José Alberto Nascimento de Jesus - PPGHIS

Transcrição

José Alberto Nascimento de Jesus - PPGHIS
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local
JOSÉ ALBERTO NASCIMENTO DE JESUS
TRABALHADORES DA VIAÇÃO FÉRREA FEDERAL LESTE
BRASILEIRO ENTRE PERCURSOS E PERCALÇOS NA CIDADE
DE SÃO FÉLIX-BA – DÉCADAS DE 1940/1950.
Santo Antônio de Jesus
2009
JOSÉ ALBERTO NASCIMENTO DE JESUS
TRABALHADORES DA VIAÇÃO FÉRREA FEDERAL LESTE
BRASILEIRO ENTRE PERCURSOS E PERCALÇOS NA CIDADE
DE SÃO FÉLIX-BA – DÉCADAS DE 1940/1950.
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Raphael Rodrigues
Vieira Filho
SETEMBRO / 2009
TERMO DE APROVAÇÃO
JOSÉ ALBERTO NASCIMENTO DE JESUS
TRABALHADORES DA VIAÇÃO FÉRREA FEDERAL LESTE
BRASILEIRO ENTRE PERCURSOS E PERCALÇOS NA CIDADE
DE SÃO FÉLIX-BA – DÉCADAS DE 1940/1950.
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História
Regional e Local, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre.
_______________________________________________
Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho
_______________________________________________
Prof. Dr.
________________________________________________
Prof. Dr.
________________________________________________
Prof. Dr. Suplente
________________________________________________
Prof. Dr. Suplente
SETEMBRO / 2009
J585
Jesus, José Alberto Nascimento de.
Trabalhadores da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro entre
percursos e percalços na cidade de São Félix – BA, décadas de
1940/1950. / José Alberto Nascimento de Jesus - 2009.
150 f.: il
Orientador: Prof. Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2009.
1. Ferroviários. 2. Ferroviários - Administração. 3 Ferrovias – Brasil História I. Vieira Filho, Raphael Rodrigues. II. Universidade do Estado da
Bahia, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local.
CDD: 385.098142
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
DEDICATÓRIA
À Deus, que me concedeu o dom da vida e
poder da inspiração.
À Idilene Souza Costa, pela companhia de
todas as horas, como esposa.
AGRADECIMENTOS
Agradecimento inicial à Universidade do Estado do Bahia – UNEB, pelo Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local, no Campus V, em Santo Antônio de Jesus,
atendendo a demanda dos estudantes pelo mestrado nessa área numa cidade do interior.
Grato a todos os professores permanentes e visitantes que compuseram e compõem o
quadro docente do Mestrado em História Regional e Local da UNEB – Campus V – Santo
Antônio de Jesus.
Agradecimento especial à Secretaria de Educação do Estado da Bahia pela concessão
da licença remunerada, ao longo de dois anos, para dá conta dos créditos das disciplinas,
pesquisa em arquivo e entrevistas e, conseqüentemente, elaboração e defesa da dissertação.
Particularmente grato a Oséias – coordenador do Arquivo Público Municipal de São
Félix, pela atenção e por proporcionar acesso direto e incondicional aos documentos escritos e
ao acervo de fotografias existentes nesse órgão. Agradecimento que é extensivo aos dois
funcionários que aí atuam.
Sou grato aos ferroviários aposentados da extinta Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro, pelo desprendimento na exposição de suas memórias e experiências pessoais.
Desse contanto resultou saberes e novos vínculos de amizade em outras como Jaime, Álvaro,
Deolino, Israel, Herval e Vivaldo, assim como, pessoas que voluntariamente destacaram
aspectos pertinentes na pesquisa.
Não poderia deixar de citar a amizade construída com André e Renilda, serventuários
que atuam no Cartório de Registro Civil, do Fórum Andrade Teixeira, da cidade de São Félix,
na obtenção de dados sobre ocupação, domicílio e idade nos livros de registros de casamento
civil.
Fraterno agradecimento aos amigos pelo apóio moral, e aos colegas de curso – Carlos
Nássaro e Osvaldo Félix –, que mediante sugestões bibliográficas, deram seus incentivos para
continuar à frente na trilha da pesquisa. Aos colegas de trabalho, Alex de Jesus, Andersen K.
Figueiredo, Bruno Fassanário e Luís Cláudio Nascimento pela contribuição realizada com
empréstimo de livros.
E por fim, o agradecimento se dirige ao orientador, o professor Dr. Raphael Rodrigues
Vieira Filho que nos momentos oportuno chamou a atenção para o foco da pesquisa. Ainda
sobre a parte das orientações segue os sinceros agradecimentos à corretora ortográfica,
Abigail Fonseca, na coerência das idéias dispostas no texto.
Esse agradecimento se estende também aos profissionais da JLC Produções pela
providencial adequação do texto às Normas da ABNT, assim como, todo o trabalho de edição
e impressão do texto.
À funcionária da Biblioteca da UNEB – Campus V, Juliana, pela elaboração da Ficha
Catalográfica necessária ao processo de divulgação da obra. À professora Daniela Sá pelo
espírito solidário e voluntarioso apoio, auxiliando na tradução do resumo.
RESUMO
Ao longo do século XX, a cidade de São Félix no Recôncavo Baiano passou por
acontecimentos significativos, com recorrentes alagamentos na cidade provocados pelas
cheias do rio Paraguaçu, atingindo as principais ruas e avenidas comerciais e residenciais do
local. Em meados do século houve um gradativo fechamento das principais fábricas de
charutos, reduzindo os postos de trabalho na cidade. Com o aparecimento das rodovias e a
massificação do transporte automotivo, a partir dos anos cinqüenta, acentuou-se o processo de
crise nos tradicionais sistemas de transporte – fluvial e terrestre. Ao se priorizar o transporte
de carga em caminhões tanto o setor ferroviário quanto o de navegação marítima foram
atingidos, culminando, por exemplo, com o encerramento do serviço de transporte da
Companhia de Navegação “Bahiana” no trecho Salvador/São Félix, em 1958. Já meados dos
anos quarenta a Viação Férrea Federal Leste Brasileiro transfere para as cidades de Salvador,
Alagoinhas e Aramari, algumas das principais oficinas instaladas em São Félix, atendendo ao
plano de operacionalização logística da empresa. Em meio a esta crise na economia local se
constrói as relações produtivas e de trabalho dos ferroviários, conforme testemunho em
documentação escrita: jornais, atas e registros civis. Articulando elementos de solidariedade e
luta, mediada por negociação, conciliação, os ferroviários puderam interagir socialmente no
trabalho e em associações recreativas e comunitárias, compondo múltiplas experiências de
vida de cada um deles. Os relatos orais se revelaram indispensáveis ao processo de análise do
discurso e na construção de uma narrativa do conhecimento histórico.
Palavras-chave: ferroviários; trabalho; cidade.
ABSTRACT
Along the 20th century, the city of São Félix in the Recôncavo Baiano region went through
significant events, such as several floods caused by the Paraguassu River overflow reaching
the main streets and local commercial and residential avenues. In the middles of the century
there was a gradual close of the cigar factories, reducing the job offer in town. With the
appearance of the highways and mass usage of automotive transportations, since the fifties,
the crisis in the traditional mains of transportations - river and land- heightened. Prioritising
the cargo transportation by trucks, both the rail and shipping sector were smitten, culminating
with the closure of the transportation service of the Bahiana Shipment Company in the
Salvador/ São Félix leg, in 1958, for instance. In the middle of the forties the Brazilian East
Federal Railway transfers to Salvador, Alagoinhas and Aramari, some of the main workshops
installed in São Félix, fulfilling the logistic operationalization plan of the company. In the
midst of this crisis in the local economy is built the working and productive relations of the
railwaymen, according to testimonies in written documentation: newspapers, minutes and
civil registries. Articulating elements of solidarity and fight, mediated by negotiations,
conciliation, the railwaymen could socially interact in work and recreational and community
associations, composing multiple life experiences of each of them. The oral reports were
indispensable to the process of analysis of speech and to build a narrative of historical
knowledge.
Key words: Railwaymen; work; town
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Mapa 1:
Área geográfica do município de Iaçu-BA.
20
Figura 1:
Estação Ferroviária de Iaçu-BA, desativada.
21
Mapa 2:
Trecho da Estrada de Ferro entre a cidade de São Félix e a localidade de
Monte Azul (MG).
23
Percurso da Estrada de Ferro entre a cidade de São Félix e localidades do
Recôncavo Baiano.
24
Figura 2:
Fotos da enchente na cidade de São Félix, no ano de 1947.
34
Figura 3:
Fotos da enchente na cidade de São Félix, no ano de 1947.
39
Figura 4:
Imagem da Barragem de Bananeiras transbordada na enchente de 1947.
40
Figura 5:
Enchente na cidade de São Félix em 1947.
41
Figura 6:
Grupo de mulheres da Legião Baiana de Assistência – LBA. Entidade
instalada em S. Félix, em 1947.
42
Figura 7:
Distribuição de alimentos para as vítimas das enchentes de 1947. Na
campanha de Arrecadação, promovida pela Legião Baiana de Assistência
– LBA.
.
.
43
Figura 8:
Casas ribeirinhas atingidas pelas da enchente do rio Paraguaçu, em 1947.
46
Figura 9:
Casas construídas para as vítimas das enchentes na cidade de São Félix –
década de 1940.
47
Figura 10: Solenidade de entrega das chaves das casas construídas pela Prefeitura de
São Félix às vítimas das enchentes de 1940.
49
Figura 11: Vista da Av. Salvador Pinto tomada pelas águas do rio Paraguaçu, na
enchente em S. Félix, em 1947.
50
Figura 12: Reunião do Sindicato dos Estivadores sobre as enchentes na cidade de São
Félix, em 1947.
52
Figura 13: Foto de uma rua comercial da cidade de São Félix alagada com a enchente
– década de 1940.
53
Figura 14: Navio à vapor da Cia. de Navegação Baiana – década de 1940 – no porto
da cidade de Cachoeira.
58
Mapa 3:
Mapa 4:
Linhas de Navegação e Linhas Ferroviárias da Bahia no início do século
XX.
60
Figura 15: Embarcações à vela ancoradas no porto de São Félix – década de 1940.
68
Figura 16: Movimento de pequena cabotagem – Porto de São Félix, década de 1940.
69
Figura 17: Navio da Companhia de Navegação Baiana, década de 1940.
71
Figura 18: Trem a vapor – década de 1940.
72
Figura 19: Imagem da colisão da locomotiva em um casarão – cidade de São Félix,
em 1959.
77
Figura 20: Imagem da colisão da locomotiva em um casarão – cidade de São Félix,
em 1959.
79
Figura 21: Comemoração do cinqüentenário ano da instalação da agência do Banco
do Brasil em S. Félix.
93
Figura 22: Luiz Gonzaga Dias como Presidente da Câmara de Vereadores, em 1973.
95
Figura 23: Recorte do Jornal alusivo à poesia de Luiz Gonzaga dias.
96
Figura 24: Homenagem ao aniversariante, jornalista Luiz Gonzaga Dias –
26/abril/1969.
101
Figura 25: Pai, tio, irmãos e primos do ferroviário aposentado Israel de Oliveira Melo
109
Figura 26: Celebração em “Ação de Graças” na Igreja Senhor São Félix – cidade de
São Félix.
139
LISTA DE TABELAS
26
Tabela 1:
Trajetória de crescimento da população de Salvador.
Tabela 2:
Registros informativos das enchentes na cidade de S. Félix, ao logo dos
41
séculos XIX e XX.
Tabela 3:
Situação que aparecem a expressão “Prendas domésticas” para algumas
45
mulheres.
Calendário dos dias e destinos dos navios da Companhia de Navegação 59
Baiana, mês de janeiro de 1941.
82
Histórico Populacional de São Félix e Distrito.
Tabela 4:
Tabela 5:
Tabela 6:
Tabela 7:
Naturalidade dos homens que residiam e trabalhavam na cidade de São
83
Félix.
Local de domicílio dos homens que trabalhavam na cidade de São Félix. 84
Tabela 8:
Naturalidade e domicílio declarados pelas mulheres – 1940 a 1960.
84
Tabela 9:
Atividades ocupacionais declaradas pelos homens.
87
Tabela 10: Ocupações das mulheres de ferroviários oficializaram o casamento.
88
Tabela 11: Censo Demográfico – 1. População por distrito.
90
Tabela 12: Censo Demográfico – 2. Principais características da população
91
Tabela 13: Principais características culturais.
92
Tabela 14: Representante de Estabelecimentos de crédito
92
Tabela 15: Trajetória de vereança de Luiz Gonzaga Dias.
97
Tabela 16: Atividades ocupacionais de homens da cidade de São Félix (1940-1960).
119
Tabela 17.1: Dados da declaração do casamento civil do ferroviário Vivaldo Costa.
123
Tabela 17.2: Dados da declaração do casamento civil de Zenilha Fernandes da Cruz.
124
Tabela 18: números e percentuais das mulheres que declararam exercer alguma
124
atividade fora do lar.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO
2
A
CIDADE
DOS
FERROVIÁRIOS:
CARACTERÍSTICAS
PECULIARIDADES SOCIOECONÔMICAS DE SÃO FÉLIX.
2.1 Percepção de uma cidade em formação.
2.2 As enchentes e a questão da moradia na cidade.
2.3 Fluxo e refluxo dos transportes na urbe de São Félix.
12
E
17
17
33
57
3
PARA ALÉM DA “CLASSE”: OS FERROVIÁRIOS DE SÃO FÉLIX NOS
EMBATES DA CIDADANIA.
81
3.1 Composição social a partir dos dados do Registro do Cartório Civil – 1940/1950.
81
3.2 Os ferroviários sobre a ótica do Jornal Correio de São Félix.
94
3.3 Trabalho e dignidade: exercícios de cidadania dos ferroviários na sociedade local.
104
4
4.1
4.2
4.3
O CIDADÃO FERROVIÁRIO ENTRE O TRABALHO E A CULTURA.
Construindo narrativas.
A filarmônica no processo de configuração do espaço de cultura dos ferroviários.
A constituição da sociabilidade: “Clube dos ferroviários”, futebol, lazer e cultura.
122
122
126
135
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
141
REFERÊNCIAS
143
12
1. INTRODUÇÃO
A presente dissertação é resultado de um árduo trabalho de pesquisa no Arquivo
Público Municipal de São Félix – Ba (Jornais; Atas de reuniões da Câmara de Vereadores,
Associação Atlética Sanfelixta; Acervo de Fotografias) e no cartório de registro civil de
casamento da cidade de São Félix. A documentação obtida mediante a declaração da
naturalidade, domicílio e ocupação possibilitou com esta fonte a composição de diversas
tabelas do quadro social que constituiu a referida cidade nas décadas de 1940/1950.
Os jornais impressos da cidade de São Félix constituíram-se em mais uma fonte de
análises, tendo como foco os artigos e editoriais publicados nos jornais sobre a sociedade e
comunidade local. O Jornal Correio de São Félix que foi um periódico semanal, fundado em
1934, mantendo ativo até meados dos anos setenta, abrangendo, portanto, todo o recorte
temporal do objeto de estudo – trabalhadores da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro na
cidade de São Félix.
Utilizando as técnicas de entrevista oral com ferroviários aposentados da referida
Companhia foi sendo possível colher informações, relatos de suas experiências de vida, assim
como traços que compuseram o universo simbólico pelo qual buscavam representar ou resignificar nas declarações. Essas fontes orais constituíram-se em matérias-primas para análise
desses sujeitos enquanto agentes históricos.
Além disso, o uso das narrativas orais revelou-se necessário não apenas como ponte
das lacunas dos documentos escritos, como também, pelas peculiaridades em cada
depoimento como arcabouço de experiências. Edward Thompson1 estabeleceu essa categoria
como itinerário de abordagem dos sujeitos, em particular, dos trabalhadores destacando a
dinâmica operária na Inglaterra do século XVIII.
Para Edward Thompson a experiência como categoria analítica daria conta da
“identificação de novos problemas”, ou seja, velhos problemas estudados com nova ênfase
para apreender as “normas ou sistemas de valores e rituais, atentando para as expressivas
funções das formas de amotinação e agitação, assim como para as expressões simbólicas de
autoridade controle e hegemonia” (THOMPSON, 2001, p.229).
O cenário da cidade de São Félix foi revisitado pelo conjunto de imagens
iconográficas produzidas por atores sociais resultantes de múltiplas representações dos
1
Uma referência mais detalhada a essa abordagem pode ser encontrada em A formação da classe operária
inglesa (vol. I, 1987).
13
lugares. Daí ter o uso das imagens fotográficas como fonte de interpretação, requerendo uma
sensibilidade diferente ao atribuído no documento escrito. Mas que, no entanto, contêm em si
escolhas, subjetividades do autor e, principalmente, vestígios de um passado a ser
problematizado pelo conhecimento histórico.
No entender de Déa Ribeiro Fenelon (1991) o caráter de evidência é um aspecto
comum a todas as fontes, requerendo um desafio a mais no ofício do historiador em desvendar
o “não dito” do qual se exige outras competências para tal empreitada.
Se levarmos em conta além de outros tipos de fontes textuais, os diferentes
suportes documentais como a fotografia, o cinema, o vídeo, a pintura, as
artes plásticas, o desenho, a charge colocando em cada um deles dificuldades
e soluções específicas e provocando, para os historiadores, uma infinidade
de questões que quase sempre só podem ser desenvolvidas a partir do
contexto da investigação [...] (FENELON, 1993, p.77).
A autora pontua a necessidade de considerar que o uso de todos esses registros como
“novas fontes” históricas a serem analisadas, nos colocam, de imediato, a obrigação de serem
desvendadas para extrair o não dito, as entrelinhas e aquilo que potencialmente permite
olhares e leituras diversas.
Particularmente, o Arquivo Público Municipal de São Félix está relativamente bem
servido com um acervo fotográfico, registros de acontecimentos marcantes na cidade ao longo
do século XX, como as recorrentes enchentes do rio Paraguaçu, que provocavam o
alagamento de ruas e avenidas. Os alagamentos representavam transtornos de várias ordens,
atingindo o centro comercial, como também a paralisação momentânea do fluxo do transporte
terrestre – como a circulação do trem.
As fontes foram analisadas de forma articulada com abordagens de autores da
historiografia contemporânea, possibilitando um confronto de idéias e o aprofundamento de
outras discussões, constituindo o referencial teórico do qual foi sendo montada a referência
bibliográfica dessa pesquisa.
No intercurso da pesquisa houve a necessidade de problematizar aspectos da dinâmica
social dos trabalhadores da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, a articulação que os
sujeitos elaboraram como canais de sociabilidades, a exemplo dos tradicionais grupos
filarmônicos existentes em São Félix e demais cidades circunvizinhas.
As agremiações fundadas a partir das últimas décadas do século XIX, na Bahia,
tiveram como objetivos iniciais a formação musical dos membros associados. Com os
instrumentos de sopro e percussões atraíram pessoas de diversos setores sociais, com um
predomínio das camadas populares e operárias.
14
Particularmente, foi junto ao operariado que essa modalidade musical se popularizou,
alcançando o status de atividade complementar, como elemento de socialização,
entretenimento e solidariedade, mas também, evidentemente, palco de tensões e disputa.
Para além de compreender as entidades como espaço apenas do lazer, elas
constituíram canais de sociabilidades, múltiplos papéis na cidade. A Filarmônica União
Sanfelixta, em São Félix, constituindo-se no espaço privilegiado para revelar talentos com os
instrumentos musicais e a expressão artística. Como também um ambiente de intervenção do
presidente da entidade para inserir membros da Filarmônica para trabalhar na Viação Férrea.
“Para que o músico não saísse da Filarmônica, pela necessidade de buscar emprego em outra
cidade, o presidente da entidade solicitava dos diretores da Leste que empregasse esse
pessoal. Dessa forma meu pai foi admitido na Ferrovia”2, confessou o maestro André Luiz
Rocha Santos.
Uma problemática levantada com essa declaração diz respeito ao canal de articulação
dos sujeitos na condição de músicos. As filarmônicas constituíram-se em mais um importante
canal de sociabilidade, possibilitando a mediação dos seus membros em diferentes
manifestações da cultura local.
Cultura premiada pela tradição do carnaval, das festas cívicas, como o Dia da
Independência do Brasil – no 7 de Setembro, e a emancipação política do município – 25 de
outubro. O carnaval, evento realizado todos os anos, também nas décadas de 1940/1950,
contava com a participação marcante das filarmônicas, que tocavam e conduziam populares
pelas ruas e avenidas, com marchinhas e músicas carnavalescas.
Daí o grande poder de atração das orquestras de filarmônicas junto aos diversos
setores locais, até como músicos. Antes até de atuarem no mercado formal como operários,
exemplo, de alguns ferroviários, tiveram alguma passagem nas filarmônicas. Pode-se atribuir
a filarmônica um espaço inicial de formação de caráter e de cidadania, para muitos dos que
vieram a se tornar operário da Viação Ferroviária Leste Brasileiro.
Desses episódios pode-se levantar a seguinte questão ou problema: em que medida o
processo de sucateamento do transporte ferroviário na cidade, os danos e destruição de
casarões e fechamentos das fábricas constituíram em um mecanismo arquitetado por outrem
para o que se poderia deduzir “desmonte da cidade”? Essa parece ser uma expressão pouco
2
Trecho da fala de André Luiz Rocha Santos, músico regente da Filarmônica União Sanfelixta, em entrevista dia
5 de maio de 2009. O falecido Benedito Francisco Santos trabalhou na Viação Férrea Federal Leste Brasileiro
como marceneiro desta Empresa, na cidade de São Félix, até se aposentar.
15
usada por historiadores quando fazem referência ao universo de situações sofridas pelas urbes
brasileiras.
No decorrer das seções seguintes deste texto, com a exposição dos dados e análises
estaremos mais aptos a ter essa resposta, partindo da compreensão a cidade inserida no
contexto sugerido por David Harvey (1998) que discute a modernidade no XX, apoiando-se
em Jonathan Raban, que, segundo Harvey, rejeitava a idéia de uma cidade rigidamente
estratificada por ocupação de classe, mas que, pelo contrário, havia um individualismo
disseminado em que as marcas da distinção social eram conferidas pelas posses e pela
aparência.
A partir de um conjunto de idéias elaboradas por Jonathan Raban sobre a cidade,
Harvey situa a cidade numa dimensão atribuída a Raban, de maneira a contemplar que “o
morador da cidade não era alguém necessariamente dedicado à racionalidade matemática [...];
a cidade parecia mais um teatro, uma série de palcos em que os indivíduos podiam operar sua
própria magia distintiva enquanto representavam uma multiplicidade de papéis” (HARVEY,
1998, p. 15).
A cidade de São Félix no decorrer da primeira metade do século XX viveu o processo
de dinamismo econômico, com suas fábricas e através de contingente significativo de
operários de outros lugares para a urbe local, testemunha já em meados das décadas de 1940 e
1950 a retração das atividades fabris, particularmente, de charutos. Da mesma forma como
foram ocorrendo as transferências das oficinas da Rede Ferroviária Leste Brasileiro para
Salvador e Aramari – distrito pertencente à cidade de Alagoinhas, no interior da Bahia. O
sentido dessa mudança será refletido tendo por base também o pensamento de David Harvey
(1998), que ver isso como parte da modernidade que se refletiu nas cidades.
“Sob a superfície de idéias do senso comum e aparentemente ‘naturais’ acerca do
tempo e do espaço, ocultam-se territórios de ambigüidade, de contradição e de luta”
(HARVEY, 1998, p. 190) reflexão que buscaremos dimensionar nos próximos itens desta
dissertação.
O trabalhador da empresa ferroviária Leste Brasileiro exercia a função na manutenção
da estrada de ferro ou se encarregando da conservação da linha, sendo, portanto, um operário
atuando como servente, maquinista, auxiliar, foguista e o chefe de linha. Percurso realizado
entre as cidades de São Félix até Iaçu, passando pela cidade de Caculé, cujo tempo gasto
variava entre quatro e seis horas de viagem, incluindo as paradas obrigatórias nas estações
ferroviárias para o embarque e desembarque de passageiros na estação de pombal, localizada
16
no distrito de São José do Itaporã, Assim, como na estação de Jenipapo, distrito pertencente à
cidade de Castro Alves.
Enfim, após atingir todas as estações o ponto limite era o município de Monte Azul
localizado no estado de Minas Gerais. Conforme relato de um usuário do transporte na década
de cinqüenta, o trem era o principal meio de transporte para se chegar até a cidade de São
Paulo.
Em meados do século XX intensifica as críticas junto ao jornal local sobre a carência
de moradias na cidade, assim como, a falta de terreno para construção das mesmas. A
diretoria da Leste era o principal alvo dessas críticas, à qual se atribuía toda omissão e falta de
sensibilidade a essas questões sociais.
O texto dissertativo está dividido em três capítulos, subdivididos por itens, tendo o
Item 2 se ocupado do panorama socioeconômico da cidade de São Félix, onde foram
analisadas as peculiaridades locais, envolvendo os tradicionais sistemas de transporte e o
processo de crise da navegação marítima. O Item 3 tem como foco a estrutura urbana da
cidade em meio às recorrentes enchentes que atingiram à cidade de São Félix, no século XX.
Alie-se a esse aspecto a transferência de parte significativa das oficinas da Leste Brasileiro
para outras cidades. O Item 4 tem como foco as narrativas construídas em função dos relatos
dos ferroviários, como também o discurso contido no jornal impresso – periódico local – e
dos registros das Atas de reuniões da Câmara de Vereadores do município de São Félix, nas
décadas de 1940/1950.
O texto produzido como resultado de um árduo trabalho de investigação às fontes
esparsas, itinerantes e pouco exploradas no recorte espacial definido para a construção da
narrativa. Contextualizar o perfil social via dados do censo do IBGE e declaração no cartório
de registro civil de casamento possibilitaram mapear peculiaridades do operariado na cidade
de São Félix, para assim estabelecer uma conexão com os trabalhadores ferroviários e a
sociedade local.
17
2 – A CIDADE DOS FERROVIÁRIOS: CARACTERÍSTICAS E
PECULIARIDADES SOCIOECONÔMICAS DE SÃO FÉLIX3.
Mande notícias do mundo de lá
diz quem fica
Me dê um abraço, venha me apertar
to chegando
Coisa que gosto é
poder partir
sem ter planos
Melhor ainda é poder
voltar quando quero...
(Milton
Milton Nascimento / Fernando Brant)
Brant
2.1 – PERCEPÇÃO DE UMA CIDADE EM FORMAÇÃO.
De acordo com os dados apresentados pelo Guia Cultural da Bahia para o Recôncavo,
editado em 1997, São Félix permaneceu freguesia de Cachoeira por 389 anos, sendo elevada à
categoria de Vila, no dia 20 de dezembro de 1889, pelo decreto do governador da Bahia,
Manoel Vitorino Pereira. No ano seguinte, a sede foi elevada à categoria de cidade através do
Ato Estadual de 25 de outubro de 1890, com a denominação de São Félix do Paraguaçu,
topônimo que se estendeu para o município, simplificado novamente para São Félix, por
Decreto Estadual de 08 de julho de 1931.
Conforme análise feita por Kátia de Queirós Mattoso sobre a província da Bahia no
século XIX, o povoado de São Félix fazia parte do conjunto de vilas pertencentes ao
Recôncavo baiano. Recôncavo que no estudo da autora estava segmentado pela produção o
açúcar, do fumo e pela cultura de subsistência como mandioca, feijão e milho. “Duas novas
vilas foram criadas no Recôncavo no século XVIII [...]: Santo Amaro de Nossa Senhora da
Purificação (no centro da região açucareira) e São Bartolomeu de Maragojipe [...]”
(MATTOSO, 1992, p. 73).
Importante destacar que na pesquisa de Kátia Mattoso Maragojipe, assim como,
Nazaré e Jaguaripe, no século XVIII se destacaram como regiões produtoras de farinha de
mandioca no Recôncavo baiano. Devido à relativa proximidade dessas áreas produtivas e
fornecedoras de alimento do Recôncavo com Salvador durante o período colonial, que ao
3
São Félix é um município do estado da Bahia, localizado a uma latitude 12º 36’ 17’’ sul e a uma longitude 38º
58’ 20’’ oeste, estando a uma altitude de 45 metros do nível do mar. In: Bahia. Secretaria da cultura e Turismo.
Coordenação de Cultura. Guia Cultural da Bahia. Recôncavo – Salvador, 1997. Vol. 2, p.263.
18
longo do século XIX o governo começa a pensar em vias de comunicação e transporte mais
rápido e eficiente que dessem acesso a essas áreas.
Kátia Mattoso defende a tese em que no século XIX havia a preocupação do governo
baiano no sentido de criar vias de ligação entre Salvador e o Recôncavo, para dinamizar o
transporte de mercadorias e possibilitar a rápida comunicação. O transporte terrestre mediante
a implantação das estradas de ferro soou como estratégico como projeto político da Província.
Apesar das autoridades terem consciência que o retorno econômico seria algo remoto,
facultado para um período de médio e longo prazo, suscitou o vislumbramento em torno do
desenvolvimento na região.
A concepção de modernidade da qual faz referência Kátia Mattoso esteve presente no
imaginário das pessoas com a emergência das vias de comunicação e transportes mais rápidas
e eficientes. De modo que entre as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do
século XX a implantação das estradas de ferro aparecia sempre como item que compunham a
esperança de modernidade. Daí porque preocupação das autoridades políticas do Estado da
Bahia para estabelecer projetos com o setor de transportes que viessem a atender a demanda
da aristocracia que, por sua vez, refletisse em dividendos políticos para a elite política da
capital e do interior.
Eram aspirações da modernidade que tinha um custo financeiro elevado onde o Estado
carecia de recursos públicos. Sendo necessário no primeiro momento recorrer ao capital
estrangeiro para que se implantasse parte das estradas de ferro em algumas regiões da Bahia.
Kátia Mattoso (1992) descreve duas iniciativas em que o capital privado se fez atuante no
século XIX: “entre 1856 e 1875, construíram-se estradas de ferro com capitais ingleses; de
1875 a 1893, o governo provincial financiou as novas construções, associando-se a
investidores privados recrutados nos meios financeiros da Bahia.” (MATTOSO, 1992, p.
470).
Mattoso detalha como se constituiu a estrada de ferro que corta a cidade de São Félix.
A linha Estrada de Ferro Central da Bahia, ou Tram Road of Paraguaçu, foi
autorizada pela lei imperial 1212 de junho de 1865. Deveria ligar Cachoeira
e São Félix à Chapada Diamantina, com ramificação para Feira de Santana.
[...] Até 1888, porém, as obras se limitaram a uma rede de ramificações
entre as vilas de Cachoeira, Feira de Santana, Tapera, Queimadinhas, Cruz
das Almas e São Gonçalo. (MATTOSO, 1992, p. 471)
A autora também informa que os objetivos iniciais do projeto de chegar ao Rio São
Francisco através da Chapada Diamantina nunca foram alcançados. Em meio ao contratempo,
19
quebra de contrato, transferência e gestão deficiente, a linha permaneceu sob administração
inglesa até 1901, quando foi alugada a outros particulares.
Até aquela data nem a União nem o Estado administravam diretamente estrada de
ferro alguma na Bahia. Com Decreto nº. 7 308, de 29 de janeiro de 1909, foram arrendadas as
estradas federais para a Companhia de Viação da Bahia.
A linha Sul, Mapele/Monte Azul, foi formada pela união das linhas de diversas
ferrovias quase todas originadas no século XIX, como a E. F. Central da Bahia, a E. F. Bahia
ao São Francisco, a E. F. de Santo Amaro e a E. F. Centro-Oeste da Bahia, que, quando
finalmente unidas sob o nome de Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro4 (VFFLB) em
1939, tiveram suas linhas unidas e prolongadas de forma a ligarem, em 1951, Salvador a
Monte Azul (localidade mineira), tida como ponta dos trilhos da E. F. Central do Brasil. Trens
de passageiros passaram pelos seus diversos trechos desde cada uma de suas origens até a
linha completa, desaparecendo em 1979, quando somente faziam o trecho Iaçu/Monte Azul,
no sul, e até o início dos anos 1980.
Pelo mapa 1 é possível identificar a rota do trem, em 1907, sob a direção da até então
E. F. Central da Bahia5. Vindo posteriormente a se constituir como roteiro da Viação Férrea
Federal Leste Brasileiro a partir dos últimos anos da década de 1930. O senhor Herval de
Souza Bernardo6 pontua que “a Leste abrangia a Bahia, Sergipe e Piauí, Paulistana no Piauí.
Monte Azul, na divisa com Minas Gerais, era o espaço limite da Leste”.
O limite até a divisa com o Estado de Minas Gerais é devido ao tamanho da bitola dos
trilhos, diferentes entre os Estados da Bahia, Minas Gerais e São Paulo. Bahia possuía 1
metro, onde as locomotivas e vagões acompanhavam essas medidas entre Bahia e Sergipe. Já
Minas Gerais possuía 1 metro e vinte centímetros de bitola, dado que explica a troca de trem
pelos passageiros, para os passageiros que tinham como destino final o Estado de São Paulo.
Enquanto no Estado de São Paulo a bitola era de 1 metro e quarenta centímetros, medida que
absorviam apenas os trens e locomotivas ajustadas a esse formato.
O uso da memória nesse trabalho se encaminha para oportunizar ao depoente uma
narrativa histórica que seja o seu lugar na estratégia adotada para assegurar permanências,
manifestações sobreviventes de um passado sepultado, segundo Júlio Pimentel Pinto (1998), a
4
Essas informações estão relacionadas no site abaixo dispõe sobre período, fotos, mapas e aspectos gerais da
Viação Férrea Federal Leste Brasileiro. http://www.estacoesferroviarias.com.br/ba_monte%20azul/sfelix.htm.
5
In: Estações Ferroviárias do Estado da Bahia. Página disponível no site da Internet com informações sobre
ferrovias em todo o País.
6
Herval de Souza Bernardo, ex-escriturário aposentado da Rede Ferroviária Federal Leste Brasileiro. 80 anos de
idade. Atualmente assume a função de Diretor Regional na cidade de São Félix, do Sindiferro (Sindicato dos
Trabalhadores em Empresas de Transportes Ferroviário dos Estados da Bahia e Sergipe). Entrevista concedida
em 03/01/2008.
20
memória como lugar de persistência e da capacidade de viver o hoje inexistente. Nesse
sentido a memória do ex-ferroviário Herval Bernardo pulsa por esse sentimento na sua fala
quando busca pontuar as áreas de atuação da empresa da qual fazia parte como empregado. E
que ele se vê para além da condição de empregado, como parte da engrenagem do sistema de
transporte de um tempo.
A ferrovia é algo que está presente na memória do ferroviário, mesmo após muitos
anos afastados da atividade a lembrança da rotina diária das atividades permanece viva em
muitas falas. Como no exemplo de Álvaro Gomes Araújo, conhecido por “Senhor Alvinho”,
95 anos de idade, ao declarar no primeiro momento da nossa conversa a seguinte informação:
“Olha meu filho, eu trabalhei na Leste como Fiscal de Tração. Fui transferido de São Félix
para Iaçu; depois de Iaçu para São Félix; e, por último, de São Félix para Caculé”7. CaculéBA e Iaçu-Ba são municípios baianos até então servidos pela viação Férrea Federal Leste
Brasileiro. Iaçu-Ba foi um dos municípios pelo qual os ferroviários aposentados informaram
sem terem trabalhado a serviço da Leste Brasileiro. Isso se explica pelo fato de um quadro de
trabalhadores da Ferrovia atuar no deslocamento do trânsito: maquinista, auxiliar de
manutenção, ora cumprindo a rotina do serviço, ora sendo deslocado para outra cidade para
substituir companheiros, que se encontravam em gozo de licença médica, férias ou carência
de funcionário no respectivo setor.
Mapa 1: Área geográfica do município de Iaçu-BA.
Fonte: http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&q=a+cidade+Iaçu
7
Entrevista de Álvaro Gomes Araújo, ferroviário aposentado, aos 95 anos de idade, completados em 01/06/2008.
Entrevista concedida no dia 25/03/2009. Aposentou-se como Fiscal de Tração, no ano de 1967.
21
Na seqüência a imagem (figura 1) da Estação Ferroviária da cidade de Iaçu-Ba,
desativada para o transporte de passageiros em 1978, mantendo o serviço de transporte de
carga até o ano de 1983, data resultante do desastre na ponte ferroviária na saída de Iaçu,
finalizando as atividades da Leste para aquela localidade.
Figura 1: Estação Ferroviária de Iaçu-BA, desativada.
Fonte: http://www.ferias.tur.br/fotos/618/iacu-ba.html
No decorrer da conversa com o senhor Alvinho, quando perguntado se sempre
trabalhou na Rede Férrea como Fiscal de Tração, ele informou que começou com servente.
Revela traços de lembranças que sejam positivas. No caso de Fiscal de Tração por ser uma
função de maior gabarito na hierarquia ocupacional da Empresa. Quando perguntado se
ganhava mais ele respondeu: “Sim. Ganhava mais. Para ocupar esse cargo eu tive que fazer
um concurso (interno). Não era pra qualquer um não!”8
O ex-ferroviário revelou que no concurso o candidato era submetido a duas etapas:
uma prova escrita, na primeira etapa e teste prático, que compreendia a segunda etapa.
“convidaram-me e eu fui, fiz e passei!”9
“Seu Alvinho” como é chamado pelos amigos conta orgulhoso que o teste prático
consistia em ver se o candidato tinha conhecimento sobre a manutenção das máquinas, dos
equipamentos e as normas do tráfego terrestre para o transporte ferroviário.
8
9
Idem
Idem
22
Na fala mais adiante ele revelou que para entrar na Viação Ferrovia não havia
concurso, pois a admissão era dada por indicação, período que a Ferrovia na Bahia esteve sob
a concessão dos franceses para exploração desse tipo de transporte terrestre. Mas percebe que
essa não é a informação inicial do ex-ferroviário. Ele dá referência a algo que remetesse a
mérito para o exercício de uma determinada função na Empresa.
De acordo Júlio Pimentel Pinto (1998) esse aspecto da memória é plenamente
justificável, uma vez que “a memória é dotada de uma flexibilidade que permite a combinação
entre indivíduos e coletivo” (PINTO, 1998, p. 207). O autor acrescenta ainda que a memória
pessoal apóia-se sempre em referenciais coletivos, status, reconhecimento, elementos a serem
individualmente apropriados e seletivamente repostos.
Álvaro Gomes no alto dos seus 95 anos de idade chamou a atenção pela disposição em
como se movimentava pela casa, sendo o próprio a abrir a porta para nos receber. Numa
manhã de sol, tempo quente e muito calor, o senhor Álvaro Gomes vestido apenas com uma
bermuda, de chinelo e sem camisa.
Por força da idade o senhor Alvinho não soube responder quanto tempo trabalhou na
Rede Férrea Leste Brasileiro, mas prontamente como quem quisesse dizer ‘eu sei, mas vou
conferir no documento’. O documento, no qual ele me permitiu ler, era uma portaria de nº. 9,
de 4 de janeiro de 1967, dando-lhe ciência de seu desligamento da empresa em função da
aposentadoria. Documento com a escrita em máquina datilográfica em que o senhor
“Alvinho” mantém conservado dentro de uma pasta, cuja folha encontra-se forrada com
plástico. Isso também é uma forma dele referendar com prova material suas lembranças.
Uma simpatia de pessoa, aos 95 anos de idade, levantou-se do sofá da sala para buscar
no quarto o documento. Veio acompanhado dos seus óculos, que pôs nos olhos para ler o
documento comprovando o tempo em que trabalhou na empresa. Eis o conteúdo da Portaria
nº. 9, de 4 de janeiro de 1967:
O ASSISTENTE CENTRAL ADMINISTRATIVO, tendo em vista que
Álvaro Gomes Araújo, matrícula nº. 21 721, Fiscal de Tração F-119, do
Quadro Extinto do Ministério da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, foi
aposentado por Decreto de 27 de dezembro de 1966, publicado no Diário
Oficial de 28 de mesmo mês e ano, de acordo com o Artigo 176, item II,
combinado com o artigo 184, item II, da Lei 1 711, de 28 de outubro de
1952, resolve considera-lo desligado dos serviços desta Estrada a partir de
28 de dezembro de 1966, data da publicação do referido Decreto.10
10
Conteúdo da Portaria nº. 9, de 4 de janeiro de 1967, dando ciência da aposentadoria do ferroviário Álvaro
Gomes Araújo.
23
Mesmo após 42 anos de afastamento da Rede Ferroviária Leste Brasileiro, o
sentimento do senhor Alvinho transparece como se estive acabado de viver aquele momento.
Momento que ele mesmo já não sabe quantificar na memória. Importante no documento
acima a precisão dos dados referentes ao tipo de ocupada do qual Álvaro Gomes fez
referência com tamanha satisfação. Documento cuidadosamente guardado dentro de um
envelope plástico no interior de uma pasta, afastado da poeira e outros organismos do
ambiente.
Mapa 2: Trecho da Estrada de Ferro entre a cidade de São Félix e a localidade de Monte Azul (MG).
Fonte: Almanaque Brasileiro Garnier, de 1907. In: Site Estações Ferroviárias do Brasil.11
O mapa 2 original das estradas de ferro na Bahia em 1907 mostra quatro ferrovias
distintas e separadas entre si, em preto. Uma delas jamais foi juntada às outras, a E. F. Nazaré,
ao sul no mapa. Apenas tracejado em vermelho, como ficou se roteiro aproximado, pois
houve retificações e também o aparecimento nessa época da E. F. Centro-Oeste da Bahia, que
também entrou na junção após os anos 1940. Buranhém estava na junção da E. F. Santo
Amaro e da E. F. Centro-Oeste da Bahia, entre Santo Amaro e Mapele, sendo que esta
ferrovia sairia de Água Comprida, hoje Simões Filho.
11
Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/ba_monte%20azul/sfelix.htm.
24
Mapa 3: Percurso da Estrada de Ferro entre a cidade de São Félix e localidades do Recôncavo Baiano.
Fonte: Almanaque Brasileiro Garnier, de 1907. In: Site Estações Ferroviárias do Brasil.
Sob a coordenação de Maria de Azevedo Brandão (1998) diversos artigos abordando a
sociedade e economia no Recôncavo da Bahia, contemplaram análises de Milton Santos,
Kátia de Queiroz Mattoso, Thales de Azevedo, Fernando Cardo Pedrão e Luiz de Aguiar
Costa Pinto.
Maria de Azevedo Brandão informa que os primeiros textos sobre o conjunto da
região, sobre os anos quarenta e cinqüenta, foram produzidos fora da Bahia. Esclarecendo que
o principal autor foi Aroldo de Azevedo, que inicialmente publica, em duas oportunidades,
artigos sobre a região:
El Recôncavo de la Bahia, Revista Geográfica Americana, ano IX, nº. 108,
Buenos Ayres, 1942; e Recôncavo da Bahia, Boletim, nº. 38, S. Paulo,
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de S. Paulo (USP),
1944. Segundo Maria de Azevedo, a partir de uma viagem a campo em
1944, dela com colegas do Departamento de Geografia da USP, saiu
publicação de uma síntese sobre aspectos físico-ambientais e sociais da
região: Recôncavo da Bahia; estudo de geografia regional, Revista da
Universidade de S. Paulo, nº1, S. Paulo, 1950, reproduzido em Regiões e
paisagens do Brasil. S. Paulo, Cia. Editora Nacional, 1952, Série Brasileira,
vol.274, desdobrado em dois capítulos O Recôncavo da Bahia e suas
paisagens, p. 105-127, e A Cidade do Salvador, p. 128-137, na parte do livro
intitulado no Recôncavo da Bahia. (BRANDÃO, 1998, p. 50)
Maria de Azevedo Brandão (1998) pontua que o estudo no âmbito da Universidade
Federal da Bahia esteve relacionado ao convênio que a Petrobrás manhinha com esta
universidade na preparação de pessoal em geologia e engenharia do petróleo, surgindo em
paralelo um conjunto de pequenos estudos sobre o Recôncavo e sua rede urbana, realizados
pelo Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais, criado em 1958 por Milton Santos.
25
Dessa experiência, emerge deste autor o estudo sobre A rede urbana do Recôncavo,
Salvador, Imprensa da Bahia, 1959.
Para Milton Santos (1998, p.76) a era ferroviária, iniciada na segunda metade do
século XIX, iria ter uma importância decisiva no processo de elaboração urbana no
Recôncavo. “As ferrovias partiam dos portos já solidamente estabelecidos, a começar por
Salvador. As demais tinham como estação inicial as cidades de São Félix, Santo Amaro e
Nazaré”.
Milton Santos (1998) justifica o recorte temporal de 1940 para enfoque de suas
análises informando que foi mais ou menos naquele ano em que começou uma fase de
grandes modificações na hierarquia regional, em que o autor admite que a interpretação
tornou-se complexa, devido à concorrência de vários elementos. No trecho abaixo Milton
Santos enumera os elementos que ele considera determinantes
[...] devemos citar primeiro a superposição de uma rede de estradas de
rodagem aos antigos caminhos e ferrovias; segundo, a contemplação de uma
verdadeira rede de estradas de ferro; terceiro, o agravamento da decadência
das lavouras do fumo e da cana-de-açúcar; quarto, o crescimento da
população da Cidade do Salvador e a elevação dos seus padrões de vida,
exigindo um abastecimento mais numeroso e animando o desenvolvimento
de novas regiões de produção alimentar. (SANTOS, 1998, p.81)
Na passagem do século XIX para o século XX, até meados deste, no Recôncavo
floresciam as indústrias e fábricas de tecido, charutos, sabão, café, cerveja, óleos, águas
gasosas, vinagre, gelo, fundição, refinações. E a cidade de São Félix não fugia a essa regra.
No relatório anual de Lançamento do Imposto de Indústria e Profissão de São Félix, há uma
relação variada de atividades e profissões situadas na cidade, que sugere uma dinâmica urbana
e comercial, ainda muito presente na região, nas primeiras décadas do século XX. Mas por
outro lado, segundo Milton Santos,
Tanto Cachoeira como Santo Amaro comercializavam cada vez menos o
fumo e o açúcar, respectivamente. Perdiam substância, dessa maneira.
Cachoeira comercializou 614 toneladas de fumo folha em 1957, enquanto
em 1930 eram 3.160 toneladas, logo um contingente cinco vezes menor, no
período de 27 anos. (SANTOS, 1998, p. 82)
Milton Santos (1998) apresenta alguns dados que revelam como Cachoeira perdeu
vitalidade, paulatinamente. Onde o autor informa que o número de operários nas fábricas de
charutos baixou de 705 para 580, entre 1950 e 1958, e o de pessoas ocupadas nos trapiches,
na época da safra, de 360 para 120. Quanto às oficinas de automóvel, o autor informa que a
quantidade ficou invariável, entre os anos de 1940 e 1958. Mesmo período em que houve uma
26
redução de seis para quatro, no número de hotéis e pensões da cidade, bem como a redução de
três para um o das bombas de gasolina.
A cidade de São Félix vivera um período de desenvolvimento da economia local
inversamente proporcional à capital baiana, tendo inclusive se refletivo no crescimento
insignificante da população de Salvador, entre as décadas de 1920 e 1950, conforme
representação da tabela abaixo:
Tabela 1: Trajetória de crescimento da população de Salvador.
Ano
% em Salvador
1900
9.6
1920
8.5
1940
7.4
1950
8.6
1960
11.0
1970
13.4
1980
19.3
Fonte: Bahia de Todos os Pobres (Petrópolis: Editora Vozes Ltda. em co-edição com CEBRAP, Caderno
CEBRAP no. 34, 1980)
A diminuição da proporção de baianos vivendo na capital, entre as décadas de 1920 e
1950, pode ser creditada à estagnação econômica em Salvador, momento em que,
paralelamente, destacaram-se as atividades do cultivo da lavoura do cacau em Ilhéus, do
tabaco em São Félix e do comércio interiorano.
Para Milton Santos (1998), no Recôncavo, a corrente da circulação de mercadoria se
alterou, tendo inúmeras linhas de navegação se extinguidos, enquanto outras reduziram sua
freqüência. “A partir de 1942 os trens das segundas-feiras, entre Cachoeira e Feira de Santana,
passaram a ter um horário especial, saindo da primeira dessas localidades pela manhã e
regressando à noite.” (SANTOS, 1998, p. 86).
Ainda no que se refere à rodovia, Luiz de Aguiar Costa Pinto (1998) informa que ela
trouxe o caminhão e, com ele, implicações sociais de toda ordem. Para o autor, as
conseqüências produzidas pela rodovia e o caminhão foram significativas, pois “como
transporte e competidor do saveiro e que resultou, inclusive, não só no declínio de atividades
tradicionais, mas também num desequilíbrio ecológico e numa mudança de função de certas
localidades do Recôncavo, como Cachoeira e São Félix” (PINTO, 1998, p. 121).
Luiz de Aguiar Costa Pinto (1998) destaca que as referidas localidades tinham antes
influente posição como empórios e mercados re-distribuidores do que recebiam de Salvador
para vender no interior, quando o transporte marítimo era o único. Luiz de Aguiar C. Pinto
cita como exemplo a Companhia “Bahiana” de Navegação responsável pelo serviço costeiro
de ligação entre os principais portos e cidades do Recôncavo.
27
Luiz de Aguiar C. Pinto (1998) situa a cultura fumageira na economia do Recôncavo,
definindo o trapicheiro como sendo aquele que compra o fumo dos lavradores, “destala, faz
um primeiro e rudimentar beneficiamento, armazena o produto depois de transformado em
monocas12, estocando-o para revendê-lo às fábricas e firmas exportadoras” (PINTO, 1998, p.
125). O autor entende que o trapicheiro teria assumido a função de “intermediário”,
“atravessador” atacadista na compra da produção de muitos fazendeiros e produtores
independentes.
O autor ainda destaca a utilização do operariado feminino como a categoria social
predominante na cultura e produção fumageira de São Félix.
Embora o foco de abordagem da pesquisa na cidade sejam os ferroviários que atuaram
na cidade de São Félix, a análise sobre o conjunto da população operária não pode deixar de
ser pensada, como no aspecto da mulher nesta sociedade.
De acordo com a pesquisa de Elizabete Rodrigues da Silva (2007) a instalação das
primeiras fábricas de charutos finos na Bahia data no final do século XIX, “coincidindo com o
mesmo processo da expansão industrial tabaqueira que ocorreu em Cuba, em condições
semelhantes no que se refere ao comércio e a utilização de mão-de-obra” (SILVA, 2007, p. 2).
Importante ressaltar que Elizabete Rodrigues em seu estudo sobre as charuteiras traça um
panorama da montagem das fábricas de charutos na cidade de São Félix nas últimas décadas
do século XIX e primeira metade do século XX, destacando que “em 1892, já havia doze
fábricas em todo o Estado, sendo que apenas quatro na capital, duas em Maragojipe e seis em
São Félix” (SILVA, 2007, p. 2).
Esses dados trazidos pela autora revelam que a cidade de São Félix se sobressaia no
Estado da Bahia como a maior sede de fábricas de charutos. Pelos números acima 50% das
fábricas se concentrava na cidade de São Félix, área portuária estratégica na opção dos
empresários para garantir o escoamento da produção. O paulatino aumento das fábricas de
charutos nessa área do Recôncavo constituída por Maragojipe, Cachoeira, São Félix, Muritiba
e, posteriormente, Cruz das Almas, deveu-se ao aumento do consumo no mercado mundial,
particularmente o europeu.
Sobre o processo de escoamento da produção na Bahia do século XIX Kátia Mattoso
traça um panorama da situação do transporte na Província, esclarecendo da precariedade dos
meios de transporte numa área que se estendia de Feira de Santana até o oeste agreste. “O
12
A palavra manoca aparece no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa como referência ao fumo.
Monoca – Molho de cinco ou seis de folhas de fumo, dispostas uma ao lado da outra. No processo da monoca as
folhas secas precisam estar macias para evitar que se quebrem.
28
escoamento da produção se fazia pelas precárias vias tradicionais, fluviais e terrestres, mas, a
partir de 1863, uma linha ferroviária entre Alagoinhas a Salvador tornou possível um
transporte mais rápido de mercadorias” (MATTOSO, 1992, p. 92).
A autora informa que a ferrovia acabou significando um elemento de desenvolvimento
do transporte, ensejando esperanças na dinâmica das vias de comunicação e do comércio.
Mattoso (1992) informa ainda que em 1875 outros 48 quilômetros de ferrovias estabeleceram
uma ligação entre Feira de Santana e Cachoeira. Para a autora, a construção da ponte entre
Cachoeira e São Félix, inaugurada em 1885, colocou Feira de Santana diretamente em contato
com o Centro-Oeste da Província, “especialmente com a região da Chapada Diamantina, que
tinha ligação ferroviária com Cachoeira” (MATTOSO, 1992, p. 93).
Francisco Antônio Zorzo (2001), por sua vez, desenvolveu um estudo sobre a rede de
transporte ferroviário do interior da Bahia apontando que a presença das ferrovias cortando
vilas, cidades e lugarejos estiveram longe de significar uma mudança no perfil das condições
social e econômica das comunidades servidas por este sistema de transporte. Antes, porém, a
implantação do transporte ferroviário serviu aos interesses do capital, ligado à grande
propriedade agrícola e atacadista, ligados ao sistema agro-exportador do açúcar, fumo, cacau.
Algodão e café.
A tese de Zorzo (2001) corrobora com uma análise que vê a ação política do Estado na
implantação das ferrovias como resultando das atividades econômicas, elas chamadas
cidades-pólo na atração das ferrovias. Com a cidade de São Félix não foi diferente, uma vez
que esta ocupava posição de destaque em meados do século XIX, com a presença de fábricas
de charutos, a exemplo da Dannemann13 e da Suerdieck, responsáveis pelo beneficiamento e
exportação do fumo para Estados Unidos e Europa. Daí a cidade de São Félix assumir posição
de destaque como porto agro-exportador não apenas do fumo para o exterior como também os
produtos de subsistência como farinha de mandioca, feijão, milho e frutas produzidos no
Recôncavo baiano, que eram levados até a cidade de Salvador e/ou ao sertão da Bahia.
A partir desse lugar Elizabete Rodrigues da Silva (2007) discutiu as lutas e vivências
das charuteiras no contexto da crise na indústria fumageira, em que segundo a autora “a falta
de emprego e a estagnação comercial que se prolongaram desde fins da década de 50 até os
13
Fundada na segunda metade do século XIX pelo alemão Gerhard Dannemann, a mais antiga fábrica de
charutos do Brasil iniciou sua produção com apenas seis funcionários. Geraldo Dannemann - como passou a ser
chamado - chegou ao País em 1873, quando comprou a então falida empresa de charutos Schnarrenbruch e
mudou-se para São Félix, na região do Recôncavo Baiano. Nos primeiros anos de funcionamento, a empresa teve
um espantoso crescimento, chegando a ser a maior produtora de charutos do País, além de uma importante
exportadora, tendo na Europa seu principal mercado e na Alemanha, sua porta de entrada. Nesta época, seis
fábricas da Dannemann empregavam cerca de 4 mil pessoas na Bahia. In: Arquivo do Centro Cultural
Dannemann.
29
dias atuais na região fumageira, inauguraram um tempo de marasmo econômico, pobreza e
desânimo na cidade de São Félix” (SILVA, 2007, p. 7).
Em que medida a crise afetou a condição social e econômica das operárias das fábricas
de charuto? A questão posta desta maneira poderia induzir o leitor a pensar que a crise nas
indústrias charuteiras teria contribuído para a situação de pobreza e miséria das operárias.
Como se antes com a manutenção das fábricas de charutos as mulheres estivessem em
melhores condições sociais. Para compreender o mecanismo de exploração da classe
trabalhadora faz-se necessário o uso da expressão mais-valia, formulada por Karl Marx para
explicar as estratégias dos capitalistas de expropriação mediante o sobretrabalho, ou seja, o
excedente de trabalho realizado e não pago ao trabalhador.
Pelas condições sociais de trabalho e de produção, na região fumageira, a mulher pela
necessidade da obtenção da renda familiar buscou conciliar a expectativa na melhoria da
situação financeira, ao tempo que vislumbrava a conquista da autonomia feminina na
sociedade. Mas os ganhos obtidos eram suficientes apenas para as necessidades imediatas,
como roupas, calçados e alimentos. Pois no sistema de exploração há poucas brechas de
poupança do proletariado dado ao baixo nível de remunerado atribuído à massa operária.
As charuteiras, como parte significativa e integrante deste cenário, não
foram, apenas, as operárias exploradas das fábricas, também foram
mulheres que trabalharam fora de casa e que receberam um salário, num
tempo em que eram concebidas, apenas, como donas de casa e mães. Neste
sentido, é que se percebe que o salário e o emprego representaram para as
charuteiras instrumentos de poder econômico e social perante o grupo
familiar e a sociedade. (SILVA, 2007, p. 7)
De acordo com José Alberto Nascimento de Jesus (2000) há que se considerar o
aspecto machista ainda vigente da sociedade, em meados do século XX, diante do trabalho da
mulher que exercia atividades remuneradas fora do lar.
A mulher pobre, em alguns casos, semi-analfabeta, herdeira de toda uma
tradição machista, onde o emprego fora do lar correspondia ao universo
masculino. No entanto, a mulher das camadas populares conquistou seu
espaço no mercado de trabalho, contribuindo para o orçamento da renda
familiar. (JESUS, 2000, p.34)
Explicando o mecanismo de acumulação do capital, Karl Marx informa de maneira
categórica que para acumular faz-se necessário transformar uma parte da produção
suplementar. De modo que “é preciso que uma parte do sobretrabalho anual seja consagrada a
criar meios suplementares de produção e subsistência, excedendo a quantidade necessária à
substituição do capital empregado” (MARX, 1982, p. 148).
30
Para Marx, a mais-valia só é conversível em capital porque a produção suplementar,
da qual ela é o valor contêm, em si, os elementos materiais do novo capital. De modo que para
fazer funcionar esses elementos, como capital, o setor capitalista teria necessidade de um
excedente de trabalho. Na afirmação de Marx, a grandeza da acumulação do capital estaria na
razão inversa do consumo do capitalista. Por essa análise o capitalista precisa acumular para
reproduzir o capital, uma vez que a concorrência obriga cada capitalista particular a aumentar
ininterruptamente seu capital, a fim de conservá-lo.
Qual o efeito da acumulação sobre os operários? Segundo Marx, quando a acumulação
ou o desenvolvimento da riqueza, em base capitalista, produz uma superpopulação operária,
essa população contribui, por sua vez, para a acumulação capitalista, tornando-se uma das
condições de existência do modo de produção capitalista. Marx acrescenta que a produção
capitalista forma, para a indústria, um exército de reserva sempre disponível, e do qual o
capital tem total controle. Veja, na seqüência, como Marx pontua essa relação.
[...] O trabalho excessivo dos operários empregados engrossa os quadros do
exército de reserva, ao passo que à pressão, cada vez maior, exercida pelo
exército de reserva sobre os trabalhadores efetivos, graças à concorrência,
força estes últimos a trabalhar sempre mais e a se submeter às exigências do
capital. Condenando uma parte da classe operária a uma ociosidade forçada,
pelo trabalho excessivo da outra parte, o capitalista particular encontra o
meio de se enriquecer. (MARX, 1982, p. 163).
No livro Segredos Internos de Stuart Schwartz (1988) o autor discute o processo da
formação das vilas e povoados do Recôncavo baiano apontando os aspectos ligados às
atividades produtivas da cana-de-açúcar e do fumo como fatores primordiais para a fixação do
homem nessa região. Embora o recorte temporal para a discussão do objeto de estudo de
Schwartz tenha sido o período colonial e o século XIX, seu trabalho serve de referência nesse
estudo para se entender a configuração social dos trabalhadores que passaram atuar empregos
e serviços oportunizados na cidade de São Félix.
A movimentação interna da população do Recôncavo é pontuada no Estudo de Walter
Fraga Filho (2006), ao pesquisar a trajetória dos ex-escravos do Recôncavo baiano entre os
anos que antecederam a abolição da escravatura e a Primeira República. Estudo que recebeu o
título de Encruzilhada da Liberdade onde o autor problematiza o itinerário de diversos sujeitos
egressos da condição de escrava dos engenhos do Recôncavo. Constituindo num trabalho de
fôlego para a região na medida em que mapeia trajetória de população africana, abrindo um
campo de possibilidade real para se entender a configuração étnica que passaram a constituir
o universo de trabalhadores durante a República e totalidade do século XX.
31
Para Kátia de Queirós Mattoso (1992) o estudo sobre o Recôncavo baiano constitui
um clássico pela amplitude da discussão que a autora faz sobre a região sobre discute além
dos fatores responsáveis pelo povoamento, analisa as atividades econômicas centradas no
século XIX, dando nome à sua obra Bahia Provincial do século XIX. De modo que a autora
discute também a emergência do transporte ferroviário sugerindo que houve uma necessidade
decorrente da dinâmica interna da atividade produtiva ligada, primeiramente ao escoamento
do açúcar do Recôncavo até Salvador.
Importante destacar o caráter portuário estabelecido por diversas cidades do
Recôncavo baiano, a exemplo de cidades como Cachoeira, Santo Amaro da Purificação,
Maragojipe e São Félix, no século XIX até meados do século XX, banhadas pelas águas da
Baía de Todos os Santos. Sobre esse aspecto o geógrafo Milton Santos (1998) discute a
problemática da regionalização do Recôncavo analisando o processo de configuração do
espaço geográfico pela dinâmica do capital comercial que se estabelece na região.
Para Milton Santos a existência de uma estrada de ferro veio favorecer ás áreas
portuárias do Recôncavo baiano. Na análise de Milton Santos, Cachoeira e São Félix, assim
como Nazaré e Santo Amaro da Purificação são cidades de vale, comprimidas entre morros,
estendendo-se de forma linear. Os sobrados que caracterizam a arquitetura urbana não
resultam somente da peculiaridade do espaço, mas refletem a prosperidade regional de uma
época ligada aos barões do açúcar, ligada aos comerciantes do fumo e à presença dos
importadores.
“São Félix e Cachoeira eram centros urbanos que atraíam população devido às
atividades portuárias, comerciais e, principalmente, à concentração de indústrias fumageiras”
(FRAGA FILHO, 2006, p. 329). O autor ainda informa que a condição de entreposto
comercial fortaleceu-se com a construção das estradas de ferro no final do século XIX,
atraindo libertos e escravos fugidos para as obras. Não por acaso, com base nas declarações
dos trabalhadores que exerciam atividades na urbe de São Félix eram naturais de outras
localidades, conforme a Tabela 6. São dados que revelam que até meados do século XX São
Félix constituía-se também como pólo de atração de trabalhadores.
O processo de implantação transporte ferroviário no Brasil começa ser efetivado em
meados do século XIX, com o decreto imperial 641, de 26 de junho de 1852, para a
construção das estradas de ferro no Brasil.
Esse decreto é considerado muito importante para o início da implantação
de ferrovias brasileiras, na medida que, ao estabelecer vários privilégios,
como isenções de impostos, garantias de juros de 5%, direitos de
32
desapropriação de terrenos particulares e apropriação de terrenos públicos,
entre outros, atraiu os capitais nacionais e estrangeiros, sobretudo os de
origem inglesa, para o Brasil.(SOUZA, 2007, p. 10)
Robério Santos Souza (2007) analisa que o processo de concessão para a construção
das estradas de ferro ocorreu mediante garantia de juros às companhias que se propusessem
construir estradas de ferro em qualquer ponto do império. O autor vê a construção das
estradas de ferro no Brasil como parte das estratégias da política imperial de integração e
povoamento para a consolidação do território brasileiro.
Aspectos que serve de parâmetros para se entender a implantação das estradas de ferro
na Bahia, associado das justificativas políticas e econômicas que segundo Stuart B. Schwartz
(1988) pode ter sido determinante como pólo estratégico no dinamismo da economia e das
relações sociais, no século XIX para as cidades do Recôncavo baiano.
O governo buscava tornar as ferrovias um negócio atraente para as empresas
concessionárias, mesmo que inicialmente as ferrovias se mostrassem economicamente
deficitárias, ao logo dos anos, passaram a ser consideradas como vitais para a economia e o
projeto político do Estado, “que se dispôs a assumir os riscos cambiais e a financiar, por meio
de garantia dos juros, grande parte desse empreendimento” (ZOUZA, 2007, p. 10).
No século XIX nem a União nem o Estado administravam diretamente estrada de ferro
alguma na Bahia. Ainda com o advento da República, na Lei Estadual nº. 37, de 7 de julho de
1893, estabeleceu o plano de viação e as cláusulas para a concessão de estradas sob o regime
de juros. “Subordinando-se a esta Lei apenas se construíram a estrada de ferro Centro-Oeste
da Bahia e a Ilhéus a Vitória da Conquista” (SOUZA, 2007, p. 25).
Francisco Antônio Zorzo (2001) esclarece que a existência dos trilhos foi determinante
na manutenção e desenvolvimento de núcleos populacionais na região do Sul do Recôncavo e
do sertão do Sudoeste da Bahia. O referido autor vê a consecução da malha ferroviária como
decorrência da fase do capitalismo comercial, afirmando que o comércio dinamizado nessas
áreas do interior da Bahia não se refletiu em melhorias efetivas das condições de vidas da
população dessas áreas.
Durante o empreendimento ferroviário, a população pobre, apesar de manter
suas práticas territoriais no mundo da subsistência e viver sob maus tratos,
(...), foi envolvida no processo como força de trabalho, contanto com a
promessa de melhores condições de vida no futuro. Devido à ampliação,
provocada pela ferrovia, do processo exportador-importador, a concentração
da população nos assentamentos urbanos obedeceu à lógica da constituição
de contingente de reserva de força de trabalho. (ZORZO, 2001, p. 249)
33
Para a cidade de São Félix foi significativo o empreendimento das estradas de ferro
também que resultou a vinda de europeus, particularmente, ingleses e alemães, estes últimos
responsáveis pela instalação das fábricas de charutos, a exemplo da Dannemann e Suerdieck.
O Brasil no século XIX com o fim do tráfico de pessoas da África para o Brasil passou a
promover a vinda de imigrantes europeus para dá conta da demanda por mão-de-obra na
grande propriedade rural para suprir a carência de trabalhadores escravos.
Não se pode pensar a cidade sem levar em conta a discussão de modernidade presente
dentro e fora da produção do conhecimento acadêmico contemporâneo. Ao pensar a cidade de
São Félix como cenário de trabalho, moradia e lazer dos trabalhadores, no século XX. A
perspectiva de analisar os papéis sociais dos sujeitos históricos na relação de produção e das
experiências individuais do lugar. Esse conceito de experiência diz respeito às abordagens
pontuada por E. P. Thompson14.
A discussão sobre os ferroviários é pensada numa dimensão que envolve o contexto de
transformação vivenciada pela cidade de São Félix, passado pelo processo da transferência
das oficinas da Rede Ferroviária Federal Leste Brasileiro para as cidades de Alagoinha e
Salvador, nos anos finais da década de 1940. Mas não apenas isso, concomitante a isso, houve
o fechamento na cidade de São Félix, das tradicionais fábricas de charutos, responsável por
empregar um contingente dos trabalhadores locais.
2.2. – AS ENCHENTES E A QUESTÃO DA MORADIA.
O problema relativo à moradia era uma dificuldade enfrentada na cidade de São Félix,
principalmente, nesta última, devido à escassez de terrenos no perímetro urbano. Divulgada
para os visitantes como “cidade presépio”, São Félix via-se constantemente pressionada com
o aumento demográfico dos anos 1940/1950 e a falta de terreno para a construção imobiliária.
14
Ver E. P. Thompson em as peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Do qual o autor levanta reflexões
pontuais que envolvem a construção da problemática em torno do processo de constituição histórica da classe,
pensada a partir da experiência de cada segmento enquanto sujeito histórico, na modernidade contemporânea.
34
Figura 2: Fotos da enchente na cidade de São Félix, no ano de 1947.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
Observa-se na imagem a avenida principal da cidade tomada pelas águas da enchente
de 1947, tendo atingido todos os imóveis que circunda a área. São sobrados erguidos com a
finalidade comercial e residencial conforme se verifica pelas disposições do número de portas
de cada estabelecimento comercial, que datam do século XIX. A pista de presença de pessoas
nos imóveis pode ser sentida também com algumas janelas abertas do andar superior.
Ao fundo no centro da imagem (figura 2) dezenas de pessoas em um mutirão de
limpeza, tendo presença, inclusive, de uma canoa que possivelmente estira auxiliando o
serviço das pessoas. A presença das pessoas sinaliza que o nível das águas já baixado o
suficiente para que se começassem esse trabalho de recuperação e limpeza dos espaços
atingidos pelas águas.
Todas as áreas alagadas dessa avenida compreendem o trecho da estrada de ferro da
Viação Férrea Federal Leste Brasileiro que corta a cidade de São Félix, em direção a ponte D.
Pedro II (Figura 3), que liga as cidades de Cachoeira a São Félix. Durante os momentos das
cheias o sistema de transporte terrestre ficava, evidentemente, paralisado. Há que se imaginar
os transtornos causados aos moradores, aos comerciantes e pessoas que dependiam do
transporte ferroviário para se deslocar para o trabalho ou seguir viagem.
35
Deve se levar em conta a preocupação que os organismos sanitários costumavam
sinalizar para com os problemas de saúde decorridos dos riscos e contaminação nas pessoas.
Na imagem se observa crianças, em meio das águas, alheias aos perigos das águas. Em nota
no jornal O Cachoeira, no ano de 1947, médicos e enfermeiros emitiram um alerta
publicando sobre os riscos de doenças provenientes de contaminação por esgotos e lixos na
cidade. Citando a cólera e a leptospirose, como exemplo. Embora não faça referência aos
alagamentos, mas pelo contexto da informação, possivelmente, a preocupação estira voltada
para esse momento da enchente na cidade e das águas contaminadas pelos esgotos.
Pela emergência de casos de contaminação ou acentuado aumento no centro de saúde
isso pode ter chamado a atenção dos profissionais de saúde. Até para justificar ou reforçar
uma campanha de prevenção, mediante a vacinação junto à população, a limpeza dos canais
de esgoto, coleta de lixo, etc. Nesse trabalho não procurei saber o número de pessoas
atingidas ou contaminadas por doenças associadas ao alagamento, mas a despeito do número
de postos de saúde existentes da cidade na década de 1940, pode-se imaginar que havia uma
demanda pelo serviço de forma significativa.
De acordo com o relato de Israel de Oliveira Melo a “ponte D. Pedro II vivia em
constante perigo para tráfego devido às péssimas condições de conservação do piso”, à base
de tábuas e toras de madeiras acomodadas entre as ferragens da ponte sobre o rio Paraguaçu.
“Já presenciei diversos acidentes naquela ponte”, acrescenta Israel ao lembrar de um episódio
no qual “o carro que invadiu o sinal fechado, dentro da ponte, foi esmagado por um trem, foi
horrível”.
De acordo com Israel de Oliveira não houve vítima, apenas prejuízo material pela
destruição do veículo – ônus assumido pelo proprietário do mesmo, uma vez que, segundo
Israel, “a Companhia não assumia responsabilidade quando algum veículo não respeita ou
descuidava do sinal vermelho, indicando que se encontrava aberto para o trem e, portanto,
fechado para as demais conduções que circulam pela via”. Aliás, essa parece ser uma
sinalização universal nos cruzamento de vias terrestre cujo trecho compreende também os
trilhos de uma ferrovia. O alerta na proximidade do cruzamento adverte: para, olhe e escute.
Na efeméride sanfelixta há um registro da ocorrência de tipo de colisão sobre a ponte
D. Pedro II, ano de 1951, envolvendo o trem e o automóvel, tendo na época recebido o
seguinte destaque “às 19 horas o caminhão de nº 9287 de Cruz das Almas foi imprensado de
encontro à guarita da Ponte Pedro II, por uma classe do comboio da Leste” (EFEMERIDE,
11/4/1951) dado representativo da desatenção na via urbana.
36
A emergência dos veículos e as implicações advindas deles no século XX compõem
um dos elementos de análise de Nicolau Sevcenko (1997) sobre a modernidade, da qual o
autor percebe que não apenas “a velocidade das máquinas urbanas exigia uma redobrada
precaução”, como também tal ritmo “se incorporava ao próprio subconsciente das pessoas na
adesão aos condicionamentos modernos” (SEVCENKO, 1997, p. 550).
Embora seja pertinente essa reflexão do Nicolau Sevcenko entre máquinas e pessoas
na relação de trânsito com a cidade, há que se ponderar o papel do sujeito histórico nesse
processo. As pessoas reelaboram mecanismos de incorporação e/ou associação das novas
ferramentas tecnológicas a serem apropriadas que muitas vezes, contrárias aos que se
estabelecem como normas disciplinares para racionalização do trânsito, por exemplo.
Daí não ser possível entender o elementos da modernidade como instância que se
estabeleceu de cima para baixo e assimilado de modo pacífico, sem traumas, conflitos ou
tensão. Nesse aspecto, o poder público aparece como a entidade fomentadora dos novos
valores e ideologias visando racionalizar o fluxo das vias públicas entre pedestres e veículos,
pela cidade. Significa dizer que muitas informações veiculadas no jornal impresso, por
exemplo, representavam o reflexo do embate entre o poder público e a postura dos citadinos.
Ora com matéria cujo conteúdo denuncia a ineficiência na prestação do serviço de
transporte coletivo, ora buscando apurar responsabilidades sobre este ou aquele acidente, são
as principais evidências encontradas também no Jornal Correio de São Félix, sobre os navios
e o trem na cidade de São Félix.
David Harvey (1998), analisando a relação de tempo e espaço como fontes de poder
social, vê nos pensadores iluministas os fundadores de uma racionalidade que vislumbrava a
uma sociedade melhor mediante a adoção dos elementos da modernidade. De acordo com
Harvey ao estabelecer esse projeto os iluministas “tiveram de atentar para a ordenação
racional do espaço e do tempo como um requisito da construção de uma sociedade que
garantisse liberdades individuais e bem-estar humano” (HARVEY, 1998, p. 234).
Mas segundo Harvey os termos para a adoção do projeto não foram especificados e
nem tinha como fazê-lo, pois
As idéias estatais, comunitárias e individualistas estavam associadas com
diferentes paisagens espaciais, da mesma maneira como o domínio
diferencial sobre o tempo trazia problemas cruciais de relações de classe, de
direitos aos frutos do próprio trabalho e de acumulação do capital.
(HARVEY, 1998, p. 234).
37
Dessa forma o autor acredita que
“a crescente competição entre Estados e outras unidades econômicas criou
uma pressão de racionalização e coordenação do espaço e do tempo da
atividade econômica, seja no âmbito de um espaço nacional de transporte e
comunicações, de administração e de organização militar, seja nos espaços
mais localizados das propriedades privadas e municipalidades” (HARVEY,
1998, p. 235).
Na cidade a municipalidade, mediante normas e leis, tentou estabelecer regras de
convivência harmoniosa justaposta aos interesses da lógica do mercado capitalista, das quais a
cidade de São Félix experimentou, ao longo do século XX, conforme se vê no trecho da
Efeméride Sanfelixta, onde a Prefeitura de São Félix, no ano de 1950, busca tornar público a
norma municipal que proíbe a condução da boiada fora de um determinado horário.
A passagem de bois pelas ruas da cidade é um velho problema. Correrias
constantes, acidentes mesmo provocados pelas crianças e desocupados. Uma
portaria do Prefeito determinou horas e trajeto, e agora uma determinação do
Juiz da Câmara pedindo para respeitar a Lei da Contravenção do delegado
local, em conseqüência dos abusos que violaram tais normas. (EFEMÉRIDE
SANFELIXTA, 1953).
Esse dado pontua a tensão social em meio aos ditames exigidos para superar práticas
tradicionais presente no espaço urbano, como a circulação do gado, em detrimento de uma
lógica permeada pela observação de tempo e espaço, condizente com a modernidade. A
Portaria, portanto, foi uma tentativa a mais de disciplinar as ações dos sujeitos para com as
novas regras de convivência entre tempo e espaço. Revelando conflitos, tensões e resistências
daquilo que aborda o próprio David Harvey (1998) ao contrapor a “tese de uma cidade que
estava sendo vitimada por um sistema racionalizado e automatizado de produção e consumo
de massa de bens materiais” (HARVEY, 1998, p. 15).
A análise de Harvey se mostra pertinente ao que revela às fontes impressas,
particularmente os jornais. O sujeito permeou instante de assimilação e resistência, quase
sempre espontâneo, mas carregado de significado quanto à sua experiência social como
sujeito histórico. São corriqueiros os episódios onde a municipalidade se diante da
necessidade de estabelecer negociação ante à possibilidade de conflito e posições contrárias.
No ano de 1943, a Prefeitura municipal de São Félix faz circular nos jornais impressos
um regulamento da inspetoria de trânsito local, com o seguinte conteúdo: “peso máximo 600
kg, suspensão do chicote e descanso do animal no varal” (EFEMÈRIDE SANFELIXTA,
1953). Para além da preocupação com a integridade física do animal de carga, estivera o
38
sentido de racionalização do trânsito, sobre a emergência dos veículos automotivos nas
avenidas, ruas e artérias centrais da cidade.
No caso da ponte D. Pedro II, além da sinalização por faixa e pontos luminosos, havia
a presença de dois agentes entre uma extremidade e outra da ponte para sinalizado o fluxo de
veículos. Uma reta de mais de trezentos metros, cuja sinalização, muitas vezes era realizada,
na base da gesticulação dos agentes. Uma sinalização comum era o fechamento de um dos
lados do portão de entrada na ponte até a liberação dos veículos no corredor da ponte. A não
atenção aos sinais urbanos poderia resultar numa espécie de atestado de incapacidade, de
quase demência. Como se incorporar os códigos das cidades fosse uma obrigação imposta a
todos citadinos.
Os jornais passaram a incorporar essas novas posturas da municipalidade local como
expediente da modernidade, colocando-se como palatino das novas posturas do homem
urbano. Daí o conteúdo da informação envolvendo trânsito, por exemplo, possuir grande
celeuma, pois os próprios jornalistas encontravam-se em meio a uma encruzilhada, ora criticar
as máquinas e o sistema que as projetaram, ora ponderando ás críticas, ao direcionar seus
argumentos em direção à falta de atenção dos indivíduos as regras do fluxo urbano.
No episódio em que o caminhão fora esmagado pelo trem a culpa não seria da
locomotiva, mas da desatenção do proprietário em estacionar o veículo no fluxo do trem. A
sinalização advém dessa suposta racionalidade para o fluxo do transporte, para evitar colisão,
congestionamentos e evitar o desgaste da ponte com o sobrepeso dos veículos em fila dupla.
Mas também passou a ser um expediente que visava moldar o comportamento das pessoas nas
cidades ou via pública.
Na figura 3 é possível ver o portão de ferro entre aberto, e dezenas de pessoas fazendo
a travessia dentro da ponte, pois, naquele momento não circulava veículo terrestre devido à
enchente na cidade de São Félix.
Pela imagem da fotografia percebe já um aspecto de degradação das construções
próximas à entrada da ponte, talvez como reflexo do processo de “desmonte da cidade”
configurada no abandono e desabamento de antigos casarios do centro da urbe de São Félix.
Nos anos que se seguiram esse cenário foi se modificando, evidentemente, como decorrência
direta da retração econômica, a partir de meados do século XX.
No ângulo direito da imagem (Figura 3) – próximo ao portão de entrada da ponte D.
Pedro II funcionou o prédio da Fábrica de Charutos Costa Pena & Cia, instalada no local
desde 1883. Que junto com a Fábrica de Charutos Dannemann atuaram comas mais
proeminentes exportadores do produto na região do Recôncavo Baiano para o mundo. Além
39
serem ser as maiores geradores de empregos na cidade de São Félix, entre as últimas décadas
do século XIX e as décadas iniciais do século XX.
Figura 3: Fotos da enchente na cidade de São Félix, no ano de 1947.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
O fotógrafo tivera a preocupação de fazer o enquadramento da imagem no instante em
que as pessoas transitavam no único “gargalo” de acesso entre as duas cidades – São Félix e
Cachoeira -, talvez uma preocupação em destacar a cena de adultos e crianças em meio às
águas da enchente. Situação inevitável por constituir, inclusive, em momento de diversão para
a garotada, alheios aos riscos de contaminação das águas.
Para Boris Kossoy (2001) no processo de interpretação da imagem fotográfica o
caráter inventivo e criativo do historiador supera o volume de documentos, uma vez que a
riqueza de tais fontes reside na habilidade que o historiador imprime ao tentar “reconstituir a
vida passada interpretando o pensamento, os sentimentos e as ações do homem, personagem
central da história que se busca compreender” (KOSSOY, 2001, p. 138).
O autor alerta ainda que as reconstruções históricas tornam-se significativas quando
vinculadas ao contexto a que se referem. Daí a preocupação de pontuar a situação econômica
da qual passou a cidade de São Félix, nas décadas de 1940 e 1950, etapa decisiva da crise nas
fábricas e colapso nos tradicionais sistemas de transporte local. Em que medida a situação de
40
crise nos estabelecimentos comerciais e industriais influenciou a emigração das atividades
empreendedoras para outros centros urbanos? Em se confirmando a problemática acima,
como a sociedade se articulou – operários, imprensa, municipalidade – para minimizar os
problemas na cidade, incluindo as enchentes?
Figura 4: Foto de uma rua comercial da cidade de São Félix alagada com a enchente – década de 1940.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
A imagem acima (Figura 4) representa uma rua tipicamente comercial atingida
também com as águas das cheias. Aspecto que prejudicava, evidentemente, aos comerciantes
ante aos transtornos de terem suas mercadorias danificadas, ou a diminuição no fluxo de
clientes.
O fotógrafo teve a intenção também de registrar um ambiente alagado, assim como,
parece revelar uma preocupação com as pessoas, principalmente crianças e adolescentes
descalças em meio às águas barrenta e poluída. Aspectos que sinalizam para uma rua
eminentemente comercial devido às placas e anúncios de propagandas de frente às lojas,
tendo cada um desses imóveis várias portas de entrada.
41
Tabela 2: Registros informativos das enchentes na cidade de S. Félix, ao logo dos séculos XIX e XX.
Ano
Evento
1829 Registrou-se a maior enchente que já se teve notícia. As águas atingiram mais de 4 metros.
1881 Nova enchente no rio Paraguaçu invade as partes baixas das duas cidades: Cachoeira/São Félix.
1877 O rio Paraguaçu novamente transborda, inundando São Félix e Cachoeira.
1914 O Paraguaçu transborda. A maior cheia dos últimos 80 anos. As águas subiram a 3 m e 50 cm.
1930 Enchente
1940 A cidade se acha completamente tomada pelas águas do Paraguaçu.
1948 O efeito da grande cheia que assolou S. Félix. Ruínas e casas desnudas em toda sua extensão.
1989 Alagamento na cidade de S. Félix. Transbordamento das águas na Barragem Pedra do Cavalo.
Fonte: Efeméride Sanfelixta e legendas de fotografia. In: Acervo do APMSF.
A tabela constitui um quadro resumo das notícias sobre a recorrência das enchentes do
rio Paraguaçu sobre a cidade de São Félix, ao longo dos séculos XIX e XX. Sendo objeto de
preocupação da municipalidade e de setores influentes da economia local, visto ser essa
região um dos principais entroncamentos para o escoamento da produção entre a capital, o
Recôncavo Baiano e o sertão, direção ao oeste baiano.
Figura 5: Imagem da Barragem de Bananeiras transbordada na enchente de 1947.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
No ano de 1914 foi inaugurada a Barragem de Bananeiras teriam como propósitos
iniciais conter a vazão das águas do rio Paraguaçu e, conseqüentemente, evitar as enchentes
que atingiam conjuntamente as cidades de Cachoeira e São Félix. Mas a barragem de
Bananeiras não deve ter solucionado em sua plenitude de evitar a recorrência de novas
enchentes nessas cidades, conforme se verifica nos registros da tabela acima.
Na imagem acima (Figura 5) cena do volume das águas sobre a Barragem de
Bananeiras em um dos episódios de cheias do rio Paraguaçu, alguns dias ainda após o início
da enchente. Dando a dimensão do grande volume de águas sobre a barragem.
42
O último episódio de alagamento na cidade de São Félix foi no ano de 1989, por
negligência humana. Data em que já havia sido construída a barragem “Pedra do Cavalo”,
justamente com o objetivo de controlar a vazão de águas e evitar as enchentes.
Segundo conta os próprios moradores a enchente de 1989 foi inusitada, inesperada. A
barragem foi inaugurada no início dos anos 1980. Conforme relato do professor Edvaldo –
morador de São Félix – “a enchente ocorreu porque durante o governo Valdir Pires o
funcionário que fazia o monitoramento na Barragem foi demitido”15. Isso releva a
interferência política no destino e episódio da cidade. Fato marcante ainda presente na
memória das pessoas do lugar.
Figura 6: Enchente na cidade de São Félix em 1947.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
A imagem acima (Figura 6) é bastante reveladora do nível das águas na enchente do
rio Paraguaçu, em 1947, atingindo ruas e imóveis residenciais. O conjunto de casas com
portas e janelas revela na imagem (Figura 6) serem imóveis residenciais. O cenário parece
configurar um ambiente desabitado, portas e janeiras fechadas, sinalizando que as pessoas
ficaram desalojadas. A provável alternativa foram as áreas mais altas juntos aos morros
localizados na cidade.
Na lateral esquerda da Figura 6 a presença de duas pessoas sobre uma canoa,
quebrando a monotonia que paira sobre o local com o alagamento. O recorrente episódio das
15
Edivaldo – Professor de Língua Portuguesa na rede Estadual de Ensino. Natural e residente da cidade São
Félix. Entrevista concedida em 08/04/2009.
43
enchentes fez na cidade de São Félix mobilização em torno da ajuda mútua, ações sociais e
solidariedade para ajudar as vítimas das cheias.
Não por acaso, a cidade tenha sido contemplada com uma unidade da Legião Baiana
de Assistência, composta predominantemente por mulheres – distintas senhoras na sociedade
local. As mulheres ligadas a essa unidade assistencial promoviam ações ligadas à assistência
sociais, tais como, mutirões, coleta de doações, gincanas, quermesses e obras sociais ligadas à
promoção de cursos profissionalizantes, com objetivos capacitarem pessoas e inserir-las no
mercado de trabalho, ou auxiliando para geração da obtenção de emprego e renda.
Figura 7: Grupo de mulheres da Legião Baiana de Assistência – LBA. Entidade instalada em S. Félix, em 1947.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
A imagem (Figura 7) flagra o momento da solenidade de fundação da Unidade da
LBA, mulheres jovens e senhoras agrupadas em posição de celebração para marcar o evento,
o acontecimento histórico. As mulheres todas alinhadas ao vestuário da época, portanto,
discretamente trajadas e calçadas. O que também pode sinalizar uma hierarquia social onde a
composição pode ensejar diferenças socioeconômicas. Os membros da Legião Baiana de
Assistência teriam inaugurado o trabalho de voluntariado em diversas cidades baianas, como
uma extensão do programa criado no Brasil, a partir do governo Vargas, nos anos quarenta.
44
A preocupação com o social começou no Brasil em 1543, com a fundação da Santa
Casa de Misericórdia da então Vila de Santos, SP, fazendo com que nossa atuação no setor
quase nascesse junto com o próprio País. A segunda data relevante é 1908, quando a Cruz
Vermelha chegou ao Brasil. Em 1935, foi promulgada a lei de declaração de utilidade pública,
que regulamenta a colaboração do Estado com as instituições filantrópicas. Em 1942, Getúlio
Vargas criou a LBA - Legião Brasileira de Assistência, cuja primeira presidente foi Darci
Vargas.
Em 1961, nasceu a APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, que
mudou o conceito de assistência aos excepcionais. Em 1983, surgiu a Pastoral da Criança,
treinando líderes comunitários para combater a mortalidade infantil. Em 1995, Fernando
Henrique Cardoso criou o programa Comunidade Solidária, que substituiu a LBA e cuja
presidência coube à dona Ruth Cardoso. (TERCEIRO SETOR Jornal Carreira & Sucesso 22 de abril de 2002 - 126ª. EDIÇÃO).
Camila Jansen de Melo de Santana (2007) ao estuda como se davam as ações
assistenciais da Associação das Senhoras da Caridade de São Vicente de Paulo, na cidade de
Curitiba em atuante entre 1937-1945. Segundo Camila Jansen “as senhoras que formavam o
corpo desta instituição, agiam de acordo com os ideais cristãos, a fim de conquistar influência
e status no seu grupo social”, chamando a atenção que houve uma inversão dos ensinamentos
católicos, de amor ao próximo e de auxílio aos menos favorecidos. Daí resultando “o auxílio
ao outro apenas como fator coadjuvante para o auxilio a si mesmo” (SANTANA, 2007, p. 3).
Ainda conforme a análise da autora a Associação das Senhoras da Caridade de São
Vicente de Paulo era composta por pessoas do segmento social em evidência na sociedade
curitibana, como forma de ampliar seus canais de visibilidade e projeção social. Essa análise
pode ser usada na comparação à forma como atuavam às mulheres pertencentes à Legião
Baiana de Assistência, na cidade de São Félix, a partir dos anos quarenta.
Camila Jansen de Melo Santana ao identificar o perfil social das senhoras revela que
àquela “instituição caritativa, existente desde 1900 em Curitiba tinha, em seu corpo social,
mulheres da sociedade de Curitiba que dedicavam parte de seu tempo - muitas vezes ocioso,
pois dificilmente essas senhoras trabalhavam - ao auxílio aos pobres e doentes carentes”
(SANTANA, 2007, p. 3).
A discussão com o estudo de Camila Jansen de Melo serve de ponte de análise para se
entender o contexto em foi construído a expressão “prenda doméstica” que referencia apenas
um grupo de mulheres – minoria - que não exerciam atividades remuneradas fora do lar, na
45
cidade de São Félix. A designação de “doméstica” é recorrente e corriqueiro no Livro16 de
Registro de Casamento Civil, expõe a forma como determinado sujeito é percebido ou
representado na sociedade. Esse aspecto sugere a seguinte problemática: o que motivou a
diferença de terminologia para mulheres que supostamente exerceriam as mesmas tarefas?
Há, evidentemente, um caráter indicativo de uma hierarquia social na sociedade de
São Félix, da qual se compreende uma relação de parentesco com membros influentes da
sociedade local. No quadro (tabela 3) aparece estão expostos as situações do uso da expressão
“prendas domésticas” em apenas cinco vezes, mas que sugere diferentes status sociais na
comunidade local. Invariavelmente dos cinco homens que constam no quadro abaixo quatro –
cirurgião dentista, engenheiro mecânico, engenheiro eletromecânico e dentista – eram
designados como doutores, já que a profissão de dentista, médico e engenheiro recebiam na
sociedade essa designação.
Talvez o tipo de profissão exercido pelo homem na sociedade de São Félix ajudasse a
construir a terminologia utilizada para designar as esposas sem ocupação fora do lar. Aspecto
representativo de uma sociedade, inclusive, do escriturário para com as pessoas com uma
posição social destacada.
Tabela 3: Situação que aparecem a expressão “Prendas domésticas” para algumas mulheres.
Ele
Data do
Casamento
09/11/1948
Natural
Salvador
Residente
São Félix
09/07/1949
Salvador
Salvador
24/07/1957
São Félix
São Félix
06/11/1957
Itaberaba
Salvador
10/07/1958
São Félix
São Félix
Ela
Ocupação
Cirurgião
Dentista
Engenheiro
Mecânico
Dentista
Engenheiro
Eletromecânico
Motorista
Natural
São Félix
Residente
São Félix
São Félix
São Félix
Muritiba
São Félix
São Félix
São Félix
São Félix
São Félix
Ocupação
Prendas
domésticas
Prendas
domésticas
Prendas
domésticas
Prendas
domésticas
Prendas
domésticas
Fonte: Quadro elaborada a partir dos dados obtidos no Livro de Registro do Casamento Civil, entre os anos de
1940 e 1960. In: Cartório de Registro Civil – Fórum Andrade Teixeira, São Félix-BA.
Longe de ser analisado o papel das voluntárias sociais como uma ação espontânea, a
atuação de mulheres, esposas e filhas de homens influentes na sociedade local, representou
um mecanismo de posição política frente aos segmentos populares, buscando obter desses,
16
O Livro de Registro de Casamento Civil encontra-se no Cartório de Registro Civil, do Fórum Andrade
Teixeira, da cidade de São Félix. Na presente tabela estão configurados os dados entre os anos de 1940 a 1960.
Durante esse período de coleta de dados foram verificados um total de cinco livros, do Livro de Registro 6 ao 11.
46
dividendo político, reconhecimentos sob as mais variadas formas, inclusive, honrarias e
status.
Ocupar-se de funções assistenciais, no contexto histórico das décadas de 1940/1950,
no Brasil, fazia parte do cenário atribuído à de “zeladora do lar”, uma extensão da “vocação
materna na sociedade. Daí ter sido alusivo a associação de pedagogia e educadora à frente,
inclusive, das escolas de ensino primário e secundário.
Não apenas isso, a elas fora atribuída ainda os cuidados em organizar mutirões de
ajuda, de caridade, para obras assistenciais, quermesse e o zelo pelos valores cívicos e
religiosos. Basta observar que as aulas de catecismo dada às crianças eram
predominantemente realizadas pelas senhoras ou moças com objetivo de incutir os valores
morais e religiosos, junto às crianças.
Figura 8: Distribuição de alimentos para as vítimas das enchentes de 1947. Na campanha de
Arrecadação, promovida pela Legião Baiana de Assistência – LBA.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
Flagrante de uma ação voluntária de mantimentos arrecadados sendo distribuídos pelas
“voluntárias sociais às mulheres, possivelmente, atingidas pela pelas águas da enchente, no
ano de 1947. Veja na imagem as mulheres recebendo o volume com mantimentos se
apresentam descalças, como dado de carência dessas pessoas, mas por outro lado, teria sido
uma estratégia de sensibilizar na aquisição dos benefícios.
A imagem fotográfica mostra claramente que as pessoas carentes, na cidade de São
Félix, ocupavam uma condição na sociedade local definido pela cor da pele e o gênero.
47
Embora não se queira nesse estudo problematizar a questão étnico-racial, mas destacar que
esse aspecto compunha as relações cotidianas, permeadas por tensões, lutas e solidariedades.
Não se pode perder de vista essa dimensão evidenciada nas duas imagens (Figuras 7 e 8)
quando se estuda o mesmo espaço, cuja segmentação social se mostra acentuada pela cor da
pele, sugerindo a discussão do termo “prendas domésticas” no livro de registro de casamento
civil, da cidade.
Ainda conforme a imagem percebe-se a maneira como as embalagens dos
mantimentos eram feitos com recipientes de papel, requerendo daí maior cuidado no
armazenamento dos produtos – feijão, arroz, farinha, açúcar, café, carne seca – que embora
não perecível deviam ficar afastados da umidade.
Figura 9: Casas ribeirinhas atingidas pelas da enchente do rio Paraguaçu, em 1947.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
Nessa imagem (Figura 9) cena em que uma garota circula próximo ao que restou das
casas quando o nível do rio Paraguaçu baixou. Perceptível como a força da enxurrada levou
parte da cobertura, portas e janelas dessas casas localizadas na área ribeirinha. Sem a menor
condição de serem habitadas, levando aos então ocupantes a um estado de “sem teto”,
desabrigados das cheias.
Em muitas cidades do interior ou em áreas afastadas do centro – centro no sentido de
uma região com mais densamente povoada – havia uma tradição de construir casas com “pau-
48
a-pique”, onde o esqueleto da casa era toda levantada com madeira e cipó, depois era toda
revestida com barro. Cobertura de palha e folhagem completava a arquitetura do imóvel,
geralmente pequena com um ou dois cômodos, conforme ilustra a Figura 9.
O passo seguinte mostra por forças das demandas sociais casas populares construídas
para ser às vítimas atingidas pelas enchentes do rio Paraguaçu de 1947. Casas feitas de tijolos,
areia e cimento, além de telhas para cobertura, adequando ao padrão de construção que
elevasse a estima dos futuros proprietários, devolvendo-lhes a dignidade. Porém, as casas
entregues tinham um valor simbólico importante na agenda política de homens públicos da
municipalidade local.
Reclamação se fez sentir também no Jornal Correio de São Félix, atuando como
paladino das reivindicações sociais, incluindo a necessidade de mais moradias. Em uma
matéria o editorial assinado pelo Luiz Gonzaga Dias denuncia a não contemplação da cidade
de São Félix pelo programa de financiamento imobiliário do governo federal.
A cidade não foi contemplada pelo governo, pelos estabelecimentos de
créditos que facultam construções crediárias nem pelas instituições de
previdências. Comumente se vêem nos jornais e nas campanhas
publicitárias, as iniciativas governamentais, construindo vilas operárias; as
caixas econômicas e carteiras edificando por empréstimos ou direitos
adquiridos; os institutos amparando as associados pela concessão de
empréstimos ou edificações de bairros residenciais, mas aqui não vem nada
disso. (Jornal Correio de São Félix, 28/jun./1951.APMSF)
Por essa nota se vê que o problema da carência de casas residenciais persistia no ano
de 1951, e ao longo da década de cinqüenta. Embora não tenha sido as enchentes o fator
responsável pelo déficit habitacional na cidade, esse fenômeno das cheias continuou
recorrente.
Por outro lado, a queixa que vinha sendo feita no Jornal Correio de São Félix dizia
respeito também a falta de sensibilidade e à postura intransigente dos diretores da Ferrovia
Leste Brasileiro em negar áreas ociosas – terrenos – sob a concessão da Empresa para
construção de novas residências. “A cidade tem o sonho de expansão guilhotinado pela
intolerância da Ferrovia” (“Navegação e enchentes” Jornal Correio de São Félix,
18/abril/1959).
A estrada de ferro, pelos desmandos, exigência e desprezo ao progresso da
cidade, está esgotando a paciência da nossa população. Somente um povo
pacífico como o nosso, continua suportando a sua vontade expressa no
pouco caso que a direção da Rede Ferroviária devota aos apelos da cidade.
(EXCESSO DE TOLERÂNCIA Jornal Correio de São Félix, 21/fev./1959)
49
Percebe-se que nesse contexto a impressa também se rotulava como veículo de
posicionamento crítico, como porta-voz dos “fracos e oprimidos”, como serviço de utilidade
pública. Com a emergência do rádio a partir dos anos quarentas, os periódicos sentem cada
vez mais a necessidade de se afirmar perante a opinião pública local, reivindicando para si o
legado de serem os principais veículos formadores de opinião.
No que se refere ao Jornal Correio de São Félix, seu diretor, o jornalista Luiz Gonzaga
Dias também era membros da Casa Legislativa municipal, na função de vereador. Espaço em
que o parlamentar fizera uso da tribuna, em diversas ocasiões, para discursar sobre diversos
assuntos, incluído os problemas decorrentes com o sistema de transporte ferroviário na
cidade.
Figura 10: Casas construídas para as vítimas das enchentes na cidade de São Félix – década de 1940.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
Casas populares conjugadas e com poucos cômodos em uma área próxima ao morro,
afastadas do perigo de alagamento. Ao fundo na imagem um aglomerado de pessoas como
registro ato público para a solenidade de entrega das chaves. O que também remete a uma
postura de cunho assistencialista do poder público local, ao fazer uso desse expediente para a
projeção política, onde a inauguração de obras públicas constitui a marca maior dos
governantes.
50
Figura 11: Solenidade de entrega das chaves das casas construídas pela Prefeitura de São Félix às vítimas das
enchentes de 1940.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
A entrega foi presidida pelo então prefeito Antônio Pimentel, na companhia de
assessores e vereadores, conforme registro no verso da fotografia na ocasião foram
construídas doze casas sendo todas entregues às famílias mais atingidas pelas cheias. A
entrega das chaves parece ter representado um ato solene do qual os representes locais do
poder público municipal buscava canalizar apóio em suas respectivas plataforma política.
Marilene Ramos Barbosa (2003) estudou diversos bairros cariocas, sobretudo os
subúrbios, informa que a então capital federal foi palco da expansão não só da rede pública de
ensino e de ambulatórios médicos, como de um vasto programa habitacional previdenciário.
“Aí dezenas de conjuntos residenciais foram construídas nos subúrbios cariocas até 1954,
financiados pelos antigos Institutos de Aposentadoria e Pensões – IAPs: IAPI, dos
industriários; IAPC, de comerciários; IAPB, de bancários; IAPM, de marítimos; entre outros”
(BARBOSA, 2003, p. 74).
Essa íntima relação que passou a ter os atos públicos do governo e a imprensa,
particularmente, o rádio e o jornal impresso, resultou em objeto de luta e reivindicação do
segmento operário que se refletiu em diversas cidades brasileiras. A questão da moraria, na
cidade de São Félix, constituiu um demanda de reivindicação importante junto aos
trabalhadores da Viação Ferroviária Federal Leste Brasileiro, conforme se apreende do relato
de Herval de Souza Bernardo, ao informar que “a maioria dos ferroviários morava de
aluguel”.
51
Mas havia o setor administrativo da Leste Brasileiro formado pela diretoria – médicos,
advogados e, principalmente, engenheiros – que possuía casa. Casas da Leste Brasileiro para
uso exclusivo do pessoal da diretoria, especificando com detalhes como funciona a casa da
Empresa na cidade de São Félix, “os engenheiros moravam em uma casa bancada pela
Ferrovia. Na casa tinha fogão a gás, água, luz e telefone. E tinha também funcionários para
fazer os serviços domésticos e cozinhar, tudo bancado pela Ferrovia”. Importante destacar que
a cidade de São Félix possuiu essa estrutura apontada, por Herval Bernardo, porque era uma
sede da inspetoria regional da Leste Brasileiro.
Só havia casa para os engenheiros em cidade que tinham inspetoria. Por
muitos anos houve uma inspetoria em São Félix. Mas quando um
engenheiro tinha que ir prestar serviço em cidade, a exemplo da cidade de
Castro Alves, durante os dias que ele ficasse lá, sua estada era em um hotel
e a empresa pagava17.
A referência que os ferroviários fazem aos engenheiros como membros de uma outra
categoria social, evidenciado na expressão “ele” numa relação de separação de distância
social, pertencente ao quadro da diretoria e, portanto, patrões, chefia. Havia um ambiente de
tensão, desconfiança dos setores subordinados para com a chefia. Um embate de luta de classe
no cotidiano das relações do trabalho, conforme deixou escapar na fala Israel de Oliveira “em
doutor, o senhor é engenheiro de quê? Então venha aprender comigo pra depois me perseguir,
não é doutor”!
Observe que o tratamento é cerimonioso pelo termo “senhor” demonstrando uma
relação de hierarquia e subordinação, mas que comportava resistência mesmo que sutis,
buscando demonstrar que o conhecimento prática dos trabalhadores braçais era algo de maior
relevância que as informações teóricas dos engenheiros da Empresa. Possivelmente, uma
medida preventiva para se afirmar ante as futuras orientações corretivas no serviço.
Israel de Oliveira ao ser perguntado se os engenheiros participavam das reuniões dos
ferroviários, de imediato respondeu que “não”, acrescentando que “os ferroviários tinham
muitas coisas a dizer”, conotando ao quesito relação de trabalho, salário, perseguição. “Ele
fazia parte da chefia. Ele fazia reunião com o grupo dele, supervisor, esse povo”, alerta Israel.
De acordo com Israel de Oliveira Melo “tinha engenheiros da locomoção, engenheiro
de linha, engenheiro mecânico”. Dando a dimensão da indispensável presença desse tipo de
profissional no engenhoso mecanismo de transporte da Companhia Férrea, e confirmando que
“A casa que eles ocupavam era da empresa, onde os mesmos não pagavam aluguel”. O
17
Trecho da entrevista em 19 de abril de 2009, com Israel de Oliveira Melo, ferroviário aposentado da Viação
Férrea Federal Leste Brasileiro. Próximo dos seus 79 anos de idade, a completar dia 29 de maio de 2009.
52
conflito de interesses nas estruturas ocupacionais da Empresa constituía elemento rotineiro
nas relações de trabalho dos ferroviários.
Sobre o caráter habitacional na cidade do Rio de Janeiro, Marilene Ramos Barbosa
cita a construção do Conjunto residencial do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Industriários, no subúrbio do Realengo, a partir de 1942, que segundo a autora teria sido o
ponto de partida para uma série de outros.
A inauguração das primeiras cerca de 2.000 casas neste primeiro conjunto
residencial, em 1943, a 30 quilômetros do Centro, foi acompanhada da
eletrificação do respectivo ramal ferroviário da então Estrada de Ferro
Central do Brasil em toda sua extensão, isto é, ultrapassando a estação de
Deodoro, até onde já havia trem elétrico, atingindo o distante subúrbio rural
de Santa Cruz, ponto final, a mais de 60 quilômetros do Centro
(BARBOSA, 2003: p.75).
Incluindo a moradia como pauta das reivindicações das diversas categorias operárias,
o trabalhador sobre aproveitar o contexto histórico entre as décadas trinta e cinqüenta para
afirmar seus direitos e conquista de cidadania, conclui a pesquisadora Marilene Ramos
Barbosa (2003) ao informar que, ao contrário do que sugere, as chamadas práticas populistas
do período encorajaram os demais trabalhadores a contestar. Contrariando a afirmação de que
Vargas, com seu paternalismo, estimulou a subserviência dos trabalhadores.
Figura 12: Vista da Av. Salvador Pinto tomada pelas águas do rio Paraguaçu, na enchente em S. Félix, em 1947.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
53
Veja na imagem acima, na lateral esquerda, guinchos posicionados junto às margens
do cais do porto, relevando ser um indício da intensa utilização desse equipamento no serviço
de embarque e desembarque de mercadoria na cidade. Embora toda área do calçadão do porto
encontre submersa pelas águas da enchente do rio Paraguaçu, pode constatar pela cena mais
ao fundo o agrupamento de embarcações ancoradas no cais.
As datas de parte dessas fotografias não puderam ser precisadas com exatidão, dada a
falta de um critério na catalogação das mesmas pelos agentes do arquivo. Embora estejam
datadas ou referenciadas no verso de cada imagem, elas possivelmente tenham ganhado esse
registro a posteriore e por outros sujeitos históricos, a exemplo do funcionário desse arquivo.
Figura 13: Reunião do Sindicato dos Estivadores sobre as enchentes na cidade de São Félix, em 1947.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
Para Boris Kossoy (2001) o estudo das diferentes aplicações que a fotografia conheceu
ao longo de sua história precisa ser analisada tendo em vista o contexto social, político,
econômico e cultural, e quais aplicações tiveram lugar a fotografia. Interpretando a fotografia,
verifica-se que em meios aos homens há algumas crianças parcialmente vestidas. Qual o
sentido dessas crianças estarem ali posicionadas no primeiro plano da imagem? Possivelmente
os pais – estivadores – as levaram buscando sensibilizar aos membros da sociedade local e
autoridades constituídas o estado de carência em que se encontravam os trabalhadores da
categoria.
54
A posição dos estivares se apresentam naquele momento histórico capaz de reivindicar
para a categoria o direito de negociar por conquistas outras, aproveitando-se das cheias do rio
Paraguaçu, em 1947, que diretamente paralisaram as atividades do cais do porto, do serviço
de carga e descarga de mercadorias. Teriam sido os estivadores a única categoria operária
atingidos pelas enchentes na cidade de São Félix? Haveria outras categorias operárias
mobilizadas para reivindicar direitos em decorrência das cheias do rio Paraguaçu?
São problemáticas a serem investigadas precisando levantar outros dados.
Preliminarmente, a reunião dos estivadores, em 1947, apresentou-se como oportuno pelo
sindicato da categoria. O que sugere uma força de atuação desse sindicato junto às demais
instância da sociedade local. Revela também a importância desse tipo de atividade na, então,
cidade portuária de São Félix.
Veja o que diz, no ano de 1947, o noticiário do periódico local, do qual a Efeméride
Sanfelixta registrou:
A intransigência do Sindicato dos Estivadores locais vem prejudicando
seriamente ao comércio e a si próprio. Obstinam na cobrança de volumes no
cais, dos excedentes em quilos marcados nos mesmos. Há volumes que
ultrapassam um, dois ou mais quilos, eles logo cobram a tarifa ao duplo,
sobrecarregando a mercadoria, o remetente, o intermediário e o negociante.
(EFEMÉRIDE SANFELIXTA, 1953)
Possivelmente
a
reclamação
parte
dos
comerciantes
e
negociantes
dos
estabelecimentos da cidade de São Félix, interessado com a redução de custo no processo de
desembarque de mercadorias no cais do porto. O Sindicato dos Estivadores atuava firme na
defesa dos interesses da categoria, inclusive, no que diz respeita a conquista de direitos. Na
gestão de um grupo de trabalhadores autônomo, mas suficiente legitimidade para impor regras
contratuais de prestação de serviços aos clientes, assim como, discutir demandas onde as
decisões se apresentavam como soberanas pelos membros da associação.
Ainda expressando desabafo, o autor da matéria comenta “daí preferirem os
industriários ou comerciantes o embarque direto por caminhão ou via férrea para não se
submeterem a este abuso. Quem perde é a cidade e depois o Sindicato que deixa de ganhar”
(EFEMÉRIDE SANFELISTA, 1953). Dado que revela um forte controle do Sindicato dos
Estivadores nas ações no cais do porto de São Félix. Sendo, portanto, um poderoso
instrumento de poder da categoria junto às demais forças da sociedade local, já evidenciado
anteriormente.
Na imagem (Figura 13) os trabalhadores estão posicionados com semblantes sérios,
revelando um clima de expectativa e tensão sobre as pautas que estão sendo abordadas que
55
lhes dizem respeito. Pelo recorte que sofreu na composição da fotografia houve mais
estivadores presente àquela reunião, evidenciado inclusive pela falta de lugares para todos
sentarem. O fotógrafo buscou um ângulo, possivelmente evitando causar algum transtorno no
andamento da assembléia, ou a pedido desta.
Não é demais enfatizar que este conteúdo é resultado final de uma seleção
de possibilidades de ver, optar e fixar um certo aspecto da realidade
primeira, cuja decisão cabe exclusivamente ao fotógrafo, quer esteja
registrando o mundo a partir de si mesmo, quer a serviço de seu
contratante” (KOSSOY, 2001, p. 107).
A tensão nas salas de reunião dos sindicatos operários nem sempre está relacionado a
questões patronais, como salários, mas diz respeito ao processo de sucessão da mesa diretora
ou mesmo a posição intransigente e pouco representativa da mesma. Muitas vezes os
membros da categoria operária percebem mecanismos sorrateiros de manipulação dos
dirigentes sobre aqueles. O clima de harmonia no sindicato constituía uma utopia, contradiz à
lógica dos debates e do processo democrático para tomada de decisões.
O cantor e compositor, Edson Gomes, nasceu na cidade de Cachoeira, tendo vivido
sua infância entre as travessuras de menino, trouxera na memória lembranças de um tempo e
lugar, no qual pontua o rio Paraguaçu como ambiente povoado de embarcações, que o artista
buscou retratar na canção. Hoje o cantor tem residência familiar na cidade de São Félix,
adotando-a como local de recanto e de inspirações poéticas de suas músicas.
O que a canção de um artista contemporâneo tem a ver com a pesquisa? À primeira
vista nada. Mas considerando que a canção é parte das reminiscências de memória do artista
vale muito como objeto de análise do processo de re-significação que os moradores atribuem
à cidade do passado. A letra da canção é resultado da composição das lembranças pela qual o
artista acredita ter vivenciado na infância, registro das experiências reais e/ou herdadas para
referenciar o passado “heróico” do lugar, no caso, a cidade de São Félix. Parte das
reminiscências das pessoas entrevistas segue essa lógica, com o artista não seria diferente,
evidentemente.
Respondendo a questão sobre os elementos constitutivos da memória, Michael Pollak
(1992) esclarece que, em parte, os acontecimentos são vividos pessoalmente, e parte dos
acontecimentos são “vividos por tabela, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer” (POLLAK,1992, p. 201). Mas quantos
informantes também não agem assim? Nas memórias dos ferroviários isso aparece muito
56
claramente nas falas e que são ricos na elaboração de uma análise e composição de uma
narrativa histórica sobre essa categoria operária.
Nas reminiscências traduzidas em música, o compositor pontua o movimento de
pessoas numa dinâmica social na qual se via “todo mundo trabalhando todo mundo suando,
trabalho humilde, mas era trabalho”, uma referência às ocupações nos portos de Cachoeira e
São Félix, desde o trabalho do estivador, passando ambulante, gari, canoeiro, pescador,
marisqueiro, conforme quadro (Tabela 16) de ocupações do operariado masculino na cidade
de São Félix.
A canção do cantor e compositor Edson Gomes – lembranças – direciona suas
reminiscências para esse contexto no qual viveu quando da infância ou fruto da composição
de memória daquilo que ouviu de outros que viveram o momento.
quando eu brincava na margem do rio
e via repleto de embarcações, era lindo
muito bonito uma paisagem que embelezava
este gigante rio, e eu via
Todo mundo trabalhando todo mundo suando
Trabalho humilde, mas era trabalho (2x).
(Edson Gomes – Lembranças)
Na estrofe seguinte da composição Edson Gomes descreve o cenário ambientado por
trabalhadores e pelos serviços de embarcações. “Todo mundo trabalhando todo mundo
suando” representa o sentimento estabelecido em torno do trabalho na cidade, permeada na
relação tempo e lugar. Serviços de embarque e desembarque de mercadorias, feito
especificamente por estivadores – categoria operária com significativa representatividade na
cidade de São Félix, inclusive, tendo um sindicato atuante.
Refletindo sobre “a experiência de espaço e do tempo” Marshall Berman (1998) critica
como artista, poetas, pintores, escultores e escritores pensaram o espaço com ambiente
imutável, fixo, enquanto que o tempo, pelos aspectos de fluidez, vida, movimento. Segundo
Berman “todo sistema de representação é uma espécie de espacialização que congela
automaticamente o fluxo da experiência e, ao fazê-lo, destrói o que se esforça por representar”
(BERMAN, 1998, p. 191).
57
2.3 – FLUXO E REFLUXO DOS TRANSPORTES NA URBE DE SÃO FÉLIX.
Vivaldo Costa18 no seu processo de elaboração da memória, lembra da convocação
para servir no Exército brasileiro como expedicionário na Segunda Guerra Mundial. Em 1942,
quando tinha 18 anos e estava servindo ao “Tiro de Guerra”, na cidade de Feira de Santana,
“na minha convocação” complementa Vivaldo Costa, foi convocado para atuar junto com
outros companheiros na guerra.
Para Vivaldo Costa “foi surpresa a convocação”. Pois, segundo ele e seus
companheiros, a convocação veio para eles partirem imediatamente. No entanto, “nós
apelamos para o Comandante para a gente avisar a nossa família”. O comandante, ele não
soube precisar o nome, haja vista a falha na memória desse senhor no alto de seus 90 anos de
idade.
Para Maurice Halbwachs, no entanto, os acontecimentos não precisam ser lembrados o
tempo todo pelo indivíduo “porque não estamos sós para representá-los”. Para Halbwachs
“nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que
se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós
vimos”. (HALBWACHS, 1990, p. 26)
Muito pertinente essa análise de Maurice Halbwachs a respeito das “falhas” da
memória individual. E nesse aspecto as datas cívicas e comemorativas todos os anos refletem
essa posição. Não por acaso, todos os anos são distribuídas, por exemplo, títulos de
condecorações para personalidades da organização militar e da sociedade no Dia do Soldado,
25 de agosto. Vivaldo Costa relata que ele é “o único expedicionário vivo na cidade de
Cachoeira”, e que nas datas cívicas ele é convidado para as solenidades – Sete de Setembro e
Dia da Independência do Brasil.
Vivaldo Costa relata que após receber a autorização do comandante para avisar a
família em Cachoeira, junto com seus colegas, perceberam que não havia mais transporte “só
tinha um trem pela manhã que já havia saído”. O trem fazia o trajeto para Cachoeira uma vez
por dia, logo pela manhã. Como alternativa “resolvemos vir andando, um grupo”. Assim junto
com os companheiros convocados que possuíam, também, família em Cachoeira “saímos pela
tarde e viajamos quase a noite toda”.
Vivaldo conclui esse episódio rindo, como se esse episódio tivesse uma conotação de
mais uma aventura em sua vida. Logo em seguida, esclarece que “na época, eu era solteiro”.
18
Vivaldo Costa ferroviário aposentado.
58
Talvez por isso ele se permitisse à riscos, sem o rótulo e o pudor da sociedade, mais tolerados
para a fase de solteiro e jovem.
Referente ao deslocamento de Cachoeira para Salvador, Vivaldo Costa informou que
“as embarcações saíam daqui”. A cidade de Cachoeira, assim como, São Félix, era local por
onde partiam as conduções fluviais para a capital baiana. “Tinha navios, direto para Salvador
e outros lugares [...] Todos os dias tinham navios”. Essa última frase de Vivaldo Costa resume
com precisão a regularidade do transporte nas águas da Baía de Todos os Santos para a região
do Recôncavo.
Vivaldo Costa deixa escapar um sentimento de nostalgia ao recordar das embarcações
que aportavam no cais, pelo gesto e expressão no tom da fala, ao confessar que “hoje eu tenho
saudade”. Ele acrescenta que “havia passeios e romarias nos navios, nos finais de semanas”.
Lembrando ainda que “cansou de sair, daqui, três passeios, nos navios, para Maragojipe, para
Salvador, para Candeias”.
Figura 14: Navio à vapor da Cia. de Navegação Baiana – década de 1940 – no porto da cidade de Cachoeira.
Fonte: Acervo de fotografias do APMSF.
É possível na imagem (Figura 14) observar o volume de pessoas nos pavilhões do
navio, composto por dois andares. Sobre a plataforma de embarques dezenas de pessoas na
expectativa da viagem, possivelmente, pessoas conhecidas dos passageiros que partiam como
também daqueles que aportavam no porto. Pela cena registrada na imagem fotográfica a
presença do navio no porto constituía-se um acontecimento, uma “festa”, uma atração a mais
na cidade de Cachoeira e, por tabela, da cidade de São Félix, onde muitos passageiros
seguiam a viagem no trem para outras cidades do interior da Bahia.
59
A plataforma utilizada como passarela ficava posicionada a uma extensão suficiente
dentro do rio Paraguaçu para possibilitar a aproximação do navio. A lotação de passageiros
revela que o porto da cidade de Cachoeira não era o único destino do navio que partia da
cidade de Salvador. O navio da Companhia de Navegação Baiana percorria as águas da Baía
de Todos os Santos conduzindo pessoas pelas cidades de Santo Amaro da Purificação,
Maragojipe, Cachoeira e Nazaré.
Cenário ao fundo da imagem tem-se o perfil a cidade de São Félix, um panorama
visual do cais do porto, casarões e sobrados majestosos ao fundo, símbolo de uma economia
portuária, industrial e comercial na cidade, compreendido nas últimas décadas do século XIX
e meados do século XX, como fase áurea da economia local.
Tabela 4: Calendário dos dias e destinos dos navios da Companhia de Navegação Baiana, mês de
janeiro de 1941.
IDA
DATAS
7
8
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DIAS DA SEMANA
TERÇA-FEIRA
QUARTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
SEXTA-FEIRA
SÁBADO
SEGUNDA-FEIRA
TERÇA-FEIRA
QUARTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
SEXTA-FEIRA
SÁBADO
SEGUNDA-FEIRA
TERÇA-FEIRA
QUARTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
SEXTA-FEIRA
SÁBADO
SEGUNDA-FEIRA
TERÇA-FEIRA
QUARTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
SEXTA-FEIRA
VOLTA
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DATAS
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DIAS DA SEMANA
N
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Z
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C
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TERÇA-FEIRA
QUARTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
SEXTA-FEIRA
SÁBADO
SEGUNDA-FEIRA
TERÇA-FEIRA
QUARTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
SEXTA-FEIRA
SÁBADO
SEGUNDA-FEIRA
TERÇA-FEIRA
QUARTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
SEXTA-FEIRA
SÁBADO
SEGUNDA-FEIRA
TERÇA-FEIRA
QUARTA-FEIRA
QUINTA-FEIRA
SEXTA-FEIRA
Fonte: JORNAL ESTADO DA BAHIA. Salvador, 9 de janeiro de 1941. Ano VIII – nº 1.089. Pág. 4. Acervo do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
60
Conforme se apreende do quadro acima (Tabela 4) havia uma seqüência predefinida
de escala dos navios para as viagens para as cidades de Cachoeira, Santo Amaro e Nazaré. O
nome da cidade de São Félix não aparece nesse quadro porque “o porto de embarque de
passageiros ficava na outra margem do rio Paraguaçu – em Cachoeira”, pontua Álvaro Gomes
Araújo, ao relatar que teria realizado esse tipo de viagem para Salvador mais de seis vezes,
“quando eu trabalhava como barbeiro”.
Mapa 4: Linhas de Navegação e Linhas Ferroviárias da Bahia no início do século XX.
Fonte: MESQUITA, Elpídio. Viação Marítima, Fluvial e Férrea do Estado da Bahia. Mapa. 1908.
Apud ZORZO, 2001, p. 82).
O trajeto das linhas de navegação baiana não sofreu mudanças do início do século XX
até meados do mesmo século, mas foram sendo incorporados novos ramais e ampliação das
estradas de ferro. Daí se justificando a utilização do mapa 4 por representar o funcionamento
do tradicional sistema de navegação marítima e fluvial na Bahia. O mapa 4 também apresenta
o trajeto da área continental do transporte terrestre, realizado pela Ferrovia – Estrada de Ferro
Central da Bahia, passando à possessão da União a partir da década de 1940, com o nome
Viação Férrea Federal Leste Brasileiro.
61
De acordo com a análise de Francisco Antônio Zorzo (2001) esta Estrada de Ferro “foi
efetivamente integradora, ligando o Recôncavo com o alto sertão, transportando produtos
agropecuários e minerais” (ZORZO, 2001, p. 80/81). O autor acrescenta que o ramal dessa
Estrada ligando São Félix a Tapera foi inaugurado em 1881, com projeção de atingir a
Chapada Diamantina.
Na seqüência, Álvaro relata, com pormenores, uma das viagens que realizou de navio
para Salvador: “Teve uma vez que fui a Salvador. Saímos de São Félix à meia-noite, pela
Navegação Baiana”. Ele explica que o horário do navio dependia da maré, para poder dar
partida ou aguardar a chegada desse transporte. “Após seis horas de viagem, de Cachoeira a
Salvador, encontrei um amigo – Virgílio – que trabalhava como foguista da ‘Bahiana’”. Entre
uma conversa e outra, ainda no cais do porto em Salvador, “ele me chamou para ir para casa
dele”.
O termo ‘foguista’ sugere que a navegação da Companhia era movida a vapor, função
atribuída ao operário que colocava lenha nas caldeiras do navio ou do trem, uma vez que este
último também era movimentado com o mesmo mecanismo.
Foi bom porque eu tava com pouco dinheiro no bolso. Mas eu disse a ele –
não, não se preocupe não! – Que nada. Eu achei foi bom o convite, pois
assim eu economizaria os tostões. Eu não conhecia ninguém lá, naquela
época. Se eu fosse utilizar pousada ou hotel. Tinha ido para a Salvador
trabalhar como barbeiro, numa barbearia que ficava na Rua da Forca19.
Observe que não há uma precisão sobre a data exata, mas a relevância da experiência
de Álvaro torna o relato rico em detalhes e nuance, de episódio corriqueiro para as pessoas,
geradora de interação e marca de solidariedade. Esse aspecto de interação social também
aparece nas viagens dos romeiros em caminhões pau-de-arara, do qual Charles D’Almeida
Santana expõe que “durante todo o percurso, os romeiros permutavam entre si galinha assada,
farofa, bolos que levavam junto às trouxas de roupas e travesseiros, uma solidariedade
imediata com estranhos” (SANTANA, 1998, p. 92).
Álvaro Gomes esmiúça os aspectos de sua experiência como barbeiro na capital
baiana. “Levei lá uns seis a sete meses. Uma loura, a saudade da minha terra”. Uma referência
direta à cidade de São Félix e, por conseguinte, aos parentes e amigos que ficaram. “Eu
dormia na própria tenda”. Era o nome que se dava à barbearia. “No fundo da tenda havia um
quarto. O proprietário da tenda era do Sul. O pagamento era feito de acordo com a quantidade
19
Trecho da entrevista com Álvaro Gomes de Araújo, ferroviário aposentado.
62
de cabelos cortados – divididos meio a meio”. Não foi acordado um salário fixo, porém
recebia conforme a produtividade do serviço.
Pelo que se pode aprender dos relatos de Vivaldo Costa e de Álvaro Gomes, havia
uma vida pregressa desses homens. Experiência de trabalho, seja prestando serviços a
terceiros como “barbeiro”, como no caso de Álvaro Gomes, com a prática de cortar cabelos. E
Vivaldo Costa como operário da Empresa Fumageira Dammermann.
Esse dado da experiência anterior do ferroviário pode ter representado uma condição
importante para sua inserção na Empresa Ferroviária Leste Brasileiro. Mesmo que o
contingente maior tenha sido admitido para iniciar como servente, a Empresa sutilmente
levava em conta a relação produtiva na comunidade do postulante ao serviço na mesma.
Embora tenha tido um caráter de empresa pública, a organização da Viação Ferroviária
se afigurava também de acordo com a produtividade econômica, visando a obtenção do lucro.
Daí que a contratação de um novo operário seguir uma criteriosa análise da vida pregressa
deste, envolvendo inclusive avaliação de saúde física e psicológica.
A produtividade do ferroviário teria sido a motivação maior das normas e
regulamentos sobre disciplina e conduta, mantidos pela Viação Férrea. Essa relação passava
pela política de funções hierárquicas na Viação Férrea, que envolviam atribuições
burocráticas, administrativa e de operação dos trens.
O preenchimento de relatório era uma atribuição indispensável a cargo dos agentes,
dos chefes de estação. Conforme pontua Robério Santos Souza.
Eles eram responsáveis pela fiscalização no espaço do trabalho e pela
comunicação destas aos chefes imediatos. Os agentes ainda conferiam a
assinatura do ponto de seu pessoal, sendo que os retardatários sofriam
descontos em seus vencimentos e poderiam até perder o dia, caso se
retirassem antes do fechamento da estação ou sem a permissão prévia de
superiores. (SOUZA, 2007, p. 60).
Esta preocupação da Empresa com o cumprimento dos horários, revela uma postura
focada na produtividade do operariado, da qual está relacionada com a ótica capitalista e os
valores burguês de que “tempo é dinheiro”. Trabalhador não assíduo ou faltoso representava,
então, essa queda de produtividade.
O depoimento de Álvaro Gomes, sua história de vida, o jeito simples e atencioso
revelou ser essa atividade de campo de pesquisa algo gratificante e prazeroso no ofício de um
historiador. Uma realização muito gratificante, ouvir esse personagem que viveu a experiência
de ser ferroviário, com voz serena e gesticulações graciosas de sempre, ele confessa que ao
63
voltar para São Félix continuou trabalhando como barbeiro e “só depois que eu fui trabalhar
na Ferrovia”, complementa Álvaro Gomes.
A manutenção do transporte fluvial e marítimo, anterior à chegada das rodovias e dos
veículos automotivos, representou a circulação de bens e serviços em possibilidades
crescentes, como também mecanismo de mobilidade social. Longe de se constituírem como
peça de atraso ou estagnação econômica, os navios e os trens a vapor simbolizavam elementos
da modernidade, um vislumbrar de oportunidades de acesso ao emprego, à mercadoria, ao
comércio e, por conseguinte, a uma renda.
Conforme observa Marshall Berman (1986), a modernidade não é só felicidade, pois
na “rotina diária”, contradições e tensão, muitas vezes, intransponíveis para os sujeitos. Para o
autor, a experiência de tempo e espaço compartilhada por homens e mulheres em todo mundo
traz possibilidades de transformação das coisas e ameaça “destruir tudo o que temos, tudo o
que sabemos, tudo o que somos”. E continua:
No mundo moderno, [...] a rotina diária dos parques e bicicletas, das
compras, do comer e limpar-se, dos abraços e beijos costumeiros, talvez não
seja apenas infinitamente bela e festiva, mas também infinitamente frágil e
precária; manter essa vida exige talvez esforços desesperados e heróicos, e
às vezes perdemos. (BERMAN, 1986, p.14)
Segundo Berman a modernidade estabelece um ambiente de euforia da promessa de
satisfações plenas, mas que produz os efeitos colaterais pelos aspectos artificiais e de aparente
glória. Daí a explicação da compulsão pelo sentimento nas pessoas do querer ser, povoada por
uma atmosfera da “enorme ausência e vazio de valores” (BERMAN, 1986, p. 14).
Importante destacar que o horário de chegada e saída do navio da Companhia de
Navegação ‘Bahiana’ “jogava ao sabor dos ventos e das marés” (SANTANA, 1998, p. 91).
Ritmo do transporte marcado por este aspecto da natureza, vivenciada como um
inconveniente a mais nas dificuldades dos trabalhadores camponeses de municípios do
Recôncavo baiano, quando da necessidade de irem à capital do Estado, conforme acentua
Charles D’Almeida Santana (1998) em seu estudo sobre esse segmento da sociedade na
referida região.
Antes da construção da BR 10120, inaugurada no segundo semestre de 1973, a rotina
de viagem de cidade do Recôncavo baiano ocorria mediante o transporte fluvial – barco a
vela, lanchas, veleiros, saveiros, escuna, balsas, botes. Diversas fotografias trazem essas
20
Ver Análise Global da Economia Baiana: Diagnóstico, v.2, p.850. Apud (SANTANA, 1998, p.91).
64
evidências sobre as embarcações povoando o cenário dos portos das cidades de Cachoeira e
de São Félix, entre as décadas de 1930 e 1970.
Com a crise no sistema de transporte e a paulatina retração das atividades econômicas
a partir dos anos de 1950, onde antes “na margem do rio” se via “repleto de embarcações”
representou a manutenção de empregos e rendas para centenas de pessoas.
Porém, desde os anos cinqüenta já se verifica os alertas da população local diante da
pavorosa e eminente decadência em atividades fabris, principalmente as de charutos, a partir
de meados da década de quarenta. Aliado a isso a cidade vivenciou a transferência para outras
cidades de parte significativa das oficinas da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro,
contribuindo ainda mais no processo de sucateamento desse sistema de transporte na região.
Por fim, a Companhia de Navegação Marítima deu por encerrada o serviço regular de
transporte de passageiros, entre a cidade de Salvador e Cachoeira/São Félix, no ano de 1959.
Episódio que teria motivado reações da municipalidade local, membros da Câmara de
Vereadores e Prefeitura junto à imprensa escrita.
Após publicação do fim das viagens dos navios da Companhia de Navegação
Marítima, da cidade do Salvador para Cachoeira/São Félix, o prefeito e presidente da Câmara
de vereadores fizeram circular no Jornal Correio de São Félix, o conteúdo do telegrama
dirigido ao governador e ao secretário da Viação da Bahia, com a seguinte informação:
Em função de ter a Companhia de Navegação Baiana suspendido o tráfego
entre esta cidade e essa capital, com profunda e grave repercussão para a
economia local, vimos apelar, em nome do povo cachoeirano, no sentido de
serem tomadas providências urgentes, para restabelecimento das viagens dos
navios, ora suspensos. Agradecendo antecipadamente a Vossa Excelência
atenção merecer nosso apoio e nosso apelo. Cordiais saudações: Júlio Gomes
dos Santos – Prefeito. José de Carvalho Mascarenhas – Presidente da
Câmara de Vereadores. (Jornal Correio de São Félix, 11/jul./1959)
Incrível como os gestores do poder político municipal – Câmara e Prefeitura municipal
– cuidaram de se articular para fazer crer junto ao público “o esforço” político para reverter à
situação da “suspensão do transporte”. Esse fato testemunha a preocupação que agente de
poder em garimpar simpatia do eleitor, quando em episódio dessa natureza ele se posiciona
sensível à situação, demagogicamente, colocando-se ao lado das camadas populares diante a
demanda social.
Embora o prefeito e o presidente da Câmara estivessem tentando demonstrar surpresa
com o fim das viagens de navios a Cachoeira, queixas e denúncias publicadas anteriormente
no Jornal Correio de São Félix, já se referiam ao caótico estado de conservação e higiene dos
navios da Companhia de Navegação Marítima. Sugere que a ação do prefeito Júlio Gomes dos
65
Santos e do presidente da Câmara José de Carvalho Mascarenhas pode ter sido fruto de uma
encenação, um teatro de representação na arena política.
Verdadeira falta de respeito à vida, à comodidade e ao nome dos dirigentes,
é o estado caótico da navegação baiana. Navios imundos, sem nenhuma
segurança, desprovidos de um simples colete salva-vidas. Parece que os
nossos governantes, nenhum apreço emprestaram ao bem estar do nosso
povo da Bahia, deixando a impressão de que as famigeradas “gaiolas”
condutoras de passageiros em certas paragens atrasadas são melhores e mais
garantidas que os navios da “Bahiana”. (Jornal Correio de São Félix,
12/dez./1959)
A imprensa escrita local, por sua vez, alguns meses antes, posicionou-se
“indignadamente” frente à eminência do colapso do tradicional sistema de transporte local, a
exemplo desse periódico, abrindo uma matéria com o seguinte título “crise no transporte para
o interior”. O Jornal Correio de São Félix valeu-se de uma situação que se evidenciava como
irreversível, da crise no serviço de navegação marítima, para se colocar como arauto defensor
do transporte.
Nenhum país na progressão democrática, industrial, técnica, cultural e até
mesmo internacional, permanece indiferente aos meios de ligação e
transporte, como o nosso. Começando pelas rotas aéreas, passando até pelas
rodovias maltratadas, prossegue a falta de interesse dos nossos dirigentes,
pelas ferrovias desaparelhadas, culminando com a navegação fluvial onde o
descaso atinge as raias da inoperância, do absurdo administrativo. (Jornal
Correio de São Félix, 11/jul./1959).
O texto em destaque chama atenção para o contexto político do qual o Brasil
vivenciou entre parte dos anos quarenta e os primeiros anos da década de sessenta, como fase
“democrática”. Os meios de comunicação como os jornais sentiam o momento histórico da
liberdade de expressão para se posicionar sobre as demandas sociais. Na cidade de São Félix,
os editores acharam oportuno denunciar o descaso e a negligência das autoridades políticas
em relação ao transporte ferroviário e marítimo, conforme relata “o descaso atinge as raias da
inoperância, do absurdo administrativo”.
Sendo mais incisivo ao fazer induzir que sucessivos gestores municipais, tanto da
cidade São Félix quanto de Cachoeira, “há vários anos, o rio Paraguaçu obstruído, vem
exigindo um cuidado que não foi atendido pelos poderes competentes”, rio que serve às duas
cidades.
Pode ter havido um sentimento de perplexidade dos moradores, comerciantes e
trabalhadores com a decretação do encerramento das atividades marítimas realizadas pela
Companhia de Navegação Baiana na cidade de Cachoeira, no ano de 1959. No entanto,
66
acompanhando o movimento contrário, refletidos nas queixas e reclamações dispostas no
Jornal Correio de São Félix, ao longo dos anos cinqüenta, o episódio pode ter representado a
culminância de um sistema que vivia um processo de flagelo.
A percepção de que o tradicional sistema de transporte na cidade dava sinais de crise
aparece revelado nas evidências que estava sendo constatadas em outro trecho denunciado
pelo periódico “a drenagem necessária até como recurso contra as inundações, é uma questão
que vem sendo preterida, substituída por obras de menor urgência, tendo importância
reduzida, talvez pelos lucros que não sejam polpudos para muita gente” (Jornal Correio de São
Félix, 11/jul./1959). À crítica também se dirige à administração pública, assim como ao segmento
empresarial que estaria priorizando execução de obras que garantisse um retorno financeiro, portanto,
“lucros”.
O jornal pontua aspecto que revela a decadência do tradicional sistema de transporte
na cidade de São Félix, que estava atingindo diversas outras cidades ribeirinhas não
contempladas com a nova configuração da malha de estrada e rodagem servidas por rodovias,
a partir dos anos cinqüenta no País. Houve uma pressão pelo sistema de transporte
automotivo, principalmente o caminhão onde paulatinamente o transporte de carga,
principalmente, passa a ser feito, sob a justificativa de simbolizar agilidade no percurso e,
conseqüentemente, maior economia de tempo.
O Brasil passa a adotar definitivamente o modelo de desenvolvimento do chamado
“capitalismo tardio”, buscando ampliar parque industrial, particularmente, o de setor
automobilístico, como parte do “plano de metas” do governo Juscelino Kubitscheck, na
segunda metade dos anos cinqüenta. Essa atitude do governo para o caráter da
industrialização no País a qualquer custo, inclusive, endividamento do Brasil com os credores
internacionais, tinha como “pano – de – fundo” ampliar o mercado interno e vislumbrando
para o País uma condição de modernidade. Situação evidenciada no esforço realizado para a
construção de Brasília – capital do País, levando-se em consideração ao que se ambicionava
de vanguarda na arquitetura e paisagismo, naquele momento.
David Harvey (1998) talvez seja o autor que mais se preocupado em estudar a relação
da “experiência do espaço e do tempo”, pelo qual Harvey atribui semelhante dinamicidade às
duas categorias básicas da existência humana. A preocupação dos dirigentes políticos com a
organização do espaço, segundo o autor, resulta expectativa de consumo dos ricos, cuja
influência se refletiu na diferenciação de produto no projeto urbano. Harvey torna a discussão
mais esclarecedora ao pontuar que “os arquitetos e planejadores urbanos reenfatizaram um
forte aspecto da acumulação de capital: a produção e o consumo do que Bourdieu chama de
67
capital simbólico, que pode ser definido como o acúmulo de bens suntuosos que atestam o
gosto e a distinção de quem os possui” (HARVEY, 1998, p. 80).
Essa dimensão da modernidade que, na compreensão de Marshall Berman (1986)
“atinge a tudo e a todos” como uma locomotiva sem freio, levando tudo pela frente. O autor
acrescenta também esse fenômeno e o resultado de uma sociedade burguesa que constrói para
depois ser posto abaixo, “sob formas cada vez mais lucrativas”.
Para Berman (1986) o ato de se “apropriar das modernidades de ontem poder ser, ao
mesmo tempo, uma crítica às modernidades de hoje e um ato de fé nas modernidades [...] de
amanhã e do dia depois de amanhã” (BERMAN, 1986, p. 35). Esse sentimento de
transformação permeava as idéias dos editores do Jornal Correio de São Félix, quando da
percepção do movimento de angústia e inquietação do movimento pulsante e tenso da
modernidade.
Para Berman (1986) “apropriar-se das modernidades de ontem poder ser, ao mesmo
tempo, uma crítica às modernidades de hoje e um ato de fé nas modernidades [...] de amanhã
e do dia depois de amanhã” (BERMAN, 1986, p. 35). Esse sentimento de transformação
permeava as idéias dos editores do Jornal Correio de São Félix, quando da percepção do
movimento de angústia e inquietação do movimento pulsante e tenso da modernidade.
Analisando o discurso do Jornal Correio de São Félix, nesse contexto da economia
mundial da qual o Brasil começou a se integrar, o tom das informações soam como
ideológicos, quiçá partidária, uma vez que os meios de comunicação de massa também eram
utilizados para induzir a opinião pública. Sendo o diretor do Jornal Correio de São Félix uma
figura que exercia um mandato legislativo, como vereador na cidade de São Félix, posicionar
de uma maneira supostamente crítica ao transporte resultaria em importante suporte de
simpatia política junto ao eleitorado local. Luiz Gonzaga Dias, analisado no capítulo seguinte,
foi um homem público de notável articulação nas instâncias sócio-política e cultural dessa
cidade.
68
Figura 15: Embarcações à vela ancoradas no porto de São Félix – década de 1940.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
O fotógrafo compôs o cenário cuja disposição das embarcações permite visualizar a
área do cais do porto, mas também o movimento de pessoas no largo calçadão. A Avenida
Salvador Pinto, composta de longo calçadão e árvores representa o espaço de embarque e
desembarque de mercadorias e movimento de pessoas no cais do porto de São Félix. Retrato
de uma época cuja preocupação estética do lugar vislumbrava a possibilidade de estabelecer
vínculos com elementos da modernidade no século XX. O largo do porto da cidade de São
Félix destaca-se em termo logístico, por onde estacionavam os caminhões com os fardos de
fumo e caixas de charutos das diversas fábricas desses produtos instaladas na cidade. Ainda
mais ao fundo, na fotografia, sobrados majestosos configurando a dimensão da importância
econômica das primeiras décadas do século XX.
Por fim, as embarcações agrupadas por lotes, dando a idéia de organização em um
sistema de locação ou arredamento para transporte cargas no lugar. Observe-se que, no
primeiro plano, os barcos tiveram as velas arreadas, enquanto mais à esquerda ao fundo, as
embarcações estão com as velas levantadas, preparadas para sair, e onde se concentram o
maior número de pessoas – possivelmente, estivadores.
Para Boris Kossoy (2001), existe possibilidade de o fotógrafo interferir na imagem,
razão pela qual esta é “objeto de manipulação”. De acordo com Kossoy, o fotógrafo sempre
69
manipulou seus temas de alguma forma, “dramatizando ou valorizando esteticamente os
cenários, deformando a aparência dos seus retratos, alterando o realismo físico da natureza e
das coisas, omitindo ou introduzindo detalhes, elaborando a composição [...] do meio”
(KOSSOY, 2001, p. 108).
Figura 16: Movimento de pequena cabotagem – Porto de São Félix, década de 1940.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
Essa imagem possibilita visualizar homens sobre as embarcações à vela, veículos que
eram locados para o transporte de mercadorias entre as cidades de São Félix e Salvador. Sobre
o calçadão do porto um aglomerado de barris de madeira - recipientes utilizados no
armazenamento de bebidas. No plano ao fundo o contraste do branco dos casarões e Igrejas da
cidade de Cachoeira, contornada por morros e as matas, compondo o cenário no outro lado da
margem do rio Paraguaçu.
O ritmo de trabalho no porto não seguia uma lógica de trabalho ao da fábrica. Daí
observar na imagem fotográfica numa posição de descontração, em roda de bate-papo, a
primeira vista como estando desocupados. No entanto, eram esses momentos onde se
costuravam os acordos e as estratégias de cumprimento das empreitadas.
Os tecidos das velas arreadas dos mastros tinham como finalidade evitar o balanço dos
barcos e, conseqüentemente, a instabilidade provocada com o vento, próximo ao cais do
porto. Conforme foi abordado no início do capítulo, a cidade de São Félix constitui-se em
70
uma das principais portas de escoamento de mercadorias do Recôncavo Baiano para a capital
do Estado e outras áreas do País. O fotógrafo ao captar essa imagem visual possivelmente
tinha consciência do que a cidade de São Félix representava naquele momento, como se
parodiasse a seguinte expressão: “uma imagem substitui mil palavras”!
Boris Kossoy (2001) esclarece que, “ao observar uma fotografia, devemos estar
conscientes de que a nossa compreensão do real será forçosamente influenciada por uma ou
várias interpretações anteriores”. De modo que “por mais isenta que seja à interpretação dos
conteúdos fotográficos, o passado será visto sempre conforme a interpretação primeira do
fotógrafo que optou por um aspecto determinado” (KOSSOY, 2001, p. 113).
“São Félix era uma potência!” Menção honrosa atribuída por Álvaro Gomes Araújo a
sua cidade. Ele ainda soube precisar com detalhes o nome de dois hotéis que existiram: o
Hotel São Domingos, no centro São Félix, e o Hotel Colombo, na cidade de Cachoeira.
Álvaro lembra que havia um cinema, mas não recordava o nome oficial, relatou apenas que
era conhecido como “galinheiro”. Ele explicou que nesse cinema “pagava menos, ia de
chinelo, à vontade, sem camisa. Era uma baixaria”. Álvaro menciona ainda a existência de
mais de um cinema na cidade, que o povo poderia ir “à vontade”, freqüentado por pessoas
com baixo poder aquisitivo e os jovens como Álvaro Gomes, com idade de 14 anos. Para
Nicolau Sevcenko (1997) no contexto da modernidade “ir ao cinema pelo menos uma vez por
semana, vestido com a melhor roupa, tornou-se uma obrigação para garantir a condição de
moderno e manter o reconhecimento social” (SEVCENKO, 1997, p. 599).
Nicolau Sevcenko relaciona um conjunto de apetrechos das descobertas científicas e
tecnológicas que impulsionaram as pessoas no sentimento de ritmo de vida marcado pela
dinâmica dos movimentos constantes. Onde o cinema tornou-se nas primeiras décadas do
século XX, o principal veículo de divulgação e propaganda que induziam à modernidade, à
sociedade do bem estar, da preocupação com o corpo modelado e com a saúde. “Os remédios
também são um índice relevante da modernidade: um seguro contra as fraquezas e
vulnerabilidades do corpo, um estímulo para a iniciativa e uma caução para o sucesso”
(SEVCENKO, 1997, p. 553). Esse aspecto deu margem para justificar o arsenal que permitiu
construir a “indústria do corpo” modelado.
71
Figura 17: Navio da Companhia de Navegação Baiana, década de 1940.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
Observa-se na imagem acima a chegada do navio da Companhia de Navegação Baiana
desfilando pelo rio Paraguaçu, entre as cidades de Cachoeira e São Félix. Navio de porte
grande, onde constantemente os operários das prefeituras dessas duas cidades eram
requisitados para os serviços de dragagem. Pois conforme já explicamos, à chegada dos
navios a esses portos dependia do ritmo da more – maré alta. O cenário das casas ao fundo
contrasta que o ambiente das matas nos morro, ainda inexplorado compondo o cenário de
fundo da cidade.
O horário do percurso do navio, próximo ao meio, conforme se observa na pontinha da
sombra no telhado da casa, em primeiro plano na imagem fotográfica. Embora o horário de
partida e chegada dos navios dependesse da alta da maré. A residência na fotografia no
primeiro plano da imagem guarda íntima relação com a paisagem rural, devido à presença de
alguns pés de bananeiras, coqueiros, entre outras árvores frutíferas na proximidade. Em
muitas cidades brasileiras, no século XX, essa cena era comum, as famílias aproveitavam os
espaços dos terrenos de suas casas, na cidade, para criar porcos, galinhas, gado e cultivar um
pomar.
De acordo com a análise de Charles D’Almeida Santana “Tanto em cidades do interior
baiano, quanto na capital, ex-trabalhadores rurais tentam reproduzir a pujança da natureza,
72
nos fundos de quintais de moradias urbanas” (SANTANA, 1998, p. 136). O autor acrescenta
ainda que “em poucos metros quadrados, plantam pés de banana, abacate, pimenta, moitas de
cana, flores silvestres, plantas medicinais”, aliando esse cultivo à criação de porco, galinha e
pássaros.
Aspectos de uma economia familiar que sugere a subsistência dada o caráter
complementar que a produção nos arredores da casa, eventualmente, proporcionava aos
integrantes do núcleo familiar.
Conforme esclarece Milton Santos (1998), a existência de uma estrada de ferro
favoreceu de maneira sensível os portos a que respectivamente serviam. Para o autor a
construção da estrada de ferro de Cachoeira e de São Félix decorreu do fluxo comercial criado
no planalto, com a descoberta das minas de diamantes.
Para o autor, umas das justificativas apresentadas para atrair capitais ingleses e lograr
a concordância do governo para a construção da estrada de ferro Tram Road of Paraguassu,
na década de 1860, era o fato de se considerar que a Chapada Diamantina era então o maior
cliente comercial da Bahia, “sendo que 10.000 burros serviam ao comércio entre essa zona e
São Félix, enquanto apenas 3 a 4 mil, além de 2.000 carros de bois serviam às relações entre
Cachoeira e Feira de Santana”. (SANTOS, 1998, p. 77)
Figura 18: Trem a vapor – década de 1940.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
73
Por se tratar de um trem a vapor o que se apreende que ferroviário no primeiro plano
da fotografia seja o maquinista, haja vista o uniforme completo calça e camisa, sapatos e o
chapéu, e aparente ser mais velho, portanto, com mais experiência para o posto de chefe; o
outro ferroviário à esquerda, embora trajando uniforme semelhante, chama a atenção o tipo de
calçado – um chinelo – e a calça não alinhada, possivelmente alguém que desempenha uma
função de auxiliar – o foguista. “No contexto da modernidade, o acesso ao calçado constitui
por excelência o símbolo de entrada para a sociedade civilizada e o circuito dos bens de
consumo” (SEVCENKO, 1997, p. 557).
Outro detalhe da fotografia é que ao fundo aparece a ponta do prédio da Estação
Ferroviária da cidade de São Félix. Assim como a preocupação de quem as contratou a
imagem fotográfica em se mostrar ao lado de uma máquina aparentemente nova, devido ao
brilho que as peças metálicas emitem com a luz do dia.
Até meados do século XX, o trem era o principal meio de transporte para o
deslocamento de pessoas, tanto de cidades do interior para a Capital do Estado e vice-versa,
quanto no transporte de mercadorias e gente de cidades da região Nordeste para áreas urbanas
do Centro-Sul do País. Tendo São Paulo, como principal de destino dessas pessoas, a maioria,
homens em busca de emprego e renda. Perceba no relato do Sr. Francisco Graciliano da Silva,
aposentado de setor da construção civil, na cidade São Paulo, como ele se manifesta a respeito
do trem de passageiros,
Fui três vezes a São Paulo no trem de ferro, em busca de trabalho. Eu tinha
vinte e poucos anos. A viagem no trem de ferro era um inferno, ia lotado de
gente. Gente que ficava doido, gente que vomitava, gente brigando e
querendo matar o outro. Mais de oito dias no vagão, sem tomar banho, todo
mundo fedendo. Sem conseguir dormir. Na última viagem, que eu fiz, o
trem quebrou pelo caminho, atrasando a viagem em dois dias. No final,
levamos 10 dias viajando no trem.21
“A imagem de uma São Paulo intensamente industrializada era imprescindível para
compor o painel simbólico da modernidade” (SEVCENKO, 1997, p. 566) foi internalizado no
sentimento do homem nordestino como lugar alternativo na esperança de prosperidade
financeira, vislumbrando os benefícios que o ambiente urbano insinuava.
Na versão contada pelo Sr. Francisco Graciliano a condição de viagem era de extrema
penúria. Até os anos da década de 1960 o trem pode ter sido o meio de transporte mais
acessível às camadas populares para as viagens de curta, média e longa distância, por terra
21
Relato emitido pelo pedreiro aposentado da construção civil, Francisco Graciliano da Silva, 87 anos de idade
quando da entrevista, em 25.02.2007. Cabaceiras do Paraguaçu – Ba.
74
pelo interior do Brasil. Para as viagens que os trabalhadores faziam, por exemplo, até a cidade
de São Paulo eram “mais de oitos dias”.
O país experimentou, em vários momentos, diversos elementos dos traços da
modernidade, ao longo dos séculos XIX e XX. O transporte se apresentou como símbolo da
aceleração, da emergência dos cenários urbanos, com os alargamentos de ruas e avenida. As
capitais vão paulatinamente ganhando ares de metrópoles, criando demanda por serviços e
mão-de-obra, particularmente, a operária para o serviço da construção civil. A cidade do Rio
de Janeiro foi a porta de entrada da Belle Époque, das reformas, dos produtos e costumes
importados à moda francesa.
Viajar para o Centro-Sul do País deveu-se a necessidade dos homens, solteiro ou
casados, de encontrar trabalho e renda. Assim como Francisco Graciliano, a maioria achava
emprego no setor da construção civil “eu trabalhei, assim que cheguei à cidade de São Paulo,
pela primeira vez, como ajudante de pedreiro, depois fui ganhando experiência e confiança
dos patrões, para chegar a mestre-de-obras”.
Esse depoimento de Francisco Graciliano resume bem o esforço que o trabalhador
como ele buscava fazer para galgar posições mais dignas na atividade que exercia.
Evidentemente, que motivação de ordem financeira contribuía para que o trabalhador
vislumbrasse certa mobilidade social, em substituição da limitação quanto à escolaridade.
“Quando criança eu estudei só a segunda série primário, do qual aprendi assinar meu
nome. Mas leio e escrevo algumas coisas” pontua Francisco ao se referir à aspecto de sua
escolaridade. “Na minha infância foi plantar roça de fumo, ajudar meus pais a criar os meus
irmãos mais novos”. Essa também constituiu outra característica das famílias ao longo do
século XX – os irmãos mais velhos deviam viajar para as cidades grandes, a fim de trabalhar e
mandar dinheiro para ajudar “criar” aos demais que ficarem.
O mais velho dentre um total de oitos irmãos, desde jovens “aprendi a importância do
trabalho na minha vida”, um dos valores adquirido com a dureza da vida, que se iniciou no
campo com a agricultura familiar. Francisco Graciliano hoje, aposentado em convívio com a
esposa, companheira a mais de meio século, vivendo na cidade de Cabaceiras do Paraguaçu,
buscou nos fragmentos da memória destacar aspectos relevantes da trajetória de vida dele.
No relato obtido com Ivan Fassanário este esclareceu aspecto da malha férrea da
Bahia, Minas Gerais e São Paulo. “A bitola dos trilhos na Bahia é de um metro de largura; em
Minas Gerais a bitola é um metro e vinte de largura, e em São Paulo, bitola de um metro e
quarenta”. Esse dado permite entender porque o trem da Viação Férrea Federal Leste
75
Brasileiro saia da cidade de São Félix até a última para em Monte Azul, no estado de Minas
Gerais.
De acordo com Ivan Fassanário quem fosse seguir viagem para São Paulo tinha que
trocar de trem porque as máquinas que faziam o percurso na Bahia tinham bitola padrão
diferentes tanto do Estado de Minas como do estado de São Paulo. De modo que o passageiro
que partia da Bahia se via obrigado a trocar de trem três vezes. Especulou-se que isso possa
ter frustrado a expectativa das autoridades brasileiras, quanto a uma possível integração do
sistema de transporte no território nacional, no início do século XX.
A viagem de trem até São Paulo durava oito dias. Eu tinha 16 anos quando
eu fui pela primeira vez. Eu saí da estação ferroviária de São Félix na manhã
de domingo e cheguei na cidade de São Paulo sábado à noite. Para você ter
uma idéia, levava 24 horas de São Félix até chegar à divisa da Bahia com
Minas Gerais, no município de Monte Azul22.
Esse era o principal meio de transporte para quem se aventurava da Bahia até São
Paulo em busca de trabalho, na década de cinqüenta. Embora lento para os padrões do século
XXI, a velocidade do trem em meados do século XX se afigurava a um ritmo de tempo ainda
integrado ao campo, da roça, origem da maioria dos trabalhadores egressos para a região
Centro/Sul do País, nesse período.
Conforme relata Jaime Ferreira de Jesus23, “o trem de passageiros era dividido em
duas classes. Na primeira classe possuía banheiros limpos, serviços de bar e restaurante”.
Segundo ele, o preço das passagens era mais alto, suscitando que havia uma ala executiva no
trem para quem, evidentemente, se dispunha a pagar mais, ou tinha condições financeiras para
isso.
“Na segunda classe os bilhetes eram vendidos a preços populares” um indicativo de
que o trem além da função de transporte coletivo, também representou um palco por onde
desfilavam diferentes segmentos sociais. Pode-se inferir que o transporte ferroviário que, por
um lado, ferramenta de acesso democrático como transporte de massa, por outro lado, ele
deixava às claras as segmentações da sociedade. Dizendo aos sujeitos quais papéis eles
ocupavam na sociedade, em que lugar e como exerciam.
Ainda referente ao estado físico do trem de passageiros, apresentamos uma dentre
outras notas existentes no Jornal Correio de São Félix, cunho depreciativo e de denúncia ao
sistema:
22
Trecho do relato de Ivan Fansanário, 67 anos de idade, em entrevista dia 22 de março de 2009.
Jaime Ferreira de Jesus, 61 anos. Ferroviário aposentado da Rede Ferroviária Federal Leste Brasileiro.
Entrevista em 17.06.2007.
23
76
A crise no transporte é falta de administração também. Na Leste, é uma
vergonha! Quem viaja nos trens da Rede Ferroviária, e sofre as penúrias da
precisão de utilizar seus transportes caros, deficientes e ruins, chega a
desacreditar no progresso do país, perante a fraqueza dos homens que
dirigem. (Jornal Correio de São Félix, 12/dez./1959)
Notas pontuais da desilusão provocada pela carência de um transporte coletivo
eficiente, frustrando a todos que naquele momento vislumbravam uma era de dinamismo
social e econômico local, ver nos corriqueiros acidentes de trem um obstáculo a mais na tão
esperada pujança da cidade. A expressão da palavra “progresso” deixa essa evidência sob os
efeitos da modernidade na mente das pessoas.
As cadeiras, embora sejam vendidas numeradas, não ficam pertencendo aos
que adquirem, tamanho o número de pessoas que viajam sem bilhetes e na
mesma classe. As instalações incômodas, sujas, sem água, sem luz,
agravado tudo isso com a falta de autoridade que imponham respeito em
favor dos itinerantes, transformam os transportes da Leste, no maior
suplício para os viajantes e vergonha para os baianos. (Jornal Correio de
São Félix, Ibidem.)
Nesse trecho o jornal destaca os itens problemáticos no transporte, buscando
dimensionar o desserviço prestado ao passageiro, a falta de agente na fiscalização de quem
paga ou não “bilhetes de passagem”. As instalações precárias aquém das expectativas do
usuário, segundo o Jornal, que aliada à falta de água e luz, torna-se objeto de crítica e
denúncia, cuja responsabilidade se atribui as diretores da Empresa.
As queixas sobre a situação do transporte ferroviário aparecem por diversas ocasiões
em registros do Livro de Atas das Sessões da Câmara de Vereadores de São Félix, ao longo
dos anos cinqüenta. Conforme ata do dia doze de fevereiro de 1959, o vereador Fernando
Ramos de Almeida Alves usou a tribuna da Câmara para expressão sua indignação perante o
acidente ocorrido dia oito de fevereiro do mesmo ano, na qual ele “teceu severas críticas aos
diretores da Leste que, segundo ele, a todo instante e de todas as maneiras, demonstram a falta
de respeito ao povo e aos poderes públicos da cidade24”.
Fernando Ramos de Almeida Alves fez parte da sucessão familiar dos sobrenomes
“Ramos de Almeida”, na política do município de São Félix, ao longo do século XX. A
composição da diretoria era formada por engenheiros, contadores, médicos, administradores e
encarregados e inspetor, que atuavam em decisões conjuntas na inspetoria da Viação Férrea
Leste Brasileiro, na qual a cidade de São Félix pela condição de sede possuía uma inspetoria.
24
Livro de Ata das Sessões da Câmara de Vereadores da cidade de São Félix, 12 de fevereiro de 1959. Acervo
do APMSF.
77
De acordo com o Livro de Ata da Sessão da Câmara o referido acidente (figura 19)
ocorreu no dia oito de fevereiro de 1959. A repercussão do referido acidente envolvendo o
trem da Leste Brasileiro, na cidade, ainda foi objeto de discussão na Sessão ordinária da
Câmara de Vereadores. O vereador Fernando Remos de Almeida Alves referiu-se ao episódio
induzindo haver “uma campanha de destruição da cidade pela Leste”25. Esse era um
sentimento que refletia o desespero de uma sociedade cuja expectativa em relação à cidade
confluía pela decadência, pela diminuição das oportunidades de trabalho, com fechamento de
fábricas e de inúmeros estabelecimentos comerciais.
Figura 19: Imagem da colisão da locomotiva em um casarão – cidade de São Félix, em 1959.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
Nessa primeira imagem do acidente com o trem há uma movimentação em torno do
vagão pelos ferroviários da Leste Brasileiro para retirar as ferragens retorcidas da pista. Parte
do casarão atingindo com a ameaça de desabamento da parede frontal. Conhecido sobrado de
dona “Glorinha”, situada na esquina da rua paralela ao início da ponte metálica D. Pedro II.
Pelo ângulo como foi registrada a imagem fotográfica o objetivo maior teria sido chamado a
atenção do perigo representado pelo trem na via urbana, como matéria de denúncia.
Há um aspecto de abandono de casarios do centro urbano da cidade de São Félix,
conforme se vê na imagem (Figura 19), e as outras casas paralelas ao casario com as portas
25
Livro de Ata das Sessões da Câmara de Vereadores da cidade de São Félix, 17 de fevereiro de 1959. Acervo
do APMSF.
78
fechadas, um indicativo da ausência de pessoas. O próprio casario de encontrava desocupado,
de acordo com o que foi noticiado no jornal Correio de São Félix.
Marshall Berman (1968) vê no processo de desintegração do ambiente resíduo de uma
sociedade burguesa onde é construído para ser posto abaixo. Segundo o autor, isso atinge
todos os aspectos ligados à produção e ao consumo, “das roupas sobre nossos corpos aos
teares e fábricas que as tecem, aos homens e mulheres que operam as máquinas, às casas e aos
bairros onde vivem os trabalhadores, às firmas e corporações que os exploram” (BERMAN,
1986, p. 97).
De acordo com Berman o ambiente, o espaço da modernidade é um “campo minado”,
por assim dizer, pois “tudo é feito para ser desfeito amanhã” e daí ser reciclado, reestruturado
sob novas bases e seguir adiante, “sob formas cada vez mais lucrativas”.
O Jornal Correio de São Félix noticiou o fato com o título “locomotiva fantasma”,
que segundo a versão do Jornal o acidente provocou danos materiais ao erário público e a
particulares – conforme se observa no estado do casarão dona “Glorinha” -, do qual causou
ferimentos em algumas pessoas. “A fatalidade ronda a cidade e sua população no domingo de
carnaval, estando suas azas sinistras, dentro da hora quieta sobre as vidas e os bens da família
sanfelixta”, compôs a narrativa jornalística do periódico local.
“A destruição e o pânico assaltaram a cidade, conduzidas pela locomotiva disparada, e
que na velocidade instintiva do monstro insensível à solta” pontua o jornalista e poeta Luiz
Gonzaga Dias, autor desse texto, de caráter jornalístico, mas em estilo prosa, conclui a
seqüência do texto escrevendo que “caso não saltasse dos trilhos e não defrontasse com o
obstáculo à sua fúria, um poste, os meios fios do passeio, um muro da antiga e sólida
construção” , uma referência que Luiz faz ao sobrado dona Glória, “por sinal, sem moradores,
teria atravessado a ponte, indo provocar na fronteira da cidade de Cachoeira imprevisíveis
danos material e humano” (Jornal Correio de São Félix, 14/fev/1959).
Não por acaso “Luiz publicou o livro Imagem mutilada, que eu guardava no quarto
junto com os demais papéis dele, mas com a enchente, tudo foi levado embora, inclusive o
livro” confessa com tom de lamentação a perda desse documento. Nair Santana Leite,
segunda companheira do jornalista até 28 de julho de 1980, data do falecimento de Luiz
Gonzaga Dias. O título do livro de poesia é bastante sugestivo, possivelmente refletindo o
sentimento de uma cidade em processo de “desmonte”.
79
Figura 20: Imagem da colisão da locomotiva em um casarão – cidade de São Félix, em 1959.
Fonte: Acervo de Fotografias do APMSF.
Nessa segunda imagem do acidente já se percebe a mudança do cenário, a parede
frontal do sobrado desapareceu, a locomotiva a vapor posta na posição, mas ainda dezenas de
operários como força tarefa para a remoção da máquina e a retirada dos escombros da rua.
Pelo variado tipo de uniforme que apresentam na imagem, verifica-se a presença de chefe de
estação devido ao perfil do chapéu, camisa sob a calça. Policiais encarregados da perícia para
apurar o fato, procurando identificar as causas do acidente, assim como, os danos causados
por este.
A repercussão que o acidente ganhou nas páginas do Jornal Correio de São Félix
poderia está refletindo o perigo do veículo ferroviário nas avenidas e ruas centrais da cidade
de São Félix, na década de 1950. Que de acordo com o posicionamento de Marshall Berman
esse aspecto da modernidade vivido pelos agentes sociais como ator ou coadjuvante “não
apenas descreve a confrontação com uma realidade perturbadora, mas vivifica-a, forçando-a
sobre o leitor – e de fato, sobre o escritor também, já que [...] estão todos aí juntos, ao mesmo
tempo agentes e pacientes do processo diluidor que desmancha no ar tudo o que é sólido”
(BERMAN, 1986, p. 88).
Independente da legitimidade ou não da crítica que o Jornal Correio de São Félix faz
aos diretores da Viação Férrea Leste Brasileiro, naquele momento, há que se entender a
motivação história, o interesses subjacentes como à matéria ganha destaque no Jornal. Não
80
seria uma estratégia de marketing do periódico, para atrair leitores e vender maior número de
tiragens? De que forma o editor do Jornal adquire dividendo políticos posicionando de
maneira crítica sobre uma Empresa federal, com aparente “aliança” com os ferroviários e
operários, em geral?
Parece-me que as duas questões estiveram associadas no processo da abordagem
jornalística. O jornal impresso em cidade do interior passava por diversas crises financeiras, a
ponto de muitos encerarem suas atividades. Temática da atuação do jornal a ser abordada
mais adiante no terceiro capítulo.
81
3 – PARA ALÉM DA “CLASSE”: OS FERROVIÁRIOS DE SÃO FÉLIX
NOS EMBATES DA CIDADANIA.
Todos os dias é um vai e vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar.
(Milton Nascimento / Fernando Brant)
3.1 – COMPOSIÇÃO SOCIAL A PARTIR DOS DADOS DO REGISTRO DO CARTÓRIO
CIVIL.
Quando incluímos o levantamento de dados para compor as tabelas de ocupação na
cidade de São Félix, seguimos aos conselhos de Déa Ribeiro Fenelon (1993), onde a autora
pontua que é preciso considerar todos os registros – a fotografia, o vídeo, a pintura, o
desenho, a charge, o cinema – como fontes históricas. Mas a autora lembra que “tal como as
fontes textuais, essas precisam ser desvendadas para delas extrair o não dito, as entrelinhas e
aquilo que potencialmente permite olhares e leituras diversas” (FENELON, 1993, p. 77).
Nessa perspectiva as informações obtidas no cartório civil podem revelar caminhos que
contemplem a demanda de uma problemática específica, ao tempo em que ajudam a compor o
cenário da narrativa história do objeto de estudo.
Peter Burke (2005) concorda que uma abordagem quantitativa é mecânica demais,
insensível demais às variações para ser esclarecedora por si mesma. No entanto, o autor
afirma que este mesmo tipo de abordagem uma vez combinada a métodos literários
tradicionais, a análise de conteúdo pelo menos corrige o tipo de viés implícito. E acrescenta
que a abordagem serial dos textos “é adequada em muitos domínios da história cultural e já
foi empregada na análise de testamentos, escrituras, panfletos políticos e assim por diante”
(BURKE, 2005, p. 34).
A montagem das tabelas tem nos feito visualizar com melhor amplitude o histórico
populacional da cidade de São de Félix, dando uma dimensão generalizada das atividades
ocupacionais, do domicílio e dos relacionamentos afetivos mediante a consecução dos
casamentos. Dados esses obtidos através de fontes cartoriais no Fórum da cidade e o censo
demográfico do IBGE, como item complementar para os dados da pesquisa. Nesse primeiro
momento formou-se o seguinte quadro sobre a quantidade estimada de habitantes na urbe de
São Félix, na tabela seguinte:
82
Tabela 5: Histórico Populacional de São Félix e Distrito.
Ano
Habitantes
1872
35.086
1892
47.234
1920
12.723
1940
14.851
1950
14.801
1960
14.563
1970
13.267
1980
15.243
1991
12.192
1996
13.185
2000
13.699
Fonte: Escritório do IBGE, na cidade de Cachoeira - Ba.
Com base no histórico populacional não houve variação significativa na quantidade de
habitantes da cidade de São Félix, ao longo do século XX. Como no século XIX, os territórios
das freguesias de São Félix, São Pedro do Monte da Muritiba, Nossa Senhora da Conceição
do Sapé compunham o que veio a dar origem ao município, explique a quantidade de
habitantes de 35 086 e 47 234, respectivamente, nos de 1872 e 1892.
Conforme o quadro acima (Tabela 5) a média da população da cidade de São Félix
girou em torno de quatorze mil habitantes. Incluindo nesse contexto os nascidos na própria
urbe ou município, os trabalhadores egressos de outros lugares, conforme indica a tabela 6.
Sendo importante salientar o impacto sofrido pela referida cidade da retração da atividade
industrial e manufatureira, a partir dos anos 1950, com a transferência ou fechamento de
fábricas de charutos e armazéns de fumo – motor de maior absorção da mão-de-obra local,
paralelamente, culminando com o processo de transferência das oficinas de Rede Ferroviária
Federal Leste Brasileiro para a cidade de Salvador, Alagoinhas e Aramari – este distrito do
município de Alagoinhas.
Durante a década de 1950 a impressa local já dava conta dos problemas da crise
econômica que se abatia na cidade de São Félix. O Jornal Correio de São Félix, que era o
principal jornal de circulação na região pontua também o problema da escassez de moradia.
“O operário é a maior vítima, porque trabalha distante de onde reside, morando em cidades
vizinhas, obrigado, porém a observação de horários estabelecidos”26. A queixa existente nesta
nota do Jornal revela-se coerente com os dados obtidos nas declarações dos registros civis
(Tabela 7) relativos aos dos trabalhadores da cidade de São Félix, quando ao local de
domicílio. A maioria dos operários empregados na cidade de São Félix tinha domicílio em
outra cidade, talvez refletindo a carência de moradia em São Félix.
26
JORNAL CORREIO DE SÃO FÉLIX, 28 de junho de 1951. Nº 839. Ano: XVII. Acervo do APMSF.
83
Tabela 6: Naturalidade dos homens que residiam e trabalhavam na cidade de São Félix.
Outras cidades
São Félix
Quantidade
Percentual
Quantidade
Percentual
485
59%
337
41%
Fonte: Quadro elaborada a partir dos dados obtidos no Livro de Registro do Casamento Civil, entre os anos de
1940 e 1960. In: Cartório de Registro Civil – Fórum Andrade Teixeira, São Félix-BA.
Os homens que declararam domicílio fora do município de São Félix indicaram como
locais de residência, cidades circunvizinhas como Cachoeira, Maragojipe, Muritiba, Santo
Amaro da Purificação, Cruz das Almas, Conceição da Feira ou a capital do Estado da Bahia,
Salvador. Percursos realizados diariamente ou semanalmente, por alguns dos homens que
residiam fora da cidade de São Félix.
Possivelmente, o universo de trabalhadores desempenhando uma multiplicidade de
papéis sociais tem uma dimensão muito maior que um aparente dado estatístico das fontes
escritas oficiais, ou, comumente, chamado de documentos oficiais. Analisando a estimativa
população na década de 1940, conforme o censo demográfico do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE havia naquele momento um total de 14 851 pessoas residindo
no município de São Félix, conforme a tabela 11. Do referido total de pessoas, 6 653 residiam
na área urbana e suburbana, representando a menor da população com residência na cidade,
44,8% do total, portanto.
Enquanto que 55,2% corresponderam à população rural do município de São Félix.
Informação condizente com a realidade da quase totalidade dos municípios brasileiros, onde
até meados do século XX, concentravam-se a maior da população na área rural. Ainda
conforme o censo do IBGE, de 1940, o número de mulheres residentes no município de São
Félix era superior ao de homens. Um total de 7 930 mulheres, portanto, 53,4% o que pode
significar talvez o elevado de número de trabalhos homens, egressos de outras cidades
estabeleceram união conjugal com as mulheres desse Município.
De acordo com o mesmo censo o total de pessoas que se declararam casadas, no
mesmo período, representou 2 746 indivíduos. Importante observar que a população na faixa
etária de 20 a 59 anos de idade somava 6 480 pessoas, entre homens e mulheres. Embora
tenha havido casamentos de mulheres com faixa etária inferior à idade de 20, de acordo com
os registros de casamento civil, na cidade de São Félix, entre as décadas de 1940/1950.
84
Tabela 7: local de domicílio dos homens que trabalhavam na cidade de São Félix.
Outro local
Quantidade
Percentual
61
7,42%
São Félix
Quantidade
761
Percentual
92,57%
Fonte: Quadro elaborada a partir dos dados obtidos no Livro de Registro do Casamento Civil, entre os anos de
1940 e 1960. In: Cartório de Registro Civil – Fórum Andrade Teixeira, São Félix-BA.
Os dados sobre as mulheres apresentam uma representação diferente, com um total de
96,59% tendo declarado, na data do casamento, residir na cidade de São Félix. Onde um
percentual mínimo, menos de 3% das mulheres ou não declarou a residência, talvez quanto à
indefinição do novo local de moradia, ou já sabia onde morar após o casamento. Por tradição
ou convenção o casamento era realizado na cidade da noiva, passando essa a incorporar um
dos sobrenomes do marido ao seu próprio, com a efetivação do casamento civil.
Tabela 8: naturalidade e domicílio declarados pelas mulheres – 1940 a 1960.
Naturalidade - 822
Outras
Percentual
localidades
303
Domicílio - 822
São
Percentual
Félix
36,86%
519
Outras
Percentual
localidades
63,13%
28
São
Percentual
Félix
3,4%
794
96,59%
Fonte: Quadro elaborada a partir dos dados obtidos no Livro de Registro do Casamento Civil, entre os anos de
1940 e 1960. In: Cartório de Registro Civil – Fórum Andrade Teixeira, São Félix-BA.
A totalidade dos casais que se declaravam natural e residente em Outeiro Redondo,
distrito do município de São Félix, ocupava a função de lavrador. Aspecto que mostra um
quadro de força de trabalho local menos qualificada, não apenas na zona rural, como também
essa evidência se confirma na área urbana de São Félix, pelo índice de naturais desta cidade
ocupando a função de operário e doméstico, este último, para as mulheres.
Percebe-se de acordo com os dados da tabela 8 que houve também um percentual
significativo de mulheres de outras cidades a constituir domicílio em São Félix. Isso revela
que a urbe de São Félix serviu de pólo de atração para diversas mulheres. Resta investigar se a
vinda dessas mulheres se deve ao fato de acompanhar seus companheiros ou estaria ligada à
vinda dos pais por causa de trabalho ou negócios da família? Esta última opção parece mais
pertinente visto que não há uma tradição, pelo menos nessa época, do homem e mulher
solteiros partirem juntos para outra cidade, em busca de trabalhar, e só depois constituírem o
casamento.
Na perspectiva defendida por Peter Burke que “os historiadores têm de praticar a
crítica das fontes, perguntar por que um dado texto ou imagem veio a existir” (BURKE, 2005,
p.33), o autor informa que as testemunhas do passado podem nos dizer coisas que sabiam que
85
sabiam. Embora chame a atenção para as peculiaridades de interesses de quem as produziram,
não sendo isentas de paixões ou de propaganda, como no caso das pinturas e dos romances.
A partir da composição da tabela 9 verifica-se que os ferroviários constituíam uma
parcela significava do universo de trabalhadores, no município de São Félix. Totalizando
parcialmente 119 ferroviários declarados nos livros de registro de Casamento Civil, apenas
para o período entre 1940 e 1960. Esse número não dá conta dos ferroviários que não se
casaram ou que viviam juntos com suas companheiras, sem necessariamente, oficializarem
seus casamentos. Além disso, havia os ferroviários que chegavam à cidade de são Félix, para
temporariamente substituir ferroviários que saiam de licença, licença médica ou férias.
Os ferroviários eram operários que não possuíam “cadeira cativa” para atuar única e
exclusivamente em apenas uma cidade, dada à própria natureza do serviço – transporte. Daí
ser possível entender a rotatividade dos trabalhadores a serviço da Empresa. A cidade de São
Félix tinha prerrogativa de ser sede, inspetoria, possuir oficinas, depósitos e casas para os
engenheiros, médicos e contadores – segmento pertencente ao quadro administrativo da
Empresa.
Herval de Souza Bernardo nunca se casou e, portanto, não aparece nos livros de
Registros de Casamento Civil, relatou, em parte, como se estruturava os mecanismos de
operacionalizações logísticas da Leste Brasileiro, na em São Félix. “São Félix era uma cidade
sede, distrito da Leste. Assim como Santo Amaro da Purificação. São Félix tinha depósitos e
tinha carpintarias”27. Pelo dinamismo que essa cidade representava na primeira metade do
século XX, possibilitando a elaboração de símbolos positivos contidos nos relatos
apaixonados dos trabalhadores aposentados da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro.
Ao refletir sobre as problemáticas dos lugares Pierre Nora (1993) delimita a fronteira
entre memória e história. Para o autor “os lugares de memória nascem e vivem do
sentimento” (NORA, 1993, p.13), pois congregam as mais sensíveis experiências, e que, no
entanto, possibilita evidências pelas quais compõem o lugar da história, enquanto seleção e
análise crítica do discurso. Pierre Nora não defende uma fronteira para os lugares da memória
e da história, pois, segundo ele, em ambas estariam contidas, simultaneamente, elementos
material, simbólico e funcional, em graus diversos de narrativa.
27
Trecho da entrevista com Herval de Souza Bernardo – ferroviário aposentado. Atualmente, ocupa a função de
Diretor Regional do Sindiferro, na cidade de São Félix.
86
Já o ferroviário aposentado Israel de Oliveira Melo28 que trabalhou na cidade de São
Félix a serviço da Leste Brasileiro como auxiliar de linha, mas também atuando como agente
de estação em diversas cidades – Iaçu, Caculé, Castro Alves – relatou que o depósito também
era utilizado para guardar as locomotivas e os vagões do trem. Segundo ele esses
componentes do trem recebiam a vistoria no depósito, pelo chefe de estação, para só depois
ser liberado para viagem.
Conforme esclarece Herval de Souza Bernardo “a carpintaria era onde se fabricava os
móveis [bancos, dormentes] de madeiras, utilizados na Ferrovia Leste”29. Os fragmentos da
memória vão preenchendo como um mosaico o cenário da atividade operacional da Leste
Brasileiro na cidade de São Félix.
Na cidade de São Félix mesmo tendo possuído a sede da inspetoria regional da
Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, as oficinas de carpintaria e mecânica, além do
depósito de lenha, não dispunha de uma vila operária para os ferroviários a serviço da
Empresa. No entanto, havia casas para os membros da diretoria da Leste Brasileiro –
engenheiros, médicos, contadores, administradores – dispostos próximo à estação ferroviária.
Esse aspecto também aparece no estudo de Robério Santos Souza (2007) ao pontuar
que “não foram localizadas informações diretas sobre a existência de vilas operárias entre os
ferroviários, contudo registramos referências a respeito de reparações em casas destinadas a
chefes de oficinas, agentes de estação, condutores, mestre de linhas” (SOUZA, 2007, p. 70),
confirmando uma política logística das empresas atuantes nesse ramo do transporte.
Um modelo de operacionalização do sistema identificado por Robério Santos Souza
nas décadas do século XIX com as empresas concessionárias da “estrada de ferro da Bahia ao
São Francisco” continuou sendo adotada, inclusive, quando esse controle do sistema voltou
passou a ser gerenciada pela União, em meados do século XX, a exemplo da Viação Férrea
Federal Leste Brasileiro.
Os dados da no quadro abaixo (tabela 9) deve ser com relativa atenção pois os valores
que ora se apresentam podem ter sido alterados com a dinâmica da economia local. O fluxo da
oferta de emprego tendeu a cair a partir dos anos cinqüenta, em conseqüência do fechamento
de algumas fábricas na cidade de São Félix. O que pode ter provocado um curva para baixo
no quadro de trabalhadores que se ocupavam desse setor.
28
Israel de Oliveira Melo ferroviário aposentado da Viação Férrea Leste Brasileiro, em entrevista 19 de abril de
2009. Foi admitido na Empresa Férrea em 1º de outubro de 1951, e aposentou-se no ano de 1983.
29
Herval de Souza Bernardo em entrevista na cidade de Cachoeira, dia 13 de janeiro de 2008.
87
Tabela 9: Atividades ocupacionais declaradas pelos homens.
Profissão
Operários
Artistas
Ferroviários
Comerciários
Lavradores
Diversas
Ocupação Não declarada
Total
Quantidade
177
139
119
94
83
211
40
863
Percentual
20,5 %
16,1 %
13,79 %
10,89 %
9,61 %
24,10 %
4,63 %
-30
Fonte: Quadro elaborada a partir dos dados obtidos no Livro de Registro do Casamento Civil, entre os anos de
1940 e 1960. In: Cartório de Registro Civil – Fórum Andrade Teixeira, São Félix-BA.
O quadro disposto acima possibilita a visualização do mapa ocupacional na cidade,
onde aparece como principais os setores da economia secundária formada pelas indústrias, e o
de serviços, compostos pelos prestadores de serviços no comércio, obras na construção civil e
de atendimento ao público. Pode-se se afirmar que uma das peculiaridades da cidade de São
Félix residia nessa característica de ser um centro comercial e industrial urbano, já
estabelecido no início do século XX.
Contrariando o perfil da maioria das cidades brasileiras para o mesmo período. Pois só
a partir da década de trinta quando o Brasil adota o modelo de substituição das importações,
do setor agroexportador para o industrial, começando a serem criadas as bases que iria
inverter na segunda metade no século XX o perfil ocupacional do trabalhador brasileiro em
todo país. E, portanto, uma curva ascendente da de migração do campo/cidade.
Definitivamente, São Félix não era uma cidade que vivia da economia rural, pelo
contrário, foi justamente a retração nas atividades fabris, comerciais e portuárias de meados
do século XX que provocaram a crise na economia local e, conseqüentemente, uma emigração
de parte da população local para outros centros, principalmente a capital do Estado.
Por conta da posição portuária, industrial e comercial que a cidade de São Félix
ocupava até meados do século XX, geraram as condições para ser criadas também diversas
entidades, de cunho assistencial e cultural. A fundação da Sociedade Filarmônica União
Sanfelixta data do ano de 1916, Sociedade União Operária (1901), como alguns dos
exemplos.
30
O percentual de 100% não fecha na soma por causa do fracionamento da dízima periódica.
88
Tabela 10: Ocupações das mulheres de ferroviários oficializaram o casamento.
Ocupação do Homem
Ocupação da Mulher
Ferroviários
Domésticas
Operárias
Lavradoras
Outras
125
85
37
1
(1) Professora
(1) Func. Municipal
Fonte: Quadro elaborada a partir dos dados obtidos no Livro de Registro do Casamento Civil, entre os anos de
1940 e 1960. In: Cartório de Registro Civil – Fórum Andrade Teixeira, São Félix-BA.
Essa representação configurada na tabela 10 dá a dimensão do tipo de ocupação que as
companheiras conjugais dos ferroviários exerciam. Com base na amostragem da referida
tabela a maior parte das mulheres dos ferroviários declararam trabalhar como domésticas, no
sentido de serem donas de casas. Dos 125 ferroviários, 85 deles tiveram como companheiras
mulheres que se dedicavam única e exclusivamente às tarefas de casa, totalizando 68% dos
casais envolvendo ferroviários.
Esses dados confirmam as declarações nas entrevistas de todos os ferroviários
aposentados, que suas esposas não trabalhavam fora. “Não. Nossas esposas não trabalhavam
não”. Diolino e Israel responderam ao serem perguntados se suas respectivas companheiras
conjugais exerciam alguma atividade quando eles trabalhavam na Viação Ferroviária Federal
Leste Brasileiro.
No trecho de uma entrevista, logo abaixo, Herval de Souza Bernardo dá sua versão
daquilo que supostamente teria sido a relação familiar dos ferroviários.
A maioria dos ferroviários tinha muitos filhos. Porque foi instituído o
salário-família para o pessoal que tivesse mais de oito filhos. Então o pessoal
tocou o pau. Teve ocasião que o salário-família superava o salário base. Eu
tive companheiros ferroviários que tiveram vinte, vinte e um filhos, com
duas ou três mulheres. Ter muitos filhos foi em decorrência do saláriofamília31.
O discurso de Herval de Souza Bernardo compõe parte de seu relato em forma de
crítica sobre a situação de alguns casais de ferroviários, no qual acrescenta que “as mulheres
dos ferroviários, quando viúvas ficavam recebendo pensão integral pela ausência dos
companheiros”.
Herval de Souza Bernardo que parte de sua atividade profissional foi envolvido com a
luta do segmento ferroviário, na qualidade de coordenador, de subsecretário do Clube dos
Ferroviários e, hoje, exerce a função de diretor Regional do Sindiferro, na cidade de São
Félix. Herval de Souza Bernardo nunca se casou nem teve filho, talvez justifique parte da
composição da narrativa dele sobre os companheiros.
31
Trecho da entrevista com Herval de Souza Bernardo, ferroviário aposentado da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro. Entrevista dia: 03/01/2008.
89
“Ferroviários eram quem tinha mais filhos. Eu mesmo fiz vinte e dois. Meu irmão fez
quarenta e oito filhos. Minha última filha ta agora com 18 anos, que eu fiz quando eu tinha 60
anos de idade”32. Esse constitui um relato feito por Israel de Oliveira como uma virtude, como
prova de sua virilidade masculina. Sendo, portanto, relatado um sentimento de orgulho, de
conquista, em as suas idas e vindas a serviço da Leste Brasileiro.
“Teve um período que eu morei em uma ‘república’, na cidade de Iaçu. Lá a meianoite, as mulheres batiam na porta, eu dizia: não, eu não quero mais não! Já teve duas aqui
hoje”33. Essas histórias que Israel conta sem nenhum tipo de censura ou pudor, faz parte de
seu universo simbólico, de masculinidade perante uma sociedade que alimenta uma condição
de afirmação social na posição de gênero.
Alistar Thomson (1997) entende que a composição da memória dos sujeitos se
justifica pelo processo de construção das reminiscências, em constante interação entre o
passado e o presente dos indivíduos. “A necessidade de compor um passado com o qual
possamos conviver”. O autor argumenta o sentido da composição acrescentando que “nossa
identidade é a consciência do eu que, com o passar do tempo, construímos através da
interação com outras pessoas e com nossa própria vivência” (THOMSON, 1997, p. 57).
Relatos como o de Israel de Oliveira Melo, conforme expõe Alistair Thomson,
compõem histórias que “não são representações exatas” do passado, mas que no entanto,
“trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e
aspirações atuais”. Nesse sentido, acrescenta Thomson, “reminiscências são passados
importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que
o tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes”
(THOMSON, 1997, p. 57).
As lembranças significativas variam de acordo com as experiências de cada sujeito, e
do que os mesmos selecionam na memória como elemento de representação do passado. Para
Israel de Oliveira Melo lembrar as datas marcantes dos momentos sobre a ferrovia ajuda a
situar no tempo e espaço uma experiência contada por ele. Mesmo tendo se aposentado da
Leste Brasileiro a mais de vinte e cinco anos, Melo traz à tona a data exata do dia em que foi
admitido na Ferrovia – “entrei na Leste no 1º de outubro de 1951. Minha matrícula era 35 414
pela União. Hoje é 42 051, depois que eu optei pelo regime da CLT”.
32
Trecho da entrevista com Israel de Oliveira Melo, 78 anos de idade, ferroviário aposentado da Viação Férrea
Federal do Leste Brasileiro. Entrevista realizada em 19/04/2009.
33
Op. Cit. Israel de Oliveira Melo, entrevista em 19/04/2009.
90
A precisão nas datas e números de matrículas constitui elemento de registros
marcantes na memória, associado a uma experiência de trabalho e, portanto, de evidência na
história. O ferroviário aposentado Israel de Oliveira Melo em seu relato, cita nomes e
sobrenomes de diversos personagens que atuaram em sua companhia, ou dos quais ele teria
sido subordinados: O que dizer do doutor Rodrigo, citado como o médico que lhe atendeu e o
concedeu licença de trinta dias, para se recuperar da fratura no braço.
Como explicar a lembrança que ele teve da greve dos ferroviários no ano de 1964,
informando inclusive, o nome do ferroviário que liderou esse movimento nessa data. O
registro dos nomes e sobrenomes dos médicos, engenheiros e companheiras de atividade é
algo recorrente na fala de Israel de Oliveira Melo.
Em 1964, tiraram até os trilhos da Ponte entre São Félix e Cachoeira. Quem
liderou esse movimento foi Ari Vicente [grifo nosso] – morreu a pouco
tempo. Ari Vicente era um maquinista, mas era um cara muito inteligente.
Ele chamava doutor Santos Pereira, assim: Santos. Tinha essa ousadia, esse
privilégio. Porque ele sabia argumentar com os chefes34.
As lembranças atribuídas a datas ganham dimensão à medida que Israel Melo sente a
atenção e o interesse do seu interlocutor. Perguntado sobre a Estação Ferroviária, onde
atualmente reside, disse ter sido inaugurada em 15 de dezembro de 1958, no trecho que
atingiu Sapeaçu e Conceição do Almeida. Segundo Israel a Estação Ferroviária de Cruz das
Almas teve vida curta, fechando menos de duas décadas após a inauguração, em dezembro de
1973.
Parafraseando o pensamento de Pierre Nora (1993) a memória não se constrói no
vazio, há que se ter vivido uma experiência histórica para que esta faça parte, no todo ou em
uma fração das reminiscências dos sujeitos, que se justificam pelo sentimento, emoção e
subjetividade inerente a qualquer campo do conhecimento.
Tabela 11: Censo Demográfico – 1. População por distrito.
Divisão Distrital
Urbana
e
Rural
suburbana
1. São Félix ...............................................
7 971
6 559
1 412
2. Outeiro Redondo ...................................
6 880
94
6 786
Fonte: Sinopse estatística do Município de São Félix. Rio de Janeiro – Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE. 1948. In: APMSF.
34
Op. Cit. Israel de Oliveira Melo, entrevista em 19/04/2009.
Total
91
Pelo que se observa nas tabelas 11 e 12 a população rural supera a população urbana,
também no município de São Félix. Embora o quadro ocupacional da população apresente
características predominantemente urbanas. Conforme tabela 9 de ocupação, obtido no livro
de registro de casamento, a atividade de lavrador representa apenas a quinta posição, com 83
trabalhadores, ou seja, apenas 9,6% do total de trabalhadores no referido município.
Outro dado que chama atenção diz respeito ao quadro sobre características culturais
(Tabela 13) do menos da metade da população sabiam ler e escrever, com base no
levantamento do IBGE (1948). Embora não esteja distinto por localização ou gênero, mas
possivelmente, a população do distrito de Outeiro redondo tenha ajudado a elevar esse índice
de analfabetismo no Município. Já que comumente, as áreas rurais eram carentes de escolas.
Consultando a Efeméride Sanfelixta encontramos apenas um registro de inauguração
de escola feito pela prefeitura de São Félix na década de quarenta. Consta do registro o
seguinte: “pelo Decreto-Lei nº. 42 o prefeito criou uma escola Mista-Municipal em Capivari,
de nome Cel. João Severino, sendo inaugurada com solenidade”. O sentido misto não ficou
claro. Possivelmente, uma escola aberta a alunos de ambos os sexos. Parece que construir
escola não fazia parte da plataforma de governo dos prefeitos do município de São Félix, pela
quase inexistência desse tipo de ação municipal.
Tabela 12: Censo Demográfico – 2. Principais características da população
Características e
População de fato
Principais modalidades.
Município
Estado
%
3 918 112
0,38
Total ....................................................
14 851
Localização
Urbana e suburbana .............................
937 571
0,71
6 653
Rural ....................................................
8 198
2 980 540
0,28
Sexo
Homens ................................................
1 913 868
0,36
6 921
Mulheres ..............................................
7 930
2 004 244
0,40
Idade
De 0 a 6 anos ........................................
836 072
0,36
3 034
De 7 a 14 anos ......................................
830 356
0,36
2 955
De 15 a 19 anos ....................................
1 633
423 797
0,39
De 20 a 59 anos ....................................
1 652 477
0,39
6 480
De 60 anos e mais anos ........................
698
183 825
0,38
De idade ignorada ................................
1 585
0,69
11
Estado conjugal
2 776 348
0,42
Solteiros ................................................
11 622
983 315
Casados .................................................
0,28
2 746
Separados, desquitados, divorciados ....
3 207
449
152 604
0,29
Viúvos ..................................................
34
2638
De estado conjugal não declarado ........
1,29
Fonte: Sinopse estatística do Município de São Félix. Rio de Janeiro – Serviço Gráfico do IBGE. 1948. In:
APMSF.
92
Características e
Principais modalidades
Tabela 13: Principais características culturais.
População de fato
Município
Estado
%
Nacionalidade
Brasileiros natos ...................................
14 822
3 909 831
0,38
Brasileiros naturalizados ......................
2
636
0,31
Estrangeiros ..........................................
27
7 371
0,37
De nacionalidade não declarada ..........
274
Instrução
Sabem ler e escrever ............................
4 022
786 107
0,51
Não sabem ler nem escrever ................
8 598
2 514 536
0,34
De instrução não declarada ..................
53
11 378
0,47
Religião
Católicos ...............................................
14 585
3 875 460
0,38
De outras religiões ................................
244
38 892
0,63
Sem religião ..........................................
13
1 797
0,72
De religião não declarada .....................
9
1963
0,46
Fonte: Sinopse estatística do Município de São Félix. Rio de Janeiro – Serviço Gráfico do IBGE. 1948. In:
APMSF.
Tabela 14: Representante de Estabelecimentos de crédito
Município
Estado
Banco do Brasil .........................................
1
24
Caixa Econômica Federal .........................
1
23
%
4,17
4,33
Fonte: Sinopse estatística do Município de São Félix. Rio de Janeiro – Serviço Gráfico do IBGE. 1948. In:
APMSF.
A imaginar pela quantidade de municípios no Estado da Bahia, a cidade de São Félix
dispunha de duas agências bancárias na década de 1940, conforme exposição da tabela 14,
pelo que revela censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Observe que das vinte
e quatro agências do Banco do Brasil, uma delas instalada em São Félix. Percentual
aproximado no que diz respeito à agência da Caixa Econômica Federal, que também atuou na
localidade no mesmo período.
Principal reportagem (figura 21) de capa do Jornal Correio de São Félix, do dia 19 de
abril de 1969, destaca a comemoração do cinqüentenário de instalação da agência do Banco
do Brasil na cidade de São Félix. De acordo com o texto jornalístico foi a primeira cidade do
interior do estado da Bahia a receber uma agência do Banco do Brasil, refletindo a condição
de importante centro comercial, industrial e portuário das primeiras décadas do século XX.
93
Figura 21: Comemoração do cinqüentenário ano da instalação da agência do Banco do Brasil em S. Félix.
Fonte: Jornal Correio de São Félix, 19/abril/1969. In: APMSF.
A página de capa dessa edição registra outras informações pertinentes à cidade. No
espaço reservado à Câmara Municipal a relação dos nomes dos vereadores, entre eles, o nome
de Luiz Gonzaga Dias citado também no rol das personalidades que participaram do coquetel
comemorativo do cinqüentenário de instalação da agência do Banco do Brasil na cidade. O
Jornal Correio de São Félix configurou-se para o jornalista Luiz Gonzaga Dias no instrumento
de promoção de sua pessoa, como político, intelectual e poeta na articulação dos canais de
sociabilidade local.
Os estabelecimentos de créditos, na cidade, dimensionam bem a posição ocupada pela,
então, denominada “cidade industrial”, no Jornal Correio de São Félix, por várias passagens
do periódico. Conforme depoimento do ferroviário aposentado Álvaro Gomes Araújo, “a
cidade de São Félix tinha estaleiros às margens do rio Paraguaçu, próximo ao cais do porto,
para fazer barcos”.
Pelos dados do censo, do Jornal e depoimentos obtidos com os ferroviários, a cidade
teria vivido até meados do século XX um ambiente de possibilidades de empreendimentos
empresariais, resultando em atração de trabalhadores de diversas cidades, em busca de
trabalho e renda.
94
3.2 – OS FERROVIÁRIOS SOBRE A ÓTICA DO JORNAL CORREIO DE SÃO FÉLIX.
O Jornal Correio de São Félix foi o principal jornal impresso de circulação na cidade
de São Félix, de meados da década de 1930 até os anos 1970. Tendo sido ao longo desse
período o principal periódico produzido na cidade de São Félix. Nele é possível fazer um
panorama do que acontecia na cidade, tanto no que diz respeito às manifestações culturais,
como aos aspectos relacionados às colunas sociais. Tendo relevância no Periódico relatos que
destacavam os problemas vivenciados pela cidade. Preocupação com os problemas da
economia local, a ingerência do patrimônio público e as questões ligadas ao trabalho.
Em meados dos anos 1940, o Jornal passa a ser dirigido pelo Redator - chefe, Luiz
Gonzaga Dias, que além de escrever artigos e notas nesse Periódico, também era exímio
poeta. À frente desse Jornal ele não de furtou de denunciar a precariedade do serviço de
transporte prestado à cidade de São Félix. Seja por conta do processo de sucateamento da
malha ferroviária da Ferrovia Leste Brasileiro, culminando com a transferência de parte das
oficinas da Rede, para as cidades de Alagoinhas e Salvador, no final da década de 1940, seja
pelo descaso atribuído à Diretoria da Empresa. Como também noticiava, sob forma de
protesto, a deficiência do sistema viário marítimo e fluvial, das grandes, pequenas e médias
embarcações dos navios, saveiros e barcos, respectivamente, que serviam entre o cais do porto
da cidade de São Félix e o porto da cidade de Salvador.
Luiz Gonzaga Dias ocupou a cadeira na bancada da legislatura municipal da Câmara
de Vereadores de São Félix. Como vereador propôs ações junto à Câmara no sentido de
amenizar os problemas da crise da economia local. A preocupação com o desemprego, com a
falta de espaço para moradia e, principalmente, sua preocupação relacionada com o
“desmonte da cidade”, nos anos de 1950.
95
Figura 22: Luiz Gonzaga Dias como Presidente da Câmara de Vereadores, em 1973.
Fonte: Galeria de fotos dos ex-prefeitos de S. Félix. APMSF
Na imagem acima aspecto da imagem do homem público, onde o terno compunha
parte do figurino indispensável na estrutura do personagem no sucessivo mandato eletivo,
como vereador, presidente da Câmara de Vereadores e prefeito substituto na cidade de São
Félix. O homem público que soube articular a atuação política junto com a legenda partidária
da União Democrática Nacional – UDN, à sua vocação pelas artes como poeta e intelectual
devido a sua atuação como jornalista à frente na direção do Jornal Correio de São Félix.
Pode-se dizer que Luiz Gonzaga Dias fora um jornalista militante na defesa dos
interesses de sua cidade, conforme ficou registrado nos editorias que escrevia ora para
denunciar negligência ligada ao transporte ferroviário e marítimo, ora para reclamar injustiça
com relação à carência de moradia na cidade.
Essa fotografia clássica do homem público que buscava retratar uma imagem serena,
buscando transmitir uma postura de compromisso, responsabilidade. Em suas poesias Luiz
Gonzaga Dias passeava por variados temas amor, desventura, meio ambiente e,
principalmente, temas sociais. Poesias que ele reuniu no livro que ele publicou no início dos
anos sessenta, com o sugestivo de título de Imagens Mutiladas.
Exímio conhecedor das letras o poeta valeu-se do talento nessa arte para expressar os
mais variados temas nos versos que compusera, seguindo a estrutura da norma culta da língua.
Os versos produzidos por Luiz Gonzaga Dias eram sempre escritos na seguinte ordem: quatro
estrofes, sendo os dois primeiros formados por quatro versos cada, e os dois últimos três
versos.
96
Figura 23: Recorte do Jornal alusivo à poesia de Luiz Gonzaga dias.
Fonte: Correio de São Félix, 26 de abril de 1969. Acervo do APMSF.
O verso A canção acabou... o autor traduz em metáforas o sentimento de uma época
anterior cuja a produção fabril, os ramos de serviços e empregos tornavam a cidade um
ambiente de visibilidade social, inclusive pelo intercurso dos tradicionais sistemas de
transporte, que segundo o poeta Luiz Gonzaga Dias, desapareceram “como a nave que
naufragou um dia”. Para o autor “a melodia” representasse as lembranças, a saudade. Pois os
elementos materiais “Já se extinguiu como um pouco de fumo” referência as antigas fábricas
de charutos existentes na cidade de São Félix, durante a primeira metade do século XX.
Daquele processo, segundo o poeta, restaram apenas as lamentações “como saudade [...] à
soluçar.
O poeta Luiz Gonzaga Dias no contexto da década de sessenta sente como as processo
conjuntural da sociedade como um todo atingiu definitivamente o ambiente de crise que se
abateu sobre a cidade dele. O conjunto de seus versos podem ter lhe inspirado para atribuir à
sua obra o sugestivo título de Imagens Mutiladas.
Luiz Gonzaga Dias que além de jornalista e poeta, foi vereador no período de 1951 a
1977. Ele foi um homem público, que experimentou a sociabilidade urbana buscando atuar de
97
maneira efetiva nas problemáticas da cidade local. Pela composição da tabela abaixo pode
imaginar o longo período de vida pública do jornalista, poeta e político.
Tabela 15: Trajetória de vereança de Luiz Gonzaga Dias.
Período
Função
1951 a 1955
Vereador
1955 a 1959
Vereador
1959 a 1963
Vereador
1963 a 1967
Vereador
1967 a 1971
Presid.da Câmara de Vereadores.
1971
Prefeito Substituto
1971 a 1973
Presid.da Câmara de Vereadores.
1973 a 1977
Vereador
Fonte: Efeméride Sanfelixta – Acervo do APMSF.
Uma curiosidade na trajetória da vereança municipal da cidade de São Félix, a partir
da emancipação política, na última década do século, deve-se a total ausência da figura
feminina na esfera parlamentar local. A primeira mulher a assumir como vereadora uma
cadeira na Assembléia Legislativa Municipal de São Félix foi Leda Maria da Conceição dos
Santos, de 1973 a 1977.
Aspecto que chama atenção no depoimento de Nair Santana Leite diz respeito ao
caráter filantrópico da vereança de Luiz Gonzaga Dias, “ele foi vereador e não ganhava
nada”! Então que “capital simbólico” motivou sua longa trajetória na atividade política? Essa
questão sugere um foco de abordagem das mais surpreendentes para se pensar o caráter
motivacional de personalidades políticas em cidades do interior da Bahia.
Um homem que antes de morar com Nair Santana, “ele tinha dez filhos com a primeira
esposa, que morreu”. De onde provinha a renda? Apenas da venda das edições periódicas do
Jornal Correio de São Félix? Como proveio a educação escolar dos filhos, uma vez que,
“alguns dos filhos de Luiz foram bancários, da agência do Banco do Brasil” na cidade de São
Félix, acrescenta Nair Santana. Se não era o salário de vereador ou de político local, pelo
menos, ele exerceu algum canal de influência na variadas esferas da sociedade local.
Conforme ficou evidenciado em ata da Assembléia Geral da Associação Atlética de
São Félix, do dia 25 de setembro de 1957, tendo duas pautas: dá posse à nova diretoria e das
dificuldades financeiras da Associação. Após terem expostos os valores a saldar com os
credores, onde Luiz Gonzaga Dias aparece como um dos principais credores. Na
oportunidade, a nova diretoria com os associados presentes à reunião propôs “cobrança
mensal de carnê aos associados, tendo ao menos uma programação festiva mensal”35.
35
Livro de Ata da Assembléia Geral da Associação Atlética São Félix – AASF, 25 de set. de 1957. Acervo do
APMSF.
98
Conforme se observa no documento o jornalista teria sido sócio da Associação
Atlética, e assíduo colaborar financeiro da entidade, na cidade de São Félix.
O ferroviário aposentado Herval de Souza Bernardo esclarece que “Luiz Gonzaga era
um político partidário da direita, da UDN, na época”. E que embora o sindicato dos
ferroviários se posicionasse pela eleição de candidato de esquerda, pelo PTB, Herval
Bernardo reconhece que alguns dos vereadores da direita “era o típico político da boa
vizinhança”, no sentido de se mostrarem sensíveis aos problemas dos trabalhadores. Não pode
ser de todo verdade a ausência de remuneração para o homem político Luiz Gonzaga Dias,
que em 1971 chegou a chefe do poder executivo local, como prefeito substituto, que
evidentemente, era remunerado.
Fotografia da imagem da personalidade pública local, com destaca para a função que
exerceu ao longo de dois momentos, últimos anos da década de 1960 e os anos iniciais da
década de 1970, a presidência nos trabalhos da Câmara de Vereadores, na cidade de São
Félix. Pereba que a pose para foto o homem público, político local, tendeu a representar uma
imagem séria, porém serena, com semblante de confiança à frente da tarefa que o cargo lhe o
confere. O traje com o alinhamento do terno, paletó e gravata completa a imagem, buscando
revelar uma aparência de cuidado com o corpo, barba, bigode e cabelos cortados, a relação
direta entre o zelo pessoal e a tomada de decisões coletivas.
Importante destacar na figura pública de vereador a atuação Luiz Gonzaga Dias ao
advogar na Tribuna da Câmara de Vereadores, também, em defesa das práticas desportivas da
cidade. Em ocasiões de eventos junto à Associação Atlética de São Félix, o vereador sempre
era indicado pela mesa diretora da Câmara de Vereadores do município, para se fazer
representar por esse parlamentar municipal, no evento daquela Entidade. Isso pode ser
comprovado com base nas Atas das Sessões da Câmara de Vereadores.
O jornal Correio de São Félix, periódico semanal, lançou sua primeira edição no dia
26 de abril de 1933, um sábado. Aliás, o sábado ficou sendo o dia da publicação das edições
emanais. Até a edição nº 14, de 20 de agosto de 1944, o Jornal foi dirigido pelo jornalista
Antydio Luiz36, natural e residente na cidade de São Félix. Durante os anos em que Antydio
esteve à frente do Jornal Correio de São Félix, o slogan logo abaixo do nome do jornal, vinha
escrito: “o jornal de maior circulação no interior do Estado.”
O título do slogan sugere uma necessidade de afirmação de identidade para um veículo
de comunicação diante dos desafios e obstáculos, que se colocavam para as empresas desse
36
Antydio Luiz foi jornalista, co-fundador do Jornal Correio de São Félix e primeiro diretor desse periódico.
99
ramo no interior da Bahia. Mas que também revela por parte dos dirigentes do Jornal um
desejo de se fazer grande junto ao público leitor. Parece que o jornal buscou sobreviver ao
longo dos anos, entre meados da década de 1930 até aproximadamente 1970, à escassez de
recursos, a falta de patrocinadores, assim como, tendo que administrar o orçamento apertado e
a concorrência frente aos gigantes conglomerados da imprensa impressa da capital baiana, ou
quiçá, de outros estados.
O Jornal Correio de São Félix parece ter alcançado notoriedade, nas décadas de
1940/1950, atingindo em seu raio de ação, outras cidades do Recôncavo Baiano. No Jornal O
Paládio, da cidade de Santo Antônio de Jesus, município situado no Recôncavo Sul, o editorchefe emite nota de congratulações ao Jornal Correio de São Félix, atribuindo a essa empresa
o perfil de imprensa séria e atuante. O editor-chefe do Jornal O Paládio classifica o periódico
de São Félix da seguinte forma: “É o único jornal da industrial cidade de São Félix, tendo boa
circulação e desempenha nobremente o seu papel de defensor dos interesses públicos.”
(Jornal O Paládio, 15/maio/1942).
Essa referência de “jornal industrial” estivesse relacionada ao caráter da economia de
São Félix. Em parte ligada à atividade manufatureira dos armazéns de fumo e fábricas de
charutos. Mas também a presença da fábrica de gelo, fábrica caramelo, de aguardente, de vela
etc. De modo que, nos de 1940 a cidade vive o dinamismo da economia e ainda da condição
de principal porto de escoamento de produtos. Não por acaso, a Companhia de Navegação
Baiana atuou a todo vapor, no vai e vem de São Félix a Salvador, até o ano de 1958. Data em
que o governo decretou o encerramento das atividades da Companhia até o porto de São
Félix.
Dando seqüência aos termos de congratulações o Jornal Correio de São Félix, o editor
do Jornal o Paládio acrescenta a seguinte mensagem: “O Correio de S. Félix, apreciado
periódico sob a direção do jornalista o Sr. Antydio Luiz, aniversariou-se no dia 26 do mês
passado havendo entrado no 9º ano de existência.”37 Dado importante, pois também situa e
confirma a dada da fundação do periódico de São Félix, assim como, informar o nome do
então diretor do mesmo.
No parágrafo seguinte o editor de O Paládio faz referência à ação persistente do Jornal
Correio de São Félix. Familiarizado com as dificuldades enfrentadas pelos periódicos, que
atuavam no interior da Bahia, provocadas entre outras razões, pelo elevado custo do papel.
Não seria essa nota uma tentativa de induzir a opinião pública? “Apesar dos entraves que se
37
Op.cit.
100
antepõem à macha da imprensa periódica, nesta época em que o material com que se faz a
gazeta sobe de preço vertiginosamente, o Correio de S. Félix vai por diante zombando desses
entraves e triunfando perante todos os óbices.”38
Referência à função do Jornal impresso
constituía-se na necessidade de afirmação de um veículo de comunicação, ora como
mecanismo de atração de novos leitores, ora por necessidade de atrair os patrocinadores
mediante a concessão de espaço nas páginas do Jornal as propagandas de produtos e serviços
diversos. Essa evidência aparece seguinte no título apelativo, do Jornal O Paládio: “Façamos
de cada jornal uma escola”. Em outra edição do mesmo Jornal outro título sugestivo: “O que
vale um jornal”.
Eram preocupações dos anos 1940. Período em que os instrumentos de rádio de fusão
começam a dar os primeiros sinais de transmissão de notícias, como também,
progressivamente, passa exibir música, rádio novelas. Ao mesmo tempo, levando, com ele,
uma fatia significativa da publicidade e, portanto, do capital investido nessa área. A década de
1940, no Brasil, ficando conhecida como a “era de ouro” do rádio.
Observe, na seqüência, o texto impresso no Jornal O Paládio, onde o autor buscou
sensibilizar aos membros da sociedade, em geral, um sentimento de solidariedade para com a
manutenção desse veículo de comunicação impresso.
O conceito emitido por uma folha de Minas Gerais, a Gazeta de
Paraopeba, e que transcrevemos para que seja lido e meditado:
O maior expoente da civilização de um povo é inegavelmente a sua
imprensa. Pelo jornal avalia-se bem o grau de adiantamento de sua terra, do
desenvolvimento do seu progresso, a capacidade de seus habitantes. Nas
oficinas do jornal está o atestado da cultura de um povo. Sem a imprensa
nada representam as aspirações populares, o desejo de prosperar, os
sacrifícios feitos para avançar. Tudo debalde. O jornal é que discute e
orienta, que fiscaliza e ao mesmo tempo auxilia a administração pública.
Sem imprensa, pois, não pode haver progresso.
Por isso mesmo cada terra tem o imperioso dever de cooperar para a
manutenção do seu pessoal, emprestando-lhe todo o seu amparo, dando-lhe o
braço.[...] (Jornal O Paládio, 10 /jul./1942).
Esse trecho é parte do texto em que o Jornal O Paládio dá o título de “O que vale um
jornal”. Nesse texto, redator chama atenção para a função didática do jornal, atribuindo-lhe o
status de co-responsável pelo desenvolvimento da cultural e o progresso de um povo. O jornal
impresso era representado como sendo um instrumento de denúncia, reflexão e debate. O
jornal, nesse sentido, teria uma posição isenta frente às problemáticas sociais, para além do
jogo político partidário. Era como se o Jornal local buscasse atingir o maior número possível
38
Op.cit
101
de público leitor, ou mesmo, se colocasse porta-voz da opinião pública, ao tempo em que
atuava como veículo formador de opinião.
Na imagem abaixo destaque para o título da nota do aniversário do Jornal Correio de
São Félix, onde a imagem de Luiz Gonzaga Dias aparece no lado direito da figura,
legendando sua pessoa como jornalista, diretor e proprietário do jornal local. O conteúdo do
texto no trecho da matéria faz alusão ao papel desse meio de comunidade como um veículo
“dedicado a causa pública”. Uma tentativa de autopromoção do jornal para com o público
leitor, seja como estratégia de conquistar mais leitores, seja como forma de projeção política e
social de seu principal dirigente.
Figura 24: Homenagem ao aniversariante, jornalista Luiz Gonzaga Dias – 26/abril/1969.
Fonte: Jornal Correio de São Félix, Acervo do APMSF.
O Jornal constitui em um documento privilegiado para o estudo sobre as relações
sociais contemporânea. Isso remete a uma reflexão pontuada por George Duby (1993) na qual
o autor contesta a idéia onde “o historiador, ao investigar minuciosamente suas fontes, deve
apagar-se o quanto puder, não passando de um olhar neutro” (DUBY, 1993, p. 57). O autor
faz crítica ao postulado da pretendida neutralidade da moral positivista como tarefa
inacessível em sua plenitude, tendo em vista as motivações, as paixões e as subjetividades que
compõem o universo simbólico de cada pesquisador.
102
Desta forma um mesmo documento pode dizer muito sobre variados temas para
diferentes historiadores, pois estes “lêem com olhos sempre novos os mesmos documentos”
(DUBY, 1993, p. 58). Em que medida os espaços destinados aos patrocinadores no Jornal pra
as propagandas não supria os custos com a manutenção do periódico? Até que ponto esse tipo
de análise sobre o papel do jornal junto aos leitores não seria uma forma de justificar o preço
cobrado por cada jornal? Até que ponto esse tipo de mensagem não soavam como propaganda
política dos diretores do Jornal?
São questões sobre o documento que podem nos levar além do que o aparentemente se
coloca como noticioso. Como explicar que mesmo com as recorrentes queixas por parte dos
editores o Jornal Correio de São Félix tenha a maior vida útil de circulação na cidade,
aproximadamente 40 anos de história? Fazem-se necessárias essas indagações pontuais, pois
retira o véu da inocência para situar o documento no rol de problematização historiográfica.
Parte da existência do Jornal Correio de São Félix foi sob a direção de Luiz Gonzaga
Dias, que assumiu o periódico, como diretor-gerente, a partir da edição do dia 27 de agosto de
1944, com um novo slogan como subtítulo do Jornal: “Política, arte, desportos, informações”.
Esse slogan permaneceu até pelo menos a data de 13 de dezembro de 1969, edição de nº 1 711
ainda sob direção de Luiz G. Dias.
Não foi possível precisar se essa teria sido a última edição do periódico sob a direção
de Luiz Gonzaga Dias por o Arquivo Público Municipal de São Félix só dispõe desse
exemplares desse jornal até essa data. Sabe-se que o antigo jornal hoje funciona na cidade
como gráfica.
Parece até que para ser diretor desse Jornal tinha que possuir ‘Luiz’ no nome –
brincadeira à parte. O fato é que Luiz Gonzaga Dias além de jornalista de profissão, também
era poeta e foi eleito vereador na cidade em três mandatos consecutivos: período de vereança
de 1955 a 1959; de 1959 a 1963; e de 1963 a 1967. Tendo falecido no dia 28 de julho de
1980.
Em entrevista recente, a segunda esposa, a senhora Nair Santana Leite, 84 anos,
relatou aspectos do convívio que teve com Luiz Gonzaga Dias, informando inicialmente que
“quando fui morar com Luiz ele já tinha 10 filhos com a esposa dele, que morreu, sabe. E eu
já tinha seis filhos do meu primeiro marido, que me largou. Não prestava!”39 Pelo relato da
senhora Nair, nos anos 1940 trabalhou na fábrica de charutos Danneman, durante 12 anos. Só
saiu da fábrica porque a mesma “faliu”, em seguida, fechou.
39
Entrevista com D. Nair Santana Leite, 84 anos de idade, residente em São Félix. Entrevista realizada no dia
25/3/2009.
103
Observe que a expressão falir foi a primeira palavra expressa por Dona Nair para
justificar o fechamento da fábrica de charutos. Na seqüência da fala dela ela informa que
“nunca participei de greve. Quando a fábrica tava em dificuldade que o dinheiro atrasava, as
companheiras diziam, eu era uma das poucas que ia trabalhar para ajudar a empresa, mesmo
sem a certeza que iria receber”. Veja que dona Nair se apega ao valor da ordem patronal que
ela entende como legítima dentro da sociedade, mas que se justifica pela experiência de vida
individual construída por ela nas relações sociais.
Eu estava grávida da minha menina e fui pedi emprego ao gerente da
Dannemann. Ele olhou pra mim e disse: - mas você ta grávida. A firma não
emprega mulher grávida não! Aí eu pedi pra ele que por favor me desse o
emprego eu precisava pra comprar os mantimentos para os meus filhos, que
deixar está que eu iria cumprir com todas as minhas obrigações.40
Veja que a necessidade de trabalho e da renda dona Nair estabelece uma negociação
individual com o futuro chefe no sentindo de fazer concessões para o trabalho. Para tornar
seus argumentos mais convincentes dona Nair propõe que a Empresa caso fosse contratada
para “que eles não precisaria me pagar durante o período em que tivesse que permanecer
afastada da licença maternidade”.41
Esse é um dado que onde historiador deve estudar as pessoas a partir dos valores
morais congregados e apropriados por elas na dinâmica social. Campo de análise sugerido na
obra de Edward Thompson, onde o autor pensa o comportamento, os hábitos e sentimentos
dos sujeitos tendo como base o capital simbólico presente no repertório da experiência de vida
de cada indivíduo, dentro de uma lógica que o autor atribui de “economia moral”42.
“Estamos habituados a pensar na exploração como algo que ocorre em nível rasteiro,
no estágio da produção” (THOMPSON, 1998, p. 35). Crítica feita por E. P. Thompson à
abordagem economicista sobre o operariado inglês, no século XVIII.
Essa informação está relacionada ao contexto em que diversas fábricas de charutos e
armazéns de fumo fecham as portas ou são transferidas para outras cidades em meados da
década de 1950. Daí a ocorrência do desemprego dos trabalhadores, em particular das
40
Op. Cit.
Op. Cit.
42
Expressão atribuída a E. P. Thompson, ao criticar a interpretação economicista de colegas historiadores sobre
os “motins de fome” na Inglaterra setecentista, atribui à ação desses movimentos sociais um forte senso de
justiça e direito comum que contrapunha a lógica econômica capitalista em curso no período. Para uma discussão
mais aprofundada sobre o conceito de economia moral consultar: THOMPSON, E. P. A economia moral da
multidão inglesa no século XVIII. In: _____.Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradicional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
41
104
mulheres. “Quando eu conheci Luiz a fábrica já tinha sido fechada. E depois fomos morar
juntos e fiquei cuidando de casa, dos filhos e das coisas dele.”43
Quando perguntado sobre as poesias de Luiz Gonzaga Dias dona Nair revelou que a
enchente levou tudo. Pois costumava guarda os exemplares dos jornais junto a livros e demais
documentos pertencentes à família. O episódio das enchentes, provocado pelo volume de
águas proveniente da região da Chapada Diamantina, onde estão localizadas as nascentes do
rio Paraguaçu, sempre foi algo recorrente na cidade de São Félix, antes da construção da
barragem “Pedra do Cavalo”, inaugurada no início dos anos 1980.
3.3
–
TRABALHO
E
DIGNIDADE:
EXERCÍCIOS
DE
CIDADANIA
DOS
FERROVIÁRIOS NA SOCIEDADE LOCAL.
Pontuaria nessa discussão elementos abordados por Karl Marx na obra O Capital. O
Brasil inseriu-se efetivamente o processo de industrialização, em meados do século XX,
classificado por economia de capital tardio. Mas compreendendo as mesmas bases de
exploração experimentadas pelas potências imperialistas e industriais européias, no século
XIX. Concentração do capital e dos meios de produção em poder da burguesia, em detrimento
de massa expropriada desses meios, tendo como apenas como meio para sobrevivência a força
de trabalho.
Os investimentos do capital aplicados e ingeridos no Brasil deveram-se ao contexto
internacional de expansão do capital, como forma de dinamizar a produção e ampliar a
acumulação capitalista. No século XX, em países da América Latina e Ásia, esse fenômeno
chega acompanho de política de contenção das mobilizações operarias. Na América Latina,
por exemplo, sucederam-se governo de caráter populista, permeando mediadas de cunho
assistencialistas, a exemplo das leis do trabalho, enquanto paralelamente, eram adotados
mecanismos autoritários de controle das demandas sociais, culminando em perseguições
políticas e à censura aos meios de comunicação de massa.
A adoção desse perfil de administração pública toma forma a partir do governo de
Getúlio Vargas, entre 1930 a 1945. Valendo-se de um conjunto de medidas de caráter
“popular”, o governo federal convergiu dividendo e apoio das massas suficientes para
43
Entrevista com D. Nair Santana Leite, em 25/3/2009.
105
legitimidade que buscavam mascarar as suas ações autoritárias com o segmento da oposição,
em particular, e da população, em geral.
A intenção do governo com o chamado “Estado de compromisso” foi criar condições,
no País, para a acumulação do capital nacional. Através do fortalecimento da burguesia, que
passou a dispor sob o patrocínio da União, de infra-estrutura como a construção de energia
elétrica, abertura de estrada para escoar a produção, em particular, as rodovias, as metalurgias
para o fornecimento de ferro e aço, matérias-primas para as indústrias de produção.
Explicando o mecanismo de acumulação do capital, Karl Marx informa que para
acumular é preciso transformar uma parte da produção suplementar em mais investimentos.
Segundo Marx “é preciso que uma parte do sobretrabalho anual seja consagrada a criar meios
suplementares de produção e subsistência, excedendo a quantidade necessária à substituição
do capital empregado.” (MARX, 1982, p. 148) Esses investimentos são carreados para novas
técnicas de produção, implementos voltados para dinamizar a produção e, conseqüentemente,
ampliar o capital, fazendo frente à concorrência no mercado.
Para Marx, a mais-valia só é conversível em capital porque a produção suplementar,
da qual ela é o valor, contém, em si, os elementos materiais do novo capital. De modo que
para fazer funcionar esses elementos, como capital, o setor capitalista teria necessidade de um
excedente de trabalho. Na afirmação de Marx, a grandeza da acumulação do capital estaria na
razão inversa do consumo do capitalista. Por essa análise o capitalista precisa acumular para
reproduzir o capital, uma vez que a concorrência obriga cada capitalista particular a aumentar
ininterruptamente seu capital, a fim de conservá-lo.
Qual o efeito da acumulação sobre os operários? Segundo Marx, quando a acumulação
ou o desenvolvimento da riqueza, em base capitalista, produz uma superpopulação operária,
essa população contribui, por sua vez, para a acumulação capitalista, tornando-se uma das
condições de existência do modo de produção capitalista. Marx acrescenta que a produção
capitalista forma, para a indústria, um exército de reserva sempre disponível, e do qual o
capital tem total controle. Veja, na seqüência, como Marx pontua essa relação.
[...] O trabalho excessivo dos operários empregados engrossa os quadros do
exército de reserva, ao passo que à pressão, cada vez maior, exercida pelo
exército de reserva sobre os trabalhadores efetivos, graças à concorrência,
força estes últimos a trabalhar sempre mais e a se submeter às exigências do
capital. Condenando uma parte da classe operária a uma ociosidade forçada,
pelo trabalho excessivo da outra parte, o capitalista particular encontra o
meio de se enriquecer. (MARX, 1982, p. 163)
106
A observância das normas disciplinares da Empresa Férrea constituía em elemento
plenamente assimilado pelo universo de trabalhadores ferroviários. Conforme o relato do
ferroviário aposentado, Israel de Oliveira, por exemplo, “a função de agente chefe era fazer
relatório de tudo”. Pelo visto, ninguém estava imune as regras e normas da Empresa, seja ele
chefe imediato ou subordinado. Conforme expressão corriqueira: “o pau que dá em Chico dá
em Francisco”. Todos na Empresa tinham atribuições e respondiam pela falta ou
descumprimento de obrigações.
Há que se pensar na relação entre trabalhador e produção, permeada no mecanismo
das normas e condutas, para construir os valores morais do mundo do trabalho, como
mecanismo alienação e exploração sobre o operariado. Concorre para esse processo a
instituição da família, projetada como suposto ambiente de harmonia, tendo ainda em meados
do século XX, a figura paterna como provedor do lar.
O ferroviário situa-se nesse contexto, cujo peso da responsabilidade doméstica recai
sobre os seus ombros, refletido e submissão aos patrões de trabalho da Empresa. O ferroviário
mantinha uma prole, superior a cinco filhos, dependia da renda para continuar honrando os
compromissos perante a família.
O operário buscava redobrar a atenção no serviço, para evitar danos e,
conseqüentemente, penalidades. Assim como, ferroviário não se furtava de exercer diárias e
aumento da carga horária, para obter um ganho extra e elevar um pouco o salário. Veja o que
relata o ferroviário aposentado Israel de Oliveira Melo:
Eu trabalhei 32 anos. Nunca fui suspenso, nunca tive repreensão. Nunca
recebi uma advertência. Nunca perdi um dia de serviço. Eu pensava assim:
eu ganhava pouco, se eu perdesse um dia, iria me fazer falta. E assim
mantive o capricho até quando me aposentei. (Israel de Oliveira Melo,
ferroviário aposentado, 79 anos de idade)
O termo “nunca” é recorrente nesse relato de Israel de Oliveira, curioso ele informar
ter trabalhado 32 anos em uma advertência, deixando espaçar os valores atribuídos às normas
da produção, no mundo do trabalho, conforme preceitua a ideologia burguesa e a moral
capitalista.
Trabalho para o ferroviário representa respeito, elevação da auto-estima, manutenção
da dignidade e confiança no seu papel, enquanto agente social. Ainda de acordo com Israel de
Oliveira, cabia ao cargo de agente chefe na Empresa, por exemplo:
Prestar conta do dinheiro das passagens. Se faltasse um centavo, ou um
tostão, abria-se um processo contra o agente, para apurar o ocorrido. A
107
depender da gravidade, o agente poderia ser suspenso. Antes, a primeira
coisa que acontecia era a perda do cargo.
Imagine a tensão vivida por um agente ou outro encarregado imediato, cuja
responsabilidade está em fazer cumprir os regulamentos e normas disciplinares. Nesse
sentido, os regulamentos da Empresa Férrea ou outra Empresa Pública não apenas reforçava a
condição disciplinadora para com os trabalhadores, como também, acirrava as posições
hierarquizadas entre os trabalhadores.
Expondo objetivamente a situação Souza (2007) detalha como funcionava a
distribuição dos cargos e funções no setor de linha da Viação Férrea.
A seção de locomoção compreendia os chefes de depósito, os maquinistas,
os foguistas, o apontador, o encarregado de depósito e trem de linha e o
pessoal das oficinas [especialmente, o mestre geral, o contramestre e os
trabalhadores]. Abaixo dos chefes da locomoção, os chefes de depósito eram
a autoridade maior dessa hierarquia. Deveriam, dentre outras coisas,
fiscalizar o trabalho de seus subordinados (especialmente, os foguistas e os
maquinistas). (SOUZA, 2007, p. 61).
Esse trecho reforça, portanto, a racionalidade capitalista, pelos mecanismos da
hierarquia das funções operacionais da Empresa. A Empresa Férrea, embora pública, buscava
tornar o empreendimento no transporte ferroviário lucrativo para o Estado. Esse é um dado.
Pensar como os funcionários criaram estratégias nas suas relações cotidianas, no ambiente do
trabalho e fora dele, para superar ou amenizar os efeitos da exploração, é outra discussão.
Portanto, vê uma empresa pública apenas como missão social constitui numa
ingenuidade, pela qual tende a ser superada a partir de uma análise mais aprofundada do
contexto econômico, onde capitalismo se estruturou.
De posse do processo de análise sobre o mecanismo de exploração dos trabalhadores
no sistema da produção econômica capitalista do qual o Brasil faz parte, mesmo na condição
de coadjuvante, inicia-se o estudo dos trabalhadores da Leste Brasileiro, que desempenharam
múltiplas funções em suas rotinas serviços prestados à esta Empresa. Pelo que foi possível
apreender dos depoimentos de ex-ferroviários – “ex” apenas como força de expressão –
melhor dizer “ferroviários aposentados”, pois enquanto permanecem vivos eles não abrem
mão dessa referência, ou melhor, dessa identidade.
A Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, como era denominada, possuía um quadro
de funcionários dos mais complexos dentre as empresas públicas e privadas do País. Fora as
atividades manuais de manutenção dos trilhos, as demais requeriam alguns anos de
aprendizado, obtido com a rotina de trabalho e a experiência. Estudar os ferroviários levando-
108
se em conta as relações de trabalho hierarquicamente estabelecidas na Empresa. Detalhe que
ao logo dessa pesquisa pode revelar que significados esse aspecto implicou para a categoria
em termos de associação, solidariedade e tensões, num ambiente cujas relações de parentesco,
compadrio e pessoais vigoravam.
De acordo com a informação de Herval de Souza Bernardo “os serviços de
manutenção nas oficinas eram feitos na cidade de São Félix, durante os dias úteis da semana –
de segunda-feira a sábado”44. No entanto, o trem circulava todos os dias da semana e, no setor
de embarque na estação ferroviária, os operários trabalhavam no esquema de escala, quando
eram domingo e feriado.
Havia uma cadeia de funções dentro da Rede Ferroviária indispensável ao fluxo desse
sistema de transporte. Segundo o depoimento do ferroviário Herval de Souza Bernardo45, o
foguista, por exemplo, era o ajudante do maquinista. O foguista era o ferroviário responsável
por abastecer com lenha a caldeira do trem, ao longo do percurso, quando o trem era movido a
vapor. Herval Bernardo acrescenta ainda que “o departamento de recursos humanos da
Ferrovia recrutava pessoal com pouca escolaridade para se ocupar das atividades braçais na
empresa. Esse pessoal era quem trabalhava na via permanente.”46
A via permanente parece ter sido era um ponto estratégico de alocação de pessoal na
Ferrovia, uma vez que compunham especialistas para atuar nas divisões das tarefas, posição
exercida de acordo com comando e hierarquia. Conforme relato de Herval Bernardo “tinha o
inspetor de linha, mestre de linha, o telegrafista da estação, o engenheiro e o feitor.”47 O
termo ´feitor´ aparece nas falas dos ferroviários entrevistados relacionado à função de
fiscalizar os serviços dos demais trabalhadores sob sua supervisão.
Em que medida o termo feitor, utilizado em uma função de comando na Rede
Ferroviária, no século XX, relaciona-se à função histórica atribuída a homens encarregados da
fiscalização nas tarefas dos trabalhadores escravos, negros ou índios, durante o sistema
escravista no Brasil? Há uma discussão no trabalho de Robério Santos Souza (2007) que
inclui uma breve análise sobre esse tema, para esse autor “os feitores na relação hierárquica
da empresa, pelo que consta, só exerciam poder de mando sobre as turmas de trabalhadores”
(SOUZA, 2007, p. 67).
44
Herval de Souza Bernardo, ex-escriturário aposentado da Rede Ferroviária Federal Leste Brasileiro. Na data
da entrevista – 3/1/2008 – possuía nesta data 75 anos de idade. Atualmente responde pela função de Diretor
Regional do Sindiferro, cuja sede encontra-se no imóvel do Clube dos Ferroviários, na cidade de São Félix.
45
Trecho do relato de Herval de Souza Bernardo.
46
Op. Cit.
47
Op. Cit.
109
A análise de Souza vem corroborar com a fala do ex-ferroviário Israel Oliveira de
Melo, conhecido popularmente por Raul, afirmando que “o feitor era um trabalhador comum
que entrava na empresa igual aos outros, sem saber fazer muita coisa, mas que ia aprendendo
e, após, adquirir muita experiência e conhecimento, ele era promovido.”48
Esse aspecto revela aspecto do processo de construção da divisão do trabalho no
interior da Rede Ferroviária, dentro de uma lógica disciplinar estruturada mediante coerção
administrativa, passível de multa, suspensão ou transferência do operário do local de trabalho.
Souza (2007) pontua ainda que a função de feitor, na empresa, esteve
Presente apenas na repartição de linha e conservação das estradas, os
feitores tinham a função específica de cuidar da ordem, garantir o ritmo do
trabalho e controle das atividades, além de manter vigilância e fiscalização
todos os trabalhadores, fazendo cumprir as determinações dos mestres de
linha e as demandas do serviço ferroviário. (SOUZA, 2007, p. 68)
Conforme pontua Israel O. de Melo as funções de feitor iam muito além da atribuição
de vigiar e fiscalizar os subordinados. O feitor era tido para dois ferroviários dos ferroviários
entrevistados, como um conselheiro, uma espécie de consultor profissional, um mestre.
Aspecto evidenciado ao ser perguntado se Israel Melo tinha algum parente empregado na
Ferrovia, respondeu que teve tio, cunhado e irmão. “Sim. Meu irmão mais velho trabalhava na
Leste. Meu tio era feitor. Ele foi meu feitor!”
Figura 25: Pai, tio, irmãos e primos do ferroviário aposentado Israel de Oliveira Melo
Fonte: Fotografia de família do acervo particular de Israel de Oliveira Melo.
48
Israel de Oliveira Melo, aposentado da Rede Ferrovia Federal Leste Brasileiro, na qual trabalhou por 32 anos.
Entrevista concedida no dia 19/4/2009. Próximo dos seus 79 anos de idade, conforme a data do seu nascimento
em 29/5/1930.
110
Na imagem acima os dois senhores, ao centro, João Matos de Oliveira, o tio de Israel
de Oliveira Melo, nascido em 1900 e falecido em 1964. O referido feitor de linha, que
segundo Israel “era uma homem culto, fazia o discurso sem levar nada anotado no papel”.
Mais uma referência positiva que ela tinha do tio. No lado direito da fotografia, Francisco de
Oliveira Melo, nascido em janeiro de 1896 e falecido em 17 de setembro de 1978, pai de
Israel e irmão de João Matos. De acordo com Israel, Francisco era agricultor no município de
Castro Alves, casado com a prima, Olívia de Oliveira Melo, nascida em 1894, sendo falecida
no ano de 1984. Foi um total de nove filhos, sendo seis homens e três mulheres.
Conforme foi se desenrolando o assunto, mais evidente ficava a sensação de orgulho
de Israel O. Melo expressa na fala e nos gestos, ao se referir ao tio-feitor. “Meu tio era
responsável pela linha, pela escrita, pra tudo! Pra nivelar.” Buscando destacar como
características do tio as qualidades positivas que serão usadas como um profissional de
referência para o próprio Israel Melo. “Tudo que ele [tio] fez, hoje, eu sei fazer! Se mandar
fazer eu faço.”
As qualificações intelectuais também são evidenciadas no tio-feitor no processo de
rememorar as lembranças das relações de trabalho, na Empresa. Israel traz ainda mais
elementos à sua narrativa sobre o passado, por vezes, re-significado, conforme pontua Paul
Thompson, “Meu tio era inteligente. Ele disse ao engenheiro que não nasceu embaixo de um
dormente não. Ele disse – meu tio, – eu sei usar uma caneta!”. Numa clara demonstração que
sabia ler e que, portanto, não era um trabalhador braçal, no sentido literal da palavra.
Pois o engenheiro era o chefe na hierarquia das funções na Empresa. Era aquela que
possuía o nível superior na Companhia, assim como o pessoal da diretoria: advogados,
médicos, contadores. Esses profissionais atuavam nas inspetorias, tendo havido uma em cada
cidade sede, a exemplo de São Félix.
Sobre esse aspecto da administração Robério S. Souza informa que
Na ótica da empresa, o feitor era um personagem importantíssimo nas
relações dentro da ferrovia, pois era o chefe imediato daqueles
trabalhadores. O feitor constituía-se no instrumento patronal de exercício do
poder e repressão direta da fora de trabalho, aplicando punições aos
trabalhadores supostamente insubordinados. (SOUZA, 2007, p. 68)
Ter parentes entre os ferroviários parece ter sido algo comum na Ferrovia Leste
Brasileiro, pois de acordo com os trabalhadores aposentados desta empresa, ter um tio, um
pai, um irmão era normal. Esse traço nos trabalhadores ferroviários pode revelar fortes
afinidades que se constituíram em relações de solidariedade e cumplicidade. Álvaro Gomes
111
Araújo, mais conhecido por “senhor Alvinho”, quando perguntado se possuiu algum parente
trabalhando na Ferrovia, prontamente respondeu de maneira afirmativa, detalhando que “além
de mim, eu tinha um irmão, que entrou na Leste. Meu pai era ferroviário, meu tio também. E
um dos meus filhos foi ferroviário. Já está aposentado também”49.
A história de Álvaro Gomes Araújo chama atenção também por algo ligado às suas
reminiscências sobre a cidade de São Félix, em ele informa que “esta cidade era um pólo de
indústrias, de empregos. Muitas pessoas vieram morar aqui. Meu pai veio de São Gonçalo dos
Campos, e minha mãe de Sapeaçu”. São traços da memória de um ex-ferroviário construídos
sobre novos significados do presente.
Muito para além de fragmento das reminiscências da memória, essas lembranças
dirigem-se para o aspecto de época em que a cidade possuía uma referência socioeconômica
frente às demais. Mas que confirma aquilo que foi abordado na primeira seção, a partir das
informações no Cartório de Registro de Casamento, dos que trabalhavam e residiam na cidade
de São Félix, originários de outras cidades, com um total de 59% dos operários locais,
conforme tabela 6.
No que diz respeito às atribuições específicas dos feitores durante o regime escravista,
Robério S. Souza oferece pertinente esclarecimento das relações de trabalho entre os referidos
momentos da história do Brasil, que servem como ferramentas de análise para a distinção do
termo e constituição de conceitos sobre feitor.
O feitor exercia um papel importantíssimo no sistema de trabalho escravo
no Brasil. A função era de organizar o trabalho, fazendo com que os
escravos produzissem com regularidade e com ritmo nas fazendas, além de
combater, através da aplicação de castigos e punições, os trabalhadores
escravos indolentes e insubmissos. (SOUZA, 2007, p. 67)
A rotatividade dos locais de trabalho era outra marca dos ex-trabalhadores ferroviários
da Leste Brasileiro entrevistados nessa pesquisa. Trabalhadores como Diulino, Israel,
Vivaldo, Álvaro, Herval e Jaime testemunharam essa experiência de servirem a cidades
diversas para onde quer fossem designados. Vivia-se no interior da Empresa, sob o regime a
frase conhecida por parte dos trabalhadores hoje, na fala de Israel de O. Melo “eu levei 10
anos trabalhando fora e passeando em casa”. Essa frase resumida por ele contempla os
distintos lugares pelos quais trabalhou a serviço da Leste. Ao ser perguntado onde teria
49
Segundo momento de entrevista com Álvaro Gomes Araújo, em 8/4/2009. Aos 95 anos de idade, residente da
cidade São Félix. Quando da aposentadoria ocupava a função Fiscal de Tração da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro, tendo como matrícula o nº. 21 721. Pelo Decreto de 27 de dezembro de 1966 ele foi aposentado a
partir da referida data.
112
trabalhado além de Iaçu, Israel Araújo respondeu o seguinte: “Se eu for ti contar viu!”, com
gesto nos braços e balançando a cabeça como quem diz “vamos passar horas aqui”. Com a
mesma disposição e impulso da conversa, Israel acrescenta:
Trabalhei em Araújo Lima, Buranhém, Sergi, Buriti, Cachoeira, Ouriço
Macedo, Salvador Pinto, Petin, Castro Alves, Jenipapo, Lajedo, Tambori,
Queimadinha, Iaçu, Brumados, Cruz das Almas e Sapeaçu. Tudo em
Estações Ferroviárias, substituindo colegas.50
A partir desta informação veio a indagação de como ficava a família, a esposa e os
filhos dos ferroviários que viviam perambulando de cidade em cidade, prestando serviços a
Leste. “Eu recebia ´etapa´ - que era uma espécie de auxílio alimentação”. Uma compensação
financeira pelas despesas extras que os trabalhadores tinham com alimentação, atuando fora
da cidade onde residia. “Nossas esposas não trabalhavam não”, resposta dada,
simultaneamente, por Deolino e Israel, ao induzirem que suas esposas eram donas de casa.
A função de donas de casa para esses e outros ferroviários entrevistados constituía-se
numa situação tradicional no núcleo familiar desses trabalhadores. Ser responsável pelo
gerenciamento do orçamento da família, em muitos casos, de mais de uma família, constituíase em símbolo de status, permeada pelos valores patriarcal. Situava o ferroviário de posição
de destaque na sociedade local. Conforme sugere a fala de Deolino Ferreira de Souza “ser
ferroviário era um privilégio, casar com um ferroviário, então, hum!”51
Com um tom sereno e voz mansa, Deolino Ferreira acrescenta: “outra coisa! Não
podia prender ferroviário não! A não ser em caso de flagrante. De maneira nenhuma”. Mais
um aspecto da reminiscência do passado fruto da seleção baseado nos códigos de valores
sociais interligados entre o passado e o presente nos sujeitos que buscam recriar suas
experiências, conforme pontua Michel Pollak (1992). Criando uma representação significativa
da categoria social a qual se sente parte integrante.
A condição do ferroviário como principal provedor da renda na família dentro da
lógica paternal não minimiza as forças de sociabilidade estabelecidas pelas mulheres e
esposas desses trabalhadores. Uma vez que, eram elas que iam ao mercado fazer as compras
de alimentos, assim como, nas lojas para fazer compras de roupas. Mesmo não ocupando um
50
Trecho da entrevista com Israel de Oliveira Melo – ex-ferroviário da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro.
Deolino em entrevista no dia 19/4/2009 – um domingo à tarde. Próximo de completar 87 anos de idade na data
de 26/7/2009. Residente do povoado de São José de Itaporâ – pertencente ao município de Muritiba – BA.
Deolino é casado com a dona de casa Irene Oliveira de Souza, que está por completar 74 anos de idade, em
23/5/2009.
51
113
emprego, as mulheres atuavam, direta ou indiretamente, na gestão do orçamento doméstico
proveniente dos maridos.
Na entrevista realizada numa tarde de domingo com Deolino e Israel, a esposa de
Deolino – dona Irene Oliveira de Souza – esteve presente, mas se manteve calada, apenas se
restringindo a olhar tranquilamente de lado para o outro ou balançando a cabeça para
confirmar alguma informação do marido. Esse aspecto sobre o paternal em áreas do
Recôncavo baiano é abordado no estudo de Charles D´Almeida Santana (1998) sobre as
vivências dos camponeses na região. Veja que autor sublinha uma relação passiva da mulher
como atitude de cumplicidade junto ao marido. Ao detalhar aspectos de sua pesquisa de
campo, conforme fica explícito no trecho seguinte:
Durante as entrevistas, as esposas afastavam-se. Suas participações no
diálogo limitavam-se a ouvir a conversa, em um canto ou em outro cômodo,
e a pronunciarem-se, timidamente, quando os maridos pediam que
esclarecessem algum detalhe do testemunho. Esse quadro é homólogo
aquelo do recolhimento da mulher no momento da chegada de algum
visitante. [...] Elas guardavam-se, principalmente na cozinha, e o homem da
casa atendia a visita. (SANTANA, 1998, p. 80)
Pelo visto, essa relação em áreas do Recôncavo baiano não se dava apenas na zona
rural, mas também perpassava as relações sociais cotidianas nas cidades essa região. Herval
Bernardo de Souza ferroviário aposentado da Leste Brasileiro, que reside na cidade de
Cachoeira em companhia da irmã – Avoni da Silva Bernardo, 79 anos de idade. A ela, que
permaneceu com os afazeres de casa, cuidou de trazer o lanche até a sala de estar – um copo
de suco.
Dona Irene esposa de Deolino também foi solicitada, quase ao pé do ouvido, que
providenciasse um “docinho” para a visita. Poucos instantes depois ela volta com um
recipiente contendo um saboroso doce de caju. A interação entre esposa e marido, após anos
de convivência matrimonial, foge à idéia de submissão feminina aparente. O significado
dessas relações “no interior das famílias de trabalhadores na região” permeado na “autoridade
masculina” é relativizada “pelo caráter da tradição”, conforme pontua SANTANA (1998), ao
citar “que é, na prática, a expressão mais evidente das pressões e limites dominantes e
hegemônicos” (WILLIAMS, 1979, 118 apud SANTANA, 1998, p. 80).
Sobre como ficava a família durante o período em que o ferroviário estava ausente, a
serviço da empresa em outra cidade, Israel O. Melo informa que deixava autorização nos
armazéns e mercadinhos da vizinhança, para que os comerciantes vendessem a credito à sua
114
família. O salário atrasava “dois meses ou mais” sendo uma das principais motivações das
greves dos ferroviários na Bahia, de acordo do Deolino, especificando as razões das greves.
Na descrição de Deolino e Israel a família dos ferroviários se valia dos “fiados”, onde
acrescentaram que “os comerciantes faziam questão de vender fiado aos ferroviários, pois era
um dinheiro certo a receber”. Como os ferroviários que recebiam pagamentos salariais quase
sempre com uma média de atraso de dois meses, além do fato de muitos deles exerceram a
função fora da cidade de domicílio familiar, deixando mulher e filhos na expectativa do
salário do marido para saldar as dívidas na mercearia. Comumente um ou outro operário
deixava de honrar os compromissos de dívida, o que não significa um aspecto generalizado.
Importante analisar a influência do salário refletindo nas relações sociais do
ferroviário permeadas por tensão, resistência, solidariedade, fazendo dos ferroviários, ora
constituintes de uma categoria social de luta, reivindicação salarial, associação, ora
interpretados como reticentes às dívidas.
Em entrevista com o ex-ferroviário Álvaro Gomes de Araújo sobre o crédito dos
ferroviários frente aos comerciantes da cidade de São Félix, ele que também viveu essas
experiências de trabalhar fora da cidade onde tem residência, em temporadas de até um ano
em outra cidade, informou que “o povo não tinha muita confiança nos ferroviários, para
vender fiado não”.
Numa clara referência a representatividade social sobre os trabalhadores da Leste
Brasileiro. Ele lembra que nas Festas de “Terno”, onde o grupo de pessoas do bloco celebrava
todo início de ano os “Ternos de Reis”52. Segundo Álvaro Gomes, durante àquele momento,
os integrantes saiam às ruas cantando a seguinte estrofe:
Alfaiate comia queijo.
Sapateiro comia requeijão.
E o povo da Estrada de Ferro?
Come carne de sertão, fiado!53
Observa-se que ser trabalhador da “Estrada de Ferro” aparecia como objeto de
chacota. Dando a dimensão do universo de trabalhadores pouco remunerado ou com
remuneração inferior a de outras categorias.
A lembrança de Álvaro faz parte de uma seletiva reminiscência re-elaborada no tempo,
mas que guarda na memória conteúdo significativo de fases da época sua de juventude
52
São grupos de pessoas que organizados em comunidade, aproveitavam todo início mês de janeiro para satirizar
sobre um tema social ou personagens da vida social cotidiana, pelas ruas da cidade.
53
Álvaro Gomes de Araújo em entrevista concedida dia 25/03/2009, no primeiro encontro. Pai de sete filhos,
sendo o mais velho fora do casamento. E também o único que foi ferroviário também.
115
marcada pelos estratos sociais, cuja mobilidade parecia escapar aos olhos para os indivíduos
egressos de famílias pobres. Na estrofe o alfaiate e o sapateiro, nessa ordem, estariam numa
posição financeira mais confortável na sociedade pela oportunidade de dispor de alimentos
mais sofisticados e caros à mesa desse tipo de trabalhador. Esta estrofe musical do “terno de
Reis” talvez fosse uma tentativa para satirizar e fazer um contraponto a posição que os
ferroviários de serem servidores públicos federais, mas que, no entanto, não disponham de
dinheiro para se alimentar dignamente.
A dificuldade enfrentada pelos trabalhadores da Ferrovia sobre o atraso no pagamento
criava para eles constrangimentos de diversas ordens, nem sempre tolerada pelos
comerciantes locais. O ferroviário, por sua vez, através da compra a crédito atender a
necessidade imediata da família com as compras de mercado, numa relação de negociação
carregada de tensão, evidentemente. Relação permeada na confiança mútua, pela amizade,
compadrio. A mesma relação de confiança estabelecida por Álvaro junto ao comerciante: “eu
mesmo pagava uma conta do mês e já saia com outra compra”.
Já o ferroviário aposentado Herval de Souza Bernardo destacou que “alguns
ferroviários compravam e não pagavam”. Dentro da lógica de compreensão de Herval
Bernardo essa prática “prejudicava aos demais porque o dono do estabelecimento evitava
vender ‘fiado’ aos demais ferroviários com medo do calote”.
A alegação do salário baixo foi algo recorrente na narrativa dos ferroviários
entrevistados. A labuta dos serviços, a tensão com o chefe imediato e a ausência por semanas
afastados da família foram relatos inadiáveis na memória desses sujeitos. Como expôs o
ferroviário Vivaldo Costa na entrevista relatando a difícil luta na rotina do trabalho “a gente
não tinha direito nem a receber hora-extra. A gente só tinha horário para entrar, para sair não
tinha. Depois que veio a lei de pagar horas extras. Quando veio isso, eles dispensavam todo
mundo na hora certa para não pagar hora extra”54.
A Lei referida por ele diz respeito ao conjunto de direitos promulgado ainda durante o
governo de Getúlio Vargas, nas décadas de 1940 e 1950, que se efetivam de fato através da
CLT – Consolidação das Leis Trabalhista. Esse segundo Marilene Ramos Barbosa (2003)
teria si constituído no principal instrumento do exercício de cidadania dos trabalhadores no
Brasil, naquele período.
54
Trecho da entrevista concedida por Vivaldo Costa, dia 12/08/2007. Ex-ferroviário aposentado da Viação
Férrea Federal Leste Brasileiro. Reside na cidade de Cachoeira, onde compartilha a moradia com uma segunda
esposa. Com 90 anos de idade a completar no decorrer do ano de 2009. Serviu na Segunda Guerra Mundial como
expedicionário do exército brasileiro, ao lado das tropas aliadas, na Itália.
116
Para a autora, a generalização do trabalho regulamentado, das contribuições
previdenciárias, controladas por carteiras próprias, a instituição da Justiça do Trabalho e
outros quesitos deram consciência de cidadania aos trabalhadores. Acrescenta ainda que esta
cidadania era extensiva aos dependentes dos trabalhadores, fossem eles casados no civil ou
não, pais/mães naturais ou legítimos (ou não).
Fazendo uma reflexão do salário que recebia na época em que estava na ativa como
operário da Leste Brasileiro, Vivaldo Costa lamenta não ter podido colocar seus filhos para ter
uma graduação de nível superior, uma vez que “eu ganhava muito pouco”. Ele que teve oito
filhos com a mulher com quem se casou, e uma filha antes do casamento quando serviu na
Itália, como expedicionário. Esta filha Vivaldo Costa informou que nunca mais soube notícia,
e no que diz respeito aos demais filhos, ele acrescentou que “dentro das minhas possibilidades
eu dei o que pude dá aos meus filhos”.
Dando seqüência à sua fala Vivaldo Costa compõe suas reflexões de acordo com os
códigos de valores presentes, chamando a atenção da instrução como instrumento de
superação das dificuldades. “Talvez se eu tivesse os ganhos mensais que tenho hoje quem
sabe um dos meus filhos não seria um médico”. Ele acrescenta, como um dever cumprido de
pai, que “O principal eu dei – a educação, a formação básica”.
Com a emoção de um pai que vê seus filhos estabilizados financeiramente na vida,
Vivaldo Costa pontua que “esse filho que chegou aqui já está aposentado, trabalhou no Banco
do Brasil”. O filho que ele fez referência apareceu para a visita de rotina na casa de Vivaldo
Costa, e reside também na cidade de Cachoeira.
O aumento do poder aquisitivo sugerido por Vivaldo Costa compreende a uma série de
conquistas obtidas pelos trabalhadores ferroviários, aposentados e pensionistas a partir dos
anos da década de 1980. Segundo Jaime Ferreira de Jesus55 “ainda hoje existem questões, na
Justiça do Trabalho, referentes às ações coletivas dos ferroviários”.
Jaime Ferreira relata que entrou para a Viação Ferroviária aos 14 anos de idade, como
aprendiz de taquígrafo, em São Roque – Distrito pertencente ao município de Maragojipe.
Aos 16 anos de idade ele teria sido transferido para a Estação Ferroviária do bairro da
Calçada, em Salvador, onde permaneceu até se aposentar em 31 de março de 1992.
Aspectos marcantes nos depoimentos dos ferroviários são as lembranças que eles
mantêm sobre a data exata da admissão na Empresa, assim como, dia, mês e anos em que foi
55
Em entrevista com Jaime Ferreira de Jesus, 61 anos de idade. Ex-aposentado da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro. Mora com uma segunda mulher, após ter se separado da esposa, em apartamento, no condomínio
Villace, no bairro da Ribeira, na cidade de Salvador. Entrevista realizada em 5/7/2007.
117
publicada a aposentadoria. No caso de Jaime Ferreira, ele informa que foi admitido em 01 de
abril de 1962. Referência importante para os ferroviários que carregado de significados
positivos na vida de cada um deles. São momentos cujo emprego, para esses sujeitos, refletiase como elemento da dignidade.
O ex-ferroviário Israel relatou além da data exata que entrou na Leste Brasileiro, os
números das matrículas que ele possuiu na Empresa. Quando perguntado se lembrava a data
em que começou a trabalhar, ele informa “eu lembro. Lembro até da minha primeira
matrícula. Eu entrei na Leste no dia 1º de outubro de 1951. Minha matrícula era 35 414, pela
União. Hoje é 42 051, depois que eu optei pelo regime da CLT”.
Os dados numéricos apresentados por Israel não pararam por aí. No decorrer do
descontraído diálogo, ele acrescenta “eu entrei na Ferrovia com 52 quilos, e tinha 21 anos de
idade”. Esse dado sobre peso e idade foi para revelar que “eu botava 80 quilos nesse ombro
aqui”, apontando com gestos o ombro do braço esquerdo. Segundo ele, “dormente de 18 por
20 (espessura), de baraúna (madeira)”.
Os dormentes eram toras de madeiras utilizadas no solo, nivelados sobre os trilhos que
constituíam a passagem dos trens, vagões e locomotivas. Os dormentes deveriam ser
constituídos de madeiras resistentes, conforme relata Israel “as madeiras que dormentes era
aroeira e baraúna, porque era resistente. Nem o bicho, nem a chuva, nem o sol comia”. A
consistência da madeira pode ter justificado o peso concentrado na mesma.
Relato sobre as madeiras também foi feita pelo ferroviário apresentado Herval de
Souza Bernardo56, que se aposentou no ano de 1982, sempre como escriturário “desde o início
por causa da minha escolaridade, alta para a época”. Na Empresa ele serviu por 32 anos.
Tendo estudado, portanto, até a 8ª série do Ensino Fundamental. “Eu gostava muito de
números relativos, de números complexos”. Esse dado parece ser usado para afirmar uma
condição cultural distinta frente aos demais ferroviários, como uma representação individual.
“O foguista era o ajudante do maquinista. Recrutava pessoal da via permanente –
trabalhadores de estação, trabalhadores de oficina – porque esse povo não tinha escolaridade.
A esse pessoal cabia o serviço braçal”. Nesse trecho evidencia sinais das hierarquias
ocupacionais na Empresa. Cabe aqui uma problemática importante que leve a refletir como se
articulavam os ferroviários entre si diante de questões trabalhistas e salariais, em meio ao
universo da diversidade de atribuições existentes na Leste Brasileiro? Como e quando se
56
Herval de Souza Bernardo, ex-ferroviário aposentado da Rede Ferroviária Federal Leste Brasileiro. Possuía 80
anos de idade na data desta entrevista, em 3/1/2008. Encontra-se atualmente com a função de Diretor da sede
Regional, na cidade de São Félix, do Sindiferro (Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transportes
Ferroviário dos Estados da Bahia e Sergipe.
118
constituíam os mecanismos de solidariedade entre os ferroviários como um todo? Quais
episódios eram povoados de tensões?
“A maioria dos chefes ferroviários passava a ‘mão pela cabeça’ dos ferroviários,
quando estes faltavam, evitando que se descontasse em folha”. Se isso não constitui evidência
de solidariedade, ao menos diz muito sobre os mecanismos de articulação dos ferroviários
com seus chefes imediatos. Sutilezas nas relações de trabalhos cujas demandas individuais de
negociação estiveram carregadas de interesses mútuos, por vezes de cumplicidade,
parentesco, compadrio.
Herval de Souza Bernardo faz seu relato com um olhar de quem durante muitos anos
lutou com outros companheiros em torno do sindicato. A concepção que ele construir a longe
da vivência foi pensar a categoria enquanto um movimento coletivo, portanto, homogêneo.
Mas como pensar a homogeneidade da categoria se dentro da Empresa havia múltiplas
funções, pensadas hierarquicamente?
O próprio Herval Bernardo confessa que “havia situações em que toda a parentela dos
ferroviários era empregada na Leste. Pai que indicava filho; Tio que indicava sobrinho”.
Nessa relação de afinidade se construía toda uma rede de solidariedade justificada no relato
saudosista de Israel de Oliveira Melo “nós trabalhamos juntos. Eu trabalhei com dois
cunhados. Ele como agente-chefe, e eu como agente, subordinado a ele”.
Sobre o processo da utilização das madeiras na nos trilhos das estradas de ferro da
Leste Brasileiro, Herval Bernardo acrescente o seguinte “no dormente era utilizada madeira
especial, como a ‘peroba rosa’ pela alta resistência que possuía”. Mesmo sendo um ferroviário
que sempre exerceu as funções burocráticas – escriturário – da Empresa, revelou ser profundo
conhecedor do funcionamento dos demais departamentos.
Procurando se mostrar entendido sobre o mecanismo de funcionamento da aquisição
de lenha e dormente para a Companhia, ele esclarece que “não era todo tipo de lenha que
servia para queimar no trem a vapor”. Dando destaque aos pormenores de sua narrativa
Herval de Souza Bernardo lembra que “havia os fornecedores de lenha e de dormentes,
contratados mediante aprovação de suas propostas de preço, dentro do sistema de licitação,
que eram analisadas por uma comissão de diretores da Leste”.
Conforme se apreende dos relatos de Herval Bernardo toda uma cadeia produtiva em
torno do fornecimento da lenha destinada à Estação Ferroviária. “Havia os fornecedores de
lenha – pessoas que ao roçar o mato separava a lenha para venda à metro ao comerciante
(atravessador) que repassava para Ferrovia”.
119
Tabela 16: Atividades ocupacionais de homens da cidade de São Félix (1940-1960).
Profissões diversas
Profissão
Quantidade
Profissão
Advogado
2
Guadra-civil
Agricultor
1
Guarda-noturno
Alfaiate
3
Guarda-livros
Armazenador
1
Inspetor da Sul Americana
Arrumador
1
Industriário
Auxiliar de escritório
1
Locator
Bancário
Magarefe
11
Canteiro
Marcineiro
25
Carpinteiro
2
Marinheiro
Carregador
4
Marítimo
Catraeiro
1
Mecânico
Chauffer
2
Médico
Cirurgião dentista
2
Militar
Contador
1
Motorista
Cortador
1
Motorneiro
Eletricista
2
Negociante
Empregado da Cia. Construtora Nacional.
1
Oficial de Justiça
Empregado da Cia. de Navegação Baiana.
1
Operador
Empregado da Cia. Elétrica da Bahia.
7
Padeiro
Encanador
1
Pedreiro
Enfermeiro
1
Pescador
Engenheiro mecânico
2
Professor
Estivador
Sapateiro
11
Ferrador
1
Servente
Ferreiro
1
Soldador
Fiscal da Cia. Laght
1
Telegrafista
Funcionário Autárquico
1
Tipógrafo
Funcionário Público Estadual
5
Universitário
Funcionário Público Federal
9
Vaqueiro
Funcionário Público Municipal
7
Viajante comercial
Funcionário da Viação Cruzeiro do Sul S.A.
1
Fonte: CRCSF, Livros de registros de Casamento (1940-1960).
Quantidade
1
1
1
1
11
1
1
2
1
21
12
2
3
7
1
13
1
1
1
4
1
1
1
5
1
1
2
1
1
1
Os aspectos espinhosos da profissão não tiraram à dignidade dos ferroviários, que
elaboraram mecanismos de valoração de sua profissão perante a sociedade local. Ao serem
indagados como a sociedade via os ferroviários a declaração sinalizava para instâncias
distintas do referencial de salário. Mas pautada numa lógica do capital simbólico, cuja análise
sugere fortes vínculos com os valores, com o contexto da tradição denominada por E. P.
Thompson (1998) de “economia moral”. Daí ser perfeitamente coerente o discurso de Deolino
e Israel em pontuar a relação positiva no ser ferroviário, numa percepção agente federal, no
sentido de estar a serviço do governo federal.
Ainda sobre o perfil atribuído à cidade de São Félix, Álvaro Gomes Araújo relembra
que “aqui tinha estaleiro para fazer barcos, tinha muitos estivadores, tinha trabalho”. Pelo
120
relato de Álvaro seus pais foram atraídos para morar nessa cidade, no início do século XX,
atraídos pelas oportunidades de trabalho.
Conforme a Tabela 16 a relação de estivadores aparece na referida composição da
tabela em destaque com onze operários desse segmento a terem constituídos matrimônios
oficiais, junto ao Cartório de Registro Civil da cidade de São Félix. O que revela ser uma
proporção significativa, haja vista que tradicionalmente, trabalhadores avulsos tenderam a
constituir família de maneira não oficial, mediante sistema de Concubinato. O que
representaria um universo muito maior de estivadores nesta cidade.
Na imagem (Figura 12) composta por estivadores em uma assembléia geral da
categoria, em 1947, percebe a dimensão desses trabalhadores que atuavam na cidade de São
Félix. A atuação dos sindicatos não São Félix não ficaram restritos apenas aos estivadores. Na
no Livro de ata das sessões da Câmara de vereadores desta cidade o Sindicato dos
Trabalhadores na Indústria de Extração de Mármores, Calcares e Pedreiras de São Félix
mereceu destaque para encaminhamento de discussão junto à Casa legislativa, em cinco de
novembro de 1959.
Parece ter havido uma revoada de mobilizações operárias em torno da questão do
emprego, muito por conta talvez do fechamento de posto de trabalho, até mesmo atraso no
pagamento de salários, resultando em paralisações, incansáveis reuniões nos sindicatos e
debates junto à Câmara de Vereadores local. Conforme documenta a ata da sessão do sete de
outubro de 1959, cuja pauta na ordem do dia girou em torno da paralisação dos trabalhadores
na Fábrica Suerdick.
O vereador Sampaio, após discursar sobre o papel da fábrica para a cidade, propôs que
“seja enviado um telegrama ao Sr. Presidente do Sindicato do Fumo, solicitando a sua
interferência junto aos operários, afim de evitar mais um golpe na indústria desta zona57”.
Referência feita pelo vereador aos sucessivos fechamentos de fábricas na cidade de São Félix,
ao logo das décadas de 1940/1950. O presidente do sindicato do fumo teria sido uma entidade
patronal, responsável por participar das negociações que envolviam empreendimento da
atividade fumageira na cidade.
Sensibilizando com o assunto em pauta, “o vereador Aberbal Nogueira comentou o
caso, relembrando o episódio da fábrica Dannemann e os motivos do seu desaparecimento,
apoiando a decisão de encaminhar o telegrama58”. Questões que envolviam situações de
57
Livro de Ata das Sessões da Câmara de Vereadores da cidade de São Félix. Sessão do dia 7 de outubro de
1959. Acervo do APMSF.
58
Ibidem
121
calamidade pública como as enchentes, ou assuntos delicados como a ameaça de fechamento
de uma fábrica, pareceu unir correntes políticas adversárias na casa legislativa de São Félix.
Isso parece evidente com as expressões “a referida sugestão aprovada por unanimidade59”.
59
Ibidem.
122
4 – O CIDADÃO FERROVIÁRIO ENTRE O TRABALHO E A
CULTURA
E assim chegar e partir
são só dois lados
da mesma viagem
O trem que chega
é o mesmo trem da partida
A hora do encontro
é também despedida
A plataforma dessa estação
é a vida desse meu lugar
é a vida desse meu lugar
é a vida...
(Milton Nascimento / Fernando Brant)
4.1 – CONSTRUINDO NARRATIVAS.
Analisando a fala do senhor Vivaldo Costa60 como testemunho ocular, pontuando as
devidas reminiscências da memória no processo de historicização das lembranças do depoente
para o confronto com as evidências documentais das quais faço uso para auxiliar no processo
de decodificação do objeto de pesquisa, os ferroviários da cidade de São Félix. Bastante
salutar na memória do ex-ferroviário a sua passagem por fábricas locais antes de atuar
definitivamente como operário da Ferrovia Leste Brasileiro.
Já trabalhei na Fábrica de Velas, em São Félix. Depois trabalhei no
Dannemann, e só depois fui trabalhar na Leste, com idade de 29 para 30
anos. E lá me aposentei com 25 anos de serviço, porque eu servir na
Segunda Guerra Mundial, e tinha esse direito à aposentadoria especial. Lá
eu fiz de tudo um pouco: iniciei como servente, passei por foguista e,
depois, por problemas de saúde, tomei conta de almoxarifado e, por fim,
trabalhei como escriturário61.
No aspecto da utilização das lembranças como fonte, Paul Thompson tornou-se um
dos principais expoentes na defesa contundente no alargamento de fontes diversificadas para
se apreender o conhecimento histórico, destacando que a subjetividade é uma peça marcante
em qualquer tipo de fontes históricas, sejam elas orais, escritas ou visuais. Na postulação da
fonte oral, o autor pontua que “o que interessa em história oral é saber por que o entrevistado
foi seletivo, ou omisso, pois essa seletividade tem o seu significado.” (THOMPSON, 1992, p.
18).
60
Sr. Vivaldo Costa, 87 anos, natural da cidade de Cachoeira, em entrevista 12/agosto/2007. “Seu Vavá” como
ficou conhecido, foi músico da Filarmônica Lira Ceciliana e ainda hoje membros da agremiação o tem como
uma espécie de conselheiro. É o remanescente vivo na cidade entre os expedicionários que serviram na Segunda
Guerra Mundial, na Itália.
61
Trecho da fala de Vivaldo Costa, em entrevista dia 12/agosto/2007.
123
Com esse raciocínio compreende que no processo de depuração da matéria-rima da
pesquisa o historiador precisa perceber o não-dito, fazendo as perguntas apropriadas para as
fontes. Problematizar o documento sempre como um exercício de crítica constante do objeto.
A crítica se coloca numa relação direta entre o historiador e as fontes históricas, dando maior
possibilidade para se construir uma narrativa resultante do trabalho de sistematização
metodológica do conhecimento histórico.
Buscando dados nos livros de registros de Casamento Civil, do fórum da cidade de
São Félix, para identificar nomes de ferroviários e a constituição conjugal entre os anos de
1940 e 1960, o nome de Vivaldo Costa exatamente conforme o depoimento dado por ele na
entrevista. Dados não apenas coincidiram como também complementaram as informações
sobre a atuação social e profissional desse trabalhador. Conforme as informações da
composição do trecho específico de quadro montado para organizar e visualizar melhor os
dados nos livros de registros.
Tabela 17.1: Dados da declaração do casamento civil do ferroviário Vivaldo Costa.
Data
do Naturalidade Domicílio Profissão
Data
de
casamento
nascimento
F A C
O E L O
o
e
r
P s
a u
t
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m E t
r
v r
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e
R i
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o
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r
Á v
v
t
c
R a
a s
Vivaldo Costa 21/12/1946
Cachoeira
Cachoeira
X
10/04/1920
Fonte: CRCSF, Livros de registros de Casamento (1940-1960).
Nome
Dado que sinaliza a mudança da ocupação para esse trabalhador na década de 1950,
possivelmente uma decorrência direta do fechamento das principais fábricas de charutos na
cidade de São Félix, resultado da crise no setor. “A Cia. de Charutos Dannemann fez um
edital de convocação para os operários se apresentarem dentro de três dias para o início dos
trabalhos há mais de dois anos fechados” (EFEMÉRIDE SANFELIXTA, 1953), referindo-se
à greve no ano de 1951, quando dos operários fumageiros paralisaram as atividades devido ao
atraso no pagamento dos salários.
Possivelmente muitos homens que se declararam operários ainda se encontravam em
fábricas na época do casamento, assim como Vivaldo Costa que trabalhava na fábrica de
charutos Dannemann, como o próprio relatou em entrevista. Já a tabela seguinte, dados de
Zenilha Fernandes da Cruz, primeira esposa de Vivaldo Costa – já falecida - com qual
conviveu por mais de cinqüenta anos, incluindo a fase de namoro. Haja vista que se
conheceram no mesmo ambiente de trabalho – ambos operários – na fábrica de charutos
Dannemann, de acordo com o depoimento de Vivaldo.
124
Tabela 17.2: Dados da declaração do casamento civil de Zenilha Fernandes da Cruz.
Data de Naturalidad Domicílio Ocupação
Data
de
Doméstica Operária Outra nascimento
casamento e
Zenilha Fernandes da Cruz 21/12/194 São Félix
São Félix
X
10/04/1920
6
Fonte: CRCSF, Livros de registros de Casamento (1940-1960).
Nome
Importante destacar que com o fechamento das principais fábricas de charutos na
cidade de São Félix, o destino provável dos tenham sido migrar para outras cidades,
particularmente, a cidade de Salvador - capital do Estado da Bahia.
Observe (Tabela 17.2) que até a data do casamento Zenilha Fernandes declarou ser
natural e domiciliada na cidade de São Félix, confirmando uma tendência da época, a maioria
das mulheres nascidas em São Félix que constituía matrimônio com trabalhadores egressos de
outras cidades ou regiões, conforme os percentuais apresentados na tabela 6, no item que
aborda a composição social.
A considerar que as datas dos casamentos marcam o início de uma vida produtiva para
a maioria dos casais. O desenrolar da ocupação e renda para muitos casais dependeu da
dinâmica e conjuntura da economia local, não perceptível nessa documentação.
Tabela 18: Números e percentuais das mulheres que declararam exercer alguma atividade fora do lar.
Ocupação
Quantidade
Percentual
Operárias
251
69,33%
Lavradoras
64
17,68%
Outras
47
12,98%
Total
362
Fonte: Quadro elaborada a partir dos dados obtidos no Livro de Registro do Casamento Civil, entre os anos de
1940 e 1960. In: Cartório de Registro Civil – Fórum Andrade Teixeira, São Félix-BA.
Os registros de ocupação das mulheres para o município de São Félix, nas duas
décadas de 1940 e 1950, representam uma amostragem utilizada para se pensar no caráter
histórico da participação feminina no mercado de trabalho.
A historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias (1995) sugere que os papéis sociais
femininos sejam refletidos diferentemente aos papéis sociais normativos atribuídos à mulher,
de que nas etapas de investigação do conhecimento histórico o autor trilhe pelas linhas das
“mediações continuamente improvisadas no processo global de tensões e conflitos, que
compõem a organização das relações de produção, o sistema de dominação e de estruturação
de poder” (DIAS, 1995, p. 13).
A busca de referência em diferentes esferas da vida social corresponde a perspectiva
de análise histórico mais profunda, que passa necessariamente pelo contexto do ‘lugar’ do
objeto. Na observação Michel de Certeau (2006), tratar com seriedade o lugar é a condição
para que alguma coisa possa ser dita com propriedade e realismo. O autor ainda acrescenta
125
que no processo da construção do conhecimento histórico “a articulação da história com um
lugar é a condição de uma análise da sociedade” (CERTEAU, 2006, p. 77).
Daí a busca de referência em autores que discute a problemática da mulher. Na urbe de
São Félix o estudo das charuteiras do Recôncavo baiano investigado por Elizabete Rodrigues
da Silva (2007) contempla parte da realidade do lugar, conforme expressa a autora no trecho
abaixo.
As necessidades cotidianas e a luta para sustentar suas famílias,
estimularam-nas a romper com os preconceitos em relação ao trabalho
feminino fora de casa, a partir de uma forma muito peculiar em seu
conjunto social, utilizando-se das brechas que a própria organização
econômica e social podia lhes oferecer. (SILVA, 2007, p. 5)
Memória ligada a evento traumático de expressão coletiva, para usar a expressão
Maurice Halbwachs (1990), a memória individual liga-se numa perspectiva da memória
coletiva, portanto, integrada à memória do grupo. Nesse aspecto o autor acrescenta que
“Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que eu ocupo, e que este lugar
mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios”. (HALBWACHS, 1990,
p. 51)
Edvaldo informa que estava no campus da UEFS – Universidade Estadual de Feira de
Santana, em Feira de Santana, no momento em que ocorreu o evento. “Eu estava na UEFS
quando soube que São Félix estava embaixo d’água, nesse ano”. São dados contextualizados
da experiência individual do informante, ligando aspectos da sua vivência individual a algo de
amplitude coletiva – a enchente da cidade de São Félix. Marcas da vida pessoal interligados a
eventos de alcance coletivo.
O episódio da enchente de 1989 também foi lembrado na fala de dona Nair – segunda
esposa de Luiz Gonzaga Dias – ao informar do desaparecimento de cópias de edições do
Jornal do Correio de São Félix. “Eu guardava os documentos de Luiz no quarto anexo, mas
quando veio a enchente, as águas carregaram tudo. Levou junto também o livro de poesia de
Luiz, que eu guardava na mesma sala”. Luiz Gonzaga que além de jornalista era poeta
publicou o livro Imagens Mutiladas, que segundo dona Nair também se perdeu na enchente.
O relato de Nair Santana Leite62 exemplifica algo referente à memória, postulado na
abordagem de Alessandro Portelli (2001), ele informa que a oralidade tem servido de base nos
62
Nair Santana Leite, 84 anos de Idade, em entrevista no dia 25/03/2009, na cidade de São Félix. Da qual falou
da convivência na companhia de Luiz Gonzaga Dias. Ela que foi a segunda esposa dele, após o falecimento da
primeira esposa de Luiz.
126
cruzamentos com as evidências escritas, conforme evidenciado na figura 23 onde há um
recorte do Jornal Correio de São Félix, tendo em destaque um dos poemas de Luiz Gonzaga
Dias, que fizera parte da coleção que compôs o livro Imagens Mutiladas.
Na poesia a canção acabou63, tem-se a impressão que o autor elegeu a metáfora para
referenciar um tempo “como a nave que naufragou um dia” (Jornal Correio de São Félix,
26/abr./1969), uma ligeira conotação a não mais existência das embarcações junto às margens
do rio Paraguaçu. Tendo consciência dos problemas que se abateram sobre a cidade de São
Félix, o poeta sussurra que “a canção acabou...”, assim como “já se extinguiu como um pouco
de fumo” (ibidem), lembranças das antigas fábricas de charutos existentes na cidade até
meados do século XX.
Os episódios da cidade passam a refletir no discurso que os sujeitos fazem do lugar.
Aspectos recorrentes também no Jornal Correio de São Félix que será objeto de análise no
decorrer das seções do segundo capítulo. Sobre a ótica do Jornal será possível como esse
veículo de comunicação se posiciona sobre a carência de terrenos urbanos – monopólio da
Leste Brasileiro – e moradias na cidade; A percepção estabelecida diante dos constantes
acidentes com as locomotivas e vagões da referida empresa, nas ruas e praças da cidade de
São Félix; e os inconvenientes denunciados pelo jornal.
4.2 – A FILARMÔNICA NO PROCESSO DE CONFIGURAÇÃO DO ESPAÇO DE
CULTURA DOS FERROVIÁRIOS.
No Brasil, ao longo da Primeira República, foram criadas em diversas cidades
associações desportivas e recreativas, ora por iniciativas de empresas, ora por iniciativa do
operariado. Advindo desse contexto a explicação da origem de várias agremiações de futebol,
que se tornaram profissionais, ao longo do século XX. As primeiras filarmônicas no Brasil
têm como marco de fundação já nas últimas décadas do século XIX, tendo chegado ao País
sob a influência das bandas de jazz norte-americano.
Em oito de junho de 1960 numa Assembléia Geral para discutir e ratificar a mudança
do nome da filarmônica Minerva Cachoeirana, fundada com esse nome em 1º de fevereiro de
1878, passando a ser chamada oficialmente, a partir de 1960, conforme assembléia, de
Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana.
63
Verso da poesia a canção acabou que fez parte do livro Imagens Mutiladas, de Luiz Gonzaga Dias. Esses e
os demais poemas do livro foram publicados nas edições semanais dos sábados, pelo Jornal Correio de São
Félix, no ano de 1969.
127
Na oportunidade foi lembrada com pesar os danos materiais causados em parte do
acervo da sociedade filarmônica e dos estragos provocados nos instrumentos musicais
decorrentes da enchente que atingiu à cidade, conforme expressa no trecho seguinte da ata:
Depois de realizada consulta geral, a Assembléia, por unanimidade de votos
e tendo em vista que os livros de ata foram estragados pelo torvelinho
destruidor das águas do rio Paraguaçu, deliberou manter a denominação de
Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana64.
No ponto anterior da ata, foi esclarecido as motivações da reunião extraordinária,
deveu-se
à inundação que atingiu implacavelmente à sede desta organização musical,
destruindo-lhes móveis e materiais da biblioteca, bem como grande parte do
arquivo musical e da secretaria, inutilizando-lhes livros nas instantes, dos
quais aquele em que constava a ata da sessão da Assembléia Geral cuja
resolução autorizou a mudança do seu nome, que era Sociedade Filarmônica
Minerva Cachoeirana para Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana65.
Continuando a explicação na ata sobre areunião que teve como finalidade ratificar
uma decisão tomada anteriormente pelos membros da agremiação musival, também em
Assembléia Geral. Conforme a ata o presidente deu explicação sobre a não realização da
reunião antes porque “após a enchente da qual também fui vítima, face à sede não se
encontrar em condições satisfatórias, por quanto a enxurrada que deixou danificou relíquias
insubstituíveis, levando a quase destruição total”66.
A denominação Sociedade Filarmônica Minerva Cachoeirana existiu “até as décadas
de 1950/1960, quando, em resolução da assembléia geral, foi modificada para Sociedade
Lítero Musical Minerva Cachoeirana”67.
A reunião extraordinária foi motivada pela foi motivada pela necessidade de dá
licitude aos atos da presidência juntos aos associados da agremiação musical, no sentido do
amparo jurídico, que regulamenta as ações legais da agremiação. Assim como a
responsabilidade social da entidade para com a opinião pública, comprovada mediante a
participação da mesa diretora e dos membros associados, dando um caráter democrático nas
resoluções aprovadas internamente na Sociedade Filarmônica Minerva Cachoeira, como é
popularmente conhecida.
64
Ata da Assembléia Geral da Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana. Na cidade de Cachoeira, em 9 de
junho de 1960. Acervo da Filarmônica Minerva Cachoeirana,
65
Ibidem.
66
Ibidem.
67
Ibidem.
128
Outro aspecto que aparece no texto são as expressões: “civilizado”, “evolução”
remetendo ao pensamento da modernidade, sendo um dos argumentos apresentados na
reunião para justificar a troca do nome da entidade musical.
O sr. Manoel Mateus Ferreira, um dos mais antigos sócios desta
agremiação, que teve a oportunidade de escrever uma crônica, há anos, em
um jornal desta cidade a respeito da última alteração do nome da Minerva,
focalizando a necessidade de atualizar as antigas, a fim de não ficarem à
margem da nossa evolução como povo civilizado.
A importante no estudo das filarmônicas reside no fato que muitos ferroviários
recorriam a esse tipo de agremiação para desenvolver a parte lúdica, ou a “veia artística”, mas
também as bandas de jazz se constituíram em espaços alternativos de lazer e cultura dos
trabalhadores, operários de cidades do Recôncavo baiano, ao longo do século XX.
A oficina de carpintaria mantida pela Leste Brasileiro em cidade como São Félix
representou para o operário encarregado dessa função a sua manutenção local junto aos seus
amigos e familiares. Situação experimentada pelo pai do maestro André Luiz Rocha Santos,
que segundo este “meu pai assim como outros ferroviários entraram na Leste porque eram
músicos da Filarmônica Sociedade União Sanfelixta”68. De acordo com André Luiz “o
presidente da Filarmônica intercedia junto à diretoria da Leste Brasileiro no sentido de
negociar a admissão de um membro como funcionário da Ferrovia.
A Filarmônica Sociedade União Sanfelixta foi criada como uma entidade sem fins
lucrativos, de acordo com a ata, como uma entidade filantrópica, para levar música,
entretenimento a serviço da comunidade local. O cargo de presidente se por constituía numa
função honorífica para o membro representativo na comunidade. Verificando os nomes que
figuram na galeria de ex-presidentes da entidade todos tiveram passagem na Câmara de
Vereadores, incluindo Luiz Gonzaga Dias. O autor presidente da Filarmônica Sociedade
União Sanfelixta também ocupava a função de vereador junto à Casa Legislativa local.
Abaixo documentação mantida junto à sede da Entidade sob guarda do atual
presidente, Argel Souza Silva, “a Sociedade Filarmônica União Sanfelixta, fundada em 7 de
setembro de 1916, é uma entidade filantrópica sem fins lucrativos. [...] é considerada de
utilidade pública Municipal sob o nº. 121 de 1 de junho de 1953” (DOCUMENTAÇÃO
INTERNA). Os aspectos apresentados nessa documentação sugerem ter havido uma
68
Trecho da fala de André Luiz Rocha Santos, maestro da Sociedade Filarmônica União Sanfelixta, onde o pai
Benedito Francisco Santos fora músico dessa mesma entidade, e carpinteiro da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro.
129
preocupação de legitimar a Entidade, por um lado, como “filantrópica” e, por outro, destacá-la
como sendo de utilidade pública municipal.
Que tinha interesse buscar a legitimidade de uma entidade musical no município?
Levando em conta que a função de presidente da entidade teria sido ocupada por políticos
locais, especialmente vereadores. Há de se convir que residia nesse segmento social o maior
interesse para legitimar essa representatividade no Município.
A interação da entidade cultural com membros do poder estive entrelaçado, seja como
meio para galgar projeção social e status, seja para garantir a manutenção de ordem política,
da qual esse tipo de manifestação cultural constituía parte do alicerce político em que diversos
agente da vida pública se colocavam como beneméritos. Quem melhor para simbolizar o
espírito de neutralidade, de imparcialidade, sob a teia universalizante do que a então bandas
de jazz.
A banda de jazz – filarmônica – composto por instrumentos de sopro e percussão,
sugerindo uma conotação de estilo universal, devido à origem clássica, sendo, portanto
instrumental. No rol da cultura erudita as filarmônicas no Recôncavo Baiano ganharam uma
dimensão mais ampliada nas manifestações populares, fazendo-se associar desde o novato
aprendiz das camadas populares, até o homem público na condição de benemérito da
entidade.
Pois as filarmônicas seriam o que de mais democrático existiriam na produção de
cultura, pelo alcance social que ela despertara nas pessoas, independentemente de classe
social, crença religiosa, posições ideológicas e partidárias. Essa pode ser a maior explicação
para se entender a composição do quadro de presidentes da Filarmônica Sociedade União
Sanfelixta de membros do poder legislativo municipal.
Teria o cargo de presidente ocupado por um vereador apenas como constituinte do
capital simbólico? Em sendo, por que outros segmentos da sociedade não constam dessa
função? O que os membros da entidade – músicos, associados, simpatizantes – esperavam
obter ao fazerem essa concessão do cargo ao político? São problemáticas sugeridas para
estabelecer um diagnóstico com o objetivo de apimentar a discussão sobre esse tema.
O próprio documento registra que o atual presidente – Argel Souza Silva – “foi
reeleito Presidente pela sexta vez consecutiva por unanimidade, para o mandato de biênio”, ou
seja, a cada dois anos esse homem se manteve na função por uma eleição. Possivelmente, o
estatuto faculta esse direito, documento que não tivemos acesso. A palavra “unanimidade”
chama atenção parece conduzir a um ambiente de harmonia. Quando, de fato, isso na prática,
130
não existe, pois se há eleição há o contraditório, há no mínimo uma chapa opositora, dando
conta das tensões e conflitos de interesses na Entidade.
Ser amante da cultura, da arte rendia dividendos ao homem público, ao político
interessado em pavimentar a base eleitoral. Não por acaso, o vereador Luiz Gonzaga Dias fora
também poeta, publicando em princípio dos anos sessenta o livro Imagens mutiladas,
reunindo o conjunto de poesias. Semanalmente o autor publicava na edição semanal no Jornal
Correio de São Félix uma poesia do livro. Jornal em Luiz Gonzaga Dias era o diretor e editorchefe.
Nenhuma obra, pintura, manifestação artística, experiência estética pode ser
compreendida fora do contexto histórico, político e social que lhe está na
origem. Como nesta perspectiva não se pode analisar nada isolado, além de
caracterizarmos aspectos da vida cultural e política que influenciam
estéticas, estilos picturais de correntes e grupos de artistas. (SEDREZ, 2007,
p. 1).
Contemplando com a opinião de Susana Sedrez a interação entre expressão artista e
política deve ser pensada no seu contexto, aspecto esse permeado por tensões, negociações e
conciliações, resultado sempre dos múltiplos interesses envolvidos.
Segundo o maestro André “os músicos de talentos das filarmônicas eram admitidos na
Ferrovia por intermédio do presidente da Filarmônica”. O presidente da Filarmônica União
Sanfelixta, segundo o maestro André, desenvolveu também essa postura, para garantir a
manutenção do músico junto à entidade, “uma vez que, sem emprego o artista não teria como
se manter na cidade”, complementa André.
Pelo que se observa a função exercita de presidente da Filarmônica representava um
cargo de alguma representatividade política na sociedade de São Félix. Antônio Carlos
Magalhães – ACM – aparece no acervo de fotografia exposto na sede de ensaios da
Filarmônica, como benemérito da entidade. Outras personalidades políticas locais, a exemplo
do jornalista, poeta, vereador e ex-prefeito Luiz Gonzaga Dias consta na galeria de fotos
como tendo sido presidente da Sociedade Filarmônica União Sanfelixta.
O atual presidente da referida filarmônica é vereador, dado que vem confirmar a regra
sobre a influência que as personalidades políticas tiveram, junto a essa entidade, na
manutenção dos músicos e na articulação de emprego e renda dos seus membros.
André é filho de um integrante da Filarmônica Sanfelixta, que era músico, onde o
instrumento de sopro – o trompete. André contou que o pai além de músico instrumentista
também era ferroviário da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro, de onde retirava o sustento
da família. “Meu pai trabalhou durante todo o tempo aqui na cidade de São Félix, como
131
marceneiro da Leste”, remetendo a existência também de uma marcenaria nesta cidade. O
operário que se ocupava dessa atividade cumpria a função do reparo dos móveis – cadeiras,
mesas, bancos – que compunham os assentos do trem de passageiros e os guichês da estação
ferroviária.
O marceneiro, por essa atividade, podia residir na cidade, pois componha uma função
fixa na cidade, daí sendo perfeitamente razoável conciliar o trabalho remunerado na Ferrovia,
com os intervalos dos dias de folgas na Filarmônica Sanfelixta, como músico. Já os
“ferroviários de linha” ficavam sempre em trânsito, pois desempenhavam funções de trajetos,
envolvendo o percurso entre uma estação ferroviária e outra, tendo a necessidade do mestre de - linha, do maquinista que era responsável por conduzir o trem, do foguista que abastecia
com trem com lenha.
“Troquei clarineta na Filarmônica União Sanfelixta antes de entrar na
Ferrovia, quando comecei a trabalhar tive que deixar a Filarmônica por
causa das viagens a trabalho, pois eu comecei como servente entre São Félix
e Contendas, depois fui transferido como chefe de depósito para as cidades
Caculé e Iaçu. E por fim, mediante concurso interno de duas etapas – teórica
e prática – assumi a função de subinspetor de tração.”69
Além deles, havia os operários responsáveis pela manutenção da linha, servente,
feitor, encarregado de depósito – local onde eram guardados os equipamentos da empresa. Foi
essa característica de serviço de trânsito que fez Álvaro Gomes de Araújo abandonar a
Filarmônica, onde confessou ter atuado com o instrumento de clarineta, “mas deixei assim
que fui trabalhar na Companhia Férrea”, iniciando na função de servente. Servente era uma
atividade braçal da qual se ocupava da capina dos canteiros dos trilhos, roçado dos galhos,
carregamento dos dormentes e no auxílio de depósito de mercadorias.
“Quando eu entrei para a Estrada de Ferro, era dos franceses, como não tava dando
resultado entregou para o governo. Eu gostei porque virei funcionário público.” Essa
declaração reflete uma representação social expressa por Álvaro Gomes pela então condição
de servidor público, da consciência de um emprego estável. Se hoje ser funcionário público é
uma meta, dimensione a expectativa de se tornar um desse no contexto histórico cuja
oportunidade de trabalho era restrita a uns poucos privilegiados. Não apenas pela inexistência
do concurso público para o ingresso, como também uma parcela significativa de trabalhadores
ficava vulnerável à mercê de um ocasional apadrinhamento.
69
Trecho da entrevista com Álvaro Gomes Araújo, ferroviário aposentado da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro.
132
“Eu já toquei nas Festas de Terno, que tinha esse pessoal seleto” lembrança do tempo
em que atuava na Sociedade Filarmônica União Sanfelixta70 e esta era convidada a animar o
evento pelas ruas e praças da cidade de São Félix, nos primeiros dias do Ano Novo.
De acordo com o site governamental as Superintendência de Estudos Econômicos e
Sociais da Bahia – SEI71, na qual relata a existência de dois “terno de reis” na cidade de São
Félix, ambos acompanhados por grupo de jaz – filarmônica – o Terno do Barricão, do qual
uma barrica gigante segurada por homens. A barrica tem registrada em sua parte externa os
nomes de pessoas que não conseguiram casamento.
Acompanhados por sons de instrumentos de sopro e percussão, formado em torno da
barrica, um grupo percorre as ruas, parando na porta das pessoas que não se casaram. Já o
“terno de mandu” é formado por um grupo de pessoas com fantasias, cujo traje é um lençol,
peneira, cabo de vassoura que deforma a estrutura física da pessoa, tornando irreconhecível,
percorrendo as ruas da cidade, acompanhado por um conjunto musical.
Um misto de sátira e teatro em torno de aspectos sociais, cuja evidência remonta a
descontração e a inventividade das pessoas em recriar as problemáticas do seu cotidiano.
Havia também sempre a presença de uma banda filarmônica contratados pelos
organizadores de excursões e passeios em navios por cidades e áreas litorâneas, como praias.
Alguns desses eventos festejos estiveram relacionados às festas populares e tradicionais que
ocorriam em cidades litorâneas do Recôncavo baiano. Ou para celebrar o aniversário do
padroeiro da cidade, da qual os romeiros os tinham como devoto.
De Cachoeira a Maragojipe. Um passeio de recreio da Filarmônica Minerva
Cachoeirana. Como é sabido, no próximo dia 21 de agosto, na progressista
cidade de Maragojipe, por iniciativa da festejada Filarmônica Dois de Julho,
apreciado conjunto musical dessa cidade, efetuar-se-ão pomposas festas
religiosas em honraria de São Bartolomeu, excelso padroeiro do povo
maragojipano e, particularmente, dessa filarmônica. O vapor especial da
Companhia de Navegação Baiana, que será o espaçoso navio Cachoeira,
deixará o cais desta cidade às 08:00 horas da manhã, devendo retornar às
20:00 horas. (Jornal A Ordem, 3/agosto./1931)
Na cidade de Maragojipe comemora-se a mais de dois séculos, a festa em celebração a
São Bartolomeu no mês de agosto, mês de morte do padroeiro da cidade baiana.
Tradicionalmente o evento consta de “procissões, novenas, missas, lavagens de rua, faxina do
templo católico e concursos de Filarmônicas locais fazem parte da programação, que começa
com o Bando Anunciador, no primeiro domingo de agosto” (SEIXAS, 2007, p. 1).
70
71
Sociedade Filarmônica União Sanfelixta criada em 07 de setembro de 1916.
Site: http://www.sei.ba.gov.br
133
A filarmônica constituiu-se presença cativa em evento dessa natureza, justificando o
ibope que representava para um operário poder dispor de seu tempo de lazer ao lado da banda,
seja na qualidade de músico, seja como sócio ou ouvinte.
A cidade de Candeias a peregrinação dava-se em função da fonte, onde os católicos
atribuem diversos milagres, pela intervenção das águas submerge da gruta. Charles
D’Almeida Santana (1998) analisando a interação dos camponeses que passaram a realizar
esse tipo de viagem através do caminhão, denominado pelos romeiros de “pau-de-arara”,
destaca que “nas romarias, as relações das famílias de trabalhadores rurais com outras cidades
intensificavam” (SANTANA, 1998, p. 91).
O Jornal A Cachoeira também reporta anúncios de viagem para a cidade de Candeias,
promovida por romeiros. Além de reunir pessoas em torno da consagração da fé religiosa, as
lotações constituíam uma possibilidade a mais para arrecadação de fundos, embora não
explicitados diretamente nos anúncios à finalidade, quando realizados por particulares.
Quando as romarias eram promovidas por entidades, associações ou organização comunitária,
os recursos buscavam atender aos interesses dessa coletividade.
Esta sendo anunciada nesta cidade uma atraente romaria ao Santuário da
Virgem das Candeias, situado na vila do mesmo nome. A Filarmônica
Minerva Cachoeirana, promotora desta excursão ferroviária, escolheu o dia
24 de março para a realização desta romaria, que está despertando interesse
de nossa população católica além de ter finalidade de beneficiar esta
sociedade musical na construção de sua sede própria.
Nesse anúncio o trem fora contratado na “excursão ferroviária” na dos romeiros até o
Santuário em Candeias. A ferrovia nesse contexto representou também múltiplas e
alternativas possibilidades de uso para o variado tipo de transporte.
Ainda de acordo com o SANTANA (1998) “homens, mulheres e crianças
organizavam-se durante vários meses para seguir viagem”. Momentos de lazer e interação
social campo/cidade. Já Wellington Castellucci Júnior (2007), ao refletir sobre esse aspecto de
sociabilidade popular, acrescenta que “a festa é, por assim, dizer, a apropriação do lugar,
demarcação e derrocada de fronteiras enquanto se instituem marcas no território carregado de
significados” (CASTELLUCCI JÚNIOR, 2007, p. 84).
Os trabalhadores urbanos e rurais buscavam com esses eventos escapar das labutas do
dia-a-dia, articulando ações para compartilhar sentimentos e emoções, além de obter
informações sobre pessoas e lugares, estabelecendo novos ciclos de amizades.
De acordo com o relato de Vivaldo Costa, nas viagens a passeio nos navios “ia muita
gente no famoso navio Paraguaçu”. Sendo este adjetivo o nome do rio por navegavam as
134
embarcações entre as cidades de São Félix e Cachoeira. Os passeios marítimos eram
acompanhados de uma “Filarmônica que tocava durante todo o percurso, animando os
passageiros”.
Viagens em embarcações desse tipo, em dias de finais de semana e feriado tinham
como objetivo o “veraneio” às praias da ilha de Itaparica, Madre de Deus e orla marítima da
cidade de Salvador. É recorrente na parte nas páginas dedicadas aos eventos culturais na
cidade, anúncios sobre passeios de navios, com dia, horário de saída e chegada ao destino,
cujos preços aparecem especificados no Jornal Correio de São Félix.
Com uma chamada impactante os organizadores do evento publicam no periódico o
seguinte anúncio: “Grande passeio de recreio à Madre de Deus. O Sensacional e atraente
passeio será realizado no dia 3 de janeiro, pela Filarmônica Minerva Cachoeirana, com
destino à vila de Madre de Deus”. (Jornal Correio de São Félix, 12/dez./1959). A divulgação
do evento em um jornal da cidade de São Félix para além de configurar ama interação da
população das duas cidades, também constituiu um espaço a mais para venda das passagens e,
conseqüentemente, obter uma melhor margem de lucro para os promotores do evento.
“O navio Paraguaçu partirá da cidade de Cachoeira, às 06:00h da manhã, retornando
às 14:00h. Animará os passeantes um afinadíssimo jazz”. A preocupação em informação o
tipo de transporte parece fazer diferença como atrativo nesse tipo de passeio. Talvez o navio
constituísse um símbolo de conforto e espaço suficiente para que a banda da Filarmônica se
apresentasse ao longo do percurso, pelas águas da Baía de Todos os Santos.
Os passeios eram uma das maneiras que as filarmônicas estabeleceram como ação para
obter receitas para as entidades, já que elas se integravam no rol das organizações
filantrópicas. Valendo-se para de manter de doações, bingos, leilões e taxas recolhidas juntos
aos membros associados da banda.
4.3 – A CONSTITUIÇÃO DA SOCIABILIDADE: “CLUBE DOS FERROVIÁRIOS”,
FUTEBOL, LAZER E CULTURA.
Os ferroviários desse trecho do Recôncavo Baiano, através de suas próprias iniciativas
construíram movimentos e eventos no sentido de estabelecer laços afetivos de solidariedade e
ajuda mútua. Daí a presença marcante dos ferroviários como músicos em dezenas de
orquestras de filarmônicas, ora como músico, ora na condição de colaborador e torcedor de
sua agremiação do coração. O mesmo acontece com o futebol ferroviário, cuja habilidade no
135
campo gerou uma porta de entrada de inserção na Rede Ferroviária. Porque esta era uma das
formas de manter o atleta craque no time.
Da cidade de são Félix formava lotações ou romarias dos dias de domingo e feriados,
via escuna, passeio de barco pela Baía de Todos os Santos, para Nossa Senhora das Candeias,
para o Senhor do Bonfim, em Salvador. Tendo sempre a companhia de uma filarmônica para
animar os tripulantes. Por isso a necessidade de se pensar cultura como um processo, na
dinâmica das relações sociais. Cultura articulada às condições do trabalho local, coletivo
numa dimensão de sociedade, que é plural, mas que também persistem aspectos singulares.
Procuramos entender a categoria dos operários numa perspectiva atribuída por Edward
Thompson, levando em conta a especificidade histórica de luta. Pensamos cada categoria
operária na perspectiva dos valores locais, a partir de sua própria experiência. Thompson
avança na abordagem marxista trazendo elementos que dão voz e vez a ação de cada sujeito
individualizado, no contexto social e cultural. Dessa maneira, ampliamos o horizonte de
percepção sobre a atuação do segmento ferroviário, para além de indivíduo passivo ao regime
“da nova disciplinar industrial do trabalho” (THOMPSON, 1988: p. 12). Daí porque ouso
estudar o ferroviário tanto no ambiente das oficinas, como também nas estratégias de
articulações e solidariedade fora do ambiente de trabalho.
Maria Auxiliadora Guzzo Decca parte nesta linha com a obra A vida fora das fábricas:
cotidiano operário em São Paulo. Ao abordar os mecanismos sutis de disciplina do operário.
A Vila Operária Maria Zélia [...], que tinha toda a sua vida social dirigida
pela indústria (festivais eram oferecidos aos operários com o auxílio da
igreja local; possuía escola, creche, capela no seu interior), constitui o
exemplo mais extremado de uma forma direta de controle (DECCA, 1987, p.
89).
A autora comunga com o pensamento de um suposto poder alienante sobre a categoria
operária, não aprofundando a discussão sobre as mediações individuais que se davam nas
relações cotidianas dos indivíduos, pautadas pelas sutilezas e estratégias de negociação. A
percepção de coerção feita pelos dirigentes era perceptível nos setores subordinados,
conforme relata Herval Bernardo de Souza ao confessar que “em datas comemorativas, em
que se fazia homenagem e celebrações, todos os ferroviários eram obrigados a comparecer
sob pena de ter o ponto do dia cortado”72 é sentido como estratégia de sobrevivência, um
mecanismo de astúcia dos operários.
72
Trecho da entrevista com Herval Bernardo de Souza, ferroviário aposentado da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro.
136
O medo de ter o “dia de trabalho cortado” representava dado importante na tensão e
luta do ferroviário. A luta principal do ferroviário era sofrer ainda mais com as perdas
salariais, além dos atrasos, não vê seus salários reduzidos em vista de eventuais descontos na
folha de pagamento, por atraso ou não comparecimento a eventos ou reuniões. “Eu trabalhei e
nunca tive uma observação. Minha ficha era limpa na Empresa” destaca orgulhoso Diolino
Ferreira de Souza ao se referi ao tempo em que trabalhou na Leste Brasileiro.
Argumentação semelhante foi dita por Israel de Oliveira Melo buscando conciliar
responsabilidade pessoal, pautada entre valores do trabalho e a necessidade de preservar
salários. “Eu trabalhei 32 anos e nunca fui suspenso. Nunca recebi uma advertência. Nunca
perdi um dia. Eu pensava assim – eu ganhava pouco, se perdesse um dia faria falta. E assim
mantive o capricho até quando me aposentei”73. Percebe-se nas reminiscências das
lembranças dele a composição de aspectos de valoração de conduta postula pela sociedade,
conforme sugere Michael Pollak (1992).
Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de
negociação, de transformação em função dos outros. A construção da
identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em
referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de
credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros.
(POLLAK, 1992, p. 204).
Pode-se apreender do discurso do ferroviário aposentado, Israel de Oliveira Melo, que
existia situação de tensão com o chefe imediato, na figura dos engenheiros, pois a esses eram
delegados os poderes de gerenciamento e autoridade sobre os demais trabalhadores na
Empresa. A resistência sob variadas formas, inclusive, disfarçadas por ligeiros comentários
que ferroviários como Israel dizia fazer quando percebia um lapso de inexperiência do
engenheiro naquele da qual os trabalhadores estavam acostumados a labutar. Esse fato
constitui marca de um conflito de classe, de modo que, ao tentar demonstrar maior
competência junto ao engenheiro o ferroviário queria passar uma mensagem de devia receber
tratamento na Empresa Ferroviária tal e qual recebia os engenheiros da Leste, incluindo
salários, residência e tratamento digno.
Pelo que ficou demonstrado nas falas dos ferroviários aposentados desempenhavam
com satisfação as funções que desempenhavam na Empresa Ferroviária, tendo consciência da
importância do serviço para o funcionamento operacional do transporte. O fato de perceberem
73
Trecho da entrevista com Israel de Oliveira Melo, ferroviário aposentado da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro.
137
a utilidade da função que exerciam parece ter influenciado os ferroviários na condição de
operário-padrão.
Nunca achei um inspetor para mim dar um grito. A única vez que aconteceu
eu repeli. Foi lá na cidade de Itatin. Eu entrei na sala do inspetor para avisar
do temporal que estava para cair. Aí ele veio bravo, me gritando. Eu falei:
êpa! Baixa seu tom de voz comigo! – Era o chefe – Meu pai nunca me
gritou nem nunca levantou o dedo para mim não, me respeite viu74.
Longe de terem si constituído com operários passivos, acomodados, na dinâmica das relações
de trabalho havia embates, disputas, rivalidades pouco perceptíveis quando analisadas de fora. Mas
que se revelavam pelas sutilizas dos depoimentos de alguns dos ferroviários entrevistados, a exemplo
de Deolino e Israel. Buscando evidenciar reações de opressão patrocinadas eventualmente pela chefia
imediata, mas que, portanto, não se configurando em desvio de caráter do trabalhador frente às
atribulações.
Deolino Ferreira de Souza cita trecho de um relatório produzido pela diretoria, quando atuava
como subchefe de Estação, em Jenipapo, distrito do município de Castro Alves, na qual havia sido
responsável pelo fechamento do balanço contábil das passagens que eram vendidas na estação
ferroviária. Segundo ele, concluída sua participação na função, o inspetor registrou a seguinte
observação: “Após eu prestar o balanço na diretoria, o chefe relatou: – encontrando o serviço em
perfeita ordem, nada deixando a desejar. Sendo digno de confiança da maneira como vem se
conduzindo como subagente da estação75”
Esse trecho da fala de Deolino recitada como poesia, da qual ele compôs na memória
rememoração significativa que se projeta para a coletividade como virtudes valorativas. O recurso do
recital apresentado por ele dá uma conotação de arte, de beleza, de credibilidade da sua fala para com
o interlocutor, o ouvinte. Numa relação de tornar o diálogo alegre, mas também tentar recriar no
presente um passado “mágico”, saudosista, idílico. O prolongado riso na face de Deolino é uma
tentativa de cativar sobre uma suposta fase de “feliz” da profissão, quando pode está revelando um
esforço em apagar da memória aspectos de vivências traumáticas, ou que essas lembranças lhes
venham à tona e lhes provoquem sofrimentos.
De acordo com Alessandro Portelli (2001) os assuntos “espinhosos” costumam serem evitados
nas falas dos narradores para evitar recordações constrangedoras e áridas, embaraçosas ou que
deixaram traumas psicológicos.
Voltando a discutir como funcionava a relação atribuição do cargo e responsabilidade do
ferroviário na Viação Férrea Leste Brasileiro. A relação de fazer cumprir as determinações perante os
subordinados também ensejava uma carga de pressão psicológica de ambos as partes – por um lado,
74
Trecho da entrevista com Israel de Oliveira Melo.
Trecho da entrevista com Deolino Ferreira de Souza, ferroviário aposentado de Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro. Entrevista concedida em 19 de abril de 2009.
75
138
lidar com companheiros problemáticos e, por outro, prestar contas à diretoria. O mecanismo de
funcionamento das ocupações de função nas estações ferroviárias aparece no relado de Israel de
Oliveira Melo. “Na estação fica o manobrador, o telegrafista, o subagente, o agente de linha, os guarda
de estação e o agente chefe – responsável pela estação ferroviária”.
Mas Israel esclarece que esse último cargo “podia ser ocupado por qualquer um”, no entanto,
desde que aceitasse o convite e que, portando, tivesse um mínimo de escolaridade e reunir as
competências necessárias às exigências do cargo. Daí não ser necessariamente qualquer um a ocupar a
referida função na Empresa. Haveria de ser alguém que demonstrasse também habilidade com trabalho
em grupo, pelo histórico de relacionamento com os companheiros e à Diretoria. Embora isso não se
constitua garantia de que, vindo a ocupar a função, o ferroviário viesse a se comportar tal e qual
característica possuía.
Daí uma das razões que se pode apreender da ocupação de cargo em comissão não possuir um
caráter vitalício no serviço público. Sendo inclusive objeto de sanções administrativas e penais que
pode vir a sofrer o agente de serviço público por improbidade.
Qualquer um podia ser um agente chefe. Por exemplo, eu sou agente e ele
(Deolino) é um agente-chefe. Aí eu sou subordinado a ele. A função do
agente-chefe é fazer relatório de tudo. O agente-chefe tinha que prestar
conta do dinheiro das passagens. Se faltasse um centavo, ou um tostão,
porque não havia centavos, naquela época, a diretoria podia abrir um
processo, para julgar o caso. O agente-chefe podia ser suspenso76.
De acordo com Deolino Ferreiro, que exerceu o cargo, segundo ele, com lisura, “a primeira
coisa que acontecia, no caso de haver detectado alguma irregularidade, era a perda do cargo”. O que
revela a tensão vivida pelo quadro de funcionários da Empresa que exerciam essas atribuições.
As sanções impostas previstas ao agente do serviço público federal eram extensivas aos
trabalhadores da Viação Férrea Leste Brasileiro, pelo que se apreende nos depoimentos dos
ferroviários aposentados que fizeram parte do quadro funcionários efetivos dessa Empresa.
76
Trecho da entrevista com Israel de Oliveira Melo.
139
Figura 26: Celebração em “Ação de Graças” na Igreja Senhor São Félix – cidade de São Félix.
Fonte: Acervo particular de Israel de Oliveira Melo.
A celebração religiosa na Igreja era uma ação corriqueira entre os ferroviários,
conforme pontua Israel de Oliveira Melo, em destaque no primeiro plano da imagem acima,
com a camisa vermelha. De acordo com Israel as celebrações eram realizadas na Igreja
católica, sem data definida, pois assim como essa, “foi uma missa em ação de graças, para
celebrar conquistas dos ferroviários”.
Pode-se apreender o sentido de coletividade permeado pela tradição religiosa dos
trabalhadores da Viação Férrea Federa Leste Brasileiro, compreendo momentos de articulação
solidária na conquista de direitos trabalhistas ou deferimentos de ações coletivas para a
categoria.
Independente das missas que eram encomendadas por grupos de ferroviários, segundo
Herval de Souza Bernardo, na data de oito de dezembro todos os anos, por iniciativa do
Sindicato Regional e “para manter viva na memória a luta dos trabalhadores, o Sindicato
patrocina uma missa na cidade São Félix, com direito a procissão”. Além do sentido da
memória há um posicionamento de manifestação política do dirigente sindical, no sentido de
mostrar serviço junto aos associados.
Pois conforme o próprio Herval Bernardo confessa, em outra etapa da entrevista, “a
oposição faz crítica a atual gestão da diretoria”, da qual ele faz parte como diretor regional
140
“pensa que eu ganho mundo e fundo”. Uma referência à suposta remuneração que receberia
por está a muito tempo à frente da sede local da Associação dos Ferroviários do Sindiferro –
Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transportes Ferroviário dos Estados da Bahia e
Sergipe.
O que deduz ser um ambiente tenso, motivado por disputas internas sobre o controle
nos rumos e negociações pela categoria. Herval Bernardo nega que haver qualquer privilégio
salarial pelo exercício de atividade que exerce, ao esclarecendo em tom defensivo o seguinte:
Vivo no Sindicato pela militância. “A vantagem é que sou convidado a participar dos
encontros, das palestras e seminários, tudo por conta: alimentação, alojamento, passagens. A
gente aparece nesses eventos na condição de delegado do sindicato para dá voto”77.
77
Trecho da entrevista com Herval de Souza Bernardo, ferroviário aposentado da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro.
141
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo priorizou teve como foco de análise as relações sócio-culturais de
trabalhadores que exerceram suas atividades ocupacionais na Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro, a partir de meados do século XX, tendo como recorte espacial a cidade de São
Félix, pólo regional do comércio, da indústria e dos serviços de transporte fluvial e
ferroviário, no Recôncavo Baiano.
Dentro das peculiaridades ligadas às fatores como enchentes, fechamento e/ou fábricas
para outras cidades, paralelamente, assistiu-se a transferência de parte significativa da
estrutura logística e operacional das oficinas da Empresa Ferroviária Leste Brasileiro para
outras cidades. E o processo de crise que se abateu no tradicional sistema de transporte,
culminando com encerramento de tráfego marítimo, realizado pela Companhia de Navegação
Marítima até essa cidade no final da década de cinqüenta.
Em meio a esse evento e transformações advindas com os elementos da produção e
consumo da modernidade que estavam sendo adotado no País, periódicos locais e setores da
municipalidade compuseram variados discursos, ora por se sentirem os arautos da opinião
pública, ora como estratégia de projeção de suas figuras perante os canais de sociabilidade
disponíveis.
Nesse contexto as entidades filarmônicas também assumiram funções importantes na
dinâmica sócio-cultural, que não apenas sempre atuantes nas festividades cívicas ou
religiosas, elas se constituíam num primordial espaço de sociabilidade coletiva para as
diversas categorias operárias encontradas na cidade de São Félix.
De modo que muitos dos ferroviários relatados nessa pesquisa tiveram alguma
participação em uma filarmônica. Explorando as reminiscências de trabalhadores da Ferrovia
Leste Brasileiro possibilitou múltiplos olhares sobre o passado, revisitado como símbolo de
experiência para cada um dos sujeitos. A discussão a partir da documentação escrita, em
jornais, em atas ou os relatos orais, deu margem uma série de problemáticas para se refletir a
vida social, antes submersa por uma área de verdade.
Tendo em vista a oportunidade de se estudar setores operários no contexto da cidade, o
presente estudo procurou articular a temática principal a elementos configurantes da cidade de
São Félix, em duas décadas, de meados do século XX, como sendo o universo de vivência dos
trabalhadores ferroviários, da Viação Férrea Leste Brasileiro.
142
Daí o texto, ora ganhar perfil de estudo de cidade, ora remeter ao estudo da
particularidade do operariado da Ferrovia. O que se constitui um pecado, visto ser essa uma
tendência na historiografia regional, pautado na associação da análise do sujeito e seu espaço
de construção da experiência histórica.
A cidade de São Félix experimentou, nas décadas de 1940/950, transformação na
dinâmica da produção industrial, culminando no fechamento de fábricas e empreendimentos
comercias, reduzindo drasticamente a oferta de emprego para esses setores. Nesse contexto, a
ocupação na Viação Férrea Leste Brasileiro representou, ainda, a alternativa possível para
muitos dos trabalhadores egressos de outros setores produtivos.
Se por um lado, a Viação Férrea representou o canal possível de emprego remunerado,
por outro, significou uma maior carga de exploração sobre o universo dos ferroviários.
Primeiro, em função da lógica da produtividade alicerçada também pela empresa pública, com
trabalhadores egressos, trazendo algum nível de experiência no trabalho formal. Portanto,
mais familiarizado às normas e disciplina do trabalho. Reduzindo para a empresa custo com
tempo para treinar seus operários.
Segundo, a sociedade local é conduzida por toda uma conjuntura da economia global
que atinge a cidade de São Félix, do qual os ferroviários atuantes como sujeitos históricos, na
medica que criaram ou fizeram a manutenção de outros espaços de sociabilidades, como as
filarmônicas, sofreram o impulso do modelo produtivo do mercado capitalista, onde o Brasil
foi inserido.
Mesmo com as dificuldades no desenvolvimento deste estudo, em função das
circunstâncias outras, o resultado parece válido à medida que na cidade de São Félix há uma
carência desse estudo, voltado o contexto socioeconômico de meados do século XX. Ficando
assim, a expectativa para que sirva de inspiração para novos vôos sobre a temática na região
do Recôncavo, particularmente, abordando questões operárias, seus conflitos, lutas e
resistências. Mas também a percepção de laços de integração sociocultural que também
ajudam a dinamizar os laços de solidariedade e circunstâncias de cumplicidade.
143
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Relatório Informativo da Sociedade Filarmônica União Sanfelixta. Cidade de São Félix.
5.2.4.3 Artigo em periódico impresso
JORNAL O PALÁDIO – Santo Antônio de Jesus, 10 de julho de 1942. Ano 41. nº 2.055 p.1.
In: Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus.
JORNAL O PALÁDIO – Santo Antônio de Jesus, 15 de maio de 1942. Ano 41. nº 2.049 p.1
In: Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus.
CRISE NO TRANSPORTE PARA O INTERIOR Jornal Correio de São Félix, 11 de julho
de 1959. Ano XXV. Nº: 1250. APMSF.
Relação de depoentes:
Álvaro Gomes Araújo, ferroviário aposentado, aos 95 anos de idade, completados em
01/06/2008. Aposentou-se como Fiscal de Tração, no ano de 1967. Residente na cidade de
São Félix.
148
André Luiz Rocha Santos, músico regente da Filarmônica União Sanfelixta, em entrevista dia
5 de maio de 2009. Tenente da guarnição da Polícia Militar em São Félix.
Deolino em entrevista no dia 19/4/2009 Residente do povoado de São José de Itaporâ –
pertencente ao município de Muritiba – BA.
Edivaldo – Professor de Língua Portuguesa na rede Estadual de Ensino. Natural e residente da
cidade São Félix. Entrevista concedida em 08/04/2009.
Herval de Souza Bernardo, ex-escriturário aposentado da Rede Ferroviária Federal Leste
Brasileiro. Residente na cidade de Cachoeira.
Israel de Oliveira Melo, ferroviário aposentado da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro.
Próximo dos seus 79 anos de idade, a completar dia 29 de maio de 2009.
Jaime Ferreira de Jesus, 61 anos de idade. Ex-aposentado da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro. Residente no bairro da Ribeira, na cidade de Salvador.
Nair Santana Leite, 84 anos. Ex-operária da fábrica de charutos Dannemann, até meados dos
aos cinqüenta. Segunda esposa do jornalista Luiz Gonzaga Dias. Ex-Entrevista em 25/3/2009.
Vivaldo Costa, dia 12/08/2007. Ex-ferroviário aposentado da Viação Férrea Federal Leste
Brasileiro. Reside na cidade de Cachoeira
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PARAGUASSU”
Arquivo Público Municipal de São Félix. “JORNAL CORREIO DE SÃO FÉLIX”.
Arquivo Público Municipal de Santo Antônio de Jesus. “JORNAL O PALÁDIO”.
Arquivo Público do Estado da Bahia. “JORNAL VOZ OPERÁRIA”.
Biblioteca do Estado da Bahia, em Salvador. “JORNAL A TARDE”.
Biblioteca Pública Municipal de São Félix.
Biblioteca Pública Municipal de Cachoeira.
Fórum Andrade Teixeira, em São Félix. “Cartório de Registro Civil”
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Museu Casa do Sertão, Universidade de Feira de Santana. “JORNAL FOLHA DO NORTE”.