EsqUina do ricardo

Transcrição

EsqUina do ricardo
EsqUina do ricardo
em defesa das
praias cariocas
Quando o querido compositor carioca Braguinha, que cumpre cem anos vivinho da silva em março de 2007, cantou a Praia de Copacabana no samba de
repercussão internacional (“Copacabana”, 1947, parceria com Alberto Ribeiro),
cunhando a expressão “princesinha do mar”, as areias eram tão brancas e finas
que deslumbravam a todos. E o espaço físico da praia era ocupado, no máximo,
pelos guarda-sóis quase individuais dos banhistas.
Ao longo das décadas, nós, cariocas, fomos testemunhas de trabalho de
governantes sensíveis para preservar a integridade ocupacional dessas praias
maravilhosas e únicas que vão do Flamengo ao Leblon.
Acode-me lembrar aqui dos esforços de Enaldo Cravo Peixoto e Lota Macedo
Soares para manter livre de indesejados mafuás e interesses politiqueiros as
Praias do Flamengo e de Botafogo, construídas artificialmente pelo primeiro entre
1963 e 1965. Carlos Lacerda atendeu prontamente aos auxiliares, mantendoas livres e dignamente desocupadas. Igual procedimento teve Negrão de Lima,
quando da duplicação da Praia de Copacabana entre 1967 e 1970.
De lá pra cá, contudo, e a cada ano mais, a ocupação física de Copacabana
começa a beirar o intolerável.
Os administradores do Rio precisam compreender – de uma vez por todas
– que praia é praia. E que um monumento da paisagem afetiva e referencial do
próprio Brasil como a Praia de Copacabana é um bem intocável, que não pode
virar mafuá, mesmo à guisa de lazer, de espetáculos musicais ou até de disputas
esportivas para grandes multidões. Cabe ao bom administrador buscar soluções
inventivas de espaços convenientes. Que não sejam as praias.
O cronista João do Rio foi profético quando, lá pelos anos 10, proclamou: “Cuidado, mas muito cuidado mesmo, há que se tomar com os prefeitos que promovem
novidadeiras instalações, porque eles fazem e seus sucessores não desfazem,
seja por preguiça, seja porque o hábito faz o monge, isto é, ao feio toda gente
frouxa se acostuma”. É o que ocorre com Copacabana, sem tirar nem pôr.
sumário
carioquice
Nº 11 OUT/NOV/DEZ 2006
ExpeDiente
DIRETOR
Ricardo Cravo Albin
DIRETORA-ASSISTENTE
Maria Eugênia Stein
EDITOR RESPONSÁVEL
É som, é sal, é mar
4 Salve, madrinha do samba!
12 (O)vinis só tocam na nossa praia
18 Acordes da alma feminina
Saga carioca
24 Nair de Teffé – Levada da breca
30 Tanto riso, ó quanta alegria
36 1922: o ano em que
Roquette Pinto nos ensinou a ouvir
40Frutos dadivosos da ribalta
Pitaco
48 “Circundando a Lagoa,
arredondando a vida
Magia do olhar
52 Revelações do Rio
Cidade maravilhosa
60 A benção, Santa Genoveva
62 O Rio que sublima régua e compasso
Do bem comer e melhor beber
70 Enfim, o sertão virou mar
Luiz Cesar Faro
EDITORA EXECUTIVA
Vera de Souza
REPÓRTER
Kelly Nascimento
Mônica Sinelli
Ilan Bar
Júlia Santhiago
ARTE
Marcelo Pires Santana
Paula Barrenne de Artagão
FOTOGRAFIA
Adriana Lorete & Marcelo Carnaval
PRODUÇÃO GRÁFICA
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REVISÃO
Rubens Sylvio Costa
CAPA
Foto de Adriana Lorete
CONSELHEIROS E AMIGOS DE CARIOQUICE
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 Amaro Enes Viana
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Ferraz
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Menezes
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76 Rio, diga ao mundo que fico!
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me leva, amor
salve, madrinha do samba!
por
vera de souza
No passo da estrada, Beth Carvalho só faz cantar. Sua presença inspira
chuvas de rosas. Vem de longe, léguas entoando os sambas que inebriam e
entontecem a cidade inteira. O luar batuca ao seu caminhar. Beth é o sol em
festa que nos faz feliz. Por onde for quero ser seu par.
Beth Carvalho na show do Dia Nacional
do Samba, no Theatro Municipal
Carioquice
Uma das mais importantes artistas da música
popular brasileira, carinhosamente chamada de
Madrinha do Samba, Beth Carvalho, que em maio
deste ano completou 60 anos e 41 de carreira,
vive cantarolando um de seus grandes sucessos, “Vou festejar”. Mas, ao contrário do samba,
olha o passado sem sofrer ou penar. “Tudo o
que eu fiz nessas seis décadas foi muito bom,
mas agora, estou indo fundo em projetos que
acalentava há anos.”
E são muitos, sem dúvida, como o lançamento
CD e DVD gravados em dezembro de 2005 no
seletíssimo Theatro Municipal, para comemoração
do Dia Nacional do Samba. Um show antológico
que reuniu grandes nomes e diferentes gerações:
do Jongo da Serrinha a figuras como Dona Ivone
Lara, Monarco, Nélson Sargento, Darcy da Mangueira, Ary do Cavaco, Vó Maria (viúva de Donga),
passando por Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila,
Sombrinha, Almir Guineto, até chegar aos novos
representantes do samba como Dudu Nobre,
Quinteto em Branco e Preto, Diogo Nogueira e
out/nov/dez 2006 me leva, amor
Carioquice
Um dia Cartola mostrou a Beth
duas novas músicas: “As Rosas não
falam” e “O Mundo é um moinho”.
Mais tarde ela gravou e o resultado
todo mundo sabe
Partideiros do Cacique de Ramos. Aliás, o CD e DVD
vão inaugurar o selo Andança, de Beth Carvalho,
que será distribuído pela Sony/BMG.
O show no Municipal foi mais uma conquista da
Madrinha do Samba. Ela conta que a idéia surgiu
um dia quando estava parada num sinal, a apenas
dez dias de sua realização. A comemoração do Dia
Nacional do Samba ia ser nos Arcos da Lapa, com
Beth e alguns convidados. Algo bem mais simples
e modesto. Começou a pensar que o show poderia
ter uma cena de um sambista levando “porrada
da polícia”, como acontecia no passado. E aí,
entrariam os meninos do Quinteto em Branco e
Preto cantando “Delegado Chico Palha” (“Ele não
prendia/ Só batia/Era um homem muito forte/Com
um gênio violento/Acabava a festa a pau/ Ainda
quebrava os instrumentos”). Depois disso, Beth
pensou que poderia cantar o samba de Cartola,
“Tempos idos” (... “Conseguiu penetrar no Municipal/Depois de atravessar todo universo/Com a
mesma roupagem que saiu daqui/ Exibiu-se para
a duquesa de Kent no Itamaraty”). “Falei com o
meu empresário, o Afonso Carvalho, esse show
tem que ser no Municipal. Se ele não fosse maluco
como eu nada teria acontecido. Idéias sempre tive
muitas, mas faltava uma equipe que fosse fundo
comigo e o Afonso é um cara ótimo. Sempre pensei
grande, porque o samba é grandioso e não pode
ficar no quintal. Tem que ser do tamanho que ele
é. Pra você ter uma idéia, quando se sai daqui,
as pessoas querem ouvir o samba. Já vi conjunto
de rock cantando samba, senão não representa
o país”.
E as novidades continuam. Em 2007, será
lançado mundialmente o CD e DVD de sua apresentação no Festival de Montreux de 2005. Ainda no
próximo ano, chegam às lojas também a gravação
de “Beth Carvalho canta o samba da Bahia”, feito
pela Conspiração Filmes. Esse era um dos sonhos
acalentados pela cantora há alguns anos e que se
realizou em agosto desse ano, no Teatro Castro
Alves, ao lado de Gilberto Gil, Maria Bethânia,
Caetano Veloso, Margareth Menezes, Carlinhos
Brown, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Olodum
entre outros. “Esse DVD vai dar o que falar. Foi
muito bom fazê-lo, mas o trabalho foi duro. Imagine ir para a Bahia pra trabalhar? A Bahia não
merece”, conta rindo.
Nessa roda-vida, Beth ainda encontra tempo
para preparar seu novo programa de televisão que
fará uma homenagem ao samba e, deverá entrar
no ar em janeiro, pela TVE Brasil, com direção de
Belisário França. O formato, segundo Beth, será
o de cada programa homenagear um compositor,
vivo ou morto. Os convidados, além de cantar suas
próprias músicas, irão apresentar algumas do compositor homenageado. “Não teremos play-back,
vamos cantar de verdade”, destaca efusiva.
out/nov/dez 2006 me leva, amor
Os afilhados de Beth são
muitos. De Almir Guineto à Zeca
Pagodinho, passando por Luiz
Carlos da Vila, Jorge Aragão, Beto
Sem Braço, Sombrinha...
O título de Madrinha do Samba não foi por acaso, Beth ao longo de sua carreira foi das artistas
que mais se empenhou em lançar novos talentos.
Desde “Andança”, quando interpretou os ainda
inéditos Edmundo Souto, Danilo Caymmi e Paulinho
Tapajós. “Naquela época eu já tinha gravado um
disquinho, era pouco conhecida, mas de certa maneira lancei os três compositores. Hoje, a maioria
dos músicos que são solicitados para gravação
foram lançados por mim”, revela.
A lista é imensa e vai de Zeca Pagodinho, Jorge
Aragão, Luiz Carlos da Vila, Arlindo Cruz, passando por Almir Guineto, Sombrinha até Marcelinho
Moreira, Ovídio Brito e muitos, muitos outros.
Sobre Zeca Pagodinho Beth nos revela uma
história curiosa: “Lancei o Zeca em 1984 com
“Camarão que dorme a onda leva”. Toda mundo
o chamava de Zeca Pacotinho. Um desdém só.
Ofereci para minha gravadora, eles não quiseram.
Resultado, ele gravou por outra e vendeu um
milhão de cópias.”
Rompendo a tradição das gravações ao vivo,
que são em sua maioria de sucessos, em 2007,
Beth lançará mais um disco. Dessa vez, só de inéditas, de compositores consagrados ou não. “Eu
tenho baús e baús de músicas novas. Estou igual
ao Sérgio Cabral, que um dia disse que morava
num arquivo.” (risos)
Carioquice
carioca da gema
Beth conta que se apaixonou pelo samba ainda
menina, quando sua mãe a levava para assistir
aos desfiles de blocos e escolas. Em casa, o pai
recebia amigos cantores, como Sílvio Caldas. Daí
para Beth começar a tocar violão, aos 14 anos, foi
um pulo. Ainda chegou a iniciar o curso de Relações
Internacionais, mas descobriu que sua verdadeira
vocação era a música.
Desmentindo a voz corrente, Beth é carioca
do Catete, embora muitos acreditem que ela é da
Gamboa. “Na verdade morávamos na Rua Bento
Lisboa, 10, mas como nasci na Pró-Matre, que fica
na Gamboa, quando era pequena e perguntavam
onde nasci eu dizia ‘na Gamboa’. Achava o nome
lindo. O engraçado é que neguinho já mostrou até
onde morei, onde estudei, a minha colega de carteira na escola. E eu não desmenti, porque senão
iam pensar que eu tinha ficado besta (risos). Na
verdade sempre morei na Zona Sul do Rio. Primeiro
no Catete, depois Laranjeiras, Urca, Ipanema, Leblon, Botafogo. E até um tempo em Icaraí. Agora já
estou há 25 anos na Joatinga, que é o lugar mais
bonito do mundo”.
A cantora é uma defensora efusiva do Rio de
Janeiro e diz que a cidade continua sendo a mais
bela e nunca deixou de ser a capital cultural do
país. “Qual o artista que não mora aqui?”- indaga.
out/nov/dez 2006 me leva, amor
“Sempre pensei grande,
porque o samba é
grandioso e não pode
ficar no quintal”
E continua falando que a violência está no país e
no mundo e isso é um problema do sistema capitalista. “Isso já é outra história e aí vamos entrar na
discussão política. Na verdade o Rio acaba sendo
uma vítima maior por ser a Cidade Maravilhosa.
Toda mundo vem pra cá, todo mundo quer ser
carioca”, afirma.
Ela descreve o carioca como aquele que sabe
viver, para quem “não há tempo ruim”. “Se a coisa
está complicada, ele arruma um jeito de descomplicar. Não é alienado, mas não esquenta a cabeça,
vai resolver! É o jogo de cintura, o raciocínio rápido.
É a malandragem no bom sentido.”
Todo esse savoir vivre ela atribui ao samba. “O
samba me ensinou a viver. Não é só um gênero
musical, como costumam dizer. É uma filosofia de
vida, onde se exerce a democracia o tempo todo.
Por exemplo, se você senta numa mesa de pagode,
não tem presidente da República e gari. Ali estão
todos no mesmo patamar. E ainda tem as comidas
das tias, que faz com que todos se aproximem.
Essa coisa de matar a fome faz com que todos se
tornem irmãos rapidamente. E esse é o espírito
do carioca. E essa solidariedade é muito do povo
brasileiro, mas o carioca ainda tem o samba, onde
fica todo mundo junto.”
E por falar em samba, Beth segue a máxima de
que “todo artista tem que ir onde o povo está”,
e lista alguns dos melhores pagodes da cidade:
o do Partideiros do Cacique, que se reúnem aos
domingos, em Ramos; o do Negão da Abolição, que
agora acontece perto da Praça Onze, na quadra
da São Clemente, onde também se pode ouvir o
Galo Cantou; o da Tia Doca; o do Arlindo. “Essas
são manifestações que fortalecem o samba. E é
aonde eu vou, onde consulto as bases. Tem que
estar perto do povo, saber o que ele quer.”
Apaixonada pelo Rio, conta que vai a todos os
lugares sozinha, dirigindo seu carro, e volta, muitas
vezes, às 3h ou 4h da manhã. ”Eu me sinto meio
dona da cidade. Todo mundo é meu amigo, o povo
está comigo. A Tereza Cristina costuma dizer que eu
vou a todo lugar, e vou mesmo! Vivo intensamente
essa cidade. Ela é devoradora. É a cidade mais sedutora que existe no mundo. E olha que já conheci
parte do mundo, muita coisa considerada o que
há, como a Grécia, a Suíça, mas nada comparado
a Joatinga ou ao Arpoador. A cidade aqui te come,
te pega de jeito. E ainda tem o povo mais bonito.
Tem alguma coisa melhor que o carioca?”
o que há de melhor
10 Carioquice
jovem também tem saudade
(o)Vinis só
tocam na nossa praia
por
ilan bar
Um disco não-voador pousou em Belford Roxo, município escaldante da
Baixada Fluminense, fazendo a alegria de colecionadores, DJs e amantes da
boa música. As bolachas cor de café agora são coisa nossa. Saem fresquinhas
do fabricante carioca, para fazer a magia das pick-ups e fervilhar as boates e
festas mais antenadas. Long-plays, os que vão te ouvir, te saúdam.
Sim, o velho e bom vinil ainda tem uma legião de
apreciadores que cultuam seu som que em nada
se parece com o asséptico CD. O prazer de tirar
o disco da capa, colocá-lo na vitrola e manusear
a agulha até que o som comece a fluir é descrito
por seus amantes como algo inigualável. Mas esse
prazer só se perpetua graças a única fábrica do
país, a Poly Som, situada no Rio de Janeiro. É de
lá que saem os vinis de artistas como Caetano Veloso, Vanessa da Mata, Ed Motta, Marcelo D2 que
chegam as pick-ups de DJs de todo o mundo.
A Poly Som, que fica em Belford Roxo, começou
a fabricação de vinil em 1999. Seu proprietário,
Nilton José, traz na bagagem a experiência de
quem trabalhou em diversas outras indústrias
fonográficas participando de todo o processo de
produção de discos. Só na Companhia Industrial
de Discos(CID), seu último emprego, permaneceu
por mais de 30 anos. Depois de lá, adquiriu seu
12 Carioquice
próprio terreno e todo o maquinário necessário
para a produção de discos. Hoje conta com diversas prensas que podem fabricar vinis nos formatos
sete e doze polegadas e Picture.
Nilton relembra que quando a Poly Som começou a funcionar, existiam ainda duas concorrentes
nesse mercado, todas funcionando no Estado do
Rio de Janeiro: duas em Belford Roxo e uma em
Niterói. “Inicialmente, nós trabalhávamos para
atender aos pedidos de uma igreja evangélica,
mas, com o término das operações das outras
fábricas, praticamente todos os clientes vieram
para a Poly Som”, conta Luciana Carvalho, gerente
da empresa.
Com a chegada dos CDs ao mercado fonográfico, as gravadoras não tiveram outra opção:
passaram a lançar seus artistas no novo formato.
Muitas delas, como Warner, Sony/BMG e Deckdisc
ainda resistem e lançam seus artistas também em
out/nov/dez 2006 13
jovem também tem saudade
Nilton José (foto), proprietário
da Poly Som, traz na bagagem a
experiência de quem trabalhou
em diversas outras indústrias
fonográficas participando de todo
o processo de produção de discos.
vinil. É o caso da cantora Vanessa da Mata. Sua
música “Ai, ai, ai”, do álbum “Essa boneca tem
manual”, deve seu sucesso às pick-ups dos DJs
que colocaram o vinil com a música para tocar em
boates e festas e a transformaram num hit absoluto. Vanessa rapidamente chegou à liderança em
todas as rádios do país.
Além das gravadoras, a Poly Som, tem ainda
como clientes as bandas independentes de rock
e os DJs que gravam música eletrônica e hip hop.
“Hoje, o que nós mais prensamos são discos de
rock. Mas ultimamente surgiu um novo filão, os discos-convite, um disco sem som que as gravadoras
fazem para convidar para suas festas e eventos”,
conta Luciana.
Muitos músicos, artistas e amantes dos toca-
14 Carioquice
discos fazem verdadeiras peregrinações pela cidade para garimpar em sebos e lojas especializadas
os discos que ainda se mantêm nas prateleiras.
Referência no ramo musical e especializada em
música popular brasileira, jazz e clássicos, a loja
Modern Sound, em Copacabana há 40 anos, criou
uma seção destinada somente às bolachas pretas:
o Brechó Musical, que fica em seu subsolo e que
acumula um acervo de cinco mil títulos. O proprietário, Pedro Passos da Silva, se declara apaixonado
pelo vinil até hoje: além de ter uma vitrola em casa,
tem outra na Modern Sound. “A pureza na qualidade do som de um vinil é excelente e o bom do
long play é você ouvir o chiado, colocar a agulha
manualmente. É isso que me dá prazer.” A loja
compra e vende vinis, sempre usados, e recebe
muitos turistas interessados pelo segmento. “Ainda
existe uma classe de colecionadores remanescentes da época áurea em que só se escutava vinil”,
afirma Pedro.
Para os DJs, o vinil ainda faz parte do case de
trabalho, espaço dividido em perfeita harmonia com
os modernos CDs. Grande parte da classe aderiu
à praticidade que o CD oferece, como o peso e
tamanho reduzidos. Mas ainda existe muitos que
utilizam e não se desfazem de forma alguma das
bolachonas. É o caso do DJ carioca Marcelinho da
Lua, integrante da banda Bossacucanova, que já
tocou em festivais na Dinamarca, França, Paris e
agita várias festas no Rio de Janeiro. Marcelinho da
Lua se apresenta com vinil. Sua coleção já soma
quatro mil títulos que incluem música brasileira,
soul, reggae, música eletrônica, entre outros
ritmos. “O que me fascina no vinil é a facilidade
que tenho de manipulá-lo e o prazer de colocar o
disco na vitrola”, diz Marcelinho. Apreciador dos
chiados e da arte gráfica das capas dos discos,
o DJ já trabalhou como técnico de som ao lado
de Márcio Menescal (filho de Roberto Menescal),
Carlos Lyra e Wanda Sá.
A gerente da Poly Som, Luciana Carvalho,
explica que muitos ainda preferem o vinil por se
tratar de um produto mais natural. “As bandas e
artistas que fazem encomendas acreditam que
o disco tem um som mais puro, enquanto o CD
se tornou um produto em que o som final acaba
sendo modificado”, explica. Luciana conta que o
DJ Hum, expoente na arte de tocar hip hop, foi
fazer uma turnê pela Europa e levou para vender
mais CDs do que discos. Mas para sua surpresa, o
público, em sua maioria, preferiu o vinil. “Fora do
Brasil, a cultura do vinil também é muito forte, os
europeus são apaixonados por discos”, comenta
Luciana Carvalho.
Enquanto a produção de vinis no país, hoje, é
pequena dada a concorrência com o CD e também
a seu alto custo, o mercado dos usados movimenta
cifras elevadas, especialmente no comércio feito
pela internet. Para ser ter uma idéia, existem discos
raros sendo vendidos por até R$ 4.000. Durante
anos, o primeiro disco do cantor Roberto Carlos,
“Louco por Você”, foi considerado o disco mais
caro do país, chegando a custar R$ 3.000, mas
ficou para trás. Atualmente o objeto de desejo dos
colecionadores é o disco “Paêbirú”, de Lula Côrtes
e Zé Ramalho, que está cotado a R$ 4.000. O que
o elevou a categoria de mais cobiçado, foi o interesse de estrangeiros pela música psicodélica que
o nordestino Zé Ramalho gravou no disco. Ainda
existem outros vinis que chegam perto destes preços, como o disco “Coisas”, de Moacir Santos, “No
Sub Reino dos Metazoários”, de Marconi Notaro e
“O que me fascina no vinil
é a facilidade que tenho de
manipulá-lo e o prazer de
colocar o disco na vitrola”
Dj Marcelinho da Lua
“Não fale com Paredes”, de Módulo 1000.
A rede de relacionamento Orkut reforça o
fenômeno da multiplicação de amantes dos vinis.
Já são 20 mil participantes em comunidades que
navegam em busca de raridades. Pedro Passos
da Silva, da Modern Sound, acha que a internet
é uma forma válida para se negociar e pesquisar.
“A internet facilita a troca, o anúncio e a venda e
existe um perfil grande de pessoas inseridas na
rede interessadas em discos de vinil.”
Mesmo com alguns percalços, a cultura e a
paixão pelo vinil continuam se perpetuando entre
gerações, com a passagem de coleções de pais
para filhos. Da criação do fonógrafo por Thomas
A. Edison, em 1877, ao CD de nossos dias, os
LPs, criados em 1948, vão continuar, assim parce,
exercendo sua magia ainda por muito tempo.
out/nov/dez 2006 15
16 Carioquice
out/nov/dez 2006 17
é cor de rosa choque
acordes da alma feminina
por
kelly nascimento
A história da música popular brasileira contada pelas vozes de suas divas.
Essa é a surpresa que o Instituto Cultural Cravo Albin (ICCA) prepara neste fim
de ano para os amantes da MPB. É o livro “MBP Mulher”, casamento de 150
imagens do fotógrafo Mário Luiz Thompson ao texto de Ricardo Cravo Albin.
“A parceria com Mário Luiz Thompson nasce
a partir da cobiça natural do ICCA pelo grande
arquivo que o fotógrafo acumulou nesses últimos
35 anos”, justifica o patrono do Instituto. Pois sim.
Cobiçar, nesse caso, é deveras natural. O fotógrafo
paulista, um dos mais requisitados do cenário musical brasileiro, é o guardião de um valioso arquivo
composto por mais de cem mil fotos, dez mil vídeos
e de coleções de discos raros. Alguns foram herdadas da mãe, a pianista Íris Thompson de Carvalho.
Parceira de músicos do naipe de Zequinha de
Abreu – compositor da célebre “Tico-Tico no Fubá”
-, aluna de Mário de Andrade e amiga de Patrícia
“Pagu” Galvão, Íris foi personagem importante da
história musical do país.
Quando Thompson propôs a Albin que criasse
um roteiro para a utilização desse arquivo, o
pesquisador devolveu-lhe duas propostas. “Enquadrei dois livros, fazendo roteiro de fotos na
Lei Rouanet – o “MPB Negra” e o “MPB Mulher””,
recorda. E como manda o bom costume, as damas
primeiro. A saga feminina é a novidade editorial
que o ICCA reserva ao público.
18 Carioquice
“O projeto MPB Mulher foi escolhido pela El
Paso para ser o brinde de fim de ano para os
clientes especiais da empresa, numa edição independente da Lei Rouanet. Numa escolha inteligente,
a companhia o escolheu por ser um presente de
Natal de inegável qualidade. Em vez das tradicio-
Selma do Coco
“O projeto MPB Mulher foi escolhido
pela El Paso para ser o brinde de fim
de ano para os clientes especiais da
empresa, numa edição independente
da Lei Rouanet.
Ricardo Cravo Albin
nais caixas de vinho, eles brindam com um objeto
de arte: um livro”, diz Albin. A El Paso adotou essa
filosofia em 2005, quando patrocinou a edição de
“Tons & Sons do Rio de Janeiro” também como
presente de fim de ano. “Como no ano passado, o
Sesc-Rio aderiu de imediato, graças ao empenho
de seu diretor, Dionino Colaneri, que possibilitou
que além do livro se tivesse o CD “Canto da MPB
Mulher” (EMI)”,complementa.
A viagem musical se completa com as canções que
imortalizaram as divas. Ângela Maria, Elizeth Cardoso,
Joyce, Nana Caymmi, Inesita Barroso são algumas
das vozes selecionadas para a coleção. “O álbum
traz divas em gravações raríssimas, obedecendo à
Vanessa da Mata
Jussara Silveira
Fafá de Belém
out/nov/dez 2006 19
Elis Regina
é cor de rosa choque
20 Carioquice
Zeze Gonzaga
Cássia Eller
configuração dos oito capítulos. É um misto daquilo
que é apresentado em cada período musical”.
As mulheres começaram a escrever sua história na MPB pelas mãos de Chiquinha Gonzaga.
E é a pioneira da produção carnavalesca quem
abre-alas paras as mulheres passarem. “Criei um
roteiro histórico que perfila, a partir da corajosa
presença de Chiquinha Gonzaga, uma breve história da participação da mulher no nosso cancioneiro popular”, diz o autor. A adorável maestrina,
compositora e musicista é apresentada como mãe
da MPB, onde é destacada sua saga pautada pela
coragem, luta e criatividade. Momentos como a
criação da pioneira “Ô Abre Alas”, que Chiquinha
compôs a pedido do Cordão Rosa de Ouro, que
inauguraria a marcha carnavalesca e anteciparia
em 20 anos a fixação do gênero.
Em seguida, conhecemos as filhas radiofônicas de Chiquinha. Dentre as estrelas da Era do
Rádio, a mais reluzente foi Carmem Miranda. A
década de 30 traria outros talentos: Aracy Cortes, lançada por Sinhô no clássico “Jura”, Aracy
de Almeida, a preferida de Noel Rosa, Isaurinha
Garcia, representando as mulheres-cantoras de
São Paulo. Já nos anos 40 e 50, surgiriam as futuras rainhas do rádio: Marlene e Emilinha Borba.
Saga que seria continuada por Ângela Maria, Zezé
Iris Thompson de Carvalho
eu sou da lira, não posso negar
out/nov/dez 2006 21
Clara Nunes
é cor de rosa choque
22 Carioquice
Gonzaga e Dóris Monteiro.
No capítulo sobre Bossa Nova, além da musa
Nara Leão, surgem os timbres de Alaíde Costa,
Claudette Soares, Marília Medalha, Miúcha, Elis Regina, Flora Purim e Leny Andrade. Todas afinadas
no estilo “cool” de cantar. Já no bloco do samba,
Elza Soares, Clementina de Jesus, Clara Nunes,
Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Alcione e Leci
Brandão são algumas das vozes destacadas.
O canto sertanejo de Inezita Barroso e das irmãs
Galvão - que inspirariam Tetê Espínola, Amelinha e
Elba Ramalho também não ficou de fora. Enquanto
a vertente pop rock é representada em toda sua rebeldia por Rita Lee, Baby Consuelo, Maria Alcina, Na
Ozetti e Zezé Motta. A linhagem continua com Cássia
Eller, Fernanda Abreu e as Paulas Toller e Lima.
Um capítulo é especialmente dedicado às filhas
compositoras de Chiquinha: Marília Baptista e Lina
Pesce, autoras de sambas e chorinhos encantadores,
o samba-canção de Dolores Duran e Maysa, as nordestinas Anastácia e Celma do Coco. No pós- bossa
nova, Ângela Rô Rô , Marina Lima e Adriana Calcanhoto dariam continuidade à jornada. Finalizando a
obra, o axé das mulheres da Bahia: Nana Caymmi,
Maria Bethânia, Gal Costa e Daúde, entre outras.
E a cada página MPB Mulher vai se apresentando,
charmosa, sob suas mais diversas facetas e vozes.
Todas elas juntas num só livro.
“Tons & Sons do Rio” ganha mercado internacional
O lançamento do Instituto Cultural Cravo
Albin no Natal do ano passado continua
rendendo frutos. A obra “Tons & Sons
do Rio”, patrocinada por El Paso e SescRio, ganhará outros mares. “Foi tão
bem-sucedido o projeto, que o Itamaraty
lançará uma versão em inglês da obra
feita pelo embaixador Sérgio Queiroz
do período colonial, o lundu; o Império
está representado pela modinha; o choro
e a Belle Époque da Primeira República; o
nascimento do samba; os áureos anos 30; a
dor-de-cotovelo do pós-guerra; a euforia do
carnaval; a batida diferente da Bossa Nova;
a volta do samba nos anos 70; a música de
protesto no período da ditadura; a alegria
Duarte, intitulada Tones and Sounds from
Rio de Janeiro,” anuncia orgulhoso
Ricardo Cravo Albin.
A obra apresenta um passeio pelos ritmos
cariocas a partir do século XIX deverá ser
lançada em março de 2007. O livro será
distribuído em todas embaixadas do Brasil
no exterior, junto com o DVD “Sinfonia do
Rio de Janeiro” ( Biscoito Fino).
“Tons & Sons do Rio” apresenta a música
popular brasileira através de um passeio pela
própria história do país. O percurso proposto
ao leitor obedece à seguinte trajetória:
dos festivais e movimentos contemporâneos
como rap e funk.
O livro é inspirado na Sinfonia do Rio
de Janeiro de São Sebastião, espetáculo
apresentado em 2000 no Theatro
Municipal do Rio de Janeiro. Idealizada
por Cravo Albin e composta/regida por
Francis Hime, para a celebração dos 500
anos do Brasil, a iniciativa reuniu cantores
como Lenine, Zé Renato, Leila Pinheiro,
Olívia Himes e Sérgio Santos. Letras aos
cuidados de dois grandes: Paulo Cesar
out/nov/dez 2006
Pinheiro e Geraldinho Carneiro.
23
casseta & planeta
levada da breca
nair de teffé
Nunca houve mulher como Nair. A frase não é exagero e seria bom epíteto
para a vida de uma mulher autêntica que prezava os exageros. Fato é que a
República não seria mais a mesma após a passagem da divina dama, Nair de
Teffé, pelo Palácio do Catete. Revolucionou modos e artes. Escandalizou a high
society ao dar ao maxixe status de valsa e trocar o aristocrático violino pelo
plebéico violão. E entrou para história como a única brasileira a se aventurar no
mundo da caricatura.
Musso
A caricaturista Rian,
na época do seu aparecimento
24 Carioquice
A primeira Nair a gente não esquece. O Brasil
ganharia a sua no dia 10 de agosto de 1886,
numa casa na antiga Rua Mata-Cavalos, atual
Rua do Riachuelo. A filha do herói da Guerra
do Paraguai Antonio Luiz Von Hovnholtz, o
barão de Teffé, nasceu para ser prodígio. Foi a
primeira Nair nascida em solo tupiniquim, feito
que lembraria sempre orgulhosa. Aos 9 anos de
idade, estreiaria no mundo da caricatura. Sua
mãe, Maria Luísa Dodsworth, gostava que Nair
fizesse sala para as visitas – o que a entediava
profundamente. Cer to dia, chegou a vez de
fazer sala para a madame Carrier, amiga da
baronesa. Nair driblou o tédio com lápis e papel,
desenhando uma madame Carrier de formas
caricatas. Sem saber, protagonizava outro fato
inédito: nascia naquele momento a Rian. Mais
que uma anagrama de ‘Nair’, era a primeira
mulher caricaturista do Brasil.
A família saudou o fato como uma demonstração de inteligência, não pensando como uma
atividade a ser desenvolvida. Em 1901, os Teffé
Aos 23 anos, tinha a primeira
charge publicada: seu desenho da
atriz francesa Réjane figurou na
edição de lançamento da revista
“Fon-Fon”, em 1909
se mudariam para Paris. Uma oportunidade para
a menina prodígio aprimorar seu traço. Estudou
técnicas de pintura no curso de madame Lavrut,
terminando no prestigiado Cours Julien.
A Nair que regressou ao Brasil em 1905 era
uma moça que suspirava modernidade. Tinha
jeito irrequieto e se identificava com um personagem da literatura machadiana: a Capitu, sua
heroína moderna. Apesar de criada numa família
aristocrata, desprezava a tradição. As pompas
ritualísticas da alta sociedade só serviam para
a irritar.
Enquanto isso, Rian se destaca com suas caricaturas. Aos 23 anos, tinha sua primeira charge
publicada: seu desenho da atriz francesa Réjane
figurou na edição de lançamento da revista “FonFon”, em 1909. Seu trabalho também ganhou a
França, onde recebeu a condecoração Officier de
l’instruction publique. O galardão lhe permitia
lecionar e abrir uma escola naquele país. “Um
ponto interessante no trabalho de Nair era que
para fazer aquelas caricaturas a pessoa tinha de
estar na rua. Naquela época, as mulheres viviam
dentro de casa. E Nair ganhou as ruas”, ressalta
o professor do Departamento de História da PUCRio Antonio Edmilson Martins Rodrigues, autor
da biografia “Nair de Teffé – Vidas Cruzadas”.
Mas quando quis fazer de sua arte atividade
out/nov/dez 2006 25
casseta & planeta
O Pai da Aviação, um dos
últimos trabalhos de Rian,
em julho de 1974
Janio Quadros
Paulina D’Ambrósio, violinista
famosa, era uma das mulheres
mais bonitas
profissional, se deparou com os limites de sua
condição feminina.
Nada que desanimasse a jovem irriquieta
que, na companhia do barão, freqüentava assiduamente o Café Jeremias, reduto de artistas,
jornalistas e boêmios. A amizade com João do
Rio seria resultado dessas incursões. “Nair era
quem puxava as novidades, criava tendências e
estabelecia novas relações. Se o colunista Ibrahim
Sued lhe fosse contemporâneo, certamente a
rotularia de “locomotiva da sociedade”, conta o
pesquisador.
De fato, Nair – cujo début na sociedade carioca fora a inauguração do Theatro Municipal,
em 1909 – agitava festas e recepções. Num
desses eventos toparia com seu futuro marido, o
Marechal Hermes da Fonseca. Logo no primeiro
diálogo cometeria uma gafe. Durante um baile
promovido pelo barão do Rio Branco no Itamaraty,
tentou iniciar um papo em francês com um jovem
oficial que a tirou para dançar. O rapaz permaneceu calado e, ao fim da dança, conduziu-a até
Hermes da Fonseca. Rian foi logo comentando
com o presidente que o oficial só podia ser mudo,
pois se dirigiu a ele francês e não obteve resposta
alguma. O marechal respondeu que o jovem não
26 Carioquice
era mudo: o surdo-mudo ficara em casa. Nair não
sabia que o jovem oficial era filho do presidente
e não sabia falar francês, nem que o marechal
tinha outro filho surdo-mudo.
Nair e Hermes se encontrariam em outras
ocasiões, como na abertura da exposição de
caricaturas de Rian no Jornal do Commercio, em
1912. Um ano depois, morria Dona Orsina da
Fonseca e o marechal ficava viúvo. Ele parte para
uma temporada em Petrópolis, cidade também
escolhida por Nair para passar o verão. O hábito
em comum de cavalgar pela manhã tornou mais
freqüente o encontro dos dois. Num desses passeios, o presidente da República surpreendeu a
jovem Rian com um pedido de casamento.
No começo, o noivado foi mantido em segredo.
Mas, quando divulgada, a notícia teve o efeito
de uma bomba. O casamento seria rotulado de
imoral, desvario mental ou safadeza. Disseram
que o marechal estava louco. Foi um escândalo
na sociedade.“Naquela época, o luto era de um
ano. Mas não fazia seis meses que o marechal
ficara viúvo de Dona Orsina, uma dama da sociedade. Já Nair era cobiçada por todos, era uma
agitadora social. E, de repente, anuncia que vai
se casar com alguém 30 anos mais velho que
ela”, explica Rodrigues.
Nunca se entendeu o que motivou Nair a se
casar com o presidente. Fato é que a novidade
sempre a atraiu. A possibilidade de se tornar a
primeira-dama do Brasil certamente pesou muito.
A chance de se libertar da família também.”Há
duas hipóteses: uma que ela queria largar a
família e a melhor maneira de fazê-lo seria se
casando com o marechal; outra era que Nair teria um projeto de transformação social que faria
com que ela pudesse incorporar as mudanças da
nova sociedade brasileira ao se tornar primeiradama. Mas nunca se soube exatamente qual foi
o objetivo de fato”, diz o historiador.
O clima polêmico do noivado persistiu durante
o casamento. Não demoraria para a sociedade
começar a sentir o como seria ter Nair de Teffé no
posto primeira-dama. Durante uma reunião ministerial, adentrou o salão ostentando um modelito
em que todos os ministros estavam caricaturados
por ela mesma na roda do vestido. Mas seriam
suas festas o capítulo mais marcante da vida da
primeira-dama.
Nair levou para os salões do Palácio do Catete
os famosos saraus que promovia em Petrópolis.
Numa bela noite de maio de 1914, Nair reuniu
amigos para um recital do poeta e violonista
cearense Catulo da Paixão. Antes de Hermes da
Fonseca, Catulo não havia passado dos jardins da
residência oficial. Nenhum presidente até então
havia ousado convidar o músico e seu “reles”
violão a adentrar os salões do Catete. No dia
seguinte, a oposição denunciaria o que classificou
de enlameamento do Palácio ao som de violão.
Uma festa mais ousada ainda estava por vir: a
polêmica “Noite do Corta-Jaca”.
Apesar de o dançarino Duque estar fazendo
sucesso na Europa com os sensuais passos do
maxixe, a conservadora sociedade brasileira
repudiava o ritmo por considerá-lo pornográfico.
Pois em novembro de 1914, o maxixe chegaria ao
Palácio do Catete. Graças a Nair, uma música de
Chiquinha Gonzaga seria executada pela primeira
vez nos salões da elite. “ A execução de “CortaJaca” não foi algo espontâneo. Nair pediu a seu
professor de música que tirasse essa canção
no violão para que ela pudesse tocar. Foi tudo
planejado e causou um grande rebu!”, avalia
Rodrigues.
A noite do “Corta-Jaca” acabou merecendo
registro nos anais do Senado. O discurso de
Rui Barbosa no parlamento veio carregado de
indignação:”... aqueles que deveriam dar ao país
o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o Corta-Jaca à
altura de uma instituição social.Mas o corta-jaca
Silvio Santos
Grande Otelo
out/nov/dez
2006 27
Almirante Alexandrino,
ex-ministro da Marinha
casseta & planeta
de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem
a ser ele, sr. Presidente? A mais baixa, a mais
chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e
do samba”, discursou. Nair se limitou a lembrá-lo
que o palácio era a casa dela. Mas o frisson levou
os opositores do governo a usaram a festa para
tentar mobilizar a sociedade contra o despudor
do casal presidencial.
Embora a apresentação do Corta-Jaca no Palácio do Catete ter ficado definitivamente ligado ao
nome de Nair de Teffé, era conhecido o amor do
marechal às coisas brasileiras. Em 1911, ainda na
época de D. Orsina, o célebre rancho carnavalesco
“Ameno Resedá” se exibiu no palácio para a família
do presidente. Por essas e outras histórias, além
da má sorte que acompanhava o marechal-presidente ele foi objeto de muitas sátiras, como na
modinha que o povo insistia em cantar: “ O Dudu
sai a cavalo/O cavalo logo empaca/E só começa a
andar/Ao ouvir o corta-jaca...”
Dudu era uma forma pejorativa de se referir
ao presidente, mas a primeira-dama não dava
bola para os descontentes. “Foi uma noite prafrentex”, justificaria Rian mais tarde.
O amor de Hermes por Nair renderia alguns
presentes memoráveis. Um deles foi o bairro de
Marechal Hermes, que o presidente criou e lá
cravou um palácio para sua amada. O mimo permitia que a primeira-dama tivesse uma visão geral
de todo o bairro, cuja criação ficou a cargo de
Palmyro Serra Pulcherio. A então Vila de Marechal
Hermes foi inaugurada em 1 de maio de 1913. O
marechal ganhou uma ilha em Angra dos Reis e
lá ergueu outro palácio para a bela Rian.
Quando acabou o mandato de Hermes da Fonseca, o casal partiu para Petrópolis. O período de
tranqüilidade seria interrompido pelas articulações
em torno da sucessão presidencial, em 1922. Os
militares articulavam o retorno do marechal. Cartas
28 Carioquice
apócrifas de Arthur Bernanrdes – que levaram à
prisão de Hermes da Fonseca - inviabilizariam a
iniciativa militar. O Marechal não resistiria ao golpe,
morrendo pouco tempo depois, em 1923.
Viúva aos 37 anos, Nair voltou a Petrópolis,
onde se recolheu junto com os pais. Em homenagem ao marido, passou a se chamar Nair de Teffé
Hermes Rodrigues da Fonseca. Com a morte do
barão de Teffé, voltou ao Rio. Usou o dinheiro da
herança para comprar um palacete num terreno
enorme, no ponto de maior requinte da cidade
moderna: a Avenida Atlântica. Nesse terreno,
resolveu contruir um prédio com um cinema.
Surgiria o famoso Cine Rian, que acabaria vendido
ao grupo Luiz Severiano Ribeiro. Nair reclamaria
disso pelo resto da vida. Considerava-se lesada,
pois queria um apartamento na Rua Paissandu
em troca do imóvel, que não lhe foi dado.
Mudou-se para Niterói, cidade onde a única
caricaturista mulher da história do Brasil envelhecia no anonimato e onde morreria em 1981,
aos 95 anos. “Eu a conheci bem velhinha, em
Niterói. Ela perambulava pelas ruas de chinelo,
a barra do vestido se arrastando pelo chão. Era
essa a imagem de Nair de Teffé no fim da vida.
Que gravou comigo um comovente depoimento
para o Museu da Imagem e do Som em 1968,
além de me presentear com sua prórpia autocaricatura”, recorda Ricardo Cravo Albin. Rian
nunca perdeu seus traços marcantes: irreverência
e espirituosidade. Quando se viu às voltas com a
obrigação de entregar a declaração de Imposto
de Renda, não hesitou.Caprichou uma caricatura
de Delfim Netto – então ministro da Fazenda – no
formulário e encaminhou à Receita Federal com
um bilhetinho: “Ministro, desculpe-me, mas essa
coisa de Imposto de Renda é muito complicada
para mim. Vocês deveriam dispensar os adultos
com mais de setenta anos”. Escandalosamente
singelo, no melhor estilo Rian.
a turma do funil
tanto riso, ó quanta alegria
por
nireu cavalcanti
Mais um dos indecifráveis enígmas de Momo: diga-me se puderes qual foi
a data de fundação do primeiro rancho carnavalesco. Pausa para confetes e
serpentinas. Na hipótese provável de não haver uma resposta, adiantamos a
resolução da pegadinha. Tanto pode ter sido em 1872 quanto em 1890. Nireu
Cavalcanti é quem borrifa o lança-perfume nesse enredo com dois finais. Leia,
confira e se esbalde.
O Jornal do Brasil publicou no dia 5 de março
de 1921 – sob o título “O Rancho é oriundo da
Bahia” – um histórico dos ranchos carnavalescos,
sem identificação de autoria, dos informantes e
das fontes. Provavelmente o autor é Vagalume e
a predominância é dos depoimentos de Hilário
Jovino. A matéria, rica em informações, servirá
de base a parte do texto.
Para os festejos dos Reis Magos na Bahia,
havia dois folguedos populares que saíam nos
dias 5, 6 e 7 de janeiro de cada ano: um mais
familiar chamado Terno de Reis, cujo acompanhamento musical se dava com as filarmônicas,
e o outro, formado por componentes de diversas
origens, chamado Rancho de Reis, com a música
a cargo de um naipe formado por flauta, violino
e cavaquinho e outros instrumentos não usados
em filarmônicas. Além dessa diferença, o rancho
tinha no quadro dos brincantes as figuras do
mestre-sala e da por ta-bandeira, o que não
ocorria no Terno.
Quando Hilário chegou ao Rio de Janeiro, já
30 Carioquice
encontrou formados dois ranchos: a Estrela Dalva
e o Dois de Ouro, tendo este como fundador seu
vizinho de casa, Leôncio de Barros. Ambos eram
moradores do Beco João Inácio, no Morro da
Conceição, área portuária do Centro do Rio. Esses
ranchos saíam em janeiro, segundo a tradição da
festa católica da epifania.
Hilário Jovino Ferreira declarou que saíra do
Dois de Ouro e, com Luiz França e outros, fundou o rancho Rei de Ouro, em seis de janeiro de
1894, com sede na casa do primeiro, no Beco
João Inácio. A diferença fundamental entre os dois
outros ranchos existentes foi que o recém-criado
Rei de Ouro saiu no carnaval. Não fica claro na
matéria se ele também manteve a tradição de sair
em janeiro. O sucesso carnavalesco desse novo
rancho incentivou a criação de muitos outros. Em
1895 apareceram o Papagaio, com sede na atual
Rua Regente Feijó, em casa de Tia Clara, e os
Batuqueiros, na Pedra do Sal (atual Largo João da
Baiana). No ano seguinte surgiu mais um rancho,
o Rosa Branca, do qual Hilário e Didi se autono-
mearam fundadores. O ano de 1898 foi pródigo
quanto ao nascimento de ranchos carnavalescos,
surgiram oito agremiações: Botão da Rosa (dissidência do Rosa Branca), no Morro do Pinto, em
casa de Amélia Zeferina; na Rua Senador Pompeu,
a Flor da China, a Flor do Lírio do Amor e a Rosa
Adélia, este último na casa da africana Cristina; na
Rua General Pedra, a União das Flores, o Flor da
Romã, e a Barquinha Sul América sem indicação
da rua onde foi criado. No último ano do século
XIX, os carnavalescos fundaram doze ranchos.
Isso confirma o ano de 1899 como aquele em que
os ranchos sobrepujaram os cordões. A chegada
A chegada do século XX
registraria mais sete novos
ranchos, dois criados em
1900 e cinco em 1904. É
dessa época o famoso Flor
do Abacate, do Catete, que
se tornaria referência da
folia pelo resto dos tempos
out/nov/dez 2006 31
a turma do funil
do século XX registraria mais sete novos ranchos,
dois criados em 1900 e cinco em 1904. É dessa
época o famoso Flor do Abacate, do Catete. Além
desses, dois blocos – novo tipo de organização
carnavalesca – surgiram em 1899, sem indicação
do logradouro. Eram os Nenéns Malcriados e os
Mensageiros da Folia.
Portanto o autor da matéria registrou a criação de 33 ranchos, evidência de sua aceitação
pela população do Rio de Janeiro. A beleza de
suas fantasias, a música e a ordem nos desfiles
concorriam com as tradicionais organizações
classificadas pelos cronistas como as Grandes
32 Carioquice
Uma diferença muito
grande existe dos ranchos
cariocas para os ranchos
baianos. Os daqui são mais
ricos e agora mais lindos e
originais na variedade de
harmonia e canto
Jornal do Brasil, 1911
Sociedades: Fenianos, Democráticos, Tenentes
do Diabo e outras.
Em 17 de fevereiro de 1907, num piquenique
em Paquetá, um grupo carnavalesco fundou o
Ameno Resedá, rancho com sede na Rua Correia
Dutra, 131, no Catete, e que se tornaria a “escola” do carnaval. Segundo Jota Efegê, “quando
o Ameno Resedá apareceu no carnaval carioca
em 1908, com seu cortejo denominado Corte
Egpiciana, tornou-se logo atração”.
No carnaval de 1911, solicitaram inscrição
para desfilarem ou saírem às ruas 125 organizações, cordões, blocos, clubes, ranchos e até
firmas comerciais. Nesse ano, o rancho-escola
Ameno Resedá desfilou com o enredo “Corte de
Belzebu” e foi a estrela da festa.
Na terça-feira de carnaval de 1911, o Jornal
do Brasil publicaria um artigo sobre ranchos que
dizia: “... Os ranchos carnavalescos são essas
belas sociedades que, com luxo e esplendor, vão
aos grupos substituindo os antigos cordões, que
imperceptivelmente estão aderindo á idéia do Sr.
Hipólito Jovino, o introdutor deste uso baiano no
Rio de Janeiro. O que aqui, na capital da República, vemos agora é comum no estado da Bahia,
nas festas de Reis, em janeiro. E como aqui não
é permitido o uso de fantasias naquele dia, o
Sr. Hilário fé-lo para o carnaval, e sua idéia teve
geral aceitação.
Uma diferença muito grande existe dos ranchos cariocas para os ranchos baianos. Os daqui
são mais ricos e agora mais lindos e originais na
variedade de harmonia e canto. Os mestres-salas, ou balizas, obedecem ao mesmo sistema de
dançar, procurando apenas cada um apresentar
novos passos e desenvolver as manobras. Os
mestres-salas mais antigos são discípulos do Sr.
Hilário, que tem hoje como seu substituto seu
filhinho, o Bilu, que todos conhecem e estimam
pelo seu garbo e entusiasmo.
O que é verdade, o que já estamos vendo é
que daqui a uns cinco anos todos esses cordões
estarão transformados em ranchos, dando assim
outra feição e maior deslumbramento ao carnaval
carioca.
A matéria descreve os ranchos que visitaram
a sede do Jornal do Brasil e informa que a Sociedade Flor do Abacate havia recebido o honroso
convite do presidente do Brasil, Marechal Hermes
da Fonseca, para se apresentar no Palácio do
Catete. Era a aceitação pública dos ranchos pelo
poder máximo da República.
o criador
A historiografia carnavalesca consagrou a
versão de fundação dos ranchos carnavalescos,
dada ou construída, por Hilário Jovino Ferreira e
seu amigo Francisco Guimarães, o jornalista de
alcunha Vagalume, que atuou muitos anos no
Jornal do Brasil e no Diário Carioca e, escreveu
um interessante clássico, “Na roda de samba”.
Segundo matéria publicada no Jornal do Brasil de
18 de janeiro de 1913, foi Hilário o responsável
pela introdução do rancho carnavalesco ao criar,
em seis de janeiro de 1894, o pioneiro e famoso
Rei de Ouro:
“Em 1872, quando cheguei da Bahia a 17
de junho, já encontrei um rancho formado. Era o
Dois de Ouro, que estava instalado no Beco João
Inácio ,17. Ainda me lembro, o finado Leôncio foi
quem saiu na burrinha. Vi, e, francamente, não
desgostei da brincadeira, que trazia recordação
do meu torrão natal; e, como residisse ao lado,
isto é, no Beco João Inácio,15, fiz-me sócio e depressa me aborreci com alguns rapazes e resolvi
então fundar um rancho.
Fundei o Dois de Ouro que deixou de sair no
dia apropriado, isto é, a seis de janeiro, porque
o povo não estava acostumado com isto. Resolvi
então transferir a saída para o carnaval.
out/nov/dez 2006 33
a turma do funil
Os ranchos tiveram tal
aceitação que o presidente
Hermes da Fonseca convidou
alguns para se apresentarem
no Palácio do Catete
Daí veio a febre de ranchos e foram aparecendo: o Rosa Branca, que fundei com João Ratão e
Amélia Zeferina, e onde estive apenas por um ano,
porque resolvi fundar o Botão de Rosa...”
Em outra entrevista a Vagalume, publicada no
Diário Carioca, em 27 de fevereiro de 1931, Hilário
acrescenta dados à de 1913, como a fundação do
Rei de Ouro que teria se dado no dia 6 de janeiro
de 1893, numa reunião de freqüentadores do botequim do Paraíso – o próprio Hilário autonomeado
o autor da idéia, Luiz de França, Avelino Pedro de
Alcântara e João Câncio – na Rua Larga de São
Joaquim, atual Marechal Floriano.
Hilário concluiria declarando-se injustiçado
pelos seus companheiros – acontecendo “a luta
das criaturas com o “Criador” -, pois pretendiam
alijá-lo do comando das sociedades fundadas por
ele e não reconhecê-lo como o “Criador”.
A leitura atenta dessas duas entrevistas revela
contradições. Primeiro, refere-se à data de chegada de Hilário ao Rio como sendo em 1872, o
que é incoerente com a fundação do rancho Dois
de Ouro, criado na década de 1890. è possível
que tenha havido erro de impressão e ele tenha
declarado o ano de 1892. Segundo, a inconstância de Hilário, não tendo se fixado em nenhuma
das agremiações, e a conclusão de que foi traído
por todos podem ser indício de uma pessoa de
difícil relacionamento. Ou então estava moldando
34 Carioquice
sua versão de “Criador”, e qualquer contestação
decorreria do caráter traiçoeiro de seus antigos
companheiros.
Os dados biográficos sobre Hilário Jovino
Ferreira, apresentados pelos diversos autores
que o citam, são parcos e contraditórios. Alguns
afirmam que ele era baiano e outros, pernambucano, mas que viveu na Bahia e de lá teria vindo
para o Rio. São unânimes em datar sua chegada
ao Rio em 1872, usando a mesma data que
aparece publicada em sua primeira entrevista.
Sérgio Cabral no clássico “As escolas de samba:
o quê, quem, como, quando e porquê” é mais
informativo e assegura que Hilário faleceu na
terça-feira, 28 de fevereiro de 1933. Vagalume,
em crônica no Jornal do Brasil, afirmava que ele
teria morrido em 28 de fevereiro de 1911. Ary
Vasconcelos em seu livro “Panorama da música
popular brasileira na belle époque”, presenteou
os leitores com uma foto de 1911, onde Hilário
aparece com um grupo de foliões do Ameno Resedá, num piquenique na Ilha de Paquetá. O livro
ainda reproduz uma entrevista de 1961, dada por
Donga (Ernesto dos Santos) ao jornal O Globo,
descrevendo a fundação do rancho Dois de Ouro
e revelando como Hilário Jovem tomou a mulher
de Miguel, chamada Tia Amélia Quindende.
“Em 1895, na casa de Tia Sadata, na Pedra
do Sal, foi fundado o primeiro rancho oficial do
Rio de Janeiro. Era o Rei de Ouro, e entre seus
fundadores estava um menino de 14 anos, Oscar
Luiz de Moraes, sambista de raça, o Caninha.
Calejo e Isabel Veludinho, as duas filhas de Tia
Sadata, eram suas saiolas principais. As saiolas
eram as pastoras daquele tempo. Pouco depois
houve uma cisão no rancho. Saíram o tenente
Hilário e João Cândido. Nunca ficou muito claro o
motivo da cisão mas, quando o Hilário tomou a
Tia Amélia Quindende do Seu Miguel, na Rua da
Alfândega, todos pensaram que ele já viera da
Pedra do Sal com essa intenção (...) Nessa época,
seu Miguel estava pensando em organizar o Rosa
Branca, que seria o segundo rancho. Desgostoso
com a perda de Amélia, entregou todo o material
já encomendado a Tia Ciata, que foi organizar o
Rosa na Visconde de Itaúna”.
A Hilário – que também é titulado pelos autores
como tenente da Guarda Nacional – atribuem a autoria
dos sambas “Não és tão falado assim” e “Entregue
o samba a seus donos”. Por fim, há unanimidade de
que foi ele quem trouxe o desfile de ranchos para o
carnaval carioca. É curioso que nenhum estudioso da
história dos carnavais tenha feito um estudo aprofundado sobre o “criador” dos ranchos.
De posse dessas poucas informações e referências sobre Hilário, fui aos arquivos Nacional,
do Colégio Brasileiro de Genealogia do Rio de
Janeiro, da Cúria Metropolitana em busca de
dados sobre o casamento e à Biblioteca Nacional à procura de informações complementares.
Consegui apenas três documentos no Arquivo
Nacional referente aos anos de 1902, 1921 e
1928. Todos eles aludiam à questão da falta de
pagamento de aluguel de cômodos e casas em
que Hilário residiu. Pelo primeiro documento de
1902, ficamos sabendo que Hilário morava na
Travessa das Partilhas, 16, e que freqüentava ou
tinha segunda moradia na Rua Barão de São Félix,
157, cujo aluguel estava devendo há meses.
Para cobrar-lhe a dívida, o senhorio mandou
seu administrador, Francisco Limeira de Albuquerque em 15 de setembro de 1902, à sua casa.
Francisco foi repelido com ameaças por Hilário,
que estava armado de revólver “carregado com
cinco balas”. Veio em socorro do cobrador Antonio Messias Negrão, soldado do Exército que,
ao enfrentar Hilário para desarmá-lo, foi por
ele ferido na mão. Hilário foi preso em flagrante
delito e enquadrado nos artigos 303 e 307 do
Código Penal.
No auto da qualificação o réu Hilário Jovino
Ferreira declarou em oito de outubro de 1902:
ser filho de Joviniano Ferreira; ter 29 anos de idade; ser solteiro; carpinteiro de construção naval;
ser brasileiro de naturalidade pernambucana;não
saber ler ou escrever; residir na Travessa das
Partilhas, 16 (atual rua Costa Ferreira), situada
no bairro da Gamboa.
Dezenove anos depois, em 1921, Hilário estaria sendo despejado do cômodo cinco da casa
situada na Rua Nabuco de Freitas, 85, Santo
Cristo. E, em 1928, vamos encontrar, mais uma
vez, Hilário respondendo a processo de despejo.
Dessa vez estava numa casa de vila, situada na
Rua do Catete, 42, casa 5ª.
Portanto, fundamentado nesses novos documentos, podemos afirmar que o “Criador” dos
ranchos era pernambucano, solteiro em 1902
– evidência de que não se casou com Tia Amélia
Quindende, que tomara do carnavalesco Miguel
– e que nasceu em 1873, o que evidencia a impossibilidade de sua chegada ao Rio em 1872.
Também é pouco provável que Hilário fosse
tenente da Guarda Nacional, pois era pobre e
envolvido em processos judiciais. Além disso,
consultando-se a documentação sobre essa
instituição no Arquivo Nacional, verifica-se não
constar referência a ele.
Diante de tantas lacunas e informações
contraditórias, é necessária uma pesquisa mais
profunda sobre Hilário Jovino Ferreira, o principal
criador dos ranchos cariocas.
Nireu Cavalcanti é Arquiteto e Doutor em História
out/nov/dez 2006 35
era do rádio
1922:
o ano em que
roquette nos ensinou a ouvir
Só podia ser obra do Cristo Redentor. A primeira antena radiofônica foi
instalada no morro do Corcovado. Desde lá, a história de Roquette Pinto
se confunde com a trajetória do rádio no Brasil. E até hoje surfamos nas
ondas invisíveis de sua obra mais duradoura: a Rádio Mec, que completa
sete décadas em 2006.
O final do século XIX foi pródigo em grandes
descobertas. Foi quando surgiram a lâmpada,
o eletroscópio (instrumento destinado a medir
cargas eletrostáticas) e um aparelho que revoluRoquette Pinto
36 Carioquice
cionaria as comunicações: o rádio. Até hoje não se
tem certeza absoluta de quem foi seu criador. No
Brasil, não há a menor dúvida na hora de prestar
homenagem ao santo padroeiro da rádio: Edgard
Roquette Pinto.
Quando o carioca Roquette Pinto presenciou,
em 1922, a primeira transmissão radiofônica do
Brasil – empresários norte-americanos instalaram uma antena no alto do morro do Corcovado
para emitir um discurso do então presidente
Epitácio Pessoa –, sonhou alto: “Eis uma máquina
importante para educar nosso povo”. Naquele
exato instante, nascia a fascinação – e também
fixação – de um brasileiro pelo rádio.
Desde que observou aquele momento mágico
– o som viajando pelo ar –, tentou persuadir o
governo federal a investir na compra de equipamentos para emitir e receber sinais radiofônicos.
Não conseguiu tornar o incentivo ao rádio um
programa governamental. Persistente, foi bater
à porta da Academia Brasileira de Ciências. Para
nossa sorte, os cientistas foram mais sensíveis
que os governantes. Compraram a parafernália
Beatriz Roquette-Pinto nos estúdios da Rádio Sociedade
que permitia transmitir sons em ondas radiofônicas que olhos humanos não podem ver. “Eu vivia
angustiado porque já tinha a convicção profunda
do valor informativo e cultural do sistema, desde
que ouvira as transmissões que foram dirigidas
na época pelos engenheiros J. C. Stroebel, J. Jonotskoff e Mario Liberalli. Uma andorinha só não
faz verão; por isso resolvi interessar no problema
a Academia de Ciências, presidida pelo nosso
querido mestre Henrique Morize. E foi assim que
nasceu a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a 20
de abril de 1923.”, escreveu Roquette à época.
Foi dado, assim, um grande salto para a
comunicação brasileira. Com o prefixo SQA-A,
entrava no ar, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Aparelhos de rádio não eram objetos tão
conhecidos da população brasileira. Nos Estados
Unidos, já tinham virado coqueluche. Para ganhar
ouvintes, Roquette bolou a seguinte estratégia:
a pessoa se cadastrava na emissora e ganhava
um equipamento para ouvira programação em
casa. Não poupou esforços para que o projeto
desse certo. Deixou de lado a medicina e a antropologia. Sua paixão era mesmo o veículo que
ele mesmo definiu como “ o jornal de quem não
sabe ler, o mestre de quem não pode ir à escola,
o divertimento gratuito do pobre”. Dedicou sua
vida ao estudo da radiofusão.
Quarteto de cordas Rádio MEC
Focando o enriquecimento cultural da população, a Rádio Sociedade foi a primeira a irradiar
uma ópera completa, “L´Amico Fritz”, no dia 14
de dezembro de 1924. Um ano depois, a Sociedade já transmitia três jornais falados. O ano de
1925 marcou também o início do caminho do
rádio ligado à educação. Tiveram início as emissões de aulas de Português, Geografia, História
do Brasil, Higiene, Francês, Física e Química .
O ano de 1936 foi definitivo para a popularização do rádio no Brasil. Aparelhos passaram a
ser vendidos em lojas, ampliando a divulgação e
o frisson em torno daquela maravilha tecnológica.
E Roquette Pinto doou a Rádio Sociedade do Rio
de Janeiro ao Ministério da Educação e Cultura
(MEC). Era o início da história da Rádio MEC. No
entanto, uma decisão do então ministro titular da
pasta, Gustavo Capanema, irritaria nosso patrono
da radiodifusão. Capanema decidiu incorporar a
rádio ao sombrio Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), nada menos que o pesado
braço da censura exercida pelo governo Vargas
à época do Estado Novo.
Roquette Pinto exigiu que fosse garantido à
emissora sua autonomia e a preservação de seu
papel essencialmente educativo. Seus esforços não
foram em vão e tanto uma como a outra exigência
foram atendidas. No dia que oficializou sua saída
out/nov/dez 2006 37
era do rádio
da rádio, chorou. Disse, ao entregar sua criação,
que sentiu a mesma emoção de um pai que casa
sua filha. Mal sabia que, a partir dali, dava asas
para novos e mais ousados vôos da rádio.
Era o início de uma história que já soma 70
anos, mantendo seus ideários até hoje. “Roquette
já pensava o rádio como algo público, voltado
para a educação de qualidade. Só que aquela
estrutura da Rádio Sociedade não era competitiva
para o mercado de então. Hoje a Rádio a MEC não
tem mais ligação alguma com o Ministério da Educação, mas mantivemos o nome, em homenagem
ao tripé: musica, educação , cultura”, diz Orlando
Guilhon, diretor-geral da Rádio MEC.
A essência educacional permanece. “Mantivemos uma visão da educação no sentido pleno
da palavra. Tanto que um de nossos áureos foi
justamente um programa educacional: o famoso
Equipe de rádioteatro
38 Carioquice
Projeto Minerva, onde transmitíamos em cadeia
cursos de primeiro grau, complementados com
material impresso. Foi o sucesso dos anos 70. Até
hoje não perdemos esse viés educativo, num sentido mais amplo: educação para cidadania. Ainda
hoje há uma série de programas voltados para
educação. Para exemplificar, atualmente estamos
fazendo campanha para estimular a população a
visitar museus”, diz Guilhon.
A rádio acabou se dividindo em duas: em
1983, foi criada a MEC FM, cuja programação é
voltada para música clássica e jazz. Já a MEC AM
é dedicada a programas informativos e educacionais e à música popular brasileira.
“A Rádio MEC é fundamental pois é o veículo
em que a música popular brasileira ganha destaque ímpar”, avalia o pesquisador e jornalista
Ricardo Cravo Albin, que empresta seu nome
a programas da rádio, totalmente dedicados a
sua grande paixão, a música popular brasileira.
A cada sábado, sempre às 18h pela MEC-FM, às
segundas e aos domingos, sempre às 17horas,
pela MEC-AM, o pesquisador apresenta, nestes
últimos 35 anos, histórias de grandes compositores e intérpretes da MPB.
Hoje a MEC é guardiã de um dos mais importantes acervos do rádio brasileiro, com quase 50
mil fitas de gravações e programas temáticos.
Só o patrimônio de vozes reúne falas como as
de Getúlio Vargas, Luiz Carlos Prestes, Monteiro
Lobato, Carlos Drummond de Andrade, John Kennedy, Vinícius de Moraes, Winston Churchill, Baden
Powell, Ary Barroso, entre muitos outros. Em seu
acervo musical, estão pérolas como os títulos a
“Antologia do Choro”, “Quadrante”, “História do
Jazz” e “O humor na História da Música”, além de
fitas com gravações inéditas de grandes momen-
tos das músicas brasileira e internacional.
“Na Rádio MEC, a MPB sempre foi exibida nas
suas configurações mais nobres. Nas décadas de
30 e 40, lá eram recebidos orgulhosamente gente
do porte de Ary Barroso, Pinxinguinha, Custódio
Mesquita, entre tantos. Outro momento marcante
foi quando Jacob do Bandolim e seu conjunto
fizeram temporadas nos estúdios apenas para
exibir o lado artístico de suas obras, graças ao
trabalho de diretores como Fernando Tude de
Souza e José Cândido de Carvalho. Nos anos 50
e 60, além das transmissões ao vivo do Theatro
Municipal, o produtor Paulo Santos chegou a
transmitir festivais de jazz e de bossa nova, a
partir de vários teatros”, recorda Albin.
Por essas e muitas outras é que a Rádio MEC
acaba de ganhar o Prêmio Estácio de Sá de Comunicação, do Conselho Estadual de Cultura. Sinal
de que Roquette Pinto estava certíssimo.
Magalhães Graça
out/nov/dez 2006 39
pêra, uva, maçã...
frutos dadivosos da ribalta
por
mônica sinelli
Já se disse não foi uma vez, nem duas, três, nem quatro: não há gente
como a gente, gente de teatro – ensina Caetano Veloso. E com toda a razão.
Encantar não é tarefa para qualquer um. Exige-se regência da tessitura de
matéria especial, aquela com que os sonhos são feitos. Isso é um trabalho
para os “Pêra”, personagens obrigatórios do palco nacional.
Dinorah Marzullo
40 Carioquice
Manoel Pera
“O Crime do Banhado”, dirigido por Francisco
Santos nos idos de 1914. Duas décadas mais tarde, ao trabalharem na mesma companhia teatral,
Manoel e a também atriz Antônia Mazullo ficaram
amigos. Ambos tinham a mesma idade.
Antônia, que naquela época já era multimídia
– além do teatro, marcava presença no cinema,
no rádio e na TV -, era mãe de Dinorah. Aos
20 anos, a filha havia sido também fisgada pelo
palco, tendo estreado aos 16, no Teatro Recreio,
na carioquíssima Praça Tiradentes. Estamos em
meados de 1939 e os três encontravam-se em
temporada na cidade de Porto Alegre com a peça
“Pensão da Dona Estela”. Antônia reclamava
que ela e a filha saíam sempre tarde do teatro
e caminhavam sozinhas até o hotel. Tanto homem no grupo e ninguém acompanhava as duas
mulheres na calada da noite. Mas rapidamente
esses problemas acabaram: o camarada Manoel
prontificou-se a desempenhar o novo papel de
Sandra Pêra em show das Frenéticas
Marília Pêra em “Apareceu a Margarida”, no Teatro Ipanema
Corria o ano da graça de 1899. Os irmãos
Manoel, com 5 anos de idade, e Abel, com 9,
desembarcavam no Brasil vindos de Portugal,
diretamente para Santa Maria, no Rio Grande
do Sul. Mas logo migraram para outro Rio - de
Janeiro – e começaram a escrever a história de
uma das mais tradicionais famílias de artistas do
país: a dos Marzullo-Pêra: Manoel, Abel, Dinorah,
Marília, Sandra, Ricardo, Esperança, Nina, Amora.
E quem mais chegar. Essa tribo abraçou uma
missão seriíssima nessa vida: deixar os lugares
por onde passa mais felizes.
E tem, claro, uma coisa atrás da outra para
contar. Rebobinemos a fita até o ponto em que os
portugas Manoel e Abel Pêra dão seus primeiros
passos em teatro, como carpinteiros. Falta ator
aqui, falta ator ali, pronto: viraram atores. E em
grande estilo, fizeram o primeiro filme do Brasil,
out/nov/dez 2006 41
pêra, uva, maçã...
Sandra Pêra, Amora Pêra, Dinorah Marzullo, Nina Morena, Esperança Motta e Marília Pêra: aniversário da matriarca
guardião das Marzullo.
Um belo dia, Manoel e Antônia conversavam
amistosamente no hotel em que se hospedavam.
Sem mais nem menos, ele vira-se para Dinorah e
lança o inesperado torpedo: “Quer casar comigo?
Eu posso ser seu pai, mas estou falando sério,
hein?” O galã da companhia era 26 anos mais velho. “Eu dava ´sopa´ para ele, que nem me olhava, lembra Dinorah. Assustada, perguntei para
minha mãe: “ Posso?”. Ao que ela respondeu: “
Não sei, você que sabe...” E minha resposta não
podia ser outra.”- Ah, então eu quero”.
No dia seguinte, ela chegou ao teatro e contou a
boa nova para todo mundo. E ele, com as alianças
de noivado. O casamento civil aconteceu um mês
depois, no...palco! Um pouco antes do espetáculo,
o juiz, muito nervoso, porque nunca tinha celebrado matrimônio para público tão grande (o teatro
estava lotado), oficializou a união, que duraria 28
anos, até Manoel falecer, em 1967. E que traria ao
mundo as herdeiras Marília e Sandra.
42 Carioquice
assim nasceu o contra-regra
Manoel Pêra teve sua própria companhia
teatral, mas trabalhou também na de outros
atores, como Procópio Ferreira, Dulcina de Moraes, Madame Morineau e Elza Gomes & André
Villon. Eram grandes companhias, que viajavam
pelo Brasil, com elenco numeroso e cenários
grandiosos. Isso numa época em que ninguém
sonhava com os patrocínios milionários de hoje.
Havia duas sessões todos os dias da semana,
sendo que de quinta a domingo a média era de
três. Algo impensável atualmente. A tradicional
folga das segundas-feiras, aliás, foi inventada por
Odilon Azevedo, marido de Dulcina, por ser o dia
em que havia menos público.
Com Dinorah e Manoel já casados, Dercy Gonçalves convidou-os para trabalhar em sua companhia. Na época, fazia-se o chamado teatro de repertório: cada semana, um mesmo grupo montava
um espetáculo diferente. O casal havia combinado
de, no dia em que fosse encenada uma das peças
da qual não participaria, aproveitar a folga para
desfrutar de momentos de lazer. Mas, que nada!
A comediante (e patroa) embargou o doce projeto
dos pombinhos, argumentou que não iria trabalhar
para eles e tratou logo de arrumar um servicinho
para cada um. Manoel cuidaria da eletricidade.
Dinorah, com figurino de doméstica, mudaria objetos do cenário na frente do público. Bingo! Dercy
acabava de inventar o contra-regra.
Quatro anos após o casamento, em 1943,
nascia a primeira filha de Manoel e Dinorah. Como
vivia para cima e para baixo com os pais, inclusive
Brasil afora, a menina foi literalmente criada nas
coxias. Numa dessas viagens, a companhia da
venerável Madame Henriette Morineau precisou
de uma criança para atuar na tragédia grega
“Medéia”. E lá se foi quem? Quem? Senhoras
e senhores, era 1947 e Marília Pêra subia pela
primeira vez num palco, aos 4 anos de idade. Ali
começava uma carreira marcada pela mão da
disciplina. “Uma vez, lembra ela, durante este
espetáculo, eu estava com o braço muito machu-
cado e alguém, sem querer, o apertou com força.
A dor foi intensa e perdi a fala em cena.” Cortina
fechada, a imponente dama francesa fulminou,
implacável, para a pequena: “Uma atriz morre,
mas cumpre o seu dever.”
Para que discutir com madame? A criança
já estava brincando em cima daquilo com toda
a seriedade do mundo. Como uma força da natureza. Aos 15 anos, Marília persuadiu o velho
Pêra a deixá-la dançar em “De Cabral a JK”, de
Hora da entrada em cena dos
herdeiros e das herdeiras.
O primeiro é Ricardo Graça
Mello, filho de Marília, hoje
com 45 anos. Ele era a voz de
“De repente, Califórnia”, hino
surfista de autoria de Lulu
Santos e Nelson Motta
out/nov/dez 2006 43
pêra, uva, maçã...
Max Nunes. Nesta revista, começou a namorar o
ator Paulo Graça Mello, pai de seu primeiro filho,
Ricardo. Três anos depois, em 1972, já separada
de Paulo (que faleceu num desastre de automóvel
em 1969), integrou, também como bailarina, o
elenco do musical “My fair lady”, estrelado por
Bibi Ferreira. Daí para a frente, tem sido um turbilhão de serviços prestados à cultura brasileira.
Participou da lendária “Roda viva”, de Chico Buarque, em 1968 e, no ano seguinte, ganhou seu
primeiro Prêmio Molière com “Fala baixo senão
eu grito”, de Leilah Assunção. Em 1973, foi a
vez de lotar o Teatro Ipanema com “Apareceu a
Margarida”, de Roberto Athayde – e arrebatar
o segundo Molière. O terceiro veio dez anos
depois com “Brincando em cima daquilo” (Dario
Fo e Franca Rame). Até chegar a “Mademoiselle
Chanel”, de Maria Adelaide Amaral, que estreou
em 2004 e voltou à cena este ano, são incontáveis
espetáculos, inclusive como diretora. Sob sua regência, a peça “O Mistério de Irma Vap”, com Ney
Latorraca e Marcos Nanini, transformou-se num
impressionante fenômeno teatral, permanecendo
“O Mistério de Irma Vap”, com Ney Latorraca e
Marco nanini, dirigida por Marília Pêra, que acaba de
ganhar o Golfinho de Ouro de Artes Cênicas 2006
dez anos em cartaz.
Mas, acredite, seis décadas de incansável
dedicação ao teatro ainda não foram suficientes
para superar os pânicos insondáveis que rondam
o momento mágico de subir ao palco. “É cada
vez pior. Pouco antes do início do espetáculo, me
pergunto: ‘Por que escolhi essa profissão?’ Acho
que será sempre assim. Mas esse medo não me
neutraliza. Quando a platéia é boa, ele some na
hora. Quando não, vou fundo para conquistá-la.
Eu quero fazer as pessoas felizes”, assevera
Marília. E, sempre que possível, na companhia dos
consangüíneos. “Gosto de espetáculos que partem do ninho familiar. Tenho pedigree. Pertenço a
uma dinastia do teatro brasileiro”. Indiscutível.
Venerada nos palcos, Marília Pêra vem brilhando ao longo do tempo também nas telas nacionais,
em mais de 20 filmes como “Bar Esperança”, de
Hugo Carvana, “Tieta do Agreste” (Cacá Diegues) e
“Central do Brasil” (Walter Salles), além da tocante
atuação em “Pixote, a lei do mais fraco”, de Hector
Babenco, que lhe valeu o prêmio de Melhor Atriz
da Associação dos Críticos Americanos em 1981.
A popularidade veio com interpretações marcantes
em televisão – onde chegou a estrelar o programa
“Viva Marília!” -, como nas novelas “Beto Rockfeller” e “O Cafona” (Bráulio Pedroso), “Bandeira
2” (Dias Gomes), “Uma Rosa com Amor” (Vicente
Sesso); e “Supermanoela” (Walter Negrão). Sem
falar nos seriados “Brava gente”, “Os Maias” e,
mais recentemente, “JK”, em que viveu uma comovente D. Sarah.
prazer em conhecer
Marília tinha 11 anos quando nasceu sua única irmã, que mais tarde iria fazer o país inteiro
dançar com as Frenéticas nos trepidantes anos
70. Uma das primeiras lembranças de Sandra
Pêra em relação ao mundo dos artistas é de
quando Dinorah a levou para assistir a um filme
44 Carioquice
do qual participava. Sandra caiu em prantos,
achando que ficaria sozinha na platéia. Aos 5
anos, não entendia como a mãe poderia estar
ao mesmo tempo na tela e a seu lado na platéia.
Outro motivo de caudalosos rios de lágrimas foi
a peça montada por Manoel, Dinorah e Marília,
contando a história de um casal que tinha uma
filha adolescente. Drama familiar puro. Sandra,
na coxia, chorava dramaticamente. “Eu sabia que
era teatro, mas não deixava de ser tudo muito
confuso. Havia um pai, uma mãe e uma filha em
conflito que, por acaso, eram meu pai, minha mãe
e minha irmã. Eu sofria muito vendo aquilo toda
noite,” ri Sandra.
Ela tinha dez anos quando Marília carregou-a
para um teste no musical “A Noviça Rebelde”, em
meados da década de 60. “Tudo o que eu queria era ser uma daquelas sete crianças. Só que,
naquela época, eu já era desse tamanho (obs:
ela tem 1,80m). Não havia chance para mim. Eu
era uma coisa imensa”. Sua estréia à vera no
teatro foi aos 16 anos, em 1970. Toda noite,
ela ia assistir à mãe no espetáculo “Aqui, ó!”, no
Teatro Poeira, um badalado espaço underground
da época, na Praça General Osório, em Ipanema.
Sabia, claro, a peça de cor e salteado. Domingo
veio em que uma das atrizes simplesmente “mandou o Lima” - jargão do meio artístico para informar que a pessoa não apareceu para trabalhar.
Com isso, a primeira sessão do dia precisou ser
suspensa. Nesse ínterim, o restante do elenco
começou a dar tratos à bola para não ter de
cancelar também a segunda. Eis que a bailarina
chilena Carmen Ubilla, irmã de Daniel Filho, lança
a flecha certeira no coração do destino: Y por
que non Sandra?
Tchan, tchan, tchan, tchan, oh, suspense dos
suspenses. Como se alguém precisasse sondar
se criança deseja brinquedo, ela conta: “Nem
me perguntaram se eu queria. Roupa, biquíni,
sapato, nada cabia em mim, enorme daquele
jeito. Fizeram gambiarra no figurino todo. Entrei
sem nenhum ensaio. A peça não passou de um
retumbante fracasso, mas eu era a pessoa mais
feliz do mundo.” Imagine o que ela teria respondido à dispensável consulta...
Na seqüência, em 1971, Marília Pêra encenou
“A Vida escrachada”, revista de Bráulio Pedroso
que se tornaria um estrondoso sucesso no Rio,
permanecendo mais de um ano em cartaz. Marília então perguntou à Sandra (sim, desta vez
a democracia prevaleceu e ela teve o inalienável
direito de pronunciar-se): “Quer fazer teatro?”
Após o, novamente, desnecessário inquérito, a
irmã mais velha decretou: “Nesse caso, em vez
de continuar em coisas que não dão certo, vem
trabalhar comigo.” Ato contínuo, Sandra passou
a atuar no espetáculo – escondido, pois ainda
era “di menor” – ao lado dos hoje consagrados
Marco Nanini, Zezé Motta, André Valli, Pedro
Paulo Rangel, Otávio Augusto, entre outros.
Mas o estouro mesmo veio com as Frenéticas
(com Regina Chaves, Lidoka, Edir, Dudu e Leiloca),
o furacão que saiu da boate Dancing Days de
Nelson Motta, no Rio, para sacudir o Brasil inteiro
nos anos 70, na carona da novela homônima da
TV Globo. “Nós arrebentamos, porque trazíamos
o novo, apesar de, na época, não termos a menor
noção disso. Nelson inovou ao introduzir mulheres
como garçonetes e nós, que éramos todas de
teatro, revolucionamos ainda mais ao sugerir a
ele que também cantássemos. O público adorava,
era tudo extremamente espontâneo. Fazíamos
shows no Brasil inteiro. Nos divertíamos muito.
Éramos felizes e sabíamos”, brinca.
Sandra tem também passagens pela televisão,
onde fez trabalhos em “Mandacaru” (1997),
na extinta TV Manchete, “Porto dos Milagres”
(2001) e “Desejos de Mulher” (2002), na TV
Globo. E é pé quentíssimo. Sua primeira experiên-
out/nov/dez 2006 45
pêra, uva, maçã...
cia como diretora de teatro, a peça “Acredite, um
espírito baixou em mim”, de Ronaldo Ciambroni,
que estreou em 1998, está em cartaz até hoje,
dessa vez em São Paulo, e aterrissará novamente
no Rio ainda este ano.
terceiro sinal
Hora da entrada em cena dos herdeiros e das
herdeiras. O primeiro é Ricardo Graça Mello, filho
de Marília, hoje com 45 anos. Ele era a voz de
“De repente, Califórnia”, hino surfista de autoria
de Lulu Santos e Nelson Motta e carro-chefe da
trilha sonora de “Menino do Rio”, do qual também participou como ator. Este filme - de Antônio
Calmon sobre a juventude da Zona Sul carioca
do começo dos anos 80 - teve sua continuação
em “Garota Dourada”, de 1984, em que Ricardo
também atuou e interpretou a canção-tema.
Atualmente, ele segue na estrada de cantor e
ator: integrou o musical estrelado por sua mãe
“Marília canta Carmem Miranda”, faz shows pelo
Brasil e participa do programa “Zorra Total”, da
TV Globo. E vai lançar em breve um CD recheado
de composições próprias e regravações de seus
hits oitentistas.
“Já nasci dentro do teatro. Além de minha mãe,
meu pai e meu avô (Augusto Graça Mello) também
eram atores. É um orgulho vir de onde venho”,
declara o varão entre as meninas. Ricardo lembra
que, quando Marília Pêra estava fazendo a peça
“A Moreninha”, em São Paulo, ele, então com
apenas 6 anos, ia toda noite vê-la e acabou de-
Marília Pêra e Marco Nanini em Pippin, de Roger O. Hirson e Stephen Schwartz
46 Carioquice
corando o texto inteiro. Resultado: cada vez que
um ator precisava ser substituído, era o pirralho
quem ensaiava o novo integrante. “Um dia, um
dos atores me cobriu com a capa que usava e
entrou comigo em cena. Foi a primeira vez que
pisei no palco. A platéia achou graça e aplaudiu.
Não contente, depois de ter saído para a coxia, eu
voltei querendo receber mais aplausos.” Garoto
esperto, não negou os seus.
Depois de Ricardo, vêm suas irmãs Esperança
Motta (31) - atriz e produtora de elenco da TV
Globo - e Nina Morena (26) – no elenco de “Páginas da vida”, de Manoel Carlos -, filhas de Marília
e de Nelson Motta. E, completando a trupe, sua
prima Amora Pêra (25), o doce fruto de Sandra
com o compositor Gonzaguinha. As três meninas
estrearam no teatro, representando, cantando e
dançando, com, respectivamente, 14, 8 e 7 anos,
no musical “Elas por ela”. Marília, que interpretava várias cantoras, de Maria Callas a Elis Regina,
também dirigia o espetáculo em dobradinha
com Sandra (juntamente com André Valli e Beta
Leporace). E o diretor musical era Gonzaguinha.
Essa família é muito uniiiiiiiiiida...
Como mais um episódio a confirmar a regra,
em 1994, aos 18 anos, Esperança foi convidada
pela mãe para fazer “Ciúme”, peça que inaugurou o Teatro Leblon, hoje Teatro Marília Pêra.
Confessa que tremeu nas bases ao ser dirigida
por quem ela própria considera “um monstro do
teatro”. Nada que a impedisse de repetir a dose
sete anos depois, em “O amigo oculto”, de Augusto Boal, no Teatro do Sesi, no Centro do Rio.
Já teve passagem na telinha em “Mandacaru” e
“Brava gente”, mas é a telona sua verdadeira
paixão: quer dirigir cinema. Atuou nos filmes
“Central do Brasil” (1998) e “O viajante”, de
Paulo Cezar Saraceni (1999) ao lado da mãe e
do irmão Ricardo.
Já Nina contracenou pela primeira vez com a
mãe aos 22 anos, na peça “A filha da...” , de Carlos
Eduardo Silva, montada em 2002. No ano seguinte, ela estreou na televisão na minissérie “Um só
coração”, da TV Globo. “Viver no universo dos
artistas é muito divertido, conta ela. Na verdade,
não sei como poderia ser de outra forma, com uma
mãe atriz e um pai escritor, compositor e produtor
musical. Essa sempre foi a minha realidade. Graças
a meus pais, fui apresentada a muitas coisas no
teatro, televisão, cinema, festas, o que me deu uma
gama de referências para eu escolher as melhores
para mim.” No momento, ela está acabando de
rodar um longa inspirado no livro “Um romance
de geração”, de Sergio Sant’anna, sob a direção
de David França Mendes.
No fim da escadinha vem Amora Pêra, uma das
integrantes do quarteto vocal Chicas. A cantora
também exercita bastante sua porção atriz, inclusive na companhia da mãe, como em “Francisco
de Assis”, direção de Ciro Barcelos, e “Capitães de
areia”, de Victor Hugo. Uma historinha, aliás, que
ilustra lindamente a predestinação desse clã tão
especial na vida brasileira é a que enquadra Amora
em seu primeiro papel de protagonista, como a
Dorothy, de “O Mágico de Oz”. Na noite da estréia,
no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema, a então
iniciante atriz recebeu um vaso de flores de sua
avó Dinorah com um cartãozinho que dizia: “Minha
filha, essa é a melhor profissão do mundo”.
Precisa dizer mais? “É muito difícil para um
filho de ator não se apaixonar por esse universo
– argumenta Sandra Pêra. Tudo é muito fascinante para a cabeça de uma criança. Nas férias,
nossos colegas viajavam por aí. A gente passava
as férias nas coxias. No palco não tem dor. Como
pode alguém ser feliz fazendo qualquer outra coisa?”, desafia ela. Quem se habilitar a responder,
e-mails para [email protected].
out/nov/dez 2006 47
pitaco
“circundando a lagoa,
arredondando a vida”
por
affonso romano de sant’anna
Então, o que estou lhe dizendo é que neste último domingo a Lagoa Rodrigo
de Freitas esteve mais do que nunca linda. Diria, iridescente. Até um chofer de
táxi comentou:- “Nunca vi essa Lagoa tão cheia de gente tão bonita”.
48 Carioquice
Vou andando na direção da antiga favela da
Catacumba. Que nome mais avesso do que estou
vendo agora. A alma hoje está ao Sol, livre das
catacumbas do noticiário.
Cães. Lindos cães peludos ou não com seus
peludos donos e donas bem tratadas, todos
se confraternizando, se cheirando, estudando
achegas sob as árvores. Pedalinhos contra o
azul, cisnes kitsches, bicicletas ziguezagueantes, carrocinhas, milho verde, água-de-coco. Os
quiosques. Almas e corpos ao sol.
Que pena dos paulistas no Ibirapuera.
Que pena dos argentinos no Parque do Retiro.
Que pena dos americanos no Central Park.
Então, considero esta Lagoa no domingo.
Ninguém veio aqui hoje conclamado para fazer
uma demonstração política neste domingo. Ninguém foi chamado para mais um abraço à Lagoa.
Ninguém porta faixa de protestos. E, no entanto,
o que estou vendo é um imenso manifesto reafirmando a vida.
O nada também é notícia.
Porque as notícias violentas, os conflitos, as
explosões, tudo isto, são apenas erupções na
superfície.
O nada é que é tudo.
Na verdade, aspiramos ao nada.
Há que estar maduro para o nada. O nada é
a coisa mais funda. Os distúrbios, sob forma de
acontecimentos, são exercícios de sofrimento,
rugas na manhã.
Como se nesse momento todas as tragédias
tivessem sido suspensas, as pessoas confluiram
para essas margens. Alguém está sendo assassinado, mas não é aqui. Alguém está sendo
violentada, mas não é aqui.
É como aquela estorinha que o professor no
ginásio contou, e que tantos anos depois, reponta
nesta manhã: naquela guerra de 1914-1918,
durante o Natal, os chefes das tropas francesas e
alemãs decidiram fazer um cessar-fogo para que
os soldados celebrassem fraternalmente a data.
Os beligerantes chegaram a sair de suas trincheiras e, segundo o professor, alemães e franceses
se deram as mãos, cantaram e dançaram.
Confraternizaram-se por alguns minutos e
daí a pouco pularam prá dentro das trincheiras
e começaram, de novo, a se matar.
Sempre achei essa estória inacreditável.
Desde sempre acho que este domingo não
devia terminar jamais.
Vou caminhando e pensando na crônica que
escreverei para esta quarta-feira. Na cabeça,
vários temas, enquanto passam titubiantes bicicletas, cães se enroscam e corpos olímpicos e
atléticos desfilam com igual desinibição.
Idéias não faltam para crônica. Nunca tive a
síndrome da falta de assunto, senão de excesso.
out/nov/dez 2006 49
pitaco
Assunto não falta, sobretudo os ruins. Todos
ligados aos problemas do cotidiano, coisas da
vaidade política e da perversa economia. Notícias
sugerem desdobramentos, há casos por contar,
lembranças de viagem, mas hoje não poderia haver notícia mais tocante que a tranquila felicidade
das pessoas em torno desta Lagoa.
Coincidentemente, nesses dias, descobri na Internet um jornal só de boas notícias(www.ciaboanoticia.
com.br). Dá prá crer? Só trás informação prá cima.
Não é nenhum jornal de Poliana, mas é que a alma
da gente quer mesmo descansar, pelo menos no
sétimo dia da semana, como fez o Criador.
Uma vez editei, lá em Minas, um “segundo caderno”, e no dia dos mentirosos, no 1º de abril, ousadamente publicamos só notícias que gostaríamos
de ter dado e a realidade não deixou. Você sabem,
a realidade, às vezes, atrapalha a gente passear na
Lagoa. E aquelas boas notícias que inventávamos
iam desde a cura do câncer até imaginar que o
Brasil estava emprestando dinheiro aos Estados
Unidos ou que um time de futebol de várzea havia
ganho o campeonato mundial de clubes.
Lá vou contornando a Curva do Calombo.
E agora que muitas árvores cresceram, numa
versão tropical de “ Grande -Jatte” de Monet,
agora que o manguezal deu um acabamento à
borda e melhorou a vida dos peixes, agora que
as pistas de corrida estão asfaltadas, agora, por
favor, salvem as demais lagoas da cidade. Não
posso pensar que outras lagoas são estupradas,
assassinadas e sequestradas alhures.
Que o Alcaide-mor dessa comarca, não permita que transformem aquilo ali perto do Piraquê
em mais um aterro. Está lá o sinal de alarme: já
diversas bandeirinhas sinalizam que barcos não
devem passar por ali, porque o espelho-d’água
está rasíssimo. O mato se alastra sobre a terra
acumulada. Mais um pouco e algum esperto se
apropria de mais uns 300 metros de extensão
da Lagoa. Seu Alcaide, manda logo dragar essa
parte, urgentemente, antes que nos seqüestrem
mais um pedaço de azul.E mande também dragar
aquela terra que se ajuntou em volta da estátua
do indiozinho pescador, feita pelo Pedro Correio
de Araújo, hoje exilado em Ouro Preto. Do jeito
que está, aquele indiozinho está dando flechada
não na água e nos peixes, mas na esperança da
gente.
Circundar a Lagoa.
Circundar a vida.
Arredondar a manhã.
Passam corpos falantes:
- “Não sei o que ele viu nela”.
Passa outro:
- “Nunca mais terei outro amante com o mesmo nome do meu marido”.
E passa outro:
- “Isto tudo depende de como você faz o
download”.
Há um fascinío no corpo humano. Fico a
olhá-lo de soslaio. O das adolescentes com a
barriguinha e bundinha no lugar, sob o short leve
ou a malha colada à perna. Há-os já ajuntando
gordurinhas na cintura. Há-os sarados e há-os
desdobrando barrocas volutas.
Ah, se plantassem cerejeiras sob as quais me
pus sonhando nesses dias, aquelas que estão florindo roseamente lá nas montanhas enxameadas
de vorazes beija-flores, que também só querem
o mel das notícias. Ah, se os jardineiros dessa
cidade gostassem mais de flores que de folhas.
E circundando a Lagoa, circundando a vida,
arredondando a crônica e a manhã, dentro de
mim ressoa aquela canção na qual a Elizeth- a
Divina, ia dizendo: “Luminosa manhã, pra que
tanto azul? Luminosa manhã, tanto azul é demais
pro meu coração”.
Affonso Romano de Sant’Anna é poeta e cronista
50 Carioquice
deslumbramento
r
evelações do rio
Um Rio como nunca se viu. É o que se revela pela lente apaixonada
do fotógrafo Helmut Batista, em “Rio de Janeiro 360º”. A luxuosa
publicação traz um mergulho profundo nessa urbe de sonho. São
imagens captadas por equipamento especial, que permite uma
abrangência panorâmica dos espaços focalizados. O texto, assinado
por Eliezer Batista, transveste-se de um inequívoco poema de amor à
cidade. Aqui, apresentamos alguns trechos dessa magnetizante viagem.
5252Carioquice
texto
eliezer batista
“Nietzsche costumava dizer que a grande
vantagem de se ter uma péssima memória é
apreciar as coisas boas da vida como se fosse
sempre a primeira vez. Jamais sofri de amnésia
– ou, pelo menos, não me lembro –, mas o Rio
de Janeiro me causa exatamente a sensação de
um eterno vernissage.
Desde aquele verão no início da década de
1940, quando cheguei de Minas Gerais e fui me
batizar com o “verde que te quero verde” da Floresta da Tijuca, tenho a impressão de que estou
vendo sempre à cidade pela primeira vez. O Rio
tem o dom de se revelar em cada novo ângulo.
ensaio fotográfico de
helmut batista
Basta um dia diferente, uma luminosidade distinta
e, pronto, uma cidade jamais vista se descortina,
com suas cores, suas formas e sua gente peculiares. Cada visão do Rio é uma epifania. Esta
é uma cidade que transcende o olhar humano,
limitado e incapaz de capturar suas infinitas minudências. O Rio foi feito para ser visto e revisto
em 360 graus.
Ao longo do tempo, cronistas, poetas e compositores de todos os ritmos ajudaram a construir
a imagem quase universal do Rio de Janeiro: a
da cidade praiana, bronzeada e malemolente,
que parece ter feito um pacto com o sol e com o
out/nov/dez 2006 53
deslumbramento
tempo, como se todos os dias fossem domingo
e todos os domingos fossem de verão. Longe de
minha intenção querer subverter a ordem natural
das coisas e reinventar o Rio de Janeiro sob uma
ótica absolutamente individual e pretensiosa. Ao
Rio o que é do Rio.
Porém, enxergar na cidade apenas e exclusivamente um balneário tropical é como dizer
que a beleza da Capela Sistina se deve somente
à sua nave principal. A suntuosidade de uma
catedral está na parte e no todo. Além de tudo
que já foi dito e escrito, a beleza do Rio não está
só na luz, no clima, no ar, nas rochosas curvas
que serpenteiam sobre o mar, na Baía de Guanabara – espelho que faria Narciso morrer nos
braços de Iemanjá –, mas também na maternal
capacidade de acolher rostos, línguas e etnias
de todos os cantos, no transbordante, embora
54 Carioquice
Enxergar na
cidade apenas e
exclusivamente um
balneário tropical
é como dizer que
a beleza da Capela
Sistina se deve
somente à sua nave
principal
Praia o Flamengo
não necessariamente bem aproveitado, potencial
para gerar riquezas e desenvolvimento social. O
Rio é a mais perfeita assemblage entre o óbvio e
o unconventional.
Deus criou o mundo em seis dias; reservou o
sétimo para decorar o Rio de Janeiro. A geomorfologia da cidade não tem paralelo em nenhuma
outra parte do mundo. Em alguns países, existem,
sim, regiões caracterizadas pelo encontro entre
o mar e a montanha, mas nada que se compare
à perfeita harmonia que estes dois elementos
alcançaram no Rio de Janeiro. A Avenida Niemeyer,
em São Conrado, é um caminho para os céus. O
relevo de pontões mais parece uma escultura
bordada no horizonte, com picos em forma de
monumento. Não são puramente montanhas
maciças e mal-acabadas, mas sim o estado da
arte aplicado à natureza. Os picos da Região
Serrana – o mais famoso deles, o Dedo de Deus
– são exemplares deste design sui generis. Este
relevo conferiu uma configuração distinta a toda
à região litorânea do Rio de Janeiro. Além dos
costões, há uma infinidade de ilhas, que ajudam
a formar uma aquarela única. A costa fluminense
é tão ou mais bonita do que os mares do sul,
notadamente o trecho que vai de Angra dos Reis
até a Região dos Lagos.
O que realmente caracteriza o Rio de Janeiro é
o conceito superlativo da harmonia: o encaixe dos
fatores elevado à perfeição. No âmbito da riqueza
ambiental, ele apresenta uma das mais raras e
perfeitas simbioses entre o sopro do Criador e a
mão da criatura: a Floresta da Tijuca, o primeiro
projeto de reflorestamento urbano em grande escala feito em todo o mundo. Trata-se de uma obra
absolutamente primorosa, pelos mais diversos
out/nov/dez 2006 55
deslumbramento
aspectos. Nasceu de um flash de genialidade do
imperador Dom Pedro II, que no fim do século XIX,
quando a palavra ecologia nem era usada, decidiu
eliminar centenas de hectares de plantações de
café para criar a maior reserva florestal jamais
dantes pensada no planeta. Além de sua beleza, a
Floresta da Tijuca exerce enorme influência sobre
as condições ambientais da cidade. Sem ela, o
Rio poderia ter sofrido um acelerado processo de
desertificação, com o desaparecimento de boa
parte dos seus recursos hídricos.
Os pulmões cariocas devem muito à Floresta
da Tijuca, incessante fonte de renovação do ar
da cidade, e, conseqüentemente, fator de amenização do clima. A floresta também contribui
decisivamente para o enriquecimento da flora
de toda a região. E faz muito bem aos olhos e à
cenografia do Rio. Quebra a luminosidade, dá uma
nova tonalidade às formações rochosas e realça
outras atrações. O Cristo Redentor, por exemplo,
não teria a mesma beleza se não estivesse fincado sobre esse verde pedestal.
Sob este altar de montanhas brilham córregos,
rios, lagos, águas que, por sinal, deram o nome
ao Rio de Janeiro. Aos pés do Cristo, temos a
Lagoa Rodrigo de Freitas, um oásis reverenciado
até mesmo pelo concreto que o cerca. Mas é
outro espelho d’água que os olhos do Redentor
56 Carioquice
não cansam de enxergar. A Baía de Guanabara
e sua enseada de curvas perfeitas constituem a
mais bela das visões urbanas. Uma cidade que se
ergue sobre esta plenitude de paisagem jamais
será uma cidade qualquer. É a mais bela cidade
do mundo. Acrescentar algo mais é até covardia.
Afinal, como dizia Schopenhauer, “a beleza é uma
carta aberta de recomendação”.
Carioca, Patrimônio da humanidade
Da cidade que abraça pessoas dos mais distintos rincões brotou um povo sem paralelo em
qualquer outro meridiano. O carioca deveria ser
tombado como patrimoine mondial. A capacidade
do Rio de Janeiro de ser um receptor universal
de raças e culturas foi determinante não só para
a intensa miscigenação étnica como também
para a definição da identidade, do caráter, dos
costumes, enfim, do modus operandi de seus
habitantes. Mais do que qualquer outro povo do
mundo, o carioca é a cidade em que vive. Essa
diversidade étnica e cultural tornou o Rio uma
cidade não-cosmopolita, mas sim cosmotrópica,
no mais grego e original dos sentidos. Kosmos
significa mundo. Cosmotrópico é tudo aquilo que
puxa na direção do mundo e – por que não?
– puxa o mundo em sua direção.
Essa heterose permitiu uma interessante
harmonização entre o povo do Rio e relevo, clima, vegetação e arquitetura locais. Parece que
um foi feito por osmose do outro. Ou melhor,
talvez não sejam elementos dissociados, mas
apenas delicados fragmentos de um mosaico
de inigualável beleza. Vejamos o carioca. Que
outro povo encarna de maneira tão definitiva a
cidade em que nasceu? Que outro povo combina
de modo tão irretocável com a luminosidade, a
topografia, a meteorologia, o céu e o calçadão
de sua cidade?
E no quesito personificação de uma cidade,
se o carioca é insuperável, a carioca é celestial.
Com todo o respeito, a mulher carioca foi feita da
mesma grafite que riscou a insinuante silhueta
do relevo da cidade. Quem olha para as curvas
de uma enxerga a sinuosa perfeição da outra.
Além disso, assim como o Rio, a carioca prima
também pela sua aparência peculiar. Admirá-la
é fácil, difícil é defini-la: loira, morena, negra?
A carioca é singular justamente pelo fato de ser
tão plural. Talvez ela só exista no nosso sonho.
E nossa sorte seja estarmos sonhando o tempo todo. A explicação para a grande apoteose
feminina do Rio de Janeiro está exatamente na
miscigenação da população. Esta biodiversidade
étnica influenciou diretamente a cultura do Rio de
Janeiro, sobretudo a sua musicalidade.
O Rio de Janeiro é também a cidade das violas
e cavaquinhos, oriundas da guitarra portuguesa.
Toda essa família de cordas vem do Mediterrâneo
e do Oriente Médio. São diferentes, por exemplo,
da guitarra havaiana, de som muito mais alongado, e dos bandolins, descendentes do bandolino
italiano. A antiga civilização persa já era uma
precursora dos instrumentos de corda. Portugal, influenciado pela cultura árabe, incorporou
o costume. O fado não existiria sem a guitarra,
assim como a música russa sem a balalaica. O Rio
fundiu todas essas tendências e extravasou todos
É a mais bela
cidade do mundo.
Acrescentar algo
mais é até covardia.
Afinal, como dizia
Schopenhauer,
“a beleza é uma
carta aberta de
recomendação”
out/nov/dez 2006 57
deslumbramento
Da cidade que abraça pessoas dos mais distintos rincões
brotou um povo sem paralelo em qualquer outro meridiano.
O carioca deveria ser tombado como patrimoine mondial
os sentimentos que vulcanizaram a partir dessa
combinação ímpar, criando uma música igualmente sem par: o chorinho, que tem a característica
de ser um choro alegre; uma maviosa celebração
entre cordas, timbres e uma feijoada cultural e
étnica. E haja pernas para se dançar, requebrar,
saltar ao som de tantos ritmos.
as vocações e talentos naturais
Em vários pontos da cidade ainda se mantêm
construções com traços portugueses e franceses.
Um dos mais valiosos patrimônios arquitetônicos
do país é o cinturão de prédios erguidos no perímetro da Cinelândia, no centro do Rio, todos da
virada do século XIX. Quem vê de frente a Câmara
dos Vereadores tem a seu lado direito o imponente Teatro Municipal e atrás de si a Biblioteca
Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes.
Em comparação com outras metrópoles do
país e do mundo, o Rio é uma cidade verde. Florença, por exemplo, com toda a sua história, é
uma floresta de monumentos, todos magistrais, é
58 Carioquice
verdade, mas não passam de poesia inanimada.
A magnífica Firenze é deslumbrante, mas, Deus
que me perdoe a heresia, é também um grande
cemitério de enorme valor artístico. Sua paisagem
é feita de mármore, granito e pedra e não de verde, o que a torna uma cidade incompleta. A beleza
morta deve ser combinada à beleza viva para que
tenha significação humana. Neste sentido, o Rio é
privilegiado. No meio do concreto há enclaves de
esmeralda como o Campo de Santana, no Centro,
o Jardim Botânico e o Parque Laje, ou a Quinta da
Boa Vista, em São Cristóvão, além de uma série
de parques e praças.
Há locais com natural inspiração para o misticismo, como Israel. Outros, para História, como
Roma. Pois o Rio de Janeiro exala cultura. E não
estou falando de erudição, da cultura clássica,
mas de raiz, ligada ao berço de todos os povos e
movimentos artísticos. Felizes aqueles que caminham pelas ruas da cidade. Nos estreitos becos
do centro antigo, podemos encontrar Machado
de Assis, Lima Barreto e João do Rio; nos bares
da vida, esbarramos em Noel Rosa e Cartola; nas
esquinas de Ipanema, vemos Vinícius de Moraes
e Tom Jobim esperando a próxima garota passar
a caminho do mar. Os mais importantes e autênticos ritmos musicais brasileiros, o samba e a
bossa nova, nasceram sob o sol carioca. De seus
calçadões surgiram também movimentos culturais
ousados e revolucionários, como o Cinema Novo e
a tropicália. A luz, o mar e o verde do Rio são as
melhores musas inspiradoras que um artista pode
ter. O Rio de Janeiro, portanto, reúne todas as claves, rimas, prosas e traços para se tornar um dos
maiores centros culturais da América Latina.
As virtudes do Rio de Janeiro são o comprovante da residência divina. Poucas regiões do
mundo foram tão abençoadas. Deus teceu a linda
tapeçaria verde que escorre pelos costões; com a
ponta dos dedos, delineou suavemente a enseada
da Guanabara e todo o relevo litorâneo; borrifou
cada nascente d’água da Floresta da Tijuca; foi
absolutamente divinal ao esculpir a beleza do
povo carioca, múltipla e, ao mesmo tempo, ab-
solutamente ímpar e, por fim, ainda entregou ao
filho a missão de olhar por todos nós lá do alto
do Corcovado. O Rio é o céu no asfalto.
A auto-estima do carioca já vem do ventre;
concebida e alimentada pelo esplendor da cidade.
O carioca gosta do Rio porque, antes de tudo, o Rio
gosta dele. Assim como gosta também de todos os
o Flamengo
forasteiros que, depoisPraia
de apenas
um pôr-do-sol
no Arpoador, já se sentem cidadãos locais desde
criancinhas. O Rio é eterno. Assim como é eterna
sua capacidade de se instaurar na memória das
pessoas. Mais de 50 anos depois, ainda tenho a
sensação de que, a cada dia, estou inaugurando
uma nova floresta ou mirando pela primeira vez a
Baía da Guanabara. E talvez seja isso mesmo. O
Rio de Janeiro é a cidade das mil poses, de todos
os ângulos. Quem dera poder enxergá-la íntegra,
plena, na sua totalidade como um georama. Mas
isto não é motivo de lamento. Por sorte, podemos
ver a cidade por inteiro nesta galeria de imagens
em 360 graus. Viva o artista que nos permite
enxergar todas as revelações do Rio!
out/nov/dez 2006 59
ton soleil, ta braise
a benção, santa genoveva
por
julia santhiago
Quem passar pelo portão em arco da Rua Fonseca Teles, 446, em São
Cristóvão, verá uma das mais bem guardadas surpresas desta Cidade
Maravilhosa. Paris é aqui, e você não sabia. É como se o minibairro de Santa
Genoveva estivesse levitando no limbo. Emociona ver o conjunto arquitetônico
ajustado à topografia do Morro do Breves, que desemboca em delicada
igreja, uma réplica em escala menor da Sacre Coeur de Montmartre. Para os
iniciados, é como estar no quartier dos artistas da Cidade Luz.
A iniciativa de construção foi do nobre português, José Eurico Pereira de Moraes, o Visconde
de Moraes, que era devoto da santa padroeira
de Paris. Proprietário de hotéis na Lapa, em
1917 construiu a vila para os seus funcionários,
à imagem e semelhança do bairro parisiense, com
paralelepípedos importados de Portugal e uma
vista maravilhosa para quem chega ao alto.
A construção da igreja pelo visconde, deveuse ao pagamento de uma promessa feita à santa
pela recuperação da saúde de sua esposa. As
semelhanças entre o bairro carioca e o primo
francês não param por aí: suas ruas têm nomes
relacionados às origens de Paris e à vida da
santa Genoveva. Lutércia, por exemplo, é o nome
primitivo de Paris, e Nanterre é o nome da cidade
francesa onde nasceu a santa.
Para manter a tranqüilidade e a segurança,
60 Carioquice
hoje o bairro conta com uma guarita, A síndica,
Vera Lúcia Mandarino, moradora há mais de
40 anos, aponta a tranqüilidade como a maior
vantagem de viver lá. Mas nem sempre pensou
assim: “Na época de adolescente eu não gostava
de morar aqui porque era longe do cinema e dos
amigos.”
Vera não é a única que pensa assim, a tranqüilidade e a segurança do Bairro de Santa Genoveva são prezadas por todos os moradores:
“eles não gostam de muita divulgação, preferem
que o bairro continue no anonimato, por medo
de perder toda essa tranqüilidade”, diz Vera.
A síndica conta também que quando o bairro
serviu de locação para diversas produções da
Globo muitos moradores não gostaram. “Antes
da construção do Projac, a emissora recorria
muitas vezes ao local para suas filmagens. Aqui
out/nov/dez 2006 61
ton soleil, ta braise
foram gravados, “O Dono do Mundo”, “Brega e
Chique”, “Engraçadinha” e alguns episódios de
“Você Decide” Se por um lado o bairro ganhou
visibilidade e desagradou a muitos, por outro,
fomos beneficiados com as melhorias, como a
reforma do portão de entrada, promovidos pela
rede de televisão”, conta.
O bairro francês que inspirou o Visconde é
durante o dia, ponto de encontro de artistas de
rua. A Place du Tertre é onde todos se reúnem
para vender suas obras. Durante a noite, os bares e casas noturnas são conhecidos da boemia
parisiense: é na região de Montmartre que está o
famoso cabaré Moulin Rouge. Nesses dois aspectos o primo carioca é mais recatado. Movimento
62 Carioquice
Os moradores do bairro
mantêm até hoje vivas
as tradições francesas.
No dia 3 de janeiro, dia
de Santa Genoveva, é
feita uma comemoração
e rezada na capela uma
missa em nome da santa
padroeira de Paris
mesmo, só na festa da santa padroeira, dia 3 de
janeiro, quando seguindo a tradição francesa,
comemoram com festa e missa e na procissão
do Domingo de Ramos, que sai às 6h da manhã,
com crianças vestidas de anjo e até um burrinho
puxado por uma delas.
Como em Montmartre, onde se pode avistar
quase toda a cidade de Paris, em Santa Genoveva,
também podemos ver o Cristo Redentor, o Maracanã, a Tijuca, o túnel Rebouças e o Centro da
cidade. Mais um paralelo que se pode traçar entre
os dois bairros projetados sobre uma colina.
Fundada em 1917, as semelhanças do Bairro
de Santa Genoveva com Montmartre podem ser
explicadas pelo costume da época: “A moda era
importar o que vinha da Europa, principalmente
da França, e essa foi a estrutura de urbanização
adotada no Brasil desde os tempos da colônia. Um
outro exemplo de influência francesa nos trópicos é
o Theatro Municipal, inspirado no Opera francês.”,
diz o ex-morador do bairro, Jorge Augusto.
No início do século XX ainda vivia-se no Brasil,
sob a influência cultural francesa. Naquele tempo,
o estilo europeu era moda, e trazer os ares de
Paris para o Rio era consenso de que assim o a
cidade se transformaria numa capital moderna.
De 1903 a 1906 as reformas de Pereira Passos
reconstruíram a cidade, nitidamente inspirada em
Paris e em seus recentes planos de urbanização,
a cargo do arquiteto Haussmann. A intenção era
fazer do Rio de Janeiro a Paris dos trópicos.
Os moradores do bairro mantêm até hoje vivas
as tradições francesas. No dia 3 de janeiro, dia
de Santa Genoveva, é feita uma comemoração no
bairro e é rezada na capela, uma missa em nome
da santa padroeira de Paris.
out/nov/dez 2006 63
é pau, é pedra...
oréguarioequecompasso
sublima
por
paulo casé
“Temos o direito de comparar a cidade com uma sinfonia ou com um
poema; são objetos da mesma natureza. A cidade pode ser ainda mais
preciosa. Ela se situa na confluência do natural com o artifical. Nela se
desenvolve a forma mais complexa e mais refinada de civilização”
A beleza do cenário da aldeia carioca se revela
no intenso contraste entre seu extraordinário
meio natural, que exibe arredondadas montanhas
graníticas de tom escuro, densas florestas de verde fechado, oceanos e lagoas com água de azul
marinho e bordas curvilíneas, em contraposição
com as agudas arestas dos objetos arquitetônicos
cujos volumes alvos reluzem claridade face a um
sol brilhante quase sempre presente.
Este fenômeno ótico faz o Rio ser reconhecido
como a cidade maravilhosa.
Analisando o quadro onde se desenrola esta
inteiração simultânea de forma, luz e cor, verificase uma inequívoca supremacia das manifestações
naturais sobre a obra construída pelo o homem
que aqui a ergueu com pouco apuro.
Este desequilíbrio comprova que os aclamados
atributos estéticos da cidade do Rio independem
de sua arquitetura, fato que lhe confere uma situação de desigualdade entre muitíssimas outras.
Por exemplo, Paris, Veneza, Praga, Estocolmo
64 Carioquice
*
Claude Lévi-Strauss
provocam admiração devido à qualidade do conjunto de sua arquitetura. Nelas a natureza entra
na composição urbana como coisa subalterna.
A forte presença dos elementos paisagísticos
que dominam a leitura na cena carioca contribuiu
para que os valores estético-culturais de nossa
Arquitetura deixassem de ser exigidos pela imprensa e a opinião pública, impondo-a um papel
irrelevante.
Como resultado a missão oferecida para
maioria dos arquitetos, quando muito, é aquele
que o reduz a um obediente intérprete de interesses imediatistas, e por suscitar suspeitas
de comprometimento o envolve numa aura de
desconfiança.
Esta função assim amesquinhada decorre, sobretudo pelo despreparo de grande parte dos responsáveis pela construção da cidade, cujos propósitos
interesseiros e sua despreocupação com a qualidade
dos cenários arquitetônicos, impõem um “vale-tudo”,
instituindo um mercado quase exclusivo.
Edifício Biarritz
out/nov/dez 2006 65
66 Carioquice
Gustavo Capanema
Itamaraty
A participação dos grupos de interesse é o
que restringe uma atuação competente como
a que já nos legou magníficos exemplos como
o Centro Histórico do Rio, os edifícios da orla
do Flamengo e na Praça do Lido, Paraty e Ouro
Preto, entre outros.
Seria, então, o lucro o grande vilão?
Tomemos como parâmetro a Ilha de Manhattan, em Nova York, cidade-sede do capitalismo
internacional, que tem como paradigma a busca
do lucro como valor fundamental. Observa-se, de
imediato, a qualidade dos objetos arquitetônicos
que são o resultado da direta e plena participação dos arquitetos. Munidos de todo o seu
instrumental técnico, eles atuam desenvolvendo
permanente pesquisa, visando a novos processos
e novos conceitos. Mesmo buscando procedimentos no encalço de uma economia maior e de
um avanço tecnológico, nunca perdem de vista
seu inalienável compromisso com os cidadãos e
com a cidade.
Este padrão de conduta profissional é que
permite ao arquiteto assumir o papel de agente
cultural/social. Ao contrário do que ocorre aqui,
o trabalho deste profissional é extremamente
respeitado e sua importância percorre todos os
canais da cidade.
Como sugestão para reflexão imagine-se a
Ilha de Manhattam com edifícios iguais aos da
Barra.
out/nov/dez 2006 67
é pau, é pedra...
Por outro lado o código edilício de nossa cidade é regulado por uma legislação que pretende
determinar, com excessivo detalhamento, todos
os aspectos do projeto, preceito que pretender
coibir a ação dos predadores urbanos, mas
acaba constrangendo a criação de uma obra de
qualidade sem amarras.
Com uma legislação cristalizada no tempo é
impossível acompanhar o processo contínuo de
transformação do pensamento e da técnica que se
constitui a marca/sinal dos tempos hodiernos.
Desde a mais remota época a arquitetura de
uma cidade foi um museu aberto e expressão
materializada de uma sociedade.
A atuação do arquiteto carioca tem sido tolhida
por circunstâncias adversas.
A coação exercida, sobre ele, vai a ponto que
a autoria de seus trabalhos é ocultada dando
lugar a mensagens de aclamação merecida a
decoradores, chefes de cozinha, paisagistas. Esta
dissimulação seria um ato falho?
A prática, sem dúvida, levará a inexoráveis conseqüências para a fisionomia dos espaços urbanos
que é lugar da convivência das pessoas, as quais,
pela ausência de parâmetros estéticos, que é um
valor educacional assimilável em sucessivas etapas,
estarão tornando-as insensíveis e desinteressadas
por significados culturais superiores.
Será este o destino da sociedade carioca deseja?
Dentro desta incongruência é motivo de satisfação apontar alguns exemplos pontuais onde
se observam corretos empreendimentos que
resultam em belas e importantes edificações.
A pedido da Revista Carioquice selecionei
algumas edificações, entre várias, merecedoras
de destaque.
Paulo Casé é arquiteto
Museu de Arte Moderna (MAM)
68 Carioquice
Mosteiro São Bento
out/nov/dez 2006 69
asa branca
enfim, o sertão virou mar
Carne-de-sol, queijo de coalho, feijão de corda, macaxeira, boas pingas,
rapadura (agora chamada de doce de cana), garrafada, cordel, chapéu de couro,
carrancas, tudo isso embalado no chamego do forró que se dança agarradinho,
no bate-coxas, ou na umbigada que beira ao despudor. Onde ver ouvir,
sentir e provar tudo isso? No Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas,
popularmente conhecido como Feira de São Cristóvão.
Essa feira das saudades da terra árida é um
enclave do Nordeste no outrora aristocrático
bairro carioca de São Cristóvão. Mais um exemplo de que a cidade a todos acolhe e abraça, do
nobre ao plebeu de qualquer paragem.
Um dos espaços mais democráticos do Rio tem
alma nordestina e sotaque arretado. Pudera. É
na Feira de São Cristóvão que cerca de 450 mil
pessoas se espalham mensalmente por mais de
700 barracas distribuídas por ruas batizadas
de Rio Grande do Norte e Bahia. Engana-se
– e muito – quem ainda pensa que ali está um
70 Carioquice
reduto de nordestinos. Celebra-se sim a cultura
nordestina, mas as atrações conseguem agradam
gregos, baianos, potiguares e também cariocas.
Logo, o forrozeiro de primeira viagem não deve
se espantar ao ver jovens da classe média carioca
entre os 800 casais que chacoalham pelos palcos
batizados com os emblemáticos nomes de João
do Vale e Jackson do Pandeiro. È gente como o
estudante de Direito Renato Dias. “A feira mistura
o especial ao inusitado. Acho bacana ver casais
de idosos dançando agarradinhos ao lado da
garotada, a confraternização entre nordestinos
e cariocas”, conta. Renato representa um fenômeno iniciado há três anos, quando a galera da
Zona Sul invadiu a praia dos nordestino, engrossando o coro do forró.
Daí a explica-se o fato do forró, ter passado
a figurar entre as atrações principais das noites
cariocas, freqüentadas basicamente por jovens da
classe média que buscam conhecer a autêntica
cultura nacional. Nesse cenário, há tanto os grupos que tocam o forró de raiz (executado apenas
com sanfona, zabumba e triângulo), como os
que fazem o “oxente music”, com sintetizadores,
teclados e bateria. Alguns consideram que esses
últimos seriam um forró menos autêntico. E eis
que surge a Feira de São Cristóvão como um oásis
de nordestinidade em solo carioca, um espaço
privilegiado da verdadeira cultura nordestina.
Muito além do forró, embrenhar-se pelas vielas principais do Centro de Tradições e também
pelos seus cantos e recantos dá a oportunidade
out/nov/dez 2006 71
asa branca
A variedade de
produtos é imensa. E
pode-se até encontrar
artesanato em madeira
que reproduz ícones da
cultura carioca
de conhecer itens e histórias os mais variados.
Do artesanato em madeira que reproduz ícones
da cultura carioca, ao Guaraná Jesus – um incomum refrigerante rosa que faz grande sucesso
no Nordeste. É o local certo para se informar
das novidades nordestinas – como que a nossa
brasileiríssima rapadura agora é coisa de alemão,
que patentearam o nome há alguns anos. A nós,
brasileiros, só resta chamá-la de doce de cana,
incorrendo no risco de quem usar seu nome
original terá que pagar royalties àquele país, que
ao que sabe jamais teve plantação de cana!
Conversa vai, conversa vem, chega-se à Praça
dos Repentistas. É lá que os repentes improvisados se misturam ao som das lojas de CDs e
se entremeiam com os grandes sucessos música
popular nordestina: dos cantores Lairton e Deó
aos mais conhecidos por aqui: Reginaldo Rossi,
Fagner e Luiz Gonzaga. Entre os mais vendidos,
os sugestivos Calcinha Preta e Arriba Saia, ao
lado das bandas Calypso e Aviões do Forró.
Tanto bate-coxa e estripulia dá uma baita fome.
72 Carioquice
Para os amantes da culinária,
difícil é se decidir diante de
tanta fartura. Há todo todo
tipo de grãos, carnes, queijos
e muito mais.
Difícil é se conter diante de tanta fartura: quilos
e mais quilos de queijo coalho feito brasa, carne
de sol, feijão-de-corda e maxixe. Ingredientes que
se casam perfeitamente com azeite-de-dendê e
manteiga de garrafa para o deleite dos comensais. Dentre as diversas opções de restaurantes,
destaca-se no Pavilhão uma grande estrutura
de metal coberta de vidros. É o “Estação Baião
de Dois”, uma referência da nova Feira de São
Cristóvão e o preferido dos cariocas. Seus atrativos vão além do providencial ar-condicionado
e da decoração, que mistura um imenso cajueiro
artificial, obras de Mestre Vitalino e objetos característicos de cangaceiros. Divinos mesmos são
os bem preparados e copiosos pratos. E no Estação, eles só faltam transbordar do cardápio.
Numa diversidade do tamanho do Nordeste, o
restaurante oferece sarapatel, arrumadinho, vaca
atolada, acarajé, carne-seca, carneiro, bolinhos
de aipim com carne-seca, casquinha de siri. Um
dos pratos mais pedidos é a carne de sol à moda
da casa, servida com aipim frito, abóbora, cebola
à dorê e feijão tropeiro.
Na seqüência, é hora das guloseimas que
enchem olhos e bocas: doce de batata-doce,
de jaca e de caju, mamão com coco e abóbora
cristalizada. A orgia gastronômica é arrematada
com variados licores nordestinos. È um festival
de sabores para os mais distintos paladares. Os
cabras machos que por ventura achem que um
licorzinho é coisa muito leve podem se esbaldar
com um verdadeira farra da cachaça, batizadas
de nomes que sugerem poderes afrodisíacos:
“Nas Coxinhas”, “Na Bundinha” e por aí vai. É
beber e deixar por conta da imaginação.
Hoje a Feira - nascida informalmente em
1945, graças a um grupo de nordestinos saudosos da terrinha que se reuniam no Campo de
São Cristóvão para o mata-fome – consegue
dar nó em pingo d´água e rimar modernidade
out/nov/dez 2006 73
asa branca
Na Feira pode-se
encontrar até o
Guaraná Jesus, um
incomum refrigerante
cor de rosa que faz
grande sucesso no
Nordeste
com tradição. Saíram de cena a velha desordem
das barracas; no lugar, boxes bem arrumados.
A versão muderna da Feira ganhou também em
infra-estrutura: banheiros, bancos, lojas. Mas a
74 Carioquice
animação permanece a mesma! Por isso que,
a cada fim de semana, os adeptos só fazem
aumentar. Quem tá fora quer entrar, mas quem
tá dentro não sai!
Um Campo com muita história
São Cristóvão é um bairro com alma imperial e ainda hoje se pode perceber
suas características de um passado glorioso, com suas vastas avenidas e
casarões como as do Barão de Mauá ou da Marquesa de Santos. Além, é claro,
do palácio circundado por um imenso gramado. Mas se de um lado guarda o
estilo aristocrático, de outro, mostra o seu contraste com a mais emblemática
representação plebéia: a Feira de São Cristóvão. Mas não é de hoje que aquele
espaço estaria destinado a abrigar uma forte manifestação popular. Em 1806,
no governo do Conde de Arcos foi criada uma feira que ficava no Campo de São
Cristóvão e pelos relatos da época era muito concorrida. Quando em 1808 a Família
Real ocupou a Quinta da Boa Vista, a feira foi extinta para dar lugar aos exercícios
militares do batalhão de guarda.
Em 1886 o local passaria a se chamar Praça Dom Pedro I e, com a proclamação da
República, passou a ser a Praça Marechal Deodoro.
Até início do século XX, o local abrigava os desfiles militares e voltou a ser
conhecido como Campo de São Cristóvão. Para o maior conforto das autoridades
que assistiam aos desfiles, foi construído um pavilhão de ferro. Já nos anos 1960, foi
construído no local um pavilhão para abrigar exposições. Mas a arquitetura arrojada
– uma grande estrutura elíptica que se apoiava nas extremidades, sem outros pontos
de sustentação – acabou por desabar e o local foi deixado de lado por muitos anos.
Próximo dali, desde 1945, um grupo de nordestinos passou a se reunir para matar as
saudades da terra natal e comer um mata-fome. Os encontros acabaram por originar
a Feira Nordestina que reunia uma diversidade imensa de produtos daquela região.
No início dos anos 200, a prefeitura do Rio decidiu aproveitar o espaço abandonado
do pavilhão e abrigar a Feira, que lá se instalou em 2003.
Sem dúvida, Luiz Gonzaga que dá nome ao Centro deve estar cantando lá do céu
“ Ta é danado de bom/Ta danado de bom meu compadre/Ta é danado de bom/
Forrozinho bonitinho/Gostosinho, safadinho/Danado de bom...”
out/nov/dez 2006 75
EmBaIXadOr do rio
rmundo
io, diga ao
que fico!
João Maurício de Araújo Pinho
Presidente do Museu de Arte Moderna – MAM Rio
Sou do tempo em que se nascia em casa. E vim
ao mundo numa delas – a mesma em que minha
mãe também havia nascido –, em Laranjeiras, na
Rua Marquesa de Santos.
Esta casa existe até hoje e tenho o projeto de
transformá-la num centro cultural dedicado ao
teatro. Morei nela até me casar, quando então
passei a residir no prédio que foi construído em
terreno contíguo. Sem saída, a Marquesa preserva um pedaço do Rio Antigo, aquele perfil de vida
do final do Império e início da República.
Laranjeiras tinha uma estrutura paroquial,
76 Carioquice
com a igreja da Matriz e o Largo do Machado,
que é a porta de entrada do bairro e, apesar
de agora mais cosmopolita – pela estrutura de
metrô, cinemas e shoppings –, mantém suas
características de ponto de encontro do bairro.
Mas nós dois mudamos e seguimos caminhos
opostos: Laranjeiras ficou mais nova e eu, mais
velho. Eu me separei de Laranjeiras e Laranjeiras
separou-se de mim.
Hoje, moro no Jardim Botânico, um bairro
diferente de todos, essencialmente ecológico. Ali,
a natureza é muito mais importante que a cidade,
que se torna apenas um apêndice. É um lugar
muito ligado à vida, a uma projeção de futuro.
Adoro fazer caminhadas na Lagoa, no Jardim
Botânico e no Parque Lage, que abriga a Escola
de Artes Visuais, a mais importante do país.
Só cometo minhas infidelidades para ir ao Leblon, dar um pulo na livraria Argumento e tomar
café no Talho Capixaba, um açougue que virou
padaria chique com atmosfera de clube familiar.
Coisas do Rio.
Como atuo profissionalmente num universo
muito material – que é um escritório de advocacia
tributária –, sempre procurei contrabalançá-lo
com atividades espirituais, vinculando-me a instituições ligadas à cultura. E nisso o Centro da
cidade, onde trabalho, é pródigo: MAM, Museu de
Belas Artes, Museu Histórico Nacional, Academia
Brasileira de Letras, Centro Cultural Banco do
Brasil, Centro Cultural dos Correios, Casa França-Brasil, enfim, um roteiro de acervos de valor
incalculável. Esse processo de revitalização da
região se tornará ainda mais dinâmico quando
as pessoas voltarem a morar ali.
Por tudo isso, o Rio de Janeiro será sempre um
pólo de excelência cultural no Brasil. Não se pode
tirar isso da cidade. Toda atividade individual que
anseia por uma abrangência maior de imagem
precisa passar por aqui.

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