EsqUina do ricardo
Transcrição
EsqUina do ricardo em defesa das praias cariocas Quando o querido compositor carioca Braguinha, que cumpre cem anos vivinho da silva em março de 2007, cantou a Praia de Copacabana no samba de repercussão internacional (“Copacabana”, 1947, parceria com Alberto Ribeiro), cunhando a expressão “princesinha do mar”, as areias eram tão brancas e finas que deslumbravam a todos. E o espaço físico da praia era ocupado, no máximo, pelos guarda-sóis quase individuais dos banhistas. Ao longo das décadas, nós, cariocas, fomos testemunhas de trabalho de governantes sensíveis para preservar a integridade ocupacional dessas praias maravilhosas e únicas que vão do Flamengo ao Leblon. Acode-me lembrar aqui dos esforços de Enaldo Cravo Peixoto e Lota Macedo Soares para manter livre de indesejados mafuás e interesses politiqueiros as Praias do Flamengo e de Botafogo, construídas artificialmente pelo primeiro entre 1963 e 1965. Carlos Lacerda atendeu prontamente aos auxiliares, mantendoas livres e dignamente desocupadas. Igual procedimento teve Negrão de Lima, quando da duplicação da Praia de Copacabana entre 1967 e 1970. De lá pra cá, contudo, e a cada ano mais, a ocupação física de Copacabana começa a beirar o intolerável. Os administradores do Rio precisam compreender – de uma vez por todas – que praia é praia. E que um monumento da paisagem afetiva e referencial do próprio Brasil como a Praia de Copacabana é um bem intocável, que não pode virar mafuá, mesmo à guisa de lazer, de espetáculos musicais ou até de disputas esportivas para grandes multidões. Cabe ao bom administrador buscar soluções inventivas de espaços convenientes. Que não sejam as praias. O cronista João do Rio foi profético quando, lá pelos anos 10, proclamou: “Cuidado, mas muito cuidado mesmo, há que se tomar com os prefeitos que promovem novidadeiras instalações, porque eles fazem e seus sucessores não desfazem, seja por preguiça, seja porque o hábito faz o monge, isto é, ao feio toda gente frouxa se acostuma”. É o que ocorre com Copacabana, sem tirar nem pôr. sumário carioquice Nº 11 OUT/NOV/DEZ 2006 ExpeDiente DIRETOR Ricardo Cravo Albin DIRETORA-ASSISTENTE Maria Eugênia Stein EDITOR RESPONSÁVEL É som, é sal, é mar 4 Salve, madrinha do samba! 12 (O)vinis só tocam na nossa praia 18 Acordes da alma feminina Saga carioca 24 Nair de Teffé – Levada da breca 30 Tanto riso, ó quanta alegria 36 1922: o ano em que Roquette Pinto nos ensinou a ouvir 40Frutos dadivosos da ribalta Pitaco 48 “Circundando a Lagoa, arredondando a vida Magia do olhar 52 Revelações do Rio Cidade maravilhosa 60 A benção, Santa Genoveva 62 O Rio que sublima régua e compasso Do bem comer e melhor beber 70 Enfim, o sertão virou mar Luiz Cesar Faro EDITORA EXECUTIVA Vera de Souza REPÓRTER Kelly Nascimento Mônica Sinelli Ilan Bar Júlia Santhiago ARTE Marcelo Pires Santana Paula Barrenne de Artagão FOTOGRAFIA Adriana Lorete & Marcelo Carnaval PRODUÇÃO GRÁFICA Ruy Saraiva REVISÃO Rubens Sylvio Costa CAPA Foto de Adriana Lorete CONSELHEIROS E AMIGOS DE CARIOQUICE Afonso Arinos de Mello Franco Amaro Enes Viana Ana Arruda Callado Anna Letycia Boni Celina Borges Torrealba Carpi Chico Caruso Cícero Sandroni Eva Mariani Everardo Magalhães Castro Francis Hime Henrique Luz Jaguar Jerônimo Moscardo João Maurício de Araújo Pinho Joaquim Ferreira dos Santos Jorge Goulart José Louzeiro Lan Lélia Coelho Frota Leonel Kaz Lilibeth Monteiro de Carvalho Lucy Barreto Luiz Antonio Viana Luiz Carlos Barreto Luiz Carlos Lacerda (Bigode) Luiz Cesar Faro Lula Vieira Marcelo Carnaval Marcílio Marques Moreira Marcos Faver Maria Beltrão Mário Priolli Martinho da Vila Nélida Piñon Neville d’Almeida Noca da Portela Octávio Melo Alvarenga Oduvaldo de Azevedo Braga Olívia Hime Oscar Niemeyer Paulinho da Viola Paulo Fernando Marcondes Ferraz Paulo Roberto Direito Menezes Philip Carruthers Raphael de Almeida Magalhães Rosiska Darcy de Oliveira Ruy Castro Verônica Dantas Vivi Nabuco Wagner Victer Wanderley Guilherme dos Santos Zelito Viana Ziraldo REDAÇÃO E PUBLICIDADE Insight Engenharia de Comunicação & Marketing RIO DE JANEIRO Embaixador do Rio 76 Rio, diga ao mundo que fico! por João Maurício de Araújo Pinho Rua Sete de Setembro, 71 / 14 o andar . RJ . Cep 20050-005 . Tel: (21) 2509.5399 . Fax: 2516.1956 email: [email protected] SÃO PAULO Rua Sansão Alves dos Santos, 76 / 7o andar . Brooklin . SP . Cep 04571-090 . Tel/Fax: (11) 5502-3844 email: [email protected] www.insightnet.com.br Carioquice é uma publicação do Instituto Cultural Cravo Albin (ICCA) Av. São Sebastião, 2 Cobertura . Urca Cep 22291-070 . Rio de Janeiro, RJ . Tel: (21) 2542.0848 email: [email protected] www.dicionariompb.com.br www.carioquice.com.br Email: [email protected] me leva, amor salve, madrinha do samba! por vera de souza No passo da estrada, Beth Carvalho só faz cantar. Sua presença inspira chuvas de rosas. Vem de longe, léguas entoando os sambas que inebriam e entontecem a cidade inteira. O luar batuca ao seu caminhar. Beth é o sol em festa que nos faz feliz. Por onde for quero ser seu par. Beth Carvalho na show do Dia Nacional do Samba, no Theatro Municipal Carioquice Uma das mais importantes artistas da música popular brasileira, carinhosamente chamada de Madrinha do Samba, Beth Carvalho, que em maio deste ano completou 60 anos e 41 de carreira, vive cantarolando um de seus grandes sucessos, “Vou festejar”. Mas, ao contrário do samba, olha o passado sem sofrer ou penar. “Tudo o que eu fiz nessas seis décadas foi muito bom, mas agora, estou indo fundo em projetos que acalentava há anos.” E são muitos, sem dúvida, como o lançamento CD e DVD gravados em dezembro de 2005 no seletíssimo Theatro Municipal, para comemoração do Dia Nacional do Samba. Um show antológico que reuniu grandes nomes e diferentes gerações: do Jongo da Serrinha a figuras como Dona Ivone Lara, Monarco, Nélson Sargento, Darcy da Mangueira, Ary do Cavaco, Vó Maria (viúva de Donga), passando por Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila, Sombrinha, Almir Guineto, até chegar aos novos representantes do samba como Dudu Nobre, Quinteto em Branco e Preto, Diogo Nogueira e out/nov/dez 2006 me leva, amor Carioquice Um dia Cartola mostrou a Beth duas novas músicas: “As Rosas não falam” e “O Mundo é um moinho”. Mais tarde ela gravou e o resultado todo mundo sabe Partideiros do Cacique de Ramos. Aliás, o CD e DVD vão inaugurar o selo Andança, de Beth Carvalho, que será distribuído pela Sony/BMG. O show no Municipal foi mais uma conquista da Madrinha do Samba. Ela conta que a idéia surgiu um dia quando estava parada num sinal, a apenas dez dias de sua realização. A comemoração do Dia Nacional do Samba ia ser nos Arcos da Lapa, com Beth e alguns convidados. Algo bem mais simples e modesto. Começou a pensar que o show poderia ter uma cena de um sambista levando “porrada da polícia”, como acontecia no passado. E aí, entrariam os meninos do Quinteto em Branco e Preto cantando “Delegado Chico Palha” (“Ele não prendia/ Só batia/Era um homem muito forte/Com um gênio violento/Acabava a festa a pau/ Ainda quebrava os instrumentos”). Depois disso, Beth pensou que poderia cantar o samba de Cartola, “Tempos idos” (... “Conseguiu penetrar no Municipal/Depois de atravessar todo universo/Com a mesma roupagem que saiu daqui/ Exibiu-se para a duquesa de Kent no Itamaraty”). “Falei com o meu empresário, o Afonso Carvalho, esse show tem que ser no Municipal. Se ele não fosse maluco como eu nada teria acontecido. Idéias sempre tive muitas, mas faltava uma equipe que fosse fundo comigo e o Afonso é um cara ótimo. Sempre pensei grande, porque o samba é grandioso e não pode ficar no quintal. Tem que ser do tamanho que ele é. Pra você ter uma idéia, quando se sai daqui, as pessoas querem ouvir o samba. Já vi conjunto de rock cantando samba, senão não representa o país”. E as novidades continuam. Em 2007, será lançado mundialmente o CD e DVD de sua apresentação no Festival de Montreux de 2005. Ainda no próximo ano, chegam às lojas também a gravação de “Beth Carvalho canta o samba da Bahia”, feito pela Conspiração Filmes. Esse era um dos sonhos acalentados pela cantora há alguns anos e que se realizou em agosto desse ano, no Teatro Castro Alves, ao lado de Gilberto Gil, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Margareth Menezes, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Olodum entre outros. “Esse DVD vai dar o que falar. Foi muito bom fazê-lo, mas o trabalho foi duro. Imagine ir para a Bahia pra trabalhar? A Bahia não merece”, conta rindo. Nessa roda-vida, Beth ainda encontra tempo para preparar seu novo programa de televisão que fará uma homenagem ao samba e, deverá entrar no ar em janeiro, pela TVE Brasil, com direção de Belisário França. O formato, segundo Beth, será o de cada programa homenagear um compositor, vivo ou morto. Os convidados, além de cantar suas próprias músicas, irão apresentar algumas do compositor homenageado. “Não teremos play-back, vamos cantar de verdade”, destaca efusiva. out/nov/dez 2006 me leva, amor Os afilhados de Beth são muitos. De Almir Guineto à Zeca Pagodinho, passando por Luiz Carlos da Vila, Jorge Aragão, Beto Sem Braço, Sombrinha... O título de Madrinha do Samba não foi por acaso, Beth ao longo de sua carreira foi das artistas que mais se empenhou em lançar novos talentos. Desde “Andança”, quando interpretou os ainda inéditos Edmundo Souto, Danilo Caymmi e Paulinho Tapajós. “Naquela época eu já tinha gravado um disquinho, era pouco conhecida, mas de certa maneira lancei os três compositores. Hoje, a maioria dos músicos que são solicitados para gravação foram lançados por mim”, revela. A lista é imensa e vai de Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila, Arlindo Cruz, passando por Almir Guineto, Sombrinha até Marcelinho Moreira, Ovídio Brito e muitos, muitos outros. Sobre Zeca Pagodinho Beth nos revela uma história curiosa: “Lancei o Zeca em 1984 com “Camarão que dorme a onda leva”. Toda mundo o chamava de Zeca Pacotinho. Um desdém só. Ofereci para minha gravadora, eles não quiseram. Resultado, ele gravou por outra e vendeu um milhão de cópias.” Rompendo a tradição das gravações ao vivo, que são em sua maioria de sucessos, em 2007, Beth lançará mais um disco. Dessa vez, só de inéditas, de compositores consagrados ou não. “Eu tenho baús e baús de músicas novas. Estou igual ao Sérgio Cabral, que um dia disse que morava num arquivo.” (risos) Carioquice carioca da gema Beth conta que se apaixonou pelo samba ainda menina, quando sua mãe a levava para assistir aos desfiles de blocos e escolas. Em casa, o pai recebia amigos cantores, como Sílvio Caldas. Daí para Beth começar a tocar violão, aos 14 anos, foi um pulo. Ainda chegou a iniciar o curso de Relações Internacionais, mas descobriu que sua verdadeira vocação era a música. Desmentindo a voz corrente, Beth é carioca do Catete, embora muitos acreditem que ela é da Gamboa. “Na verdade morávamos na Rua Bento Lisboa, 10, mas como nasci na Pró-Matre, que fica na Gamboa, quando era pequena e perguntavam onde nasci eu dizia ‘na Gamboa’. Achava o nome lindo. O engraçado é que neguinho já mostrou até onde morei, onde estudei, a minha colega de carteira na escola. E eu não desmenti, porque senão iam pensar que eu tinha ficado besta (risos). Na verdade sempre morei na Zona Sul do Rio. Primeiro no Catete, depois Laranjeiras, Urca, Ipanema, Leblon, Botafogo. E até um tempo em Icaraí. Agora já estou há 25 anos na Joatinga, que é o lugar mais bonito do mundo”. A cantora é uma defensora efusiva do Rio de Janeiro e diz que a cidade continua sendo a mais bela e nunca deixou de ser a capital cultural do país. “Qual o artista que não mora aqui?”- indaga. out/nov/dez 2006 me leva, amor “Sempre pensei grande, porque o samba é grandioso e não pode ficar no quintal” E continua falando que a violência está no país e no mundo e isso é um problema do sistema capitalista. “Isso já é outra história e aí vamos entrar na discussão política. Na verdade o Rio acaba sendo uma vítima maior por ser a Cidade Maravilhosa. Toda mundo vem pra cá, todo mundo quer ser carioca”, afirma. Ela descreve o carioca como aquele que sabe viver, para quem “não há tempo ruim”. “Se a coisa está complicada, ele arruma um jeito de descomplicar. Não é alienado, mas não esquenta a cabeça, vai resolver! É o jogo de cintura, o raciocínio rápido. É a malandragem no bom sentido.” Todo esse savoir vivre ela atribui ao samba. “O samba me ensinou a viver. Não é só um gênero musical, como costumam dizer. É uma filosofia de vida, onde se exerce a democracia o tempo todo. Por exemplo, se você senta numa mesa de pagode, não tem presidente da República e gari. Ali estão todos no mesmo patamar. E ainda tem as comidas das tias, que faz com que todos se aproximem. Essa coisa de matar a fome faz com que todos se tornem irmãos rapidamente. E esse é o espírito do carioca. E essa solidariedade é muito do povo brasileiro, mas o carioca ainda tem o samba, onde fica todo mundo junto.” E por falar em samba, Beth segue a máxima de que “todo artista tem que ir onde o povo está”, e lista alguns dos melhores pagodes da cidade: o do Partideiros do Cacique, que se reúnem aos domingos, em Ramos; o do Negão da Abolição, que agora acontece perto da Praça Onze, na quadra da São Clemente, onde também se pode ouvir o Galo Cantou; o da Tia Doca; o do Arlindo. “Essas são manifestações que fortalecem o samba. E é aonde eu vou, onde consulto as bases. Tem que estar perto do povo, saber o que ele quer.” Apaixonada pelo Rio, conta que vai a todos os lugares sozinha, dirigindo seu carro, e volta, muitas vezes, às 3h ou 4h da manhã. ”Eu me sinto meio dona da cidade. Todo mundo é meu amigo, o povo está comigo. A Tereza Cristina costuma dizer que eu vou a todo lugar, e vou mesmo! Vivo intensamente essa cidade. Ela é devoradora. É a cidade mais sedutora que existe no mundo. E olha que já conheci parte do mundo, muita coisa considerada o que há, como a Grécia, a Suíça, mas nada comparado a Joatinga ou ao Arpoador. A cidade aqui te come, te pega de jeito. E ainda tem o povo mais bonito. Tem alguma coisa melhor que o carioca?” o que há de melhor 10 Carioquice jovem também tem saudade (o)Vinis só tocam na nossa praia por ilan bar Um disco não-voador pousou em Belford Roxo, município escaldante da Baixada Fluminense, fazendo a alegria de colecionadores, DJs e amantes da boa música. As bolachas cor de café agora são coisa nossa. Saem fresquinhas do fabricante carioca, para fazer a magia das pick-ups e fervilhar as boates e festas mais antenadas. Long-plays, os que vão te ouvir, te saúdam. Sim, o velho e bom vinil ainda tem uma legião de apreciadores que cultuam seu som que em nada se parece com o asséptico CD. O prazer de tirar o disco da capa, colocá-lo na vitrola e manusear a agulha até que o som comece a fluir é descrito por seus amantes como algo inigualável. Mas esse prazer só se perpetua graças a única fábrica do país, a Poly Som, situada no Rio de Janeiro. É de lá que saem os vinis de artistas como Caetano Veloso, Vanessa da Mata, Ed Motta, Marcelo D2 que chegam as pick-ups de DJs de todo o mundo. A Poly Som, que fica em Belford Roxo, começou a fabricação de vinil em 1999. Seu proprietário, Nilton José, traz na bagagem a experiência de quem trabalhou em diversas outras indústrias fonográficas participando de todo o processo de produção de discos. Só na Companhia Industrial de Discos(CID), seu último emprego, permaneceu por mais de 30 anos. Depois de lá, adquiriu seu 12 Carioquice próprio terreno e todo o maquinário necessário para a produção de discos. Hoje conta com diversas prensas que podem fabricar vinis nos formatos sete e doze polegadas e Picture. Nilton relembra que quando a Poly Som começou a funcionar, existiam ainda duas concorrentes nesse mercado, todas funcionando no Estado do Rio de Janeiro: duas em Belford Roxo e uma em Niterói. “Inicialmente, nós trabalhávamos para atender aos pedidos de uma igreja evangélica, mas, com o término das operações das outras fábricas, praticamente todos os clientes vieram para a Poly Som”, conta Luciana Carvalho, gerente da empresa. Com a chegada dos CDs ao mercado fonográfico, as gravadoras não tiveram outra opção: passaram a lançar seus artistas no novo formato. Muitas delas, como Warner, Sony/BMG e Deckdisc ainda resistem e lançam seus artistas também em out/nov/dez 2006 13 jovem também tem saudade Nilton José (foto), proprietário da Poly Som, traz na bagagem a experiência de quem trabalhou em diversas outras indústrias fonográficas participando de todo o processo de produção de discos. vinil. É o caso da cantora Vanessa da Mata. Sua música “Ai, ai, ai”, do álbum “Essa boneca tem manual”, deve seu sucesso às pick-ups dos DJs que colocaram o vinil com a música para tocar em boates e festas e a transformaram num hit absoluto. Vanessa rapidamente chegou à liderança em todas as rádios do país. Além das gravadoras, a Poly Som, tem ainda como clientes as bandas independentes de rock e os DJs que gravam música eletrônica e hip hop. “Hoje, o que nós mais prensamos são discos de rock. Mas ultimamente surgiu um novo filão, os discos-convite, um disco sem som que as gravadoras fazem para convidar para suas festas e eventos”, conta Luciana. Muitos músicos, artistas e amantes dos toca- 14 Carioquice discos fazem verdadeiras peregrinações pela cidade para garimpar em sebos e lojas especializadas os discos que ainda se mantêm nas prateleiras. Referência no ramo musical e especializada em música popular brasileira, jazz e clássicos, a loja Modern Sound, em Copacabana há 40 anos, criou uma seção destinada somente às bolachas pretas: o Brechó Musical, que fica em seu subsolo e que acumula um acervo de cinco mil títulos. O proprietário, Pedro Passos da Silva, se declara apaixonado pelo vinil até hoje: além de ter uma vitrola em casa, tem outra na Modern Sound. “A pureza na qualidade do som de um vinil é excelente e o bom do long play é você ouvir o chiado, colocar a agulha manualmente. É isso que me dá prazer.” A loja compra e vende vinis, sempre usados, e recebe muitos turistas interessados pelo segmento. “Ainda existe uma classe de colecionadores remanescentes da época áurea em que só se escutava vinil”, afirma Pedro. Para os DJs, o vinil ainda faz parte do case de trabalho, espaço dividido em perfeita harmonia com os modernos CDs. Grande parte da classe aderiu à praticidade que o CD oferece, como o peso e tamanho reduzidos. Mas ainda existe muitos que utilizam e não se desfazem de forma alguma das bolachonas. É o caso do DJ carioca Marcelinho da Lua, integrante da banda Bossacucanova, que já tocou em festivais na Dinamarca, França, Paris e agita várias festas no Rio de Janeiro. Marcelinho da Lua se apresenta com vinil. Sua coleção já soma quatro mil títulos que incluem música brasileira, soul, reggae, música eletrônica, entre outros ritmos. “O que me fascina no vinil é a facilidade que tenho de manipulá-lo e o prazer de colocar o disco na vitrola”, diz Marcelinho. Apreciador dos chiados e da arte gráfica das capas dos discos, o DJ já trabalhou como técnico de som ao lado de Márcio Menescal (filho de Roberto Menescal), Carlos Lyra e Wanda Sá. A gerente da Poly Som, Luciana Carvalho, explica que muitos ainda preferem o vinil por se tratar de um produto mais natural. “As bandas e artistas que fazem encomendas acreditam que o disco tem um som mais puro, enquanto o CD se tornou um produto em que o som final acaba sendo modificado”, explica. Luciana conta que o DJ Hum, expoente na arte de tocar hip hop, foi fazer uma turnê pela Europa e levou para vender mais CDs do que discos. Mas para sua surpresa, o público, em sua maioria, preferiu o vinil. “Fora do Brasil, a cultura do vinil também é muito forte, os europeus são apaixonados por discos”, comenta Luciana Carvalho. Enquanto a produção de vinis no país, hoje, é pequena dada a concorrência com o CD e também a seu alto custo, o mercado dos usados movimenta cifras elevadas, especialmente no comércio feito pela internet. Para ser ter uma idéia, existem discos raros sendo vendidos por até R$ 4.000. Durante anos, o primeiro disco do cantor Roberto Carlos, “Louco por Você”, foi considerado o disco mais caro do país, chegando a custar R$ 3.000, mas ficou para trás. Atualmente o objeto de desejo dos colecionadores é o disco “Paêbirú”, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, que está cotado a R$ 4.000. O que o elevou a categoria de mais cobiçado, foi o interesse de estrangeiros pela música psicodélica que o nordestino Zé Ramalho gravou no disco. Ainda existem outros vinis que chegam perto destes preços, como o disco “Coisas”, de Moacir Santos, “No Sub Reino dos Metazoários”, de Marconi Notaro e “O que me fascina no vinil é a facilidade que tenho de manipulá-lo e o prazer de colocar o disco na vitrola” Dj Marcelinho da Lua “Não fale com Paredes”, de Módulo 1000. A rede de relacionamento Orkut reforça o fenômeno da multiplicação de amantes dos vinis. Já são 20 mil participantes em comunidades que navegam em busca de raridades. Pedro Passos da Silva, da Modern Sound, acha que a internet é uma forma válida para se negociar e pesquisar. “A internet facilita a troca, o anúncio e a venda e existe um perfil grande de pessoas inseridas na rede interessadas em discos de vinil.” Mesmo com alguns percalços, a cultura e a paixão pelo vinil continuam se perpetuando entre gerações, com a passagem de coleções de pais para filhos. Da criação do fonógrafo por Thomas A. Edison, em 1877, ao CD de nossos dias, os LPs, criados em 1948, vão continuar, assim parce, exercendo sua magia ainda por muito tempo. out/nov/dez 2006 15 16 Carioquice out/nov/dez 2006 17 é cor de rosa choque acordes da alma feminina por kelly nascimento A história da música popular brasileira contada pelas vozes de suas divas. Essa é a surpresa que o Instituto Cultural Cravo Albin (ICCA) prepara neste fim de ano para os amantes da MPB. É o livro “MBP Mulher”, casamento de 150 imagens do fotógrafo Mário Luiz Thompson ao texto de Ricardo Cravo Albin. “A parceria com Mário Luiz Thompson nasce a partir da cobiça natural do ICCA pelo grande arquivo que o fotógrafo acumulou nesses últimos 35 anos”, justifica o patrono do Instituto. Pois sim. Cobiçar, nesse caso, é deveras natural. O fotógrafo paulista, um dos mais requisitados do cenário musical brasileiro, é o guardião de um valioso arquivo composto por mais de cem mil fotos, dez mil vídeos e de coleções de discos raros. Alguns foram herdadas da mãe, a pianista Íris Thompson de Carvalho. Parceira de músicos do naipe de Zequinha de Abreu – compositor da célebre “Tico-Tico no Fubá” -, aluna de Mário de Andrade e amiga de Patrícia “Pagu” Galvão, Íris foi personagem importante da história musical do país. Quando Thompson propôs a Albin que criasse um roteiro para a utilização desse arquivo, o pesquisador devolveu-lhe duas propostas. “Enquadrei dois livros, fazendo roteiro de fotos na Lei Rouanet – o “MPB Negra” e o “MPB Mulher””, recorda. E como manda o bom costume, as damas primeiro. A saga feminina é a novidade editorial que o ICCA reserva ao público. 18 Carioquice “O projeto MPB Mulher foi escolhido pela El Paso para ser o brinde de fim de ano para os clientes especiais da empresa, numa edição independente da Lei Rouanet. Numa escolha inteligente, a companhia o escolheu por ser um presente de Natal de inegável qualidade. Em vez das tradicio- Selma do Coco “O projeto MPB Mulher foi escolhido pela El Paso para ser o brinde de fim de ano para os clientes especiais da empresa, numa edição independente da Lei Rouanet. Ricardo Cravo Albin nais caixas de vinho, eles brindam com um objeto de arte: um livro”, diz Albin. A El Paso adotou essa filosofia em 2005, quando patrocinou a edição de “Tons & Sons do Rio de Janeiro” também como presente de fim de ano. “Como no ano passado, o Sesc-Rio aderiu de imediato, graças ao empenho de seu diretor, Dionino Colaneri, que possibilitou que além do livro se tivesse o CD “Canto da MPB Mulher” (EMI)”,complementa. A viagem musical se completa com as canções que imortalizaram as divas. Ângela Maria, Elizeth Cardoso, Joyce, Nana Caymmi, Inesita Barroso são algumas das vozes selecionadas para a coleção. “O álbum traz divas em gravações raríssimas, obedecendo à Vanessa da Mata Jussara Silveira Fafá de Belém out/nov/dez 2006 19 Elis Regina é cor de rosa choque 20 Carioquice Zeze Gonzaga Cássia Eller configuração dos oito capítulos. É um misto daquilo que é apresentado em cada período musical”. As mulheres começaram a escrever sua história na MPB pelas mãos de Chiquinha Gonzaga. E é a pioneira da produção carnavalesca quem abre-alas paras as mulheres passarem. “Criei um roteiro histórico que perfila, a partir da corajosa presença de Chiquinha Gonzaga, uma breve história da participação da mulher no nosso cancioneiro popular”, diz o autor. A adorável maestrina, compositora e musicista é apresentada como mãe da MPB, onde é destacada sua saga pautada pela coragem, luta e criatividade. Momentos como a criação da pioneira “Ô Abre Alas”, que Chiquinha compôs a pedido do Cordão Rosa de Ouro, que inauguraria a marcha carnavalesca e anteciparia em 20 anos a fixação do gênero. Em seguida, conhecemos as filhas radiofônicas de Chiquinha. Dentre as estrelas da Era do Rádio, a mais reluzente foi Carmem Miranda. A década de 30 traria outros talentos: Aracy Cortes, lançada por Sinhô no clássico “Jura”, Aracy de Almeida, a preferida de Noel Rosa, Isaurinha Garcia, representando as mulheres-cantoras de São Paulo. Já nos anos 40 e 50, surgiriam as futuras rainhas do rádio: Marlene e Emilinha Borba. Saga que seria continuada por Ângela Maria, Zezé Iris Thompson de Carvalho eu sou da lira, não posso negar out/nov/dez 2006 21 Clara Nunes é cor de rosa choque 22 Carioquice Gonzaga e Dóris Monteiro. No capítulo sobre Bossa Nova, além da musa Nara Leão, surgem os timbres de Alaíde Costa, Claudette Soares, Marília Medalha, Miúcha, Elis Regina, Flora Purim e Leny Andrade. Todas afinadas no estilo “cool” de cantar. Já no bloco do samba, Elza Soares, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Alcione e Leci Brandão são algumas das vozes destacadas. O canto sertanejo de Inezita Barroso e das irmãs Galvão - que inspirariam Tetê Espínola, Amelinha e Elba Ramalho também não ficou de fora. Enquanto a vertente pop rock é representada em toda sua rebeldia por Rita Lee, Baby Consuelo, Maria Alcina, Na Ozetti e Zezé Motta. A linhagem continua com Cássia Eller, Fernanda Abreu e as Paulas Toller e Lima. Um capítulo é especialmente dedicado às filhas compositoras de Chiquinha: Marília Baptista e Lina Pesce, autoras de sambas e chorinhos encantadores, o samba-canção de Dolores Duran e Maysa, as nordestinas Anastácia e Celma do Coco. No pós- bossa nova, Ângela Rô Rô , Marina Lima e Adriana Calcanhoto dariam continuidade à jornada. Finalizando a obra, o axé das mulheres da Bahia: Nana Caymmi, Maria Bethânia, Gal Costa e Daúde, entre outras. E a cada página MPB Mulher vai se apresentando, charmosa, sob suas mais diversas facetas e vozes. Todas elas juntas num só livro. “Tons & Sons do Rio” ganha mercado internacional O lançamento do Instituto Cultural Cravo Albin no Natal do ano passado continua rendendo frutos. A obra “Tons & Sons do Rio”, patrocinada por El Paso e SescRio, ganhará outros mares. “Foi tão bem-sucedido o projeto, que o Itamaraty lançará uma versão em inglês da obra feita pelo embaixador Sérgio Queiroz do período colonial, o lundu; o Império está representado pela modinha; o choro e a Belle Époque da Primeira República; o nascimento do samba; os áureos anos 30; a dor-de-cotovelo do pós-guerra; a euforia do carnaval; a batida diferente da Bossa Nova; a volta do samba nos anos 70; a música de protesto no período da ditadura; a alegria Duarte, intitulada Tones and Sounds from Rio de Janeiro,” anuncia orgulhoso Ricardo Cravo Albin. A obra apresenta um passeio pelos ritmos cariocas a partir do século XIX deverá ser lançada em março de 2007. O livro será distribuído em todas embaixadas do Brasil no exterior, junto com o DVD “Sinfonia do Rio de Janeiro” ( Biscoito Fino). “Tons & Sons do Rio” apresenta a música popular brasileira através de um passeio pela própria história do país. O percurso proposto ao leitor obedece à seguinte trajetória: dos festivais e movimentos contemporâneos como rap e funk. O livro é inspirado na Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião, espetáculo apresentado em 2000 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Idealizada por Cravo Albin e composta/regida por Francis Hime, para a celebração dos 500 anos do Brasil, a iniciativa reuniu cantores como Lenine, Zé Renato, Leila Pinheiro, Olívia Himes e Sérgio Santos. Letras aos cuidados de dois grandes: Paulo Cesar out/nov/dez 2006 Pinheiro e Geraldinho Carneiro. 23 casseta & planeta levada da breca nair de teffé Nunca houve mulher como Nair. A frase não é exagero e seria bom epíteto para a vida de uma mulher autêntica que prezava os exageros. Fato é que a República não seria mais a mesma após a passagem da divina dama, Nair de Teffé, pelo Palácio do Catete. Revolucionou modos e artes. Escandalizou a high society ao dar ao maxixe status de valsa e trocar o aristocrático violino pelo plebéico violão. E entrou para história como a única brasileira a se aventurar no mundo da caricatura. Musso A caricaturista Rian, na época do seu aparecimento 24 Carioquice A primeira Nair a gente não esquece. O Brasil ganharia a sua no dia 10 de agosto de 1886, numa casa na antiga Rua Mata-Cavalos, atual Rua do Riachuelo. A filha do herói da Guerra do Paraguai Antonio Luiz Von Hovnholtz, o barão de Teffé, nasceu para ser prodígio. Foi a primeira Nair nascida em solo tupiniquim, feito que lembraria sempre orgulhosa. Aos 9 anos de idade, estreiaria no mundo da caricatura. Sua mãe, Maria Luísa Dodsworth, gostava que Nair fizesse sala para as visitas – o que a entediava profundamente. Cer to dia, chegou a vez de fazer sala para a madame Carrier, amiga da baronesa. Nair driblou o tédio com lápis e papel, desenhando uma madame Carrier de formas caricatas. Sem saber, protagonizava outro fato inédito: nascia naquele momento a Rian. Mais que uma anagrama de ‘Nair’, era a primeira mulher caricaturista do Brasil. A família saudou o fato como uma demonstração de inteligência, não pensando como uma atividade a ser desenvolvida. Em 1901, os Teffé Aos 23 anos, tinha a primeira charge publicada: seu desenho da atriz francesa Réjane figurou na edição de lançamento da revista “Fon-Fon”, em 1909 se mudariam para Paris. Uma oportunidade para a menina prodígio aprimorar seu traço. Estudou técnicas de pintura no curso de madame Lavrut, terminando no prestigiado Cours Julien. A Nair que regressou ao Brasil em 1905 era uma moça que suspirava modernidade. Tinha jeito irrequieto e se identificava com um personagem da literatura machadiana: a Capitu, sua heroína moderna. Apesar de criada numa família aristocrata, desprezava a tradição. As pompas ritualísticas da alta sociedade só serviam para a irritar. Enquanto isso, Rian se destaca com suas caricaturas. Aos 23 anos, tinha sua primeira charge publicada: seu desenho da atriz francesa Réjane figurou na edição de lançamento da revista “FonFon”, em 1909. Seu trabalho também ganhou a França, onde recebeu a condecoração Officier de l’instruction publique. O galardão lhe permitia lecionar e abrir uma escola naquele país. “Um ponto interessante no trabalho de Nair era que para fazer aquelas caricaturas a pessoa tinha de estar na rua. Naquela época, as mulheres viviam dentro de casa. E Nair ganhou as ruas”, ressalta o professor do Departamento de História da PUCRio Antonio Edmilson Martins Rodrigues, autor da biografia “Nair de Teffé – Vidas Cruzadas”. Mas quando quis fazer de sua arte atividade out/nov/dez 2006 25 casseta & planeta O Pai da Aviação, um dos últimos trabalhos de Rian, em julho de 1974 Janio Quadros Paulina D’Ambrósio, violinista famosa, era uma das mulheres mais bonitas profissional, se deparou com os limites de sua condição feminina. Nada que desanimasse a jovem irriquieta que, na companhia do barão, freqüentava assiduamente o Café Jeremias, reduto de artistas, jornalistas e boêmios. A amizade com João do Rio seria resultado dessas incursões. “Nair era quem puxava as novidades, criava tendências e estabelecia novas relações. Se o colunista Ibrahim Sued lhe fosse contemporâneo, certamente a rotularia de “locomotiva da sociedade”, conta o pesquisador. De fato, Nair – cujo début na sociedade carioca fora a inauguração do Theatro Municipal, em 1909 – agitava festas e recepções. Num desses eventos toparia com seu futuro marido, o Marechal Hermes da Fonseca. Logo no primeiro diálogo cometeria uma gafe. Durante um baile promovido pelo barão do Rio Branco no Itamaraty, tentou iniciar um papo em francês com um jovem oficial que a tirou para dançar. O rapaz permaneceu calado e, ao fim da dança, conduziu-a até Hermes da Fonseca. Rian foi logo comentando com o presidente que o oficial só podia ser mudo, pois se dirigiu a ele francês e não obteve resposta alguma. O marechal respondeu que o jovem não 26 Carioquice era mudo: o surdo-mudo ficara em casa. Nair não sabia que o jovem oficial era filho do presidente e não sabia falar francês, nem que o marechal tinha outro filho surdo-mudo. Nair e Hermes se encontrariam em outras ocasiões, como na abertura da exposição de caricaturas de Rian no Jornal do Commercio, em 1912. Um ano depois, morria Dona Orsina da Fonseca e o marechal ficava viúvo. Ele parte para uma temporada em Petrópolis, cidade também escolhida por Nair para passar o verão. O hábito em comum de cavalgar pela manhã tornou mais freqüente o encontro dos dois. Num desses passeios, o presidente da República surpreendeu a jovem Rian com um pedido de casamento. No começo, o noivado foi mantido em segredo. Mas, quando divulgada, a notícia teve o efeito de uma bomba. O casamento seria rotulado de imoral, desvario mental ou safadeza. Disseram que o marechal estava louco. Foi um escândalo na sociedade.“Naquela época, o luto era de um ano. Mas não fazia seis meses que o marechal ficara viúvo de Dona Orsina, uma dama da sociedade. Já Nair era cobiçada por todos, era uma agitadora social. E, de repente, anuncia que vai se casar com alguém 30 anos mais velho que ela”, explica Rodrigues. Nunca se entendeu o que motivou Nair a se casar com o presidente. Fato é que a novidade sempre a atraiu. A possibilidade de se tornar a primeira-dama do Brasil certamente pesou muito. A chance de se libertar da família também.”Há duas hipóteses: uma que ela queria largar a família e a melhor maneira de fazê-lo seria se casando com o marechal; outra era que Nair teria um projeto de transformação social que faria com que ela pudesse incorporar as mudanças da nova sociedade brasileira ao se tornar primeiradama. Mas nunca se soube exatamente qual foi o objetivo de fato”, diz o historiador. O clima polêmico do noivado persistiu durante o casamento. Não demoraria para a sociedade começar a sentir o como seria ter Nair de Teffé no posto primeira-dama. Durante uma reunião ministerial, adentrou o salão ostentando um modelito em que todos os ministros estavam caricaturados por ela mesma na roda do vestido. Mas seriam suas festas o capítulo mais marcante da vida da primeira-dama. Nair levou para os salões do Palácio do Catete os famosos saraus que promovia em Petrópolis. Numa bela noite de maio de 1914, Nair reuniu amigos para um recital do poeta e violonista cearense Catulo da Paixão. Antes de Hermes da Fonseca, Catulo não havia passado dos jardins da residência oficial. Nenhum presidente até então havia ousado convidar o músico e seu “reles” violão a adentrar os salões do Catete. No dia seguinte, a oposição denunciaria o que classificou de enlameamento do Palácio ao som de violão. Uma festa mais ousada ainda estava por vir: a polêmica “Noite do Corta-Jaca”. Apesar de o dançarino Duque estar fazendo sucesso na Europa com os sensuais passos do maxixe, a conservadora sociedade brasileira repudiava o ritmo por considerá-lo pornográfico. Pois em novembro de 1914, o maxixe chegaria ao Palácio do Catete. Graças a Nair, uma música de Chiquinha Gonzaga seria executada pela primeira vez nos salões da elite. “ A execução de “CortaJaca” não foi algo espontâneo. Nair pediu a seu professor de música que tirasse essa canção no violão para que ela pudesse tocar. Foi tudo planejado e causou um grande rebu!”, avalia Rodrigues. A noite do “Corta-Jaca” acabou merecendo registro nos anais do Senado. O discurso de Rui Barbosa no parlamento veio carregado de indignação:”... aqueles que deveriam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o Corta-Jaca à altura de uma instituição social.Mas o corta-jaca Silvio Santos Grande Otelo out/nov/dez 2006 27 Almirante Alexandrino, ex-ministro da Marinha casseta & planeta de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba”, discursou. Nair se limitou a lembrá-lo que o palácio era a casa dela. Mas o frisson levou os opositores do governo a usaram a festa para tentar mobilizar a sociedade contra o despudor do casal presidencial. Embora a apresentação do Corta-Jaca no Palácio do Catete ter ficado definitivamente ligado ao nome de Nair de Teffé, era conhecido o amor do marechal às coisas brasileiras. Em 1911, ainda na época de D. Orsina, o célebre rancho carnavalesco “Ameno Resedá” se exibiu no palácio para a família do presidente. Por essas e outras histórias, além da má sorte que acompanhava o marechal-presidente ele foi objeto de muitas sátiras, como na modinha que o povo insistia em cantar: “ O Dudu sai a cavalo/O cavalo logo empaca/E só começa a andar/Ao ouvir o corta-jaca...” Dudu era uma forma pejorativa de se referir ao presidente, mas a primeira-dama não dava bola para os descontentes. “Foi uma noite prafrentex”, justificaria Rian mais tarde. O amor de Hermes por Nair renderia alguns presentes memoráveis. Um deles foi o bairro de Marechal Hermes, que o presidente criou e lá cravou um palácio para sua amada. O mimo permitia que a primeira-dama tivesse uma visão geral de todo o bairro, cuja criação ficou a cargo de Palmyro Serra Pulcherio. A então Vila de Marechal Hermes foi inaugurada em 1 de maio de 1913. O marechal ganhou uma ilha em Angra dos Reis e lá ergueu outro palácio para a bela Rian. Quando acabou o mandato de Hermes da Fonseca, o casal partiu para Petrópolis. O período de tranqüilidade seria interrompido pelas articulações em torno da sucessão presidencial, em 1922. Os militares articulavam o retorno do marechal. Cartas 28 Carioquice apócrifas de Arthur Bernanrdes – que levaram à prisão de Hermes da Fonseca - inviabilizariam a iniciativa militar. O Marechal não resistiria ao golpe, morrendo pouco tempo depois, em 1923. Viúva aos 37 anos, Nair voltou a Petrópolis, onde se recolheu junto com os pais. Em homenagem ao marido, passou a se chamar Nair de Teffé Hermes Rodrigues da Fonseca. Com a morte do barão de Teffé, voltou ao Rio. Usou o dinheiro da herança para comprar um palacete num terreno enorme, no ponto de maior requinte da cidade moderna: a Avenida Atlântica. Nesse terreno, resolveu contruir um prédio com um cinema. Surgiria o famoso Cine Rian, que acabaria vendido ao grupo Luiz Severiano Ribeiro. Nair reclamaria disso pelo resto da vida. Considerava-se lesada, pois queria um apartamento na Rua Paissandu em troca do imóvel, que não lhe foi dado. Mudou-se para Niterói, cidade onde a única caricaturista mulher da história do Brasil envelhecia no anonimato e onde morreria em 1981, aos 95 anos. “Eu a conheci bem velhinha, em Niterói. Ela perambulava pelas ruas de chinelo, a barra do vestido se arrastando pelo chão. Era essa a imagem de Nair de Teffé no fim da vida. Que gravou comigo um comovente depoimento para o Museu da Imagem e do Som em 1968, além de me presentear com sua prórpia autocaricatura”, recorda Ricardo Cravo Albin. Rian nunca perdeu seus traços marcantes: irreverência e espirituosidade. Quando se viu às voltas com a obrigação de entregar a declaração de Imposto de Renda, não hesitou.Caprichou uma caricatura de Delfim Netto – então ministro da Fazenda – no formulário e encaminhou à Receita Federal com um bilhetinho: “Ministro, desculpe-me, mas essa coisa de Imposto de Renda é muito complicada para mim. Vocês deveriam dispensar os adultos com mais de setenta anos”. Escandalosamente singelo, no melhor estilo Rian. a turma do funil tanto riso, ó quanta alegria por nireu cavalcanti Mais um dos indecifráveis enígmas de Momo: diga-me se puderes qual foi a data de fundação do primeiro rancho carnavalesco. Pausa para confetes e serpentinas. Na hipótese provável de não haver uma resposta, adiantamos a resolução da pegadinha. Tanto pode ter sido em 1872 quanto em 1890. Nireu Cavalcanti é quem borrifa o lança-perfume nesse enredo com dois finais. Leia, confira e se esbalde. O Jornal do Brasil publicou no dia 5 de março de 1921 – sob o título “O Rancho é oriundo da Bahia” – um histórico dos ranchos carnavalescos, sem identificação de autoria, dos informantes e das fontes. Provavelmente o autor é Vagalume e a predominância é dos depoimentos de Hilário Jovino. A matéria, rica em informações, servirá de base a parte do texto. Para os festejos dos Reis Magos na Bahia, havia dois folguedos populares que saíam nos dias 5, 6 e 7 de janeiro de cada ano: um mais familiar chamado Terno de Reis, cujo acompanhamento musical se dava com as filarmônicas, e o outro, formado por componentes de diversas origens, chamado Rancho de Reis, com a música a cargo de um naipe formado por flauta, violino e cavaquinho e outros instrumentos não usados em filarmônicas. Além dessa diferença, o rancho tinha no quadro dos brincantes as figuras do mestre-sala e da por ta-bandeira, o que não ocorria no Terno. Quando Hilário chegou ao Rio de Janeiro, já 30 Carioquice encontrou formados dois ranchos: a Estrela Dalva e o Dois de Ouro, tendo este como fundador seu vizinho de casa, Leôncio de Barros. Ambos eram moradores do Beco João Inácio, no Morro da Conceição, área portuária do Centro do Rio. Esses ranchos saíam em janeiro, segundo a tradição da festa católica da epifania. Hilário Jovino Ferreira declarou que saíra do Dois de Ouro e, com Luiz França e outros, fundou o rancho Rei de Ouro, em seis de janeiro de 1894, com sede na casa do primeiro, no Beco João Inácio. A diferença fundamental entre os dois outros ranchos existentes foi que o recém-criado Rei de Ouro saiu no carnaval. Não fica claro na matéria se ele também manteve a tradição de sair em janeiro. O sucesso carnavalesco desse novo rancho incentivou a criação de muitos outros. Em 1895 apareceram o Papagaio, com sede na atual Rua Regente Feijó, em casa de Tia Clara, e os Batuqueiros, na Pedra do Sal (atual Largo João da Baiana). No ano seguinte surgiu mais um rancho, o Rosa Branca, do qual Hilário e Didi se autono- mearam fundadores. O ano de 1898 foi pródigo quanto ao nascimento de ranchos carnavalescos, surgiram oito agremiações: Botão da Rosa (dissidência do Rosa Branca), no Morro do Pinto, em casa de Amélia Zeferina; na Rua Senador Pompeu, a Flor da China, a Flor do Lírio do Amor e a Rosa Adélia, este último na casa da africana Cristina; na Rua General Pedra, a União das Flores, o Flor da Romã, e a Barquinha Sul América sem indicação da rua onde foi criado. No último ano do século XIX, os carnavalescos fundaram doze ranchos. Isso confirma o ano de 1899 como aquele em que os ranchos sobrepujaram os cordões. A chegada A chegada do século XX registraria mais sete novos ranchos, dois criados em 1900 e cinco em 1904. É dessa época o famoso Flor do Abacate, do Catete, que se tornaria referência da folia pelo resto dos tempos out/nov/dez 2006 31 a turma do funil do século XX registraria mais sete novos ranchos, dois criados em 1900 e cinco em 1904. É dessa época o famoso Flor do Abacate, do Catete. Além desses, dois blocos – novo tipo de organização carnavalesca – surgiram em 1899, sem indicação do logradouro. Eram os Nenéns Malcriados e os Mensageiros da Folia. Portanto o autor da matéria registrou a criação de 33 ranchos, evidência de sua aceitação pela população do Rio de Janeiro. A beleza de suas fantasias, a música e a ordem nos desfiles concorriam com as tradicionais organizações classificadas pelos cronistas como as Grandes 32 Carioquice Uma diferença muito grande existe dos ranchos cariocas para os ranchos baianos. Os daqui são mais ricos e agora mais lindos e originais na variedade de harmonia e canto Jornal do Brasil, 1911 Sociedades: Fenianos, Democráticos, Tenentes do Diabo e outras. Em 17 de fevereiro de 1907, num piquenique em Paquetá, um grupo carnavalesco fundou o Ameno Resedá, rancho com sede na Rua Correia Dutra, 131, no Catete, e que se tornaria a “escola” do carnaval. Segundo Jota Efegê, “quando o Ameno Resedá apareceu no carnaval carioca em 1908, com seu cortejo denominado Corte Egpiciana, tornou-se logo atração”. No carnaval de 1911, solicitaram inscrição para desfilarem ou saírem às ruas 125 organizações, cordões, blocos, clubes, ranchos e até firmas comerciais. Nesse ano, o rancho-escola Ameno Resedá desfilou com o enredo “Corte de Belzebu” e foi a estrela da festa. Na terça-feira de carnaval de 1911, o Jornal do Brasil publicaria um artigo sobre ranchos que dizia: “... Os ranchos carnavalescos são essas belas sociedades que, com luxo e esplendor, vão aos grupos substituindo os antigos cordões, que imperceptivelmente estão aderindo á idéia do Sr. Hipólito Jovino, o introdutor deste uso baiano no Rio de Janeiro. O que aqui, na capital da República, vemos agora é comum no estado da Bahia, nas festas de Reis, em janeiro. E como aqui não é permitido o uso de fantasias naquele dia, o Sr. Hilário fé-lo para o carnaval, e sua idéia teve geral aceitação. Uma diferença muito grande existe dos ranchos cariocas para os ranchos baianos. Os daqui são mais ricos e agora mais lindos e originais na variedade de harmonia e canto. Os mestres-salas, ou balizas, obedecem ao mesmo sistema de dançar, procurando apenas cada um apresentar novos passos e desenvolver as manobras. Os mestres-salas mais antigos são discípulos do Sr. Hilário, que tem hoje como seu substituto seu filhinho, o Bilu, que todos conhecem e estimam pelo seu garbo e entusiasmo. O que é verdade, o que já estamos vendo é que daqui a uns cinco anos todos esses cordões estarão transformados em ranchos, dando assim outra feição e maior deslumbramento ao carnaval carioca. A matéria descreve os ranchos que visitaram a sede do Jornal do Brasil e informa que a Sociedade Flor do Abacate havia recebido o honroso convite do presidente do Brasil, Marechal Hermes da Fonseca, para se apresentar no Palácio do Catete. Era a aceitação pública dos ranchos pelo poder máximo da República. o criador A historiografia carnavalesca consagrou a versão de fundação dos ranchos carnavalescos, dada ou construída, por Hilário Jovino Ferreira e seu amigo Francisco Guimarães, o jornalista de alcunha Vagalume, que atuou muitos anos no Jornal do Brasil e no Diário Carioca e, escreveu um interessante clássico, “Na roda de samba”. Segundo matéria publicada no Jornal do Brasil de 18 de janeiro de 1913, foi Hilário o responsável pela introdução do rancho carnavalesco ao criar, em seis de janeiro de 1894, o pioneiro e famoso Rei de Ouro: “Em 1872, quando cheguei da Bahia a 17 de junho, já encontrei um rancho formado. Era o Dois de Ouro, que estava instalado no Beco João Inácio ,17. Ainda me lembro, o finado Leôncio foi quem saiu na burrinha. Vi, e, francamente, não desgostei da brincadeira, que trazia recordação do meu torrão natal; e, como residisse ao lado, isto é, no Beco João Inácio,15, fiz-me sócio e depressa me aborreci com alguns rapazes e resolvi então fundar um rancho. Fundei o Dois de Ouro que deixou de sair no dia apropriado, isto é, a seis de janeiro, porque o povo não estava acostumado com isto. Resolvi então transferir a saída para o carnaval. out/nov/dez 2006 33 a turma do funil Os ranchos tiveram tal aceitação que o presidente Hermes da Fonseca convidou alguns para se apresentarem no Palácio do Catete Daí veio a febre de ranchos e foram aparecendo: o Rosa Branca, que fundei com João Ratão e Amélia Zeferina, e onde estive apenas por um ano, porque resolvi fundar o Botão de Rosa...” Em outra entrevista a Vagalume, publicada no Diário Carioca, em 27 de fevereiro de 1931, Hilário acrescenta dados à de 1913, como a fundação do Rei de Ouro que teria se dado no dia 6 de janeiro de 1893, numa reunião de freqüentadores do botequim do Paraíso – o próprio Hilário autonomeado o autor da idéia, Luiz de França, Avelino Pedro de Alcântara e João Câncio – na Rua Larga de São Joaquim, atual Marechal Floriano. Hilário concluiria declarando-se injustiçado pelos seus companheiros – acontecendo “a luta das criaturas com o “Criador” -, pois pretendiam alijá-lo do comando das sociedades fundadas por ele e não reconhecê-lo como o “Criador”. A leitura atenta dessas duas entrevistas revela contradições. Primeiro, refere-se à data de chegada de Hilário ao Rio como sendo em 1872, o que é incoerente com a fundação do rancho Dois de Ouro, criado na década de 1890. è possível que tenha havido erro de impressão e ele tenha declarado o ano de 1892. Segundo, a inconstância de Hilário, não tendo se fixado em nenhuma das agremiações, e a conclusão de que foi traído por todos podem ser indício de uma pessoa de difícil relacionamento. Ou então estava moldando 34 Carioquice sua versão de “Criador”, e qualquer contestação decorreria do caráter traiçoeiro de seus antigos companheiros. Os dados biográficos sobre Hilário Jovino Ferreira, apresentados pelos diversos autores que o citam, são parcos e contraditórios. Alguns afirmam que ele era baiano e outros, pernambucano, mas que viveu na Bahia e de lá teria vindo para o Rio. São unânimes em datar sua chegada ao Rio em 1872, usando a mesma data que aparece publicada em sua primeira entrevista. Sérgio Cabral no clássico “As escolas de samba: o quê, quem, como, quando e porquê” é mais informativo e assegura que Hilário faleceu na terça-feira, 28 de fevereiro de 1933. Vagalume, em crônica no Jornal do Brasil, afirmava que ele teria morrido em 28 de fevereiro de 1911. Ary Vasconcelos em seu livro “Panorama da música popular brasileira na belle époque”, presenteou os leitores com uma foto de 1911, onde Hilário aparece com um grupo de foliões do Ameno Resedá, num piquenique na Ilha de Paquetá. O livro ainda reproduz uma entrevista de 1961, dada por Donga (Ernesto dos Santos) ao jornal O Globo, descrevendo a fundação do rancho Dois de Ouro e revelando como Hilário Jovem tomou a mulher de Miguel, chamada Tia Amélia Quindende. “Em 1895, na casa de Tia Sadata, na Pedra do Sal, foi fundado o primeiro rancho oficial do Rio de Janeiro. Era o Rei de Ouro, e entre seus fundadores estava um menino de 14 anos, Oscar Luiz de Moraes, sambista de raça, o Caninha. Calejo e Isabel Veludinho, as duas filhas de Tia Sadata, eram suas saiolas principais. As saiolas eram as pastoras daquele tempo. Pouco depois houve uma cisão no rancho. Saíram o tenente Hilário e João Cândido. Nunca ficou muito claro o motivo da cisão mas, quando o Hilário tomou a Tia Amélia Quindende do Seu Miguel, na Rua da Alfândega, todos pensaram que ele já viera da Pedra do Sal com essa intenção (...) Nessa época, seu Miguel estava pensando em organizar o Rosa Branca, que seria o segundo rancho. Desgostoso com a perda de Amélia, entregou todo o material já encomendado a Tia Ciata, que foi organizar o Rosa na Visconde de Itaúna”. A Hilário – que também é titulado pelos autores como tenente da Guarda Nacional – atribuem a autoria dos sambas “Não és tão falado assim” e “Entregue o samba a seus donos”. Por fim, há unanimidade de que foi ele quem trouxe o desfile de ranchos para o carnaval carioca. É curioso que nenhum estudioso da história dos carnavais tenha feito um estudo aprofundado sobre o “criador” dos ranchos. De posse dessas poucas informações e referências sobre Hilário, fui aos arquivos Nacional, do Colégio Brasileiro de Genealogia do Rio de Janeiro, da Cúria Metropolitana em busca de dados sobre o casamento e à Biblioteca Nacional à procura de informações complementares. Consegui apenas três documentos no Arquivo Nacional referente aos anos de 1902, 1921 e 1928. Todos eles aludiam à questão da falta de pagamento de aluguel de cômodos e casas em que Hilário residiu. Pelo primeiro documento de 1902, ficamos sabendo que Hilário morava na Travessa das Partilhas, 16, e que freqüentava ou tinha segunda moradia na Rua Barão de São Félix, 157, cujo aluguel estava devendo há meses. Para cobrar-lhe a dívida, o senhorio mandou seu administrador, Francisco Limeira de Albuquerque em 15 de setembro de 1902, à sua casa. Francisco foi repelido com ameaças por Hilário, que estava armado de revólver “carregado com cinco balas”. Veio em socorro do cobrador Antonio Messias Negrão, soldado do Exército que, ao enfrentar Hilário para desarmá-lo, foi por ele ferido na mão. Hilário foi preso em flagrante delito e enquadrado nos artigos 303 e 307 do Código Penal. No auto da qualificação o réu Hilário Jovino Ferreira declarou em oito de outubro de 1902: ser filho de Joviniano Ferreira; ter 29 anos de idade; ser solteiro; carpinteiro de construção naval; ser brasileiro de naturalidade pernambucana;não saber ler ou escrever; residir na Travessa das Partilhas, 16 (atual rua Costa Ferreira), situada no bairro da Gamboa. Dezenove anos depois, em 1921, Hilário estaria sendo despejado do cômodo cinco da casa situada na Rua Nabuco de Freitas, 85, Santo Cristo. E, em 1928, vamos encontrar, mais uma vez, Hilário respondendo a processo de despejo. Dessa vez estava numa casa de vila, situada na Rua do Catete, 42, casa 5ª. Portanto, fundamentado nesses novos documentos, podemos afirmar que o “Criador” dos ranchos era pernambucano, solteiro em 1902 – evidência de que não se casou com Tia Amélia Quindende, que tomara do carnavalesco Miguel – e que nasceu em 1873, o que evidencia a impossibilidade de sua chegada ao Rio em 1872. Também é pouco provável que Hilário fosse tenente da Guarda Nacional, pois era pobre e envolvido em processos judiciais. Além disso, consultando-se a documentação sobre essa instituição no Arquivo Nacional, verifica-se não constar referência a ele. Diante de tantas lacunas e informações contraditórias, é necessária uma pesquisa mais profunda sobre Hilário Jovino Ferreira, o principal criador dos ranchos cariocas. Nireu Cavalcanti é Arquiteto e Doutor em História out/nov/dez 2006 35 era do rádio 1922: o ano em que roquette nos ensinou a ouvir Só podia ser obra do Cristo Redentor. A primeira antena radiofônica foi instalada no morro do Corcovado. Desde lá, a história de Roquette Pinto se confunde com a trajetória do rádio no Brasil. E até hoje surfamos nas ondas invisíveis de sua obra mais duradoura: a Rádio Mec, que completa sete décadas em 2006. O final do século XIX foi pródigo em grandes descobertas. Foi quando surgiram a lâmpada, o eletroscópio (instrumento destinado a medir cargas eletrostáticas) e um aparelho que revoluRoquette Pinto 36 Carioquice cionaria as comunicações: o rádio. Até hoje não se tem certeza absoluta de quem foi seu criador. No Brasil, não há a menor dúvida na hora de prestar homenagem ao santo padroeiro da rádio: Edgard Roquette Pinto. Quando o carioca Roquette Pinto presenciou, em 1922, a primeira transmissão radiofônica do Brasil – empresários norte-americanos instalaram uma antena no alto do morro do Corcovado para emitir um discurso do então presidente Epitácio Pessoa –, sonhou alto: “Eis uma máquina importante para educar nosso povo”. Naquele exato instante, nascia a fascinação – e também fixação – de um brasileiro pelo rádio. Desde que observou aquele momento mágico – o som viajando pelo ar –, tentou persuadir o governo federal a investir na compra de equipamentos para emitir e receber sinais radiofônicos. Não conseguiu tornar o incentivo ao rádio um programa governamental. Persistente, foi bater à porta da Academia Brasileira de Ciências. Para nossa sorte, os cientistas foram mais sensíveis que os governantes. Compraram a parafernália Beatriz Roquette-Pinto nos estúdios da Rádio Sociedade que permitia transmitir sons em ondas radiofônicas que olhos humanos não podem ver. “Eu vivia angustiado porque já tinha a convicção profunda do valor informativo e cultural do sistema, desde que ouvira as transmissões que foram dirigidas na época pelos engenheiros J. C. Stroebel, J. Jonotskoff e Mario Liberalli. Uma andorinha só não faz verão; por isso resolvi interessar no problema a Academia de Ciências, presidida pelo nosso querido mestre Henrique Morize. E foi assim que nasceu a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a 20 de abril de 1923.”, escreveu Roquette à época. Foi dado, assim, um grande salto para a comunicação brasileira. Com o prefixo SQA-A, entrava no ar, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Aparelhos de rádio não eram objetos tão conhecidos da população brasileira. Nos Estados Unidos, já tinham virado coqueluche. Para ganhar ouvintes, Roquette bolou a seguinte estratégia: a pessoa se cadastrava na emissora e ganhava um equipamento para ouvira programação em casa. Não poupou esforços para que o projeto desse certo. Deixou de lado a medicina e a antropologia. Sua paixão era mesmo o veículo que ele mesmo definiu como “ o jornal de quem não sabe ler, o mestre de quem não pode ir à escola, o divertimento gratuito do pobre”. Dedicou sua vida ao estudo da radiofusão. Quarteto de cordas Rádio MEC Focando o enriquecimento cultural da população, a Rádio Sociedade foi a primeira a irradiar uma ópera completa, “L´Amico Fritz”, no dia 14 de dezembro de 1924. Um ano depois, a Sociedade já transmitia três jornais falados. O ano de 1925 marcou também o início do caminho do rádio ligado à educação. Tiveram início as emissões de aulas de Português, Geografia, História do Brasil, Higiene, Francês, Física e Química . O ano de 1936 foi definitivo para a popularização do rádio no Brasil. Aparelhos passaram a ser vendidos em lojas, ampliando a divulgação e o frisson em torno daquela maravilha tecnológica. E Roquette Pinto doou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). Era o início da história da Rádio MEC. No entanto, uma decisão do então ministro titular da pasta, Gustavo Capanema, irritaria nosso patrono da radiodifusão. Capanema decidiu incorporar a rádio ao sombrio Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), nada menos que o pesado braço da censura exercida pelo governo Vargas à época do Estado Novo. Roquette Pinto exigiu que fosse garantido à emissora sua autonomia e a preservação de seu papel essencialmente educativo. Seus esforços não foram em vão e tanto uma como a outra exigência foram atendidas. No dia que oficializou sua saída out/nov/dez 2006 37 era do rádio da rádio, chorou. Disse, ao entregar sua criação, que sentiu a mesma emoção de um pai que casa sua filha. Mal sabia que, a partir dali, dava asas para novos e mais ousados vôos da rádio. Era o início de uma história que já soma 70 anos, mantendo seus ideários até hoje. “Roquette já pensava o rádio como algo público, voltado para a educação de qualidade. Só que aquela estrutura da Rádio Sociedade não era competitiva para o mercado de então. Hoje a Rádio a MEC não tem mais ligação alguma com o Ministério da Educação, mas mantivemos o nome, em homenagem ao tripé: musica, educação , cultura”, diz Orlando Guilhon, diretor-geral da Rádio MEC. A essência educacional permanece. “Mantivemos uma visão da educação no sentido pleno da palavra. Tanto que um de nossos áureos foi justamente um programa educacional: o famoso Equipe de rádioteatro 38 Carioquice Projeto Minerva, onde transmitíamos em cadeia cursos de primeiro grau, complementados com material impresso. Foi o sucesso dos anos 70. Até hoje não perdemos esse viés educativo, num sentido mais amplo: educação para cidadania. Ainda hoje há uma série de programas voltados para educação. Para exemplificar, atualmente estamos fazendo campanha para estimular a população a visitar museus”, diz Guilhon. A rádio acabou se dividindo em duas: em 1983, foi criada a MEC FM, cuja programação é voltada para música clássica e jazz. Já a MEC AM é dedicada a programas informativos e educacionais e à música popular brasileira. “A Rádio MEC é fundamental pois é o veículo em que a música popular brasileira ganha destaque ímpar”, avalia o pesquisador e jornalista Ricardo Cravo Albin, que empresta seu nome a programas da rádio, totalmente dedicados a sua grande paixão, a música popular brasileira. A cada sábado, sempre às 18h pela MEC-FM, às segundas e aos domingos, sempre às 17horas, pela MEC-AM, o pesquisador apresenta, nestes últimos 35 anos, histórias de grandes compositores e intérpretes da MPB. Hoje a MEC é guardiã de um dos mais importantes acervos do rádio brasileiro, com quase 50 mil fitas de gravações e programas temáticos. Só o patrimônio de vozes reúne falas como as de Getúlio Vargas, Luiz Carlos Prestes, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, John Kennedy, Vinícius de Moraes, Winston Churchill, Baden Powell, Ary Barroso, entre muitos outros. Em seu acervo musical, estão pérolas como os títulos a “Antologia do Choro”, “Quadrante”, “História do Jazz” e “O humor na História da Música”, além de fitas com gravações inéditas de grandes momen- tos das músicas brasileira e internacional. “Na Rádio MEC, a MPB sempre foi exibida nas suas configurações mais nobres. Nas décadas de 30 e 40, lá eram recebidos orgulhosamente gente do porte de Ary Barroso, Pinxinguinha, Custódio Mesquita, entre tantos. Outro momento marcante foi quando Jacob do Bandolim e seu conjunto fizeram temporadas nos estúdios apenas para exibir o lado artístico de suas obras, graças ao trabalho de diretores como Fernando Tude de Souza e José Cândido de Carvalho. Nos anos 50 e 60, além das transmissões ao vivo do Theatro Municipal, o produtor Paulo Santos chegou a transmitir festivais de jazz e de bossa nova, a partir de vários teatros”, recorda Albin. Por essas e muitas outras é que a Rádio MEC acaba de ganhar o Prêmio Estácio de Sá de Comunicação, do Conselho Estadual de Cultura. Sinal de que Roquette Pinto estava certíssimo. Magalhães Graça out/nov/dez 2006 39 pêra, uva, maçã... frutos dadivosos da ribalta por mônica sinelli Já se disse não foi uma vez, nem duas, três, nem quatro: não há gente como a gente, gente de teatro – ensina Caetano Veloso. E com toda a razão. Encantar não é tarefa para qualquer um. Exige-se regência da tessitura de matéria especial, aquela com que os sonhos são feitos. Isso é um trabalho para os “Pêra”, personagens obrigatórios do palco nacional. Dinorah Marzullo 40 Carioquice Manoel Pera “O Crime do Banhado”, dirigido por Francisco Santos nos idos de 1914. Duas décadas mais tarde, ao trabalharem na mesma companhia teatral, Manoel e a também atriz Antônia Mazullo ficaram amigos. Ambos tinham a mesma idade. Antônia, que naquela época já era multimídia – além do teatro, marcava presença no cinema, no rádio e na TV -, era mãe de Dinorah. Aos 20 anos, a filha havia sido também fisgada pelo palco, tendo estreado aos 16, no Teatro Recreio, na carioquíssima Praça Tiradentes. Estamos em meados de 1939 e os três encontravam-se em temporada na cidade de Porto Alegre com a peça “Pensão da Dona Estela”. Antônia reclamava que ela e a filha saíam sempre tarde do teatro e caminhavam sozinhas até o hotel. Tanto homem no grupo e ninguém acompanhava as duas mulheres na calada da noite. Mas rapidamente esses problemas acabaram: o camarada Manoel prontificou-se a desempenhar o novo papel de Sandra Pêra em show das Frenéticas Marília Pêra em “Apareceu a Margarida”, no Teatro Ipanema Corria o ano da graça de 1899. Os irmãos Manoel, com 5 anos de idade, e Abel, com 9, desembarcavam no Brasil vindos de Portugal, diretamente para Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Mas logo migraram para outro Rio - de Janeiro – e começaram a escrever a história de uma das mais tradicionais famílias de artistas do país: a dos Marzullo-Pêra: Manoel, Abel, Dinorah, Marília, Sandra, Ricardo, Esperança, Nina, Amora. E quem mais chegar. Essa tribo abraçou uma missão seriíssima nessa vida: deixar os lugares por onde passa mais felizes. E tem, claro, uma coisa atrás da outra para contar. Rebobinemos a fita até o ponto em que os portugas Manoel e Abel Pêra dão seus primeiros passos em teatro, como carpinteiros. Falta ator aqui, falta ator ali, pronto: viraram atores. E em grande estilo, fizeram o primeiro filme do Brasil, out/nov/dez 2006 41 pêra, uva, maçã... Sandra Pêra, Amora Pêra, Dinorah Marzullo, Nina Morena, Esperança Motta e Marília Pêra: aniversário da matriarca guardião das Marzullo. Um belo dia, Manoel e Antônia conversavam amistosamente no hotel em que se hospedavam. Sem mais nem menos, ele vira-se para Dinorah e lança o inesperado torpedo: “Quer casar comigo? Eu posso ser seu pai, mas estou falando sério, hein?” O galã da companhia era 26 anos mais velho. “Eu dava ´sopa´ para ele, que nem me olhava, lembra Dinorah. Assustada, perguntei para minha mãe: “ Posso?”. Ao que ela respondeu: “ Não sei, você que sabe...” E minha resposta não podia ser outra.”- Ah, então eu quero”. No dia seguinte, ela chegou ao teatro e contou a boa nova para todo mundo. E ele, com as alianças de noivado. O casamento civil aconteceu um mês depois, no...palco! Um pouco antes do espetáculo, o juiz, muito nervoso, porque nunca tinha celebrado matrimônio para público tão grande (o teatro estava lotado), oficializou a união, que duraria 28 anos, até Manoel falecer, em 1967. E que traria ao mundo as herdeiras Marília e Sandra. 42 Carioquice assim nasceu o contra-regra Manoel Pêra teve sua própria companhia teatral, mas trabalhou também na de outros atores, como Procópio Ferreira, Dulcina de Moraes, Madame Morineau e Elza Gomes & André Villon. Eram grandes companhias, que viajavam pelo Brasil, com elenco numeroso e cenários grandiosos. Isso numa época em que ninguém sonhava com os patrocínios milionários de hoje. Havia duas sessões todos os dias da semana, sendo que de quinta a domingo a média era de três. Algo impensável atualmente. A tradicional folga das segundas-feiras, aliás, foi inventada por Odilon Azevedo, marido de Dulcina, por ser o dia em que havia menos público. Com Dinorah e Manoel já casados, Dercy Gonçalves convidou-os para trabalhar em sua companhia. Na época, fazia-se o chamado teatro de repertório: cada semana, um mesmo grupo montava um espetáculo diferente. O casal havia combinado de, no dia em que fosse encenada uma das peças da qual não participaria, aproveitar a folga para desfrutar de momentos de lazer. Mas, que nada! A comediante (e patroa) embargou o doce projeto dos pombinhos, argumentou que não iria trabalhar para eles e tratou logo de arrumar um servicinho para cada um. Manoel cuidaria da eletricidade. Dinorah, com figurino de doméstica, mudaria objetos do cenário na frente do público. Bingo! Dercy acabava de inventar o contra-regra. Quatro anos após o casamento, em 1943, nascia a primeira filha de Manoel e Dinorah. Como vivia para cima e para baixo com os pais, inclusive Brasil afora, a menina foi literalmente criada nas coxias. Numa dessas viagens, a companhia da venerável Madame Henriette Morineau precisou de uma criança para atuar na tragédia grega “Medéia”. E lá se foi quem? Quem? Senhoras e senhores, era 1947 e Marília Pêra subia pela primeira vez num palco, aos 4 anos de idade. Ali começava uma carreira marcada pela mão da disciplina. “Uma vez, lembra ela, durante este espetáculo, eu estava com o braço muito machu- cado e alguém, sem querer, o apertou com força. A dor foi intensa e perdi a fala em cena.” Cortina fechada, a imponente dama francesa fulminou, implacável, para a pequena: “Uma atriz morre, mas cumpre o seu dever.” Para que discutir com madame? A criança já estava brincando em cima daquilo com toda a seriedade do mundo. Como uma força da natureza. Aos 15 anos, Marília persuadiu o velho Pêra a deixá-la dançar em “De Cabral a JK”, de Hora da entrada em cena dos herdeiros e das herdeiras. O primeiro é Ricardo Graça Mello, filho de Marília, hoje com 45 anos. Ele era a voz de “De repente, Califórnia”, hino surfista de autoria de Lulu Santos e Nelson Motta out/nov/dez 2006 43 pêra, uva, maçã... Max Nunes. Nesta revista, começou a namorar o ator Paulo Graça Mello, pai de seu primeiro filho, Ricardo. Três anos depois, em 1972, já separada de Paulo (que faleceu num desastre de automóvel em 1969), integrou, também como bailarina, o elenco do musical “My fair lady”, estrelado por Bibi Ferreira. Daí para a frente, tem sido um turbilhão de serviços prestados à cultura brasileira. Participou da lendária “Roda viva”, de Chico Buarque, em 1968 e, no ano seguinte, ganhou seu primeiro Prêmio Molière com “Fala baixo senão eu grito”, de Leilah Assunção. Em 1973, foi a vez de lotar o Teatro Ipanema com “Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde – e arrebatar o segundo Molière. O terceiro veio dez anos depois com “Brincando em cima daquilo” (Dario Fo e Franca Rame). Até chegar a “Mademoiselle Chanel”, de Maria Adelaide Amaral, que estreou em 2004 e voltou à cena este ano, são incontáveis espetáculos, inclusive como diretora. Sob sua regência, a peça “O Mistério de Irma Vap”, com Ney Latorraca e Marcos Nanini, transformou-se num impressionante fenômeno teatral, permanecendo “O Mistério de Irma Vap”, com Ney Latorraca e Marco nanini, dirigida por Marília Pêra, que acaba de ganhar o Golfinho de Ouro de Artes Cênicas 2006 dez anos em cartaz. Mas, acredite, seis décadas de incansável dedicação ao teatro ainda não foram suficientes para superar os pânicos insondáveis que rondam o momento mágico de subir ao palco. “É cada vez pior. Pouco antes do início do espetáculo, me pergunto: ‘Por que escolhi essa profissão?’ Acho que será sempre assim. Mas esse medo não me neutraliza. Quando a platéia é boa, ele some na hora. Quando não, vou fundo para conquistá-la. Eu quero fazer as pessoas felizes”, assevera Marília. E, sempre que possível, na companhia dos consangüíneos. “Gosto de espetáculos que partem do ninho familiar. Tenho pedigree. Pertenço a uma dinastia do teatro brasileiro”. Indiscutível. Venerada nos palcos, Marília Pêra vem brilhando ao longo do tempo também nas telas nacionais, em mais de 20 filmes como “Bar Esperança”, de Hugo Carvana, “Tieta do Agreste” (Cacá Diegues) e “Central do Brasil” (Walter Salles), além da tocante atuação em “Pixote, a lei do mais fraco”, de Hector Babenco, que lhe valeu o prêmio de Melhor Atriz da Associação dos Críticos Americanos em 1981. A popularidade veio com interpretações marcantes em televisão – onde chegou a estrelar o programa “Viva Marília!” -, como nas novelas “Beto Rockfeller” e “O Cafona” (Bráulio Pedroso), “Bandeira 2” (Dias Gomes), “Uma Rosa com Amor” (Vicente Sesso); e “Supermanoela” (Walter Negrão). Sem falar nos seriados “Brava gente”, “Os Maias” e, mais recentemente, “JK”, em que viveu uma comovente D. Sarah. prazer em conhecer Marília tinha 11 anos quando nasceu sua única irmã, que mais tarde iria fazer o país inteiro dançar com as Frenéticas nos trepidantes anos 70. Uma das primeiras lembranças de Sandra Pêra em relação ao mundo dos artistas é de quando Dinorah a levou para assistir a um filme 44 Carioquice do qual participava. Sandra caiu em prantos, achando que ficaria sozinha na platéia. Aos 5 anos, não entendia como a mãe poderia estar ao mesmo tempo na tela e a seu lado na platéia. Outro motivo de caudalosos rios de lágrimas foi a peça montada por Manoel, Dinorah e Marília, contando a história de um casal que tinha uma filha adolescente. Drama familiar puro. Sandra, na coxia, chorava dramaticamente. “Eu sabia que era teatro, mas não deixava de ser tudo muito confuso. Havia um pai, uma mãe e uma filha em conflito que, por acaso, eram meu pai, minha mãe e minha irmã. Eu sofria muito vendo aquilo toda noite,” ri Sandra. Ela tinha dez anos quando Marília carregou-a para um teste no musical “A Noviça Rebelde”, em meados da década de 60. “Tudo o que eu queria era ser uma daquelas sete crianças. Só que, naquela época, eu já era desse tamanho (obs: ela tem 1,80m). Não havia chance para mim. Eu era uma coisa imensa”. Sua estréia à vera no teatro foi aos 16 anos, em 1970. Toda noite, ela ia assistir à mãe no espetáculo “Aqui, ó!”, no Teatro Poeira, um badalado espaço underground da época, na Praça General Osório, em Ipanema. Sabia, claro, a peça de cor e salteado. Domingo veio em que uma das atrizes simplesmente “mandou o Lima” - jargão do meio artístico para informar que a pessoa não apareceu para trabalhar. Com isso, a primeira sessão do dia precisou ser suspensa. Nesse ínterim, o restante do elenco começou a dar tratos à bola para não ter de cancelar também a segunda. Eis que a bailarina chilena Carmen Ubilla, irmã de Daniel Filho, lança a flecha certeira no coração do destino: Y por que non Sandra? Tchan, tchan, tchan, tchan, oh, suspense dos suspenses. Como se alguém precisasse sondar se criança deseja brinquedo, ela conta: “Nem me perguntaram se eu queria. Roupa, biquíni, sapato, nada cabia em mim, enorme daquele jeito. Fizeram gambiarra no figurino todo. Entrei sem nenhum ensaio. A peça não passou de um retumbante fracasso, mas eu era a pessoa mais feliz do mundo.” Imagine o que ela teria respondido à dispensável consulta... Na seqüência, em 1971, Marília Pêra encenou “A Vida escrachada”, revista de Bráulio Pedroso que se tornaria um estrondoso sucesso no Rio, permanecendo mais de um ano em cartaz. Marília então perguntou à Sandra (sim, desta vez a democracia prevaleceu e ela teve o inalienável direito de pronunciar-se): “Quer fazer teatro?” Após o, novamente, desnecessário inquérito, a irmã mais velha decretou: “Nesse caso, em vez de continuar em coisas que não dão certo, vem trabalhar comigo.” Ato contínuo, Sandra passou a atuar no espetáculo – escondido, pois ainda era “di menor” – ao lado dos hoje consagrados Marco Nanini, Zezé Motta, André Valli, Pedro Paulo Rangel, Otávio Augusto, entre outros. Mas o estouro mesmo veio com as Frenéticas (com Regina Chaves, Lidoka, Edir, Dudu e Leiloca), o furacão que saiu da boate Dancing Days de Nelson Motta, no Rio, para sacudir o Brasil inteiro nos anos 70, na carona da novela homônima da TV Globo. “Nós arrebentamos, porque trazíamos o novo, apesar de, na época, não termos a menor noção disso. Nelson inovou ao introduzir mulheres como garçonetes e nós, que éramos todas de teatro, revolucionamos ainda mais ao sugerir a ele que também cantássemos. O público adorava, era tudo extremamente espontâneo. Fazíamos shows no Brasil inteiro. Nos divertíamos muito. Éramos felizes e sabíamos”, brinca. Sandra tem também passagens pela televisão, onde fez trabalhos em “Mandacaru” (1997), na extinta TV Manchete, “Porto dos Milagres” (2001) e “Desejos de Mulher” (2002), na TV Globo. E é pé quentíssimo. Sua primeira experiên- out/nov/dez 2006 45 pêra, uva, maçã... cia como diretora de teatro, a peça “Acredite, um espírito baixou em mim”, de Ronaldo Ciambroni, que estreou em 1998, está em cartaz até hoje, dessa vez em São Paulo, e aterrissará novamente no Rio ainda este ano. terceiro sinal Hora da entrada em cena dos herdeiros e das herdeiras. O primeiro é Ricardo Graça Mello, filho de Marília, hoje com 45 anos. Ele era a voz de “De repente, Califórnia”, hino surfista de autoria de Lulu Santos e Nelson Motta e carro-chefe da trilha sonora de “Menino do Rio”, do qual também participou como ator. Este filme - de Antônio Calmon sobre a juventude da Zona Sul carioca do começo dos anos 80 - teve sua continuação em “Garota Dourada”, de 1984, em que Ricardo também atuou e interpretou a canção-tema. Atualmente, ele segue na estrada de cantor e ator: integrou o musical estrelado por sua mãe “Marília canta Carmem Miranda”, faz shows pelo Brasil e participa do programa “Zorra Total”, da TV Globo. E vai lançar em breve um CD recheado de composições próprias e regravações de seus hits oitentistas. “Já nasci dentro do teatro. Além de minha mãe, meu pai e meu avô (Augusto Graça Mello) também eram atores. É um orgulho vir de onde venho”, declara o varão entre as meninas. Ricardo lembra que, quando Marília Pêra estava fazendo a peça “A Moreninha”, em São Paulo, ele, então com apenas 6 anos, ia toda noite vê-la e acabou de- Marília Pêra e Marco Nanini em Pippin, de Roger O. Hirson e Stephen Schwartz 46 Carioquice corando o texto inteiro. Resultado: cada vez que um ator precisava ser substituído, era o pirralho quem ensaiava o novo integrante. “Um dia, um dos atores me cobriu com a capa que usava e entrou comigo em cena. Foi a primeira vez que pisei no palco. A platéia achou graça e aplaudiu. Não contente, depois de ter saído para a coxia, eu voltei querendo receber mais aplausos.” Garoto esperto, não negou os seus. Depois de Ricardo, vêm suas irmãs Esperança Motta (31) - atriz e produtora de elenco da TV Globo - e Nina Morena (26) – no elenco de “Páginas da vida”, de Manoel Carlos -, filhas de Marília e de Nelson Motta. E, completando a trupe, sua prima Amora Pêra (25), o doce fruto de Sandra com o compositor Gonzaguinha. As três meninas estrearam no teatro, representando, cantando e dançando, com, respectivamente, 14, 8 e 7 anos, no musical “Elas por ela”. Marília, que interpretava várias cantoras, de Maria Callas a Elis Regina, também dirigia o espetáculo em dobradinha com Sandra (juntamente com André Valli e Beta Leporace). E o diretor musical era Gonzaguinha. Essa família é muito uniiiiiiiiiida... Como mais um episódio a confirmar a regra, em 1994, aos 18 anos, Esperança foi convidada pela mãe para fazer “Ciúme”, peça que inaugurou o Teatro Leblon, hoje Teatro Marília Pêra. Confessa que tremeu nas bases ao ser dirigida por quem ela própria considera “um monstro do teatro”. Nada que a impedisse de repetir a dose sete anos depois, em “O amigo oculto”, de Augusto Boal, no Teatro do Sesi, no Centro do Rio. Já teve passagem na telinha em “Mandacaru” e “Brava gente”, mas é a telona sua verdadeira paixão: quer dirigir cinema. Atuou nos filmes “Central do Brasil” (1998) e “O viajante”, de Paulo Cezar Saraceni (1999) ao lado da mãe e do irmão Ricardo. Já Nina contracenou pela primeira vez com a mãe aos 22 anos, na peça “A filha da...” , de Carlos Eduardo Silva, montada em 2002. No ano seguinte, ela estreou na televisão na minissérie “Um só coração”, da TV Globo. “Viver no universo dos artistas é muito divertido, conta ela. Na verdade, não sei como poderia ser de outra forma, com uma mãe atriz e um pai escritor, compositor e produtor musical. Essa sempre foi a minha realidade. Graças a meus pais, fui apresentada a muitas coisas no teatro, televisão, cinema, festas, o que me deu uma gama de referências para eu escolher as melhores para mim.” No momento, ela está acabando de rodar um longa inspirado no livro “Um romance de geração”, de Sergio Sant’anna, sob a direção de David França Mendes. No fim da escadinha vem Amora Pêra, uma das integrantes do quarteto vocal Chicas. A cantora também exercita bastante sua porção atriz, inclusive na companhia da mãe, como em “Francisco de Assis”, direção de Ciro Barcelos, e “Capitães de areia”, de Victor Hugo. Uma historinha, aliás, que ilustra lindamente a predestinação desse clã tão especial na vida brasileira é a que enquadra Amora em seu primeiro papel de protagonista, como a Dorothy, de “O Mágico de Oz”. Na noite da estréia, no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema, a então iniciante atriz recebeu um vaso de flores de sua avó Dinorah com um cartãozinho que dizia: “Minha filha, essa é a melhor profissão do mundo”. Precisa dizer mais? “É muito difícil para um filho de ator não se apaixonar por esse universo – argumenta Sandra Pêra. Tudo é muito fascinante para a cabeça de uma criança. Nas férias, nossos colegas viajavam por aí. A gente passava as férias nas coxias. No palco não tem dor. Como pode alguém ser feliz fazendo qualquer outra coisa?”, desafia ela. Quem se habilitar a responder, e-mails para [email protected]. out/nov/dez 2006 47 pitaco “circundando a lagoa, arredondando a vida” por affonso romano de sant’anna Então, o que estou lhe dizendo é que neste último domingo a Lagoa Rodrigo de Freitas esteve mais do que nunca linda. Diria, iridescente. Até um chofer de táxi comentou:- “Nunca vi essa Lagoa tão cheia de gente tão bonita”. 48 Carioquice Vou andando na direção da antiga favela da Catacumba. Que nome mais avesso do que estou vendo agora. A alma hoje está ao Sol, livre das catacumbas do noticiário. Cães. Lindos cães peludos ou não com seus peludos donos e donas bem tratadas, todos se confraternizando, se cheirando, estudando achegas sob as árvores. Pedalinhos contra o azul, cisnes kitsches, bicicletas ziguezagueantes, carrocinhas, milho verde, água-de-coco. Os quiosques. Almas e corpos ao sol. Que pena dos paulistas no Ibirapuera. Que pena dos argentinos no Parque do Retiro. Que pena dos americanos no Central Park. Então, considero esta Lagoa no domingo. Ninguém veio aqui hoje conclamado para fazer uma demonstração política neste domingo. Ninguém foi chamado para mais um abraço à Lagoa. Ninguém porta faixa de protestos. E, no entanto, o que estou vendo é um imenso manifesto reafirmando a vida. O nada também é notícia. Porque as notícias violentas, os conflitos, as explosões, tudo isto, são apenas erupções na superfície. O nada é que é tudo. Na verdade, aspiramos ao nada. Há que estar maduro para o nada. O nada é a coisa mais funda. Os distúrbios, sob forma de acontecimentos, são exercícios de sofrimento, rugas na manhã. Como se nesse momento todas as tragédias tivessem sido suspensas, as pessoas confluiram para essas margens. Alguém está sendo assassinado, mas não é aqui. Alguém está sendo violentada, mas não é aqui. É como aquela estorinha que o professor no ginásio contou, e que tantos anos depois, reponta nesta manhã: naquela guerra de 1914-1918, durante o Natal, os chefes das tropas francesas e alemãs decidiram fazer um cessar-fogo para que os soldados celebrassem fraternalmente a data. Os beligerantes chegaram a sair de suas trincheiras e, segundo o professor, alemães e franceses se deram as mãos, cantaram e dançaram. Confraternizaram-se por alguns minutos e daí a pouco pularam prá dentro das trincheiras e começaram, de novo, a se matar. Sempre achei essa estória inacreditável. Desde sempre acho que este domingo não devia terminar jamais. Vou caminhando e pensando na crônica que escreverei para esta quarta-feira. Na cabeça, vários temas, enquanto passam titubiantes bicicletas, cães se enroscam e corpos olímpicos e atléticos desfilam com igual desinibição. Idéias não faltam para crônica. Nunca tive a síndrome da falta de assunto, senão de excesso. out/nov/dez 2006 49 pitaco Assunto não falta, sobretudo os ruins. Todos ligados aos problemas do cotidiano, coisas da vaidade política e da perversa economia. Notícias sugerem desdobramentos, há casos por contar, lembranças de viagem, mas hoje não poderia haver notícia mais tocante que a tranquila felicidade das pessoas em torno desta Lagoa. Coincidentemente, nesses dias, descobri na Internet um jornal só de boas notícias(www.ciaboanoticia. com.br). Dá prá crer? Só trás informação prá cima. Não é nenhum jornal de Poliana, mas é que a alma da gente quer mesmo descansar, pelo menos no sétimo dia da semana, como fez o Criador. Uma vez editei, lá em Minas, um “segundo caderno”, e no dia dos mentirosos, no 1º de abril, ousadamente publicamos só notícias que gostaríamos de ter dado e a realidade não deixou. Você sabem, a realidade, às vezes, atrapalha a gente passear na Lagoa. E aquelas boas notícias que inventávamos iam desde a cura do câncer até imaginar que o Brasil estava emprestando dinheiro aos Estados Unidos ou que um time de futebol de várzea havia ganho o campeonato mundial de clubes. Lá vou contornando a Curva do Calombo. E agora que muitas árvores cresceram, numa versão tropical de “ Grande -Jatte” de Monet, agora que o manguezal deu um acabamento à borda e melhorou a vida dos peixes, agora que as pistas de corrida estão asfaltadas, agora, por favor, salvem as demais lagoas da cidade. Não posso pensar que outras lagoas são estupradas, assassinadas e sequestradas alhures. Que o Alcaide-mor dessa comarca, não permita que transformem aquilo ali perto do Piraquê em mais um aterro. Está lá o sinal de alarme: já diversas bandeirinhas sinalizam que barcos não devem passar por ali, porque o espelho-d’água está rasíssimo. O mato se alastra sobre a terra acumulada. Mais um pouco e algum esperto se apropria de mais uns 300 metros de extensão da Lagoa. Seu Alcaide, manda logo dragar essa parte, urgentemente, antes que nos seqüestrem mais um pedaço de azul.E mande também dragar aquela terra que se ajuntou em volta da estátua do indiozinho pescador, feita pelo Pedro Correio de Araújo, hoje exilado em Ouro Preto. Do jeito que está, aquele indiozinho está dando flechada não na água e nos peixes, mas na esperança da gente. Circundar a Lagoa. Circundar a vida. Arredondar a manhã. Passam corpos falantes: - “Não sei o que ele viu nela”. Passa outro: - “Nunca mais terei outro amante com o mesmo nome do meu marido”. E passa outro: - “Isto tudo depende de como você faz o download”. Há um fascinío no corpo humano. Fico a olhá-lo de soslaio. O das adolescentes com a barriguinha e bundinha no lugar, sob o short leve ou a malha colada à perna. Há-os já ajuntando gordurinhas na cintura. Há-os sarados e há-os desdobrando barrocas volutas. Ah, se plantassem cerejeiras sob as quais me pus sonhando nesses dias, aquelas que estão florindo roseamente lá nas montanhas enxameadas de vorazes beija-flores, que também só querem o mel das notícias. Ah, se os jardineiros dessa cidade gostassem mais de flores que de folhas. E circundando a Lagoa, circundando a vida, arredondando a crônica e a manhã, dentro de mim ressoa aquela canção na qual a Elizeth- a Divina, ia dizendo: “Luminosa manhã, pra que tanto azul? Luminosa manhã, tanto azul é demais pro meu coração”. Affonso Romano de Sant’Anna é poeta e cronista 50 Carioquice deslumbramento r evelações do rio Um Rio como nunca se viu. É o que se revela pela lente apaixonada do fotógrafo Helmut Batista, em “Rio de Janeiro 360º”. A luxuosa publicação traz um mergulho profundo nessa urbe de sonho. São imagens captadas por equipamento especial, que permite uma abrangência panorâmica dos espaços focalizados. O texto, assinado por Eliezer Batista, transveste-se de um inequívoco poema de amor à cidade. Aqui, apresentamos alguns trechos dessa magnetizante viagem. 5252Carioquice texto eliezer batista “Nietzsche costumava dizer que a grande vantagem de se ter uma péssima memória é apreciar as coisas boas da vida como se fosse sempre a primeira vez. Jamais sofri de amnésia – ou, pelo menos, não me lembro –, mas o Rio de Janeiro me causa exatamente a sensação de um eterno vernissage. Desde aquele verão no início da década de 1940, quando cheguei de Minas Gerais e fui me batizar com o “verde que te quero verde” da Floresta da Tijuca, tenho a impressão de que estou vendo sempre à cidade pela primeira vez. O Rio tem o dom de se revelar em cada novo ângulo. ensaio fotográfico de helmut batista Basta um dia diferente, uma luminosidade distinta e, pronto, uma cidade jamais vista se descortina, com suas cores, suas formas e sua gente peculiares. Cada visão do Rio é uma epifania. Esta é uma cidade que transcende o olhar humano, limitado e incapaz de capturar suas infinitas minudências. O Rio foi feito para ser visto e revisto em 360 graus. Ao longo do tempo, cronistas, poetas e compositores de todos os ritmos ajudaram a construir a imagem quase universal do Rio de Janeiro: a da cidade praiana, bronzeada e malemolente, que parece ter feito um pacto com o sol e com o out/nov/dez 2006 53 deslumbramento tempo, como se todos os dias fossem domingo e todos os domingos fossem de verão. Longe de minha intenção querer subverter a ordem natural das coisas e reinventar o Rio de Janeiro sob uma ótica absolutamente individual e pretensiosa. Ao Rio o que é do Rio. Porém, enxergar na cidade apenas e exclusivamente um balneário tropical é como dizer que a beleza da Capela Sistina se deve somente à sua nave principal. A suntuosidade de uma catedral está na parte e no todo. Além de tudo que já foi dito e escrito, a beleza do Rio não está só na luz, no clima, no ar, nas rochosas curvas que serpenteiam sobre o mar, na Baía de Guanabara – espelho que faria Narciso morrer nos braços de Iemanjá –, mas também na maternal capacidade de acolher rostos, línguas e etnias de todos os cantos, no transbordante, embora 54 Carioquice Enxergar na cidade apenas e exclusivamente um balneário tropical é como dizer que a beleza da Capela Sistina se deve somente à sua nave principal Praia o Flamengo não necessariamente bem aproveitado, potencial para gerar riquezas e desenvolvimento social. O Rio é a mais perfeita assemblage entre o óbvio e o unconventional. Deus criou o mundo em seis dias; reservou o sétimo para decorar o Rio de Janeiro. A geomorfologia da cidade não tem paralelo em nenhuma outra parte do mundo. Em alguns países, existem, sim, regiões caracterizadas pelo encontro entre o mar e a montanha, mas nada que se compare à perfeita harmonia que estes dois elementos alcançaram no Rio de Janeiro. A Avenida Niemeyer, em São Conrado, é um caminho para os céus. O relevo de pontões mais parece uma escultura bordada no horizonte, com picos em forma de monumento. Não são puramente montanhas maciças e mal-acabadas, mas sim o estado da arte aplicado à natureza. Os picos da Região Serrana – o mais famoso deles, o Dedo de Deus – são exemplares deste design sui generis. Este relevo conferiu uma configuração distinta a toda à região litorânea do Rio de Janeiro. Além dos costões, há uma infinidade de ilhas, que ajudam a formar uma aquarela única. A costa fluminense é tão ou mais bonita do que os mares do sul, notadamente o trecho que vai de Angra dos Reis até a Região dos Lagos. O que realmente caracteriza o Rio de Janeiro é o conceito superlativo da harmonia: o encaixe dos fatores elevado à perfeição. No âmbito da riqueza ambiental, ele apresenta uma das mais raras e perfeitas simbioses entre o sopro do Criador e a mão da criatura: a Floresta da Tijuca, o primeiro projeto de reflorestamento urbano em grande escala feito em todo o mundo. Trata-se de uma obra absolutamente primorosa, pelos mais diversos out/nov/dez 2006 55 deslumbramento aspectos. Nasceu de um flash de genialidade do imperador Dom Pedro II, que no fim do século XIX, quando a palavra ecologia nem era usada, decidiu eliminar centenas de hectares de plantações de café para criar a maior reserva florestal jamais dantes pensada no planeta. Além de sua beleza, a Floresta da Tijuca exerce enorme influência sobre as condições ambientais da cidade. Sem ela, o Rio poderia ter sofrido um acelerado processo de desertificação, com o desaparecimento de boa parte dos seus recursos hídricos. Os pulmões cariocas devem muito à Floresta da Tijuca, incessante fonte de renovação do ar da cidade, e, conseqüentemente, fator de amenização do clima. A floresta também contribui decisivamente para o enriquecimento da flora de toda a região. E faz muito bem aos olhos e à cenografia do Rio. Quebra a luminosidade, dá uma nova tonalidade às formações rochosas e realça outras atrações. O Cristo Redentor, por exemplo, não teria a mesma beleza se não estivesse fincado sobre esse verde pedestal. Sob este altar de montanhas brilham córregos, rios, lagos, águas que, por sinal, deram o nome ao Rio de Janeiro. Aos pés do Cristo, temos a Lagoa Rodrigo de Freitas, um oásis reverenciado até mesmo pelo concreto que o cerca. Mas é outro espelho d’água que os olhos do Redentor 56 Carioquice não cansam de enxergar. A Baía de Guanabara e sua enseada de curvas perfeitas constituem a mais bela das visões urbanas. Uma cidade que se ergue sobre esta plenitude de paisagem jamais será uma cidade qualquer. É a mais bela cidade do mundo. Acrescentar algo mais é até covardia. Afinal, como dizia Schopenhauer, “a beleza é uma carta aberta de recomendação”. Carioca, Patrimônio da humanidade Da cidade que abraça pessoas dos mais distintos rincões brotou um povo sem paralelo em qualquer outro meridiano. O carioca deveria ser tombado como patrimoine mondial. A capacidade do Rio de Janeiro de ser um receptor universal de raças e culturas foi determinante não só para a intensa miscigenação étnica como também para a definição da identidade, do caráter, dos costumes, enfim, do modus operandi de seus habitantes. Mais do que qualquer outro povo do mundo, o carioca é a cidade em que vive. Essa diversidade étnica e cultural tornou o Rio uma cidade não-cosmopolita, mas sim cosmotrópica, no mais grego e original dos sentidos. Kosmos significa mundo. Cosmotrópico é tudo aquilo que puxa na direção do mundo e – por que não? – puxa o mundo em sua direção. Essa heterose permitiu uma interessante harmonização entre o povo do Rio e relevo, clima, vegetação e arquitetura locais. Parece que um foi feito por osmose do outro. Ou melhor, talvez não sejam elementos dissociados, mas apenas delicados fragmentos de um mosaico de inigualável beleza. Vejamos o carioca. Que outro povo encarna de maneira tão definitiva a cidade em que nasceu? Que outro povo combina de modo tão irretocável com a luminosidade, a topografia, a meteorologia, o céu e o calçadão de sua cidade? E no quesito personificação de uma cidade, se o carioca é insuperável, a carioca é celestial. Com todo o respeito, a mulher carioca foi feita da mesma grafite que riscou a insinuante silhueta do relevo da cidade. Quem olha para as curvas de uma enxerga a sinuosa perfeição da outra. Além disso, assim como o Rio, a carioca prima também pela sua aparência peculiar. Admirá-la é fácil, difícil é defini-la: loira, morena, negra? A carioca é singular justamente pelo fato de ser tão plural. Talvez ela só exista no nosso sonho. E nossa sorte seja estarmos sonhando o tempo todo. A explicação para a grande apoteose feminina do Rio de Janeiro está exatamente na miscigenação da população. Esta biodiversidade étnica influenciou diretamente a cultura do Rio de Janeiro, sobretudo a sua musicalidade. O Rio de Janeiro é também a cidade das violas e cavaquinhos, oriundas da guitarra portuguesa. Toda essa família de cordas vem do Mediterrâneo e do Oriente Médio. São diferentes, por exemplo, da guitarra havaiana, de som muito mais alongado, e dos bandolins, descendentes do bandolino italiano. A antiga civilização persa já era uma precursora dos instrumentos de corda. Portugal, influenciado pela cultura árabe, incorporou o costume. O fado não existiria sem a guitarra, assim como a música russa sem a balalaica. O Rio fundiu todas essas tendências e extravasou todos É a mais bela cidade do mundo. Acrescentar algo mais é até covardia. Afinal, como dizia Schopenhauer, “a beleza é uma carta aberta de recomendação” out/nov/dez 2006 57 deslumbramento Da cidade que abraça pessoas dos mais distintos rincões brotou um povo sem paralelo em qualquer outro meridiano. O carioca deveria ser tombado como patrimoine mondial os sentimentos que vulcanizaram a partir dessa combinação ímpar, criando uma música igualmente sem par: o chorinho, que tem a característica de ser um choro alegre; uma maviosa celebração entre cordas, timbres e uma feijoada cultural e étnica. E haja pernas para se dançar, requebrar, saltar ao som de tantos ritmos. as vocações e talentos naturais Em vários pontos da cidade ainda se mantêm construções com traços portugueses e franceses. Um dos mais valiosos patrimônios arquitetônicos do país é o cinturão de prédios erguidos no perímetro da Cinelândia, no centro do Rio, todos da virada do século XIX. Quem vê de frente a Câmara dos Vereadores tem a seu lado direito o imponente Teatro Municipal e atrás de si a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes. Em comparação com outras metrópoles do país e do mundo, o Rio é uma cidade verde. Florença, por exemplo, com toda a sua história, é uma floresta de monumentos, todos magistrais, é 58 Carioquice verdade, mas não passam de poesia inanimada. A magnífica Firenze é deslumbrante, mas, Deus que me perdoe a heresia, é também um grande cemitério de enorme valor artístico. Sua paisagem é feita de mármore, granito e pedra e não de verde, o que a torna uma cidade incompleta. A beleza morta deve ser combinada à beleza viva para que tenha significação humana. Neste sentido, o Rio é privilegiado. No meio do concreto há enclaves de esmeralda como o Campo de Santana, no Centro, o Jardim Botânico e o Parque Laje, ou a Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, além de uma série de parques e praças. Há locais com natural inspiração para o misticismo, como Israel. Outros, para História, como Roma. Pois o Rio de Janeiro exala cultura. E não estou falando de erudição, da cultura clássica, mas de raiz, ligada ao berço de todos os povos e movimentos artísticos. Felizes aqueles que caminham pelas ruas da cidade. Nos estreitos becos do centro antigo, podemos encontrar Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio; nos bares da vida, esbarramos em Noel Rosa e Cartola; nas esquinas de Ipanema, vemos Vinícius de Moraes e Tom Jobim esperando a próxima garota passar a caminho do mar. Os mais importantes e autênticos ritmos musicais brasileiros, o samba e a bossa nova, nasceram sob o sol carioca. De seus calçadões surgiram também movimentos culturais ousados e revolucionários, como o Cinema Novo e a tropicália. A luz, o mar e o verde do Rio são as melhores musas inspiradoras que um artista pode ter. O Rio de Janeiro, portanto, reúne todas as claves, rimas, prosas e traços para se tornar um dos maiores centros culturais da América Latina. As virtudes do Rio de Janeiro são o comprovante da residência divina. Poucas regiões do mundo foram tão abençoadas. Deus teceu a linda tapeçaria verde que escorre pelos costões; com a ponta dos dedos, delineou suavemente a enseada da Guanabara e todo o relevo litorâneo; borrifou cada nascente d’água da Floresta da Tijuca; foi absolutamente divinal ao esculpir a beleza do povo carioca, múltipla e, ao mesmo tempo, ab- solutamente ímpar e, por fim, ainda entregou ao filho a missão de olhar por todos nós lá do alto do Corcovado. O Rio é o céu no asfalto. A auto-estima do carioca já vem do ventre; concebida e alimentada pelo esplendor da cidade. O carioca gosta do Rio porque, antes de tudo, o Rio gosta dele. Assim como gosta também de todos os o Flamengo forasteiros que, depoisPraia de apenas um pôr-do-sol no Arpoador, já se sentem cidadãos locais desde criancinhas. O Rio é eterno. Assim como é eterna sua capacidade de se instaurar na memória das pessoas. Mais de 50 anos depois, ainda tenho a sensação de que, a cada dia, estou inaugurando uma nova floresta ou mirando pela primeira vez a Baía da Guanabara. E talvez seja isso mesmo. O Rio de Janeiro é a cidade das mil poses, de todos os ângulos. Quem dera poder enxergá-la íntegra, plena, na sua totalidade como um georama. Mas isto não é motivo de lamento. Por sorte, podemos ver a cidade por inteiro nesta galeria de imagens em 360 graus. Viva o artista que nos permite enxergar todas as revelações do Rio! out/nov/dez 2006 59 ton soleil, ta braise a benção, santa genoveva por julia santhiago Quem passar pelo portão em arco da Rua Fonseca Teles, 446, em São Cristóvão, verá uma das mais bem guardadas surpresas desta Cidade Maravilhosa. Paris é aqui, e você não sabia. É como se o minibairro de Santa Genoveva estivesse levitando no limbo. Emociona ver o conjunto arquitetônico ajustado à topografia do Morro do Breves, que desemboca em delicada igreja, uma réplica em escala menor da Sacre Coeur de Montmartre. Para os iniciados, é como estar no quartier dos artistas da Cidade Luz. A iniciativa de construção foi do nobre português, José Eurico Pereira de Moraes, o Visconde de Moraes, que era devoto da santa padroeira de Paris. Proprietário de hotéis na Lapa, em 1917 construiu a vila para os seus funcionários, à imagem e semelhança do bairro parisiense, com paralelepípedos importados de Portugal e uma vista maravilhosa para quem chega ao alto. A construção da igreja pelo visconde, deveuse ao pagamento de uma promessa feita à santa pela recuperação da saúde de sua esposa. As semelhanças entre o bairro carioca e o primo francês não param por aí: suas ruas têm nomes relacionados às origens de Paris e à vida da santa Genoveva. Lutércia, por exemplo, é o nome primitivo de Paris, e Nanterre é o nome da cidade francesa onde nasceu a santa. Para manter a tranqüilidade e a segurança, 60 Carioquice hoje o bairro conta com uma guarita, A síndica, Vera Lúcia Mandarino, moradora há mais de 40 anos, aponta a tranqüilidade como a maior vantagem de viver lá. Mas nem sempre pensou assim: “Na época de adolescente eu não gostava de morar aqui porque era longe do cinema e dos amigos.” Vera não é a única que pensa assim, a tranqüilidade e a segurança do Bairro de Santa Genoveva são prezadas por todos os moradores: “eles não gostam de muita divulgação, preferem que o bairro continue no anonimato, por medo de perder toda essa tranqüilidade”, diz Vera. A síndica conta também que quando o bairro serviu de locação para diversas produções da Globo muitos moradores não gostaram. “Antes da construção do Projac, a emissora recorria muitas vezes ao local para suas filmagens. Aqui out/nov/dez 2006 61 ton soleil, ta braise foram gravados, “O Dono do Mundo”, “Brega e Chique”, “Engraçadinha” e alguns episódios de “Você Decide” Se por um lado o bairro ganhou visibilidade e desagradou a muitos, por outro, fomos beneficiados com as melhorias, como a reforma do portão de entrada, promovidos pela rede de televisão”, conta. O bairro francês que inspirou o Visconde é durante o dia, ponto de encontro de artistas de rua. A Place du Tertre é onde todos se reúnem para vender suas obras. Durante a noite, os bares e casas noturnas são conhecidos da boemia parisiense: é na região de Montmartre que está o famoso cabaré Moulin Rouge. Nesses dois aspectos o primo carioca é mais recatado. Movimento 62 Carioquice Os moradores do bairro mantêm até hoje vivas as tradições francesas. No dia 3 de janeiro, dia de Santa Genoveva, é feita uma comemoração e rezada na capela uma missa em nome da santa padroeira de Paris mesmo, só na festa da santa padroeira, dia 3 de janeiro, quando seguindo a tradição francesa, comemoram com festa e missa e na procissão do Domingo de Ramos, que sai às 6h da manhã, com crianças vestidas de anjo e até um burrinho puxado por uma delas. Como em Montmartre, onde se pode avistar quase toda a cidade de Paris, em Santa Genoveva, também podemos ver o Cristo Redentor, o Maracanã, a Tijuca, o túnel Rebouças e o Centro da cidade. Mais um paralelo que se pode traçar entre os dois bairros projetados sobre uma colina. Fundada em 1917, as semelhanças do Bairro de Santa Genoveva com Montmartre podem ser explicadas pelo costume da época: “A moda era importar o que vinha da Europa, principalmente da França, e essa foi a estrutura de urbanização adotada no Brasil desde os tempos da colônia. Um outro exemplo de influência francesa nos trópicos é o Theatro Municipal, inspirado no Opera francês.”, diz o ex-morador do bairro, Jorge Augusto. No início do século XX ainda vivia-se no Brasil, sob a influência cultural francesa. Naquele tempo, o estilo europeu era moda, e trazer os ares de Paris para o Rio era consenso de que assim o a cidade se transformaria numa capital moderna. De 1903 a 1906 as reformas de Pereira Passos reconstruíram a cidade, nitidamente inspirada em Paris e em seus recentes planos de urbanização, a cargo do arquiteto Haussmann. A intenção era fazer do Rio de Janeiro a Paris dos trópicos. Os moradores do bairro mantêm até hoje vivas as tradições francesas. No dia 3 de janeiro, dia de Santa Genoveva, é feita uma comemoração no bairro e é rezada na capela, uma missa em nome da santa padroeira de Paris. out/nov/dez 2006 63 é pau, é pedra... oréguarioequecompasso sublima por paulo casé “Temos o direito de comparar a cidade com uma sinfonia ou com um poema; são objetos da mesma natureza. A cidade pode ser ainda mais preciosa. Ela se situa na confluência do natural com o artifical. Nela se desenvolve a forma mais complexa e mais refinada de civilização” A beleza do cenário da aldeia carioca se revela no intenso contraste entre seu extraordinário meio natural, que exibe arredondadas montanhas graníticas de tom escuro, densas florestas de verde fechado, oceanos e lagoas com água de azul marinho e bordas curvilíneas, em contraposição com as agudas arestas dos objetos arquitetônicos cujos volumes alvos reluzem claridade face a um sol brilhante quase sempre presente. Este fenômeno ótico faz o Rio ser reconhecido como a cidade maravilhosa. Analisando o quadro onde se desenrola esta inteiração simultânea de forma, luz e cor, verificase uma inequívoca supremacia das manifestações naturais sobre a obra construída pelo o homem que aqui a ergueu com pouco apuro. Este desequilíbrio comprova que os aclamados atributos estéticos da cidade do Rio independem de sua arquitetura, fato que lhe confere uma situação de desigualdade entre muitíssimas outras. Por exemplo, Paris, Veneza, Praga, Estocolmo 64 Carioquice * Claude Lévi-Strauss provocam admiração devido à qualidade do conjunto de sua arquitetura. Nelas a natureza entra na composição urbana como coisa subalterna. A forte presença dos elementos paisagísticos que dominam a leitura na cena carioca contribuiu para que os valores estético-culturais de nossa Arquitetura deixassem de ser exigidos pela imprensa e a opinião pública, impondo-a um papel irrelevante. Como resultado a missão oferecida para maioria dos arquitetos, quando muito, é aquele que o reduz a um obediente intérprete de interesses imediatistas, e por suscitar suspeitas de comprometimento o envolve numa aura de desconfiança. Esta função assim amesquinhada decorre, sobretudo pelo despreparo de grande parte dos responsáveis pela construção da cidade, cujos propósitos interesseiros e sua despreocupação com a qualidade dos cenários arquitetônicos, impõem um “vale-tudo”, instituindo um mercado quase exclusivo. Edifício Biarritz out/nov/dez 2006 65 66 Carioquice Gustavo Capanema Itamaraty A participação dos grupos de interesse é o que restringe uma atuação competente como a que já nos legou magníficos exemplos como o Centro Histórico do Rio, os edifícios da orla do Flamengo e na Praça do Lido, Paraty e Ouro Preto, entre outros. Seria, então, o lucro o grande vilão? Tomemos como parâmetro a Ilha de Manhattan, em Nova York, cidade-sede do capitalismo internacional, que tem como paradigma a busca do lucro como valor fundamental. Observa-se, de imediato, a qualidade dos objetos arquitetônicos que são o resultado da direta e plena participação dos arquitetos. Munidos de todo o seu instrumental técnico, eles atuam desenvolvendo permanente pesquisa, visando a novos processos e novos conceitos. Mesmo buscando procedimentos no encalço de uma economia maior e de um avanço tecnológico, nunca perdem de vista seu inalienável compromisso com os cidadãos e com a cidade. Este padrão de conduta profissional é que permite ao arquiteto assumir o papel de agente cultural/social. Ao contrário do que ocorre aqui, o trabalho deste profissional é extremamente respeitado e sua importância percorre todos os canais da cidade. Como sugestão para reflexão imagine-se a Ilha de Manhattam com edifícios iguais aos da Barra. out/nov/dez 2006 67 é pau, é pedra... Por outro lado o código edilício de nossa cidade é regulado por uma legislação que pretende determinar, com excessivo detalhamento, todos os aspectos do projeto, preceito que pretender coibir a ação dos predadores urbanos, mas acaba constrangendo a criação de uma obra de qualidade sem amarras. Com uma legislação cristalizada no tempo é impossível acompanhar o processo contínuo de transformação do pensamento e da técnica que se constitui a marca/sinal dos tempos hodiernos. Desde a mais remota época a arquitetura de uma cidade foi um museu aberto e expressão materializada de uma sociedade. A atuação do arquiteto carioca tem sido tolhida por circunstâncias adversas. A coação exercida, sobre ele, vai a ponto que a autoria de seus trabalhos é ocultada dando lugar a mensagens de aclamação merecida a decoradores, chefes de cozinha, paisagistas. Esta dissimulação seria um ato falho? A prática, sem dúvida, levará a inexoráveis conseqüências para a fisionomia dos espaços urbanos que é lugar da convivência das pessoas, as quais, pela ausência de parâmetros estéticos, que é um valor educacional assimilável em sucessivas etapas, estarão tornando-as insensíveis e desinteressadas por significados culturais superiores. Será este o destino da sociedade carioca deseja? Dentro desta incongruência é motivo de satisfação apontar alguns exemplos pontuais onde se observam corretos empreendimentos que resultam em belas e importantes edificações. A pedido da Revista Carioquice selecionei algumas edificações, entre várias, merecedoras de destaque. Paulo Casé é arquiteto Museu de Arte Moderna (MAM) 68 Carioquice Mosteiro São Bento out/nov/dez 2006 69 asa branca enfim, o sertão virou mar Carne-de-sol, queijo de coalho, feijão de corda, macaxeira, boas pingas, rapadura (agora chamada de doce de cana), garrafada, cordel, chapéu de couro, carrancas, tudo isso embalado no chamego do forró que se dança agarradinho, no bate-coxas, ou na umbigada que beira ao despudor. Onde ver ouvir, sentir e provar tudo isso? No Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, popularmente conhecido como Feira de São Cristóvão. Essa feira das saudades da terra árida é um enclave do Nordeste no outrora aristocrático bairro carioca de São Cristóvão. Mais um exemplo de que a cidade a todos acolhe e abraça, do nobre ao plebeu de qualquer paragem. Um dos espaços mais democráticos do Rio tem alma nordestina e sotaque arretado. Pudera. É na Feira de São Cristóvão que cerca de 450 mil pessoas se espalham mensalmente por mais de 700 barracas distribuídas por ruas batizadas de Rio Grande do Norte e Bahia. Engana-se – e muito – quem ainda pensa que ali está um 70 Carioquice reduto de nordestinos. Celebra-se sim a cultura nordestina, mas as atrações conseguem agradam gregos, baianos, potiguares e também cariocas. Logo, o forrozeiro de primeira viagem não deve se espantar ao ver jovens da classe média carioca entre os 800 casais que chacoalham pelos palcos batizados com os emblemáticos nomes de João do Vale e Jackson do Pandeiro. È gente como o estudante de Direito Renato Dias. “A feira mistura o especial ao inusitado. Acho bacana ver casais de idosos dançando agarradinhos ao lado da garotada, a confraternização entre nordestinos e cariocas”, conta. Renato representa um fenômeno iniciado há três anos, quando a galera da Zona Sul invadiu a praia dos nordestino, engrossando o coro do forró. Daí a explica-se o fato do forró, ter passado a figurar entre as atrações principais das noites cariocas, freqüentadas basicamente por jovens da classe média que buscam conhecer a autêntica cultura nacional. Nesse cenário, há tanto os grupos que tocam o forró de raiz (executado apenas com sanfona, zabumba e triângulo), como os que fazem o “oxente music”, com sintetizadores, teclados e bateria. Alguns consideram que esses últimos seriam um forró menos autêntico. E eis que surge a Feira de São Cristóvão como um oásis de nordestinidade em solo carioca, um espaço privilegiado da verdadeira cultura nordestina. Muito além do forró, embrenhar-se pelas vielas principais do Centro de Tradições e também pelos seus cantos e recantos dá a oportunidade out/nov/dez 2006 71 asa branca A variedade de produtos é imensa. E pode-se até encontrar artesanato em madeira que reproduz ícones da cultura carioca de conhecer itens e histórias os mais variados. Do artesanato em madeira que reproduz ícones da cultura carioca, ao Guaraná Jesus – um incomum refrigerante rosa que faz grande sucesso no Nordeste. É o local certo para se informar das novidades nordestinas – como que a nossa brasileiríssima rapadura agora é coisa de alemão, que patentearam o nome há alguns anos. A nós, brasileiros, só resta chamá-la de doce de cana, incorrendo no risco de quem usar seu nome original terá que pagar royalties àquele país, que ao que sabe jamais teve plantação de cana! Conversa vai, conversa vem, chega-se à Praça dos Repentistas. É lá que os repentes improvisados se misturam ao som das lojas de CDs e se entremeiam com os grandes sucessos música popular nordestina: dos cantores Lairton e Deó aos mais conhecidos por aqui: Reginaldo Rossi, Fagner e Luiz Gonzaga. Entre os mais vendidos, os sugestivos Calcinha Preta e Arriba Saia, ao lado das bandas Calypso e Aviões do Forró. Tanto bate-coxa e estripulia dá uma baita fome. 72 Carioquice Para os amantes da culinária, difícil é se decidir diante de tanta fartura. Há todo todo tipo de grãos, carnes, queijos e muito mais. Difícil é se conter diante de tanta fartura: quilos e mais quilos de queijo coalho feito brasa, carne de sol, feijão-de-corda e maxixe. Ingredientes que se casam perfeitamente com azeite-de-dendê e manteiga de garrafa para o deleite dos comensais. Dentre as diversas opções de restaurantes, destaca-se no Pavilhão uma grande estrutura de metal coberta de vidros. É o “Estação Baião de Dois”, uma referência da nova Feira de São Cristóvão e o preferido dos cariocas. Seus atrativos vão além do providencial ar-condicionado e da decoração, que mistura um imenso cajueiro artificial, obras de Mestre Vitalino e objetos característicos de cangaceiros. Divinos mesmos são os bem preparados e copiosos pratos. E no Estação, eles só faltam transbordar do cardápio. Numa diversidade do tamanho do Nordeste, o restaurante oferece sarapatel, arrumadinho, vaca atolada, acarajé, carne-seca, carneiro, bolinhos de aipim com carne-seca, casquinha de siri. Um dos pratos mais pedidos é a carne de sol à moda da casa, servida com aipim frito, abóbora, cebola à dorê e feijão tropeiro. Na seqüência, é hora das guloseimas que enchem olhos e bocas: doce de batata-doce, de jaca e de caju, mamão com coco e abóbora cristalizada. A orgia gastronômica é arrematada com variados licores nordestinos. È um festival de sabores para os mais distintos paladares. Os cabras machos que por ventura achem que um licorzinho é coisa muito leve podem se esbaldar com um verdadeira farra da cachaça, batizadas de nomes que sugerem poderes afrodisíacos: “Nas Coxinhas”, “Na Bundinha” e por aí vai. É beber e deixar por conta da imaginação. Hoje a Feira - nascida informalmente em 1945, graças a um grupo de nordestinos saudosos da terrinha que se reuniam no Campo de São Cristóvão para o mata-fome – consegue dar nó em pingo d´água e rimar modernidade out/nov/dez 2006 73 asa branca Na Feira pode-se encontrar até o Guaraná Jesus, um incomum refrigerante cor de rosa que faz grande sucesso no Nordeste com tradição. Saíram de cena a velha desordem das barracas; no lugar, boxes bem arrumados. A versão muderna da Feira ganhou também em infra-estrutura: banheiros, bancos, lojas. Mas a 74 Carioquice animação permanece a mesma! Por isso que, a cada fim de semana, os adeptos só fazem aumentar. Quem tá fora quer entrar, mas quem tá dentro não sai! Um Campo com muita história São Cristóvão é um bairro com alma imperial e ainda hoje se pode perceber suas características de um passado glorioso, com suas vastas avenidas e casarões como as do Barão de Mauá ou da Marquesa de Santos. Além, é claro, do palácio circundado por um imenso gramado. Mas se de um lado guarda o estilo aristocrático, de outro, mostra o seu contraste com a mais emblemática representação plebéia: a Feira de São Cristóvão. Mas não é de hoje que aquele espaço estaria destinado a abrigar uma forte manifestação popular. Em 1806, no governo do Conde de Arcos foi criada uma feira que ficava no Campo de São Cristóvão e pelos relatos da época era muito concorrida. Quando em 1808 a Família Real ocupou a Quinta da Boa Vista, a feira foi extinta para dar lugar aos exercícios militares do batalhão de guarda. Em 1886 o local passaria a se chamar Praça Dom Pedro I e, com a proclamação da República, passou a ser a Praça Marechal Deodoro. Até início do século XX, o local abrigava os desfiles militares e voltou a ser conhecido como Campo de São Cristóvão. Para o maior conforto das autoridades que assistiam aos desfiles, foi construído um pavilhão de ferro. Já nos anos 1960, foi construído no local um pavilhão para abrigar exposições. Mas a arquitetura arrojada – uma grande estrutura elíptica que se apoiava nas extremidades, sem outros pontos de sustentação – acabou por desabar e o local foi deixado de lado por muitos anos. Próximo dali, desde 1945, um grupo de nordestinos passou a se reunir para matar as saudades da terra natal e comer um mata-fome. Os encontros acabaram por originar a Feira Nordestina que reunia uma diversidade imensa de produtos daquela região. No início dos anos 200, a prefeitura do Rio decidiu aproveitar o espaço abandonado do pavilhão e abrigar a Feira, que lá se instalou em 2003. Sem dúvida, Luiz Gonzaga que dá nome ao Centro deve estar cantando lá do céu “ Ta é danado de bom/Ta danado de bom meu compadre/Ta é danado de bom/ Forrozinho bonitinho/Gostosinho, safadinho/Danado de bom...” out/nov/dez 2006 75 EmBaIXadOr do rio rmundo io, diga ao que fico! João Maurício de Araújo Pinho Presidente do Museu de Arte Moderna – MAM Rio Sou do tempo em que se nascia em casa. E vim ao mundo numa delas – a mesma em que minha mãe também havia nascido –, em Laranjeiras, na Rua Marquesa de Santos. Esta casa existe até hoje e tenho o projeto de transformá-la num centro cultural dedicado ao teatro. Morei nela até me casar, quando então passei a residir no prédio que foi construído em terreno contíguo. Sem saída, a Marquesa preserva um pedaço do Rio Antigo, aquele perfil de vida do final do Império e início da República. Laranjeiras tinha uma estrutura paroquial, 76 Carioquice com a igreja da Matriz e o Largo do Machado, que é a porta de entrada do bairro e, apesar de agora mais cosmopolita – pela estrutura de metrô, cinemas e shoppings –, mantém suas características de ponto de encontro do bairro. Mas nós dois mudamos e seguimos caminhos opostos: Laranjeiras ficou mais nova e eu, mais velho. Eu me separei de Laranjeiras e Laranjeiras separou-se de mim. Hoje, moro no Jardim Botânico, um bairro diferente de todos, essencialmente ecológico. Ali, a natureza é muito mais importante que a cidade, que se torna apenas um apêndice. É um lugar muito ligado à vida, a uma projeção de futuro. Adoro fazer caminhadas na Lagoa, no Jardim Botânico e no Parque Lage, que abriga a Escola de Artes Visuais, a mais importante do país. Só cometo minhas infidelidades para ir ao Leblon, dar um pulo na livraria Argumento e tomar café no Talho Capixaba, um açougue que virou padaria chique com atmosfera de clube familiar. Coisas do Rio. Como atuo profissionalmente num universo muito material – que é um escritório de advocacia tributária –, sempre procurei contrabalançá-lo com atividades espirituais, vinculando-me a instituições ligadas à cultura. E nisso o Centro da cidade, onde trabalho, é pródigo: MAM, Museu de Belas Artes, Museu Histórico Nacional, Academia Brasileira de Letras, Centro Cultural Banco do Brasil, Centro Cultural dos Correios, Casa França-Brasil, enfim, um roteiro de acervos de valor incalculável. Esse processo de revitalização da região se tornará ainda mais dinâmico quando as pessoas voltarem a morar ali. Por tudo isso, o Rio de Janeiro será sempre um pólo de excelência cultural no Brasil. Não se pode tirar isso da cidade. Toda atividade individual que anseia por uma abrangência maior de imagem precisa passar por aqui.
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