad de lecciones y de enseñanzas que es necesario profundizar en un estudio colectivo
que tenga en cuenta los principios esenciales del marxismo (cit. ap. FAJARDO, 2005, p. 209).
Na mesma linha, podem-se encontrar artigos em que os intelectuaisfuncionários faziam referência a uma crise do socialismo como prática. Por
exemplo, no mesmo ano o intelectual Nelson Fajardo43 escreveu um artigo
intitulado Aproximaciones hacia una crítica sobre la crisis teórica y práctica del
socialismo, em que expõe como propósito:
[…] elaborar algunos planteamientos en torno a la actual discusión sobre las
perspectivas de la teoría clásica del cambio revolucionario, la forma como
este avanzó y se distorsionó en su implementación práctica, generando la
actual crisis que requiere en la perspectiva de la reconstrucción del proyecto
transformador.44
Assim, o papel dos intelectuais do partido, consciente ou inconscientemente, visou à procura de uma nova racionalidade que lhes permitisse
pensar um modelo superior de socialismo45. No mesmo sentido, nos escriNeste ponto só me interessarei pelos escritos das pessoas que ainda são militantes ativos.
Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 23, abr. 1990.
43
Professor universitário e dirigente nacional do PCC.
44
Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 50, abr. 1990.
45
Ibid., p. 58.
41
42
56
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
tos do professor Sergio de Zubiria Samper46, intelectual e membro do Comitê Central do PCC, encontram-se ideias que tentam ir além da crise. O
intelectual pretende fazer o resgate do marxismo como teoria possível e
viável para a leitura crítica da realidade, a partir das propostas da escola de
Frankfurt:
Reflexiones expresas sobre el marxismo hoy y el concepto de crisis han sido
elaboradas por Marcuse y Habermas. Textos invaluables en esta tarea son “La
dialéctica marxista” (1936), “El marxismo soviético” (1958) del primero, y
“Problemas de legitimación del capitalismo tardío’ (1973), “La reconstrucción del materialismo histórico” (1976) del segundo.
Marcuse dedica su esfuerzo a elaborar una crítica inmanente del marxismo
soviético en sus tendencias leninistas, estalinistas y postestalinistas,
desarrollando sus consecuencias ideológicas y sociológicas; mientras
Habermas reflexiona sobre las nociones de crisis y reconstrucción en las
ciencias sociales […].47
Fica em evidência uma multiplicidade de fatores que incidiram na
apropriação de um discurso por parte do conjunto de intelectuais-funcionários comunistas. Em primeiro lugar, a relativa dilatação de tal discurso
devido às precárias condições do debate interno. Em segundo lugar, a posição a partir da qual os intelectuais-funcionários defenderam o terreno em
que eles se desenvolvem, ou seja, o plano das ideias48; assim, assumiram
que a crise se encontra só no cenário da prática. Mas também se faz evidente uma nova maturidade intelectual caracterizada pelas análises críticas sobre
a experiência. Uma mostra disto se encontra nas referências à teoria clássica que Vieira deixara antes de morrer:
[…] los clásicos del marxismo concibieron su teoría como una guía para la
acción y no como un dogma de fe; actitud, esta última, que condujo a la
dogmatización y esquematización del marxismo y del leninismo por parte
de amplios sectores del movimiento comunista mundial, con graves deformaciones para la teoría como [para] la práctica socialista (cit. ap. FAJARDO, 2005, p. 209).
Portanto, pode-se reconstruir o curso de desenvolvimento do pensamento comunista em geral, e dos intelectuais-funcionários em particular,
Professor universitário e reconhecido filósofo.
Ibid., p. 22. Grifo meu.
48
Aqui não me interessa entrar no debate da distinção entre a teoria e a prática e a forma em que
os intelectuais comunistas assumem tal relação, devido a que, em última análise, o intelectual
é um sujeito que trabalha no campo das ideais.
46
47
57
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
sempre marcado por uma experiência frustrada pela fragmentação, e que,
além disso, contribuiu para a formação de um sujeito particular, um intelectual filho de seu tempo e das condições de leitura que lhe permitiram sua
realidade, seus medos e suas angústias. Esta atitude é encarnada em uma
frase do intelectual Jaime Caycedo: “o inventamos o perecemos, compañero […] y esa es la función de la intelectualidad comunista, reinventar las
posibilidades de cambio” 49.
3.2 A reconstrução
Progressivamente se discute o caráter de reconstrução que exige o
labor dos intelectuais no campo comunista. Essa reconstrução envolveu a
releitura teórica a partir do prisma pluridimensional da teoria marxistaleninista, que foi tirada do sagrado, para introduzi-la (na imaginação própria da utopia) em uma realidade concreta, determinada pelos ventos da
perestroika, pela violência da conjuntura nacional e pelas profundas contradições do comunismo local e global. Este foi, pois, o contexto em que se
apresenta a conversão de olhares no interior do sujeito intelectual.
La reflexión nos llevaría a la necesidad de la formulación de una teoría de la
crisis de la teoría marxista; entendiendo el fenómeno de crisis tanto en su
sentido destructivo y de degradación, como de la posibilidad de construcción
y/o reconstrucción de opciones que mantengan la coherencia entre los
elementos sobrevivientes y los nuevos que se han insertado en la estructura
fundamental de la propuesta.50
Sob esta perspectiva, as contribuições e releituras partiam da percepção que os intelectuais e funcionários do partido tinham de suas experiências
da URSS e do labor que eles mesmos, como mobilizadores de ideias, pretenderam levar para o futuro do partido. Já se romperam os laços, e agora só
resta a “solidão” de uma luta que olha o nacional sem nenhum referente
idílico de verdade no estrangeiro, e é só dentro deste campo que se poderá
entender a labor dos intelectuais do PCC.
No hay duda que el hecho más aleccionador de esta época es el derrumbe de
lo que se llamó el campo socialista en Europa; esto nos obliga a un estudio
más profundo en primer lugar de la realidad contemporánea, y en segundo
lugar de los fundamentos del marxismo y el leninismo. Para nosotros debe
49
50
Entrevista, 19 de abril de 2011.
Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 25, abr. 1990.
58
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
ser claro que el derrumbe del campo socialista en Europa no significó ni
mucho menos el fin de las ideologías, ni el fin del socialismo científico, del
marxismo-leninismo (FAJARDO, 2005, p. 187).
Portanto, as reflexões que os intelectuais comunistas têm realizado
a respeito da experiência histórica da URSS abriram-se. Na atualidade
têm surgido uma serie de reinterpretações da experiência soviética no seio
dos intelectuais, que têm enriquecido a visão de tal experiência. Por exemplo, para o professor Jaime Caycedo, uma leitura poderia radicar na revalorização:
Hay muchas cosas que hay que revalorizar, yo hago un cuerpo de cosas,
cuando uno analiza la relación entre las experiencias socialistas […] a partir
de los textos de los utopistas del siglo XIX, sobre todo los utopistas socialistas (particularmente Saint Simon, Charles Fourier) que le daban cierto sentido a la opción de ciertas reformas profundas a partir de sus ensayos incipientes de otras formas de organizar el mundo. Cuando uno ve en la URSS el
tema de la cooperativización de los campesinos en el campo, de las granjas
de estado y […] como de alguna manera el socialismo temprano se guio
mucho por la utopía, postulando las bases de reflexión sobre experimentos
posibles […] entonces a mí me parece que esas experiencias están por revalorizarse contra los propios teóricos y analistas.51
Nesta análise é importante valorizar o espaço que o intelectualfuncionário dá à imaginação. Hoje este aspecto faz parte do pensamento
dos intelectuais comunistas, devido a que, para a maior parte deles, a imaginação é uma função importante da teoria marxista, até o ponto de dizer que
[no están] de acuerdo con ciertas actitudes, que tienden a lo que hemos llamado en algún momento, una especie de dogmatismo, de dogmatismo ilustrado, que piensa que la autenticidad del marxismo se encuentra en el formalismo de ciertas categorías que hacen parte del cuerpo de doctrina, pero
ese cuerpo de doctrina también está en desarrollo, está en creación a partir
de sus cimientos básicos como una guía para la construcción de nuevas cosas, y no anquilosarse en lo que dijeron los clásicos.52
Daí que o labor dos intelectuais-funcionários seja reinventar-se a cada
dia com as ferramentas que brinda o marxismo e sua complexa multiplicidade, temendo que, se isto não acontecesse, [e]l PCC corre el riesgo de
anularse, de achatarse, si solo se atiene a hacer una repetición tipo cotorra
del pasado, de las consignas de siempre”53. Depois da queda do socialismo
Entrevista, 19 de abril de 2011.
Ibid.
53
Ibid.
51
52
59
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
real, só restou aos intelectuais a defesa imaginativa das “contribuciones del
marxismo y del leninismo [y] ante todo de su método de investigación científica de la realidad” (FAJARDO, 2005, p. 215).
Finalmente, o período que os funcionários-intelectuais viveram entre
1990 e 1992, com relação aos acontecimentos da URSS, teve duas características identificáveis. Primeiro, a aceitação do debate da crise dentro do
marxismo, debate no qual os intelectuais assumiram a defesa da teoria e a
crítica aos erros cometidos. A segunda etapa foi a inserção da criatividade
revolucionária no discurso teórico usado pelos intelectuais. Essa era a reivindicação imaginativa de uma teoria que ainda tem muito que dizer a respeito da sociedade e suas contradições.
Sob a convergência de dois fenômenos que transformaram a realidade social, tanto no nível local como no global, segue-se o nascimento de
uma nova sociedade de reinterpretação e a recomposição dos funcionários comunistas. Essa recomposição pode chegar mais perto daquilo que
Gramsci chamou intelectual orgânico, e também do infatigável rebelde de
Said, e concorda com uma nova visão da esquerda que, segundo Archila, “no
parece estar por la dictadura del proletariado, y más bien, en un retorno a su
tradición libertaria, asume la defensa de la democracia mientras rechaza el
autoritarismo. Pero no se trata de cualquier democracia” (2009, p. 22). Este
aspecto foi muito mais forte ao iniciar a década de noventa e se evidencia nos
debates dos intelectuais em torno da relação socialismo-democracia:
Nosotros desde los años noventa para acá hemos tratado de discutir sobre
estos temas en medio de debates, algunos que dicen –No, que al socialismo
no se le puede poner apellido […] el socialismo es eso y punto– nosotros
hemos abordado el tema del socialismo humanista […] creo que hacia el
programa próximo hay compañeros que hablan del socialismo democrático
y humanista, bueno, todo eso se puede discutir en la idea de ver realmente
cual es el concepto más adecuado, y no por su estética o su belleza semántica, sino por su calidad, por el fondo del problema. […] Yo tengo claro que
los caminos al socialismo son distintos, y creo que eso es algo que sí se ganó
con el derrumbe soviético, y fue el entender que el socialismo es diverso, que
el socialismo no es un patrimonio de nadie […].54
De tal modo, no período final da perestroika os olhares dos intelectuaisfuncionários tiveram um giro de reinterpretação que permitiu à ruptura de
uma serie de pressupostos teóricos. As lutas no terreno das ideias já não se
54
Entrevista com o intelectual Carlos Lozano, 31 de março de 2011.
60
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
livraram só contra a “classe hegemônica”, mas também contra a rigidez
dos próprios camaradas. Nas palavras de Carlos Lozano:
[…] alguna vez [escribí] un texto que fue muy polémico, que se llama El
marxismo, ideología en construcción, y había compañeros que me decían no,
¿pero cómo así que en construcción? Si el marxismo existe y está ahí […] y
yo decía todo lo contrario, que no […] incluso una vez unos compañeros de
la juventud me criticaban eso, yo les decía –mire ustedes están jóvenes y
tienen mucho tiempo por delante, investiguen, estudien, porque ustedes pueden aportarle mucho a esto, quien ha dicho que las leyes de la dialéctica,
por ejemplo solo son tres, entonces porque Marx lo dijo son tres, no, ojala
uno de ustedes descubra la cuarta, y la quinta, eso es posible, porque hoy
estamos viviendo otras épocas, Marx no era adivino para pensar que estas
cosas iban a cambiar tanto, que el mundo iba a cambiar a tantas velocidades,
tantos años después–. Entonces hay cosas nuevas, hay nuevos elementos en
la vida que tienen que interpretarse desde el punto de vista marxista, por
supuesto, pero con un criterio creador, no girando como hacían los alquimistas que se encerraban a descubrir la piedra filosofal y nunca les apareció,
no nosotros nunca la vamos a descubrir, nunca así.55
No horizonte dos intelectuais colombianos se pode distinguir uma
serie de fatos que tentaram fazer frente ao dogmatismo56 e alinhamentos
internacionais, para se aproximar da sociedade colombiana. Foi esta a melhor forma de dar uma resposta criativa à crescente crise das esquerdas
mundiais (ARCHILA, 2009).
4. À maneira de conclusão
A história faz-se nesta luta, neste combate obscuro em que os postos moldam de modo mais ou menos completo os seus ocupantes que se esforçam
por se apropriar deles; em que os agentes modificam de maneira mais ou
menos completa os postos, trabalhando-os à sua medida (Pierre Bourdieu,
2002, p. 103).
Na leitura destas páginas o leitor pôde perceber um irritante jogo de
palavras entre as categorias de intelectual e intelectual-funcionário. Esse processo corresponde às contradições encontradas entre as teorias que tentam
explicar o intelectual e as práticas dos intelectuais vivos, existentes, aquelas
55
56
Ibid.
Devo aclarar que seria ingênuo pensar que esse dogmatismo terminou completamente. Podese dizer que a contradição continuou no campo dos intelectuais comunistas; por isto, não se
pode falar de um intelectual livre de contradições, a menos que ele seja tirado do campo que o
constitui, neste caso o PC.
61
MORENO TRUJILLO, E. E. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
pessoas que encarnam as ideias e são movidas por paixões, utopias, sonhos
e mentiras. Daí que a categoria de intelectual sozinha não correspondia à
história que se pretendia contar.
Deste modo, e como resumo, a intenção do texto é expor o campo do
intelectual comunista da Colômbia entre 1985 e 1992. Daí que, sob a convergência crítica entre os contextos locais e os globais, definiu-se que as
formas de agir dos intelectuais correspondiam às sutis regras impostas pelo
seu campo, que, num primeiro momento, propunha uma escolha entre a
reafirmação acrítica dos seus princípios e a ruptura aberta com seu passado
militante, ou seja, o resgate do clérigo. Porém, o campo reconstruiu suas
regras de jogo a partir da crise e, respondendo às condições histórico-sociais
que tornaram possível sua existência, levou a que os intelectuais procurassem novas formas de justificar seu ser aceitando a ruptura, embora sem
desconhecer seu passado.
Quero, então, insistir que não foi minha intenção reconstruir uma
imagem idílica de um intelectual comprometido, crítico e heroico, e tampouco defender as estridências, contradições e/ou birras dos intelectuais comunistas. O que pretendo é apresentar uma forma particular de olhar a figura
do intelectual, partindo de sua confrontação com as condições históricas
de sua atuação. Além disso, quero transgredir os maniqueísmos, tanto de
esquerda como de direita, e expor as rupturas históricas e sociais de um
campo, olhar a nudez das categorias mergulhadas nas condições de seu
fazer.
Este texto pode finalizar dizendo aquilo que já é “lugar comum” nos
estudos sobre o intelectual: “o intelectual é um ser ambíguo”. Mas que sentido pode ter aquela afirmação? As categorias correspondem a uma realidade concreta, e o campo intelectual só pode construir seu sistema enunciativo
a partir de sua realidade. Trata-se de uma realidade que, para o caso dos
protagonistas desta história, esteve repleta de contradição, acumulação de
poderes de interpretação do mundo e a contundência da morte. Só assim se
pode definir a “ambiguidade” como a pugna pela apropriação de uma cosmovisão do mundo.
62
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Referências bibliográficas
ALBA, Victor. Historia social de los intelectuales. Barcelona: Plaza & Janés, 1976.
ARCHILA, Mauricio et al. Una historia inconclusa. Bogotá: Cinep, 2009.
ARENAS, Jacobo, Cese al fuego. ABPnoticias. Disponível em: <http://farc-ep.co/
wp-content/uploads/2011/libros/cesefuego.pdf>. 1982.
ARIZALA, Jose. El mundo del hombre en los años de la perestroika. Bogota: antares
editires, 2007.
BENDA, Julien. La traición de los intelectuales. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2008.
BOURDIEU, Pierre. Campo Intelectual y Poryecto creador. In: Problemas del estructuralismo. México: Siglo XXI Editores, 1967. p. 135-182.
______. O poder simbólico. 5. ed. Tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
BUENAVENTURA, Nicolas. Tregua y Unión Patriótica. Bogotá: CEIS, 1985.
CAMPOS, Yesid. Memoria de los silenciados: el baile rojo: relatos. Bogotá: Ceicos, 2003.
CASTAÑEDA, Jorge. La utopia desarmada: intrigas, dilemas y promesa de la izquierda de America Latina. México: Planeta, 1994.
DELGADO, Álvaro. El experimento del Partido Comunista Colombiano. In: ARCHILA, M. et al. Una historia inconclusa: isquierdas politicas y sociales en Colombia. Bogotá: Cinep, 2009. p. 93-133.
______. Todo tiempo pasado fue peor. Bogotá: La Carreta Editores, 2007.
DOSSE, Francois. La marcha de las ideas: historia de los intelectuales, historia intelectual. Valéncia: La Découverte, 2007.
DUDLEY, Steve. Armas y urnas: historia de un genocidio politico. Bogotá: Planeta,
2008.
FAJARDO, Nelson. Aproximaciones hacia una reflexion sobre la crisis teorica y
parctica del socialismo. Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 50-67, 1990.
________________. Gilberto Vieira. Su vida, Su obra, Sus aportes. Bogotá: Izquierda Viva, 2005.
FAZIO, Hugo V. De la Perestroika a la disolución. Bogotá: Ediciones Uniandes, 1992.
FERRO, Juan G.; RAMÓN, Graciela Uribe. El orden de la guerra: las FARC-EP,
entre la organización y la política. Bogotá: CEJA, 2002.
FERRO, Marc. Les origines de la Perestroïka. Paris: Ramsay, 1990.
GORBACHEV, Mikail. Perestroika: “nuevo pensamiento para mi pais y el mundo”.
Bogotá: Oveja Negra, 1987.
63
TRUJILLO, E. E. M. • A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio
______. Memoria de los años decisivos (1985-1992). Madrid: Acento Editorial, 1993.
GRAMSCI, Antonio. La formacion de los intelectuales. México D.F.: Grijalbo, 1967.
HARNECKER, M. Perestroika: La revolución de las esperanzas: Entrevista a Kiva
Maidanik, investigador soviético. Nicaragua: Editorial Vanguardia, 1987.
______. (3 de junio de 2000). Los hitos que marcan a la izquierda latinoamericana desde
la Revolucion Cubana hasta hoy. Textos preliminares del libro La izquierda en el umbral
del siglo XXI: primera parte. Disponível em: <http://www.archivochile.com/
Ideas_Autores/harneckerm/3textteopol/harnepoliteo0028.pdf>. Acesso em: 5 jun.
2010.
HOBSAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). 2. ed. São Paulo: Companhia Das Letras, 1995.
LENIN, Vladimir.I. Obras Completas: v. 3. Moscou: Progreso, 1961.
LÖWY, Michael. Para uma sociologia de los intelectuales. México: Siglo XXI Editores,
1978.
MEDINA, Medofilo. Prologo. In: DELGADO, A. Todo tiempo pasado fue peor. Medellín: La Carreta, 2007. p. 7-21.
MESCHKAT, K. Liquidando el pasado: la izquierda colombiana en los archivos de
la Unión Soviética. Bogotá: Santillana, 2009.
MORENO, Delmiro. El Partido Comunista, el anarquismo y la izquierda colombiana. Revista Universidad Cooperativa de Colombia, n. 75, p. 19-48, 2001.
MORENO, Eduard. Entre la contradicción y la resignificación: el Partido Comunista
colombiano frente a la perestroika. 2011. 100 f. Dissertação (Mestrado em Historia) – Universidad de los Andes, Bogotá.
PÉCAUT, Daniel. ¿Una guerrilla sin fin o sin fines? Bogotá: Norma, 2008.
PIZARRO, Eduardo. Las FARC (1949-1966): de la autodefensa a la combinación de
todas las formas de lucha. Bogotá: Tercer Mundo, 1991.
______. Las FARC – 1949 2011: de guerrilla campesina a máquina de guerra. Bogotá: Norma, 2011.
POCH-DE-FELIU, Rafael. La gran transición: Rusia, 1980-2002. Barcelona: Crítica, 2003.
RIQUELME, Alfredo. Rojo atardecer: el comunismo chlileno entre dictadura y democracia. Santiago: Direccion de Bibliotecas, Archivos y Museos, 2009.
SAID, Edward. Representaciones del intelectual. Barcelona: Paidos, 1996.
SÁNCHEZ, Ricardo. La izquierda en Colombia. Bogotá: UN, 1995.
SARTRE, Jean-Paul. ¿Que es la literatura? Buenos Aires: Losada, 1969.
SERVICE, Robert. Camaradas: breve historia del comunismo. Barcelona: B, S.A., 2009.
64
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
WALLERSTEIN, Emmanuel. 1968: revolución en el sistema-mundo. Tesis e interrogantes. Estudios Sociológicos, México, v. VII, n. 20, p. 229-249, 1989.
ZERMEÑO Guillermo. El concepto de intelectual en Hispanoamérica: génesis y
evolución. In: Historia Contemporánea, Revista del Departamento de Historia Contemporánea, Pais Vasco, v. II, n. 27, p. 777-798, 2003.
Jornais
Corporación para la Defensa y Promoción de los Derechos Humanos REINICIAR.
Dialéctica.
El Tiempo.
Margen Izquierda.
Revista Puntos de Vista.
Semanario Voz.
Taller: Revista Teórica de Convergencia.
Entrevistas
Entrevista de Jaime Caycedo Turriago, secretário-geral do PCC, vereador de Bogotá pelo Polo Democrático Alternativo. 19 de abril de 2011.
Entrevista de Carlos Lozano Guillen, membro do Comité Central do PCC, diretor
do periódico Voz. 31 de março de 2011.
Entrevista de Nelson Fajardo Marulanda, membro do C.C. do PCC, diretor do
CEIS. 19 de agosto e 9 de novembro de 2010.
65
66
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Os intelectuais comunistas no Brasil:
uma breve reflexão
Marisângela Martins
Os intelectuais atuantes do Partido Comunista do Brasil (PCB) compõem um grupo que se tornou objeto de estudo há pouco tempo no país.1
De um modo geral, pesquisas desenvolvidas na área da história e da sociologia voltam-se para militantes de destaque, escritores e historiadores – como
Graciliano Ramos, Jorge Amado e Caio Prado Júnior – radicados no eixo
Rio-São Paulo (centro da produção editorial brasileira e palco das disputas
em torno da definição das sucessivas linhas políticas adotadas pelo Partido). Esses estudos, via de regra, exploram a relação entre as imposições
partidárias e a liberdade de criação e de teorização sobre a revolução, as
políticas da organização direcionadas para a cultura e os escritores e o realismo socialista.
A exemplo do que ocorre com o termo “intelectual”, a expressão
“intelectual comunista” evoca uma determinada imagem de contornos mais
ou menos imprecisos. A rigor, somente a dissertação de Mestrado de Ana
Paula Palamartchuk (1997) se propôs a enfrentar essa problemática. Numa
análise indutiva, a autora tentou retirar do exame da experiência dos atores
históricos escolhidos os significados de ser intelectual. A historiadora enfatizou a relação entre os intelectuais – em especial os escritores –, suas produções e sua opção política, procurando analisar o(s) significado(s) que
eles atribuíram à denominação “intelectual comunista”. Palamartchuk partiu da fundação do Grupo Clarté, na década de 1920, e estendeu sua análise a meados da década de 1940, concluindo que ser “intelectual comunis-
1
Para os objetivos desse texto, concentramos nossa análise na época do “Partidão” (de 1922 a
1962). No início da década de 1960, o PCB, criado no início dos anos 1920, sofreu uma cisão,
dando origem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), dirigido por Luís Carlos Prestes, e ao
Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sob a liderança de João Amazonas, Maurício Gabrois e
Pedro Pomar, dirigentes do alto escalão do até então PCB.
67
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
ta” abarcava várias maneiras de ser, sobretudo no que dizia respeito ao
grau e aos tipos de envolvimento, às visões de mundo e às formas de contribuição às necessidades do Partido. No caso de Caio Prado Júnior, por exemplo, a autonomia intelectual chocou-se com a disciplina partidária. Já Astrojildo Pereira foi um legítimo “intelectual de partido”, submetendo-se
disciplinarmente ao núcleo dirigente, interpretando a situação do país de
acordo com as orientações da Internacional Comunista (IC), cumprindo
tarefas e fazendo autocríticas.
Ainda que o grupo estudado por Palamartchuk evidenciasse modos
de ser distintos, uma pergunta na direção inversa permanece: que atributos
uniam militantes com diferentes maneiras de ser sob uma mesma denominação, a de “intelectual comunista”? Não temos a pretensão de oferecer
uma resposta completa, absoluta e definitiva nesse texto. Convidamos o
leitor a nos acompanhar num breve exercício de reflexão acerca dos possíveis contornos dessa expressão, baseando-nos, para tanto, em um excerto
datado de 1945.
Após amargar décadas de clandestinidade, o PCB emergiu do Estado
Novo em condição legal, e seus militantes empenharam-se para colocar
seus representantes nas casas legislativas de todo o país. Em Porto Alegre,
parte da campanha às eleições de dezembro de 1945 foi veiculada na revista Libertação, da qual extraímos o trecho que segue:
O Partido Comunista é o partido da classe proletária e do povo. E do seio do
proletariado é de onde tem saído a maioria de seus dirigentes. Ninguém
melhor, pois, do que os trabalhadores para compreenderem os problemas de
sua classe, as suas necessidades e as suas aspirações. [...] O trabalhador, ao
falar de suas necessidades, sentidas todos os dias, está falando por toda a
sua classe e por todo o povo. Por isso, ele é o mais credenciado para estar à
frente do Partido do proletariado e do povo, o Partido Comunista. Mas o
povo tem encontrado outros amigos. Elementos de outras camadas sociais,
que tiveram recursos para estudar e que compreenderam as necessidades
do povo e se [sic] resolveram lutar por elas. Poucos, é certo. E por isto dignos de toda a admiração. [...] são homens que colocam o seu saber, manifestado através da imprensa, da literatura, da ciência e das artes, para
defender os interesses do proletariado e do povo. São sábios e são heróis,
também.
A participação dos intelectuais honestos na direção do Partido Comunista
é o justo prêmio que recebem da classe proletária, pela sua dedicação e
amor à causa do povo (Os Dirigentes Comunistas no Rio Grande do Sul.
Libertação, Porto Alegre, n. 15, p. 12-15, 18, 20 e 29, 28 jun. 1945. Grifos
nossos).
68
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
O objetivo do artigo era apresentar os dirigentes dos comitês estadual
e municipal do PCB, e, no trecho em destaque, justificava-se a presença de
intelectuais entre eles. Primeiramente, o autor deixa claro um recorte de
classe: o intelectual não provinha da classe desfavorecida trabalhadora, mas
de camadas sociais com recursos suficientes para garantir sua liberdade em
relação à necessidade econômica. Não obstante sua origem de classe, os
intelectuais foram reconhecidos como legítimos representantes do povo,
como pessoas honradas e confiáveis, porque haviam dado provas de suas
honestas intenções. A ideia que se insinuava aqui, e que se estendeu com
mais força ao longo da década seguinte, era a de que o intelectual, “por sua
origem não proletária”, havia aderido e colaborava com uma luta que não
era sua por estar ciente da exploração do operariado e por solidarizar-se
com ele (GARCIA, 1999, p. 128). Essa visão condescendente em relação
ao militante intelectual, porém, não era unânime, nem antiga, entre os comunistas.
A fundação do PCB teve quase nenhuma repercussão entre os intelectuais, e, no fim da década de 1920, os poucos que nele atuavam passaram pelo traumático processo de “proletarização” (conhecido no Brasil também como a política do “obreirismo”), orientado por novas diretrizes do
comunismo soviético. A III Internacional havia abandonado as esperanças
na formação de uma frente única, passando a apostar na tática revolucionária da “classe contra classe”. Na União Soviética (URSS), defendeu-se
que, para melhor combater a burguesia e as classes médias, os dirigentes
comunistas não deveriam ser oriundos desses segmentos, mas exclusivamente do proletariado.
A historiadora Dulce Pandolfi (1995, p. 100-101, grifos nossos) relata que, no Brasil, inicialmente, a proletarização teve um sentido romântico,
como relembrou Leôncio Basbaum, dirigente comunista na época:
Proletarizar-se significava, segundo alguns, abandonar hábitos burgueses,
só fumar cigarros baratos, andar malvestido. A própria gravata passou a
ser um sinal de tendência pequeno-burguesa. E [...] até tomar banho diário
era um resquício pequeno-burguês capaz de afetar a ideologia proletária do
Partido.
Nesse sentido inicial, a origem de classe do militante intelectual evidenciava não apenas uma posição nas relações de produção, mas também
um modo de viver a ela associado e que passou a ser repudiado no interior
da organização. Condenou-se o burguês e seu estilo de vida, obrigando os
69
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
militantes de origem não proletária a abandoná-lo e a adotarem o modo de
vida considerado próprio das parcelas humildes. O relato de Basbaum revela-nos que os “hábitos burgueses” eram associados ao consumo de itens
caros e a um certo cuidado com o corpo, sinais distintivos de uma classe
beneficiada materialmente, cujo esbanjamento era uma afronta à parcela
considerável da população que pautava seu consumo pela privação. Os intelectuais deveriam fazer escolhas razoáveis, de acordo com as imposições
das condições de vida dos trabalhadores. No processo de proletarização, a
privação dos bens necessários foi tornada virtude. Era preciso se adaptar à
necessidade, aceitá-la.
Dentro de pouco tempo, o romantismo cedeu lugar a uma orientação radical. Os intelectuais, julgados e condenados por sua origem de classe, ou foram substituídos em suas funções dirigentes, ou foram expulsos, ou
caíram no ostracismo, ou receberam árduas tarefas (impostas com o objetivo de proletarizá-los) (PANDOLFI, 1995, p. 101). A adoção de tais procedimentos gerou o afastamento desses militantes da direção do PCB (inclusive daqueles que ali militavam desde sua criação), considerados de origem
pequeno-burguesa – logo, inimigos da classe trabalhadora –, e sua substituição por operários, mesmo que estes não tivessem capacidade teórica ou
disponibilidade para tal.2 Foi assim que, na interpretação que Jorge Ferreira (2002, p. 82) oferece desse episódio, o estigma de “intelectual” ou de
“pequeno-burguês” começou a se impor no horizonte político e cultural do
PCB. O termo “pequeno-burguês” – que evocava uma postura egoísta, vaidosa e individualista, própria da classe burguesa – passou a ser usado entre
os militantes de origem humilde como um insulto àqueles acusados de se
desviarem do perfil do “verdadeiro revolucionário” – solidário, modesto,
reservado, corajoso e constante nas emoções (FERREIRA, 2002, p. 75-78).3
De acordo com Palamartchuk (1997, p. 52), a noção de “intelectual”
apareceu no PCB no fim dos anos 1920, com a expulsão do alfaiate Joaquim Barbosa – membro da direção partidária – e seus companheiros de
O caso mais grave e sempre destacado é o da expulsão de Astrojildo Pereira, secretário-geral da
organização, que acabou vítima da política que ele mesmo havia implementado.
3
Narrativas romanceadas do processo de proletarização podem ser apreciadas em Parque industrial, publicado por Pagu sob o pseudônimo de Mara Lobo em 1932, e em Caminho de pedras, de
Raquel de Queiroz, publicado em 1937. Para outros relatos historiográficos e memorialísticos,
conferir CARONE, 1982, p. 9; PERALVA, 1962, p. 233-242; SEGATTO, 1981, p. 36-37; VINHAS, 1982, p. 17.
2
70
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
opinião, tachados pejorativamente de “intelectuais pequeno-burgueses”.
Paradoxalmente, a despeito do afastamento de vários militantes sob essa
acusação, outros intelectuais que poderiam facilmente ser classificados como
tais aderiram ao Partido, como Oswald de Andrade, Pagu e Tarsila do
Amaral. E, na década seguinte, sob sistemática propaganda da União
Soviética e da Internacional Comunista (IC), generalizou-se mundialmente a simpatia de diversos escritores e artistas pelo comunismo (PALAMARTCHUK, 1997, p. 53 e 56).
No Brasil, algumas condições favoreceram a confluência entre intelectuais e Partido Comunista: o desencanto com os caminhos tomados pelo
governo Vargas após o movimento de 1930, o ingresso de Luís Carlos Prestes e de inúmeros tenentes no PCB e o surgimento da Aliança Nacional
Libertadora (ANL). A repressão desencadeada aos levantes de novembro
de 1935 e o golpe do Estado Novo dois anos depois arrefeceram as adesões,
porém não as impediram completamente. Alguns proeminentes nomes da
cultura brasileira aderiram ao comunismo nesse período: Caio Prado Júnior, Dalcídio Jurandir, Dyonélio Machado, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Vitor Márcio Konder, entre outros.
É provável que a transigência em relação aos militantes intelectuais
observada na citação extraída da revista Libertação estivesse relacionada à
recente virada tática do PCB. A partir da Conferência da Mantiqueira, realizada em 1943, a organização defendeu – não sem alguma resistência – a
União Nacional, que consistia, basicamente, na defesa da aliança entre proletariado, camponeses e burguesia nacional, inclusive com o governo Vargas, em prol da democracia. Talvez também aquela postura tolerante tivesse como motivação o reconhecimento do suporte dado pelos intelectuais
ao Partido durante o Estado Novo, período em que a ação comunista ficou
altamente comprometida pela repressão. Nesse contexto, a rede de relações
sociais – em cujas pontas poderiam se encontrar pessoas importantes do
mundo editorial e da política com influência nos espaços de decisão, bem
como sobre as regras e os loci de reconhecimento e de consagração –, a
notoriedade e o prestígio desses comunistas constituíram-se em recursos
possíveis de lhes conferir “imunidade intelectual”, uma prerrogativa praticamente inexistente para os militantes de origem humilde. (PALAMARTCHUK, 1997, p. 97; 2003, p. 164). No Rio Grande do Sul, por exemplo, a
reestruturação do PCB foi planejada ainda na clandestinidade, tendo à frente
71
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
o professor universitário Otto Alcides Ohlweiller, secretário-geral da organização no estado nos anos finais da ditadura estado-novista, cargo que
entregou ao companheiro metalúrgico Abílio Fernandes em meados de 1945
(Os dirigentes comunistas no Rio Grande do Sul. Libertação, Porto Alegre,
n. 15, p. 12-15, 18, 20 e 29, 28 jun. 1945). Ainda que fosse sofisticado teórico do materialismo histórico e dedicado militante, Ohlweiller provinha de
família de classe média, era diplomado em Química Industrial e docente
da Escola de Engenharia da, então, Universidade de Porto Alegre. Estava,
assim, longe de preencher os requisitos do revolucionário-modelo, mas dispunha dos recursos necessários para manter-se em liberdade e reorganizar
a seção gaúcha do PCB naquele momento.
Devido a sua “condenável” origem de classe, os intelectuais relacionavam-se com personalidades importantes e influentes: escritores, editores,
jornalistas, diplomatas, homens do mundo dos negócios e do mundo da
política. A vida pública dessas pessoas encerrava sociabilidades próprias ao
estilo de vida das classes dominantes, como rodas literárias, chás, jantares,
banquetes, exposições, saraus e concertos.4 Eram práticas sociais que exigiam o domínio de códigos específicos, de determinados saberes, posturas e
comportamentos possíveis de serem incorporados, sobretudo, na educação
formal e/ou no próprio convívio com os membros da elite. Tais práticas
encontravam terreno propício em livrarias, editoras, redações de jornais e
revistas, institutos de pesquisa, associações (culturais, profissionais, etc.),
cafés, confeitarias, clubes e salões.5
A historiadora Mônica Velloso (1996) identificou a existência de espaços e de práticas constitutivas de um “microcosmo intelectual” no Rio de
Janeiro desde o fim do século XIX, situados, principalmente, na Rua do
Ouvidor, onde ficavam a Confeitaria Colombo e o Café Papagaio. Nesse
tradicional logradouro, instalou-se a Livraria José Olympio Editora em 1934,
cujo proprietário, exímio cultivador da “arte da amizade” (SORÁ, 2004),
Sociabilidades são entendidas aqui no sentido de espaços e de comportamentos, formais e
informais, por meio dos quais um grupo se movimenta, expressa suas ideias e estabelece e
cultiva vínculos, construindo e reforçando distinções sociais.
5
O circuito de sociabilidades da intelectualidade brasileira foi mapeado e analisado pelas historiadoras Ângela de Castro Gomes (1993; 1999) e Monica Pimenta Velloso (1996). Para uma
reflexão sobre os cafés como manifestações culturais tipicamente europeias apropriadas e ressemantizadas no sul brasileiro, conferir Lewgoy, 2009.
4
72
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
acabou por concentrar a edição dos livros considerados indispensáveis para
sentir e pensar o país em fins dos anos 1930. Quem queria ser visto e ver os
escritores consagrados – cujas obras eram consideradas “autenticamente
brasileiras” – frequentava a livraria de José Olympio (SORÁ, 2004, p. 1).
De acordo com Sorá (2004, p. 11-12), a identidade do grupo de autores do
catálogo de Olympio foi reforçada no contexto de crescente intervenção e
repressão cultural por parte do Estado, quando a casa, por manter boas
relações com o círculo político de Vargas, passou a ser refúgio de diversos
intelectuais comunistas. Por ocasião da prisão de parte de seus escritores,
José Olympio interveio em seu favor, reforçando os laços de confiança deles para consigo. O poder do editor se expressava na extensão e na força dos
vínculos que havia tecido com autores, políticos de variadas tendências e
com elites sociais (SORÁ, 2006, p. 14). A Livraria José Olympio era o porto seguro de Jorge Amado e de outros intelectuais de esquerda, que se lá
reuniam frequentemente (PALAMARTCHUK, 2003, p. 236).
A partir da década de 1930, São Paulo e Rio de Janeiro – as duas cidades mais importantes na constituição de um campo de produção cultural no
Brasil – atraíam e concentravam escritores e artistas das diversas regiões do
país. A produção intelectual estava em franco desenvolvimento, sendo lá
também que se localizavam as principais instituições de ensino superior.
De acordo com Sergio Miceli (2001, p. 156-157), no contexto editorial dos
anos 1930 e 1940, a Companhia Editora Nacional, a Livraria José Olympio
Editora e a Livraria do Globo, de Porto Alegre, eram as principais investidoras na publicação de obras de ficção, nacionais e estrangeiras, embora
cada uma delas aplicasse seus recursos a partir de estratégias diferentes.
Em São Paulo, a Editora Brasiliense, de propriedade de Caio Prado
Júnior, aglutinava parte da intelectualidade paulistana de esquerda (IUMATTI, 1998, p. 64-65). Já na capital gaúcha, José Bertaso, proprietário da Livraria, Editora e Revista do Globo – frequentadas por um grupo seleto de
famosos intelectuais e de personalidades políticas – e seu filho Henrique
cumpriram papel semelhante a José Olympio. Eles inventavam projetos para
ajudar pessoas em precária situação financeira, cultivando estreitos laços
de lealdade com os escritores ligados à casa, e editavam textos de conhecidos comunistas – como Dyonélio Machado, Ivan Pedro de Martins e Lila
Ripoll. Teve importância capital para a proximidade entre comunistas e o
grupo da Globo, sobretudo ao longo do Estado Novo, a presença do jorna-
73
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
lista Justino Martins na direção da revista, um comunista talentoso do qual
o Velho Bertaso não abria mão. Ele soube perceber o saldo positivo que
teria no balanço entre os possíveis prejuízos decorrentes do estigma de seus
colaboradores e os largos lucros econômicos e simbólicos que o trabalho do
jovem revisteiro lhe rendia, preferindo conceder amplo espaço para Justino
e seus companheiros.
No Rio, além da casa de José Olympio, os escritores comunistas eram
abrigados pela Editora Ariel, bem como pelas revistas Dom Casmurro, Boletim de Ariel e Revista Acadêmica (PALAMARTCHUK, 1997, p. 71; 2003, p.
211-212), encontravam-se nos bares Vermelhinho e Amarelinho, e entre os
salões mais frequentados por eles estava a residência de Álvaro e Eugênia
Moreyra. Em Porto Alegre, por sua vez, a Livraria do Globo, assim como
as redações dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, o footing na tradicional Rua da Praia, as sessões de cinema e de teatro, os clubes (como o
Jocotó), as confeitarias (Rocco), as casas de chá e os cafés (Rex, Nacional
etc.) constituíram um circuito de espaço de sociabilidades refinadas, dirigido para educar a sensibilidade, instituindo, assim, o estilo de vida da elite
(BRUM, 2009, p. 197-210).
Fosse no eixo Rio-São Paulo, fosse na capital gaúcha, esses espaços
informais de circulação e de apropriação de capital social, político, cultural
e simbólico revelavam-se locais de trânsito intenso de intelectuais e suas
ideias, de aprendizagem, de debate, de fortes conflitos e também de construção de importantes vínculos de amizade. É possível afirmar que, até o
fim da Segunda Guerra Mundial, intelectuais comunistas e não comunistas
partilhavam esses espaços. Ainda que nos pareçam fortuitos, esses encontros configuravam-se práticas sociais que funcionavam como instâncias de
consagração pelas quais escritores já reconhecidos e poderosos homens da
política contribuíam para a definição da pauta dos problemas legítimos e
dos princípios organizadores da produção cultural brasileira. Uma vez definidos e oficializados tais critérios, esses homens deles se apropriavam,
impondo estilos e visões de mundo, legitimando sua produção e seu lugar
no polo dominante da esfera cultural. Tratava-se, portanto, de territórios
nos quais e de comportamentos pelos quais, fundamentados na dinâmica
de trocas características do mundo da cultura e do mundo da política, eram
incorporadas disposições e estabelecidas e/ou consolidadas relações promitentes. Os intelectuais comunistas puderam fazer uso do potencial des-
74
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
ses diferentes tipos de capital em sua militância, a qual também oferecia
um circuito de sociabilidades próprio do Partido. Comentaremos esses aspectos adiante.
Em segundo lugar, a citação da revista Libertação exibida no
início desse texto apresenta um recorte de gênero. Os intelectuais eram
homens. É possível que esse entendimento tenha raízes no sentido que, historicamente, o termo “intelectual” foi ganhando. A figura do intelectual
esteve por muito tempo associada ao mundo público, universo predominantemente masculino. De acordo com Benito Bisso Schmidt (2006, p. 24),
os códigos de gênero dominantes na sociedade brasileira nas décadas de
1940 e 1950 aproximavam as mulheres do campo dos sentimentos e as alijavam do terreno da razão –, poderíamos dizer, do intelecto – considerado
próprio dos homens.
Mencionamos anteriormente algumas artistas e escritoras ligadas ao
PCB que poderíamos classificar como intelectuais sob os critérios da produção de bens culturais e do engajamento político. Na década de 1950, a
“frente intelectual” do Partido abrigava reconhecidas poetisas, como Lila
Ripoll, que, conforme Eliane Garcia (1999, p. 83), embora atuasse também
na “frente feminina”, tinha sua imagem comumente associada à “frente
intelectual”. As mulheres, entretanto, eram minoria entre os militantes tidos como intelectuais; sua atuação era alvo de discriminação dentro e fora
do Partido; e as lutas próprias da condição feminina (igualdade de direitos
civis entre homens e mulheres, o divórcio etc.) não eram discutidas e assumidas como bandeiras da organização (GARCIA, 1999, p. 102).
Consoante Jorge Ferreira (2002, p. 131), as imagens da mulher revolucionária que os comunistas procuravam construir, ainda que remetessem
às virtudes da honestidade, da abnegação e do sacrifício, não excluíam certa hierarquia entre os sexos, reproduzindo, em alguma medida, as mesmas
opressões e discriminações que eles denunciavam. Na visão dos comunistas, homens e mulheres eram portadores de diferenças inatas, as quais determinavam a existência de papéis sociais naturalmente distintos (MOTTA, 1997,
p. 79).
Em terceiro lugar, no excerto problematizado subentendia-se um entendimento a respeito do que caracterizaria os intelectuais comunistas partindo de uma oposição que situava, de um lado, os proletários e, do outro, as
pessoas portadoras de saberes específicos. Essa visão apresentava elementos
75
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
ainda recorrentes de uma tradição mais antiga, que estabelecia a distinção
entre o trabalho manual – aquele cujo resultado dependia do emprego de
energia física – e o trabalho intelectual – aquele cujo produto resultava de um
determinado esforço de reflexão –, aproximando deste indivíduos que desenvolviam atividades ligadas à inteligência, à criação, ao intelecto.
Esse recorte funcionalista observável no artigo comunista reverberava uma concepção difundida mais amplamente na sociedade brasileira.
Podemos tomar como exemplo a União dos Trabalhadores Intelectuais
(UTI), criada em 1945 no Rio de Janeiro e da qual poderiam participar
categorias de trabalhadores, assalariados ou não, ligados ao trabalho não
manual, como médicos, engenheiros, advogados, jornalistas, escritores, artistas etc. O objetivo da UTI – em cuja criação tomaram parte alguns conhecidos intelectuais comunistas, como Astrojildo Pereira e Álvaro Moreyra – era aumentar a participação desses segmentos no processo de democratização do país (BUONICORE, 2004). Tratava-se de uma entidade
fundada claramente na divisão do trabalho.
Relacionada a ela, é possível identificar na citação extraída da revista
Libertação menção aos intelectuais como aqueles que se distinguiam pela
instrução. Segundo pesquisa realizada por Garcia (1999, p. 108), a “frente
intelectual” do PCB, criada na segunda metade dos anos 1940, era composta por militantes que produziam textos literários, esculpiam, pintavam, encenavam e dançavam, mas também por aqueles cuja ocupação/profissão
não estava diretamente ligada a atividades culturais, como engenheiros,
arquitetos, advogados, médicos e funcionários públicos, quer dizer, indivíduos com curso superior. Nesse sentido, a distinção baseada na polarização
trabalho manual versus trabalho intelectual e no nível de instrução alargava
as fronteiras no interior das quais os militantes poderiam ser classificados
como intelectuais.
A instrução e o capital de relações sociais de que dispunham, decorrentes de sua origem social, eram os principais critérios pelos quais eram
distinguidos, no plano das representações, os militantes intelectuais, além
de se constituírem no parâmetro pelo qual sua prática militante era definida e distribuídas as tarefas que lhes competiriam. Em alguns casos, presumia-se que a origem de classe e o acesso a um alto nível de escolarização e
a determinadas formas de sociabilidade os capacitassem para determinadas funções/atividades/tarefas.
76
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Mesmo atravessando o século XX em condição ilegal, os militantes
comunistas brasileiros colocaram inúmeros periódicos em circulação e desenvolveram ações culturais e educativas que funcionaram como frentes de
atuação legal em plena clandestinidade. Rubim (1986, p. 35-36) destaca a
década de 1940 como o período de auge da imprensa do Partido, quando
foram criados os jornais – de caráter informativo e combativo – e as revistas
– dedicadas às artes, à ciência e às letras. Trabalhavam ou colaboravam nos
impressos intelectuais nacionalmente conhecidos, como Alina Paim e Jorge Amado (O Momento, de Salvador), Dalcídio Jurandir e Álvaro Moreyra
(Tribuna Popular e Problemas, do Rio de Janeiro), Caio Prado Júnior e Afonso Schmidt (Hoje e Fundamentos, de São Paulo) e Lila Ripoll (Horizonte, de
Porto Alegre) (RUBIM, 1986, p. 38-45). Cabia a muitos intelectuais a tarefa de editar e escrever na imprensa do Partido, além de dirigir ligas/sociedades/centros/associações/clubes e de participar de suas atividades, organizando e/ou apresentando palestras, horas de arte, conferências, seminários, sabatinas, concertos, etc.6
Para além de um suposto e exclusivo caráter “ornamental” (RODRIGUES, 1996, p. 412) atribuído pelo PCB à atuação dos intelectuais nesses
espaços e nessas ações, é oportuno afirmar que estes colocavam mais que
sua imagem a serviço da causa revolucionária. O prestígio acumulado no
mundo da produção científica e cultural, o capital de relações sociais, incorporado nos lugares de sociabilidade próprios desses meios, e sobre os
quais já comentamos, bem como o conhecimento adquirido na formação –
fosse na educação formal, fosse na busca autodidata – constituíram-se re-
6
Na década de 1920, de acordo com Rubim (1986, p. 201), destacaram-se os centros de cultura
proletária, de caráter político-cultural. Em Porto Alegre, criou-se a Liga Pró-México Antiimperialista, presidida pelo escritor comunista Jorge Bahlis. No decênio seguinte, já com contingente maior de intelectuais no Partido, formaram-se o Clube de Cultura Moderna, no Rio, o
Centro de Cultura Moderna Aparício Cora de Almeida, em Porto Alegre, e, ainda no Estado
Novo, formaram-se a já mencionada UTI e o Clube de Cultura Popular Euclides da Cunha.
Com sede na capital gaúcha, o Clube de Cultura Popular Euclides da Cunha funcionou, pelo
menos, até a segunda metade dos anos 1950 e foi dirigido, na maior parte desse intervalo, por
Jorge Bahlis. A entidade contava com uma ampla estrutura e um influente corpo de colaboradores, como as poetisas Beatriz Bandeira e Lila Ripoll, a jornalista Gilda Marinho, os romancistas Cyro Martins e Dyonélio Machado. Comunistas oriundos de outros estados – como Álvaro Moreyra, Dalcídio Jurandir e Jorge Amado –, quando em visita ao Rio Grande do Sul,
costumavam dispensar parte de seu tempo e de seu conhecimento para ações culturais no Clube. Mas a entidade também recebia a colaboração de não comunistas bastante populares, como
Lupicínio Rodrigues (Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 4, 11 set. 1945).
77
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
cursos extremamente úteis dos quais comunistas intelectuais lançaram mão
para o trabalho militante nos periódicos e a promoção das ações culturais
no interior do Partido (para não falar da importância de suas boas relações
com grandes fazendeiros e industriais na arrecadação de fundos para a organização). Eles emprestavam sua imagem para dar maior visibilidade a
determinadas atividades, solicitavam colaborações e favores a amigos não
comunistas e abordavam os assuntos que tinham propriedade, contribuindo, à sua maneira, para os objetivos da agremiação.
É possível argumentar, em outro sentido, que militantes não intelectuais tinham suas imagens igualmente exploradas pelo Partido. Eram reconhecimentos conquistados por meio de investimentos em meios com regras
distintas das do mundo da literatura. Na hora de “puxar uma greve”, de
organizar um comício ou de concorrer a um cargo eletivo, não era qualquer
militante que o fazia, mas aquele com projeção no seu campo de atuação e
escolhido pela direção partidária, alguém cuja influência se estendesse num
amplo raio de ação, por conta de capital simbólico acumulado ao demonstrar combatividade, comprometimento com as reivindicações da classe e
solidariedade. Esse bem simbólico, construído mediante regras diferentes
das do meio intelectual, fazia com que um líder operário tivesse seu prestígio e sua notabilidade usados em proveito do Partido tanto quanto um escritor consagrado, demonstrando que o PCB servia-se de um e outro nas
suas tentativas de estabelecer ligações com os diferentes setores sociais.
Ainda sobre essa questão, Marcelo Ridenti (2010, p. 61) afirma que
são inúmeros os depoimentos que atestam a condição “ornamental” à qual
os intelectuais eram relegados no interior da organização, mas havia contrapartidas que os mantinham na órbita partidária. Se a boa imagem de que
gozavam os escritores se constituía em valioso recurso aproveitado pelo
Partido Comunista, por outro lado, este oferecia canais para que seus militantes intelectuais tornassem pública sua produção. Para Marcelo Camurça (1998), junto com o encantamento diante da causa, a busca pelo status –
que a notoriedade do movimento comunista conferia – foram as principais
motivações para a adesão de intelectuais ao PCB. Mas, no estudo que realizou considerando o contexto da década de 1950 (marcada pela Guerra Fria,
pelo alinhamento do governo brasileiro com os americanos e pelo alijamento dos intelectuais comunistas dos principais espaços de produção e de
divulgação cultural no Brasil), Ridenti afirmou que essa relação entre artis-
78
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
tas e intelectuais e o PCB “não caberia numa equação simples, como a que
supõe que a militância comunista de intelectuais e artistas fazia parte de
um desejo de transformar seu saber em poder. Tampouco seria adequado,
no outro extremo, supor que houvesse mera manipulação dos intelectuais
pelos dirigentes do PCB.” Para o sociólogo, não se tratava “de uso indevido
e despótico da arte e do pensamento social para fins que lhes seriam alheios,
mas de uma relação intrincada com custos e benefícios para todos os agentes envolvidos, implicando ainda uma dimensão utópica que não se reduz
ao cálculo racional” (RIDENTI, 2010, p. 57).7 Se essa relação de vantagens
e prejuízos implicava uma dimensão que não se reduzia ao cínico cálculo
racional, como acertadamente observou Ridenti, os pesos da balança nem
sempre foram equilibrados. Houve casos em que, a despeito de todos os
recursos empregados para a causa partidária, o estigma decorrente de ser
comunista foi nefasto para a carreira de determinados intelectuais (MARTINS, 2012).
Em quarto lugar, o excerto da revista Libertação demonstra-nos que
intelectuais comunistas eram aqueles que usavam seu saber e sua competência para defender os interesses do proletariado. O compromisso com
questões alheias ao seu suposto campo de interesses (o literário, o artístico,
o científico), como tem apontado a farta produção acadêmica, tinha raízes
históricas mais longínquas. De acordo com François Dosse (2003, p. 20, 21
e 63), por exemplo, desde o Iluminismo, pelo menos, é possível observar a
aproximação da “figura do intelectual” à defesa de princípios de verdade (a
erudição visaria a discriminar o verdadeiro do falso) e de justiça (oposição
à arbitrariedade do poder). O episódio paradigmático do engajamento do
intelectual nesse sentido (no caso, um escritor), extrapolando os limites do
que poderia lhe dizer respeito, foi protagonizado por Émile Zola na Paris
7
Além das atividades culturais decorrentes da definição de políticas oficiais do PCB, os intelectuais participavam de um conjunto de ações que extrapolavam o terreno do intelecto. Muitos
deles adentravam territórios populares, envolvendo-se na organização de blocos carnavalescos,
como a poetisa Beatriz Bandeira e o advogado Marino dos Santos (GARCIA, 1999, p. 130131), e de churrascos populares (Correio do Povo, Porto Alegre, p. 10, 22 nov. 1946). Em outros
casos, o dia a dia da militância invadia o âmbito do privado, como o episódio em que o romancista Dyonélio Machado foi padrinho de casamento de Serafina (filha da operária Julieta Batistioli), cuja cerimônia foi celebrada na residência da camarada Maria Crespo (Entrevista com
Serafina realizada por Maria Luiza Martini). A participação nessas esferas aponta para o estabelecimento de vínculos de outras naturezas e para formas de convivência extrapartidárias
ainda inexploradas pela historiografia.
79
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
do fim do século XIX (o Caso Dreyfus). No Brasil, o historiador Nicolau
Sevcenko observou a questão da função social do intelectual nas obras de
Euclides da Cunha e de Lima Barreto. Ambos os autores apresentavam
divergências no que dizia respeito à ciência, à civilização e à raça, mas
compartilhavam a rejeição das elites vitoriosas, de modo que sua formação
positivista e, em decorrência dela, um credo inabalável num humanismo
cosmopolita repercutiram em sua produção literária, tornada um instrumento de ação pública – “literatura como missão” (SEVCENKO, 2003, p.
142-143, 146-149 e 152).
De acordo com Palamartchuk, após a Proclamação da República,
surgiu a ideia do atraso cultural no Brasil atrelada a propostas de modernização do país que perseguiam o modelo da Europa. Os intelectuais do
período esforçaram-se para forjar uma nação europeizada, objetivo que permaneceu vivo na década de 1920, quando comunistas, como Astrojildo
Pereira, também assumiram para si a responsabilidade de elaborar propostas de modernização da nação, tendo como referencial modernizador a
URSS e a construção do socialismo como meta, necessitando, para tanto,
conscientizar os trabalhadores (PALAMARTCHHUK, 1997, p. 97; 2003,
p. 48). Quer dizer, a “vocação messiânica” (RUBIM, 1998, p. 350) do intelectual brasileiro como portador de uma consciência iluminada e responsável pela realização de um projeto de nação transcendia o Partido.
Na tradição marxista, o compromisso histórico do intelectual com a
verdade e a justiça traduzia-se no dever de esclarecer o povo, fazendo-o
despertar para a luta revolucionária. Segundo Daniel Aarão Reis Filho, as
opiniões em relação aos intelectuais dividiam os comunistas brasileiros.
Alguns os elogiavam, dando seguimento às reflexões de Marx – o qual havia reservado um papel importante para esse grupo no movimento, o de
fazer brotar a consciência socialista através da investigação teórica. Outros,
contudo, hostilizavam-nos, devido à sua origem burguesa (na maioria dos
casos), modo de proceder originado do processo de proletarização comentado anteriormente (REIS FILHO, 1990, p. 143-147). Na visão de Karl
Kautsky, contemporâneo de Marx, como os intelectuais não tinham interesse na exploração capitalista e possuíam o monopólio do saber numa sociedade dividida claramente em trabalho manual e trabalho intelectual, eles
deveriam ser considerados aliados dos trabalhadores. A socialdemocracia
alemã, portanto, deveria tirá-los da influência da burguesia (BOBBIO, 1996,
80
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
p. 122). Essa tese foi adotada por Lênin (1902, p. 40) em Que fazer?, obra em
que oferecia uma interpretação do marxismo para a ação. O líder russo
defendia que os operários tinham a experiência prática das fábricas, cabendo aos intelectuais, portadores da ciência, ensinar-lhes seus conhecimentos
políticos.8 Na época de Stálin, porém, a monopolização daquilo que se acreditava ser a verdadeira interpretação da obra de Marx e de Lênin limitou
drasticamente as possibilidades de se questionar as orientações vindas de
Moscou, e a política da proletarização preconizada por ele, mesmo que revista posteriormente, deixou marcas profundas no imaginário comunista.
É possível afirmar que o papel dos intelectuais no PCB e na revolução brasileira tornou-se objeto de maiores discussões no fim do Estado Novo.
Naquele contexto, a função social de homens e mulheres dedicados à produção de bens culturais no Brasil passou a ser problematizada de forma
organizada por meio da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), criada em 1942, e dos congressos de abrangência nacional promovidos por essa
entidade. Os comunistas inseriram-se no debate, que evoluiu de momentos
de influência até o controle total do PCB sobre a Associação e o consequente abandono desta por parte dos escritores não comunistas.
O I Congresso Brasileiro de Escritores, ocorrido em janeiro de 1945,
marcou um momento da história brasileira em que o discurso político esteve explicitamente vinculado às questões relevantes para a profissionalização do escritor (LIMA, 2010). Neles, as atuações dos participantes vinculados ao PCB – sobretudo no tocante aos temas políticos – afinaram-se às
orientações de Pedro Pomar, dirigente comunista com o qual os congressistas comunistas encontravam-se diariamente para receber orientações (AMADO, 1992, p. 20). O objetivo era trabalhar no sentido de assegurar que a
posição política do evento fosse a mais próxima possível à resolução da
Conferência da Mantiqueira. Por isso, em suas participações, os comunistas defenderam o retorno da democracia, além de ajudarem a traçar o perfil
do povo brasileiro (CAVALCANTE, 1986, p. 102-108).
De modo geral, os congressistas atribuíram-se o papel de “guias” de
um povo inculto e ignorante, um povo que – de acordo com a interpretação
8
Nessa obra, Lênin reconhecia que a consciência socialista não havia surgido espontaneamente
no seio da classe do proletariado, mas havia sido importada de intelectuais burgueses, como
Marx, Engels e os pensadores da social-democracia na Rússia (p. 16 e 20).
81
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
de Berenice Cavalcante para o episódio –, relegado ao abandono, à pobreza, à fome e à doença, era destituído das condições de participação por
força da ignorância. O intelectual – homem de cultura no sentido de fruto
de reflexão que não se produzia no meio popular – era visto como detentor
de um saber que deveria ser difundido, popularizado, promovendo a conscientização das massas através da elevação do seu nível cultural (CAVALCANTE, 1986, p. 106 e 108). Nesse sentido, o intelectual neutro fugiria da
sua missão de ser intérprete da comunidade nacional. Para os comunistas
Dyonélio Machado e Juvenal Jacinto, dois dos delegados gaúchos e comunistas presentes no congresso, sendo os intelectuais os “líderes natos do
povo”, a “camada superior da sociedade”, seu papel era o de promover o
debate sobre os problemas e o de mobilizar a população (Serão fascistas os
escritores gaúchos? Revista do Globo, Porto Alegre, ano XVI, n. 362, p. 2831 e 59, 06 maio 1944).9
Essa autopercepção dos escritores como condutores do processo de
conscientização do povo e os demais assuntos amplamente debatidos no
decorrer do congresso foram resumidos na Declaração de Princípios, lida
solenemente pelo romancista Dyonélio Machado:
Os escritores brasileiros, conscientes de suas responsabilidades na interpretação e defesa das aspirações do povo brasileiro, e considerando necessária uma definição do seu pensamento e de sua atitude em relação às questões políticas básicas do Brasil, neste momento histórico, declaram e adotam os seguintes princípios:
Primeiro – A legalidade democrática como garantia da completa liberdade
de expressão do pensamento, da liberdade de culto, da segurança contra o
temor da violência e do direito a uma existência digna.
Segundo – O sistema de governo eleito pelo povo mediante sufrágio universal, direto e secreto.
Terceiro – Só o pleno exercício da soberania popular em todas as nações
torna possível a paz e a cooperação internacionais, assim como a independência econômica dos povos.
CONCLUSÃO – O Congresso considera urgente a necessidade de ajustarse a organização política do Brasil aos princípios aqui enunciados, que são
aqueles pelos quais se batem as forças armadas do Brasil e das Nações Unidas (LIMA, 2010, p. 209. Grifos nossos).
9
A enquete foi promovida pela Revista do Globo alguns meses antes do encontro, evidenciando
que os temas nele em questão estavam sendo debatidos na imprensa com relativa antecedência.
82
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Somente com a queda da ditadura varguista e seus mecanismos cerceadores da liberdade de expressão é que os escritores, os tradutores e os
jornalistas teriam assegurada a plenitude de condições para suas atividades. O documento selou o evento que, em seu próprio desenrolar, começou
a ser construído como marco de uma nova fase na vida cultural e política
do país (PALAMARTCHUK, 2003, p. 308-309).10 No fim daquela década
e na seguinte, a “missão” do intelectual comunista ganhou traços mais nítidos na organização. É possível vislumbrar seus contornos, principalmente,
no compromisso do PCB com a campanha mundial pela paz e na adoção
do realismo socialista como corrente estética oficial do Partido.
Segundo estudo de Jayme Fernandes Ribeiro, acreditava-se numa
possível “ação direta” do imperialismo norte-americano contra a União
Soviética e, por essa razão, em reunião do Kominform de novembro de
1949, a “luta pela paz” foi definida como tarefa central do movimento comunista, à qual deveriam subordinar-se todas as outras tarefas e objetivos.
Com o Apelo de Estocolmo, lançado em março de 1950 pelo Comitê Mundial dos Partidários da Paz, teve início a Campanha pela Proibição das
Armas Atômicas. O objetivo era reunir assinaturas em diversos países e
enviá-las à Organização das Nações Unidas (ONU), manifestando a posição de milhões de pessoas em favor da paz (RIBEIRO, 2008, p. 262-263). O
documento mobilizou comunistas em todo o mundo contra as armas atômicas. Eles eram chamados “combatentes da paz”.
Os comunistas brasileiros lançaram mão de diversas estratégias para
lograr o maior número possível de assinaturas: comícios-relâmpago, festas,
festivais, concurso, palestras, dramatizações sobre os efeitos da bomba atômica, distribuição de panfletos, matérias jornalísticas na imprensa partidária etc. (RIBEIRO, 2007, p. 64). No Rio Grande do Sul, a poetisa Lila Ripoll atuou intensamente na campanha, organizando e participando de congressos, compondo a direção do Movimento Estadual dos Partidários da
Paz, escrevendo poesias (BALBUENO, 2005, p. 117, 125 e 142). Na direção da revista Horizonte, a poetisa divulgou o Apelo de Estocolmo e convidou intelectuais “das mais variadas tendências políticas” para participar da
10
Os encontros subsequentes foram marcados pelo crescente domínio do PCB sobre a ABDE.
Para maiores informações sobre as disputas políticas no seio da entidade, conferir: AMADO,
1992; CAVALCANTE, 1986; LIMA, 2010; RUBIM, 1986.
83
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
campanha, procurando convencê-los de que poderiam “dar um poderoso
auxílio”, “colhendo assinaturas de personalidades” (o que aumentaria a
notoriedade da campanha e lhe conferiria credibilidade) e “usando sua arte
para a propaganda da Paz” (Intensificar a luta pela paz. Horizonte, Porto
Alegre, n. 7, p. 187, jul.1951). Podemos situar o trabalho pela campanha no
periódico entre as estratégias usadas por Lila e seus companheiros para
sensibilizar os leitores e lograr suas assinaturas no documento.
Naquele contexto – em que a Guerra Fria e o retorno à clandestinidade motivaram a radicalização da linha política do PCB – a literatura não
era considerada atividade acessória, mas uma tarefa política prática da maior
importância, porque estava inserida no movimento revolucionário. Considerava-se que a chamada “arte revolucionária” – a literatura, a gravura e as
demais formas de expressão artística – deveria atuar sobre o desenvolvimento da revolução, inspirando-se nela e, ao mesmo tempo, servindo-lhe
de instrumento para o alcance de seus objetivos. Dessa forma, a classe operária tinha um de seus importantes instrumentos de luta na “arte de vanguarda”, a qual tinha o dever de ir contra “a arte velha, burguesa, degenerescente”, que não refletia a “abnegação e o sacrifício das grandes massas
populares” e não servia à causa do povo (Participemos da luta heroica do
povo brasileiro. Horizonte, Porto Alegre, n. 7, p. 189-190, jul. 1951). A criação realista – difundida em revistas e em livros editados pelo Partido – deveria fixar tipicamente os temas e os personagens populares brasileiros não
só pelo comprometimento em mostrar a verdade, mas pelo compromisso
com a transformação ideológica e com a educação dos trabalhadores nos
princípios do socialismo.
Essa concepção de arte fazia-se tanto mais necessária diante do imperialismo. Argumentava-se que, desprovido de autonomia cultural, um
povo tornava-se incapaz de pensar por si, aceitando passivamente imposições externas (O cosmopolitismo e as tarefas atuais da literatura. Horizonte,
Porto Alegre, ano II, n. 8, p. 230, set. 1952). Por isso crescia a responsabilidade dos escritores, cuja “tarefa” era criar uma literatura que não se satisfizesse apenas em expressar a situação de miséria e de opressão em que se
encontrava o país, mas que indicasse ao povo brasileiro a solução revolucionária de seus problemas. Para tanto, fazia-se necessária íntima ligação com
a população, com seu folclore e com seu passado cultural, e essa aproximação poderia ser conquistada observando o método do realismo socialista.
84
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
A arte era uma arma de luta naquele estágio da revolução mundial que o
intelectual comunista tinha a capacidade e o dever de operar.
Os intelectuais, de um modo geral, concordavam com a política arbitrada pelo Partido (MORAES, 1994, p. 91). No terreno das artes plásticas,
os clubes de gravura – impulsionados em todo o país pelo PCB nos anos
1950 – são um exemplo de como a organização se serviu da arte para agitação e propaganda (RIDENTI, 2010, p. 69). Para o gravurista Carlos Scliar,
que atuava no Clube dos Amigos da Gravura de Porto Alegre junto a Vasco
Prado e Danúbio Gonçalves, a defesa do realismo socialista se justificava
por ser uma arte que “mexia com a cabeça das pessoas”, e só alguém com
consciência poderia modificar a realidade social (apud MORAES, 1994, p.
176, n. 125).
Parece ter sido na produção literária que a adoção de uma cultura
proletária exigiu maiores sacrifícios e gerou decepções. Num relato ressentido, Osvaldo Peralva (1962, p. 238) conta-nos que Alina Paim e Dalcídio
Jurandir, aceitando levar as teses do realismo socialista às últimas consequências, dispuseram-se a viver algum tempo no cenário em que se desenrolaram as histórias que iriam ser transformadas em romances. Partilharam
todas as privações que a realidade impunha a seus personagens e, ao entregarem os originais para a direção, a fim de os terem publicados pela editora
do Partido, foram duramente criticados e humilhados pelos dirigentes, que
chegaram a questionar se os referidos camaradas eram “realmente romancistas”.
Ao compararmos esse episódio com a citação reproduzida da revista
Libertação no início desse texto, constataremos duas visões diametralmente
opostas em relação aos intelectuais. Enquanto naquela eles foram exaltados, nesse foi-lhes negada até a condição de escritores, evidenciando um
menosprezo que compunha uma tradição anti-intelectual com raízes antigas na cultura partidária (FERREIRA, 2002, p. 189).
Ora elogiados e úteis, ora desprezados e não confiáveis, os intelectuais
não escaparam das exigências impostas a todo militante comunista. Como
os camaradas operários, eles também foram submetidos ao “massacre de
tarefas” e chamados a comprometer a própria existência em prol da revolução. Mas eles carregavam consigo algo que os diferenciava dos trabalhadores e que, para o bem ou para o mal, estava na base do que unia, sob a
denominação de “intelectual comunista”, mulheres e homens com trajetó-
85
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
rias as mais diversas e diferentes maneiras de se adaptar ao dia a dia da
militância: a origem social.
A julgar por sua origem de classe, e pelas distinções sociais e recursos
(capacidade de criação, saberes, relações etc.) possíveis de serem incorporados em trajetórias que ela determinava, os intelectuais comunistas tinham
um lugar e um papel no interior do PCB. A potencialidade da sua contribuição para a revolução ou os problemas que poderiam acarretar ao Partido, suas qualidades e seus vícios, eram interpretados à luz da bagagem social
que traziam consigo e de tudo o que era, pejorativamente ou não, associado
a ela. Intelectual comunista, assim, era o substantivo que dava nome a um
grupo específico de militantes e o adjetivo com o qual se (des)qualificava
alguém que apresentasse comportamento considerado típico daqueles oriundos das classes abastadas, expandindo as fronteiras do que poderia ser compreendido pela expressão.
Referências bibliográficas
AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias
que jamais escreverei. São Paulo: Círculo do Livro, 1992.
BALBUENO, Luciana Haesbaert. A trajetória intelectual de Lila Ripoll. 2005. Tese
(Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, Porto Alegre.
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Editora UNESP, 1996.
BRUM, Rosemary Fritsch. Uma cidade que se conta: imigrantes italianos e narrativas
no espaço social da cidade de Porto Alegre dos anos 20-30. São Luís/MA: EDUFMA, 2009.
BUONICORE, Augusto. Comunistas, cultura e intelectuais entre os anos 1940 e
1950. Revista Espaço Acadêmico, n. 32, jan. 2004. Disponível em: <http://
www.espacoacademico.com.br/032/32cbuonicore.htm>. Acesso em: 01 out. 2013.
CAMURÇA, Marcelo A. Intelectualidade rebelde e militância política: adesão de
intelectuais ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) – 1922-1960. Lócus: Revista de
História, Juiz de Fora, v. 4, n. 1, p. 65-80, 1998.
CARONE, Edgar. O P.C.B. (1922-1943). v. 1. São Paulo: DIFEL, 1982.
CAVALCANTE, Berenice. Certezas e ilusões: os comunistas e a redemocratização
da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Niterói: EDUFF/PROED,
1986.
DOSSE, François. La marche des idées: histoire des intellectuels, histoire intellectuel.
Paris: Editions la Découvertes, 2003.
86
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do mito: cultura e imaginário político dos comunistas no Brasil (1930-1956). Rio de Janeiro: MAUAD Editora; Niterói: Editora da
UFF, 2002.
GARCIA, Eliane Rosa. A ação legal de um partido ilegal: o trabalho de massa das
frentes intelectual e feminina do PCB no Rio Grande do Sul (1947-1960). 1999.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS,
Porto Alegre.
GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio... Os intelectuais cariocas e o modernismo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, p. 62-77, 1993.
______. Essa gente do Rio: modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 1999.
IUMATTI, Paulo Teixeira. Diários políticos de Caio Prado Júnior: 1945. São Paulo:
Brasiliense, 1998.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. Que fazer? 1902. Fonte: The Marxists Internet Archive.
LEWGOY, Bernardo. Os cafés na vida urbana de Porto Alegre (1920-1940): as
transformações em um espaço de sociabilidade masculino. Iluminuras, Porto Alegre, v. 10, n. 24, p. 01-14, 2009.
LIMA, Felipe Victor. O Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores: movimento intelectual contra o Estado Novo (1945). 2010. Dissertação (Mestrado) – Programa de
Pós-Graduação em História Social da USP, São Paulo.
MARTINS, Marisângela T. A. À esquerda e seu tempo: escritores e Partido Comunista do Brasil (Porto Alegre – 1927-1957). 2012. Programa de Pós-Graduação em
História da UFRGS, Porto Alegre, 2012.
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MORAES, Dênis de. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo
socialista. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O PCB e a moral comunista. Lócus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 3, n. 1, p. 69-83, 1997.
PALAMARTCHUK, Ana Paula. Ser intelectual comunista: escritores brasileiros e o
comunismo (1920-1945). 1997. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP, Campinas.
______. Os novos bárbaros: escritores e comunismo no Brasil. 2003. Tese (Doutorado) – Unicamp, Campinas.
PANDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: história e memória do PCB. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará: Fundação Roberto Marinho, 1995.
PERALVA, Osvaldo. O retrato: impressionante depoimento sobre o comunismo no
Brasil. Porto Alegre: Editora Globo, 1962.
87
MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense,
1990.
RIBEIRO, Jayme. Os “inimigos da paz”: estado, imprensa e repressão ao movimento dos “Partidários da Paz” no Brasil (1950-1956). Sæculum – Revista de História, João Pessoa, n. 17, p. 63-78, jul.-dez. 2007.
______. Os “combatentes da paz” – a participação dos comunistas brasileiros na
Campanha Pela Proibição das Armas Atômicas (1950). Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 21, n. 42, p. 261-283, jul.-dez. 2008.
RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária. Um século de cultura e política. São
Paulo: Editora UNESP, 2010.
RODRIGUES, Leôncio Martins. O PCB: os dirigentes e a organização. In: GOMES, Ângela de Castro et al. (Orgs.). O Brasil Republicano: sociedade e política
(1930-1964). 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. t. 3, v. 3.
RUBIM, Antônio Albino Canelas. Partido Comunista, cultura e política cultural. 1986.
Tese (Doutorado) – Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo.
______. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil. In: MORAES, João Quartim
de (Org.). História do marxismo no Brasil: v. III: Teorias, interpretações. Campinas:
Ed. da Unicamp, 1998.
SCHMIDT, Benito. Gilda e Lila: duas maneiras de ser mulher e comunista em
Porto Alegre nas décadas de 1940 e 1950. História Oral: Revista da Associação Brasileira de História Oral, v. 9, n. 2, p. 09-32, jul.-dez. 2006.
SEGATTO, José Antônio. Breve história do PCB. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1981.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SORÁ, Gustavo. A arte da amizade: José Olympio, o campo de poder e a publicação de livros autenticamente brasileiros. In: SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE
O LIVRO E A HISTÓRIA EDITORIAL, I, 2004, Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.uff.br/lihed/primeiroseminario/pdf/gustavosora.pdf>. Acesso em:
29 mar. 2006.
VELLOSO, Mônica Pimenta. O modernismo no Rio de Janeiro: Turunas e Quixotes.
Rio de Janeiro: FGV, 1996.
VERISSIMO, Erico. Um certo Henrique Bertaso: pequeno retrato em que o pintor
também aparece. Porto Alegre: Editora Globo, 1972.
VINHAS, Moisés. O Partidão: a luta por um partido de massas (1922-1974). São
Paulo: Editora Hucitec, 1982.
88
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
As usinas do anticomunismo castrense
Os intelectuais do nacionalismo de direita
na Argentina, 1955-1966
Juan Manuel Padrón
Introdução
Nos anos 60, especialmente depois do triunfo da Revolução Cubana,
o anticomunismo passou a ocupar um lugar central para as elites latinoamericanas que se sentiam ameaçadas pela expansão do modelo cubano.
Essas elites encontraram ao menos quatro aliados em sua cruzada contra o
“perigo vermelho”: um exterior, as potências ocidentais, particularmente
os Estados Unidos, e três internos, os intelectuais de direita, as cúpulas da
Igreja Católica e das Forças Armadas. Embora o peso desses atores fosse
dessemelhante em cada país latino-americano, é inegável que eles foram
fundamentais para a difusão de um anticomunismo muitas vezes radicalizado e violento, que alimentou, nas décadas posteriores, as ditaduras mais
sangrentas que a América Latina tinha experimentado.
Neste trabalho, busco uma primeira aproximação à relação que se
estabeleceu entre dois desses atores: os intelectuais de direita e as Forças
Armadas. Para isso, irei me concentrar no caso da Argentina do início
dos anos 60. Além disso, e pensando no campo intelectual, esse recorte
corresponderá ao que chamaremos de “intelectuais do nacionalismo de
direita”, um subgrupo que, como mostrarei na primeira parte deste ensaio, constituía um universo bem definido, ainda que heterogêneo em sua
composição, que, embora compartilhasse o anticomunismo com o restante dos intelectuais de direita, bebia de uma tradição alheia (e crítica) à
liberal. Nesse sentido, irei me concentrar em duas figuras desse universo,
cuja obra se articulou, já antes dos anos 60, na denúncia do comunismo e
de seus efeitos destrutivos sobre a Nação: Jordán Bruno Genta e Julio
Meinvielle.
89
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
Entendo que a história dos intelectuais, ou história intelectual, permite mais de uma abordagem. Nos últimos 30 anos, ela passou por um
amplo desenvolvimento. A renovação historiográfica ocorrida nesse mesmo período, com a revalorização do político como campo autônomo e reconhecido da pesquisa, revitalizou e redefiniu outros espaços para a análise
histórica. A tradicional história das ideias, embora não tenha declinado em
sua significação dentro do campo historiográfico, deixou um lugar significativo para outras formas de abordar o estudo dos intelectuais. Nesse sentido, optarei, de uma maneira eclética, por uma análise que, nas palavras de
Carlos Altamirano, “comunique a história política, a história das elites culturais e a análise histórica da literatura das ideias”, que não reduza essa
história intelectual a “ser história puramente intrínseca das obras e dos processos ideológicos, nem se contente com referências sinóticas e impressionistas à sociedade e à vida política” (ALTAMIRANO, 2005).
Quanto à organização deste trabalho, esboço duas grandes seções. A
primeira apresenta os intelectuais do nacionalismo de direita na Argentina
no período compreendido entre dois golpes de Estado, de 1955 a 1966, em
que expomos de maneira geral como esse universo estava organizado internamente e quais foram suas principais posturas políticas e ideológicas. A
segunda se concentra nas figuras de Genta e Meinvielle, em suas ideias e
nas redes que construíram para alcançar com sua pregação anticomunista
o ator que consideravam a última barreira contra o avanço comunista, as
Forças Armadas.
Os intelectuais do nacionalismo de direita
entre duas “revoluções”
O nacionalismo de direita era, em inícios dos anos 60, um conjunto
heterogêneo de agrupações, intelectuais e projetos jornalísticos. Muitas vezes, ele foi apresentado erroneamente como um setor estático, cujas ideias
e práticas não pareciam ter variado significativamente desde os anos 20 e só
tinha adotado uma linguagem mais “popular” para se aproximar das massas peronistas (ROCK, 1993, p. 190-192).
Em seu interior, podem-se diferenciar ao menos dois subgrupos: o
primeiro é uma corrente de intelectuais nacionalistas que compartilhavam
certas ideias básicas sobre a sociedade e a política: respeito e defesa das
90
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
hierarquias, apoio a modelos corporativistas de organização política e social, apego ao revisionismo histórico, um catolicismo militante, oposição a
liberais e setores de esquerda, um antissemitismo muitas vezes disfarçado
de antissionismo e um nacionalismo econômico radical; o segundo é composto por um sem-número de organizações juvenis nacionalistas organizadas como verdadeiros grupos de choque, em que não só apareciam os traços antes mencionados para os setores intelectuais, mas em que a violência, como prática política, ocupava um lugar central; essas organizações
concebiam a revolução como motor da mudança política e social, ainda
que a partir de uma perspectiva alheia e oposta à tradição de esquerda
(LVOVICH, 2006).
Sua história remontava a fins dos anos 20, mas, em termos imediatos, a experiência peronista tinha marcado a fogo seu posicionamento político e ideológico. Durante os governos peronistas, os nacionalistas assumiram uma atitude ambígua frente ao novo fenômeno político. Sem dúvida,
foram participantes ativos dos governos instaurados em 1943, ocupando
espaços secundários dentro das administrações dos presidentes Ramírez e
Farrell1. Não obstante toda a reserva que mostravam frente ao próprio
Juan Domingo Perón, seu apoio foi evidente nas eleições de 1946, e muito poucos desses intelectuais podiam negar que Perón era o “mal menor”,
especialmente ante a coalizão de radicais, socialistas e comunistas que enfrentava (WALTER, 2001, p. 262-264).
Nos anos posteriores, esse apoio inicial condicionado passaria, lenta
mas inexoravelmente, a transformar-se em hostilidade aberta. Em princípio, os nacionalistas creram descobrir no peronismo lemas que lhes eram
próprios, particularmente em relação ao que chamavam de “justiça social”.
Entretanto, esse uso de slogans e ideias alheias por parte de Perón não foi
acompanhado de espaço algum para as aspirações políticas dos nacionalistas. Os veículos de imprensa destes últimos começaram lentamente a minguar, e grande parte das organizações existentes nos anos anteriores se dissolveu ou ficou vinculada ao próprio peronismo, como foi o caso da Alian-
1
Uma vez ocorrido o golpe de junho de 1943, embora a participação dos nacionalistas nele fosse
marginal, aprovaram a nova gestão, e algumas de suas figuras passaram a ocupar lugares dentro da administração, em especial no campo educacional, ou nas administrações provinciais
(NAVARRO GERASSI, 1968, p. 179-182).
91
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
ça Libertadora Nacionalista. Mais tarde, vários conflitos avivaram o ressentimento para com o governo. Embora reconhecessem certos êxitos na
política econômica e na política externa, o que não deixava de incomodar
esses setores era o pragmatismo de Perón, especialmente no tema da política social e na busca de apoio entre os setores operários (WALTER, 2001, p.
266). Também os incomodava o papel assumido por Eva Duarte, esposa de
Perón, dentro do governo, e frente a ela demonstravam, em muitos casos,
simplesmente desprezo. Este se devia a que a relação entre Perón e a jovem
atriz, segundo matrimônio do coronel, “ia contra as grandiloquentes normas morais pregadas pelos nacionalistas como elementos essenciais da salvação nacional e espiritual” (WALTER, 2001, p. 262).
A aproximação do governo de setores que os nacionalistas não viam
com bons olhos avivou essa antipatia para com os integrantes do governo,
em especial quando um desses grupos foi a própria comunidade judaica2.
Em termos gerais, como expressou um reconhecido sacerdote nacionalista
católico, o presbítero Julio Meinvielle, o peronismo, preocupado que estava
em solucionar as questões materiais, tinha sido incapaz de dar à ordem
estatal e política verdadeiros valores nacionalistas e católicos. Entretanto,
se houve uma questão que acabou rompendo os frágeis laços que podiam
existir entre o nacionalismo e o peronismo foi o conflito entre o Estado
peronista e a Igreja Católica. Desde o início dos anos 50, primeiro a crise
econômica e depois a morte da esposa de Perón implicaram mudanças radicais de direção nas políticas do governo. O gasto público excessivo, a busca
de apoio econômico nos Estados Unidos e a crise moral que os nacionalistas
acreditavam descobrir no governo foram os prolegômenos para os acontecimentos e enfrentamentos que ocorreriam a partir de 1954. Perón avançou
numa série de medidas que contrariavam a Igreja Católica e o pensamento
nacionalista (lei do divórcio civil, legalização do exercício da prostituição,
abolição do ensino religioso), fazendo com que esses setores se voltassem
naturalmente para a vasta oposição que estava se formando contra ele.
2
A partir de fevereiro de 1947, o governo de Perón começou a se aproximar de alguns setores da
comunidade judaica que tinham se reunido na Organização Israelita Argentina (OIA); esta
concorria com a Delegação de Associações Israelitas Argentinas (DAIA) pela representação
dos judeus perante o governo, ainda que a partir de uma posição partidária que a DAIA não
tinha. De modo geral, as relações do governo peronista com a comunidade judaica argentina
foram boas, embora nesta última nunca tenha desaparecido inteiramente o temor de uma possível atitude antissemita por parte do peronismo (veja REIN, 2001, p. 57-138).
92
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
A participação dos nacionalistas no golpe de setembro de 1955 foi
muito importante. Eles fizeram isso, sobretudo, como católicos, junto com
seus antigos inimigos ideológicos e agora eventuais aliados: radicais, socialistas e comunistas. Ainda assim, uniram-se atrás da rebelião do general
Lonardi, e, com o triunfo deste, muitos obtiveram postos de relevância na
nova administração3. Entretanto, esse fato, somado à política conciliadora
implementada pelo novo governo, acabou desencadeando a queda do próprio Lonardi e dos nacionalistas que lhe eram próximos e sua substituição
por uma nova administração de perfil liberal, encabeçada pelo general Pedro Eugenio Aramburu e pelo almirante Isaac Francisco Rojas.
Embora fosse errôneo considerar o setor nacionalista como homogêneo e inclusive estabelecer uma relação direta entre ele e os setores lonardistas, é certo que a queda de Lonardi significou um fracasso para os nacionalistas, que tiveram de abandonar o governo e passaram a engrossar as
fileiras da oposição. Era mais uma derrota, como aquela que tinham vivido
com “a hora da espada” em 1930, ou com a “revolução restauradora” em
1943, e uma nova frustração de seu intento de acionar as lideranças castrenses nas quais depositavam todas as suas esperanças4.
Ainda assim, o nacionalismo sobreviveu à crise de novembro de 1955,
mas o fez radicalizando uma de suas características centrais, a tendência à
divisão. Entre 1955 e 1958, quando houve nova eleição para presidente,
foram vários os empreendimentos políticos e jornalísticos levados a cabo
pelos nacionalistas (veja Quadro 1).
Essa fragmentação se expressou cabalmente na impossibilidade de
articular uma proposta política única e com certo apoio. Esse fracasso tem
múltiplas explicações possíveis. Por um lado, os nacionalistas sofreram,
Entre os intelectuais nacionalistas católicos do novo governo de Lonardi devem ser destacados
Mario Amadeo, ministro de Relações Exteriores; Juan Carlos Goyeneche, chefe da Secretaria
de Imprensa; Luis María de Pardo Pablo, ministro do Interior após a renúncia do liberal Eduardo Busso, e Clemente Villada Achával, secretário assessor do presidente (SPINELLI, 2005).
4
Os golpes de Estado de setembro de 1930, que derrubou o governo radical de Hipólito Irigoyen, e o de junho de 1943, que acabou com o governo do conservador Ramón Castillo, foram
apoiados pelos nacionalistas, e muitos intelectuais e políticos provenientes de suas fileiras ocuparam postos secundários nas administrações governamentais. Entretanto, em ambos os casos
eles abandonaram o governo: no primeiro caso, por causa do fracasso da reforma corporativista que se propunha o general Uriburu, cabeça da revolução; no segundo, por causa do abandono da postura neutralista na Segunda Guerra Mundial, percebida como uma traição da tradição argentina (cf. DOLKART, 2001; ECHEVERRÍA, 2009, WALTER, 2001).
3
93
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
depois da queda de Perón, uma mudança significativa em suas posturas
ideológicas, com escassa referência no passado dos próprios participantes,
o que, muitas vezes, podia ser interpretado como simples oportunismo.
Como destacava nessa época o socialista Oscar Troncoso,
se esmeraban en demostrar que ellos representaban una nueva corriente dentro
de su ideario; procuraban usar un lenguaje más mesurado que el que era
habitual en sus antecesores; muestran actitudes algo circunspectas y opiniones más contemporizadoras […] Como principal síntoma de su evolución o
de su revisionismo de las ideas nacionalistas, manifiestan a través de su hoja
su amor por la libertad y su profundo respeto por las garantías individuales
[…] frente al nacionalismo de otrora, tipo Legión Cívica o Alianza, militarizado, agresivo, intolerante, criminal y rabiosamente totalitario, ellos se presentan con un nacionalismo pintado con los colores de nuestra bandera,
versión despojada de aquellos vicios… (1957, p. 72-73).
Quadro 1
Partidos e publicações nacionalistas destacadas5 (1955-1958)
Partido
Político
Publicação
Referências
Ano de
surgimento
Marcelo Sánchez Sorondo, Ricardo Curuchet,
Máximo Etchecopar, Carlos Ibarguren, Juan
Carlos Goyeneche, Mario Amadeo, Mariano
Montemayor, Alberto Tedín, Santiago de Estrada.
1956
Bandera Popular
Gral. Justo León Bengoa.
1956
Combate
Jordán Bruno Genta, Gustavo Martínez
Zubiria (Hugo Wast), Carlos Alberto Felici.
1955
Cruzada
Cosme Beccar Varela, Jorge Labanca,
Juan Carlos Clausen.
1956
Mayoría
Tulio Jacobella.
1957
Cristiano
Gral. Carlos E. Velazco, Bonifacio Lastra.
1955
Partido Social
Demócrata
Horacio Godoy, Francisco Arias Pellerano.
1956
Presencia
Pbro. Julio Meinvielle.
1949
Revolución
Nacional
Luis Cerrutti Costas
1956
Azul y Blanco Azul y Blanco
Partido
Laborista
5
Nesse grupo foram incluídos alguns partidos e jornais de orientação católica nacionalista.
94
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Partido
Político
Publicação
Unión Popular
Demócrata
Cristiana
Unión
Federal
Unión,
Media Hora
Unión Cívica
Nacionalista
Unión
Republicana
La Voz
Republicana,
Unión
Republicana
Referências
Ano de
surgimento
?
1956?
Mario Amadeo, Emilio Mignone, Horacio
Storni, Eduardo Enrique Ariotti,
Clemente Villada Achával.
1955
Horacio Naya.
1942
Julio Irazusta, Rodolfo Irazusta.
1955
Fonte: Elaboração própria a partir de Rock (1993), Zuleta Álvarez (1975), Navarro Gerassi (1968), Beccar Varela (1970), Fares (2007), Caponnetto (1999), Melón Pirro (2002).
Em segundo lugar, depois do golpe de setembro, eles mostraram uma
atitude vacilante frente à revalorização de alguns aspectos do peronismo.
Enquanto que, imediatamente após setembro, e em consonância com a política conciliadora de Lonardi, alguns nacionalistas resgatavam a influência de sua doutrina nos aspectos mais destacados do peronismo, em meados de 1956 muitos denunciavam isso como um verdadeiro “saque” (SPINELLI, 2005, p. 232). Frente às massas peronistas, que logo se mostraram
mais fiéis ao líder exilado do que todos os atores políticos poderiam prever,
atacar o regime passado ou denunciar o oportunismo de seu líder não encontrou uma resposta favorável nesses setores. Quando tentaram reeditar
um “peronismo sem Perón”, elogiando os aspectos positivos do regime passado, em especial o “sentido social” de sua política, e criticando com dureza as posturas do antiperonismo mais radical, encontraram poucos interlocutores dentro do campo dos vencidos, para não falar de adesão popular.
A candidatura de Frondizi às eleições presidenciais de 1958 constituiu um novo golpe para os nacionalistas. Ele tinha conseguido construir
uma ampla aliança de apoio à sua candidatura, e uma parte dos intelectuais
nacionalistas tinha se somado a ela6. Entretanto, uma parte importante de6
Amadeo foi premiado por Frondizi com o cargo de Embaixador argentino nas Nações Unidas
(cf. ZULETA ÁLVAREZ, 1975, p. 552-553). Já Raúl Puigbó e Mariano Montemayor passaram a fazer parte da equipe da revista Qué!, dirigida por Rogelio Frigerio, abordando a grande
95
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
les abandonou o governo, concentrando seus ataques na figura do presidente, que considerava gestor de um plano para o triunfo comunista no
país, acompanhado pelos setores liberais maçons e pelos tecnocratas ligados aos organismos financeiros internacionais.
Os intelectuais nacionalistas sobreviveram a essas experiências refugiados em diferentes empresas jornalísticas, ou em agrupações, centros de
estudos ou ateneus políticos cujo impacto na política cotidiana ficou muito
limitado7. A partir desses espaços, incitavam os militares a decidir-se a tomar o poder, e, quando isso aconteceu, exigiam uma verdadeira “revolução
nacional”, e mais tarde uma ditadura. O vislumbre de reconstrução de uma
ordem democrática, a convocação de eleições e a crise das Forças Armadas, que entre 1962 e 1963 chegou ao extremo de um enfrentamento armado, por causa de posições em confronto em torno do papel dos militares na
vida política, implicou um golpe profundo para os projetos e as ideias dos
intelectuais nacionalistas8. Ainda assim, sua pregação contra a democracia
não se deteve, e eles participaram da destruição do governo de Arturo Illia,
candidato da UCR do Povo, que tinha conseguido chegar ao governo com
a prescrição do peronismo.
Não é de estranhar, então, que a chegada de Onganía ao poder tenha
sido aclamada pelos nacionalistas. Entretanto, essa adesão inicial foi se diluindo lentamente. O primeiro aspecto perturbador do novo governo foi
sua composição. Embora vários nacionalistas houvessem se somado a ele,
também havia uma presença importante de representantes dos setores libe-
possibilidade que o país tinha de sair do estancamento político y econômico, por meio de uma
política de industrialização de base (cf. BERAZA, 2005, p. 120).
7
Em inícios dos anos 60 só sobreviviam ainda dois partidos nacionalistas, a União Federal e a
União Cívica Nacionalista, que, ao participar de eleições, tiveram um apoio ínfimo. Em 1963,
surgiu o Ateneu da República, um agrupamento de intelectuais nacionalistas que tiveram seu
momento de reconhecimento no início da Revolução Argentina, em 1966. Só os setores mais
reacionários das Forças Armadas, as agrupações antissemitas e filofascistas que atuaram até
meados da década de 60 e os grupos católicos integristas foram receptivos a suas ideias.
8
Depois da derrubada de Frondizi, em março de 1962, e durante o governo de seu sucessor José
María Guido, entre setembro de 1962 e abril de 1963, dois setores das Forças Armadas, os
“azuis” e os “colorados”, enfrentaram-se, chegando inclusive a um confronto armado. O primeiro se identificava com os setores “legalistas”, partidários da entrega do governo aos civis; o
segundo representava os setores mais duros do antiperonismo e exigia um governo duro que
evitasse o retorno do peronismo ao poder. A confrontação terminou com um acordo, referendado pelo chamado Comunicado 200, em que se chegava a dois acordos básicos: convocar
eleições e manter a proscrição do peronismo (cf. POTASH, 1981; ROUQUIE, 1998).
96
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
rais. As esperanças de que o “onganiato” acabasse para sempre com os
males da democracia liberal se chocaram com a realidade: a esperada revolução nacional foi traída por um governo que se voltou para os tecnocratas
liberais.
Durante esses anos, foram vários os temas que marcaram a agenda
de reflexão e ação dos intelectuais nacionalistas. Contudo, uma temática se
impôs às outras, em especial depois do triunfo da Revolução Cubana e de
sua passagem para a esfera soviética. Essa temática foi a “ameaça comunista”, que, no plano local, articulou três temas fundamentais: identificar os
responsáveis pela infiltração comunista; atuar no sentido de evitar que as
massas peronistas, proscritas politicamente, se voltassem para as opções
políticas de esquerda; e conscientizar as Forças Armadas de seu papel central na defesa da tradição ocidental, hispana e católica, frente ao avanço do
comunismo. Nessa tarefa se destacaram duas figuras do nacionalismo de
direita: Jordán Bruno Genta e o presbítero Julio Meinvielle.
Jordán Bruno Genta, apologeta da guerra
contrarrevolucionária
Jordán Bruno Genta nasceu em 1909, no seio de uma família de imigrantes. Escritor e professor de filosofia e letras, incursionou no jornalismo
e, durante sua vida, escreveu diversos livros de ampla difusão nos círculos
próximos do nacionalismo católico. Em 1943, foi designado interventor da
Universidade Nacional do Litoral pelo governo surgido com o golpe militar de 4 de junho de 1943, posto que teve de abandonar imediatamente por
causa da resistência do movimento estudantil à sua gestão, que tinha se
caracterizado pela tentativa de limitar o cogoverno universitário e a liberdade acadêmica. Em confronto com o peronismo, refugiou-se nas aulas
privadas de filosofia e política que dava.
Com a queda do governo peronista em 1955, ele começou a editar
Combate, uma publicação quinzenal que se manteria até o ano de 1967 e se
tornaria órgão de expressão do núcleo de seguidores que Gente tinha nas
aulas que ministrava. Os temas abordados nessa publicação estavam organizados em torno de certos tópicos centrais: o anticomunismo, o antissemitismo, a denúncia da democracia liberal, o ataque à maçonaria e a defesa
das Forças Armadas como reservatórios morais e políticos da Pátria. Em
97
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
sua definição inicial, apresentavam-se como “católicos nacionalistas e hierárquicos”, inimigos de uma democracia liberal que julgavam ter introduzido “a rebelião do pessoal subalterno” e a “total descristianização da sociedade argentina”9.
No plano político, embora tenha mantido durante toda a sua existência um discurso fortemente antiperonista, isso não implicou de maneira alguma seu apoio aos governos que mantiveram a proscrição do peronismo e
de seu líder. Tanto o governo da Revolução Libertadora quanto as presidências de Frondizi (1958-1962), Guido (1962-1963) e Illia (1963-1966) foram
alvo dos ataques de Genta através de sua publicação, esgrimindo em todos os
casos como argumentos fundamentais o papel das “forças mencheviques”
que, por sua vez, cada governo desdobrava, abrindo a porta ao comunismo
na Argentina. Essa pregação se radicalizou depois de 1959, com o êxito da
Revolução Cubana, sua passagem para a esfera comunista e a rápida percepção de que o fenômeno se repetiria no resto da América Latina.
Nesse contexto, interessa-me destacar quais foram os tópicos centrais desse discurso anticomunista e seu nexo com as Forças Armadas no
devir político argentino. Se nos detemos nos primeiros números de Combate, em sua apresentação elas ocupavam um lugar apenas marginal, e só se
fazia referência a elas quando se denunciava um espírito de rebelião social
que, caso não fosse combatido, afetaria diretamente a hierarquia castrense10. Haveria que esperar até o número 5 da publicação, em fevereiro de
1956, para encontrar uma referência mais extensa ao papel das Forças Armadas na recente revolução que derrubara Perón, a qual estaria sendo tomada pelos políticos tradicionais que ameaçavam a integridade dos jovens
militares que tinham levado adiante essa revolução mesmo contra seus superiores “corrompidos até a medula”11. A partir desse momento passariam
a ocupar maior espaço os apelos dirigidos às Forças Armadas para que
acabassem com o papel que os partidos políticos tradicionais tinham no
governo da Revolução Libertadora, em especial os socialistas e radicais12.
Nuestra definición. Combate, ano 1, n. 1, p. 2, 8 dez. 1955.
Ibid.
11
¿Por qué la revolución no anda. Combate, ano 1, n. 5, p. 2, 9 fev. 1956.
12
O governo da Revolução Libertadora era formado por um Poder Executivo, ocupado pelo
general Aramburu e pelo almirante Rojas, e pela Junta Consultiva, que fazia as vezes de Poder
Legislativo e era formada por representantes dos partidos políticos opositores ao peronismo
derrubado.
9
10
98
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
As ligações de Genta e do grupo reunido em torno de Combate com
certos setores das Forças Armadas começaram a se estreitar nesses anos.
Em meados de 1956, a publicação denunciou a detenção do então vigário
geral da Aeronáutica Militar, o presbítero Eliseo Melchiori. Este era um
velho conhecido de Genta, com o qual tinha compartilhado seu antiperonismo e suas críticas ao governo de Aramburu. Uma vez libertado e recolocado em seu lugar de vigário geral, Melchiori aproximou Genta da Aeronáutica, onde começou a ser uma referência entre os oficiais antiperonistas
mais recalcitrantes. Entre eles se encontrava o Comodoro Agustín Héctor
de la Vega, que em setembro de 1957 estava encarregado da chefatura de
cadetes da Escola de aviação Militar de Córdoba13.
Paralelamente, a partir da publicação se reforçou o discurso a favor de
um maior compromisso dos militares com o governo revolucionário, o qual,
segundo a denúncia dela, tinha caído nas mãos de certos setores das Forças
Armadas afins ao liberalismo, defensores de uma saída democrática e aliados dos velhos políticos. A democracia continuava ocupando um lugar central na lista de alvos dos ataques de Genta e seus seguidores, e o anticomunismo era um tópico secundário, ainda que nada desprezível, nesse discurso.
Em inícios de 1958, já confirmada a vitória do candidato da UCR
Intransigente, Arturo Frondizi, nas eleições presidenciais, Combate daria
maior espaço ao “perigo comunista”, publicando uma série de notas que
denunciavam os nexos entre o processo democrático aberto com as eleições
e o desenvolvimento de uma guerra revolucionária que terminaria com a
instauração de um regime comunista no país. Frondizi era apresentado como
o candidato da maçonaria, aliado do peronismo, do Partido Comunista e
do judaísmo internacional, e o futuro era imaginado como devastador:
Por ahora, la coincidencia de la extrema izquierda se ha producido en las
urnas; pero más allá de Perón o de Frondizi, sea que este último pueda cumplir o deje de cumplir sus compromisos peronistas, lo cierto es que el cegetismo bolchevique del proletariado fabril y campesino, conjugado con el laicismo escolar, la coeducación, el divorcio y la reforma universitaria, van a precipitar la descomposición moral y material de la Patria.14
Os chamados dirigidos às Forças Armadas, como reservatórios dos
valores morais católicos e patrióticos, começaram a multiplicar-se na publiDe la Vega tinha participado ativamente dos bombardeios da Praça de Maio em junho de
1955, sublevando uma parte dos pilotos da Base de Morón (cf. FERRARI, 2009, p. 214-215).
14
La extrema izquierda en el poder. Combate, ano 3, n. 49, p. 1, 29 mar. 1958.
13
99
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
cação. Paralelamente, Genta começou a fazer conferências em diferentes
espaços ligados ao nacionalismo, como a livraria Huemul, de seu cunhado
Antonio Rego, que se centravam na relação entre o comunismo e o mundo
contemporâneo, denunciando especialmente a infiltração comunista no
governo e no âmbito educacional. Além disso, incentivava-se com maior
vigor a alternativa ditatorial frente a uma democracia responsável pelo avanço comunista. Nesse sentido, recuperavam-se os ensinamentos do intelectual hispânico Donoso Cortés, para o qual “quando a legalidade basta para
salvar a sociedade, a legalidade; quando não basta, a ditadura”15.
O tom pessimista foi mantido durante todo o período, particularmente
frente ao papel passivo, quando não cúmplice, que se atribuía às Forças
Armadas e à Igreja Católica, nesse processo de um caminho inexorável
rumo à instauração da “ditadura do proletariado” na Argentina. Isso não
impediu que Jordán Bruno Genta aprofundasse os laços que tinha estabelecido com alguns setores militares. Assim, em inícios dos anos 60, a Força
Aérea, através do secretário de Aeronáutica, brigadeiro Jorge Rojas Silveyra, encarregou Genta de redigir uma série de textos que seriam distribuídos entre os membros da força em forma de folhetos. O tema desses textos
era a “guerra contrarrevolucionária”, e logo o primeiro folheto chegou às
mãos de seus destinatários. A denúncia do conteúdo “falangista” da publicação por parte da imprensa de esquerda e o forte debate público que se
iniciou em torno do tema levaram Rojas Silveyra a retirar os folhetos de
circulação e a proibir sua difusão entre os oficiais. A reação de Genta não
se fez esperar, e ele logo atacou Rojas Silveyra dizendo que este estava a
serviço da maçonaria16. Pouco tempo depois, as conferências foram publicadas em formato de livro com o título Guerra contrarrevolucionária.
O texto tinha um destinatário claro: os membros das Forças Armadas. Não era um texto publicado solitariamente17, mas se inscrevia num
Frente al desorden: LA DICTADURA. Combate, ano 3, n. 63, p. 4, 11 dez. 1958.
As denúncias partiram de Afirmación, semanário socialista dirigido por Américo Ghioldi, e
encontraram eco na imprensa nacional, que estava sensibilizada frente a uma onda de antissemitismo que assolava o país desde o sequestro e julgamento de Eichmann. O ataque de Genta
pode ser visto em “La masonería en la Fuerza Aérea”, ano 7, n. 109, p. 1-3, 21 jun. 1962. A
Igreja Católica aprovou o texto do folheto em junho de 1962.
17
Nesses anos seriam publicados Guerra revolucionaria comunista (1962), do coronel Osiris Villegas, Democracia y comunismo (1962), do coronel Abraham Granillo Fernández, e Paredón de
América (1964), de Armando Alonso Piñeiro.
15
16
100
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
clima de época que via nas Forças Armadas a última contenção frente ao
avanço comunista. Ainda assim, ele pode ser interpretado como todo um
programa que pensava a Argentina sob um duplo aspecto: a partir de uma
“doutrina positiva”, que apresentava “os princípios, valores e instituições
fundamentais que devem ser afirmados, servidos e defendidos em todos os
terrenos teóricos e práticos”, e de uma “doutrina negativa”, desencadeada
pelo comunismo através da guerra revolucionária, e fundamentada numa
estratégia, numa tática e nas armas da dialética (GENTA, 1964, p. 11).
O livro tratava de temas tão diversos como a educação universitária e
seu papel central na difusão do comunismo, ou o papel fundamental da
religião católica como freio à mentalidade liberal e marxista que se impunha a partir dos governos latino-americanos. Mas o eixo fundamental consistia em compreender a realidade de uma Pátria que ele considerava ameaçada
“pelo pluralismo, pela subversão e pela anarquia no aspecto espiritual, além
da prostração material [...] configuram um paralítico ao qual só falta o soco
revolucionário para sua derrubada definitiva” (Genta, 1964, p. 125). Frente
a essa realidade, a única solução possível era a “unidade de doutrina”, fundamentalmente dentro das Forças Armadas. Essa unidade deveria estar
fundamentada na destruição da democracia liberal e do sufrágio universal,
antessala direta do comunismo18. Era fundamental “a doutrinação do militar argentino na política da Verdade que ele deve conhecer, amar e servir
até a morte”, sobre a base da doutrina católica hierárquica (GENTA, 1964,
p. 239).
Embora o livro de Genta tenha tido uma ampla circulação, o êxito de
sua pregação anticomunista no seio das Forças Armadas foi escasso. O caos
em que os chefes militares se debatiam, alimentado pelo problema insolúvel do período, ou seja, “o que fazer com o peronismo”, eclipsou as conclamações de Genta a acabar com o regime democrático. Ainda assim, suas
ligações com figuras como o brigadeiro Cayo Antonio Alsina, comandante
da Força Aérea entre 1962 e 1964, ou com o chefe do Estado Maior dessa
força, Gilberto Hidalgo Oliva, permitiram-lhe manter laços concretos com
18
Como alternativa, Genta propunha a necessidade de uma república corporativista, com um
Poder Legislativo composto por uma Câmara de Deputados das Corporações e de um Senado
ou Conselho Supremo das Corporações, por um Poder Executivo encabeçado por um presidente de uma República corporativa, representativa e federal, eleito pelos governadores (GENTA, 1964, p. 223-225).
101
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
a Aeronáutica. Tanto Alsina quanto Oliva participaram ativamente das tentativas de levante ocorridas dentro da força durante a primeira metade dos
anos 60 e foram expoentes claros do antiperonismo mais radicalizado, fiel,
nesse sentido, ao lema de Genta de que, na Argentina, o peronismo era a
força destinada a ser o “cavalo de Troia” do comunismo.
Entretanto, as tentativas de formar uma organização política que
pudesse canalizar as ideias de Genta se organizou em torno do já mencionado Comodoro De la Vega, que, em 1964, tinha se tornado chefe da recentemente criada Legião Nacionalista Contrarrevolucionária19. Ela pretendia canalizar a militância de jovens nacionalistas desencantados com as
organizações nacionalistas contemporâneas, juntando esforços com os grupos afins a Genta dentro das Forças Armadas20. Combate se tornou o portavoz da nova organização, que se apresentava disposta “a servir em Cristo à
Pátria, que corre perigo iminente de ser desintegrada pela guerra revolucionária e submetida ao terror castro-comunista; empenhamo-nos na defesa e
recuperação do ser”21.
A organização estava ligada ao círculo intelectual aglutinado em torno de Genta, que se reunia na livraria Huemul, de propriedade do primeiro
diretor de Combate, o livreiro Antonio Rego. Seus primeiros membros provinham em sua maioria da Aeronáutica e de uma cisão da Guarda Restauradora Nacionalista, que tinha se apartado da organização por causa de
diferenças em relação ao lugar que ela dava ao peronismo em suas reivindicações políticas22. Logo a organização começou a se expandir por todo o
país, embora essa expansão carecesse do impulso necessário para consolidá-la em todo o território. Como recordaria anos depois um de seus membros, o fato de sua atuação ficar reduzida ao âmbito da Força Aérea e de
não consolidar seu desenvolvimento com militância civil fez com que, em
1967, tanto a LNC quanto Combate desaparecessem da cena local (CAPONNETTO, 1999).
Acta de fundación. Combate, ano 9, n. 123, p. 1, maio 1964.
Em 1964, as organizações juvenis do nacionalismo, o Movimento Nacionalista Tacuara e a
Guarda Restauradora Nacionalista, encontravam-se em plena crise e num processo de desintegração que terminaria com seu desaparecimento virtual da cena política argentina (cf. GUTMAN, 2003, LVOVICH, 2006).
21
Acta de fundación. Combate, ano 9, n. 123, p. 1, maio 1964.
22
Desse grupo provinham Silvio Pestalardo, Ernesto Sylvie (secretário da LNC), Mario Caponnetto (genro de Genta), Héctor Torre, Héctor Marone e Floribel Medina (Aclaración. Combate, ano 9, n. 122, abr. 1964).
19
20
102
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Genta continuaria sendo um intelectual de renome nos círculos nacionalistas, ainda que sua capacidade de ser uma referência no plano intelectual ficasse restrita a alguns núcleos das Forças Armadas, em especial da
Aeronáutica. Mesmo assim, sua relevância dentro da direita autoritária anticomunista ainda era importante em 1974, quando um comando do Exército Revolucionário do Povo, organização armada de esquerda, pôs fim à
sua vida num atentado.
Julio Meinvielle, a dialética comunista
e o fim das Forças Armadas
Dentro dos setores católicos nacionalistas, uma das figuras mais importantes foi o presbítero Julio Meinvielle, que, através de uma série de
publicações político-culturais que editou a partir dos anos 40, tornou-se
porta-voz dos setores católicos integristas. Ele nasceu em 1905 e estudou
no Seminário Pontifício de Buenos Aires, ordenando-se presbítero em 1930.
Era doutor em Filosofia e em Teologia, colaborador ativo de diversas publicações católicas e nacionalistas a partir dos anos 30, e pároco na bairro de
Versalles, na cidade de Buenos Aires.
Com base num tomismo cerrado, para Meinvielle todo o material
tinha de estar submetido ao espiritual. Além disso, a política, a economia e
as concepções de Estado e a sociedade só podiam ser entendidas na medida
em que estivessem subordinadas à teologia. Confrontou-se com os nacionalistas que tinham uma noção do Estado fora da ordem teológica, criticando as posturas profanas desses setores e declarando abertamente que o
único nacionalismo viável era aquele com bases doutrinárias firmes fundamentadas na teologia católica (ZANATTA, 1996, p. 49). Seu principal inimigo eram os judeus, que encarnavam todas as características anticristãs na
história: eram responsáveis pela morte de Cristo, pela modernidade e por
suas ideias e especialmente por ser sustentadores e difusores da tríade liberalismo-marxismo-democracia, que atentava contra a ordem hierárquica
ideal do cristianismo.
A experiência peronista também marcou a pregação desse sacerdote,
que, desde 1944, vinha alertando sobre os perigos das políticas de abertura
e reforma social que Perón pretendia encarar a partir da Secretaria de Trabalho. Abordou isso em sucessivas publicações, embora apoiasse tibiamen-
103
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
te sua candidatura e alguns aspectos de seu governo23. Elas se transformaram em verdadeiros espaços de reunião para os nacionalistas, que tinham
ficado marginalizados (ou automarginalizados) de toda atividade política
sob o governo de Perón. O caso da revista Presencia é singular nesse sentido,
pois ela se tornou um dos poucos espaços de difusão do pensamento nacionalista desde que passou a sair em 1949. Suspensa dois anos depois, reapareceu com a queda do peronismo e foi reeditada com breves intermitências
até setembro de 1961, quando, por decisão do cardeal Caggiano, máxima
autoridade eclesiástica argentina, foi fechada24.
Meinvielle era um profundo anticomunista, convicto de que a democracia liberal era o passo anterior à instauração de um regime marxista.
Nesse sentido, a partir de Presencia denunciava os limites da legitimidade
que todo povo tem de eleger suas próprias instituições. Segundo sua visão,
esse princípio liberal se apoiava na ideia duvidosa de que todo povo é capaz
de dar a si mesmo as melhores instituições. Essa visão, que levava diretamente a perguntar-se sobre a própria legalidade da democracia, sustentavase em denunciar uma verdadeira política dialética implementada pelo governo argentino, em que a própria repressão de todo “extremismo” que
fosse contra a democracia estava impregnada de filocomunismo ou de ação
pró-comunista25, ou escondia, atrás de uma linguagem que buscava a harmonia e o desenvolvimento econômico “cristão”, o germe da desagregação
social, antessala do comunismo26.
Frente a essa realidade, eram poucos os atores políticos ou sociais
que, para Meinvielle, podiam exercer a função de diques para o comunismo. Descartados os partidos políticos tradicionais, restavam duas alternativas possíveis. O peronismo, que antes tinha sido avaliado pelo próprio
Meinvielle como um freio para o avanço comunista, dificilmente podia cumprir essa função no início dos anos 60. As razões eram três: primeiro, o
Meinvielle foi editor de quatro publicações a partir de 1944: Nuestro Tiempo (jun. 1944 – maio
1945); Balcón (maio 1946 – nov. 1946), Presencia (dez. 1948 – jul. 1951), Diálogos (1954).
24
A razão foi um artigo escrito pelo próprio Meinvielle sobre o presidente Arturo Frondizi, cujo
título era “¿Puede ser presidente de la Argentina un agente comunista?”. Presencia, ano 13, n.
87, 8 set.1961.
25
La ley de defensa de la democracia, instrumento del desarrollo comunista. Presencia, ano 13,
n. 86, 26 ago. 1961.
26
La política de austeridad no hace sino desarrollar el comunismo. Presencia, ano 13, n. 84, 28
jul. 1961.
23
104
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
clima argentino e latino-americano era propício para o comunismo; segundo, porque o comunismo tinha conseguido “infeccionar” as organizações
sindicais; terceiro, era difícil que o peronista se opusesse a uma revolução
que tomasse um caráter nacional populista27. A outra eram as Forças Armadas.
Como boa parte dos nacionalistas de direita na Argentina, Meinvielle mantinha canais de comunicação com membros das Forças Armadas.
Entretanto, diferentemente de Jordán Bruno Genta, esses canais eram muito mais frouxos e lhe permitiam portar-se com maior liberdade na hora de
opinar sobre os militares e seu papel frente ao comunismo. Sem dúvida,
Presencia tinha entre seu público dileto certos setores das Forças Armadas,
em especial aqueles mais profundamente antiperonistas e convencidos de
que a única saída política era a instauração de um regime militar autoritário. Ainda assim, o presbítero não poupou esforços para denunciar a infiltração comunista entre os próprios militares.
Entre 1960 e 1963, ele proferiu uma série de conferências no país que
versavam sobre o avanço do comunismo, que mais tarde foram publicadas
pela livraria Huemul, algumas delas com caráter privado28. Nelas, apresentava como se dava o avanço do comunismo na Argentina e dedicava especial
atenção a mostrar como a “guerra revolucionária” levada adiante pelos
comunistas afetava diretamente as Forças Armadas. O governo de Frondizi, e em particular de alguns de seus colaboradores mais próximos, como
Rogelio Frigerio, era apresentado como um dos grandes responsáveis por
desenvolver uma “dialética da ação” tendente a instaurar um regime comunista no país. A díade universidade leiga – célula frondizista-comunista eram
os eixos em torno dos quais se articulava o avanço marxista. A solução para
essa dialética da ação consistia em melhorar as condições das classes trabalhadoras e em reorganizar o Estado, sendo que esta última solução visava
Añatuya, prueba piloto del camino al comunismo en el país. Presencia, ano 13, n. 82, 23 jun.
1961.
28
As conferências, publicadas oportunamente, foram as seguintes [títulos no original]: “La dialéctica de la acción” (1960, Córdoba); “La dialéctica comunista y el 18 de marzo” (1962,
Buenos Aires); “La guerra revolucionaria en la Argentina” (1962, Concordia); “La dialéctica
comunista y el peligro de destrucción de las FF.AA” (1962, Buenos Aires); “La reciente crisis
militar y el Aparato Frondizista-Comunista”, com o pseudônimo de Federico Bracht (1962,
Buenos Aires); “La economía argentina en la guerra revolucionaria” (1962, Buenos Aires); “El
Comunicado 200, factor automático de avance del mencheviquismo al bolcheviquismo” (1963);
“Toma bolchevique del poder a través de generales nasseristas” (1963, Curuzu Cuatia).
27
105
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
retomar o controle das universidades e intensificar a repressão do comunismo, evitando a repressão indiscricionária dos setores operários peronistas
(MEINVIELLE, 1960).
Entretanto, essa luta contra o comunismo se mostrava mais difícil do
que nunca. Em princípio, Meinvielle reconhecia que o peronismo não era
alheio a esse processo, em especial os setores sindicais, que eram apresentados como cúmplices diretos do plano de instauração comunista com a multiplicação de conflitos operários e políticos dentro do país29. Que lugar ocupavam as Forças Armadas frente a essa realidade? Em primeiro lugar, eram
vítimas dessas mesmas contradições que os setores castro-comunistas denunciados por Meinvielle estavam aprofundando, já que, segundo ele, elas
acabavam encerradas numa lógica repressiva que lhes alienava o reconhecimento popular, ou seja, o apoio das massas peronistas (MEINVIELLE,
1962c).
Meinveille percebia o eixo da crise militar na luta entre “azuis” e
“colorados”, ou seja, entre as facções legalistas e aquelas dispostas a instaurar uma ditadura para deter o peronismo. Mas, em seu ataque às altas esferas militares, esgrimia uma explicação tão ousada quanto ridícula, se se
pensa em sua denúncia contra alguns dos setores azuis que saíram vitoriosos das crises de 1962-63, que eram acusados diretamente de ser os veículos
da infiltração comunista na Argentina. Meinville os chamou de “generais
nasseristas”, e eles representavam os setores que, aliados ao frondizismo,
estavam aprofundando as contradições que acabariam com o triunfo do
castro-comunismo no país (MEINVIELLE, 1963).
As reações das Forças Armadas não se fizeram esperar. Depois da
conferência na província de Corrientes, onde ele moveu seu ataque aos setores azuis do Exército, o comandante em chefe dessa arma, general Juan
Carlos Onganía, solicitou que se iniciassem ações legais contra o presbítero, enquanto que a Igreja ameaçou Meinvielle de inabilitá-lo em suas funções sacerdotais se não parasse com sua pregação. Ele teve de limitar seus
ataques, embora não tenha deixado de publicar seus ataques contra tudo
que cheirasse a comunismo, muitas vezes sob o pseudônimo de Federico
Bracht.
29
Assim, a vitória do peronismo nas urnas em março de 1962, a anulação das eleições e a derrubada de Frondizi faziam parte desse complexo plano comunista para aprofundar as contradições na Argentina (MEINVIELLE, 1962a, p. 7-10).
106
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
À guisa de conclusão
Em março de 1976, quando ocorreu o golpe de Estado que instaurou
uma das ditaduras mais violentas e sangrentas da América Latina, as Forças Armadas argentinas tinham uma longa tradição de formação doutrinária e prática no campo da luta contra o comunismo. Nessa tradição se inscrevem as doutrinas e ideias que se disseminaram a partir dos intelectuais
do nacionalismo de direita.
Isso foi possível, em primeiro lugar, porque existiram canais formais
e informais que permitiram a intelectuais como Genta ou Meinvielle ter
acesso aos círculos militares para difundir suas ideias. Em segundo lugar,
porque a partir desses setores do nacionalismo existiu uma convicção clara
e direta de que o único espaço onde sua mensagem podia ser ouvida eram
as Forças Armadas, e, mesmo quando esses setores foram minoritários na
vida política argentina, seu êxito na propagação de suas ideias autoritárias
reflete a existência de estratégias bem-sucedidas de acesso a esses espaços.
Por último, sua mensagem era contundente, mesmo que muitas vezes se
baseasse em leituras descabidas sobre a realidade argentina, mas que encontravam nos setores mais tradicionais e autoritários das Forças Armadas
o eco necessário para que esses discursos se tornassem parte constitutiva da
ideologia militar.
Sem dúvida, é impossível não pensar que o êxito de intelectuais como
Genta ou Meinvielle se apoiou na fraqueza de um Estado democrático incapaz de reprimir um discurso que atacava seus alicerces liberais. É certo
que essa incapacidade tinha sua história e que a irresolução do problema
peronista, o clima da Guerra Fria e a autonomia em que se moviam as
Forças Armadas deixaram pouco espaço para que governos democráticos
fracos atuassem em favor da ordem legal.
Quis deter-me em dois casos que, por seus percursos e suas posturas,
são paradigmáticos das ligações entre os intelectuais nacionalistas e os militares. Tanto Genta quanto Meinvielle esgrimiam um discurso e práticas
que tinham aspectos originais. Em primeiro lugar, articulavam sua ideia
anticomunista em torno de um conjunto de conceitos que visavam centralmente desprestigiar a democracia e reclamar para as Forças Armadas um
papel central em sua destruição. Em segundo lugar, nenhum dos dois hesitou em dirigir suas diatribes aos próprios militares, quando entendiam que
o zelo antidemocrático ou anticomunista era fraco demais, tudo isso ao
107
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
custo de esgrimir, como no caso de Meinveille, as mais aloucadas teorias
sobre as implicações de generais ou coronéis nos mais diversos complôs
comunistas. Por último, seu impacto dentro dos círculos militares pode ser
interpretado, no curto prazo, como escassamente relevante, já que tanto
Genta quanto Meinvielle tiveram de buscar apoios concretos fora das Forças Armadas ou foram censurados por causa de suas denúncias ousadas.
Ainda assim, no prazo mais longo, formaram um elemento nada desprezível no reforço de um pensamento autoritário, intolerante e violento dentro
dessas mesmas Forças Armadas.
Fontes
a) Livros
GENTA, Jordán Bruno. Guerra contrarrevolucionaria. Buenos Aires: Nuevo Orden,
1964.
BRACHT, Federico. La reciente crisis militar y el Aparato Frondizista-Comunista. Buenos Aires: Theoría, 1962.
MEINVIELLE, Julio. La dialéctica de la acción. Buenos Aires: Theoría, 1960.
______. La dialéctica comunista y el 18 de marzo. Buenos Aires: Theoría, 1962a.
______. La guerra revolucionaria en la Argentina. Buenos Aires: Theoría, 1962b.
______. La dialéctica comunista y el peligro de destrucción de las FF.AA. Buenos Aires:
Theoría, 1962c.
______. Toma bolchevique del poder a través de generales nasseristas. Buenos Aires:
Theoría, 1963.
b) Imprensa
Combate, 1955 – 1967.
Presencia, 1955 – 1961.
Bibliografía
ALTAMIRANO, Carlos. Ideas para un programa de historia intelectual. In: ______.
Para un programa de historia intelectual y otros ensayos. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005. p. 13-24.
BECCAR VARELA, Cosme. El nacionalismo, una incógnita en constante evolución.
Buenos Aires: Ediciones Tradición – Familia – Propiedad, 1970.
108
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
BERAZA, Luis Fernando. Nacionalistas: la trayectoria política de un grupo polémico (1927-1983). Buenos Aires: Cántaro Ensayos, 2005.
CAPONNETTO, Mario. Combate: 1955-1967: estudio e índice. Buenos Aires: Instituto Bibliográfico “Antonio Zinny”, 1999.
DOLKART, Ronald H. La derecha durante la Década Infame, 1930-1943. In:
ROCK, David et al. La derecha argentina: nacionalistas, neoliberales, militares y clericales. Buenos Aires: Javier Vergara Editor, 2001. p. 151-200.
ECHEVERRIA, Olga. Las voces del miedo: los intelectuales autoritarios argentinos
en las primeras décadas del siglo XX. Rosario: Prohistoria Ediciones, 2009.
FARES, María Celina. La Unión Federal: ¿nacionalismo o democracia cristiana?:
Una efímera trayectoria partidaria (1955-58). Mendoza: Universidad Nacional de
Cuyo, 2007.
FERRARI, Germán. Símbolos y fantasmas: Las víctimas de la guerrilla: de la amnistía a la “justicia para todos”. Buenos Aires: Sudamericana, 2009.
GUTMAN, Daniel. Tacuara, historia de la primera guerrilla urbana argentina. Buenos
Aires: Vergara, 2003.
LVOVICH, Daniel. El nacionalismo de derecha: desde sus orígenes a Tacuara. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2006.
MELÓN PIRRO, Julio. La prensa nacionalista y el peronismo, 1955-1958. In:
BIANCHI, Susana; SPINELLI, María Estela (comp.). Actores, ideas y proyectos
políticos en la Argentina contemporánea. Tandil: Instituto de Estudios Histórico Sociales, 1997. p. 215-232.
NAVARRO GERASSI, Marysa. Los nacionalistas. Buenos Aires: Edit. Jorge Álvarez, 1968.
POTASH, Robert A. El Ejército y la política en la Argentina: de la caída de Frondizi a
la restauración peronista: 1962-1973. Buenos Aires: Sudamericana, 1981.
REIN, Raanan. Argentina, Israel y los judíos: encuentros y desencuentros, mitos y
realidades. Buenos Aires: Ediciones Lumiere, 2001.
ROCK, David. La Argentina autoritaria. Buenos Aires: Ariel, 1993.
ROUQUIE, Alain. Poder político y sociedad militar en la Argentina. Tomo II. Buenos
Aires: Emecé, 1998.
SPINELLI, María Estella. Los vencedores vencidos: el antiperonismo y la “revolución
libertadora”. Buenos Aires: Biblos, 2005.
WALTER, Richard J. La derecha y los peronistas, 1943-1955. In: ROCK, David et
al. La derecha argentina: nacionalistas, neoliberales, militares y clericales. Buenos
Aires: Javier Vergara Editor, 2001. p. 247-274.
109
PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense
ZANATA, Loris. Del Estado liberal a la nación católica: Iglesia y ejército en los orígenes del peronismo, 1930-1943. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 1996.
ZULETA ÁLVAREZ, Enrique. El nacionalismo argentino. Buenos Aires: La Bastilla, 1975.
110
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Escritos de propaganda republicana:
estratégias de publicação e inserção sociopolítica
a partir da atuação de Joaquim Francisco de
Assis Brasil e João Capistrano de Abreu
(década de 1880)
Tassiana Maria Parcianello Saccol
Este ensaio apresenta algumas reflexões sobre a atuação do rio-grandense Joaquim Francisco de Assis Brasil na propaganda republicana no
início dos anos 1880. Nosso objetivo é analisar alguns dos investimentos
realizados por este agente na escrita de ensaios políticos, bem como na sua
publicação e divulgação, numa época em que um mercado editorial bem
estabelecido estava longe de se constituir. Neste sentido, o percurso traçado
por Assis Brasil contava com uma estratégia que acreditamos ter sido realizada por diversos escritores e propagandistas da época e que era fundamental no sentido de facilitar a circulação dos opúsculos: a mobilização de
amigos influentes dentro do incipiente meio editorial – no caso aqui analisado, Capistrano de Abreu. Tal atitude colaborou para que o propagandista tivesse seu nome reconhecido pelos seus pares como um dos principais
divulgadores das ideias republicanas em fins do século XIX.1
1
Joaquim Francisco de Assis Brasil nasceu no município de São Gabriel, no ano de 1857. Seu
envolvimento com a política data de fins da década de 1870, quando ingressou na Faculdade de
Direito de São Paulo. Nesta instituição, estreitou laços com vários jovens que, assim como ele,
também propagandeavam a República. De volta ao Rio Grande, Assis Brasil participou da
fundação do Partido Republicano Rio-Grandense (1882), juntamente com Júlio de Castilhos,
Borges de Medeiros, José Gomes Pinheiro Machado, Venâncio Ayres, Fernando Abbott, Ramiro Barcellos, Demétrio Ribeiro, dentre outros, muitos deles também egressos da Faculdade
de Direito. Como principais líderes do PRR ao longo da década de 1880, este grupo assumiu o
papel de divulgar as ideias republicanas e federativas na província, fazendo-o por meio de
conferências públicas, mas, principalmente, através do jornal oficial do partido, A Federação,
criado em 1884, onde escreviam artigos de doutrinação política. Para mais informações sobre
a trajetória de Assis Brasil, ver Aita (2006).
111
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
A partir da década de 1870 e, com mais força, na década seguinte, as
ideias republicanas e federativas – além de outras, como a secularização
das instituições e a abolição da escravidão – passaram a ser defendidas com
grande entusiasmo por vários grupos sociais e, principalmente, por alguns
membros das elites provinciais brasileiras. Estas ideias encontravam um
importante espaço de recepção e propagação nos liceus e academias do
Império, onde jovens estudantes entravam em contato com a produção teórica estrangeira, ainda que a sua divulgação não se restringisse somente a
estes espaços (ALONSO, 2002; SCHWARCZ, 1993).
Assis Brasil foi um dos membros da elite rio-grandense que ingressou
na Faculdade de Direito de São Paulo e, a partir daí, começou a se familiarizar com as novas ideias e se envolver mais diretamente com a política.
Sabe-se que a passagem pelas academias imperiais tinha grande importância no processo de socialização dos jovens que ingressavam nos quadros
políticos do Brasil (CARVALHO, 2003). Se a frequência a essas instituições
colaborava para a socialização dos moços que ingressariam nos partidos
Liberal e Conservador, elas também foram um espaço de contato importante para os membros da geração de 1870, ou seja, dos indivíduos que guardavam um significativo descontentamento para com a conjuntura monárquica e assumiriam – pelo menos boa parte deles – posições de poder importantes na Primeira República, através dos partidos republicanos.2
Os investimentos de Assis Brasil se concentraram na divulgação das
ideias republicanas e federativas, juntamente com alguns colegas e contemporâneos de Faculdade. A contestação das principais bases do Império por
parte dos jovens integrantes da geração de 1870 se materializava de diversas
formas, dentre elas, produzindo obras doutrinárias, jornais acadêmicos,
formando clubes, agremiações e organizando conferências públicas. É im-
2
Angela Alonso define a geração de 1870 como um movimento (intelectual e político) de contestação às principais instituições e valores do período monárquico. Dele faziam parte vários
grupos em nível nacional que propunham reformas profundas tanto para o Estado quanto para
a sociedade brasileira, em todos os seus aspectos. O fim da escravidão, a secularização das
instituições, o liberalismo econômico e a descentralização político-administrativa eram algumas das principais reivindicações levadas a cabo pelos membros deste movimento. A grande
maioria dos grupos ainda fazia a defesa de um novo regime de governo, o republicano. Dentre
os principais membros da geração de 1870, obtiveram destaque Silva Jardim, Sílvio Romero,
Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, os irmãos Alberto e Campos Salles, Aníbal Falcão, Júlio de
Castilhos e Assis Brasil, dentre outros (ALONSO, 2002).
112
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
portante ressaltar que o próprio ambiente da Faculdade de Direito tornava
estas práticas comuns. Sérgio Adorno destacou a importância das atividades realizadas fora do contexto das relações didáticas estabelecidas entre os
corpos docente e discente naquela instituição. Para o autor, era no ambiente extraensino, onde se reuniam a militância política, o jornalismo, a literatura e a advocacia, que os jovens estreavam na cena política (ADORNO,
1988, p. 92).
O ambiente acadêmico facilitava a formação de laços de amizade
entre os moços de várias províncias que ali estudavam. Além disso, a passagem por estas instituições e o período de residência naqueles centros urbanos possibilitavam o contato com os egressos de turmas anteriores, ou mesmo jornalistas envolvidos com a propaganda republicana. A vida nestas
capitais tinha sua peculiar agitação: eram inúmeros os espaços de sociabilidade – cafés, livrarias, bibliotecas, clubes de discussão – e grandes as possibilidades de encontros, casuais ou não, entre os propagandistas, tanto os
moços recém-estreantes no cenário político, como também aqueles mais
experientes. No caso de Assis Brasil, foi a sua passagem pela Faculdade de
Direito que permitiu que o mesmo criasse laços com João Capistrano de
Abreu, vínculo este intensamente mobilizado para a publicação de seus
livros de propaganda política.3
Os quatro anos (1878-1882) em que Assis Brasil esteve na Faculdade
e residiu em São Paulo foram de intenso investimento na propaganda republicana. De início, fez o movimento que a maioria dos estudantes fazia
naquele tempo. Passou a participar do clube republicano acadêmico, bem
como de alguns jornais de propaganda vinculados ao mesmo. Depois, passou a prestar colaborações eventuais em jornais de maior circulação e também a realizar algumas conferências públicas (AITA, 2002). Seu investimento mais decisivo, e que o ajudou a adquirir notabilidade e prestígio
3
João Capistrano de Abreu foi um historiador, nascido no Ceará no ano de 1853. Seus primeiros
estudos foram feitos em rápidas passagens por várias escolas. Em 1869, ingressou na Faculdade de Direito do Recife, onde conheceu Silvio Romero e Tobias Barreto, entretanto, não chegou a se formar. No ano de 1875, passou a residir no Rio de Janeiro, onde trabalhou na Tipografia Garnier e, logo depois, como bibliotecário da Biblioteca Nacional (1879-1883). Deixou a
Biblioteca para tornar-se lente do Colégio Pedro II. Durante a década de 1880, e quando ainda
era um positivista fervoroso, colaborou para a Gazeta de Notícias, onde propagandeava a República. Escreveu vários livros no âmbito da História (RODRIGUES, 1977).
113
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
entre seus pares, foi a publicação de seu primeiro ensaio político, A República Federal (1881).4 Vejamos, a partir de agora, como isto se deu.
I
Após ter acumulado razoável experiência com as letras, escrevendo
durante dois ou três anos para periódicos diversos, Assis Brasil decidiu-se
pela escrita e publicação de um livro de divulgação das ideias republicanas.
Assim como ele, vários outros propagandistas realizavam o mesmo procedimento. Daí que inúmeras obras que propunham reformas de cunho político foram publicadas ao longo dos anos 1880.
Angela Alonso analisou grande parte da produção intelectual dos
membros da geração de 1870, destacando que os livros faziam parte de uma
estratégia de propaganda e persuasão deste grupo. Para a autora, a maior
preocupação destes jovens era o adensamento do debate público em torno
dos temas teóricos (questão religiosa, centralização política, abolição da
escravidão e imigração), especialmente nos termos de Comte e Spencer.
Daí que, conforme Alonso, “os livros não eram obras teóricas que visassem
à formulação de sistemas filosóficos próprios”; pelo contrário, “eram escritas em poucos meses por gente muito jovem, recém-formada ou ainda nos
bancos das faculdades, muitas vezes compilando simplesmente artigos antes saídos em jornais estudantis” (ALONSO, 1999, p. 13-14).
Participar efetivamente de jornais de propaganda era o primeiro passo a ser dado por aqueles que desejavam se inserir no debate político da
época. Assis Brasil assinara vários artigos em jornais acadêmicos e mesmo
em periódicos de maior circulação. A atividade constante colaborava para
que, pouco a pouco, o nome do autor fosse se tornando conhecido entre os
pares, mas também entre o círculo de leitores da época. Cumprida esta
etapa, um bom investimento para os que quisessem se manter no debate
político era a publicação de ensaios de maior fôlego. A publicação de um
livro, se comparado aos periódicos, exigia um esforço mais individualizado
4
A versão utilizada para análise é Assis Brasil (1998). A República Federal tratava de três temas
relacionados: a primeira parte contemplava as formas de governo, onde era ressaltada a superioridade da República e sua oportunidade no Brasil. Uma segunda parte era dedicada à federação, evidenciando a inclinação do Brasil para esse sistema administrativo, e um último item
trazia a defesa do sufrágio universal como forma de viabilizar a democracia.
114
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
por parte de seu autor, seja em termos financeiros, seja no que dizia respeito ao investimento intelectual empregado. Entretanto, mesmo no caso dos
livros, seus autores não dispensavam algum auxílio externo. Mais do que
isso, era bastante comum que os jovens escritores mobilizassem pessoas
mais experientes ou melhor posicionadas no campo das letras, a fim de
facilitar a publicação e a circulação de suas obras.
Assis Brasil valeu-se do fato de residir em São Paulo para investir em
sua publicação. Provavelmente tentar fazê-lo residindo no Rio Grande dificultaria muito o processo. Mas ainda que residindo em uma das capitais
culturais da época, o percurso para se publicar um livro encontrava algumas dificuldades.5 Logo, acionar um amigo que contasse com certa experiência nesse sentido e já conhecesse os procedimentos a serem realizados se
apresentava como uma importante estratégia. Nesse sentido, os vínculos
sociais estabelecidos na Faculdade e a partir dela foram de grande utilidade. Na academia, Assis Brasil criou laços com o carioca Valentim Magalhães, com quem, inclusive, dividia alguns trabalhos jornalísticos, onde defendiam as causas republicana e abolicionista. O vínculo criado com Magalhães possibilitou o contato entre Assis Brasil e Capistrano de Abreu. A
amizade travada entre eles traria inúmeras vantagens ao rio-grandense. De
fato, a mobilização do amigo Capistrano de Abreu colaborou não só para a
publicação dos dois principais opúsculos de Assis Brasil, mas também abriulhe espaço para outras atividades intelectuais, conforme veremos a seguir.
De fato, numa sociedade onde as relações interpessoais eram extremamente importantes, os laços existentes entre os agentes eram mobilizados com muita frequência, e visando a consecução de diversos objetivos.
Vários autores têm demonstrado a importância de se levar em conta os
circuitos de relacionamento em que os agentes históricos estavam inseridos
e a partir dos quais produziam suas ações.6 No emaranhado de ligações
pessoais que os agentes estavam envolvidos – e que inclui laços de parentesco, relações de amizade e mesmo relações verticais – interessam-nos, em
especial, os vínculos de amizade. José María Imízcoz caracterizou estes
A respeito destas dificuldades, veja-se, por exemplo, os trabalhos de Morel; Barros (2003) e
Cavenaghi (2011).
6
Vejam-se os estudos sobre redes de relações que partiram de investigações acerca de comunidades do Antigo Regime, em especial, os trabalhos de Mitchell (1974); Imízcoz (2004); Bertrand
(1999); Moutoukias (2000).
5
115
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
laços como “um vínculo social especialmente operativo, uma relação de
confiança e reciprocidade, que dava lugar a um intercâmbio de favores e
serviços” (IMÍZCOZ, 2010, p. 32).
Conforme já mencionamos, após o pedido de auxílio por parte de
Assis Brasil, Capistrano de Abreu teve colaboração fundamental na publicação dos livros do rio-grandense. A ajuda que o cearense concedeu ao
amigo pode ser vista a partir da correspondência que ambos trocaram. Infelizmente, só tivemos acesso às cartas enviadas por Capistrano a Assis Brasil.
Provavelmente as missivas escritas pelo rio-grandense ao amigo também
tivessem importantes informações qualitativas que enriqueceriam nossa
análise. Mesmo assim, cremos que o conjunto de cartas que nos está disponível contém dados importantes a respeito da relação travada entre Assis
Brasil e Capistrano e, especialmente, de como este laço foi mobilizado pelo
primeiro, em momentos-chave ao longo da propaganda republicana.
Sendo assim, em uma das primeiras cartas do conjunto analisado,
Capistrano de Abreu já faz referência ao fato de ter lido as provas do livro
que Assis Brasil pretendia publicar – A República Federal. Do mesmo modo,
é possível perceber que o mesmo objetivava expor ao seu círculo de amigos
a produção do rio-grandense. Escreveu ele:
Assis Brasil,
Já ontem lhe escrevi dando-lhe notícia de sua comissão; escrevo-lhe, porém,
novamente, para responder a sua carta de 10.
Começo desde logo retirando o oferecimento que fiz de rever as provas.
Venha, venha. Não tenha medo do meio, não tenha medo de nada. Há de
conservar-se refratário; há de com sua presença concorrer para elevar e purificar.
Vou comunicar sua vinda provável a Patrocínio. Quer isto dizer que V. há de
fazer uma conferência; apronte-se, pois, desde logo. [...]
Outras cousas que não posso deixar de lhe pedir. Traga as Chispas e a coleção dos jornais em que tem colaborado para a Biblioteca. Traga os documentos para a Exposição. Apronte-se também para tomar parte nas conferências de História do Brasil. O questionário está quase pronto, e entre as
questões algumas existem que V. tratará proficientemente [...].7
A partir da leitura do fragmento acima, é possível tecer alguns comentários. Em um primeiro momento, percebe-se o interesse de Capistrano pelos escritos de propaganda de Assis Brasil, tanto é que solicitava ao
7
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 12 de março de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 73.
116
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
amigo que trouxesse exemplares de tudo quanto já havia produzido – inclusive de seu primeiro livro de poemas revolucionários e anticlericais (Chispas) – para expor na Biblioteca Nacional, seu local de trabalho, provavelmente, para divulgá-los ao seu círculo de amigos e frequentadores da instituição.8 Por outro lado, Capistrano mencionou ter lido as primeiras provas
do livro que Assis Brasil desejava publicar, procurando tranquilizar o mesmo em relação à sua primeira investida naquele meio.
Além disso, a missiva sugere a importância de Capistrano como ponto de contato de Assis Brasil com outros republicanos, tais como José do
Patrocínio, afamado jornalista e abolicionista da época. De fato, Capistrano parece ter iniciado o amigo em meio ao núcleo de propagandistas que
atuavam no Rio de Janeiro, abrindo brechas em um espaço onde o próprio
Assis Brasil parecia ter algum receio de se colocar. Não obstante, o fato de
Capistrano ser empregado da Biblioteca Nacional permitia a organização
de algumas publicações e eventos, como as conferências das quais convidou
Assis Brasil a fazer parte. Portanto, a própria posição ocupada por Capistrano na instituição permitia que, pouco a pouco, o mesmo pudesse introduzir
Assis Brasil no espaço de debates políticos da capital do Império.
Mas tratemos de forma mais aprofundada da publicação do livro.
Capistrano era um homem letrado e bem-relacionado. Além dos conhecimentos acerca do meio editorial e dos contatos que o cargo ocupado na
Biblioteca lhe proporcionavam, o mesmo havia acumulado certa experiência, fruto de trabalhos anteriores, quando foi funcionário da Tipografia
Garnier. Logo, Capistrano reunia vários atributos capazes de facilitar ou,
pelo menos, agilizar a publicação do livro de Assis Brasil. De fato, ele não
mediu esforços em relação àquele pedido de auxílio. Na correspondência
trocada, percebe-se que Capistrano se encarregou pessoalmente de entrar
em contato com as principais tipografias do Rio de Janeiro, verificando os
custos da publicação. Feito isso, escreveu ao amigo, opinando a respeito da
decisão a ser tomada:
Deixei cair a alma aos pés... quando soube que Leuzinger, que eu julgava ser
o mais caro de todos, é exatamente o mais barato.
Um meu colega, que com ele falou, disse que ele fará a impressão por 35$ incluindo a brochura. À vista disso, nem é bom pensar nos outros dois, que,
inferiores como artistas, só levam-lhe vantagem por serem mais careiros.
8
O livro referido é Assis Brasil (1877).
117
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
[...] A vista disso, tendo-lhe submetido as propostas das três melhores tipografias, fico à espera de sua decisão.9
A escolha da tipografia era uma decisão bastante importante, não só
em função do custo final da publicação, mas principalmente pelo prestígio
da mesma, que agregava certo diferencial positivo ao livro. Não é à toa que
Capistrano enviou ao amigo as propostas daquelas que considerava as três
melhores tipografias da cidade e que exaltou as qualidades de Leuzinger
como artista, em detrimento dos outros dois tipógrafos que ele mesmo havia procurado. Portanto, após entrar em contato com aquelas que considerava as melhores tipografias, Capistrano apontou para o amigo a melhor
decisão a ser tomada, ainda que ao final da missiva afirme aguardar a decisão de Assis Brasil.10
Mas se Capistrano teve influência sobre esta importante decisão, também fez várias sugestões, auxiliando o amigo a respeito de detalhes mais
práticos, tais como a escolha do tipo de folha e brochura a serem utilizados
no livro. Embora estas questões pareçam, em um primeiro momento, sem
importância, através das palavras de Capistrano é possível perceber o quanto Assis Brasil não possuía entendimento delas, o que tornava ainda mais
importante o seu auxílio, inclusive nestes detalhes. Disse Capistrano ao
amigo:
[...] o tipo de papel escolhido para A República Federal tem todas as qualidades, menos uma: servir para ela. É muito grande e feita com ele a impressão
não teria o chic e o fini que V. deseja como artista.
À vista disso, resolvi sustar a impressão até receber resposta sua. Leuzinger
tem muito bons e elegantes tipos, excetuando os dois que V. exige.
Se faz questão do elzevier, passemos para o Lombaerts, que o tem. Se não,
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 15 de março de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 74.
10
A Casa Leuzinger, propriedade do suíço George Leuzinger, funcionava como oficina de gravura, tipografia, litografia e ateliê fotográfico. O estabelecimento de Leuzinger teve grande
importância como casa editorial, tendo publicado, entre outros, o Catálogo da Exposição de
História do Brasil, organizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, entre 1881 e 1882.
A Casa imprimiu livros de muitos autores, dentre eles Alfredo Taunay, Joaquim Nabuco e o
próprio Capistrano de Abreu. Além dos livros, também produziu inúmeras revistas e jornais
ilustrados. Leuzinger participou de quatro edições da Exposição Nacional, no Rio de Janeiro,
e das Exposições Universais de Viena, em 1873, de Antuérpia, em 1885, e de Paris, em 1867 e
1887. Portanto, trata-se de uma instituição que já contava com prestígio considerável a época
da publicação do livro de Assis Brasil. Para mais informações sobre a Casa Leuzinger, ver
Borges (2004).
9
118
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
fiquemos mesmo no Leuzinger, que lhe imprimiria melhor do que qualquer
outro e, principalmente, com mais brevidade e barateza.11
A leitura do fragmento aponta para as intervenções sem muitos rodeios de Capistrano de Abreu. Na verdade, ele parecia se sentir bastante à
vontade não só para expressar suas opiniões, mas também para interferir
nas decisões a serem tomadas. Tal pode ser visto não só no que dizia respeito à escolha do papel a ser utilizado na publicação, mas também no que se
referia ao acabamento do livro e ao número dos exemplares especiais a
serem encomendados, conforme se vê no trecho a seguir:
Em sua última carta, mandou-me amostra do papel que prefere para os números especiais. Não escolhi, porém, daquele, porque no Leuzinger há superiores. O número de exemplares especiais V. não fixou precisamente; por
isso contratei com Leuzinger que seriam cinquenta.12
Como se vê, o acompanhamento da publicação do livro por parte de
Capistrano de Abreu foi constante. Várias decisões relativas ao conjunto da
obra, fossem elas de maior ou menor complexidade, contaram com a opinião de Capistrano, quando ele mesmo não as tomou sozinho. É bem verdade que, a partir da leitura das cartas, é possível concluir que havia uma
relativa demora na comunicação, agravada pelo próprio fato de algumas
missivas terem se perdido, o que talvez tenha influenciado para que Capistrano tomasse algumas decisões sem ouvir as opiniões de Assis Brasil. Por
outro lado, é possível depreender da leitura da correspondência a existência de uma relação de intimidade e confiança entre ambos. Não é coincidência que Capistrano se mostrasse bastante seguro ao expressar suas opiniões e informar ao amigo as decisões tomadas, ainda que elas contrariassem as intenções primeiras do autor da publicação. Lembre-se ainda que a
experiência de Capistrano em questões editoriais certamente contribuía para
a confiança que Assis Brasil depositava nele, bem como para o grau de
liberdade que exercia na tomada de decisões a respeito da incumbência que
recebera.
Mas Capistrano não se limitou a opinar sobre os aspectos externos
referentes à publicação do livro. Em uma das missivas enviadas, o mesmo
sugere o fragmento de um ensaio que poderia servir como epígrafe à obra
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 06 de abril de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 75.
12
Ibid., p. 75-76.
11
119
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
de Assis Brasil: “Encontro agora em Michelet o seguinte trecho, que pode
servir de epígrafe a República Federal, e que por isso copio”.13 Além disso, o
republicano cearense se dera ao trabalho de revisar as provas e as primeiras
páginas impressas do livro: “Como me prometera, hoje, deu-me Leuzinger
as primeiras provas. Lendo-as ligeiramente, antes como amador do que como
revisor, reconheci que no geral estão limpas. À vista disso não continuei a
revisão, e dora em diante não exigirei mais duas provas de paquet”.14 Logo,
percebe-se que o cearense realizou ações bastante diversas no que se refere
ao acompanhamento da publicação.
Em outra missiva, Capistrano expõe sua opinião pessoal a respeito
do conteúdo do livro, enfatizando a sua não concordância com algumas
das ideias veiculadas pelo autor:
Agora outro ponto. Pela primeira vez li hoje a República Federal e, francamente, gostei muito. O prólogo está como uma de suas grandes poesias, com
o mesmo sopro vasto, inspiração concentrada e soído metálico. Quanto ao
corpo, existem entre nós divergências que ainda não posso calcular até onde
irão; mas devo reconhecer que V. argumenta com lucidez, com elevação e
calor, que torna simpáticas suas ideias e muito, mesmo muito interessante a
leitura.15
Capistrano de Abreu era adepto da leitura e doutrina positivista, ao
passo que Assis Brasil guardava certas ressalvas à mesma. Este último chegara a declarar-se, em certo momento, inclinado a aceitar o método, mas
não a doutrina do filósofo francês.16 Daí o cearense apontar as divergências
que dizia não saber até onde iriam, pois ambos idealizavam a República e
sua instauração no Brasil de formas diferenciadas. De fato, em meio ao
turbilhão de novas ideias que circulavam em fins do século XIX, é possível
detectar a existência de pontos de debate compartilhados pela maioria dos
propagandistas. Por outro lado, também existiam algumas divergências entre
eles. Exemplo disso é que a maioria dos membros da geração de 1870 concordava a respeito da necessidade de se instalar uma República, mas discordava quanto à forma que o novo regime deveria assumir.17 Mesmo assim, tal
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 11 de março de 1881. In: ibid., p. 72.
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 20 de abril de 1881. In: ibid., p. 78.
15
Ibid., p. 79.
16
Manifesto de 1891 – Assis Brasil aos seus concidadãos. In: BROSSARD (org.), 1989, p. 44.
17
Também a questão abolicionista era vista sob múltiplos pontos de vista. Sobre as especificidades, convergências e divergências entre os diferentes grupos da geração de 1870, ver Alonso
(2002).
13
14
120
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
era o descontentamento com a Monarquia que estas divergências eram
minimizadas em prol de uma solidariedade que beneficiava a todos os propagandistas e incluía o auxílio na circulação dos livros de divulgação destas
novas ideias – pelo menos enquanto a hora decisiva de se pensar o modelo
republicano a ser instalado não chegasse.
Tamanha era a importância das solidariedades que existiam entre os
propagandistas e se traduziam em ações práticas tais como o auxílio de
Capistrano de Abreu na publicação do opúsculo de Assis Brasil que, em
uma das missivas enviadas, Capistrano procurou tranquilizar o amigo quanto
à concretização do mesmo. Explique-se: ao mesmo tempo em que prestava
esse favor ao amigo, Capistrano esteve envolvido com o seu noivado e casamento, o que parece ter causado certa preocupação a Assis Brasil quanto ao
andamento da publicação. Tentando acalmá-lo, Capistrano pontuou: “[...]
já vê, portanto, que não há perigo de que, no meio de um noivado que já
passou, esqueça-me de sua incumbência. Ao contrário, há probabilidade
de que quantas incumbências me forem cometidas sejam melhor executadas, porque duplicaram os órgãos”.18
A incumbência que Assis Brasil havia dado a Capistrano de Abreu
parece ter sido muito bem desempenhada. Dada a lume no ano de 1881, A
República Federal foi muito bem recebida pela crítica – vários jornais teceram inúmeros elogios à obra e ao seu autor –, tornando-se referência entre os
livros de propaganda republicana e circulando por vários espaços sociais. O
republicano mineiro Lúcio de Mendonça se referiu ao livro como “uma
bela obra, de traços largos e vigorosos, e tão claros e firmes que maravilham
um escritor de tão poucos anos”. Além disso, sustentou que o livro de Assis
Brasil, “[...] magnificamente escrito, magnificamente impresso, pode, com
muita justiça, contar-se entre os melhores de nossa escassa literatura científica”.19 Em outra oportunidade, referiu-se a Assis Brasil como “um dos mais
esforçados lutadores da causa republicana e, um dos nomes mais respeitados da nossa política militante”.20 Já o jornal A Província de São Paulo, editado por Rangel Pestana e Américo de Campos, considerou o livro “uma
importantíssima obra de doutrina política que haverá de trazer muita glória
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 11 de abril de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 77.
19
Jornal O Colombo, 26.07.1881. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
20
Jornal O Colombo, 08.11.1882. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
18
121
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
ao seu autor”. Para o editorial, “a argumentação vigorosa, a linguagem
corrente e o estilo simples, mas elegante, imprimem no dizer do Sr. Assis
Brasil um toque convincente que lhe abrirá largo caminho para a conquista
do povo em favor da ideia que defende e evangeliza”.21
Como se vê, o livro circulou por vários espaços sociais, tendo sido
elogiado por alguns dos líderes republicanos das províncias de São Paulo e
Minas Gerais.22 Tamanho foi o sucesso do livro que o mesmo era indicado
como leitura obrigatória na Academia Militar do Rio de Janeiro23 e, em
São Paulo, o Partido Republicano chegara a subsidiar e distribuir gratuitamente uma segunda edição da obra aos seus filiados.24 Além disso, o livro
de Assis Brasil teve influência na construção da obra de Alberto Salles,
Política Republicana (1882), publicada um ano depois e que continha vários
aspectos semelhantes ao livro do rio-grandense.25 Portanto, temos indícios
de que o livro circulou por alguns espaços onde o movimento republicano
foi bastante expressivo: as províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
Gerais (BOEHRER, 1950).
No Rio Grande do Sul, terra natal de Assis Brasil, o livro foi lido
pelos seus correligionários da fronteira, já que os clubes republicanos locais
adotaram como meta distribuí-lo aos seus sócios.26 Mesmo em terras de
além-mar, o livro se tornou conhecido: A República Federal foi alvo de muitos comentários entre os republicanos de Lisboa, tendo sido resenhada em
uma revista de grande circulação.27 Ou seja, a obra de Assis Brasil alcançou
grande notabilidade entre os republicanos, fosse entre aqueles que atuavam
em prol da propaganda em nível local, participando dos clubes, fosse entre
as figuras de maior expressão política na época, que costumavam participar
Jornal A Província de São Paulo, 08.07.1881. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Para mais informações a respeito da circulação do livro e os comentários realizados por outros
jornalistas, ver Saccol (2013).
23
CASTRO, 1995, p. 81.
24
ALONSO, 2002, p. 223.
25
Para mais informações sobre as proximidades entre estas duas obras, ver Mello (2010).
26
Livro de Actas do Clube Republicano de São Gabriel. Museu João Pedro Nunes (São Gabriel).
Sessão de 15 de dezembro de 1885.
27
MATTOS, Júlio de. A República Federal, por Assis Brasil. O Positivismo: Revista de Filosofia,
ano 3, n. 6, p. 438, ago./set. 1881. Acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa. Júlio de Mattos
era cunhado de Theophilo Braga, um dos principais propagandistas republicanos de Lisboa,
com quem dividia a direção da Revista. Para mais informações sobre a circulação do livro de
Assis Brasil entre os republicanos portugueses, ver Saccol (2013).
21
22
122
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
de periódicos diversos e, portanto, tinham influência sobre o círculo de leitores.
Neste sentido, o auxílio e a amizade de Capistrano – estrategicamente bem posicionado no incipiente mercado editorial da Corte – foram fundamentais para o alcance e o sucesso da obra. Leitor atento, ele enxergou
as capacitades intelectuais do jovem rio-grandense e ofereceu um voto de
confiança ao mesmo, “apadrinhando” a sua publicação. A colaboração de
Capistrano de Abreu foi tão essencial a ponto de ele ser mobilizado mais
uma vez, agora para prestar auxílio na publicação do segundo livro do
mesmo autor.
II
Publicada A República Federal, os laços sociais com Capistrano de
Abreu foram acionados novamente, desta vez para auxiliar na publicação
de outro livro de Assis Brasil: História da República Rio-Grandense.28 O livro
seria uma edição comemorativa ao 47º aniversário da Revolução Farroupilha, lançada sob encomenda do Club Vinte de Setembro, agremiação que reunia os estudantes rio-grandenses da Faculdade de Direito de São Paulo.29 A
nova obra consistia em uma espécie de resposta política a uma publicação
anterior, o livro de Tristão de Alencar Araripe, Guerra Civil no Rio Grande do
Sul (1881).30 Neste volume, o ex-presidente da província do Rio Grande do
Sul oferecia a sua visão sobre os acontecimentos da Revolução Farroupilha, visão esta que os rio-grandenses consideravam distorcida. No novo projeto levado a cabo por Assis Brasil, o amigo Capistrano de Abreu também
assumiu papel importante, fazendo circular algumas informações referentes ao livro de Araripe, bem como, mais uma vez, auxiliando na publicação
e circulação do livro-resposta, escrito por Assis Brasil.
A versão que utilizamos para análise é Assis Brasil (1981).
O livro, como seu próprio título sugere, tinha como objetivo principal narrar os principais
fatos da Revolução Farroupilha (1835-1845). Seu autor aborda as principais causas que deflagraram o movimento, aponta alguns dos principais fatos políticos e militares ocorridos durante a Revolução e encerra sua narrativa com a instauração da República Rio-Grandense, no
ano de 1836. Uma análise da construção do livro História da República Rio-Grandense, bem
como do uso político do mesmo no sentido de legitimar o PRR a partir de uma identificação
dos membros deste partido com os ideais expressos pelos farrapos na Revolução de 1835, pode
ser vista em Grijó (2010).
30
Araripe (1881).
28
29
123
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
A ação de Capistrano, ao fazer circular informações sobre a publicação de Araripe foi bastante importante, na medida em que Assis Brasil pôde
valer-se delas no preparo de seu próprio livro. Disse Capistrano a Assis
Brasil em umas missivas enviadas: “Tenho que dar-lhe uma notícia: o livro
do Araripe sobre a Guerra dos Farrapos está pronto até o fim do mês. Quero ver se consigo que V. seja a primeira pessoa de São Paulo que o leia”.31
As informações privilegiadas eram fruto de um contato pessoal nutrido entre
ambos: “Disse-me ele ontem, no bonde, que sabe que os rio-grandenses
não hão de gostar muito do seu livro; mas que não se preocupa com isto,
porque, no meio de reclamações interessadas, hão de vir clamores justos e
talvez documentos curiosos, que tragam a luz e a verdade”.32
Em outra oportunidade, Capistrano sinaliza cumprir com o prometido, conforme escreve na missiva: “Foi hoje publicado o livro do Araripe. Se
ele tiver mandado para a Gazeta, hoje mesmo lhe enviarei o exemplar que
prometi, se não, irei a casa dele, e amanhã mandarei”.33 Portanto, Capistrano de Abreu exerceu novamente um importante auxílio, buscando as informações referentes ao livro de Araripe e repassando-as com extrema rapidez
a Assis Brasil, que tanto interesse demonstrava nelas.
Como Capistrano previra, os rio-grandenses não gostaram do livro
de Araripe, tanto é que no prefácio da obra de Assis Brasil, publicada no
ano seguinte, o autor pontuava que o escrito de Araripe era uma construção de elementos que estavam desconexos, e que tal era a sua discordância
com as ideias do autor e mesmo quanto à exatidão de alguns fatos, “ [...]
que devo confessar que no seu livro bebi a inspiração de escrever o meu”.34
De tal modo, o processo de verificação de dados e informações sobre a
Revolução para a escrita do livro de Assis Brasil ganhava maior importância. De fato, numa década em que a preocupação com o método era uma
constante, a busca por fontes, documentos e depoimentos de pessoas que
testemunharam os fatos era importante para a escrita da história, especialmente para a escrita da história de uma revolução “difamada” por publicação anterior.
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 20 de abril de 1881. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 79.
32
Ibid., p. 79.
33
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 05 de maio de 1881. In: ibid., p. 80.
34
ASSIS BRASIL, 1998, p. 22-85.
31
124
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Júlio de Castilhos, amigo e companheiro do Club Republicano RioGrandense, foi acionado no sentido de entrar em contato com indivíduos
que pudessem dispor de documentos úteis para a escrita do livro de Assis
Brasil. Em correspondência escrita a Apolinário Porto Alegre35, Castilhos
expressou o desapontamento dos rio-grandenses para com o livro de Araripe, apontando que a obra encomendada pelo Clube tinha como finalidade
“[...] rememorar a Revolução de 1835, restabelecendo ao mesmo tempo a
verdade dos sucessos que tão adulterados têm sido (como acabou de sê-lo
em uma memória do Conselheiro Alencar Araripe)”.36 Em outro fragmento da carta, Castilhos faz o pedido de auxílio ao velho professor, falando
em nome do Clube e, em especial, em nome do amigo Assis Brasil:
Mas para escrever um livro de tal natureza precisamos de bases seguras e
diretoras, como documentos, dados, informações etc. É exatamente isso o
que venho lhe pedir.
Com meus companheiros, espero – fora supérfluo acrescentar – que o distinto correligionário não se recusará a auxiliar-nos o mais que lhe for possível,
fornecendo-nos para aquele fim tudo o que puder obter, principalmente sobre os sucessos da revolução de 1835.
Tomo a liberdade de lembrar que na biblioteca ou na coleção da Revista do
Parthenon, há, segundo estou informado, muitos e preciosos documentos
sobre o mesmo movimento revolucionário. Se não for possível enviar-nos o
original, ainda mesmo com a condição de prontamente devolver, rogo-lhe o
especial obséquio de enviar-nos, ao menos, a cópia.
Contamos com o seu apoio e, portanto, com a sua indispensável coadjuvação.37
É possível perceber que a busca por documentos que tornassem evidente uma nova versão dos fatos da guerra se tornou bastante importante
dentro do processo de construção do livro. Capistrano de Abreu também
participou desta empreitada, ajudando Assis Brasil a verificar alguns fatos
da Revolução, contatando conhecidos no Rio de Janeiro, dentre eles o professor Antônio Alves Pereira Coruja. Disse ele: “Está aqui o Coruja, com
Apolinário Porto Alegre nasceu no Rio Grande do Sul, no ano de 1844. Em 1861, ingressou
na Faculdade de Direito de São Paulo, entretanto, não concluiu o curso em função do falecimento de seu pai. Retornando ao Rio Grande, passou a trabalhar como professor particular e
a divulgar a causa republicana através da imprensa. Fundou e dirigiu dois estabelecimentos de
ensino em Porto Alegre e foi um dos membros fundadores e mais atuantes da Sociedade Parthenon Literário (1868-1880) (fonte: MARTINS, 1978, p. 452).
36
Correspondência de Júlio de Castilhos a Apolinário Porto Alegre. São Paulo, 28 de maio de
1881 (APA-056 – Arquivo Pessoal Apolinário Porto Alegre – IHGRGS).
37
Ibid.
35
125
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
quem conversei sobre o caso do Vicente Ferrer. Diz ele que ocorreu em
Porto Alegre, que foram-lhe cortadas as orelhas e que Marques Alfaiate as
teve em seu poder [...]”.38 Em outra oportunidade, afirmou Capistrano:
“Estive ontem conversando sobre a Revolução com o major Fausto de Sousa. Disse-me ele que na restauração de Porto Alegre, Manuel Marques não
passou de instrumento e que os documentos comprobatórios desta asserção estão no Arquivo Público”.39 Ou seja, Capistrano de Abreu não só fez
circular as informações a respeito do livro de Araripe, como também pesquisou informações e testemunhos da época para auxiliar Assis Brasil em
sua empreitada, seja através da coleta de depoimentos orais, seja da indicação de documentos comprobatórios (e seu local de guarda) – que poderiam
colaborar para conferir um caráter mais científico à obra do jovem propagandista.
O conjunto de cartas trocadas entre Capistrano de Abreu e Assis Brasil e que trata da publicação de História da República Rio-Grandense é muito
menos numeroso se comparado ao número de missivas que versam sobre a
editoração de A República Federal. Ainda assim, depreende-se pela leitura
das mesmas que Capistrano prestou o mesmo tipo de auxílio concedido
anteriormente. A carta que aponta para uma ação diferenciada realizada
por Capistrano sugere seu importante papel na divulgação do livro e na
tentativa de fazer circular, através da imprensa, informações e comentários
sobre o texto recém-publicado. Para isso, distribuiu pessoalmente alguns
exemplares a pessoas influentes, livrarias e jornais de maior prestígio na
Corte. Em suas palavras:
Acabo de chegar da casa do Leuzinger, donde trouxe 10 exemplares para
distribuir pelos jornais. Já entreguei o do Globo; vou entregar ao Araripe Jr.
o dele, que servirá ao mesmo tempo para a Gazeta da Tarde; o que assim
economizei darei ao Teixeira de Melo. Os outros distribuirei amanhã. Deixei um na vitrine da Faro e Lino para ser exposto: amanhã somente é que
será exposto à venda. [...]
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil. 19 de setembro de 1882. In: RODRIGUES (org.), 1977, p. 82. Dias depois, nova missiva trazia informações importantes: “Por
uma casualidade encontrei-me com Carlos Jansen, que era muito amigo de Berlink, e trabalhou com ele no Cruzeiro. Perguntei-lhe pela casa da viúva e pela biografia do Duque de Caxias”. Em outro trecho, na mesma carta dizia: “Relativamente a Cunha, nada lhe posso dizer
agora. Vou falar com o Paz, que se deve dar com ele, ou com o Bocayuva. Do que houver de
novo lhe darei notícia” (Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 28 de setembro de 1882. In: ibid., p. 82).
39
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 19 de setembro de 1882. In: ibid., p. 81.
38
126
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Penso que o livro será bem vendido, não só porque foram muito apreciados
os extratos que deu A Gazeta, como, porque o preço torna-o muito acessível.
[...] Se suceder, porém, o contrário, pois tudo é possível neste inverossímil
Rio de Janeiro, é melhor, passado certo tempo, levantar o preço.40
No auge da propaganda republicana, o objetivo daqueles que escreviam
livros e artigos em periódicos não era o de obter lucro com tais publicações,
mas sim fazê-las circular, veiculando as ideias e valores defendidos. Neste
sentido, algumas práticas eram comuns e necessárias, à medida que se objetivasse uma circulação mínima das obras recém-publicadas em um espaço
que o próprio Capistrano considerava imprevisível. Além de estabelecer
um preço de venda acessível, o envio de exemplares a alguns jornalistas
notáveis, especialmente àqueles com os quais se nutria uma relação amistosa, constituía-se em importante estratégia. Através de comentários elogiosos nas páginas de seus periódicos, esses jornalistas poderiam agregar certo
valor simbólico ao livro, aumentando a curiosidade do público leitor a seu
respeito. Conhecer essas “regras” era um passo importante a todos aqueles
que quisessem investir na escrita e divulgação de livros, tal como Assis Brasil o fez. Inexperiente nesses assuntos, mas agindo de forma pragmática,
mobilizou os laços existentes com o amigo Capistrano, aproveitando-se do
conhecimento prático e das próprias relações pessoais com jornalistas que
não ele, mas o amigo possuía.
É necessário ressaltar que Capistrano de Abreu, talvez o contato de
maior importância e também o que mais vezes foi acionado pelo rio-grandense, era apenas um dos tantos indivíduos que integravam uma rede de
relações maiores, da qual Assis Brasil fazia parte. Tal rede social era formada por republicanos de várias partes do Brasil e era constantemente mobilizada no sentido de propagandear as novas ideias e fazer circular os escritos
políticos de seus membros. Logo, através dela, as novas ideias eram divulgadas com maior rapidez, especialmente dentro de um contexto onde os
republicanos se constituíam como minorias políticas e precisavam valer-se
de diferentes estratégias para ganhar visibilidade e atrair outras pessoas para
as hostes republicanas.41
40
41
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 05 de maio de 1881. In: ibid., p. 80.
Para mais informações a respeito, ver Saccol (2013).
127
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
Considerações finais
Como se viu, os dois livros de Assis Brasil foram alvo de constantes
elogios por parte de afamados jornalistas da época, que escreviam em alguns dos periódicos de maior circulação daqueles anos. Esses comentários
colaboraram para que Assis Brasil se tornasse um nome bastante reconhecido pelos pares republicanos. Sua República Federal foi considerada um dos
melhores livros de propaganda na época e seu autor, um dos talentos mais
brilhantes daquela geração. Tamanho foi o sucesso do livro entre os republicanos e, possivelmente, entre o círculo de leitores da época, que a República Federal chegou a ser reimpressa seis vezes ao longo da década de 1880.42
Esse indicativo aponta que, de alguma forma, para além da capacidade
intelectual do autor, o percurso seguido pelo mesmo visando publicar e
fazer circular seus opúsculos foi, no mínimo, eficaz.
Não é certo que existisse um percurso adequado e que garantisse o
sucesso no que se referia às publicações. Entretanto, os passos seguidos
por Assis Brasil, e que combinaram a busca de auxílio de um amigo experiente no ainda incipiente meio editorial, a escolha de uma tipografia de
renome e alcance considerável, o cuidado com o acabamento da obra, a
distribuição do livro a pessoas influentes e periódicos de grande circulação, parecem ter sido um bom investimento por parte do autor. Na realização de todas estas etapas Capistrano de Abreu teve papel fundamental,
e, de modo geral, é possível dizer que, sem a sua colaboração, o processo
de publicação dos livros de Assis Brasil teria sido muito mais tortuoso.
Capistrano conhecia os meandros do círculo editorial e, isto, sem dúvida,
foi de grande valia.
Contudo, é preciso considerar que ambos tinham interesse em divulgar as ideias republicanas e isso, muito provavelmente, colaborou para a
concretização deste auxílio.43 Por outro lado, a relação pessoal cultivada
entre os dois não pode ser minimizada, pois a correspondência por eles
42
43
ALONSO, 2002, p. 223.
Mesmo na semana em que ocorreu seu casamento, os assuntos políticos não foram deixados
de lado, conforme atesta Capistrano: “Mesmo o grande e gravíssimo momento não me impediria de, mesmo esta semana, prestar à República toda a atenção de que é digna e de que sou
capaz” (Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 29 de março de 1881. In:
RODRIGUES [org.], 1977, p. 75).
128
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
trocada também é permeada por detalhes de seus encontros e de indícios da
amizade que existia entre eles. Exemplo disso é que, próximo ao dia de
formatura de Assis Brasil, Capistrano escreveu ressentido ao amigo, expressando o quanto gostaria de participar daquele momento, ainda que não
pudesse fazê-lo: “Estava esperando tirar a sorte grande para ir assistir à sua
formatura. Vã esperança. Sinto pelo que perco”.44
A relação de amizade entre Capistrano de Abreu e Assis Brasil perdurou por vários anos e o laço existente entre ambos foi mobilizado várias
outras vezes, gerando inúmeras trocas. No que se refere ao mundo das letras, Capistrano convidaria Assis Brasil para participar de vários outros projetos. Ainda em 1882, o bibliotecário cearense avisava ao amigo que Ubaldino do Amaral estava com a ideia de publicar anualmente alguns livros
sobre a História do Brasil e perguntava se ele não gostaria de escrever a
história da Revolução do Rio Grande, insistindo mesmo para que aceitasse
o convite: “[...] Responda depressa e responda sim”.45 Já em 1893, sendo
um dos organizadores da coleção intitulada Monografias Brasileiras, que
objetivava preparar o centenário do descobrimento do Brasil, ainda na procura de escritores para alguns volumes, Capistrano atribuiu a tarefa de redigir um deles ao amigo: “Já vê que V. não pode deixar de escrever o volume,
e ditatorialmente já o inscrevi entre os colaboradores cujos volumes podemos garantir”.46 Capistrano visitou o amigo algumas vezes já no Rio Grande, tendo se hospedado em sua casa. Quando da morte de seu filho, já no
período republicano, “desorientado, refugiou-se em Pedras Altas”, onde
recebeu todo o apoio da família de Assis Brasil, que o ajudou a atravessar
aquele momento difícil.
Portanto, a amizade iniciada em princípios da década de 1880 perdurou vários anos e foi essencial para a publicação dos escritos de propaganda
que consagraram o jovem republicano Assis Brasil, abrindo outras portas
ao mesmo, sobretudo na política. Capistrano estava posicionado no coração político do Império e, por que não dizer, no centro de atuação dos
letrados brasileiros. Participava de jornais importantes, possuía inúmeros
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 19 de novembro de 1882. In: ibid.,
p. 83.
45
Ibid., p. 83.
46
Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 23 de janeiro de 1893. In: ibid., p. 84.
44
129
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
contatos, além de um cargo importante na Biblioteca Nacional e, posteriormente, no Colégio Pedro II, onde foi professor. Sem dúvida, esta posição
central ocupada por Capistrano foi de grande auxílio para um recém-chegado de uma província distante e que tinha anseios de se posicionar no
interior do grupo que ficou conhecido como geração de 1870. Capistrano
realizou inúmeras ações, por exemplo, convidando o amigo para participar
de conferências e eventos, objetivando inseri-lo no espaço de debates da
Corte, Corte esta que, anos depois, seria o palco de uma conspiração republicana e militar, insuflada parcialmente por jovens e letrados como Assis
Brasil e Capistrano de Abreu.
Referências bibliográficas
ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
AITA, Carmem (Org.). Joaquim Francisco de Assis Brasil: perfil biográfico e discursos
(1857-1938). Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do
Sul, 2006.
ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império.
São Paulo: Paz e Terra, 2002.
______. Crítica intelectual e reforma política: positivistas e liberais na crise do
Império. In: XXIII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, Caxambu, 1999.
Anais..., p. 01-22.
ARARIPE, Tristão de Alencar. Guerra Civil no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro:
Laemmert, 1881.
ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco de. A República Federal. In: SENADO FEDERAL (Org.). A democracia representativa na República (antologia). Ed. fac-similar.
Brasília: Senado Federal, 1998. p. 22-85.
______. Chispas. Alegrete: Tipografia do Jornal do Comércio, 1877.
______. História da República Rio-Grandense. Porto Alegre: ERUS, 1981.
BERTRAND, Michel. De la familia a la red de sociabilidad. Revista Mexicana de
Sociologia, Cidade do México, v. 61, n. 2, p. 107-135, abr./jun. 1999.
BOEHRER, George. Da Monarquia à República: história do Partido Republicano do
Brasil (1870-1889). Ministério da Educação e Cultura, 1950.
130
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
BORGES, Vavy Pacheco. Georges Leuzinger, seus negócios e sua família: entre o
Velho e o Novo Mundos. In: I SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE LIVRO E
HISTÓRIA EDITORIAL, Rio de Janeiro, FCRB/UFF, 2004. Anais..., p. 1-15.
BROSSARD, Paulo (Org.). Ideias políticas de Assis Brasil. Brasília: Senado Federal;
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1989.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial / Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CASTRO, Celso. Os militares e a República: um estudo sobre cultura e ação política.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
CAVENAGHI, Airton José. Lembranças de livros e impressores: um mapeamento
da produção livresca paulista durante o século XIX. In: XXVI SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, São Paulo, julho de 2011. Anais..., p. 1-13.
GRIJÓ, Luiz Alberto. A elite do Partido Republicano se apropria da “Revolução”.
História Unisinos, v. 14, n. 1, p. 29-37, jan.-abr. 2010.
IMÍZCOZ, José María. Actores, redes, procesos: reflexiones para una historia más
global. Revista da Faculdade de Letras – História, Porto, III série, v. 5, p. 1-28, 2004.
______; KORTA, Oihane Oliveri. Economía doméstica y redes sociales: una propuesta metodológica. In: ______ (Ed.). Economía doméstica y redes sociales en el antiguo régimen. Madrid: Sílex Universidad, 2010. p. 15-51.
MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS/IEL,
1978.
MATTOS, Júlio de. A República Federal, por Assis Brasil. O Positivismo: Revista de
Filosofia, ano 3, n. 6, p. 438-443, ago./set. 1881.
MELLO, Maria Tereza Chaves de. Narrativas nacionais e tempo: do romantismo
ao cientificismo. In: PAMPLONA, Marco; STUVEN, Ana Maria (Orgs.). Estado e
nação no Brasil e no Chile ao longo do século XIX. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p.
291-322.
MITCHELL, J. Clyde. Social networks. Annual Review of Anthropology, v. 3, p. 279299, 1974.
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
MOUTOUKIAS, Zacarías. Familia patriarcal o redes sociales: balance de una imagen de la estratificación social. Anuario del IEHS, Tandil, n. 15, p. 133-151, 2000.
RODRIGUES, José Honório (Org.). Correspondência de Capistrano de Abreu. 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. v. I.
131
SACCOL, T. M. P. • Escritos de propaganda republicana
SACCOL, Tassiana M. P. Um propagandista da República: política, letras e família
na trajetória de Joaquim Francisco de Assis Brasil (Década de 1880). 2013.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
PUCRS, Porto Alegre.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
132
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Dom Chimango e a torre de marfim:
a literatura de Homero Prates e a política
oligárquica da Primeira República (1890-1927)
Cássia Daiane Macedo da Silveira
Política e literatura sempre mantiveram relação estreita na história
do Brasil. A historiografia sobre o começo da República no Brasil costuma
dividir em “fases” a atuação dos intelectuais, inclusive daqueles mais propriamente ligados às atividades literárias. A partir da periodização usual,
nos últimos anos da Monarquia, houve engajamento tanto em prol do fim
da escravidão quanto pelo advento do novo regime republicano: os intelectuais brasileiros teriam se envolvido diretamente nessas lutas políticas
(ALONSO, 2002; COELHO NETTO, s/d; PEREIRA, 1994). Logo nos
primeiros anos da República, contudo, uma boa parte da intelectualidade
brasileira, em particular aquela ligada à produção literária, teria se “desiludido” com o rumo político tomado pelo regime outrora tão vigorosamente
defendido e teria decidido se retirar para uma “torre de marfim” ou aceitado render-se aos gostos “levianos” das elites, produzindo uma literatura
sem vinculação com a realidade social de seu tempo. Algumas raras ocorrências de escritores que mantiveram vivos seus laços com a realidade circundante recaíram em profundo isolamento, como seriam os casos de Lima
Barreto e de Euclides da Cunha (SEVCENKO, 1983). A década de 1920,
com o crescente nacionalismo desenvolvido após a Primeira Guerra Mundial, finalmente teria, pouco a pouco, trazido um retorno ao engajamento
perdido no decurso das três primeiras décadas republicanas (PÉCAULT,
1990).
Por outro lado, matizando o rigor de periodizações como esta, alguns historiadores e críticos já mostraram o quão políticas foram associações literárias tão importantes quanto a Academia Brasileira de Letras (RODRIGUES, 2003). Olavo Bilac, “príncipe dos poetas brasileiros” e principal poeta parnasiano do país, que talvez poderia ser considerado um sím-
133
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
bolo da fase em que os escritores decidiram afastar-se do mundo, escrevendo “longe do estéril turbilhão da rua” (BILAC, 2002), engajou-se na luta
republicana durante o fim da Monarquia, pelo alistamento militar obrigatório no ano de 1916 e, em literatura, escreveu poemas satíricos de cunho
político utilizando pseudônimos. Bilac diferenciava uma literatura “séria”,
sua produção como escritor parnasiano, a qual assinava com seu verdadeiro nome, e uma literatura “menor”, na qual a intervenção política seria
possível e na qual utilizava pseudônimos, visando “preservar a respeitabilidade e o prestígio do estilo ‘sério’, sujeito a rígidos preceitos estéticos” (JUNIOR, 2007, p. 28). Durante as primeiras décadas da República, assim, os
escritores procuraram alegar a separação rigorosa entre a literatura que produziam e a política. Utilizo o verbo alegar conscientemente, já que desconfio da possibilidade de separação rígida entre literatura e política no Brasil,
sobretudo num período permeado por conflitos como foi a Primeira República.
Contudo, é preciso questionar: toda e qualquer literatura pode se relacionar com a política? Existem gêneros literários mais “propensos” a expressar opiniões políticas? Essas não são questões simples, nem são questões que possam ser encerradas com o estudo de um ou de outro caso particular. Entretanto, pretendo, neste texto, refletir sobre as possibilidades de
intervenção política suscitadas pela literatura, relacionadas à própria percepção dos gêneros literários pelos escritores. No caso específico que aqui
analisarei, meu objetivo é compreender como o escritor gaúcho Homero
Prates (1890-1957) percebia as possibilidades de vinculação entre estética e
política quando selecionava os gêneros com os quais pretendia se expressar.
Ao mesmo tempo, pretendo apresentar ao leitor os modos pelos quais os
diferentes níveis de relações interpessoais estabelecidas pelo autor influenciavam nas suas decisões, fossem estéticas ou fossem políticas. Nesse sentido, a ideia de “redes”, que vem sendo muito utilizada no estudo de intelectuais, será indispensável.1 Com o intuito de operacionalizar tal ideia, o que
1
O historiador francês Jean-François Sirinelli (1986; 1988; 2003) tornou popular a noção de
“sociabilidade” para o estudo dos intelectuais, que pode ser entendida tanto por meio da ideia
de “rede” – que visaria dar inteligibilidade às relações estabelecidas entre os intelectuais –
quanto por meio da ideia de “microclimas” – que comporiam a “atmosfera” de um grupo ou
geração de intelectuais. No Brasil, Ângela de Castro Gomes (1999) e Monica Pimenta Velloso
(1996) se valeram de tal ideia a fim de estudar a modernidade carioca.
134
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
pretendo é “reconstituir grupos sociais a partir das relações que ligam os
indivíduos”. Proponho, assim, que as articulações travadas entre Homero
Prates e outros intelectuais, bem como as relações dele com seus familiares,
podem ser um meio de esclarecimento do “horizonte social dos atores”,
oferecendo oportunidade para conhecer o contexto em que o escritor efetivamente se movia, suas lutas (estéticas e políticas), seus interesses e suas
estratégias. As redes, assim, podem ser uma forma de “nos interrogarmos
sobre a experiência dos indivíduos e, portanto, sobre as modalidades de
construção da identidade social” (CERUTTI, 1998, p. 183).
I. Grupos de escritores, disposições herdadas
Homero Menna Barreto Prates da Silva começou sua atividade literária no ano de 1908, com a publicação do seu livro Poemas bárbaros.2 Também naquele mesmo ano, sua identidade enquanto literato se estruturava
nas reuniões que ele e os amigos faziam, todas as noites, numa praça da
cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul: a Praça da Misericórdia.
Foi nessa praça que Homero Prates, Álvaro Moreyra, Felipe d’Oliveira,
Antonius Barreto, Francisco Barreto, Carlos de Azevedo e Eduardo Guimaraens – o grupo dos sete3 – consolidaram uma amizade que se estenderia
ao longo de suas vidas e que influenciaria de modo definitivo seus futuros
na literatura. Do grupo dos sete, restaram cinco4, dos quais apenas quatro
orientaram seus desejos de estetas para a palavra escrita5: Eduardo, Felipe,
Álvaro e Homero. Na literatura dos quatro, alguns aspectos comuns se sobressaem: o interesse por temáticas mórbidas, pela morte, pela doença, pelo
Walter Spalding (1973, p. 254) contesta a existência deste volume, alegando que nunca nenhum exemplar do mesmo foi localizado. Para este autor, a afirmação da existência da referida
obra não passaria de mero engano. Se concordarmos com a posição de Spalding, o primeiro
livro de Homero Prates teria sido As horas coroadas de rosas e de espinhos, de 1912, publicado no
Rio de Janeiro pela Tipografia Progresso.
3
A amizade dos sete jovens foi registrada em 1909, por Eduardo Guimaraens (Doc. no. 2332,
AML, P. I. Pasta Eduardo Guimarães, Fundação Casa de Rui Barbosa), em poema em que
registrou o interesse de cada um dos amigos, e os seus próprios, pela arte e pela literatura.
Posteriormente, foi novamente registrado por Mansueto Bernardi (1944, p. 14), que os designou como “grupo da Praça da Misericórdia”.
4
Não localizei registros vinculados à atividade artística a respeito de Carlos de Azevedo ou de
Francisco Barreto na idade adulta.
5
Antonius Barreto era ilustrador.
2
135
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
fim, pelo ocaso, pelo crepúsculo, pelo azul e pelo roxo, pelo outono. Na
defesa de uma ideia de sucessão de gerações literárias, pode-se dizer que o
grupo da Praça da Misericórdia era tributário, principalmente, de dois outros conjuntos de escritores brasileiros com os quais mantiveram estreitas
relações, um em Porto Alegre, outro no Rio de Janeiro.
Em Porto Alegre, os amigos da Praça da Misericórdia assimilaram o
legado de um grupo boêmio composto por alguns escritores ligados ao jornal Correio do Povo6, como era o caso de Zeferino Brazil, Marcello Gama e
Pedro Velho. Fosse pelo tipo de literatura que escreviam, que provocava
uma ruptura no modo de escrita literária até então vigente no estado, trazendo para seus livros elementos caros a Baudelaire e a Edgar Allan Poe,
fosse pela “invenção de uma arte de viver”– já que então os artistas também
passariam a se definir pelo estilo de vida (BOURDIEU, 1996, p. 73) –, os
boêmios gaúchos forneceram um primeiro horizonte de possibilidades estéticas aos mais novos, que recém tentavam se integrar ao espaço de produção literária. Na Capital Federal, o grupo da Praça da Misericórdia se inseriu, no início da década de 1910, nas rodas literárias organizadas em torno
da revista Fon-Fon! 7, tendo como ponto de referência a figura emblemática
do simbolista Mario Pederneiras. A ideia de um “projeto” de integração ao
grupo literário de Mario Pederneiras, quando os gaúchos da Praça da Misericórdia se transferiram para o Rio de Janeiro, transparece na correspondência de Álvaro Moreyra a um amigo não identificado, que comenta estar
apaixonado: “Já havia escrito umas palavras para o Felipe, quando recebi a
carta... Amas? Louvado sejas! E deve ser linda... Que pena não chamar-se
Odette e não ser da prole fon-fônica...” (Porto Alegre, 04/11/1909. Correspondência de Felipe d’Oliveira. Arquivo de Felipe d’Oliveira. Biblioteca
Municipal Henrique Bastide, Santa Maria). Odette era o nome de uma das
filhas de Alexandre Gasparoni, diretor da revista Fon-Fon!. A irmã de Odette, Stella, efetivamente casou-se, em 1915, com João Daudt de Oliveira,
irmão mais velho de Felipe d’Oliveira (O Paiz, 10/07/1915, p. 5).
O jornal Correio do Povo foi fundado em Porto Alegre, no ano de 1895, por Francisco Vieira
Caldas Júnior, que tencionava pôr em circulação um jornal “imparcial”, que produzisse um
jornalismo moderno, sem vinculação partidária. Sob o comando da família Caldas, o periódico
permaneceu até o ano de 1984, quando o filho de Francisco, Breno, o vendeu. Sob outra administração, o Correio do Povo circula até os dias de hoje (CALDAS, 1987).
7
A revista Fon-Fon!, de Alexandre Gasparoni, foi fundada em 1907 e teve papel preponderante na
difusão da modernidade no Rio de Janeiro do começo da República (VELLOSO, 2010, p. 50).
6
136
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Homero Prates e seus amigos, assim, constituíram, na juventude, a
partir de referências trazidas por gerações anteriores de escritores com quem
tomaram contato, uma forma de escrita que era própria do seu grupo, que
constituía um projeto particular de ingresso no mundo literário brasileiro,
vinculado a uma estética bastante específica. Apesar de cada um deles possuir uma característica própria enquanto escritor, não é enquanto “gênio”,
enquanto individualidade criadora que me interessam. É na construção de
uma estética própria do grupo que fenômenos sociais mais amplos podem
ser observados. Nas palavras de Raymond Williams (1999, p. 140), “existem grupos culturais muito importantes que têm em comum um corpo de
práticas ou um ethos que os distinguem, ao invés de princípios ou objetivos
definidos em um manifesto”. Assim, é preciso apreender as práticas unificadoras do grupo – a pertença a uma revista, a um jornal, o encontro cotidiano em uma praça ou residência e mesmo as escolhas estéticas que os
definem, elementos que, ao mesmo tempo, marcam escolhas intelectuais e
constituem solidariedades, estreitam vínculos, constituem laços de admiração e solidificam amizades. Esses espaços conformam estruturas de sociabilidade que nos permitem compreender a significação social e cultural de grupos de escritores, músicos e artistas por meio da identificação de seus valores comuns. É nesse sentido que o conjunto de temáticas eleitas pelo grupo
na composição de suas obras poéticas – o azul e o roxo, as olheiras, a enfermidade, o outono, a folha que cai, o corpo que pende sem vida, a melancolia cotidiana, o abismo – ganha significação especial. Elas não marcam
apenas a adesão a uma estética específica – simbolista, parnasiana, penumbrista, pós-simbolista e que tais –, mas marcam especialmente o conjunto
de valores compartilhados pelo grupo, suas vinculações sociais mais amplas, seu modo de compreender e perceber a realidade. O grupo do qual
fazia parte Homero Prates carregou tais valores ao longo de toda a sua
produção literária, confirmando a força das suas solidariedades de origem.
As relações que constituíram tais solidariedades formadas na juventude são, contudo, apenas uma parte da ampla rede de Homero Prates.
Uma parte importante, sem dúvida, que marcou sua existência e a de seus
amigos. Mas apenas uma parte. Além de amigo de Felipe d’Oliveira, Álvaro Moreyra e Eduardo Guimaraens, Homero Prates também era um membro, pelo lado materno, do tradicional clã dos Menna Barreto, fração das
oligarquias regionais gaúchas, iniciado provavelmente com João de Deus
137
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
Menna Barreto (FIGUEIREDO, 1984, p. 223). Em 1846, João de Deus
Menna Barreto recebeu o título de Visconde de São Gabriel, com honras de
grandeza, por meio de Carta Imperial. Seu filho, João Propício Menna
Barreto, também militar, recebeu do governo imperial, por sua vez, o título
de Barão de São Gabriel, após a guerra contra o Uruguai, iniciada em 1864.
Já do lado paterno, Homero Prates descendia de uma família de ricos criadores de gado nas cidades de São Gabriel e de Cruz Alta, no Rio Grande
do Sul. Quando da morte do avô de Homero, João Raymundo da Silva, no
ano de 1899, este deixou um inventário de quase 900 reses, além de mais de
300 outros animais entre bois, éguas, burros, mulas e cavalos, distribuídos
nas propriedades das cidades citadas. Além de alguns imóveis urbanos, João
Raymundo deixou 1 légua de sesmaria no Lajeado, 43 quadras quadradas
“de terras situadas em vários pontos dos terrenos onde se acham as chácaras existentes no lugar denominado Bom Fim, entre os campos da ‘casa
branca’, a estrada que de São Gabriel vai a São Sepé e as margens direita
[sic] do rio Taquari e as quedas do arroio Mudadomo” (Inventário de João
Raymundo da Silva. Comarca de São Gabriel, 1900, Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul/APERS). No município de Cruz Alta, ele
deixou 2 léguas de sesmaria “na fazenda denominada do Cadeado, entre a
serra deste nome, a estrada que vai de Cruz Alta a São Borja e o rio Ijuizinho”, além de 1.838.817 braças quadradas “de terras de matos de cultura
na serra denominada do Cadeado, no fundo da fazenda acima descrita, as
quais constituem a metade das terras ali medidas e legitimadas, com área
total de 3.677.634 braças quadradas” (Inventário de João Raymundo da
Silva. Comarca de São Gabriel, 1900, APERS).8
Homero Prates, ao mesmo tempo em que constituía, com os amigos
da Praça da Misericórdia, uma estética própria, que lhes conferisse identidade enquanto escritores, também seguia outros rumos menos artísticos,
mas bastante condizentes com as disposições herdadas de sua família. Em
1912, concluiu a Faculdade de Direito de Porto Alegre e seguiu para a Ca8
Considerando as análises de Thiago Araújo (2008, p. 42) para a mesma região, no período
compreendido entre os anos de 1834 e 1879, os rebanhos de João Raymundo da Silva são
bastante expressivos. No período estudado por Araújo, os proprietários que possuíam mais de
500 reses correspondiam a pouco mais de 10% do montante dos inventários analisados. Mesmo levando em conta os mais de 20 anos entre o período estudado por Araújo e o falecimento
de João Raymundo, trata-se, sem dúvida, de um criador com um número considerável de posses. Agradeço ao autor pelas referências e pelo auxílio na análise desta fonte.
138
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
pital Federal.9 Após um período vivendo com os amigos no Rio de Janeiro,
colaborando com a revista Fon-Fon!, Homero retornou ao Rio Grande do
Sul a fim de atuar como juiz distrital na cidade de Dom Pedrito, entre os
anos de 1913 e 1915. Sua participação nas “rodas simbolistas” da Capital
foi interrompida por uma chamada à sua “verdadeira” profissão. A literatura que escrevia com os companheiros era uma parte importante da sua
vida, mas a carreira no Direito precisava também ser alavancada. Entre
1916 e 1918, Homero Prates transferiu-se novamente para o centro do país
e atuou como advogado na cidade de São Paulo. Não tenho mais informações sobre esse período a não ser aquelas obtidas por meio de suas publicações na revista Panóplia: mensário de arte, ciência e literatura, daquela cidade.
O fato de Homero ter se tornado colaborador (e, por certo período de tempo, também diretor) da revista literária paulista, contudo, nos adverte para
o modo como ele investia paralelamente nas duas atividades: a artística e a
jurídica, a primeira mais vinculada a suas adesões estéticas juvenis, ligadas,
ainda, ao grupo da Praça da Misericórdia, a última mais vinculada às disposições assumidas pelo lugar social que ocupava como parte de um setor
das oligarquias gaúchas.
Suas duas atividades, contudo, embora conduzidas de modo paralelo, por meio de espaços distintos de atuação (as revistas literárias ou as
instituições jurídicas), também se entrelaçavam por meios menos explícitos. As reuniões literárias das quais participava sempre contavam com a
presença de indivíduos importantes não apenas na esfera de atuação mais
especificamente literária. Em sarau na casa de D. Gaby Coelho Netto, esposa do ilustre escritor maranhense Henrique Coelho Netto, Homero pôde
encontrar não apenas outros escritores, como Alcides Maya e Mario Pederneiras, mas também a Baronesa de Werther, filha do Barão de Rio Branco
(O Paiz, 17/06/1913, p. 3). No almoço em homenagem ao escritor Elísio
de Carvalho, Homero Prates esteve na companhia de seus amigos Álvaro
Moreyra e Felipe d’Oliveira, mas também do embaixador francês A. Conty, além de vários senadores, deputados e ministros (O Paiz, 13/08/1921, p.
5). Os locais de reunião para homens e mulheres pertencentes às elites, em
geral, contavam com a presença de homens de letras. Por outro lado, os
9
Luiz Alberto Grijó (2005) apresenta as estreitas vinculações entre os indivíduos formados na
Faculdade de Direito de Porto Alegre, no período entre 1904 e 1937, e a atividade política.
139
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
contatos feitos em um sarau literário serviam tanto ao Homero Prates escritor, quanto ao Homero Prates membro da importante família gaúcha.
Ele poderia, assim, acionar tais contatos tanto diante da necessidade de
obter editor para um de seus livros, quanto diante da vontade de defender
algum interesse de sua família. Por meios indiretos, o fato de Homero Prates se apresentar como escritor, como poeta, lhe possibilitava ingressar em
círculos capazes de ampliar significativamente sua rede de relações mais
especificamente políticas. Isso significa que ele poderia tirar destas relações
muitas vantagens, se assim desejasse; mas não significa, necessariamente,
que sua literatura tratasse de assuntos caros aos interesses de sua família ou
das redes que estabelecia.
Sérgio Miceli (2001, p. 23) argumenta que a rede de relações dos escritores da Primeira República – que ele denomina de “anatolianos”, em
referência à influência do escritor francês Anatole France – é um de seus
mais importantes trunfos. Em seu estudo, Miceli constata que tais escritores são, em geral, os “parentes pobres” das oligarquias condutoras do jogo
político brasileiro. Já não contariam mais com os mesmos recursos econômicos, além de possuírem uma série de desvantagens – como a gagueira ou
a morte prematura do pai – responsáveis pelo afastamento de suas possibilidades de atuação política mais direta, no seio das oligarquias das quais
fazem parte. As boas relações mantidas pela família, bem como a formação
cultural orientada para o domínio de uma cultura europeia, elitizada, seriam
os últimos resquícios de sua participação entre as classes dominantes, capazes de serem utilizados na reconversão que operam a fim de ingressar nos
mundos da literatura. Não é exatamente o que se verifica na trajetória de
Homero Prates; apesar de eu não ser capaz de demonstrar nenhum vestígio
de decadência econômica em sua família, a conjuntura específica do Rio
Grande do Sul no decorrer da Primeira República talvez seja capaz de explicar seu modo de atuação.
Como vimos, Homero Prates pertencia a um importante clã das oligarquias gaúchas do período, a família Menna Barreto. Não é de hoje a
constatação de que os conflitos no interior das classes dominantes no decurso da Primeira República não podem ser pensados unicamente em termos de conflitos entre oligarquias de regiões diferentes, por acesso ao poder. É preciso levar em consideração, também, os conflitos internos a uma
mesma oligarquia, que não se constitui, embora possa aparentar, em um
140
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
todo homogêneo, harmônico e coeso (PERISSINOTTO, 1997, p. 41).10
Nesse sentido, o período da Primeira República no Rio Grande do Sul pode
ser pensado como repleto de incidentes capazes de demarcar a existência
de tais conflitos intraoligárquicos: as duas guerras civis – a Guerra Civil
Federalista (1893-1895)11 e a Guerra Civil de 1923 (1923-1925)12 – e as eleições de 1906 – quando Borges de Medeiros assume a chefia do estado e as
oposições vão às urnas através de Fernando Abbott – são exemplos contundentes do que quero dizer (WASSERMAN, 2004; ANTONACCI, 1979).
A família de Homero Menna Barreto Prates da Silva destacou-se especialmente na conjuntura entre 1921 e 1923, que levou à Guerra Civil de 1923,
e é sobre este episódio que pretendo me deter.
Já vimos que, enquanto literato, Homero Prates compartilhava de
uma série de valores com um grupo de amigos de juventude, com quem se
manteve unido ao longo da vida e por meio do qual conquistou uma série
de posições no mundo literário da Capital Federal, como o posto de colaborador na revista Fon-Fon!. A escrita de poesias que mantiveram a marca
de seu grupo foi uma constante na vida do escritor. De um modo geral,
uma característica marcante da literatura poética produzida por seu grupo
é a aproximação com correntes estéticas que afirmavam a busca por uma
arte literária devedora de satisfações apenas a si mesma, sem vínculos com
a política, recusando a lógica econômica na produção e na valorização da
arte. Homero Prates escrevia poesias sobre ametistas, opalas e outras pedras preciosas; violetas e o Outono também estavam no rol de temas mencionados: “Não! não a quero! Não! que, em seu brilho, a Desgraça / Dorme num leito em flor de violetas; e acesa / Em púrpuras, de Outono a
infinita tristeza, / No áureo esquife do Poente, às mãos das Tardes, passa...” (PRATES, 1912). De caráter intimista, a literatura poética desenvolvida por Homero Prates ao longo da vida (muito de acordo com os valores
Para uma revisão ampla da política oligárquica da Primeira República, ver o trabalho de Claudia Viscardi (2012).
11
Guerra civil que opôs as tropas federalistas gaúchas ao governo de Júlio de Castilhos, no Rio
Grande do Sul, então um dos principais aliados do presidente Floriano Peixoto (FLORES,
2008).
12
Também conhecida como “Revolução Assisista” ou “Revolução de 1923” (1923-1925), foi a
guerra travada entre os maragatos, união de toda a oposição, e o exército de Borges Medeiros.
A luta foi travada em decorrência da posse no quinto mandato consecutivo do presidente do
estado do Rio Grande do Sul.
10
141
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
de seu grupo de amigos) não tinha espaço para tematizar a realidade mais
imediata que o cercava. Sobre isso, aliás, o autor discorreu em artigo intitulado “Arte regional”, publicado na revista Panóplia, em 1918. No texto em
questão, ele defendia que a arte é “universal” e “sagrada” e não devia tratar
de assuntos comezinhos de caráter nacional, regional ou local. Para Prates,
a literatura produzida segundo princípios de nacionalismo ou regionalismo não seria digna de chamar-se arte, concluindo que, ao ler algum livro
brasileiro produzido “nesse gênero (o que só faço por um ingente esforço
patriótico) a tirada de um preto a falar errado ou de um caboclo sentimental
a dizer tolices no seu linguajar grosseiro – ainda que nas circunstâncias
mais trágicas ou, melhor, precisamente nessas ocasiões patéticas – em lugar
de me comover, como razoavelmente pretendeu o autor, sinto uma emoção
às avessas: fico vermelho e envergonhado (sei lá por quê) e fecho logo o
volume...” (PRATES, 1918, p. 5; grifos no original). Diante dos estreitos
laços que uniam Prates a uma fração das oligarquias gaúchas, seria possível
ao escritor se manter fechado em uma torre de marfim, sem tratar, em sua
escrita, das disputas por poder que marcaram sua família durante a Primeira República? De que estratégias poderia o escritor se valer a fim de contornar as regras que se tentava estabelecer para a produção literária do período, mantendo-a tão distanciada do mundo concreto quanto possível?
II. Regionalismo como arte?
É por meio de uma publicação de 1927, na qual Prates mudou temporariamente o rumo de seu estilo, que pretendo compreender estas questões. Trata-se – ironicamente, como podemos pensar após ler seus comentários sobre arte nacional, regional ou local – do poema satírico regional
História de Dom Chimango, impresso no Rio de Janeiro, onde então residia
(PRATES, 1927). Tal obra já havia sido concluída no começo de 1925, com
o fim da Guerra Civil de 1923 no Rio Grande do Sul. Prates inspirara-se no
médico e político gaúcho Ramiro Barcelos13, que, anos antes, sob o pseudônimo de Amaro Juvenal, publicara longo poema satirizando Borges de
13
Ramiro Barcelos pertenceu aos quadros do antigo Partido Liberal, mas tornou-se republicano
ainda sob o regime monárquico, conformando a “plêiade histórica da propaganda” no estado.
Foi jornalista do periódico republicano A Federação desde sua fundação, em 1884 (PORTO
ALEGRE, s. d.).
142
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Medeiros, então presidente do estado do Rio Grande do Sul, apelidando-o
de Antonio Chimango – este, aliás, o título de seu popular poema. Mais
uma vez, agora com Prates empunhando a pena, Borges sofria ferinos ataques, desta vez com o mote da sua quinta eleição consecutiva na presidência do estado – o que o levaria a 30 anos no poder – e da guerra que mais
uma vez dividiu o Rio Grande do Sul em maragatos e chimangos. A partir
de agora, analiso a referida obra de Homero Prates em diversos aspectos,
enfocando como o próprio eixo narrativo do qual se valeu, compartilhado
por muitos outros escritos gauchescos, proporcionou ao autor tratar de algo
que à sua produção poética, em geral, não era permitido.
Na década de 1920, o ambiente cultural no Rio Grande do Sul ainda
era limitado. Foi a partir de 1922-23, contudo, que os intelectuais gaúchos
começaram a repensar as antigas gerações de escritores que viam com pessimismo a história do estado. Nesta época, foi refundado o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul – que já havia existido no século
XIX – , onde passaram a se reunir intelectuais interessados em escrever
uma história gaúcha vinculada ao conceito de nacionalidade, com o objetivo de apresentar e integrar o estado ao restante do país. Já nos últimos anos
da década de 1920, este período de otimismo entre os intelectuais tornarase um imenso esforço político por parte do Rio Grande do Sul a fim de
alçar-se a liderança nacional (GUTFREIND, 1992). Esse clima de otimismo e fortes expectativas em parte fora criado pela Guerra Civil de 1923,
que conformou uma atmosfera propícia a se pensar o Rio Grande do Sul
como estado promissor, com uma missão histórica fundamental no Brasil.
Foi esse ambiente de entusiasmo geral entre os intelectuais gaúchos
que contribuiu para uma transformação na literatura regionalista gauchesca. Ao menos até 1930, há, em todas as obras desse gênero, um tema comum: a valorização do gaúcho-herói. Entretanto, tal temática poderia aparecer de duas formas: no primeiro caso, comum nas obras escritas mais no
começo do século, o herói está agonizante em função das transformações
ocorridas com a modernização do estado – é o caso do poema satírico Antonio Chimango, de Ramiro Barcelos, e da obra regionalista de Alcides Maya.
No segundo caso, porém, surgido a partir da segunda metade da década de
1920, há a persistência do herói, seu renascimento, sua resistência, apesar
de todas as transformações sociais, diante de qualquer infortúnio (LEITE,
1978). É o caso da obra de Homero Prates.
143
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
Historia de Dom Chimango inicia com uma dedicatória que já indica
qual posicionamento o autor tem diante da situação instituída pela Guerra
Civil de 1923. Prates pede desculpas a seu “tio Lauterio” (este é o nome do
personagem principal da obra de Barcelos, o homem que conta o “caso” a
respeito de Antonio Chimango) se o imita neste livro, mas lembra-o de que
ele mesmo sugeriu que alguém terminasse de contar a história do Chimango, já que em 1915 ela ainda estaria inacabada: “Porém, si estou bem lembrado, / Tu mesmo é que imaginaste, / Quando um dia o terminaste, /
Que um outro – o que agora faço – / Viesse emendar o laço / No ponto em
que o rebentaste (PRATES, 1927, p. 9). Desta forma, Homero Prates se
coloca como tributário de uma certa tradição não apenas literária, mas também política. Ele é o continuador da obra e da crítica de Ramiro Barcelos,
falecido em 1916. Com seu trabalho literário, faz uma crítica política que,
ao mesmo tempo, institui um modelo de gaúcho – bem como seu contramodelo, o anti-herói.
No caso em questão, Homero Prates parece querer criar uma distância entre o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) daquele momento,
do qual Borges era o representante máximo, e o PRR do passado, fundado,
entre outros, por Ramiro Barcelos. Nesse sentido, Prates pretendeu instituir uma tradição republicana rio-grandense que não estivesse ligada ao
nome de Borges de Medeiros e à qual ele próprio se vincularia. Para tanto,
como já foi dito, colocou-se como tributário de Ramiro Barcelos tanto literária quanto politicamente. Mas não só: também colocou-se como tributário de Júlio Prates de Castilhos, um dos mais importantes chefes do PRR,
falecido no início do século XX, primo do pai de Homero, e de quem Borges de Medeiros fora o braço direito: “ - Quem ia assim continuar / A
historia do tio Lauterio / Era um tal de João Valério / Cria do Coronel
Prates” (PRATES, 1927, p. 20). Homero Prates configurou, assim, uma
possível cisão entre o PRR de fins do Império e começo da República e o
PRR da década de 1920, recaindo a responsabilidade sobre o péssimo estado das coisas no Rio Grande do Sul sobre Borges de Medeiros.
Ligia Chiappini Moraes Leite afirma que, na narrativa regionalista
gauchesca, a estrutura comum é dada por dois paradigmas, seguindo uma
lógica binária: o do herói, que comportaria certos atributos-padrão, e o do
anti-herói, que comportaria atributos contrários àquele. Entre os atributos
do herói estariam os atributos físicos da virilidade e valentia, e os morais da
144
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
honra, lealdade, bondade, franqueza, pureza e desprendimento. Já entre os
atributos do anti-herói estariam os atributos físicos da impotência, da covardia, e os morais da falta de honra, da traição, da maldade, da dissimulação, da corrupção e da ambição (LEITE, 1978).14 Os atributos do herói são
“eminentemente telúricos, mesmo que o telurismo não venha marcado diretamente neles” (LEITE, 1978, p. 59), podendo aparecer numa íntima relação
do homem com a natureza, conhecendo seus segredos; numa íntima relação
do homem com os animais; ou aproximando a paisagem do homem, participando, também ela, das aventuras do herói. A autora localiza, ainda, a estrutura básica dos textos gauchescos: sua fábula é marcada por um herói, portador das qualidades do herói telúrico, que em certo momento se torna vítima
de algum dano, em geral cometido pelo anti-herói. A partir daí, o herói precisa vencer o desafio de limpar sua honra ferida, cobrando do adversário a
afronta que lhe foi feita. Herói e anti-herói se envolvem em uma luta, ou
duelo, culminando, em geral, na vitória do herói (LEITE, 1978).
Utilizando-se desse modelo narrativo típico da literatura regionalista
gauchesca, Homero Prates contou a história da relação do povo gaúcho
com o governo de Borges de Medeiros. Segundo Homero Prates, foi quando Borges de Medeiros se considerou automaticamente reeleito para o governo do estado que o povo gaúcho tomou sua atitude como “um desaforo”, fazendo o anti-herói – Borges de Medeiros – criar o dano contra o
herói – o povo gaúcho. Muito embora, em certo sentido, o povo gaúcho
como um todo possa ser entendido como o herói da narrativa de Homero
Prates15, há ainda uma série de personagens heróicos, que, contudo, são
pessoas de carne e osso, a saber, os líderes da guerra civil de 1923: “Mas
D’Chimango que tinha / A faca e o queijo na mão / Ficou fula e fez pressão / Pra que o povo sossegasse / E o sono não lhe tirasse / Com barulhos
de galpão. / Ninguém lhe deu importância / E escolheram pra o tal pleito
A autora coloca virilidade e valentia e seus opostos como atributos físicos porque eles se manifestam de forma física, em gestos e ações. Seu estudo é realizado com base em textos regionalistas em prosa, ao contrário do texto de Prates aqui analisado, que é um poema. Entretanto,
pude verificar a permanência do mesmo esquema encontrado pela autora.
15
Ao povo gaúcho é atribuída a qualidade da valentia, típica do herói regionalista. Entretanto,
em certo momento do poema de Prates, o povo gaúcho é cantado como tendo se convertido
em “boi de canga” pelo regime de Borges de Medeiros, perdendo o atributo de herói e assumindo o atributo do anti-herói, tornando-se quase como o “herói degradado” que Ligia Chiappini (1978, p. 78) caracteriza: um indivíduo que foi heróico, mas, em decorrência principalmente de circunstâncias do meio, perde os atributos do herói.
14
145
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
/ Um gaúcho de respeito / Com Brasil no sobrenome [Assis Brasil] / Que
tendo a Pátria no nome / Sentia-a também no peito” (PRATES, 1927, p.
60-61).
Joaquim Francisco de Assis Brasil, oponente de Borges de Medeiros,
era configurado não só como herói, em oposição a Borges, mas também
como homem que afirmava sua nacionalidade brasileira, estratégia política
importante aos rio-grandenses no período. Apesar desta inclinação patriótica, a construção de Assis Brasil como herói passa principalmente pela
afirmação de suas qualidades gauchescas, as características típicas do homem do pampa: “Homem guapo como há poucos / Entre os nossos patriotas, / Que usa bombachas e botas / Mas fez figura na estranja / E agora
tem uma granja / Lá pras bandas de Pelotas. / Este, sim, é que podia /
Transformar aquela estância / Sem relho nem arrogância, / Só com capricho e com zelo / Nalguma granja modelo. / Assim pensei desde a infância” (PRATES, 1927, p. 61).
Contrapondo-se a essas características atribuídas a Assis Brasil, Borges de Medeiros era narrado como “um guasca16 que nunca soube / o que
foi vestir bombacha” (PRATES, 1927, p. 26), retirando de Borges as características que marcariam sua identidade como gaúcho e concluindo, assim,
a oposição herói X anti-herói. Tal dualidade, instituída por meio dos versos
de Homero Prates, não é aleatória. Ela expressa uma posição política clara,
estabelecendo dois lados em confronto e propondo a adesão a um deles,
bem como uma chave de leitura capaz de explicar a situação política do Rio
Grande do Sul. Ao redigir seu poema satírico, Homero Prates tomou posição neste embate, posição bastante condizente com aquela manifestada pelos seus familiares que ainda residiam no Rio Grande do Sul: a família de
Prates tinha raízes profundas entre os pecuaristas que fizeram oposição a
Borges.
Segundo Maria Antonieta Antonacci, a conjuntura entre 1921 e 1923
conformou o ápice da luta no interior da classe dominante gaúcha (ANTONACCI, 1979, p. 231). Após um período de euforia econômica para a pe-
16
Guasca: denominação dada aos rio-grandenses pelos filhos de outros estados, pelo fato de que
neste, em vista da predominância da indústria pastoril e da carência de outros materiais, haver
sido generalizado o emprego do couro para as mais diversas finalidades. Tira, correia, corda
de couro cru, isto é, não curtido. Doravante, os significados de termos regionais que informo
em nota foram extraídos do mesmo dicionário (NUNES e NUNES, 2007).
146
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
cuária do Rio Grande do Sul, proporcionado por ocasião da eclosão do
primeiro conflito mundial, entre 1914 e 191817, sucedeu-se uma brusca paralisação econômica. Os produtores, então, recorreram ao governo estadual
objetivando obter investimentos públicos que favorecessem seus negócios,
como a redução de tarifas ferroviárias, elevação da taxa de importação, que
dirimisse a concorrência platina, a redução de impostos, entre outros (ANTONACCI, 1979, p. 233). A rejeição de tais medidas pelo governo de Borges de Medeiros propiciou a eclosão da oposição explícita por parte das
frações oligárquicas alijadas do poder, no interior das quais a família Menna Barreto se destacou compondo uma “dissidência republicana” – parte
de uma mesma tradição dissidente da qual já havia feito parte Ramiro Barcelos (ANTONACCI, 1979, p. 236; 1981, p. 75).
Tal fração republicana da oposição chegou a lançar um “manifesto
dos estancieiros”, encabeçado por outro dos irmãos de Homero, João Raymundo da Silva Neto, em que esta categoria apoiava, ainda em 1922, antes
da eclosão da Guerra Civil, a candidatura de Joaquim Francisco de Assis
Brasil contra Borges de Medeiros, procurando suplantá-lo nas urnas:
Publicamos na respectiva seção o manifesto-apelo dos estancieiros gaúchos
para que apoiem a candidatura Assis Brasil, oposta à candidatura Borges de
Medeiros.
É uma disputa que dará ao povo sul-rio-grandense, de tão belas tradições
democráticas, ensejo para se pronunciar sobre a ação do governo que têm
tido.
O que convém assinalar nesse manifesto, além do valor político, é a forma
lapidar em que vazou o primeiro dos seus signatários, o Dr. João Raimundo
da Silva, uma das inteligências mais lúcidas do Brasil de hoje, irmão do
nosso companheiro e crítico literário desta folha, Homero Prates.
O manifesto é de castilhistas que ora divergem do Sr. Borges de Medeiros,
resolvendo combater a sua reeleição. E não há dúvida que encontraram para
lançar esse documento uma figura excepcionalmente brilhante (O Paiz, 29/
10/1922, p. 4).
É possível, agora, compreender melhor algumas das posições trazidas por Prates em seu História de Dom Chimango. O apoio, circunstancial, à
liderança de Assis Brasil contra o governo Borges se dava por parte de es-
17
O Rio Grande do Sul tinha sua economia voltada, sobretudo, para o mercado interno, com a
venda de carne para os demais estados da federação, de modo que a Primeira Guerra Mundial
proporcionou a perda da concorrência que o estado sofria por parte de países como Uruguai e
Argentina e o consequente incremento em sua economia.
147
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
tancieiros autodenominados “castilhistas”, justificando a afirmação de que
o narrador do “caso”, João Valério, seria “cria do coronel Prates”, conforme vimos. Não foi só por meio da literatura, porém, que Prates fez oposição a Borges. Valeu-se também do espaço que conseguiu no jornal O Paiz,
do Rio de Janeiro – obtido por meio das relações mais propriamente “literárias” que estabeleceu naquela cidade, já que era o responsável pela coluna “Notas literárias” – para defender a posição que era sua e de sua família:
Tenhamos fé no futuro do Rio Grande do Sul. Cerremos fileiras em torno da
figura de Assis Brasil, que por si só vale um programa. Está lançada a ideia
nova do “Partido dos Fazendeiros”, únicos e legítimos senhores daquela
terra heroica e lendária. Já a agitou em um vibrante e lapidar manifestoapelo aos estancieiros gaúchos – entre outras figuras de responsabilidade e
inteligência – um dos mais nobres espíritos do meu tempo, João Raymundo
da Silva Neto. [...] Não confundamos esse movimento libertário do Rio Grande do Sul com as triviais agitações populares, sem significação, de todos os
dias. Cerca-o alguma coisa de místico e de sagrado que lhe põe em torno um
esplendor de auréola: a salvação, a liberdade, a saúde, a alegria do povo riograndense (O Paiz, 28/10/1922, p. 3).
Homero Prates, assumindo a posição dos pecuaristas, lança, inclusive, a ideia de constituição de um “Partido dos Fazendeiros”, tomando o
cuidado de distanciar o movimento criado pelos estancieiros gaúchos das
“triviais agitações populares” que ocorriam no mesmo período – lembremos da afirmação do movimento operário ao longo de toda a Primeira
República e das marcantes greves gerais que se sucederam à Primeira Guerra Mundial, bem como da fundação do PCB, no mesmo ano em que os
estancieiros também tentavam se organizar partidariamente.
Homero Prates, assim, a despeito de sua adesão aos princípios de
uma “arte pela arte” – considerada, por ele, “sagrada” e “universal” – não
deixou de expressar, em versos, a opinião política que fazia jus ao lugar
social que ocupava. Entretanto, valeu-se de outra orientação estética, distinta daquela da qual se utilizava para redigir seus poemas “artísticos”. Ao
contrário de Olavo Bilac, não dividiu sua obra entre seus pseudônimos e
seu nome verdadeiro, criando, assim, uma hierarquia interna à sua própria
produção; mas, assinalando uma diferença evidente, optou por um estilo
marcadamente regionalista quando tratou de oficializar, por assim dizer,
uma certa leitura da Guerra Civil de 1923 – aquela partilhada por sua família e por parte da fração oligárquica dissidente do Rio Grande do Sul. Tal
estilo, considerado pelo próprio autor como “inferior”, hierarquicamente
148
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
abaixo da “verdadeira” arte, não era pensado por Prates como digno de
figurar entre as obras de “valor universal”. Constituía-se, assim, numa estratégia de ação política direta, que visava conformar um ponto de vista claro
sobre o passado de lutas recente do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, um
poema nem sempre é apenas um poema; ele pode ser um modo estratégico
de expressar uma opinião, de criar sentimentos, de alimentar adesões ou
rivalidades. Em última instância, o episódio protagonizado por Homero
Prates que aqui analisei nos adverte de que nem toda literatura, enquanto
obra de caráter ficcional, era pensada por seus produtores como obra de
arte, e não pode ser estudada exclusivamente enquanto tal; é preciso, portanto, devolver às obras os sentidos que tiveram no contexto de sua produção, por meio da compreensão de suas vinculações sociais ocultas, de suas
redes de interlocução e do espaço dos possíveis aberto aos seus autores.
Por outro lado, o episódio estudado também nos chama a atenção
para as formas de adesão a lógicas construídas por grupos sociais às vezes
muito diversos. Se Homero Prates assumiu integralmente os modos de escrita – e os valores – de seu grupo de amigos, produzindo uma literatura
que se queria alheia aos eventos sociais mais imediatos e que almejava o
universal, sem render-se à narrativa de eventos cotidianos, ou utilizar-se de
um linguajar mais próximo do coloquial, isso não significa, necessariamente,
que não aderia a outros conjuntos de valores, por vezes contraditórios em
relação a estes. Homero Prates nos lembra que os indivíduos não se pautam por um único sistema de valores, ou por um simples conjunto de regras
partilhadas por um grupo social. Como integrante de mais de uma “comunidade” – ele era parte de uma família de pecuaristas, com uma posição
específica no jogo político local e nacional, mas também era um escritor
ligado a um certo grupo de autores e a uma certa tradição estética, por
exemplo –, Homero Prates transitava por suas redes e “jogava” com as variadas posições e identidades que ocupava no espaço social. E jogava, também, com as possibilidades de escrita que sua época lhe legava. Cada modo
de escrita, contudo, ocupava, no conjunto de sua obra, uma certa posição
mais ou menos coerente com as posições similares que ele próprio ocupava
socialmente. Quando pretendia apresentar-se como “artista”, recorria à
escrita que considerava mais “universal” e, portanto, superior enquanto arte;
quando, ao contrário, pretendia manifestar uma opinião ou tornar um dado
ponto de vista “oficial”, comunicando-se com um público mais amplo e
149
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
transmitindo a ele uma ideia de forma mais objetiva, recorria a outro modo
de escrita, “inferior” na sua escala da arte, mas com possibilidades mais
pragmáticas de interlocução. Cada modo de escrita atendia a um público
diferente; assim como o autor, sua obra tinha de ser capaz de transitar por
diferentes grupos sociais.
Referências bibliográficas
ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império.
São Paulo: Paz e Terra, 2002.
ANTONACCI, Maria Antonieta. A revolução de 23: as oposições na República
Velha. In: DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sergius (Orgs.). RS: Economia & política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. p. 229-253.
______. RS: as oposições & a Revolução de 1923. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.
ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio,
trabalho e luta em um contexto produtivo agropecuário (vila da Cruz Alta, província do Rio Grande de São Pedro, 1834-1884). 2008. Dissertação (Mestrado em
História) – UFRGS, Porto Alegre.
BERNARDI, Mansueto. Vida e obra de Eduardo Guimaraens. In: GUIMARAENS, Eduardo. A divina quimera. Porto Alegre: Globo, 1944. p. 07-127.
BILAC, Olavo. Antologia: poesias. São Paulo: Martin Claret, 2002.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CALDAS, Breno. Meio século de Correio do Povo: glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: L&PM, 1987.
CERUTTI, Simona. Processo e experiência: indivíduos, grupos e identidades em
Turim no século XVII. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998. p. 173-201.
COELHO NETTO, Henrique Maximiano. A conquista. Porto: Livraria Lello & Irmãos Editores, s. d.
FIGUEIREDO, Osório Santana. São Gabriel desde o princípio. Santa Maria: Palotti,
1984.
FLORES, Elio Chaves. A consolidação da República: rebeliões de ordem e de progresso. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil
republicano: o tempo do liberalismo excludente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 45-88.
150
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
GOMES, Ângela de Castro. Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 1999.
GRIJÓ, Luiz Alberto. Ensino jurídico e política partidária no Brasil: a Faculdade de
Direito de Porto Alegre (1900-1937). 2005. Tese (Doutorado em História) – UFF,
Niterói.
GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992.
JUNIOR, Alvaro Santos Simões. A sátira do parnaso: estudo da poesia satírica de
Olavo Bilac publicada em periódicos de 1894 a 1904. São Paulo: Editora UNESP,
2007.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. Regionalismo e modernismo. São Paulo: Editora
Ática, 1978.
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Dicionário de regionalismos do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 2007.
PÉCAULT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São
Paulo: Editora Ática, 1990.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1994.
PERISSINOTTO, Renato. Classes dominantes, Estado e os conflitos políticos na
Primeira República em São Paulo: sugestões para pensar a década de 1920. In:
LORENZO, Helena Carvalho de; COSTA, Wilma Peres da (Orgs.). A década de
1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. p. 37-69.
PORTO ALEGRE, Aquiles. Homens ilustres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Erus, s. d.
PRATES, Homero. As horas coroadas de rosas e de espinhos. Rio de Janeiro: Tipografia
Progresso, 1912.
______. Arte regional. Panóplia, jan. a mar. de 1918, p. 5.
______. História de Dom Chimango. Rio de Janeiro: Livraria Machado, 1927.
RODRIGUES, João Paulo Coelho de Souza. A dança das cadeiras: literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). Campinas: Editora da Unicamp,
2003.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
SIRINELLI, Jean-François. Le hasard ou la nécessité? Une histoire en chantier:
l’histoire dês intellectuels. Vingtieme Siécle: Revue d’Histoire, v. 9, n. 9, p. 97-108, 1986.
151
SILVEIRA, C. D. M. da • Dom Chimango e a torre de marfim
______. Génération intellectuelle: khâneux et normaliens dans l’entre-deux-guerres.
Paris: Fayard, 1988.
______. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio
de Janeiro: FGV Editora, 2003. p. 231-269.
SPALDING, Walter. Construtores do Rio Grande. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1973. v. III.
VELLOSO, Monica Pimenta. As distintas retóricas do moderno. In: OLIVEIRA,
Cláudia; VELLOSO, Monica Pimenta; LINS, Vera. O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. p. 43110.
______. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 1996.
VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. O teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2012.
WASSERMAN, Claudia. “O Rio Grande do Sul e as elites gaúchas na Primeira
República: guerra civil e crise no bloco de poder”. In: GRIJÓ, Luiz Alberto; KÜHN,
Fábio; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; NEUMANN, Eduardo Santos.
Capítulos de história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004.
WILLIAMS, Raymond. A fração Bloomsbury”. Plural: Revista de Ciências Sociais,
São Paulo: USP, n. 6, p. 139-168, 1999.
152
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Intelectuais em luta:
a polêmica História da Grande Revolução1
Jefferson Teles Martins
Este artigo visa analisar uma das mais importantes polêmicas que
dividiram as opiniões e posições dentro do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Sul, a fim de revelar os mecanismos de coesão e afastamentos, arranjos, concessões e constrangimentos intelectuais envolvidos em
tal disputa. Sem esquecer o teor ideológico das posições intelectuais assumidas, procurar-se-á destacar que esta luta era, também, por posições “objetivas” (sociais e simbólicas) na esfera intelectual. Como uma luta que, por
vezes, assumia uma forma implacável e pessoal, implicava a mobilização
do máximo de recursos (sociais e intelectuais) no aniquilamento da opinião divergente.
As polêmicas e conflitos entre intelectuais permitem entrever certas
regras que mediavam o embate, tal como nos “duelos” da “sociedade de
corte”. O concurso entre os litigantes assumia caráter público, mobilizando
opiniões a favor e contra um lado e outro através da imprensa. A abordagem deste artigo está norteada pela percepção da “polêmica” como parte
do conjunto de expressões intelectuais encenadas socialmente e, em que
pese o conteúdo que era propriamente objeto da disputa, ela enfeixava um
conjunto de repertórios “cênicos” previsíveis ou esperados, dentro de certos limites (às vezes extrapolados). Em suma, a polêmica era um elemento
atinente ao habitus intelectual da época. Em torno (ou dentro) das polêmicas podiam estar envolvidos atributos de engajamento ideológico, ou mesmo a propensão para a radicalização das opiniões, mas, principalmente, a
polêmica fazia parte do jogo social que proporcionava visibilidade e notoriedade dentro do universo “acadêmico” restrito da época. Como em todo
1
Conferência proferida na Sessão Ordinária do 93º aniversário do Instituto Histórico do Rio
Grande do Sul, na sua sede, em 5 de agosto de 2013.
153
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
“jogo”, alguns jogadores dominavam mais estas regras e as manejavam com
maior destreza social, “encenavam” o jogo com naturalidade e, assim, conseguiam tirar o máximo proveito da disputa.
Um “duelo” entre historiadores
Um dos maiores conflitos que ocorreu no interior do meio intelectual
rio-grandense se passou na década de 1930, às vésperas do centenário farroupilha, e envolveu duas figuras de proa da historiografia gaúcha: de um
lado, Alfredo Varella, diplomata e historiador, reconhecido e operoso na
produção histórica rio-grandense desde o final do século XIX, membro
correspondente do IHGRGS; e, de outro, Souza Docca, historiador e militar, que se destacou no início da década de 1920 com os seus escritos sobre
a Guerra do Paraguai. O primeiro, expoente máximo das teses platinistas,
defensor do separatismo dos farrapos e da influência platina na formação
rio-grandense. O segundo, lusitanista inveterado, aguerrido defensor da ideologia federalista dos farrapos, ferrenho inimigo das teses “varellianas”,
fundador e destacado membro e organizador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Muito embora os dois contendores não residissem no Rio Grande do Sul e boa parte da disputa tenha se dado através
da imprensa do Rio de Janeiro, o que estava em jogo eram as posições intelectuais e simbólicas na esfera intelectual rio-grandense, que se relacionavam com os principais motes da historiografia sulina: platinismo e lusitanismo.2 Esta polêmica é importante porque sintetiza as lutas entre as duas
principais vertentes ideológicas e historiográficas do Rio Grande do Sul, a
partir de 1920, e, pelo grau de aprofundamento da divergência, revela os
alinhamentos e tomadas de posição da elite intelectual gaúcha.
Em 1933, Alfredo Varella lançou a “obra de tomo e peso” chamada
A História da Grande Revolução, que o governo do Estado mandou editar, sob
os auspícios do Instituto Histórico do Rio Grande do Sul. A dupla oficialização da obra provocou uma renhida reação dos historiadores membros do
Instituto que não apenas não esposavam as ideias contidas na obra, mas
2
Ieda Gutfreind (1992) apontou duas matrizes ideológicas principais na historiografia rio-grandense: a matriz platina e a lusitana. Entretanto, esta mesma autora reconheceu a existência de
outras clivagens e “divisão interna em nível de IHGRGS” (p. 108), entre elas, por exemplo, “a
continuidade dos ressentimentos entre positivistas e católicos no interior do Instituto” (p. 114).
154
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
eram seus inimigos declarados. Tratava-se da interpretação que Alfredo
Varella fazia da Revolução Farroupilha realçando o seu caráter “seccionista” ou separatista, que desagradava a maior parte dos membros do IHGRGS.
A chancela dupla de A Grande Revolução gerou constrangimentos aos historiadores gaúchos empenhados, desde 1920, em negar não apenas o caráter
“seccionista” da Revolução Farroupilha, mas todas as teses que ressaltassem a identificação do Rio Grande com o Prata, para, em contraposição,
assentar como matriz histórica legítima a tese do “federalismo” dos farrapos – como princípio de unidade – e a preponderância da influência lusitana na formação histórica do Rio Grande do Sul (GUTFREIND,1992;
NEDEL, 1999).
Naquele mesmo ano, Alfredo Varella esteve no Rio Grande do Sul
em visita ao interventor federal, general Flores da Cunha, enquanto eclodiam as crises políticas do período, e recebeu deste a oferta de patrocínio
para a edição da obra comemorativa ao centenário farrapo. Flores da Cunha havia recém criado um novo partido – Partido Republicano Libertador
– constituído por dissidentes do Partido Libertador, do Partido Republicano Rio-Grandense e outros aliados que haviam rompido com a Frente Única
Gaúcha (FUG) e apoiado Getúlio Vargas na Revolução Constitucionalista. No plano estadual, o PRL iniciou seus trabalhos sob forte oposição da
FUG. No plano nacional, a efêmera aliança entre Vargas e Flores logo deu
sinais de fraqueza e vieram à tona os conflitos entre ambos, relacionados a
temas como a descentralização do poder e a autonomia dos estados. Segundo Alzira Abreu, “Flores da Cunha instruiu a bancada de seu partido
para que defendesse a fórmula federativa, resistindo à centralização e ao
aumento das tarifas, destinado a fortalecer a renda nacional às custas dos
estados” (ABREU, p. 2551). A publicação da obra de Alfredo Varella apareceu como uma oportunidade de Flores da Cunha demonstrar as suas qualidades de “alto patriotismo” e, ao mesmo tempo, mobilizar ganhos políticos em torno da comemoração daquele que era considerado o maior evento da história gaúcha. Toda a comemoração do centenário recebeu amplo
apoio e investimento do governo do Estado. Além disso, o conteúdo da
obra de Alfredo Varella ia ao encontro da posição de Flores que, então,
defendia a “fórmula federativa” como princípio de descentralização.
Os originais da referida obra foram entregues ao presidente do Instituto Histórico, o desembargador Florêncio de Abreu, que, após leitura e
155
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
revisão, não viu óbice à publicação, e passou a responsabilidade da impressão à Livraria do Globo. Entretanto, os demais membros só tomaram conhecimento do conteúdo propriamente dito de A História da Grande Revolução após o trabalho já estar pronto, na rua.
Varella, hospedado no Grande Hotel Schimidt, em Porto Alegre, acompanhou pessoalmente, durante quase três meses, todo o processo de edição
da obra, indo diariamente às oficinas da Livraria do Globo. Inicialmente, o
secretário do Instituto – Dr. Eduardo Duarte – recebeu a notícia da publicação com grande expectativa. Em janeiro daquele ano, anunciou por carta
ao amigo Souza Docca: “A publicação do Varela está autorizada (ou aprovada) pelo interventor”. E augurava: “Espero que seja um furo que o Instituto vai dar”.3 Em abril, a expectativa ainda era grande e bastante positiva:
“O General Flores autorizou, como te disse, o financiamento da obra, no
que teve um gesto de alto patriotismo. E o Instituto levou um tento”. Informava ao confrade e amigo Souza Docca que, então, “a obra do dr. Varella
[...] está com o quinto volume da composição, o que quer dizer que os
quatro primeiros estão prontos, impressos, faltando a página de errata, que
estou ultimando”. Eduardo Duarte, a esta altura, expressava muita admiração pelo trabalho e pelo esforço pessoal de Alfredo Varella: “É um trabalho
formidável, como tudo o que sai das mãos daquele homenzinho”.4 Em maio,
Duarte prestava mais esclarecimentos a Souza Docca, agora, sobre a conclusão da publicação. Dizia: “A obra de Varela, (este segue para aí [Rio de
Janeiro]) já está entregue ao Instituto”. O trabalho fora finalizado em “seis
volumes, 3194 páginas de texto”. O secretário do Instituto mandou ofício
ao interventor solicitando permissão para “oferecer uma coleção a cada
um dos sócios efetivos do Instituto; e aos correspondentes com 50% de
abatimento”. Justificava-se: “É que a impressão saiu salgada: 72:391$800!”.
Ao ver o livro pronto, Eduardo Duarte, que conhecia de perto o difícil trabalho de edição, atestou: “É de fato, um homem que parece não conhecer o
cansaço. O trabalho que teve nestes últimos três meses foi extenuante, apesar de fortemente auxiliado”. E pôde folgar com o resultado: “Quando vi
tudo pronto, respirei a pleno pulmões. Deo Gratias!”.
3
4
Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 9-1-1933.
Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 19-4-1933.
156
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Até então, a visão simpática de Eduardo Duarte sobre Varella não
havia esmaecido, e ele chegou a aconselhar Souza Docca a estreitar relações com o velho historiador: “Varela é um tipo gentil e te aprecia. Por que
não te aproximas desse belo espírito? Faze-o, meu bom amigo, pois são
momentos agradáveis que se passa em tão bela companhia”. Revelou a
Docca: “Por mais de uma vez estiveste em foco em nossas palestras com
Varela”. Mas repetiu, sempre diligente, ao amigo o juízo restritivo emitido
por Varella sobre o historiador-coronel: “Esse moço tem muito talento e
amor à pesquisa...”, dissera o velho historiador platinista, porém acrescentara: “mas, muito tem errado... fácil seria vencê-lo; não quero, entretanto,
pois eu também errei muito. Há de reconhecer seus erros, um dia, e emendar-se-á”.
Naquele ano, Eduardo Duarte foi para o Rio de Janeiro, com as diárias pessoais pagas pelo governo do Estado, com o fito de controlar as publicações de O Processo dos Farrapos, obra realizada e anotada por Aurélio
Porto, feita a expensas do Arquivo Nacional. Tal motivo oportunizou que
Duarte e D. Mimosa, sua esposa, ficassem na Capital Federal, de agosto a
outubro. Portanto, neste período cessam as correspondências fiéis entre os
confrades Duarte e Docca, pois puderam trocar impressões pessoalmente
sobre a obra de Varella. Já em outubro, num tom bem distinto das impressões que Duarte alimentara sobre Varella, começou a polêmica através das
páginas do Jornal do Comércio (Rio). Em 12 de outubro de 1933, Souza Docca
fez o primeiro ataque a Varella classificando a obra A Grande Revolução de
cheia de “inexatidões”, “divagações”, “embaraçadoras de uma boa leitura”, “máculas, em suma, que fazem dos seis tomos um intrincado cipoal”.
O que seguiu foi o fogo cerrado de 18 artigos enviados por Alfredo Varella
desde Lisboa, e publicados pelo mesmo jornal, em defesa de suas teses e, ao
mesmo tempo, de ataque ao tenente-coronel Souza Docca.
Antes disso, houve troca de correspondências entre os antagonistas.
Em uma delas, Varella evoca princípios da justa cavalheiresca. Dizia Varella, chamando o adversário para a luta: “A grei a que pertencemos, cujas
melhores tradições fixei com escrupuloso amor à verdade, observou em
todo tempo fidalgas regras, nos choques pessoais. Cavalleria rusticana, mas
lídima, pura cavalaria, invariavelmente”. Com alusão direta aos antigos
duelos afirmava: “O gaúcho de boa lei, ao arrancar da cintura o instrumento de morte, para agredir, achava indigno de si valer-se da arma, contra um
157
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
ser inerme. Antes de ajustar a mira, bradava, generoso, ao adversário: ‘Tire
a sua pistola’”. Justificava essa reminiscência para advertir o tenente-coronel: “V. Exa. me sai a caminho quando me faltam agora todos os meios de
defesa ou ataque”, alegando, assim, que estava em desvantagem para o
embate, já que “dispõe-me o meu contendor de todas as minhas obras, para
espiolhar o que lhe convenha, a fim de que logre melhor êxito a sua empreitada”. Por seu turno, dizia: “ao passo que me não posso aproveitar de nenhuma das suas já numerosas produções”. Por fim, “na esperança de que
se queira medir comigo em boa liça”, solicitava ao oponente: “me mande,
sem demora, os seus vários trabalhos; que infelizmente não se acham no
mercado, razão por que o importuno”, ao passo que, também, se comprometia em arcar com todos os custos da remessa.5 Travada a pugna por carta, veio o contra-ataque público. De 29 de outubro de 1933 a 20 de maio de
1934, em 18 artigos, Varella empregou sua verve áspera e erudita para desafiar o tenente-coronel a apontar as falhas no seu trabalho: “Justifique, na
arena, que não é um embusteiro farfalhoso, enumerando, repito, as minhas
‘inexatidões’ e ‘divagações’. O mais é chover no molhado ou escapar-se do
rinhedeiro (sic), como galo maltrido (sic) e cacarejador.”6
No quinto artigo (e um dos mais longos), de 18 de fevereiro de 1934,
Varella expôs o seu método de pesquisa histórica para contrastá-lo com o
de Souza Docca, que, segundo ele, abordou o “mais complicado tema” dos
domínios da historiografia sulina “com a superficialidade ou leviandade de
um escolar novato nos Liceus”. Ele, ao revés, procedeu “conforme a lição
dos veteranos”.
Segundo Varella, ele observou os seguintes passos:
a) fixação da “tradição oral”: percorrendo de “de Torres a Uruguaiana, do Rio Pardo a Santa Vitória”, cenário da Revolução Farrapa, e ouvindo “aos mais notados, como aos mais humildes, da grei heroica ainda sobrevivente”, dizia Varella: “excogitei, com uma pia de devoção, o que persistiu de inequívoco, nítido assaz, na memória de uns e outros”.
b) o trabalho heurístico: consistindo na pesquisa em arquivos públicos e privados, entre os quais o Arquivo Público, a Biblioteca Nacional,
“todos os papéis soltos” do Itamarati, as coleções oficiais de Montevidéu,
5
6
Varella a Souza Docca, 5-10-1933.
Jornal do Comércio, 31-12-1933.
158
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Lisboa, Sevilha, Bolonha e os “tombos privados” do Marquês do Lavradio,
Condes da Migueira e de Tarouca;
c) revisão bibliográfica – explicava Varella, “percorri, um a um, todos
os [livros] de história que abraçam o campo da evolução austrina”, entre os
quais o historiador incluiu os “descritivos de viagens”, e ainda acrescia:
“refresquei minhas noções de uma sólida filosofia”.
O trabalho final resultaria na obra em seis volumes, assim divididos:
1º) os antecedentes mais amplos, a “etiologia” ou “origens”, incluindo os “coeficientes morais, intelectivos” que teriam predisposto os habitantes da província sulina a “adotar o programa separatista”;
2º) as causas ocasionais que aceleraram a marcha revolucionária;
3º) a descrição ampla da Revolução;
4º) o papel da “natureza” como “moto que esteve a bipartir o Brasil”;
5º) o idealismo dos farrapos;
6º) a Revolução inserida no contexto platino
No quinto volume da obra, Varella resume e defende de forma patente a ideia do separatismo político dentro do programa dos farroupilhas.
Este é o ponto fundamental de divergência entre Souza Docca e Varella.
Para este, a contradita suscitada “em duas escassas, magras, sofisticantes,
desalinhavadas colunas do Jornal do Comércio” faziam de Souza Docca “um
impagabilíssimo desfiador de novelas imperialistas, mais que sediças”.7
A abordagem da “metodologia” de pesquisa indica que estava em
jogo não apenas o embate ideológico do lusitanismo e do platinismo, mas
também os elementos simbólicos que distinguiam o fazer história e o ser
historiador naquele momento. Portanto, a disputa que subjaz ao confronto
das visões e teses sobre “republicanismo”, “federalismo” e “separatismo”
dos farrapos é a luta pela definição de quem é o historiador mais autêntico,
mais balizado, por conseguinte, mais “verdadeiro”.
As acusações recíprocas de que um e outro historiador não procediam com ética ao abordar os temas históricos chamam a atenção para os
aspectos simbólicos da disputa que dizem respeito à prática e representação
do ofício do historiador, portanto à luta pela detenção dos atributos simbólicos que distinguem o “verdadeiro” historiador. Souza Docca acusava ao
defensor da tese separatista de “pôr de parte o que desconvém” ao seu “pre-
7
Jornal do Comércio, 18-02-1933.
159
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
dileto argumento”, ao passo que Varella rebatia: “Vai ficar demonstrado à
sociedade, com a máxima superabundância, que o tenente-coronel é quem
se mostra useiro e vezeiro em ‘sonegações’”.
No seu 15º artigo, Varella procurou expor publicamente a “improbidade” historiográfica de seu “detrator”. Docca havia destacado Marciano
Ribeiro como preparador intelectual do movimento farroupilha em oposição à primazia do concurso de Livio Zambeccari, realçado por Varella. Em
contrapartida, Alfredo Varella pediu ao seu oponente, em 31 de dezembro
de 1933: “Faça o obséquio de trasladar na maneira mais ampla que lhe for
possível, o que lhe consta de Marciano Ribeiro, como preparador intelectual
do Movimento Farroupilha, destacando mormente quanto supere o seu
concurso ao de Zambeccari”. Quatro meses depois, Varella queixou-se da
falta de resposta: “Fugiu de responder: bem sabe por quê!”. E adiu a seguinte explicação pelo silêncio do rival: “Transparente eu deixaria, 1º que
se serve de fazenda alheia; 2º que avança proposições descabeladas sem ter
nem sombra de razão para justifica-las; 3º que ousa falar do que totalmente
desconhece, por estudo próprio” (grifos meus). A acusação de citação indevida da fonte também se refere a outro personagem da Revolução Farroupilha, Pedro Vieira, em relação ao qual Varella teria feito nova interrogativa a respeito da fonte utilizada, mas que Docca “também se esquivou de
responder, ciente por demais da lição a que se ia sujeitar”. Por fim, assim
resumiu o caso de citação indevida:
Se, vem a debate, exibiria eu prova de que cita com uma vergonhosa improbidade. Verbi gratia, à página 67, do “Brasil no Prata”, alude a Pedro Vieira,
o herói americano que teve berço no Rio Grande. Tudo o que dele menciona
foi tirado de “Revoluções Cisplatinas”, I, 108 [de Varella]. Mas como não
lhe quadrava confessar onde fora aprender, como também lhe pareceu vantajoso inculcar-se autor do bom informe, estampa que se acha este no Arquivo de Almeida. Isto é, em arquivo que nunca viu e passou inteirinho à minha
propriedade! (grifo no original).8
À medida que a polêmica avançava, o tom das investidas se tornava
mais veemente e agressivo. Igualmente, iam-se formando grupos de solidariedade de ambos os lados. Em defesa de Varella acorreram, em menor
8
Em O Solar Brasílico, obra publicada postumamente, Varella insiste na acusação: “Docca por
demais sabe, quanto seus comparsas, quem ‘churrasqueia’ de contínuo a minha custa: sabem por
demais quem pratica seguido, em minha ‘invernada’, o mais estranho abigeato!” (VARELLA,
1950, p. 60).
160
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
número, intelectuais de sua geração e do centro do país, entre os quais destacou-se o historiador Basílio de Magalhães, que chegou a travar acirrada
controvérsia com Souza Docca, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e, também, pelo Jornal do Comércio. Basílio de Magalhães proferiu no
IHGB uma conferência sobre o tema da Revolução Farroupilha, discutindo o caráter do “idealismo farrapo”, se separatista ou não. Nela, Basílio de
Magalhães sustentou que negar a existência da ideia separatista “seria o
mesmo que negar a luz do sol”. Para ele, “foram os fatos supervenientes
que levaram ao coração e ao cérebro dos responsáveis pela República de
Piratini o arrependimento da separação”. Amparando-se em Alfredo Varella, Assis Brasil, Tristão de Alencar Araripe e Pandiá Calógeras, sustentou
que as ideias separatistas “só haviam praticamente desaparecido em 1845”.
Arrematou a tese esposada dizendo:
Até 1843, pelo menos, se houve qualquer manifestação, individual ou coletiva, contra a separação do Rio Grande do Sul, entre os próprios “farrapos”,
não passou ela de palavras, das quais destoavam todos os atos do governo e
do Novo Estado, que além de haver decretado e executado o confisco dos
bens dos súditos brasileiros, ali residentes, que não aderiram ao regime republicano (cfe. Araripe, loc. cit., 199-200), chegou a aceitar ou mesmo angariar a cooperação de estrangeiros, e, finalmente a entabular ou firmar pactos
diplomáticos de natureza político-militar com os vizinhos do Uruguai e da
Argentina.
Do lado de Souza Docca foi maior a solidariedade. A polêmica em
questão ensejou a aproximação entre Luiz Felipe Castilhos de Goycochea
e Souza Docca. Goycochea disse, por carta, que havia muito procurava
estreitar as relações com Souza Docca, tendo “esse desejo acentuado ultimamente com a leitura dos seus lapidares estudos no JORNAL DO COMÉRCIO, em resposta a asserções dos drs. Alfredo Varella e Basílio de
Magalhães”.9 Castilhos de Goycochea já tinha entrado em contato com o
IHGRGS, através de Eduardo Duarte, e feito pedido veemente para que
essa agremiação emitisse parecer público, desautorizando a tese separatista
defendida por Varella em A História da Grande Revolução, uma vez que esta
obra foi publicada sob os auspícios do IHGRGS. A ideia de escrever ao
Instituto surgiu-lhe após ler artigo de Souza Docca, no Jornal do Comércio,
rebatendo as afirmativas de Alfredo Varella.10 Solicitou ao secretário do
9
10
Castilhos de Goycochea a Souza Docca, 2 de dezembro de 1934.
Revista do IHGRGS, IV trimestre, p. 267, 1934.
161
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
Instituto e diretor do Arquivo Histórico do Museu do Estado, Eduardo
Duarte, “encabeçar um movimento no seio do Instituto Histórico no sentido de desautorizar a tese defendida pelo dr. Varela”. Deste “movimento”
resultou o parecer oficial do Instituto assinado pelos consócios Othelo Rosa
e Darcy Azambuja, que, embora, reconhecendo o “indiscutível valor”11 da
obra, concluiu:
a) O “Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul”, patrocinando a “História da Grande Revolução”, do dr. Alfredo Varela, ateve-se exclusivamente ao mérito da obra, sem dar a sua solidariedade intelectual às ideias preferidas pelo autor;
b) No tocante ao separatismo dos revolucionários rio-grandenses de 1835,
em manifestações anteriores e inequívocas havia o Instituto afirmado o seu
pensamento, contestando-o e negando-o, o que envolve também a recusa da
influência platina no movimento farroupilha, nas condições e na amplitude
com que a admite o conspícuo historiador, dr. Alfredo Varela (sic).
Esta mesma refrega aproximou, momentaneamente, Souza Docca e
Walter Spalding, jovem professor e historiador, recém-ingressado nas fileiras do IHGRGS. Ambos já haviam divergido em outras searas do estudo
histórico. Souza Docca empreendera o trabalho de “reabilitação histórica”
de Bento Manoel12, mas, para Walter Spalding, o Brigadeiro sorocabano
continuava a ter um papel pouco louvável entre os “heróis” farrapos. Em
carta de 2 de fevereiro de 1934, Spalding responde a Docca sobre outra
divergência de opinião histórica entre ambos. Trata-se da apreciação de um
estudo de Spalding sobre a “influência das estâncias na formação do Rio
Grande”. Assim resumiu Spalding a sua posição: “Origem espanhola do
Rio Grande do Sul. Este é o ponto capital, digo melhor: o ponto de discordância completa entre os nossos modos de ver”. Para Spalding, naquele
estudo, a “origem” do Rio Grande do Sul era espanhola, pois remontava à
ocupação jesuítica (espanhóis), de 1626 até 1759, contudo, negava inteiramente o concurso da “influência” espanhola na formação rio-grandense:
“Nego, e sempre negarei a influência espanhola no nosso Rio Grande” (grifo
no original). E asseverava que “entre origem e influência há um abismo”.
Os autores do parecer reconheceram que seria praticada “injustiça notória” se negassem ao
“extenso trabalho, copiosamente documentado”, “o lugar que inquestionavelmente lhe compete entre os estudos de história rio-grandense” (Revista do IHGRGS, IV trimestre, p. 271, 1934).
12
Os esforços de Docca no sentido da reabilitação de Bento Manoel vinham desde uma publicação no Almanaque da Globo, de 1923.
11
162
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
Assim resumia a sua tese, que conciliava a ideia da presença primitiva dos
jesuítas espanhóis e a negação de sua influência:
Viviam os jesuítas somente entre os indígenas que se foram, na quase totalidade, para além Uruguai, depois de extinta a grande Ordem.
A influência, portanto, era somente sobre os silvícolas e em nada atingiu a
formação do Rio Grande propriamente dita, que, depois da entrada de João
de Magalhães e Silva Pais, mais tarde, ficou puramente português.13
Spalding, portanto, estava numa posição delicada no limite entre as
teses platinista e lusitanista; por isso, mereceu a “amável” redarguição do
zeloso defensor lusitanista, a quem teve de prestar seus esclarecimentos. A
posição de Spalding, que gerava certa dubiedade em seu discurso, expõe a
dificuldade dos intelectuais rio-grandenses em conciliar a “opção” ideologizada e consciente da historiografia sulina pelo lusitanismo e o estudo
empírico e social que situava o Rio Grande do Sul em um eixo históricogeográfico muito próximo ao Prata. A complexidade desta situação criava,
por exemplo, “explicações” históricas pouco sólidas e, ao mesmo tempo,
inaceitáveis a um lusitanista inveterado como Souza Docca. Após sua defesa, o jovem historiador porto-alegrense justificou ter-se detido num único e
delicado ponto do “questionário” que Docca lhe endereçara: “Não respondi sua carta tópico por tópico porque, como disse no início desta, estou de
acordo com a maioria de seus pontos de vista...”. O alinhamento contra
Varella, única opção “possível” dentro do ambiente historiográfico gaúcho
da época, apareceu em um dos parágrafos finais da missiva, em que Spalding emite enfático juízo condenatório, mais voltado contra a figura pessoal e as “intenções” de Alfredo Varella do que às suas teses, apontando que
naquele cenário intelectual, de fraca institucionalidade, as posições intelectuais eram bastante influenciadas pelo critério pessoal:
Recebi os seus trabalhos sobre a famigerada Historia do Dr. Varela, homem
douto, não resta dúvida, mas massudo e parcial, e tão parcial que chega a
ser falsário. O sr. ainda não disse tudo sobre a História da Grande Revolução, pois Varela afirma que toda a influência farrapa foi uruguaia e que
Bento Gonçalves foi o que foi graças ao seu convívio com os caudilhos uruguaios!!! Aliás, Varela procura glórias para a Pátria de seus antepassados...
de passado duvidoso (V. Remembranças)14 (grifo meu).
13
14
Walter Spalding a Souza Docca, Porto Alegre, 2 de fevereiro de 1934.
Walter Spalding a Souza Docca, Porto Alegre, 2 de fevereiro de 1934.
163
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
Pela missiva seguinte de Spalding a Docca observa-se que as divergências entre ambos quanto à avaliação da personalidade de Bento Manoel
e sobre a questão da origem espanhola do Rio Grande permaneceram inalteradas. Escusando-se por “não poder concordar” com Docca sobre a questão de Bento Manoel, Spalding rogou ao “ilustre amigo”: “Espero, porém,
que o sr. não me queira mal por isso e nem veja nessas minhas contraditas
má vontade ou prevenção”.15 E ainda reiterou sua posição sobre a “origem
espanhola” do Rio Grande. Por outro lado, a esta altura Spalding já havia
entrado diretamente na “luta” pública contra Varella, depois da publicação
do seu artigo intitulado “Separatismo e castelhanismo”, pelo Correio do Povo.
Embora não tenha mencionado intencionalmente o nome de Varella, diz
Spalding: “só para não lhe dar o prazer de ler o seu nome”, acrescenta que
“para ver que era tudo sobre ele e o sr. Basílio de Magalhães faltaria, apenas, acrescentar a fotografia de ambos”.16 Assim pôde minimizar as divergências com Souza Docca: “Creio que toda nossa questão [da origem ou
influência] é simplesmente de interpretação de palavras”, ao passo que realçou o que “realmente” importava e os aproximava: “mas, e graças a Deus,
estamos de acordo em uma cousa: na negação da ‘vareliana’ influência
espanhola Rio Grande. Isso é o essencial para nós, brasileiros e rio-grandenses.” E amenizou: “O resto são minúcias que nada prejudicam”.17 SoEm artigo do Correio do Povo, o professor Walter Spalding, utilizando uma carta do Barão de
Caxias, procurou demonstrar que “o que norteou o guerreiro da espada de dois gumes” – uma
alusão às repetidas trocas de lado de Bento Manoel entre legalistas e farroupilhas – “foi não só
a sua desbragada ambição, mas também o orgulho e a vaidade”. Fazendo referência a Souza
Docca e seu projeto de reabilitação de Bento Manoel, Spalding afirmou que o trabalho de
Docca, “um dos nossos maiores historiógrafos, não definiu ainda ‘in totum’ a personalidade
complexa de Bento Manoel Ribeiro” (Correio do Povo, 6 de julho de 1934, p. 3).
16
Walter Spalding, Porto Alegre, 4 de dezembro de 1934. Walter Spalding recebeu réplica ríspida e irônica em O Solar Brasílico, de Alfredo Varella, como no trecho a seguir, em que o autor,
referindo-se a Docca e Spalding, diz: “um de seus devotos, Walter Spalding, “spirito gentile”,
num requinte de benevolência, que Lucifer (sic) invejaria, indagou mui dulçoroso (sic), não há
muito, na imprensa diária, se de fato possuo os documentos que cito” (VARELLA, 1950, p. 57).
17
A relação entre Souza Docca e Walter Spalding esteve marcada pelas constantes divergências
ao longo dos anos 1930 e 1940. A assimetria também esteve presente nesta relação. De um
lado, o historiador estabelecido e reconhecido nacionalmente como referência em estudos riograndenses e das questões do Prata. De outro, o jovem professor e historiador, residente na
capital gaúcha, que, embora discordasse e contendesse com o “mestre”, recebia lições e questionamentos particulares com o fim de ser instruído, mais do que abatido. Os “manuais de
história” que Spalding recebia em forma de cartas de Docca serviam para ser “ensinado por
meio delas”. Entretanto, Spalding muitas vezes mostrou-se refratário aos ensinos do amigo:
“sempre há um ‘mas’ a atrapalhar as cousas”. Aos questionamentos de Docca, nem sempre
15
164
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
bre estas “minúcias”, Spalding e Docca continuaram a discutir, por cartas,
até que arrefeceram as forças e os argumentos do jovem historiador, que
veio a resignar e pedir que o debate fosse encerrado, assim justificando-se:
[...] a questão da “origem” do Rio Grande. Vejo que, querendo ser mais
explícito, fui ainda mais infeliz, jogando o assunto no terreno da geologia...
Francamente: estou convencido de que me não sei exprimir, de que não sei
mais escrever. Culpa, talvez, de meu bestunto demasiado cheio de tanta cousa
divergente e antagônica que, no fim, querendo eu dizer uma cousa, digo
outra. Situação perigosa. Quanto ao que me diz sobre a nossa amigável e,
para mim, preciosa contenda, tem toda a razão: foi, realmente, eu quem,
indiretamente, a provocou e, por isso, foi que, também, solicitei-lhe deixá-la
no pé que ficou.18
Esta “pequena” contenda entre Docca e Spalding, sem que chegassem a consenso, mostra as contradições internas do grupo lusitanista e o
quão frágil era o arranjo intelectual em torno do dogma historiográfico por
eles defendido. Entretanto, podiam ser vistos de fora como um grupo coeso. A despeito da confissão de fé e da postura iconoclasta de Spalding, cerrando fila ao lado do historiador-coronel, permaneceriam inúmeros pontos
de divergência e irreconciabilidades no discurso historiográfico de ambos,
ao longo de vários anos.
Por outro lado, os ânimos de Souza Docca e Alfredo Varella não
arrefeceram, e a controvérsia suscitada em 1933 estendeu-se, e agravou-se,
pelos anos seguintes, chegando até o centenário da Revolução Farroupilha,
quando saiu do terreno das ideias e das páginas dos jornais para assumir
lances mais imprevistos e menos prováveis. Em 1934, Alfredo Varella fez
publicar um livro, chamado Res Avita, que sintetizava as teses contidas na
História da Grande Revolução e dava resposta às críticas de seu arquirrival
Souza Docca. Quando chegou o ano de 1935, Varella pretendeu que o seu
Res Avita fosse apresentado na Exposição Farroupilha, no mês de setembro,
Spalding conseguia responder satisfatoriamente. Às vezes, Spalding justificava-se de forma
indulgente consigo mesmo, citando “erros” de outros historiadores para atenuar os seus próprios, pois, dizia, “quem erra, erra em boa companhia”. Ou, mesmo admitindo o erro, não
deixava de minimizá-los: “basta um pequeno cochilo para se cair em erros”. Mas aceitava a
reprimenda, em alguns casos: “[...] fico satisfeitíssimo quando me corrigem, estando eu em
erro, e especialmente quando a correção parte de um mestre como Souza Docca”. Já em
outras situações, quando não voltava atrás em seus pontos de vista, atribuía as divergências à
“questão, não raro, de palavras ou interpretação”.
18
Walter Spalding a Souza Docca, 4 de dezembro de 1934.
165
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
em Porto Alegre. Entretanto, segundo ficou registrado por Varella em O
Solar Brasílico, as cópias remetidas do centro do país para Porto Alegre teriam
sido escondidas para que não fossem exibidas na Exposição. Os responsáveis pelo suposto sumiço das cópias, de acordo com Varella, foram alguns
membros do próprio Instituto Histórico, interessados em ocultar os trabalhos do historiador dissidente. Assim resumiu a ação da qual teria sido vítima, em carta a Darcy Azambuja19:
Como Res Avita representava e representa uma sincera oblação em pátrios
altares, no recente jubileu setembrino, expedi a tempo um caixote direito ao
sul, com um centenar de tomos para venda e mais oito para oferta gratuita;
acompanhando os mesmos um rol de instruções e um modelo para anúncios. Pois nem estes feitos, nem os livros postos em mostruário, na fase da
grande concorrência à exposição de nossa magna Centúria. Apertado, cerradíssimo, intransponível cordão profilático, em volta de minhas irreverentes “heterodoxias”!
Quem o responsável, Exmo., pela nova interdição? É jurista e de nomeada.
[...] O traiçoeiro golpe me foi vibrado, é mais que evidente, por quem imaginou obter com ele subterrâneas, inconfessáveis, quanto miserandas, torpes
vantagens, já para o agaloado chefe dessa camorra literária, já para seus
comparsas, na indecente, iníqua societas sceleris!
Tinha eu notícia de que pessoa qualificada, no seio do Instituto, vivia a inquirir, no estabelecimento supra, se já chegada ou não, a obra em anúncios,
do paladino incorrupto da verdade. Tanto perguntou, que alfim (sic) se lhe
deu conta de que estava intramuros a malsinada publicação. Reativou-se a
negra conjura. Seus principais galopins saíram a campo, determinadíssimos
a impedir que corresse, ao menos enquanto a frequência de visitantes a Porto Alegre desse aso a maior procura. [...] pois bem, que havia de cavilar o
grupo dos maffiosi preditos, egrégio conterrâneo e confrade? Subtraíram-nos
de onde eu os coloquei em pessoa, declarando-se aos interessados, que reclamavam o que lhes pertencia, por dádiva minha; declarando-se com bronzea (sic) face, que tais volumes INEXISTIAM na fazenda expedida, também
recebida. INEXISTIAM... e por último foram entregues nas últimas semanas de dezembro, quando era de esperar que o fossem pelo meio de setembro – o mês consagrado à celebração do 2º jubileu farrapo!!! (VARELLA,
1950, p. 55, 56).
Este episódio traz à baila, dentro dos conflitos intelectuais, a utilização do boicote como estratégia para silenciar inimigos ou negar-lhes visibi19
Esta carta foi escrita para justificar a razão dos temores de Varella de ser vítima de complô,
pois, como queria receber o aval de que a doação dos arquivos históricos particulares (dos
quais era proprietário) ao Arquivo Histórico do RS teria destino apropriado, ele escreveu a
Darcy Azambuja, que na época era presidente do secretariado do Estado, para obter as garantias do bom destino da doação.
166
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
lidade e reconhecimento. Varella não seria o único a queixar-se de ter sido
vítima de tal expediente no meio intelectual rio-grandense. Poucos anos
depois, em 1940, era Walter Spalding que se queixaria a Souza Docca de
ser alvo de “boicotagem”. Por ocasião da publicação de seu livro A invasão
paraguaia, Spalding solicitou a Docca que este falasse com o ministro da
Guerra para que apoiasse a sua “modesta contribuição às glórias de nosso
Exército” recomendando-o aos oficiais e adquirindo alguns exemplares para
as bibliotecas militares do Rio de Janeiro. O apelo ao influente amigo militar residente fora da paróquia rio-grandense justificava-se, porque “nesta
nossa Porto Alegre a ‘boicotagem’ é um fato. Quem não pertence à panelinha, quem não convive com a turma do elogio mútuo – nada conseguirá”.
E complementava a denúncia: “Meus livros nunca são expostos: escondem-nos”
(grifos meus). Spalding percebia a “prevenção” contra ele pelo “verdadeiro
desastre de livraria que foi meu livro anterior ‘A Revolução Farroupilha’”,
ao passo que “no Centro e no Norte, ao contrário: foi bem recebido”.20 Esta
queixa de Spalding lembra muito a denúncia de Varella de que teria sofrido
boicote cinco anos antes.
Outro fator importante a ser destacado neste episódio é a visibilidade
que toda a discussão em torno das teses defendidas por Varella e Docca
teve no centro do país, de sorte que a maior parte do debate ocorreu no Rio
de Janeiro e não no Rio Grande do Sul.21 Entre os motivos que podem explicar esta centralização do debate, além do fato de que um dos principais antagonistas morava no Rio de Janeiro, está a disputa pela descrição de uma
“história legítima” e, também, pela afirmação de quem era o “porta-voz legítimo” da história do Rio Grande do Sul. Portanto, era um debate voltado, em
parte, aos historiadores e intelectuais do centro do país, e tinha como móvel
os atributos simbólicos que definiam quem era o “verdadeiro” historiador,
consequentemente, aquele que produzia a “verdadeira” história.22 Assim, não
Walter Spalding a Souza Docca, 16 de agosto de 1940.
Com a aproximação do centenário farroupilha, a imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo
publicou diversos artigos de intelectuais e historiadores que retomaram a discussão das teses
separatistas e federalistas da Revolução Farroupilha, destacando os pontos de vista de Docca
e Varella, entre os quais Roberto Piragibe da Fonseca (pelo Jornal da Manhã) e Plínio Barreto
(Estado de S. Paulo).
22
Souza Docca inaugurou, em setembro de 1932, uma série de conferências no IHGB, proferidas sempre no mesmo mês, até 1935, evidentemente, destacando o caráter republicano e federalista da Revolução de 1835.
20
21
167
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
foi difícil a disputa extrapolar os limites da discussão histórica e rumar para
o âmbito pessoal.
Vale, também, ressaltar que a disputa envolveu, ao mesmo tempo,
aspectos geracionais e ideológicos, que ajudam a explicar o desequilíbrio
na correlação de forças que permitiu aos contendores dispor da mobilização de diferentes e desiguais recursos sociais a seu favor. Alfredo Varella
representava a “velha geração” intelectual rio-grandense, que defendia a
“ultrapassada” autonomia do governo estadual frente ao poder central, em
voga nos primeiros anos do regime castilhista-borgista. Souza Docca, em
contrapartida, identificava-se com o momento histórico coetâneo, de aproximação entre os estados e o poder central, acentuado desde a subida de
Getúlio Vargas ao poder, em 1930. Esta condição favoreceu Souza Docca,
que contou com a adesão de historiadores e intelectuais do centro do país e
de Porto Alegre. Implícita está aí, também, a oposição do curso das trajetórias sociais dos intelectuais envolvidos. Varella vinha numa curva social
descendente, enquanto que a trajetória social de Souza Docca estava em
franca ascensão. Varella defendia uma ordem política ultrapassada e refratária à vigente no plano nacional. Varella, em carta pessoal a Osvaldo Aranha – depois publicada na íntegra na imprensa –, fez críticas claras ao governo instaurado em 1930, e à “Junta primitiva” e à tendência “a cercear
ainda mais a nossa já minguadíssima descentralização”, e deixou clara a
sua defesa do “programa federativo”, pelo qual classificava aquela tendência de “DISPENSÁVEL, PERIGOSA, UMA ENÉRGICA REGÊNCIA
NO CENTRO DO PAÍS”.23 Havia caído no ostracismo relativo e perdido a
posição privilegiada de estreita relação (política) com o governo rio-grandense de que havia gozado no período de afirmação do castilhismo, da qual
auferiu ganhos políticos e econômicos.24 Entretanto, teve a oportunidade
de lançar a sua nova obra sob o patrocínio do governo do Estado pela afinidade ideológica com o interventor federal no Rio Grande do Sul, que, isolado, naquele momento, defendia a “fórmula federativa” e fazia resistência
à centralização do governo federal. A circulação social em sentido descendente de Varella o levou, no final da carreira, à estratégia de investimento
simbólico na esfera intelectual, representada pelo lançamento de A História
da Grande Revolução, sua obra-prima. Apesar da franca oposição e hostil
23
Jornal do Comércio, 11-03-1934, p. 8.
168
Dos intelectuais na política à política dos intelectuais
recepção da obra pelos pares rio-grandenses, pode-se dizer que a estratégia
de Varella foi relativamente bem-sucedida, do ponto de vista simbólico,
pois o trouxe de volta ao jogo e ele, apesar de tudo, teve o valor da obra
reconhecido.25
Por outro lado, pela ótica dos recursos sociais auferidos, os maiores
dividendos foram de Souza Docca, que contou com a adesão e solidariedade de muitos e jovens intelectuais e recebeu largo reconhecimento, não
tanto pela qualidade das pesquisas realizadas, mas, sobretudo, por enunciar o que aqueles intelectuais queriam (ou deviam) dizer, só que para
isso, não desfrutavam da posição institucional e da visibilidade de Souza
Docca. No fundo, tratava-se do “único discurso aceitável” para aquela
geração. Portanto, havia certa “inexorabilidade” na adesão ao discurso
do qual Docca era porta-voz, e que foi sendo construído como único discurso legítimo, ao longo da década de 1920, com o concurso fundamental
do próprio Docca.26
Fontes
Fundo Eduardo Duarte – Arquivo do IHGRGS.
Fundo Souza Docca – Arquivo do IHGRGS.
Fundo Walter Spalding – Arquivo do IHGRGS.
Em janeiro de 1897, Alfredo Varella recebeu a concessão para explorar linhas telefônicas que
ligam Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, Bagé e Jaguarão pelo período de 24 anos, mesmo
ano da publicação de sua obra de estreia em História, Rio Grande do Sul: descrição física, histórica
e econômica. Já nos anos 1930, Varella queixava-se, às vezes, de não receber o salário de diplomata aposentado.
25
Na enquete realizada por Carlos Reverbel, na década de 1950, entre 44 intelectuais rio-grandenses, A História da Grande Revolução, de Varella, ficou em 3º lugar entre as Obras Fundamentais da Bibliografia Rio-Grandense. Curiosamente, nenhum dos livros de Souza Docca figurou
entre os 10 mais citados ou apreciados.
26
O posicionamento de Basílio de Magalhães ajuda a perceber o gradiente geracional envolvido
no conflito. Magalhães, ao findar sua argumentação contra assertivas de Souza Docca a respeito do papel atribuído a Zambeccari na Revolução Farroupilha, marca sua posição ao lado
de Alfredo Varella e Assis Brasil: “[...] prefiro continuar em erro com os velhos e eruditíssimos
generais da história gaúcha a acertar com o meu jovem e gratuito crítico, totalmente desajudado de provas que liquidem e pacifiquem a controvérsia por ele criada” (Conferência proferida
no IHGB, Jornal do Comércio, 4 de novembro de 1934). Em 1934, Basílio de Magalhães tinha
60 anos e Alfredo Varella, 70 anos. Do outro lado, Souza Docca contava 50 anos, Walter
Spalding, 33 anos e Castilhos de Goycochea, 43.
24
169
MARTINS, J. T. • Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução
Referências bibliográficas
ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário histórico-biográfico brasileiro: pós-1930. Rio
de Janeiro: FGV, 2001.
BOURDIEU, Pierre. O campo intelectual: um mundo à parte. In: ______. Coisas
ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 169-180.
______. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
_______________. Intelectuales, política y poder. Buenos Aires: Eudeba, 2006.
GUTFREIND, Ieda. A historiografia rio-grandense. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1992.
MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Universidade/
UFRGS/IEL, 1978.
NEDEL, Letícia. Paisagens da Província: o regionalismo sul-rio-grandense e o Museu Júlio de Castilhos nos anos cinquenta. 1999. Dissertação (Mestrado em História) – UFRJ, 1999.
NEVES, Gervásio Rodrigo. Leituras consideradas fundamentais para conhecer o
Rio Grande do Sul na metade do século XX. Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 41, p.
283-306, jan.-jun 2007. Disponível em: <http://www1.fapa.com.br/cienciaseletras/pdf/revista41/Artigo_Gervasio.pdf:>. Acesso em: 20 mar. 2010.
SOUZA DOCCA, E. F. O sentido brasileiro da Revolução Farroupilha. Porto Alegre:
Globo, 1935.
VARELLA, Alfredo. O Solar Brasílico: remate nos muros austrinos. Rio de Janeiro:
Instituto América, 1950.
170

Documentos relacionados