- Fundação Res Publica

Transcrição

- Fundação Res Publica
que Crise?
que soluções?
que alternativas?
Sob a Crise...
Eduardo Lourenço
Uma Crise Inesperada mas Prevista
Guilherme d’Oliveira Martins
Uma Estratégia de Esquerda para Enfrentar a Crise
Augusto Santos Silva
A Primeira Grande Crise do Século
e o Eclipse do Liberalismo
Paulo Pedroso
Director: Eduardo Lourenço
DIRECTOR
Eduardo Lourenço
DIRECTORES-ADJUNTOS
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COORDENADOR
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Maria Brandão de Brito, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Miguel Serras Pereira, Paulo Ferreira da Cunha,
Pierre Guibentif, Reinhard Naumann, Rui Namorado, Sérgio Sousa Pinto, Vital Moreira, Vitalino Canas
Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 65/66 – Primavera/Verão 2009
Design e Produção: Garra Publicidade, SA
Apoio à Redacção: Sofia Nascimento
Registo de Título nº 113 463
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Editora: Fundação Res Publica, Lisboa, 2009
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1. Os originais destinados a publicação deverão ser dactilografados a dois espaços em páginas A4 de 25 linhas.
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ÍNDICE
QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?
Sob a Crise...
Eduardo Lourenço
7
Uma Crise Inesperada mas Prevista
Guilherme d’Oliveira Martins
11
A Primeira Grande Crise do Século e o Eclipse do Liberalismo
Paulo Pedroso
21
O Festim Está Suspenso
Joaquim Jorge Veiguinha
35
A Crise Financeira Global: O que é Necessário Fazer?
Christopher Rude
69
Uma Estratégia de Esquerda para Enfrentar a Crise
Augusto Santos Silva
87
Perante a Crise: Problemas e Perspectivas do Emprego,
do Trabalho e da Equidade em Portugal
António Dornelas
101
Trabalho e Sindicalismo – Os Impactos da Crise
Elísio Estanque
135
MEMÓRIA
Simone Weil: a “Marciana”
Fernando Pereira Marques
153
A Metodologia Revolucionária de Charles Darwin
Joaquim Jorge Veiguinha
161
PARLAMENTO
Debate sobre a Reforma do Sistema Eleitoral
Organização: André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira
175
IDEIAS
Estado e União Europeia: Ideologias e Debate Intelectual em torno
do Socialismo e da Igualdade de Oportunidades
Carlos Leone
211
CULTURA
225 Manifesto:
Pela Inscrição Democrática da Cultura na Sociedade Portuguesa
Fernando Mora Ramos
229 Livros, Percursos e Imaginários Eruditos
João Soares Santos
SOLTOS
269 A Passividade Cubana perante Guantanamo
Alfredo Margarido
273 Bento XVI: Um Papa que também Vestia a Farda das SS
Alfredo Margarido
LIVROS
279 As Voltas que o Capitalismo (não) Deu
Joaquim Jorge Veiguinha
285 Os Charutos de Churchill
Beja Santos
COLABORAM NESTE NÚMERO
Eduardo Lourenço – Ensaísta
Guilherme Oliveira Martins – Jurista
Paulo Pedroso – Deputado à Assembleia da República
Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta
Christopher Rude – Professor Universitário
Augusto Santos Silva – Professor Universitário
António Dornelas – Professor Universitário
Elísio Estanque – Professor Universitário
Fernando Pereira Marques – Professor Universitário
André Freire – Professor Universitário
Diogo Moreira – Investigador no ICS da Universidade de Lisboa
Manuel Meirinho – Politólogo, Professor Universitário
Carlos Leone – Professor Universitário
Fernando Mora Ramos – Encenador
João Soares Santos – Ensaísta
Alfredo Margarido – Professor Universitário
Beja Santos – Sociólogo
Carlos Brito – Cartoonista
QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?
Sob a crise...
Eduardo Lourenço
O
que há de original na mítica Crise que agora sacode o planeta
como um “tsunami social” e metafísico é que esta é assumida, sem vergonha nenhuma, e até premiada pelos seus
autores. É a primeira vez na história pouco humana que nos
antecede que as vítimas reais ou virtuais desta espécie de apocalipse branco
são quem consola e tenta salvar os actores da nova peste do Cresus universal
afogado no seu ouro. Um pouco à força os pobres deste mundo são convidados a salvar os ricos que programaram como gangsters intocáveis o caos
universal. Versões do mundo às avessas já havia muitas. Esta é inédita.
Em tempos ingenuamente caritativos, a sociedade ocidental distribuía o
que nem tinha a mais nos famosos “caldos da portaria”. Simbolicamente o
lugar idealizado dessas épocas, ao menos entre nós, era o “convento”. Com
o liberalismo criaram-se instituições laicas para em tempos de urgência se
socorrerem os mais pobres. Ninguém podia então imaginar que em plena
era de consumo universal – essência da mítica e real globalização – ressurgissem as antigas “sopas dos pobres” destinadas agora não aos “miseráveis”
do século XIX, mas a um novo tipo de pobres da classe média e até mais
alta, com diplomas no bolso. No começo da era consumista um cómico
de génio, Coluche, inventava uma nova forma de “caridade”, laica e anarquizante, mas eficaz – os Resteaux du Coeur – como resposta a essa pobreza de
tipo novo. Era só uma antecipação. Ninguém podia supor que esta nova
pobreza numa sociedade oficialmente igualitária – e aparentemente rica...
– em vez de ser eliminada, proliferasse não apenas na margem da sociedade
de abundância (nas Áfricas e Orientes), mas no seu centro, como em todas
as metrópoles do mundo. E que o seu exemplo mais espectacular fossem os
mesmos Estados Unidos em plena fase imperialista-mundialista. Há muito
que os Estados Unidos eram o centro de uma Crise endémica que o tipo de
economia que ilustram provoca, mas só a amplitude do seu poder políticomilitar, tornando-os (imaginariamente) senhores do mundo – capazes
SOB A CRISE...
de controlar os mecanismos do seu poder sem contrapoder – explica a
intensidade desta crise de um tipo novo e os seus efeitos universalmente
devastadores. Isso só aconteceu depois do fim da segunda guerra mundial e,
com mais precisão, depois da implosão da União Soviética. Sem obstáculos
sérios ao funcionamento da sua máquina económica-financeira (enfim
sós...), os Estados Unidos, sem o saber ainda, ficaram mais desarmados
do que nunca. Tinham o seu inimigo dentro e não fora como era o caso
desde o seu tardio nascimento como nação. Podiam ou julgavam poder
agir sozinhos em todas as ordens. Era o Capitalismo numa só nação que
se confundia ou podia agir como se fosse o mundo. Este fantasma domina
toda a política dos Estados Unidos e nada o ilustra com mais exaltação e
secreto pânico que o cinema de Hollywood desde o fim da Guerra Fria. Não
admira que o pai desta nova América-Mundo tenha sido Ronald Reagan,
actor como todos sabemos. A Crise – esta com que agora estamos confrontados e com os Estados Unidos não só na primeira linha mas no centro do
ciclone por ela provocado – nasceu, existe e vive como esse cinema fantástico (e lucrativo) entre o delírio e o apocalipse. Objectiva e tecnicamente
a Crise começou com o “mot d’ordre” de Reagan, em super-Guizot da
era mediática: “enriquecei”. Endereçado aos ricos que nem o precisavam.
E não se fizeram rogar. É o diagnóstico recente de Paul Krugman e de
outros economistas americanos de referência. Só no mundo, a América de
Reagan julgou possível mudar as regras financeiras vigentes criadas como
resposta à famosa crise de 1929, que supunham vigilância e controlo dos
movimentos de risco inflacionista clássico. E pouco a pouco, o sistema
inteiro contaminou a economia americana, convertida em “economia
de casino”, como se disse. Uma economia de risco máximo, estendida ao
mundo. A mundialização tem os seus custos. E mais a que se toma como
sendo a “única”, sem o ser.
Contrariamente à crise de 1929 (aquela que as “Vinhas da Ira” imortalizaram) esta de hoje teve menos banqueiros insolventes que se atiraram
de arranha-céus (até agora a única “vítima” pouco inocente é o célebre
Madoff), mas atingiu o sistema bancário em si mesmo. Paradoxalmente
– pelo menos até agora – esta implosão no coração do sistema capitalista
iria salvar o Capitalismo – este capitalismo-casino –, mobilizando todas
as forças e capacidades do Sistema. E até fora dele... Talvez esteja aqui a
10
EDUARDO LOURENÇO
verdadeira novidade da Crise. Fora do sistema mas ligada com “souplesse”
ao seu funcionamento, a imensa e “rica” China veio em auxílio do antigo
“inimigo de classe”. Não só se afirmou como potência emergente mas
como parceiro incontornável de uma “globalização” da economia que não
se resume à omnipotência dos Estados Unidos.
Afinal, o drama desta Crise (ainda em curso), ao fim de um ano de
pânico e, sobretudo, de justificada preocupação pelos seus efeitos em
matéria de desemprego universal, foi ou é uma espécie de “comédia” de
um género novo: uma colossal “sopa aos ricos” com a China no papel de
Coluche. Quem diria que o país para quem há uns setenta anos o Ocidente
se mobilizava para dar a cada chinês uma “malga de arroz” estaria um dia
em condições de socorrer os Mandarins da História. Esperemos que o
gesto e a lição não sejam esquecidos.
11
12
Uma crise inesperada, mas prevista…
Guilherme d’Oliveira Martins
“Precisamos de poucas ideias mas claras, de gente nova,
de amor aos problemas concretos…”.
Carlo Rosselli
1. Pode dizer-se que a crise que atravessamos é inesperada, na sua intensidade e nas suas repercussões. No entanto, muito analistas vinham-na
prevendo, ao longo de vários anos – sobretudo perante a persistência do endividamento exponencial nas economias ocidentais e da especulação imobiliária,
que teria de ter um desfecho. E se é certo que o optimismo de muitos previu
uma aterragem suave, a verdade é que não foi isso que se passou. Houve uma
descida violenta até ao solo, com consequências ainda hoje não totalmente
detectadas. A crise financeira originou-se, como é sabido, com a acumulação
de factores perversos, de que o subprime foi apenas um dos sintomas; o crédito
barato, a avalanche consumista, o endividamento excessivo das famílias, a
insustentabilidade da actividade financeira ligaram-se à falta de credibilidade
contabilística e à ausência de mecanismos eficazes de alerta e de regulação.
Considerou-se normal viver acima das possibilidades próprias, com recursos
de que não se dispunha efectivamente, sempre na ideia de que o crescimento
económico geraria meios suficientes para cobrir o endividamento crescente
assumido em nome das gerações futuras. No entanto, o crescimento não se
baseava na criação e na economia real, mas na hipervalorização de recursos
patrimoniais, a partir da especulação que acompanhou o desenvolvimento
da “bolha imobiliária”, como já acontecera, numa muito menor dimensão,
com a “bolha informática”. O domínio absoluto das falsas expectativas e das
ilusões ficou, aliás, patente no caso “Madoff”, que não pode confundir-se
com um epifenómeno ou com um caso de insanidade mental. Tratou-se de
um sintoma absolutamente coerente com o ambiente geral.
A situação norte-americana dos mercados financeiros desregulados e a má
qualidade de um número significativo de fundos, em lugar de se confinar aos
Estados Unidos, transmitiu-se ao mercado global, por força de uma ânsia
geral de ganhos fáceis e rápidos, tornando-se uma crise muito profunda e
de dimensões imprevisíveis. Deste modo, verificou-se que a mentalidade era
semelhante, de um lado e do outro do Atlântico, havia portanto condições
13
UMA CRISE INESPERADA, MAS PREVISTA...
favoráveis a que uma onda especulativa se desenvolvesse em busca de ganhos
muito rápidos e simples de conquistar. E assim os fundos pouco recomendáveis foram procurados e criados um pouco por toda a parte. Para surpresa de
muitos, o subprime estava espalhado globalmente e não confinado ao território
americano.
Na Europa, os mercados mais abertos e também mais vulneráveis à especulação tornaram-se rapidamente prisioneiros do efeito em cadeia da crise
financeira norte-americana, que assim se tornou global e com fronteiras
indefinidas, não afectando apenas algumas famílias menos previdentes, mas
a generalidade do sector financeiro. O caso da Islândia é muito significativo,
uma vez que se tratou de um Estado soberano a cair no logro das operações
financeiras atractivas e de ganho aparentemente chorudo, fácil e imediato. E se
o caso ocorreu com um Estado soberano por maioria de razão atingiu instituições financeiras obrigadas a apresentar resultados competitivos e a demonstrar
uma grande eficácia de gestão junto dos accionistas e do público. No entanto,
como os objectivos eram irrealistas o ilusionismo passou a ter de ser praticado, e todos se foram enganando e mentindo aos seus clientes, que estiveram
confiantes até aos primeiros sinais de alarme. Daí ao descalabro foi um ápice.
O “crash” das Bolsas mundiais do Outono de 2008 veio a abrir um novo
capítulo na situação internacional, uma vez que deixou de poder falar-se apenas
na crise do subprime, para ter de se falar numa crise financeira global, indutora de
uma recessão económica global, que se tem aproximado perigosamente da situação depressiva dos anos trinta do século XX, apesar de hoje possuirmos muito
mais informação do que então e de haver, pelo menos em teoria, instrumentos
de coordenação que poderiam funcionar se houvesse uma vontade comum de
acção e de regeneração. Como Paul Krugman tem afirmado, a única diferença
em relação a 1930 é que hoje estamos mais informados, mas isso não quer dizer
nada quanto a cometermos ou não os mesmos erros (ou outros piores). De
facto, a incerteza e a desconfiança instalaram-se e não são boas conselheiras. Há
sempre a tentação, muito forte, de cada um procurar tentar salvar-se a todo o
custo e só por si. E sabemos bem que os nadadores salvadores não têm dúvidas de
que, no acto de salvamento, a vítima que pretendem salvar é quem mais temem,
uma vez que, nos seus movimentos desesperados, ataca o salvador, agindo na
prática de modo suicida. Assim se passa também nas crises económicas por causa
da tentação de cada um agir por si, o que só agrava a situação.
14
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
2. A globalização, como fenómeno contemporâneo, acelerou a transmissão
da doença, transformando-a em epidemia, ora na sua expressão recessiva, ora
como manifestação deflacionista (fazendo lembrar as recentes dificuldades
da economia japonesa, de onde esta ainda não conseguiu sair); no entanto,
a crise financeira poderá constituir-se em oportunidade para combater os
males estruturais que a situação actual comporta. Etimologicamente, a palavra
crise significa em grego cruz ou encruzilhada. Foi Hipócrates quem aplicou
o termo à medicina, para significar o momento decisivo em que o doente
morre ou começa a vencer a enfermidade. Hoje, importa saber se esta crise
se poderá constituir numa verdadeira oportunidade, o que obriga a tentar
perceber se há vontade e determinação suficientes (nos Estados Unidos, na
União Europeia, no Grupo dos 20 países mais ricos etc.) para romper com a
inércia e agir em contraponto aos erros que foram cometidos e que levaram à
ilusão e ao desastre actual.
O primado das “economias de casino” foi acompanhado de um progressivo
aumento das desigualdades na distribuição de rendimentos e no agravamento
das injustiças sociais, com repercussões na quebra da coesão social e na degradação do “capital social”, com inerente pressão migratória desregulada sobre
as regiões mais desenvolvidas. Esse agravamento das desigualdades era referido
como uma inevitabilidade da globalização. No entanto, o atraso e o subdesenvolvimento não podem continuar a ser considerados como fatalidades. Há
que contrariá-los, criando condições para que haja coesão, desenvolvimento
regional, confiança, partilha de responsabilidades, transparência e prestação
de contas fiáveis e verdadeiras.
Os instrumentos disponíveis de auditoria, de regulação e de supervisão
das actividades e instituições financeiras revelaram-se manifestamente insuficientes face à dimensão dos riscos assumidos e à ausência de uma prevenção
adequada; por outro lado, como tem sido referido por Joseph Stiglitz as
organizações económicas internacionais revelaram-se incapazes de aconselhar adequadamente os países em desenvolvimento no sentido da adopção de
estratégias eficientes e justas. Tudo parecia assim correr sem sobressaltos, até
ao momento em que alguns perceberam que havia alguma coisa de grave e
de diferente: a economia mundial apresentava sinais de uma doença muito
preocupante e de diagnóstico reservado.
A falta de verdade contabilística, induzida pela obsessão no incremento
15
UMA CRISE INESPERADA, MAS PREVISTA...
das taxas de crescimento na prática artificiais, teve como efeito a fragilização
da credibilidade das instituições financeiras e económicas e da confiança
dos sujeitos económicos e dos cidadãos, o que se tornou patente a partir do
momento em que os sintomas da crise se começaram a manifestar. Os sinais já
dados anteriormente no caso Enron, que levaram à aprovação pelo Congresso
em 2002 da lei Sarbanes – Oxley, revelaram-se, desta vez, muito mais agravados, em virtude da generalização do fenómeno entretanto ocorrida. Afinal,
os erros cometidos não eram excepcionais, havia quem fizesse deles uma
prática quase natural.
A fragmentação nas respostas aos primeiros sinais de crise e a falta de
capacidade para combater, de facto, as tentações proteccionistas têm arrastado a situação, uma vez que persiste a desatenção relativamente aos temas
da coordenação dos investimentos estruturantes e das políticas de protecção
e criação de empregos, em especial no tocante à produtividade e à valorização do binómio educação / formação. Assim, assiste-se, na prática, à falta
de coordenação de políticas económicas (de que a ausência clamorosa de um
“governo económico” da União Europeia é exemplo), bem como à concretização de políticas que tendem a proteger mais os desempregados em lugar de
procurar salvaguardar o emprego e os postos de trabalho. Daí que haja o risco
de adiar os problemas, sem resolvê-los verdadeiramente. Por outro lado, as
políticas educativas tornam-se cada vez mais importantes e decisivas – desde a
valorização das formações profissionais até ao combate ao insucesso escolar e
ao abandono.
3. Com razão, volta a dar-se atenção na União Europeia à designada
“Estratégia de Lisboa”, uma vez que esta pressupõe: a definição de objectivos exigentes de crescimento e de desenvolvimento, centrados na economia
do conhecimento; a consideração da necessidade de ligar a competitividade
à coesão económica e social; e a articulação entre melhor emprego, melhor
educação, formação e inovação científica e tecnológica. Ora, nenhum destes
objectivos pode realizar-se sem coordenação de políticas públicas e sem um
combate ao proteccionismo. E basta lembrarmo-nos do que se passou nos
anos trinta para percebermos que o agravamento da crise e a ineficácia dos
instrumentos aplicados tiveram a ver com as tentações de concretização de
políticas fragmentárias e dispersas. Eis por que razão se exige mais Europa
política e económica na actual fase da situação internacional. A preservação da
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GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
concorrência internacional e de um mercado global obriga a que haja coordenação de políticas, governação económica europeia, regulação articulada e
subsidiariedade a sério.
Ao contrário do que pensaram nos anos trinta Joseph Schumpeter (18831950) ou F. A. Hayek (1899-1992), com pressupostos diferentes, uma
situação como então ou agora se viveu ou vive não se soluciona espontaneamente, por força das ondas de pânico e dos efeitos sociais depressivos com
graves e imprevisíveis consequências. Schumpeter procurava levar às últimas
consequência a ideia de “destruição criadora” e Hayek acreditava piamente na
força regeneradora exclusiva do mercado, como ordem natural. No entanto,
J. M. Keynes (1883-1946) e Richard Kahn (1905-1989) contrapuseram
(como tem lembrado Paul Samuelson) que, numa economia com desemprego
e forte quebra na produção, um dólar a mais de despesa pública em produtos
de consumo, especialmente naqueles que os consumidores normalmente não
compram seria mais útil do que um dólar gasto em aumentar a produção total.
E os estudos realizados têm também concluído que (nestas circunstâncias, e só
nelas, isto é, de desemprego e forte quebra no produto) a baixa de impostos
é menos eficaz pelo simples facto de os beneficiários aforrarem uma parte
substancial desse dinheiro, em especial nas épocas de incerteza…
Não se trata, porém, de esquecer que a despesa pública tem de ser especialmente controlada, em particular no domínio do consumo, a fim de que
não induza desperdício e não se traduza em endividamento prejudicial para
as gerações futuras. Temos de entender que há um “fine tuning” que tem de
ser assegurado e conseguido na concretização de tais providências, ou seja,
um equilíbrio entre o gasto público e a capacidade auto-regeneradora do
mercado. Se J. M. Keynes vivesse hoje certamente que nos diria duas coisas:
uma, que em tempo de pleno emprego (no tempo dos “trinta gloriosos”),
houve abusivas e falsas reivindicações do seu nome em vão, fazendo-se exactamente o contrário do que sempre preconizou; outra, que no momento actual
haveria, sim, que pôr em prática uma política de gasto público (mais do que
reduzir impostos) para reconstituir a procura efectiva global. E se se fala hoje
sobretudo nas despesas militares dos anos trinta na Alemanha de Hitler, e nos
Estados Unidos depois de 1940, não há razões económicas para dizer agora
que a despesa em obras públicas pacíficas funcionaria de um modo distinto.
4. Como fica dito, a crise a que assistimos e cujas consequências sofremos
17
UMA CRISE INESPERADA, MAS PREVISTA...
deve-se fundamentalmente a que estamos a deixar-nos iludir por concepções simplificadoras e mercantilistas, que nada têm a ver com a preocupação
fundamental, de que falam Carlo Rosselli (1897-1937) e Norberto Bobbio
(1909-2004), que se reporta à valorização do “governo das coisas”, em lugar
do “governo das pessoas”. O governo das coisas orienta a economia no sentido
da satisfação das necessidades humanas, sem esquecer a legitimidade dos cidadãos que consolida as instituições. É essa tradição socialista e liberal que nos
conduz à linhagem das conquistas que se foram afirmando no sentido da afirmação dos factores democráticos – a Magna Carta de 1215, o percurso que
conduziu à Revolução inglesa de 1688-89, à revolução americana e à revolução
francesa. O código genético da legitimidade democrática contemporânea
tem essas origens. No entanto, essa base liberal foi enriquecida em diálogo
com a industrialização, nas suas diferentes vagas, não podendo deixar de se
referir a tomada de consciência no século XIX (1848, 1871) e depois no século
XX (1919, 1932, 1945) da importância dos movimentos sociais, do sindicalismo, do cooperativismo, até à crítica dos totalitarismos. Daí dever falar-se à
esquerda num amplo movimento de realização progressiva da liberdade e da
justiça entre as pessoas… E estas ideias de movimento e da sua compreensão
são fundamentais, contra as ilusões do “Estado produtor colectivista”, das
razões de Estado e das ditaduras do proletariado.
É muito curioso verificar que o “crash” de 2008 foi uma espécie de contraponto em relação à queda do muro de Berlim de 1989 obrigando a pôr em
causa a tentação das simplificações ligadas ao “fim da história”. E esta complementaridade pode fazer-se, uma vez que a eleição do Presidente Barack Obama
abriu novas perspectivas de esperança e novas linhas de acção, que devem ser
consideradas no plano económico. Afinal, também as economias capitalistas
sofreram os efeitos nefastos da contradição entre as virtualidades da economia
livre e a tentação de a instrumentalizar ao serviço de meros cálculos especulativos ou de natureza puramente financeira. No fundo, a economia livre e
a sociedade aberta devem ser vistas a partir das suas virtualidades criadoras,
o que exige funcionamento das economias reais e da sua capacidade inovadora. Nesse sentido, Schumpeter deve ser ouvido, uma vez que as lições da
actual crise obrigam a perceber-se que o investimento, além de reconstituir
a procura efectiva global, tem, necessariamente, de ser reprodutivo, tem de
criar emprego, deve respeitar a regra de ouro das Finanças Públicas (o défice
18
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
público deve ser igual ou inferior ao investimento reprodutivo) e tem de favorecer a inovação, a competitividade e a produtividade.
Eis por que razão a intervenção do Estado deve ser disciplinadora e reguladora. O Estado não pode ser produtor, não deve substituir-se à livre iniciativa,
mas tem de ser um catalizador das diferentes iniciativas. Daí a importância
de se regressar ao planeamento democrático, que foi perigosamente abandonado. Com medo (legítimo) da tentação planificadora imperativa, largou-se
(ilegitimamente) o indispensável planeamento indicativo, e o consequente
acompanhamento e avaliação dos resultados obtidos. E basta lembrarmo-nos
do projecto europeu, cujo sucesso se deve à visão e à audácia de um planeador, Jean Monnet, que durante a guerra esteve ao lado de Roosevelt e depois
dela lançou as bases do que hoje é a União Europeia. Mas não tenhamos
ilusões, se prevalecer (como tem prevalecido) a navegação à vista, o projecto
europeu poderá condenar-se por ausência de rumo e de reflexão. Oiça-se
Jacques Delors a dizer-nos exactamente que falar hoje de governo económico
da União Europeia é exigir mais política e mais políticas económicas coordenadas, em torno dos interesses comuns. Daí que a esquerda moderna deva
reencontrar um novo diálogo legitimador entre o Estado e a sociedade, entre
as políticas públicas e o mercado – que recuse a centralização, mas que favoreça a orientação participada e a partilha de responsabilidades.
5. O “crash” de 2008 revelou o fim da ilusão de que seria possível gerir
a economia capitalista apenas a partir do funcionamento espontâneo do
mercado. Afinal, foi o próprio mercado a tornar-se vítima desta ilusão, o
feitiço virou-se contra o feiticeiro, uma vez que a concorrência tem de ser
protegida, que a regulação financeira e a supervisão têm de ser mais exigentes,
e que a inovação, a produtividade e a competitividade têm de ser incentivadas.
Se em 1989 a palavra “socialismo” pareceu afectada na sua imagem, em 2008 a
palavra “liberal” pode também ser posta aparentemente em causa. No entanto,
se virmos bem do que se trata é de tirar lições da história, serenamente.
O que caiu em 1989 não foi a ideia de um “socialismo” orientado para
as pessoas e preocupado em salvaguardar a liberdade pela solidariedade, no
contexto de um movimento de realização progressiva da liberdade e da justiça
entre os homens, mas sim a ideia de um Estado produtor, centralizado, burocrático, injusto e ineficiente. O que foi posto em causa em 2008 não foi a
ideia “liberal” das grandes revoluções democráticas, mas a tentação de tornar
19
UMA CRISE INESPERADA, MAS PREVISTA...
o mercado alfa e ómega da vida económica e de fazer do lucro imediato o
único aguilhão da satisfação de necessidades. Daí a necessidade de voltarmos a
reconstruir o compromisso entre o Estado e o mercado, de que fala Amartya
Sen, de modo que, em vez do centralismo, da burocracia e da ineficiência,
tenhamos articulação de esforços e incentivos eficientes para a inovação, para
a produtividade e para a capacidade competitiva. Não se trata de repetir o
“New Deal”, mas de assumir a mesma disponibilidade e a mesma atitude.
E Barack Obama é uma esperança, exactamente como foi Roosevelt. Mas
circunstâncias diferentes obrigam a respostas diversas. Não basta, por isso,
pensar-se apenas no Estado, sob pena de estarmos a reconstruir um novo
e pernicioso centralismo burocrático. Não basta realizar despesas públicas
(ainda que a intervenção no sector financeiro seja fundamental, em nome da
confiança e da concorrência), é indispensável, sim, usar o gasto público como
uma alavanca fundamental, desde que haja controlo rigoroso e justificação
para os resultados pretendidos e efectivamente alcançados.
6. Os défices públicos devem ser transitórios e têm de ser escrupulosamente justificados. E, de novo, temos de nos lembrar das lições da política
norte-americana do “New Deal”. Nem tudo correu bem, mas houve sempre
a preocupação de pilotar as realizações (recorde-se a história da TVA,
Autoridade do Vale do Tennessee, criada em 18 de Maio de 1933), então
o planeamento indicativo funcionou, com abandono dos projectos que não
atingiam os objectivos desejados. O acompanhamento e a avaliação das medidas
contra a crise são, assim, fundamentais, para que os cidadãos contribuintes
saibam como está o seu dinheiro a ser utilizado no sentido de reorientar a
economia no sentido da estabilidade e da confiança. O emprego, a evolução
dos preços, o crescimento económico, o incentivo à inovação e à competitividade têm de ser objecto de um rigorosíssimo escrutínio. Os perigos da
inflação e da deflação, o nível de emprego, a ligação entre qualificações e
mercado de trabalho, o funcionamento dos estabilizadores automáticos, a
sustentabilidade dos sistemas de segurança social, tudo isso tem de ser objecto
de adequado acompanhamento, no sentido da estabilização conjuntural e da
evolução estrutural.
E se falámos da protecção da concorrência (através do aperfeiçoamento
das respectivas entidades reguladoras), devemos ainda referir a prevenção
da corrupção e o combate às mais diversas formas de competição ilegítima
20
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
por força do efeito perverso dos “paraísos fiscais” (offshores), que criam um
sistema global grandemente assimétrico, incentivador de um falsa liberdade
económica que se liga à corrupção e ao crime internacional, sob a capa de
livre cambismo e do que Stiglitz tem designado como “fundamentalismo de
mercado”.
7. Onde nos conduzirá a situação actual? Que respostas se nos exigem? O
ciclo de especulação, para usar a expressão de Vilfredo Pareto (1848-1923),
tornou-se insustentável. As “falhas de mercado” e as “falhas de Estado” associaram-se para produzir um grave crise financeira da qual apenas poderemos
sair com políticas públicas coordenadas que ponham em primeiro lugar o
desenvolvimento humano, através da valorização das economias reais e do
favorecimento do investimento reprodutivo, apto a criar emprego. Daí a
importância da justiça distributiva e da coesão económica e social. O investimento público deverá ser considerado e incentivado, desde que devidamente
planeado e avaliado. O endividamento deverá crescer moderadamente e
sob controlo, para evitar as tentações discricionárias e proteccionistas, que
espreitam treimosamente em conjunturas como aquela que atravessamos.
Devemos desconfiar de todas as simplificações. A solução para a crise
actual não será encontrada num só país (daí a importância de fazer nascer o
governo económico da União Europeia e de realizar a Estratégia de Lisboa)
nem apenas a partir de uma intervenção maciça do Estado na economia. A
intervenção pública torna-se necessária transitoriamente, desde que limitada
e controlada, sabendo-se exactamente o que se quer e articulando cuidadosamente meios e objectivos. A confiança tem de ser restabelecida e a regulação
financeira tem de ser aperfeiçoada. Do que se trata, no fundo, é de cuidar da
eficiência e da equidade, da liberdade e da justiça, em vez da lógica do casino
que está nos antípodas de um desenvolvimento humano. Em vez de proteccionismo, precisamos de coordenação. Em lugar do fundamentalismo do
mercado, precisamos de uma aliança entre o Estado e o mercado. Em vez da
desordem dos paraísos fiscais, que favorecem a corrupção, o branqueamento
de capitais e o crime em geral, deveremos ter uma concorrência justa e uma
globalização humana, onde não prevaleça a “lei da selva”…
21
22
A primeira grande crise do século
e o eclipse do liberalismo
Paulo Pedroso
A
crise económica mundial que foi desencadeada pela espiral
especulativa imobiliária americana é da mesma gravidade
que a de 1929. Os indicadores económicos à escala global
- a capitalização bolsista; a produção industrial; o comércio
1
internacional - estão a afundar-se a um ritmo paralelo.
As diferenças entre uma e outra crise radicam na evolução das instituições
ao longo do século XX e do conhecimento acumulado sobre a gestão de crises
económicas. De facto, o moderno Estado de bem-estar aperfeiçoou-se após
a Grande Depressão e as políticas económicas keynesianas desenvolveram-se
significativamente, os governos procuraram agir rápido e os bancos centrais
estão a reagir mais depressa.
Crise de regulação e não crise moral
O diagnóstico sobre a origem da crise há-de influenciar as terapias a
identificar. Se é dominante a perspectiva segundo a qual esta é uma crise
originada pela desregulação dos mercados, há quem contraponha que ela
tem uma origem ética.
Nesta última visão seria a ganância dos especuladores e a ruptura de
um contrato moral que os ligasse ao interesse global que estaria em causa.
Quem pensa assim sobrevaloriza um indicador, a meu ver lateral, mas com
existência real nos últimos anos, o da tendência para que os salários dos
executivos subissem de modo completamente independente das performances reais das suas empresas e sem qualquer relação com o progresso das
condições de vida dos trabalhadores. Isto é, sem relação nem com a saúde
económica da empresa nem com a sua coesão.
1
Ver o excelente artigo (em permanente actualização) “A tale of two depressions”, de Barry Eichengreen e
Kevin H. O’Rourke em http://www.voxeu.org/index.php?q=node/3421.
23
A PRIMEIRA GRANDE CRISE DO SÉCULO E O ECLIPSE DO LIBERALISMO
A constatação de base é verdadeira. A OIT publicou em Janeiro de 2009
o seu relatório anual sobre o mundo do trabalho referente a 20082. Nele
é analisada a desigualdade de rendimentos dentro das 15 maiores empresas
americanas.
Em vésperas da grande crise, o fosso entre os rendimentos de dirigentes
e trabalhadores não parou de crescer. Entre 2003 e 2007, os salários dos
CEO depois de ajustados à inflação, ou seja os salários reais, cresceram
9,7% ao ano enquanto os da média dos executivos crescia 3,5% e os da
média dos trabalhadores apenas 0,7%. Em consequência o rácio entre os
salários dos CEO e dos trabalhadores cresceu significativamente, de 369
para 521.
A quebra de coesão que estes dados mostram é uma das características
da evolução das disparidades salariais e, consequentemente, das disparidades de rendimento nas economias avançadas. Ela ajuda, por outro lado,
a perceber porque os executivos de várias das empresas falidas em Wall
Street, que sobrevivem agora com o apoio do Estado, não acharam necessário inibir-se de momentos de convívio faustosos nem pensam diminuir
os salários milionários que auferem ou resistem a perder os bónus milionários que estão associados à sua remuneração.
Há quem defenda que nada existe de incorrecto nesta tendência, dado
que os salários dos executivos devem ser equiparados aos das estrelas do
futebol e que a elite dos gestores é tão difícil de recrutar e tem que ter
elevados níveis de desempenho que justificam essas políticas remuneratórias. Nessa visão, ainda, as assimetrias salariais entre gestores de topo e
trabalhadores nada tem de imoral ou errado, porque se prenderiam com o
contributo de cada um para a formação de valor na empresa. Não partilho,
de todo, de tal visão. Mas daí até ver na ganância dos gestores a origem
da crise vai um passo que não dou. Não foi a obsessão salarial dos CEO
que lançou as empresas financeiras na crise, foi a evolução especulativa dos
mecanismos das transacções financeiras.
No caso concreto, tudo começou com a insustentablidade da valorização
do mercado imobiliário americano que, quando começou a descer a uma
escala generalizada, arrastou consigo a falência de sociedades hipotecárias,
2
ILO, World of work Report 2008, (http://www.ilo.org/public/english/bureau/inst/download/world08.pdf)
24
PAULO PEDROSO
bem como a desvalorização de produtos financeiros derivados, deixou à
vista a fragilidade dos sistemas de supervisão financeira e provocou uma
falta de liquidez avassaladora no mercado do crédito.
As falhas éticas dos gestores existem mas não apenas não foram elas que
geraram esses mecanismos, também não se pode ver o capitalismo como
um sistema económico que tenha sido gerido na contemporaneidade por
sistemas de valores ou vinculações morais. Talvez seja possível um capitalismo ético, mas esse não será seguramente o que existiu no século XX nos
EUA. Pelo contrário, as falhas que devemos buscar estão no domínio da
regulação da actividade económica. Alan Greenspan, um dos autores da
desregulação do sistema financeiro que provocou o que o próprio chamou
o “tsunami do crédito” já admitiu que julgava que a acção das empresas
orientada pelos seus próprios interesses evitaria este tipo de crise e que
hoje se encontra, face a essa asserção em estado de “descrença chocada”.
De facto, a crise não nasceu no domínio da moral, mas na falta de domínio
dos mecanismos da economia.
As três vagas
A crise económica global terá, provavelmente, três vagas. A primeira
arrasou sectores significativos do sector financeiro especulativo que a
gerou. A falta de liquidez no sistema financeiro precipitou a contracção do
comércio internacional. Segundo a estimativa do Banco Mundial, a falta
de crédito ao investimento será responsável por 15 a 20% da descida do
comércio internacional desde a segunda metade de 2008.
A segunda está a sentir-se no mercado dos produtos devido à contracção
da procura a nível mundial, que afecta o comércio internacional. Mas a
terceira onda da crise, a crise social das famílias afectadas pelo desemprego
e, consequentemente, a prazo mais ou menos longo pela pobreza, também
se aproxima.
Se as duas anteriores não forem eficazmente travadas, pode atingir
proporções difíceis de controlar que se reflectem tragicamente na terceira.
Se, para esta última, ainda não é tempo de anunciar planos com a dimensão
dos que vêm sendo apresentamos para “salvar” o sector financeiro e a grande
indústria, é tempo de os ter prontos para, se e quando se impuserem.
25
A PRIMEIRA GRANDE CRISE DO SÉCULO E O ECLIPSE DO LIBERALISMO
Se os EUA foram os principais atingidos pela primeira onda da crise
mundial, o colapso do sistema financeiro especulativo, a Alemanha e Japão
parecem ser protagonistas da segunda, a da retracção dos mercados, dada
a sua dependência das exportações industriais: em Dezembro de 2008
as exportações japonesas caíram 26,7% em relação ao mês homólogo e o
governo alemão prevê uma baixa de 18% nas exportações em 20093.
Vendo bem, nem a Alemanha nem o Japão foram atingidos significativamente pela crise do imobiliário ou pelos activos tóxicos. Mas são atingidos
fortemente pela contracção do comércio internacional. O caso do Japão é,
a esse respeito, paradigmático. Até à crise, não apenas exportava directamente para os EUA e a Europa como também beneficiava – tal como
outros países industrializados asiáticos - de um esquema de “comércio
triangular”, exportando componentes avançados para países como a China,
a Tailândia ou o Vietname que os montavam e exportavam os produtos
finais para os EUA (e Europa) em troca de divisas. O efeito combinado
da dupla retracção das exportações implicou uma recessão particularmente
violenta: no quarto trimestre de 2008 a queda do PIB japonês foi o dobro
da americana4.
A crise transferiu-se do sistema financeiro para a economia real. A retracção
dos mercados mundiais está a afectar os grandes espaços económicos. A variação
homóloga do PIB é, desde o início da crise, extremamente negativa em todas as
economias desenvolvidas.
Para Portugal, pequena economia aberta e dependente do sector exportador,
no qual temos baseado o nosso crescimento, esta conjuntura é particularmente
difícil. Se é certo que estamos a evoluir menos mal que o nosso motor económico, a Alemanha e que o conjunto da área Euro, não é menos certo que
estamos a sofrer esta recessão após vários anos de fraco crescimento.
Os indicadores sociais, se nada acontecer, reagirão retardada mas
fortemente. Aproxima-se o momento de, mais do que falar de crise, se
3
Cf., para a Alemanha, artigo no Le Figaro de 30 de Abril (http://www.lefigaro.fr/economie/2009/04/30/0
4001-20090430ARTFIG00337-l-allemagne-paie-sa-dependance-a-l-export-.php) e para o Japão, artigo da
Reuters (http://www.reuters.com/article/businessNews/idUSTRE4B70ME20081222?feedType=RSS&feedName
=businessNews).
4
Kyoji Fukao e Tangjun Yuan, “Why is Japan so heavily affected by the global economic crisis? An analysis based on
the Asian international input-output tables” (http://www.voxeu.org/index.php?q=node/3637)
26
PAULO PEDROSO
assumirem políticas mais firmes quanto às suas causas e consequências.
Contudo, os planos de acção conhecidos até hoje têm sido alvo de críticas
fortes. Se o famoso bailout do sistema financeiro americano concebido por
H. Paulson foi recebido com frieza, como um processo de compra de tempo
para que Barack Obama, se fosse eleito, pudesse fazer algo de consistente
na superação da crise financeira5, o plano que este fez aprovar foi por sua
vez catalogado como insuficiente, porque dotado de meios inferiores aos
necessários e apostando parcialmente em reduções fiscais pouco eficazes.
Segundo Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, não conseguirá
atingir mais do que um terço dos objectivos fixados6:
Na Europa, as atenções têm estado concentradas em evitar a falência
de grandes instituições bancárias e em manter o sistema de crédito a
funcionar minimamente, por via da concessão de garantias de Estado ao
endividamento bancário e do aumento dos níveis de garantia de depósitos
aos cidadãos.
A Europa ocidental apenas foi lateralmente afectada pela crise do sistema
financeiro americano, de que sofreu os efeitos das consequências (falta de
liquidez no crédito), mais do que das causas. Mas a exposição do sistema
financeiro europeu à Europa Central e Oriental poderá vir a desempenhar
para a Europa Ocidental o papel que o subprime teve no desencadeamento da
crise financeira dos EUA, agravando a crise. Os bancos europeus têm mais
de 1,5 triliões de dólares investidos no Leste e a desaceleração dos fluxos
financeiros, com a contracção do investimento estrangeiro, a desaceleração
da exportação dos países do Leste para os mercados ocidentais e a instabilidade monetária nesses países, pode desencadear uma segunda onda de
choque da primeira vaga da crise. A crise do imobiliário na Hungria, em
que a maior parte do crédito hipotecário foi concedido em Francos suíços
e em que a degradação da situação económica levou a desvalorização forte
da moeda local, pode demonstrar como esse efeito se produz. Basicamente,
a vulnerabilidade do Leste europeu à crise assenta numa mistura explosiva de desvalorização da propriedade (como nos EUA), interrupção do
5
Ver Paul Krugman“Bailoutnarratives”(http://krugman.blogs.nytimes.com/2008/10/01/bailout-narratives/)eJames
Galbraith (http://www.prospect.org/cs/articles?article=how_much_will_it_cost_and_will_it_come_soon_enough)
6
Paul Krugman, “The Obama gap” http://www.nytimes.com/2009/01/09/opinion/09krugman.html)
27
A PRIMEIRA GRANDE CRISE DO SÉCULO E O ECLIPSE DO LIBERALISMO
investimento estrangeiro, arrefecimento do crescimento económico e
desvalorização da moeda. Este cenário, que está a ocorrer de forma moderada, se vier a agravar-se, provocará perdas significativas por parte dos
bancos europeus dependentes desses mercados. A ocorrência de grandes
perdas nesses mercados pode provocar uma nova vaga de crise de crédito e
de recessão, em particular na Áustria, na Suécia, na Bélgica, na Alemanha
e na Itália, cujos bancos predominam nos mercados locais.
A intensidade e a persistência da crise económica reflectir-se-á, por
sua vez, ainda que de forma diferida, no agravamento do desemprego. No
passado, a crise demorava mais a chegar ao desemprego, dada a rigidez do
mercado de trabalho. Do mesmo modo, uma vez ocorrido o desemprego, a
sua contracção era mais difícil. Após as profundas reformas do mercado de
trabalho realizadas por diversos países europeus, o contágio da crise para o
desemprego é, naturalmente, mais rápido. A desregulação foi de par com o
desenvolvimento do crédito às famílias como forma de garantir os níveis de
bem-estar da classe média e a suavização dos “picos” de incerteza originados,
por exemplo, por situações de desemprego.
O crédito às classes médias permitia suavizar a transição entre empregos
e atenuar os efeitos do desemprego no bem-estar das famílias. Mas, na crise
actual, essa desregulação tem efeitos sobre as famílias pelas duas vias. Por um
lado, é mais fácil perder o emprego quando a economia entra em recessão,
por outro lado, tornou-se mais difícil para as famílias obter crédito, dadas
as dificuldades do sistema de crédito. Ou seja, os trabalhadores estão mais
expostos à contracção da economia e o seu consumo está menos protegido
pelas dificuldades do sistema financeiro. Assim a actual crise manifestase também sob a forma de crise de regulação dos mercados de trabalho7,
quer porque aumenta a vulnerabilidade ao desemprego quer, talvez sobretudo, porque o mecanismo compensatório do crédito às famílias não está a
funcionar. Mais uma vez, esta dimensão tem efeitos cumulativos com as anteriores, porque provoca igualmente a propensão à contracção do consumo.
7
Giuseppe Bertola, “Labour markets on the verge of a regulation crisis” (http://www.voxeu.org/index.php?q=node/3604)
28
PAULO PEDROSO
O eclipse liberal
O furacão que irradiou de Wall Street não está a provocar apenas
uma crise económica e social. Parece que produziu também um eclipse
teórico dos que defendem a desregulação dos mercados. Ainda há poucos
meses não faltava quem esgrimisse argumentos demonstrando o carácter
parasitário do Estado na economia e queixando-se de que a carga fiscal
produz perda de eficiência económica. Esperar-se-ia de quem pensa neste
registo que nos fizesse chegar uma doutrina consistente sobre como sair
desta crise pelo lado liberal, ou seja com intervenção mínima do Estado e
esperando pelos dinamismos do mercado. Ora, parece que o consenso ou
pelo menos o pensamento hegemónico neste momento vai por outro lado.
Fundamenta-se na intervenção de massa do Estado quer potenciando o
seu papel de regulador dos mercados financeiros, quer promovendo injecções de capital em empresas privadas, quer nacionalizando-as. Isto é, todos
pedem a solução para os problemas gerados pela gestão irresponsável do
sector financeiro ao Estado.
A mim, que sou um defensor da globalização com regulação forte, pareceme justo que se peça isso. Afinal, se o Estado não intervier, não há forma
de que a irresponsabilidade dos tubarões de Wall Street que criaram para
si próprios fortunas reais e para a s suas empresas opulências virtuais não se
torne numa crise sistémica pela contracção da procura de bens e serviços.
O Estado deve tomar as medidas possíveis para que se contenha o afundamento das bolsas e para que os bancos voltem a emprestar dinheiro uns
aos outros, aos investidores e aos cidadãos a um preço comportável, de
modo a que o investimento continue e o consumo se possa manter. Para
isso terá que apoiar uns quantos empresários e empresas que não mereciam ser apoiados. Mas, como sempre, a intervenção no sentido de que os
problemas se atenuem, não é moral, busca uma maior eficiência social e
todos ganhamos em que a economia saia da crise.
Curioso é que aqueles que demonizam tão facilmente a irresponsabilidade dos pobres corram tão céleres a defender os apoios à irresponsabilidade
dos especuladores.
Curioso é que os que defendem tão facilmente o Estado mínimo quando
se trata da saúde dos cidadãos corram tão decididos a apoiar a acção do
29
A PRIMEIRA GRANDE CRISE DO SÉCULO E O ECLIPSE DO LIBERALISMO
Estado quando se trata de curar as doenças das empresas e em particular
das que inflingiram a si próprias os golpes de que padecem. Esta crise vai
provavelmente mudar o desenho institucional do sistema financeiro e talvez
as instituições reguladoras do capitalismo global. Mas isso implica muito
mais que as medidas cirúrgicas que estão a ser tomadas. Tal como todos
os grandes males, implica grandes remédios e não pequenos remendos.
Estou convencido que chegou a hora de nos voltarmos de novo para as
instâncias de regulação da economia global - as instituições do sistema da
ONU, os organismos supranacionais - e lhes pedir que produzam agora
respostas novas. Mas eu sou um regulacionista. Vejo nesta crise uma oportunidade de reforçar os mecanismos de regulação da globalização que os
neoliberais ridicularizaram nas discussões e obstaculizaram nas decisões.
Eles, pergunto-me, porque não se defendem?
Respostas necessárias
Face à dimensão da crise, são necessárias novas respostas. Para já,
estamos a conseguir não repetir erros de gestão da crise de 1929. O
FMI interveio para estabilizar os países em maior risco, suplementado
por algumas potências económicas em alguns casos. Os bancos centrais
desceram drasticamente as taxas de juro para devolver a liquidez aos
mercados. As nações mais poderosas concertaram acções para a gestão
da crise. Contudo, até ao momento, para além das políticas nacionais e
do alargamento do G-7 para o G-20,com o que isso significa de maior
multilateralismo, nenhum redesenho institucional ocorreu e a única
consequência prática para a regulação à escala global que resultou da
Cimeira do G-20 em Londres, em Abril, foi o reforço de meios e a
discussão sobre o alargamento do mandato do FMI, a instituição global
de crédito de última oportunidade de que dispomos.
As medidas já tomadas conseguiram conter a crise e iniciar o que se tem
chamado a recuperação em L, ou seja, a interrupção da tendência para a
queda abrupta, mas não produziram sinais de inversão de tendências.
Em particular, três assuntos-chave continuam por enfrentar: a
coordenação das políticas fiscais, as medidas de recuperação da solidez
do sistema bancário e o mandato a conferir às instituições financeiras
30
PAULO PEDROSO
internacionais8. Ou seja, uma das maiores fragilidades que permanecem
deriva de que a crise global continua a não ser enfrentada por mecanismos
globais de regulação.
Muitos países, contudo, estão a adoptar medidas anticrise que obedecem
a um padrão semelhante e que investem na intervenção do Estado e no aperfeiçoamento da regulação. Não é necessário recorrer a académicos radicais
ou a partidos de esquerda para perceber que há necessidade de produzir alterações substanciais de política se queremos conter a crise no tempo e os seus
efeitos negativos.
O staff do FMI produziu em finais de 2008 uma análise orçamental da
política necessária para fazer face à crise num estado precoce bastante elucidativa9. Do estudo de cinco grandes crises financeiras do século XX – as
crises americanas dos anos trinta e dos anos oitenta, a dos países nórdicos,
a coreana e a japonesa, – extraíram quatro conclusões que podem ser de
grande utilidade neste momento:
a) a resolução da crise financeira é uma pré-condição para o regresso
ao crescimento económico sustentado e o adiamento da intervenção
nesse domínio conduz à degradação das condições macroeconómicas,
resultando por sua vez em maiores custos fiscais para contrariar os
seus efeitos;
b) a resolução da crise financeira precedeu sempre a resolução da
crise macroeconómica;
c) os estímulos fiscais são úteis sempre que a crise financeira se
propaga para as empresas e as famílias, degradando a sua situação
económica;
d) a resposta fiscal pode ter efeitos significativos de estímulo da
procura agregada se for adaptada ao formato da crise.
As recomendações do staff do FMI, baseadas nestas conclusões, conduzem
a medidas cuja linha-força é o uso dos recursos públicos para que a engrenagem da economia volte a funcionar. Assim, propõem a aceleração dos
investimentos públicos, o estímulo ao consumo pela via da protecção às
8
Charles Wyplosz, “The outcome of the G20 Summit: A sceptic’s view” (http://www.voxeu.org/index.php?q=node/53)
9
Antonio Spilimbergo, Steven Symansky, Olivier Blanchard e Carlo Cottarelli, “Fiscal policy for the crisis”
http://www.imf.org/external/pubs/ft/spn/2008/spn0801.pdf
31
A PRIMEIRA GRANDE CRISE DO SÉCULO E O ECLIPSE DO LIBERALISMO
famílias e o aumento do crédito às empresas.
No domínio do investimento público, recomendam aos governos
que não cortem programas de despesa pública por falta de recursos e que
retomem os projectos de investimento atrasados, interrompidos ou rejeitados por falta de financiamento ou considerações macroeconómicas, bem
como adoptem alguns projectos de elevado perfil, com justificação de longo
prazo e fortes externalidades. Por outro lado, dada a existência de maior
risco para as empresas na conjuntura, sugerem que o Estado aumente a sua
participação nas parcerias público-privado.
Recomendam também que os governos estimulem o consumo pela via
da protecção dos rendimentos dos grupos mais pressionados e vulneráveis ao desemprego e aos limites ao crédito. Assim, a melhoria dos apoios
às famílias em conjuntura de crise deveria focalizar-se em melhorias de
subsídios de desemprego e no crescimento das transferências sociais, em
particular das que beneficiam os segmentos mais pobres da população.
Os governos deveriam, ainda, proteger as empresas viáveis dos disfuncionamentos do sistema de crédito, por exemplo pela garantia de créditos,
corrigindo o mercado.
Este conjunto de estímulos parecer-me-ia passível de grande consensualidade, embora o caso português não o demonstre, dada a sobreposição
que a direita democrática faz da retórica conjuntural a uma visão estrutural
de futuro do país.
Menos consensual será a proposta de Dani Rodrik de que se raciocine em relação aos trabalhadores da mesma forma que se faz em relação
às empresas e aos agentes financeiros, dando-lhes confiança. Com efeito,
numa era de incerteza e de crise social em que os mecanismos tradicionais
de protecção dos trabalhadores foram flexibilizados, importa ser capaz de
encontrar novos instrumentos que lhes confiram segurança em contexto
de crise. A sua proposta de criar incentivos fiscais às empresas ligados à
evolução do volume de emprego é um passo nesse sentido, garantindo que
o Estado apoia a preocupação com a criação de emprego sem diminuir a
capacidade de gestão do pessoal pelas empresas. Se houver trabalhadores
ou unidades não eficientes elas podem ser substituídas por outras mais
eficientes, mas a empresa deveria ser incentivada a manter ou aumentar
o emprego e os salários. Uma empresa que diminua o número de efec32
PAULO PEDROSO
tivos ficaria sem benefícios fiscais, a que os mantivesse ou aumentasse teria
incentivos progressivamente superiores. Na sua opinião este incentivo não
geraria ineficiência económica porque permitiria às empresas despedir os
trabalhadores não eficientes, desde que estes fossem substituídos, apenas
diminuiria a propensão à redução do emprego como estratégia adaptativa
face à crise10.
E Portugal?
A crise não chegou a Portugal imediatamente. O sistema financeiro
português tinha quase nula exposição aos efeitos da crise imobiliária
americana e a primeira vaga da crise não nos atingiu directamente. É certo
que ainda podemos vir a ser afectados pela segunda onda de choque dessa
vaga, dada a exposição ao leste europeu, mas ela é circunscrita. É ainda
mais certo que existe a percepção de que a crise do sistema financeiro nos
atingiu dada a mediatização da situação de dois pequenos bancos – o BPN
e o BPP – mas apenas muito marginalmente estes casos repercutem a dinâmica mundial de crise, antes se lhe sobrepondo factores que radicam nas
próprias instituições.
A partir do momento em que a crise começou a espalhar-se pelos
mercados mundiais dos produtos, Portugal como pequena economia
aberta começou a sentir violentamente os seus efeitos. A contracção do
PIB português fez-se sentir de imediato e as previsões internacionais vão
no sentido de que este acompanhe a recessão mundial e o país retome o
crescimento apenas quando a procura mundial recuperar e a um ritmo
ligeiramente inferior ao da zona Euro. Acresce que esta recessão surge
após vários anos de crescimento modesto, o que torna a situação particularmente delicada. Desde o início de 2009, a conjugação da quebra nas
receitas fiscais, em particular no IVA, com a subida nas despesas sociais, em
particular no subsídio de desemprego, não deixa margem para dúvidas. A
crise económica está a ter efeitos sociais que exigem monitorização cuidada
nos próximos meses e que desafiam o Governo a continuar as medidas que
10
Dani Rodrik, “A proposal: employment-linked tax incentives”
(http://rodrik.typepad.com/dani_rodriks_weblog/2008/12/a-proposal-employment-linked-tax-incentives-1.html)
33
A PRIMEIRA GRANDE CRISE DO SÉCULO E O ECLIPSE DO LIBERALISMO
combinem estímulo fiscal, apoio social e apoio às empresas.
Não há razões para optimismos, dada a natureza da nossa inserção geoeconómica e a evolução previsível da situação dos nossos principais parceiros
comerciais, que tenderão a continuar a penalizar as exportações.
Se a primeira vaga da crise mundial nos atingiu lateralmente, tudo
aponta para que a segunda nos atinja fortemente. O que aumentará as
condições para que se desencadeiem os mecanismos da crise social.
O modelo social português foi construído para situações com baixo nível
de desemprego e sofrerá um teste sério se tiver que adaptar-se a um crescimento do desemprego intenso e à permanência por um período prolongado
de uma taxa de desemprego elevada. Até agora os dados demonstram que o
país tem conseguido conter esse crescimento, que tem evoluído no último
ano em linha com a média da área euro. Mas é possível que estejamos ainda
num estádio inicial de pressão da contracção do comércio internacional
sobre as empresas e estas não tenham esgotado ainda a margem de manobra
para conterem os seus efeitos. Mas, se a recessão internacional se prolongar
mais alguns trimestres, haverá forte pressão para um aumento muito significativo do desemprego.
Vamos ver como o desemprego português vai resistir à crise. Até onde
as estatísticas já vão, Portugal não seguiu a tendência de descontrolo dos
nossos vizinhos espanhóis mas isso não é garantia de que não venha a haver
um agravamento sensível da situação. Seguramente, as medidas anunciadas
no início de 2009 eram necessárias. É provável que outras se imponham
num prazo relativamente curto.
O Governo deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance – na política
orçamental e nas políticas de incentivo à economia - para evitar que a taxa
de desemprego chegue aos 10%. Por outro lado, tem que continuar a intensificar as políticas activas de emprego e as medidas de protecção social, de
modo a que o aumento da vulnerabilidade ao desemprego não se transforme
em agravamento substancial do risco de pobreza e a que os mais desfavorecidos também possam ser alvo de atenção nas medidas de combate à crise.
Tais medidas aumentarão a pressão sobre o défice e o endividamento
público. Mas nesta conjuntura o controlo do défice é um objectivo subordinado da prevenção e mitigação da crise social. É de novo tempo de buscar
respostas no pensamento divergente.
34
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36
O festim está suspenso
Joaquim Jorge Veiguinha
E
m 11 de Julho de 2005, a revista norte-americana BussinessWeek
publicava um artigo significativamente intitulado Demasiado dinheiro
(“Too much money”). Este tinha como subtítulo um aviso à navegação: “Uma superabundância global de poupança é boa para o
crescimento – mas os riscos estão a aumentar”. Os Estados Unidos, exemplos
paradigmáticos de endividamento das famílias e do Estado, pertenciam, paradoxalmente, a esta zona da “global saving glut”. Segundo a BusinessWeek, as empresas
norte-americanas tinham acumulado 542 mil milhões de dólares no primeiro
trimestre de 2005, o que em termos absolutos representava um aumento de
quase 100 por cento em dois anos. Mas o dado mais significativo era que a taxa
de poupança nacional tinha aumentado de 12,8 para 14,7 por cento. Em 9 de
Julho do mesmo ano, o semanário britânico The Economist apresentava um artigo
intitulado A superabundância de poupança das empresas (“The corporate savings gluts”).
Citando um estudo da consultora J. P. Morgan, esta revista liberal anunciava
que o aumento total das poupanças líquidas das empresas dos países desenvolvidos tinha atingido um trilião dólares entre 2001 e 2004, o que representava
3 por cento do PIB mundial e o quíntuplo do aumento das poupanças líquidas
das economias emergentes no mesmo período.
Apesar da crise da Bolsa de valores tecnológicos de 2001, a característica
central dos seis primeiros anos do terceiro milénio foi a de um aumento
exponencial das taxas de lucro empresarial a nível mundial, particularmente nos países mais desenvolvidos. O excesso de liquidez, referido pelas
duas prestigiadas publicações do mundo anglo-saxónico, era, porém, um
sintoma de sobreacumulação de capital, ou seja, em termos keynesianos,
uma situação em que há um desequilíbrio entre a poupança e o investimento
produtivo, o que constitui um índice de iminente crise de superprodução.
Apesar dos comentários optimistas dos economistas neoliberais, de que
se destaca Kenneth S. Rogoff para quem “a probabilidade de um cenário
catastrófico desapareceu”, os autores do artigo da BusinessWeek alertavam para
37
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
o facto de que “o dinheiro barato, em vez de se dirigir para os investimentos
produtivos, poderia sobrestimular a despesa e provocar um aumento muito
grande dos activos mobiliários, preparando o cenário para uma crise
futura”1. Não restam dúvidas de que estes, embora não tivessem previsto
que a crise eclodiria no mercado imobiliário, reflectiam, ao contrário de
Rogoff, uma preocupação que acabaria por lhes dar razão. No entanto,
poucos lhes deram ouvidos, aderindo à tese do economista do FMI. Nestes
anos de aparentes “vacas gordas” as grandes empresas estavam pouco preocupadas em canalizar o excesso de poupanças para o investimento, pondo
em causa os princípios dos manuais académicos de macroeconomia de que
numa situação deste tipo existe muito singelamente uma capacidade de
autofinanciamento, cujo destino “natural” é inevitavelmente o aumento da
capacidade produtiva. Nada de mais falso! De facto, o excesso de liquidez
auto-alimentava-se numa espiral ascendente que parecia não ter fim. Prova
disso, era a prática corrente das sociedades cotadas em Bolsa readquirirem
as próprias acções com o intuito de aumentarem artificialmente o seu
valor. Nem a própria França, exemplo e paradigma de um capitalismo mais
“social” do que o norte-americano e britânico, escapava a esta onda especulativa. Citando estatísticas da Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF),
o diário Le Monde de 31 de Dezembro de 2004 considerava que a reaquisição
das acções da parte das grandes sociedades anónimas tinha atingido mais
de 56 mil milhões de euros entre 2000 e 2003. Se a este valor juntarmos
os 3 mil milhões da aplicação da liquidez na compra das próprias acções
das empresas inscritas no índice CAC 40 da Bolsa de Paris, o valor total
destas transacções especulativas ultrapassou a capitalização bolsista de duas
das maiores empresas francesas, a France Télécom (58,7 mil milhões de
euros) e a BNP Paribas (48,5 mil milhões).
1
Esta observação é correcta. De facto, apesar do aumento das poupanças líquidas das empresas norte-americanas, que são contabilizadas anualmente, terem aumentado neste período, o sector privado - famílias,
empresas não financeiras e instituições financeiras - regista uma dívida acumulada que não tem parado de
crescer desde os anos 80. Assim, em 2008, a dívida das empresas e das famílias norte-americanas atingia
já 190% do PIB, enquanto a das instituições financeiras ascendia a cerca de 300% do PIB (Fonte: The
Economist, 14.02.09). A tendência de fundo é clara: o modelo baseado no endividamento crescente do
sector privado, e também do governo federal norte-americano da era de George W. Bush, era insustentável,
e foi uma das causas da actual crise.
38
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
O aumento da taxa média de lucro
O fenómeno do aumento das taxas de lucro em termos médios foi a
característica central da expansão do capitalismo na era da globalização.
Não se pode dizer que fosse um fenómeno inédito. Constitui, porém,
a tendência dominante do período, resultante de um processo que
combinou um conjunto de transformações na esfera produtiva e alterações na redistribuição do produto e da riqueza sociais que favoreceram
o capital em detrimento do trabalho assalariado, o grande perdedor
no confronto pela repartição do excedente social nas décadas de 90 do
século passado e na primeira década do terceiro milénio. Este processo
é acompanhado, desde os inícios dos anos 90 do século XX, pela hipertrofia da esfera financeira, geradora de sucessivas crises que culminaram,
em 2007, com a crise das hipotecas imobiliárias de alto risco (subprime),
uma crise financeira generalizada que já abrange toda a economia e que
pode considerar-se, sem exagero, a primeira crise global do capitalismo
planetário de consequências imprevisíveis.
O aumento da taxa média de lucro é o ponto de partida da hipertrofia
da esfera financeira ou do que é, por vezes, designado por financeirização
da economia, alimentada pelo excesso de liquidez das grandes corporações empresariais que desabou como um castelo de cartas com a crise
das subprime. É impossível compreender este processo sem analisarmos as
causas que estiveram na origem do aumento da taxa média de lucro que
constitui o fundamento da acumulação de capital à escala mundial. Por
outro lado, o modo como a hipertrofia da esfera financeira intervém no
processo de acumulação de capital, definindo as suas linhas de orientação, é outro dos aspectos do problema que irá ampliar as desproporções
e as distorções do capitalismo globalizado e conduzir a crises financeiras
que podem converter-se em crises globais através de uma espiral de endividamento que favorece a formação de enormes bolhas alimentadas pela
especulação financeira. Estas rebentam inesperadamente em diversos sites
do capitalismo globalizado, causando estragos de dimensões gigantescas
quando eclodem no seu próprio centro hegemónico.
Na segunda metade dos anos oitenta do século passado, iniciou-se uma
revolução tecnológica que contribuiu para a intensificação e expansão
39
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
da acumulação de capital, embora esta não seja por si só suficiente para
sustentá-la. A sua principal característica – que apenas encontra na revolução industrial dos finais do seculo XVIII na Grã-Bretanha e na primeira
metade do século XIX nos principais países da Europa Ocidental o seu
termo de comparação relativamente às profundas alterações introduzidas nos modos de trabalhar e produzir – foi a criação de um capital
extremamente móvel, característica inédita, bem como de um processo
produtivo em que o elemento director já não é a manipulação de coisas
ou objectos, mas a de símbolos ou o tratamento da informação em redes
conectadas a nível mundial. Esta transformação espantosa não teve como
consequência, como alguns apressadamente tentaram deduzir, a subalternização do tradicional sector secundário relativamente ao sector terciário,
mas uma maior interpenetração entre a indústria e o sector de serviços
de alto valor acrescentado que constituiu de, certo modo, o núcleo do
novo paradigma produtivo: o sector da programação informática. Com
a extensão das máquinas dotadas de memória ou dos sistemas tecnológicos capazes de se auto-regularem, ou seja, parafraseando Marshall
McLhuan, com a passagem da “galáxia de Guttenberg”, ou sistema mecanicista que tinha como referente Newton, para a “galáxia Marconi”, ou
sistema electrónico que tem como expoente Einstein, a separação entre
o sector secundário e o sector terciário, baseada na tradicional divisão
entre trabalho material e trabalho imaterial, foi superada: a indústria
terciariza-se cada vez mais, já que utiliza bens de equipamento informatizados, máquinas dotadas de memória, cujos programas são elaborados
por trabalhadores do sector terciário, enquanto o terciário se industrializa, pois os trabalhadores deste sector utilizam cada vez mais máquinas
automáticas, quando anteriormente utilizavam instrumentos de trabalho
mecânicos ou manuais. Pela primeira vez, portanto, o trabalho efectuado com máquinas (programáveis) estendeu-se a todos os sectores da
economia, deixando de ser característica exclusiva do sector secundário,
como aconteceu no decurso da primeira revolução industrial e ainda
durante a maior parte do século XX.
Outro aspecto desta espantosa revolução tecnológica que está directamente ligada ao aumento da taxa média de lucro é o desmantelamento
das grandes implantações de capital fixo que caracterizavam a indústria
40
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
do período anterior ou, pelo menos, a redução do seu peso específico. A
mobilidade do capital só é possível na base de tecnologias light que podem
ser deslocalizadas e montadas em qualquer ponto do globo. É justamente
por isto, que as indústrias ou as actividades menos móveis apresentam
um coeficiente capital-trabalho ou uma composição orgânica de capital
mais elevados – relação entre o valor do capital investido em meios de
produção ou capital fixo ou constante e o valor do capital investido na
força colectiva de trabalho que produz um valor maior do que consome
para a sua reprodução social – e, consequentemente, uma taxa média de
lucro mais baixa. Em contrapartida, as indústrias mais móveis ou mais
leves, baseadas no paradigma do capitalismo informatizado, apresentam
um coeficiente capital-trabalho ou uma composição orgânica de capital
mais baixa, apesar de serem mais avançadas tecnologicamente do que as
anteriores. Por conseguinte, a taxa de lucro destas indústrias e actividades sobe, ao contrário do que se poderia pensar. Prova disto, são os
dados citados por Harry Shutt, num interessante livro desastrosamente
traduzido para português, em que a redução do valor contabilístico das
imobilizações corpóreas no valor total (capital próprio + dívida) das
empresas não financeiras dos Estados Unidos, país onde arrancou a nova
revolução tecnológica, passou de 83 por cento em 1978 para apenas 31 por
cento em 1998 (O declínio do capitalismo, Cascais, Sururu, 2007, p. 47).
Devemos, porém, aceitar com algumas reservas estes dados. O valor
contabilístico das imobilizações corpóreas, ou seja, do tradicional
capital fixo ou dos bens de equipamento, pode não representar o seu
valor real. A razão para isto não está nos métodos de cálculo, mas no
facto de que a nova empresa móvel não é, em geral, proprietária dos
seus bens de equipamento. A sua necessidade de poder transferir-se para
outras paragens em que as condições de produção lhe são mais favoráveis
– menores custos salariais, melhor qualificação da força de trabalho,
sistemas fiscais e tributários mais generosos para a exportação dos lucros,
etc. – leva-a a recorrer cada vez mais a sistemas de aluguer ou leasing. Deste
modo, o que é contabilizado nos seus balanços não será o valor total da
imobilização corpórea, mas apenas o aluguer do equipamento. Porém,
esta provável subvalorização contabilística não pode pôr em causa o facto
de que a revolução da tecnologia light contribuiu para reduzir o valor
41
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
da composição orgânica de capital e, por conseguinte, para o aumento
da taxa média de lucro. Um outro aspecto que confirma esta tese é
que os sectores tecnológicos de ponta já não podem ser caracterizados
como sectores capital intensivos por excelência, em que elevados níveis
de coeficiente capital-trabalho ou de composição orgânica de capital
constituem a característica central. Como muito bem se apercebe Harry
Shutt, estes sectores são sobretudo intensivos em conhecimento humano,
o que contribui para reduzir a composição orgânica de capital e, por
conseguinte, para aumentar a taxa média de lucro, apesar da elevada
intensidade tecnológico-científica.
Outro factor contribuiu também para reduzir a composição orgânica
de capital ou o coeficiente capital-trabalho. Trata-se fundamentalmente da entrada no mercado mundial de uma nova força de trabalho
proveniente de países que no passado recente se integravam na esfera
das democracias populares ou no grupo dos Não-Alinhados. Para além
dos países da Europa de Leste e da Rússia, destacam-se a Índia e sobretudo a China. Esta força de trabalho suplementar que engloba milhões
de pessoas gera um enorme excedente social, uma grande parte do qual
é apropriado pelos grandes grupos empresariais que se implantam nos
novos países emergentes para beneficiarem das diferenças salariais e de
condições de trabalho que os trabalhadores europeus e mesmo norteamericanos sindicalizados não poderiam aceitar. Alguns defendem que
a deslocalização de actividades do sector secundário e terciário para estes
novos países emergentes afecta sobretudo os sectores trabalho intensivos e
que, por conseguinte, os trabalhadores ocupados nos sectores de elevada
composição intelectual e tecnológica, que se concentram nos países mais
desenvolvidos, não são minimamente afectados nos seus direitos e nos
seus salários por esta mobilidade do capital transnacional. Este ponto de
vista só, em parte, é verdadeiro, pois nos países emergentes desponta já um
sector de elevada composição intelectual e tecnológica que contribui para
exercer uma pressão sobre os salários dos trabalhadores dos países mais
desenvolvidos. A Índia é talvez o seu exemplo mais paradigmático: não
possui apenas call centers onde trabalham cibercoolies mal pagos, mas também
uma força de trabalho qualificada que desenvolve a sua actividade na
programação de computadores. Por sua vez, a China reapropria-se cada
42
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
vez mais das inovações tecnológicas das empresas ocidentais instaladas no
país, aumentando a composição tecnológica dos produtos exportados,
mesmo tendo em conta que a matriz dos sectores mais avançados tecnologicamente provém do capital transnacional.
Importa sublinhar que este processo de deslocalização que afecta não
apenas a esfera da indústria, mas também os serviços contribui para
aumentar a taxa média de lucro tanto em termos absolutos, como em
termos relativos. Em termos absolutos, porque, é necessário relembrá-lo,
aumenta o sobreproduto que alimenta o processo de acumulação de
capital à escala mundial, enquanto, antes do ingresso desta imensa força
de trabalho no mercado mundial, este seria apropriado pelo Estado nos
países em que vigorava o sistema de planeamento centralizado ou não
teria sequer possibilidade de vir à luz em economias onde o autoconsumo camponês ou a produção mercantil simples de base rural limitavam
a expansão do trabalho assalariado. Em termos relativos, porque o
processo de deslocalização desencadeia um processo de competição à
escala mundial pela redução dos custos laborais que exerce uma acção
redutora sobre o valor da outra variável do coeficiente capital-trabalho
e, por conseguinte, dá um novo impulso ao aumento da taxa média de
lucro.
Os dados que confirmam o debilitamento do trabalho perante a mobilidade do capital transnacional são preocupantes. Segundo um estudo da
revista BusinessWeek (6.12.04), insuspeita de simpatias de esquerda, mas
suficientemente honesta e objectiva para não cair na tentação de “tapar
o sol com a peneira” como sucede com alguns neoliberais e conservadores da nossa praça, “o desenvolvimento de um mercado global para os
trabalhadores de colarinho branco pode reduzir os salários dos trabalhadores norte-americanos altamente qualificados pela primeira vez”, o
que confirma que o aumento da competitividade global, transformada
numa espécie de palavra-chave ou passe partout, a que nem sequer escapavam muitos sociais-liberais contemporâneos antes da eclosão da crise
das subprime, pode não oferecer perspectivas de uma vida melhor até para
os sectores da força de trabalho dos países mais desenvolvidos que, até há
bem pouco tempo, desfrutavam de uma situação relativamente estável. A
BusinessWeek considera ainda que “se a globalização reduz os pagamentos
43
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
tanto para os trabalhadores da indústria como para os trabalhadores
dos serviços, a maioria da força de trabalho norte-americana poderá
perder, deixando os empregadores e os accionistas como os principais
beneficiários”.
E é precisamente isso o que está acontecer. Assim, citando um estudo
da empresa de consultoria Forrester Research Inc., esta revista semanal
norte-americana de negócios revela-nos que 68 por cento dos trabalhadores que perderam o emprego como resultado das deslocalizações
entre 1979 e 2001, e encontraram um novo emprego três anos depois,
registaram uma quebra de salário de dez por cento. Por sua vez, 44 por
cento dos que, no mesmo período, se reempregaram passaram a ganhar
substancialmente menos no seu novo emprego, registando uma redução
salarial de 49 por cento. Outro dado importante é a diferenciação crescente entre a variação da produtividade e a variação dos salários em
terras do Tio Sam. Segundo o semanário liberal britânico The Economist
(16.9.06), outra revista insuspeita de simpatias de esquerda, o salário
horário real mediano do trabalhador norte-americano diminuiu 4 por
cento, enquanto a produtividade aumentou 15 por cento. Os frutos deste
aumento de produtividade foram embolsados pelos grupos sociais que
possuem rendimentos mais elevados e pelas empresas. Assim, em 2006,
1 por cento destes grupos apropriam-se de 16 por cento, enquanto em
1980 recebiam apenas 8 por cento. Por sua vez, os lucros empresariais
registaram um aumento exponencial, passando de 7 por cento do PIB em
1980 para 13 por cento em 2006.
A Europa do cada vez mais degradado modelo social europeu, embora
revele menos disparidades salariais e sociais que os Estados Unidos,
também está submetida à pressão das deslocalizações, a qual se tem reforçado cada vez mais à medida que a “velha” Europa dos Quinze se transforma
na “nova” Europa dos 27. No velho continente a pressão fez-se sobretudo ao nível dos horários de trabalho, o que contribuiu para bloquear
todas as tentativas de redução do horário semanal de trabalho – de que
a lei das 35 horas da ex-ministra socialista Martine Aubry é exemplo e
paradigma para descontentamento dos sociais-liberais da “terceira via”
ou do “novo centro” que, finalmente, esgotaram todas as suas “potencialidades”, bem como da direita neoliberal – e serviu de arma de arremesso
44
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
contra os trabalhadores e os sindicatos, obrigados a aceitar trabalhar mais
horas para evitarem a deslocalização ou a perda de empregos.
Os exemplos abundam. Num artigo publicado em 19 de Setembro
de 2004 pelo diário espanhol El País, ano em que as entidades patronais
intensificaram as suas operações de chantagem sobre os trabalhadores,
os casos referidos de aumento da jornada de trabalho multiplicaramse. Assim, nas fábricas belgas da Siemens os trabalhadores aceitaram
aumentar o horário de trabalho de 37 horas para 38 horas semanais em
troca de um aumento salarial de um por cento e da redução do número
de despedimentos; em duas fábricas da Renânia-Westfalia no norte da
Alemanha o sindicato IG Metall aceitou retornar às 40 horas de trabalho
para preservar os empregos, quando a média na Alemanha era de 37,7
horas, sem aumentar os salários; a Volkswagen exigiu para evitar a ruptura
das negociações com os sindicatos horários flexíveis e o congelamento
salarial dos seus 102.000 trabalhadores; os trabalhadores franceses da
Bosch concordaram trabalhar em Julho de 2004 mais uma hora sem
aumento salarial, enquanto os pilotos da Alitalia, a pretexto da crise da
empresa, comprometeram-se a trabalhar um máximo de 900 horas por
ano quando, anteriormente, trabalhavam um máximo de 500 horas; a
Siemens tocou o dobre de finados das 35 horas quando conseguiu que
os sindicatos aceitassem o aumento da jornada de trabalho para 40 horas
em troca do compromisso de evitar a deslocalização da produção para
outro país. Coroamento destas medidas que não se podem considerar
circunstanciais, mas fruto de uma estratégia muito bem arquitectada
pelas entidades patronais para se apropriarem de uma fracção crescente
do valor acrescentado ou para aumentarem o trabalho suplementar relativamente ao trabalho necessário, foi o projecto de directiva do Conselho
de Ministros da União Europeia que, em Junho de 2008, preconizou
que a jornada semanal máxima de trabalho passasse de 48 horas para 60
horas e, excepcionalmente, atingisse mesmo as 78 horas. No final do
ano, o Parlamento Europeu rejeitou esta directiva, estipulando que o
horário máximo semanal de trabalho não deveria ultrapassar as 48 horas.
Esta decisão que irá gerar um conflito institucional entre o Conselho
e o Parlamento Europeu, revela, no entanto, como a tendência para o
aumento do horário de trabalho é predominante na Europa. De facto, já
45
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
não se discute as 40 horas ou as 35 horas como jornada semanal normal
de trabalho, mantendo-se, na melhor das hipóteses, como horizonte,
um limite máximo de 48 horas semanais.
A repartição do rendimento e do produto em detrimento do trabalho
é outra das causas do aumento da taxa média de lucro. Os países da OCDE
registaram a partir da década de 90 do século passado uma repartição do
rendimento que favoreceu claramente o capital. Assim enquanto nos anos
70 do século passado os salários representavam em média 70 por cento
do rendimento nacional, passaram a representar 64 por cento a partir
do quinquénio de 1990-94 até 2000-03 (Fonte: Courrier International,
28.04.05, citando dados da OCDE). Este indicador não apenas reflecte
o aumento da desigualdade social a nível das economias que integram
a OCDE, mas é também a expressão de uma relação de forças entre o
trabalho e o capital em que o primeiro surge como perdedor e elo mais
fraco do capitalismo globalizado. Estas assimetrias e desigualdades sociais
tendem a planetarizar-se cada vez mais. Segundo a Comissão Mundial
sobre a Dimensão Social da Globalização, a taxa de crescimento do PIB
mundial por habitante desacelerou exponencialmente desde a década de
90, situando-se, em média, em cerca de 1,5 por cento quando na década
de 60 atingia, em média, cerca de 3,5 por cento. No que respeita aos
países em vias de desenvolvimento (PVD), a mesma organização refere
que, apesar do crescimento global do rendimento por habitante ter atingido 7,3 por cento entre 1985 e 2001 contra apenas 2,5 por cento dos
países industrializados no mesmo período, a sua repartição foi extremamente desigual, já que grande parte deste crescimento foi suportado
por dois países, a Índia e sobretudo a China, que englobam os 16 PVD
que superaram os 3 por cento, enquanto 55 países não atingiram sequer
os 2 por cento e 23 registaram valores negativos. Aumentaram também
exponencialmente as disparidades entre os 20 países mais ricos e os 20
países mais pobres: em 1960-62 o PIB por habitante dos primeiros era
53 vezes mais elevado do que o dos segundos, enquanto em 2000-02
a disparidade tinha aumentado para 120 vezes (Por uma Globalização Justa,
Cascais, Celta, pp. 49-51).
As assimetrias e desigualdades que favorecem o capital em nome da
autodesignada “competitividade global” não se reduzem, porém, à repar46
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
tição primária do rendimento, mas estendem-se também à repartição do
rendimento após a tributação, o que contribui decididamente para pôr
em causa a função redistributiva da política fiscal. Um dos indicadores
mais esclarecedores desta regressão social é a redução da taxa média dos
impostos sobre as sociedades que passou de 37,6 por cento para apenas
30,8 por cento nos Estados membros da OCDE entre 1996 e 2003 e de
39 por cento para 31,7 por cento na velha Europa dos Quinze no mesmo
período (Ib. p. 56). Isto pressupõe que as receitas fiscais e tributárias estão
cada vez mais dependentes dos impostos indirectos, que incidem cegamente sobre o cidadão independentemente do rendimento que aufere,
e dos que recaem sobre os rendimentos do trabalho dependente. Com
o alargamento para 27 países, a maioria dos quais pertencentes à “nova
Europa” de Rumsfeld & Cia, a União Europeia abandonou o princípio
da progressividade fiscal, um dos princípios do modelo social europeu,
para se render às maravilhas da “competitividade fiscal” que favorece as
deslocalizações e o nivelamento por baixo dos direitos e garantias sociais.
Qualquer tentativa de harmonização fiscal e tributária é banida como
um horrendo crime que põe em causa o sacrossanto princípio da subsidariedade. No entanto, em nome deste princípio aceita-se sem reservas
que alguns dos países recém-entrados na UE substituam a taxa progressiva sobre o rendimento por uma taxa única (flat tax). Assim, em 1994, a
Estónia e a Lituânia introduziram uma flat tax sobre o rendimento de 26
e 33 por cento, respectivamente; um anos depois a Letónia seguiu-lhes
o exemplo com uma taxa de 25 por cento; e em 2005, a Roménia e a
Eslováquia fixaram-na em 16 e 19 por cento, respectivamente (Fonte: The
Economist, 16.04.05). Se a isto juntarmos os paraísos fiscais, completamos
o quadro. Entre 1998 e 2000, os lucros das subsidiárias das companhias
norte-americanas aumentaram 64 mil milhões de dólares, atingindo
208 mil milhões de dólares. Cerca de metade deste aumento teve a sua
origem em paraísos fiscais, particularmente nas Bermudas, Bahamas
e Caimão. A taxa média de tributação sobre os lucros destas empresas
também baixou neste período de 24,2 para 20,8 por cento (Fonte: El País,
24.02.07). Mas a “velha” Europa tem também os seus paraísos fiscais.
Basta pensar nos casos do Luxemburgo, Liechtenstein e na nossa zona
franca da Madeira, protegida tanto pelo Governo regional da “pérola do
47
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
Atlântico”, como pelo Governo da República.
O efeito conjugado da redução do coeficiente capital-trabalho, do
aumento do excedente social apropriado pelo capital transnacional em
consequência da entrada de um enorme exército de trabalhadores assalariados no mercado de trabalho dos países emergentes, de uma repartição
primária do rendimento e do produto que tem favorecido exclusivamente o capital em detrimento do trabalho e da redução da tributação
sobre os rendimentos das sociedades, é a fonte do aumento exponencial da taxa média de lucro até 2007, bem como do excesso de liquidez
ou da savings glut que parecia ter-se tornado numa never ending story de final
feliz, já que os seus apologistas, apesar do crescimento das disparidades
e assimetrias sociais, defendiam que, mais cedo ou mais tarde, algumas
migalhas acabariam por ser recolhidas pelos trabalhadores e pelos párias
deste mundo. Porém, o optimismo desta gente acabaria por ser desmentido pela eclosão da crise das hipotecas imobiliárias de alto risco que,
para além de constituir o ponto culminante ou, quem sabe, o ponto de
viragem de um período em que predominou o enriquecimento fácil e
a lei do mais forte, revela que o capitalismo entregue a si próprio é um
sistema económico e social que não é capaz de auto-regular-se, mas que
se reproduz através de crises económicas e financeiras que não cessaram
de desencadear-se, precisamente quando alguns julgavam que a História
tinha chegado ao fim e todos tínhamos entrado no paraíso prometido
pelos profetas do neoliberalismo de uma sociedade inteiramente subordinada às leis do mercado e da especulação financeira sem freio.
A hipertrofia da esfera financeira e as suas consequências
O último decénio do século passado e o primeiro decénio do terceiro
milénio foram caracterizados pelo desencadeamento de sucessivas crises
financeiras:
1992 – Crise do Sistema Monetário Europeu (SME), que teve como
consequência fundamental a saída da libra que rompeu a margem de
flutuação estabelecidas;
1994 – Crise mexicana com a saída maciça de capitais do país;
1997 – Crise do Sudeste Asiático que não poupou as economias emer48
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
gentes da região até então consideradas como modelos e paradigmas da
superação do subdesenvolvimento;
1998/99 – A Rússia e a Argentina anunciam a suspensão unilateral do
pagamento das suas dívidas externas e a economia russa entra em colapso
com uma queda maciça do rublo de mais de 45 por cento, em termos
reais, em Janeiro de 1999;
2001 – Quebra da Bolsa de valores tecnológicos (Nasdaq), falência da
Enron com a suspensão de pagamentos de 4500 trabalhadores, bem
como da World.Com que supera a da empresa de Kenneth Lay;
2007 – Crise das hipotecas imobiliárias de alto risco.
Embora apenas as duas últimas crises possam ser consideradas como
crises financeiras globais, a característica comum a este período foi indubitavelmente a instabilidade dos mercados de capitais em que as quebras
bolsistas se repercutem rapidamente e afectam com maior ou menor
intensidade a economia mundial, bem como a hipertrofia da esfera
financeira que não cessou de aumentar nos finais do século XX e na
aurora do século XXI. O quadro seguinte ilustra-o bem:
Tendência da Bolsa de Valores dos Estados Unidos (Standard & Poor’s 500,
níveis finais em 31 de Dezembro)
ANOS
RÁCIO PREÇO/GANHOS
DIVIDENDO PRODUZIDO (%)
1920
8,5
7,27
1930
15,8
5,62
1940
10,2
6,33
1950
7,2
7,20
1960
18,9
3,36
1970
17,3
3,41
1980
9,2
4,54
1990
15,2
3,66
1999
33,3
1,14
2000
24,6
1,19
2002
29,0
1,81
2003
28,8
1,58
Fonte: Harry, Shutt, ib. p. 40, citando dados recohidos por Global Financial Data, www.globalfindata.com.
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O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
A característica central da evolução registada neste quadro é o aumento
da diferenciação entre o rácio preço/ganhos dos títulos cotados na Bolsa
norte-americana e os dividendos distribuídos. Se tomarmos como base
o ano de 1930, em que o grande crash de Wall Street já faz sentir os seus
efeitos, esta relação era de 3:1. A partir de 1990, cresce exponencialmente
atingindo um máximo de 29,2:1, em 1999, e fixando-se em 18,2:1, em
2003, ano em que se inicia a recuperação da crise das dotcom. O significado destes dados não desperta nenhuma dúvida: o aumento do rácio
preço/ganhos relativamente à percentagem dos dividendos é sintoma de
que as mais-valias financeiras, que são um índice que mede o grau de
especulação e hipertrofia financeiras, predominam sobre os próprios
ganhos reais, representados pelos dividendos ou pela percentagem dos
lucros distribuídos.
Como a expansão da esfera financeira tem sempre como fonte de
alimentação a economia real e a esfera produtiva, já que o dinheiro é
um valor estéril que não se multiplica a si próprio, os dados do quadro
significam também que o excesso de liquidez resultantes dos superlucros
cujas causas analisámos na secção anterior foram canalizados não para
o alargamento da base produtiva, o aumento do emprego e a melhoria
das condições de existência e do tempo disponível dos trabalhadores,
mas para a especulação financeira. Por sua vez, a esfera financeira exerce
uma pressão crescente sobre a esfera da economia real no sentido de
extrair a máxima rendibilidade das aplicações e das carteiras de títulos
dos possuidores de valores mobiliários, o que tem como consequência a
intensificação das cadências laborais ou o prolongamento dos horários
de trabalho e o aumento do sobreproduto – que é canalizado para fins
improdutivos como despesas sumptuárias ou para alimentar o boom do
imobiliário como aconteceu entre 2003 e 2006 –, bem como o aumento
da taxa de exploração, pois os ganhos de produtividade obtidos na
economia real não vão remunerar os salários, mas vão ser integralmente
transferidos para os lucros do capital e os superganhos das aplicações
financeiras.
O preço a pagar pela desproporção crescente entre a esfera financeira e a economia real é a proliferação de crises financeiras que tendem
a revestir um carácter cada vez mais global e imprevisível num contexto
50
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
de ciclos de tipo montanha russa altamente instáveis, em que a diferença
entre a “alta” e a “baixa”, a prosperidade e a depressão, atinge valores
muito elevados. Neste contexto, a tese de Schumpeter sobre a “destruição
criadora” do capitalismo perde toda a sua razão de ser. As sucessivas crises
financeiras são, pelo contrário, expressões de destruição não criadora
porque não apenas restam na nova fase ascendente do ciclo curto menos
empregos ou empregos mais precários dos que são gerados na fase ascendente do ciclo anterior, mas também porque os períodos de recuperação
se caracterizam por uma redistribuição do produto e da riqueza sociais
que favorece os rendimentos de capital em detrimento dos rendimentos
do trabalho. Esta é uma das razões pelas quais a saída de uma crise financeira é antecâmara de uma nova crise financeira com consequências cada
vez mais graves sobre o emprego e o investimento produtivo.
Outra das razões que estão na origem da cada vez maior violência
das crises financeiras está precisamente na hipertrofia da esfera financeira. Os períodos de recuperação que caracterizam a fase ascendente
do ciclo acabam por resumir-se em sucessivas fugas para a frente, ou
seja, em apostas especulativas cada vez mais arriscadas no plano financeiro que subtraem recursos ao investimento produtivo, contribuem
para o aumento das fusões e aquisições caracterizadas pela destruição
do emprego e favorecem a procura de elevados retornos financeiros de
curto prazo em detrimento dos que resultam de investimentos de longo
prazo. O período posterior à crise da Bolsa de valores tecnológicos, antecâmara da crise subprime, constitui a prova do que acabo de dizer. Entre
2004 e 2006, as aplicações em hedge funds, fundos que visam maximizar os
retornos dos investidores em aplicações financeiras de alto risco como as
opções, os futuros e as swaps de moeda e taxas de juro - em que se exploram
as diferenças cambiais e as oscilações das taxas de juro - registaram um
crescimento vertiginoso que abarcou as principais financeiras mundiais
na América do Norte, Ásia e Europa. Em 2004, as aplicações financeiras
em hedge funds atingiram cerca de 1 trilião de dólares. Segundo a revista The
Economist (19.02.05), foram criados 400 novos hedge funds este ano, atingindo o número de 7000, o que os coloca em paridade com os fundos de
investimento colectivo (mutual funds). Apesar da sua dimensão ser apenas
um sexto da dos mutual funds, ofereciam aos investidores rendibilidades
51
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
significativamente maiores. Dois anos depois, estes fundos ascendem já
a 1,5 trilião de dólares, o que representa um aumento de 500 por cento
relativamente a 1999, ano em que ascendiam apenas a 300 mil milhões
de dólares (La Repubblica, 4.07.2007).
Embora os EUA detenham uma ampla liderança no mercado de hedge
funds, estes fundos de alto risco conquistaram cada vez mais a preferência
dos investidores europeus e asiáticos. Assim, no continente europeu, os
principais investidores institucionais, entre os quais se destacam os fundos
de pensões, seguiram o exemplo da outra margem do Atlântico, aplicando 32 por cento do dinheiro que lhes foi confiado pelos seus clientes
em hedge funds, quando em 2003 as aplicações financeiras reduziam-se a
23 por cento (BussinessWeek, 2.05.05). Num artigo intitulado A mania dos
hedge funds atinge a Ásia (“Hedge-fund mania hits Asia”), a revista BusinessWeek
(20.12.04) afirma que, apesar do baixo peso relativo dos hedge funds
asiáticos no total das aplicações mundiais, apenas um sexto, o seu crescimento foi significativo entre 1999 e 2004, integrando-se, portanto, na
tendência geral, já que passaram de 13,8 mil milhões para 59 milhões de
dólares e, em número, de 162 para 500. A partir de 2007, ano em que
estes fundos ainda atingiram 2 triliões de dólares a nível mundial, a situação começa a inverter-se com a eclosão da crise das subprime, prevendo-se
que um ano depois poderão cair entre 30 e 40 por cento, em consequência das ordens de vendas dos investidores (The Economist, 25.10.08).
No entanto, estas projecções estão provavelmente subvalorizadas, já que
são anteriores à falência fraudulenta da Bernard Madoff Investment
Securities que pode atingir 50.000 milhões de dólares e constituir,
se não o dobre de finados dos hedge funds, o bloqueio da sua expansão e
sobretudo abrir a porta para a institucionalização de medidas severas de
regulação e controlo dos fundos de carácter especulativo.
Para além dos hedge funds, cresceram exponencialmente os fundos
de investimento que se especializaram em operações de reestruturação
financeira de empresas, com especial preferência pelas sociedades não
cotadas, designados por private equity. Estes fundos reservados a accionistas
e investidores muito ricos, estiveram cada vez mais envolvidos nas operações de fusão e aquisição de empresas. Em 2006, geriam 459 mil milhões
de dólares contra apenas 91 mil milhões em 1991. No que respeita às
52
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
operações de fusão e aquisição, ultrapassaram mais de 30 por cento do
total nos Estados Unidos e mais de 20 por cento do total mundial em
2006, quando em 1991 se situavam muito abaixo dos 5 por cento nos dois
casos (The Economist, 7.08.2007). O argumento que foi frequentemente
utilizado pela finança internacional e os seus ideólogos académicos e das
revistas de negócios para a defesa destes fundos é que eles contribuíam
para eliminar nas empresas que adquiriam as operações não lucrativas
para se concentrarem nas que fornecem aos accionistas as rendibilidades mais elevadas. No entanto, esta pretensa eficácia financeira levanta
uma série de problemas que revela enormes perigos para a estabilidade
das condições de existência de milhões de pessoas que não fazem parte
do círculo selecto de investidores e gestores envolvidos nas suas operações. O primeiro é que as operações de reestruturação financeira que
estes fundos promovem têm um horizonte que geralmente não ultrapassa os cinco anos, o que significa que são preteridas as estratégias de
longo prazo que asseguram o crescimento do investimento e do emprego
a favor das que se limitam a uma célere reestruturação financeira que
tem como objectivo a venda das empresas no mais curto prazo de tempo
possível com o objectivo de maximizar os retornos dos investidores. O
segundo é que estes fundos são financiados através de empréstimos, o que
estimula os seus gestores a concentrarem-se no pagamento das dívidas
que contraíram em detrimento das contribuições para os esquemas de
financiamento das pensões futuras dos trabalhadores das firmas reestruturadas. O terceiro é que uma parte crescente das despesas de capital é
canalizada para o pagamento dos juros dos empréstimos e das dívidas, o
que torna as companhias geridas pelo sistema das private equity extraordinariamente propensas a cortar no emprego e no investimento quando
as taxas de juro sobem e, por conseguinte, a favorecerem o desencadeamento de espirais recessivas.
A eclosão da crise das subprime pôs a nu a hipertrofia da esfera financeira e dos fundos especulativos que a sustentavam com consequências
devastadoras sobre milhões de pessoas não envolvidas nas operações
financeiras de alto risco. Em 2008, o valor transaccionado nos mercados
financeiros globais caiu entre 15 e 30 triliões de dólares, o que supera
os ganhos acumulados de 2003 a 2007 na fase ascendente do ciclo. Por
53
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
sua vez, os fundos de pensão registaram uma quebra de 2 triliões de
dólares nos Estados Unidos entre meados de 2007 e finais do ano de
2008 (The Economist, 6.12.08). Esta enorme quebra revela a fragilidade
dos programas privados de pensões norte-americanos e também britânicos que seguem o mesmo figurino e não se têm cansado de apregoar o
seu exemplo com o objectivo de encontrar seguidores em outras partes
do mundo. A situação é tanto mais grave, se tivermos em conta que a
explosão destas bombas de destruição maciça que são as private equity e os
hedge funds têm como principal consequência a transferência do risco de
pagamento das pensões futuras das empresas para os trabalhadores que
aplicam uma parte dos seus salários ou das suas poupanças nos fundos de
pensão. O exemplo norte-americano é particularmente edificante. Nos
últimos 18 anos, as empresas norte-americanas passaram celeremente
dos planos de prestações definidas, que asseguravam ao futuro aposentado uma pensão estável calculada na base dos aplicações efectuadas nos
melhores anos da sua carreira contributiva para o fundo – o que tornava
estes planos privados parentes próximos dos esquemas públicos de repartição –, para os planos de contribuições definidas, os chamados 401 (k),
em que as empresas não se responsabilizam pelo valor das pensões futuras
dos trabalhadores. Estes planos foram introduzidos em 1978, mas apenas
começaram a generalizar-se a partir dos anos 90 do século passado, ou
seja, precisamente no período em que a finança global, em geral, e a
norte-americana, em particular, iniciavam as suas aventuras especulativas. Nos inícios da década de 90, 35 por cento dos trabalhadores
norte-americanos já subscrevia estes planos contra apenas 32 por cento
que se encontravam cobertos pelo de prestações definidas. Em 2005,
os valores eram respectivamente de 42 por cento e 21 por cento, com
destaque para as empresas de mais de 100 trabalhadores, em que 53 por
cento dos planos de pensão são 401 (k) (El País, 2.04.06). Mas isto significa que a exposição ao risco dos trabalhadores norte-americanos, mas
também britânicos, de perderem as suas pensões ou de as verem fortemente desvalorizadas é tanto maior quanto maior for a especulação e a
desregulamentação dos mercados financeiros.
A crise dos créditos imobiliários de alto risco foi o coroamento dos
anos loucos da finança globalizada. A origem desta crise deve antes de
54
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
tudo ser investigada nos anos 80 do século passado em que foi descoberto
o expediente financeiro que permitiu que os riscos financeiros fossem
repartidos e deslocalizados num processo incessante de fuga para a frente
que parecia não ter fim. Trata-se fundamentalmente da titularização dos
créditos que podem ser assim transferidos para terceiros e destes para
outros sem qualquer criação de valor acrescentado, mas apenas através
da apropriação de margens financeiras extraordinariamente remuneradoras enquanto o activo que lhes serve de suporte oferece perspectivas
de valorização futura. Os créditos concedidos para a compra de habitação a pessoas de baixos rendimentos que tinham poucas ou nenhumas
probabilidades de liquidá-los, basearam-se no pressuposto fantasioso da
finança de Wall Street de que as taxas de juro manteriam a sua tendência
declinante, o que teria como consequência a valorização ad infinitum da
propriedade imobiliária. O expediente da titularização dos créditos
concedidos permitiria repartir o risco de incumprimento de pagamentos
num processo em que as propriedades imobiliárias poderiam sempre ser
vendidas a valores muito superiores ao da sua aquisição. Embora para
os milhões de pequenos proprietários endividados as casas adquiridas a
crédito servissem para serem habitadas, pois é esse o seu valor de uso,
para os possuidores dos títulos de que eram a garantia, constituíam
apenas valores transaccionáveis nos mercados de capitais que lhes asseguravam significativas mais-valias financeiras, ou seja, um excelente rácio
preço/ganho. É este predomínio do valor de troca sobre o valor de uso
que se estende aos bens de primeira necessidade, como a habitação para
os mais pobres e necessitados, presas fáceis das engenharias financeiras
dos magos de Wall Street, que simboliza o mundo absurdo do capitalismo
financeiro que esteve na origem da crise das subprime.
O cronista do New York Times, Thomas L. Friedman, desvela com
clareza que o processo de titularização dos créditos imobiliários que
esteve na origem do maior crash financeiro posterior ao de 1929, apesar
da sua aparente sofisticação técnica na repartição do risco, se reduz em
última instância ao tradicionalíssimo esquema da pirâmide, ou seja, não
é estruturalmente diferente do caso D. Branca, que, na segunda metade
dos anos 80 do século passado, foi responsável pela ruína de milhares
de pequenos aforradores portugueses que acorreram em massa à impro55
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
visada banquinha da “banqueira do povo” para beneficiarem dos juros
extremamente elevados que lhes eram prometidos pelos seus depósitos.
A única diferença é que o esquema das subprime teve cobertura legal e a
benção das maiores agências de rating, enquanto D.Branca e os seus
cúmplices foram condenados judicialmente: “que nome” – interrogase Friedman – “poderemos dar a quem oferece a um trabalhador que
apenas ganha 10.000 euros por ano uma hipoteca sem nenhum sinal
e sem ter que pagar nada durante os dois primeiros anos para comprar
uma casa de 525.000 euros, e desde logo juntar a hipoteca com outras
cem em títulos – para vendê-los a bancos e fundos de pensões de todo o
mundo? Isso foi o que o nosso sector financeiro estava a fazer. Se tal não
é a típica pirâmide, então não sei o que será” (El Pais, 21.12.08).
A “pirâmide” das subprime atingiu proporções gigantescas entre 2001 e
2006, período que assinala a recuperação da crise das dotcom, passando de
160 mil milhões de dólares para 600 mil milhões de dólares (Blackburn,
Robin - “Subprime Crisis”, New Left Review, Londres, Abril de 2008,
p. 72). Isto significa que o capital fictício é fértil em encontrar novos
expedientes em cada fase ascendente de um ciclo. Depois da crise dos
mercados de acções resultante da queda da Bolsa de valores tecnológicos,
os créditos imobiliários de alto risco foram o novo “produto” financeiro
que reiniciou e potenciou o processo de fuga para a frente da especulação
que não é mais do que o ponto de partida não de uma verdadeira recuperação e prosperidade económicas, mas de uma nova crise, mais grave
e violenta do que a precedente. E os resultados estão à vista. Não falo já
do desaparecimento da banca de negócios norte-americana - falência do
Lehman Brothers, venda do Merryl Linch e transformação do Morgan
Stanley e do Goldman Sachs em bancos comerciais - comprometida
na gigantesca pirâmide das subprime, mas das perdas astronómicas que o
FMI, instituição caracterizada pela paralisia e negligência monstruosa no
decurso de todo este processo, não se cansa de reactualizar. Em Abril de
2008, as suas estimativas apontavam para 945 mil milhões de dólares,
mas em Outubro deste ano já atingiam 1,4 triliões de dólares.
No plano financeiro, a crise afecta o mercado interbancário, o que não
aconteceu nas crises anteriores, bloqueando o fornecimento de crédito e
liquidez entre bancos que, por sua vez, se abstêm de concedê-lo a clientes
56
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
externos. Esta quebra de confiança em que assenta o funcionamento do
sistema bancário pode conduzir a um círculo vicioso em que os consumidores não consomem por não terem crédito ou para pouparem à espera
de melhores dias, as empresas não contratam por verem o seu volume de
vendas baixar e os investidores não investem porque, apesar da tendência
declinante das taxas de juro, não prevêem uma remuneração adequada
para o capital que antecipam. Entretanto, acumulam-se os detritos da
ressaca de um festim financeiro que se encontra suspenso. Prova disso,
é que as junk bonds (“obrigações-lixo”), dívidas em que a probabilidade de
não pagamento é elevada, atingirá 30 mil milhões de dólares em 2009,
o dobro do valor que atingiram em 2008. Como dois terços de todos
os empréstimos contraídos em 2007 eram junk, o que equivale a mais
do dobro do anterior boom imobiliário de 1990, a factura a pagar será
muito elevada, não poupando as já nossas conhecidas firmas de private
equity envolvidas com grandes somas pertencentes a terceiros na aquisição
de empresas em 2006-2007 (“The world in 2009”, The Economist).
A crise financeira é cada vez mais parte de uma crise global que tende
a agravar-se. Nos Estados Unidos foram suprimidos 533.000 empregos
desde Novembro e 1,9 milhões desde o início do ano de 2008, prevendo
as estimativas mais optimistas que em 2009 a taxa de desemprego oficial
atinja 7,3 por cento e 7,5 por cento em 2010, quando em 2008 era
de 5,7 por cento. Apesar das medidas da Reserva Federal para injectar
liquidez na economia norte-americana, o risco de uma espiral recessiva
e deflacionária resultante do efeito conjugado da crise financeira e da
crise económica e social é cada vez maior. Na Europa, embora a situação
económica e financeira seja menos grave do que na outra margem do
Atlântico, não há lugar para optimismos. Em Espanha, a crise do sector
de construção e obras públicas, que era a base de sustentação do crescimento e do emprego, contribuiu para que num ano o desemprego tivesse
aumentado 42,72 por cento, prevendo-se que atinja 12,5 por cento em
2008 e 17 por cento da população activa em 2009. Em França, a crise
tem-se caracterizado pelos despedimentos da força de trabalho precária –
contratos de duração determinada e intermitentes – que não têm cessado
de crescer em anos recentes e pelo encerramento de empresas que,
segundo a Confederação Democrática do Trabalho (CFDT), colocam
57
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
os seus dependentes numa situação de “desemprego parcial ou técnico”.
Na Alemanha, a locomotora da União Europeia, a recessão internacional
afecta uma economia orientada para as exportações com uma quebra de
6,1 por cento da produção industrial em Outubro de 2008, depois de
uma queda de 8,3 por cento em Setembro (le Monde, 8.12.08). Por sua
vez, os países emergentes que têm sustentado o crescimento da economia
mundial e que alguns pensavam que constituíssem a tábua de salvação
ou, pelo menos, servissem de mecanismo amortecedor para a crise dão
sinais crescentes de debilidade. Destaca-se sobretudo a China, outro
país com uma economia orientada para as exportações, que, perante a
retracção da procura internacional, poderá, segundo o director-geral
do FMI Dominique Strauss-Kahn, crescer apenas 5 ou 6 por cento
(Público, 16.12.08), valor manifestamente insuficiente para ocupar a força
de trabalho que não tem parado de migrar dos campos para as cidades
e que poderá gerar uma crise social de grandes proporções neste país
imenso. Em suma, todos os pretensos mecanismos auto-reguladores do
tão elogiado sistema de mercado livre correm o risco de uma paralisação
total.
Para a construção de uma nova ordem global
A crise global do capitalismo que estamos actualmente a viver não
revela apenas a falência das receitas neoliberais sobre a capacidade de
expansão ilimitada da acumulação de capital e das teorizações que já
previam festivamente o fim dos ciclos económicos e a possibilidade de
um crescimento feliz sem oscilações e períodos de recessão e crise, mas
também a necessidade de construção de uma nova ordem global que já
não pode basear-se nos princípios da competição global, mas da cooperação e do multilateralismo. No entanto, o peso do velho e ultrapassado
continua a persistir e a encontrar apoios políticos, o que apenas revela
que os interesses e as forças que foram responsáveis pelo actual descalabro financeiro, económico e social continuam a opor-se a medidas
que ponham em causa o statu quo e, persistindo no seu cego dogmatismo
neoliberista, não se cansam de propor as mesmas estafadas receitas.
Um dos exemplos mais recentes da inércia dominante foi a cimeira
58
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
do G-20 em Washington, em 15 de Novembro do ano passado, em que,
apesar da presença pela primeira vez neste tipo de iniciativas de vários
países emergentes, de que destacamos o Brasil, a Coreia do Sul, a Índia,
a Indonésia e a Turquia, predominaram as declarações de pompa e
circunstância do tipo de que “nos próximos doze meses abster-nos-emos
de criar barreiras ao investimento e ao comércio de bens e serviços”. É
completamente absurdo continuar a defender-se que a liberalização das
trocas e a abertura dos mercados constitui a solução milagrosa para a
actual crise global, tanto mais que a partir da década de 90 a liberalização
mercantil atingiu proporções nunca antes alcançadas, mas não impediu
a eclosão de sucessivas crises económicas e financeiras que culminaram
com a explosão crise das subprime em 20072. E o desmentido de que este
livre-cambismo exacerbado é apenas parte do problema, é precisamente
a actual situação da China, a nação emergente a quem alguns tinham
reservado a função exclusiva de amortecedor de uma crise que pensavam
que se confinaria aos países desenvolvidos. De facto, nenhuma liberalização das trocas poderá evitar que as exportações chinesas, bases de
sustentação das suas elevadas taxas de crescimento económico até 2007,
se reduzam significativamente à medida que os mercados de destino dos
seus produtos nos países do velho Primeiro Mundo e, em especial, nos
Estados Unidos, diminuam as suas importações. O melhor contributo
que a China poderá dar para o seu próprio desenvolvimento e para a
superação da actual crise é orientar os seus recursos para a expansão do
seu imenso mercado interno não através da promoção de um consumismo desenfreado que já demonstrou os seus limites em terras do Tio
Sam, mas favorecendo investimentos de carácter social na construção
de escolas, hospitais, habitações a preços garantidos, formação profis2
A ideologia neoliberal dominante não se cansa de apregoar as virtudes das economias orientadas para as
exportações e para o comércio externo. Esta concepção é totalmente redutora. Grande parte das economias “extrovertidas” baseia a sua estratégia produtiva na contenção salarial, já que não dependem da procura
interna para crescer. No entanto, quando a eclode uma crise de proporções globais, são as mais atingidas. Não
é difícil de compreender porquê: como, em geral, praticam salários baixos e elevados horários de trabalho, a
debilitada procura interna que alimenta o crescimento das exportações é completamente incapaz de limitar
os efeitos depressivos decorrentes da quebra da procura externa. Em consequência, o livre-cambismo, fundamento ideológico da extroversão das economias, não é parte da solução, mas parte do problema. Prova disso
é que, segundo o Banco Mundial, o comércio internacional aumentou, a partir de meados dos nos 90, 6%
por ano, valor que supera o crescimento do PIB mundial, o que não evitou as sucessivas crise financeiras que
eclodiram entre 1992 e 2008 (Ver: El País, 7.02.08).
59
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
sional, protecção do ambiente, tecnologias de ponta e novos materiais e
o melhoramento dos horários e condições de trabalho (Ver: “Des écoles
plutôt que des trains”, Courrier International, 27.11.03)3 .
Os fundamentalistas do neoliberalismo parecem também não ter
aprendido a lição e continuam a demonstrar uma fé que tem grandes
afinidades com a superstição mais grosseira na capacidade de auto-regeneração dos mercados financeiros desregulamentados que conduziram
à catástrofe actual. Num artigo intitulado Quando os ovos de ouro se esgotaram
(“When the golden eggs run out”), publicado no The Economist em 6 de
Dezembro de 2008, o colunista deste semanário liberal manifesta o seu
espanto pelo facto dos investidores não “compreenderem” o funcionamento a longo prazo dos mercados financeiros e, por conseguinte,
actuarem de forma “irracional”. Assim, quando os mercados estão
em baixa estes teriam vantagem em comprar, já que baixos retornos a
curto prazo criam uma oportunidade para poderem vender com lucro
no período da alta. Inversamente, deveriam adoptar o procedimento
contrário neste período, pois os elevados retornos obtidos no passado
são uma premonição de baixos retornos no futuro. O autor do artigo
esquece, no entanto, que a óptica de funcionamento dos mercados financeiros tem sido cada vez mais nos últimos anos o curto e o curtíssimo
prazo. Prova disso, foi o exponencial crescimento dos mercados de derivados e das subprime. Neste sentido, predomina não a racionalidade, mas
a ilusão financeira, que parte do pressuposto de que nos períodos de alta
bolsista os valores mobiliários continuarão a valorizar-se ad infinitum e de
que nos períodos de baixa a sua desvalorização não cessará de aumentar.
Entre a perspectiva de entesouramento ou a de aplicações financeiras em private equities de maior risco, o autor do artigo do semanário
The Economist aconselha os investidores a apostarem nas segundas porque
3
Actualmente, a China é o exemplo e paradigma do desenvolvimento insustentável: regime de partido único
com elevados níveis de poluição, salários baixos, horários de trabalho infernais, ausência de direitos laborais
e de sindicatos independentes e democráticos que possam defender os trabalhadores da superexploração a
que estão submetidos (Veja-se a este respeito, Hui Qin - “Les leçons à tirer du miracle chinois”, Courrier
International, 4.03.09). Tendo em conta que o antigo Império do Meio era, até há bem pouco tempo, um
dos principais destinos das deslocalizações de empresas ocidentais em busca de baixos salários e de uma legislação laboral mais favorável aos seus interesses que a dos países de origem, pode compreender-se claramente
por que motivo a versão chinesa da preobrajenskiana acumulação “socialista” primitiva de capital exerce um
efeito desagregador sobre os modelos mais sociais do capitalismo.
60
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
a altura mais adequada para estes “correrem riscos financeiros é quando
os activos de risco oferecem um considerável retorno a longo prazo, não
quando os prémios de risco são baixos”. A estas considerações poder-seia responder com a célebre frase de Keynes que “a longo prazo estaremos
todos mortos”, frase que reflecte adequadamente o comportamento de
quem opera nos mercados financeiros, onde apenas conta o fugaz “aqui
e agora” de um eterno presente. Além do mais, a opção defendida pelo
articulista do semanário liberal britânico, apesar de mais “racional” em
termos estritamente financeiros, constitui apenas um pretexto para que
tudo continue na mesma, pois se baseia no axioma de que os mercados
financeiros se regeneram a si próprios sem nenhuma necessidade de
regulamentação. Esta conclusão é tanto mais inaceitável, se pensarmos
que as aplicações astronómicas nas private equities foram responsáveis pela
desvalorização dos fundos de pensão baseados nos planos de contribuições definidas. Mas isso significa que o futuro de milhões de aposentados
não pode estar dependente dos caprichos e das vicissitudes da especulação
e dos mercados financeiros desregulados.
A actual crise financeira impõe antes de tudo uma abordagem multilateral que passa necessariamente pela criação de novas instituições
internacionais. Trata-se não de uma postura radicalista e desproporcionada – desproporcionada é a finança desregulamentada, uma verdadeira
arma de destruição maciça que tem que ser desmontada –, mas cada vez
mais uma necessidade, já que instituições como o FMI revelaram em todo
este processo se não uma cumplicidade tácita com os jogos financeiros que
conduziram à catástrofe actual, pelo menos uma inaceitável negligência
que de ora em diante lhes retira toda a legitimidade e as transforma em
parte do problema e nunca em parte da solução. É por isso urgente criar
uma nova instituição internacional de supervisão bancária que tenha
poderes para controlar a especulação financeira desenfreada, que estabeleça regras claras e transparentes que evitem e punam sem apelo nem
agravo todas as formas de contabilidade criativa que empolam resultados
para esconder perdas irreparáveis e que institua uma separação clara entre
banca de negócios e banca comercial. É necessário também que o G-20
abandone as usuais declarações de boas intenções que não conduzem a
outra coisa senão a lautos jantares de trabalho pagos com o dinheiro dos
61
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
contribuintes e empreenda uma política coordenada de taxas de juro.
Tendo em conta que a especulação financeira tem sido responsável por
subordinar o interesse de nações e povos inteiros aos interesses de alguns
poucos que ganham somas astronómicas e que, frequentemente, se
retiram com indemnizações milionárias, deve criar-se uma taxa sobre os
movimentos especulativos de capital, de que a célebre taxa Tobin poderá
ser um ponto de partida, bem como reforçar as medidas penais sobre
os criminosos de colarinho branco que fraudulentamente arriscam o
dinheiro dos outros em proveito próprio e geram perdas astronómicas
em esquemas de pirâmide. Mas a especulação e o regabofe continuarão
impávidos e serenos a sua obra de instabilidade, insegurança e destruição
que afectam as condições de vida de milhões de pessoas em todo o mundo
enquanto continuarem a existir paraísos fiscais que permitem montar
sociedades fictícias envolvidas em esquemas e manigâncias financeiras
que ninguém controla. A sua abolição é uma necessidade imperiosa que
não pode ser descartada como um desejo utópico, mas que depende da
formação de uma nova vontade política mais interessada com o bem-estar
e a prosperidade real dos cidadãos do que com os ganhos astronómicos
que, em nome de uma cada vez mais descredibilizada liberdade de movimento de capitais – no fundo, a liberdade dos mais fortes – algumas
grandes empresas, bancos e cidadãos abastados podem realizar impunemente em detrimento de todos.
As alternativas à actual crise do capitalismo global não podem confinarse à esfera financeira que constitui apenas parte do problema. A construção
de uma ordem global baseada na cooperação e no multilateralismo deve
situar-se para além das tradicionais receitas livre-cambistas que vêem na
abertura de mercados e na liberdade das trocas a solução milagrosa para
aumentar as taxas de crescimento e os investimentos internacionais, bem
como das tentativas proteccionistas que transformam países e regiões em
frágeis fortalezas que acabam por ser marginalizadas dos fluxos tecnológicos e de inovação sem os quais não é possível um desenvolvimento
sustentado. O ponto de partida de uma nova ordem global é a construção
de espaços politicamente integrados em que a partilha da soberania não
é uma abdicação da independência nacional, mas constitui um alargamento da esfera de intervenção política num processo de acumulação
62
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
do capital que os Estados-nacionais já não conseguem controlar. Não se
trata, porém, da construção de espaços fechados, mas de espaços abertos,
não no sentido redutor do livre-cambismo, mas no sentido da cooperação
e da interdependência das políticas económicas, sociais e financeiras.
Os novos espaços devem ter como princípio de orientação políticas
que visem fundamentalmente conjugar o crescimento do produto e do
emprego com a melhoria da repartição dos rendimentos e a redução das
desigualdades e assimetrias sociais que não têm cessado de aumentar.
Assim, deve passar-se das teses neoliberais que defendem a “revolução
das flat taxes” ou a competitividade fiscal para a promoção da progressividade fiscal. É completamente inaceitável que alguns continuem a persistir
no preconceito iníquo de que uma das soluções para a actual crise passa
pela redução da tributação sobre as sociedades quando nos últimos anos
tem sido precisamente isso que se tem verificado, o que não impediu,
porém, a eclosão da actual crise. A alternativa passa pela redistribuição da
carga fiscal segundo critérios de justiça social, aumentando os impostos
sobre os patrimónios financeiros improdutivos e reduzindo a carga fiscal
das classes médias e dos possuidores de rendimentos menos elevados que
têm suportado grande parte do peso da tributação directa, bem como
diminuindo o peso dos impostos indirectos nos orçamentos dos Estados
e aumentando a progressividade dos impostos directos. Em contrapartida, devem ser promovidos investimentos públicos capazes de contribuir
para o aumento do emprego e da inovação tecnológica, política que
sempre revelou ser mais eficaz na dinamização da actividade económica
do que a que se baseia na redução da tributação fiscal sobre as classes
de rendimentos mais elevados que acaba por desembocar na especulação
financeira e imobiliária e no aumento das despesas sumptuárias.
O papel interventor do Estado na economia e na sociedade deve ser
reformulado depois de décadas de privatizações de empresas e de funções
públicas. A reconstituição da centralidade do público e do político deve, é
certo, passar pelo reconhecimento das novas necessidades de autonomia e
liberdade dos indivíduos, mas deve partir do princípio de que a igualdade
de oportunidades, tão do agrado de alguns social-liberais, só é possível se
for criada uma igualdade relativa de condições. Caso contrário, como os
pontos de partida não são os mesmos, também os pontos de chegada e os
63
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
resultados serão muito assimétricos e os mais fortes ou os mais poderosos
poderão reclamar o seu direito “natural” à liberdade. Mas uma igualdade
relativa de condições é plenamente compatível com uma liberdade inclusiva baseada na cooperação e não na competição e que tem em vista o bem
comum e o pleno desenvolvimento das capacidades e talentos individuais
muitos dos quais permanecem sufocados ou são votados ao desperdício
numa sociedade injusta e desigualitária.
A centralidade do público arriscará, porém, tornar-se uma abstracção
se não se tiver em conta uma mudança radical de perspectiva relativamente aos que têm visto as suas condições de existência degradar-se nos
últimos anos: os trabalhadores assalariados. Alguns sociais-liberais, hoje
tão solícitos em reclamar uma maior intervenção do Estado, foram no
passado cúmplices tanto pela sua abstenção como por algumas das suas
políticas na degradação das condições de trabalho e opositores a uma
reforma de um sistema segurança social público que não tem cessado de
retirar direitos aos contribuintes através do aumento do número de anos
e da idade máxima para obter a aposentação, enquanto crescem como
cogumelos os planos privados do tipo 401 (k) com os resultados catastróficos que se conhecem. Não é por si só aceitável o argumento de que
o aumento da idade da aposentação ou a utilização de formas de cálculo
menos generosas se faz em benefício dos contribuintes e em nome do
interesse geral, pois nos países desenvolvidos, em particular na Europa,
o número de activos por pensionista tem tendência a diminuir e, por
conseguinte, a pôr em causa a sustentabilidade do sistema público de
pensões. Embora o argumento seja, em parte, verdadeiro - nos Estados
Unidos não é, porém, válido -, constitui sobretudo tanto um convite
velado para o desenvolvimento do mercado dos fundos privados de pensão
cujos ideólogos e apologistas não têm cessado de tentar demonstrar que
a “tradicional” pensão paga pelo esquema público de repartição já não
é suficiente para que o trabalhador consiga manter o nível de vida a que
estava habituado, como um pretexto para renunciar a novas formas de
financiamento do sistema da segurança social pública. Tendo em conta a
constituição de espaços políticos integrados em que predomina a preocupação pela justiça social, uma nova forma de financiamento deste sistema
deve basear-se numa taxa sobre o valor acrescentado e não nas tradicio64
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
nais contribuições dos trabalhadores e das entidades patronais. O actual
sistema de financiamento é iníquo porque são precisamente as empresas
mais evoluídas tecnologicamente, as empresas ditas capital-intensivas, a
contribuir proporcionalmente menos para o sistema, apesar do elevado
valor acrescentado que geram. Os que consideram esta solução irrealista
com o argumento de que o país que ousasse fazer uma reforma deste tipo
logo sofreria uma maciça saída de capitais para o exterior, melhor fariam
se defendessem a abolição dos paraísos fiscais e a construção de uma nova
ordem cooperativa e solidária global. Além do mais, uma parte da receita
da taxa sobre a especulação financeira deveria ser canalizada para a constituição de fundos sociais geridos por instituições sem fins lucrativos
que tivessem como objectivo a criação de esquemas complementares de
pensões, de modo a reduzir a enorme pressão a que o sistema público está
submetido nos países em que o envelhecimento demográfico aumenta e a
reforçar indirectamente a sua sustentabilidade.
Chegamos agora ao alfa e ao ómega da questão social contemporânea: a degradação das condições de trabalho e dos direitos dos
trabalhadores. É inadmissível que à medida que a crise económica e o
desemprego se agravam, alguns continuem a preconizar como alternativa mais moderação salarial e menos “rigidez” das leis laborais no
sentido do embaratecimento dos despedimentos. Esta “alternativa” tem
a chancela da OCDE, organização muito respeitada tanto pelos neoliberais como por alguns sociais-liberais. É uma alternativa socialmente
injusta e economicamente absurda. Socialmente injusta porque, como
vimos, os salários têm sido nos últimos anos a nível global a parte do
rendimento nacional que não tem cessado de diminuir relativamente
aos rendimentos do capital. Economicamente absurda porque a moderação salarial e o embaratecimento do despedimento contribuem para a
redução da procura e, por conseguinte, para criar menos investimento
e mais desemprego. E isto é tanto mais verdade, se pensarmos que a
moderação salarial que caracterizou a última década do século XX e os
primeiros anos do século XXI não contribuiu para evitar as sucessivas
crises financeiras. Antes pelo contrário, teve um efeito potenciador, já
que cada nova fase de recuperação, antecâmara da próxima crise, caracterizou-se por uma nova redistribuição do rendimento potenciadora do
65
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
endividamento e do subconsumo que agravou a desigualdade entre os
rendimentos do trabalho e os rendimentos do capital4 .
As notícias que nos chegam não nos deixam margem para grandes optimismos na frente do trabalho. Nos Estado Unidos, uma das condições
impostas pelo defunto Governo Bush na sua fase declinante para salvar
a Chrysler e a General Motors da bancarrota é que o nível salarial destas
empresas, em que os trabalhadores dispõem de uma elevada taxa de sindicalização e desfrutam de seguros de saúde e pensões de reforma baseadas
no sistema de prestações definidas, seja reduzido para níveis “competitivos” relativamente às empresas estrangeiras concorrentes instaladas no
país em regiões e estados em que a legislação dificulta a sindicalização,
o que lhes permite, por conseguinte, consideráveis “vantagens relativas”
em termos de custos. Além do mais, o prémio Nobel da Economia, o
norte-americano Paul Krugman um dos críticos mais consequentes da
Administração de George W. Bush e das receitas neoliberais para a crise
económica, refere, num artigo publicado no diário New York Times, que
“uma mensagem de correio electrónico entre os republicanos do Senado
afirmava que negar ao sector automobilista um empréstimo era uma
oportunidade para que os republicanos «lançassem um ataque contra
o sindicalismo organizado»” (El País, 21.12.08). A nova administração
norte-americana já compreendeu, em parte, a leviandade destas declarações e prepara um plano de ajuda para o sector automóvel. No entanto,
é necessário ter em conta os interesses dos trabalhadores, sendo completamente inaceitável uma estratégia que reduza os seus direitos sociais em
nome da recuperação do sector5.
Na Europa não poderemos dizer que a situação dos trabalhadores é
muito melhor. A precarização do trabalho tem sido a regra nos últimos
anos. A França e a Alemanha, duas representantes do chamado “modelo
social europeu”, são exemplos emblemáticos da degradação das condições
4
O exemplo norte-americano é paradigmático. Após a “recuperação” da crise das dotcom, o aumento da
dívida não-financeira teve origem nas famílias. Pelo contrário, as empresas, conseguiram limitar o endividamento neste período. Isto explica claramente, como dissemos no ínicio do artigo, o aumento da liquidez
empresarial entre 2003 e 2005 (Veja-se: “Worse than Japan”, The Economist, 14.02.2009). A conclusão
a tirar é clara e inequívoca: o endividamento das famílias, reflexo pós-moderno do subconsumo de massa,
alimentou as vendas do sector empresarial não financeiro, enquanto os lucros deste sustentavam o crescimento exponencial da finança especulativa. Uma verdadeira arma de destruição maciça!
66
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
de trabalho e dos direitos laborais. Em terras gaulesas, todas as formas de
emprego precário conheceram um considerável agravamento. Segundo o
diário Le Monde (7.04.05), entre 1983 e 2003 o número de trabalhadores
com contratos intermitentes aumentou 316 por cento, com contratos a
termo (CDD) 517 por cento e o dos trabalhadores em condição de subemprego (trabalho a tempo parcial, etc.) bateu todos os recordes, subindo
701 por cento. Em contrapartida, os contratos de duração indeterminada ou os empregos públicos registaram um aumento de apenas 12 por
cento no mesmo período. Por sua vez, na Alemanha, pátria da economia
social de mercado, a liberalização do mercado de trabalho promovida
pelo governo social-liberal de Schröder fez com que um em cada três
trabalhadores alemães tenha um contrato intermitente a partir de 2003.
Esta medida que visava aumentar o emprego dos trabalhadores não qualificados e constituir uma alternativa para o desemprego de longa duração,
acabou por atingir os trabalhadores com contratos estáveis. Os contratos
precários, para além de relegarem os beneficiários do emprego para as
tarefas mais desgastantes sem limite de horário, obrigam o trabalhador
a aceitar propostas de emprego a 6,53 euros brutos por hora em qualquer
ponto do território nacional (Courrier International, 4.12.08). Além do mais,
com as leis Hartz IV, também aprovadas durante o governo social-liberal de
Schröder, as ajudas sociais ao desemprego foram drasticamente reduzidas. Não surpreende que, segundo uma investigação do instituto de
Berlim DIW, a classe média alemã, exemplo e paradigma da economia
5
Infelizmente, é isto que está a acontecer. Uma das prioridades da nova administração da General Motors para
viabilizar a empresa e poder beneficiar dos novos apoios financeiros do Estado norte-americano ao sector
é “conseguir acordos com os trabalhadores para a redução dos salários e dos benefícios a que têm direito”
(Público, 1.04.09). Esta “solução” revela que enquanto se gastam milhares de milhões de dólares para salvar
bancos e a oligarquia financeira do colapso, se recua quando estão em causa empresas de sectores produtivos
que, segundo a vulgata neoliberal, sustentavam “generosos” planos de pensão e saúde que lhes retiravam
“capacidade competitiva” relativamente a outras de mais recente implantação em que predominava a “flexibilidade” laboral e os trabalhadores não estavam organizados em sindicatos. Não foram os “elevados custos
sociais” a conduzirem a General Motors ao colapso, como defendem os adeptos do capitalismo selvagem, mas
a manifesta incapacidade da administração da empresa em prever as novas tendências do mercado automóvel e
dos consumidores norte-americanos que começaram a manifestar preferências por veículos mais pequenos e
menos gastadores de combustível. Tudo aponta para que a anunciada reestruturação do sector automóvel nos
Estados Unidos se faça através do da redução generalizada dos salários e do nivelamento por baixo dos direitos
sociais dos trabalhadores. Neste sentido, a frase eleitoral de Obama “Yes, we can” - que começa a ser cúmplice
desta situação por uma alegada “ausência de alternativas credíveis”, como diriam os apologistas do fatalismo
centrista social-liberal da nossa praça - converte-se no seu contrário, quando estão em causa os interesses dos
trabalhadores e desses “empecilhos” ou “forças de bloqueio” que são os seus sindicatos: “No, we can’t”.
67
O FESTIM ESTÁ SUSPENSO
social de mercado e da “sociedade dos dois terços” de Peter Glotz, tenha
caído de 62 para 54 por cento e que um em cada oito alemães seja pobre,
valor que aumentaria de um para quatro se mesmo assim fossem suprimidas as mais limitadas ajudas sociais instituídas pela Hartz IV. E que
dizer da velha Albion onde a jornada máxima de trabalho poderá atingir
as 78 horas, o que levou o Conselho de Ministros da União Europeia a
aprovar uma directiva que a fixa em 60 horas, quando era de 48 horas,
com o pretexto de tudo reduzir a um menor denominador comum, mas
acabando, na prática, por aumentar o horário máximo de trabalho para
toda a União, apesar da oposição do Parlamento Europeu? Se esta é a
situação laboral na “velha Europa”, imagine-se qual será na “nova”...
Poderiam multiplicar-se os exemplos, mas chegaríamos sempre à
mesma conclusão: a degradação das condições e dos direitos laborais é uma
constante lógica e social que não pode ser esquecida e escondida. E não
apenas nos PVD, mas cada vez mais nos países desenvolvidos submetidos
às ameaças da deslocalização de postos de trabalho e ao enfraquecimento
do trabalho organizado. A melhoria das condições de trabalho não é,
portanto, parte do problema, mas parte essencial da alternativa para a
actual crise. É completamente inaceitável o argumento fatalista enunciado pelos defensores das soluções “centristas” para a crise que, como
antigo prémio Nobel da Economia, Paul Samuelson, defendem candidamente que “um centrista apenas pode reduzir de modo limitado as
desigualdades inevitáveis num sistema de mercado. Isso está muito aquém
de reduzir a maior parte da desigualdade” (El País, 28.12.08). Foi na base
deste argumento que os sociais-liberais europeus têm paulatinamente
contribuído para o desmantelamento do modelo social europeu, nivelando por baixo os direitos laborais para evitar, dizem, que o pouco que
resta se perca definitivamente. No entanto, na prática, nos factos, só
restam resíduos em vias de ser varridos definitivamente de cena, tudo
em nome, certamente, da competitividade da economia europeia e da
preservação de empregos cada vez mais precários, sendo hoje hipócrita e
sem nenhum fundamento ético-político que esses mesmos sociais-liberais defendam o reforço da intervenção do Estado, quando num passado
recente defendiam precisamente o contrário. No entanto, tanto os neoliberais como os sociais-liberais esquecem que uma das causas das sucessivas
68
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
crises dos últimos anos tem sido precisamente a desigual repartição do
rendimento, os superlucros e a desvalorização dos salários relativamente
aos rendimentos do capital. Uma alternativa viável e imprescindível deve
necessariamente passar por uma reestruturação profunda do mercado de
trabalho no sentido de fazer recuar as formas atípicas de contratação, de
criar condições para melhorar a qualidade e a estabilidade de emprego,
assegurar horários de trabalho compatíveis com a autonomia e dignidade
dos trabalhadores e a sua participação consciente nas decisões de gestão
que influenciam a vida laboral. Mas isso implica precisamente a superação do fatalismo neoliberal e social-liberal para o qual a competição
global e a ordem proprietária dominante são uma realidade inexorável, uma espécie de lei natural a quem ninguém pode escapar e a que
todos têm forçosamente que submeter-se. Eis a razão pela qual apenas o
projecto político de construção de uma ordem cooperativa global poderá
constituir não mais uma fuga para a frente no âmbito da especulação
financeira que prepara as condições para a próxima crise mais grave e
catastrófica do que a precedente, mas o início da génese de uma sociedade mais igualitária em que, em vez do direito do mais forte à liberdade,
a liberdade de cada um possa finalmente tornar-se em condição da liberdade de todos.
69
70
A crise financeira global:
o que é necessário fazer?*
Christopher Rude
1. Contexto
E
m 13 de Novembro de 2008, um grupo de peritos académicos, reguladores internacionais, responsáveis pelas políticas
económicas e sindicalistas dos Estados Unidos, da Europa, da
Ásia e da América Latina reuniram-se em Nova Iorque para
discutir a crise económica global, as suas causas e os seus efeitos sociais e
as suas implicações na regulação e governabilidade dos mercados bancários e financeiros. O prémio Nobel Joseph Stiglitz da Iniciativa para
o Diálogo Político (IDP) foi o anfitrião da iniciativa, que foi patrocinada pela Fundação Friedrich Ebert (FES). Participaram no encontro
autoridades económicas de topo do passado e da actualidade provenientes da Argentina, Brasil, Canadá, China, Chile, Colômbia, Egipto,
União Europeia (UE), Alemanha, Malásia, Polónia, Espanha, Reino
Unido (RU) e Estados Unidos (EU), incluindo Justin Lin, Economista
Chefe do Banco Mundial, Poul Rasmussen, responsável pelo Comité
de Regulação Financeira do Parlamento Europeu, Y.V. Reddy, Paulo
Nogueira Batista, Director Executivo do Fundo Monetário Internacional
(FMI) para o Brasil, Amar Bhattacharya, Director do Secretariado do
G24, Philip Turner do Banco de Transacções Internacionais (BTI) e
José Antonio Ocampo e Stephany Griffith-Jones do IDP. O Vice-presidente do Banco da Reserva Federal de Nova Iorque Christine Cumming
iniciou os trabalhos.
As discussões que se seguiram foram francas e sérias. Os participantes
sabiam que os chefes de Estado do G20 dos países industriais e em vias de
* Traduzido do inglês com a autorização da Fundação Friedrich Ebert que nos disponibilizou o original.
A Direcção da Finisterra agradece a esta instituição com a qual mantém uma colaboração regular e profícua a
publicação deste excelente texto em português.
71
A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O QUE É NECESSÁRIO FAZER?
desenvolvimento se reuniriam em Washington dois dias depois e quiseram
influenciar os resultados da reunião. Saudaram os apelos para a realização
de um “Bretton Woods II”, considerando fundamental a reforma financeira tanto para a estabilidade económica como para e estabilidade social.
Alguns participantes defenderam que um Forum para a Estabilidade
Financeira (FES) mais reforçado, juntamente com o FMI, devia encarregar-se da responsabilidade de promulgar estas reformas baseadas numa
agenda limitada e sem realizar as mudanças necessárias na governação e na
prestação de contas. Os participantes sabiam também que a Conferencia
Internacional para o Financiamento do Desenvolvimento das Nações
Unidas realizar-se-ia em Doha duas semanas depois da Cimeira do G20,
e queriam reforçar todas as iniciativas para uma reforma fundamental
- uma reforma que envolvesse mudanças em instituições - que pudessem
partir dali. O autor participou nestas discussões informais.
2. Elementos fundamentais da reforma
Importantes medidas para reformar o sistema financeiro internacional
devem ter em conta as grandes lições da actual crise para a regulação dos
mercados financeiros, soluções específicas para tornar a futura estabilidade financeira e a reformulação do sistema financeiro internacional
mais credíveis, incluindo a sua arquitectura e governabilidade, de modo
a servirem melhor as necessidades da economia real subjacente. Estas
medidas devem iniciar-se com o reconhecimento de que os custos sociais
da instabilidade financeira nos mercados emergentes e nas economias em
desenvolvimento – e sobre os pobres e as classes trabalhadoras e mais geralmente – são enormes.
Situação e diagnóstico - A derrocada do mercado financeiro norte-americano das subprime está a ter efeitos sociais muito graves no mundo em
desenvolvimento. Nações com sistemas económicos, comerciais e financeiros bem regulados foram arrastadas para o turbilhão através dos seus
efeitos de segunda e terceira ordem. Deste modo, a crise já não é uma
crise centrada nos Estados Unidos, mas uma crise económica global. Uma
parte significativa do problema é a interacção entre o sistema financeiro e a
72
CHRISTOPHER RUDE
economia “real” na fase declinante. O diagnóstico é simples: a tradicional
regulação do mercado financeiro é pró-cícilica, inconsistente, desactualizada e incompleta, deficiente no que respeita às dívidas de curto-prazo dos
bancos e às necessidades de liquidez, e baseada na concepção errada de que
todos podem confiar na avaliação pelos mercados dos riscos sistémicos.
Estabilidade financeira – Para tornar a estabilidade financeira mais credível,
devem ser tomadas medidas específicas para, pelo menos, reduzir a actual
tendência pró-cíclica do sistema, submeter todas as instituições, mercados,
instrumentos e a economia a um sistema simples e transparente de controlo
regulador, orientar as necessidades de liquidez dos bancos e controlar
fortemente o risco sistémico, global do mercado.
Enfrentar os custos sociais – É necessário garantir mais do que a estabilidade
económica, por mais importante que esta seja. O sistema financeiro
e bancário dos países, bem como os mercados monetários, de crédito e
financeiros internacionais que os ligam – incluindo a sua dimensão e estabilidade e todos os lucros que estão a ser realizados – são meios para um
fim, e não fins em si próprios. A dimensão social da actual crise coloca
questões relativas à equidade do actual regime que não podem ser resolvidas
em termos de mercado. De modo a gerar estabilidade social, as reformas da
actual arquitectura financeira devem reorientar as necessidades e interesses
dos mercados emergentes e dos países em desenvolvimento que foram
atingidos pelo turbilhão proveniente dos Estados Unidos, incluindo as
necessidades das suas classes trabalhadoras e dos pobres.
Estímulos, outras medidas - A reforma financeira não impedirá a crise de se
agravar a não ser que seja acompanhada por estímulos fiscais coordenados
e injecções de liquidez, pela utilização de controlos de capitais para objectivos anticíclicos e pela reforma do FMI.
3.1. Factos que estiveram na origem da crise
As dificuldades económicas actuais provêm dos Estados Unidos. Os
activos básicos originais eram casas cujos preços estavam a crescer. O
73
A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O QUE É NECESSÁRIO FAZER?
colapso do mercado norte-americano de obrigações hipotecárias e dos
seus produtos derivados ampliou a debilidade do sector de construção
norte-americano, lançando um choque recessivo sobre a economia dos
Estados Unidos e do resto do mundo.
Activos suportados por títulos comerciais emitidos pelos special purpose
vehicles1 (SPV), actualmente em dificuldades, enfraqueceram o mercado de
fundos expressos em dólares, provocando o seu congelamento em Agosto
de 2007. Este mercado fornece aos grandes conglomerados financeiros
multinacionais norte-americanos e estrangeiros as divisas de curto prazo
que necessitam para financiar os seus investimentos, incluindo os que
efectuam diariamente nas suas mesas negociais. Desde então este tem
permanecido mais ou menos congelado, com consequências desastrosas
para o sistema financeiro.
O seu colapso total em Agosto de 2007 mutilou o sistema bancário
e financeiro norte-americano, fazendo com que este se desemaranhasse
lentamente. As coisas pioraram em Setembro de 2008, ou mais exactamente, os eventos atingiram um ponto culminante. Pouco de novo tinha
sucedido no núcleo do próprio sistema financeiro, pois este já estava
bloqueado, mas a macroeconomia geral estava a enfraquecer e a arrastar
o preço dos activos para níveis cada vez mais baixos.
Uma clássica macrodeflação pilotada da dívida estava em curso: o
congelamento deslocou-se do mercado interbancário para os outros
mercados monetários de curto prazo dos Estados Unidos, incluindo os
que eram controlados pelos maiores fundos de investimento colectivo
(mutual funds) do mercado monetário, provocando também o seu congelamento. Em Novembro de 2008, todo o sistema financeiro, e não
apenas o dos mercados monetários dos Estados Unido e do Reino Unido,
tornaram-se incapazes de tomar as medidas mais elementares para
1
Poderá traduzir-se em português por “instrumentos ou entidades financeiras para fins específicos”. Os
SPV constituem fundamentalmente instrumentos financeiros que permitem a uma firma transferir as suas
dívidas para uma subsidiária com um estatuto legal e uma estrutura accionista e obrigacionista. O objectivo
formal deste instrumento de “engenharia financeira” é o financiamento de um grande projecto sem pôr em
risco a “casa-mãe”. No entanto, na prática, consiste num expediente para ocultar o endividamento da firma.
Oficialmente, esta não tem responsabilidades financeiras perante terceiros, já que as suas dívidas não são
registadas nos seus balanços contabilísticos. No entanto, como o demonstra a falência da Enron, quando as
dívidas se vão acumulando de modo cada vez mais insustentável, os resultados deste expediente da “engenharia
financeira” revelam-se catastróficos (N.T.).
74
CHRISTOPHER RUDE
converter as poupanças das empresas em investimento ou para financiar
a construção de casas, o consumo privado ou o desenvolvimento. Nas
actuais condições, recolher os fundos necessários para melhorar e rejuvenescer as infra-estruturas do mundo é muito difícil.
3.2. Perspectivas do mundo em desenvolvimento
Os mercados emergentes e os países em desenvolvimento pareceram
inicialmente imunes ao turbilhão proveniente dos Estados Unidos. Atrasos
na contracção das necessidades de importação dos Estados Unidos e da
Europa, um intenso aumento nos preços da energia e das matérias-primas
(parte do qual resultante da movimentação das moedas especulativas devido
ao colapso dos mercados hipotecários e de crédito norte-americanos) e
as reservas que muitos mercados emergentes e países em desenvolvimento
acumularam em anos recentes permitiram um adiamento temporário. Esta
imunidade não durou muito tempo. Os países que adoptaram estratégias
de crescimento orientadas para a exportação e liberalizaram os movimentos
de capitais, cedo perceberam que estavam a sofrer os efeitos da redução da
procura global das nações para onde exportavam.
Estes eram também afectados por um aumento repentino e muito
grande das suas taxas de juro na sequência da implosão do sistema financeiro dos Estados Unidos em Setembro de 2008. Estas economias estão
a sofrer a sua própria crise económica (expressa pela queda das exportações, dos preços das mercadorias e a redução da procura interna) mas sem
culpa própria. O mesmo aumento de preços que contribuiu para o adiamento temporário da crise nestes países teve igualmente um outro efeito
negativo: aumentos intensos dos preços do milho, do arroz, do trigo e
de outros preços dos alimentos geraram uma quebra elevada e repentina
dos salários reais e dos níveis de vida, que não foram subsequentemente
melhorados pelas quedas posteriores dos preços. Isto estava a acontecer
precisamente quando o desemprego estava a subir. O mercado emergente e os países em desenvolvimento estão agora a passar pelo mesmo
círculo vicioso que está a afectar as nações desenvolvidas: as suas economias enfraquecidas estão e interagir com as debilidades nos seus sistemas
financeiros. Uma deflação global da dívida está a caminho.
75
A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O QUE É NECESSÁRIO FAZER?
3.3. Implicações políticas para o desenvolvimento
As implicações políticas disto para os mercados emergentes e para os
países em desenvolvimento são tão importantes como os efeitos económicos. A crise actual teve a sua origem nos Estados Unidos, o país que até
agora era um dos principais responsáveis pela desregulação do mercado
financeiro. Afectou os países em desenvolvimento a partir de fora (países
que já tinham sido desregulados a partir do exterior). Contrariamente à
crise financeira asiática, por conseguinte, os apelos para criação de uma
ordem internacional financeira nova e diferente são fortes. O modelo
de investimento bancário dos Estados Unidos foi desacreditado, juntamente com a sua mera confiança nos poderes correctivos dos mercados
financeiros. Não admira que muitos mercados emergentes e países em
vias de desenvolvimento estejam a pedir uma reunião de “Bretton Woods
II” para estabelecer uma forma de sistema bancário e financeiro internacional mais justo globalmente.
4.1. As medidas de reforma do mercado financeiro
O que é que correu mal economicamente?
As regulações bancárias promulgadas pelo Comité Basel de Regulação
Bancária, com a sua tónica em requisitos mínimos de capital, supervisão
ligeira e disciplina de mercado são pró-cíclicas: estimulam os investidores a fazer investimentos maiores e mais arriscados durante a fase
ascendente do ciclo de negócios e a reduzir os seus investimentos durante
a fase descendente, não amortecendo mas aumentando a instabilidade
dos mercados financeiros e a volatilidade da economia real subjacente.
As regulações existentes não acompanharam as mudanças no sistema
bancário e financeiro. Também estimularam a arbitragem reguladora e
ajudaram os bancos e outras instituições financeiras a esconderem as suas
actividades dos reguladores, usando entidades legais fora das folhas de
balanço, instrumentos derivados complexos e centros financeiros off-shore.
A asseguração2, os derivados de crédito3 e a passagem de um sistema
financeiro centrado na banca para um sistema financeiro centrado, em
76
CHRISTOPHER RUDE
geral, no mercado desempenharam claramente um papel na crise. Mas o
turbilhão financeiro quando se manifestou, surgiu nos grandes bancos e
nas casas de investimento, ou mais precisamente, no mercado monetário
de curto prazo em que estas instituições situadas no centro da economia
global recolheram os fundos de curto prazo que utilizaram para financiar
investimentos de longo prazo. Os problemas situam-se mais na vertente
do passivo do que na do activo dos seus balanços e relacionam-se mais
com a sua incapacidade para gerir a sua dívida de curto prazo do que o
risco dos seus investimentos.
As disposições existentes pouco fizeram para controlar a alavancagem
(“leverage”)4 e a excessiva exposição ao risco. Muito pelo contrário, os
bancos e as outras instituições financeiras foram encorajadas a utilizar
as suas próprias medidas internas de gestão de risco para controlar o seu
risco na base da noção errada de que os mercados avaliam o risco correctamente e que é possível, com efeito, privatizar a gestão e o controlo do
risco global do mercado. A estabilidade financeira é um bem público que
não é fornecido pelos mercados financeiros.
4.2. Rever os três pilares do Basel II
A reforma deve incidir sobre os “Três Pilares” da regulação do Comité
de Basel e não centrar-se apenas no primeiro pilar. Os três pilares são:
estabelecimento de níveis mínimos de capital, revisão adequada da
supervisão de capital e disciplina de mercado. No contexto da estrutura
do Basel II, a tónica é colocada na constituição de níveis de capital que
2
“Securitization”, no original. Trata-se fundamentalmente de seguros sobre créditos. Ao segurar o seu
crédito numa instituição criada exclusivamente para este fim, a entidade credora adquire o direito de ser
compensada no caso de incumprimento do devedor. No entanto, como o capital das “instituições” seguradoras era significativamente menor do que o volume astronómico das dívidas que se tinham comprometido a
repor total ou parcialmente, todo o sistema de “asseguração”, apesar dos prémios ou comissões elevadas que
lhe era pago, acabou por ruir como um castelo de cartas com a eclosão da crise das subprime. Estas operações de
“asseguração” têm o nome de credit default swaps (N.T.).
3
São contratos que permitem trocar uma dívida com taxa variável por uma dívida com taxa fixa, uma dívida
em euros por uma dívida em dólares ou noutra moeda com o objectivo de diminuir o nível de risco a partir
de uma estimativa da evolução dos preços. (N.T.)
4
Trata-se de um processo que liga o valor de um título ao dos outros que são negociados no mercado bolsista
de modo que a queda do valor de um arrasta a de outros e assim sucessivamente numa reacção em cadeia
imparável (N.T.).
77
A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O QUE É NECESSÁRIO FAZER?
dependem do próprio risco interno do sistema de gestão do banco. A
incidência do mercado e a disciplina vêm a seguir. No âmbito do Basel
II, as autoridades desvalorizam também as actividades tradicionais dos
reguladores e supervisores, que estabelecem externamente regras determinadas e por vezes não-mercantis de regulação. Os oito por cento de
requisito de capital são um rácio de capital mínimo. Um supervisor de
um banco pode exigir-lhe a manutenção de um mais elevado. Mas as
autoridades podem não ter necessidade de obrigar um banco a ter um
rácio de capital mais elevado, em consequência da disciplina de mercado.
Como o rácio de capital do banco é tornado público, funciona como
uma medida célere e fiável da solidez do banco. Os bancos com rácios de
capital elevados têm um acesso fácil tanto ao capital como ao crédito. Os
mercados punem os bancos com rácios de capital baixos.
Isto pode muito bem parecer uma coisa sensata de fazer se o objectivo
é regulamentar um banco em partícular, mas os efeitos são diferentes na
prática e a nível global: este pacote de políticas acentua mais do que amortece o ciclo de negócios. É fácil compreender porquê. O problema não é
simplesmente que o capital de um banco aumenta normalmente durante
a prosperidade e cai durante a crise. O problema é que os requisitos de
capital são avaliados pelo risco. As avaliações dos riscos são funções dos
preços correntes e recentes, e são, por conseguinte, contra-cíclicos: as
medidas do risco caem na alta e sobem na baixa.
Depois, existe o efeito do Basel II sobre a diversidade das opiniões dos
investidores: se cada investidor está a usar o mesmo sistema de medida e
gestão de risco, a ausência resultante de desacordo tornará impossível a
negociação deste risco. A disciplina de mercado que o sistema encoraja
é laxista na alta e severa na baixa. Os bancos que funcionam melhor,
isto é, os bancos com capital de risco e investimentos lucrativos que são
aparentemente mais seguros, fornecem mais capital para despender.
Os bancos em dificuldades, isto é, os bancos com capitais declinantes e
investimentos mais arriscados e perdulários ficam famintos. O efeito de
cada banco que actua da mesma forma é primeiro expansionista, depois
contraccionário num grau extremo. Todos aumentam ou reduzem os
seus empréstimos ao mesmo tempo. Os bancos em que se sabe que os
rácios de capital sobem ou descem de modo extremamente rápido serão
78
CHRISTOPHER RUDE
bastante recompensados e punidos ainda mais.
Duas importantes reformas contra-cíclicas devem ser introduzidas
para substituir ou contrariar a pró-ciclidade dos níveis exigidos do capital
existente. Os próprios níveis exigidos de capital podem ser reformados
de modo a torná-los contra-cíclicos. As provisões devem ser utilizadas
como um instrumento de uma política contra-cíclica. Os bancos devem
compensar as perdas nas suas reservas de crédito quando fazem os seus
empréstimos. Requisitos mínimos devem ser utilizados pró-activamente.
O objectivo deste tipo de medidas é impedir a implosão ao evitar que a
expansão saia fora de controlo.
4.3. Criar uma regulação abrangente
As novas regulações devem ser abrangentes, cobrindo todas as actividades, instrumentos, mercados e instituições, incluindo os itens fora das
folhas de balanço, os fundos de alto risco (“hedge funds”) e os centros
off-shores e os paraísos fiscais. Caso contrário, um “sistema financeiro
subterrâneo” torna impossível impedir a sobre-alavancagem e a arbitragem reguladora que contribuíram para a actual crise. Todos os tipos
de actividade financeira e bancária têm que ser monitorizados, tanto a
segurança subjacente e derivativa colocada sob observação, como as transacções negociadas e as dívidas fora do balanço postas sob controlo. As
firmas de corretagem, as companhias de seguros, os fundos de pensão e
de investimento colectivo devem ser supervisionados. Uma autoridade
financeira mundial ou um regulador global para complementar um FMI
reformado, reconfigurado como um banco central de bancos centrais,
seria imprescindível para desenvolver e depois implementar as reformas
reguladoras necessárias. Em termos simples, o domínio do regulador
deve ser o mesmo que o domínio do mercado.
4.4. Adoptar medidas para aumentar a liquidez
Falhas graves existem nos mercados monetários de curto prazo em que
as instituições financeiras e não financeiras recolhem fundos para financiar os seus investimentos e outras actividades de longo prazo. Todos os
79
A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O QUE É NECESSÁRIO FAZER?
tipos de instituições, o mercado e o sistema financeiro foram desfavoravelmente afectados pela crise, mas o mercado que foi mais afectado
situa-se no próprio centro da economia internacional: o mercado interbancário. Em toda a parte os bancos centrais tomaram medidas para
tornar o mercado interbancário a termo de novo líquido, mas até agora
sem sucesso. As razões para estes falhanços não são claramente entendidas, nem é manifesto por que motivo o mercado interbancário foi tão
severamente afectado. Os mercados monetários de curto prazo estão a
precisar de uma reforma urgente.
4.5. Reduzir o risco de mercado
Os mercados financeiros não processam eficientemente ou bem a
informação. Isto sucede ou devido ao tipo de problemas de assimetria
de informação importantes para Stiglitz, ou devido ao que os keynesianos e pós-keynesianos designam por “incerteza radical”, os bancos
e os mercados financeiros não distribuem eficientemente o capital e
os riscos determinados pelos prémios de mercado fornecem pouca ou
nenhuma informação sobre os riscos subjacentes. Se os bancos e os
mercados financeiros não podem tornar eficientes os investimentos de
longo prazo ou gerir o risco efectivamente quando entregues aos seus
próprios mecanismos, logo é necessária uma regulamentação mais efectiva independentemente de todos os efeitos que poderá ter na prevenção
ou redução das crises futuras.
Há uma grave insuficiência no modo em que o sistema corrente gere
o risco, o seu preço de mercado e especialmente os riscos de crédito. Este
tentou gerir os últimos através dos derivados de crédito, isto é, através da
criação de um mercado não para o crédito mas para o risco do crédito.
Em discussão está o encorajamento que as autoridades deram à passagem
do primeiro regime de capital de Basel para o Basel II e, por conseguinte, à conexão entre o regime de capital do BTI e as novas dificuldades
correntes.
No âmbito do Basel II, os bancos podem utilizar as suas próprias
medidas internas de risco e sistemas de gestão para determinar os
seus requisitos de capital, não apenas para os riscos de preços das suas
80
CHRISTOPHER RUDE
operações de corretagem (isto não era novo), mas também, e mais relevantemente, para os riscos das suas contrapartidas – ou de crédito – mais
geralmente. A utilização dos derivados de crédito para formular, reestruturar e gerir de outro modo a exposição ao crédito foi a resposta racional
do sector privado. Os bancos já fizeram os investimentos necessários nas
tecnologias de informação e corretagem para gerir os riscos de preço, de
modo que era fácil para eles utilizar esta mesma tecnologia para construir
e negociar seguros de crédito (“credit default swaps”5), obrigações de
dívida com garantias6 (“collaterized debt obligations”) e activos baseados
em papel comercial. Isto foi o que a passagem para o Basel II os estimulou
a fazer, e foi isso que fizeram.
A última coisa de que poderemos ter necessidade é um “Basel II com
sentimento”, ou por outras palavras, um regime de capital mais esbatido,
mas em que a própria modelação de risco de um banco tem ainda um
papel a desempenhar. O problema não é apenas a autonomia operativa
que é estimulada pela política que permite aos bancos estabelecer o seu
próprio capital de risco. A regulação efectiva é intrusiva: deve obrigar a
firma que é regulada a actuar de forma diferente de como se comportaria
simplesmente para maximizar os seus próprios lucros e minimizar os seus
próprios riscos. A estabilidade é um bem público e o risco sistémico é
uma externalidade7. Precisamente porque a última não é mensurável em
termos da avaliação que um banco particular faz do seu risco, os bens
públicos não são normalmente coisas que os mercados produzem. A actividade macroeconómica bancária e a estabilidade do mercado financeiro
são algo que um regulador impõe.
O facto dos mercados financeiros desregulamentados registarem
problemas de informação tem diversas aplicações adicionais:
Para aumentar a transparência do mercado, as operações fora dos
registos de caixa de todos os produtos derivados e estruturados devem ser
5
Ver nota 2 (N.T.).
6
As subprimes eram formas de collateralized debt obbligations, ou seja, eram dívidas que tinham como garantia um
bem patrimonial, uma habitação que, quando os juros eram baixos, podia ser vendida a preços muito superiores aos da aquisição se o seu proprietário não pagasse a hipoteca (N.T.)
7
Consequências não previstas da actividade de um agente económico sobre a sociedade e o ambiente (N.T.).
81
A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O QUE É NECESSÁRIO FAZER?
impedidas, transferindo, pelo contrário, para as trocas todas as funções
que aquele derivado ou produto podia ter desempenhado. Os special purpose
vehicles8 e outras ficções legais semelhantes que permitiram aos bancos e a
outras instituições financeiras manter estas transacções fora dos registos
contabilísticos devem ser adicionalmente abolidas.
Estas medidas têm de ser tomadas para acabar com o insider trading9 e
os conflitos de interesses. Os incentivos, as barreiras de protecção e as
formas de gestão das firmas devem ser reformadas.
Para impedir crises financeiras futuras e a má distribuição de capital
durante uma “mania”, as autoridades monetárias devem ter em conta
as inflações e deflações dos preços dos activos financeiros e não apenas
as inflações e deflações do Índice de Preço do Consumidor (IPC) na
condução das suas políticas, incluindo as políticas reguladoras. Há algo
de perturbador na forma como os bancos centrais se comportaram no
passado: o seu implacável empenhamento em manter a inflação do IPC
baixa combinada com o seu aparente desinteresse em examinar a inflação
dos activos financeiros, produziu uma era caracterizada pelos baixos salários, baixo crescimento e instabilidade financeira persistente.
Considerando que o sistema financeiro não pode ser completamente
reformado, devem ser tomadas medidas para colocar um cordão de segurança à volta do núcleo do sistema das instituições bancárias e financeiras.
O objectivo é proteger o núcleo de outros sectores menos regulamentados
do sistema financeiro que podem existir ainda e em que os problemas de
informação continuam a predominar. O problema é controlar a alavancagem – a mobilização do sistema monetário para objectivos especulativos
– e, por conseguinte, impedir o dinheiro “alavancado” de se desmoronar
durante uma crise financeira para níveis inferiores ao da sua anterior
massa monetária, com inevitáveis efeitos disruptivos relativamente ao uso
do dinheiro como meio de pagamento. Uma forte regulação associada
a uma generosa concessão de empréstimos de último recurso quando
necessários, são claramente uma parte da solução de longo prazo.
8
Ver nota 1 (N.T.).
9
Obtenção e divulgação ilegal de informações sobre os valores dos títulos para obtenção de um ganho à custa
dos outros intervenientes no mercado financeiro (N.T.).
82
CHRISTOPHER RUDE
4.6. Adoptar pacotes de estímulo orçamental
O estímulo orçamental é urgentemente necessário para ressuscitar a
economia real subjacente à medida que a política monetária é claramente
capturada pelo que Keynes designava por “armadilha da liquidez”. Uma
expansão orçamental coordenada, grande, rápida e internacionalizada
é necessária para estimular a procura mundial, e é necessária imediatamente. Isto pode e provavelmente deve ser acompanhado por uma
reciclagem das enormes reservas externas da China, do Japão e de outros
países – possivelmente através de uma rede de bancos de desenvolvimento
regional – para países emergentes e países em desenvolvimento em busca
de financiamento adicional. Mas os responsáveis pela política económica
devem ser cautelosos: isto envolve a venda de obrigações de tesouro dos
Estados Unidos, o que poderá desencadear uma subida nas taxas de juro
e uma queda do dólar.
5.1. Fins e meios: a economia política da reforma
O sistema financeiro numa economia de mercado tem quatro
funções:
Deve mobilizar todos os fundos inactivos que possam existir para os
objectivos de investimento no mercado de capitais, isto é, transferir as
poupanças das firmas para o investimento.
Em economias como as dos Estados Unidos, Reino Unido e outros
países desenvolvidos em que a construção de casas é financiada por
hipotecas e as despesas de consumo por cartões de crédito e segundas
hipotecas, este deve também financiar o consumo.
Um terceiro objectivo, em que os mercados emergentes e as nações
em desenvolvimento têm um interesse específico, é o financiamento do
comércio internacional e do investimento e, por conseguinte, do desenvolvimento. Por fim, o sistema financeiro deve permitir e encorajar
investimentos de longo prazo, particularmente investimentos de longo
prazo em infra-estruturas.
Os sistemas bancários e financeiros e os sistemas de pagamentos que
estes incluem são consequentemente meios para fins e não fins em sei
83
A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O QUE É NECESSÁRIO FAZER?
próprios. Avaliado por estes padrões, o sistema financeiro internacional tal como existe actualmente é um falhanço. Os actuais mercados
financeiros desregulamentados ou fracamente regulamentados não têm
credibilidade para transferir ganhos acumulados para investimento
eficiente, financiar as despesas de consumo, construir casas a preços
compatíveis, financiar o desenvolvimento ou recolher os fundos necessários para reestruturar as diversas infra-estruturas nacionais, enfrentar
o aquecimento global e outras limitações ambientais.
O problema é que o sistema bancário e financeiro internacional não é
simplesmente um mecanismo para distribuir bens e serviços. As relações
económicas e as relações sociais, e o sistema financeiro internacional,
longe de serem um terreno de jogo nivelado, são fundamentalmente um
sistema hierárquico onde alguns sistemas financeiros nacionais predominam sobre outros sistemas financeiros nacionais numa configuração
geográfica que também é política. Segundo esta perspectiva, o sistema
financeiro internacional transfere valor sob a forma de juros, dividendos
e outros pagamentos de uma região para outras.
Também segundo esta perspectiva, as crises financeiras têm uma função
disciplinadora, que se caracteriza especificamente pelo modo como
foram resolvidas no passado, com a divisão do trabalho entre a redução
das taxas de juro dos bancos centrais do G10 e um austero FMI que assegura que a instabilidade – surja onde surgir – ou permanece confinada
internamente ou é transferida para os sistemas financeiros mais fracos,
enfraquecendo-os, por conseguinte, ainda mais. A “pró-ciclidade” dos
requisitos mínimos de capital deve ser vista nesta perspectiva. Aqui, a
disciplina é global.
Há um outro factor a ter em conta. As relações financeiras são sempre
relações credor-devedor, em que em troca do dinheiro de hoje, o
devedor transfere mais dinheiro para o credor no futuro. Sempre que o
devedor deve efectuar os seus pagamentos ao credor, mesmo se os investimentos realizados com o dinheiro emprestado não são lucrativos, o
devedor torna-se o membro subordinado na relação, mesmo se é um
investidor. Os devedores que contraem empréstimos para financiar o
consumo aprofundam-se cada vez mais na dívida.
84
CHRISTOPHER RUDE
5.2. O que está em jogo?
Estes três factos – uma hierarquia internacional de sistemas bancários
nacionais, crises financeiras como mecanismos disciplinadores, as relações credor-devedor que impregnam todo o sistema – determinam o que
está em jogo em qualquer debate sobre a natureza de uma “nova arquitectura financeira internacional”. A distribuição dos recursos que aqui
está em causa depende de uma mudança nas capacidades organizacionais
dos Estados e instituições inter-estatais. Esta nova distribuição não pode
ser feita apenas na base do mercado porque a instabilidade e a injustiça
são inerentes aos mercados livres e desregulamentados. Tendo em conta
a relação que existe entre direitos e cidadania e, por conseguinte, entre
direitos humanos e o Estado-nação, o princípio que deve orientar a nova
distribuição dos verdadeiros recursos reguladores globais mundiais é claro:
soberania nacional no interior de um sistema de igualdade internacional.
A posição subordinada dos mercados emergentes e das nações em desenvolvimento no seio do sistema financeiro internacional deve acabar.
6.1. Para uma social-democracia global
O acordo entre os reformadores acerca da natureza da actual crise
económica global e o lugar que nesta ocupam os mercados emergentes e
os países em vias de desenvolvimento, de que todas as reformas devem ser
contra-cíclicas, de que os mercados financeiros são propensos a falhas
de mercado, de que princípios de igualdade nacional devem modelar
o novo regime e de que devem ser tomadas medidas para estimular a
procura global, não implica unanimidade relativamente ao que deve ser
ou fazer precisamente o “Novo Bretton Woods”. Por um lado, existem
os que acreditam que as dificuldades informativas dos mercados financeiros devem ser resolvidas por uma melhor transparência do mercado,
que estão mais preocupados com a estabilidade do que com a igualdade
e que acreditam que as mudanças necessárias são mínimas. Por outro
lado, os que desconfiam dos mercados pouco regulamentados ou não
regulamentados e para quem as disposições actuais conduziram a consequências económicas e sociais graves e negativas, defendem ser necessária
85
A CRISE FINANCEIRA GLOBAL: O QUE É NECESSÁRIO FAZER?
uma considerável mudança estrutural.
Para o primeiro grupo, as regulamentações promulgadas por um novo
regulador do mercado internacional devem ser ligeiras, e devem limitarse a pôr em foco questões relativas à estabilidade macroeconómica,
deixando o mercado desempenhar um papel relevante na distribuição
das poupanças globais e no financiamento do desenvolvimento. Para o
segundo grupo, a nova regulamentação deve ser intrusiva e deve promover
activamente o desenvolvimento dos mercados emergentes e das nações em
desenvolvimento, encontrando modos inovadores para orientar os resultados do mercado para uma repartição mais igualitária dos bens sociais.
O primeiro grupo atribui grande importância às relações de mercado; o
segundo grupo favorece a desmercantilização. É importante recordarmos
que, contudo, estes desacordos ocorrem no contexto de um acordo mais
fundamental sobre as necessidades da reforma da economia internacional
e do lugar que os mercados emergentes e os países em desenvolvimento
ocupam nesta e sobre o ritmo e a extensão das reformas necessárias.
6.2. Um programa mínimo
Que conjunto mínimo de princípios deve, então, orientar o avanço
do processo de reforma? Existem três:
Qualquer solução deve ter como ponto de partida os custos sociais da
crise porque estes estão a afectar desproporcionadamente os países em
vias de desenvolvimento, bem como os pobres e os trabalhadores mais
geralmente. Um sistema bancário e financeiro global viável e estável é
um meio para um fim, não um fim em si próprio, e os fins relevantes são
sociais. O mérito do sistema bancário e financeiro não deve ser avaliado
apenas segundo a estabilidade que promove ou segundo o crescimento, a
inovação e o investimento que pode estimular. As disposições sistémicas
devem ser avaliadas segundo o modo como promovem a justiça social.
Por estas razões, instituições globais representativas – e não agrupamentos ad hoc sem legitimidade democrática – devem estar no centro
de todos os esforços de reforma. O FMI, o BTI e outras organizações
semelhantes devem ter uma função a desempenhar no novo sistema,
mas as propostas que não têm legitimidade democrática não chegam a
86
CHRISTOPHER RUDE
parte alguma. Existe uma ligação entre a injustiça e a instabilidade do
sistema financeiro internacional que se está agora a revelar e a sua habitual incapacidade para promover a estabilidade e o crescimento. As
reformas necessárias para estabilizar a economia internacional – e para
a trazer de volta, em conjunto, de novo – devem, por conseguinte, ter
em conta os apelos dos mercados emergentes e dos países em vias de
desenvolvimento.
Por fim, estas reformas têm necessariamente que estabelecer um novo
equilíbrio entre a economia e a política, um novo equilíbrio que favoreça
o Estado democrático relativamente ao mercado financeiro, o interesso
público relativamente aos lucros privados e um governo responsável relativamente à especulação irresponsável**
(Tradução de Joaquim Jorge Veiguinha)
** O autor gostaria de agradecer a Werner Puschra, Stephany Griffith-Jones e Sara Burke pelo seu apoio e
ajuda neste projecto.
87
88
Uma estratégia de esquerda
para enfrentar a crise
Augusto Santos Silva
1. Uma crise intensa e complexa
E
ste artigo considera a experiência portuguesa de resposta à crise
económica mundial, experiência conduzida pelo governo socialista
em funções. E tem como objectivo analisar a coerência da resposta.
Para isso, preciso de lembrar dois ou três factos. A crise financeira que irrompeu nos Estados Unidos e, depois, ao longo dos últimos meses
de 2008, alastrou a toda a economia e tomou proporções planetárias, encontrou o executivo liderado por José Sócrates na segunda metade do seu mandato,
iniciado em Março de 2005. De 2005 a 2007, este executivo havia conseguido
fazer sair Portugal da situação de défice excessivo, baixando o défice orçamental
dos 6,8% implícitos, segundo o Banco de Portugal, no orçamento inicial para
2005, e dos 6,1% verificados no fim de 2005, para 2,6%. A economia portuguesa havia retomado uma trajectória de crescimento, sustentada sobretudo
na expansão das exportações, registando um aumento real do PIB de 1,9% no
ano de 2007. O Governo havia logrado importantes reformas na segurança
social, nas finanças locais e regionais, na saúde, na educação e na administração pública; e o Parlamento debatia a reforma da legislação laboral. O Plano
Tecnológico, que tinha sido a bandeira política central da campanha socialista
para as eleições legislativas de 2005, mostrava os primeiros resultados: simplificação dos procedimentos administrativos, governo electrónico, balança
tecnológica da economia portuguesa positiva, financiamento da investigação
e desenvolvimento na ordem de 1% do PIB, distribuição maciça de computadores e ligações em banda larga pelas escolas secundárias. Finalmente, do
ponto de vista da reorientação da política económica, estava definida a prioridade às energias renováveis e, no que toca às políticas sociais, haviam sido
lançados o programa de combate à pobreza nos idosos (através do complemento solidário) e as medidas de promoção da natalidade.
2008 foi um ano extremamente complexo. Toda a primeira metade foi domi89
UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE
nada pela escalada dos preços de matérias-primas, com destaque para o petróleo,
e dos bens alimentares, bem como pela subida das taxas de juro. A acção política
concentrou-se, logicamente, em apoios adicionais às famílias (como o congelamento dos passes sociais, a criação do passe escolar, o aumento dos escalões mais
baixos do abono de família ou a majoração das deduções fiscais dos juros pagos por
empréstimos à habitação), no auxílio a sectores fustigados pelo aumento do custo
dos combustíveis, como os transportes e as pescas, e em medidas de equidade fiscal
(como o imposto extraordinário sobre os lucros das empresas petrolíferas).
Na segunda metade de 2008, tudo mudou. A crise bolsista norte-americana pôs a nu a extrema fragilidade de sistemas financeiros contaminados pelo
enorme peso dos chamados activos tóxicos e a desregulação de mercados capturados por práticas especulativas brutais. Os efeitos sobre a economia real foram
devastadores. Todas as principais economias fecharam o ano em recessão, o
crescimento das economias emergentes travou fortemente, os preços caíram, o
comércio mundial retraiu-se, o desemprego disparou.
Portugal teve, no conjunto do ano de 2008, um crescimento nulo,
entrando em recessão técnica no último trimestre. A taxa anual de desemprego situou-se nos 7,6%, mas o número de inscritos nos centros de empregos
haveria de aumentar significativamente logo nos primeiros meses de 2009.
No fim do primeiro trimestre de 2009, a taxa de desemprego cifrar-se-ia nos
8,9%. Como noutros países, o Estado teve de intervir para evitar o colapso do
sistema financeiro e tentar repor os canais de crédito às empresas e às famílias. A crise mundial atingiu-nos fortemente, nas suas diferentes dimensões:
crise de confiança, crise de regulação, retracção do investimento, retracção da
procura, queda do comércio internacional, dificuldades no financiamento da
actividade económica, aumento do desemprego.
2. Combate à crise e reformas estruturais
Nestas condições, o governo socialista tem seguido uma estratégia política cujos
fundamentos quero, aqui, apresentar, para que os leitores ajuízem sobre a sua
coerência e potencial, assim como a articulação com a lógica política própria da
esquerda democrática europeia.
A primeira característica distintiva desta estratégia – e talvez a mais importante – é a conjugação de
dois planos ou dimensões de acção. Um, eminentemente circunstancial, é a resposta imediata à crise – tipi90
AUGUSTO SANTOS SILVA
camente reactiva, entre nós como em todo o mundo, não sendo possível dizer,
à data em que escrevo (Junho de 2009) se as lideranças políticas e económicas já
passaram a comandar o curso dos acontecimentos. O outro plano, estrutural, são as reformas
modernizadoras.
A associação dos dois planos quer dizer simplesmente isto: que o Governo
procura preservar, no decurso da crise, a sua agenda reformista, nos termos em
que a definiu, desde o início do mandato. Esta agenda tem como pontos-chave
a qualificação, a competitividade económica, a modernização administrativa,
a sustentabilidade das políticas sociais e a melhoria do desempenho dos serviços
públicos, a cidadania e os direitos pessoais.
A associação dos dois planos tem três razões de ser.
A primeira é garantir que a conjuntura não faça perder as mudanças já conseguidas de natureza
estrutural. Entre tais mudanças contam-se, por exemplo, a consolidação de novos
direitos sociais (como o direito dos idosos a rendimentos não inferiores ao limiar
da pobreza), novas prestações sociais (como o abono pré-natal, para mulheres
grávidas) ou novas oportunidades de formação e/ou inserção social (como os
programas de reconhecimento e certificação de competências e completamento
de formações qualificantes, reunidos na iniciativa Novas Oportunidades).
A segunda razão de ser é aproveitar os resultados obtidos no plano estrutural como meios e recursos de
combateàcriseeconómica. O exemplo mais ilustrativo é a consolidação orçamental. A descida
do défice orçamental dos 6,1% de 2005 para os 2,6% de 2008 e a saída do procedimento por défices excessivos é que permitiram ao Estado português ter a margem de
manobra financeira e a credibilidade externa, quer junto da União quer junto dos
mercados, para acomodar novas despesas em contexto de significativa redução das
receitas fiscais associadas à actividade económica. Os valores já apurados para o ano de
2008 evidenciam bem essa margem e essa vantagem comparativa internacional. Assim,
Portugal fechou o exercício orçamental do ano passado com um saldo primário positivo
em 0,3% do PIB: isto é, descontada a despesa com os juros, teve excedente orçamental.
O peso da despesa pública no PIB (45,9%) era inferior à média da zona euro (46,7%);
e o mesmo acontecia com o peso da receita fiscal no PIB (43,2%, contra 44,8% na
zona euro). A dívida pública, que havia crescido para 66,4% do PIB situava-se, mesmo
assim, também abaixo do valor da zona euro (69%)1.
1
Cito os valores apresentados pelo Ministério das Finanças e da Administração Pública no Relatório de Orientação
da Política Orçamental, datado de Maio de 2009, caps. 2 e 4.
91
UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE
A terceira e talvez mais importante razão para associar o combate à crise e
a prossecução da agenda reformista é a urgência do investimento nas condições estruturais
de competitividade, para que a oportunidade de retoma da trajectória do crescimento seja imediata e
plenamente aproveitada pela economia nacional, logo que se inicie a viragem mundial.
E nada demonstra melhor a necessidade desta articulação do que o facto de
Portugal ver sistematicamente depreciada, nas previsões de várias organizações
internacionais, a sua capacidade de acompanhar o primeiro movimento internacional de retoma, por causa de fragilidades estruturais em áreas tão decisivas
como o capital humano, a intensidade tecnológica, a gestão empresarial ou a
burocracia.
3. A dimensão europeia do combate à crise
Além da articulação entre o combate conjuntural à crise e a agenda de
reformas estruturais, outro pilar que me parece sustentar a estratégia do
Governo socialista português é a consonância com as estratégias seguidas pelo conjunto da
União Europeia e pela Administração Barack Obama. De facto, as políticas de estabilização
do sistema financeiro, com forte empenhamento do Estado na recapitalização
dos bancos e/ou na redinamização do mercado interbancário, as políticas de
estímulo orçamental, reforço do investimento público, antecipação ou aceleração dos chamados investimentos modernizadores, seja na economia verde,
nas acessibilidades rodoviárias ou ferroviárias, na educação e nas escolas ou
nas redes de comunicação de nova geração, assim como as políticas de apoios
sociais e fiscais, vêm sendo postas em prática por governos europeus de diferentes proveniências ideológicas e pelo novo Presidente norte-americano.
Pode até dizer-se que, em Portugal, quem não está em consonância com o
espírito do tempo é a actual direcção do PSD, cujo discurso contra o investimento público e a intervenção estatal contrasta significativamente com a acção
dos executivos de centro-direita pela Europa fora. Mesmo no tópico fiscal, não
se pode dizer que o Governo Sócrates esteja sequer parcialmente desalinhado
da tendência internacional. É que foi já no segundo semestre de 2008 que
baixou a taxa normal do IVA em um ponto percentual (para 20%); e desde a
aprovação do Orçamento para 2009 que ficou decidida a redução da taxa de
IRC devida pelas empresas até à matéria colectável de 12.500 euros, além de
outras descidas nas obrigações fiscais das empresas e das famílias.
92
AUGUSTO SANTOS SILVA
Esta consonância pode e deve verificar-se também no plano, absolutamente
decisivo, das opções políticas gerais em matéria económica e financeira. E a
esquerda democrática ocidental tem aí particulares responsabilidades.
Em primeiro lugar, na recusa do proteccionismo. A crise não significa o fim da
globalização, mas sim, espera-se, da globalização desequilibrada a favor de um
dos lados, o capital financeiro, e não sujeita a regulação equivalente. A solução
para a crise não reside no fecho dos mercados nacionais. Mesmo a luta contra
o chamado dumping social não pode servir de pretexto ou disfarce para reerguer
barreiras às exportações dos países do Terceiro Mundo e para favorecer, através
de medidas proteccionistas, as nações mais ricas.
Em segundo lugar, na exigência de regulação. De acordo com uma regra simples:
todos os produtos, todas as instituições, todos os mercados devem ser objecto de
supervisão e regulação adequadas. A crise financeira de 2007-2008 mostrou,
à evidência, que a desvinculação da economia produtiva, a proliferação de
mercados e instituições opacas e resistentes à regulação, a captura dos reguladores pelos interesses dos regulados e o desequilíbrio entre a sofisticação dos
produtos e mercados financeiros e os sistemas regulatórios nacionais, geram
efeitos devastadores sobre todos os sectores económicos e sociais, à escala planetária. A exigência da regulação não pode, pois, ficar como um discurso piedoso
e ocasional. A eliminação dos off-shores, a reforma das instituições internacionais, a articulação, pelo menos pan-europeia, das entidades de regulação, o
reforço dos poderes e dos meios de supervisão, tudo isto consta da agenda
progressista – e, aliás, foi (ou deveria ter sido…) um dos temas fundamentais
da disputa eleitoral de Junho de 2009, para o Parlamento Europeu.
Em terceiro lugar, a esquerda tem de ser enfática na cultura de responsabilidade e prestação de contas. E não se menospreze esta dimensão, por alegadamente ficar por
palavras, símbolos e intenções. Pelo contrário, ela toca fundo nos padrões de
comportamento e organização na economia. O “capitalismo regulado” ou a
“economia social de mercado”, que são pontos de convergência das grandes
correntes políticas democráticas europeias, de direita ou de esquerda, foram
diária, sistemática e ostensivamente ofendidos e desprezados nos mercados
financeiros e nas administrações empresariais que conduziram os Estados
Unidos e a Europa ao desastre. A crise só rebentou porque valores estruturantes de uma economia inserida em sociedade democrática – valores como a
transparência, a prestação de contas, a moderação nos ganhos, a visão de médio
93
UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE
e longo prazo, a responsabilidade social e o compromisso perante autoridades
e stakeholders – foram deliberadamente violados por uma geração de gestores e
especuladores treinados no credo hiperindividualista e amoral do neoliberalismo. E uma das razões que explica a capacidade de mobilização até agora
protagonizada por Barack Obama reside, não tenho dúvida, em ter sabido e
conseguido contrapor um outro discurso ético, social e político a essa atmosfera de, como ele diz, irresponsabilidade, egoísmo e ganância.
A consonância das posições dos socialistas portugueses com as tendências
que marcam a reacção europeia e norte-americana à crise tem, pois, estas duas
declinações. No plano prático das medidas circunstanciais de política, a necessidade parece vir imperando sobre as diferenças ideológicas (com a eloquente
excepção da clivagem entre democratas e republicanos, nos Estados Unidos).
Por convicção ou pragmatismo, a generalidade dos executivos nacionais aposta
no mix entre investimento público, apoios sociais, ajudas directas a empresas
ou estímulos em sede fiscal ou contributiva. Mas, já quanto às escolhas políticas do futuro próximo, as divergências ideológicas reemergem (e, a bem
do debate democrático, felizmente!). Mais “economia real”, mais regulação
pública, mais responsabilidade social, caracterizam – com algumas significativas ressalvas – a generalidade das forças agrupadas no Partido Socialista
Europeu – e, pelo menos quanto à intensidade, demarcam-nas do Partido
Popular Europeu. As propostas que o Partido Socialista português fez aprovar,
no seu Congresso de 2009, como a eliminação dos off-shores, a exigência de
regulação global e a redistribuição da carga fiscal entre camadas possidentes e
classes médias, colocam-no, a meu ver, no campo das exigências próprias da
esquerda democrática europeia.
4. Quatro traços de uma estratégia política
Julgo ter identificado duas linhas de força na estratégia prosseguida pelo
actual governo socialista português: a articulação dos dois planos do combate à
crise e das reformas estruturais; e a consonância com o essencial das respostas
europeias e norte-americana. Creio, pois, estar em condições de propor os
quatro traços fundamentais de tal estratégia política.
O primeiro é a salvaguarda dos factores estruturais da consolidação orçamental. Entre
esses factores contam-se a reforma do sistema de pensões, através da conver94
AUGUSTO SANTOS SILVA
gência do regime da função pública com a segurança social, da introdução do
factor de sustentabilidade, da consideração de toda a carreira contributiva e da
indexação da actualização das pensões ao crescimento económico; a reforma
da administração pública, em particular no que significou o fim das progressões automáticas e a generalização da avaliação do desempenho profissional,
além dos mecanismos de maior mobilidade na gestão de pessoal e de serviços;
a racionalização da gestão do Serviço Nacional de Saúde, com a empresarialização dos hospitais, a reorganização da rede territorial das diversas unidades de
prestação de cuidados e a regulação do mercado de medicamentos; e os instrumentos de disciplina financeira e equidade distributiva associados às novas leis
das finanças locais e regionais.
É absolutamente decisivo que as decisões de estímulo orçamental para
contrariar a conjuntura recessiva não coloquem em causa estes factores estruturais. Porque só eles permitirão a retoma pós-crise do equilíbrio orçamental,
até porque se antevê que o crescimento económico mundial seja muito escasso
durante vários anos.
O segundo traço caracterizador é a salvaguarda dos objectivos de modernização. Pode
dizer-se o mesmo de outra forma, sugerindo que se trata, em certo sentido,
de aproveitar a crise. Se a crise torna indispensável a antecipação, aceleração
ou intensificação de investimento público, ou com forte incentivo público,
isso deve fazer-se justamente nas áreas em que possa colmatar carências diagnosticadas e/ou potenciar a adequação do passo às exigências tecnológicas,
económicas e sociais do futuro próximo. O que implica, nomeadamente,
investir na alta velocidade ferroviária (que diminui a distância, reduz a periferia geográfica, estrutura o território, favorece o transporte público e é amiga
do ambiente), na modernização do parque escolar e dos recursos pedagógicos,
na massificação do uso das tecnologias de informação e comunicação, nas redes
de banda larga de nova geração, na eficiência energética e nas energias renováveis. E não quero esquecer a modernização do sector primário e da indústria
alimentar. Aliás, se é verdade que um dos principais problemas portugueses é o
défice externo estrutural, então apostar na poupança de energia e na produção
de energia a partir dos recursos hídricos, eólicos, solares, etc., assim como
favorecer a competitividade da agricultura e da agro-indústria nacional significa intervir em duas das principais causas do défice, a dependência energética
e a dependência alimentar.
95
UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE
Neste esforço de modernização incluo ainda o modelo de relações laborais, em ambos os planos da legislação e das práticas concretas de negociação
colectiva. É, a meu ver, um ponto-chave quer para a realização dos direitos
dos trabalhadores, quer para a promoção da competitividade económica. As
linhas-mestras da reforma do Código do Trabalho (2006 e 2009), tais como a
indução da negociação colectiva, a penalização das formas precárias de trabalho
e o aperfeiçoamento dos instrumentos de adaptabilidade interna (e negociada)
das empresas, inscrevem-se nesta direcção – e a crise económica tende a evidenciar também, não só a necessidade do recurso circunstancialmente aumentado
a este tipo de instrumentos de agilização, regulação e compromisso como ainda
a vantagem de inscrevê-los numa concepção mais moderna (e social-democrata) das relações laborais.
O terceiro traço caracterizador da estratégia seguida pelo governo socialista
português manifesta-se na forma como utiliza os instrumentos de incentivo a empresas e
particulares, quer em sede fiscal, quer nas contribuições para a segurança social,
quer em medidas de política económica. A diferença entre a esquerda e a direita
parece, aqui, clara. Do lado direito do espectro partidário, provêm sobretudo
propostas de aligeiramento do controlo sobre a evasão fiscal e descida generalizada de impostos ou encargos sociais, tais como a extinção do pagamento
especial por conta, o chamado IVA de caixa, o “cheque fiscal” ou a redução em
dois pontos percentuais da contribuição patronal. O lado esquerdo, primeiro,
contesta que a baixa de impostos ou contribuições tenha outro efeito relevante
senão diminuir os recursos orçamentais, pondo em perigo a capacidade de o
Estado desenvolver as políticas económicas e sociais necessárias para enfrentar
a crise – e, em segundo lugar, denuncia a iniquidade de descidas generalizadas
que beneficiariam mais as pessoas singulares ou colectivas com melhor rendimento, face às restantes.
Daí que seja fácil de compreender a lógica seguida pelo Governo socialista na
gestão dos diferentes incentivos: selectividade e focagem, exigência de compromissos e contrapartidas. Vários exemplos podem ser dados: as micro, pequenas
e médias empresas podem aceder a linhas de crédito bonificado se estiverem
em situação regular face ao fisco e à segurança social; as micro e pequenas
empresas beneficiam da redução em três pontos percentuais da contribuição
devida pelos seus trabalhadores de mais idade em troca do compromisso de
manutenção do volume de emprego; a contratação de jovens ou desempre96
AUGUSTO SANTOS SILVA
gados de longa duração é que proporciona a atribuição de um subsídio, mais
a isenção bienal dos encargos sociais; a adesão de empresas a programas de
formação dos seus trabalhadores em período de redução da actividade tem por
contraparte a garantia de certo volume de emprego; etc.
A mesma lógica de foco e a mesma preocupação de evitar que a circunstância
crítica prejudique os pilares estruturais de modernização e sustentabilidade
explicam, ao que creio, outra clivagem maior entre a actuação do Governo do PS e
a Oposição à sua direita ou à sua esquerda. Falo do debate em torno do subsídio de
desemprego. Há, evidentemente, um plano propriamente orçamental: a redução
dos prazos de garantia, o aumento da prestação ou o prolongamento da sua duração
colocariam uma forte pressão adicional sobre o orçamento da segurança social,
exactamente no período em que, por força da recessão, abrandam as receitas. Mas
este é tipicamente um caso de contradição de pontos de vista, entre quem detém
responsabilidades executivas, e por isso tem um dever adicional de gestão racional
de recursos, e quem olha para o problema do lado da oposição, e por isso mesmo
está menos sensível a esse dever – independentemente das orientações ideológicas.
A esta divergência acrescenta-se outra, e sobre ela me quero centrar, porque essa
sim revela divergências de foco e abordagem política. O PS tem defendido, por
um lado, que, sendo o regime de atribuição do subsídio de desemprego um dos
mais avançados no conjunto da OCDE, quer quanto à duração máxima da prestação, quer quanto à taxa de substituição do último salário pelo valor da prestação,
não faz sentido mexer nestas variáveis – e muito menos pôr em causa os avanços no
domínio da beneficiação comparativa dos desempregados com carreira mais larga,
no conceito de oferta de emprego adequado e na fiscalização, avanços conseguidos
através de um acordo de concertação social assinado pelas duas centrais sindicais.
E, por outro lado, sendo a questão crítica a perda, agora, de dezenas de milhares
de postos de trabalho, é mais necessária e eficaz a concentração das políticas na
manutenção e na criação de emprego do que o alargamento do período máximo
de atribuição do subsídio de desemprego, para lá dos actuais 38 meses. Ambos
estes argumentos ilustram bem, a meu ver, essa opção pela abordagem focada e a
preocupação de não pôr em causa, por razões meramente circunstanciais, ganhos
estruturais para a sustentabilidade e a legitimação social das medidas de seguro
social face ao risco de desemprego involuntário.
Finalmente, quarto traço caracterizador: a procura da equidade. A esquerda
democrática só pode, julgo, destacar a complexidade da situação social presente.
97
UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE
O ano de 2009 será mais um ano de aumento do rendimento disponível para a
generalidade das famílias. (Aliás, ao contrário do que alguns querem fazer crer,
a subida, em termos reais, do rendimento disponível dos particulares é uma
característica também do período 2005-20072 ). Para os funcionários públicos
e para os trabalhadores privados cujo emprego esteja protegido, 2009 significará
um aumento bem real de salários. O conjunto dos consumidores beneficiará de
uma descida da inflação para próximo de zero e as famílias com empréstimos
bancários contam com a redução das taxas de juros. A consequência lógica é
que as políticas públicas devem ser canalizadas para o apoio ao meio milhão de
activos em situação de desemprego e aos respectivos agregados.
Temos, pois, uma dupla responsabilidade. Por um lado, através das políticas
de regulação, financeira e económica, intervir na economia para contrariar a
retracção, induzindo o investimento e minorando as dificuldades de financiamento e tesouraria das empresas. E daí ser essencial, para uma óptica de
esquerda, tomar medidas como a estabilização do sistema financeiro, a facilitação do crédito, o incentivo fiscal e contributivo ao investimento ou o reforço
do investimento público. Por outro lado, o foco das políticas sociais deve estar
nas famílias colocadas em crise pelo encerramento ou a redução de actividade
empresarial – e não nas restantes, ou numa imaginária “média” nacional.
O activo do Governo socialista inclui, neste campo, a recusa de abandonar,
ou até abrandar, o combate à fraude e à evasão fiscal e contributiva; a selectividade nos apoios, focando-os nos grupos de mais baixo rendimento e/ou
nas situações de maior vulnerabilidade (a começar pelos desempregados); e a
escolha política de centrar as ajudas públicas nas despesas efectivamente realizadas pelas famílias (ou necessariamente a realizar), designadamente com a
educação dos filhos, com a habitação própria ou com o acesso a medicamentos
e cuidados de saúde. Refiro-me a medidas como a moratória temporária do
pagamento de metade de juros para famílias devedoras com desempregados,
a garantia de 100% de apoios sociais para os seus filhos estudantes, no caso
2
Reporto-me aos dados apurados e publicados pelo Banco de Portugal, no Relatório Anual 2007, Lisboa, 2008, p. 219.
Os valores para 2006 e 2007 são ainda estimativas preliminares. Segundo esta série, na última década só na recessão de
2003 a variação nominal do rendimento disponível dos particulares foi inferior ao índice de preços ao consumidor.
Aliás, de acordo com os dados apresentados por Manuel Caldeira Cabral (“Década perdida?”, Jornal de Negócios, edição de
21 de Maio de 2009, p. 33), se considerarmos a evolução do PIB per capita em paridades de poder de compra, Portugal
convergiu com a União Europeia a 15, entre 2004 e 2008, tendo sido, aliás, um dos cinco países desta área que apresentou uma evolução mais favorável. No conjunto da década de 1998 a 2008, o nosso país aproximou-se em 2,6 pontos
percentuais da média da UE-15 (uma aproximação inferior à da década anterior, mas ainda assim efectiva).
98
AUGUSTO SANTOS SILVA
de serem beneficiários do abono de família, a gratuidade dos medicamentos
genéricos para pensionistas com rendimentos inferiores ao salário mínimo ou
a majoração dos abonos em caso de famílias numerosas ou monoparentais. O
próximo passo indispensável – já prenunciado na moção de estratégia do PS
para o biénio 2009-2011 – é a intervenção redistributiva no sistema fiscal.
5. Uma dupla demarcação política
Situo-me no registo da Finisterra: “Revista de Reflexão e Crítica”. A experiência dos socialistas portugueses no combate aos efeitos da crise económica
mundial pode constituir objecto de escrutínio analítico de concretas políticas públicas e de
motivo para debate intelectual, quer internamente à esquerda democrática quer na
contraposição entre esta e os demais campos políticos.
Pessoalmente, insisto numa dupla demarcação, que julgo ver em cada uma e na
soma das direcções estratégicas que atrás sumariei. E o caso português talvez seja
paradigmático, pela clareza das opções em causa. O centro-direita protagonizado pelo PSD tem oscilado muito, em função da sucessão de circunstâncias
e lideranças. Mas a aversão ao investimento público, a denúncia do “excesso”
de Estado, a defesa de “sistemas mistos”, segundo a doutrina dita da liberdade de escolha, na saúde, educação ou segurança social, e a exortação à descida
generalizada, isto é, sem contrapartida nem selectividade, dos encargos fiscais e
contributivos das empresas, traçam um quadro suficientemente diferenciado e
contraditório com a estratégia seguida pelo PS3.
Mas não é menos forte a clivagem entre as esquerdas. E em pontos absolutamente decisivos. A defesa da sustentabilidade da segurança social, a promoção
da equidade entre gerações, sectores e grupos profissionais e o aprofundamento
dos mecanismos de fiscalização da atribuição de prestações sociais são responsabilidades fundamentais daqueles que são favoráveis ao Estado-Providência, que
eles não devem enjeitar nem transferir para terceiros. Ora, a atitude prevalecente
nas forças de esquerda comunista e revolucionária acaba por convergir com a da
direita: por razões diferentes, esta porque desgradua o modelo social de forte
componente pública, aquela porque desconfia de qualquer mudança do statu
3
A direita propriamente dita, representada no CDS-PP, apresenta algumas nuances, quer de natureza doutrinária quer de ordem táctica. Elas não são, contudo, centrais para o tema e o argumento deste artigo.
99
UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE
quo (o que a leva, aliás, regularmente à posição absurda de defender hoje o que
ontem combateu…), ambas se perfilam em contramão do processo de sustentação financeira e legitimação social dos serviços públicos.
E coisa análoga se passa com o entendimento da nova geração de políticas
sociais. Os liberais e a direita mais conservadora são claros na sua defesa da redução
do Estado social à provisão de mínimos. A garantia mais básica e para os mais
desapossados – aqueles em que nenhum prestador privado estará interessado…
– competiria ao Estado (e até, desejavelmente, por intermediação de instituições
sociais); acima dela, “liberdade de escolha” entre serviços públicos e privados, com
cobertura pública de riscos e/ou igual financiamento público do utente do sector
privado. Mas a posição da esquerda conservacionista é quase simétrica: nenhum
espaço para a responsabilidade individual, concepção dos direitos sociais apenas
como créditos dos cidadãos sobre o Estado e, sobretudo, um entendimento tipicamente formalista da igualdade, que na prática beneficia fortemente, em termos
comparativos, os grupos sociais e profissionais mais protegidos do risco social.
Ora, a estas duas orientações contrapõe-se, sem grande equívoco, a defesa
da combinação entre universalidade dos sistemas sociais – que justamente os
afirma como factores de coesão social e nacional – e selectividade das políticas
de solidariedade – que se devem pautar pelo princípio da equidade, tratando
positivamente aqueles que estão em situação mais vulnerável. O debate sobre
o tipo de rendimentos a considerar para a satisfação da condição de recursos
no complemento solidário para idosos, sobre a existência e incidência de taxas
moderadoras do acesso a cuidados de saúde ou sobre a orientação da extensão
da acção social escolar, é, pois, um debate necessário, não só pela obrigação de
afectação eficiente de recursos escassos como também pela questão politicamente crítica da definição da justiça distributiva4.
4
Há também, neste ponto, uma divergência não despicienda entre responsabilidade e demagogia. Que vem ao de cima em
circunstâncias como as actuais, em que a esquerda democrática se confronta com oposições à sua esquerda e à sua direita, não
sendo raro que elas convirjam em posições logicamente absurdas, mas aparentemente potenciadoras de fogo de barragem sobre
o Governo. Para dar um exemplo absolutamente evidente, recordarei o debate parlamentar de 23 de Janeiro de 2009, sobre
a proposta de lei 239/X, oriunda da Assembleia Legislativa da Madeira. Ela propunha que, durante o ano de 2009 e, eventualmente, 2010, o Estado pagasse 50% dos juros suportados pelas famílias com empréstimos bancários para habitação própria
permanente – independentemente do regime de crédito e do rendimento das famílias. É difícil imaginar uma proposta mais
cínica – apresentada pela Região Autónoma da Madeira à conta da República – financeiramente mais irresponsável – porque
os custos seriam da ordem dos milhares de milhões de euros – e, sobretudo, socialmente injusta – porque, com o dinheiro de
todos os contribuintes, beneficiaria mais as famílias com melhores condições. Na votação parlamentar, a proposta, rejeitada
por força do voto contrário do Partido Socialista, contou com a aprovação de CDS, PSD, PCP, PEV e BE…
100
AUGUSTO SANTOS SILVA
Finalmente, a agenda de modernização. Nas suas diversas declinações – de
que são exemplos actuais, entre nós, as polémicas em torno dos programas
Simplex, Novas Oportunidades e Magalhães, em torno da revisão da legislação
laboral ou mesmo, em certos sectores, é certo que mais restritos, em torno das
energias renováveis (sobretudo hídrica). Também aqui me parece essencial que
a esquerda democrática se coloque sem ambiguidades no lugar (e no tempo)
da modernização, e saiba combinar, como vem fazendo, a dinâmica reformista
nos grandes sistemas públicos com igual impulso modernizador no domínio
dos direitos pessoais. E só é pena que, demarcando-se assim, aqui como na
generalidade da Europa, da esquerda do imobilismo no plano económico e
do Estado social, e da direita conservadora no plano dos direitos (como bem
se viu nos debates em torno da paridade nas listas eleitorais, da reprodução
medicamente assistida, do regime jurídico do divórcio, da educação sexual ou
da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, e se verá certamente a
propósito do casamento entre pessoas do mesmo sexo), a esquerda democrática portuguesa continue a não ter à sua direita, ao contrário do que sucede em
vários países europeus, uma força liberal capaz de ser sua interlocutora nessa
agenda de modernização dos costumes e valoração dos direitos.
6. Na conjuntura e para além dela
Nas políticas públicas de combate aos efeitos da crise mundial encontrase, por conseguinte, vasta cópia de temas para o debate de ideias. Fazendo-o
a partir da perspectiva da esquerda democrática europeia e norte-americana,
quero sustentar, para efeitos de eventual discussão, que defender a disciplina
financeira e a sustentabilidade do Estado social, promover a modernização e
a competitividade, seguir os princípios de equidade na esfera redistributiva e
usar de selectividade e foco nas políticas públicas, é um traço característico e
diferenciador da esquerda que se não resigna a canalizar o protesto e que se não
deixa capturar, a pretexto de combater o “poder dominante”, pelos poderes
corporativos e sectoriais.
Isto não significa que baste esta estratégia para superar a crise. Ou, mais
precisamente: que a envergadura actual das políticas económicas e sociais dos
Estados esteja ajustada à profundidade da recessão e aos riscos sociais associados.
Uma política resulta de combinações conjunturais de instrumentos limitados,
101
UMA ESTRATÉGIA DE ESQUERDA PARA ENFRENTAR A CRISE
disponíveis e total ou parcialmente alternativos. Por isso, creio que a própria
evolução da crise também ditará a evolução das políticas.
Restam três pontos essenciais, que correspondem a três lições maiores da
crise. O primeiro é a regulação adequada, e supranacional, dos mercados
financeiros. O segundo é a transparência e responsabilidade pública, a acountability das empresas. O terceiro é a redução das desigualdades sociais. Estas,
que a crise sublinhou serem questões-chave do nosso próximo futuro comum,
são também tópicos persistentes do ideário democrático. Aqui como noutros
planos da cidadania, as urgências do presente reencontram e reforçam os
valores identitários.
Junho de 2009
102
Perante a crise: problemas e perspectivas do
emprego, do trabalho e da equidade social
em Portugal
António Dornelas
E
ste artigo pretende discutir as implicações da crise que se está a
desenvolver à escala planetária para as políticas de emprego, de
protecção social e de regulação do mercado de trabalho.
Para o fazer, começa-se por caracterizar a evolução das relações laborais em Portugal desde a institucionalização da democracia até à
decisão sobre as reformas levadas a cabo entre 2005 e 2008 nos regimes
de emprego, de protecção social e de regulação dos mercados de trabalho e
perspectiva-se o alcance das alterações legislativas delas decorrentes sobre o
sistema de relações laborais.
De seguida, ensaia-se uma caracterização da crise global em curso,
inventariam-se e discutem-se brevemente as perspectivas disponíveis
quanto aos seus impactos e sumariam-se algumas das principais propostas
da esquerda democrática quanto ao modo de enfrentar os actuais desafios
económicos, sociais e políticos.
Por último debatem-se as alternativas estratégicas disponíveis e a sua
aplicação ao caso português.
Antes da crise
Durante o século passado, Portugal viveu quarenta e oito anos sob a
mais longa ditadura da Europa ocidental, abriu caminho para a institucionalização da democracia a partir de 25 de Abril de 1974, promoveu a
descolonização das suas ex-colónias e integrou meio milhão de cidadãos
nacionais que retornaram a Portugal em pouco mais de um ano, aprovou
a Constituição da República em 1976, tornou-se membro da Comunidade
Económica Europeia em 1986, integrou a zona euro desde o início (1999)
e substituiu a circulação do escudo pela do euro em 2002, a primeira data
em que tal foi possível.
Entre 1974 e o início da década de 1980, Portugal institucionalizou um
sistema de relações laborais. Esse processo foi completado com a criação,
103
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
em 1984, do Conselho Permanente de Concertação Social, o que fez com
que cada uma das principais características do sistema actual de relações
laborais reflicta as escolhas dos poderes públicos e dos seus interlocutores
sociais durante os principais episódios do percurso histórico dos últimos
trinta e cinco anos.
De acordo com esta hipótese, o sistema de representação dos interesses
espelharia os conflitos e os resultados da institucionalização da democracia
e da tentativa de criar interlocutores económicos e sociais dos poderes
públicos; a estrutura e o conteúdo da negociação colectiva reflectiriam as
crises económicas e sociais dos anos setenta e oitenta do século passado
e as consequências das políticas utilizadas nesse período para controlar
e corrigir a situação macroeconómica; o modelo de concertação social
reflectiria os conflitos e os compromissos relacionados com a adesão de
Portugal às Comunidades Europeias e os desafios subsequentes decorrentes da integração do país nas instituições europeias, designadamente
as necessidades de adequar o funcionamento da economia portuguesa
aos critérios de Maastricht bem como a de enfrentar a recente crise orçamental num contexto de redução do crescimento económico e de subida
do desemprego.
Submete-se igualmente a debate uma segunda hipótese, segundo a qual
os governos portugueses são o principal actor do triângulo neocorporativista, muito embora as confederações sindicais e patronais desempenhem
um papel relevante na determinação da agenda na concepção das políticas
públicas, mas não na sua implementação.
A instituição da democracia e o pluralismo competitivo das organizações de interesses
A legislação publicada entre o derrube da ditadura e a entrada em
vigor da Constituição de 1976 traduz uma série de compromissos políticos tendentes a promover uma relação privilegiada entre os poderes
públicos e as organizações de interesses existentes, incluindo os sindicatos
e os grémios patronais herdados do corporativismo autoritário. Tal relação
destinou-se a permitir o controlo da explosão reivindicativa que se seguiu
ao 25 de Abril e a permitir a sua gestão de forma aceitável pelas forças
políticas, sociais e económicas que partilhavam as diferentes alavancas de
104
ANTÓNIO DORNELAS
poder relevantes nesse período, todas elas confrontadas coma necessidade
de construir em Portugal uma sociedade diferente da que sustentara a ditadura salazarista e marcelista.
Por isso mesmo, a legislação desse período visou dois efeitos congruentes:
para criar as condições mínimas de gestão da explosão reivindicativa,
promoveu a protecção legal dos interesses económicos e sociais dos trabalhadores; para reforçar a interlocução privilegiada com os representantes
dos trabalhadores e dos empregadores, impôs legalmente a unicidade
sindical e a facilitação da adaptação dos sindicatos e dos grémios corporativos aos critérios mínimos da democracia política.
Com a entrada em vigor da Constituição de 1976, começou a definirse o modelo de sociedade, tornando-se progressivamente mais claro que
ele assentaria na democracia política e na economia de mercado. Em
coerência com esses dois critérios fundamentais, o texto constitucional de
1976 consagrou a liberdade sindical – e a consequente possibilidade de
pluralismo sindical organizativo – e a possibilidade de se criarem comissões
de trabalhadores. Ficou, pois, legalmente definido um modelo de representação dos interesses dos trabalhadores, modelo esse que, com pequenas
alterações, ainda hoje vigora.
Do ponto de vista conceptual, trata-se dum modelo dual, próximo dos
que existem noutras sociedade europeias, em que as comissões de trabalhadores tenderiam a especializar-se nas formas de relacionamento laboral
menos propiciadoras de conflitos laborais explícitos, enquanto o ordenamento legal atribuiu aos sindicatos o monopólio da negociação colectiva e
da declaração da greve lícita. Mas, do ponto de vista prático, a representação dos trabalhadores está hoje quase exclusivamente resumida à que os
sindicatos asseguram, como se mostrará adiante.
Foi neste quadro legal que se desenvolveu o panorama sindical português, actualmente organizado em torno de três modelos sindicais que
competem ao longo dum eixo definido por dois pólos, a CGTP e a UGT.
Tal competição repercute, certamente, a diferente dimensão e composição
social das duas principais organizações sindicais portuguesas. Mas expressa
também um conflito aceso quanto aos papéis publicamente reconhecidos
de cada uma daquelas confederações, eles mesmos relacionados com as
respectivas identidades e estratégias políticas.
105
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
O primeiro modelo é representado pela CGTP, a maior e a mais antiga
das confederações sindicais portuguesas. Originária da fase terminal da
ditadura, tributária das ideologias sindicais típicas do sindicalismo de
classe é dirigida de forma hegemónica pela corrente sindical comunista.
Largamente preponderante na primeira década posterior ao derrube da
ditadura, a CGTP permaneceu até hoje como defensora activa e militante do padrão de relações laborais que precedeu a institucionalização
da concertação social. O segundo modelo é representado pela UGT, cuja
identidade está indissociavelmente ligada a três factos relevantes da história
recente do país: a consagração constitucional da liberdade sindical, que
permitiu a sua criação; a integração europeia, de que foi partidária desde
a sua fundação; a institucionalização da concertação social, pela qual se
bateu. Com os seus líderes predominantemente ligados ao PS e ao PSD,
a UGT tem optado por se associar às principais mudanças do sistema
de relações laborais verificadas em Portugal nas três últimas décadas. O
terceiro modelo é constituído pelo conjunto de organizações sindicais que
recusa a filiação quer na CGTP, quer na UGT e nele avultam alguns sindicatos profissionais cuja expressão é socialmente relevante em segmentos
profissionais capazes de se fazerem reconhecer como interlocutores em
caso de conflito laboral em determinados sectores ou empresas de grande
dimensão.
A segunda característica do movimento sindical português é dada pela
sua crescente fragmentação, pelo declínio da sindicalização e pela sua
escassa presença em muitas organizações de trabalho. De facto, um inquérito realizado em 2007 a uma amostra representativa dos trabalhadores
portugueses mostrou que: é elevado – e semelhante ao verificado noutros
países europeus - o apreço dos trabalhadores pelo papel do sindicalismo
quer para a segurança de emprego, quer para a melhoria das condições de
trabalho; a taxa de sindicalização total será de cerca de 19%; 69% dos assalariados entrevistados nunca tinha sido sindicalizado; a sindicalização varia
apenas marginalmente com o género mas significativamente com a idade e
o tipo de contrato; os respondentes consideram a CGTP mais “atractiva” e
mais “eficaz” do que a UGT, enquanto a maioria - 62% e 53%, respectivamente - declararam não considerar “atractivo” ou “eficaz” nenhum dos
sindicatos existentes em Portugal; não existirá qualquer forma de represen106
ANTÓNIO DORNELAS
tação colectiva dos trabalhadores em 2/3 das empresas onde os inquiridos
trabalham (Dornelas, no prelo).
Do lado dos empregadores é também manifesta a elevada fragmentação organizativa, sendo igualmente muito marcados os traços da origem
histórica das organizações, sendo distinguíveis dois tipos de associações de
empregadores. O primeiro tipo, as confederações patronais, todas criadas
depois de 1975, inclui entre os seus associados as associações patronais que
se criaram a partir dos grémios corporativos e é responsável pela representação social dos empresários, isto é, pela coordenação das actividades
dos empregadores na negociação colectiva e na concertação social. A CIP,
a CAP, a CCP e a CTP – todas com assento na concertação social – são
as quatro confederações mais importantes. O segundo tipo de associações é constituído pelas associações empresariais – de que a AIP e a AEP
constituem os expoentes principais – e toma seu cargo a representação
dos interesses económicos dos empregadores mas não a sua participação
na negociação colectiva ou na concertação social. Assim, o associativismo
patronal revela, tal como o sindical: a existência de alguma concorrência
entre confederações patronais, tanto no plano da representação sectorial,
como no da orientação política; a existência de um conjunto muito significativo de organizações patronais que não se encontra filiada em nenhuma
das confederações (Cerdeira e Padilha, 1998); a inexistência de uma organização que congregue a totalidade do patronato português, apesar das
várias tentativas feitas ao longo do último quarto de século. Uma estimativa
recente da representatividade patronal (Visser, 2004) situa-a no intervalo
51-60%.
A legislação laboral nas sucessivas crises: da restrição da negociação
colectiva à institucionalização da concertação social
A institucionalização do estado de direito democrático teve lugar num
contexto de profunda crise económica e empresarial, em que as consequências do primeiro choque petrolífero, a descolonização e a explosão
reivindicativa que se seguiu ao derrube da ditadura levaram muitos empresários a abandonarem o país e as empresas.
Foi nesse contexto de crise multidimensional que se deram os primeiros
passos para a institucionalização do sistema de relações industriais e se
107
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
definiu um modelo de contratação colectiva de trabalho que começou por
se basear na rede de convenções colectivas de trabalho herdadas da fase
terminal da ditadura. Trata-se de uma rede de convenções colectivas de
trabalho sectorial que, nesse período de crise, foi objecto de três tipos de
mudanças: primeiro, a “verticalização”, isto é a agregação do conjunto dos
grupos profissionais dum mesmo sector económico na mesma convenção
colectiva; segundo, a agregação de várias convenções de diferentes subsectores; terceiro, o uso frequente da extensão erga omnes às empresas e aos
trabalhadores não filiadas nos sindicatos e nas associações patronais subscritores das convenções colectivas de trabalho em questão. Deste modo,
criou-se uma rede alargada de direitos e deveres contratuais colectivos que,
em conjunto com uma legislação laboral então publicada, contribuiu para
estabilizar a situação social, o que aumentou a compatibilidade da economia
de mercado com a democracia política.
Note-se, porém, que a legislação da época é uma legislação de natureza conjuntural, que exibe uma forte presença do Estado na configuração
do sistema de representação de interesses e na regulação do mercado de
trabalho, com limitação do espaço da contratualização formal das relações
de trabalho e da conflitualidade laboral mas que não impediu a negociação informal de empresa (Fernandes 1993). É, também, uma legislação
sensível à conjuntura política - e, por isso, limitadora do poder patronal e
igualitária quanto aos direitos dos trabalhadores, embora pouco permeável
à inovação social e às reivindicações de gestão alternativa das empresas e do
mundo trabalho em que esses anos foram férteis (Lima 1991).
O efeito combinado das reticências patronais à intervenção sindical nas
empresas, duma intervenção governamental forte mas desfavorável ao desenvolvimento da autonomia contratual colectiva e da redução progressiva do
poder sindical, decorrente do pluralismo sindical politicamente competitivo,
levou a que o potencial regulador da negociação colectiva fosse sacrificado à
produção rápida duma rede de convenções colectivas de tipo sectorial, cujos
conteúdos reproduzem frequentemente a legislação da época.
Boa parte destas convenções colectivas de trabalho está, ainda hoje,
parcialmente em vigor, apesar da negociação dos acordos de empresa,
iniciada no final da década de 70 no sector empresarial do Estado. Tais
acordos constituíram o exemplo mais relevante da articulação dos processos
108
ANTÓNIO DORNELAS
de informação, de consulta e de participação com a negociação colectiva,
até hoje realizado em Portugal.
Gerou-se, assim, uma situação que levou à formulação da hipótese de que
seriam distinguíveis dois subsistemas de negociação colectiva, com lógicas
diferentes: o da contratação colectiva sectorial, com a maior taxa de cobertura, mas com baixo poder de inovação e de regulação socioeconómica; o
dos acordos de empresa, quase exclusivamente no sector empresarial do
Estado, com maior capacidade de inovação, com conteúdos temáticos mais
vastos e menores coeficientes de desajustamento salarial, mas abrangendo
um menor número de empresas e uma percentagem reduzida do total do
emprego do país (Dornelas, 1989).
Com a privatização da generalidade das empresas públicas, a direita
política, então no poder, optou deliberadamente por uma estratégia de
relações laborais que esvaziou de relevância económica e social a negociação
de empresa, criando a situação actual cujo elemento caracterizador é a rede
de convenções colectivas de trabalho sectorial
De facto, o conteúdo das convenções colectivas de trabalho em vigor é,
frequentemente, obsoleto – por exemplo: quanto à duração e à organização
do tempo de trabalho e quanto aos sistemas de classificação profissional
– enquanto a almofada salarial que separa as tabelas salariais das convenções
colectivas de trabalho dos salários totais é elevada e se manteve praticamente estável, pelo menos até 2003 (Dornelas et al., 2006). Esta reduzida
capacidade de regulação da contratação colectiva facilita a manutenção da
situação actual, em que 4/5 dos trabalhadores declaram que os seus salários,
as suas categorias profissionais e os seus horários de trabalho são fixados
sem que se façam sentir os efeitos da contratação colectiva de trabalho ou
qualquer forma de intervenção das suas estruturas de representação colectiva (Dornelas, no prelo).
Assim, as relações laborais em Portugal podem ser definidas como
um sistema em que uma contratação colectiva com uma taxa de cobertura
próxima da média da União Europeia coexiste uma lógica de relacionamento laboral marcada pelo adversarialismo da CGTP, com a fortíssima
competição política entre esta confederação sindical e a UGT, com o
predomínio do unilateralismo patronal e a individualização nas relações
laborais dentro da empresa.
109
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
A institucionalização da concertação social e os seus impactos
O Conselho Permanente de Concertação Social (CPCS) foi criado, em
1984, como um primeiro passo da estratégia de reforço da governabilidade
da sociedade portuguesa julgada indispensável para permitir a adesão do país
à Comunidade Económica Europeia (Lopes: 1993; Dornelas, 1999).
A sobrecarga das reivindicações patronais e sindicais, a necessidade de
reduzir a inflação e de pôr os aumentos salariais portugueses em fase com
os dos restantes países europeus, a procura dum modelo social capaz de
conjugar melhor o aumento da competitividade empresarial, o crescimento
sustentável dos salários e a melhoria das condições de trabalho levaram a que
o CPCS, inicialmente criado como órgão de consulta do governo, se tenha
transformado numa instância relevante de negociação tripartida, apesar das
reticências iniciais da CIP e das críticas, mais duráveis, da CGTP.
O quarto de século que o CPCS tem de existência pode ser dividido em
quatro ciclos políticos, cada um deles correspondente a um ciclo parlamentar
de natureza distinta.
Figura 1 – Ciclos políticos e resultados da concertação social
Ciclo político
PSD (Cavaco Silva)
1985-95
PS (António Guterres)
1995-2002
PSD/CDS-PP
(Durão Barroso;
Santana Lopes)
2002-05
Questões principais
Adesão à CEE e
integração europeia
Conformidade com os
critérios de Maastricht
Crise orçamental e dívida externa
Crise económica e aumento do desemprego
Acordos tripartidos
sobre política salarial
1986; 1990; 1992
1996
2006
Outros acordos tripartidos ad-hoc
1991
1996; 2001
2006; 2007; 2008
Acordos bipartidos
Acordos globais sobre a 1990
regulação do emprego,
da protecção social e a
regulação do mercado
de trabalho
Fonte: elaboração do autor
110
2004
1996
PS (José Socrates)
2005-09
2005
2008
ANTÓNIO DORNELAS
O primeiro ciclo político, que corresponde ao início da concertação
social propriamente dita, inicia-se com os acordos tripartidos que fizeram
da moderação salarial a regra predominante da negociação salarial em
Portugal, inclui a maior greve geral de sempre em Portugal (1988) e, subsequentemente, o primeiro acordo tripartido sobre a regulação do mercado
de trabalho (1990), os dois primeiros acordos tripartidos ad-hoc (1991) e
termina com duas tentativas falhadas de negociação tripartida sobre política de rendimentos e sobre regulação do mercado de trabalho.
O ciclo político correspondente aos governos de António Guterres
constitui uma tentativa de responder à crise da concertação social verificada no fim do ciclo precedente com o relançamento e o aprofundamento
da lógica neocorporativista, tentando ultrapassar quer os problemas
procedimentais, quer os problemas substantivos herdados do ciclo político anterior. Entre as questões de procedimento avultam, desde então,
dois problemas: primeiro, o do momento óptimo para a celebração de
acordos tripartidos, que os parceiros sociais tentaram localizar no início
da legislatura e os Governos de Cavaco Silva preferiam fazer aproximar
do extremo oposto do seu mandato; segundo, a questão da unanimidade
entre os parceiros sociais, abordada adiante.
O terceiro e o quarto ciclos correspondem a duas estratégias governamentais diferentes de resposta a problemas análogos: a desconformidade
das contas públicas com os critérios do Pacto de Estabilidade e Crescimento
(PEC) e o crescimento do desemprego. Assim, no ciclo dos governos
PSD/CDS-PP, verifica-se a periferização da concertação social, o que se
traduziu pela ausência de qualquer acordo de concertação social e pela assinatura (2005) do primeiro dos dois únicos acordo bipartidos até agora
assinados em Portugal. O quarto ciclo – que está actualmente em curso
– corresponde aos governos PS de José Sócrates, inclui o segundo acordo
bipartido, o único acordo unânime sobre política de rendimentos até agora
obtido em Portugal (2006), quatro acordos tripartidos ad-hoc (2006,
2007 e 2008) e o recente compromisso social tripartido sobre política de
emprego, protecção social e regulação do mercado de trabalho.
Como notou recentemente Jelle Visser, Portugal foi o país da União
Europeia onde, durante a década em curso, foi mais intensa a actividade
de concertação social.
111
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
Figura 2 – Actividades de concertação social na União Europeia (200-2007)
Fonte: Visser, Jelle: EC, Industrial Relations in Europe, 2008: 52
Ora, como no terceiro ciclo político não foi formalizado qualquer
acordo tripartido, há que retirar duas conclusões: primeira, que os governos
e os ciclos político-parlamentares têm influência relevante na actividade
de concertação social; segunda, que o ciclo Durão Barroso/Santana Lopes
– como, aliás, o Governo Cavaco Silva até à greve de 1988 – influenciaram
negativamente o desenvolvimento da concertação social.
Uma outra dimensão a considerar diz respeito à subscrição das confederações sindicais e patronais nos acordos de concertação social. A análise dos
acordos verificados entre 1986 e 2008 mostra: primeiro, que os acordos
bipartidos – 2 em 21 - são mais recentes e menos frequentes do que os
acordos tripartidos; segundo, que a unanimidade – 7 acordos em 21 – é a
excepção, não a regra; terceiro, que as recusas de subscrição são quatro vezes
mais frequentes do lado sindical do que lado patronal; quarto, que, do lado
sindical, apenas a CGTP recusou subscrever acordos e que essa decisão – 12
recusas de subscrição em 19 acordos tripartidos – constitui uma das marcas
da concertação social em Portugal; quinto, que, desde 2006, a CGTP
recusou subscrever qualquer dos acordos de concertação social.
A terceira dimensão de análise diz respeito aos temas dos acordos de
concertação social.
112
ANTÓNIO DORNELAS
Figura 3 – Conteúdos dos acordos de concertação social em Portugal (1986-2008)
PAPEL DOS
PARCEIROS SOCIAIS
NA IMPLEMENTAÇÃO
ANO TEMAS
ACORDO
IMPACTO
1986 Moderação salarial
1990
1992
1996
Maioria
Elevado
Forte e generalizado,
apesar da oposição
da CGTP
1996 Criação do Rendimento
Mínimo Garantido
Unanimidade
expost
Elevado
Reduzido
2006 Reforma do Subsídio de Desemprego Unanimidade
Elevado
Reduzido
2006 Aumento sustentado do Salário
Mínimo Nacional
Elevado
Reduzido
Unanimidade
2001 Direito individual à formação
Unanimidade em 2001; Elevado quanto
2007 Reconhecimento e certificação das
maioria em 2007
ao RVCC
qualificações adquiridas no exercício
da profissão (RVCC)
Reduzido
1991 Quadro legal da segurança, higiene e Unanimidade
2001 saúde no trabalho
Reduzido
Reduzido
2001 Quadro legal da protecção social
Unanimidade
Elevado
Reduzido
2001 Aumento da sustentabilidade da
2006 segurança social
Maioria
Elevado
Reduzido
1990 Acordos globais sobre a regulação
1996 do emprego, da protecção social e a
2008 regulação do mercado de trabalho
Maioria
1990: Elevado
1990 e 1996: Reduzido,
1996: tendencialmente forte oposição da CGTP
reduzido
2008: ?
2008: ?
Fonte: elaboração do autor
A síntese dos temas constantes dos acordos de concertação social apresentada na figura acima mostra que as escolhas políticas e a orientação ideológica
dos actores do triângulo neocorporativo constituem traços relevantes da
caracterização do topo do sistema de relações laborais e ajudam a compreender a frequente ausência de consenso quanto à renovação da agenda da
negociação colectiva.
Uma análise horizontal de três dos temas acima mencionados parece
confirmar esta tese, sugerindo que, mesmo que a agenda temática da
113
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
concertação social seja modulada para obter, sempre que possível, a
unanimidade dos parceiros sociais, tal não garante, por si só, que os resultados
sejam transpostos para a contratação colectiva de trabalho.
No que respeita às políticas salariais, o caso português sugere que, uma vez
adoptada na concertação social a decisão de alterar os critérios de actualização
das tabelas salariais e decorridos alguns anos de aplicação da decisão, mesmo
que a maior confederação sindical se pronuncie reiteradamente contra a
política salarial adoptada, pode não ser necessária a sua revalidação no topo
tripartido do sistema de intermediação de interesses para que a política de
remunerações continue a respeitar o princípio da moderação salarial. De
facto, desde que a almofada salarial que separa as tabelas salariais dos salários
efectivamente recebidos pelos trabalhadores seja suficiente para acomodar a
individualização das remunerações e a inflação se mantenha baixa, existem
equivalentes funcionais aos acordos de concertação social sobre políticas de
rendimentos. O aumento do salário mínimo nacional e os aumentos dos
vencimentos dos funcionários públicos são exemplos desses equivalentes
funcionais. Porém, se se pretender alterar o modus operandi estabelecido por
acordo - ainda que não unânime - e confirmado por anos de aplicação na
negociação colectiva, pode ser necessário um novo acordo que garanta a legitimação da mudança.
Foi o caso com o acordo de 2006 sobre o aumento sustentado do salário
mínimo nacional em percentagem superior aos aumentos esperados dos
salários mínimos contratualmente fixados. O acordo, neste caso unânime,
estipula que o salário mínimo nacional deve ter um acréscimo de 30% em
cinco anos, um valor significativamente superior aos aumentos que, mesmo
antes da actual crise global, eram expectáveis para as tabelas salariais das
convenções colectivas de trabalho. A solução encontrada baseia-se no controlo
dos efeitos colaterais indesejados por qualquer dos três vértices do triângulo
neocorporativo: os empregadores obtiveram a garantia de que o aumento do
salário mínimo nacional não teria efeitos de bola de neve que pusessem automaticamente em causa os baixos salários de alguns sectores económicos; os
sindicatos obtiveram uma vitória altamente simbólica com impactos efectivos
– mas não automáticos! – na parte inferior das tabelas salariais dos sectores
de trabalho intensivo e baixo nível de remunerações; o governo manteve a
possibilidade de controlar a despesa pública com as prestações sociais, desin114
ANTÓNIO DORNELAS
dexando-as do valor do salário mínimo nacional. É, porém, indispensável
reconhecer que, pelo menos no plano formal, é limitado o entendimento
comum dos problemas a resolver pelo acordo. De facto, no texto respectivo
não há qualquer referência formal ao princípio da moderação salarial, aceite
pela UGT desde 1986 mais ainda hoje formalmente recusado pela CGTP; os
empresários obtiveram uma redução da pressão para o aumento dos salários
dos trabalhadores pobres (working poor) sem terem de abrir um debate global
sobre a política salarial e a desigualdade; o governo pôde adoptar um instrumento de política laboral e social de grande impacto sem induzir um efeito
de contaminação das prestações sociais, uma opção inviável no contexto
orçamental da época.
A política sobre duração e organização do tempo de trabalho constitui outra
ilustração relevante da relação problemática entre aos acordos de concertação
social e a contratação colectiva de trabalho. O Acordo Económico e Social
(1990) estabeleceu o princípio de que a redução do tempo de trabalho seria
realizada pelo uso convergente da legislação e da contratação colectiva de
trabalho. Nos termos então previstos, a legislação reduziria, como reduziu,
de 48 para 44 horas a duração semanal do período normal de trabalho,
devendo a redução das 44 para as 40 horas ser completada, em cinco anos,
por negociação colectiva, que deveria igualmente regular as formas de adaptabilidade do tempo de trabalho a aplicar em cada sector. Porém, em 1995,
em consequência do desacordo verificado em inúmeras unidades negociais
quanto ao modo de combinar a redução da duração com o aumento da
adaptabilidade do tempo de trabalho, continuava a haver mais de 1 milhão
de trabalhadores com horários superiores a 40 horas. A solução encontrada pelos parceiros sociais no início do mandato do primeiro governo de
António Guterres foi, mutatis mutandis, análoga: as confederações patronais
reivindicaram que se legislasse sobre a flexibilidade e a polivalência; as confederações sindicais reclamaram que a lei reduzisse para 40 horas a duração
semanal do tempo normal de trabalho. O governo da época, adepto público
da concertação social, optou pela única solução possível para sair do impasse:
promoveu a negociação do Acordo de Concertação Social de Curto Prazo
(ACSCP), que assinou em 1996 com todos os parceiros sociais excepto a
CGTP, e, em consequência desse acordo, publicou a legislação que dava
força vinculativa ao compromisso tripartido revalidado. Os resultados são
115
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
conhecidos: foi despoletada uma vaga de greves sectoriais, particularmente
durável no sector dos têxteis e confecções e o problema só foi resolvido com
a intermediação dos poderes públicos na construção de soluções casuísticas
que se prolongaram até ao mandato do actual governo.
A evolução no domínio da protecção social é diferente, o que, indirectamente, confirma a tese que se vem sustentando. Em primeiro lugar, porque
apenas em 2001 a protecção social começou a ser tratada como questão autónoma na concertação social e, ainda assim, essa extensão da agenda não foi
sempre respeitada. De facto, uma das medidas mais inovadoras desde meados
dos anos noventa – a criação, em 1996, do Rendimento Mínimo Garantido
– foi adoptada com uma participação menor dos parceiros sociais. O mesmo
aconteceu, em 2006, com a criação do Complemento Solidário para Idosos.
Em segundo lugar, e ao contrário do que vem acontecendo noutros domínios, a larguíssima maioria das medidas adoptadas desde 2001 ou já está a
ser aplicada ou foi substituída por medidas julgadas mais adequadas à situação presente, como aconteceu recentemente com a introdução do chamado
“factor de sustentabilidade” das pensões. Apesar destas especificidades, desde
o último governo de António Guterres que o papel dos parceiros sociais na
determinação da agenda é suficientemente relevante para que o conteúdo
dos acordos de concertação sobre protecção social seja modulado para tentar
obter o consenso da CGTP no maior número de matérias possíveis. Foi o
que aconteceu quer em 2001, quer em 2006, com a diferença de que, ao
contrário do que se passou em 2001, na data mais recente o governo não
conseguiu obter o acordo unânime que também agora desejava.
A análise dos acordos globais sobre a regulação do emprego, da protecção
social e a regulação do mercado de trabalho parece confirmar que continuam
por resolver de forma consistente quatro problemas principais.
O primeiro problema é o da legitimidade e da utilidade de acordos de
concertação social que não incluam todas as confederações patronais e sindicais com um papel activo na concertação social. Se a questão da legitimidade
se põe independentemente do maior ou menor papel da contratação colectiva de trabalho na aplicação do acordo, o problema da utilidade dos acordos
não unânimes é potencialmente mais grave nos casos em que a negociação
colectiva constitui um instrumento muito importante para a realização dos
compromissos tripartidos alcançados na concertação social e, como frequen116
ANTÓNIO DORNELAS
temente acontece, a CGTP nega a sua assinatura. Ainda assim, a experiência
das duas décadas e meia de concertação social sugere que o poder de veto
das confederações com assento na concertação social, sendo relevante, não
é sempre absoluto e não parece ser definitivo, tal como se mostrou acima
quanto à política salarial e quanto tempo de trabalho.
A segunda questão, directamente relacionada com a anterior, é a da capacidade das entidades subscritoras de acordos – bipartidos ou tripartidos,
unânimes ou apenas maioritários – celebrados com os parceiros sociais
transporem para a negociação colectiva realizada pelas organizações que ali
representam. Pelo menos até agora, essa capacidade tem-se mostrado muito
limitada.
O terceiro quesito é o das fronteiras que podem ou devem limitar a
concertação social, ou, se se preferir, a definição dos temas em relação aos
quais é aceitável entender as confederações sindicais e patronais como interlocutores preferenciais do governo.
A quarta dúvida respeita aos modos de tornar compatíveis os consensos
tripartidos obtidos na concertação social com as competências específicas de
outros órgãos do estado de direito democrático, especialmente quando os
acordos de concertação social incluem medidas da competência reservada da
Assembleia da República.
Desenvolvimentos recentes
No início da actual legislatura, Portugal estava fora dos limites fixados
pelo PEC; o PIB per capita tinha estagnado globalmente entre 2000 e 2005;
a convergência com a média comunitária dos níveis de vida tinha sido
substituída pela tendência oposta; o desemprego total estava a crescer e o
desemprego de longa duração tinha aumentado de 1,7% da população activa
no ano 2000 para 3,8% em 2006; entre 1995 e 2005 os custos reais unitários do trabalho cresceram sempre acima da média da UE25; a produtividade
por hora trabalhada (63% da média da UE15 em 2000) deixou de convergir
para média comunitária desde então.
Tendo em conta a necessidade de repor o país dentro dos limites fixados
pelo PEC, o governo de José Sócrates adoptou uma estratégia global de
reforma estrutural que visou quer a administração pública, quer o sector
privado da economia e que incluiu medidas quer do lado da procura, quer
117
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
do lado da oferta. Mas, ao contrário dos governos Barroso e Santana Lopes,
e para enfrentar os mesmos problemas que se punham no ciclo político
anterior, o actual governo do PS promoveu o desenvolvimento da concertação social.
Como se sabe, no que respeita à administração pública, as medidas adoptadas incluíram reformas visando a consolidação fiscal, a controlo dos custos
da administração pública, especialmente através da racionalização da estrutura organizativa desta, a simplificação dos procedimentos administrativos e
a convergência do sistema de emprego e de protecção social da administração
pública com os padrões do sector privado (OECD, 2008). Tais medidas
motivaram um aumento da conflitualidade laboral e política na administração pública que envolveu quer os sindicatos da CGTP, quer os da UGT.
Porém, enquanto o conflito para o regime geral terminou com um acordo
com os sindicatos da UGT, os sindicatos da CGTP recusaram esse acordo e
mantiveram as manifestações de protesto político contra o governo de José
Sócrates. No sector da educação, apesar dum memorando de entendimento
assinado a meio do percurso contestatário com os sindicatos da CGTP e da
UGT, o conflito permanece aberto, embora aparentemente menos expressivo, pelo menos que respeita à reestruturação das carreiras docentes e à
gestão das escolas.
Quanto ao sector privado, a estratégia de reforma do governo em funções
estruturou-se em três vectores principais: reduzir os baixos níveis de qualificação da população, aumentar a sustentabilidade financeira da segurança
social pública e reformar o sistema de regulação dos mercados de trabalho.
A estratégia de qualificação incluiu, pela primeira vez em proporções
significativas, quer medidas destinadas à população jovem quer instrumentos
de intervenção quanto à população adulta. Entre os primeiros, salientam-se
as medidas de diversificação dos curricula escolares e o aumento das formações profissionalizantes de dupla certificação, escolar e profissional. As
principais medidas destinadas à população adulta postas em prática foram:
o desenvolvimento do sistema, lançado durante os governos Guterres, de
reconhecimento, validação e certificação das competências adquiridas no
trabalho, de modo a permitir a aquisição rápida de níveis mais levados de
educação; a renovação e o aumento das oportunidades de formação profissional; a integração na educação formal dos adultos com menos de nove anos
118
ANTÓNIO DORNELAS
de escolarização. Assim, as políticas adoptadas baseiam-se na mesma análise
da situação feita anteriormente e no reforço de medidas que não se afastam
das que foram anteriormente consagradas pelos acordos unânimes de 1991 e
de 2001. Porém, em 2007, a CGTP recusou subscrever o acordo de concertação que as desenvolveu.
O aumento da sustentabilidade financeira da segurança social compreende dois programas gémeos: a convergência dos direitos e deveres dos
trabalhadores da administração pública com os padrões em vigor no sector
privado, de modo a reduzir a despesa pública com a administração pública
e a reforçar a legitimidade das reformas no sector privado; modificar as
regras de cálculo das pensões do sector privado e ligar a idade de referência
para a reforma à esperança média de vida nessa data. Para além da alteração
do subsídio de desemprego, feita na sequência dum acordo de um acordo
tripartido unânime (2006), os conteúdos dos acordos de concertação
seguem uma modulação análoga à que, em 2001, permitiu ao governo da
época obter o acordo da CGTP para todos eles excepto o que respeitava à
eventual introdução de limites opcionais para as contribuições para a segurança social (2001). Em 2006, de forma análoga ao que se verificou quanto
aos acordos mais recentes sobre educação e formação, a CGTP recusou subscrever qualquer deles.
A reforma do enquadramento regulador das relações laborais baseou-se
no acordo tripartido de 2008 e está actualmente a iniciar a sua aplicação.
Comparado com o Acordo de Concertação Estratégica de 1996 e com o Código
do Trabalho de 2003, o acordo de 2008 revela diferenças relevantes.
O compromisso tripartido de 2008 distingue-se dos anteriores acordos
globais sobre a regulação do mercado de trabalho de 1996 quer por razões
metodológicas, quer por razões substantivas. Por razões metodológicas
porque o governo fez analisar e publicar os resultados obtidos por um grupo
de especialistas quanto aos principais problemas detectados – o Livro Verde
sobre as Relações Laborais (Dornelas et al., 2006) e, depois disso, constituiu uma comissão independente de peritos a quem incumbiu de apresentar
recomendações e propostas de solução para os problemas anteriormente
identificados. O resultado dos trabalhos dessa comissão – o Livro Branco
das Relações Laborais – foi igualmente publicado previamente ao debate da
proposta do governo. Deste modo, a determinação da agenda ficou desde
119
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
logo condicionada a exigências de fundamentação dos pontos a incluir, o
que reduziu a margem de manobra dos poderes de veto tradicionais. Do
ponto de vista substantivo, o compromisso tripartido de 2008 é muito mais
focado nos problemas específicos da regulação do mercado de trabalho e
na integração vertical das respostas aos principais problemas identificados:
a reduzida capacidade de adaptação das empresas e dos trabalhadores à
mudança económica e social; a rigidez formal do quadro legal; os altos níveis
de emprego precário e a elevada segmentação dos mercados de trabalho.
O acordo de 2008 distingue-se também do Código do Trabalho de 2003,
quer do ponto de vista metodológico, quer do ponto de vista substantivo. Do
ponto de vista metodológico porque, para além das razões mencionadas no
parágrafo precedente, se baseia num compromisso tripartido, ao contrário
do que aconteceu em 2003. Do ponto de vista substantivo, porque a lógica
das medidas adoptadas é a oposta: em vez da redução do poder sindical na
negociação colectiva promovida pelo Código de 2003, o Código de 2009
reequilibra os poderes das partes contratantes e permite a submissão da
recusa de negociar a procedimentos de mediação e de arbitragem; em vez da
estratégia de flexibilização externa através da facilitação do emprego precário
adoptada em 2003, o Código de 2009 baseia-se na promoção da adaptabilidade interna, na redução – pela legislação laboral e pelo diferencial dos
custos não salariais - das formas precárias de emprego. Dito de outro modo, o
Código de 2009 substitui a estratégia de “flexibilização na margem” (Regini,
2003) e de redução do poder sindical adoptada pelo governo Barroso por
uma estratégia: de des-segmentação dos mercados de trabalho; de contenção
da flexibilização externa mediante a promoção da adaptabilidade interna
negociada; de regulação negociada da mudança mediante a criação de possibilidades de combinação virtuosa da legislação com a contratação colectiva de
trabalho; de reforço da protecção da mobilidade interna e externa. Ainda
assim, a posição da CGTP foi a de recusar o compromisso tripartido.
Põe-se, portanto, a questão de saber o que concluir, antes da crise global
que assola actualmente as economias e as sociedades do mundo inteiro, sobre
o sistema de relações laborais existente em Portugal.
Apesar dos enormes progressos sociais realizados nas últimas três décadas,
Portugal permanece um país de baixos padrões laborais (Crouch, 1993;
1996).
120
ANTÓNIO DORNELAS
De facto, alguns autores (Rhodes, 2001; Hancké e Rhodes, 2005)
sublinham que os requisitos clássicos do neocorporativismo estão apenas
parcialmente presentes em Portugal e que os acordos tripartidos até agora
realizados se têm revelado potencialmente instáveis (Pochet, 1998) ou mesmo
falhados (Hassel in Gröte e Schmitter, 1999). Noutro sentido, pode argumentar-se que, dada a transformação das lógicas neocorporativas (Traxler,
2004; Siegel, 2005), a questão dos pré-requisitos neocorporativos assume
um menor relevo. Mas, ainda assim, carecem de explicação consistente os
motivos que levam a que a unanimidade seja a excepção e não a regra da
concertação social em Portugal bem como as razões que levam à inconsistência dos acordos de concertação social e à sua aplicação apenas parcial.
Um hipótese de interpretação destes dois factos parte da verificação
de que as relações laborais em Portugal resultam da bricolage institucional
(Campbell, 2007; Crouch, 2007) de elementos herdados de diferentes
fases do desenvolvimento do sistema que ainda não se traduziu num novo
sistema coerente.
Figura 4 – Principais problemas das relações laborais em Portugal
ELEMENTO
PROBLEMA
Sistema de representação
de interesses
Elevada fragmentação
Forte competição política entre sindicatos, entre associações patronais
Negociação colectiva
Predomínio do relacionamento antagonista
Ausência de coordenação entre níveis de decisão
Obsolescência progressiva dos conteúdos
Concertação social
Circunscrita ao topo
Reduzida influência na contratação colectiva de trabalho
Submetida aos ciclos políticos
Fonte: elaboração do autor
Esta incoerência sistémica caracterizar-se-ia pela coexistência de
elementos com lógicas distintas e conflituantes entre si nos diferentes níveis
potenciais de regulação. Assim: ao nível de empresa predominaria o unilateralismo patronal combinado com a individualização das relações laborais;
ao nível sectorial, o traço fundamental do sistema seria a existência duma
contratação colectiva com elevada taxa de cobertura mas uma baixa capa121
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
cidade de regulação; o nível de topo, seria principalmente marcado pela
preponderância do papel dos governos e, quando os governos favorecem
esta forma de governança, pelo papel dos parceiros sociais na definição da
agenda da concertação social e no condicionamento das soluções viáveis
mas não na aplicação das políticas públicas decorrentes das decisões constantes dos acordos ou na transposição desses acordos para a contratação
colectiva de trabalho.
Dado o diferencial de poder dos governos em relação aos parceiros
sociais e a preponderância do antagonismo nas relações entre as confederações patronais e sindicais, as respectivas posições na concertação social
quadram-se particularmente bem com a hipótese (Hirschman, 1970),
segundo a qual o descontentamento e a reivindicação perante o governo
(voice) predominariam face à participação convicta (loyalty), de modo a
evitar um abandono (exit) cujas consequências poderiam ser particularmente nocivas para uma organização de interesses forçada a competir quer
com os seus pares, quer com os representantes dos poderes e dos interesses
adversários.
Mas, se assim é, deve concluir-se que a situação actual tem potencialidades quer para se manter instável, quer para evoluir em direcção a um
modelo de mercado mais liberal, quer para uma economia de mercado
mais coordenada (Hall e Soskice, 2001). Dito de outro modo, no futuro,
os pactos sociais em Portugal podem aproximar-se mais quer de “coligações entre fracos e moderados” (Baccaro e Lim, 2007), quer, em sentido
oposto, dos produtos típicos dum “neocorporativismo magro”, em que a
organização em rede substitui a hierarquia e a “descentralização organizada” fornece uma alternativa especialmente adequada quer à centralização,
quer à descentralização absoluta das relações laborais (Traxler, 2004).
Perante a crise
A globalização tem, na ausência duma regulação eficiente e supranacional da sua dimensão social, como aconteceu durante as décadas em que
as ideologias neoliberais predominaram, profundas consequências quer
nas condições de competição empresarial, quer nas relações sociais.
Se é certo que os fenómenos de globalização não são novos, o que
diferencia a globalização em curso dos processos de expansão capitalista
122
ANTÓNIO DORNELAS
ocorridos em fases anteriores, é o processo de decomposição das economias nacionais e de posterior rearticulação destas num quadro de operação
crescentemente internacionalizado (Boyer, 1997). É esse processo que terá
levado, por um lado, à redução dos meios ao dispor dos estados-nação para
a orientação das políticas económicas e sociais e, por outro, ao desenvolvimento da interdependência dos diferentes países.
Porém, nem uma coisa nem outra determinaram o fim dos Estadosnação nem a unificação dos modelos de capitalismo. Apesar das pressões
que a financiarização das economias, a transnacionalização dos fluxos
financeiros, as possibilidades crescentes de deslocalização das indústrias e
do investimento directo estrangeiro vieram criar, estamos longe da convergência institucional dos modelos de capitalismo ou dos modelos sociais, quer
dentro da União Europeia, quer, sobretudo, entre os diferentes espaços
regionais supranacionais que coexistem hoje no mundo (Boyer, 2005).
Mas é inegável que a globalização acentuou a tripla assimetria que caracteriza as sociedades em que vivemos (Traxler, 2003). É, em primeiro lugar,
uma assimetria estrutural, porque os empresários dispõem dum leque de
opções muito mais vasto do que o que está ao alcance os trabalhadores.
É, em segundo lugar, uma assimetria nas políticas de regulação porque a
competição fiscal entre os Estados-nação, os processos de recomposição
das economias nacionais e o predomínio das opções políticas e ideológicas
baseadas no chamado consenso de Washington (Held et al., 2005) limitam
as opções politicamente viáveis da intervenção do Estado na regulação do
conflito estrutural nas democracias europeias. É, por último, uma assimetria institucional porque os empregadores têm agora maiores possibilidades
de pôr em causa o modelo de procedimentos e o conteúdo substantivo das
relações laborais característico do compromisso social gerado nas democracias desenvolvidas do pós-guerra.
Acresce que estas consequências da globalização são potenciadas pelo
modelo de construção europeia e pelas transformações estruturais conhecidas pela União Europeia após a queda do Muro de Berlim que, no seu
conjunto, reforçam, a tripla assimetria acima referida.
Em primeiro lugar, o facto de os tratados europeus criarem uma assimetria, desfavorável às questões sociais, quanto à possibilidade de utilização
da hard law, que, no domínio social, fica quase exclusivamente confinada
123
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
às questões da saúde, higiene e segurança no trabalho, da igualdade de
género e da não discriminação. Em segundo lugar, as decisões do Tribunal
Europeu de Justiça, em boa medida dependentes das exigências decorrentes da criação e funcionamento do mercado interno têm contribuído
para debilitar os sistemas sociais nacionais. Em terceiro lugar, os constrangimentos macroeconómicos resultantes da UEM e do Pacto de Estabilidade
e Crescimento, que criam um cenário de restrições financeiras para as
reformas a realizar pelos Estados-membros. Em quarto lugar, o aumento
da diversidade económica e social resultante do alargamento, que dificulta
a aplicação do método comunitário. Em quinto lugar, a manifesta dificuldade em obter consensos políticos no domínio da hard law aplicável às
questões sociais, de que os sucessivos impasses em torno da Directiva sobre
o tempo de trabalho constituem um exemplo bem eloquente. Em sexto
lugar, o método aberto de coordenação, transformado em instrumento
por excelência do desenvolvimento das políticas sociais europeias, mas cuja
aplicação, de geometrias variáveis segundo as matérias em questão (Zeitlin,
2003 e 2005), sugere não só dificuldades particularmente relevantes
no domínio da flexibilidade e da segurança como a existência de tensões
quanto às suas evoluções possíveis (Pochet, 2005). Em sétimo lugar, o
diálogo social europeu, apesar dos esboços promissores de que os acordosquadro são exemplo, não conduziu à criação duma instância de regulação
europeia das relações laborais capaz de coordenar a renovação do compromisso social saído dos anos fordistas.
Nestas circunstâncias, haverá que reconhecer que, apesar da integração
europeia ter contribuído de forma significativa para a definição das agendas
políticas dos Estados-membros (Streeck, 1999), é no plano nacional que
continuam a localizar-se as principais instâncias de regulação do trabalho,
do emprego e da protecção social.
Assim, a versão neoliberal da globalização e um processo de integração europeia centrado na disciplina orçamental criaram uma situação
que produziram dois efeitos negativos para as políticas de emprego e de
protecção social: primeiro, pelo reforço das assimetrias estruturais do capitalismo contemporâneo, limitaram a margem de manobra dos governos
dos Estados-nação; segundo, fazendo radicar nos Estados-membros a
gestão do chamado trilema das economias de serviços (Iversen e Wren,
124
ANTÓNIO DORNELAS
1998) - isto é, a decisão sobre a forma de tentar compatibilizar a disciplina
orçamental, a promoção do emprego e o combate às desigualdades – limitaram a governabilidade da esquerda democrática.
Foi nesta situação que eclodiu a actual crise global, iniciada em 2007 nos
EUA com os créditos ditos subprime do mercado imobiliário norte-americano. Nos meses finais de 2008 já era claro que se estava perante uma crise
sistémica do sector financeiro, primeiro nos EUA e, depois, no resto do
mundo. No início de 2009 a generalidade das organizações internacionais
reconheciam que a crise financeira dera lugar a uma recessão económica
generalizada cuja profundidade, duração previsível e consequências estão
ainda por determinar. Em qualquer caso, a generalidade das organizações internacionais mais importantes (IMF, 2009; ILO, 2009; OECD,
2009) convergem na comparação da actual crise económica com a Grande
Depressão dos anos trinta do século passado e na afirmação de que a crise
actual levará à perda de milhões de empregos à escala planetária, a que a
Europa não conseguirá escapar.
Figura 5 – Previsão da evolução do desemprego entre 2007 e 2010
Fonte: International Monetary Fund, World Economic Outlook, Crisis and Recovery, Abril de 2009. As estimativas acima
reproduzidas, cuja margem erro é potencialmente muito elevada, baseiam-se nas seguintes previsões de variação real do
PIB em 2009 e em 2010: Espanha: -4.2; -0.4; Zona Euro: -4.4; -0.4; Portugal: -4.1; -0.5; Chipre: 0.3; 2.1.
125
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
Do ponto de vista qualitativo, tais previsões não diferem muito das que a
Comissão Europeia publicou em Janeiro de 2009, já que, embora os valores
previstos para o aumento do desemprego entre 2008 e 2010 sejam menores
do que as publicadas pelo FMI, a comparação de Portugal (+1,3%), com a
média da Zona Euro (+2,7%) e com a Espanha (+7,4%) mostra alguma coincidência, o que, porém, não acontece em relação a todos os países europeus
(EC, 2009).
Pelo seu lado, a OIT (ILO, 2009) estima que podem perder-se, à escala
mundial, pelo menos 38 milhões de empregos até ao fim de 2009 e que o
principal risco é uma recessão prolongada do mercado de trabalho, cuja recuperação poderia durar quatro a cinco anos. No conjunto, a OIT prevê que, se
não forem tempestivamente adoptadas as medidas adequadas, a crise global em
curso traduzir-se-ia numa deterioração grave da posição dos trabalhadores,
dos pensionistas e dos desempregados, especialmente acentuada no caso das
mulheres, dos jovens e dos imigrantes. Nos países em desenvolvimento, 40%
a 50% das mulheres e dos homens tornar-se-ão incapazes de ultrapassarem a
linha de pobreza absoluta dos dois dólares norte-americanos por dia.
A avaliação da OIT das medidas adoptadas até às vésperas da reunião de
Londres do G20 é muito negativa, sublinhando o facto de que, até agora,
as medidas são essencialmente de carácter nacional, principalmente constituídas por grandes volumes de apoio financeiro ao sistema financeiro e por
medidas fiscais que não são suficientemente focadas na promoção do emprego
e da dignidade do trabalho. De acordo com esta organização internacional,
se as respostas continuarem a ser basicamente nacionais, aumentam-se os
riscos de, perante o prolongamento da crise, se entrar na espiral isolacionista
em que as respostas proteccionistas se articulam com a deflação salarial e, em
consequência, com o desenvolvimento das possibilidades de criação de situações de desestabilização social, quer nacional, quer internacional.
As propostas da esquerda democrática europeia
A esquerda democrática e, em particular, o Partido Socialista Europeu
(PES), vêm-se batendo, desde muito antes da crise global em curso, contra
a versão neoliberal da globalização, enquanto se pronunciam a favor de uma
Nova Europa Social (Rasmussen e Delors, 2006), que actualize o modelo
social europeu e o adapte à era da globalização. O objectivo principal desta
126
ANTÓNIO DORNELAS
estratégia é adaptar o modelo social europeu à diversidade crescente das populações europeias, ao envelhecimento das sociedades europeias e às ameaças da
mudança climática de modo a torná-lo mais capaz de contrariar o crescimento
das desigualdades entre pobres e ricos, jovens e idosos, mulheres e homens.
O argumento de base consiste na afirmação de que é possível e necessária
uma nova governança a múltiplos níveis – local, regional, nacional, europeu
e mundial – que permita enfrentar os problemas sociais existentes e combater
os riscos sociais emergentes através da construção duma nova articulação
virtuosa entre um crescimento económico mais sustentável do ponto de vista
ambiental, socialmente mais equitativo mas não menos competitivo. A alternativa proposta consiste em opor: à privatização, a reforma da administração
e dos serviços públicos; à desregulamentação dos mercados de trabalho, a
promoção da adaptabilidade interna e da protecção da mobilidade dos trabalhadores; ao dumping social, a reforma das políticas públicas de promoção do
pleno emprego e da equidade social (Rasmussen e Delors, 2006).
Trata-se de ligar a promoção da qualidade do emprego e da segurança do
emprego à reforma da protecção social, uma e outra concebidas em termos
dinâmicos. Noutros termos, pretende-se combinar as diferentes formas de
flexibilidade com as diferentes modalidades de segurança, reequilibrar a
flexibilidade externa e interna e concentrar os recursos públicos na protecção
da empregabilidade e da mobilidade dos trabalhadores, ao mesmo tempo
que se apoia, através de políticas públicas selectivas a manutenção e a criação
de novos empregos. É, portanto, uma estratégia do tipo da que se seguiu em
Portugal na actual legislatura, designadamente no que respeita à regulação do
sistema de emprego e dos mercados de trabalho. É, igualmente, uma estratégia muito próxima da “agenda do trabalho digno”, da OIT, facto que é,
aliás, formalmente reconhecido nas propostas de Poul Rasmussen e Jacques
Delors, ao sustentarem que a esquerda democrática europeia deve basear
naquela agenda as suas propostas para a regulação social da globalização.
Já depois de eclodir a actual crise global, vieram a público um conjunto de
propostas (ILO, 2009; Policy Network, 2009; Social Europe, 2009) que visam,
simultaneamente, enfrentar a crise e combater as suas causas. O ponto
comum dessas propostas consiste numa estratégia de intervenção a três
níveis. No plano internacional, opõe-se à lógica neoliberal da globalização
a regulação da sua dimensão social na base da “Agenda do Trabalho Digno”,
127
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
da OIT; no plano europeu, propõe-se que o emprego e a equidade social
deixem de ser variáveis de adaptação submetidas aos imperativos da disciplina
orçamental para passarem a ter a mesma relevância na avaliação das políticas do que os critérios de Maastricht (Schultz, 2009); no plano nacional,
propõem-se políticas de flexigurança, de redução da pobreza e da desigualdade, de promoção da qualificação e recalibragem dos vários welfare system que
coexistem na União Europeia.
A consequência da adopção destes princípios seria uma redução da tripla
assimetria já referida e um aumento do espaço de viabilidade das estratégias da
esquerda democrática, quer no plano nacional, quer no plano europeu, quer
no plano mundial. Em síntese, tratar-se-ia de construir um sistema coerente
que permitisse o retorno da política à governação da economia e das relações
sociais. Mas não se trataria de voltar às versões clássicas do intervencionismo
estatal. Pelo contrário, a intervenção estatal deveria ser focada nos problemas
de relevância sistémica; deveria distinguir as respostas de natureza conjuntural das de índole estrutural, especificando regras claras de entrada e de saída
da intervenção pública para as questões de curto prazo; e deveria assentar em
parcerias público-privado sempre que possível (Schuppert, 2009).
Uma tal estratégia implicaria uma ruptura com as concepções neoliberais
que condenam, desvalorizam e menorizam o papel da administração e do
sector público (Rasmussen e Delors, 2006) e a sua substituição por uma nova
gestão pública (Pochmann, 2009) capaz de promover objectivos normativos
consentâneos com o aumento da igualdade de oportunidades dos cidadãos
ao longo dos seus ciclos de vida através da combinação dinâmica de instrumentos públicos e privados (Ferrera, 2008 e 2009). Não se trata, portanto,
de voltar aos modos de desenvolvimento do welfare system e de regulação dos
mercados de trabalho assentes no fechamento dos Estados-nação, nos estereótipos de género que afastam as mulheres do emprego, no pleno emprego
masculino em profissões de baixa qualificação, na promoção do crescimento
económico e da produtividade empresarial baseados nas economias de escala
e no condicionamento do consumo pela produção e na centragem das relações laborais no emprego típico e no custo horário do trabalho.
Do que se trata, é de combinar um ataque eficiente à crise global em curso
que articule respostas conjunturais socialmente equitativas com reformas do
sistema de emprego e do welfare system que ataquem as causas estruturais da
128
ANTÓNIO DORNELAS
crise e sejam susceptíveis de, à saída dela, favorecer a construção de sociedades mais justas e de pleno emprego, como reclama o movimento sindical
europeu e internacional (ETUC, 2007 e 2009; ITUC, 2009).
Porque é disto que se trata, este conjunto de propostas confia menos
nos estímulos fiscais do que na orientação do investimento público e recusa
a deflação pela redução generalizada dos salários e favorece o aumento das
taxas de marginais de impostos sobre os mais ricos (Reich, 2009). Porque se
trata de conjugar um novo pleno emprego com a reforma dos direitos sociais
(Rasmussen e Delors, 2006), estas propostas visam reduzir o abandono escolar
precoce, aumentar a escolarização da população jovem e em idade de trabalhar, modernizar os serviços sociais, utilizar estratégias de flexigurança que
promovam a adaptabilidade interna e reduzam o volume de emprego precário,
des-segmentar os mercados de trabalho, favorecer o emprego feminino,
recalibrar a segurança social em termos funcionais e distributivos, assegurar
uma protecção social digna e não discriminatória ao longo de todo o ciclo de
vida, combater as reformas antecipadas e promover o envelhecimento activo,
reduzir o número de trabalhadores pobres e reduzir a distância entre ricos e
pobres sem pôr em causa os rendimentos do Estado (Ferrera, 2008 e 2009;
Hemerijck e O’Donnel, 2007; Hemerijck, 2009; Schmid, 2006).
E em Portugal?
Pode esta estratégia ser aplicada em Portugal? A resposta parece depender
de três factores: em primeiro lugar, do modo como se avaliar o que vem
sendo feito desde 2005 pelo único governo PS que, até agora, dispôs de
uma maioria absoluta; em segundo lugar, da identificação dos principais
problemas do emprego e da equidade social a enfrentar; por último, das
expectativas quanto às possibilidades de o próximo governo conjugar o apoio
parlamentar de que dispuser com o desenvolvimento da concertação social.
Quanto à agenda social do governo Sócrates, dir-se-á que ficam acima
factos, argumentos e avaliações que desmentem a retórica quer das oposições
parlamentares, quer da oposição sindical consubstanciada na CGTP nalguns
movimentos de contestação de base profissional. Em síntese: Portugal foi o
país que realizou o maior número de acordos de concertação de toda a União
Europeia; o número de trabalhadores cobertos por contratação colectiva de
trabalho recuperou da crise induzida pelo Código de 2003 e atingiu níveis
129
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
nunca alcançados desde que há registos administrativos; o número de dias de
trabalho perdidos por greve reduziu-se; a despesa pública total em protecção
social, expressa em percentagem do PIB, embora a ritmo mais lento, continuou a crescer ao contrário do que aconteceu com a média europeia; o risco
de pobreza reduziu-se e o risco de pobreza de quem está a trabalhar reduziuse ainda mais.
É verdade que o actual ciclo político conheceu grandes manifestações de
descontentamento e de protesto político público. São disso exemplo, designadamente, as grandes manifestações dos professores e da administração
pública, que contaram com o apoio de líderes dos vários grupos de oposição
político-parlamentar, que constituem expressões relevantes de protesto
político com base sindical. Mas essas manifestações não podem ser confundidas com acções sindicais tendentes a forçar a negociação de compromissos.
Pelo contrário, a sua motivação é a pressão para a demissão de membros do
governo ou, na ausência desta, a sanção política do governo, com o concomitante benefício das forças políticas da oposição.
Hoje, em virtude das reformas realizadas e da alteração do contexto internacional, os problemas não são os mesmos que se verificavam no início da
legislatura que está prestes a terminar. Em virtude das reformas porque estas
promoveram a adequação das políticas públicas aos problemas contemporâneos, reduziram as desigualdades entre a administração pública e o sector
privado, criaram condições para a redução da segmentação dos mercados de
trabalho, aumentaram a sustentabilidade financeira do sistema público de
protecção social e criaram um novo quadro de referência para o desenvolvimento das relações entre governos, confederações sindicais e confederações
patronais. Em consequência da crise global em curso porque, apesar das
incertezas quanto à sua extensão e duração, as suas consequências potenciais
sobre o emprego, a informalidade e a desigualdade podem pôr em causa a
coesão social da sociedade portuguesa.
Ainda assim, os principais problemas portugueses actuais são o emprego,
a qualificação e a desigualdade.
O emprego porque, por razões nacionais que a crise global em curso está
a potenciar, o desemprego, incluindo o de longa duração, está a aumentar;
porque Portugal tem uma percentagem excessivamente elevada de emprego
atípico; porque os empregos precários juntam à menor segurança de emprego
130
ANTÓNIO DORNELAS
piores remunerações e expectativas salariais; porque os níveis de adaptabilidade
do emprego e do tempo de trabalho dentro das empresas são reduzidos, o que
potencia despedimentos evitáveis, facilita a contratação precária e dificulta a
conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar.
A qualificação porque, apesar dos progressos realizados, os níveis de qualificação do emprego se encontram entre os mais baixos da União Europeia;
porque o abandono escolar precoce é mais do dobro da média comunitária;
porque o acesso à aprendizagem ao longo da vida ainda é cerca de metade da
média da UE27; porque, dadas as tendências demográficas recentes, a alternativa para o reforço da escolarização de adultos e de jovens é a aceitação da
divergência continuada da produtividade e da competitividade portuguesas em
relação á média comunitária.
A desigualdade porque Portugal continua ter (Rodrigues, 2009) um nível
muito elevado de desigualdade na distribuição dos rendimentos, uma percentagem elevada de trabalhadores pobres e porque as desigualdades económicas
tendem a reproduzir e a potenciar outras formas desigualdade social.
Com a crise global ainda em desenvolvimento, são possíveis evoluções muito diferentes e, consequentemente, cenários de referência muito
díspares. Mas, no cenário que toma a crise como uma oportunidade para
atacar as suas causas estruturais, o desenvolvimento da regulação da dimensão
social da globalização e o reforço da dimensão social europeia, aumentam as
possibilidades de a esquerda democrática europeia e portuguesa conceberem
e porem em aplicação programas que respondam aos principais problemas
sociais identificados a partir da situação actual.
Com essa margem potencial de desenvolvimento alargada, em Portugal
estar-se-ia perante um novo desafio ao triângulo neocorporativo: às confederações patronais, para que participem duma regulação económica e social
da competição empresarial que substitua o unilateralismo pela negociação
social das mudanças e promova o aumento da competitividade com base na
qualidade do emprego e da inovação económica e social; às confederações
sindicais, para que renovem a agenda negocial e os instrumentos contratuais
colectivos, de modo a converter a elevada taxa de cobertura num indicador da
eficácia da regulação contratada; aos poderes públicos, para que prossigam
a renovação e a recalibragem das políticas públicas de modo a combinar o
combate à crise global em curso com a promoção dum novo pleno emprego,
131
PERANTE A CRISE: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DO EMPREGO,
DO TRABALHO E DA EQUIDADE SOCIAL EM PORTUGAL
prosseguindo a redução da pobreza, reduzindo as desigualdades e promovendo
a capacitação dos actores sociais para uma intervenção crítica mas proactiva no
novo contexto económico e social.
É esta estratégia realizável? A resposta é tendencialmente afirmativa, mas
não isenta de problemas, alguns dos quais já identificados. E, entre esses, o de
que, não sendo os governos e os seus interlocutores totalmente condicionados
pelo seu passado, uma avaliação prospectiva não pode deixar de ter em consideração a identidade, as opções e as ligações políticas, quer dos governos, quer
dos actores sociais (Zambarloukou, 2006; Baccaro e Lim, 2007).
São, evidentemente, possíveis escolhas diferentes das aqui apresentadas.
Mas nem todas as escolhas alternativas são compatíveis com o modelo de sociedade promovido pelas propostas da esquerda democrática europeia, isto é,
uma melhor conciliação do desenvolvimento da democracia política com a
promoção da justiça social e com a competitividade empresarial em mercados
nacionais e internacionais abertos, mas regulados.
E não é menos certo que os governos das sociedades europeias quase nunca
estão sós perante o contexto que cria os problemas para os quais devem construir respostas fundamentadas e viáveis: das equações políticas da governação
fazem sempre parte as escolhas dos interlocutores parlamentares, económicos
e sociais dos governos.
132
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135
136
Trabalho e sindicalismo – os impactos da crise
Elísio Estanque
Centro de Estudos Sociais
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
N
uma época de crise internacional que atinge todos os cantos
do mundo é fundamental que nos questionemos sobre os seus
impactos, em especial em sectores como o do trabalho, aquele
que mais se impôs como a infra-estrutura fundamental do
sistema social e político das sociedades industriais. Importa, todavia, começar
com duas notas prévias: a primeira, é que o presente texto não se destina a
discutir a crise, antes situa um conjunto de aspectos relacionados com as
transformações ocorridas nas ultimas décadas, em especial no que toca às
grandes mutações socioeconómicas e sua incidência nas relações de trabalho
e nos processos produtivos; a segunda refere-se à necessidade de relativizar a tendência para direccionar ou discutir todos os assuntos em torno
da “crise”, já que tal atitude pode provocar distorções de índole diversa,
inclusive perder de vista a complexidade de factores que se foram acumulando, e os efeitos colaterais que foram gerando, antes ainda de entrarmos
na “crise” propriamente dita ou de ela atingir o seu ponto culminante (que
ainda ninguém sabe quando surgirá nem quais os seus contornos).
Importa, pois, evitar conceber a crise como se fosse a causa e, ao mesmo
tempo, a consequência de tudo aquilo que vem ocorrendo no mundo, no
último ano. O presente texto procura, portanto, apresentar um conjunto
de reflexões em torno do campo do trabalho e do sindicalismo, não se limitando a tratar o mais recente período, mas tentando recuperar algumas das
principais tendências dos tempos recentes no contexto da economia global
deste início de século. Para além de uma reflexão sobre a questão laboral e
social a nível geral, procurei também apresentar alguns dos traços específicos da sociedade portuguesa, mostrando algumas das suas vulnerabilidades
particulares, remetendo para a história recente do país e para as dificuldades que enfrenta na aproximação aos padrões europeus. O texto termina
com uma breve reflexão sobre o sindicalismo e os desafios com que ele se
debate, tanto no contexto de crise como no período precedente. Se o diag137
TRABALHO E SINDICALISMO – OS IMPACTOS DA CRISE
nóstico que se pode fazer ao caso português, acerca destes problemas, não
se circunscreve à realidade presente (de resto, como se diz correntemente
entre historiadores e cientistas sociais, a única coisa que podemos conhecer
é o passado) ele procura captá-la esforçando-se por iluminá-la com base
em traços estruturais que só podem conhecer-se escavando no passado.
Crise, globalização e fragmentação do trabalho
Como se sabe, a noção de “crise” pode encerrar em si mesma uma enorme
variedade de significados e, no caso vertente – em que se pensa sobretudo
nas tendências negativas na esfera financeira, económica e no emprego –,
ela recobre todo um leque de realidades bem diferentes, muitas das quais já
bastante antigas. Por outro lado, a própria crise económica foi suscitada por
um conjunto complexo de factores sociais, uns mais estruturais outros mais
contingentes. Diversas instâncias políticas e interesses económicos desencadearam, desde há cerca de trinta anos, um programa de iniciativas que
significou uma aposta sem precedentes no comércio livre, na especulação
bolsista, nas offshores e na economia financeira, os factores que serviriam
de barómetro ao crescimento económico. Os mercados assegurariam um
crescimento ilimitado e, portanto, quanto menos regulação e intervenção
estatal, tanto melhor.
Estas foram algumas das grandes opções que se tornaram decisivas na
erupção da actual crise. Alguns dos seus mentores teóricos mais importantes, como Alan Greenspan, fizeram mea culpa. Mas, foram os Estados e
as economias mais ricas do mundo, fortemente apoiadas pelos mercados
internacionais e pelas novas tecnologias da informação e comunicação, que
impuseram como regra a abertura total das fronteiras ao comércio mundial,
a competitividade deixada ao sabor do mercado, etc., envolvendo tudo isso
na conhecida retórica neoliberal, que prometia um mundo de oportunidades para os mais competentes e uma “nova economia” capaz de assegurar o
bem-estar, senão de todos, pelo menos daqueles – países, economias e indivíduos – que decidissem guiar-se pela aposta nas qualificações, na inovação e
na competição. A bondade do mercado global parecia garantir o sucesso.
Apesar da polissemia que a noção de globalização encerra – e muito
embora se tenha percebido que, afinal, o comércio global é já uma velha
história de que existem marcas indeléveis há mais de cinco séculos –, a viragem
138
ELÍSIO ESTANQUE
que ocorreu há cerca de três décadas, suscitou uma fantástica multiplicação
das transacções e fluxos, de pessoas, bens e serviços de todos os tipos, dando
lugar a profundas transformações tanto no plano prático como no plano
teórico e conceptual. Com a massificação da industria turística e a democratização dos transportes aéreos, o mundo ficou mais pequeno e passou
a ser olhado sob novas perspectivas. As velhas noções de modernidade,
desenvolvimento e progresso deram lugar à ideia de pós-modernidade, de
imprevisibilidade e de incerteza quanto ao sentido da história e da mudança
social. A intensificação das trocas comerciais na escala transnacional, com a
ajuda da revolução informática, tecnológica e comunicacional, aceleraram
e multiplicaram os processos de mercantilização da vida e das sociedades, ao
mesmo tempo que os Estados e as economias nacionais perderam parte da
sua antiga soberania e autonomia.
Porém, ao contrário da retórica liberal e tecnocrática de muitos teóricos
e experts, o novo liberalismo que avassalou o mundo desde os anos oitenta, não
só não atenuou os problemas humanos e os riscos sociais como os agravou
drasticamente. É verdade que as oportunidades de negócio e as vantagens
lucrativas se mostraram fantásticas para uma ínfima minoria – sobretudo dos
que já eram ricos e poderosos –, mas em contrapartida a larga maioria das
populações e das classes trabalhadoras, incluindo amplos sectores da classe
média, vêm-se debatendo com o agravamento das suas condições de vida
e de trabalho. Hoje, muitos constatam a intensificação das desigualdades
e injustiças sociais, e mesmo aqueles que mais activamente glorificaram o
mercado livre e as infinitas potencialidades da economia financeira, viramse agora para o Estado pedindo auxílio.
O campo laboral é sem dúvida aquele em que os impactos desestruturadores da globalização tem sido mais problemático. As consequências disso
mostram-se devastadoras para milhões de trabalhadores de diversos continentes. E o caso particular da Europa é aquele em que as alterações em curso
representam um flagrante retrocesso em face das conquistas alcançadas
desde o século XIX, com o decisivo contributo do movimento operário e
do sindicalismo. Porque a Europa é justamente a região “referência” e o
berço da civilização Ocidental, é necessário pensar em toda a sua tradição
humanista e emancipatória, lembrar que está aqui a génese das principais
doutrinas progressistas, revoluções e movimentos sociais. O projecto da
139
TRABALHO E SINDICALISMO – OS IMPACTOS DA CRISE
modernidade e a democracia política, assentaram em promessas de grande
potencial utópico, rumo a uma sociedade mais justa e igualitária. Porém, os
velhos lemas do iluminismo – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – foram nas
últimas décadas secundarizados, se não mesmo desprezados ostensivamente,
no discurso institucional de governantes e dirigentes (inclusive de correntes
como a social-democracia, cuja história e referências éticas e doutrinárias se
inscrevem em projectos e ideologias desse teor). Os efeitos da globalização
têm vindo a induzir novas formas de trabalho cada vez mais desreguladas, num
quadro social marcado pela flexibilidade, subcontratação, desemprego, individualização e precariedade da força de trabalho. Assistiu-se a uma progressiva
redução de direitos laborais e sociais, e ao aumento da insegurança e do risco,
num processo que se vem revelando devastador para a classe trabalhadora e o
sindicalismo os finais do século XX (Castells, 1999; Beck, 2000).
As convulsões que o mundo do trabalho tem vindo a sofrer e o crescente
ataque ao direito laboral inserem-se, de facto, num contexto mais amplo
e obedecem a poderosos interesses económicos e políticos ditados pelas
instâncias internacionais que, no fundo, governam o mundo (BM, OCDE,
FMI, etc.) e se impuseram também na Europa, obrigando-a a abdicar em
larga medida do seu património social, humanista e civilizacional. Muito
embora tenhamos de reconhecer que o velho Estado social perdeu sustentabilidade à medida que se verificaram quer o abrandamento económico
quer a quebra de crescimento demográfico nos países europeus, não pode
aceitar-se – pelo menos de um ponto de vista da esquerda – que a contenção
da despesa pública e o controlo orçamental sirvam de justificação para toda
esta inversão (ou, dir-se-ia, reconversão...) da velha social-democracia
num modelo cuja viabilidade só é pensada no pressuposto de uma inevitável
cedência ao neoliberalismo. Menos ainda se pode ficar indiferente quando
governos apoiados por partidos socialistas revelam uma total insensibilidade perante o aumento das injustiças e os ataques cada vez mais intensos ao
direito do trabalho e à dignidade do trabalhador.
A realidade laboral dos últimos tempos voltou a dar actualidade a visões
críticas do capitalismo até há pouco julgadas ultrapassadas. Karl Marx e a sua
obra maior, “O Capital”, voltou a suscitar as atenções do mundo, quer por
parte de académicos quer da opinião pública em geral. Mas, se o pensamento
marxista parece ganhar nova actualidade não é porque se pretenda recuperar
140
ELÍSIO ESTANQUE
a ortodoxia leninista ou reincidir em modelos comprovadamente falidos,
como o soviético. É sim porque o mercado desregulado, a intensificação da
exploração – sob velhas ou novas formas – e todo o conjunto de problemas
socioeconómicos que a actual crise veio agudizar comprovaram a falência do
paradigma neoliberal e requerem, por isso, que se repensem os modelos de
mercado que guiaram a economia mundial nos últimos tempos.
Em especial no campo do emprego temos assistido a um efeito de pêndulo,
em que cada vez menos trabalhadores se encontram numa situação de emprego
seguro, estável e com direitos, enquanto existem cada vez mais pessoas desempregadas que se debatem com o iminente risco de pobreza e exclusão. Como
os vagabundos do século XVIII europeu ou os chamados malteses alentejanos
de meados do século XX, esta gente vê negados os mais elementares direitos.
São atirados para o mundo em busca desesperada de subsistência e obrigados
a aceitar quaisquer condições de trabalho e a entregarem-se à vontade gananciosa de patrões sem escrúpulos. Excluídos, de facto, do estatuto de cidadania
são por vezes os próprios que se negam a si mesmos o direito de procurar um
trabalho digno, aceitando ser tratados como sub-humanos ou como os novos
escravos da economia global do século XXI.
Os processos recentes de fragmentação e precarização das relações e
formas de trabalho atingiram o conjunto das classes trabalhadoras e pulverizaram as próprias estruturas contratuais e organizacionais do sistema
produtivo. Perante o triunfo do neoliberalismo económico e o acentuar de
novas formas de opressão e exploração, alguns dos velhos conceitos e dicotomias de Marx, tais como as divisões entre capital fixo/ capital circulante;
trabalho vivo/ trabalho morto; trabalho material/ trabalho imaterial; actividades produtivas/ improdutivas, são hoje reconceptualizadas à luz da nova
dinâmica do capitalismo global.
Na verdade, as actuais tendências permitem mostrar como aquelas divisões estão a ser reconvertidas e se imbricam hoje dialecticamente umas nas
outras, com isso contribuindo para intensificar e expandir novas formas
de “estranhamento” e “alienação” das classes trabalhadoras e dos novos
segmentos precarizados e em perda. Porém, o trabalho, em vez de desaparecer e se diluir para dar lugar ao lazer e ao consumo, ganha nova centralidade
ao mesmo tempo que se combina sob diferentes lógicas e formas mais instáveis (metamorfoseia-se) e em muitos casos mais penosas para quem tem de
141
TRABALHO E SINDICALISMO – OS IMPACTOS DA CRISE
viver de qualquer trabalho. Tornou-se clara a versatilidade, a instabilidade
e a multiplicidade de formas e de sentidos que envolvem o trabalho e os
seus mundos no início do século XXI. Muito embora se tenha esbatido
enquanto potencia criadora e espaço de consolidação de “subjectividades de
classe” dirigidas para a acção transformadora (Castells, Méda, Gorz, Rifkin,
Schnapper), o trabalho, material e imaterial, permanece como o módulo
central no processo de acumulação capitalista (Antunes, 2006).
O flagelo do desemprego, associado a um “individualismo negativo”
(Castel, 1998), que se assemelha a fenómenos que ocorreram na Europa
do século XVIII, resultante desta precariedade – geradora das mais diversas
formas de dependência, insegurança, resignação e medo – permite todo o
tipo de prepotências e abusos. No actual panorama, já não são os direitos
laborais que se pretende defender, mas, do ponto de vista de milhões de
assalariados, tão só o emprego a todo o custo, pois “o pior dos empregos
é sempre preferível ao desemprego”, o que traduz bem a debilidade em
que se encontra hoje o trabalhador. Desmantelou-se o velho compromisso
capital-trabalho e a concertação social – a negociação “tripartit” –, essa velha
conquista do fordismo e do Estado providência europeu, tornou-se nos
últimos tempos uma mera figura de retórica em que já nem as forças políticas herdeiras da social democracia parecem acreditar, sobretudo quando
alcançam o poder.
A sociedade portuguesa no contexto europeu
A este respeito convém ter presente alguns dos traços particulares da sociedade portuguesa. Portugal é, como todos reconhecemos, um país periférico da
Europa, cujas dificuldades se devem a um tardio e incipiente desenvolvimento
industrial, bem como a um processo de democratização também ele recente e
repleto de contradições. Com a instauração da democracia em 1974, consolidaram-se as classes trabalhadoras vinculadas à industria e os sectores da nova
classe média assalariada (sector administrativo, saúde, educação, poder local e
funcionalismo público em geral) cresceram rapidamente – apesar de no seu
conjunto a classe média portuguesa ter permanecido débil – sob o impulso
de um Estado providência em rápido crescimento, apesar de ele próprio ser
fraco. Aliás, convém lembrar que Portugal começou a construir o seu Estado
social numa altura em que já estavam a emergir os sinais de crise desse modelo
142
ELÍSIO ESTANQUE
na Europa, ou seja, tentou-se apanhar um comboio em andamento quando
ele já estava a atingir o fim da viagem.
Daí que as transformações sociais desencadeadas com o 25 de Abril de 1974
– e de certo modo consignado na constituição “socialista” de 1976 –, sendo
sem dúvida profundas em muitos aspectos, nunca deixaram de evidenciar os
contrastes que persistiam e persistem na sociedade portuguesa. A modernização das infra-estruturas, em especial após a adesão à UE, em 1986, trouxe
progressos inquestionáveis, mas no plano social, persistiram as dificuldades,
injustiças e bloqueios. Muito embora os trabalhadores e a “classe baixa” em geral
tenham melhorado substancialmente as suas condições de vida, em comparação
com a miséria em que viviam há 30 ou 40 anos, o certo é que as elites – em
especial as novas elites privilegiados ligadas à indústria e ao comércio – subiram
muito rapidamente, distanciando-se dos níveis de vida da classe média e dos
trabalhadores manuais. A “classe média” cresceu até finais do século, em boa
medida à sombra do crescimento do Estado, como se disse, mas ao mesmo
tempo permaneceu instável e internamente muito diferenciada.
Pode até dizer-se que a classe média portuguesa foi mais importante
pelo seu papel enquanto referência simbólica no imaginário colectivo, do
que por ser um segmento social consistente e dotado de índices elevados de
bem-estar. Foi sobretudo resultado de uma rápida concentração urbana e
da facilitação do crédito, aspectos decisivos para que estes sectores recém
urbanizados começassem a estruturar padrões de vida subjectivamente
projectados numa imaginária “classe média”, ou, por outras palavras, numa
categoria supostamente “distintiva” e “superior” por comparação com os
grupos de referência originários, isto é, os que remetiam para um mundo
rural e pobre, que se pretendia ver ultrapassado. Assim, como alguns estudos
mostraram (Estanque, 2003; Cabral, 2003), uma parte significativa da
própria classe trabalhadora manual, incluindo alguns dos seus segmentos
mais precarizados, via-se a si própria como pertencendo à “classe média”
Ora, se o consumismo desenfreado e as expectativas de mobilidade
ascendente puderam alimentar tais ilusões durante algum tempo, com a
entrada no novo milénio e sobretudo perante o reforço da competitividade
global, a contenção de custos, as pressões para a flexibilização e privatização
(mesmo nos sectores onde o emprego se mantinha relativamente seguro),
deram inicio a um profunda mudança na esfera do emprego, com isso
143
TRABALHO E SINDICALISMO – OS IMPACTOS DA CRISE
evidenciando, uma vez mais, o carácter persistente e estrutural das nossas
debilidades. Ressurgem problemas que era suposto terem sido resolvidos
há décadas, como sejam a pobreza, a falta de qualificação de trabalhadores e
empresários, as elevadas taxas de abandono escolar, o fenómeno dos recibos
verdes (inclusive os falsos), o crescimento brutal das desigualdades sociais,
o aumento do desemprego e da pobreza, as desigualdades de género e um
rápido aumento das situações de precariedade no trabalho, que atingem em
especial os sectores mais jovens (incluindo os mais escolarizados).
Temos, portanto, sobre os nossos ombros um passado recente marcado
por inúmeros contrastes, e é neles que porventura repousam as causas mais
decisivas do nosso atraso estrutural. A cultura tradicional do país e a escassa
qualificação dos agentes económicos (empresários e trabalhadores) espelham ainda os atributos de uma sociedade subdesenvolvida, amarrada a
mentalidades atávicas e paroquiais, aqui e ali deixando ainda transparecer
alguns resquícios de feudalismo e de salazarismo. Prevalecem os modelos de
gestão de cariz despótico, lado a lado com dependências e tutelas de todos
os tipos que se adaptam de modo perverso à vida moderna, corroendo o
funcionamento das empresas e instituições e travando as potencialidades de
modernização económica e de aprofundamento democrático.
Mantêm-se ou intensificam-se os velhos dualismos, tais como a divisão
entre o interior e o litoral ou entre o rural e o urbano, muito embora
tais divisões mantenham entre si fortes contaminações recíprocas. Essas
antigas contradições continuam a persistir, embora se adaptem aos tempos
actuais. Os sectores protegidos do emprego tornam-se cada vez mais raros,
enquanto o emprego precário subiu acima dos 20% (22% em 2007 para
os trabalhadores com menos de 35 anos) e nas camadas mais jovens atinge
cerca do dobro, o que, por sua vez, exprime a contradição geracional entre
uma juventude mais qualificada, mas também mais precária, e as condições
de trabalho dos seus país ou avós. O discurso da privatização foi durante
décadas elevado ao estatuto de único garante da competitividade, e, ao abrigo
desse discurso – erigido em pensamento único por parte do poder – desencadearam-se diversas reformas nos serviços públicos em diversas áreas como
a saúde, o funcionalismo público, a educação e outras, justificando-se tais
mudanças com base num suposto privilégio dos trabalhadores e funcionários
da administração pública por contraste com os do sector privado, servindo
144
ELÍSIO ESTANQUE
este argumento uma clara estratégia de nivelamento por baixo.
Porém, quer a capacidade de realizar as reformas quer as possibilidades
de lhes resistir, bem como a razoabilidade com que as mesmas são concebidas
e levadas a cabo, são parte de processos mais complexos, que só poderemos
interpretar se forem devidamente situados no devido contexto e na própria
historia. E é justamente a essa luz que as propostas legislativas de alteração
do sistema de relações laborais, para terem sucesso, deveriam começar por
diagnosticar a realidade que temos, não com base em assumpções ou juízos
de índole ideológico, mas tendo presente o contexto onde nos inserimos e
o património sociocultural que herdámos do passado. Sem considerarmos a
história e o significado das lutas sociais dos trabalhadores europeus longo dos
últimos 150 ou 200 anos jamais compreenderemos a diferença entre o modelo
social europeu e o mercantilismo individualista dos países anglo-saxónicos.
Se houve efectivamente progressos fundamentais na Europa ao longo de
todo este tempo, eles devem-se essencialmente às capacidade de organização
e de luta colectiva da classe trabalhadora e do movimento operário nos países
industrializados. Esse é, de resto um património que é reivindicado por toda
a esquerda, desde a social-democracia ao movimento comunista.
Se hoje temos mecanismos de regulação dos conflitos e uma ordem jurídica que privilegia o diálogo e a concertação entre os diferentes parceiros e
classes sociais foi à custa de grandes sacrifícios e lutas do movimento operário.
Nesse sentido, o direito do trabalho foi (e é) um instrumento decisivo ao
serviço dos trabalhadores destinado a reequilibrar as relações sociais capital e
trabalho, que são, como se sabe, estruturalmente assimétricas. No entanto,
apesar dos avanços alcançados, em muitos países persistiram ao longo dos
tempos inúmeras formas de trabalho fora de qualquer protecção jurídica,
e a erosão dos direitos sociais e económicos dos trabalhadores suplantou
largamente a força da lei. Ainda hoje assim é, em diversas regiões do mundo,
como é sabido.
Sendo expressão das relações políticas numa sociedade, a ordem jurídica
funcionou ao longo da histórica como meio de legitimação de relações de
poder fortemente desequilibradas, em geral impondo uma força de trabalho
submissa e destituída dos direitos mais elementares, sem um salário digno,
sem protecção social e sem acesso aos direitos humanos mais elementares.
No entanto, a transformação histórica teve resultados fantásticos de sentido
145
TRABALHO E SINDICALISMO – OS IMPACTOS DA CRISE
emancipatório, em particular nos países mais avançados. O direito do
trabalho triunfou nos países europeus e é uma bandeira fundamental para
trabalhadores dos mais diversos continentes, justamente porque representa uma poderosa arma ao serviço das classes desapossadas, defendida,
desde sempre, pelo movimento sindical internacional e veiculada por organizações internacionais como a OIT, que tem prestado um inestimável
contributo na defesa dos direitos humanos no trabalho, em todos os continentes. É precisamente à luz deste património histórico, de que a Europa é
um palco privilegiado, que as mudanças impostas pelos poderes dominantes
nesta matéria – no sentido de uma flexibilidade ditada pela concorrência
desregrada, pelos requisitos do mercado global e pelas exigências do grande
capital – correm o risco de representar uma regressão inaceitável para os
trabalhadores europeus.
Portugal, com todas as suas especificidades, insere-se justamente nesse
quadro. E é por isso que as alterações que o novo Código do Trabalho vem
introduzir são, em variadas matérias (ou melhor, nos seus aspectos mais
decisivos), motivo de grande apreensão para quem assuma a defesa da classe
trabalhadora enquanto vítima da exploração capitalista (cerca de 140 anos após
a 1ª edição do livro 1 de O Capital) e de outras formas de opressão e de injustiça
social. Acresce que as condições de subdesenvolvimento já referidas colocam a
sociedade portuguesa – e a sua força de trabalho assalariada – numa situação de
especial vulnerabilidade, visto que estamos longe de cumprir plenamente com
os direitos de cidadania. Como muitos de nós temos apontado repetidamente,
existem medos incrustados nas instituições, que impedem o fortalecimento
da esfera pública e tendem a inibir qualquer acção reivindicativa no campo
profissional, onde imperam os constrangimentos e a mentalidade autoritária de empresários e chefias. A presença de culturas autocráticas, de tutelas e
compadrios dos mais diversos tipos onde deveriam prevalecer a transparência,
as estratégias de gestão e lideranças democráticas, constituem ingredientes que
corroem as nossas instituições e desmotivam qualquer trabalhador dedicado.
Em vez do mérito e da iniciativa individual prevalecem as posturas e atitudes de
bajulação e resignação perante a autoridade; em vez do ambiente de exigência
e de estímulo à criatividade e à co-responsabilização (individual e colectiva)
cultiva-se o seguidismo e a mediocridade; em vez de cidadãos livres e autónomos promove-se o oportunismo e a delacção. Tudo isto é o contrário de
146
ELÍSIO ESTANQUE
uma sociedade democrática avançada. Tudo isto se opõe aos valores do socialismo democrático. E a tudo isto é possível fazer frente. A questão está em saber
se os governos e a classe dirigente pretendem inverter esse rumo ou contribuir
para que ele se torne irreversível e nos empurre de novo para o abismo.
Ora, perante este panorama – e como diversos estudos internacionais têm
mostrado –, a questão da estabilidade e da segurança no emprego constitui o
principal motivo de preocupação dos trabalhadores. Encontrar um primeiro
emprego é a primeira das prioridades dos estudantes do ensino superior
(Estanque e Bebiano, 2007).
Hoje, é-se “jovem” até muito além dos 30, porque muito ficam dependentes da família até muito tarde, mas é-se por vezes considerado “velho”
quando, trabalhadores desempregados, com quarenta e poucos anos, são
preteridos devido à idade. A perda do emprego é a principal ansiedade face
à qual muitas outras exigências, mesmos as mais evidentes, podem ser sacrificadas. Existem empresas, nos EUA e na Europa que estabelecem um salário
máximo, pedindo aos candidatos a um posto de trabalho que indiquem quanto
“pretendem” ganhar, até esse nível máximo (por exemplo, 8 euros por hora)
o que tem como consequência o constante baixar do nível do salário indicado
pelos pretendentes ao emprego (os que indicam 4 euros ou menos serão naturalmente os preferidos). É a lógica da autonegação da dignidade produzida pelo
espectro do desemprego e da miséria. O clima de angústia que o actual cenário
de crise tem vindo a acentuar só vem contribuir para que tais sintomas “patológicos” se tornem ainda mais dramáticos do que até agora temos conhecido.
Porém, quando o trabalhador (ou o cidadão) é sistematicamente reprimido e impedido de manifestar a sua vontade ou de exigir o cumprimento de
direitos, o que acontece é o aumento do descontentamento e da contrariedade
no trabalho e na sociedade. Daí resulta então uma de duas coisas: ou se acentua
a resignação e o medo, ou aumenta a crispação e o sentimento de revolta. Este
ambiente, agravado com as múltiplas formas de recomposição, desmembramento, flexibilidade, deslocalização e encerramento de empresas, precariedade
do trabalho, fragmentação dos processos produtivos, etc., tem conduzido a classe
trabalhadora a uma cultura de impotência e de conformismo. Uma “classe”
cada vez mais heterogénea e frágil que se depara com tremendas dificuldades
em agir colectivamente. Há muito que as identidades de classe perderam fulgor
em favor de outras identidades rivais e de outras formas de acção colectiva (e
147
TRABALHO E SINDICALISMO – OS IMPACTOS DA CRISE
de inacção), num processo que se acentuou enormemente com o colapso do
regime soviético e, no caso português, após a saturação da linguagem marxista e
“de classe” de que se usou e abusou no período do PREC. Perante o refluxo da
acção colectiva e do discurso ideológico, os sindicatos perderam força e capacidade de organização e de mobilização, nomeadamente junto dos segmentos
mais fragilizados e mais jovens da força de trabalho. Para além de um contexto
social e político pouco favorável à participação colectiva e associativa – e sem
esquecer as próprias dificuldades de renovação do sindicalismo (Estanque,
2008) –, o reforço do poder patronal e a retirada de condições favoráveis à
acção sindical vêm agravar ainda mais essas tendências.
Sindicalismo e acção colectiva
Nesta discussão, torna-se incontornável equacionar a questão sindical.
Se nos despirmos de juízos de valor, e sobretudo se formos capazes de evitar
a tendência de valorar os sindicatos entres os “bons” e os “maus” (uns com
quem, supostamente, se pode dialogar e os outros, ditos conservadores sou
“ao serviço de...”), seremos levados a perceber o papel social e transformador do sindicalismo (e tanto a contestação como a negociação são vias
igualmente válidas no plano social) e talvez então se possa aceitar que o
sindicalismo combativo e de movimento é aquele que maior contributo deu
e pode dar à sociedade e ao progresso. É sobretudo em períodos de crise e de
dificuldades para as classes trabalhadoras que ocorrem as grandes viragens
históricas, normalmente acompanhadas de novos movimentos e da emergência de novas lideranças. Na Inglaterra do século XIX e noutros contextos
mais recentes – de que pode ser exemplo o 25 de Abril de 1974 –, a mobilização popular não se deveu apenas a motivações políticas e económicas
(nem a causas racionais, da ordem da “consciência” ou dos “interesses”),
mas também, talvez sobretudo, a factores culturais e identitários. A identidade precede os interesses. Mas estes, quando fundados em fortes carências
e necessidades básicas por satisfazer, podem produzir rebeliões radicais e de
massas, ainda que não sejam orientadas por nenhuma motivação política.
A classe trabalhadora deixou há muito de ser homogénea, mas o alastrar
da precariedade e do trabalho sem estatuto e sem dignidade pode conduzir
a novas homogeneizações, que, embora de base transclassista, sejam capazes
de se unificarem na defesa de uma identidade agredida e ofendida nos locais
148
ELÍSIO ESTANQUE
de trabalho. Mesmo a participação, a solidariedade e a partilha colectiva da
indignação podem recuperar um certo sentido de recompensa simbólica,
estimulando o desejo de reconstrução comunitária, quer este seja virado
para um passado nostálgico e em nome das “raízes” (por exemplo, o nacionalismo ou o bairrismo), quer se projecte num qualquer futuro promissor
e “emancipatório”, por exemplo, o socialismo (Tilly, 1978; Morris, 1996).
Tomados por muitos como factores de bloqueio ao crescimento económico e ao desenvolvimento, os sindicatos queixam-se, com razão, de que
em diversas regiões do mundo as formas de trabalho parecem ter regressado
aos tempos “satânicos” de Marx. Mas, apesar da mítica classe operária estar
em desagregação, não surge no horizonte nenhuma outra entidade capaz de
congregar a unidade dos assalariados. As actuais pressões do mercado e da
economia global deixam aos sindicatos uma margem de manobra cada vez mais
estreita, mas por outro lado o esforço de actualização por parte das estruturas
sindicais tem sido diminuto e insuficiente para responder aos problemas da
actualidade. Sobra então espaço para novos actores e movimentos.
Nas últimas décadas, enquanto a economia e os mercados deixaram de
estar confinados a fronteiras, o movimento sindical revelou enormes dificuldades em agir para lá do âmbito nacional (e muitas vezes sectorial). A
globalização revelou-se contraditória e gerou múltiplos efeitos paradoxais,
nomeadamente ondas sucessivas de protestos juvenis e movimentos sociais
que se reclamaram de “alter-globalização”. Desde a cimeira da OMC em
Seatle, em 1999, passando pelos encontros do Fórum Social Mundial, em
Porto Alegre e noutras cidades, este activismo – largamente apoiado pelas
redes virtuais do ciberespaço – revelaram novas e inovadoras formas de
denúncia e de intervenção pública, que até agora têm marcado as formas
de activismo global do século XXI. As mais recentes ondas de contestação
juvenis (França, Grécia, Catalunha), invocam por vezes o Maio de 68, até
porque condições são igualmente activadas por condições de emergência
semelhantes, em que os grupos e as comunidades de jovens se afirmam
mobilizando-se contra um opositor, ou um “inimigo” identificado. Mas
são fenómenos muito distintos. Enquanto naquela época era a consciência
política e as auto-proclamadas “vanguardas” que assumiam a liderança da
luta, agora a acção colectiva perdeu parte do seu conteúdo político. Dito de
outro modo, continua em vigor o princípio da “válvula de escape”, mas os
149
TRABALHO E SINDICALISMO – OS IMPACTOS DA CRISE
seus efeitos são politicamente mais incertos. As ondas de protesto e o discurso
de indignação que as acompanha, exacerbados por um poder (institucional,
empresarial ou governamental) de cariz autoritário, podem ganhar um
efeito mimético de proporções imprevisíveis, se para tal as condições sociais
se tornarem propícias.
O actual contexto de crise, ao mesmo tempo que ameaça desfazer um conjunto
de laços sociais, que até aqui garantiam a coesão mínima da sociedade, pode,
precisamente porque o sistema social tem horror ao vazio, galvanizar de novo as
multidões que se sentem ressentidas e desprotegidas. E o facto de o sindicalismo
apenas timidamente se envolver neste tipo de iniciativas, até agora, não garante que
elas continuem a ter pequena expressão. Até porque se o presente é fortemente
marcado pela contingência, tanto pode acontecer que expressões de grupos minoritários (sejam eles os MayDay, os FERVE ou outros) possam repentinamente
alastrar, como a própria intensificação da pressão pode levar a que o sindicalismo
radicalize o seu discurso e consiga mobilizar a massa de precários e desempregados
que tem vindo a engrossar e ameaça expandir-se ao longo de 2009.
Diversos autores e académicos têm formulado a necessidade de se criarem
novas alianças e dinâmicas internacionalistas, como condição para revitalizar
o sindicalismo perante o agravamento das desigualdades e injustiças sociais
em todos os continentes, alegando que a mobilidade global – de capitais e de
empresas funcionando em rede – exigem respostas sindicais também em rede
e igualmente articuladas na escala transnacional (Waterman, 2002; Estanque,
2007). Ao contrário de outros países e regiões, como o Brasil e a América Latina,
onde a cooperação entre as universidades, académicos e centros de pesquisa, de
um lado, e os movimentos sociais e sindicais, de outro, são uma constante, em
Portugal essa tradição praticamente não existe.
As novas redes e estruturas transnacionais de organização política são cada
vez mais necessárias. Não apenas na União Europeia, onde as famílias políticas
possuem ainda pouca eficácia e os próprias estruturas sindicais são incipientes.
Para enfrentar os actuais desafios (que a crise apenas veio acelerar), o sindicalismo
de hoje terá de se reinventar ou reestruturar profundamente. Um sindicalismo de
movimento social global, orientado para a intervenção cidadã, terá de se estender
para além da esfera laboral; terá de passar das solidariedades nacionais para as
transnacionais, de dentro para fora, dos países avançados para os países pobres.
Precisamos de um sindicalismo que não abdique da defesa dos valores democrá150
ELÍSIO ESTANQUE
ticos, mas em que estes se alarguem à democracia participativa (nas empresas,
escolas, cidades, comunidades, etc.); que coloque as questões ambientais e a defesa
dos consumidores, dos saberes e tradições culturais locais no centro das suas lutas
e negociações; que resista ao capitalismo destrutivo através de um maior controlo
sobre o processo produtivo, os investimentos, a inovação tecnológica e as políticas de formação e qualificação profissional; que pense os problemas laborais no
quadro mais vasto da sociedade, da cultura ao consumo, do trabalho ao lazer, da
empresa à família, do local ao global (Estanque, 2004; Hyman, 2002).
Mas tudo isto pressupõe uma estratégia ambiciosa que rompa com a prática de
acomodação ao funcionamento burocrático em que boa parte do sindicalismo
de hoje se deixou enredar. Exige uma reflexão séria e uma atitude autocrítica e
porventura mais humilde da parte das actuais lideranças sindicais, associativas e
institucionais, em todos os domínios da nossa vida social.
Por exemplo, a extraordinária capacidade da Internet e do ciberespaço são um
enorme potencial ainda subaproveitado. A facilidade para aceder à informação,
para acumular e divulgar conhecimento em fracções de segundo, poderiam ser
uma poderosa arma ao serviço do movimento sindical e da democracia em geral
(Ribeiro, 2000; Waterman, 2002). O problema não reside, portanto, na tecnologia ou na sua ausência. O problema é que os atributos socioculturais que atrás
enunciei – tão atreitos à nossa sociedade desde há séculos – se reflectem e reproduzem nos mais diversos meios e instâncias organizacionais, com isso inibindo
uma maior transparência na gestão das instituições e travando, sem sabermos até
onde, o processo de consolidação e aprofundamento democrático.
Em conclusão, a crise que nos surpreendeu a todos em finais de 2008 tem
causas bem mais profundas e longínquas do que pode parecer. E o modo como
sectores decisivos como o do emprego são ou não capazes de responder às dificuldades e problemas do presente, derivam em boa medida da capacidade que tenha
de reconverter algumas das velhas pechas do nosso sistema produtivo em potencialidades de viragem. De viragem para outro paradigma. E isso depende muito
dos agentes económicos em posições de liderança e da capacidade do próprio
poder político aceitar o surgimento de novos protagonistas e novas posturas,
limpas, com sentido ético, e animados pelo principio da causa pública, em busca
do bem-estar geral e da solidariedade para com os mais pobres e despojados.
151
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152
153
154
MEMÓRIA
Simone Weil: a “Marciana”
Fernando Pereira Marques
S
I
imone Weil nasceu em Paris, a 3 de Fevereiro de 1909, numa família
da burguesia judia. Tanto o pai, Bernard Weil, médico, como a mãe,
Salomea Reinherz ,de origem russa, não eram crentes, e, como os
outros membros da família, tinham acentuado gosto pelas artes e pela
cultura. O irmão, André, nascido três anos antes, viria a tornar-se um dos mais
importantes matemáticos do século XX.
No Liceu Henri IV – prestigiado estabelecimento de ensino parisiense – foi
discípula de Alain, que lhe chamava, significativamente, a “Marciana”, e continuaria a seguir as aulas dele mesmo depois de já acumular vários certificados de
licenciatura na Sorbonne e de ter sido recebida na Escola Normal Superior.
Esta última, tradicional incubadora do que de mais notável tem surgido no
pensamento francês.
Dir-se-ia, por estes dados, que afinal se tratava de um percurso comum a
muitos dos que constituíam a elite intelectual da França, mesmo se já marcado pela
excelência. No entanto, aquela jovem de óculos redondos, que parecia pouco se
importar com a aparência e o corpo, tornar-se-ia um caso particular. Saída de um
meio familiar como o descrito, viria a ser atraída intensamente pela questão religiosa e legar-nos-ia, nos seus escassos trinta e quatro anos de vida, não só um rico e
complexo percurso pessoal, como uma não menos complexa, multifacetada e fascinante obra dificilmente catalogável.
Quando há muitos anos atrás, de um modo que não consigo reconstituir ainda na cadeia de Peniche -, li referências a Simone Weil, procurei conseguir
o que sobre ela houvesse e por entre as malhas da censura (nacional e prisional)
passasse, assim me chegando às mãos uma biografia em português – penso que
ainda será a única ou uma das poucas traduzidas -, da autoria de Marie Magdeleine
Davy1. Muitos cambiantes do seu pensamento escapavam-me na altura, sendo
1
V. DAVY, Marie Magdeleine – Simone Weil. Lisboa : União Gráfica, 1969.
155
SIMONE WEIL: A “MARCIANA”
sobretudo alguns dos episódios da sua vida que me suscitariam uma espécie de
afinidade electiva, pois mostravam tratar-se de uma personalidade extra-ordinária, no
sentido mais literal da palavra, como extra-ordinária era a permanente vontade de se
elevar, elevando a condição humana.
A grande fonte inspiradora da sua reflexão filosófica foi sempre o pensamento grego, a Antiguidade, génese da nossa civilização, e de onde deriva o que de
melhor nesta subsiste de sentido da beleza, da harmonia, do tempo e da verdade.
Não obstante os desvios surgidos no decurso dos séculos: do sectarismo cristão,
posto ao serviço dos poderes, ao niilismo do século XX anunciado por Nietzsche,
sem esquecer o relativismo pós-moderno dos dias de hoje que, naturalmente,
Simone Weil não conheceu. Escreve ela em L’enracinement: ”Le besoin de vérité est
plus sacré qu’aucun autre. Il n’en est pourtant jamais fait mention2.» Necessidade
de verdade como uma das « necessidades fundamentais da alma », entre as várias
enunciadas no “Prelúdio a uma declaração dos deveres para com o ser humano”,
que ela considerava deverem completar os direitos fundamentais do Homem, nos
quais estava omissa essa dimensão, chamemos, espiritual. Entendendo-se por isto o
que na relação com os outros e o colectivo nos liberta, enquanto pessoas, da mísera
condição animal e material, da estrita condição sociopolítica. Alma num sentido
algo diferente, portanto, de uma noção metafísica associada ao religioso.
Deste modo, quando nesse texto Simone Weil se refere à verdade, não está só
a referir-se à verdade na relação consigo mesmo, com os outros e o mundo, mas
também à verdade intelectual (critica por exemplo Maritain por este afirmar, erradamente, que não havia nenhum texto grego condenando a escravatura), à verdade
na política e na imprensa. Pode-se, assim, sublinhar este traço que percorrerá a sua
obra e, consequentemente, a sua existência, ao qual outros se deverão acrescentar:
a procura da verdade, ou talvez melhor dito – usando expressões sartrianas -, o
desejo de autenticidade, a recusa de todas as formas de má-fé.
No plano intelectual isto exprimia-se por uma curiosidade insaciável, multidisciplinar, e por um questionamento permanente que a tornava, por vezes, quase
impertinente, mesmo agressiva, no relacionamento com colegas ou professores; ou
até apressada e pouco rigorosa em teses e afirmações, como realça George Steiner3.
No plano espiritual, por uma não menos insaciável procura de Deus e de
2
Cf.
3
WEIL, Simone – L’enracinement. Paris: Gallimard, 1999, p.53.
V. STEINER, George – De la Bible à Kafka. Paris: Hachette, 2002, pp.119-131
156
FERNANDO PEREIRA MARQUES
coerência nos fundamentos das religiões, incluindo a dos seus antepassados – o
judaísmo – em relação ao qual é, frequentemente, tão radical na crítica, ou mesmo
violenta, que provocou acusações de anti-semitismo. Mas também no que se refere
ao cristianismo e ao catolicismo exprimia uma exigência quase tornada intransigência, não obstante a sua sede de um absoluto à dimensão humana e até ter passado
por fases de viva exaltação mística. Por tudo isto nunca aceitou integrar-se na Igrejainstituição, onde o que há “de mais puro está misturado com aquilo que mais suja”4
e onde “houve santos obcecados pelo poder da Igreja que aprovaram as Cruzadas e
a Inquisição”. Para ela qualquer religião não deveria pretender-se exclusiva e negar
as outras, posto em todas se plasmar uma idêntica materialização do humano desejo
de transcendência. Além de que a beleza residia também fora do cristianismo e do
religioso que a esse facto se fecham: “Toda a imensa extensão dos séculos passados,
exceptuados os vinte últimos; todos os países habitados por raças de cor; toda a
vida profana nos países de raça branca; na história destes países, todas as tradições
acusadas de heresia, como a tradição maniqueia e a albigense; todas as coisas nascidas
da Renascença, muitíssimas vezes degradadas, mas não completamente sem valor5.”
No plano político, considerava indissociável a afirmação teórica ou doutrinária
da intervenção prática, do engagement militante, da partilha da sorte dos humilhados
e ofendidos, ou daqueles que se batiam no verdadeiro campo da acção onde se
arriscava a vida. E também neste plano, precipitada em certas análises e opiniões,
podia ser impiedosa consigo própria quando descobria erros na avaliação que fizera
de situações concretas, como foi o caso em relação às posições pacifistas assumidas
– em nome do objectivo de defesa da paz – aquando da ascensão do nazismo ( o
mesmo erro foi cometido por muitos outros espíritos superiores , lembro-me de
Stefan Zweig). No caso da guerra civil de Espanha, sempre pacifista, lúcida quanto
à percepção de que o envolvimento directo das democracias no conflito tornaria
inevitável o alastramento à escala mundial, aceita a decisão dos governos, mas considerará imperativo alistar-se nas Brigadas Internacionais.
Munida de credenciais de jornalista – o que a ajudará inclusive a tranquilizar os
pais (naturalmente inquietos) – parte para Barcelona em 1936, contacta o POUM
(Partido Obrero de Unificación Marxista), oferece-se para ir espiar na zona franquista e até indagar sobre o desaparecimento de Joaquim Maurin, cunhado do
4
In Attente de Dieu
5
Ibid. p.91.
cf. DAVY, Marie Magdeleine – Simone Weil. Op. cit., p. 90.
157
SIMONE WEIL: A “MARCIANA”
seu amigo Boris Souvarine – conhecido revolucionário precursor na denúncia do
carácter totalitário do estalinismo . Não sendo aceite, acaba por integrar a coluna
anarquista de Durrutti e participará nalgumas acções, até que – confirmando a sua
crónica distracção e inabilidade – queimou gravemente um pé com azeite a ferver.
Segundo Laura Adler, quando a notícia da sua partida para a guerra chegou ao
círculo dos colegas da Escola Normal, foi acolhida, espontaneamente, por uma
enorme gargalhada colectiva. Na verdade é, digamos, comovente vê-la nas fotos
envergando uma farda onde caberiam dois corpos como o dela, ostentando a sigla
CNT (Confederación Nacional del Trabajo), as calças largas presas por um enorme
cinturão militar. Numa dessas fotos está sem óculos, os olhos míopes brilhando de
inteligência e alegria – como alegre é o sorriso -, bivaque às três pancadas na cabeça;
noutra, com os seus óculos redondos, um lenço – decerto vermelho - à volta do
pescoço e uma pesada espingarda a tiracolo.
Antes de ser evacuada por causa do referido acidente, insistira em bater-se
na frente, contrariando as reservas dos seus chefes, apesar do medo que confessa
na correspondência a alguns amigos, da violência exacerbada, da brutalidade da
guerra e dos seus próprios companheiros, presas do círculo vicioso de represálias
e fuzilamentos que não poupava nenhum dos campos. Ela viverá, por dentro e
sem disfarce, as realidades de um conflito civil, verá como as armas transformam
os melhores sentimentos e ideais, de como se perde a inocência mesmo quando se
luta por causas justas nas motivações e objectivos. Dirigindo-se a Georges Bernanos
– que chegara a sentimentos semelhantes, mas ao apoiar os franquistas – comenta:
“On part en volontaire, avec des idées de sacrifice, et on tombe dans une guerre qui
ressemble à une guerre de mercenaires, avec beaucoup de cruauté en plus et le sens
des égards dus à l’ennemi en moins6. »
Não por acaso, no seu elenco de “ necessidades da alma”, em L’enracinement,
escreve sobre o risco: “ Le risque est un besoin essentiel de l’âme. L’absence de
risque suscite une espèce d’ennui qui paralyse autrement que la peur, mais presque
autant7.” E ela recusa essa « espèce d’ennui », assumindo desafios que a levam a
situações limite no que se refere, não só à resistência moral, mas também física.
Acontecerá o mesmo quando decide trabalhar como operária, desempenhando
duras tarefas numa siderurgia e em cadeias de montagem; quando, professora na
6
Cf.
7
ADLER, Laure – L’insoumise, Simone Weil. Arles: Actes Sud, 2008, p.191.
Cf. WEIL, Simone - L’enracinement. Op.cit., p.49.
158
FERNANDO PEREIRA MARQUES
província – e para escândalo “des gens bien” (como diria Georges Brassens) -, sai à
rua ao lado dos operários e sindicalistas em lutas reivindicativas; ou ainda quando,
vivendo em Marselha, vai trabalhar na agricultura e se envolve em actividades de
resistência contra o regime de Vichy e o ocupante alemão. Por fim, depois de ter
conseguido – a contragosto - exilar-se com a família durante um curto período nos
Estados Unidos, regressa à Europa, concretamente à Inglaterra, para se juntar à
França resistente mobilizada em torno do general De Gaulle. Uma vez em Londres
não se conforma com as funções de “redactora” que lhe atribuem e insiste, até à
impertinência, junto dos seus superiores, para que a enviem para o interior, para
território francês. Queria enfrentar o ocupante de arma nas mãos e partilhar os
perigos quotidianos de quem resistia.
Tanto quanto parece De Gaulle chegará a considerá-la “maluca”, e não será o
único. Há, na verdade, algo de excessivo, ou mesmo de patológico, nesta ânsia de
sacrifício, de entrega, de partilha, que é, simultaneamente, uma busca de absoluto e manifestação de generosidade extrema. Chegará ao ponto de privar-se de
alimentos e de outras comodidades para se sentir mais perto daqueles que sofriam
directamente as consequências da guerra e da ocupação. Fragilizada, morre de
tuberculose no sanatório de Ashford, em 24 de Agosto de 1943.
II
O legado de Simone Weil é, em grande parte, composto por textos dispersos
reunidos postumamente (L´enracinement foi uma compilação feita por Albert Camus).
São uma excepção as Réflexions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale que ela considerava
a sua obra principal. Circunscrevendo-me, nesta breve evocação, essencialmente às
suas ideias políticas e sociais, será pois esse último título que tomarei como ponto
de partida, assim como os diversos trabalhos, notas, apontamentos, publicados sob
o título de La condition ouvrière.
O pensamento político-social de Simone Weil é de uma enorme riqueza e
originalidade no que se refere à visão crítica, não só da sociedade capitalista e da
democracia liberal, mas também do marxismo, na medida em que já percebera,
com inteligência, a verdadeira natureza do regime e do sistema que entretanto se
estavam a construir na URSS (não nos esqueçamos que decorriam os anos 30,
quando muitos intelectuais ocidentais se mantinham encandeados pela grande
ilusão nascida na Rússia). Trotsky, que numa das suas passagens por Paris se cruzará
com ela, enfrentará com dificuldade os seus argumentos e análises contundentes.
159
SIMONE WEIL: A “MARCIANA”
As Reflexões, escritas em 1934, estão semeadas de intuições e de passagens luminosas, com pistas inovadoras que visavam superar as insuficiências da crítica
marxista ao capitalismo e ao liberalismo. Em que consistiam essas insuficiências?
Essencialmente nas derivadas do primado dado à instância económica, à infraestrutura das sociedades – ao modo de produção e às forças produtivas –, que fazia
depender da alteração dessa infra-estrutura o fim da opressão social.
Ora, para ela, a natureza e as causas da opressão são muito mais profundas
e complexas. Desde logo, se o poder depende das condições de vida, não cessa de
transformar estas últimas, pois é a luta pelo poder, a “religião do poder”, que está
no centro dos fenómenos sociopolíticos. E enquanto houver homens que ordenam
e homens que executam, a luta pela subsistência está associada a esta divisão. Porém,
Marx parecia pensar que, uma vez instaurado o socialismo nos países industriais, desapareceria a luta pelo poder. A URSS era o exemplo vivo de que isso não acontecia.
A possibilidade de uma democracia efectiva implicava uma transformação
da “civilização actual” ou, por outras palavras (minhas), uma mudança de paradigma civilizacional. Neste sentido, Simone Weil introduz e equaciona questões
como a da relação dos indivíduos com a sociedade e entre si, o fim da humilhação,
do aviltamento do homem pelo homem, a importância da amizade, da arte, da
cultura. Esta considerada, não só enquanto simples “meio de evasão da vida real”,
mas também como preparação dos homens para essa vida real. Ao que acrescentava o papel da arte enquanto “expressão do feliz equilíbrio entre o espírito e o
corpo, entre o homem e o universo”. Era indispensável, e isso faltara a Marx, “de
se faire au moins une représentation vague de la civilisation à laquelle on souhaite
que l’humanité parvienne », mesmo que essa representação tenha mais a ver
com a “ simple rêverie” do que com o verdadeiro pensamento8. Em síntese: “Les
termes d’oppresseurs et d’opprimés, la notion de classes, tout cela est bien près de
perdre toute signification, tant sont évidentes l’impuissance et l’angoisse de tous
les hommes devant la machine sociale, devenue une machine à briser les cœurs,
à écraser les esprits, une machine à fabriquer de l’inconscience, de la sottise, de la
corruption, de la veulerie, et surtout du vertige9. »
Simone Weil considera, ainda, outras causas da opressão social, as quais aprofundará, muito particularmente, após a sua experiência como operária: a técnica e
8
Cf.WEIL, Simone – Réflexions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale. Paris : Gallimard/Folio, 1998, p.117 e sgts.
9
Ibid., p. 125.1998, p.117 e sgts.
160
FERNANDO PEREIRA MARQUES
os métodos de trabalho industrial, estudados, pormenorizadamente, nalguns dos
vários textos reunidos em A Condição Operária. Para resolver o problema da opressão,
não basta expropriar os capitalistas, alterar a forma de propriedade. A opressão
manter-se-á se não se alterarem as técnicas de produção e a relação dos trabalhadores com as máquinas, se não se transformarem “as propriedades sociais do
maquinismo”. Ao desempenhar tarefas penosas, em fábricas como a Alsthom e
a Renault, durante vários meses de 1934 e 1935 - apesar da sua fragilidade e das
dores de cabeça crónicas de que padecia -, aperceber-se-á da extrema violência
do trabalho à peça e em cadeia, do embrutecimento provocado pela rotina e pelo
cansaço físico, de como se deixa de pensar, durante horas, quando todos os sentidos
estão mobilizados pelo ritmo das máquinas e a necessidade de cumprir os objectivos traçados pelas chefias. Impunha-se: ”Entrevoir une transformation technique
ouvrant la voie à une autre civilisation10.” Ou seja, um desenvolvimento espiritual
no domínio do trabalho.
Mais ainda, ela compreenderá como se estruturam hierarquias entre os próprios
operários, de como são raros os momentos de camaradagem e de fraternidade, o
sistema fomentando a emulação, a rivalidade, a luta pela sobrevivência, a degradação moral e o esgotamento físico. Tornava-se claro, por tudo isto, que a classe
operária não era portadora, por causa da especificidade da sua condição, de uma
diferente civilização, de uma sociedade outra, como pretendia Marx, que nunca
trabalhara numa fábrica. Antes pelo contrário, o “imperialismo operário”, ou seja,
a concentração do poder nessa classe, poderia conduzir ao totalitarismo11, pois a
própria organização da produção nas fábricas impedia a formação de trabalhadores
livres, e que os “ trabalhadores viessem a constituir uma classe dominante”12.
Se pensarmos que escreveu as Reflexões em 1934, é de grande lucidez a análise
que faz da crise que atravessava o sistema capitalista nos países industrializados, dos
limites do expansionismo colonial, e dos factores estruturais que empurravam
esse sistema para a ruptura anunciada. Esta teria como consequência o reforço do
papel do Estado e a “subordinação do económico ao militar”, a “guerra económica
difusa” podendo descambar numa guerra propriamente dita13.
Noutro texto posterior, e só publicado em 1950, a sua reflexão estende-se aos
10
Cf. WEIL, Simone – La condition ouvrière. Paris: Gallimard/Folio,
11
Ibid., p.32.
12
Cf. WEIL, Simone – Réflexions (…). Op. cit., p.143.
13
2002, p37.
Ibid., pp.136-137.
161
SIMONE WEIL: A “MARCIANA”
partidos políticos no quadro da democracia, baseando-se na experiência da partidocracia da III República francesa, assim como no aparecimento de um novo tipo de
partidos de carácter totalitário – os comunistas e os nazi-fascistas . Segundo ela – na
linha de um Roberto Michels ou de um Moisei Ostrogorski – os partidos, estrutural e inevitavelmente, esmagavam o pensamento autónomo dos seus membros e
levavam a que se confundisse o interesse geral e a vontade geral, com as estratégias
dos seus dirigentes, acabando por oprimir espiritualmente as pessoas, a exemplo da
Igreja católica14.
Simone Weil não tem a pretensão de construir ou propor sistemas ou modelos
alternativos. As suas conclusões são em grande medida pessimistas no que concerne
ao futuro imediato, mas não perde a confiança nas potencialidades de mudança dos
indivíduos e das sociedades. Considera que as “gerações que se depararão perante
as dificuldades suscitadas pelo descalabro do regime actual ainda estão por nascer”,
no entanto sabia “que a vida será tanto menos inumana quanto maior for a capacidade individual de pensar e de agir15.”
Em síntese, e fundamentalmente, pensando e agindo numa fase em que a
Europa e o mundo mergulhavam num processo de destruição e de negação do
Homem na sua dignidade, em que se espalhava a morte e a violência, em que se
enfrentavam ideologias totais e totalitárias, Simone Weil, posicionando-se sempre
ao lado das vítimas, dos mais indefesos, dos que lutavam pela sua sobrevivência e
pela sua libertação, contribuirá para pensar a necessidade de superação dos sistemas
políticos existentes, sem se cair no positivismo e no economicismo de correntes de
pensamento – caso do marxismo – que se pretendiam emancipadoras. Ela diz-nos haver
algo nos indivíduos que transcende a sua condição de mortais e de seres sociais,
devendo-se, por isso, melhor estudar e compreender a real natureza dos factores
geradores de opressão, para se poderem delinear as condições de uma efectiva
emancipação. Deste modo, ela surgia então, como dizia Alain, quase como uma
“marciana” no domínio das ideias. Singularidade que se mantém cem anos após o
seu nascimento, tornando-a, ainda nos dias de hoje, uma fonte de inspiração.
14
V. WEIL, Simone – Note sur la suppression générale des partis politiques. Paris : Climats, s.d.7.
15
Cf. WEIL, Simone – Réflexions (…). Op. cit., p.147.
162
A metodologia revolucionária
de Charles Darwin
Joaquim Jorge Veiguinha
1. Charles Darwin nasce em 12 de Fevereiro de 1809 em Shrewsbury,
Inglaterra. Filho do médico Robert Waring Darwin (1766-1848) e de
Susanna Wedgwood (1765-1817), perde a mãe com apenas oito anos de
idade. Charles era, em idade, o penúltimo filho do casal e contava com cinco
irmãs - Marianne, Caroline, Sarah, Susan Elizabeth, mais velhas, e Emily
Catherine, a mais nova - e um irmão mais velho, Erasmus Darwin, que
seguiria a carreira médica do progenitor. De 1818 a 1825, o jovem Darwin
estuda no liceu do Doutor Butler na sua Shrewsbury natal como aluno
interno. Desde pequeno sempre preferiu o contacto com a natureza relativamente ao estudo das línguas clássicas, passando grande parte do seu tempo
livre a desenvolver os seus talentos de coleccionador e a caçar. A experiência
liceal de Darwin revelou-se completamente frustrante, já que o estabelecimento do Doutor Butler nada mais ensinava para além de “alguma geografia
e história da antiguidade”, como refere na sua Autobiografia1.
Os interesses do jovem Darwin seguiram uma direcção completamente
diferente. O seu gosto pela observação, primeira etapa do método científico, cedo se revelou. Teve oportunidade de desenvolver os seus talentos
precoces de naturalista quando o seu irmão mais velho, Erasmus, construiu um pequeno laboratório de química na casinhota de ferramentas do
jardim caseiro onde pôde fazer experiências. Em 1825, Darwin ingressa na
Universidade de Edimburgo para cursar Medicina, como o pai e Erasmus. A
experiência não foi melhor do que a do liceu do Doutor Butler. Para além
do carácter enfadonho do curso e dos professores, o futuro naturalista não
conseguiu suportar a assistência a uma operação sem anestesia a uma criança,
já que só posteriormente o clorofórmio seria descoberto. Consciente da
inaptidão do filho para o curso de Medicina, Robert Darwin envia-o para a
Universidade de Cambridge para estudar Teologia.
1
Darwin, Charles - Autobiografia, Lisboa, Relógio de Água, 2004, p.19.
163
A METODOLOGIA REVOLUCIONÁRIA DE CHARLES DARWIN
Darwin permanece três anos em Cambridge, de 1828 a 1831. A experiência não foi muito melhor do que a do liceu e a de Edimburgo quanto
mais não seja pelo facto de no Christ College, onde Darwin se licenciou,
pontificar o reverendo William Paley (1743-1845), eminência da Teologia
Natural que defendia que apenas um Criador inteligente podia explicar a
origem e as complexas adaptações dos seres vivos. No entanto, Darwin interessou-se sobretudo pelas aulas de botânica e pelo método de ensino do
reverendo John Stevens Henslow (1796- 1861), de quem se tornou amigo.
Com Henslow aprendeu os rudimentos das técnicas de observação e amostragem que desempenharam uma influência assinalável na elaboração da sua
metodologia científica. Henslow esteve também ligado a um acontecimento
que mudou o rumo da vida do futuro naturalista e reforçou extraordinariamente a sua orientação vocacional. Em 1831, Darwin recebe uma carta do
botânico em que é convidado para integrar, como naturalista, a expedição à
volta do mundo do Beagle, navio da marinha real britânica. Graças ao apoio
do tio materno, Josiah Wedgood, conseguiu vencer as resistências iniciais do
pai a esta viagem, embarcando no Beagle em 27 de Dezembro de 1831 e só
retornando a Inglaterra em 2 de Outubro de 1836.
A viagem do Beagle permitiu-lhe alargar os seus horizontes e aperfeiçoar o seu método. A observação da fauna e da flora nas ilhas Galápagos na
América do Sul e os estudos sobre a estrutura geológica de algumas ilhas
foram os resultados mais profícuos da expedição em que Darwin participou. A sistematização dos seus poderes de observação, bem como o início
da segunda etapa da sua metodologia científica, a construção de hipóteses
explicativas fundamentadas, constituem provavelmente os grandes trunfos
desta viagem marítima à volta do mundo. Na sua Autobiografia reconhece que
adquiriu nesses cinco anos um “hábito de activa diligência e atenção concentrada relativamente a tudo aquilo que me ocupava. Tudo o que pensava ou
lia era directamente relevante para iluminar o que tinha visto ou iria provavelmente ver; e este hábito continuou durante muitos anos”2. O resultado
deste “hábito de activa diligência” foi a publicação sob a forma de livro dos seus
diários de bordo sob o título A viagem do Beagle: Viagem de um naturalista à volta do mundo
(“The voyage of the Beagle - a naturalist voyage around the world”), em 1839.
2
Ibidem, p. 68.
164
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
O retorno a Inglaterra não deixou Darwin inactivo. Alojando-se na capital
do império britânico em 7 de Março de 1837, leu diversas comunicações
científicas na Geological Society e começou a preparar o manuscrito sobre as
suas Observações Geológicas, bem como os seus cadernos de apontamentos sobre a
Origem das espécies. Em 29 de Janeiro de 1839 casa com a sua prima direita Emma
Edgewood, filha do tio Josiah, mulher crente, de quem teve oito filhos - seis
rapazes e duas raparigas - dois dos quais Charles Waring e Anne Elizabeth,
morreram respectivamente com dois e dez anos de idade. Em 1841, o casal
abandona Londres para instalar-se definitivamente numa propriedade rural
em Down, no condado de Kent, onde, longe da azáfama londrina, Darwin
pode dedicar-se integralmente às suas pequisas. Graças aos cadernos que foi
redigindo com esmero e espírito sistemático, o grande naturalista elabora o
primeiro esboço da Origem das espécies no Verão de 1842 durante uma visita à
propriedade da família da esposa.
Em Junho de 1858, o jovem naturalista Alfred Russel Wallace (18231913), que se encontrava na Malásia, envia-lhe o ensaio A tendência das variedades
para se afastarem indefinidamente do tipo original (“The tendency of varieties to depart
indefinetly from the original type”) que coincide com as suas teses sobre a
Origem das espécies. Em Setembro de 1857, são publicados no Journal of the proceedings of the Linnean Society, o ensaio de Wallace e um extracto da Origem das espécies,
de Darwin. Porém, o acolhimento dos dois textos foi recebido com indiferença. Dois anos depois, Darwin publica a sua obra-prima cujo título
completo é Sobre a origem das espécies por meio da selecção natural ou a preservação das raças
favorecidas na luta pela existência (“On the origin of species by means of natural
selection or the preservation of the favoured races”). A obra revelou-se desde
logo um enorme sucesso editorial. A primeira edição esgotou-se no próprio
dia. Uma segunda de 3000 exemplares teve a mesma sorte.
Com a Origem das espécies a reputação científica de Darwin consolidou-se definitivamente no Reino Unido e no estrangeiro, apesar da oposição dos inúmeros
adeptos das teorias criacionistas, como o provam as inúmeras traduções da obra.
Em 1871, Darwin publica A origem do homem e a selecção sexual (“The descent of man and
selection in relation to sex”), onde aplica a doutrina da Origem das espécies aos
seres humanos, demonstrando que estes descendem dos primatas. Impressionado
com as afinidades de comportamento entre os símios e o homem, escreve, em
1872, A expressão das emoções nos homens e nos animais (“The expression of
165
A METODOLOGIA REVOLUCIONÁRIA DE CHARLES DARWIN
the emotions in man and animals”), o seu terceiro grande livro. Posteriormente,
publicou diversas obras sobre temas específicos. Morre na casa de Down, com 73
anos de idade, em 19 de Abril de 1882.
2. O primeiro grande mérito da teoria científica de Darwin foi a rejeição
do teleologismo e das causas finais. O autor integra-se assim na grande
tradição científica que remonta a Galileu. A ciência baseia-se fundamentalmente para o grande naturalista britânico na investigação das causas
(eficientes) dos fenómenos naturais do mundo orgânico. Na sua Autobiografia
considera singelamente que esta consiste “em agrupar factos de modo a tirar
deles conclusões gerais”3, definição algo reducionista, mas que exprime, de
certo modo, o fio condutor de uma metodologia contrária à especulação do
modo de pensar baseado na dedução a partir de princípios abstractos sem
fundamento na observação e paciente recolha de dados e informações. Para
Darwin, as espécies não se formaram independentemente umas das outras,
nem forem criadas por um “Artífice Inteligente” a partir de um desígnio
providencial, como pensava o reverendo Paley. As espécies actuais descendem
de outras mais antigas através de um longo processo evolutivo que durou
milhões de anos.
O francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) é o primeiro naturalista
a romper com a teoria criacionista e a avançar, na sua Philosophie zoologique,
publicada em 1809, com a hipótese evolucionista. Para Lamarck, as espécies animais são organizadas de forma linear e ascendente, das mais simples
para as mais complexas - invertebrados, peixes, répteis, aves e mamíferos.
No entanto, considera que cada uma se forma a partir de actos de geração
espontânea, o que acaba por retirar credibilidade científica à sua teoria
evolucionista. A sua grande descoberta, que exercerá uma influência determinante em Darwin, é a hereditariedade dos caracteres adquiridos que lhe
permite demonstrar que em cada linha evolutiva emergem novas variedades
resultantes de mudanças adaptativas que são transmitidas aos descendentes.
Darwin, na verdade, não foi o criador da teoria da evolução, já que tinha
sido esboçada, se bem que de modo incorrecto, por Lamarck. No entanto,
a correcção feita pelo naturalista inglês à teoria do seu precursor foi uma
3
Ibidem, p. 59
166
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
verdadeira descoberta científica que teve como consequência, pese embora a
oposição dos criacionistas da sua época, bem como dos actuais, a consolidação
da teoria da evolução das espécies no âmbito da comunidade científica. As
alterações de Darwin não são de pouca monta, já que todas convergem para a
refutação do ponto débil da teoria lamarckiana da geração espontânea, teoria
ainda tributária de uma explicação metafísica, não-científica, da origem das
espécies. O primeiro grande princípio da teoria evolucionista de Darwin é
que todos os animais e plantas actualmente existentes têm uma origem ou
ascendência comum. Na Origem das espécies defende que os primeiros derivam
de quatro ou cinco formas primitivas e as segundas de um número semelhante ou mesmo menor. Esta hipótese leva-o a concluir que ambos podem
descender de um “protótipo único”, tese verdadeiramente genial numa
época em que a pesquisa científica não possuía os recursos e tecnologias de
que hoje dispõe, e que seria confirmada irrefutavelmente com a descoberta
do ADN, a estrutura genética comum a todos os seres vivos.
Dois outros grandes princípios contribuíram directamente para destronar
a hipótese “espontaneísta” de Lamarck. O primeiro considera que o elo de
ligação do ascendente comum às espécies animais e vegetais actualmente existentes é um conjunto indefinido de formas intermédias que, no entanto,
foram desaparecendo no tempo. O segundo foi a descoberta de um princípio
classificatório dinâmico em que os seres da natureza orgânica são ordenados em
grupos subordinados a outros grupos e se integram numa árvore genealógica,
onde se destaca tanto a ascendência comum como as ramificações ou derivações
de que resultam uma grande diversidade de espécies e variedades cada vez mais
afastadas do antepassado comum. Assim, na grande árvore da vida, se assim a
poderemos chamar, os géneros agrupam-se em classes segundo a ascendência
comum, cada um dos quais se subdivide em espécies e estas em variedades; por
sua vez, os géneros constituem famílias e subfamílias que se distinguem como
ramificações da árvore da vida conforme os diferentes períodos em que começaram a divergir do antepassado comum; por fim, os géneros que descendem
de antepassados diferentes formam ordens distintas, o que não põe de modo
algum em causa a hipótese darwiniana sobre a derivação de um protótipo único
de todos os seres orgânicos, mas apenas confirma a grande diversidade e fecundidade do reino da natureza.
A nova estrutura classificatória em que os seres da natureza surgem inter167
A METODOLOGIA REVOLUCIONÁRIA DE CHARLES DARWIN
ligados, destrona definitivamente a ordenação descritiva e estática do sueco
Carl Lineu (1707-1778) que dominava o panorama da história natural até à
descoberta de Darwin, apesar do naturalista francês Buffon (1707-1788) ter
rejeitado a classificação dos seres da natureza em categorias hierarquizadas
e fixas e ter considerado as espécies como a única categoria natural, o que,
juntamente com Lamarck, o transforma num precursor do autor da Origem
das espécies. Outro dos grandes princípios darwinianos, porventura o eixo
central da sua teoria evolutiva, é o princípio da selecção natural. Segundo
este princípio todos os seres da natureza evoluem através da conservação dos
caracteres que são úteis ao seu desenvolvimento e da eliminação dos que lhe
são nocivos. Trata-se, no fundo, de um lento processo de formação dos seres
da natureza através de modificações que se vão acumulando no decurso do
tempo e são transmitidas aos descendentes. O princípio da selecção natural
contribui tanto para destronar a teoria criacionista da criação simultânea
ou paralela das espécies como para desmentir a tese sobre as transformações repentinas da estrutura dos seres da natureza orgânica, já que, como
gostava de sublinhar Darwin, “a natureza não dá saltos” (Natura non facit saltum).
Este princípio desmente também o axioma criacionista da perfectibilidade
da obra do “Grande Artífice”. De facto, a selecção natural não cria seres
perfeitos, mas apenas relativamente perfeitos quando comparados uns com
os outros. Prova manifesta desta “imperfectibilidade” dos seres da natureza
e do carácter anticientífico da teoria criacionista, é a existência em muitos
deles do que Darwin designa por “órgãos rudimentares”, ou seja, órgãos
atrofiados cujo desenvolvimento foi bloqueado por falta de uso. Estes órgãos
são comparados por Darwin “às letras que conservadas na ortografia de uma
palavra, se bem que inúteis para a sua pronúncia, servem para lhe definir a
origem e a filiação”4.
Mais polémico é o conceito de “luta pela existência” (“struggle for life”),
sobretudo pelo facto da corrente dos chamados darwinistas sociais, em que
se destacam Herbert Spencer e Friedrich Nietzsche, o ter transformado em
princípio omniexplicativo do desenvolvimento social. Para Darwin, este
conceito, para além de constituir um mero corolário do princípio da selecção
4
Darwin, Charles - Origem das espécies, Porto, Lello & Irmão, s.d. Existe do mesmo editor uma edição actualizada: A origem das espécies, Porto, Lello, 2009. As edições portuguesas da Lello foram excelentemente traduzidas
por Joaqim Dá Mesquita Paul.
168
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
natural, é um fruto da influência do Ensaio sobre o princípio da população (“An Essay
on the principle of population”) de Thomas Malthus, publicado em 1798,
e que Darwin leu em Outubro de 1838. Segundo Darwin, a luta pela existência resulta de que todos os seres da natureza tendem a multiplicar-se em
progressão geométrica. Na Origem das espécies cita um exemplo de Lineu em
que uma planta anual produz uma semente num ano, duas no ano seguinte,
depois quatro, oito e assim sucessivamente. Ao fim de vinte anos, o total de
exemplares da tímida plantinha supera o milhão, para ser mais exacto, a soma
dos 20 termos desta progressão geométrica de razão dois é de 1.048.575.
Esta fecundidade da natureza orgânica conduz à conclusão que inúmeros
indivíduos terão necessariamente que ser destruídos em determinados períodos da sua existência, já que, “de outra maneira, invadiriam todos os países
e não poderiam subsistir”5.
O conceito de luta pela existência tem, porém, um significado científico
que supera o absurdo ideológico do princípio do reverendo Malthus que
o aplicava à espécie humana, apesar de deixar uma prolífica descendência.
Para Darwin, este deve ser entendido “no sentido geral e metafórico, o que
implica as relações mútuas de dependência dos seres organizados”6. O naturalista britânico rompe tanto com a teoria criacionista em que as espécies se
formavam separadamente umas das outras, como com as teorias atomistas
para as quais o todo se reduzia à soma de partes discretas. O grande mérito
do autor da Origem das espécies consiste em que cada espécie apenas pode ser
analisada e compreendida em termos científicos na sua relação com as
condições orgânicas e inorgânicas da sua existência e as espécies com que “se
encontra em concorrência para a sua alimentação e habitação, e com a de
todas aquelas que lhe servem de presa ou contra às quais tem de defenderse”7. Deste modo, cai um outro axioma da teoria criacionista que concebe a
natureza como um ente pródigo, mas benévolo e beneficente construído à
imagem do “Grande Artífice”.
Outra grande descoberta de Darwin foi a rejeição dos tipos eternos e
imutáveis. Esta descoberta transforma-se num princípio metodológico
de dimensão científica universal porque extravasa o âmbito das ciências
5
Ibidem, p.62.
6
Ibidem, p.60.
7
Ibidem, p.71.
169
A METODOLOGIA REVOLUCIONÁRIA DE CHARLES DARWIN
da natureza e entra sob uma nova forma no âmbito das ciências sociais.
Para o autor da Origem das espécies, a formação dos seres vivos baseia-se em
duas grandes leis: a lei da unidade de tipo e a das condições de existência.
A primeira pode ser definida na linguagem actual como a estrutura de
todos os seres vivos que pertencem a uma mesma classe, ou seja, que têm
uma ascendência comum, e que é independente do seu modo de vida.
A unidade tipo remete para a unidade de descendência e para a transmissão dos caracteres hereditários no seio das espécies da mesma classe.
Em contrapartida, a lei das condições de existência depende do princípio da selecção natural através do qual as espécies se vão adaptando às
suas condições orgânicas e inorgânicas de existência e se transformam no
decurso do tempo. O “estatuto” das duas leis não é, porém, igual, o que
constitui outra importante descoberta de Darwin: “a lei das condições de
existência é, de facto, a lei superior, pois que compreende pela hereditariedade das variações e das adaptações, a da unidade de tipo”8.
Estas considerações são importantíssimas, pois subentendem um
princípio fecundíssimo no âmbito tanto das ciências da natureza como
das ciências da sociedade: o princípio de que a chave para a compreensão
do mais simples parte do estudo do mais complexo. Ou seja, utilizando a
terminologia darwiniana, a lei das condições de existência é mais abrangente e compreensiva do que a lei da unidade de tipo. Justamente por
isso pode e é, de facto, a chave para a compreensão da primeira, já que
os próprios caracteres hereditários que resultam da ascendência comum
não são eternos e imutáveis, mas estão submetidos à mudança e à transformação à medida que as espécies evoluem no tempo. Esta evolução
consiste no aparecimento de umas e no desaparecimento de outras através
de um processo de renovação incessante que passa por um conjunto
indefinido de formas intermédias cuja “reconstrução mental” é extraordinariamente difícil pelo facto de que apenas nos restam fragmentos de
vestígios fósseis. Mas esta dificuldade não é uma prova da fragilidade da
metodologia e da teoria de Darwin. Outra das provas da sua robustez, a
que Darwin dava grande importância, é a tese de que “os animais antigos
e extintos parecem-se até certo ponto, aos embriões dos animais vivos
8
Ibidem, p.194.
170
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
e pertencentes à mesma classe”9. Esta tese, para além de reforçar a ideia de
uma ascendência comum a todos os seres da natureza orgânica - os embriões dos
répteis, aves e mamíferos são semelhantes uns aos outros, apesar das significativas
diferenças das formas adultas -, significa que é através da análise destes embriões
que poderá reconstruir-se mentalmente, juntamente com os vestígios fósseis, a
história natural das espécies. Mais uma vez, a chave para a compreensão do mais
simples reside no estudo do mais complexo.
Ao contrário da teoria do seu precursor Lamarck, a teoria evolucionista de
Darwin não é uma teoria linear. Tal como as novas espécies não se formam
imediatamente, ou seja, por geração espontânea, também as antigas não se extinguem imediatamente. Esta concepção inaugura um outro princípio científico
metodológico de dimensão universal. Poderemos designá-lo por princípio da
coexistência entre formas dominantes e formas não dominantes. Para Darwin,
as espécies novas, ou seja, as que se encontram num patamar superior da escala
evolutiva, continuam a reproduzir-se, a espalhar-se e a diversificar-se, roubando
o predomínio às formas mais antigas. Estas, porém, continuam a resistir em
grupo durante um certo tempo, até que desaparecem definitivamente. Isto
significa que a existência de seres mais aperfeiçoados no processo evolutivo é
perfeitamente “compatível com a persistência de seres numerosos, conservando
ainda uma conformação elementar e pouco perfeita, adaptada às condições de
existência simples”10. Mais uma vez se poderá concluir com Darwin que Natura
non facit saltum.
3. A teoria de Darwin teve implicações controversas, apesar do seu inegável
valor científico. O darwinismo social foi uma doutrina completamente alheia às
intenções do naturalista britânico que despontou no século XIX e que ainda hoje
imprime a sua marca. O filósofo e sociólogo Herbert Spencer (1820-1923),
contemporâneo de Darwin, foi o fundador desta doutrina. A sua teoria parte do
princípio de que tanto os seres da natureza como os seres sociais se desenvolvem
através de um progresso contínuo do mais homogéneo ou indiferenciado para
o mais heterogéneo e diferenciado. O motor desta expansão é uma permanente
luta pela existência e pelos meios de conservação em que triunfam os mais aptos.
9
Ibidem,
10
p.361.
Ibidem, p.476.
171
A METODOLOGIA REVOLUCIONÁRIA DE CHARLES DARWIN
Se é certo que o princípio spenceriano da “sobrevivência dos mais aptos”
influenciou a teoria de Darwin sobre a selecção natural, também é verdade que
Spencer e os seus discípulos extrapolaram este princípio, que em Darwin se
integra no conceito da “struggle for life”, para a sociedade, transformando-o
numa categoria teleológica omnicompreensiva que pretendia explicar a evolução
do universo. Porém, na realidade, este não dá conta dos fenómenos da natureza
e muito menos dos fenómenos sociais. A teoria de Spencer ao tentar reduzir o
progresso a um princípio generalista acaba por não explicar nada em concreto,
porque se abstrai das diferenças e da diversidade tanto no seio da natureza como,
por maioria de razão, nas sociedades historicamente determinadas.
Uma das provas mais evidentes da falsidade da “hipótese” spenceriana que a antropologia científica destroçou completamente relegando-a para o
caixote do lixo da indigência teórica - é a ideia de que a conformação anatómica dos homens “civilizados” é mais “perfeita” do que a dos homens “não
civilizados”. Spencer defende que as pernas dos papuas são muito “curtas”
relativamente aos braços e ao corpo, ao contrário do que acontece com os
europeus civilizados, em que esta “desproporcionalidade” entre a dimensão
dos membros inferiores e as “extremidades superiores” não existe. Spencer
não hesita em defender que a heterogeneidade ou complexidade biológica e
anatómica dos europeus colonialistas e civilizados marca a sua superioridade
relativamente aos selvagens para concluir de acordo com o seu princípio
explicativo que “o homem civilizado possui também o sistema mais complexo
ou heterogéneo do que o homem civilizado, facto que corresponde à maior
relação que o cérebero do primeiro tem com os gânglios subjacentes”11.
Este exemplo que denota, além do mais, uma concepção racista e eugenista sobre a evolução da espécie humana, revela bem os radicais limites e
insuficiências da “metodologia” de Spencer quando pretende deduzir o
que chama “progresso” de um princípio especulativo indiferenciado. Mas
a “teoria” de Spencer piora quando pretende explicar o que designa por
“progresso na sociedade”. A passagem do homogéneo para o heterogéneo ou
das sociedades “primitivas ou indiferenciadas” para as sociedades “complexas
e diferenciadas” do mundo dito “civilizado” faz-se através do aprofundamento
da divisão social do trabalho que acaba por converter-se em princípio explica11
Spencer, Herbert - Do progresso, sua lei e sua causa, Lisboa, Cadernos Culturais Inquérito, s.d.
172
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
tivo do contraste ou separação entre governantes e governados. Esta separação
depende, porém, de um conjunto de condições históricas que não são as mesmas
no feudalismo e na liberal-democracia, pelo que não podem ser explicadas
simplicisticamente através de um princípio abstracto e omnicompreensivo. O
próprio Darwin não era adepto da “metodologia” dedutivista spenceriana. A
este propósito, escreve na sua Autobiografia: “Não estou consciente de ter tirado
proveito das obras de Spencer no meu trabalho. O seu modo dedutivo de tratar
todo e qualquer assunto é completamente oposto ao meu modo de pensar. As
suas conclusões não me convencem (...) as suas generalizações fundamentais (que
foram comparadas por algumas pessoas com as leis de Newton!) - as quais creio
que possam ser muito valiosas sob um ponto de vista filosófico, são de tal natureza
que não me parecem ter qualquer utilidade estritamente científica. Têm mais
características comuns com definições do que com leis da natureza”12.
Outro importante darwinista social foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844-1900). Adversário feroz da democracia e da igualdade social e política,
Nietzsche considera que a “imperfeição” da vida social reside precisamente em
que a lei da sobrevivência do mais apto é restringida pelas leis morais e políticas
predominantes em que triunfa a “massa”. Na sua obra A genealogia da moral, publicada em 1887, considera que “sob o ponto de vista biológico, as condições de
vida legais são restrições da vontade de viver propriamente dita, que tende para
a dominação, e estão subordinadas a esta tendência geral como meios de dominação mais vastos”13. Na obra A vontade de poder (“Der Wille zur Macht”), publicada
postumamente em 1901, Nietzsche aprofunda a sua “perspectiva” biológica de
poder, confessando-se como um incondicional discípulo da “escola de Darwin”:
“Vejo todos os filósofos, vejo a ciência ajoelharem-se perante uma realidade que
é o contrário da luta pela existência como é defendida pela escola de Darwin isto é, vejo no topo, sobrevivendo em toda a parte, todos os que comprometem
a vida e o valor da vida (...) Vejo como os inferiores predominam através do
seu número, da sua astúcia, da sua perspicácia (...) Encontro a «crueldade da
natureza», de que tanto se fala, noutras paragens: ela é cruel para com as suas
criaturas mais dotadas, poupa, protege e ama les humbles...”14.
12
Darwin,Charles
13
- Autobiografia, Lisboa, Relógio de Água, pp. 98-99.
Nietzsche, Friedrich - A genealogia da moral, Lisboa, Guimarães & C. a , 1976, pp. 69-70. Esta péssima tradução
portuguesa
obrigou-me efectuar algumas correcções sob pena desta passagem se tornar inexplicável.
14
Nietzsche, Friedrich - The will to power, New York, Vintage Books, 1968, p. 365.
173
A METODOLOGIA REVOLUCIONÁRIA DE CHARLES DARWIN
O mestre não reconheceria certamente este discípulo e proclamar-se-ia
certamente não-darwinista. Ao contrário de Rousseau, Nietzsche e os darwinistas sociais consideram que os fundamentos da desigualdade entre os seres
humanos têm origem na natureza e não na sociedade. Neste sentido, o princípio
da luta pela existência e pelo predomínio transmuta-se em princípio universal
do desenvolvimento social. No entanto, é precisamente o contrário que acontece, já que as sociedades progridem quanto mais os seres humanos conseguem
libertar-se do reino da necessidade, ou seja, superar a luta naturalista pela existência, esse hegeliano”reino animal do Espírito”, e se aproximam cada vez mais
do reino da liberdade, baseado na cooperação e na emancipação da opressão e
da exploração de muitos por alguns poucos. Natureza e sociedade são realidades
distintas e contrapostas: o que é válido para a primeira encontra a sua superação
na segunda, apesar do homem participar na natureza como organismo. Tratase, porém, de um indivíduo sui generis, já que, ao contrário dos demais seres da
natureza, é susceptível de aperfeiçoamento voluntário, consciente e deliberado.
Resultado tardio dos mecanismos da selecção natural, o ser humano é o ponto
de partida para a sua superação, pois é o único ser da natureza capaz de agir consciente e deliberadamente sobre ela com vista a libertar-se da sua dependência e
de transformar as suas próprias condições de existência.
O darwinismo social não passa de um aborto degenerado da teoria de
Darwin. Pode ser comparado àqueles órgãos rudimentares que na teoria do
grande naturalista exprimem a imperfeição dos mecanismos da selecção natural:
o darwinista social não passa de uma falha no mecanismo da evolução da espécie
a que retrógradas contingências ideológicas atribuíram relevância no período da
pré-história do homem. A metodologia revolucionária de Darwin teve, porém,
outros que lhe fizeram justiça e contribuíram para potenciar o seu significado.
Entre estes, destaca-se, sobretudo, Karl Marx (1818-1883). Frequentemente,
tem-se sobrestimado a influência de Hegel na formação intelectual do filósofo
alemão, mas tem-se esquecido ou simplesmente subestimado o legado do autor
da Origem das espécies. Os vestígios deste legado na obra de Marx não constituem
teias de aranha ou provas fósseis, mas avanços determinantes para a interpretação
e compreensão científica do mundo histórico social. Destacamos o conceito
marxista de “Formação Social” como combinação ou coexistência dinâmica de
modos de produção em que um deles é dominante e sobretudo o princípio de
que a chave para a compreensão do mais simples encontra-se no estudo do mais
174
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
complexo, princípio que se tornaria o núcleo da metodologia científica de Marx:
“A sociedade burguesa é a organização histórica de produção mais desenvolvida
e mais variada que existe. Por este facto, as categorias que exprimem as relações
desta sociedade e que permitem compreender a sua estrutura, permitem ao
mesmo tempo perceber a estrutura e as relações de produção de todas as formas
de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se edificou, de que
certos vestígios, parcialmente, ainda não apagados continuam a subsistir nela, e
de que certos simples signos, desenvolvendo-se nela, se enriqueceram de toda a
sua significação. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. Nas
espécies animais inferiores só se podem compreender os signos denunciadores
de uma forma superior, quando essa forma superior já é conhecida”15.
Outro legado de Darwin na teoria de Marx foi sem dúvida a que refere a
unidade de tipo às condições de existência. Tal como Darwin defendeu que a
unidade de tipo ou a estrutura de todos os seres da natureza que tinham um
ascendente comum devia ser referida às suas mutáveis condições orgânicas e
inorgânicas de existência, também Marx considerou que os géneros intelectuais
(conceitos, ideias) não eram eternos e imutáveis, mas deviam ser referidos à
“espécie social”, ou seja, às condições histórico-sociais de existência dos homens,
de que constituíam apenas uma parte, e não o todo. Isto não significa que Marx,
que se autoconfessava não-marxista, fosse darwinista. Apenas significa a possibilidade de construção de uma metodologia que, apesar de reconhecer a diferença
específica entre ciências da natureza e ciências da sociedade, não se encerra num
dualismo irredutível ou num reducionismo que põe em causa a diversidade do
objecto de uma e de outra, mas se propõe redimensionar as afinidades electivas de
uma pesquisa e de um projecto científicos que são, no fundo, comuns a ambas.
15
Marx, Karl - Contribuição para a crítica da Economia Política, Lisboa, Editorial Estampa, 1973, p. 234.
175
176
PARLAMENTO
Dossiê especial:
“Debate sobre a reforma do sistema eleitoral”
Organização:
André Freire, com Manuel Meirinho e Diogo Moreira
Introdução
A pedido da direcção do grupo parlamentar do Partido Socialista (PS),
na pessoa do Dr. Alberto Martins, a quem aproveitamos para saudar vivamente daqui, realizámos um estudo sobre a reforma do sistema eleitoral para a
Assembleia da República que foi publicado em livro.1
O referido estudo foi intensamente debatido, nomeadamente na imprensa
e nos blogues, seja na sequência da divulgação do livro, seja na sequência de
uma apresentação da pesquisa na Assembleia da República, numa conferência
parlamentar organizada pelo grupo parlamentar do PS, 4/12/2008, presidida por Alberto Martins, e que, além dos autores do estudo, contou com os
comentários de Manuel Braga da Cruz, Jorge Reis Novais, Marina Costa Lobo,
António Araújo e Vital Moreira.
Nomeadamente para memória futura, e até porque o debate se revestiu de
uma assinalável qualidade, pensámos em organizar os principais documentos
publicados na imprensa e nos blogues neste número especial da Finisterra – revista
de reflexão e crítica. Prontamente a direcção da revista e o seu conselho editorial
concordaram com a ideia. Pelo facto agradecemos e nos congratulamos aqui.
Devido às limitações de espaço, tivemos que operar uma selecção das notícias e dos artigos de opinião saídos na imprensa, os quais foram em número
bastante superior às peças que aqui reproduzimos. No caso das notícias, apesar
de numa primeira fase temos pensado incluir algumas delas (nomeadamente
porque, pelo menos algumas delas, descreviam de forma fiel, precisa e exaustiva o estudo que fizemos2), no final, e por decisão do conselho de redacção
e adicionais constrangimentos de espaço, apenas mativemos uma notícia, da
1
André Freire, Manuel Meirinho, Diogo Moreira (2008), Para uma melhoria da representação política. A reforma do sistema eleitoral,
Lisboa,
Sextante.
2
Aproveitamos para agradecer aos jornalistas, Sónia Sapage (Visão), Paulo Martins (JN), Sustete Francisco (DN) e João
Pedro Henriques (DN) a amabilidade e a generosidade em nos terem facultado de imediato as notícias que fizeram
sobre o assunto para reproduzirmos na Finisterra.
177
autoria da jornalista São José Almeida (Público, 6/11/2008), “Parlamento:
Proposta de reforma do sistema eleitoral está nas mãos do PS”. A opção deveuse a ser a peça jornalistica simultaneamente mais precisa, mais fiel e mais
exaustiva quanto aos contornos fundamentais da proposta, e além do mais
acompanhada de um mapa sobre o desenho dos círculos que é proposto no
livro. Pensou-se, por isso, que a inclusão desta notícia seria uma boa forma de
introduzir o tema aos leitores, embora os editores do dossiê considerem que a
integração das outras peças também beneficiaria o mesmo.3
Globalmente, a selecção que infelizmente tivemos que operar pautou-se
por três critérios fundamentais: primeiro, a qualidade das peças; segundo,
abranger tanto quanto possível a diversidade dos órgãos de informação – embora
não tenhamos podido ser exaustivos; terceiro, abranger tanto quanto possível
a diversidade dos argumentos e posições defendidas.4 Aproveitamos para agradecer aqui a disponibilidade dos vários directores de jornais e revistas (Diário
de Notícias, Expresso, Jornal de Leiria, Jornal de Notícias, Público, Visão e Le Monde Diplomatique
– Edição Portuguesa), que pronta e generosamente nos facultaram as peças e
nos deram permissão para a sua republicação.
Pretendiamos ainda republicar vários textos de qualidade que foram divulgados nos blogues. Porém, as limitações de espaço impediram-nos de os
aproveitar e republicar aqui. De qualquer modo, gostaríamos de agradecer aqui
a todos os autores (Filipe Nunes/Outubro, Miguel Poiares Maduro/Gerção
de 60, Paulo Trigo Pereira/Outubro, Pedro Magalhães/Margens de Erro e
Sedes, Rui Valada/página pessoal) pela pronta generosidade de nos facultarem
as suas peças para republicação.
Porque o espaço de que dispomos não é muito, passamos de imediato ao
dossiê com as referidas peças. As mesmas estão organizadas em dois subcon-
3 Pretendiamos também incluir a entrevista a Paulo Trigo Pereira (Público, 26/1/2009), intitulada “Falta liberdade de
voto em Portugal”, por se tratar da posição de um investigador com algum trabalho publicado na área, nomeamente
na revista Electoral Studies, e, além disso, expressar uma posição singular e fundamentada sobre os problemas do sistema
eleitoral vigente e deixando subentendida uma determinada linha de reforma como mais adequada (no sentido de se
concederem “mais liberdade de voto e mais possibilidades de escolha” aos eleitores, tal como também defendemos no
estudo).Ver Paulo Trigo Pereira e João Andrade e Silva (2009), “Citizens’ freedom to choose representatives: ballot
structure, proportionality and «fragmented»’ parliaments”, Electoral Studies, 28, pp. 101-110.
4 No caso dos artigos de opinião, e por idênticas razões àquelas que presidiram à exclusão de quase todas as notícias,
tivemos ainda de excluir a recensão sobre o nosso livro (ver nota 1) saída no Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa,
na edição de Maio de 2009. Na verdade, não se tratava exactamente de um artigo de opinião mas sim de uma recensão.
De qualquer modo, aproveitamos para agradecer à autora, a Professora Conceição Pequito (ISCSP-UTL), e à direcção
do Le Monde Diplomatique – Edição Portuguesa a cedência do artigo para republicação.
178
junto: as “notícias” (isto é, os artigos de São José de Almeida), primeiro, e
os “artigos de opinião”, depois. Em cada subconjunto, os textos estão (geralmente) organizados por ordem cronológica. Em pé de página, são sempre
referidas a fonte e a data da publicação original. Adicionalmente, refira-se
que, sempre que um determinado estudo era citado na peça (geralmente de
forma incompleta), decidimos colocar na peça a referência bibiográfica citada
de forma completa.
André Freire
Manuel Meirinho
Diogo Moreira
179
Parlamento: Proposta de reforma do sistema eleitoral está
nas mãos do PS1
São José Almeida2
S
e a reforma for aceite, vem aí a aproximacão entre eleitos e eleitores, sem rupturas
com a proporcionalidade.
Não é uma revolução no sistema eleitoral para a Assembleia da República nem propõe
mudanças radicais. Apenas procura cumprir o objectivo de aproximar os cidadãos da
política e dos políticos. A proposta de reforma do sistema eleitoral, preparada por André Freire,
Manuel Meirinho e Diogo Moreira3, mantém a actual natureza proporcional do apuramento de
votos e as bases para a governabilidade do país, aumentando-as até.
A reconciliação dos cidadãos com a política seria feita através da substituição dos actuais círculos
distritais por dois novos tipos de círculos: os primários, ou locais, e o secundário, ou nacional.
O estudo ultrapassa assim a ideia de que esta aproximação só seria conseguida através de círculos
uninominais, os quais, dizem os autores, distorcem a proporcionalidade.
Dois boletins
Não há entre os círculos locais e o nacional transferência de votos. Os eleitores exprimem-se
através de dois boletins de voto. No círculo nacional, votam em partidos, em boletins de voto idênticos aos actuais. A novidade é a criação de um boletim de voto para o círculo local, em que, além
de se votar em partidos, surgem também os nomes dos candidatos, para que se saiba quem se está a
eleger.
Aqui, os autores aconselham mesmo que o PS proponha a adopção de um sistema de listas
fechadas, mas não bloqueadas, com voto preferencial. Isto é, no boletim, além do partido, pode-se
votar no candidato que o eleitor quer como seu deputado.
Estas são algumas das principais mudanças propostas pelo estudo, elaborado por estes três
académicos a pedido do PS e que será apresentado e debatido pelos socialistas e pelos autores em
sessão pública a decorrer, em princípio, a 4 de Dezembro.
O estudo analisa comparativamente o sistema eleitoral português com os dos 27 países da União
Europeia e ainda da Islândia, Noruega e Suíça. Opta por um sistema eleitoral proporcional de
múltiplos segmentos (círculos), idêntico ao vigente na Dinamarca e na Suécia. Uma fórmula que,
segundo os autores, assegura a maior pluralidade, mantendo o nível de representação proporcional
actual, para que não haja mudanças radicais na representatividade de cada partido.
A preocupação com a estabilidade do sistema leva os autores a propor que sejam adoptadas
algumas medidas absolutamente novas no sistema político português. Ainda que concluam que
Portugal é dos países com menos partidos políticos representados no Parlamento, os autores
defendem que, em nome da continuidade, se evite a fragmentação partidária.
1
Público, 6/11/2008.
2
Jornalista.
3
E publicada em livro como André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, Para uma melhoria da representação
política. A reforma do sistema eleitoral, Lisboa, Sextante, 2008.
180
229 Deputados
Para o conseguir, propõem que seja adoptada a barreira dos 1,5 por cento dos votos como limite
mínimo para um partido eleger deputados pelo círculo nacional. Já quanto aos círculos locais, se o
PS optar por propor o voto preferencial em lista não bloqueada, então os autores sugerem a adopção
de uma barreira mínima de sete por cento dos votos que cada candidato nominalmente votado tem
que obter em relação à votação do respectivo partido para ser eleito.
Para aumentar a estabilidade governativa e facilitar as soluções de governo, o estudo propõe
também que seja introduzida a moção de censura construtiva. Ou seja, que uma moção de censura
só possa ser apresentada por quem tenha uma solução de governo alternativa. Neste domínio, é
também aberta a porta a que os partidos possam fazer coligações apenas para a contagem de votos e
eleição de deputados, potenciando resultados (apparentement).
Da comparação com os sistemas eleitorais e políticos dos 30 outros países analisados resulta a
conclusão de que o Parlamento português não é grande, pelo que é mantido o seu tamanho. Apenas
é proposta a diminuição de 230 para 229 deputados, para facilitar as votações e evitar eventuais
empates.
Os autores fizeram várias simulações para encontrar o modelo que, na sua opinião, garante
o nível de proporcionalidade e de governabilidade. Dentro do modelo encontrado, apresentam
também várias soluções.
Hare por Hondt
Afirmando que é o que menos desproporcionalidade cria, optam por indicar como preferencial um mapa eleitoral de 14 círculos locais no continente, número obtido pela agregação e partição
dos actuais 18 círculos distritais. Admitem a manutenção dos círculos de Açores e Madeira ou a sua
agregação num só, e a mesma solução para os círculos da emigração.
Outra alteração é a substituição do método de Hondt pelo método de Hare no que toca à
distribuição de mandatos pelos círculos locais, para assegurar uma maior representatividade. No
apuramento dos deputados eleitos mantém-se o método de Hondt.
Quanto ao número de deputados a eleger por cada círculo, o estudo apresenta sete propostas,
em que o número de deputados a eleger no círculo nacional vai de 49 a 109. A referência para a
criação deste círculo nacional é o actual círculo de Lisboa (50 deputados). É através deste círculo que
é hoje conseguida menor distorção de proporcionalidade. Já os restantes deputados são distribuídos
pelos outros círculos locais, em ordem de grandeza inversamente equivalente. Mas dez mandatos são
sempre atribuídos a ilhas (seis) e imigração (quatro).
Depois de aplicar os resultados das várias legislativas aos sete modelos, os autores concluem que
o modelo que mais garante uma proporcionalidade próxima da actual é aquele em que são eleitos
99 deputados pelo círculo nacional. Se baixar o número de eleitos pelo círculo nacional, aumenta a
distorção da proporcionalidade, prejudicando os pequenos partidos.
181
Dez diferenças essenciais4
São José Almeida
D
ez diferenças essenciais separam o sistema eleitoral em vigor e o proposto pelo estudo
encomendado pelo PS.5 O sistema continua proporcional, mas aproxima os cidadãos
da política através de mecanismos como círculos locais mais pequenos, em que cada
um pode até votar no seu deputado. O círculo nacional garante a proporcionalidade,
limitando as distorções.
1. Tipo de sistema eleitoral
Em vigor
Representação proporcional com um segmento de círculos distritais.
Proposta
Representação proporcional com segmentos múltiplos, incluindo locais e nacional, mas estes
são independentes entre si e não há transferência de votos.
2. Número total de deputados
Em vigor
230 deputados.
Proposta
229 deputados para evitar empates
3. Estrutura dos círculos
Em vigor
1. Círculos distritais plurinominais. São 18 no continente;
2. Círculos de base não espacial: dois para a imigração;
3. Círculos das ilhas: são dois.
Proposta
1. Círculos primários ou locais: são plurinominais; o seu número depende da opção tomada
em relação à quantidade de deputados a eleger no círculo nacional. Na proposta escolhida pelos
autores existem 14 resultantes de agregação e divisão dos actuais círculos (ver Mapa em anexo);
2. Círculo secundário ou nacional: é de lista plurinominal e os autores apontam a quantidade de 99
deputados a eleger neste círculo como forma de manter a proporcionalidade em termos idênticos à que existe e
de evitar que os partidos saiam beneficiados ou prejudicados em relação à representatividade que tem existido;
3. Círculos com base não espacial: dois para a imigração ou um só;
4. Círculos das ilhas: são dois mas poderão ser também agregados em um.
4. Distribuição de mandatos
Em vigor
A distribuição dos mandatos pelos círculos é feita pelo método de Hondt.
Proposta
A distribuição dos mandatos pelos círculos é pelo método de Hare.
4
Público,
5
6/11/2008.
André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, op. cit.
182
5. Sistema de listas e de voto
Em vigor
As listas são fechadas e bloqueadas.
Proposta
Nos círculos primários ou locais, as listas são fechadas e não bloqueadas, permitindo o voto preferencial opcional, em que o eleitor vota no partido e escolhe o seu candidato assinalando uma cruz no seu
nome - ou, em alternativa, o voto preferencial obrigatório, com ordenação alfabética dos candidatos nas
listas; no círculo secundário ou nacional, a lista é fechada e bloqueada e o voto é no partido apenas.
6. Boletins de voto
Em vigor
Há um boletim em que os partidos aparecem por ordem de sorteio com o nome e a sigla.
Proposta
Haverá dois: nos círculos primários, são identificados os partidos (símbolo e sigla) e os candidatos (nome e pronome), sendo que a ordenação dos partidos é feita por sorteio; no círculo
secundário, são identificados apenas os partidos (símbolo e sigla).
7. Apuramento dos deputados
Em vigor
O apuramento é pelo método de Hondt, com a distribuição dos mandatos pelos candidatos de
acordo com a ordem de colocação na lista.
Proposta
Nos círculos primários o apuramento é pelo método de Hondt, com a distribuição dos mandatos pelos
candidatos a partir do maior número de votos nominativos recebidos, desde que atinjam em votos nominativos
sete por cento dos votos atingidos pelo respectivo partido; no círculo nacional, o apuramento é pelo método de
Hondt, com a distribuição dos mandatos pelos candidatos de acordo com a ordem de colocação na lista.
8. Apparentment
Em vigor
Não há.
Proposta
Nos círculos primários, as listas podem fazer coligações para distribuição de mandatos (apparentment).
Os partidos têm que declarar antes das eleições que, naquele círculo, concorrem “aparentados”.
9. Limite no círculo nacional
Em vigor
Não há.
Proposta
Cláusula de barreira de 1,5 por cento. Cada partido tem que obter esta percentagem de votos
para poder receber mandatos.
10. Moção de censura construtiva
Em vigor
Não há.
Proposta
Quem quiser fazer cair um governo através de moção de censura tem de ter uma solução alternativa de constituição de governo.
183
184
O Sistema eleitoral1
José Carlos Vasconcelos2
H
á muitos, muitos, anos que a mudança do sistema eleitoral para a Assembleia da
República (AR) está na ordem do dia e que defendo um sistema misto, à alemã,
de representação proporcional personalizada. Os dois maiores partidos, PS e
PSD, andam há mais de uma dúzia de anos para a fazer, e não fazem, apesar de
já na revisão de 1997 terem alterado a Constituição para permitir os círculos uninominais,
pedra-de-toque dessa mudança, com a condição de manter (ou aumentar) a proporcionalidade, com aproveitamento de restos, através de um círculo nacional, acompanhado ou não de
círculos regionais.
O PS tomou o compromisso dessa mudança nos Estados Gerais de 1995, a mais participada,
aprofundada e aberta à sociedade civil iniciativa política que alguma vez promoveu. Nesse sentido,
e com base em estudos tornados públicos, apresentou propostas e projectos, o último em 2002.
E o mesmo compromisso assumiu nesta legislatura só que de novo não o vai cumprir, sem explicação plausível e sem desculpa.
Entretanto, como já se percebia, o PS mudou de posição e deixou cair os círculos uninominais. Como também resulta de um estudo sério e de qualidade (da autoria de André Freire, que
o dirigiu, Manuel Meirinho e Diogo Moreira)3, encomendado pelo partido para fundamentar
um novo projecto. De facto, o que nele se propõe é um sistema misto, com um amplo círculo
nacional, mas sem círculos uninominais, antes com círculos plurinominais «primários», por
áreas geográficas, a maioria deles para eleger 5/6 deputados.
Ora, assim não se consegue a personalização do deputado indispensável para a efectiva ligação
entre eleitores e eleitos.
Tenho consciência dos riscos que os círculos uninominais comportam, só que creio serem
maiores as suas vantagens do que os seus inconvenientes. (Mesmo sem eles, o sistema proposto
representa, porém, uma assinalável melhoria face ao actual, sobretudo se nos círculos primários
a lista for fechada, não bloqueada. Isto é: se o cidadão puder escolher o candidato em que vota
o que, aliás, pode ter maiores riscos do que os imputados pelos autores aos círculos uninominais...) Uma das vantagens, segundo o estudo, dos círculos plurinominais, com voto em lista, é
que com eles «mantém-se, pelo menos teoricamente, um maior controlo dos partidos sobre os
deputados». Pois é, mantém-se mesmo, não é só teoricamente.
E a minha firme convicção é ser este o principal motivo para o PS não cumprir o seu compromisso e alterar a sua posição...
1
Visão, 20-11-2008
2
Jornalista.
3
Freire, André, Manuel Meirinho e Diogo Moreira, (2008), Para a Melhoria da Representação Política: A Reforma do
Sistema Eleitoral, Editora Sextante.
185
Só que, para mim e creio que para a maioria dos cidadãos, o partido ter menos «controlo»
sobre os deputados não é um inconveniente, antes uma grande vantagem.
Mais: uma absoluta necessidade democrática.
O estudo diz, com razão, ser mais «moroso, sensível e dispendioso» desenhar os círculos
uninominais do que os plurinominais. Porém, não menos difícil será mudar de novo a
Constituição para poder concretizar duas das suas propostas: a) a substituição, com que concordo,
do método de Hondt pelo da quota de Hare, que aumenta a proporcionalidade na distribuição
dos mandatos pelos círculos; b) a muito discutível criação de uma cláusula-barreira exigindo,
pelo menos, 1,5% dos votos, no círculo nacional, para um partido poder eleger deputados.
Por último, Freire e seus colegas propõem: 1) descer de 230 para 229, para não permitir
empates, o número de deputados (creio admissível um número não inferior a 201); 2) a possibilidade de nos círculos primários haver coligações para distribuição de mandatos (apparentment), o
que me suscita dúvidas; 3) a «moção de censura construtiva», o que implica só se poder derrubar
um Governo no Parlamento assegurando a constituição de outro. Do que discordo, por julgar
legítimo entender-se, em certo momento, que o quadro parlamentar esgotou as suas virtualidades para gerar Executivos, sendo o Governo derrubado para abrir caminho a novas eleições.
Se tivéssemos problemas de estabilidade e governabilidade, poderia ser aconselhável tal
solução; como não é esse o caso, creio que nada a justifica.
186
O sistema eleitoral português no contexto europeu1
André Freire2
E
m 4 de Dezembro, numa conferência parlamentar organizada pelo Grupo
Parlamentar do PS (GPPS), será debatido o estudo que realizei com Manuel
Meirinho e Diogo Moreira (no CIES-ISCTE): Para uma melhoria da representação política.
A reforma do sistema eleitoral, Lisboa, Sextante, 20083. A pesquisa foi-me encomendada
pelo GPPS através do seu líder. Foi um prazer e uma honra trabalhar com o Dr. Alberto Martins,
não só pelas suas qualidades humanas e profissionais, mas também porque, tendo-nos posto
de acordo quanto aos princípios, tivemos inteira liberdade na sua operacionalização. Apresento
hoje a ancoragem comparativa das soluções propostas.
Há três elementos norteadores da reforma, acrescidos de uma condição quanto à sua
operacionalização, os quais têm sido defendidos pelo PS e pelo PSD nos projectos de reforma
apresentados desde 1997. Os dois partidos têm reconhecido que o sistema eleitoral não tem
problemas de governabilidade e de proporcionalidade (isto é, na correspondência média entre
as percentagens de votos e de mandatos dos partidos) e, portanto, os níveis de governabilidade
e de proporcionalidade devem ser mantidos. O terceiro princípio resulta do reconhecimento
de que o regime tem problemas em matéria de qualidade da representação e, por isso, é necessário reformá-lo criando condições institucionais mais favoráveis a uma melhoria da qualidade
da representação política. A condição adicional que nos foi proposta, e na qual também nos
revemos, foi a de encontrar soluções sem círculos uninominais.
Para fundamentar as opções começámos por recorrer a análises comparativas, situando o
regime eleitoral português no contexto europeu: os 27 países da UE mais a Islândia, a Noruega e
a Suíça (30 países e 39 casos, dadas as mudanças de regras em cada país). Classificámos os sistemas
eleitorais em quatro grupos: “maioritários”, “representação proporcional de um segmento”/
RP1S, “representação proporcional de múltiplos segmentos”/RPMS e “mistos”.
Concluímos que a evidência comparativa aconselha, também ela, a que, numa qualquer
reforma, sejam integralmente mantidos os níveis de proporcionalidade e de governabilidade.
Primeiro, entre 1990 e 2007, Portugal (5,20) tem um nível de desproporcionalidade (medido
através do “índice dos mínimos quadrados”) significativamente superior às dos sistemas RP1S
(4,32) e RPMS (4,27), que são a esmagadora maioria dos casos (32 em 39). Só nos sistemas
maioritários (18,93) e nos mistos (8,13) a desproporcionalidade é maior. Segundo, para o
mesmo período, Portugal apresenta um sistema partidário muito pouco fragmentado (isto é,
poucos partidos e com uma votação muito concentrada em dois deles): o índice do “número
efectivo de partidos parlamentares” é de 2,5; tal valor é significativamente inferior ao dos sistemas
RP1S (4,11), RPMS (4,66) e mistos (3,82), sendo praticamente igual ao dos regimes maioritários
1
Público,
2
1/12/2008.
Politólogo, Professor Auxiliar no ISCTE e investigador sénior no CIES-ISCTE.
187
(2,49). Ou seja, todos estes dados desaconselham claramente qualquer compressão adicional da
proporcionalidade: por um lado, as distorções na conversão de votos em mandatos são já elevadas
e, por outro lado, Portugal tem um sistema de partidos muito pouco fragmentado, pelo que não
cria problemas de governabilidade. Mais, entre 2001 e 2005, para o conjunto dos 30 países, 26
tinham governos de coligação ou semelhante (um com acordo de incidência parlamentar). E os
estudos existentes demonstram que, em matéria de performance macroeconómica, não há diferenças
significativas entre tipos de governo. Mas há diferenças significativas, favoráveis às democracias
consensuais/governos de coligação, em matéria de qualidade da democracia: maior satisfação dos
eleitores com o funcionamento da democracia, maiores níveis de participação política, menores
desigualdades, maior presença das mulheres na política, etc.
Há várias soluções para se criarem incentivos a uma melhoria da representação política:
regimes com círculos eleitorais pequenos (maxime de um só deputado: uninominais; mas podem
ser plurinominais: mais de um), onde, por isso, as condições institucionais são mais favoráveis a
um maior conhecimento e responsabilização dos eleitos pelos eleitores; e/ou regimes com voto
preferencial de lista, isto é, em que os eleitores têm a capacidade de determinar que candidatos
(em cada lista) são efectivamente eleitos: também assim se criam incentivos para um maior conhecimento e responsabilização dos eleitos pelos eleitores. Primeiro, há vários sistemas com círculos
uninominais (na totalidade, regimes maioritários, ou em parte, mistos): 7 casos, entre 1970 e
2007. Segundo, há os sistemas RP1S com voto preferencial ou semelhante: “listas abertas”, “listas
fechadas mas não bloqueadas” e “voto único transferível”. Num conjunto de 19 regimes RP1S,
só 6 não têm um qualquer destes expedientes, usando ao invés “listas fechadas e bloqueadas”:
só se pode escolher o partido. Outra solução para melhorar a qualidade da representação é a
dos sistemas RPMS (usualmente com um círculo nacional, para garantir a proporcionalidade,
complementado com pequenos círculos plurinominais de base regional, os quais incentivam
a proximidade eleito-eleitor mas também geram mais desproporcionalidade): há 14 sistemas,
1970-2007, e só num deles não se usa também “voto preferencial”. Portanto, do ponto de vista
da evidência comparativa, Portugal tem efectivamente um problema na qualidade da representação: “listas fechadas e bloqueadas” conjugadas com um único segmento (e com vários círculos
grandes). As soluções de reforma que propomos, um sistema RPMS e “voto preferencial”, são
largamente usadas na Europa, muito mais do que os “sistemas mistos”. No próximo artigo, explicarei as soluções que se revelaram óptimas para cumprir os três objectivos e como chegámos a elas.
188
O valor da opinião1
António José Seguro 2
E
m Julho de 2007, em entrevista ao programa “Diga Lá Excelência” afirmei que “o pior
para a democracia seria que alguém tivesse que sair de um partido político para dizer o que
pensa”. Na semana passada, à pergunta sobre a minha eventual candidatura à liderança do
PS, respondi que “o facto de ter opiniões não faz de mim candidato ao que quer que seja”.
A pergunta que emerge é simples: pode-se ser militante de um partido, ter-se opinião e afirmá-la
livremente sem que daí decorra menor solidariedade ou tenha que resultar uma candidatura a qualquer
cargo que seja?
Eu persisto em responder sim. Pode e deve ter-se opinião, num quadro de solidariedade e de simples
contributo. O contrário seria negar a política e nesse caso, os partidos não passariam de grupos em luta
pelo poder como um fim em si mesmo e não como instrumento para execução de um determinado
projecto político. A diversidade de opiniões no interior dos partidos enriquece as posições públicas e
alimenta a coesão interna, condição indispensável à unidade na acção.
Por outro lado, os militantes dos partidos políticos não podem ver amputados os seus direitos de
cidadania. Ser militante de um partido não deve dar lugar à perda de liberdade, e em particular da liberdade de expressão. Os partidos devem intensificar os seus espaços de debate, livres de constrangimentos,
como condição para atrair mais qualidade e mais competências.
Quanto mais plural for o debate, maior será o número de portugueses que se revêem nele. O confronto
de opiniões estimula o interesse pela política. Favorece o surgimento de novas opiniões e aumenta a participação de pessoas qualificadas. E se desse debate surgirem divergências, isso deve ser assumido como natural.
Ter opinião é intrínseco ao Homem e nem todos pensamos da mesma maneira. Ora, o que é natural é que
a divergência, e não o monolitismo, seja o elemento caracterizador do debate no interior dos partidos.
No nosso país, dramatiza-se a divergência e isso empobrece o debate político. É necessário romper
com esta cultura e estimular o surgimento de novas ideias. Sem receio de rupturas. Só o imobilismo tem
medo das ideias. A democracia portuguesa está com bloqueamentos indesejáveis. Torna-se necessário
criar um novo ambiente, mais verdadeiro e com maior transparência.
O Parlamento pode ser o espaço indicado para iniciar essa transformação. É neste sentido que tenho
vindo a apresentar propostas que aumentem a autonomia dos Deputados, de modo a limitar o poder
dominante dos partidos, e a potenciar a opinião individual.
Primeiro, na reforma do parlamento, nomeadamente para que os Deputados, e não apenas as
“direcções partidárias”, possam apresentar iniciativas legislativas que sejam debatidas e votadas, pondo fim
a 30 anos de vetos de gaveta; e, depois, na defesa do princípio da liberdade de voto como regra para as
votações dos parlamentares, de uma mesma família política, excepto para as promessas eleitorais e para as
questões da governabilidade.
Pela minha parte tenciono continuar por este caminho, reflectindo e dando os meus contributos.
1
Expresso,
2
6/12/2008
Deputado à Assembleia da República pelo Partido Socialista
189
O Sistema eleitoral, outra vez1
Pedro Magalhães 2
U
ma das actividades favoritas dos partidos políticos portugueses é discutir possíveis
reformas do sistema eleitoral para a Assembleia da República. No passado dia 4 de
Dezembro, o PS promoveu mais um desses debates, desta vez em torno de uma
proposta solicitada pelos socialistas a três politólogos - André Freire, Manuel
Meirinho e Diogo Moreira - onde se defendia, entre outras coisas, a criação de um círculo eleitoral nacional e a introdução do chamado voto preferencial (permitindo aos eleitores exprimir
a preferência não apenas por um partido mas também por deputados desse partido). Não vou
discutir os méritos ou deméritos da proposta, nem sequer abordar as razões pelas quais, a acreditar
nos jornais, essa proposta deverá ter falecido logo nessa quinta-feira. A questão mais interessante,
a meu ver, é outra: por que razão se anda sempre a discutir este assunto? Arrisco três hipóteses.
A primeira coisa que pode tornar este tema tão atraente para a classe política portuguesa é o
facto de 99,9 por cento dos portugueses - e estimo por baixo - não compreenderem praticamente
nada do que se está a discutir. O caro leitor preferia ter listas fechadas e bloqueadas, fechadas e não
bloqueadas ou abertas? Gosta do método da média mais alta D’Hondt, ou acha que as quotas de
Hare ou de Droop seriam preferíveis? Concordaria com a introdução de cláusulas-barreira? E
com a aplicação do apparentement aos círculos primários? Se conseguiu responder a estas perguntas,
parabéns. Mas saiba que pertence a uma ínfima minoria. O problema, de resto, está longe de ser
português. Segundo julgo saber, a última vez que uma proposta de reforma eleitoral foi submetida a referendo foi na Roménia onde, há cerca de um ano, se perguntou aos eleitores se “estavam
de acordo com a eleição de todos os deputados e senadores em círculos uninominais por uma
maioria a duas voltas”. Pergunta simples. Mas mesmo com o referendo a decorrer em simultâneo
com a eleição dos primeiros deputados romenos para o Parlamento Europeu, 74 por cento dos
eleitores não se dignaram a comparecer nas urnas. Para os membros da classe política, a oportunidade de discutir assuntos que tornam os eleitores incapazes de os responsabilizar num sentido
ou noutro é imperdível, um verdadeiro oásis no meio de uma multiplicidade de outros temas
- economia, emprego, ambiente, aborto, taxas de juro - em relação aos quais qualquer eleitor
julga poder formar um juízo qualquer na base dos seus valores ou da sua experiência quotidiana.
A brutal assimetria de informação que se cria entre os eleitores e os eleitos quando se discutem
temas sobre os quais os segundos são os maiores e quase únicos especialistas - trata-se, afinal, das
regras através das quais adquiriram o seu cargo - deve parecer demasiado boa para não aproveitar
o mais possível.
A segunda coisa que torna este assunto atraente para a classe política é o facto de permitir
que ela sinalize a sua preocupação com a “qualidade da democracia”, a “aproximação entre
deputados e eleitores” e uma série de outros temas em relação aos quais, aparentemente e em
1 Público, 8/12/2008
2 Politólogo, Investigador
190
do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
abstracto, todos estamos de acordo. Para os partidos, especialmente os grandes partidos com
ambições de governo, é frequentemente preferível conduzir o debate político para os chamados
temas de “valência” em desfavor dos chamados temas “posicionais”. Nos segundos - temas como
a imigração ou o peso do Estado na economia, só para dar dois entre muitos exemplos possíveis
- os eleitores têm diferentes preferências, estão divididos e o mesmo sucede, frequentemente,
com os próprios partidos. Nos primeiros, contudo, essas divisões desaparecem, e tudo passa
a depender da capacidade de um partido se associar a objectivos universalmente aprovados.
Ninguém quer “mais crime” ou “mais corrupção”. E todos querem “melhor democracia”. Para
que isto funcione como os partidos desejam, o ponto anterior é fundamental: se os detalhes
sobre como supostamente se obtém “melhor democracia” forem totalmente incompreensíveis
para o eleitor comum, as divisões nunca emergem, e tudo se pode passar no domínio da mera
associação de partidos a “bandeiras” e “símbolos” puramente abstractos, coisas como “representatividade”, “aproximação entre eleitores e eleitos” ou “governabilidade”.
Finalmente, o tema da reforma eleitoral tem uma vantagem adicional para os partidos.
Como sucede com outras regras básicas na maior parte das democracias, passar da discussão para
a concretização das reformas eleitorais é algo que raramente está ao alcance de uma única força
política. As regras que exigem a aprovação destas reformas por maiorias qualificadas impõem o
acordo entre pelo menos dois partidos, impedindo que o vencedor de uma eleição modifique
as regras com o objectivo de se perpetuar no poder. Contudo, as maiorias qualificadas acabam
por servir um propósito adicional. Se um partido político desejar declarar perante os eleitores a
sua intenção de “melhorar a democracia” sem ter de enfrentar as incertezas decorrentes de uma
mudança real do sistema eleitoral e as suas consequências para aquilo que realmente conta - a
distribuição de poder - basta-lhe propor algo que sabe ser inaceitável para os restantes partidos
com os quais teria de negociar a sua aprovação. Segue-se um jogo de “passa-culpas”, no qual
cada partido tenta marcar o máximo de pontos possíveis enquanto “reformista” e “democrata”
enquanto se espera que a ignorância dos eleitores sobre os detalhes da coisa impeça que compreendam o que está realmente a suceder.
Não censuro os politólogos envolvidos na mais recente proposta, nem defendo que as pessoas
que ganham a vida a estudar estes temas se alheiem do debate político sobre eles. Eu próprio,
confesso, com alguma dose de arrependimento, já subscrevi há alguns anos uma proposta de
reforma do sistema eleitoral. Mas importa não perder de vista aquilo que alguma distância sanitária em relação a estes processos ajuda a perceber. As discussões a que assistimos nos últimos 30
anos sobre a reforma do sistema eleitoral têm, por tudo o que disse anteriormente, o seu quê
de farsa. Provavelmente, o sistema só mudará se houver uma pressão pública imensa (e por isso
implausível) nesse sentido ou, em alternativa, se PS e PSD acharem que ela é indispensável para
a manutenção da sua hegemonia em relação aos pequenos partidos. E importa lembrar que, se
é verdade que há casos de mudanças globalmente positivas - a Nova Zelândia, por exemplo -,
também é verdade que a Itália fica bem mais perto daqui: a mudança, se ocorrer, pode ser para
nada, para pior, ou até para muito pior.
191
A reforma do Sistema Eleitoral1
Marina Costa Lobo 2
H
á dias foi lançado o livro “Para uma melhoria da Representação Política - A
Reforma do Sistema Eleitoral”, elaborado por André Freire, Manuel Meirinho
e Diogo Moreira, pela Editora Sextante, que resulta de um estudo encomendado
pelo Partido Socialista. A reforma do sistema eleitoral é algo de que se tem vindo
a falar há já largos anos na política portuguesa, como solução para o descontentamento dos cidadãos com a política. Este estudo é um importante contributo para o debate, pelo rigor cientifico
empregue. Mas atenção: não há soluções mágicas. Todas as escolhas têm custos e benefícios.
Vejamos então as escolhas feitas pelos autores.
Ao traduzir votos em mandatos, os sistemas eleitorais são determinantes tanto no que respeita
o tipo de governos que se formam (governos monopartidários ou de coligação, governos minoritários ou maioritários) bem como o tipo de representação que existe no parlamento. Essa
representação pode ser entendida tanto em termos de proporcionalidade (o número de partidos
que existe no Parlamento) como do grau de proximidade que existe entre eleitores e eleitos.
Ora é precisamente este último ponto, o da relação entre deputados e cidadãos que o estudo
se propõe remediar. Com esse objectivo central os autores avançam uma série de mudanças. A
saber, a criação de dois segmentos eleitorais, um com círculos de pequena dimensão, outro com
um circulo nacional. Depois, cada eleitor teria dois votos, um para usar no círculo pequeno e
outro no grande, podendo também indicar um voto de preferência num dos candidatos da lista
partidária em que vota.
Nas escolhas avançadas existe uma questão prévia muito importante, nomeadamente o pressuposto de que não existem problemas de governabilidade em Portugal desde 1987. Significa
isto que ao propôr alterações ao sistema eleitoral os autores não se preocupam com os eventuais
efeitos que esta poderá produzir na formação de governos. Ora este pressuposto é bastante criticável. É certo que entre 1987 e 1999 houve três governos de partidos diferentes que cumpriram
os seus mandatos, tendo havido portanto alternância democrática. Mas entre 1999 e 2005 houve
novamente grande instabilidade governativa em Portugal, tanto em governos minoritários como
de coligação. A realidade é que em Portugal, de 1976 até hoje, apenas um governo que não tinha
maioria absoluta de um só partido na Assembleia da República cumpriu o mandato de quatro
anos (Guterres, 1995-99). Nos trinta e dois anos de democracia já contamos dezassete governos
enquanto que por exemplo na vizinha Espanha estes não somam mais do que dez.
Se os governos de coligação e minoritários são frágeis em Portugal, qual o efeito que teriam a
criação de listas semi-abertas (ou seja listas onde os candidatos são eleitos com votos preferenciais)
na disciplina parlamentar dos partidos? É evidente que esta reforma iria dificultar ulteriormente
1 Jornal de Negócios, 11/12/2008
2 Politóloga, Investigadora no
192
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
a relação entre governo e partidos parlamentares. As quebras nos já fracos padrões de governabilidade que existem em Portugal, resultantes desta proposta de reforma não são tidas em conta.
Além disso, importa considerar a questão importante do alcance da reforma. A reforma vale
por si, tal como as recentes reformas das listas partidárias para incluir mais mulheres, ou como a
decisão recente dos partidos de os militantes elegerem os lideres. Mas – aliás como os autores bem
referem - não constitui uma garantia de que os portugueses passarão a estar mais satisfeitos com
a democracia em Portugal. Nos últimos inquéritos à opinião pública disponíveis a confiança nos
partidos não tem sofrido nenhum aumento, apesar das medidas atrás referidas.
E porquê? Porque as avaliações sobre as instituições políticas e sobre o funcionamento da
nossa democracia dependem muito da capacidade que estas instituições têm de produzir resultados concretos na qualidade de vida dos cidadãos. Sem esses resultados o alcance da reforma do
sistema eleitoral será sempre pequeno.
É por isso que uma reforma do sistema eleitoral poderá tentar aprofundar o relacionamento
dos eleitores e eleitos, sim. Mas em Portugal, tendo em conta a nossa experiência democrática, a
haver custos, como há sempre, deveria ser a proporcionalidade da representação e nunca os níveis
de governabilidade a arcar com eles.
193
Jogar Pelo Seguro1
António Vitorino 2
P
or entre o ruído provocado pelas faltas dos deputados à sessão parlamentar de
sexta-feira passada, quase passou despercebido o colóquio promovido pelo grupo
parlamentar do PS em torno de um estudo académico sobre possíveis alterações a
introduzir na lei eleitoral para a Assembleia da República3.
Com efeito, a reforma da lei eleitoral é um daqueles temas recorrentes, designadamente
desde que a revisão constitucional de 1997 abriu a possibilidade de, por via da legislação ordinária, se introduzissem mecanismos que visassem uma mais directa ligação dos eleitos aos
eleitores e consequentemente uma sua maior responsabilização.
Sucessivamente reiterada como intenção nos programas eleitorais do PS e do PSD, essa
alteração eleitoral depende de uma maioria de dois terços na Assembleia da República.
Pelo tom do debate naquele colóquio, a fazer fé nos parcos relatos vindos na imprensa,
ainda não será nesta Legislatura que tal objectivo será atingido.
Desde 1991 que defendo a introdução de mecanismos de personalização do voto, isto é,
soluções que confiram aos eleitores um poder de decisão que vá mais além do que a simples
escolha de uma lista fechada de candidatos apresentada pelos partidos políticos.
O estudo académico apresentado parece apontar para o chamado “voto preferencial”, isto
é, para a possibilidade de o eleitor, perante uma lista partidária da sua escolha, poder alterar
a ordem dos candidatos, manifestando assim uma preferência individualizada, dessa forma
determinando quem será eleito dentro da quota que couber a esse partido, determinada pela
aplicação do sistema de representação proporcional.
O modelo respeita, à partida, os cânones constitucionais, embora na minha opinião não
ofereça grande espaço para melhoria da representação em termos práticos. De facto, nos casos
onde existe “voto preferencial”, o que a prática tem revelado é que a maioria dos eleitores
acaba por não fazer uso da faculdade que lhe é conferida de reordenar a lista partidária da sua
escolha, de modo que o voto que exprime ratifica a ordem dos candidatos tal como foi definida
pelo próprio partido.
Continuo a pensar que a melhor forma de personalização do voto passa pela criação de
círculos uninominais de candidatura, compatibilizando-os com círculos proporcionais de
apuramento, com base nos quais se faria a distribuição dos mandatos pelos partidos, desta
forma reconhecendo a prevalência do princípio da representação proporcional como determina a Constituição. Reconheço, contudo, que o desenho de um tal modelo não seria isento
de alguma complexidade e que tal exigiria um esforço de explicação do novo sistema aos elei-
1 Diário de Notícias, 12/12/2008
2 Jurista
3 André Freire, Manuel Meirinho
Eleitoral, Editora Sextante.
194
e Diogo Moreira, (2008), Para a Melhoria da Representação Política: A Reforma do Sistema
tores que poderia tornar mais imprevisível o seu resultado final.
E é aqui que reside o problema. Todas as propostas de alteração da lei eleitoral até hoje
apresentadas (inclusivamente uma que subscrevi em 1997) esforçaram-se por demonstrar que
da sua aplicação não resultaria nenhuma alteração de fundo quanto às condições de acesso
dos partidos ao hemiciclo da São Bento. Em todos os casos se pretendeu demonstrar que as
máquinas partidárias podiam arriscar a mudança na medida em que o “coração do sistema”,
ou seja, a proporcionalidade não seria afectada pelas inovações. O argumento “sedutor” assim
apresentado contava com o facto de muito previsivelmente as direcções partidárias tenderem
a ler mais as propostas de alteração com a máquina de calcular ao lado do que com qualquer
edição de Tocqueville.
Ora tal demonstração pode ser feita num colóquio ou num estudo académico, mas como o
prova o nosso actual sistema eleitoral, os eleitores vão progressivamente aprendendo a “usar” o
sistema eleitoral em função dos seus interesses, apropriam-se dele ao longo do tempo e podem
de facto, a prazo, vir a causar algumas surpresas aos agentes políticos. Esta mera possibilidade
leva os partidos a preferirem “jogar pelo seguro” e a deixarem as coisas como estão.
Entretanto podem sempre entreter-se a discutir se deve ou não haver multas para os
faltosos, claro!
195
O “eleitor-ovelha” e as reformas eleitorais1
Manuel Meirinho 2
T
odas as democracias têm os seus fantasmas. Também na nossa democracia surgem,
pontualmente, estas “criaturas” que assombram alguns dos seus actores principais, a ponto de impedir reformas aos mais variados níveis.
Convoco os fantasmas a propósito das reacções de alguns comentadores, a um
estudo sobre a reforma do sistema eleitoral para a AR que realizei com André Freire e Diogo
Moreira, a pedido do Grupo Parlamentar do PS. O estudo teve três objectivos (indicados
pelo GPPS): manutenção dos níveis de proporcionalidade e de governabilidade e a criação de
incentivos à melhoria da representação política, sem círculos uninominais.
No quadro do último objectivo, e ancorados numa análise comparativa de trinta países
europeus, propomos o voto preferencial opcional, um sistema largamente utilizado na Europa
em eleições parlamentares e recomendado pela Comissão de Assuntos Constitucionais do
Parlamento Europeu para ser aplicado a todos os países da UE nas eleições europeias de 2013.
Não se trata aqui de fazer a história da reforma do sistema eleitoral português no período
democrático que conta já com doze tentativas, com soluções tão diferentes como a opção
maioritária e a representação proporcional personalizada (com círculos uninominais).
Curiosamente, em 1984, António Guterres propôs o voto preferencial, opção retomada pelo
PS em 1992, ano em que Guilherme de Oliveira Martins defendeu o voto único transferível.
Qual foi o resultado daquelas tentativas? Nenhum.
E porque falharam as reformas? Essencialmente, por duas razões: pela falta de consenso
entre os dois maiores partidos na gestão dos benefícios para ambos (ou para cada um deles)
e pela aparição de fantasmas de vária estirpe, por exemplo: perda do controlo da disciplina
partidária, criação de classes diferentes de eleitos, favorecimento dos exageros do clientelismo
local, entre muitos outros horrores atribuídos, pasme-se, às regras eleitorais.
Volto ao estudo que foi debatido na Assembleia da República no passado dia 4, por iniciativa do GPPS, para me referir ao mais recente fantasma (há outros…). Entre os comentadores
surgiu o fantasma do “eleitor-ovelha”. Como se sabe, genericamente, o voto preferencial
permite ao eleitor ter um papel activo na escolha dos deputados, uma vez que pode definir
quem é o eleito a partir de uma lista de candidatos apresentados pelos partidos. A solução
proposta é a mais conservadora possível.
Mesmo assim, as criticas foram no sentido de considerar que os eleitores portugueses não se
encontram habilitados ao exercício de escolhas deste tipo. Ou porque são analfabetos, ou porque
não têm competências cívicas, ou até porque se sujeitam à compra de votos por troca de electrodomésticos, entre outras prebendas baratas. Em suma, ao eleitor português deve-lhe ser emitido um
atestado de menoridade cívica condizente com a sua impreparação para actos que pedem reflexão.
1 Jornal de Notícias, 14/12/2008
2 Politólogo. Professor Auxiliar no Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa
196
Na altura do debate, lembrei-me de Stuart Mill3 quando, nas suas “Considerações sobre o Governo
Representativo”, afirmou que um dos grandes defeitos da democracia é aquele em que as elites
políticas e alguns moralistas olham para os cidadãos como «um rebanho de ovelhas que pasta
inocentemente lado a lado». Mill não podia ter mais razão. Tenho dúvidas é que, em algum
momento, imaginasse que tal consideração se pudesse aplicar, em 2008, à democracia portuguesa. E muito menos que o fantasma do “eleitor-ovelha” assombrasse uma reforma eleitoral.
3 John Stuart Mill, Considerations on Representative Government, Nova Iorque, Prometheus Books, 1991.
197
A vertigem maioritária1
André Freire
O
estudo sobre a reforma eleitoral (Para uma melhoria da representação política, Sextante,
2008), que coordenei, tem gerado bastante controvérsia, o que é saudável.
Porém, foram feitos reparos por alguns intervenientes que revelaram que, ou
não lerem com a devida atenção o estudo, ou não perceberam a sua lógica.
Impõe-se uma clarificação.
Foram-nos pedidas propostas de reforma no sentido de, primeiro, manter os níveis de
proporcionalidade e de governabilidade e, segundo, criar incentivos institucionais para uma
maior “proximidade” entre eleitos e eleitores, sem círculos uninominais. Foi o que fizemos.
Todavia, alguns vieram agora contestar os pressupostos. Nomeadamente, Vital Moreira e
Marina Lobo (ML) colocaram a ênfase em significativos problemas de governabilidade que,
supõe-se, seria necessário corrigir. O primeiro afirmou que há, em Portugal, um problema
de governabilidade porque em 30 anos de democracia tivemos 17 governos. Esta crítica não é
séria porque é sabido que há dois períodos distintos: 1975-87, em que o sistema partidário
era mais fragmentado e em que tivemos muita instabilidade governativa; 1987-presente, em
que o sistema partidário é muito pouco fragmentado e a estabilidade dos governos tem sido
elevada (pelos padrões europeus). E porque é que o período mais recente é distinto do anterior? Porque os eleitores alteraram os seus comportamentos, concentrando os votos nos dois
grandes: temos hoje um “bipartidarismo imperfeito” semelhante ao das “democracias maioritárias”. Por isso, houve três maiorias absolutas e dois governos minoritários quase com maioria
absoluta. Portanto, no período relevante, não há um problema de governabilidade e, adicionalmente, uma maior compressão da proporcionalidade levar-nos-ia para uma situação ainda
mais próxima dos regimes maioritários, opostos à nossa matriz constitucional (a “democracia
consociativa”).
Foi uma inflexão maioritária que, com louvável clareza, advogou Manuel Braga da
Cruz: retirar o sistema proporcional da Constituição. Tal clareza faltou, porém, aos outros
dois analistas. É que, por esta via, há um risco de cartelização através do reforço artificial da
hegemonia dos grandes partidos face aos pequenos, como quase acontecia na lei eleitoral autárquica... Desde 1997, as propostas do PS e do PSD têm tido um objectivo central: aproximar
eleitos e eleitores e, por essa via, estimular a participação destes. Uma inflexão maioritária
apontaria em sentido inverso: se a representação dos pequenos fosse artificialmente reduzida,
PS e PSD passariam a competir só pelos votos do centro e, por isso, a indiferenciação ideológica dos grandes (já acentuada) tenderia a aumentar. Logo, a participação tenderia a diminuir.
Mais, os eleitores dos pequenos ficariam confrontados com uma de três hipóteses: desperdiçar
os seus votos, votar útil ou abster-se. Também por isso a abstenção tenderia a aumentar.
1 Público, 15/12/2008.
198
No Jornal de Negócios (11/12/08), ML insiste: alega que, desde 1974, só um governo (monopartidário) sem maioria absoluta chegou ao fim. Esqueceu-se de referir que a coligação PSD-PP
se revelou bastante coesa perante circunstâncias adversas (crise orçamental e económica; investigação do líder do PP no caso Moderna; etc.) e que, não fosse a contestada dissolução do
parlamento, chegaria provavelmente ao fim do mandato. Ou seja, a direita já provou que é
capaz de governar em coligação e com estabilidade; se há ainda algumas questões de governabilidade elas situam-se só à esquerda (p. 39 do livro).
Procurámos, por isso, reforçar as condições de estabilidade sem compressão da proporcionalidade. Primeiro, com a “moção de censura construtiva”: quem quiser fazer cair um
governo terá de propor uma alternativa, medida que reforçaria a estabilidade dos governos
minoritários. Concordo com Jorge Novais que tal medida deveria ser complementada com a
solução existente em França: a maioria poder converter algumas das suas propostas em moções
de confiança que só poderiam ser chumbadas por quem fosse capaz de propor uma alternativa
de governo. Mas só para o orçamento e pouco mais; no resto, maioria e oposição deveriam
negociar.
Segundo, propomos a “coligação de listas” como incentivo à cooperação inter-partidária:
embora com listas separadas, os partidos declaram-se publicamente coligados; poderão por
isso ser beneficiados na conversão de votos em mandatos. O sistema eleitoral proposto visa
aproximar os eleitos dos eleitores por duas vias: a transformação dos actuais círculos distritais/regionais em pequenas circunscrições (5-10 mandatos) e o voto preferencial. Por serem
pequenas, geram resultados muito desproporcionais. Daí a necessidade de um círculo nacional
para compensar tais distorções: segundo as simulações, cerca de 99 lugares. Mesmo assim, a
desproporcionalidade e o bónus ao partido mais votado aumentariam ligeiramente: não só
se repetiriam todas as maiorias absolutas registadas até hoje como teríamos tido pelo menos
mais uma, em 1999 (p. 177). Os pequenos partidos quase só elegeriam pelo círculo nacional
(p. 110) que, por isso, tem que ser grande: condição sine qua non para manter a proporcionalidade. E é aqui que entra a “coligação de listas”, só permitida nos círculos distritais/regionais
(se fosse permitida no nacional poderia gerar coligações espúrias entre os micro-partidos,
aumentando a fragmentação): os pequenos só poderiam aumentar a probabilidade de eleger
nesses círculos se se disponibilizassem a cooperar com os grandes. Como a direita coopera mais
facilmente, a esquerda seria confrontada com a necessidade de cooperar para não perder…
Portanto, defendemos que é possível conciliar os dois objectivos referidos acima e, ainda, que
é possível aumentar a estabilidade sem reduzir a proporcionalidade, ao contrário do que têm
sido alegado.
199
Uma proposta falhada1
Vital Moreira 2
A
cerca da proposta de reforma do sistema eleitoral da Assembleia da República
recentemente apresentada por uma equipa liderada por André Freire (ISCTE),
alguém disse que ela “morreu no dia da sua apresentação pública”, dadas as críticas
generalizadas de que foi objecto. Compartilhando dessas críticas, cumpre-me
explicar porquê.
Antes de mais, não questiono os principais pontos de partida da proposta, designadamente
(i) a criação de um círculo eleitoral nacional, sobreposto aos actuais círculos distritais, (ii) a
divisão dos actuais círculos eleitorais de maior dimensão (de modo a diminuir a distância entre
os eleitos e os eleitores) e (iii) a atribuição de dois votos aos eleitores (um para o círculo distrital,
outro para o círculo nacional).
Um círculo nacional de dimensão razoável teria várias vantagens: asseguraria, à partida,
o pluralismo e um mínimo de proporcionalidade na representação parlamentar; facilitaria a
eleição das elites partidárias, dispensando o tradicional fenómeno dos cabeças de lista “páraquedistas” nos círculos distritais; e, sobretudo, combinado com o duplo voto, daria relevância
ao voto de todos os eleitores em todo o território nacional, incluindo nos pequenos partidos
parlamentares que hoje não elegem ninguém na maior parte dos círculos, tornando inútil o
voto dos seus eleitores na maior parte do território ou reforçando a tendência para a abstenção
ou para o “voto útil” num dos grandes partidos.
Por sua vez, a desagregação dos círculos maiores (designadamente Lisboa e Porto),
gerando um maior número de círculos, e mais pequenos, proporcionaria maior proximidade
e visibilidade dos candidatos e dos deputados, valorizando eleitoralmente a personalidade dos
candidatos e facilitando a responsabilização dos deputados pelos eleitores, sem abdicar porém
da representação pluripartidária e proporcional que só os círculos plurinominais permitem
(ao contrário dos círculos uninominais).
O que é há então de errado na referida proposta? Reduzindo a apreciação à arquitectura
do sistema, deixando de lado outras questões (como o controverso “voto preferencial” nos
círculos distritais), as falhas estão, por um lado, na excessiva magnitude do círculo nacional,
que elegeria quase metade dos deputados (roubando outros tantos aos círculos territoriais de
base), e, por outro lado, no desenho dos círculos territoriais de base.
Em primeiro lugar, a enorme magnitude da lista nacional (99 deputados na versão preferida pelos autores) é manifestamente contraditória com um dos objectivos centrais da reforma,
que é a de dar visibilidade aos candidatos e deputados e aproximá-los dos eleitores. Não há
nada de mais anónimo e distante do que uma lista nacional de uma centena de candidatos
1 Público, 16/12/2008
2 Constitucionalista, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
200
(quase metade do número total de deputados da AR), escolhidos directamente pela direcção
nacional dos partidos.
Em segundo lugar, dar-se-ia uma enorme redução do número global de deputados a eleger
nos círculos distritais, o que diminuiria drasticamente a representação territorial do Parlamento,
reduziria a metade (ou quase) o número de deputados dos actuais círculos eleitorais, obrigaria
a agregar os círculos mais pequenos em novos círculos territorialmente muito extensos (sobretudo no interior) e elevaria para quase o dobro o rácio entre deputados e eleitores, o que é
totalmente contraditório com o objectivo de aproximar os deputados dos eleitores.
Em terceiro lugar, o elevado número de deputados do círculo nacional provocaria uma
baixa inaceitável no limiar eleitoral de entrada no Parlamento (bastando algo como 0,8%...),
permitindo a representação parlamentar de micropartidos extremistas, não sendo lícito impedir
esse resultado por meio de uma “cláusula-barreira” de 1,5% (como propõem os autores), por
esta ser desde logo constitucionalmente interdita, além de politicamente “invendável”.
Em quarto lugar, sendo de esperar que o círculo nacional proporcione uma sensível subida
da votação nos pequenos partidos em relação ao nível actual (dado que os votos na lista nacional
passarão a ser relevantes em todo o território nacional, o que afasta a pressão para o “voto útil”
em muitos distritos, como hoje sucede), o sistema proposto levaria a um imprevisível aumento
da proporcionalidade geral do sistema (“sobrecompensando” a redução da proporcionalidade
nos círculos distritais), favorecendo os pequenos partidos e desfavorecendo os maiores em
relação ao actual sistema, fomentando a fragmentação política do parlamento, reduzindo o
actual “prémio eleitoral” dos maiores partidos e, em suma, prejudicando a governabilidade.
Ainda no que respeita à arquitectura dos círculos eleitorais, não pode concordar-se
também com a manutenção da tradicional divisão distrital no continente, que vem desde 1975
(aliás, seguindo a solução do Estado Novo...), quando os distritos ainda eram autarquias locais
e tinham um lugar central na administração territorial do Estado. Nada disso é assim hoje.
Antes de estarem condenados a prazo pela regionalização, os distritos administrativos
foram sendo esvaziados de funções, que hoje são marginais (segurança pública, protecção
civil e pouco mais), deixando de ser um factor de identidade territorial das populações. Mais
importante do que isso, a divisão distrital não se harmoniza com a nova divisão territorial
da administração do Estado e da administração local, hoje baseada nas cinco regiões-plano
(NUTS II) e nas 28 sub-regiões (NUTS III), sendo estas agora a base territorial das novas
“comunidades intermunicipais” (CIM). Por conseguinte, a manutenção do distrito como
circunscrição eleitoral consolidaria a actual “esquizofrenia” territorial, além de impedir a
coincidência entre os círculos eleitorais para a AR e os círculos eleitorais das futuras autarquias
regionais (previsivelmente baseados nas “comunidades intermunicipais”).
201
Análises equivocadas ou agendas escondidas1
André Freire
T
êm sido feitas afirmações sobre o estudo Para uma melhoria da representação política. A
reforma do sistema eleitoral, Lisboa, Sextante, 2008, que estão equivocadas. Como
mostrarei, descontando os que assumiram a preferência por uma inflexão maioritária, a dúvida que fica é se não traduzem também agendas escondidas.
Os “efeitos mecânicos” dos sistemas eleitorais resultam da simples aplicação das regras para
a conversão de votos em mandatos, por exemplo, favorecendo os maiores partidos e prejudicando os pequenos. Os “efeitos psicológicos” resultam da forma como os actores políticos
usam as regras. É possível estimar os primeiros, os segundos não.
O nosso mandato era manter os níveis de proporcionalidade e de governabilidade e,
simultaneamente, criar incentivos institucionais para uma melhoria da representação (livro:
pp. xiii-xvi e 1-15). Seguimo-lo tão rigorosamente quanto possível e demonstramo-lo através
de simulações; propomos ainda reforçar a governabilidade sem beliscar a proporcionalidade
(meu artigo, PÚBLICO: 15/12; pp. 39-40, 53-54, 175-177, 199-210). Só uma leitura apressada pode levar alguém a dizer que o PS “nunca mais teria maioria absoluta”: só se os eleitores
mudassem radicalmente o seu voto; caso contrário, teria tido mais uma, em 1999, e o PSD as
duas que teve. Mas não facilitamos a formação de “maiorias absolutas artificiais” (muito) para
além do que já hoje acontece (em 2005, o PS teve mais de 50% dos deputados com 45% dos
votos; será razoável, mas está acima da média dos regimes proporcionais: p. 28).
Há duas formas de criar incentivos para uma melhoria da representação mantendo a
proporcionalidade. Ou um sistema misto: um segmento com círculos uninominais, para
melhorar a representação, e um círculo nacional, para assegurar a proporcionalidade. Ou
um sistema de “representação proporcional com múltiplos segmentos”/RPMS: pequenos
círculos plurinominais, para melhorar a representação, e um círculo nacional. Realço duas das
razões da escolha desta opção: mesmo com um sistema compensatório, a componente uninominal induz bipartidarização; sem pluralismo (nos uninominais) é discutível que, para certos
segmentos do eleitorado, haja identificação entre eleitos e eleitores, logo proximidade. Não
será por acaso que, em 39 sistemas estudados, apenas 5 são mistos e há 14 regimes RPMS (pp.
21-22). Destes, só um não usa a outra medida que propomos para a melhoria da representação: o “voto preferencial”. Este mecanismo é usado em mais 13 sistemas (pp. 40-41) e está a
ser proposto pelo Parlamento Europeu para que se generalize nas europeias de 2013.
Vejamos alguns dos equívocos mais gritantes. Na linha de várias simulações da magnitude
do círculo nacional (49-109) verificámos que, para atingir os objectivos, aquela deveria situarse entre 89 e 109. Vital Moreira (VM) (PÚBLICO, 16/12/08) argumenta que “o elevado
número de deputados do círculo nacional provocaria uma baixa inaceitável no limiar eleitoral
1 Público, 22/12/2008.
202
de entrada no Parlamento (bastando algo como 0,8%...), permitindo a representação parlamentar de micropartidos extremistas, (…).” Primeiro, no sistema vigente, o limiar de entrada
variou entre 1,27% e 1,53% (p. 190): semelhante a 0,8%. Segundo, de acordo com as simulações, no período comparável (1991-2005) não entraria nenhum partido além dos que têm
estado (pp. 109-111 e 199). No período anterior, devido à maior fragmentação do sistema de
partidos, há reforço de alguns micropartidos (p. 111). Mas isso ocorre numa escala tão diminuta que nada de fundamental se alteraria: aumenta até o bónus ao partido mais votado (pp.
152-177). À cautela, propomos uma cláusula-barreira de 1,5%.
VM diz ainda que a magnitude do círculo nacional “proporcionaria uma sensível subida
da votação nos pequenos partidos” e “levaria a um imprevisível aumento da proporcionalidade geral do sistema”. É apenas uma opinião. Pelo contrário, como não é possível fazer isto
a régua e esquadro, as simulações revelam que aumenta ligeiramente a desproporcionalidade
e o bónus ao maior partido (pp. 175-177). E a ideia de que um grande aumento da magnitude do círculo (M) aumenta na mesma extensão a proporcionalidade revela desconhecimento
da sistemática eleitoral. Há muito que Douglas Rae demonstrou que, a partir de M = 20, há
um decréscimo substancial da taxa de incremento na proporcionalidade (tende para zero): “a
relação positiva entre a magnitude dos círculos e a proporcionalidade é curvilinear: conforme
aumenta a magnitude dos círculos, a proporcionalidade aumenta a uma taxa decrescente”2.
Mais, contando Lisboa (M=48) e Porto (M=38), temos hoje 37% dos lugares atribuídos em
círculos com uma proporcionalidade praticamente igual a M=99. (Isto para não falar de Braga,
M=18, e Setúbal, M=17). Passaríamos a ter 43% dos lugares (99/229) nestas condições (não
50%, como diz VM).
Uma das dúvidas que se levantam é se muitos daqueles que enfatizaram os supostos
problemas de governabilidade, embora não assumindo a preferência por uma inflexão maioritária, estão apenas equivocados na leitura que fizeram ou, na verdade, pretendiam também
baixar o limiar das “maiorias absolutas artificiais” (para 40% dos votos, por exemplo?) mas
não têm a coragem de o assumir.
Em relação ao voto preferencial, muitíssimo usado na Europa, as críticas caricaturais que
foram feitas menorizam quem as fez e evidenciam uma grande desconfiança perante os eleitores e os eleitos3. Lembraram-me as reservas dos conservadores sobre a extensão do sufrágio4.
Quanto aos responsáveis partidários, como rejeitam os círculos uninominais e o voto preferencial, fica a ideia de que apenas pretendem que “mude alguma coisa para que tudo fique na
mesma” (a não ser que acompanhem as agendas maioritárias…).
2 Douglas Rae, The political consequences of electoral laws, New Haven, Yale University Press, 1969, pp. 116-117.
3 Referimo-nos sobretudo a algumas da críticas que foram feitas na Conferência Parlamentar “A reforma do sistema
eleitoral”, Assembleia da República (Sala do Senado), 4 de Dezembro de 2008, nomeadamente aquelas que então
foram proferidas por António Araújo e por Vital Moreira.
4 Sobre este ponto, ver Albert Hirschman, O Pensamento Conservador: Perversidade, Futilidade e Risco, Lisboa, Difel, 1993.
203
O “fetichismo” dos círculos uninominais1
Manuel Meirinho & André Freire
A
s faltas de deputados a uma sessão plenária reabriram o debate sobre a qualidade
da nossa democracia e as reformas eleitorais. Alguns reclamaram um corte no
número de deputados e a adesão aos círculos uninominais. São reacções típicas,
mas não é disso que aqui tratamos. Diremos, antes, que há alguns equívocos
acerca das propriedades dos sistemas eleitorais e da sua influência na melhoria da representação política.
Primeiro equívoco: as reformas resolvem problemas sistémicos do funcionamento da
democracia, das suas instituições e dos seus actores. Ajudam, mas não resolvem necessariamente as questões, nomeadamente as que se colocam noutros terrenos.
O segundo equívoco prende-se com o entendimento da personalização das relações entre
eleito e eleitor. Se, por um lado, o conceito é utilizado em termos abstractos, por outro lado,
considera-se que tal relação se obtém por via exclusiva de modificações na estrutura do voto.
Por exemplo, os defensores dos círculos uninominais aceitam que estes resolvem a ausência
de “proximidade”. Há aqui várias confusões. A primeira é que este conceito não é unidimensional. Se em algumas dimensões a estrutura do voto é importante, noutras não. E isto porque
a “proximidade” é tributária de interacções individuais, organizacionais e institucionais: as
regras eleitorais terão sempre um contributo relativo na sua melhoria.
Um terceiro equívoco prende-se com os efeitos das possibilidades dadas ao eleitor na
selecção dos deputados na melhoria da qualidade da representação. Entre nós alguns aceitam
que os círculos uninominais têm propriedades curativas dos males da “proximidade”, porque
asseguram uma mais estreita ligação entre os eleitos e os seus constituintes. Ora, se o sistema
eleitoral tem uma influência relativa na qualidade da representação, a estrutura do voto tem
um impacte ainda mais relativo. O problema é o que os elementos dos sistemas eleitorais
actuam em trade-off: quando se modifica um elemento isso tem consequências nos restantes.
Em suma, não há sistemas óptimos. Por isso, quando se sugerem modificações, o ponto de
partida deve aliar os objectivos das reformas ao seu contexto, sem esquecer as limitações dos
instrumentos. É aqui que se coloca a comparação entre os círculos uninominais (com voto
categórico nominal) e os círculos plurinominais pequenos (com voto preferencial), ambos
combinados com um círculo nacional.
Mesmo num sistema misto, os círculos uninominais induzem a bipartidarização; reduzem
as opções dos eleitores; estimulam o localismo e o clientelismo, levando à parasitação da acção
do deputado por inconfessados interesses locais – quem não se lembra do “voto limiano” em
2001; dificultam a responsabilização dos partidos, não sem efeitos na sua coesão parlamentar.
1 Diário de Notícias, 22/12/2008.
204
Já o voto preferencial permite que os eleitores escolham os “seus” deputados em regime mais
competitivo e plural; facilita a responsabilização dos partidos e a representação descritiva (das
mulheres, etc.); estimula a competição intrapartidária; garante a estabilidade do desenho dos
círculos.
Ambas as soluções têm vantagens e desvantagens. Mas a solução que nos parece mais
equilibrada é a segunda. É por isso que a propomos no estudo sobre a reforma eleitoral que
realizámos por solicitação do Grupo Parlamentar do PS. Quem ler o livro constatará que é
possível garantir os padrões de governabilidade e de proporcionalidade e, simultaneamente,
introduzir mecanismos de personalização do voto. Nas legislativas, o voto preferencial (de
vários tipos) está muito mais difundido na Europa do que os sistemas com círculos uninominais (e/ou as listas fechadas): 26 casos de um total de 39 (30 países) (pp. 40-41 do livro).
E está a ser proposta a sua generalização a todos os Estados da UE nas eleições de 2013 para o
Parlamento Europeu2.
2 Projecto de relatório sobre a proposta de modificação do Acto relativo à eleição dos representantes ao Parlamento Europeu por sufrágio universal directo, de 20
de Setembro de 1976, (2007/2207(INI)), Comissão dos Assuntos Constitucionais, cujo relator foi Andrew Duff:
http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+COMPARL+PE-412.180+02+NOT+XML+V0//PT
205
Mais defeitos do que virtudes1
Vital Moreira
H
á ideias muito atraentes à primeira vista, como sucede com a do “voto preferencial”, incluída na recente proposta de reforma do sistema eleitoral para a
Assembleia da República, de André Freire e seus colaboradores. Mas a sua fácil
atractividade não basta para a tornar virtuosa.
Segundo essa proposta, além de poderem votar no partido da sua preferência, como hoje
sucede, os eleitores também passariam a poder votar num dos candidatos das listas partidárias.
É o sistema chamado de “listas fechadas mas não bloqueadas”. Para esse efeito, os boletins de
voto passariam a inserir não somente a lista dos partidos concorrentes, como hoje acontece,
mas também a lista nominal dos candidatos de cada partido, de modo a possibilitar a escolha
individual dos candidatos pelos eleitores.
Os eleitores passariam a ter efectivamente dois votos, um no partido da sua escolha e outro
no candidato da sua preferência, de entre os apresentados por esse partido. Desse modo, os
deputados eleitos por cada partido não seriam necessariamente os primeiros nomes da lista
partidária, mas sim os nomes mais votados individualmente pelos eleitores, desde que esses
votos ultrapassem uma determinada percentagem do total dos votantes no respectivo partido
ou seus candidatos (7% na solução proposta).
A favor dessa solução podem invocar-se vários argumentos, desde o reforço do poder dos
eleitores, passando pela “personalização do voto”, até à diminuição do “monopólio político”
dos partidos, tudo alegadamente em prol da revitalização da democracia.
Sem questionar tais argumentos, são porém vários e decisivos os argumentos contrários a
essa solução. Vejamos os principais.
Para começar, o voto preferencial implicaria uma mudança substancial de filosofia da
representação política no nosso sistema político-constitucional, assente no voto em partidos.
Se as eleições são obrigatoriamente mediadas pelos partidos políticos e se a razão de ser das
eleições num sistema de base parlamentar consiste na escolha do governo, então é lógico que
deva caber aos próprios partidos, sobre quem impende a legitimidade e a responsabilidade
político-partidária, o direito de escolher quem melhor os representa e defende as suas posições no Parlamento. O voto preferencial introduziria um dualismo entre os deputados eleitos
nominalmente e os deputados eleitos por via do voto partidário.
A segunda objecção é de natureza procedimental, dado que o voto preferencial tornaria
mais complexa a votação, obrigando à inclusão dos nomes de todos os candidatos no boletim
de voto (que podem ser muitas dezenas...). Além disso, o voto preferencial excluiria tendencialmente os iletrados, o que numa sociedade como a nossa deixaria de fora uma sensível
percentagem de cidadãos mais idosos. Ora, entre os valores mais estimáveis de um sistema
1 Público, 23/12/2008
206
eleitoral contam-se a facilidade da votação e a igualdade dos eleitores.
A terceira objecção decorre do escasso uso que o voto preferencial muito provavelmente
teria. Sendo certo que a maior parte dos eleitores vota num partido ou num candidato a
primeiro-ministro, sem nenhuma consideração pelos candidatos constantes das listas, é de
prever que o número de votos preferenciais, à revelia da ordenação da lista partidária, fosse
muito reduzido. E então, de duas uma: ou se exige que as preferências sejam maioritárias,
para serem eficazes -, e então elas serão irrelevantes na maior parte dos casos, frustrando as
expectativas criadas; ou se considera suficiente uma baixa percentagem de preferências (como
é o caso da proposta acima referida) -, e então cai-se na solução nada democrática de atribuir
mais peso ao voto nominal de uma minoria de eleitores do que à maioria dos eleitores que
votaram no partido, concordando implicitamente com a ordenação dos candidatos constante
da lista partidária.
O principal argumento contra o voto nominal resulta, porém, dos seus enormes riscos
para a coesão e a disciplina partidária. Se a eleição dos deputados dependesse das preferências nominais dos eleitores, a consequência seria a competição entre os candidatos de cada
lista pelo maior número de votos preferenciais. Em vez da campanha eleitoral pelo partido
comum, o que passaria a sobressair seriam as campanhas individuais de cada candidato, na luta
pela conquista de apoios, incluindo iniciativas, cartazes e consignas próprias, que tenderiam a
encontrar os seus próprios meios de organização e de financiamento.
É fácil imaginar o potencial disruptor da competição intrapartidária nas eleições. Cada
facção ou orientação partidária organizar-se-ia para apoiar os “seus candidatos”. As eleições
parlamentares seriam também (quiçá sobretudo) disputas internas aos partidos. Surgiriam
também os candidatos de interesses sectoriais, desde os candidatos locais aos candidatos de
grupos de interesse mais influentes. A organização de “sindicatos de voto” mais ou menos
ostensivos não pode ser descartada.
Os riscos do voto preferencial para a unidade e disciplina dos partidos são conhecidos
desde há muito. Num estudo clássico de 1985 sobre o assunto, Joseph S. Katz23 considerou
o voto preferencial um “poderoso incentivo à desunião partidária”, quer durante o processo
eleitoral, quer depois, no parlamento. Como ele mostrou, a competição intrapartidária
“subverte a unidade partidária de duas maneiras”. “Primeiro, como os candidatos eleitos não
devem a sua eleição somente ao partido, eles têm menos razão para lhe serem leais depois de
eleitos. (...) Segundo, ao construírem uma base de campanha independente, os candidatos
incorrerão em dívidas, farão compromissos e desenvolverão lealdades diferentes dos de outros
candidatos do mesmo partido.”
Em suma, o voto preferencial poderia bem ser uma receita para a fragmentação e para a
indisciplina partidária, ou seja, para a instabilidade parlamentar e governamental. Não se vê a
quem é que isso aproveitaria.
2 Nota do Editor: Consideramos que o nome do autor da obra a que Vital Moreira se refere deve ser Richard Katz e não
Joseph Katz. Tentativas de esclarecer essa dúvida junto de Vital Moreira foram infrutíferas. Reproduzimos na íntegra o
texto publicado no Público, mas colocamos em nota de pé de página a referência que nos parece ser a correcta.
3 Katz, R. S. (1986), “Intraparty preference voting”, in Grofman, B., e A Lijphart (org.) , Electoral Laws and their Political
Consequences, New York, Agathon Press, pp. 85-103.
207
As virtudes do voto preferencial1
André Freire
N
a sua penúltima crónica, Vital Moreira (VM) fez uma crítica sistemática a uma
das medidas do recente estudo sobre a reforma eleitoral, que coordenei: o voto
preferencial (em “listas fechadas e não bloqueadas”). Há três problemas fundamentais com este tipo de críticas. Primeiro, fazem tábua rasa dos problemas associados
ao status quo e às vias alternativas para a personalização do voto. Segundo, parecem ignorar que
não há sistemas perfeitos: há sempre que assumir algum trade-off. Terceiro, assentam numa
visão elitista e partidocrática da democracia, eivada de desconfiança perante eleitores e eleitos:
tendem a ignorar as muitas experiências bem sucedidas na Europa e enfatizam os inconvenientes, supondo que tudo poderá correr mal porque os eleitores tenderão a ser manipulados
(o fantasma do “eleitor-ovelha”: Manuel Meirinho, JN, 14/12/08) e os eleitos inclinar-se-ão
a subverter o regime (em proveito próprio e/ou de obscuros interesses).
Recordemos o status quo (“listas fechadas e bloqueadas”) e os problemas associados. Quando
votamos podemos apenas pôr uma cruzinha num dos partidos e, por isso, mesmo que estejamos profundamente desagradados com a performance de alguns deputados nada podemos fazer
a não ser mudar de partido. Este sistema foi escolhido na transição democrática para fortalecer os partidos: uma escolha acertada para uma democracia jovem. Quase 35 anos depois,
os partidos estão consolidados e sobressaem os problemas. Primeiro, os deputados preocupam-se sobretudo em agradar às direcções partidárias, subalternizando os eleitores, pois a
sua reeleição depende da posição nas listas. Por isso, o papel dos deputados na representação
foi subalternizado e, exceptuando algumas figuras de proa, quase só se dá por eles quando, à
revelia da regra do voto por bancada, se pede uma votação nominal e se constata que há muitos
que faltaram… Segundo, os eleitores têm muita dificuldade em saber quem são os deputados
que os representam e, sobretudo, estão impossibilitados de os responsabilizar. Daí as razões
apresentadas por PS e PSD para a personalização do voto: estimular a participação, dando
poder aos eleitores na escolha e responsabilização dos deputados, e melhorar a qualidade da
representação. Ou seja, as virtualidades do modelo vigente estão esgotadas e as críticas têm-se
centrado no excessivo papel dos partidos.
Há basicamente duas formas de promover a personalização do voto. Os sistemas mistos, que
se caracterizam por ter um segmento composto por círculos uninominais, e os regimes com
pequenos círculos plurinominais, para promover a proximidade entre eleitores e eleitos, e um
círculo nacional (para compensar as distorções à proporcionalidade), como o que propomos.
Face aos sistemas mistos, a solução proposta não só preserva a pluralidade da representação nos
círculos regionais como, sobretudo por manter o voto em lista, promove uma melhor “representação descritiva” (por género, etnia, etc.) e dá maior poder relativo aos partidos. Só um dos
1 Público, 5/1/2009.
208
14 sistemas europeus com este perfil não é também complementado com o voto preferencial:
os eleitores têm o poder de expressar preferência(s) pelo(s) candidato(s) em cada lista e, desse
modo, determinar que deputados serão eleitos. Uma solução de círculos pequenos sem voto
preferencial será sempre uma reforma minimalista.
Algumas das críticas em relação ao voto preferencial são infundadas. Primeiro, VM alegou
que “excluiria tendencialmente os iletrados” por causa da sua complexidade. Porém, tal como
o propomos, o voto preferencial é opcional e, por isso, os iletrados, etc., podem continuar a
votar só no partido. Além disso, não é por causa da brutal iliteracia informática que o governo
deixa de usar o e-government: razões semelhantes assistem ao expediente proposto. Segundo, VM
alegou que ou o voto preferencial tem uma fasquia muito alta para que tais sufrágios contem,
desincentivando-o, ou então incentiva-se o uso do instrumento (como propomos: mínimo
de 7 por cento dos votantes de cada partido em cada círculo) mas “cai-se na solução nada
democrática de atribuir mais peso ao voto nominal de uma minoria” do que “à maioria dos
eleitores que votaram no partido”. É verdade que, para haver incentivo, a fasquia tem que ser
baixa, mas é preciso sublinhar que, para chegar a esta solução, baseámo-nos numa extensa
pesquisa comparativa. E o argumento da democraticidade é espantoso para quem defende o
status quo: apenas uma ínfima parte da hierarquia partidária escolhe os candidatos e, mesmo
que fossem os militantes, num sistema de primárias (que também defendo), seria sempre
uma solução menos democrática. Terceiro, VM alega que o que propomos representaria uma
“mudança substancial de filosofia da representação política”, dando uma maior centralidade
aos candidatos/deputados do que aos partidos. Todavia, os estudos existentes, nomeadamente
sobre as experiências escandinavas, demonstram que este receio é infundado2. Finalmente,
VM alegou que o voto preferencial poderia criar “enormes riscos para a coesão e a disciplina
partidária” pondo em risco a governabilidade. As experiências escandinavas, bem como as dos
inúmeros países onde este tipo de regime existe, mostram que são receios infundados, até
porque os partidos permanecem com o derradeiro poder de decidir quem integra as listas. Mas
é certo que a nossa proposta implica alguma perda de poder dos partidos: o trade-off necessário
para combater a partidocracia e estimular a participação. Mais, na linha de António J. Seguro
(Expresso, 6/12/08), creio que chegou a hora de olhar para a disciplina partidária de forma
dessacralizada: reservando-a para as promessas eleitorais, o orçamento e as moções de censura
e de confiança. A questão é que, pelas reacções, algumas direcções partidárias parecem não
querer ceder poder algum... 2 David Arter, Democracy in Scandinavia – Consensual, Majoritarian or Mixed?,
Manchester, Manchester University Press, 2006, pp. 26-45;K ver também Carmen Ortega. Los Sistemas de Voto Preferencial.
Un Estudio de 16 Democracias, Madrid, Centro de Investigaciones Sociológicas, Siglo XXI, 2004.
209
Estabilidade política1
Vital Moreira
C
om a aproximação das eleições parlamentares de 2009, após a mais longa legislatura desde 1976, volta à discussão pública o tema da estabilidade política e da
governabilidade. Como assegurar a estabilidade governamental num sistema
político que, mercê do sistema eleitoral proporcional, raramente proporciona
maiorias parlamentares e em que a experiência mostra também uma grande vulnerabilidade
dos governos de coligação?
Antes de mais, importa sublinhar que a estabilidade governamental constitui um valor em
si mesma. Sem governos que possam planear e levar a cabo uma linha de governação durante
quatro anos, não é possível implementar reformas, assegurar a disciplina das finanças públicas,
nem responsabilizar governos. Além disso, a instabilidade política gera a instabilidade económica e social. Nada pior para o investimento do que a imprevisibilidade das decisões políticas.
Independentemente do juízo que se faça do actual Governo, ninguém pode seriamente
contestar que, sem a maioria parlamentar, não teria sido possível conseguir o saneamento das
finanças públicas nem empreender as profundas reformas que se realizaram na administração
pública, na segurança social, na educação, na saúde, etc.
Em segundo lugar, não tem nenhum fundamento a ideia de que Portugal não tem, ou
deixou de ter, um problema de governabilidade. Onze eleições parlamentares e 17 governos
em 32 anos de democracia constitucional não são propriamente um bom registo de estabilidade política. Das 11 eleições, só três proporcionaram maiorias parlamentares (1987, 1991,
2005); e dos 17 governos, só quatro completaram a legislatura. Mesmo nos últimos 20 anos,
em que a rotação governamental diminuiu e em que se verificaram todos os casos de maioria
parlamentar e de governos de legislatura, ainda assim houve duas legislaturas e três governos
que não chegaram ao fim do mandato.
Salvo o caso excepcional do primeiro Governo minoritário de António Guterres (19951999) - aliás, em tempos de “vacas gordas” e à custa de muitas cedências -, só os governos
com maioria parlamentar monopartidária completaram o mandato. Com a referida excepção,
todos os demais governos minoritários, bem como todos os governos de coligação (nada
menos de sete) abortaram. Este panorama contrasta com o que se passa noutros países europeus com sistema eleitoral proporcional, onde existem governos minoritários que governam
estavelmente (por exemplo, em Espanha) e onde inúmeros governos de coligação perfazem
legislaturas completas.
Neste quadro, bastará que nas próximas eleições legislativas o partido vencedor não tenha
maioria absoluta para que o espectro da instabilidade governamental regresse a toda a força.
Sobretudo se se tratar do PS (como é previsível), dada a tradicional impossibilidade de coliga1 Público, 30/12/2008
210
ções com os partidos à sua esquerda, dominados pelo radicalismo político e por uma cultura de
protesto e de oposição que os torna inelegíveis para responsabilidades governativas.
Então, como melhorar as condições de governabilidade em Portugal?
Sem excluir uma mudança das condições e das atitudes políticas que permita governos de
coligação estáveis no futuro, as respostas canónicas a essa questão passam por mudanças institucionais. Uma consiste em modificar o sistema eleitoral, de modo a favorecer a obtenção de
maiorias parlamentares, diminuindo o respectivo limiar para baixo dos actuais 45% de votos.
Outra consiste em assegurar melhores condições de sobrevivência aos governos minoritários,
reduzindo o espaço para o seu bloqueio por coligações negativas da oposição.
A primeira opção, que necessitaria de modificação da lei eleitoral, é a menos provável, e
não propriamente por necessitar de uma maioria de 2/3. Tal reforma teria de passar, directa
ou indirectamente, pela indução de uma maior bipolarização eleitoral e pela consequente
redução do actual nível de proporcionalidade do sistema eleitoral, o que, mesmo não sendo
inconstitucional, seria politicamente muito controverso. A segunda opção, embora menos
melindrosa, também não é fácil, até porque necessitaria de uma revisão constitucional, e logo
também de uma maioria de 2/3.
Que medidas poderiam permitir uma maior segurança de executivos minoritários? Como
é sabido, a Constituição facilita a formação de tais governos - ao prescindir de um voto de investidura parlamentar e ao exigir maioria absoluta para que a oposição possa rejeitar o programa
de governo -, mas depois deixa-os à mercê das oposições. Apesar de ainda exigir maioria absoluta para as moções de censura, a verdade é que nada impede uma coligação negativa para
derrubar um governo minoritário. Além disso, e mais importante, um governo minoritário
não pode aprovar nenhuma lei contra a oposição, incluindo os principais instrumentos de
governação (a começar pelo orçamento), podendo ver-se confrontado com leis de grande
impacto financeiro aprovadas pela convergência da oposição contra o governo. Basta citar o
“orçamento limiano” e a Lei das Finanças Locais nos governos de Guterres, para mostrar o
potencial destrutivo de tais situações.
Recentemente, foi recuperada a velha proposta da “moção de censura construtiva”, que
acautelaria os governos minoritários contra moções de censura, salvo entendimento entre as
oposições para um governo alternativo, o que é pouco provável (embora se tenha verificado em
1987). Mas isso não basta. Sem mecanismos que garantam a aprovação dos orçamentos (por
exemplo, transformando a sua rejeição numa moção de censura) e impeçam a aprovação de
leis financeiramente incomportáveis pela oposição (por exemplo, proibindo o agravamento
do défice orçamental), a vida dos governos minoritários será quase sempre insustentável.
Seja como for, é de crer que o tema da governabilidade integre a agenda da próxima revisão
constitucional, na legislatura que vem.
211
212
DAS IDEIAS
Estado e União Europeia: ideologias e debate
intelectual em torno do socialismo e da
igualdade de oportunidades
Carlos Leone
A
gora que a Direita portuguesa redescobre fontes de pensamento a
que nunca deu grande uso1, convirá que a Esquerda democrática
reflicta sobre as suas próprias possibilidades de evolução. Para isso,
este artigo diferencia Esquerda e Direita, centra a sua atenção na
Esquerda democrática e na sua dimensão europeia, para, por fim, identificar
várias possibilidades de desenvolvimento futuro e privilegiar a caracterização
de uma delas.
I. Como celebremente afirmou Norberto Bobbio em Direita e Esquerda, a
diferença entre os dois campos políticos pode detectar-se em torno da questão
da igualdade. Notemos, desde já, como esta afirmação pressupõe uma liberdade política generalizada, própria de regimes políticos modernos, sem a qual
a «igualdade» seria apenas eufemismo para «opressão».
Segundo a distinção feita por Bobbio, a Esquerda, mesmo não sendo toda
igualitarista (questão que irei abordar daqui a pouco) tende a actuar no sentido
de diminuir as desigualdades, contrariamente à Direita. De facto, podemos
concordar, sendo ainda assim recomendável atentar em vários aspectos:
tradição liberal na origem; igualitarismo de direita; natureza política e não
económica da igualdade (equilíbrio direitos individuais e colectivos). Nada
disto é contra Bobbio, mas com Bobbio de uma forma que me parece mais
adequada à compreensão dinâmica (e não apenas estática, para recorrer aos
termos das leis do positivismo) do problema.
Ideologicamente, a Direita e a Esquerda reclamam fontes comuns da
modernidade política europeia, o republicanismo renascentista e o liberalismo
contrário ao absolutismo. As forças de Direita e de Esquerda que reclamam
1
A título de exemplo, a nova tradução de O caminho para a servidão, de F. A. Hayek, surgida no final de 2008
nas edições70 (Lisboa), com prefácio de J. C. Espada. Poderá ser muito instrutivo para os «cães de guarda»
do mercado livre (i.e., sem regras) descobrirem que mesmo Hayek – e logo numa obra não científica e sim
política – defendia o papel do Estado em tempos de crise, considerando-o mesmo indispensável.
213
ESTADO E UNIÃO EUROPEIA: IDEOLOGIAS E DEBATE INTELECTUAL EM TORNO
DO SOCIALISMO E DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
outras fontes (o reaccionarismo e o revolucionarismo) são menores, derivativas e muito datadas. Quando Bobbio se refere à igualdade, pressupõe-a num
contexto de liberdade política liberal, não noutro, pois essa tradição intelectual
é a matriz do pensamento político moderno, até hoje. Sem ela, nem haveria
união de perspectivas que permitisse diferenciar, de um mesmo ponto (ainda
que esse «centro» seja em muito imaginário), Direita e Esquerda. Por isso
mesmo, há forma de pensamento igualitárias também à Direita, de tipo libertário, embora sejam de acto minoritárias. Nem por isso este ponto deve ser
esquecido. O que ele revela, justamente, é o modo como o ideal político da
igualdade se tornou hoje comum a Esquerda e Direita, ainda que de diferentes
formas (tal como sucede no interior de Esquerda e de Direita). É esta dinâmica
que revela a relevância das ideologias, ao dinamizarem a vida social institucional num sentido ou noutro.
Essa compreensão requer que se saliente a natureza não apenas económica
mas sobretudo política de uma opção ideológica (digamos, de Esquerda) em
favor de políticas de governo promotoras de igualdade. Se esta opção inclui
necessariamente aspectos orientados para a correcção de desigualdades económicas gritantes, geradoras de tensão social e correspondente baixo «capital
social», nem por isso deve esquecer que o combate à desigualdade é sobretudo político, pois as causas da desigualdade não são apenas económicas mas
também sociais, religiosas, legais, etc.
Assim, seguindo Bobbio, podemos concordar que a Esquerda é ideologicamente mais consistente no combate às desigualdades do que a Direita. Com
efeito, o que vemos na Direita, quer a centrista, de governo, quer a libertária,
minoritária, quer mesmo na extrema-direita, é uma concepção de igualdade
na qual os direitos e deveres devem ser iguais para todos e, a partir daí, haverá
quanto muito assistencialismo de Estado aos mais necessitados ou em tempo
de crise (sintomaticamente é a extrema direita que ainda se diferencia mais
desta visão paleoliberal da igualdade, os extremos tocam-se…). Isto é, a Direita
privilegia por norma os direitos e liberdades individuais e no caso das questões
da igualdade abre excepções a essa norma, mas poucas.
Ainda seguindo Bobbio, podemos argumentar no sentido de a Esquerda
adoptar uma visão e acções mais compreensivas face aos problemas da desigualdade social. Herdeira de uma visão optimista da História, na qual o progresso
deve trazer benefícios para todos e não apenas para os que sejam capazes de
214
CARLOS LEONE
se aproveitar dele, a Esquerda concebe a desigualdade não como uma situação
natural que se deve minorar se for socialmente necessário mas como uma realidade social que deve ser combatida para não nos reaproximar de um Estado de
Natureza hobbesiano. A questão está no modo como o faz: não apenas através de
direitos individuais mas também promovendo direitos colectivos. E, bem entendido, a Esquerda distingue-se internamente em diferentes ideologias consoante
se admite o prejuízo dos direitos individuais em nome do colectivo (revolucionarismos) ou se apenas se vê os direitos individuais e colectivos como cooperantes,
nunca excluindo-se reciprocamente (Esquerda liberal); já a prioridade absoluta
aos direitos individuais, na Esquerda, que talvez se encontre no libertarismo, seja
uma ilusão metodológica (ver abaixo).
Como é consensual (creio mesmo que sem excepção) encontrar-se à Esquerda
o privilégio da igualdade, discutirei esta questão em função das ideologias de
Esquerda. Como não concebo igualdade sem liberdade, é natural que se note
o privilégio da concepção liberal, na qual se incluem as diversas concepções de
igualdade de oportunidades, mas naturalmente aberta a discussão.
II. Igualdades
À Esquerda, a igualdade surge como condição de possibilidade (não apenas
económica, mas também moral e política) do exercício público dos direitos individuais e das suas garantias políticas por via legal (à Direita, o mesmo se aplica,
ainda que menos sistematicamente). Em grande medida, desde os seus primórdios
a Esquerda adoptou como sua a promoção da igualdade. Nesta forma moderna,
a igualdade já não é uma questão de regime político (mais ou menos igualitários,
como na Antiguidade) mas de sistema de governo (políticas promovidas pelas
instituições de governo no sentido de legislar para a promoção da igualdade).
A questão da igualdade joga-se sobretudo ao nível de políticas de governo.
Isto significa que estas políticas consubstanciam premissas muitas vezes implícitas
(ou formais) do regime político, são acções que afirmam princípios. Daí mesmo
poderem ser acções diferidas no tempo, matizadas, sujeitas a avanços e recuos,
dependem de um assentimento geral a uma determinada afirmação de valores
muitas vezes tácitos ou abstractos. De um modo geral, como a liberdade sem
igualdade gera tensões a prazo insustentáveis para a liberdade (logo, para a sociedade), um módico de igualdade é necessário, e a questão está em saber se não será
melhor ter mais do que esse mínimo e, em todo o caso, como o obter.
215
ESTADO E UNIÃO EUROPEIA: IDEOLOGIAS E DEBATE INTELECTUAL EM TORNO
DO SOCIALISMO E DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
1. Concepções de igualdade
O tema da igualdade é tão antigo quanto a própria definição de um campo
político «de Esquerda». Contudo, a promoção da igualdade gerou, nas experiências históricas conduzidas no século XX (nomeadamente regimes sob a órbita
soviética e no extremo-oriente), enormes engenharias sociais nas quais o sistema
governativo se sobrepôs, invariavelmente, à afirmação dos princípios políticos
dos regimes que devia servir. Que esta hipertrofia do governo no Estado, geralmente designada «totalitarismo», tenha ocorrido em Estados estranhos à cultura
política republicana e liberal do Ocidente moderno não é de estranhar; que essas
torções se tenham perpetrado «em nome» dos mais altos valores não deve, por
outro lado, desmerecer esses mesmos valores. Assim, tal como no século XIX
Engels já reconhecia que as conquistas sociais nas barricadas já eram coisa do
passado, também a Esquerda democrática que se manifestou indisponível para a
via da violência seguida por autoproclamados marxistas se viu levada a encontrar
um conceito exequível de igualdade. Hoje em dia ouvimos falar disso, na maioria
das vezes, a propósito do New Labour, mas, em Portugal e no continente em
geral (França, Itália, RFA, pelo menos; mas em Espanha também) esse processo
foi anterior, teve resultados igualmente importantes e, coisa muito importante,
teve a sua origem na prática política.
Este último aspecto merece atenção: tal como foi na execução prática da
«Revolução» que os ideais políticos do materialismo histórico-dialéctico se
viram subvertidos (1917, «uma revolução contra O Capital», como terá observado Gramsci), foi na experiência de governo (ou parlamentar, pelo menos)
que os socialistas democráticos desenvolveram modelos de igualdade política
mais amplos que os preconizados pelo liberalismo do século XIX, mas evitando
fazê-lo à custa dos direitos fundamentais. Uma maior atenção a estas origens da
reflexão política «continental» pode poupar-nos a muitas discussões (e mesmo
ao recurso a termos infelizes) que são simplesmente deslocadas e, portanto,
com escassa pertinência, nos contextos políticos exteriores ao mundo de língua
inglesa.
No caso português, que data dos anos da «teoria áspera» e de uma revolução
real (1974) mesmo se democrática, esse trabalho teórico baseado na experiência
política foi desenvolvido em particular por Sottomayor Cardia, num livro escrito
no final da década de 1970 e publicado em 1982 sintomaticamente intitulado
Socialismo Sem Dogma. Confessadamente influenciado pelos processos de
216
CARLOS LEONE
renovação ideológica dessa década, o eurocomunismo italiano e a experiência
da frente de esquerda conduzida em França por Miterrand, Cardia contestou
o enfeudamento teórico (e respectivas consequências práticas) do ideal socialista
de igualdade a uma concepção maximalista de «igualdade de resultados» assegurada (em tese) pela colectivização dos meios de produção. Ecoando muitas ideias
de Raymond Aron, Cardia viu neste capitalismo de Estado um novo ópio dos
intelectuais, cujos resultados, já visíveis na segunda metade da década de 1970
em Portugal, eram uma menorissíma correcção das desigualdades sociais e um
gigantismo do Estado que facilitava a retórica conservadora da Direita. Concluía,
provocadoramente então mas hoje comprovadamente acertado, que o «socialismo colectivista» era o melhor aliado da Direita.
Em vez disso, Sottomayor Cardia defendia uma concepção mista da
economia, em que o Estado intervinha directamente nas actividades económicas mas privilegiando as entidades reguladoras, por norma, e mantendo
monopólios apenas em casos pontuais (funções de soberania). O objectivo seria
o de promover a distribuição da riqueza produzida sem interferir com a liberdade individual na condução da vida de cada um e na consequente actividade
económica. «Socialismo de distribuição», privilegiava não a uniformização de
rendimentos mas a garantia por parte do Estado de condições de igualdade à
partida (pela promoção de reformas destinadas a melhorar as habilitações e as
condições materiais dos mais desfavorecidos na sociedade) e acompanhando a
competição social pelos bens comuns com um sistema de monitorização e de
correcção de excessos concorrenciais e/ou legais (sistema de justiça, desde logo;
mas igualmente as entidades reguladoras, etc.). Aqui, a igualdade não é concebida como uma questão dogmática, a atingir sem olhar a meios (comunismo),
nem como uma questão teórica (uma teoria da justiça), nem, sequer, como uma
ética (embora a ética utilitarista de Cardia, exposta no seu doutoramento, esteja
pressuposta). A igualdade é concebida como tarefa política moderna, ou seja,
acção social colectiva, prosseguida em liberdade, com o fito de promover o bem
comum sem com isso elidir a diferença entre a polis e o oikos, apenas privilegiando
aquela e não (conservadoramente) este último.
Partindo desta diferenciação elementar entre dois socialismos, e adoptando o
campo do socialismo democrático, distributivo, que evoluções há a registar nesta
teorização da igualdade?
217
ESTADO E UNIÃO EUROPEIA: IDEOLOGIAS E DEBATE INTELECTUAL EM TORNO
DO SOCIALISMO E DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
2. Políticas promotoras de igualdade em liberdade e UE
O argumento aqui desenvolvido associa a promoção de igualdade de oportunidades à promoção da igualdade em liberdade. Creio já ter exposto os seus
pressupostos: república, democracia, gradualismo, meios pacíficos, controlo
público de iniciativas legislativas, neutralidade do Estado (i.e., Estado não
doutrina os cidadãos sobre o que devem fazer, apenas garante um quadro político de tolerância entre visões discordantes da sociedade e do bem comum).
Merece referência particular o facto de os Estados modernos, por regra, se
inserirem voluntariamente em organizações internacionais (mesmo mundiais)
nas quais se articulam políticas não apenas acções externas mas se desenvolvem
também políticas de incidência interna a cada Estado. Assim, as políticas
votadas à promoção da igualdade no interior de cada Estado europeu membro
da UE não são indiferentes umas às outras, pelo contrário, articulam-se justamente para serem mais eficazes no seu efeito (sobre populações com liberdade
de circulação em 27 Estados) e na sua disponibilidade (articulando verbas de
cada Estado e fundo da UE). Esta articulação é também promovida por políticas comuns «sociais» e ainda por outras não relacionadas com «questões
sociais» (políticas de Defesa comuns, com a consequente redução de verbas
nacionais para esses fins, em tese). Este quadro internacional, e outros como o
da UE, não podem deixar de ser considerados na formulação (mesmo teórica)
de doutrina «igualitarista», tanto no plano da aplicabilidade quanto no dos
princípios.
Em comum, tem os pressupostos políticos que já enunciei e a sua natureza
transnacional. Integra-se, ainda, numa reflexão hoje comummente designada
por «terceira via», em referência à experiência inglesa dos anos ’90, mas que
tem raízes mais antigas e mais complexas no pensamento de Esquerda europeu
(como Sottomayor Cardia, para dar apenas um exemplo próximo). Convém
por isso conhecer essas outras fontes e respectivos contextos sociais, que nos
podem ser mais úteis e, também, evitar críticas muito comuns a este «socialismo distributivo» que promove a igualdade de oportunidades.
III. Modelos de pensamento igualitário actuais
Se aquilo que se acabou de dizer a respeito da dimensão transnacional
das políticas de igualdade está correcto, será necessário que as eleições para o
Parlamento Europeu e o funcionamento das restantes instâncias da UE sejam
218
CARLOS LEONE
pensadas como os instrumentos políticos decisivos na definição de políticas
de igualdade para o futuro. Nesse sentido, autonomizar-se a política europeia
da política dos «negócios estrangeiros» será necessário, bem como trabalhar para eleger grupos parlamentares europeus directamente (votar no PSE
directamente, sem ser por intermédio do PS). Para isso, articular programas
é necessário, mas não suficiente, pois cada programa responde a realidades
específicas e com uma história própria que condiciona as soluções viáveis em
cada contexto nacional.
O centro da política socialista do futuro terá de ser a articulação entre a
coerência e relevância das políticas públicas a nível europeu e a sua aceitabilidade e viabilidade a nível de cada Estado.
Entre os vários modelos de promover essa articulação, vou referir aqueles
que me parece serem os mais influentes no futuro. Isto é uma previsão, não
uma certeza2. E a influência não será necessariamente em Portugal, mas no
espaço europeu. São modelos de articulação nacional/internacional em torno
da questão da promoção da igualdade que se reflectem, aliás, em outras políticas públicas:
a) «liberdade inclusiva»: na Finisterra nº44, encontra-se um texto de
Joaquim Jorge Veiguinha criticando o livro de Alex Callinicos Contra a Terceira
Via. Veiguinha critica a Callinicos várias afirmações muito gerais sobre a
Terceira Via mas, mais do que isso, interessa aqui concepção de igualdade
que defende ao terminar a sua recensão: «Uma comunidade baseada numa
liberdade inclusiva entendida como recíproco aperfeiçoamento de uns pelos
outros e não como competição de uns contra os outros só possível no contexto
de uma igualdade relativa de condições sociais.» (p. 184). O que significa
«igualdade relativa», aqui? Veiguinha critica Callinicos mas sem defender
Blair e Giddens. Na verdade, apoia muitas das críticas do livro à actual
governação trabalhista: repudia a «responsabilidade» como critério moral que
se sobrepõe aos direitos legais; crítica o «conceito minimalista de igualdade»
2
Este texto, que adapta uma intervenção no primeiro curso de formação da Fundação Res Pública (Fevereiro 2009),
partilha ainda algumas secções (naturalmente reescritas) com uma apresentação ao seminário de filosofia política do
Cento de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho sobre o tema da igualdade em Liberdade (30 de Janeiro
2009). Contudo, os modelos apresentados nesta secção final reflectem de forma sumária materiais de trabalho para o
congresso internacional a realizar entre 29 e 31 de Outubro, na Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa) subordinado
ao tema «igualdade de oportunidades», em cuja organização estou envolvido
219
ESTADO E UNIÃO EUROPEIA: IDEOLOGIAS E DEBATE INTELECTUAL EM TORNO
DO SOCIALISMO E DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
de Labour e SPD (dotação à partida, aliás reduzida a meios económicos em
vez de culturais/cognitivos); crítica as teorias liberais (de Locke a Rawls) que
reconhecem desigualdades legítimas (as que beneficiam os mais fracos).
Estas críticas são desiguais: a «responsabildiade» como critério moral é um
problema, mas não pelas referências indirectas a Weber que Veiguinha faz, e
sim pela sua afirmação contra direito sociais (restará provar essa oposição, claro,
mas pelo menos ocasionalmente ela existe); a crítica ao conceito minimalisa de
igualdade faz todo o sentido, mas resta saber se é justa para os visados no que
concerne à alegada falta de empowerment; e a crítica ao liberalismo defensor de
desigualdades legítimas tem de atender à existência de desigualdades que toda a
sociedade (e não apenas os conservadores) entende não serem problemáticas,
o que bastará para que o socialismo democrático não interfira nelas. Também
aqui a maximização é um sonho.
Além disso, modelos de «liberdade inclusiva» precisam ainda de definições: além de se determinar o que é em termos positivos «igualdade relativa»,
também será útil precisar o que é a «revolução das sensibilidades» e a «comunidade» em que tudo isto ocorre. Dito assim, parece um programa pré-marxista.
O que não é necessariamente mau, mas talvez seja demasiado pouco.
b) «igualitarismo aleatório», tradução minha de «luck egalitarianism»,
designa outra corrente teórica cuja influência nos debates anglófonos torna
previsível que venha a influenciar a teorização sobre igualdade de oprtunidades; ela reduz a promoção da igualdade à igualdade de oportunidades
à partida, atendendo contudo a aspectos materiais e culturais. Responde
portanto à objecção de Veiguinha ao «igualitarismo minimalista». Contudo,
desinteressa-se dos resultados da vida social posterior, validando desigualdades
que venham a surgir durante esta vida social. Esta corrente de pensamento,
influente nos debates teóricos de língua inglesa (ver um resumo em White
2007), distingue entre desigualdades causadas aleatoriamente e as desigualdades causadas por escolhas voluntárias. Estamos aqui próximos daquela
«responsabilidade» moral que desagrada a «inclusivistas» como Veiguinha.
E com razão, creio: esta concepção faz tábua rasa da realidade social em que
as escolhas individuais se inserem3, quer no imediato (i.e., as escolhas são
3
Embora se deva ressalvar que estas questões já suscitam debates e variantes mitigadas do «luck egalitarianism».
220
CARLOS LEONE
condicionadas socialmente), quer a prazo (as nossas escolhas afectam-nos mas
também comprometem os vindouros). Vale a pena não rejeitar liminarmente
este modo de pensar, contudo: ele é influente por motivos teóricos (desenvolvem-se modelos bastante elaborados de diferentes tipos de recursos) e
politicamente pode vir a ser explorado por quem, à Esquerda, quiser persuadir
o centro-direita a aderir a políticas promotoras de igualdade (resta saber se é o
melhor argumento para o fazer, mas isso só é decidível em concreto).
c)libertarismo,defesadaigualdadenasuaformamaisradical.Sintomaticamente,
existe à Esquerda e à Direita, partilhando ambas as formas a concepção de igualdade como não obstrução por parte do Estado ou de instituições em geral à
fruição de si e do seu trabalho. Como afirmou um teórico do libertarismo de
Direita (Nozick, Anarchy, State and Utopia), «trabalho sujeito a impostos é igual a
escravatura». Aqui tende-se a igualizar os indivíduos reduzindo-os a um estado
de natureza permanente, no qual a sociedade ou é ignorada ou é dada como
aproblemática. O libertarismo defende a total liberdade e dá assim por adquirida
a igualdade de todos, como se a vida humana não se organizasse em associações
intermédias de filiação múltipla (família, amizades, vizinhança, trabalho) e estas
não condicionassem (promovendo e excluindo diferentes possibilidades) a
vivência da liberdade individual. De novo, é essencialmente um debate universitário, mas a individualismo inevitável nas sociedades modernas potencia a sua
influência (já real nos EUA).
Existe recentemente um «libertarismo de Esquerda», que soma à defesa
absoluta do direito à autopropriedade uma preocupação com a dimensão supra
individual, na forma de cuidado com o bem comum de todos, os recursos naturais. Nesta versão (Otsuka 2003), além do direito aos nossos recursos ser absoltuo
(ninguém dispõe da nossa força de trabalho), um direito à partilha dos recursos
comuns é também absoluto. As limitações deste modelo, que se centra numa
espécie de «eterno presente» muito comum nas ciências sociais e numa linearidade de modelos nos quais a ambiguidade da vida social nunca aparece, são fáceis
de ver: também ele ignora o que há de dinâmico e não apenas mecânico na relação
entre o individual e o colectivo, também ele concebe o colectivo como uma soma
de indivíduos cujas características são decomponíveis sem ambiguidades nem
contradições (os condenados a penas de prisão trabalham para sustentar os que
sofrem de deficiências, tudo perfeitamente unidimensional e estanque).
221
ESTADO E UNIÃO EUROPEIA: IDEOLOGIAS E DEBATE INTELECTUAL EM TORNO
DO SOCIALISMO E DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
d) liberalismo de Esquerda, também conhecido por social democracia ou
socialismo democrático é uma tradição também e com possibilidades de se
renovar.
Um trabalho recente (Giddens e Diamond 2005) apresenta ideias para um
«novo igualitarismo» num conjunto de trabalhos muito diversos mas todos
operando dentro das linhas já enunciadas. Destaco apenas algumas ideias chave
do pensamento actual sobre igualdade em liberdade:
1) A ideia de que a promoção de igualdade é hoje comum a Esquerda
e Direita, com matizes claramente diversos, tal como a ideia de escolha
(de escola para filhos ou de unidade de cuidados de saúde a utilizar) foi
introduzida pela Direita e já é aceite pela Esquerda (por ser integrável na
sua cultura liberal);
2) Esta transversalidade ideológica, ainda que matizada, não obrigada a
«pensamento único» nenhum, não é preciso gostar subjectivamente da
promoção política da igualdade para poder conviver com ela enquanto
cidadão, sendo mesmo a cidadania a capacidade de contribuir para
alterar livremente essa e qualquer outra política;
3) O reconhecimento por parte de entidades públicas de direitos sociais
que promovem a igualdade entre as pessoas é gradual e limitado no
tempo e noutras condições (casos da admissão à cidadania, por exemplo)
e que isto mesmo pode ser combinado com a dimensão internacional de
coordenação dessas políticas, de modo a que a promoção da igualdade
seja uma questão da maioria da população, de diferentes modos e de
diferentes formas, e não de uma série mutável de minorias;
4) Igualdade para todos, portanto, significa atenção à emergência de
novos «actores sociais» como mulheres, homossexuais, etc., situação
de facto que não pode ser descurada nem deve ser reduzida a uma série
de «single issue policies»; a igualdade é questão da maioria pela sua
própria natureza comum, não pela simples adição de minorias;
5) Além de novos actores sociais, as políticas em favor da igualdade
precisam avaliar os seus resultados para se legitimarem e se aperfeiçoarem:
além de políticas sectoriais distributivas habituais, na forma de apoios
económicos e de programa educativos específicos para determinados
públicos, novas áreas da vida em sociedade suscitam desafios às políticas
de igualdade (áreas como a saúde, tornada universal), tanto se tomadas
222
CARLOS LEONE
isoladamente como na sua relação com as políticas já existentes;
6) Estudos recentes (cf. pp. 183-199 em Giddens e Diamond 2005)
indicam que, em vez de nos concentrarmos exclusivamente na obtenção
de patamares de igualdade gerais, prestemos igual tenção à redução de
desigualdades concretas em subsectores e em graus intermédios, pois há
já dados que comprovam o efeito sensível dessas reduções mais restritas
da desigualdade no trabalho mais amplo pela promoção da igualdade,
quer a nível prático quer a nível da validação do pensamento político
e social «igualitário» (no caso do emprego esta abordagem segmentada é decisiva, pois apesar da insistência meritocrática na selecção dos
melhores, muitas vezes é já no exercício de funções que de forma sistemática se sofrem desigualdades de tratamento e oportunidades que
subvertem o princípio geral de igualdade, por vezes de forma informal
e portanto praticamente insusceptíveis de comprovação e de correcção
pelo sistema de justiça);
7) Incentivar por via legal (política económica) a co-propriedade das
empresas pelos seus trabalhadores, de acordo com os dados existentes
sobre empresas nessa situação serem marcadas por uma maior paridade
salarial e por um maior capital social, com consequentes benefícios
individuais e colectivos (cf. idem);
8) Diferenciar políticas de coesão social enunciando os seus critérios políticos (promoção do emprego, modernização dos sectores de
actividade económica, etc.), não apenas para evitar o alargamento da
diferença entre os mais ricos e os mais pobres mas também para impedir
um empobrecimento das classes médias, por um lado, ou, por outro,
a formação de um grupo menos privilegiado face a toda a sociedade (o
pesadelo ético da meritocracia);
9) Actuar no imediato contra os factores de reincidência na pobreza
(sair dela para voltar a ela, quer em aspectos materiais, de vencimento,
quer em aspectos pessoais, de integração social) e no longo prazo para
garantir que iguais oportunidades hoje não reproduzem para as gerações futuras apenas os resultados actuais (i.e., prevenir que o sucesso
profissional da presente geração condicione de forma tão directa como
até aqui as trajectórias da próxima geração);
10) Não esperar da «sociedade do conhecimento» a solução para os
223
ESTADO E UNIÃO EUROPEIA: IDEOLOGIAS E DEBATE INTELECTUAL EM TORNO
DO SOCIALISMO E DA IGUALDADE DE OPORTUNIDADES
males presentes, antes usá-la como instrumento para os corrigir (p. ex.,
campanhas para informar sobre o uso dos serviços públicos por parte de
quem deles mais necessita, os mais pobres, em vez de por parte daqueles
que melhor sabem utilizá-los, a classe média, como hoje se verifica);
11) Valorização da responsabilidade individual (e familiar) no combate a
situações de desigualdade social, da responsabilidade pública na criação
de instrumentos para corrigir essa desigualdade, e da responsabilidade
dos agentes económicos privados em não explorar as desigualdades
em proveito próprio (não apenas evitar cartelização, evitar critérios de
gestão únicos como a maximização dos lucros em matérias intrinsecamente complexas, económicas e sociais).
Estas são linhas pelo menos possíveis de evolução e que se integram naquilo
que alguma literatura académica denomina «democracia cívica», que será
talvez a noção mais adequada para designar este mesmo espírito de igualdade
complexa, pensada a vários níveis (individual, social e estatal) e em vários
momentos (nas oportunidades de partida, na competição justa e no acautelamento dos efeitos futuros).
Democracia cívica é então o resultado do triunfo das aspirações da sociedade civil moderna, que impôs ao poder de Estado um conjunto de preceitos
políticos (além de morais) na regulação das relações sociais. Esta ideologia
democrática encontra no socialismo, bem entendido no democrático, a sua
expressão mais consequente. E, no caso português, em linha com as preocupações cívicas que moviam os socialistas europeus desde o século XIX, contando
também com os contributos de portugueses – de Antero a Jaime Cortesão,
António Sérgio, até hoje.
224
Bibliografia
Bobbio, N., 1994, Direita e Esquerda, Editorial Presença, Lisboa.
Giddens, A. e Diamond, P. (eds.), 2005, The New Egalitarianism, Polity Press, Cambridge.
Rosas, J. C., 2003, «Justiça Social e Igualdade de Oportunidades», Diacrítica, 17/2, Braga
(pp. 203-216).
Sottomayor Cardia, M., 1982, Socialismo sem Dogma, Publ. Europa-América, Lisboa.
Stuart White, 2006, Equality, Polity Press, Cambridge.
225
226
CULTURA
Manifesto
pela inscrição democrática da cultura
na sociedade portuguesa
Fernando Mora Ramos e Joaquim Jorge Veiguinha
1. Inscrever será incorporar, socializar organicamente aquele conjunto de bens
imateriais que designamos por cultura e que expressam entendimentos do mundo,
olhares específicos consubstanciados de forma privilegiada na Língua, raiz de
sermos e continente da nossa Identidade reactiva e criadora.
2. A questão, entre nós, europeus genéticos na geografia, no discurso politizado
da integração europeia e periféricos na realidade, em boa verdade americanizados
de segunda, é a da compreensão ainda não alcançada das razões de uma dada
“coerência” das circunstâncias estruturalmente repetidas do nosso escandaloso
atraso de desenvolvimento cultural e modelo social quando, como europeus portugueses nos comparamos aos Europeus.
3. Se nos salários a discrepância entra pelos olhos dentro, como na percepção
do que seja a “qualidade de vida”, já na cultura o assunto é sempre tratado com uma
ambivalência que torna a questão cultural uma inexistência, um não lugar, um não
assunto – estranhamente não há neste caso, nem no discurso político, ignorante,
nem nos média, afastados de um discurso íntegro sobre o país cultural e o que isso
será e seria, a demonstração reflexiva e objectiva do que é óbvio: a diferença radical
dos sectores públicos da cultura entre Portugal e as Europas, do centro ao leste e
mesmo ao sul.
4. Quando falamos da necessidade de inscrição da cultura estamos a falar de
uma necessidade nossa de criar as condições estruturais, as práticas, as instituições e
as dinâmicas de fruição e criação cultural e artística, numa escala que, determinada
publicamente e aberta à iniciativa civil, permita aos portugueses o exercício de uma
cidadania activa, esteio de um aprofundamento da democracia como construção
do seu futuro.
5. Essa escala confunde-se com a criação de um modelo social que se funde na
superação do nosso atraso relativamente aos padrões de vida e de democracia quotidiana da Europa paradigmática, o que hoje é porventura falar dos momentos mais
felizes do seu Estado Social para trás e da necessidade de criar uma Europa do bem
comum altamente qualificada para a frente, na Europa por vir.
227
CONVENÇÃO CULTURAL PELA INSCRIÇÃO DEMOCRÁTICA DA CULTURA
NA SOCIEDADE PORTUGUESA
6. Nesta visão, cultura serão todas aquelas práticas que cruzam um específico
olhar veiculado pelos valores culturais gerados na língua que falamos, com os
conteúdos simbólicos e intelectuais que emergem do património histórico vivificável e com a criação contemporânea, novos entendimentos constantemente
experimentados que se ensaiam nas novas realidades e reinterpretações do passado
que o futuro sempre gera.
7. Assim sendo, falamos da necessidade de inscrever como práticas de acesso
generalizado na escola e na sociedade, as artes da cena, do som e da imagem, assim
como o acesso ao livro e à leitura, necessária parte integrante da formação básica
obrigatória de todos os portugueses, mas também da sua inscrição directamente
fruível na vida real.
8. A cultura, sob a forma de práticas identitárias e como patrimónios globais,
históricos e contemporâneos, universais e europeus, deveria ser uma constante da
vida, à mão de semear como a água e a electricidade. Não tem sentido que sejamos
excluídos da obra de Camões, como não tem sentido desconhecer Shakespeare se
essa possibilidade é real e alcançável – trata-se de um esbulho, esse impedimento ou
essa ausência da possibilidade de fruir.
9. E uma verdadeira inscrição não se remenda, não há pílula cultural possível,
não há alternativa a ler e saber ler, como leitor, como espectador, como cidadão e
sujeito, como animal político. Esses modos de ler têm tempos de maturação que
contrariam a velocidade instalada no fluxo comunicacional global que, na realidade, gera as mecânicas do funcional mas impede a reflexão e a emergência do que
em nós pode ser pensamento.
10. Esse socialismo da cultura integral do indivíduo será o verdadeiro laicismo
libertador, um socialismo cujo paradigma assenta numa profunda qualificação
cultural dos portugueses, no exercício de um poder da sociedade que se generalize enquanto hegemonia cultural, poder da maioria qualificada sobre a barbárie
financeira e a selvajaria de uma sociedade desregulada pelos poderes – de facto
sem controle e mais poderosos que os Estados – de meia dúzia de especuladores
planetários.
11. Que nenhum português seja excluído da possibilidade e da capacidade de
ler, de ler livros, de ler teatro, de ler arquitectura, de ler cinema, de ler a própria
realidade. Este princípio, imperativo ético e constitucional, certamente factor de
qualificação do Portugal por vir contido nessa possibilidade de sermos Europeus
mais que oficialmente e na moeda, pressupõe a existência de um vasto sector de
228
FERNANDO MORA RAMOS E JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
actividades artísticas criativas como um serviço público organizado pelo Estado
que garanta e materialize a consigna constitucional do exercício da criação artística
contemporânea (que alimenta e dinamiza a memória patrimonial além da sua actualidade interventiva), condição de realização da consigna constitucional do acesso
generalizado à fruição cultural, isto é, a uma cidadania consciente de si mesma, da
realidade e da democracia compatível com a chamada sociedade do conhecimento
e da criatividade.
12. Que sociedade será a sociedade do conhecimento e da criatividade sem a
cultura?
13. A liberdade dos portugueses depende do seu grau de independência intelectual, criativa e cognitiva, e esse só o Estado laico pode propiciar através de um
conjunto qualificado de estruturas de criação artística e cultural que complementem
o trabalho da escola e que materializem no todo nacional o acesso a uma verdadeira
cultura elitária para todos
14. Essa cultura será também e muito especificamente aquela que as gerações
anteriores nos legaram, desde a infância da nossa história à sua primeira modernidade, através dos clássicos e clássicos contemporâneos, de Gil Vicente a Pessoa,
através das realizações materiais e imateriais de uma história singular, mas também
a que é criada e reinventada pelos criadores e pensadores portugueses contemporâneos, de José Gil a Paula Rego, de Maria João Pires ao professor Damásio, de
Ricardo Pais a Siza Vieira, de Pedro Carneiro a Eduardo Lourenço, de João Vieira
a Luís Miguel Cintra e a tantos outros criadores.
15. Nesta visão de um contributo especificamente nosso, enriquecido pelos tais
mundos que nos descobriram e descobrimos, mundividência gerada na hibridação
desde a primeira hora, há que integrar os criadores europeus e universais, nas mais
diversas áreas das artes e do conhecimento. O que desde sempre também tentámos ser
– basta pensar na dimensão europeia da nossa cultura científica quinhentista e em particular no teatro de Gil Vicente, o Shakespeare de um tempo ainda preso às “trevas”.
16. Se existem áreas do saber e do conhecimento restritas, o mesmo não é
verdade relativamente à cultura. Não só a capacidade cultural é uma potencialidade
de todos, como também é verdade que o conhecimento das artes é generalizável
do mesmo modo que a popularização da ciência é uma preocupação acertada. O
que é verdade é que ciência e tecnologia sem cultura artística humanista são, como
propósito e projecto, aberrações prospectivas.
17. Só a cultura, com a sua diversidade de raízes e de fenomenologias material229
CONVENÇÃO CULTURAL PELA INSCRIÇÃO DEMOCRÁTICA DA CULTURA
NA SOCIEDADE PORTUGUESA
mente concretas, pode fertilizar o olhar científico. Uma, a ciência – e a tecnologia
– sem a outra, a cultura, são como um jardim sem água, a invenção sem a compreensão do quadro amplo da sua inscrição humana, o nuclear sem a paz.
18. A cultura não se reduz à dimensão estética nem consiste exclusivamente
nas obras de arte. Se assim fosse, até alguns nazis pertencentes às SS, melómanos
e eruditos, podiam ser considerados homens cultos. A dimensão fundamental da
cultura não se reduz às suas obras - arquitéctónicas, escultóricas pictóricas, teatrais,
cinematográficas e literárias -, mas consiste no alargamento e no enriquecimento
dos horizontes dos seres humanos. Já humanizada pelo trabalho, pela práxis
produtiva, a realidade ganha uma nova dimensão, já que todas a cultura projecta o
homem para além do presente imediato, criando uma novo mundo onde os seres
humanos se reconhecem e alcançam uma dimensão universal.
19. A cultura não é a vida, mas não pode estar separada da vida. Para que uma
sociedade seja culta não basta que tenha grandes monumentos, meros símbolos
patrimoniais das suas façanhas, das suas conquistas heróicas, dos seus grandes
criadores ou da sua identidade. A identidade só existe verdadeiramente através
do reconhecimento da diversidade. E este reconhecimento tem duas dimensões
importantes. A primeira diz respeito à nação e a segunda ao indivíduo. A cultura de
uma nação jamais pode ser exclusiva, já que a sua identidade só pode constituir-se
e enriquecer-se através da relação com outras culturas a quem reconhece uma igual
dignidade. Por sua vez, a cultura deve ser parte integrante da vida quotidiana do
indivíduo, formando o seu gosto, refinando a sua sensibilidade e concebendo o
outro não como um competidor, mas como um igual, como um ser que partilha
um destino comum.
20. É certo que a cultura não é um modo de vida, mas faz parte do modo de vida.
Uma sociedade culta não ostenta gadgets, não concebe a inovação tecnológica como
um fim em si próprio, mas como um meio de libertação do homem das tarefas,
penosas, repetitivas e mecânicas, participa nas decisões que afectam o destino de
todos, desenvolve uma dimensão cívica que combina a autodeterminação do indivíduo com o sentido da responsabilidade colectiva. Uma sociedade culta enfrenta
com coragem os seus desafios, não tolera as injustiças sociais e considera que a liberdade de cada um é a condição da liberdade de todos. Ninguém melhor que Altiero
Spinelli, o pai do federalismo europeu, exprimiu a dimensão essencial da cultura,
que poderá servir de leitmotiv a este Manifesto: “O país em que gostamos de nos
reconhecer é feito de condutas, não de monumentos.”
230
Livros, Percursos e Imaginários Eruditos
João Soares Santos
«Many cities did he visit, and many were nations with whose manners and
customs he was acquainted. »
Homero
1. Os relatos de viagens e as informações sobre gentes e lugares distantes,
permitem analisar a amplitude íntima daqueles que os redigiram. Na descrição
de paragens e de populações habitando territórios longínquos intrometeram-se
elementos da subjectividade dos seus autores. O registo do viandante acerca dos
interlocutores contactados, imiscui-se com os dados culturais que transporta,
com a predisposição, os motivos que o levaram a partir e a transitar de um local
para outro. A narrativa das suas experiências em terras estranhas, o testemunho
dos acontecimentos, os detalhes sobre as paisagens e peculiaridades das sociedades
corresponde a uma selecção ajustada em função dos seus conhecimentos e dos
efeitos que se pretendem suscitar no destinatário. A compreensão e transmissão
das ocorrências, surge sempre pressionada pelas referências memorizadas, pela
modelação intelectual do autor. O que ele recolhe, assinala e reflecte e, por vezes,
a sua intenção em convencer o receptor da credibilidade das suas observações, da
escrupulosa exactidão do discurso em relação às evidências, não deixa de ser uma
decifração, uma interpretação, uma afirmação da sua alteridade.
As grandes religiões e os seus legados impulsionam numerosos itinerários
peregrinos, numa diligência disseminadora das doutrinas ou para encontrar os
sítios sagrados em que viveram, jornadearam e pregaram as figuras tutelares desses
valores e ideias. Nascido em Tânger, Ibn Battuta (1304-1377), antes de iniciar
um extraordinário percurso por terra e mar abrangendo o Extremo Oriente,
deslocou-se em 1325 para Meca em romagem devocional. Na sua extensa Rihla,
de Meca às estepes Russas, à Índia, Indonésia e China ele anota, quando atinge a
cidade de Khansa (Hangzhou), na actual província de Zhejiang, na China, o seu
deslumbramento perante esta urbe, a maior “que os seus olhos viram na face da
231
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
terra.”A dinâmica e variedade dos habitantes bem como as dimensões da localidade
impressionaram este árabe, salientando a sua divisão em seis secções onde residiam,
segundo ele, cristãos, turcos adoradores do sol e muçulmanos. No século anterior
Marco Polo, os franciscanos Guillaume de Rubruck e Odoric de Pordenone
comprovaram a presença de comunidades nestorianas a par de budistas, islâmicas
e hindus na Ásia Central e China. Marco Polo alude à fé nestoriana dos príncipes
turcos Öngüt e ao eclectismo religioso de Khubilai Khan, honrando e prestando
veneração a Shakyamuni, Jesus Cristo, Maomé e Moisés. Éditos promulgados por
dirigentes mongóis como Ögödei (reinou entre 1229 e 1241), Möngke (reinou
entre 1251 e 1259) e Khubilai (reinou entre 1260 e 1294) isentavam de impostos e
concediam vantagens especiais a monges budistas, taoístas, nestorianos e islâmicos.
A mãe de Möngke, Sorghaghtani Beki, nora de Chinggis Khan, era cristã nestoriana
e mecenas de várias religiões.
A propagação do budismo pela Ásia terá acontecido cedo, embora de um modo
marginal. As directrizes do próprio Gautama aos seus adeptos indicavam um desígnio
irradiador. Ele mesmo, segundo as tradições, visitou o Sri Lanka e a Birmânia.
«Ide monges e viajai para o bem-estar e felicidade do povo. Por compaixão pelo
mundo, pelo benefício, pelo bem-estar e felicidade dos deuses e do Homem. Que
nenhum de vós siga o mesmo caminho. Ensinem a Doutrina, monges que é boa
no seu princípio, meio e fim, com o seu significado e letra, integral e simples e
proclamem a pura vida sagrada. Existem seres naturalmente com pouca paixão que
definham por não ouvir a Doutrina: esses saberão compreendê-la.»1 Terá sido esta
a vontade proferida por Buda aos sessenta primeiros monges por si convertidos.
No século I ou II, Asvaghosha, o décimo segundo patriarca budista pela escola
de Yogachara, deslocou-se pela Índia indagando e coligindo histórias acerca do
seu mestre Gautama, originando a redacção de um poema biográfico em sânscrito
(«Buddacharita Kavya Sutra»), traduzido para chinês (entre 414 e 421) por
Dharmaraksha (nome indiano de Zhu Fahu) e por Jnana Gupta (587). Este texto
terá sido recitado pelo seu autor nas suas deambulações instrutivas pela Índia. Uma
das versões chinesas desta obra, no canto de louvor ao Nirvana, é exposto o método
de Gautama predicar, de veicular as suas ideias em circunstâncias de errância
peregrina. «Indo para diante entre os homens, convertendo aqueles ainda não
convertidos; aqueles que ainda não viram a verdade de modo a que a vejam! Todos
aqueles que praticam um falso método de religião, fazendo-lhes chegar princípios
profundos da sua religião! Pregando as doutrinas do nascimento, da morte e da
232
JOÃO SOARES SANTOS
impermanência; declarando que sem um mestre que ensine não haverá felicidade!
Erigindo o padrão da sua grande fama, vencendo e destruindo os exércitos de Mara!
Avançando até ao ponto de ficar indiferente ao prazer ou à dor, não se importar com
a vida, desejando apenas serenidade. Fazer com que aqueles ainda não convertidos
obtenham conversão! Aqueles ainda não salvos possam ser salvos! Aqueles ainda
sem sossego possam encontrar sossego! Aqueles ainda não iluminados possam ser
iluminados.»2
Desde os primórdios que os ensinamentos de Shakyamuni, ansiando por
respostas sobre a natureza e o destino humano, cativaram e agregaram seguidores
laicos e monásticos. Uma ordem religiosa de monges austeros, mendicantes
e itinerantes que compreendeu, na sua génese, sessenta membros, livres dos
dez vínculos do Karman, por isso intitulados Arhats. A mensagem do mestre aos
discípulos, segundo Asvaghosha foi que partissem «através dos países para converter
todos aqueles ainda não convertidos; ensinem em qualquer parte do mundo que
permaneça calcinada pelo sofrimento. Instruam em todos os lugares; instruam
quem estiver privado da instrução correcta. Ide, pois! Cada um viajando sozinho;
preenchido pela compaixão, ide! Salvai e recebei.» 3
Ashoka (c. 272 - c. 231 a.C.), terceiro imperador da dinastia Maurya de Magadha,
asseverou a sua convicção na Lei da Piedade (budismo) e procurou inculcá-la nos
seus oficiais e reinos vizinhos. Com esse intuito ordenou o envio de missionários
encarregues de transmitir a doutrina a cinco monarcas gregos (Yavanas), Alexandre
(Alikasudaro) de Epiro, Antígono (Amtekina) Gonatas da Macedónia, Antíoco II
da Síria, Ptolomeu II (Turamayo) do Egipto e Magas (Maka) de Cirene (Líbia).
As crónicas de Ceilão mencionavam emissários enviados a esta ilha e à Birmânia,
península Malaia e Samatra (Suvarnabhumi). A missão a Ceilão era liderada pelo
príncipe Mahendra, seu filho, que converteu o monarca local e quarenta mil dos
seus súbditos.
Uma lenda menciona que o imperador Ming Di, da dinastia Han (governou
entre 58 e 75), foi certa vez perturbado por um sonho onde aparecia uma entidade
sobrenatural dourada e com configuração humana. Inquirindo sobre o significado
desta percepção onírica, os sábios que reuniu em conselho retorquiram-lhe que
deveria ser uma divindade exógena designada por Buda. O soberano reuniu
e expediu para a Índia, por volta do ano 65, um grupo de dezoito emissários
incumbidos de investigar e obter elucidação sobre esta personalidade e os seus
ensinamentos. Alguns anos depois eles retornaram com dois mestres indianos,
233
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
Kashyapa Matanga e Dharmaratna, um cavalo branco, uma imagem esculpida de
Buda e um exemplar do «Sutra dos Quarenta e dois Parágrafos» ou «Secções»,
obra de tendência Hinayana («Dvachatvarimshat Khanda Sutra» ou «Si Shi Er
Zhang Jing»). Numerosos textos do Grande Veículo (Mahayana) começaram a ser
transpostos para chinês desde o séc. II. Intensificou-se o trânsito de peregrinos entre
a China, a Índia e outros pontos da Ásia. Da Índia ausentaram-se, Sanghabuti,
Dharmadhara (ou Dharmaprajna) e Gautamasangha (séc. IV), Dharmayasha,
Buddhayasha, Vimalaksha, Buddhabhadra, Kumarajiva e Gunavarman (séc IV-V),
Buddhajiva, Punyatrata, Buddhavarman e Dharmamitra (séc. V), Gunavriddhi,
Paramartha,DharmaruchieBodhidharma(séc.V-VI),Dharmagupta(séc.VI-VII),
Ratnachinta e Dharmananda (séc. VII), Gautama Siddhanta, Shubhakarasimha e
Amoghavajra (séc. VII-VIII) e Dharmakara (séc. VIII-IX), entre outros nomes
conhecidos e muitos anónimos. Da China para a Índia e para outras paragens
em busca de esclarecimento, manuscritos para tradução e relíquias, seguindo por
uma rota marítima, terrestre ou ambas, dirigiram-se Zhang Quian (séc. II), Zhu
Shixing de Henan e Zhu Fahu de Dunhuang (séc. III), Sengchun e Tanchong (séc.
IV), Tanmong (séc. IV), Faxian (340 - c. 413), Baoyun (séc. IV-V), Fajing e Faling
(séc. V), Huirui (séc. V), Zhimeng, Fayong, Zhiyan e Huilan (séc. V) que seguem
para a Índia com o desígnio de aprender sânscrito, estudar com um mestre reputado
e trazer conhecimentos para a China, Songyun e Huisheng (séc. VI) enviados em
518 pela imperatriz Wu, da dinastia Wei do Norte, com a incumbência de fazer
doações aos santuários budistas e colectar textos da orientação Mahayana, Xuanzang
(c. 602-664), Yijing (634 ou 635-713), Xiuan Zhao (séc. VII), Hye Ch’o ou Hui
Chao (c. 704 - c.780), Changchun (1148-1227) e Li Zhichang, monges taoístas,
Zhou Daguan (séc XIII), entre outros nomes como Ming Yuan, Yi Lang, Zhang
Min, Dao Lin, Yun Qi, Da Cheng Deng, Zhe Heng e Wu Hing. O imperador
Liang Wudi (502-550) apelou ao rei Gupta no poder que remetesse para Nanjing
três mil monges budistas, pedido esse que foi correspondido. Vários japoneses
deslocaram-se para a China com o desígnio de aprofundar a sua erudição acerca
destes princípios filosófico - religiosos. O príncipe Shôtoku (574-622) mandou,
em 607, uma embaixada à corte Sui, chinesa, principiando assim contactos
diplomáticos cujo prolongamento temporal proporcionou permutas culturais
proveitosas, principalmente para o Japão. O budismo entrou neste país através da
Coreia. A «Crónica do Japão» («Nihon Shoki») realça que o rei de Paegche,
Syong-Myong na expectativa do apoio militar de Kimmei Tennô contra os estados
234
JOÃO SOARES SANTOS
coreanos hostis, endereçou-lhe em 538 uma escultura de bronze, revestida com
uma camada áurea, retratando Buda, juntamente com estandartes guarda-sóis e
Sutras budistas. Acompanhando as ofertas ele, numa carta, enaltece esta doutrina
enfatizando a vontade de a disseminar.
Dos viajantes peregrinos nipónicos podemos salientar Dôshô (629-700)
Chitsû (séc. VIII), Saichô (Mitsukube Hirono) que recebeu o título póstumo de
Dengyô Daishi (767-822) e Kûkai (Kôbô Daishi, 774-835).
Alguns budistas chineses legaram-nos interessantes narrativas descrevendo
as adversidades, os locais, os hábitos, as características humanas e geográficas e
os contactos estabelecidos ao longo das suas rotas. Faxian, Songyun, Huisheng,
Yijing, Xuanzang, Hye Ch’o e Changchun foram alguns dos mais distintos.
Duas obras que compendiam as façanhas destes devotos foram as «Memórias de
Eminentes Monges», datada de 519 e «Memórias de Monges Maravilhosos»,
esta última atribuída ao terceiro imperador da dinastia Ming, Yong Le (14021424). As compilações de informação obtidas de viajantes anónimos originaram a
«Memória sobre os Países Ocidentais» («Xiyu Zhi») de Dao’na (morto em 385)
da qual só restam fragmentos.
Em Nanjing, Faxian recordou as peripécias dos seus percursos no «Registo dos
Reinos Budistas» ou «Memória dos Reinos Budistas» («Foguo Ji»), também
com o título alternativo de «Relato de Faxian» («Gao Seng Faxian Zhuan»), cujas
primeiras traduções em línguas europeias foram de Abel Rémusat (Paris, 1836),
Samuel Beal (Londres, 1869 e 1884), James Legge (Oxford, 1886), H. A. Giles
(Xangai e Londres, 1887 e Cambridge, 1923). Songyun e Huisheng compõem as
crónicas da sua jornada conjunta em, respectivamente, «Onze países a Oeste do
Reino de Wei» («Weiguo Xi Shiyi Guo») e «Relação das Viagens de Huisheng»
(«Huisheng Xing Zhuan»), citadas na obra «Descrição dos Templos Budistas de
Luoyang» («Luoyang Qielan Ji»), datada de 547 e da autoria de Yang Xianzhi,
com traduções de Edouard Chavannes (Hanói, 1903) e Samuel Beal (Londres,
1869 e 1884). Bianji, discípulo de Xuanzang, redigiu as «Memórias sobre os Países
Ocidentais na Época dos Grandes Tang» («Datang Xiyu Ji») em 646, versando
sobre as viagens vividas e proferidas pelo seu mestre, traduzidas no Ocidente por
Stanislas Julian (Paris, 1857-1858), Samuel Beal (Londres, 1884), T. Waters
(Londres, 1905) e Catherine Meuwese (Paris, 1968). Huili caligrafou a biografia
deste mesmo monge por volta de 664, revista em 668 por Yancong, designada
por «A Vida de Xuanzang» («Daci’ensi Sanzang Fashi Zhuan»), traduzida
235
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
por Samuel Beal (Londres, 1911). Daoxuan em 650 compôs a «Monografia do
País dos Sakya» («Shijia Fang Zhi») com dados reportados por Xuanzang. Em
Srivijaya (actual Palembang, na ilha de Sumatra), Yijing redigiu a «Relação sobre o
Budismo, enviada dos Mares do Sul» («Nanhai Jigui Neifa Zhan»), descrevendo
o budismo na índia e no Sudeste Asiático e a «Relação dos Monges Eminentes que
procuraram a Lei nos Países Ocidentais na Época dos Grandes Tang» («Datang
Xiyu Qiufa Gaoseng Zhuan»), relatando a vida de 56 peregrinos chineses que
entre a governação de Taizong (626-649) e da imperatriz Wu Zetian (c. 624-705)
se deslocaram para países budista. Ambas as obras foram remetidas para a China
em 692, havendo uma tradução de J. Takamusu (Oxford, 1896). Hye Ch’o, de
origem coreana, concedeu-nos a «Memória duma Peregrinação às cinco Regiões
da Índia» («Wang O-Ch’onch’ukkuk Chon» ou «Hui Chao Wang Wu Dian
Zhu Guo Zhuan»), cujo manuscrito fragmentado foi descoberto por Paul Pelliot
em 1908, no espólio da caverna dos mil Budas em Dunhuang, na actual província
de Gansu, próximo do deserto de Gobi. O texto foi traduzido pelo próprio Pelliot,
por Walter Fuchs (Berlim, 1939), Han Sun Yang, Yun Hua Jan, Iida Shotaro e
Laurence Preston (Seul, sem data). A tradução dos originais em sânscrito e pali
foram a principal actividade destes eruditos e o impacto destes idiomas no chinês
literário acabou por ser significativo. «A estrutura da frase chinesa veio a tornar-se
mais flexível de modo a seguir o significado e por vezes a sintaxe dos textos originais;
o paralelismo e o equilíbrio rítmico, tão importantes no estilo clássico, vieram a ser
abandonados para um curso mais livre; o vocabulário era muito menos recatado,
chegando até a pedir emprestado o chinês vernacular. A mesma influência
libertadora fez-se sentir na poesia. Os versos em sânscrito eram transmitidos em
verso branco, sem rima e indiferente ao contraponto tónico e a dispositivos de
simetria e antítese, comuns na poesia clássica chinesa. Outra característica específica
da literatura indiana que veio a ser adoptada como característica regular no drama
e na novela chinesa foi a mistura de verso e prosa. As histórias liberalmente
incluídas nas escrituras dos indianos, que são narradores natos, contribuíram
para o desenvolvimento da literatura narrativa na China, onde a forma épica foi
completamente negligenciada.»4
Li Zhichang coligiu para literatura os acontecimentos de viagem experimentados
pelo seu mestre Changchun (1148-1227) em «Viagem para o Ocidente do Monge
Taoísta Changchun» («Changchun Zhenren Xiyoulu») em 1228, traduzido por
Artur Waley («The Travels of an Alchemist»).
236
JOÃO SOARES SANTOS
O proselitismo budista e o afã chinês de ressumar os textos de proveniência
indiana para o idioma autóctone resultaram numa mobilização extraordinária,
envolvendo inúmeros monges eruditos das duas nacionalidades. Consta que
Kumarajiva (344-413 ou 360-415), traduziu mais de meia centena de obras em
sânscrito com o apoio de Vimalaksha e Yasa, mormente, o «Lótus da Verdadeira
Lei» («Saddharmapundarika Sutra»), concebido por volta do século III, com
uma versão chinesa anterior (286) da autoria de Dharmaraksha, o «Sutra do
Buda Amithaba» («Amithaba Sutra»), também traduzido ulteriormente por
Xuanzang, o «Sermão de Virmalakirti» («Virmalakirtinirdesha Sutra»), o
«Tratado dos Cem Versos» («Shata Shastra») de Aryadeva (séc. III) entre outras,
tendo igualmente revisto traduções já efectuadas. Os anais chineses anotam o nome
de um monge de Caxemira (Tian Sizai) que, ao serviço do imperador, coordenou
uma equipa que transliterou mais de duzentos textos.
Os acidentados percursos para a Ásia Central em busca das prelecções sobre a
Lei (Dharma em sânscrito ou Qiufa em chinês), sobre o verdadeiro entendimento
dos princípios em que se fundamenta o conhecimento budista e dos escritos das
várias direcções de pensamento que o complementam, assim como a procura de
homens doutos que soubessem explicar tópicos obscuros ou de discórdia, aptos para
transmutar com clareza da língua original para a língua de acolhimento, nasceram
da consciência de que os primeiros textos vertidos do sânscrito para chinês não
garantiam a fidelidade exigida. Adaptavam para uma terminologia de teor taoista e
confucionista conceitos e discursos cuja substância parecia falseada e deturpada.
Xuanzang (602-664), de Henan, entendeu essa falta de rigor e de devida
observância ao ler a tradução de Paramartha (499-569), do «Compêndio sobre
o grande Veículo» («Mahayanasamgraha») atribuído ao monge Asanga (séc. IVV). Paramartha foi um indiano que chegou à China em 546, responsável pela
tradução de 64 obras. A arrojada e solitária viagem de Xuanzang pretendeu, em
prol da genuína sabedoria, dissipar as dúvidas e incoerências detectadas. O seu
itinerário foi dos mais longos. Estudou em Cachemira, desceu o Ganges, visitou os
santuários mais venerados da Índia (Kapilavastu, Vaishali, Bodhgaya e Kushinagara),
permaneceu cinco anos na universidade budista de Nalanda na região de Bihar. Ao
volver a Chang’an (Xian) em 645, transportou sobre vinte cavalos 657 manuscritos
de inestimável valor, estátuas de Buda, de Bodhisattvas, relíquias e pinturas.
Nesta cidade situada na actual região de Shaanxi, na altura capital da dinastia
Tang, tendo Taizong como soberano, foi efusivamente recebido pelos cidadãos.
237
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
Nos dezassete anos seguintes, incansavelmente e com o auxílio de vários assistentes,
traduziu setenta e cinco obras, entre as quais as principais conectadas com a
doutrina Madhyamika ou Yogachara, como o «Sutra da Sabedoria Transcendente»
(«Prajnaparamita Sutra») cuja primeira versão chinesa remonta a 179, o
«Compêndio sobre o Grande Veículo» («Mahayana Sangraha»), o «Tratado
do Mestres da Terra do Ioga» («Yogacharabhumi Shastra»), estes dois últimos
atribuídos a Asanga (séc. IV-V), o «Tesouro da Doutrina Particular» ou «da
Doutrina Suprema» («Abhidharmakosha»), talvez composto por Vasubandhu,
em Caxemira, no século V a. C., a «Sistematização do Saber» («Jnanaprasthana»),
o «Grande Comentário» ou «Grande Exegese» («Mahavibasha»), crucial
manuscrito da escola Sarvastivada, redigido sob a direcção de Vasumitra, etc.
Solicitado pelo rei hindu de Kamarupa (antigo nome da região de Assam),
transferiu para sânscrito o «Daodejing» de Laozi. Xuanzang foi «o maior de
todos, o mais fecundo dos tradutores de textos sânscritos e o mais sábio de todos os
budistas da China».5
Yijing (c. 635-713) saiu de Cantão (Guangzhou) num navio persa em 671,
estudou budismo Hinayana e Mahayana e regressou à China em 695, vindo de Sumatra.
Em Luoyang, foi recebido pela viúva de Taizong, a imperatriz Wu Zeitian. A sua
douta mercadoria, muito apreciada, somava trezentas relíquias e quatrocentos
textos, tendo ele traduzido pelo menos cinquenta e seis.
Hye Ch’o poderá ter colaborado com Vajrabodhi (670-741) e Amoghavajra
(705-774), tendo este último traduzido cento e oito obras e uma grande porção
delas respeitantes ao budismo tântrico.
Custosos problemas de transferência linguística do sânscrito para o chinês
terão tornado a tarefa destes monges árdua, «pois nenhuma tradução, seja para
uma linguagem familiar ou para uma completamente distinta, pode simplesmente
traduzir mecanicamente o texto original, pois nenhuma linguagem consiste
somente de palavras. Sem dúvida que a linguagem tem sempre um carácter distintivo
em progressivo desenvolvimento. Assim, qualquer tradução é, até certo ponto,
necessariamente uma transferência do texto original para o espírito do mundo e
época do tradutor. Por outro lado, terá sempre a intenção de veicular os conteúdos
do original com a maior fidelidade possível na sua nova forma linguística e, por
isso, será uma responsabilidade erudita.»6
A procura de manuscritos originais e fidedignos para a dilucidação de incertezas e
incógnitas interpretativas, resultantes do estado deplorável, escassez e incompletude
238
JOÃO SOARES SANTOS
dos acervos bibliográficos budistas chineses, suscitou uma mobilidade peregrina e
alguns preciosos apontamentos de viagem, contendo em maior ou menor grau
interessantes dados geográficos, históricos, políticos e socioculturais, revelando
igualmente aspectos psicológicos daquele que os redigiu e, principalmente, um
extraordinário denodo e abnegação em prol dum ideal de alargamento dos saberes e
da compreensão, em proveito duma rara aspiração de iluminação. O apelo religioso,
a devoção profunda, os escopos e os imaginários dos intervenientes nestas jornadas
limitaram os seus relatos. Sem querer entrar em minúcias biográficas e exaustivo
traçado das suas rotas, localidades por onde passaram e realidades testemunhadas,
gostaríamos apenas de salientar as palavras de René Grousset acerca do impacto e dos
vestígios retidos pela memória destas audaciosas digressões: «aquilo que gostamos
de imaginar entre estes sábios da Ásia extrema, letrados subtis e delicados poetas, é o
seu sonho interior. No silêncio reencontrado do mosteiro, depois de muitas visões
e de tanto espaço, eles deviam por vezes evocar os grandes países mudos que, do alto
dos Pamirs, se estendiam aos seus pés. Reviviam as noites de Bénares ou ouviam
cantar no fundo da sua memória os mares do sul que, da baía de Along aos portos
de Sumatra, os haviam conduzido até à paradisíaca ilha de Ceilão. Uma vez fechada
a porta do mosteiro, os peregrinos da sabedoria encerravam com eles o sonho de
um mundo.» 7
2. O sonho destes eruditos que os mobilizou a partir e a consagrar uma parte
significativa das suas existências, que persistiu na clausura monástica, no exercício
de trasladação de textos, na pregação ou que se desvaneceu numa morte prematura,
foi compartilhada por membros de todas as grandes religiões, muitas vezes com
equívocos, desencontros e dificuldades. Os apóstolos S. Paulo, S. João, S. André,
S. Tomás ou S. Bartolomeu, envolvidos numa dispersão evangelizadora primitiva
do cristianismo, terão certamente desfrutado e guardado nas suas lembranças o
maravilhamento e a perturbação do contacto com outras alteridades, ajudando-os
a definir melhor as suas naturezas. A acreditar nos Apócrifos, S. Tomás terá sido
enviado à Índia e os seus discípulos à Ásia Central, tendo o seu corpo eventualmente
sido sepultado em Mylapore, na região actual de Tamil Nadu.
Evitando hostilidades várias seitas heréticas cristãs expandiram-se e asilaram-se na
Ásia, levando os seus acervos bibliográficos e costumes, formando núcleos minoritários
no seio das sociedades indígenas. Entre essas seitas, os nestorianos foram os que mais
medraram nas conjunturas instaladas e mais influência nelas exerceram.
A primeira missão nestoriana na China remonta ao ano de 631. O imperador Li
239
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
Shimin ou Taizong (600-649), da dinastia Tang, recebeu estas novas concepções
com uma disposição acolhedora, sendo erigido em Chang’an um convento
com vinte e um sacerdotes. Foi desta cidade, uma das capitais Han e Tang, que
Faxian iniciou, no ano de 399, aos sessenta anos, a sua jornada para a Índia,
onde Xuanzang se fixou para prosseguir os seus estudos e de onde igualmente
saiu em 629, onde Yijing permaneceu durante algum tempo na sua juventude,
assistindo ao funeral de Xuanzang, onde Xiuan Zhao se aplicou a procurar uma
instrução mais cabal da doutrina e de onde partiu para a Índia por volta de 651,
onde provavelmente terá residido Hye Ch’o, depois do retorno da Índia e onde
se estabeleceu Shubhakarasimha, oriundo de Orissa, chegando à China por volta
de 716, traduzindo o «Sutra da Grande Cintilação» («Mahavairochana Sutra»),
obra essencial da escola tântrica Chinesa.
Nos primeiros anos do século VIII, existiram comunidades nestorianas em vários
locaisdaÁsiacomo,porexemplo,emHerat(Afeganistão)eSamarkand(Uzbequistão).
Antes das invasões mongóis, em certos lugares, como o reino Uigur de Beshbaligh
Kucha, desenvolveram-se culturas que articulavam budismo, nestorianismo e
maniqueísmo, tendo a expressão deste último decaído rapidamente.
O papa Sinibaldo Fieschi (Inocente IV, 1243-1254) para além dos problemas
com os sarracenos, a cisma dos gregos, a heresia albigense e o conflito com Frederick
II (1084-1147), recebeu notícias alarmantes dos ataques perpetrados pelos mongóis
e a sua potencial ameaça para a cristandade romana. Admitindo a possibilidade
de os ter como aliados militares contra os muçulmanos e agregar as orientações
cristãs dispersas pela Ásia, enviou de Lyon, em 1238, uma embaixada ao grande
Khan dirigida pelo dominicano André de Longjumeau. Em 1245 partiu com igual
propósito diplomático Ascelin (ou Anselmo) de Crémone da mesma ordem
religiosa a quem se juntou Saint-Quentin que registou por escrito os percalços
vividos ao longo da distância percorrida. Nesse mesmo ano e lugar Giovanni da
Pian del Carpino (c. 1180 – 1252) com Étienne de Bohême rumaram para a
Mongólia na altura em que Guyuk era proclamado rei. O novo soberano mostrou
interesse em enviar uma delegação acompanhando o retorno de Carpino a França.
Porém, o receio que as informações sobre o estado em que a Europa se encontrava
pudessem ser um incentivo para os mongóis a invadirem, dissuadiu a iniciativa.
Giovanni atestou a presença de nestorianos em Karakorum, na Mongólia,
agindo como conselheiros do filho primogénito de Ögödei, chamado Güyük que
sucedeu ao trono em 1246. Ao serviço deste mesmo soberano exerceu funções de
240
JOÃO SOARES SANTOS
médico e astrónomo o nestoriano poliglota de nome Ai Sie (1227-1308).
Perto de Kayalik, a leste do lago Baikal, a 30 de Novembro de 1253, Guillaume
de Rubrouck (1215-1295), afirmou ter deparado com uma aldeia de nestorianos,
tendo entrado na sua igreja entoando «Salve, Regina!».
Rubrouck (ou Rubruquis) foi emissário de Louis IX, rei dos Francos na
terra dos Tártaros (1253-1254) com a incumbência de converter o Khan e de o
persuadir a participar numa cruzada. Este franciscano descreveu os mongóis como
uma população sem residência estável e distribuída através da região da Cítia (do
Danúbio ao Extremo - Oriente). Dedicavam-se à pastorícia, deslocando-se no
período invernal na direcção das zonas mais quentes a sul para regressarem às
paragens mais setentrionais durante o estio. Esboçou aspectos relacionados com
os hábitos alimentares, o alojamento, o modo de se vestirem e ornamentarem,
as tarefas masculinas e femininas, os procedimentos respeitantes à justiça, ao
casamento, à doença e falecimento. Anotou também que as suas habitações eram
montadas sobre carros, edificadas com varas entrelaçadas que convergiam para
cima parecendo uma chaminé e revestidas com feltro branco, decorado com
pinturas e com uma extensão de cerca de seis metros entre as rodas. A presença de
cristãos nestorianos é regularmente atestada ao longo da sua viagem diplomática,
aludindo a certa altura à existência de um reino algures numa planície entre as
montanhas Altai e Karakorum, governado por um nestoriano chamado Jean. Na
cidade de Karakorum, a norte do deserto do Gobi, encontrou Guillaume Buchier,
um ourives parisiense a trabalhar numa obra de arte para Möngke.8 Na mesma
localidade Rubrouk encontrou mercadores, altos dignitários representando o
sultão de Bagdad, do imperador da Índia e o próprio rei da Arménia Hetum II.
Em Karakorum, durante a regência de Möngke (1251-1259), relata que o grande
secretário do Khan era Bulgai, um nestoriano, acrescentando ainda haver entre os
mongóis numerosos prisioneiros cristãos e conflitualidade entre os nestorianos e
as restantes facções religiosas. Menciona também que Möngke era tolerante no que
respeita a convicções religiosas na sua corte, tendo certa vez, a 30 de Maio de 1254,
organizado um debate no qual o integrou como convidado para discursar, juntamente
com um muçulmano e um «idólatra». Apesar de a sua intervenção ter sido escutada
civilizadamente, ninguém manifestou vontade de alterar as suas crenças.
No tempo de Möngke cerca de trinta mil cristãos alanos do ritual grego vieram
do Cáucaso para ser admitidos na guarda pessoal do monarca, permanecendo no
desempenho desta tarefa na época de Khubilai e dos seus sucessores. Möngke tinha
241
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
como esposas mulheres nestorianas e, na urbe, existiam duas igrejas, duas mesquitas
e doze pagodes ou outros templos «idólatras». O depoimento dos nestorianos
Rabban Sauma (morreu em 1294) e Marcos (1245-1317) que se deslocaram da
China até Jerusalém assevera o benefício desta tendência confessional cristã entre
os mongóis da Pérsia.
Giovanni de Montecorvino (1246-1328), fundador da Diocese de Pequim em
1307, declarou ter encontrado na China nestorianos protegidos pelo Khan. Odoric
de Pordenone (c. 1286-1331) realçou a instalação de comunidades arménias
e nestorianas no território do actual Azerbaijão. Em Thana (porto costeiro de
Maharashtra, próximo de Bombaim), por volta de 1323 ou 1324, obteve relíquias
de quatro franciscanos chacinados em 1321 por muçulmanos. Em Mylapore
(Madras) onde uma lenda vigorante narrava a cristianização de muitos hindus por
S. Tomás, habitavam ainda muitos seguidores desta tradição cujas concepções se
misturaram com as das religiões autóctones.
No ano de 1605, o padre jesuíta Matteo Ricci (1552-1610), em Pequim, graças
ao judeu Ai Tian, toma conhecimento da existência de adoradores da cruz em
Kaifeng (na actual província de Henan) e também, segundo a suposição do seu
interlocutor, noutras localidades. Ricci interrogou-se sobre a procedência desta
população. Seriam descendentes de georgianos ou arménios, viajantes do Médio
Oriente ou uma primitiva seita fundada pelo apóstolo Bartolomeu? Para esclarecer
a sua incredulidade, encarregou António, um jovem chinês de ir a Kaifeng
investigar o assunto. As informações conseguidas elucidaram que os elementos
da comunidade recusaram admitir ser adoradores da cruz, presumivelmente
temendo consequências danosas ou por vergonha mas, segundo outra fonte, os
seus antepassados terão sido cristãos de rito grego que se mudaram para a China no
período de subjugação mongol. António entregou a Ricci uma carta do regente da
sinagoga local, dizendo que em Pequim ele possuía todos os volumes do Antigo e
do Novo Testamento.
A observação de outras sociedades produziu um discurso oral e escrito acerca
dos factos constatados. Sabemos que as verdades do mundo são «somente as
interpretações do mundo.» 9 Delas dependem os relatos que chegaram até nós.
Seduz-nos todavia devanear sobre o efeito destes percursos nos viajantes antigos.
Do almejo de conhecimento, de uma motivação fulcral específica, os budistas
submeteram-se a uma experiência única cujas impressões os não terão deixado
indiferentes. Porém, conforme ditam os seus princípios, tudo isso importou
242
JOÃO SOARES SANTOS
pouco. «Quando olho para aquilo que experimentei no passado, o meu coração
fica involuntariamente comovido e a transpiração aflora. Se encontrei perigos e
caminhei por lugares de grande risco, sem pensar nem me poupar, foi porque
tinha um propósito definido e, na minha simplicidade e honestidade, em nada
mais pensava senão fazer o meu melhor. A razão pela qual expus a minha vida
onde a morte parecia inevitável, foi para tentar conseguir apenas uma ínfima parte
daquilo que esperançava alcançar». 10
3. Acidentalmente, em 1898, um volumoso e precioso espólio medieval foi
encontrado por um monge taoista, numa gruta em Dunhuang, na actual região de
Gansu, na China. As datas correspondentes ao inestimável acervo de obras guardadas
na cavidade rochosa situam-se entre os séculos IV e X, compreendendo entre trinta
e quarenta mil manuscritos, depositados e emparedados no início do século XI. Em
1907, cerca de dez mil exemplares da surpreendente colecção foram adquiridos por
Aurel Stein que, dois anos depois, transitaram para Londres. Paul Peliot, em 1908,
encaminhou mais quatro mil textos do lote para Paris. Em 1910 o governo chinês
remeteu para Beijing cerca de dez mil cópias. Uma expedição japonesa, tutelada
pelo religioso budista Kôzui Ôtani (1876-1948), obtém no ano seguinte, uma parte
apreciável do conjunto literário. Em 1915, o secretário da Academia das Ciências
Russas, S. F. Oldenburg, reuniu e levou para Petrogrado um pecúlio calculado
entre os dez e os doze mil títulos. Numa gruta limítrofe, em 1919, descobriu-se uma
tonelada de manuscritos tibetanos. O idioma principal desta magnífica biblioteca
de Duhuang é o chinês embora constem igualmente obras em sânscrito, uigur,
sogdiano, kucheano, khotanês e tibetano. O tratamento deste valioso material foi
fulcral e imprescindível para o entendimento mais apurado da civilização chinesa.
Durante o primeiro milénio da era cristã, ocorreu um prolífero intercâmbio
de saberes entre a China, a Ásia Central e a Índia, não só no âmbito religioso e
filosófico, mas também no domínio científico. Paralelamente à azáfama de recolhas
e traduções de originais de índole budista, surgiram algumas descrições de viagens
de peregrinação, percursos terrestres e marítimos, alguns desaparecidos mas
mencionados noutras fontes documentais, outros fragmentados ou completos.
Dos manuscritos extintos consta a «Descrição dos Reinos Estrangeiros»
(«Waiguozhuan») de Zhimeng (séc. V) e a «Descrição dos Reinos Visitados»
(«Liguozhuan») de Fayong (séc. V). Em 650 o monge Daoxuan (596-667),
redigiu uma obra versando sobre a Índia intitulada «Shijia Fangzhi». Para além
dos escritos das várias escolas budistas, a China possuía versões autóctones de textos
243
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
bramânicos concernentes à astrologia, astronomia, medicina e matemática.
No que respeita à Europa, num período mais recente (séculos XVIII e XIX),
em 1754, Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron (1731-1805), dirigiu-se para a
Índia com o intuito de conseguir os livros sagrados da religião Mazdiana. Aprendeu
Zend e Pehlvi, os preceitos sagrados da comunidade Parsi e, em 1762, regressou à
capital francesa com 180 manuscritos. Nove anos volvidos, surge publicada sua
tradução do «Zend Avesta» («Zend-Avesta: Ouvrage de Zoroastre, contenant
les Idées Théologiques, Physiques et Morales de ce Législateur, les Céremonies du
culte Religieux qu’il a établi et plusiers traits importans relatifs à l’Ancienne Histoire
des Perses»), em três volumes e complementada com um ensaio sobre a cultura
persa. Em 1776 foi impressa uma edição alemã traduzida por Johann Friedrich
Kleuker (1749-1827). A recepção foi pouco generosa, alvo de controvérsias, sendo
Duperron nalguns círculos intelectuais, acusado de fraude, como o fez William
Jones, ou de a sua obra ser um disparate. W. Erskine e outros afirmaram que o
Zend era uma corrupção do sânscrito, argumento posteriormente refutado por
Rask e Burnouf. «Fiz-me soldado aos vinte e um anos para ir à Índia procurar
monumentos, as ciências dos persas e dos indianos: de regresso sou ameaçado de
prisão, os meus trabalhos são suspensos, os meus manuscritos confiscados, quando
ia comunicar à Europa o fruto das minhas vigílias, dos meus tormentos e até do
sacrifício do meu património.» 11
A Anquetil-Duperron se deve igualmente a passagem para francês de cerca
de meia centena de Upanishads («Oupnek’hat, id est, Secretum Tegendum»,
Estrasburgo, 1801/1802), segundo a tradução comentada para persa («Sirr-i
Akhbar», «O Grande Segredo») efectuada por Muhammad Hanefi Kadiri (Dara
Shikoh, 1615-1659) o primogénito do imperador Shah Jahan (1582-1666). Este
príncipe, poeta e filósofo traduziu também o «Bhagavad Gita» e o «Yogavashishta
Ramayana». Foi executado por heresia em 1659 pelo seu irmão mais novo
Aurangzeb (1618-1707). Duperron pertenceu à Académie Royale de Inscriptions
et Belles-Letres e desempenhou funções de intérprete do rei. O seu sonho era
instituir um centro consagrado à filologia e investigação sobre as culturas asiáticas.
Brian Hodgson, em 1821, no Nepal, convenceu um erudito a reunir cópias
dos principais textos budistas existentes nos mosteiros. O copioso resultado desta
pesquisa foi dividido por seis bibliotecas, tendo uma das mais substanciais sido
transposta para Paris, consultada pelo gramático e orientalista Eugène Burnouf
(1801-1851), dela recolhendo dados para escrever «Introduction à l’Histoire du
244
JOÃO SOARES SANTOS
Bouddhisme Indien» (Paris, 1844). O mesmo Burnouf verteu para francês alguns
textos em sânscrito.
Émile Guimet (1836-1918), mandado ao Japão pelo Ministério da Instrução Pública
com a incumbência de estudar a religião, regressou com uma série de livros autóctones.
Laurence Austine Waddell (1854 – 1938) na sua expedição ao Tibete (19031904) relatou ter «protegido» cerca de 450 volumes da biblioteca do senhorio
feudal de Changlo para o incluir no património do British Museum.
As bibliotecas de universidades, de museus e institutos da Europa e dos Estados
Unidos, principalmente das grandes potências coloniais, estão repletas de material
bibliográfico proveniente de países asiáticos por intermédio de doações, compras
ou apropriações. A Bodleian Library em Oxford é, actualmente, uma das mais
grandiosas do mundo ocidental no que respeita a manuscritos em sânscrito sobre
papel ou folha de palmeira. Do acesso a esta documentação pelos especialistas, da
examinação e meditação sobre estas fontes, resultaram abundantes ensaios. Com as
limitações de conhecimento e os restrições contextuais da época, os Orientalistas
dos séculos XVIII e XIX versam-se nas línguas e transliteraram numerosas obras
asiáticas, permitindo a sua dedicação, independentemente de quaisquer análises
sobre a sensibilidade, a perspicácia e a consistência do produto ou de quaisquer
críticas de teor cultural, divulgar nas suas diferentes particularidades algumas das
mais belas referências do caudal literário do planeta, como o dramaturgo e poeta
Kalidasa, os «Upanishads» e o «Bhagavad Gita», exercendo uma considerável
influência no pensamento e vida das elites literatas europeias.
Uma obra notável, condensando essas diligências eruditas e demonstrando a
autoridade dos académicos foi «The Sacred Books of the East», em cinquenta
tomos, publicada entre 1879 e 1890, realizada sob a direcção de Max Müller
(1823-1900) e, sem dúvida, «a mais notável contribuição na revelação ao mundo
Ocidental dos tesouros acumulados das antigas religiões do Oriente.» 12
4. Desde que Vasco da Gama contornou pelo Oceano o continente Africano
e rumou para a Índia, foi desenvolvido um trabalho pioneiro de conhecimento
dos idiomas indígenas e de recolha bibliográfica pelas missões evangelizadoras, das
quais a Companhia de Jesus desempenhou um papel preponderante.
Sem querer entrar em grandes detalhes e reflexões acerca do modo como se
processaram os contactos, das rivalidades e querelas entre as facções religiosas, dos
interesses e ambições das nações nos territórios exógenos, das contradições e equívocos
na pregação cristã ou do sucesso dos seus propósitos conversores, iremos somente
245
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
concentrar-nos no envolvimento e zelo de transposição linguística destes homens,
alguns dotados de uma rara inteligência, que partiram para estas paragens distantes
com o escopo de transformar o pensamento e as tradições destas gentes estranhas.
Motivados por um desígnio mas portadores de um imaginário etnocêntrico,
muitos missionários Jesuítas, alguns possuindo uma invulgar erudição,
abandonaram os seus países nos séculos XVII e XVIII ao encontro de civilizações
requintadas, cujos hábitos e procedimentos não os deixaram indiferentes.
A primeira etapa do exercício pregador da Sociedade de Jesus ocorreu entre
1552 e 1668 com o padroado Português. O monopólio apostólico foi distribuído
posteriormente pelos dominicanos (1632) e franciscanos (1633).
Na China, Matteo Ricci (1552-1610) expressou a sua fascinação pelos clássicos
confucionistas, realçando o seu esplendor ético, divisando neles resquícios dum
cristianismo remoto, mormente no culto ao céu (Tian) ou ao Senhor das Alturas
(Shang Di). Na «Doutrina do Meio» ou «do Justo Meio» («Zhong Yong»),
atribuída a Confúcio (Kongzi), teorizando sobre metafísica e psicologia, surge
referido que «as cerimónias de sacrifícios ao céu e à terra têm como intenção servir
o Senhor das Alturas e as cerimónias realizadas no templo ancestral destinam-se ao
serviço dos antepassados.» 13
Mas, apesar da admiração, Ricci acaba por fazer um compreensivo diagnóstico
pejorativo do confucionismo, não sendo as verdades nele contidas tão perfeitas
como as da sua religião.
Para além de enviarem relatórios, relações, cartas e publicações, os membros
da Societatis Jesu, levaram para Beijing, no dealbar do século XVII, conhecimentos de
cartografia, astronomia, artilharia, geografia, arte, filosofia, medicina e farmacopeia
bem como cerca de sete mil livros impressos na Europa. Transferiram para Chinês
vários tratados e compilações sobre geografia, hidráulica, astronomia, matemática,
filosofia e doutrina Cristã e, para línguas europeias, gramáticas, dicionários,
exposições sobre aspectos culturais desta civilização e textos autóctones.
A obra precursora nos estudos nas noções fulcrais da filosofia e religião chinesa
pertence a Niccolò Longobardo (1565-1655), redigida numa primeira versão em
latim entre 1622 e 1625 («Confucio Ejusque Doctrina Tratatus»), publicada em
Paris sob o título de «Traité sur quelques points de la Religion des Chinois» (1701).
As rivalidades e polémicas entre missionários ou ordens religiosas acerca das
conceptualizações chinesas eram deduzíveis no quadro da modelação cultural
prévia de quem vinha de fora para estudar. O esforço de aprendizagem dos
246
JOÃO SOARES SANTOS
missionários e as suas argumentações e interpretações nem sempre exactas para a
leitura dos eruditos autóctones podia ser entendido como um factor de descrédito
intelectual. Longobardo, que esteve dezassete anos na China, chamou a atenção
para este problema, necessário de resolver entre aqueles que se viam como agentes
da vontade superior de, com mais ou menos condescendência, cristianizar os
habitantes daquela área geográfica. Algumas vezes os padres assumiram a diligência
do suborno para corrigir a fé dos que persistiam em não se deixar seduzir pelas
suas pregações. Pagam aos homens para eles acolherem a «verdadeira» religião e,
para acalmar o zelo e a curiosidade dos mandarins sobre esta actividade conversora,
outorgam-lhes presentes.
Constatando indícios de afinidades entre as duas doutrinas, o embate intelectual
entre budismo e cristianismo originou buliçosas controvérsias. Os raciocínios
denunciavam alternadamente o budismo como uma representação fraudulenta
copiada do cristianismo ou este como uma apropriação distorcida das noções do
primeiro. As divergências e a desconfiança geraram trocas de acusações e cada facção
imputou à outra falta de seriedade e corrupção dos valores genuínos.
A assimilação dos chineses à confissão europeia não foi uma tarefa fácil e as árduas
provações a que os padres das ordens religiosas se sujeitaram em lugares remotos
causaram frustração e desalento. Numerosos comentários escritos atacando a
prática missionária cristã surgiram na China ao longo dos séculos XVII e XVIII.
Litígios entre membros da mesma congregação ou entre congregações diferentes
eram frequentes. Os franciscanos denunciaram e reprovaram comportamentos
ilícitos dos jesuítas de Beijing, evidenciando rumores de usura e investimentos
lucrativos em terras, casas de penhores, venda de sal, tabaco e vinho.14
As críticas, acusações e conflitos de interesses pessoais assim como os antagonismos
entre as facções mendicantes e jesuítas, entre elementos da mesma ou de nacionalidades
distintas, sucedendo num quadro de competição política e comercial entre as nações
europeias, não foram vantajosas para o prestígio da difusão da fé católica. Por outro
lado, a evangelização geralmente conseguia adeptos entre as camadas mais subestimadas
e menos influentes da sociedade e suscitou confusas misturas e adulterações dos saberes
e procedimentos considerados quer pelos padres quer pelas crenças autóctones como
religiosamente apropriados. À semelhança do que já tinha acontecido no Japão em
1641, o imperador Yongzheng emitiu em 1724 um édito de expulsão para Macau
de todos os missionários europeus, excepto aqueles que estavam na sua corte. A
propagação do cristianismo foi apontada como uma actividade delituosa, contrária
247
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
à lei e as igrejas adjudicadas pelas autoridades. A pregação dos missionários entrou
assim na clandestinidade e, gradualmente, os seus mentores mais cedo ou mais tarde
tiveram de abdicar da sua tarefa e abandonar o território.
Já neste período de ilegalidade aparecem, entre os que persistiram em ficar,
casos de delação de condutas debochadas como a que concerne ao franciscano
Bernardo Maria Bevilacqua, um indivíduo que, aproveitando-se da sua posição
sacerdotal, convencia os devotos e penitentes (mulheres solteiras, casadas e rapazes)
a satisfazerem os seus apetites carnais como acto de caridade. Várias queixas de
estupro a raparigas menores foram transmitidas por gente da comunidade cristã
local. Similares incriminações mas com menor gravidade foram comunicadas
sobre Alessio Randanini que tentava subornar mulheres com dinheiro, esperando
em troca favores sexuais. 15
Entre os títulos de erudição europeia resultante destes contactos culturais
podemos salientar «De Christiana Expeditione apud Sinas» (1615) de Nicolas
Trigault (1577-1628), «De Bello Tartarico» (1654) de Martino Martini,
«Sapientia Sinica» (1662) de Inácio da Costa e Prosperi Intorcetta, «Relatio Sinae
Sectarum» de Antonio Caballero (1602-1669), obra concluída em 1662 mas só
publicada em 1701, «China Monumentis» (1667) de Athanasius Kircher (16021680), - redigido segundo informações concedidas por membros da Sociedade
e outros residentes Ocidentais na China, como Johann Adam Schall, Bento de
Goes, Martino Martini, Johann Grueber, Michael De Boym e Heinrich Roth «Sinarum Scientia Politico Moralis» (1667) de Prosperi Intorcetta (1625-1696),
«Doze Excelências da China» ou «Nova Relação da China» (1668) de Gabriel
de Magalhães (1609-1677), «Mémoires sur la Chine» e «Nouveaux Mémoires
sur l’état presente de la Chine» (1696) de Louis Le Comte, «La Liberdad de la
Ley de Dios» (1696) de José Suares, «Traité sur quelques points de la Religion des
Chinois» (1701) de Niccolò Longobardo (1565-1655), «De Cultu Celesti Sinarum
Veterum et Modernorum» de Joachim Bouvet, provavelmente escrito inicialmente
em chinês e traduzido por Hervieu e Prémare em 1706, «Selecta Quaedam Vestigia
Praecipuorum Christianae Religionis Dogmatum ex Antiquis Sinarum Libris
Eruta» (1712, revisto em 1724) de Joseph-Henri Prémare (1666-1736), «Tabula
Chronologica Historiae Sinicae» (1729) de Jean-François Foucquet, sedutora
personalidade, responsável pela maior remessa de livros chineses que chegou à
Europa (Roma e Paris) até ao século XIX. Pretendeu ele que um literato chinês o
auxiliasse na Europa a explicar os 4000 volumes que transportava. A selecção não
248
JOÃO SOARES SANTOS
terá sido muito ditosa pois o indivíduo que veio consigo, Jean Hou, era porteiro
há três meses na igreja da Propaganda em Cantão (Guangzhou) e nem sequer sabia
escrever muito bem. Ao atingirem as costas de França, o homem adoeceu e foi
acometido pela loucura, gorando as expectativas nele depositadas.
De referir ainda a «Description de l’Empire de la Chine» (1735) de Jean
Baptiste Du Halde, as «Mémoires Concernant l’Histoire, les Sciences, les Arts,
les Moeurs, les Usages... etc., des Chinois, par les Missionnaires de Pe-Kin (17791780), publicado pelo padre Joseph-Marie Amiot (1718-1793), não esquecendo
autores como Ricci, Alonso Sanches, D’Elia, Charles Le Gobien, Philippe Couplet
ou Jean-Alexis De Gollet. Prémare traduziu a peça «O Pequeno Órfão da Casa de
Zhao», incluída na obra de Du Halde que Voltaire leu e reformulou com o título
de «L’Orphelin de la Chine» (representada em 1755).
No seu regresso à Europa (1687) o padre Philippe Couplet vinha acompanhado
por Jin Fu Zoung, um nativo chinês de Nanjing tendo como nome de baptismo
Michel. Este homem poderá ter sido apresentado ao monarca de França e serviu de
fonte de informação para o orientalista Thomas Hyde (1636 – 1703) escrever em
Oxford alguns ensaios de teor orientalista.
O franciscano Antonio de Santa Maria Caballero, após estadia no convento
de San Francisco em Manila nas Filipinas e de aí ter estudado japonês, seguiu para
a China onde permaneceu entre 1633 e 1636 e depois entre 1649 e 1669. Uma
tentativa de sistematizar por escrito afinidades e discordâncias entre confucionismo
e cristianismo foi realizada em colaboração com Shang Huqing, um letrado chino de
Shanyang, província de Jiangsu, baptizado pelo jesuíta Francesco Sambiasi (15821649). A obra em chinês «O Modo de Avaliar o Verdadeiro Conhecimento»
(«Zhengxue Liushi») de 1664, pode ser atribuída à cooperação intelectual entre
estes dois homens.
5. As primeiras trasladações de textos chineses incidiram em obras que se julgavam
ser de Confúcio. Em 1593, Michele Ruggieri, na Bibliotheca Selecta de Antonio
Possevino, mudou para latim a primeira parte do «Grande Saber» («Da Xue»,
literalmente «Ensinamentos para o Adulto»), clássico sobre metodologia moral,
educativa e política, originalmente um capítulo do «Livro dos Ritos» («Li Ji»). O
«Confucius Sinarum Philosophus, sive Scientia Sinensis Latine Exposita Studio et
Opera Prosperi Intorcetta, Christiani Herdtrich, Francisci Rougemont, Philippi
Couplet, Patrum Societatis Jesu» (Paris, 1687), apresenta-nos uma biografia do
Mestre e traduz três dos quatro livros canónicos («Si Shu»), assim estabelecidos
249
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
pelos critérios de Zhu Xi (1130-1200), filósofo neoconfucionista do período
Song. Zhu Yuan Hui ou Zhu Xi, foi responsável pela controversa sistematização,
condensação e comentários das conceptualizações de Confúcio, da sua escola e dos
neoconfucionistas, fornecendo-lhe uma nova projecção semântica.
Zhu Xi elaborou uma conformidade doutrinária, elegendo os «Analectos»
(«Lun Yun»), o «Grande Saber» («Da Xue»), a «Doutrina do Meio» («Zhong
Yong») e «O livro de Mêncio» («Mengzi») como modelos. Estes serviram de
suporte ao sistema de exames civis entre 1313 e 1909. Os padres Prosper Intorcetta,
Christian Herdtrich, François Rougement e Philippe Couplet, estiveram no
Sinarum Imperium e traduziram as três obras acima mencionadas, acrescentando-lhes
um ensaio preambular (Proëmialis Declaratio), versando sobre o taoísmo, o budismo e
o confucionismo. Sobre este último e os seus ideais e premissas, fundamentaramse nas reformas efectuadas por Zhu Xi e outros filósofos Song como Zhou Dunyi
(1017-1073), Zhang Zai (1020-1077), Cheng Hao (1032-1085) e Cheng Yi
(1033-1108), compendiados no volume «Xingli Daquan Shu» (1415), preparado
por iniciativa do imperador Yong Luo, da dinastia Ming.
«A palavra representa o mundo e a intenção humana que a consigna». 16 «A
linguagem é a medida última da sociedade humana. Mais do que qualquer outra das
faculdades da vida, é a linguagem que nos diz quem somos, o que queremos dizer e
para onde vamos.» 17 Na China, o livro (Shu), corresponde a um dos oito símbolos
do sábio. No primeiro aniversário de uma criança, os progenitores colocavam
junto a ela vários objectos, entre os quais um livro. Se ela mostrava propensão para
o agarrar, a evidência augurava a tendência futura de vir a ser um erudito.
A curiosidade dos missionários pela língua e textos chineses, pela filosofia e
religião desta e de outras sociedades asiáticas tinha uma componente egoísta, na
medida em que a competência nesse âmbito proporcionava vantagens no emprego
de tácticas mais eficazes para argumentar e exprobrar as noções que consolidavam
a alteridade dos interlocutores. Por outro lado, o isolamento destes «apóstolos»,
susceptibilizava ou fragilizava as suas resistências face aos pensamentos locais,
deixando-os permissivos à conjuntura dos comportamentos nativos. Cremos
que qualquer indivíduo douto, delicado e inteligente, apesar da sua devoção, dos
condicionamentos culturais e das pressões dos superiores hierárquicos, não pode
ignorar as aptidões, a elegância, a eloquência e as subtilezas das estruturas mentais
vigorantes na Ásia, confrontando-se com as prerrogativas de descomprometimento
exigidas pelo discurso oficial, para levar a bom termo os desígnios traçados, e o desejo
250
JOÃO SOARES SANTOS
espiritual legítimo de penetrar, perceber e inteirar-se do mundo do Outro, ao
ponto do indivíduo questionar a sua própria identidade. Uma maneira de sublimar
ou atenuar essa atracção, esse deslumbramento acanhado, por vezes inconsciente,
foi, talvez, a procura de analogias na disparidade, de conotar um parentesco
civilizacional comum. Alguns membros da Sociedade de Jesus, comparando as
diferenças, tentaram um acordo entre os contrastes, formulando hipóteses de uma
orgânica inata do conhecimento do divino, de invariantes concernentes à atitude
religiosa, apesar das autonomias particulares.
Couplet e Le Compte, por exemplo, afirmaram que os chineses veneraram
desde a Antiguidade o verdadeiro Deus. Sugeriram uma amplitude e ambiguidade
no efeito humano do Sagrado, no modo como o transcendente se manifesta e
especifica. Longobardo opunha-se a esta corroboração, classificando os chineses
do passado e do presente como ateus e as suas cerimónias como abomináveis
ou absurdas falsidades. Joseph-Henri Prémare, nas «Recherches sur les temps
antérieures à ceux dont parle le Chou-King», supunha que os princípios cristãos
eram observados pelos indivíduos que engendraram a escrita ideográfica e os
King. Parece estar à beira de insinuar que, independentemente das exclusividades
culturais, existe uma dimensão espiritual no ser humano que anseia por imagens
de perfeição, um «espelho para olhar perpetuamente [os nossos] próprios defeitos
[com o objectivo de os suprimir].» 18
Gollet associou as especulações místicas da Cabala hebraica aos antigos
ideogramas chineses. Foucquet advogou a tese de que os chineses partilharam os
ensinamentos evangélicos em épocas recuadas, tendo-os gradualmente depravado.
Havia assim um número de missionários que perspectivavam uma propagação,
contiguidade e permanência de valores e convicções chinesas e europeias. «Il n’y a
aucun mystère dans la religion Chrétienne, aucun dogme dans notre Morale qui
ne soit exprimée dans ces livres [do cânone Chinês] avec une clarté suprenante, en
une infinité de manières également ingénieuses et sublime et pour l’ordinaire sous
les mêmes figures et symboles que dans les Divines Écritures.» 19
Alguns jesuítas sustentaram a alegação da existência de um legislador, de um
intérprete, difusor e intermediário moral da superlativa Lei divina que, ao longo
dos tempos, geriu e irradiou esse poder. Segundo esta constatação, na Grécia terá
sido Hermes, filho de Zeus e de Maia, o arauto do soberano do panteão helénico,
transmissor das suas mensagens, mediador entre o céu e a terra. No Egipto foi Thot,
o deus patrono dos escribas que presidia às actividades intelectuais, tendo estabelecido
251
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
a escrita, separado as línguas, estando associado ao registo dos anais e das leis. «A
sua mestria no domínio dos hieróglifos e das palavras divinas faz dele um formidável
mágico, aquele que, pelo conhecimento das articulações criativas da linguagem pode,
sem impedimentos, suscitar aquilo que deseja ver nascer; é isso que explica o facto
de ele ser considerado pelos teólogos de Memphis como a língua de Ptah, ou seja,
a expressão verbal através da qual o Deus dá existência ao universo. Noutros textos e
sempre segundo as mesmas ideias, ele é o “coração de Rê”, a própria essência do seu
pensamento criativo (sendo o coração o órgão do pensamentos).» 20
Na Pérsia, essa função coube ao profeta Zoroastro, singularizando Ahura
Mazda como criador e senhor único do bem universal. No monoteísmo judaico,
aparece Moisés com o mérito de ser o mensageiro da obediência a Yahveh e que
no monte Sinai aceitou da sua boca a Torah. No «Livro dos Jubileus», Enoch é
o receptor e confidente dos arcanos divinos, aquele que precedeu todos os outros
na aprendizagem da escrita e no saber. Na Bíblia é um patriarca de gerações que
precederam os quarenta dias da pluviosidade diluviana, alguém que, segundo o
Génesis, «andou na presença de Deus.»
Para Bouvet, foi Enoch que «formulou e promulgou a Lei em três formas
cada uma das quais adequada ao calibre espiritual e intelectual do grupo a que se
destinava. Para a inteligência comum compôs “um conjunto de imagens cujas
figuras correspondem aos hieróglifos dos sábios, imagens ou emblemas naturais ou
sensoriais dos conceitos por si desenvolvidos, nos quais expressa de um modo nobre,
vivo e inteligente todas as perfeições de Deus. Estas imagens tomaram, por um lado,
a forma de heróis, dotados com virtudes extraordinárias e, por outro, de fábulas,
apólogos e histórias edificantes. Tinham como objecto a interpretação das palavras e
doutrinas da Lei Sagrada, numa linguagem simples para gente simples». 21
No islamismo coube a Muhammad acolher do anjo Gabriel a ordem de ler e
expandir a Palavra de Deus materializada no Alcorão. Edris foi um dos profetas
muçulmanos encarregue de uma incumbência análoga.
Na China, os jesuítas encontraram o exemplo de Fuxi, o mítico monarca que,
segundo o neoconfucionista Shao Yong (1011-1077) foi o fundador da Lei. Uma
lenda atribui a Fuxi o portento de ter nascido após doze anos de gestação no ventre
materno. Ensinou o povo na actividade da pesca, caça e pastorícia, ordenou e
civilizou o mundo e, das marcas no dorso de uma tartaruga, inventou oito trigramas
(Bagua), a partir dos quais se desenvolveu a filosofia divinatória encerrada no
«Livro da Mutações» («Yi Jing»). Este perscruta os ritmos, forças e movimentos
252
JOÃO SOARES SANTOS
incessantes do cosmos, tentando percebê-los e interpretá-los.
Na Índia hindu, existe Manu (ou Manava), vocábulo derivado da raiz
«Man» («pensar» ou «saber). Manu, literalmente «Homem», foi o pai da
humanidade, o primeiro a realizar rituais e austeridades aos deuses, o epónimo
e fundador da progénie humana, legislador e autor das «Leis de Manu»
(«Manavadharmashastra»). Este andrógino, único sobrevivente de uma cheia
que cobriu todo o planeta, germinado na eternidade, reproduziu-se, segundo
uma versão do mito, a partir de uma das suas costelas. Por outro lado, Sarasvati
é a deusa a quem se confere a invenção da língua sânscrita e do alfabeto Devanagari,
inspirando com a autenticidade da mensagem védica os sábios ou profetas (Rishis).
Ela personifica a fluência verbal, a eloquência, a intuição, tutelando as artes e o
conhecimento em geral.
Na obra «The Antiquity of China or a Historical Essay endeavouring a
probability that the language of the Empire is the primitive language spoken through
the whole world before the confusion of Babel» (1669), de John Webb, infere-se a
possibilidade de os chineses serem a prole de uma genealogia radicada em Noé. Depois
do Dilúvio, o Génesis Bíblico relata que os filhos de Noé (Shem, Ham e Japheth) e os
descendentes destes últimos, dividiram-se por tribos e nações, exprimindo-se numa
só linguagem. Foi então que, durante a construção de Babel, Yahveh multiplicou
essa língua única numa pluralidade de idiomas, de modo a que os homens não se
pudessem entender, disseminando-os por toda a terra. Webb sustentou que, antes
dessa repartição de línguas, a china foi povoada por um ramo da estirpe de Noé,
ficando, ao contrário do que sucedeu no resto do mundo, preservada a língua
bíblica original. Tanto na Índia como na China, existem mitos que falam de uma
avita inundação. O «Shatapa Brahmana» e o «Mahabharata» aludem à salvação
de Manu da colossal enchente que destruiu todos os seres, devido ao conselho dado
por Vishnu encarnando um peixe. A criatura aquática persuade-o a edificar uma
embarcação, guiando-a através das águas, até um lugar não submerso onde Manu
gera uma mulher que considera sua irmã, com ela acoplando e dela tendo filhos.
Na China, persistiram também algumas narrativas acerca de uma calamidade por
alagamento. Mêncio (Mengzi, c. 370-290 a.C.) e outros confucionistas colocaram
o mais vulgarizado destes mitos no princípio da era humana, quando Yao e Shun
governavam o mundo. O caos diluviano foi concertado por Yu, escavando canais
para garantir o escoamento da massa de água para o mar, instaurando com a sua
proeza uma nova fase no desenvolvimento da humanidade. Assim, segundo Webb,
253
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
como consequência do Dilúvio na China, o mesmo da Bíblia, desapareceram todos
os saberes aí vigorantes, vazio apenas colmatado com a chegada do descendente de
Noé, identificado com Yao. Alguns jesuítas contemporâneos de Webb opinavam
de um modo idêntico, declarando ser a linhagem de Shem a responsável pela
propagação da Lei na China, prosseguida por Fuxi. Havia assim uma coesão exordial
no cristianismo na qual todas as sociedades participaram.
Kircher admitia um substrato comum nas religiões idólatras, cuja condição
actual ele desaprovava, consequente da divinização dos astros siderais. Todas as
denominações fictícias para os entes sobrenaturais e respectivas demonstrações de
preito firmaram-se na contemplação do firmamento, no enigma e nas expectativas
suscitadas pelo sol, pela lua ou pelas estrelas. No entanto, concebendo Deus como
uma unidade conciliadora, aceitava a conjuntura de uma essência, de um impulso,
de uma disposição psíquica inerente a todas as religiões. «Kircher entende que
por detrás da igreja católica e do cristianismo discorre uma corrente religiosa e
intelectual que tanto tinha a ver com o Egipto como supunha que o Egipto tinha
a ver com a religião hebraica. Porém, o Egipto não era para Kircher apenas a
figura de Hermes Trismegisto e as suas revelações cristianizantes, dignas de toda
a veneração e respeito, mas era também, pela sua idolatria e politeísmo, a fonte
da religião grega e romana, das crenças dos hebreus tardios, dos caldeus e até dos
habitantes da Índia, da China, Japão e Américas, territórios, segundo Kircher,
colonizados pela progénie de Cam.» 22
Conjecturas e demonstrações estabeleceram nos séculos XVII e XVIII fantasiosos
paralelismos entre o Egipto, a China e a Índia. Os nossos conhecimentos e desejos
desfiaram-se em teorias explicativas acerca destas grandes civilizações. Por exemplo,
Gérard Jean Vossius em «De Theologia Gentili» (Amsterdão, 1641), provou
através de um raciocínio na altura convincente para alguns, que os diferentes cultos
englobavam como matriz um Deus universal e o Egipto Bíblico. Na asserção do
jesuíta Juan Eusebio Nieremberg (1595-1658), em «De Origine Sacrae Scripturae
Libri Duodecim» (Lyon, 1641), Moisés e Thot eram a mesma entidade. L.
Beurrier no «Speculum Christianae Religionis in triplice Lege Naturali, Mosaïca
et Evangelica» (Paris, 1666), abarcou as diferentes religiões do planeta sob a
probabilidade de uma fonte primordial, na qual Hermes Trismegisto tivera uma
função idêntica à de Fuxi, sendo este último, por seu turno, o próprio Shem. Pierre
Daniel Huet na «Démonstration Évangélique» (Paris, 1679) associa o deus Thot
a Moisés e ao conceito de Tao. Bouvet e Prémare identificaram Fuxi com Enoch
254
JOÃO SOARES SANTOS
e Foucquet com Enoch e Hermes Trismegisto. Samuel Shuckford, na obra «The
Sacred and Profane History of the World» (Londres, 1728), concebe Fuxi como
sendo o próprio Noé que, após ter desembarcado na Índia, fundou um reino na
China, do qual foi monarca.
Max Müller definiu religião como a faculdade espiritual que, suplantando a
razão e a sensorialidade, permite ao indivíduo apoderar-se do infinito. Foi talvez
com esta consciência que o padre Gabriel de Magalhães se deixa encantar pela
cultura chinesa. Na «Nova Relação da China», ele louva as suas crónicas, datando
as mais antigas em cerca de dois séculos depois do Dilúvio, bem como os tratados
científicos e os dons da literatura em geral. Refere ainda aquilo que «são para eles
o que os nossos livros sagrados são para nós», 23 isto é, os «cinco clássicos» (Wu
Jing), abarcando o «Livro das Mutações» («Yi Jing» ou «Zhou Yi»), o «Livro
dos Documentos» ou «Livro da História», ao qual Magalhães chama «Crónica
dos Reis Antigos» («Shu Jing» ou «Shang Shu»), o «Livro da Canções» ou
«Livro da Odes» ou «Livro da Poesia» («Shi Jing» ou «Mao Shi»), o «Livro
dos Ritos» ou «Memorial dos Ritos» («Li Ji») e os «Anais da Primavera e do
Outono» («Chun Qiu»), ao qual Magalhães chama «História do Reino de
Lu». O mesmo missionário aponta igualmente os «Quatro Livros Canónicos»,
descrevendo sucintamente os seus conteúdos. «Todos os nossos religiosos que
vêm para esta missão, trabalham e estudam as letras e a língua com as quatro partes
deste livro e são dele e dos cinco primeiros que derivam as suas fontes, tantos livros
e comentários de diversos autores antigos e modernos, que o número é quase
infinito, proporcionando motivos para louvarmos e admirarmos o engenho, o
trabalho e a eloquência desta nação.» 24
Longobardo transcreveu no seu tratado (1701) segmentos da «Suma dos
Filósofos da Natureza Humana e da Razão» («Xingli Daquan»), resenha
anteriormente indicada de filósofos Song e ainda da «Doutrina do Meio», do
«Livro da História», dos «Analectos», do «Livro das Odes», do «Memorial
dos Ritos» e do «Espelho Polivalente» ou «Compreensivo» («Tong Jian»).
Francisco Noël traduziu os seis clássicos chineses, denominando o seu trabalho por
«Sinensis Imperii Libri Classici Sex, Nimirum Adultorum Schola, Immortabili
Medium, Liber Setentiarum, Mencius, Filialis Observantia, Parvulorum Schola e
Sinico Idiomate in Latinum Traducti...» (Praga, 1711), abrangendo o «Grande
Ensinamento», a «Doutrina do Meio», os «Analectos», o «Livro de Mêncio»,
o «Clássico da Piedade Filial» («Xiao Jing») e «Ensinamentos Morais para a
255
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
Juventude» («Xiao Xue») de Zhu Xi.
As representações da cultura chinesa devem ser equacionadas e enquadradas na
tripla polaridade de tensões entre uma natural solicitação, a conveniência em propalar
a doutrina cristã e o medo do envolvimento, da dissolvência intelectual que pudesse
questionar a fé. Porque «aquele que prega para converter tem, em primeiro lugar,
de se converter à imagem do ideal do seu interlocutor, definida pelas condições da
sua cultura e aceitar alguns dos seus valores.» 25 A aplicação das nossas convicções, do
nosso padrão de verdade sobre uma realidade estranha, obrigava o missionário a ter
de ser aceite, a ajustar-se, ser integrado na sociedade para onde fora enviado e, para
isso acontecer, a ter de se excluir ou a dissociar-se de si, dos seus sistemas simbólicos,
da sua atitude de espectador e submeter-se à experiência enriquecedora de abdicar das
certezas e sujeitar-se à indeterminação. Tinha de subordinar-se à, por vezes, árdua
provação de entrar no palco do Outro, a participar, a confrontar-se e a meditar sobre
circunstâncias com as quais não estava habituado. Por isso, também, o entusiasmo de
alguns missionários pela rectidão moral proposta pelos pensadores confucionistas, com
repercussões na Europa, não deixava de reverberar uma envergonhada denúncia das
deficiências patentes nas instituições deste lado do mundo. Muitos tinham consciência
de que a sua actividade amiúde parecia mais glorificar a Igreja Romana do que o genuíno
cristianismo. A exaltação do idealismo confucionista desvela uma crítica aos dogmas e
vícios da sociedade dos comentadores, assumindo uma veia derisória mais desinibida
em filósofos como Voltaire ou Montesquieu. Parece-nos sintomática nesta época a
literatura sobre utopias. A «Christianopolis» de Johann Valentin Andrea, a «Civitas
Solis», de Tommaso Campanella, situada na ilha de Taprobana (Ceilão), a «Oceana»
de James Harrington, o «New Moral World» de Robert Owen, a «Utopia» de
Thomas More, a «New Atlantis» de Francis Bacon, a «Nova Solyma» atribuído a John
Milton ou a Samuel Gott e a utopia cristã do «Reino de Deus na Terra», encontravam
um equivalente na finura e correcção moral dos escritos atribuídos a Confúcio. Sobre
as qualidades dos actos, normas de conduta e procedimentos cerimoniais, o «Li Ji»
propõe uma utopia da «perfeita conformidade» e «maravilhosa felicidade» que os
«soberanos da antiguidade souberam por meio das regras estender por toda a parte o
reino da justiça e pelo exemplo de uma virtude sincera estabelecer por toda a parte a
conformidade (às leis da natureza).»26
Em 1685 Louis XIV ordenou que cinco jesuítas fundassem uma missão francesa
em Beijing. Um deles, Joachim Bouvet (1656-1730), quando regressou a Paris
em 1697, apresentou um álbum dedicado ao duque de Borgonha com dezanove
256
JOÃO SOARES SANTOS
pranchas mostrando imagens do vestuário chinês. Juntamente com os artefactos
comercializados, esta obra contribuiu para a saliência do gosto pelas chinoiseries no
século XVIII, sucedendo e complementando a moda das turqueries. Jean-Antoine
Watteau (1684-1721), François Boucher (1703-1730) e Christophe Huet (17001759) foram três artistas favoritos dessa tendência. A China do agrado rocaille era
pitoresca e decorativa, um motivo de graciosidade exótica para jardins ou interiores
de uma aristocracia afectada e entediada. Uma China de salon, de gabinete ou
de camarim, galante e artificial, adorno de espaços nos quais se desenrolavam as
intrigas de uma existência hedónica, sensível às coisas insignificante. Um oriente de
fantasia explorado também nas festividades e artes de cena.
Sob a protecção dos membros da Societatis Jesu, em 1751 Ko e Yang, dois jovens
chineses, atravessaram o oceano para completar a sua educação e «ver o esplendor
do cristianismo». Na altura da partida para junto dos compatriotas, o erudito
Anne-Robert-Jacques Turgot (1727 - 1781) remeteu-lhes um questionário
sobre a China. As respostas auxiliaram-no na redacção da obra «Réflexions sur la
Formation et la Distribution des Richesses» (1766). O Escocês Adam Smith terá
tido Turgot presente quando dez anos mais tarde publicou «An Inquiry into the
Nature and Causes of the Wealth of Nations». 27
6. Entre os elementos da Sociedade de Jesus, o proselitismo teve na Índia como
expoentes precursores na filologia e tradução Roberto de Nobili (1577-1656),
Heinrich Roth, (1620-1668), Constanzo Giuseppe Beschi (1680 - c. 1746),
Joseph Tieffenthaler (1710 - 1785) ou Jerónimo Xavier, entre outros.
Numa carta datada de 24 de Outubro de 1583, o jesuíta inglês Thomas
Stephens (c. 1549-1619), colocado na Índia entre 1579 e 1619, realçou as afinidades
linguísticas entre as línguas que conheceu neste país com o latim e o grego. O
mercador florentino Filippo Sassetti (1540-1588) na sua correspondência
expedida da Índia, onde ficou entre 1583 e 1589, aludiu à semelhança entre o
seu idioma e o sânscrito. Constatações idênticas são observadas nos séculos XVI,
XVII e XVIII. Muitos autores insistiram no parentesco linguístico entre o persa,
o sânscrito, grego, latim e germânico tais como Bonaventura Vulcanius (15381614), Franciscus Raphelengius (1539-1597), o naturalista Abraham van der Mijl
(1563-1637), Marcus Zuerius van Boxhorn (1612-1653), Mathurin Veyssière
de la Croze (1661-1739), Benjamen Schulze, Claude de Saumaise (1588-1653),
Christian Walther, G. S. Bayer, o jesuíta Gaston Laurent Coerdoux (1691-1779),
James Burnett (1714-1799), o carmelita Paulinus de Sancto-Bartholomaeo (1748257
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
1806), William Jones (1746-1794) ou Nathaniel Brassey Halhed (1751-1830).
Nobili chegou a Madurai em 1606, dominou o tamil e o sânscrito, serviu
sobre o Padroado real português, comportou-se como um asceta autóctone num
ambiente de desconfiança local em relação à presença portuguesa. Foi acusado
de heresia pelos colegas e, para se reabilitar, teve de escrever uma «Apologia».
Consultou textos relevantes da cultura indiana para redigir «Informatio de
quibusdam Moribus Nationis Indicae» (1613) e «Narratio fundamentorum
quibus Madurensis Missionis Institutum caeptum est et hujusque consistit» (16181619). «Conhecia sem dúvida os métodos seguidos por Matteo Ricci na China.
Decidiu utilizar o mesmo método e ir mais longe. Para conquistar os indianos
decidiu fazer-se indiano. Estudou com cuidado os costumes e preconceitos dos
brâmanes, e abandonou tudo o que pudesse ofendê-los, tal como comer carne e
calçar sapatos de couro. Adoptou o robe ocre (Kavi) do homem santo e até pôde
converter-se num Sannyasi Guru, professor que renuncia a todas as formas de ligação
com o mundo. Conseguiu dominar o tâmil clássico. Pôde posteriormente aprender
telugu e sânscrito. (Foi, crê-se, o primeiro europeu a estudar a antiga língua clássica
da Índia). A fim de evitar aquilo que aos olhos dos indianos é a contaminação,
afastou-se quase inteiramente da igreja cristã existente.» 28
Recrutados para catequizar, crendo que só há um deus e uma fé, rompendo
com os obstáculos culturais, muitos jesuítas facilitaram a comunicação da mensagem
cristã optando por uma pedagogia adaptativa, acessível e clara. Porém, os seus
métodos geraram polémicas, invejas e conflitos.
Beschi (1680-1746) censurou a falta de cuidado poético na tradução do «Novo
Testamento» para tâmil realizada pelo protestante Bartholomaeus Ziegenbalg (16831719), seu “émulo” em erudição tâmil. O primeiro encontrava-se em Madurai, no Sul
de Tamil Nadu e o segundo dirigia uma missão em Tranquebar (Tharangampadi),
porto na costa do Coromandel, fundado por dinamarqueses em 1616. Escreveu uma
«Grammatica Latino-Tamulica, in qua de Vulgari Tamulicae Linguae Idiomate
Kodun-Tamil dicto fusius tratactur», um «Vulgars Tamulicae Linguae Dictionarium
Tamulicum-Latinum» e um dicionário de Português-Latim-Tâmil.
Ziegenbalg obteve e leu textos em tâmil, redigidos em folhas de palmeira ou pagou
para que lhe fossem realizadas cópias. Nos dois anos iniciais da sua permanência
nesta cidade (1706-1708), ele agregara cento e doze obras em tâmil, entre as quais
o «Tiruvachaka» do poeta Manikkavachakar (séc.VIII-IX), brâmane Shivaísta
e Ministro do monarca Pandya Arimarttanar e o «Tirukkural» ou «Kural»,
258
JOÃO SOARES SANTOS
importante composição em verso, com 133 capítulos de dez dísticos de Tiruvalluvar
(séc. II), incidindo sobre a moral, o conhecimento, os deveres individuais, o amor
e finanças. Na relação da sua biblioteca, publicada em Português (Tranquebar,
1714), enumeram-se 645 títulos, muitos deles adquiridos na região e escritos no
idioma local. Alguns destes tomos foram remetidos ao seu mentor August Herman
Francke. Nos arquivos do instituto homónimo (Franckeschen Stiftungen), estão
280 manuscritos em folha de palmeira, dos quais 88 estão redigidos em Tâmil,
188 em Telugu, três em Kerendum e um em Sinhala. O material reunido por
Ziegenbald dispersou-se também por Copenhaga.29
Embora fascinado pelas divindades locais, Ziegenbalg considerava o hinduísmo
uma forma pervertida de cristianismo, estando os seus adeptos enganados e
precisando de salvação, de ser levados para o caminho certo. A dificuldade dos
missionários em veicular a sua mensagem, surgia nesta tentativa interesseira de
refutar a legitimidade do edifício conceptual dos autóctones, disputando com
palavras as crenças, expondo aquilo que consideravam ser incongruências com
uma presunção autoritária, havendo dificuldade em perceber que não há verdades
intransitivas. Em vez de partilhar saberes, muitos procuraram impor o seu ponto
de vista, demonstrar que os outros estavam errados, ao invés de tentar percebê-los,
de os encarar como iguais nas dissemelhanças, elevar as suas virtudes e harmonizálas com a perspectiva cristã. Entender, por exemplo que a «absurda repetição»,
segundo a qualificação de Kircher, dos Mantras budistas como «Nama Amida
Buth» e «Om Manipe Mi Hum», têm um desígnio espiritual equivalente à prece
de Hesiacastes a Jesus Cristo.30
Ziegenbalg verteu para Alemão o «Needi Vemba», o «Ulaga Needi», o
«Kondrei Venden» (todos em 1708), obras em tâmil versando sobre questões
morais. Escreveu uma gramática tâmil («Grammatica Dammulica», 1716) e
elaborou ainda as obras «O Paganismo Malabar» («Malabarisches Heidenthun»,
1711, só publicado em 1926) e «Genealogie der malabarischen Götter» (1713), um
manuscrito expedido para Francke que se opôs à sua publicação, só acontecendo
154 anos depois, justificando a sua decisão pelo argumento de que não competia
aos missionários cristãos espalhar o hinduísmo pela Europa.
Na primeira metade do século XVIII muitos manuscritos em tâmil foram
enviados pelos jesuítas de Pondichéry (Puducheri, na região de Tamil Nadu) para
a biblioteca real em Paris. O avanço missionário implicava para uns a interdição
dos sinais tradicionais hindus. A cristianização significava abdicar do legado cultural
259
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
anterior. Para outros, como Nobili, o processo de transformação em decurso
admitia uma tolerância dos costumes e práticas comuns entre a população.
Como em alguns trabalhos de jesuítas, a estima e a fascinação depreendida no
desvelo das análises de algo que rotulavam de idolatria e superstição, descobre o
enlevamento de alguém sensível, com penetração mental, absorvido e deslizando
no espaço entre os antípodas culturais, por vezes secretamente perscrutando neles
correspondências ou mesmo uma quididade semântica. Um caso interessante é
o do jesuíta Henri Doré (1859-1931) que passou 45 anos na China. Apesar do
tom reprovador, no que concerne às crenças pagãs, ele redigiu uma importante
obra em dezoito volumes, publicados entre 1911 e 1938, sobre uma matéria que
refutava, intitulando-a «Recherches sur les Superstitions en Chine». Os tomos
seis a doze são retirados da obra «Jishuo Quanzhen» (Xangai, 1879) de um outro
jesuíta, Pierre Hoang. Destinada a combater a superstição e, apesar de alguma
superficialidade e confusão, ela demonstra um zelo e um rigor que depreende
um grande amor pelo assunto, não passando por isso a sua leitura despercebida a
qualquer apaixonado por temáticas sinológicas.
No século XVII, Jean-Baptiste Regis traduziu para latim o «Yi Jing», obra
enigmática e estimulante para os europeus. No século seguinte, Jean-Baptiste
Du Halde traduziu o «Livro de Mêncio». O ensaio de Joseph-Henri Prémare,
«Recherches sur les temps antérieurs à ceux dont parle le Chou King», apareceu
como introdução à tradução de Paul Gabil do «Shu Jing» (Paris, 1770). Instalado
na China desde 1698, o padre Parrenin expediu para França algumas traduções
de obras de física, medicina, astronomia e fábulas. Foucquet redigiu um «Essai
d’Introduction Préliminaire à l’étude des King» (1726).
Em pertinência com os seus modelos, os missionários contribuíram para
aperfeiçoar a Descriptio Mundi e, mesmo quando houve disponibilidade e generosidade
para aproximar civilizações, os olhares divergiram, bem como o vocabulário da
observação. A Europa recebeu notícias e pareceres sobre realidades exóticas que,
implicitamente, apesar de nem sempre ser avocado, ajudou a discernir as nossas
limitações e fragilidades. Foi esse, talvez, o testemunho mais importante legado pelos
contactos com outros povos. Começámos a ter uma consciência mais perspicaz da
relatividade, do «variado juízo das nações», das excepções de um mundo onde
estamos porque lhe pertencemos.
7. Warren Hastings (1732-1818) desde 1772 governador-geral da East India
Company, recebeu em 1783 o poliglota William Jones (1746-1794) que fundou em
260
JOÃO SOARES SANTOS
Calcutá no ano seguinte a Asiatic Society. Jones, um helenista cristão que perseverou
na assunção do colonialismo britânico ser crucial para a apreensão das civilizações da
Ásia, estudou o sânscrito e projectou-o à categoria de língua de disciplina académica,
sustentando nele a importância de uma antiguidade genealógica conectada com o
persa, o grego o latim, o celta e o gótico. Promovida e editada por esta sociedade,
a publicação «Asiatick Researches», cujo primeiro número saiu em 1788, reunia
ensaios sobre as diferentes áreas de abordagem cultural a esta civilização. Outros
britânicos como Charles Wilkins (1750-1833) e Henry Thomas Colebrooke (17651837) incentivaram este arrebatamento pelas letras indianas com, no primeiro
caso, a tradução do «Bhagavad Gita» («Bhagavad-Gita or Dialogues of Kreeshna
and Arjoon, in Eighteen Lectures, with Notes, Translated from the Original
in the Sanskreet, or Ancient Language of the Brahmans by Charles Wilkins,
Londres, 1785), material posteriormente transposto para alemão por Friedrich
Majer (1772-1818) e, no segundo caso, com dois textos sobre filosofia e religião
védica na «Asiatick Reserches». Jones converteu para latim e depois inglês a peça
«Shakuntala» («Abhijnashakuntala») de Kalidasa («Sacontalâ or the Fatal Ring –
an Indian Drama by Calidâs», Londres, 1789). A partir desta versão, Georg Foster
(1754-1794), amigo de Goethe e de Schiller, publicou a sua tradução germânica
(1791) com enorme impacto nos meios eruditos. O teatro sânscrito apareceu assim
no mapa das dramaturgias europeias com Kalidasa a par dos seus mais elogiados
expoentes. «O romantismo que então nasce na Alemanha reconhece-se e fundase nesse Oriente que a indiana Shakuntala encarna exemplarmente.» 31 Johann
Wolfgang von Goethe interessado desde cedo por textos religiosos, leitor de récitas
de viagens como as de Pietro della Valle, Marco Polo, Jean-Baptiste Tavernier,
do joalheiro Jean-Baptiste Chardin, Abraham Rogerius e da poesia persa (Saadi
e Hafiz) ficou, tal como Jones, maravilhado com a peça de Kalidasa e admitiu o
seu autor entre os gigantes da Weltliteratur. Toda a primeira geração do romantismo
alemão retém no seu imaginário e sensibilidade traços referenciais das leituras e
estudos sobre a Índia, usando-a de um modo mais ou menos singular na filosofia
e nas artes. Os românticos anseiam por novas experiências mentais, transpor o
comum e captar o essencial. Quase sempre a Índia dos poetas é um motivo feérico,
em que a subjectividade se evade ou subtrai de um real falseado pelo calculismo e
ganância da burguesia industrial. A nebulosa imagem de um sonho ou de um estado
de vidência lírica, o lenitivo para a insatisfação causada por um sentimento de perda,
a gratificação para um apetite de autenticidade num presente decepcionante. Uma
261
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
Índia propícia a diletantismos, submetida ao controlo da autoridade intelectual, à
emulação e controvérsia entre os sábios do Ocidente, o ingrediente combustivo de
especulações metafísicas e ocultistas filtradas pelas várias correntes de pensamento
e personalidades do século XIX. O palco no qual era encenada e representada por
actores de erudição da época e que, na medida das suas possibilidades e limitações de
conhecimento, competiam para brilhar e deleitar com os seus recursos e talentos.
A par do esforço jesuíta do século XVII para decifrar e compreender a identidade
indiana, depois de uma década na costa de Coromandel (Cholamandalam, ou
«país dos Chola», costa do Sudeste da Índia), o holandês Abraham Rogerius (c.
1573-1639) editou «Porta Aberta para Alcançar o Conhecimento do Paganismo
Escondido» («De Open-Deure tot het Verborgen Heydendom», Leyde, 1651)
e Philip Baldeus (1631-1671), da mesma nacionalidade publicou em Amesterdão
«Da Idolatria dos Gentios das Índias Orientais» («Afgoderye der Cost-Indische
Heydenen», 1672). Estas obras originaram a ideia, depois muito disseminada, de
uma Índia com uma ancestral «religião natural» mas degradada com o tempo com
o politeísmo. Textos ingleses sobre a religião deste território surgiram na segunda
metade do século XVIII. O irlandês Alexander Dow (c. 1735-1779) traduziu a obra
do historiador persa Muhammad Qasim Firishta (c. 1550 - c.1626 ou c. 1570 1612) chamada «Tarikh-I Firishta (c. 1606) em «The History of Hindostan; from
the Earliest account of Time, to the Death of Akbar» (1768-1772) acrescentandolhe o ensaio «A Dissertation Concerning the Religion and Philosophy of the
Brahmins», conjunto de reflexões pouco rigorosas nas quais, por exemplo, o
termo «Maya» («Maiah» no texto) é trasladado por «afeição» («affection») e
«Prakriti» («Pir-Kirti», no texto) por «embraced goodness». Neste trabalho
enunciou também, talvez pela primeira vez, um resumo do conteúdo do «Natya
Shastra» («Neadirsen Shaster», segundo o texto original).
Os linguistas consagraram as suas energias à análise e à comparação metódica
de sistemas. O sânscrito era a matriz desse cotejo. Friedrich Schlegel (1772-1829)
durante a sua permanência em Paris, entre 1800 e 1804, estudou persa e depois
sânscrito com o escocês Alexander Hamilton (1762-1824). Admirada, imitada e
revivida desde a renascença, a cultura greco-latina tinha agora um primórdio indiano.
Nela «encontra-se a fonte de todas as linguagens, todas as ideias e poesia do espírito
humano: tudo, tudo vem da Índia sem excepção.» 32 Apesar desta sua exaltação,
Schlegel viria a ser inconsequente nalguns dos seus projectos orientalistas. Em 1808
publicou em Heidelberg «Sobre o Idioma e a Sabedoria dos Indianos» («Über
262
JOÃO SOARES SANTOS
die Sprache und Weisheit der Indier») em três volumes e nesse mesmo ano abraçou
o cristianismo. Inseriu nesta obra excertos de traduções do «Ramayana», a parte
da criação do mundo contida nas «Leis de Manu», fragmentos do «Bhagavad
Gita» e de «Shakuntala». Um dos conceitos indianos centrais (o de Brahman)
surgiu, tal como alguns jesuítas antes tinham feito, erradamente substituído para
alemão pelo vocábulo «Gott» («Deus»). Na sua «História da Literatura Antiga
e Moderna» abordou superficialmente a «literatura dos brâmanes» (Vedas,
Upanishads, Manavadharmashastra,) falou levemente de «Shakuntala», do «poema
pastoral» «Gita Govinda» (traduzido por William Jones), do «Hitopadesha»,
do «Bhagavad Gita», do «Bhagavatam» e, sem precisar quais, referiu ainda
outras obras que registam relatos orais dos brâmanes. Associou o «Bhagavad
Gita» à filosofia neoplatónica («não difere inteiramente dela») e classificou-o de
panteísmo poético. Dedicou algum espaço ao budismo, atribuiu a doutrina Nyaya
a Gautama Buda, criticou alguns aspectos da religião indiana em paralelismo com
as referências cristãs.33
O seu irmão August Wilhelm Schlegel (1767-1845) também indianista e
sanscritólogo iniciará em 1820 e durante dez anos a «Indische Bibliotek», versada em
estudos indianos conjugando um tom de divulgação mais erudito com um registo mais
acessível a um gosto generalizado. Esta publicação veio na sequência de experiências
editoriais deste teor sem grande duração como o «Asiatisches Magazin» (nascido em
Weimar em 1802) no qual saiu a tradução de Friedrich Majer do «Bhagavad Gita» ou
«Fundgruben des Orients» (1805-1815). Majer no segundo volume da «História
Cultural dos Povos» («Zur Kultur geschichte der Völker», Leipzig, 1798) intitulado
«Sobre a História dos Antigos Hindus e sobre o Alcance de Shakuntala para ela»
(«Über die geschichte der alten Hindu und den Werth der Sakontala für dieselbe»)
usa o exemplo indiano para criticar o seu tempo e sociedade.
Franz Bopp (1791-1867) aprendeu persa e sânscrito em Paris e Londres
(entre 1812 e 1821) com Antoine Leonard de Chézy e Wilhelm von Humboldt
e leccionou filologia e literatura oriental em Berlim durante cerca de cinquenta
anos. As suas investigações comparativas de línguas estão reunidas em «Über das
Conjugationssystem in Vergleichung mit jenen der Griechischen, Lateinischen,
Persischen und Germanischen Sprache», 1816), em «Glossarium Sanscritum»
(1830) e na «Gramática Comparada de Sânscrito, Zend, Arménio, Grego, Latim,
Lituano, Eslavo, Gótico e Alemão» («Vergleichende Grammatik des Sanskrit,
Zend, Griechischen, Lateinischen, Litauischen, Gotischen und Deutschen»,
263
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
Berlim, 1833-1852). Traduziu o episódio de Nala e Damayanti (Londres, 1819),
uma parte do «Mahabharata».
Para além de ensaios de mitologia e religião indiana publicados nas revistas da época
vários volumes sobre esta temática merecem realce. «Interesting Historical Events
Relative to the Provinces of Bengal and the Empire of Industan» (3 volumes, 17651671) e «Dissertation on the Metempsychosis» (1771) do irlandês John Zephaniah
Holwel (1711-1798), «Über die Religion und Philosophie der Inder» (1778) e «Das
BrahmanischeReligionssystem…»(1779)deJohannFriedrichKleuker(1749-1827),
que foi o tradutor do «Zend Avesta» para alemão a partir da versão de AnquetilDuperron (1776-1777), «Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit»
(1784-1785)e«ÜbereinMorgenländischesDrama.EinigeBriefe»(1792)estaúltima
sobre «Shakuntala» de Kalidasa de Johann Gottfried Herder (1744 - 1803), «On
the Philosophy of the Hindus» (1824) de Henry Thomas Colebrooke, «História
dos Mitos do Mundo Asiático» («Mythengeschichte der Asiatischen Welt», 1810) de
Josef Görres (1776-1848) ou «Sistema do Mito Indiano» («System der indischen
Mythe», 1813) de Johann Arnold Kanne (1773-1824).
Os insistentes relatos de viagem e as transcrições literárias indianas enriqueceram
e aliviaram de alguma estagnação os discursos filosóficos europeus. Diligências foram
feitas para compreender e exprimir as nossas novas noções sobre as inteligibilizações
indianas. Os sábios apossaram-se e adoptaram ao seu modo de raciocinar o
pensamento de outra civilização, procurando com novos dados elucidar questões
sobre as suas próprias culturas. O «oriental» tinha agora o privilégio de ser
definido e clarificado pela vasta sagacidade e dignificadora consistência dos nossos
doutos académicos. Alguns textos produzidos vão influenciar o discurso de outros
intelectuais, da mesma ou da geração seguinte, mormente, numa primeira fase,
no que concerne a uma imagem bucólica, sensual, paradisíaca, serena, delicada,
afectuosa e profunda da Índia. Uma Índia quase somente Vedanta, fundamentada
por escassas e nem sempre fidedignas fontes, pairava sobre ideias cristãs fortemente
arreigadas, servindo para promover disputas, para afirmar a credibilidade e a
autoridade da sapiência daqueles que sobre ela debruçavam a sua atenção. Suscitou
um certame de artifícios intelectuais no qual os gladiadores da erudição competiam
entre si, disputavam a primazia e tentavam obter a aclamação dos pares e destinatários.
O conhecimento da língua sânscrita presumia maior agudez, inferia consistência e
penetração nas reflexões subsequentes. A eleição do texto escrito e a sua decifração
segundo os padrões filológicos estabelecidos nos meios universitários garantia e
264
JOÃO SOARES SANTOS
persuadia uma suposta veracidade científica dos estudos em curso. Num horizonte
de exploração colonial, a Ásia foi uma arma no jogo de evidenciação e asseveração
do pensamento europeu e dos seus ilustres protagonistas. Neste instruído tactear
da cultura indiana, os conceitos de transmigração, o sistema de castas, de Brahman,
Atman ou Maya são alvo de conjecturas, polémicas, discussões e posições extremadas.
Por exemplo, Friedrich Majer verá na organização social deste povo um modelo
perfeito. Johann Gottfried Herder e Johann Friedrich Kleuker condenaram-no
como nociva superstição. Neste afã transpositor de conceitos nem sempre as opções
para as suas formas patenteadas são as mais felizes. August Wilhelm Schlegel que
estudou sânscrito em Paris com Antoine Leonard de Chézy e Franz Bopp (entre 1814
e 1816) e leccionou este idioma na universidade de Bona entre 1818 e 1845 traduziu
para latim o «Bhagavad Gita» em 1823 e, forçadamente, fez corresponder a palavra
«Dharma» a termos como «religio», «pietas», «lex», «officio» ou «gentilitia»,
o vocábulo «Yoga» a «devoveo», «Brahman» a «numen» e «divinitas». Estes
exemplos chegam para desviar completamente o sentido da obra.
8. Sendo em grande parte uma invenção nossa, a Índia subsistiu relativamente
intacta e ignota. Enquanto a Europa julgava que a descobria, ela permanecia
inacessível, pois o que principalmente se revelava e patenteava eram as coordenadas
das estruturações mentais e dos métodos de razoar aplicados a um objecto de
estudo. Quanto mais a Índia espelhava e denunciava a mentalidade daqueles que a
investigavam mais os sábios europeus pensavam estar a interpretá-la com exactidão.
Estas deturpações interpretativas e tendência para estereotipar vão repercutir-se
na população autóctone submetida a um jugo estrangeiro. As imagens tidas pelas
instituiçõesdocolonizadoracercadocolonizadovãoreflectir-senosegundo.Reduzido
à obediência ou dependência o aluno autóctone é moldado segundo a representação
oficializada britânica e não pelos parâmetros tradicionais endógenos. A Índia foi
entendida como uma nação enfraquecida, esfumada, em decadência, embora com
um passado nostalgicamente edénico, foi vista com a admiração e complacência ou
com o desdém, a rispidez e a abjecção própria de quem se sente superior.
«O povo indiano com os seus costumes e ideias que pertencem a um mundo
bem afastado do nosso, com os seus velhos usos que tão obstinadamente sustenta e
com uma organização social que difere completamente da dos outros povos, pode
ser visto como um monumento vivo, como uma ruína ainda subsistente do estado
da humanidade na alta antiguidade; não o poderemos considerar no estado de
degradação em que hoje esmorece sem experimentar um vivo interesse.» 34
265
LIVROS, PERCURSOS E IMAGINÁRIOS ERUDITOS
Com afortunada recepção James Mill (1773-1836) apresentou uma perspectiva
depreciativa desta cultura em «History of British India» (1817). A sua arrogante
atitude de repúdio, fruto de uma soberba ignorância em relação à língua e aos valores
indianos vai exercer efeitos nas perniciosas alusões de Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (1770-1831), Karl Heinrich Marx (1818-1883) e Maximilian Carl Weber
(1864-1920). Curiosamente Hegel sugere que quanto mais pesquisa sobre a Índia
menos Índia encontra, depreendendo-se que a sua pesquisa sobre a Índia apenas
lhe devolve a sua própria cultura europeia, ilustrando assim essa incapacidade de
percepcionar para além do seu mundo restringido.
O cunho de indo-europeu, ainda hoje vigorante, indicando um conjunto de
afinidades linguísticas (lexicológicas, morfológicas e sintáxicas) enunciadas por
uma população proveniente ou que migrou para a Índia e depois para o Ocidente,
apareceu na «Quarterly Review», em 1813, num suposto artigo do médico
Thomas Young. Apesar da frequência do emprego deste termo os indo-europeus
são «como uma etiqueta para indicar que pelo acaso, por empréstimo ou por
conveniências gerais do espírito humano, certos tipos de correspondências me
parecem melhor ser explicadas por uma herança comum». 35
Uma nova vaga de usufruto do pensamento indiano foi obtida com a divulgação
do budismo entre as elites e o público mais vasto. Francis Buchanan (1762-1829)
em 1799, na «Asiatick Researches», inaugurou este interesse dissimilando esta
doutrina do bramanismo. Fundador da Société Asiatique (1821) e professor no
Collège de France a partir de 1831, Eugène Burnouf (1801-1852) apresentou a
«Introduction à L’Histoire du Buddhisme Indien» (Paris, 1844). Mais uma vez
as opiniões positivas e negativas dividem os letrados, as atitudes de fascinação e de
repulsa procuram captar a cumplicidade dos receptores. Com Burnouf veio estudar
em 1845 Max Müller que em Leipzig (1841) aprendera hebreu, árabe e sânscrito
com, entre outros, Hermann Brockhaus (1806-1877) e, em Berlim, persa com
Friedrich Rückert (1788-1866), gramática comparada com Bopp e filosofia com
Schelling. Rückert conhecia igualmente o hebreu e o sânscrito, tendo traduzido
o «Gita Govinda» de Jayadeva, extractos dos Vedas, do «Mahabharata» e do
«Ramayama». Entre a extensa obra de Müller podemos salientar «Buddhism and
Buddhist Pilgrims» (Londres, 1857), prolongando a obra de Burnouf, «History
of Ancient Sanskrit Literature, so far as it illustrates the Primitive Religion of the
Brahmans» (1859) e as traduções do «Hitopadesha» (1844), do «Rig Veda»
(1854, 1856 e 1862), inicialmente tentada em inglês por H. H. Wilson (1786266
JOÃO SOARES SANTOS
1860) e de os «Upanishads» (1779-1884).
Consoante os sujeitos que a abordam verificamos a existência de uma Índia
enquadrada entre o sublime e o vazio, entre o encanto face a uma profusão
imaginativa não domesticada, entre uma pureza bárbara e a deterioração, a privação
da autonomia individual e do sentido histórico. Uma Índia de defeitos, de louvores
e de controvérsia, alvo de uma curiosidade sem paralelo. Ou se apresentava como
um espectáculo artificioso e maravilhoso ou era adoptada e sintetizada pelas
nossas capacidades para a inteligibilizar e representar. Os estudos mais sérios
sobre esta cultura nasceram de uma iniciativa expansionista e colonial, de uma
vontade de assimilação, de integrar, de tornar o interlocutor igual. Ao contrário
do que aconteceu com os peregrinos chineses e salvo raras excepções, o desejo de
compreensão era egoísta e pretensioso. Os europeus não descobriram a Índia com
a humildade de quem procura ampliar os conhecimentos. Contemplando as suas
águas apenas viram os seus próprios reflexos julgando tratar-se de outra coisa. Por
isso a Índia descreve mais as feições e as contorções intelectuais de quem a observa,
compõe o nosso próprio modo de entender e, por isso, mesmo quando vulgarizada,
mantém-se estranha e indeterminada no seu silêncio.
267
Referências:
1 - Richard Gombrich, Etienne Lamotte e Lal Mani Joshi, «Buddhism in Ancient India»,
incluído no volume «The World of Buddhism», Thames and Hudson, London, 1991
2 - Asvaghosha, segundo a tradução chinesa de «Dharmaraksha», vertida para Inglês por Samuel
Beal, incluído no volume «Sacred Books of the East», The Colonial Press, New York, 1900
3 - Idem
4 - Paul Demiéville, artigo incluído no «Dictionary of Oriental Literatures», vol. I, Basic Books,
New York, 1974
5 -M. Filliozat, mencionado por Etiemble, «L’Inde du Bouddha», Calmann-Lévy, Paris, 1968
6 - Martin Noth, «The Old Testament World», Adam & Charles Black, London, 1977.
7 - René Grousset, «Sur les Traces de Bouddha», L’Asiatèque, Paris, 1991
8 - Guillaume de Rubrouck, Ambassador de Saint Louis en Orient - Récit de son Voyage»
(traduzido do latim por Louis de Backer), Ernest Leroux, Paris, 1877.
9 - Tzevtan Todorov, «Fictions et Vérites», «L’Homme», vol.XXIX, nº 111-112, Paris, Juillet
- Décembre 1989
10 - Faxian, mencionado pelo escriba no final de «The Travels of Fâ-Hien», traduzido por
James Legge, incluído na obra «Oriental Literature - The Literature of China», The Colonial Press,
New York, 1900
11 - «L’Inde en Rapport avec l’Europe», Moutardier, Paris, Ano VII da República Francesa
12 - Mirza Ahmad Sohrab, «The Bible of Mankind», Universal Publishing, New York, 1939.
13 -Mencionado na compilação de Wing-Tsit Chan, «A source book in Chinese Philosophy»,
Princeton University press, Princeton, 1973.
14 - David E. Mungello, «The Spirit and the Flesh in Shandong, 1650-1785» Rowan & Littlefield,
Lanham, 2001
15 - Idem
16 - Alain Viaut, «Le Pouvoir Magique de la Langue», «Cahiers Ethnologiques», nº 14,
Université de Bordeaux II, 1992.
17 - Steven Roger Fisher, «Uma História da Linguagem», Temas e Debates, Lisboa, 2002
18 - «Ramayana» tibetano (manuscrito encontrado em Dunhuang, tradução para Francês de
Jagbans Kishore Balbir), Adrien-Maisonneuve, Paris, 1963.
19 - Carta de Joachim Bouvet ao abade Bignon, mencionado por Arnold H. Rowbotham, «The
Jesuit Figurists and Eighteenth-Century Religious Thought», incluído no volume «Discovering China:
European Interpretations in the Enlightement», University of Rochester press, Rochester, 1992
20 - Georges Posener (direcção), «Dictionnaire de la Civilisation Égyptienne», Fernand Hazan,
Paris, 1959.
21 - Mencionado por Arnold H. Rowbothan, opus cit.
22 - Ignacio Gómez de Liano, «Athanasius Kircher, Itinerario del Éxtasis o las Imágenes de un
Saber Universal», Ediciones Siruela, Madrid, 1990
23 - Gabriel de Magalhães, «Nova Relação da China», Fundação Macau, Direcção dos serviços
de educação e juventude, Macau, 1997
268
24 - Idem
25 - Brijraj Singh, «The first Protestant Missionary to India», Oxford University press, New
Delhi, 1999
26 - «Li Ki» (Mémoires sur les Bienséances et les Cérémonies), tradução de Séraphin Couvreur,
Tomo I, Segunda Parte, Cathasia e Éditions Sulliver, Paris, 1950
27 - Henri Cordier, «La Chine en France au XVIIIe Siècle», Henri Laurens, Paris, 1910
28 - Stephen Neill, «Missões Cristãs», Ulisseia, Lisboa, s.d.
29 - Consultar Brijraj Singh, opus cit.
30 - Joscelyn Godwin, «Athanasius Kircher, a Renaissance man and the quest for Lost
Knowledge», Thames and Hudson, London, 1979
31 - Lyne Bansat-Boudon, «Théâtre de l’Inde Ancienne», Gallimard, Paris, 2006
32 - Schlegel, carta a Ludwig Tieck (1803), mencionado por Christine Maillard, «L’Inde vue
d’Europe», Albin Michel, Paris, 2008
33 - Friedrich Schlegel, «Histoire de la Littérature Ancienne et Moderne» (Tradução de William
Duckett), 2 Volumes, Th. Ballimore, Paris, 1829
34 - Idem
35 - Georges Dumézil, emissão da France Culture, «Les Lundis de l’Histoire» (23-11-1981),
mencionado por Jean Batany, «Mythes Indo-Européens ou Mythe des Indo-Européens: le
Témoignage Médiéval», «Annales», Ano 40, Nº. 2, Armand Colin, Março-Abril de 1985
269
270
SOLTOS
A passividade cubana
perante Guantanamo
U
ma das questões mais discutidas durante a campanha
paraaseleiçõesdoPresidente da Republica dos Estados
Unidos, esteve associada à prisão de Guantanamo, instalada no enclave norte-americano em território Cubano, consequência da
guerra entre a Espanha e os Estados Unidos,
que permitiu que o território norte americano, integrasse terras espanholas, entre as
quais a Ilha de Cuba, reconhecida em 1942
por Cristóvão Colombo. Uma das suas características deriva das condições politicas
impostas pelo colonizador, que utilizou o
recurso aos “encomenderos” para organizar
a disciplina politica e económica da Ilha.
Um dos “encomenderos”, foi Frey Bartolomé de Las Casas, figura que não poucos
indianistas consideram, sobretudo a partir
da controvérsia de Valladollid, em 1550,
um bom defensor dos índios, sujeitos a uma
politica genocidiária, como foi sempre a
constante espanhola nas Américas. Trata-se
sobretudo de um terrível equívoco, pois o
“encomendero” dá conta da rápida liquidação dos índios, pelo que propôs ele uma
solução: dada a sua rápida desaparição, havia
que os substituir por africanos, muito mais
robustos que eles e capazes por isso mesmo
de assegurar a máxima rentabilidade deste
novoterritório.Podeporissoafirmar-seque
coube a Frey Bartolomé propor o recurso
aos africanos, o que aumentou amplamente
o números de escravos transferidos das terras
africanas pelo tráfico negreiro que só esgotou
a sua capacidade deletéria, a partir de 1850,
em virtude da legislação brasileira proposta
pelo Senador Euzébio.
Fracassadas as poucas tentativas de alcançar a independência foram os cubanos massacrados pelas guerras internas, que se agravaram em consequência da guerra com os
Estados Unidos, que resultou na derrota dos
espanhóis, que renunciaram à ilha de Cuba
que, até 1932, foi governada pelos norte
americanos. Semelhante situação põe em
evidência o apetite colonial dos norte americanos, visivelmente esquecidos dos princípios aprovados em Filadélfia. A explosão
provocada pela derrota do ditador Fulgêncio
Batista, resultado da guerra de guerrilha imposta por Fidel Castro e os seus amigos, particularmente o médico argentino Ernesto
Che Guevara. O discurso feérico do guia do
“guia” da revolução, o advogado de origem
galega Fidel Castro, levou quase toda a gente
a esquecer os particularismos sociopolíticos
resultantes da pressão colonialista dos espa271
nhóis, que foram substituídos nessa função
pelos norte-americanos.
Devereferir-seofactodeCubatercontinuado a funcionar, para os espanhóis, como
um território que seria impossível abandonar. Se é certo que a sociedade cubana recebeu milhares e milhares de africanos, principalmente de dois grupos, os ba-kongos,
muito maltratados pela sociedade cubana e
os originários da Costa do Outro e da Costa
dos Escravos cuja presença ainda hoje é visível
em instituições como as “santerias”. Parece
menos visível a contribuição dos ba-kongos,
embora M. Barnet tenha posto em evidência
asuaparticipaçãonaestruturaçãodofactoreligioso,semprefundamentalnaestruturação
das sociedades bantas. O racismo espanhol,
treinado na península ibérica, e incidindo
sobre as minorias árabes e judias, alargou-se
um pouco mais tarde quando se tornou indispensável importar milhares e milhares de
africanos. Fiéis aos seus princípios racistas, os
espanhóis,comoosportugueses,deramorigem a milhares de mulatos, frequentemente
bem tratados pelos espanhóis.
A grande viragem cultural cubana registou-se à volta dos anos 30, quando criadores
como Nicolas Guillén, decidiram classificarse como “negros” respondendo aos boletins
utilizados no recenseamento. Esta operação
revolucionaria integra-se num espaço cultural que se apoia, em Cuba, no “negrismo”,
mas que na Europa, ou melhor em Paris,
permitiu a emergência da “negritude” que
sustentava um projecto cultural que só muito
272
mais tarde daria lugar a um projecto político.
Se, por um lado, os afrocubanos, propunham uma revisão drástica da situação, os
espanhóis mantiveram um profundo interesse por Cuba, como se pode ver nas muitas
“havanezas” que se multiplicaram em Espanha, assim como no consumo dos “puros”,
os charutos da burguesia, tendo-o sido também dos revolucionários. A emigração galega para Cuba – evocada tanto por Rosalia de
Castro como Curro Henriquez – reforçou
as relações entre Espanha e os cubanos. Basta, nos dias de hoje, abrir um jornal como
o El País para encontrarmos uma nuvem de
pequenos anúncios sexuais, nos quais muitas mulheres gabam as suas condições físicas,
seios e nádegas, salientando-se tratar-se de
cubanas.
Nestas circunstâncias, Cuba tornou-se
uma colónia dos Estados Unidos, havendo
por um lado a produção agrícola normal,
assentando na cana-de-açúcar e no açúcar,
assim como no tabaco. Encontramos nesta
circunstância o selo do facto colonial, já que
as produções mais importantes se destinam à
exportação, o que provoca sempre a necessidade de importar a maior parte dos artigos
que caracterizam as sociedades modernas.
Não é por isso de admirar que as forças politicas cubanas se tenham organizado para
eliminar o poder ditatorial de Fulgêncio
Batista, substituído por uma “ditadura democrática”. Esta pode parecer perversa,
corresponde bem ela ao discurso e à prática
de Fidel Castro e dos seus amigos, alguns dos
quais foram alguns anos depois eliminados
politicamente, embora alguns tivessem sido
metidos em cadeias destrutoras, ou pura e
simplesmente executados. Direi apenas que a
herança do “facto colonial” corrompe os sistemas ideológicos, assim como exige a liquidação dos puros revolucionários, pouco capazes de se submeter à vigilância da ditadura.
Esta situação obriga-nos a considerar
um aspecto, é certo que particular, mas nem
por isso menos importante: os Estados Unidos impuseram o bloqueio de Cuba, deve
considerar-se a maneira como os cubanos
quiserem ver-se livres dos americanos. Consultando os documentos da época, podemos
verificar que o aparelho político cubano
permitiu que, no seu enclave os americanos,
fizessem o que queriam. Está-se perante um
paradoxo, na medida em que os revolucionários, renunciavam à expulsão dos norte-americanos, como seria de esperar e foi
esperado por milhares de apoiantes do novo
regime cubano.
Nem quando a ingenuidade norte-americana permitiu e apoiou o ataque à “baia de
los cerdos”, facilmente repelida pelas forças cubanas, se pôs em causa a existência de
Guantanamo, que constitui uma surpresa
para quantos não dispunham de “dossiers”
capazes de lhes fornecer a carniça teórica indispensável à nossa antropologia cultural.
Parece útil reflectir a propósito do gosto
norte-americano pelas prisões onde os detidos são submetidos a tratamentos simplesmente desumanos, a começar pela castração
que resulta das regras prisionais. A sociedade
norte-americana encara estas prisões como
sendo as fortalezas da ordem. Quem não
parou um dia no cais de S. Francisco para
admirar a prisão de Alcatraz (o substantivo
desapareceu do nosso quotidiano, mas servia
para designar os pelicanos; havia um com ar
um pouco reformado nos dias em que recusei visitar a prisão). Há milhares de presos
nas cadeias norte americanas, tendo a gestão
de George W. Bush reforçado o contingente
interno. Tendo a reacção face ao atentado de
11 de Setembro de 2001 dado nova função a
Guantanamo, ao mesmo tempo que ia estabelecendo acordos com vários governos,
ainda hoje por conhecer, e a CIA criado
prisões nos países democráticos europeus.
A pergunta que me parece inevitável,
mas que ainda não foi feita à escala universal,
é seca mas instrutiva: porque razão não protestaram os cubanos contra a transformação do enclave de Guantanamo em prisão
política, especializada em tortura, infligida
sobretudo aos militantes muçulmanos? E
mesmo agora?
Já sob a presidência de Barack Obama,
verificamos o mesmo silêncio por parte das
autoridades cubanas, mesmo se o Presidente
Obama já autorizou a libertação de alguns
desses presos, cuja culpabilidade nunca foi
demonstrada. O facto de ter havido governos democráticos que autorizaram os norte-americanos a criar prisões onde se podia
aplicar – e se aplicou – a tortura, não pode
deixar de nos impressionar. Quando apa-
273
receram em todos os media mundiais as fotografias que mostravam soldados americanos
em via de maltratar os prisioneiros muçulmanos, podia ter-se chamado a atenção
para a banalização da violência e da tortura.
Já todos nós assistimos a filmes que propõem
as descrições das técnicas utilizadas pelos norte-americanosparaprocederàdomesticação
dos soldados, fazendo de um adolescente às
vezes meigo, uma besta feroz, capaz de reduzir os adversários – quase sempre inventados
– a uma massa viscosa e fatalmente repelente.
A rigidez da organização, a rejeição de qualquer opção individual, vão no sentido de
transformar os militares em puras peças da
mecânica da repressão, em autênticos animais selvagens.
Terminarei com uma curiosidade suplementar, já não estamos em condições
de esclarecer a teia de decisões que dizem
respeito a Guantanamo em particular, mas
que podemos alargar a outras prisões, pois,
até agora, os países democráticos que criaram
prisões novas ou autorizaram os americanos
a servir-se das já existentes, não forneceram nenhuma indicação útil. Podemos,
de resto, integrar neste quadro repressivo o
Presidente da União Europeia, o “nosso”
Durão Barroso, que depois de ter servido
de moço de recados do primeiro-ministro
espanhol, Aznar, parece disposto a manter
esta orientação. É evidente que estes comportamentos remetem para usos e costumes
não democráticos. Não é de admirar, pois só
muito dificilmente se conseguirá integrar o
274
Presidente Bush entre os democratas. Não é
o facto de não saber muito bem inglês que o
desautoriza, embora seja lamentável que um
homem político colocado no plinto do poder, não seja capaz de evitar a tolice, que o faz
sorrir. Em situações mais polémicas haveria
que considerar o Presidente Bush como um
criminoso de guerra. Desgraçadamente as
nossas democracias acabam por ser demasiado flexíveis face a estes criminosos, preferindo meter na cadeia e julgá-los, os antigos
dirigentes do Ruanda, do Kosovo e de países
deste jaez.
Não é que não o mereçam, mas podiase esperar uma intervenção internacional
menos marcada pela cumplicidade com os
grandes criminosos de guerra como Bush.
A.M.
Bento XVI:
Um Papa que também vestia a farda das SS
S
omos um país católico, que
pratica contudo um catolicismo muito particular,
sendo antes um catolicismo
cismático. Não há católico português
que não pratique uma forma particular
de cisma, que lhe permite multiplicar
as infracções. Quando se presta alguma
atenção à maneira como o catolicismo,
que continua a aparecer com demasiada frequência como sendo a religião
do Estado constitucionalmente laico se
desenvolveu, verificamos que se trata
de um catolicismo muito especial, que
encontra concorrência nas demais religiões praticadas no país – islamismo,
protestantismo, religiões ortodoxas e
outras – havendo sobretudo que prestar
a maior atenção às religiões costumeiras
– rejeito o “popular”, que se utiliza sobretudo quando estas religiões são analisadas pelos etnólogos – tais a feitiçaria,
a bruxaria, a adivinhação. Verificamos
sobretudo que não se regista a mínima
cultura teóloga e que um texto fundamental como a Bíblia, indispensável
entre os protestantes, não encontrou
o mínimo eco entre os crentes portugueses, incluindo – não sem surpresa
– muitos protestantes.
Tal não nos deve impedir de considerar a maneira como se vive entre nós
a verdade religiosa, assim como nos devemos interessar pela multiplicação dos
dogmas que têm feito da religião católica não um franciscanismo, mas uma
religião dogmática que dá ao chefe da
Igreja uma autoridade que recusa qualquer fraternidade. Estamos perante
uma maneira pouco fraterna de viver a
religião, quer no espaço íntimo de cada
um, quer nas práticas colectivas que
exigem a fraternidade, de que a Igreja
actual parece muito separada. Não foi
por mero acidente que me referi ao
franciscanismo – que alguns dos nossos
intelectuais, tais Jaime Cortesão, quiseram considerar como a nossa religião
mais capaz de sacralizar o quotidiano,
um pouco no caminho que foi o de Joaquim de Fiora.
Interessa agora analisar as condições
em que o chefe actual da Igreja, o Papa
Bento XVI, antigo cardeal Ratzinger,
dirige os destinos de uma instituição
presente no mundo inteiro, seja qual
for a forma dessa presença, embora seja
esse o problema a tratar. A última de275
cisão tomada pelo Papa, o levantamento da excomunhão que fora decretada
contra os quatro bispos da Fraternidade São Pio X. Esta medida provocou
no mundo religioso, não só entre os
crentes católicos, uma surpresa que se
transformou rapidamente em indignação, mutação para que contribuiu o
Bispo integrista Richard Williamson ao
empunhar outra vez o facho do negacionismo, afirmando que não houvera
Holocausto nos campos de concentração nazis – confunde-se quase sempre
os campos alemães com a totalidade dos
campos, deixando de lado os campos
italianos, assim como a parte que lhes
coube no Holocausto.
Os média de todas as classes e categorias empenharam-se em denunciar
a facilidade com que agira o Papa, excardeal Ratzinger. Confesso que me
perturba esta manifestação de surpresa, pois a biografia do Papa, não pode
dissimular pelo menos dois comportamentos singulares na já longa vida do
Papa. A primeira diz respeito à sua relação com o nazismo. Numa entrevista
concedida ao Le Monde, o teólogo alemão
Hans Küng salienta o facto de o Papa,
ter sempre vivido em meios eclesiásticos, viajando pouco, tendo passado a
vida fechado no Vaticano “que é como o
Kremlin de antigamente”. Um filósofo
também alemão, Kurt Flasch não hesita
em afirmar, a respeito de Bento XVI,
276
“ser claro como a água da fonte que o
Papa não tem nada a ver com o racismo
nem com o anti-semitismo”. Os dois
sábios alemães julgam de forma algo
divergente as decisões de Bento XVI,
esquecendo todavia, um e outro, pelo
menos dois particularismos que nos
podem ajudar a compreender a maneira como este Papa se empenha em limpar o sarro teológico que caracteriza os
quatro bispos da Fraternidade São Pio
X, excomungados por duas razões, uma
das quais é raramente posta em evidência: a primeira deve-se ao facto de os
bispos desta Fraternidade – que, como
se vê, é muito pouco fraterna – não só
terem condenado o concílio Vaticano
II, mas persistir em antijudaísmo, circunstância que os leva, a todos, a um
anti-semitismo que se enraíza na teoria
e na prática nazis ou fascistas. É sabido
há muito, nos meios eclesiásticos, que
a missa em latim – sendo a língua, que
Cristo nunca conheceu nem falou, um
mero espantalho para assustar os crentes – não faz mais do que dissimular a
rigidez tanto teológica como existencial
destes bispos e dos padres que eles ordenaram.
Não será pois o latim que concorrerá para tornar mais brutal o balanço do
Holocausto. Muitos dos que morreram
nesses terríveis campos de concentração
conheciam profundamente o latim. O
que os matou foi a brutalidade neopagã
do nazismo, que sempre entendeu mal
os filósofos que utilizou como aconteceu com Nietzsche. Mas em tudo isto
há uma sombra nazi que tem sido cuidadosamente posta de lado, certamente
com receio de que ela venha a provocar
o mesmo eco criado pela confissão de
Gunther Grass de que tinha acabado a
guerra, mau grado a sua pouca idade,
nas fileiras das SS. Esta confissão tardia
desencadeou uma tempestade, e Grass
perdeu algumas das suas medalhas. Ora,
a não ser os distraídos, quem não sabe
que o Papa Bento XVI foi na sua juventude do fim da guerra membro das SS?
Não certamente por vontade própria,
mas não se ouviu até hoje a menor desculpa provinda deste teólogo de outros
tempos. Não podemos pôr de lado a
maneira irónica como Hans Küng julga
o passadismo do Papa: “ele não evoluiu e
tenho a certeza de que se alguém lhe perguntasse a razão pela qual divergimos ele
diria: “Foi Küng que mudou, não eu!”
Teria apreciado que Küng, quando
se refere ao encerramento do Papa no
Vaticano, sempre a contas com os mil e
uns aspectos de um “Kremlin católico”
– com agradecimentos a Küng – nos explicasse qual o foi o sector no qual mais
se fez sentir a actividade do cardeal Ratzinger: nada menos nada mais do que o
Santo Ofício! Ou seja o mecanismo que
alimentou em carne humana e em dinheiro, a estrutura repressiva por exce-
lência do catolicismo. Nathan Wachtel,
judeu asquenaze nascido em França, e
que teve a sorte de escapar à repressão
do ocupante nazi, vai a ponto de repetir
uma afirmação de António José Saraiva: “A Inquisição não prendia judeus,
criava-os!” Mostrarei a seu tempo e em
outro lugar, que tal não foi o caso, pois
acredito que os judeus procuraram defender, com o corpo e com o espírito,
a sua condição de judeus que não nos
pode impedir de denunciar a teimosia
com a qual a Igreja católica não só quer
manter os seus dogmas, como insiste
em destruir, física e moralmente, aqueles que considera ou faz seus inimigos.
A longa lista de homens e de mulheres presos, torturados e condenados
à morte em condições infra-humanas
– que não podem deixar de nos lembrar
as prisões e os campos de concentração,
de que fui contemporâneo, abrigado
pelo bloco geográfico formado pela Espanha e pelo nosso país. Não fui libertado da guerra pelo salazarismo anti-semita, pois fiquei para sempre marcado
pelo que ouvi e li, e que só mais tarde
pude ver. E são muitos os meus amigos
judeus que ou puderam escapar às malhas das polícias – como o malogrado
professor Joseph Gabel que conseguiu
fugir de uma esquadra da polícia francesa, que o identificara mau grado ser
psiquiatra das forças armadas francesas,
a que acrescentarei o olhar melancólico
277
de Pierre Vidal-Naquet medindo a fumaça que bloqueava o horizonte, como
se fosse o fumo das fornalhas em que se
tinham transformado seus pais, presos e
deportados pela Gestapo.
Não sou católico e pertenço a uma
família pouco crente e ainda menos
praticante, tendo havido alguns meus
parentes remotos que entraram para
sempre nos cárceres da Inquisição. Já
então estávamos do lado contrário à Igreja
da Inquisição. Em Paris, choca-­me a leitura
das placas que em muitos edifícios lembram
as rusgas das forças franco-alemãs que, em
alguns casos levaram dezenas de pessoas,
de que só restam as lembranças gravadas
na pedra ou inscritas nos livros semrazão das prisões, dos comboios – este
instrumento tão civilizado, desviado da sua
funçãopelosanti-semitas–quetambémeram
anti-homossexuais,antiloucos, anticiganos,
anti-africanos, em função da sua exaltação
dos puros arianos que, pelo visto, incluem
também o Papa Ratzinger!
A.M.
278
279
280
LIVROS
Pereira, João Martins – As voltas que o capitalismo (não) deu,
Lisboa, Edições Combate, 2008
Joaquim Jorge Veiguinha
J
oão Martins Pereira, falecido em 2008, notabilizou-se
no nosso panorama intelectual com livros paradigmáticos,
de que se destacam “Pensar Portugal
Hoje”, conjunto de ensaios sobre os
últimos anos do regime fascista na sua
versão marcelista (1971) e o magnífico
“Indústria, Ideologia e Quotidiano”
(1974), em que é analisada a estrutura
industrial portuguesa em termos de
composição tecnológica, o fenómeno da
formação de uma taxa média de lucro,
em consequência dos diferentes graus
de intensidade capitalista dos sectores de
actividade económica e as práticas reiterativas da reprodução de um modo de
vida marcado pelo trabalho assalariado
e por um processo de acumulação de
capital que começava a pôr definitivamente em causa o ruralismo salazarista.
Em 1975, após ter pedido a demissão
de secretário de Estado do 4º Governo
provisório, escreve o ensaio “A transição
para o socialismo”, onde faz uma análise
do debate soviético sobre a construção
de uma economia socializada, dando
particularmente destaque à polémica,
hoje historicamente datada por ignorar
inaceitavelmente que não é possível
construir uma sociedade socialista
sem democracia, entre Preobraensky
e Bukharine, mas não esquecendo os
contributos de autores mais preocupados
com a questão política da democratização da sociedade, de que se destaca
Gramsci. Provavelmente consciente
das insuficiências do debate soviético
centrado nesse oximoro preobrajenskiano da “lei da acumulação socialista
primitiva”, publica, em 1980, o seu
livro mais sistemático Sistemas económicos
e consciência social – para uma teoria do socialismo
como sistema global, onde analisa os debates
mais fecundos sobre o “socialismo de
mercado” e outras perspectivas e critica
as teorias neopositivistas sobre o equilíbrio dos mercados. Em 1983, edita No
reino dos falsos avestruzes – um olhar sobre a política,
em que se confronta com os atavismos
dos barões da política portuguesa e
seus epígonos. Em 2003, escreve Para a
História da indústria em Portugal 1941-65, livro
onde analisa a emergência do modelo
de industrialização do país no período
do Estado Novo.
Em boa hora, foram publicadas
em livro uma série de artigos do
281
autor, escritos entre 1988 e 1999 no
jornal Combate. A sua grande riqueza e
perspicácia crítico-analíticas tornam
embaraçante a nossa escolha. Optámos
pelas análises de João Martins Pereira
sobre as relações entre Portugal e União
Europeia, bem como pelas suas críticas,
sempre fundamentadas e argumentadas,
aos atavismos e provincianismos das
classes empresarial e política portuguesa.
Uma das frases-chave da propaganda
oficial é, sem dúvida, a da “modernização” da pátria com a entrada na UE.
Mas, em que se baseou a tão propalada
“modernização”? A resposta do autor
é clara e incisiva: houve uma “modernização” pelo consumo, mas não uma
modernização dos processos produtivos. Portugal, um dos elos mais fracos
da divisão internacional de trabalho, vê
as suas indústrias exportadoras tradicionais em crise profunda e assiste
passivamente ao desaparecimento das
indústriasbásicas(siderurgia,construção
naval, metalomecânica pesada) em atraso
irreversível relativamente ao novo paradigma tecnológico.
Que restou então? Os padrões e
as expectativas de consumo que apenas
puderam ser “sustentados” à custa do
endividamento crescente das famílias.
Mas isso significa que, em geral, os
portugueses com os seus computadores
de banda larga, telemóveis de 3ª geração
e outros gadgets podem ser comparados
282
aos selvagens – com o devido respeito
por estes dignos personagens – fascinados pelas contas de vidro que lhes
são vendidas a caro preço pelos novos
colonizadores. Com a agravante de que
quem não produz coisas também não
produz ideias e corre o risco de transformar-se numa espécie de “reserva
índia” da UE “folclórica, simpática e
baratíssima para os turistas” (p. 25).
Ao contrário do que tem acontecido em Portugal, a “modernização”,
conceito ambíguo e pouco claro, passa
necessariamente pela produção, pois
é aqui que “convergem as capacidades
intelectuais e criativas de uma comunidade: o nível da educação; o espírito
de descoberta, de inovação, de criação;
o culto da experimentação e da investigação; o gosto pelo trabalho colectivo,
etc.” (p. 69). No entanto, nada disto
aconteceu! Portugal continua a ser
um país onde campeia o individualismo irresponsável, o analfabetismo
funcional, a iliteracia e a incultura.
Paralelamente, a nação foi totalmente
incapaz, após a sua adesão à União
Europeia, de construir uma base
industrial moderna. O clusters da equipa
de Michael Porter, centrados nos
sectores exportadores tradicionais, não
podem constituir uma alternativa viável
para o nosso atraso industrial. Basta
pensar, por exemplo, como a abolição
do Acordo Multifibras, em 1995, que
protegia a indústria têxtil portuguesa
da concorrência de países exteriores
à União Europeia, assestou um rude
golpe num sector oriundo da primeira
Revolução Industrial, que sempre
sobreviveu à custa dos baixos salários e
da precária qualificação e formação da
força de trabalho.
Portugal apesar de ter construído
uma “indústria de base”, se bem que
de dimensões restritas, não conseguiu
acompanhar ou “dar o salto” qualitativo para o novo paradigma tecnológico
das indústrias móveis da “sociedade da
informação e do conhecimento”. Foi
perdendo as suas tradicionais indústrias de base incapazes de se adaptarem
aos novos tempos que exigem a fabricação de produtos mais leves e meios de
trabalho mais elaborados e intensivos
em conhecimento e não conseguiu
verdadeiramente superar o seu atraso
na agricultura e nas pescas, como o
provam os défices crescentes das respectivas balanças de transacções com o
resto do mundo. Onde está então a tão
propalada modernização que alguns
não se cansam de apregoar aos quatro
ventos? Para João Martins Pereira,
o que se “modernizou” foram “os
padrões de consumo, as expectativas de
consumo, nem que seja à custa do crescente endividamento das famílias” (p.
82). Tem-se (des)construído, assim,
um país “moderno” apenas “à super-
fície, como nos tempos das «indústrias
de base», mas produzindo cada vez
menos, trate-se de produtos ou ideias”
(pp. 82-83). Neste sentido, “de entre o
imenso «lixo» supostamente moderno
produzido em cada tempo, só o futuro
acaba por decidir o que foi verdadeiramente moderno, porque portador de
transformações vindouras” (p. 83).
Outra das lamentações recorrentes
é que Portugal perdeu ou vai perder o
comboio das novas tecnologias ou da
terceira Revolução Industrial. Não é,
porém. a distribuição de computadores de banda larga pelos alunos das
escolas do ensino básico e secundário
que poderá por si só contribuir para
que Portugal assuma o novo paradigma
de desenvolvimento científico e tecnológico. No que respeita ao comboio
do desenvolvimento, Portugal entrou
na estação errada ou enganou-se na
linha. O país continua a ser flagelado
pelos baixos níveis de formação, nunca
apostou verdadeiramente na educação e
na cultura e viveu durante séculos à custa
de recursos externos, provenientes das
colónias, das remessas de emigrantes
e, mais recentemente, dos fundos
da União Europeia, que apenas têm
servido para mascarar o atraso estrutural e para introduzir novas formas de
dependência relativamente ao exterior
que o transformam num “país assistido,
colonizado ele próprio” (p. 86). Com a
283
desindustrialização que nos últimos anos
não tem parado de avançar, Portugal é
cada vez mais um país de trânsito, em
que circulam cada vez mais mercadorias importadas produzidas por outros
e onde proliferam cursos profissionais
de marketing para formar pessoas especializadas em impingi-las ao consumidor
passivo. Apesar do país produzir relativamente cada vez menos em termos
de valor, como o provam os défices
crescentes da sua balança comercial, os
consumidores nacionais rendem-se
cada vez mais ao dinheiro de plástico,
aos cartões crédito e débito e ao dinheiro
electrónico, formas que expressam a
desproporção crescente entre o que se
consome acima dos próprios meios e a
anorexia produtiva, sobretudo antes da
eclosão da actual crise sobre a qual João
Martins Pereira já não teve oportunidade de reflectir. Perpétuo não ser, o
país está a atingir o estádio supremo do
consumo passivo sem grandes alternativas no horizonte, já que um número
crescente de empresas estrangeiras há
muito instaladas em Portugal tendem
a deslocalizar a sua actividade para
outras paragens, enquanto as chamadas
“indústrias de base” desapareceram
praticamente e as exportadoras tradicionais perdem dia a dia quotas de mercado
perante a concorrência estrangeira por
não terem conseguido apostar numa
nova gama de produtos mais diversifi284
cados e de maior valor acrescentado.
Transformados em indígenas para
atracção turística, os portugueses estão
cada vez mais reduzidos a uma reserva de
trabalho barato e precário para projectos
imobiliários faustosos, simpáticos servos
da gleba de uma economia rentista,
parasitária e anacrónica dominada por
alguns senhores, herdeiros renascidos
das cinzas das leis do condicionamento
industrial do regime fascista-salazarista. Mas tudo se passa, apesar das
crises recorrentes, de que esta última é
o exemplo mais grave e em que, apesar
das suas causas externas, as debilidades
estruturais do tecido económico e social
contribuem para tornar ainda mais
difícil a sua superação, como se todos
vivêssemos no melhor dos mundos
possíveis. Nada se discute, nada se
questiona tudo se arrasta a reboque do
“aqui e agora” da mutável conjuntura,
à espera de Godot ou do novo milagre
de Fátima. E que tem feito a classe política durante este trinta cinco anos que se
comemoram em 25 de Abril de 2009?
Para João Martins Pereira, não há lugar
para grandes optimismos: “Os governos
mentem quando anunciam que
Portugal se vai aproximar dos «níveis
europeus», que vão combater o desemprego, que vão lançar indústrias novas,
que vão «pesar» nas decisões europeias
- numa palavra que o «Portugal do
século XXI» será outro. Não. Eles vão
limitar-se a gerir os fundos próprios
e europeus de forma eleitoralmente
mais rentável, a decidir onde e quando
se farão mais umas estradas e pontes e
centros culturais (e a inaugurá-los o
máximo número de vezes possível), a
fazer milhentas reformas da educação,
da saúde, da justiça - que deixarão tudo
na mesma, ou pior - e a fazer disso
anualmente os habituais balanços triunfalistas” (p. 82).
Estas considerações foram escritas
em Setembro de 1993, na fase declinante do segundo Governo de maioria
absoluta de Cavaco Silva, uma verdadeira
década perdida para a superação do
atraso do país. Pode dizer-se que, infelizmente, não perderam actualidade,
pese embora a ausência total de alternativas políticas credíveis à esquerda nos
tempos que correm, graças ao atavismo
sectário do PCP e ao pretensiosismo
politicamente irresponsável do Bloco
de Esquerda. Mas isso não significa
que se desista de continuar a projectar
novos caminhos, que, para parafrasear o feliz título de uma colectânea de
escritos breves do autor publicada em
1993, tenham a ousadia de colocarse “à esquerda do possível”: “Preferir
uma sociedade em que os indivíduos
sejam cidadãos, e não apenas ou sobretudo, produtores/consumidores, em
que a qualidade de vida não signifique
a posse (e exibição) de bens ou contas
bancárias, mas um diferente relacionamento colectivo dos seres humanos
entre si e com o mundo. Uma sociedade de partilha e não de competição
desenfreada, desde os bancos da escola.
Só em outra estação será possível,
um dia, apanhar um comboio desses.
Procurá-la, isso é tarefa de todos os
dias” (p. 88).
285
286
Os Charutos de Churchil
Beja Santos
C
onfesso que iniciei a
leitura deste livro mais
movido pela curiosidade
do que julgava ser uma
bisbilhotice que pela importância do
conteúdo. A surpresa é que se trata
de uma leitura absorvente, quase
mágica, a ponto de nos rendermos
à iconografia desses charutos que
identificavam o primeiro-ministro
britânico na sua luta encarniçada
contra Hitler. Lê-se com paixão, tal o
encanto da história, só inessencial por
se considerar uma bagatela aqueles
charutos com que Churchill apareceu
em milhares de imagens, projectando-o como farol da resistência
democrática (“Churchill e os Charutos, uma
paixão que atravessou a guerra e a paz”, por
Stephen McGinty, Alêtheia Editores,
2008).
No século XIX, o charuto é estatutário, um luxo de uma clientela selecta
onde se inseria o pai de Winston
Churchill, Lord Randolph Churchill.
A principal tabacaria londrina do
tempo era a Robert Lewis que vendia
produtos dispendiosos como ao mais
finos charutos cubanos ou os cigarros
Balkan. Em 1900, Churchill, na
altura com 25 anos, entrou neste
santuário do fumo e iniciou uma
relação que só terminaria com a sua
morte, em 1965. Nesse primeiro dia,
o jovem Winston comprou 50 Bock
Giraldas, um pequeno havano, por
4 libras, e uma caixa de 100 cigarros
Balkans, que lhe custou mais 11 xelins.
A Robert Lewis pertencia ao judeu José
de Solo Pinto que soube imprimir ao
negócio uma selecção de produtos
que tornaram a tabacaria no primeiro
estabelecimento londrino do género.
Segue-se a história dos hábitos tabágicos de Churchill e a sua chegada a
Cuba, que o tornou um indefectível
apreciador de havanos de alta qualidade. Entretanto o autor aproveita
para nos dar conta da importância
do havano e como este se celebrizou a
partir do século XIX, graças a marcas
que percorreram o mundo inteiro
como Upmann, Hoyo de Monterrey
e Romeo y Julieta. Como observa o
autor, “A aristocracia dos fabricantes
de charutos são os enroladores, dos
quais se diz que precisam de seis
anos para se tornarem competentes,
287
dez para serem hábeis e uma vida
inteira para chegar à mestria. Estes
homens - e em anos mais recentes
também mulheres - eram capazes de
pegar num monte de folhas e enrolar
uma dúzia de charutos numa hora,
passando habilmente pela nove fases
do processo de fabrico e manufacturando um produto acabado com uma
boa vitola - o termo utilizado para
descrever o equilíbrio entre tamanho,
potência, forma e apresentação”.
Em 1926 Churchill e a mulher
compram Chartwell uma mansão
do século XVI que será o novo lar da
família. O charuto, as suas caixas e os
seus humidores, marcam presença
à escala dos milhares, guardados
numa pequena sala do primeiro piso.
Nesse tempo Churchill e o charuto
já vivem em fusão, o político tinha
consciência da imagem que o charuto
projectava, uma imagem de confiança
descontraída, muito importante para
o eleitorado. Escreve o autor: “O
charuto era igualmente uma espécie
de cata-vento do seu tempestuoso
temperamento: podia tirá-lo da boca
e agitá-lo no ar realçar um ponto
ou, quando estava particularmente
furioso rosnar uma ordem com
ele entalado entre os dentes. Fazia
todo um espectáculo de preparar o
seu charuto, riscando várias vezes o
fósforo e expelindo várias baforadas de
288
fumo... Em encontros mais privados,
ficava a fumar em silêncio, deixando
que a cinza crescesse até representar
metade do comprimento do charuto.
Os colegas ficavam como fascinados
por aquele aparente desafio às leia da
gravidade e quase esqueciam o que
estava a ser dito...”.
Como não há uma página aborrecida neste livro, em que os havanos
entraram irremediavelmente na
vida do mais célebre político britânico de todos os tempos, é inevitável
chegarmos à Segunda Guerra
Mundial e à importância dos charutos
de Churchill: as medidas de segurança
para evitar o envenenamento do líder
britânico; as ofertas vindas de Havana,
as ofertas de charutos feitas pelos seus
compatriotas e pelos admiradores
como o multimilionário Samuel
Kaplan, seguem-se as peripécias dos
havanos que vinham de Cuba e que o
regime de Fidel Castro alterou a via
de abastecimento. A partir de 1946
Churchill viaja, numa doce reforma
que só interrompe quando volta
meteoricamente ao poder, em 1951.
Fuma, bebe e come do melhor, é um
ídolo consagrado. Tem no milionário
cubano Antonio Giraudier um admirador incondicional, que o abastece
até ao limite das suas posses, quando
todos os seus bens são nacionalizados
em Cuba.
A memória de Churchill é
indissociável dos seus charutos: as
suas relíquias de fumo vendem-se
em leilões, há esculturas dos seus
charutos, no fundo o seu verdadeiro
carburante e que determina a mania
churchilliana.
Era inimaginável uma leitura tão
estimulante em que o aparentemente
insignificante ganha todo o significado iconográfico. Afinal, aqueles
bens de consumo criaram a imagem
do político, deram-lhe a vibração e a
forma definitiva com que ele passou
à História, junto às suas obras, um
riquíssimo somatório de grandes
vitórias e um número não desprezível
de grandes desaires. Um sinal de
vitória com dois dedos, um charuto
entalado num sorriso, eis um país que
aceitou segui-lo em toda a provação
quando ele só prometeu “sangue,
suor e lágrimas”.
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Nº
TEMA PRINCIPAL
ANO
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O SOCIALISMO DO FUTURO*
DOSSIER EUROPA
A IDEIA DE REVOLUÇÃO
REVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZ
O INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIA
A EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONAL
DAS PRESIDENCIAIS AO GOLFO
DEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA?
O REGRESSO DOS NACIONALISMOS
A EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO?
O FIM DA POLÍTICA?
AMÉRICA! AMÉRICA!
A ALEMANHA E A EUROPA
A EUROPA, NÓS E OS OUTROS
A ESPANHA E NÓS
O FIM DE UM CICLO
A EUROPA E NÓS
VÁRIOS TEMAS
POR UMA EUROPA À ESQUERDA
O ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO?
O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃO
REGIONALIZAÇÃO E O PAÍS
O REGRESSO DO POLÍTICO
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOIS
A GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULO
O ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA
ESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA?
JUSTIÇA FISCAL
A GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO
A EUROPA DEPOIS DE NICE
A DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIO
O MUNDO EM CRISE
SER MINORIA, HOJE
A ESQUERDA NA ENCRUZILHADA
A CRISE MUNDIAL
UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA
O ISLÃO E A MODERNIDADE
EDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS?
OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESA
ESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇAS
LIBERALISMO E DEMOCRACIA
PODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVIL
A EUROPA DEPOIS DE LISBOA
QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?
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2008/9
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*O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10
anos antes, publicados no nº 1)
NOTA: Os assinantes que queiram adquirir números antigos e anteriores à sua assinatura beneficiam de
25% de desconto na aquisição de cada exemplar.
Na aquisição de uma colecção, à excepção do nº 1 – esgotado –, beneficiam de 50% de desconto.
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Sob a Crise...
Eduardo Lourenço
Uma Crise Inesperada mas Prevista
Guilherme d’Oliveira Martins
A Primeira Grande Crise do Século e o Eclipse do Liberalismo
Paulo Pedroso
O Festim Está Suspenso
Joaquim Jorge Veiguinha
A Crise Financeira Global: O que é Necessário Fazer?
Christopher Rude
Uma Estratégia de Esquerda para Enfrentar a Crise
Augusto Santos Silva
Perante a Crise: Problemas e Perspectivas do Emprego,
do Trabalho e da Equidade em Portugal
António Dornelas
Trabalho e Sindicalismo – Os Impactos da Crise
Elísio Estanque
Simone Weil: a “Marciana”
Fernando Pereira Marques
A Metodologia Revolucionária de Charles Darwin
Joaquim Jorge Veiguinha
Debate sobre a Reforma do Sistema Eleitoral
Organização: André Freire, Manuel Meirinho e Diogo Moreira
Estado e União Europeia: Ideologias e Debate Intelectual em torno
do Socialismo e da Igualdade de Oportunidades
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Manifesto:
Pela Inscrição Democrática da Cultura na Sociedade Portuguesa
Fernando Mora Ramos
Livros, Percursos e Imaginários Eruditos
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A Passividade Cubana perante Guantanamo
Alfredo Margarido
Bento XVI: Um Papa que também Vestia a Farda das SS
Alfredo Margarido
As Voltas que o Capitalismo (não) Deu
Joaquim Jorge Veiguinha
Os Charutos de Churchill
Beja Santos
ISSN 0871-7982
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