Livro Orlando Ortega Diagramado - Cibai Migrações | Centro Ítalo

Transcrição

Livro Orlando Ortega Diagramado - Cibai Migrações | Centro Ítalo
ORLANDO ORTEGA
MEMÓRIAS E AVENTURAS DE UM MIGRANTE
- sua vida e sua arte Observações:
1. o INÍCIO DE CADA TEMA (Sumário, apresentaçao, introduçao e
capitulo) sem iniciar na página impar
2. Normalmente até a Introdução não vai a numeraçao das páginas
3. Sempre que ficar uma pagina par em branco , não colocar o
numero da página e nem no inicio de cada capitulo.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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RENASCENÇA
CIBAI MIGRAÇÕES
Capa:
Editoração da capa: Exclamação
Impressão e acabamento: Renascença
Edição: Renascença e Núcleo de Pesquisa do CIBAI Migrações
(Ficha Catalográfica)
Todos os direitos reservados ao Autor
Orlando Ortega
Fone:
E-mail:
2012
Edições Renascença Ltda.
Rua Conde da Figueira, 98
91330-590 Porto Alegre – RS
Fone-Fax: (51) 3334.4399
CNPJ 89 539 175/0001-85
CIBAI MIGRAÇÕES
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Site: www.pompeiacibai.com
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Sumário
Palavras da língua espanhola usadas no texto / 7
Apresentação do Autor / 9
Apresentação do CIBAI Migrações / 11
Introdução / 13
1. Histórias de infância / 15
A espera do pai marinheiro / 15
Salvo pela curandeira / 17
Vivendo numa favela / 18
Dr. Corrêa, o prático / 20
Catador de cobras / 22
Seu André / 24
O serralheiro Espanhol / 26
As confusões da vizinhança / 28
2. Os desafios do estudo / 31
O Reitor / 31
Enfim na sala de aula / 33
No trono do “banco branco” / 36
A prática na serralheria do Antonio / 38
A doença / 42
O adeus de Antonio / 46
Contato com os circenses e o atropelamento / 49
Práticas circenses / 52
Servindo o Dr. Venavides / 53
De volta à rotina das compras matinais e a história do Mudinho / 57
Os dois amigos / 63
Vendedor na estação de trem / 65
Reinício das aulas / 67
A apresentação circense na festa da Igreja / 71
A colheita da punsiga / 74
3. No mundo dos negócios / 77
O homem misterioso e o convite / 77
Conselhos da mãe / 79
Aventuras de um vendedor de pomada / 82
Viagens ao desconhecido / 87
Novas táticas de venda / 92
O pai de Manolo / 94
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O fim da parceria com Manolo e a morte da cobra Carolina / 96
O adeus a Elida / 100
4. Novas peraltices e o retorno aos estudos / 101
O senhor Maturana / 102
As brincadeiras e os corretivos / 102
A luta pela recuperação de vinte centavos / 104
As safadezas dos irmãos / 106
De volta às aulas / 107
Músicos e sua fama de ladrões de galinha / 109
A bicicleta, presente do Polaco / 110
As lembranças dos amigos / 113
Secretário de dona Maria / 118
Descobrindo um avô Advogado e Prefeito / 121
As histórias de dona Maria / 122
Práticas políticas de Seu Júlio / 127
A má fama de Angelito / 131
Novas andanças / 134
Bananas por cigarro americano / 138
Férias escolares / 139
As viagens nos finais de semana / 143
Acidente de ônibus: salvo milagrosamente / 144
O recomeço / 152
Consertador de fogões / 155
Um presente para a mãe / 159
O violeiro / 162
As histórias de Ocoró / 166
O relato de experiências / 171
Expectador escondido das touradas / 172
As agruras na casa de um aristocrata / 175
O enfrentamento do touro / 179
As lembranças / 181
A missa de sétimo dia / 187
Dificuldades financeiras / 189
5. Fuga para outro País / 195
Em busca de dinheiro para a mãe / 195
Escondido no navio / 196
Noutro país: a ilusão / 198
Alucinação e novas amizades / 199
Engraxate e malabarista / 202
Dormindo sob o banco da praça / 204
Enfim, um banho / 205
Pernoitando na casa da Gina / 207
Indo para o interior / 210
O irmão de Biche / 211
Novos caminhos / 214
No teatro paroquial e amizade com motoristas / 219
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No porto, dormindo ao relento / 222
Retido e encaminhado ao Consulado da Colômbia / 223
Confinado no Consulado / 227
O show / 229
Hóspede na casa do Cônsul / 231
Com passaporte consular / 236
Animando festa religiosa / 238
As confusões de Helena / 239
Soldador / 241
Celebrando festa pátria / 243
Amigo do oftalmologista / 245
Saudades da mãe / 246
Despedida / 247
6. O regresso / 253
A alegria de pisar na terra pátria / 253
De volta! Nos braços da mãe / 256
Reencontro com os ex-professores / 259
A dúvida dos moradores da vila: artista ou ladrão? / 261
A visita à dona Maria Ruiz / 267
Trabalhando no posto de gasolina / 268
Salvo milagrosamente do incêndio / 270
Maio, mês das mães / 272
No Juizado de Menores / 274
Autorização para viajar ao exterior / 280
Novamente girando o mundo / 282
Voltando à Barranquilha: a carta do Cônsul / 286
Outra vez no exterior / 289
Na casa do chefe da gendarmeria / 290
Apresentação na residência dos religiosos / 292
Exposição e show de contorcionismo / 298
Compras, lazer e retorno / 300
A promessa / 304
O passado / 305
Vai e vem nas fronteiras / 306
Apresentações de rua para casas de teatro / 307
Sucesso e prêmio / 311
7. Novos horizontes se abrem: Europa e Alaska / 313
Na Europa / 313
Idas e vindas / 316
As viagens temerárias em pequenos aviões / 318
O risco / 320
O convite do Padre Missionário / 321
Atravessando o canal do Panamá / 323
O frio / 325
No trem / 326
O ronco dos companheiros de viagem / 327
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Viagem de trenó na terra do eterno gelo / 329
A rotina na Missão / 331
Aventuras no País dos esquimós / 332
O retorno da 1ª Missão e novas viagens / 338
O conflito da liderança canina / 340
A saudade decide / 341
8. O retorno à casa materna / 345
As angústias da volta / 345
As peripécias de Túlio / 346
O encontro com Efraim / 349
A tourada e a fuga noturna do hotel / 352
O adeus ao baú e a Efraim / 354
O recomeço / 357
A revolta dos indígenas / 360
Macareno / 361
Novos obstáculos / 364
Artista, serralheiro e mestre / 366
Festejos natalinos / 370
A escola de aprendizes e o conflito entre paróquias / 371
Imigrante, um intruso? / 372
A surra, o trauma e o fechamento da escolinha / 375
Empresário falido / 376
O desejo de uma companheira / 378
Com as bênçãos da mãe / 384
Os desafios da enchente / 389
Com a família da Regina / 390
Noiva e revolução / 393
A fuga / 400
Nem no inferno e nem no céu: no hospital e roubado / 401
No cassino / 403
9. A vida se renova em Porto Alegre / 407
O encontro da companheira e a organização do trabalho / 407
Acolhendo migrantes / 408
A esposa secretária / 411
Casa da Cultura Colombiana (CCC) / 412
Cuidados com os olhos / 413
Novo élan voltado para a comunidade / 418
Cônsul Honorário da Colômbia / 427
Fonte Talavera: um sonho / 430
Perdas dos recuerdos e documentos / 431
Agradecimento a Deus e a minha Santa Sara Kaly / 434
O Autor / 435
Coleção 1 e 2 / 437
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PALAVRAS DA LÍNGUA ESPANHOLA
USADAS NO TEXTO
Alcatran – piche
Antipiodista – circense que trabalha com os pés
Arepa – broa de milho
Ballenato – ritmo musical colombiano
Balvanera – Nossa Senhora de Balvanera
Bambuco – ritmo musical colombiano
Banderilha – tipo de arpão aplicado no morrilho do touro nas touradas
Baranda – sacada
Buleria – ritmo musical espanhol
Burladeiro – local onde o toureiro se protege na arena
Cachibache – coisa que não presta
Caporrosa – tipo de espuma de queda d’água
Chaval – guri
Chicarrón – toucinho frito
Chicuelina – passo taurino
Chinego – arabescos utilizados na serralheria como adorno
Chinquinquirenha – música antiga colombiana
Conquilha – matriz para fabrico de peça na fundição
Currege – apelido de guri
Cumbia – ritmo musical colombiano
Dios – Deus
Erutar – arrotar
Faena – movimento do toureiro nas toureadas
Galleta – bolacha
Gaonera – passe taurino
Grifo – torneira
Guabina – ritmo musical colombiano
Guaiavera – tipo de camisa
Hermanito – irmãozinho
Horno – forno
Juan – João
Liteira – andor onde se conduz uma imagem de santo
Lleva – leva
Malabares – arte do malabarista
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Mamita – mãezinha
Merengue – doce ou tipo de dança
Mono – macaco
Monosábios – trabalhadores que retiram o touro morto na arena
Monteira – chapéu de toureiro
Nhatos – nariz chato
Paella – tipo de comida
Paisa – os nascidos em Antioquia, Colômbia
Paisanito – conterrâneo, da mesma terra
Pase – movimento taurino nas touradas
Patacon – banana da terra, frita, amassada e refrita
Pativilca – pessoa que circula a pé ou condução até chegar a algum lugar
Pileta – piscina
Pan – pão
Porro – ritmo musical colombiano
Postim – grandeza
Punsiga – folha de planta que colocada em água para ferver, produz uma
água como anil.
Ralluella – jogo infantil, brincadeira
Reales – reais
Recuerdo – lembrança
Redondel – praça redonda para toureadas
Regoldar – arrotar
Ruedo – o mesmo que redondel, praça redonda para toureadas
Sancocho – tipo de sopa tradicional na Colômbia
Sonson – municipio de Antioquia, na Colômbia
Sueño – sonho
Tamales – comida típica da Colômbia
Tarima – cama dos esquimós
Tauromaquia – a arte de tourear, tudo o que se relaciona com toureadas
Taxidermista – empalhador de animais
Tenta – aposta, jogo
Tiempo – tempo
Touretes – touros pequenos
Touril – local onde se guardam os touros que vão ser toureados
Tutuleno – assim chamavam o pipi das crianças
Usureiro – quem comprava a fiado e não conseguia pagar
Veronicas – um passe taurino nas toureadas
Viejita – velhinha, senhora idosa
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Apresentação do Autor
E
sta é minha vivência, contada como se fosse um conto sem nexo.
Não contém nenhum tipo de filosofia, nada instrutivo, menos ainda
um guia para seguir um bom caminho, ou orientação para negócios
e nem para ser um bom profissional.
Escrevi utilizando o mais simples português, nada de palavras
complicadas, primeiro porque não sou erudito e também porque não sou
muito conhecedor da gramática portuguesa. Escrevi esta minha vivência a
pedido de amigos, que sempre queriam saber mais e mais da minha vida,
e quando algo lhes contava das minhas aventuras e das minhas andanças
por este mundo de Deus, me diziam: – Ortega, esta tua história merece um
livrinho.
Fiz várias tentativas, mas não tinha nascido para ser escritor. Até
que um dia deixei a preguiça de lado. Apertei o botão cerebral e surgiram
alegres as reminiscências deste abrir de olhos e descobri que eu existia
neste mundo, que eu morava numa maloca de uma vila miserável, que
tinha sido pegador de cobras para vender, fazer compras para os vizinhos,
tão pobres como eu, até encontrar meu primeiro amigo, um espanhol
chamado Antonio. Fugir de casa, virar o mundo, ter minha indústria, até
chegar a Cônsul.
As minhas andanças por este mundo me ensinaram um pouco de
psicologia, a conhecer os verdadeiros amigos no olhar, no falar, até no
sorriso. Conheci pessoas, que por mais que tivessem estudado, chegaram
num determinado patamar e daí não conseguiram subir nem mais um
degrau. Conheci vários, eles são os donos da verdade. São eles os que
sabem tudo, são radicais nos seus pontos de vista, para eles o que os
outros falam é pura mentira. São os fracos, fáceis de convencer, para
ingressar em seitas, religiões e crendices, eles acreditam que as imagens
de santos suam e que os galos têm dente de siso. Tenho um amigo desse
tipo, eu sentia nele o mapa acima descrito. Num dia, sem eu querer, ouvi o
que ele falou para outro amigo: – Tudo o que Orlando fala é 90% pura
mentira. E ele trata sempre de dizer para as pessoas que me conhecem:
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os verdadeiros amigos acreditam em mim, os falsos nele, estes são fracos,
se deixam convencer. Eu não me importo, ele continua meu amigo mesmo
assim, e faço de conta que nada sei.
Uma coisa aprendi, que é melhor demonstrar ignorância e não
sabedoria, porque aquele que se apresenta como sábio, termina sendo um
ignorante, e aquele que se apresenta como ignorante, ele termina sendo
algo que eu não sei o que mais.
Ortega
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Apresentação do CIBAI
Migrações
Com a presente publicação, oferecemos aos leitores o livro
Orlando Ortega: memórias e aventuras de um migrante - sua vida e
sua arte. Com ele, nada mais queremos que simplesmente dar a conhecer
a vida invisível de um migrante que reflete a experiência de milhares de
outros que, por diferentes necessidades, devem colocar-se a caminho,
deixando sua pátria, sua cultura e sua terra na busca de uma melhor
qualidade de vida, ou unicamente, para viver.
Até o presente momento, a maioria de nossas publicações da
Coleção Pastoral & Migrações, foram frutos de pesquisas voltadas para
análises e tendências de realidades coletivas, que atendessem a esfera
acadêmica, os diferentes níveis institucionais da sociedade e os poderes
constituídos.
Durante esses mais de 50 anos de serviço com os migrantes
aprendemos que todo aquele que parte para uma terra estrangeira aspira,
junto com o “trabalho e o pão”, ser reconhecido e acolhido como pessoa e
cidadão, com seus direitos e deveres. Por isso, o CIBAI Migrações dá
continuidade as suas publicações, com nova série Coleção Histórias de
Migrantes, onde enfatiza um olhar voltado para o interior de quem migra:
seus sonhos e dramas.
Ao Senhor Orlando Ortega nosso agradecimento por tão belo testemunho.
Pe. Lauro Bocchi
Diretor do CIBAI Migrações
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Introdução
onsiderando os padrões literários oficiais este texto encontraria
fortes obstáculos para ser publicado: a pontuação foge das regras
como também a exposição dos acontecimentos, marcada por
frequentes repetições. Se quiséssemos modificar o texto retiraríamos a
força poética e a qualidade do testemunho.
C
Como os migrantes que, dentro do ordenamento jurídico de
qualquer país sofrem limitações, no entanto se fazem presentes em todos
os continentes, cruzam toda e qualquer fronteira em nome de uma
humanidade sedenta de vida, com seu rosto de gente suado, empoeirado,
marcado pela dor, o mesmo acontece com este texto: não tem lugar
privilegiado na estante de uma biblioteca, mas está bem nas mãos dos
familiares, dos amigos, dos migrantes e das instituições que acompanham
os migrantes.
O livro mostra como se pode, pela inteligência, força de vontade e
pela paciência de um tecelão, enfrentar tudo sem preguiça, sendo amável
e sempre disposto a aprender. Ortega nem pode frequentar a escola por
ter uma enfermidade que lhe reduziu a visão, mas suas mãos iluminadas
pela agudeza intelectual fazem milagres. A desgraça é oportunidade, porta
que se abre, nova vereda para o futuro por estar acordado (levanta cedo),
por ser disponível (faz as compras para as vizinhas, puxa o fole para o
espanhol), por querer ajudar a mãe na subsistência da família em extrema
pobreza (torna-se catador de cobras, cuidador de crianças e idosos,
carregador de malas e mercadorias, vendedor de pomada), por querer
aprender (pratica mágicas, artes circenses, habilidades de toureiros e até
membro de conjunto musical), por aproveitar suas habilidades de
trabalhador e sem medo de se lançar (torna-se bombeiro, serralheiro,
mestre de escola profissionalizante, escultor). Para ter um ganho estável
no apoio à família (aventura-se em dirigir trenó no intenso frio do Alaska).
Sempre curioso, sempre correto, sempre serviçal, aprende, tornase amigo de todo mundo e cria uma rede inesgotável para o próprio
sustento e de sua família.
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O texto não é um simples relato de lembranças, de aventuras ou o
desabafo de um eu vencedor que enumera troféus. Sem atitude
moralizadora dirige-se ao leitor ouvinte para mostrar que crise mesmo há
somente quando falta auto-estima e criatividade. O problema não está
fora, mas dentro de nós. Ortega não culpa os outros pelas desgraças e
nem procura explicações para mascarar a preguiça e o medo. Proclama
que numa sociedade marcada pela exploração é possível viver criando
espaço solidário e fraterno. É o que acontece em Porto Alegre. Ortega
decide organizar-se com um trabalho fixo, fundar a sua família, construir
uma casa, abrir espaço para os migrantes sem rumo e os conterrâneos
imigrantes. É o gesto da solidariedade que une amparo físico e espiritual
no reconhecimento que a cultura de cada povo é fundamental para sua
vida e que cada povo deve pôr em comum sua cultura para o crescimento
de todos os povos.
Amigo leitor, aqui está um testemunho singelo, até ingênuo, de
uma vida de migrante. Toda sugestão que quiseres fazer será bem
acolhida para aprofundar a “transgressão” do migrante, superando todos
os percalços, em busca de cidadania plena como foi a caminhada de
Ortega.
Porto Alegre, 2012
Jurandir Zamberlam, Giovanni Corso e Joaquim Filippin
Editores do CIBAI Migrações
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HISTÓRIAS DE INFÂNCIA
E
u conto o que minha mãe me contou e que contava para os vizinhos,
para os amigos e também contava para as pessoas quando se
falava a meu respeito.
A espera do pai marinheiro
Contava que era 27 de agosto, dia em que se completava um ano
de eu ter chegado a este mundo, ou seja, era o meu primeiro aniversário.
Segundo ela, nesse dia, madrugáramos, porque coincidentemente,
chegaria meu pai, que trabalhava num navio petroleiro. Ele chegaria ao
porto de Buenaventura, que está a 130 quilômetros da cidade de Cali,
onde morávamos. Ele pegaria o trem e em 6 horas estaria na nossa
cidade. Éramos três irmãos e eu era o caçula. Vestidos a capricho na
estação ferroviária, esperávamos a chegada do pai, que trazia presentes
para nós, inclusive para a mãe. O dia foi de passear, comer sorvete, ir ao
parque de diversões. Tudo era alegria, pois era a chegada do pai e meu
aniversário!
Ela contava que eu era muito tagarela e no parque falava com as
pessoas e elas me achavam muito engraçado e simpático. Contava que as
meninas adolescentes me pegavam no colo e as pessoas adultas também.
Ela me dizia que sentia muito orgulho de ver a atração que eu causava e
meu pai era um verdadeiro pai coruja.
Já à noite, eu estava um pouco febril e eles acharam que a causa
era o corre-corre do dia, porém não era assim, os dias se sucediam e eu
continuava de mal a pior, o desespero da minha mãe era muito grande,
porque meu pai tinha que viajar e ela estava prestes a ganhar o quarto
filho e eu naquele estado deprimente: era puro osso, um verdadeiro
ratinho, nada de carne no corpo, os pezinhos sempre encolhidos e com o
dedinho indicador sempre no nariz. Estático, parecia mais um cadáver, que
de vez em quando, emitia um leve gemido, talvez de dor. Os médicos não
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conseguiam descobrir a minha doença, por mais que tentassem remédios,
nenhum fazia efeito, e a febre às vezes diminuía, outras vezes aumentava.
Meu pai, quando voltava e ficava em casa fazia serviços de
marcenaria, enquanto o navio onde trabalhava era descarregado.
Desiludido e cético quanto a minha melhora, fez o meu caixão e orientou
minha mãe para, no caso de minha morte, e na ausência dele, como
deveria proceder ao meu enterro.
Minha mãe me contava que assim chegou outro 27 de agosto, um
ano após o primeiro. Ela me asseava, chorando e lembrando que, tão lindo
tinha sido o meu primeiro aniversário, um ano antes: o pai presente, todos
juntos, tanta alegria e neste ano, a tristeza e a espera da minha morte.
Meu pai ausente e minha mãe com mais um filho recém-nascido.
Ao me contar isso, ela se emocionava. Eu tratava de acalmá-la,
fazendo uma brincadeirinha, mas estava mais interessado em saber como
ainda estava vivo neste mundo de Deus e insistia para que continuasse.
Então ela contou que me deu um banho com água morna, me perfumou
com talco, me enrolou num pano branco e me deitou numa travessa de
madeira, tendo o cuidado de colocar almofadas de algodão. Concluindo o
serviço, colocou-me na entrada da sala, lugar que sempre me colocava,
porque o sol penetrava na maior parte da manhã. Lembra-se rindo que,
num determinado momento, viu um tremendo cachorro, do tipo policial,
entrar na sala e me cheirar. Diz que pegou uma vassoura e deu-lhe uma
vassourada com tanta força, que o dito voou até o meio da rua, e quando
caiu, só fez “au”, saiu correndo e gritando “ai, ai, ai...” Me arrepio todo, só
de pensar que a intenção daquele cachorro seria devorar-me.
Estava muito interessado no final e ela continuou: é claro que
comecei a ver uma forma de colocar algum empecilho na porta para evitar
um novo susto. De repente apareceu uma senhora pedindo esmola. A
senhora ficou me olhando e questionou: – O menino está doentinho, não
é? – Sim senhora. – A senhora não sabe o que é que o menino tem, não
é? – Não senhora. A minha mãe ficou um pouco pensativa e triste e me
falou: parece que estou vendo aquela velhinha e lembro-me quando ela
me disse: – Vizinha, o que o menino tem é mau olhado e do bobo. Trate
por mau olhado que o menino tem chances de se salvar! Minha mãe
continuou: Corri, peguei o que primeiro encontrei, pão, arroz, feijão,
farinha, bananas e algum dinheirinho, dei para a senhora e lhe agradeci.
Ainda antes de ir embora tornou a me dizer: – Trate-o por mau olhado que
o menino há de se salvar.
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Minha mãe chamou às pressas sua amiga, que era da mesma
terra que ela e se tratavam por comadre: – Comadre, por favor, me cuida
meus meninos, é que... E lhe contou da velhinha que tinha lhe dito que,
num determinado lugar, tinha uma senhora que fazia essas curas.
Salvo pela curandeira
Ela emocionada continuou me contando e disse: - Uma vez a
minha comadre na minha casa, saí correndo à procura da dita senhora.
Não era perto, mas a encontrei. Viemos quase correndo. Quando em casa,
olhou para ti e me disse: – É mesmo mau olhado e do bobo. Eu já volto,
não se preocupe que o menino está salvo.
Saiu e minutos depois regressou com uma quantidade de ervas.
Fez uma ervagem, amassando-as. Coou e deu um cálice para tu tomares,
depois, com a mesma ervagem, deu três sopros na tua moleira, e orientoume para te dar outro cálice três horas mais tarde. Aconselhou-me a não
dormir porque a qualquer momento tu deverias expelir tudo que estava
dentro do teu estômago e teria que ser limpo imediatamente. A senhora foi
embora prometendo voltar no dia seguinte.
Minha mãe me contou que, num determinado momento, estiquei
os pés, fiz um pequeno esforço, saindo um ruído da minha garganta. No
mesmo momento, expeli alguma coisa como se fosse uma pasta verde,
junto com sonoros gases. Embora advertida que estava minha mãe o
susto foi pouco. Sua comadre, que não quis deixá-la sozinha, ajudou-a.
Minha mãe continuou a me contar: - Te limpamos, tu esticaste os pés, tirou
o dedo do nariz e nos olhavas, como querendo descobrir quem éramos.
Meia hora depois, com um gritinho tênue, quase ininteligível, disseste: Mãe, tô com fome! A comadre e eu, chorando, corremos para a cozinha. A
orientação era para te dar um chá preto com leite e bolachinhas de soda
(galletas de soda, na Colômbia. Deve ser por isso que gosto tanto destas
bolachinhas. Quando chego na Colômbia, procuro sempre comprar).
Acomodamos-te de forma que tu ficasses quase sentado, encostado em
travesseiros. Eu te dava o chá de colher e tu, com tuas próprias mãos,
seguravas as bolachas e comias. Minha comadre e eu chorávamos de
alegria. Nós duas ficamos te dando carinho, felizes ao ver a rápida
recuperação. No fim, pegaste no sono e nós duas vencidas pelo cansaço
também pegamos no sono. Uma batida na porta nos acordou. Era a
senhora Curandeira que trazia mais ervas. Tu dormias em uma paz divina,
a senhora aprontou mais um banho de ervas e mandou preparar um
mingau de maizena com leite, porque acordarias com fome. Depois do
banho de ervas e os três sopros na moleira, após te secar, vestir e
perfumar, te sentou e tu, com tuas próprias mãos, sem nenhuma ajuda,
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tomavas o mingau e comias as bolachas. A senhora olhava para ti e,
tentando brincar contigo, pronunciava estas palavras: – Que é daquele
gurizinho que ontem estava para morrer e olha ele ali comendo! Que é
dele? Tu nos olhavas sério, a tagarelice e o sorriso estavam apagados.
Minha mãe continuou: - Em um determinado momento, perguntei
para a senhora se ela conhecia aquela velhinha que a tinha recomendado.
Dei-lhe explicações de sua fisionomia, mas não soube me dizer quem era.
Queria recompensá-la. Fui de casa em casa perguntando a meus vizinhos,
porém nenhum deles tinha visto a velhinha pedindo esmola por aqueles
dias. Quando saía na rua, procurava a dita senhora, mas nunca mais a
pude encontrar. Paguei a Curandeira o que me cobrou, que por certo foi
muito pouco, porém não quis receber além do que cobrou e me deixou a
lista dos cuidados que deveria seguir para tua rápida e sadia recuperação.
Deveria te alimentar com leite de cabra. Teu pai contratou um velhote,
dono de cabras, para que, durante seis meses, trouxesse o leite. Tu
cresceste, engordaste, ficaste forte, tornaste a tagarelar, a sorrir e a ser
simpático a todos, para a alegria do teu pai, minha e de minha comadre,
cujo nome era Lúcia Klinger. Eu a chamava de comadre e vocês,
carinhosamente, a chamavam de tia Lucha.
Nada disto eu vi nem senti, foi a minha mãe que me contou. E
assim se destacam os meus dois primeiros 27 de agosto.
Vivendo numa favela
Que horas são, que dia é, em que mês estamos, que ano é,
quantos anos eu tenho? Nada disso sei. Já não moramos na mesma casa,
os vizinhos são outros, o bairro é um aglomerado de casinhas mal feitas, a
maior parte forradas com papelão, outras com madeiras mal colocadas,
outras ainda eram forradas com latas de banha, que eram abertas e
pregadas e que também cobriam muitos telhados. Ruas não existiam,
eram fendas cheias de mato.
Hoje fecho os olhos e relembro aquele símbolo da pobreza, a
gurizada toda andando descalça, quase todos usando shortezinhos bem
curtinhos. Andávamos sempre cabeludos, salvo quando um senhor de
nome Marcelo reunia a gurizada e nos cortava os cabelos. Lembro-me um
pouco do funcionário dele, um baixinho, magro, barba rala, sarará, com
falta de dentes, mal vestido e sujo. Com um forte hálito provocado pelo uso
do cigarro. Embora o corte do cabelo fosse mal feito, era um descanso
para nossas mães.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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A minha casa era igual a tantas outras, feita pela minha mãe, com
a ajuda de algumas vizinhas. Também era forrada de papelão e era de
uma peça só. Interiormente, havia uma cama de casal, onde dormíamos
os cinco irmãos homens. Em outra cama menor dormia minha mãe com
minhas duas irmãs. Havia também uma caixa grande de madeira, com
quatro pés, que servia de mesa, e era onde minha mãe passava a roupa
dos fregueses. Era lavando e passando roupa que nos sustentava. Água
encanada não havia. Distante umas duas quadras da casa o governo tinha
colocado uma torneira e todo casario se abastecia dali. Esgoto cloacal
também não existia. Cada casa fazia um buraco e colocava uma tampa de
madeira. Ali eram feitas as necessidades. Também eram usados pinicos e
depois a sujeira era jogada nos buracos. Para nós homens, nada disso era
problema, pois fazíamos as nossas necessidades até no mato. Quando
sentíamos vontade de fazer xixi, puxávamos o pipi para fora e fazíamos
xixi caminhando e rindo de nossa pouca vergonha. Ao tirarmos o pipi era
costume dizer: um colombiano não mija só! Para nós homens, tudo era
muito fácil. Fazer as nossas necessidades não tinha nenhum problema,
tanto no mato como em nosso buraco, tudo estava solucionado. Quem
sofria muito eram as meninas, que tinham medo de ir ao banheiro, ou seja,
ao buraco, porque, como em volta tudo era mato. Às vezes escutávamos
os berros das meninas. Corríamos, armados de paus, porque sabíamos
que os berros eram por causa da existência de cobras. Quase sempre
conseguíamos matar e, imediatamente, corríamos com a cobra morta para
levar a um tal senhor Corrêa, que vendia ervas, chás, pomadas para todos
tipos de doenças. Vendia também filtros para se fazer amar, para
conseguir odiar. Muita gente ia à sua procura em busca de remédio para
algum mal e, pelo que me lembro, todos eram curados, conseguiam se
fazer amar ou conseguiam odiar, segundo o que se comentava.
A casa do Sr. Corrêa ficava aproximadamente quatro quadras da
nossa choupana. Ocupava uma casa ampla, de construção de aparência
muito antiga, porém muito conservada e bem pintada. Na frente tinha um
jardim bem cuidado e na entrada havia duas amplas portas que davam
bastante luminosidade a seu interior que era um salão amplo, onde se
viam muitos bichos empalhados. Também havia cobras empalhadas e
algumas vivas em gaiolas. Tinha muitos passarinhos em uma gaiola, que
ocupava toda a altura do pé direito da construção, de aproximadamente 2
metros e 80 centímetros por uma largura de 6 metros, sendo sua
profundidade de aproximadamente 3 metros. No interior da gaiola, no
centro, havia um tipo de pileta que servia de bebedouro para os
passarinhos, onde a água jorrava continuamente. Ao lado da pileta, em
dois vasos grandes, havia duas árvores de regular tamanho. O chão era
de cerâmica. Havia vários depósitos de comida, alguns com alpiste, outros
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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com frutas e outros com miolo de pão. Eu ficava horas distraído ouvindo o
barulho e o sobe e desce alegre dos passarinhos, outros comendo, alguns
tomando banho. Tudo dentro dessa gaiola era bem organizado e lindo de
se ver. Entre a gaiola dos pássaros e a gaiola das cobras, a distância era
de aproximadamente 1 metro e 20 centímetros, e apesar de estar distante
da gaiola dos passarinhos, talvez elas vivessem sonhando com um deles
nas suas presas.
Dr. Corrêa, o prático
Na parte da frente do prédio e na parte superior das portas, havia
um letreiro de aproximadamente 5 metros de largura por um metro de
altura, com letras caprichosamente desenhadas e com sombras, de onde
se lia: Herbanário Dr. Corrêa - Consultório.
Ao entrar no amplo local, notavam-se nas paredes laterais,
prateleiras com divisões, onde de um lado, estavam caprichosamente
arrumados pacotinhos de chá, com seus respectivos nomes e a utilidade, e
na outra parede lateral, também com divisões, havia molhos de ervas com
diferentes nomes e para diferentes curas. Também havia em vários
lugares, couros secos de cobras de variadas cores. Em uma armação de
vidro e com várias gavetas, havia uns pós de diferentes cores, vermelho,
laranja, branco, cinza, cada um com cheiro diferente e utilidade também
diferente. Em caixas de madeira, colocadas de forma inclinada, havia
pedras parecidas com enxofre, umas amarelas, outras brancas, algumas
quebradas e outras inteiras. Em um poleiro improvisado, estava uma
coruja empalhada, com olhos bem abertos, como que olhando os
visitantes. Uma linda arara e um pequeno louro, ambos empalhados, se
encontravam perto da coruja. Caixas com sementes, presas de javali,
colares de penas e caroços. Ao lado direito, quase à entrada e a guisa de
dar boas vindas aos visitantes, estava um esqueleto do tamanho de um
homem de um metro e 65 centímetros de altura. Nunca pude saber se era
de um ser humano ou se era artificial. Ao entrar, a primeira coisa que se
sentia, o olfato era atingido por aquele cheiro de ervas misturado com
outros tantos cheiros. Era só o primeiro impacto, em seguida a gente se
acostumava.
Quem mantinha tudo limpo e organizado era a esposa do Dr.
Corrêa. Sempre estava ocupada com a organização e limpeza de tudo. O
Dr. Corrêa era o contrário da esposa, dona Dora, assim ela se chamava.
Tudo que ele pegava para mostrar para a freguesia, deixava em qualquer
lugar. Dona Dora, que estava sempre atenta, recolocava novamente no
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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seu respectivo lugar. A dona Dora era forte, alta, com 1 metro e 68
centímetros de altura, pesava 110 kg, era branca, de cabelos castanhos e
ondulados, dentes não muito brancos, porém bem cuidados, apesar de ter
um nariz arrebitado. Seu rosto era bonito. Vestia-se com elegância e
sempre estava perfumada. O Dr. Corrêa era o antagônico dela, era
baixinho e magro, a altura de 1 metro e 64 centímetros e o peso de 64
qulos, seus cabelos eram pretos, miudamente encaracolados, o nariz
grego, olhos claros, pequenos e com um certo olhar picaresco. Um pouco
barrigudo, seus dedos da mão, indicador e médio, eram amarelos, igual
aos dentes, de tanto que fumava. Era muito descuidado com sua forma de
vestir, o cinto estava mais na barriga que segurando as calças. Os dois
eram boa gente, muito humanos. Todos que chegassem para lhes pedir
algo, sempre levavam. Quem fazia todo o serviço doméstico, inclusive
cozinhar, era a empregada, uma mulata não muito alta, jovem, bonita,
segundo a fama que tinha. O marido era um crioulo magro, alto, que
também trabalhava na casa e era o encarregado da plantação das ervas e
da horta. Por certo, os dois eram muito eficientes, segundo diziam o Dr.
Corrêa e a dona Dora. Às vezes, nas segundas-feiras, quando os dois
chegavam ao serviço, ela apresentava alguns hematomas no rosto, ou nos
braços e até nas canelas, e ele aparecia com alguns arranhões na testa ou
também nos braços. Os patrões já sabiam do que se tratava. É que eles
gostavam de ir aos bailes e tomavam umas que outras. O crioulo, que era
muito ciumento, e já alterado, um pouco pela bebida, começava a cuidar
da mulher, pois ela despertava interesse com seu bumbum arrebitado e
seios protuberantes, especialmente quando o teor alcoólico se elevava.
Zecelino, que era o nome do crioulo, pegava a Elvira, nome da mulata,
puxava por um braço. Ela não queria ir embora. Ele quase a arrastava, às
vezes ela caía, ele a levantava e quando ele caía, ela o ajudava a se
levantar, e assim, entre tombos e tombos, xingamentos daqui e
xingamentos de lá, chegavam em casa, e aí a briga era aos socos. Ele a
insultava e ela outro tanto, e no dia seguinte, quando chegavam ao
serviço, a senhora Dora olhava para ela cheia de hematomas e lhe dizia: –
Já sei minha filha, brigaram outra vez! Já te disse minha filha, evita essas
festas, aí está teu rosto todo machucado! E olha teu marido, cheio de
esparadrapos, o que é isso minha filha?
Eu, naquela época, não entendia nada, calculo que deveria ter
sete anos. Hoje começo a relembrar todos esses fatos e lembro que a
mulata Elvira lhe respondia: – Dona Dora, não tem coisa mais gostosa
que, após um baile, bebida e uma boa briga, fazer amor até pegar no
sono!
Os médicos chamavam ao Dr. Corrêa de charlatão e algumas
pessoas também, porém ele não se importava. Em conversas com outras
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pessoas, ele dizia: – Eles cobram caro e curam poucos doentes, eu cobro
barato e curo muitos doentes!
Catador de cobras
Dr. Corrêa nos pagava três centavos por cada cobra morta e nos
prometia pagar dez centavos estando vivas. Meus amigos, que sempre
andavam junto comigo, eram muito dorminhocos, eu sempre fui muito
madrugador. Logo que me acordava, saltava da cama e saía à procura de
cobras no banheiro, às vezes as encontrava dormindo e com uma paulada,
aí ficavam. Para ter certeza que estava morta dava umas quantas
pauladas na cabeça. Depois a amarrava numa corda que carregava e a
levava arrastando até a ervaria, recebia meus três centavos e ficava muito
feliz. Gostava de ficar na horta conversando com Zecelino, que sempre
estava às voltas com a plantação, capinando, varrendo, plantando,
colhendo. Algumas vezes lhe ajudava a molhar as plantas, a maior parte
das vezes, quando ficava, ouvia a voz da Elvira chamando Zecelino para
tomar café e ela dizia: – Traz o negro para também tomar café. O negro
era eu, assim que me chamavam, por ser o mais negro do bairro e
também de meus irmãos. Conversava muito com todos eles na hora do
café.
O Dr. Corrêa me dizia que bom mesmo era pegar as cobras vivas,
porque mortas ele só aproveitava a graxa e vivas aproveitava também o
veneno. A graxa era para fabricar pomadas e o veneno para fabricar
antídotos para picadas de cobras e de animais com ferrão, era por isso
que pagava dez centavos por elas vivas. Como eu não sabia como pegálas vivas ele se prontificou a me ensinar. Primeiro pegou uma corda grossa
com aproximadamente um metro de comprimento, pintou uma ponta com
tinta verde escura imitando a cabeça da cobra e com tinta verde clara
imitando a garganta. Depois pegou duas forquilhas de uma árvore,
amarrou uma linha na corda, na parte pintada imitando a cabeça e
mandou-me puxar. A explicação era como pegar a cobra em movimento e
o mais perto da cabeça, aprisioná-la com uma das forquilhas, ela se
remexeria toda tratando de escapar. Com a outra forquilha e no que
poderia ser a garganta, a seguraria de forma que a cabeça ficaria imóvel.
Era o momento de pegá-la pela cabeça. Primeiro a prática era com a
corda, depois tirava uma das cobras da gaiola e eu tinha que aplicar o
ensinamento. Mesmo sendo elas muito velozes no chão, tornei-me um
craque pegador de cobras. Como era muito madrugador, cedo saía à cata
delas, até as farejava, dificilmente em uma semana não pegava uma.
Meus três amiguinhos, Piro, Bu e Niro fugiam de mim, porque uma vez, eu
quis lhes ensinar a pegar as cobras e larguei no chão uma que eu tinha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pego. Fugiram gritando e sempre fugiam de mim como o diabo foge da
cruz.
Um dia o governo mandou abrir e patrolaram as ruas. Com isso o
mato desapareceu e as cobras sumiram. Lá pelas tantas aparecia uma.
Madrugador que eu era, apenas me acordava, saltava da cama e saía
para a rua. As vizinhas já me conheciam e me chamavam: – Negrinho, me
compra um litro de leite! Outra: – Negrinho, tu voltas para me comprar o
pão de queijo! Sempre andava correndo. Com a abertura das ruas o bairro
começava a se organizar, já tinha armazéns. De vez em quando um carro
passava por lá. Eu crescia, ficava mais famoso entre a vizinhança. Quando
uma vizinha fazia um bolo ou um doce, um pedaço era levado para minha
mãe. Elas tinham pena de minha mãe, com sete filhos para criar e sem
marido! Eu nada entendia, sabia que os vizinhos falavam para minha mãe
que eu era querido, educado, prestativo, um amiguinho muito amado.
Sempre ganhava camisetinhas, shortezinhos ou algum brinquedo em
datas especiais. O Dr. Corrêa sempre aparecia para nos visitar e não
faltava o presentinho.
Lembro-me que um dia me levantei como de costume e antes de
sair de casa fui fazer xixi no banheiro e quando quis entrar, me dei com
uma cobra. Sem fazer barulho, peguei minhas forquilhas e pronto, meus
dez centavos estavam ganhos. Como era muito cedo e o Dr. Corrêa
estaria ainda dormindo, então, com a cobra na mão, fui pegar o dinheiro
para comprar o leite de uma vizinha, a senhora Georgina. Quando me viu
com a cobra, deu um berro tal, que acordou todos que ainda dormiam.
Dizia: – Negro, sai com esse bicho daqui! Levei um susto com o grito que
ela deu, que larguei a cobra. Como eu não tinha as forquilhas na mão, com
uma pedrada matei a cobra. Não eram mais dez centavos, agora eram três
centavos que receberia. Guardei a cobra enrolada em um papel e fiz as
compras para os vizinhos.
Tomei café na casa de dona Georgina que, me dando carinho,
dizia: – Negrinho, não anda com esses bichos que são perigosos!
Estávamos nessa conversa quando chegou o marido dela, que trabalhava
por perto, e que ao ouvirem os berros de dona Georgina um vizinho foi
chamá-lo. A notícia tinha avançado de forma vertiginosa. Levei a cobra ao
Dr. Corrêa e a notícia já tinha chegado lá. Quando ouviram minha voz,
dona Dora, Zecelino e a esposa, correram para saber dos acontecimentos
contados por mim, porque a notícia que tinham contado para eles, era que
eu tinha atirado a cobra no corpo de dona Georgina e que a cobra a tinha
mordido e que o marido dela e os vizinhos tinham matado a cobra e com a
própria cobra, depois de morta, tinham me dado uma surra. O Dr. Corrêa
já estava se aprontando e levando pomadas e remédios para usar no caso
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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de terem me ferido. Quando me viu entrar com a cobra, me olhou por todo
corpo, me perguntou da surra e de todo acontecimento que tinham
inventado. Imitei o tremelico, a bocarra que abriu dona Georgina e todos
seus arabescos. Exagerava um pouco e caímos em gargalhadas. Tomei
café de novo e o Dr. Corrêa me pagou cinco centavos pela cobra morta.
Seu André
Não sei por que me lembro de Seu André, calculo que era um
senhor idoso, morava em uma maloquinha construída com ajuda dos
vizinhos, era doente e tinha dificuldade para caminhar, era aposentado,
não tinha profissão, trabalhou por muitos anos em uma fábrica de papelão,
sempre fazendo limpeza. Ele me contava que conhecera sua esposa na
mesma fábrica, namoraram durante dois anos e casaram. Tiveram uma
filha, que estava casada, e tinha um casal de filhos, ele me contava tudo
de forma detalhada. O dia que lhe perguntei pela esposa, me disse que ela
se aposentara antes que ele, mas tinha fugido com um cara que também
trabalhava na fábrica e que tinha sido noivo dela muito antes dele a
conhecer, que nunca mais voltou para ver a filha, nem os netos. Contavame que sofrera muito com isso e que por um tempo, tornara-se um
bêbado. Minha filha, contava Seu André, me levou a morar com ela, porém
meu genro, todos os fins de semana chegava bêbado em casa e a
maltratava. Foi aí que descobri que eu, gambá, também trataria mal minha
mulher, foi então que parei de beber. Minha filha ama seu marido, ele é um
homem bem carinhoso para com ela e seus filhos, só que quando bebe,
perde a calma. Uma vez ele me insultou e disse que não queria me ver
mais na sua casa. Mesmo sabendo que ele estava bêbado, eu peguei
minha trouxinha e vim embora para a minha terra, agora estava com
muitas saudades. Ele tinha recebido muitas cartas de desculpas e pediram
seu retorno, mas ele não quis mais voltar, depois adoeceu e foi parar no
hospital. A aposentadoria dele era pouca e não conseguia mais pagar o
aluguel porque não podia fazer biscates para aumentar o ganho, então
optou por vir morar nessa terra do governo, onde sempre nos ameaçavam
tirar dali.
Depois de fazer as compras para todos eu ia lá no Seu André,
pegava dez centavos que ele deixava em uma mesinha e a garrafa térmica
para comprar café com leite, pão, ou pão de queijo, ou também broa de
milho (arepas). O almoço dele era fornecido por um restaurante que ele
pagava por mês. Como não tinha água encanada e ele gostava de tomar
banho a cada três dias, eu pegava um balde para trazer água da torneira e
depois subia em uma escada que ele tinha feito, de forma que eu podia
encher uma lata que era fixa no centro por dois parafusos. Na parte da
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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frente tinha uma corda, e ao puxá-la, a lata entornava e a água caía sobre
uma calha de taquara e da sua ponta, a água saía em forma de torneira.
Eu puxava a corda e ele tomava seu banho. Depois, eu tirava minha roupa
e ficava pelado e também tomava meu banho, eu mesmo puxava a corda.
Lembro-me que quando chovia, toda a gurizada tirava a roupa e saía pelas
ruas, felizes, embaixo da chuva. Até hoje não sei por que não tínhamos
vergonha de correr pelados nas ruas.
Um dia, como de costume, cheguei para comprar o café para Seu
André e, ao invés de encontrá-lo na cama, ele estava no chão. Ainda em
voz alta eu disse: – Seu André, peguei o dinheiro da gaveta, tá! Silêncio
total. Aproximei-me e lhe perguntei: – O senhor quer pão de queijo, broa
ou pão? Como ele não me respondeu, corri para a vizinha mais perto e
disse: – Dona Emma, acho que Seu André está doente, ele está deitado
no chão e nem se mexe. Dona Emma entrou dizendo: – O que, o André
está doente? Chegou bem perto dele, se acocorou, tocou nele e disse: –
Ele está duro! Gritou: – Ele está morto! Ela saiu correndo e foi chamar
outros vizinhos. Eu aproveitei, abri a gaveta e peguei mais trinta centavos
que estavam ali e guardei-os no bolso. Em pouco tempo, começou um
entra e sai de vizinhos e depois apareceu uma caminhonete com quatro
policiais, um senhor e uma senhora vestidos de branco, acho que eram
médicos. Pouco depois saíram com ele em uma maca e colocaram-no no
interior da caminhonete. Um dos policiais perguntou se sabiam onde
moravam os familiares, porém ninguém sabia, alguém disse que ele tinha
uma filha que parecia que morava em Bogotá. O homem me perguntou: –
Rapaz, sabe onde mora a filha? Eu respondi: – Ele me disse que mora
muito longe. Foi um dos presentes que mandou o guarda me perguntar,
depois de vasculhar o quarto, levantar o colchão velho, a gaveta da mesa,
revistarem os bolsos da roupa e não encontrarem nada, perguntaram o
nome dele, mas só se sabia que era André. No fim, após muito sobe e
desce e encherem de perguntas aos presentes, foram embora.
O bairro choroso só comentava a morte do Seu André. Quando
cheguei na minha casa as vizinhas comentavam a dita morte. Botei a mão
no bolso, peguei os quarenta centavos e dei para minha mãe e ela
perguntou: – De onde tiraste esse dinheiro? É claro que respondi: – Da
gaveta do Seu André. Ela ficou brava e me disse: – Vai devolver esse
dinheiro e já, esse não é teu! Uma das senhoras presentes ali disse: –
Dona Isabel, esse dinheirinho pertence a ele, foi ele quem cuidou do Seu
André, se ele vai e coloca na gaveta, alguém vai pegar. O Seu André já
morreu e o Negro é o herdeiro, tá!
Ninguém se lembrava mais do Seu André, passados dez dias,
quando apareceu um dos moradores mostrando um jornal com a foto do
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Seu André, onde ele figurava na participação de roubo a um banco há
mais de vinte anos. Eram dois os ladrões: ele tinha sido pego e o cúmplice
não. André fugiu, antes de completar um mês, e nunca mais foi capturado.
Eu continuei fazendo as compras para os vizinhos e sempre
passava pela frente da casinha dele, onde ninguém queria chegar perto.
Diziam que tinha assombração, que de noite se ouviam ruídos e,
dependendo da hora, se viam luzes. Alguns diziam que o dinheiro do
roubo estava enterrado no chão da casinha. Alguns dias depois,
apareceram trabalhadores do município e foram desmanchando a casinha.
Abriram buracos no chão, mas ninguém ficou sabendo se encontraram o
dinheiro ou não. Levaram todo o material e o terreno ficou limpo. Nunca
mais se falou do Seu André.
O serralheiro Espanhol
Um dia, quando estava na padaria, o dono me disse: – Negro, faça
o favor de levar estes pães para o Espanhol! – Sim senhor! Peguei os
pães, ele me explicou onde ficava o Espanhol, e saí correndo, do meu
jeito, e fui entregar os pães. O Espanhol era um serralheiro de nome
Antônio e morava sozinho. A padaria ficava a umas três quadras de
distância e quem levava o pão todos os dias era o empregado da padaria,
porém ele não tinha voltado a trabalhar.
Ao chegar na casa do Seu Antônio o encontrei puxando uma corda
que movimentava uma geringonça e, do outro lado, o fogo ficava forte e ali
esquentava um ferro, que ficava vermelho. Depois, fiquei sabendo que
esta geringonça se chamava fole. Pedi para Seu Antônio para eu puxar a
corda, e ele deixou, porém, eu mal conseguia movimentar, pois o fole era
muito pesado. Decidi subir e pegar diretamente na alça do fole e assim
comecei a subir e a descer, carregado pelo próprio fole. Era a minha
felicidade, enquanto que para Seu Antônio era uma ajuda e descanso,
além de esquentar o ferro mais rápido.
Não sei por que me lembro tanto dessa fase da minha infância.
Apenas me acordava, saltava da cama e sem me lavar, de pé descalço,
corria a comprar o leite, o pão e a carne dos vizinhos para depois correr a
levar o pão ao Seu Antônio, o Espanhol. Eu já não tomava café com os
vizinhos, preferia tomar com Seu Antônio, que antes de qualquer coisa, me
lavava o rosto e me penteava o cabelo. Quando minha mãe se acordava,
eu não estava mais na cama. Ela lavava roupas de passageiros de um
hotel e ficava até de madrugada passando a ferro a roupa. Eu ficava lhe
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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fazendo companhia, porém o sono me dominava e, seguramente, ela tinha
que me colocar na cama.
Com a abertura das ruas, as cobras tinham fugido, não havia mais
mato e eu pouco visitava o Dr. Corrêa, porém ele era amigo do Seu
Antônio e, às vezes, nos visitava. Ele me chamava de filho ingrato, claro
que de brincadeira. Ele contava para Seu Antônio as minhas façanhas com
as cobras. Agora eu era feliz pendurado no fole da forja, subindo e
descendo. Um pouco antes do meio-dia ia comprar o almoço no
restaurante do Seu Aparício, que, no momento que pegava a vianda
gritava: – Comida para o filho do Espanhol! Dentre os que almoçavam, não
faltava alguém que dizia uma piadinha, como por exemplo: – Só que o pai
é bem branco e ele nasceu queimadinho! É claro que tudo era brincadeira,
porque todos me queriam bem e brincavam comigo. Almoçávamos sempre
conversando, sobre o quê não me lembro, só me lembro que quando
terminávamos de almoçar, ele ficava um pouco triste, dava um suspiro e
dizia: – “Ai, ai Rocio de mi baranda”.
Passado algum tempo, descobri que Rocio era sua esposa, que
estava na Espanha e ele tinha muitas saudades dela. Ele tinha fugido da
Espanha porque não simpatizava com o governo do General Franco e
pertencia ao movimento anti Franquista e era perseguido. Por isso teve
que fugir, primeiro foi para a Inglaterra, porém corria o perigo de ser pego
por espiões de Franco, então saiu da Inglaterra e veio direto para a
Colômbia. Trabalhou em uma mineradora, mais tarde começou a trabalhar
por conta própria. Depois do almoço ele me obrigava a dormir no mínimo
dez minutos. No começo era difícil, porque não estava acostumado.
Depois me acostumei e este costume até hoje me acompanha.
Seu Antonio me ensinou o sistema métrico, a saber o que era um
milímetro, um centímetro, um metro e a polegada. Também me ensinou a
forjar o ferro, fazer chinegos, furar, serrar e tudo o que era de serralheria.
Quando saía para atender um freguês ou tirar medidas, deixava alguma
coisa para eu fazer e eu tentava fazer o melhor que podia. Nos fins de
semana me dava algum dinheiro, que eu repassava para a minha mãe.
Lembro que quando entregava o dinheiro, ela dizia: – Ó meu Deus,
abençoa este senhor que tanto ajuda meu filho! Algumas vezes eu saía
junto com ele para tirar medidas e o pessoal mexia conosco e perguntava:
– Antônio, onde tu arrumaste este baita ajudante? Ele respondia: – Foi um
presente de Deus. De regresso, entrávamos em alguma loja e ele
comprava para mim um par de sandálias, que era moda, ou uma calça, ou
uma camisa, ou cueca, que eu quase nunca usava.
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As confusões da vizinhança
Eu e meus irmãos mais velhos pouco nos víamos, porque cedo eu
já estava na rua e eles se levantavam depois e iam para a escola e lá eles
almoçavam. Aos sábados eu também trabalhava. Só no domingo eu ficava
até mais tarde em casa e tomávamos café todos juntos. Ficava mais um
pouco em casa e depois fugia sem dizer nada. Corria direto a um casarão,
que chamavam de O Palácio, por que não sei. Tinha duas entradas, uma
na frente e outra nos fundos. Na frente, tinha um portão de ferro todo
enferrujado, que não funcionava e nos fundos, estavam chumbados na
parede pedaços do marco, sinal que outrora tinha existido ali um portão.
Hoje calculo que da frente aos fundos deveria ter uns 35 metros. Havia ali
várias moradias, onde habitavam casais com filhos, mães solteiras,
separadas com filhos ou sem filhos, senhoras solteironas, gente de todas
as cores, espécies e lugares, uma verdadeira Cosmópolis. Era um
corredor que deveria ter uns 8 metros de largura e no centro tinha várias
pias, onde o mulherio lavava as roupas, e também os homens que não
tinham mulher. Guris e gurias que corriam pelo corredor os havia em
quantidade. Algumas vezes isto motivava brigas entre vizinhos por causa
dos filhos. Nos fundos havia uma rua sem asfalto e bem larga, onde até a
gurizada jogava bola. Jogos que, quase sempre, terminavam em briga, às
vezes só entre dois. Os que estavam de fora, uns faziam torcida para um
grupo e outros torciam pelo outro.
Algumas vezes ocorriam discussões no próprio corredor entre
mulheres, por causa dos maridos. Uma acusando a outra de estar dando
em cima do seu marido. No meio das discussões era freqüente ouvir
acusaçoes: – Porque tu dormiste com o marido da fulana, não pensas que
vais dormir com o meu, tu te cuida, sem-vergonha, safada, vagabunda! É
claro que não vou mencionar tudo o que saía dessas bocas. Em muitas
ocasiões, essas discussões se transformavam em atritos ferozes, porque
alguém que ouvia o nome do marido corria para o entrevero, queria saber
detalhe por detalhe de como, quando e onde o marido tinha dormido com a
fulana. A essas alturas mudava o rumo da discussão passando a
agredirem-se fisicamente: puxões de cabelo, socos, narizes jorrando
sangue, roupas rasgadas, algumas só de calcinhas, seios de fora, filhos
berrando, vizinhos gritando, pedindo, por favor, para que parassem. Uns
tomavam partido destes e outros daqueles, aumentando o número de
briguentas. Muitas vezes, pude ver quando uma das briguentas caía
desmaiada. Alguém chamava a polícia, e como já conheciam o local, um
camburão entrava pela frente e outro pelos fundos e um ou dois ficavam
por fora, já de cassetete na mão, dando pau em todos os viventes e
colocando no camburão. Um dia, me tocou ver uma criança chorando
abraçada à mãe desmaiada, dizendo: – Mataram minha mãe, mataram
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minha mãe! Pegaram a mulher, colocaram em uma padiola e levaram para
o posto de saúde. Um policial pegou a criança e a entregou para uma das
moradoras, mas a criança mais berrava e mais gritava pela mãe. Todos os
que eram colocados no camburão, eram levados para a delegacia. Lá
ficavam sentados em um banco e ficavam até o dia seguinte. Durante a
permanência só ganhavam uma xícara de café preto e um pedaço de pão.
No dia seguinte o delegado liberava uma por uma, com diferença de dez a
quinze minutos. Aquela que se metia à brava ou grosseira era colocada
em uma cela e lhe davam um banho de mangueira, com roupa e tudo, e ali
ficava por mais um ou dois dias.
Morava no palácio um crioulo grande e forte, que tinha sido
abandonado pela mulher porque era um tremendo formigão. Diziam que já
tinha dormido com a maioria das mulheres do palácio. Comentava-se que
as mulheres que tinham estado com ele falavam que tinha um instrumento
muito especial, diferente dos demais. Trabalhava em uma fábrica de
refrigerantes e jogava em um time de futebol. Era benquisto no palácio e
quando se formava aquele pandemônio de briga, muitas vezes se viu que
ao invés de chamarem a polícia, corriam para a fábrica e chamavam esse
crioulo. Quando ele entrava no palácio, dava um berro e tudo parava.
Cada um entrava no seu quarto e, parece mentira, a paz reinava. Duran
era o seu nome. Ele era muito querido pela gurizada, porque aos sábados,
domingos e feriados jogava futebol com eles e ninguém brigava. Dava-se
com todos os homens do palácio e às mulheres as tratava com
diminutivos.
Era nesta espécie de cortiço que eu ia encontrar Seu Antônio.
Morava no palácio dona Elida, um pouco mais alta que Seu Antônio. Todos
falavam que ela era muito bonita. Uma senhora séria, quieta, bondosa e
querida no palácio onde todos a respeitavam. Era para este lugar que,
após varrer, limpar e organizar a serralheria no sábado à tarde, Seu
Antônio se dirigia. É claro que no sábado, ele me acompanhava até minha
casa, falava um pouco com minha mãe e, ao se despedir, recomendava
para me mandar no domingo almoçar com dona Elida no palácio. Era por
isso que aos domingos eu ia para lá. No palácio me chamavam de filho do
Espanhol e outras vezes, de filho de dona Elida. Hoje penso que
caçoavam. Lembro-me de dona Elida, era branca, cabelo igual a Seu
Antônio, loiro, de olhos claros, como podiam dizer que eu era filho deles,
por acaso não viam que minha cor era parda?
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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2
OS DESAFIOS DO ESTUDO
eu Antônio queria que eu começasse a estudar. Já me aproximava
dos oito anos e ainda não sabia ler. Ele tinha me ensinado algumas
letras, a escrever meu nome e mais algumas palavras. A dona Elida
também me ensinava. Ela me contou que tinha sido casada e que seu
marido tinha sido professor universitário e morreu de pneumonia, que
recebia uma pensão do governo que dava para viver e mais ainda pagar
um aluguel barato como era o do palácio. Ela mesma me matriculou, me
comprou lápis e caderno e eu comecei a sonhar com a escola. Contava os
dias, enquanto a mãe passava a roupa dos fregueses eu só conversava da
escola. Ela me dizia: – É muito bom saber, um homem que não sabe nada
é igual a um zero à esquerda! Dava-me como exemplo Marco Fidel
Soares, que nasceu muito pobre e que através de uma janela, escutava a
professora dando aula e em um papel copiava as letras que estavam no
quadro e depois tratava de decifrar o que queria dizer tudo aquilo. Ocupou
altos cargos no governo e chegou a presidente do país. Quanto mais ela
me falava de grandes personagens eu mais me entusiasmava.
S
O Reitor
Dona Elida me falava de seu marido, que tinha sido um bom
professor. Um dia me levou à universidade onde ele lecionara. No centro
do pátio, em um tipo de obelisco, estava o busto e uma placa de bronze
em sua homenagem. Apareceram vários professores para cumprimentar
dona Elida e também apareceu o Reitor. Dona Elida me apresentou a ele e
disse que eu também queria ser professor como o marido dela. O Reitor
colocou a mão na minha cabeça e perguntou: – Já está estudando? – Não,
amanhã ele começa, disse dona Elida.
O Reitor era um homem novo, tinha fama de muito inteligente e
nos convidou para tomar um café, acompanhado com pão de queijo. Em
seguida nos mostrou várias salas e, por último, entramos no seu escritório.
Nos sentamos e, em seguida, o senhor Reitor, dirigindo-se a mim, não me
lembro textualmente das palavras, porém, mais ou menos foi assim: –
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Orlando Ortega, meu querido, tua visita a esta universidade me dá grande
satisfação. Elida me comentou da tua humildade, da tua simpatia, sei que
és um menino muito pobre e com grande vontade de aprender. Trata de
estudar bastante, quando terminares teus estudos primário e secundário,
aqui nesta universidade estudarás de forma gratuita, até te formares!
Dona Elida deu um grito quando o Reitor lhe entregou um papel,
que parecia um diploma, nele estava a confirmação do que ele acabara de
me oferecer, após carimbar e assinar. Ela chorava, me abraçou e eu não
entendia. Em seguida levantou-se, deu um abraço no Reitor, agradecendo
e chorando, ele secou-lhe as lágrimas. Despedimo-nos e ele nos
acompanhou até a porta. Antes de dobrarmos a esquina olhamos para trás
e lá ainda estava ele na porta. Acenamos para ele e ele também para nós.
Pegamos a primeira “vitória” que passava (tipo carruagem puxada por dois
cavalos) e fomos direto para minha casa. A minha mãe estava lavando
roupas. Descemos da “vitória” e dona Elida, quase correndo, gritava: –
Chavita, Chavita!, assim chamavam carinhosamente minha mãe. Dona
Elida explicou tudo para minha mãe e as duas choravam e eu continuava
entendendo pouco.
Fomos ver o Antônio que nos esperava com o almoço. Elida
chegou comentando o acontecimento e apresentando o papel carimbado e
assinado pelo Reitor, onde mostrava a gratuidade dos meus estudos na
universidade. Após comer, dormi meus dez minutos. Era rotina: me
deitava, fechava os olhos, pegava no sono e dormia dez minutos certos.
Quando acordei, Elida tinha ido embora. Antônio me felicitou, explicou o
que aquilo significava, foi nesse momento que compreendi do que se
tratava e mais entusiasmado fiquei à espera do dia seguinte para começar
a estudar.
Naquela tarde, enquanto trabalhávamos, ele me falava dos vultos
da história universal, de grandes escritores e suas obras, me falou muito
de Miguel Cervantes Saavedra e sua imortal obra Dom Quixote de la
Mancha, da sua vida como guerreiro no estrangeiro e que, ao retornar à
sua pátria, foi sequestrado pelos piratas bárbaros e quem pagou seu
resgate foram os padres trinitários. Falava-me sempre que havia tido
oportunidade de ler os escritores da época de Cervantes. Dizia-me, guarda
na memória estes nomes Lopez de Vega, Juan de la Cueva, Gil Vicente,
Calderon de la Barca, que escreveu um livro fantástico La Vida és sueño.
Quando aprenderes a ler, trata de ler estes escritores, eles te farão um
homem culto. Um dia me entregou um papel onde estava o nome de vários
escritores. Lê o Celestino, de Fernando de Rojas, também procura ler
Garcilaso de la Vega, Dom Francisco de Quevedo. É claro que naquele
tempo não conseguia entender nada. Quando me contava as aventuras,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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ou melhor dito, as andanças de Dom Quixote e Sancho, eu era todo
ouvidos, era um fascínio profundo e à noite sonhava. Também me contou
partes de As mil e uma noites de autor anônimo.
Tudo aquilo que ele me falava naquele tempo, até hoje tenho na
memória. Algumas vezes fico pensando naquele tempo da minha infância
e parece que tudo aconteceu ontem, tal como está vivo na minha memória.
Um dia, não me lembro por que, começou a falar-me da sua querida
Espanha. Contava-me que o General Francisco Franco, para tomar o
poder, sacrificou muitas vidas, me falava de Guernica, onde não só
morreram seres humanos como também animais, misturados com
crianças, homens e mulheres. Um dia me disse que Franco era tão
perverso que tinha mandado matar um jovem poeta chamado Federico
Garcia Lorca. Ele me falava tudo com muito sentimento. Eu pouco
entendia. Hoje chego à conclusão que ele me falava tudo isto para
desabafar. É claro que quando li Garcia Lorca, sua poesia tão linda, me
emocionava e ao mesmo tempo sentia raiva, pensava e me dizia: – Tirar a
vida de um jovem gênio! Que coisas mais lindas poderia ter dado ao
mundo e sria orgulho para a Espanha! Porém o mal que não tem cura,
sem curar fica.
Enfim na sala de aula
Chegou o tão sonhado dia, o meu primeiro dia de aula. Acordei-me
mais cedo do que de costume. Como a minha mãe tinha me dito no dia
anterior eu deveria ir à escola de banho tomado e bem limpo e foi o que
fiz naquele dia. Ao entrar no banheiro a primeira coisa que encontrei foi
uma cobra. Pensei nos dez centavos que o Dr. Corrêa me pagaria, porém
não me importei. Antes de querer pegá-la, a enxotei. A minha mãe veio
correndo para ela mesma me dar banho. Após tomar café, peguei meu
caderno, lápis e borracha e junto com meus dois irmãos, saímos rumo à
escola, porém antes eu quis passar e dar um tchau ao Antônio. Quando
chegamos na serralheria ele estava preocupado me esperando na porta,
nos disse que pensava que eu não iria passar para lhe dar tchau. Muito
feliz ao ver-me com meus irmãos mais velhos, nos fez entrar e nos
convidou para tomar café, embora já tivéssemos tomado em casa
tornamos a tomar. A mãe tinha dado uma broa de milho (arepa) para cada
um levar para o lanche, mas Antônio deu dez centavos para nós três.
A escola era uma casa de construção antiga, três quartos
convertidos em salas de aula. A cozinha tinha sido aumentada, o comedor
e os banheiros eram uma construção nova. Havia um pátio central e no
centro do pátio havia uma piscina toda quebrada, faltavam muitos azulejos
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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centrais e sobre um pedestal de cimento tinha uma estátua de uma mulher
nua. Mais tarde soube que ela representava a virgindade. Estava mal
cuidada e lhe faltavam vários pedaços, estava totalmente seca, parecia
que nunca tivera água.
Quando chegamos na escola notei que muitos dos alunos eram do
meu bairro, alguns companheiros de quando vendíamos cobras para o Dr.
Corrêa. Ninguém deu importância à minha chegada, era uma barulheira
tremenda. Corriam para um lado, para o outro, passavam por cima da
piscina; no fundo, havia um potreiro muito grande; bem longe, havia gado
pastando; a uns 10 metros da parede da escola havia uma cerca de
taquara, este era o local onde as meninas brincavam. No momento que
entramos no pátio um grupo de garotos veio correndo e convidou meus
irmãos para participarem do jogo. Claro que eles já eram conhecidos de
anos anteriores. Meus irmãos colocaram os cadernos e livros junto com
outros e se juntaram ao grupo. Eu fiquei em um canto, de pé, olhando o
corre-corre da garotada, aquela bagunça, aquele pandemônio. Uns caíam,
mas já se levantavam sangrando, porém no mesmo instante ficavam bons
e continuavam na correria. Tímido, solitário, fiquei quieto no lugar onde
meus irmãos me deixaram. Lembro-me que apareceu uma menina, que na
época deveria ter de doze a treze anos, se aproximou e me perguntou: –
Você é filho da Chavita? (Isabel) – Sim, respondi. – Cadê seus irmãos,
perguntou-me. – Estão brincando, respondi-lhe. Pegou minha mão e disse:
– Vem brincar conosco! Quando cheguei ao grupo de meninas, uma
gritaria: – Oi magrinho! Outras: - Oi negrinho! Outras: - Oi negro! Já me
conheciam, eu fazia as compras para as mães delas. Romélia, que era o
nome da minha protetora, gritou: – O Antônio não gosta que o chamem de
negro ou de negrinho. O dia que fui à procura dele e perguntei para o
Antônio: o negrinho está? Ele me xingou e disse: aqui não tem negrinho,
ele chama-se Orlando! Eu disse para ele, e como é que o senhor o chama
de “currege”? Ele me respondeu: - Na Espanha chamamos as crianças de
“curreges” ou de “chaval”. As meninas diziam: – Eu gosto de chamar ele
de negrinho, outras: - Mas eu de negro ou de negrinho, não chamamos ele
pela cor, mas sim porque é mais carinhoso, mais familiar, algo mais nosso.
Chamar pelo nome Orlando parece que nos afasta dele! Romélia, que
escutava, disse: – Eu também acho e vou chamá-lo de negrinho e
encerrado o assunto e vamos continuar a brincadeira. A brincadeira era:
duas das meninas seguravam-se pelas mãos formando uma espécie de
ponte e o resto, em fila, passava por baixo da ponte e cantavam (que
passe o rei que tem que passar, que o cavalo do conde há de cair),
abaixavam as mãos e aquela que nesse momento passava, ficava presa.
Então lhe perguntavam: – Para onde quer ir, para São Pedro ou para São
Juan? Estas duas meninas, previamente, separadas do grupo, tinham sido
designadas, uma para ser o diabo e a outra para ser um anjo, mas nós só
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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sabíamos quem era São Pedro ou São Juan, porém não quem era o diabo
ou quem era o anjo. Nós corríamos para o escolhido e este nos recebia de
braços abertos.
Não deu para saber como terminava a brincadeira, pois bateu a
sineta e todos formamos a fila no pátio interno. Romélia me pegou pela
mão e me colocou na fila dos que ingressavam pela primeira vez. A
Diretora nos cumprimentou, em seguida rezamos o Pai Nosso e a Ave
Maria, após cantar o hino nacional, cada grupo foi entrando no seu
respectivo salão. Uma vez acomodados em suas cadeiras, a professora
nos deu as boas vindas, nos disse que seu nome era Mariateresa e que se
escrevia tudo junto e que era descendente de gregos. Explicou-nos a
disciplina, o que ela exigia de seus alunos e por último, nos mostrou dois
bancos que estavam colocados na parede lateral, um de frente ao outro,
separados por uma distância de aproximadamente 4 metros. Um estava
pintado todo de branco e tinha uma almofadinha e o outro estava pintado
de preto e não tinha almofada. Mostrando o banco branco, nos disse que o
aluno que se comportasse bem, que fizesse seus temas, que estivesse
penteado, com unhas limpas e tivesse maior presença nas aulas, como
prêmio, sentar-se-ia na cadeira branca por uma semana. E quem se sentar
mais vezes no banco branco durante o ano letivo, no final das aulas
ganhará um prêmio. Após todas estas advertências e explicações, passou
a nos ensinar as vogais. É claro que Seu Antônio já tinha me ensinado as
vogais, as consoantes, a juntar algumas palavras e já quase que soletrava.
A professora se encantava com meu progresso e me achava inteligente
demais, claro que não lhe disse que Antônio já tinha me ensinado. A minha
professora chamava as professoras de cursos mais adiantados para que
com perguntas confirmassem meu prodígio. Um mês de aula e não sei por
que, de repente, comecei a ler, lia tudo quanto era letreiro que encontrava
no caminho.
Lembro-me que meus irmãos levaram a novidade para minha mãe
e ela me sentou no seu colo e começou a me dar carinho. O Antônio era
todo felicidade e Romélia também. Quando meus irmãos me deixavam
sozinho por estarem brincando com amigos, ela me pegava pela mão e me
acompanhava até em casa.
Eu era muito tímido e na hora do recreio todos os garotos corriam,
brincavam e eu me sentava em um canto a comer meu pedaço de
rapadura ou a broa que a mãe nos dava. A Romélia, antes de voltar de
novo para a sala de aula, me levava na pia e me lavava, penteava e
limpava minhas unhas, ela dizia: – Você tem que estar limpinho para que a
professora Mariateresa lhe sente no banco branco. Ela me disse: - Eu, no
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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primeiro ano me sentei várias vezes no banco branco e no final do ano
ganhei uma linda boneca de pano.
No trono do “banco branco”
Na sexta-feira do mês seguinte ao começo das aulas seria
escolhido o aluno que ocuparia a cadeira branca. A cerimônia começava
no pátio com a presença de pais. A professora Mariateresa havia
conseguido que o governo mandasse aveia e pão de queijo para repartir a
todos os presentes Quase todos os alunos, professores e os pais e
familiares gostavam de ver a pequena cerimônia. O banco branco era
colocado na frente dos assistentes, a professora dizia o porquê desse
aluno ser escolhido, elogiava o comportamento, sua higiene, a frequência
e também a facilidade de aprender. Depois era chamado o aluno ou aluna
que no ano anterior tinha ocupado mais vezes o banco branco, esta parte
era feita por outra professora. Romélia, que já tinha me dito que havia
ocupado mais vezes o banco branco no ano anterior, foi chamada para
levar até o banco o novo escolhido. Uma professora lhe entregou uma
coroa feita de papelão pintada em ouro. A esta altura ninguém sabia quem
seria o ocupante, mas havia muitos palpites, todos esperando com
ansiedade. De repente aparece a professora que deveria dizer o nome do
escolhido, depois de cumprimentar os presentes disse estas palavras: –
“Srta. Romélia Acosta, é você a chamada para levar até o banco o aluno
Orlando Ortega, merecedor por todos seus méritos”. A bagunça foi grande,
Romélia veio correndo me abraçar, Antônio me pegou no colo e me
levantou feliz da vida, minha mãe em um canto chorava, meus irmãos com
um grupo de colegas, em coro, gritavam: – Orlando, Orlando... Eu, um
babaca, não sabia do que se tratava. Romélia me pegou pela mão e me
levou até o banco branco. Ela me colocou a coroa de papelão, alguns me
diziam que eu parecia um rei de verdade. Romélia me deu um beijo na
testa, entregaram a cada um de nós nosso copo de aveia e pão de queijo,
que juntos, sentados no banco branco, desfrutávamos da bebida que eu
tanto gostava. Terminada a cerimônia, o banco era colocado em seu lugar
e, de segunda-feira em diante, eu ocuparia esse lugar até a primeira sextafeira do mês seguinte.
Quem era Romélia? Saberão! Ela era filha única de um casal que
morava perto da minha casa, sua mãe, de nome Rufina, alta, forte, deveria
pesar pouco mais de 100 quilos e seu Francisco, que era casado com
dona Rufina, porém vivia com outra. É claro que todo fim de mês aparecia,
dormia, tomava café, almoçava e à tarde, após jantar, ia embora. Dona
Rufina se conformava com esse pouco amor de cada trinta dias, não se
importava e parecia feliz. Romélia adorava esse pai que sempre a colmava
de roupas e brinquedos. Romélia era loira, de olhos claros, cabelos longos,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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lisos, e bastante amarelos, era considerada por todos muito bonita. Era de
pavio curto, briguenta, não levava desaforo para casa, enfrentara até um
professor que tentou castigá-la por uma briga a socos que teve com um
rapaz que lhe levantou o vestido. Deu-lhe um tapa no nariz que fez verter
sangue. Este rapaz era sobrinho do professor, e por isso se sentia
poderoso e implicava com qualquer um, mas com Romélia ele foi muito
mal, a gurizada que não gostava dele começou a gritar “apanhou de
mulher, apanhou de mulher...”. O professor, quando viu seu sobrinho
nesse estado e sendo acuado pelos outros alunos, chamou Romélia para
ficar de castigo por mais de uma hora escrevendo “não bater em mais
ninguém”. Ela enfrentou o professor dizendo-lhe que ele deveria era
castigar seu sobrinho e colocá-lo a escrever “não levante mais o vestido de
ninguém”. Pegou seus livros e se mandou. É claro que isto lhe causaria
um grave problema para continuar estudando, pois poderia ser expulsa, de
acordo com a legislação, ainda mais que este era o último ano nessa
escola. No próximo ano iria para algum colégio secundário e deveria
mostrar seu boletim de conclusão, e esta desavença lhe criava esse grave
problema. Porém, com a intervenção de dona Rufina, sua mãe, que fora à
escola para solucionar o problema e, além de tudo, os alunos de toda a
escola tinham paralisado as aulas e estavam em pé de guerra com o
professor e o sobrinho, prometendo apedrejá-los se a Romélia fosse
expulsa. Ela era muito querida por todos, tanto por sua beleza como
também pela sua bondade e carinho que brindava a todos, em troca, o
sobrinho do professor, tinha por ela muita gana. A situação não era fácil, a
gurizada tinha reunido montes de pedras e estrategicamente se colocado
para não deixar escapar o professor e o sobrinho no caso de Romélia ser
expulsa. A tensão era grande, os pais dos alunos não se atreviam a querer
convencer os filhos a mudar de atitude, porque sabiam o diabo que era o
sobrinho do professor. Apareceu o senhor delegado com dois policiais. Os
policiais foram convencer a gurizada a desistir, enquanto o delegado e o
padre, junto com a diretora, tratavam de convencer o professor a mudar de
idéia sobre sua intenção de expulsá-la. Todas as mães levaram os
pequenos para casa, Romélia me levou para casa e regressou para se
colocar à frente de seu exército em pé de guerra, era ela a comandante. A
intermediaçao do delegado e do padre convenceu o professor e tudo
voltou à normalidade, Romélia não foi expulsa, continuou estudando e
claro, a amizade entre ela e o professor ficou bastante estremecida.
Sabem o porquê do carinho de Romélia para comigo? Primeiro,
porque ela adorava crianças e me conhecia desde pequenininho. Contava
a minha mãe que a paixão dela era vir em nossa casa me pegar no colo e
algumas vezes me levava até sua casa. É claro que eu fui crescendo e ela
também, mas o carinho continuou; segundo, porque ela era muito
dorminhoca, gostava muito da cama. No começo, brigava muito com a
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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mãe porque ela a acordava para ir comprar o leite e o pão. Finalmente,
depois de muita briga com a mãe, ela se levantava e saía toda brava a
fazer as compras. Depois, era eu quem comprava o leite e o pão para
dona Rufina, enquanto Romélia dormia mais um pouco. A aula começava
às oito horas e trinta minutos. Romélia se levantava às oito horas e quinze
minutos, meio se lavava, tomava café à bala e saía correndo para a
escola. Como eu era tão madrugador, às seis horas já estava na rua, fazia
as compras dos vizinhos, inclusive para sua mãe, depois levava o pão e o
leite para Antônio, tomávamos café e esperava meus irmãos para irmos
juntos para a escola. Algumas vezes Romélia nos alcançava e íamos
juntos.
A prática na serralheria do Antonio
Eu em todos momentos livres estava na serralheria com Antônio e
na escola sempre era acompanhado por Romélia, e mesmo que Antônio
tivesse uns cinquenta e cinco anos mais ou menos e Romélia doze anos,
os dois eram brancos e eu negrinho, a gurizada, para mexer comigo, me
chamava de filho de Antônio e Romélia. As meninas também, ao invés de
me chamarem pelo nome, ou de negrinho, como era conhecido, diziam: Romélia traz teu filho para brincar conosco; Romélia, cadê teu filho? Enfim
era tudo teu filho, Romélia nem se importava, o Antônio até que gostava.
Esta que vou lhes contar lembro-me muito bem, eu estava na hora
do descanso, sentado em um murinho, que seguramente tinha sido uma
floreira, gostava de sentar-me nesse lugar porque dali podia observar a
gurizada correr, gritar, pular... Naquele dia eu estava sentado comendo
meu pedaço de rapadura, quando um rapaz chutou uma bola com força e
bateu direto no meu rosto. A rapadura voou longe e eu caí de costas. O
rapaz correu rapidamente para me levantar e quando ele estava me
limpando e eu estava chorando, alguém foi avisar a Romélia. De repente a
vi abrindo caminho entre a gurizada que me cercava, vinha vermelha como
um tomate maduro, meus irmãos vinham atrás e alguém gritou: – Roberto!,
que era o nome do rapaz da bola, foge Beto, que a Romélia te arrebenta.
O Beto, ao contrário de fugir, quando viu a Romélia, e antes que ela
falasse, ele disse: – Melinha, foi sem querer, e repetia, foi sem querer!
Uma das meninas tinha juntado o pedaço de rapadura e queria entregar
para o Beto, mas estava cheia de areia. O Beto a pegou e jogou longe,
várias professoras vieram ver o que estava acontecendo, inclusive a minha
professora Mariateresa. O Beto desapareceu, enquanto Romélia me
lavava na torneira da pia. O Beto chegou com dois copos de aveia e dois
pães de queijo, um para Romélia e outro para mim. Ele só comia pão de
queijo e já havia tomado sua aveia. Romélia aceitou, eu também e fomos
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os três sentar no pátio do fundo. Beto e Romélia conversavam, eram
amigos, calculo que tinham a mesma idade, só que, como já disse,
Romélia era pavio curto e não consentia nada errado para comigo, mas ela
não brigou com o Beto naquele episódio.
Às quatro horas bateu a sineta, hora de ir para casa. Meus irmãos,
Romélia e eu voltamos juntos para casa, passamos pela oficina de seu
Antônio. Lá estava ele me esperando na porta, preocupado porque a
notícia da bolada no rosto já tinha chegado até ele.
Todos os dias ficava na serralheria para ajudar Antônio a calcular o
ferro ou furar a fogo, eu gostava de fazer todo tipo de serralheria. Após
terminar, esquentava a água e tomava banho, ajudado por Antônio. Em
seguida comíamos alguma coisa que Elida nos levava e então nos
sentávamos para ler. Tenho muito na memória que o primeiro livro que
Antônio leu para mim foi Dom Quixote de la Mancha. Eu calculo que ele
demorou uns quatro meses lendo, e quando terminou, como eu já estava
lendo, fez com que eu mesmo lesse. Depois me fez ler Pinóquio e As mil e
uma noites, mas claro que o que sempre gostava de ler era Dom Quixote.
Pelas dezenove horas Antônio me levava para casa e, às vezes, depois ia
à casa de Elida ou senão ficava lendo ali mesmo na serralheria, porque ali
ele tinha seu quarto muito bem arrumado, e é claro que ali dormia a
maioria das noites. Quando eu chegava em casa, mostrava o caderno para
minha mãe, enquanto comia o que ela me guardara. Depois ia lá onde
estavam meus irmãos e toda os garotados, inclusive Romélia, era um lugar
onde nos reuníamos quase todos para brincar. Um dos jogos favoritos era
la lleva, também que pase el rei, sun sun de la calavera, Ralluella. Em
todos esses jogos sempre havia um grande ganhador ou senão uma
parelha. Tudo terminava quando algum pai ou mãe chamava o filho ou
filhos para dormir, mesmo que o jogo estivesse pela metade, todos
corríamos para nossas casas. Quase sempre quem chamava era a mãe
de Romélia, porque ela era muito dorminhoca e no dia seguinte era difícil
de acordar.
A garotada, inclusive os grandes, agora ao invés de me chamar
como de costume de negro, ou pelo meu nome Orlando, me chamavam de
“Oi”. E era assim: - Tu vistes o Oi? Oi ta lá. Oi, me empresta tuas
anotações?. Oi, a professora tá te chamando! Este apelido surgiu porque
em frequentemente me dava uma ferroada nos olhos e eu
inconscientemente dizia oi. Esse oi saía bem no momento da ferroada, e
como durava fração de segundo, eu dizia oi e já desaparecia, porém, como
isto acontecia inúmeras vezes por dia e também quando estávamos
brincando, os companheiros tomavam como cacoete. Às vezes as
meninas ou mesmo os rapazes, para mexer comigo, faziam de conta que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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alguém havia batido nele para poder dizer: – Oi,oi,oioioioi... Eu nem me
importava, ao contrário, se alguém chamava Oi, eu imediatamente
respondia. Até minha mãe um dia me disse: – Oizinho, me dá uma mão!
Não achei nada diferente, ao contrário, achei normal e fui atender ao
chamado de minha mãe.
Josefina ocupava o banco branco nessa época, antes dela tinha
sido ocupado por Luiz Diez. A nova candidata era Elvira, que não pode
assumir porque teve uma briga com Pedro Malas Artes (na Colômbia
Pedro Di Males). O verdadeiro nome dele era Pedrinel Barbosa e o apelido
Pedro Malas Artes, porque sempre estava interessado em fazer algum mal
para qualquer colega, fosse homem ou mulher. Ele era o mais velho da
aula e nós todos tínhamos medo dele. Era a terceira vez que repetia a 1ª
série. Seu melhor amigo era Raul da 3ª série, que chamavam El Mono, na
Colômbia as pessoas loiras são assim chamadas. Raul era loiro e Pedro
Malas Artes era preto e os dois eram muito amigos, sempre andavam
juntos, sempre com aquele espírito da maldade, não respeitavam ninguém
e sempre andavam à procura de um candidato ou candidata para uma
sacanagem.
Enquanto a professora dava aula de matemática Pedro Malas
Artes, com bastante cuidado, amarrou a Elvira à cadeira. Na hora do
recreio quando ela tentou se levantar e sair correndo o banco virou, ela
caiu e o banco caiu em cima dela. Lápis e caderno voaram, o vestido
recolheu e as calcinhas ficaram à vista (naquela época as meninas tinham
um pudor único e os rapazes respeitavam este comportamento). Todas as
meninas correram em socorro à Elvira e os rapazes se afastaram. Uma
das meninas tinha visto tudo, porém, ameaçada por Malas Artes, ficou
calada, mas dado o acontecido, contou tudo. Elvira, livre e recuperada,
não falou uma palavra, a não ser para agradecer as coleguinhas. Saiu
muito tranquila, foi até o pátio do fundo e lá estava Malas Artes junto com
Raul, El Mono, rindo à vontade. De repente viu-se uma pedra voar em
direção a Malas Artes e bater na testa dele, ele deu um grito, botou a mão
na testa e o sangue jorrou. El Mono, quando viu que Elvira era a causa,
avançou contra ela e ela. pressentindo o perigo, atirou outra pedra que
tinha na mão contra El Mono, atingindo-o na canela. El Mono caiu no chão
berrando e segurando o pé. Vendo o perigo que Elvira corria, todos os
colegas foram em seu auxílio. Oliva, uma crioula forte da 4ª série, que não
tinha vergonha de nada e que às vezes até mostrava a bunda para os
rapazes, quando viu El Mono no chão berrando, parou bem na cara dele, e
mesmo em pé, fez xixi na sua cara. Este, quando sentiu o xixi cair na sua
cara, levantou-se, e não podendo caminhar, gritava: – Crioula filha da puta,
tu me pagas! El Mono e Malas Artes foram levados para fazer curativo no
posto de saúde. As meninas, felizes pela valentia, pegaram seus livros,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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cadernos e lápis, e sem ordem alguma, foram levar Elvira para casa. O pai
de Elvira, que tinha um pequeno negócio de conserto de sapatos em um
corredor de uma casa velha, quando alguém foi lhe informar do
acontecido, fechou o negócio e correu para casa, onde encontrou toda a
gurizada solidária com Elvira. Quando soube de tudo, pegou uma faca,
colocou-a na cintura e saiu correndo para a escola sem dar ouvidos aos
gritos da mãe e da filha. Todos saíram atrás dele tentando segurá-lo.
Quando chegou à escola, o pai de Malas Artes já estava lá e a mãe de El
Mono também. Quando a turma chegou, o pai de Malas Artes estava
falando em voz alta: – Quer dizer que não se pode mandar os filhos para
esta escola porque são agredidos por uma manga de vagabundos! Oliva
não aguentou a expressão e enfrentou o velhote: – Manga de vagabundos
não senhor! E pegando Elvira pela mão lhe disse: – Olhe quem foi que
brigou com seu filho. Foi ela que surrou aquele par de marmanjos! Ainda o
velho disse: – Me informaram que foram todos vocês! – Não senhor, foi só
ela, nós ficamos de fora. Oliva, que estava louca para surrar o velho, lhe
disse: – Não vem aqui cantar de galo porque se fiz xixi na cara do El
Mono, na tua cara me cago sem te dar tempo de me morder o cu! Todos
os presentes riram. Elvira virou heroína. Uma menina muito franzina, muito
delicada, nos seus gestos comportados, de pouca fala, de cabelos pretos
lisos, sua pele morena clara, era muito bonitinha, e sozinha tinha
enfrentado os dois marmanjos mais temidos por todos os alunos da
escola. Oliva e Romélia se juntaram e chamaram a atenção do Mono e de
Malas Artes e lhes fizeram uma advertência: – O dia que vocês fizerem
qualquer maldade, para qualquer um de nossos colegas, cagaremos vocês
de pau. A mãe de Mono pegou-o pela orelha e puxando lhe dizia: – Eu te
conheço, sem-vergonha! E ele rengueando e gritando foi saindo, puxado
pela mãe. O pai de Malas Artes, um baixinho preto, fedorento de fumaça
de cigarro e cachaça, foi se retirando devagar, seguido por Malas Artes,
este com a testa cheia de gaze e esparadrapo.
Era Elvira que estava escolhida para ocupar o banco branco,
segundo ficamos sabendo, porém este incidente lhe tirou este direito,
apesar do protesto de alguns colegas das séries mais adiantadas. Ela, ao
saber, chorou, mas era uma decisão unânime e de acordo com os
princípios adotados na escola. O único sem mácula era eu, portanto fui
escolhido para ocupar pela segunda vez o banco branco. Os aplausos
foram acompanhados por gritos: - Viva o Oi, Oi, Oi! Agora vocês imaginem
a alegria da minha mãe, dos meus irmãos, do Antônio, da Romélia, e da
minha professora Mariateresa. Naquele tempo eu não sabia o que era
gentileza nem direitos, não sabia de nada, hoje fico lembrando da Elvira
em prantos e penso porque não fui um pouco delicado e talvez tivesse
renunciado em favor de Elvira. Por quê eu de novo no banco branco? Sinto
remorso, saibam, mas não adianta, tudo já passou e me surgem todas
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 41
essas reminiscências. Lembro Oliva, El Mono, Pedro Malas Artes,
Josefina, Elvira e muitos outros. Nunca mais os vi.
Nunca tinha me preocupado com os acontecimentos havidos na
minha infância, porém, à medida que escrevo, eles surgem com tanta
evidência que até parece que tudo aconteceu ontem. Lembro-me
perfeitamente que as ferroadas nos olhos tinham aumentado com maior
intensidade e com mais frequência, isto me deixava um pouco abatido e
sem vontade de estudar, porque sempre estava à espera da ferroada, mas
a suportava em silêncio. Embora antes não gostasse muito de participar
dos jogos com os colegas, agora participava menos, na hora do recreio
procurava me sentar perto onde estava Romélia brincando com as
colegas. Muitas vezes me convidavam insistentemente para que eu
participasse das brincadeiras, mas eu não aceitava, preferia ficar sentado
olhando.
A doença
Lembro-me que um dia, logo que a professora começou a aula,
senti uma ferroada tão forte que não consegui suportar a dor, dei um grito
e coloquei as mãos no rosto, me levantei e saí caminhando e rodeando
como louco e chorando bem alto. O barulho era tanto, que de todos os
salões corriam para ver o que estava acontecendo, eram alunos e
professores. Romélia veio correndo, me pegou pelas mãos, me levou até à
torneira, molhou minha testa, os olhos, a cabeça, porém eu não parava de
chorar. A professora Mariateresa, Romélia e meu irmão mais velho me
levaram ao posto de saúde, meu outro irmão foi avisar minha mãe e ao
Antônio. O médico mandou a enfermeira me aplicar uma injeção. Minha
mãe, Antônio e até Elida chegaram quando os médicos estavam me
examinando. Lembro que eles diziam que não descobriam o que poderia
causar esta dor. Eu já não sentia quase a dor. O médico deu um vidrinho
com uns comprimidos para eu tomar de três em três horas e retornar no
dia seguinte. É claro que, no dia seguinte, não me levantei cedo e não fiz
as compras de ninguém. A mãe da Romélia estava feliz porque, pela
primeira vez, a Romélia tinha se levantado cedo e tinha feito as compras.
Após tomar o café e antes de ir à aula, foi me ver. Elida também apareceu,
Antônio tinha lhe pedido para acompanhar minha mãe para me levar ao
posto. Uma vez no posto, me fizeram vários exames, tiraram a
temperatura, fizeram muitas perguntas. Como a dor tinha desaparecido,
me levaram de volta para casa. A vizinhança já estava sabendo da minha
dor nos olhos e ia me ver, e claro, levavam um docinho, um salgadinho,
broas e bolo. Nas conversas, cada uma dava um palpite a respeito da
minha dor, que poderia ser tal coisa, ou ser tal outra, cada um queria
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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diagnosticar o meu problema. A mãe da Romélia estava muito contente
com sua filha, porque agora se levantava sozinha, trazia água, tomava
banho, ia fazer as compras, tomava café, ia me ver e depois ia para a aula.
Ao meio dia Antônio levou almoço e comemos os quatro, a minha mãe,
Elida, Antônio e eu. A sopinha que minha mãe tinha preparado guardou-a.
Após almoçar eu peguei no sono, quando acordei, Antônio e Elida tinham
ido embora.
No terceiro dia, como me sentia bem e as ferroadas tinham
desaparecido, voltei à escola. Esse dia descobri, apesar de eu não
participar muito das brincadeiras com meus colegas, que eles tinham muita
simpatia por mim, tanto os grandes quanto os pequenos. Quando me
viram entrar, vieram perto de mim e era: Oi, oi, oi! Meninos e meninas me
chamavam de Oi e me rodearam, perguntando da dor, é claro que
respondia tudo bem, já passou!
Faltavam aproximadamente dois meses para o término do ano
letivo, os sonhos, a preocupação de todos era passar da 1ª série para a 2ª,
os da 2ª série para a 3ª, e assim por diante. Antônio também se
preocupava para que eu passasse para a 2ª série, me ensinava, me fazia
ler, já tinha terminado de ler Dom Quixote, agora estava lendo Pinóquio e
Antônio já tinha comprado As Mil e Uma Noites, Branca de Neve e os Sete
Anões e mais alguns.
Uns dez dias após a primeira crise surgiu novamente a dita dor.
Novos exames, desta vez descobriram que não eram os olhos que me
doíam e sim era a cabeça. Depois de medicado, a decisão foi me mandar
para um oftalmologista. O dito oftalmologista, após vários exames com
alguns aparelhos, receitou que eu deveria parar de estudar por algum
tempo enquanto fazia um tratamento com águas preparadas em farmácia
de manipulação. O tratamento era que deveriam ser cheios dois
recipientes, espécie de cálices, comprados na farmácia, com aquela água
preparada, colocar nos olhos e mantê-los abertos, ficar meia hora deitado,
três vezes por dia. Aquilo era o maior sacrifício, muito difícil conseguir me
deitar com os cálices cheios d’água e os olhos abertos, era preciso três
pessoas para conseguir fazer este tratamento, que deveria durar três
meses e depois voltar para o oftalmologista.
O fato de eu ter que parar de estudar caiu em mim como um balde
de água gelada. Vi o rosto de Antônio ficar vermelho, vi minha mãe limpar
os olhos, talvez uma lágrima. Ela era muito calma, eu berrava, chorava,
ninguém conseguia mais me consolar. O médico tratava de me acalmar.
Lembro que ele me disse que tinha que fazer o tratamento para ficar bom
e assim poderia voltar a estudar, caso contrário, poderia até ficar cego e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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nunca mais conseguir estudar! De volta para casa, Antônio, talvez para me
acalmar, prometeu que me levaria no dia seguinte a um oftalmologista seu
amigo e patrício, poderia ser que ele desse outro tratamento que me
permitisse estudar. Essa nova esperança, me acalmou.
No dia seguinte, Antônio me levou ao oftalmologista patrício e
amigo, que me fez vários tipos de exames, me esgarçava os olhos, me
puxava as pálpebras, e de vez em quando dava uma batidinha no globo
ocular. Depois de todo esse virar e revirar meus olhos, disse: – Esse rapaz
tem que fazer um tratamento de no mínimo três a quatro meses. Em
seguida, perguntou para o Antônio: – Este rapaz estuda? Antônio
respondeu afirmativamente. Ao que o médico respondeu: – Ele vai ter que
parar durante o tratamento. A mesma água do outro. A minha tristeza foi
profunda ao ouvir tal veredicto. Não faltaram as lágrimas. Poderia ter
chorado mais, mas me segurei.
Continuei minha rotina, a fazer as compras para meus vizinhos,
ajudar Antônio e a noite brincar com a rapaziada, meus irmãos, e inclusive
Romélia. De vez em quando pegava uma cobra e ia vender para o Dr.
Corrêa que já estava a par do meu problema. Um dia, conversando com
ele, me disse que, com o veneno de cobra iria descobrir o remédio para
meus olhos. Acho que nunca descobriu.
Agora era Antônio que lia os livros para mim, de manhã, antes de
começarmos a trabalhar. Lia Pinóquio, que já estava no final, depois seria
As Mil e Uma Noites. Antonio já tinha comprado também A Gata
Borralheira e Branca de Neve e os Sete Anões.
Chegou o dia de voltar ao oftalmologista que me receitou óculos,
diminuiu o tratamento com água, agora era para colocar duas vezes ao dia
e me liberou para voltar à escola. Embora já fazia quinze dias que tinha
começado as aulas, fui aceito sem problemas. É claro que, como não tinha
apresentado prova final, continuei na 1ª série, e como era repetente, não
tinha direito de participar do banco branco. A promessa que foi feita para
minha mãe, era que no final do segundo mês, viria um fiscal da secretaria
de educação e faria provas para os repetentes de todas as séries e quem
tivesse estudado, passaria, caso contrário, ficaria onde estivesse. Para
mim tanto fazia, o importante era poder estudar.
Todos os meus colegas eram novos, os anteriores tinham sido
aprovados, até Pedro Malas Artes tinha conseguido aprovação. Duas
semanas antes de vir o fiscal de Educação, foi a escolha do novo ocupante
do banco branco. A escolhida foi uma menina de nome Ofélia, loira,
franzina, muito delicada, quietinha e muito inteligente, gostava de estudar.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Os pais dela, um casal novo, festejaram com muita alegria a escolha da
filha para o banco branco. Eles eram donos de um tambo de leite. Era
tanta a alegria deles, que trouxeram aveia e pão de queijo para todos os
alunos e professores.
Chegou o dia do meu teste, foi a maior barbada, graças aos
ensinamentos de Antonio. Minha mãe, como sempre, deu sua choradinha.
Antonio, ao contrário, ria, até o próprio fiscal me deu um tapinha na
bochecha e me felicitou. Na segunda-feira me apresentei no salão da 2ª
série. Ali estavam meus colegas da 1ª série e me receberam com bagunça
e com gritos de Oi, Oi, Oi!!!
Romélia não estava mais na mesma escola, como também o Raul,
eles estavam em outra escola de grau mais adiantado. Na 2ª série não
tinha banco branco, porém a professora, cada dois meses, mandava fazer
um boneco de pão de queijo e era sorteado entre os alunos mais
comportados e sem faltas, até Pedro Malas Artes participava. Hoje,
trazendo à tona reminiscências daquela época, posso garantir que a
professora fez alguma trapaça para que eu ganhasse o boneco. Tive a
impressão de vê-la segurar o papel com meu nome entre os dedos e a
caixa. Festa em casa, todos comendo o tal boneco, com chocolate que a
mãe preparou. Estavam Antônio, Romélia, Elida e nós de casa. O que
sobrou, ficou para o café do outro dia.
Madrugador que eu era, como sempre fazedor de mandados da
vizinhança, com um apelido por sempre viver correndo, caçador de cobras,
pela doença dos meus olhos, por ter ocupado o banco branco por duas
vezes, e quem sabe que mais, por tudo isto, eu era o mais famoso da
turma.
Quando comecei a usar óculos, pensei que meu problema estava
solucionado, mas não foi assim. Três meses depois, tudo começou de
novo. Médico, oftalmologistas, dor, berros e parar de estudar. Minha
tristeza era profunda, não queria brincar com ninguém, vivia emburrado,
bravo, cachorro que se atravessasse levava um coice. Estava me tornando
mau, grosseiro até com a própria Romélia. Respeitava só o Antônio e à
mãe. A misantropia me embargava, tinha prometido a Antônio estudar
literatura, mas que literato pode ser quem não estuda? Vivia triste, só na
companhia de Antônio me sentia bem e calmo e à noite acompanhando
minha mãe passando roupas à luz de velas.
De repente, comecei a notar que a todo o momento vinham
compatriotas de Antônio, traziam jornais, liam, conversavam, às noites se
reuniam no bar, conversavam muito, riam. Um dia li em um dos jornais: ”O
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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General Franco dá anistia a todos os espanhóis que querem retornar à
Espanha”. Descobri que era esta a euforia de todos eles. Um senhor com
frequência chegava com uma pasta trazendo e levando papéis para
Antônio, este senhor não era espanhol. Através de Elida fiquei sabendo
que era este senhor que estava organizando a documentação de Antônio e
de outros espanhóis que pretendiam retornar à sua pátria.
O adeus de Antonio
Um dia Antônio me fez sentar, como de costume fazia para ler
algum trecho de um livro, porém desta vez se dirigiu a mim desta forma: –
Currege, vou viajar à Espanha, vou ver a minha Rocio. Ele quis me dizer
mais alguma coisa, só que nesse momento chegava mais um espanhol e a
nossa conversa foi interrompida. Como nesses dias eu não estava
estudando, trabalhávamos até de noite, aos sábados e domingos. Ele não
estava mais pegando serviço. O dia que terminamos e entregamos todos
os serviços, recolhemos as ferramentas, as limpamos, o que era
ferramenta miúda colocamos em uma mesa, as prateleiras, armários e
bancadas nós pintamos, após estar tudo organizado.
No dia seguinte, apareceu um senhor que era o dono de tudo, era
um ferreiro que, não querendo mais trabalhar, tinha alugado o local e as
ferramentas para Antônio. A mobília do quarto era de Elida, que havia
emprestado para Antônio. Levamos tudo para a casa de Elida e o Antônio
mudou-se para lá. Depois do almoço Antônio me disse que voltaria para a
Espanha. Textualmente não me lembro o que ele disse, só sei que quando
me explicava dizia: – É claro que se encontrar minha família, o que vou
fazer é ficar por lá, caso contrário, antes de um mês estarei de volta.
Aquela tarde fiquei com eles, conversamos, rimos, Antônio me leu algumas
páginas do Pinóquio.
À noite fui para casa, sentia um aperto no peito, algo como um nó
na garganta, uma espécie de angústia, algo como uma raiva, uma dor sem
dor. Quando cheguei em casa, meus irmãos estavam numa bagunça
tomando banho, eu já tinha tomado na casa da Elida, minha mãe estava
me esperando com uma xícara de chocolate com queijo e plátano frito
(banana da terra frita). Comi e tomei o chocolate sem vontade. Enquanto
meus irmãos maiores bagunçavam, minha mãe, eu e meus irmãos
pequenos pegamos um banco e nos sentamos na frente da casa, corria
uma brisa gostosa, não era frio nem quente, recostado no colo de minha
mãe, peguei no sono.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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No dia seguinte, minha mãe me disse que à noite, Romélia tinha
vindo me buscar para ir brincar, mas como estava dormindo não me
acordaram. Sem tomar café, saí a fazer as compras dos vizinhos, só que
eu as entregava com pouca vontade, e sem falar, saía correndo, não
aceitava nada, sentia a garganta apertada. Quando cheguei na casa de
Elida, Antônio estava de pijama lendo o jornal. Elida, quando me viu
chegar, disse: – Negrinho, estávamos te esperando para tomar o café.
Vamos Antônio, disse ela. Já estávamos no fim do café quando bateram
na porta. Era o homem da pasta, entregou um envelope grande para
Antônio e aceitou um cafezinho que Elida lhe ofereceu. Antônio revisou os
papéis e disse: – Muito bem! O homem levantou-se, alegando que tinha de
entregar outros documentos, deu um abraço em Antônio e lhe desejou boa
viagem e foi embora.
Após o café, Antônio se vestiu e saímos os três e entramos em um
armazém. Antônio me comprou um short e uma blusa toda colorida e um
par de sandálias da moda na época. Elida ganhou um mantô e um par de
sapatos. Também comprou presentes para levar para sua Rocio. Elida não
se importava. Em seguida entramos no mercado público. Elida comprou
um cesto, eu quis carregar, porém ela não deixou. Um guri se aproximou e
disse: – Senhora, levo mercado, e Elida entregou o cesto para ele. O guri
colocou o cesto no ombro e, à medida que compravam, iam enchendo o
cesto. Era a primeira vez que eu entrava no mercado, nunca tinha visto
tantas frutas, tantas verduras, os armazéns cheios de gente comprando,
um barulho infernal onde cada um oferecendo sua mercadoria. Quando
passávamos pelas bancas chamavam Elida: – Venha freguesa, tenho
aipim novinho, beterraba, rabanetes, etc. Elida passava nos conhecidos e
comprava e ia colocando no cesto que, aos poucos, ia se enchendo. O
garoto, quando Elida parava para comprar, colocava o cesto no chão para
descansar, sinal de que estava um pouco pesado.
Quando nos dirigimos para pegar a condução, escutei uma voz
familiar que gritava: – Negro, negrinho! Era um garoto do meu bairro, filho
de uma senhora chamada Gregória, gente muito pobre. Perguntei o que
fazia no mercado, me respondeu que carregava cestos. Perguntei: –
Ganhas? Ele me disse: – Sim, já tenho alguns fregueses, às vezes ganho
oito, dez ou doze centavos no dia e também a gente ganha frutas,
verduras e outras coisas que os donos das bancas nos dão. A nossa
conversa foi interrompida por uma voz que gritou: – Fabio!, que era ele,
olhou e me disse: – É minha freguesa. E saiu correndo, pegou o cesto da
senhora, me olhou e fez sinal de tchau. Na porta de entrada do mercado
havia vários rapazes com um saco de arpilheira nas costas, igual ao que
tinha meu amigo e vizinho. O rapaz que estava carregando o cesto de
Elida também tinha um saco de arpilheira, que além de identificá-lo como
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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carregador, servia para não sujar a camisa. Saímos do mercado e
chegamos no estacionamento de charretes puxadas por dois cavalos,
estas eram do tipo carruagem, que em qualquer lugar são chamadas de
cabriolé, coches ou vitórias, estes eram os transportes que levavam as
mercadorias. O guri cobrou quatro centavos, que era o preço, Antônio lhe
deu cinco centavos, o guri saiu correndo, pulando de alegria. Já em casa,
Elida preparou o almoço. Após comer, dormi um pouco, à tardinha Antônio
e Elida foram me levar em casa, carregando parte da mercadoria que
tinham comprado no mercado. É claro que também tinham comprado para
mim. Após tomar um cafezinho, se despediram, e Antônio, se dirigindo à
mãe, disse: – Por favor, cuide dos olhos do currege, ele só poderá voltar à
escola com ordem do médico. Além do rancho, Antônio deu um dinheiro
para minha mãe e deu uns trocados para mim, que após ele ter saído, eu
dei para minha mãe. Elida me disse: – Negrinho, vai cedo amanhã para
irmos à estação nos despedirmos do Antônio.
No dia seguinte, após as compras para os vizinhos, fui para a casa
de Elida, que estava me esperando para o café. Depois o Antônio me
entregou quatro livros, Dom Quixote, Pinóquio, As Mil e Uma Noites e A
Gata Borralheira, e me advertiu: – Tu não podes ler, espera que o médico
te libere. Uma sineta anunciou a chegada do cabriolé que nos levaria à
estação. Sentia Elida muito quieta, quase não falava, Antônio, de vez em
quando lhe dizia uma coisa, eu também tinha pouca vontade de falar.
Quando chegamos na estação, um garoto veio correndo se oferecer para
carregar as malas. Quando Antônio lhe disse que sim, saiu correndo e
voltou com um carrinho de duas rodas, colocou as malas e foi com Antônio
para o vagão da bagagem. O garoto cobrou dez centavos, fiquei sabendo
que cinco centavos eram para ele e cinco centavos para o dono do
carrinho. Vi que havia vários garotos à espera de passageiros e vários
donos de carrinhos à espera dos garotos que os alugavam. Cobravam dez
centavos com carrinho, caso contrário eram só cinco centavos, todos
estavam trabalhando.
Quando entramos na sala de espera tinha uma quantidade de
espanhóis, mais homens, poucas mulheres. Quase todos conheciam o
Antônio, conversavam, riam, havia certa euforia em todos eles. Uma sineta
bateu forte e um senhor com uma voz fina gritou: – Passageiros para
Buenaventura, embarcar. Antônio e Elida se beijaram. Elida chorava,
lembro-me que Antônio lhe disse: – Eu gosto muito de ti e estou
agradecido, tu me deste vida nova, vigor, amor, mas tu sabes, tenho minha
família que me espera, gosto desta terra que me acolheu, mas minha terra
e a minha gente me fazem falta. Elida, chorando, mexeu a cabeça de
forma afirmativa, em seguida Antônio me abraçou, me deu um beijo na
testa e disse: - Cuida dos teus olhinhos. Senti-o um pouco emocionado,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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beijou novamente Elida e saiu correndo para subir no trem que deveria
partir às treze horas e chegaria ao porto de Buenaventura às dezenove
horas. A informação que tínhamos era que eles viajariam em um navio
misto, ou seja, de carga e de passageiros, e que partiria de madrugada, à
uma hora. No trem, o que mais se ouvia era a voz dos espanhóis que
falavam, riam, se despediam dos amigos e das amigas. Elida e eu,
parados como duas estátuas. Elida chorava, eu queria chorar, mas não
conseguia, sentia um nó na garganta e um aperto no peito. Antônio nos
fazia sinal com as mãos, de adeus, e nós também, ficamos ali até o trem
desaparecer. Saímos da estação, pegamos um cabriolé, tinha bastante
estacionados, e fomos para casa de Elida que já tinha deixado o almoço
pronto. A comida passava com dificuldade pela minha garganta, comemos
muito pouco, não quis dormir, embora Elida insistisse. Eu estava arrasado,
queria ver minha mãe. Abracei Elida pela cintura, ela passou as mãos em
meus cabelos e disse: – Não vais me abandonar agora, não é? Agora que
o Antônio foi embora? Respondi: – Não senhora, virei lhe ver sempre.
Peguei meus quatro livros e saí em direção à minha casa. Elida me
acompanhou até a saída do palácio, porque, como sempre, tinha uma
briga entre vizinhos.
Quando cheguei em casa, minha mãe estava aprontando a roupa
que deveria passar naquela noite. Ao lhe questionar porque não passava
durante o dia, ela me disse que à noite era mais fresco. Naquela noite eu
não quis brincar, fiquei sentado perto de minha mãe enquanto ela passava,
falávamos do Antônio, ela me dizia: – Viu meu filho, o bom dura pouco,
seu pai era um homem bom, um bom pai, um bom marido e foi embora
cedo. Algumas vezes choro ao me lembrar dele, mas não adianta, foi Deus
que assim quis. Você viu Antônio, um homem tão bom, foi em busca da
sua família, que Deus lhe ajude a encontrar todos bem. Esse dinheiro que
ele lhe dava aos sábados era uma grande ajuda, não faltava o leite para
seus irmãos pequenos, mas meu filho, Deus quis assim, devemos nos
conformar e não nos queixar.
Contato com os circenses e o atropelamento
No dia seguinte de Antônio ter ido embora, acompanhei minha
mãe a entregar roupas. Na frente onde era a entrega, havia uma praça
com um círculo de gente que batia palmas. Disse para minha mãe que eu
ficaria ali lhe esperando enquanto ela iria entregar a roupa. Ao aproximarme, vi uma menina fazendo acrobacias, depois um contorcionista, eu
olhava encantado. Em seguinda um mágico se apresentou, um
Antipiodista, outros trabalhando nas cordas, um rapaz caminhava com as
mãos, e segurando-se em uma, com a outra tomava um líquido; outro
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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colocava os dois pés na nuca e caminhava com as mãos, parecia um
sapo; uma menina dava uma volta cambota no ar e ficava novamente em
pé; o mágico fazia provas com baralhos, lenços, moedas, cigarros, a maior
parte dos truques eu descobria porque estava quase nas costas do mago.
Quando a mãe chegou para me buscar, eles estavam recolhendo dinheiro
que o público lhes dava. Fiquei sabendo que era uma família que fazia
estes números circenses nas praças.
Quando cheguei em casa tentei caminhar com as mãos, mas não
era fácil, porém, depois de muitos tombos, já estava dando os primeiros
passos. Sempre que não tinha o que fazer, e em qualquer parte ou lugar,
estava tentando caminhar com as mãos. Por último, já me segurava o
tempo que eu queria, mas eu estava sempre cuidando onde aquela família
se apresentava para dar uma olhada. Uma vez, lembro-me que a minha
mãe me mandou comprar 200 gramas de queijo para fazer broas de milho
e não sei por que cargas d’água fiquei sabendo que a família circense
estava em uma praça do bairro. Fiquei perto de algumas pessoas que
esperavam o ônibus e, enquanto elas subiam, eu me dependurei na parte
de trás, e quando vi que estávamos perto da praça onde estavam os
artistas e o ônibus não parou, eu desci com o ônibus em movimento, e me
soltei.
Só percebi alguma coisa, quando ouvia meu irmão mais velho
chamando: – Meu irmãozinho! e repetia. Todos tratavam de acalmá-lo.
Quando acordei, estava meia vila no hospital. A notícia que tinham era que
um carro tinha me atropelado e eu estava morto. Daí a pouco entrou Elida
como um furacão, depois Romélia. Eu estava cheio de curativos, o médico
estava me examinando e me perguntou o que eu tinha na mão direita, que
estava fechada, e mandou que eu a abrisse. Eu abri e disse para o doutor
que era o dinheiro do queijo que minha mãe tinha mandado eu comprar.
Quis levantar-me, mas o médico disse: – Não, não, não, ainda não! Ele me
apertava e perguntava: – Dói? Eu respondia, não senhor. Aqui? Também
não! Neste momento entrou minha tia Otilia chorando, correu para onde
estava minha mãe e perguntou, desesperada: – O que foi, Chavita? A mãe
respondeu: – Nada mana, ele está bem, só cheio de escoriações. Daí o
doutor disse que estava tudo bem e que era para passar na secretaria que
ele daria alta, só tinha que voltar todos os dias para fazer curativo. Minha
tia se prontificou a me trazer. De vez em quando alguém da vila aparecia e
perguntava pelo negrinho, alguém respondia: – Ele está bem, já está indo
para casa. Eles me faziam sinal de longe e eu também respondia com um
sinal.
Dentre todos os presentes havia um senhor de terno e gravata, um
policial e um senhor em manga de camisa. O de gravata pediu licença
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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para o médico, que já se retirava, falou um pouco com ele, depois me
perguntou: – Como foi que o ônibus te pegou? Claro que eu respondi: –
Não, ele não me pegou, é que eu queria chegar no parque São Nicolau, e
quando o ônibus passou no parque e não parou, eu me larguei. E você
onde estava? Eu estava pendurado atrás. E quem lhe mandou se pendurar
atrás? Ninguém, é que eu queria ver o pessoal do circo. E porque não
pediu ao motorista lhe levar? Tinha vergonha.
Eu via que o senhor que estava em mangas de camisa, colocava
as mãos de um lado para outro, alguém dizia que ele estava rezando.
Neste momento, toda atenção foi para a voz de uma senhora que falava
alto: – O que aconteceu com meu negrinho? Como se apoiava na bengala
e andava em passos lentos, vários correram para ajudar, o policial foi
quem chegou primeiro. Era minha professora do primário Mariateresa.
Quando me viu sentado, disse: – Disseram que ele estava morto, que um
ônibus o tinha atropelado. O senhor de terno que ainda estava do meu
lado falou para a professora: – Não, ele não foi atropelado, ele se
pendurou no ônibus. Olha o motorista, coitado, está rezando. Ele pensava
que ele é que tinha atropelado o menino. O homem se despediu, deu uma
batidinha nas minhas costas e me deu cinquenta centavos e foi falar com o
homem que supostamente era o motorista. Entregou-lhe um papel, após
assinar, despediu-se dele e saiu junto com o policial.
O motorista se aproximou, cumprimentou a todos, e com uma voz
apavorada nos disse: – Eu pensei que era eu que tinha atropelado o
garoto. Quando o vi no chão, daquele jeito, pensei que ele estivesse
morto. Quase desmaiei, não conseguia caminhar. Levaram o menino para
o hospital, me deram água, me sentia desnorteado. Quando me recuperei,
fui para a delegacia e contei que talvez tivesse atropelado um menino.
Enquanto falava com o delegado, chegou um policial levando todo tipo de
informação, número de placa, nome do motorista e a que empresa
pertencia. O delegado me disse que tudo ia depender do estado do
menino, para correr o processo, mas quando chegamos aqui, e vi o
menino sentado e conversando, vocês não queiram saber a minha alegria,
que alívio senti, rezei e agradeci a Deus. Despediu-se de todos e também
me deu cinquenta centavos.
A minha mãe chegou com o papel da alta e todos saímos. Foram
necessários cinco cabriolés para irmos embora. A minha tia Otilia me
levava todos os dias para fazer os curativos. Dias depois estava tudo
cicatrizado, porém no rosto tinha muitas manchas em consequência das
feridas. Até hoje me lembro que minha tia ia para o mato perto de casa e
pegava algumas folhas de urtiga, é claro que era com luvas, e fazia um
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preparado para me passar no rosto, nas manchas deixadas pelas
cicatrizes, acreditem ou não, as manchas desapareceram.
Nunca me esqueço que um dia encostou em frente à minha casa o
ônibus da queda. Reconheci o motorista, este nos trouxe um rancho, que
durou mais de trinta dias. Ficou conversando conosco, me presenteou com
um peso, se despediu e foi embora. Imaginem a alegria da minha mãe.
Nesse rancho havia de tudo. Durante a minha convalescença, se é que
podemos chamar assim, não faltava uma noite que algum vizinho não
fosse me visitar. Não sabia que os meus irmãos gostassem tanto de mim.
Às noites, não saíam, como de costume, para brincar, ficavam com
Romélia lendo meus livros.
Práticas circenses
Já recuperado, voltei à minha rotina de sempre e quando não tinha
o que fazer gostava de praticar caminhar com as mãos, dar volta cambota
e com laranjas praticava malabarismo. Lutei bastante até conseguir
colocar os pés na nuca, por último, ao invés de caminhar normalmente,
sempre estava caminhando com as mãos. Chegava à casa dos vizinhos
caminhando com as mãos, também ia fazer as compras do mesmo jeito.
Um dia, quando cheguei no açougue de Gratiniano, ele, a mulher, os filhos
e os fregueses que ali estavam, riam. Gratiniano era o mais alegre, dei
volta cambota e coloquei os pés na nuca. Naquele dia, Gratiniano mandou
um pedaço grande de carne para minha mãe.
Um dia, fui visitar Elida e entrei no palácio caminhando com as
mãos. Foi a maior esculhambação que se formou quando me viram
caminhando daquele jeito, batiam palmas, riam, outros diziam: – Que
menino! Ao ouvir toda essa bagunça, Elida veio ver do que se tratava.
Quando me viu daquele jeito, gritou: – Negrinho! Endireitei-me, nos
abraçamos e entramos abraçados no seu quarto. Preparou-me chocolate
com queijo e pão de queijo, falamos bastante, sobretudo do Antônio, a
falta que nos fazia, com ele tudo era fácil, tudo era alegria. Aproveitei um
momento de silêncio e lhe perguntei se ela tinha condições de me comprar
um baralho, e ela indagou: – O que tu vais fazer com um baralho? Como
eu tinha recortado o papelão de caixas de sapato e de pastas de caderno
do tamanho do baralho, lhe fiz uma demonstração. Ela deu um suspiro e
disse: – Que pena que o Antônio não esteja aqui para te ver, ia ficar muito
orgulhoso. Trocou os chinelos por sapatos e saímos. Na primeira lojinha
de bijuterias que encontramos, entramos. Elida comprou o baralho e me
entregou. Eu quis fazer algumas provas, estava um pouco duro, porém
assim mesmo consegui fazer. Eu fazia e o dono da loja batia palmas, a
mulher e a filha também me viram fazer, pedi para ele me emprestar um
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dedal vermelho e fiz uma demonstração de destreza, ele me deu o dedal
de presente. Caminhei com as mãos, dei volta cambalhota, coloquei os
pés na nuca, a lojinha se encheu de gente, eles atendiam poucos
fregueses, eles queriam era me ver fazer as provas, depois eu disse ao
dono: – Um dia, quando comprar outro baralho, vou vir lhe fazer uma prova
muito bonita. Imediatamente ele pegou da vitrine outro baralho, a filha dele
pegou uma caixa com lenços coloridos e me fez escolher um, eu peguei o
vermelho, que era igual àquele do mágico do parque. Elida quis pagar e o
dono da loja não aceitou, disse que era presente. É claro que faziam
perguntas para Elida: quem eu era, sabiam que ela não poderia ser minha
mãe, ela era loira e eu preto. Despedimo-nos, e como era um pouco tarde,
fomos direto para minha casa. Elida entrou dizendo: – Chava, tu tens um
filho que é um artista! Depois se sentaram e conversaram. Elida falava da
tristeza e da falta que Antônio lhe fazia, é claro que também dizia que tinha
que se conformar porque ele deveria estar feliz com sua família na sua
terra.
Às vezes uma tristeza se manifestava em mim e eu saía correndo
até a casa que trabalhara com o Antônio. Sentava-me em um banquinho
de taquara que sempre esteve na frente, e aí voltava o nó na garganta e
aquele aperto no peito. Depois retornava para casa caminhando com as
mãos ou dando volta cambota. Não encontrava sossego em parte alguma.
Às vezes visitava Elida. Ela sempre choramingando, lembrando Antônio.
Tinha mandado emoldurar a foto dele e a tinha colocado na cabeceira da
cama. Eu só me sentia tranquilo na minha casa e perto da mãe.
Servindo ao Dr. Venavides
Um dia, cheguei no açougue para comprar carne para uma vizinha,
o açougueiro quando me viu entrar disse, cheio de satisfação: – Oh!
Negrinho estava te esperando. E me perguntou: – Será que tu queres
trabalhar na casa do Doutor Venavides? São poucas horas e só na parte
da manhã. Vamos falar com ele. Tirou o avental, chamou a mulher para
ela atender, e saímos. Minutos depois, chegamos em uma casa pintada de
cor pêssego, as portas e janelas de madeira eram patinadas entre verde e
branco, na parede e à nossa direita, havia uma plaquinha com letras em
alto relevo que dizia: Dr. Venavides – Advogado. Gratiniano, esse era o
nome do açougueiro, bateu na porta e apareceu um senhor jovem, branco,
alto, de cabelos ondulados. Era o Dr. Venavides. Após cumprimentar,
Gratiniano me apresentou dizendo: – Doutor, este é o garoto que lhe falei.
O Doutor me olhou e disse: – É novinho! Gratiniano respondeu: – É
novinho, porém melhor que gente grande! Gratiniano levava consigo dois
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pedaços de carne e o Doutor disse: – Vamos lhe explicar o serviço e
entramos na cozinha.
O serviço até que não era difícil. Em um fogão elétrico tinha uma
armação de arame e dentro da armação de arame tinha uma panela de
alumínio com água até a metade, e meu serviço era lavar a carne numa
pia que havia na cozinha, depois colocar a carne dentro da panela, ligar o
fogão e esperar até ferver. Depois pegava uma concha que estava ali
pronta para este serviço, a enchia com aquele caldo de carne e colocava
numa caneca esmaltada. Na geladeira já tinha um copo com leite, que
colocava no caldo, depois colocava duas colheres de açúcar. Mexia e
deixava esfriar até ficar levemente morno e logo colocava numa
mamadeira. A seguir, me mostraram um quarto onde, num berço, dormia
uma criança bem pequena. Ao lado havia uma cama de casal onde uma
senhora dormia. Fiquei sabendo que era a mulher do Doutor e ela estava
doente. Enquanto esperávamos que a criança acordasse, o Doutor pegou
um copo com água, desmanchou um comprimido, levantou um pouco a
esposa e lhe fez tomar. Em seguida, ela falou bem baixinho: – Minha filha?
E o Doutor respondeu: – Querida, tem um garoto aqui que está cuidando
dela. Gratiniano aproveitou e lhe disse: – Dona Rosalva, não se preocupe
que o garoto é bom, é o famoso negrinho.
Quando a criança acordou, dei a mamadeira, isto eu sabia fazer
porque muitas vezes me tocou dar a mamadeira à minha irmãzinha
pequena. Uma vez terminada a mamadeira, instintivamente peguei a
criança no colo e, em pé, coloquei-a sobre meu peito dando-lhe tapinhas
bem de leve nas costas, para ver se arrotava, assim evitando que, uma
vez deitada, vomitasse. O Doutor e Gratiniano festejaram meu
comportamento. Gratiniano aproveitou e disse: – Viu Doutor, ele é bom
mesmo. E dona Rosalva, que seguramente estava escutando, falou com
uma voz tênue, bem fraquinha: – Ele tem razão. O Doutor me deu uma
batidinha nas costas e disse: – Gostei de ti, guri. Gratiniano, estou seguro
que ele aprendeu tudo. Posso ir trabalhar descansado. Olhou o relógio e
disse: – Oito horas e trinta minutos, vou embora. Beijou a criança, a
esposa e me disse: – Será que tu consegues chegar pelas sete horas?
Quem respondeu foi Gratiniano, que lhe disse: – Antes das seis horas ele
já está na rua. O Doutor agradeceu a Gratiniano e saiu, antes, porém me
disse: – Diga para tua mãe que vou te pagar um peso por mês, tu ficas até
às nove horas ou nove horas e trinta minutos, até que chegue a
empregada. Se ela precisar que tu compres alguma coisa, tu vais comprar,
e depois estás livre. Como na panela se coloca dois pedaços de carne, tu
podes levar um, o outro tu deixas para a empregada. Gratiniano, que ainda
estava presente, me ensinando o serviço, disse para o Doutor: – Deixe-o
comigo que eu o oriento e falo com dona Isabel (minha mãe). Já na porta,
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o Doutor me perguntou: – Como é teu nome? Respondi: – Orlando.
Gratiniano disse: – Doutor, ele é conhecido por Negrinho, acredito que ele
já se esqueceu de seu próprio nome. O Doutor saiu, Gratiniano ficou
comigo até a chegada da empregada, ela me foi apresentada por
Gratiniano, eu senti que ela não foi com a minha cara. Gratiniano
perguntou se precisava de alguma coisa, ela de muito mau jeito,
respondeu que não, e sem me dar muita importância, entrou direto no
quarto e começou a assear a menina. Gratiniano pegou um garfo grande,
tirou um pedaço de carne e me entregou enrolado num papel. Tchau Rosa,
esse era o nome da empregada, e saímos. Na rua ele me disse: – Não te
preocupes com a Rosa, ela é assim mesmo, carrancuda, mas boa gente,
tu vais te dar bem com ela. Ao chegar na minha casa, Gratiniano já entrou
gritando: – Isabel, o negrinho já está trabalhando. Ele explicou tudo à
minha mãe, inclusive quanto ganharia, que era um peso ao mês, para
trabalhar só duas horas diárias.
No dia seguinte, foi a minha mãe quem me acompanhou. O Doutor
Venavides a recebeu com muita delicadeza. Eu fui fazer o meu serviço,
lavei a carne, coloquei na panela. A minha mãe me olhava enquanto
conversava com o Doutor. Fiz tudo direitinho, a minha mãe sempre me
controlando de longe. O doutor se despediu, a minha mãe entrou na
cozinha e lavou toda a louça que estava suja na pia, varreu, enquanto eu
dei a mamadeira da neném, depois enrolamos o nosso pedaço de carne e
ficamos esperando a chegada da empregada que não tardou. Ela
conversou com minha mãe enquanto fiz algumas compras. Desta vez ela
foi mais gentil comigo, fomos embora.
Uma semana depois, notei que dona Rosalva estava melhorando.
Um dia a encontrei sentada no sofá que estava no quarto. Ela conversava
com o Doutor enquanto eu dava a mamadeira à criança, ela me olhava e
sorria. O Doutor beijava a criança, depois dona Rosalva, me colocava a
mão na cabeça e se despedia. Noutro dia, quando cheguei, encontrei dona
Rosalva caminhando devagar dentro do quarto, o Doutor estava se
barbeando e quando fui dar a mamadeira ao bebê, ela me pediu para ela
dar. Passei a neném e ela a pegou no colo, a beijou e lhe dava a dedeira.
Depois me perguntou como era que eu fazia para ela arrotar. Quando
expliquei, ela achou engraçado e me disse: – Como é que com a tua idade
sabes mais de criança do que eu, que já sou mãe? Enquanto
esperávamos a chegada de Rosa, conversamos bastante. Ela me disse
que eles eram de Bogotá e que o Doutor era advogado e trabalhava para o
governo, que a estadia deles ali era provisória e que depois voltariam para
a capital. Perguntou-me muita coisa. Contei-lhe do Antônio, dos meus
olhos, que não podia estudar, falei da escola, também das cobras, do Dr.
Corrêa, caminhei com as mãos, fiz várias demonstrações, e ela ria
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bastante. Depois deitou a menina no berço e foi tomar banho e de lá de
dentro me gritou: – Negrinho, não vai embora, me espera para tomar café.
Rosa já tinha arrumado a mesa e minutos depois nós três estávamos
tomando café, conversando e rindo das minhas proezas, inclusive com as
cobras.
Todos os dias me levantava cedo, comprava o leite e o pão para
minha mãe e também para os vizinhos, depois corria para o açougue do
Gratiniano, pegava a carne e corria para a casa do Doutor Venavides.
Agora, quando chegava, a dona Rosalva já tinha ligado o fogão, eu lavava
a carne e colocava na panela e esperava até ferver, e enquanto eu
preparava a mamadeira, ela asseava a criança (Cristina, este era o nome
da menina), e enquanto eu dava a mamadeira, dona Rosalva tomava
banho. Meu serviço eu já sabia de cor, fazia as compras que Rosa deixava
anotado em um papel, e quando eu chegava de volta, já estavam me
esperando para juntos tomarmos café.
Ultimamente era dona Rosalva que preparava a mamadeira e dava
para Cristina, eu apenas levava a carne e fazia as compras, colocava o
lixo na rua, esperava que a Rosa chegasse para ver se ela precisava de
mais alguma coisa, e depois tomávamos café, sempre rindo e
conversando. Cristina continuava dormindo. Sem mais o que fazer, ficava
mais um pouco com dona Rosalva, a seu pedido, e depois me despedia e
saía caminhando com as mãos até um bom trecho, escutando as risadas
dos que me viam.
Quando completei um mês no serviço, quem me pagou foi dona
Rosalva. Ela amarrou o peso na ponta da minha camisa. Feliz, cheguei em
casa com o dinheiro ganho no emprego. Quando meus irmãos voltaram,
corri feliz para lhes contar. Fui contar também para Gratiniano e também
fui visitar o Dr. Corrêa, só para lhe contar. Fui na casa da Elida, vibrando
de feliz, parecia que tinha ganho o maior prêmio da loteria. Não
compreendia que aquele dinheiro mal dava para comprar pouca coisa.
Hoje, quando lembro daquela época, fico pensando e me digo: que bobo a
gente é quando criança.
Calculo que depois de passados mais ou menos uns quinze dias
de eu ter recebido meu pagamento, enquanto tomávamos o café, dona
Rosalva nos disse: – Meu marido foi chamado de volta para Bogotá.
Possivelmente viajaremos daqui uns três ou quatro dias.
Três dias depois, quando passei para pegar a carne, Gratiniano
me disse: – Hoje é o último dia que levas a carne, o Doutor vai embora.
Quando cheguei, a casa estava vazia, já tinham levado a mudança. O
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Doutor não estava, a mamadeira foi preparada como de costume, porém
improvisadamente. Cristina estava deitada com cobertores no chão, nós
também tomamos o café sentados no chão. Dona Rosalva estava feliz,
pois queria ver os pais e irmãos. Rosa estava um pouco séria, não falava,
eu pouco entendia. Duas horas depois chegou e estacionou em frente da
casa um carro grande preto que trazia o Doutor. O motorista era um
senhor moreno com uniforme azul e um quepe com uma cinta ao redor,
com as cores da bandeira colombiana. O que restava da mudança foi
colocado no porta-malas. Rosa ficou com as chaves da casa para serem
entregues na prefeitura. O Doutor disse: vamos levar o negrinho em casa,
e mandou que eu subisse no carro, indicou o caminho ao motorista. Uma
vez em casa, o Doutor desceu e dona Rosalva também, depois dos
cumprimentos, em seguida a despedida. O Doutor deu um peso para
minha mãe e a mim deu cinquenta centavos. Dona Rosalva me deu um
beijo na testa e me disse: – Tchau negrinho! Como sempre, o Doutor me
passou a mão na cabeça, agradeceu e também me disse tchau negrinho.
Subiu no carro e partiu. Através do vidro traseiro dona Rosalva me fazia
sinal de tchau. Fiquei sentado ali mesmo até o carro desaparecer, depois
fui até onde a mãe lavava roupas, lhe dei os cinquenta centavos, me sentia
um pouco triste.
De volta à rotina das compras matinais e a história do Mudinho
À noite, não quis ir brincar, mesmo com a insistência dos meus
irmãos, ainda mais sabendo que a Romélia tinha ido passar uns dias com
o pai, aproveitando o feriadão. A Romélia, até hoje, é uma das pessoas
que mais ficaram em minha memória dos dias da minha infância. Fico
lembrando de quando ela e minha mãe me contavam que quando eu era
criança de colo, com poucos meses de nascido, a Romélia deveria ter uns
sete aninhos, mas ela gostava de ajudar minha mãe a me dar banho.
Lembro que algumas vezes ela dizia para minha mãe, e na minha
presença: – Lembra Chavita, quando eu lhe lavava a bundinha, o
sovaquinho, o pipizinho, e olhe ele agora, o burro de homem que está. E
ela dizia ainda para a minha mãe: – Chavita, lembra quando adoeceu?
Parecia um ratinho. Nessa vez eu pensei que ele iria morrer e olha ele ali!
A minha mãe dizia: – Tu também eras pequenininha. Acho que tinhas a
idade que ele tem agora.
Continuava na minha rotina diária: de madrugava fazia as compras
das vizinhas, algumas vezes visitava Elida, outras vezes perambulava à
cata de cobras para o Dr. Corrêa. Enquanto escrevo, surgem muitas
lembranças daquela época, paro e começo a relembrar que uma vez,
estando à cata de cobras, atravessei o rio por uma pontezinha feita de
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cordas e pedaços de madeira. Não era muito sólida e era mal feita. Na
beira do rio existia muito mato com poucas clareiras. Como do outro lado
pouca gente andava, calculei que poderia encontrar cobras. Quando
estava vasculhando o mato, vi um rapaz sentado em um banquinho,
pescando de caniço à beira do rio, estava sozinho, eu estava do outro lado
e um pouco distante. Do lado que eu estava, era a fazenda que diziam ser
da família Caizedo, que sofria muito com o vandalismo da gurizada que
atravessava o rio para ordenhar as vacas e roubar o leite. Algumas vezes
roubavam os terneirinhos. Os empregados rondavam a cavalo, cuidando
quem atravessasse o rio. Quando um deles me viu, veio correndo com o
relho na mão para tirar o intruso, era desta forma que eles afugentavam a
gurizada de dentro da fazenda. Quando senti o galopar do cavalo, levantei
a cabeça. Era o senhor Martin, empregado da fazenda, e gritei: – Oi
senhor Martin! Ele freou um pouco o cavalo e me disse: – Oh campeão,
como vão essas cobras, achou alguma? – Nada, senhor Martin, respondi.
No momento que ele estava perguntando pela minha mãe e meus irmãos,
(a esposa dele era muito amiga de minha mãe), ouvimos um barulho, que
parecia de alguma coisa caindo na água e se debatendo. Quando passou
pela minha frente, eu vi e gritei: – Senhor Martin, é o Mudinho. Primeiro
passou uma lata vazia, na qual li Aveia Quaker. É claro que eu conhecia
essa lata. Era a forma que o mudo se comunicava com sua mãe, porque,
como ele era mudo, quando queria alguma coisa, batia na lata com uma
madeirinha que sempre estava amarrada na lata. De acordo com as
batidas, a mãe sabia o que ele queria. Ela também tinha outra lata igual, e
de acordo com as batidas, ele também sabia o que ela estava dizendo.
Este código tinha surgido instintivamente entre eles. Ele não sabia ler nem
escrever e ela era meio analfabeta. Em todo caso, quando vimos o
mudinho passar na nossa frente dentro d’água, o senhor Martin desceu do
cavalo, amarrou-o em uma árvore, tirou a roupa e saiu correndo pela beira
do rio, tentando alcançar o corpo do Mudo. Olhávamos para frente, para
trás e nada, por fim cheguei à ponte por onde eu tinha atravessado e gritei
para o senhor Martin, que eu ia avisar a mãe dele. – Certo, respondeu, e
traga mais gente. Ofegante, cheguei gritando: – Dona Rita, que era a mãe
dele, dona Rita, gritei de novo, o mudinho caiu no rio e está se afogando.
Um vizinho de dona Rita, que ouviu o barulho, perguntou: – O que foi? Eu
disse: – O Mudinho está se afogando. Onde? - Perto da ponte. Outros já
ouviram e saíram correndo para a ponte e eu atrás de todos, gritando: – O
Mudo está se afogando. A vizinhança, apesar daquela pobreza, era muito
unida, e a dor de um era a de todos. Corriam no mesmo sentido e com o
mesmo fim, o de socorrer o Mudo. Eu não conseguia acompanhar, porque
estava descalço e as pedras e os espinhos me machucavam a planta dos
pés. Fiquei totalmente para trás. Quando cheguei, tinha gente por todos os
lados, uns dentro do rio, outros fora, tinha até dois policiais que estavam
ajudando na busca. A correnteza do rio era forte e muito mais quando se
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aproximava da desembocadura do outro rio. De longe conseguia ver uma
canoa dos bombeiros com quatro homens também ajudando.
De onde o Mudo caiu até a desembocadura do rio, hoje calculo
que havia uns 2 quilômetros, a ponte ficava na metade do caminho. Os
bombeiros da canoa estavam com sungas, dois deles estavam amarrados
a uma corda e nos olhos tinham uma espécie de máscara para poder abrilos dentro d’água. Mergulhavam até o fundo e levados pela correnteza,
saíam mais adiante. Eram puxados pelos colegas até a canoa,
descansavam um pouco e tornavam a mergulhar. Os outros dois tinham
umas barras compridas com ganchos nas pontas, que colocavam dentro
da água tentando enganchar o corpo do Mudinho. Iam de uma margem à
outra do rio. Os policiais também procuravam antes da desembocadura,
estavam todos molhados, porque, às vezes entravam no rio e andavam
com paus cutucando por todos cantos. Alguns vizinhos que sabiam nadar
também mergulhavam e procuravam na beira, nas pedras. Um vizinho
encontrou o caniço enredado em um galho. Quando levantou o caniço, no
anzol tinha um peixinho bem pequenininho. Berrou tanto que todos
acreditaram que ele tivesse encontrado o corpo e no meio de tanta gritaria
tudo ficou em silêncio quando se deram conta que era só o caniço. Todo
barulho recomeçou, um compadre gritava: – Dá uma olhadinha naquela
espuma, outro, naquela pedra Uma senhora gritava para o marido: – Amor,
procura deste lado! Era aquele berreiro, cada um gritava de forma
diferente. Dona Rita, no desespero, corria de um lado para outro com sua
latinha de Aveia Quaker, de vez em quando dava uma batida, chorava e
gritava: – Oh meu Deus, porque levas meu filho? Meu Senhor me devolve
ele! Hoje lembro aqueles gritos de desespero e sinto um calafrio. Essa
imagem se manifesta com tanta evidência que parece que estou vendo
tudo de novo. Dona Rita era alta, magra, cabelos longos e mal cuidados,
seu rosto enrugado mostrava uma velhice prematura, poucos dentes.
Sempre calçava um chinelo de sapatos velhos que ela cortava a parte do
calcanhar e andava até quando não tinha mais condições de serem
usados, só conhecia dois vestidos, um deles dava a impressão de ter sido
floreado, só que de tantas lavadas, as flores mal e mal se viam, o outro
poderia ter sido cor de rosa, só que mais parecia um branco encardido.
Duas a três vezes por semana ia ao mercado levando um saco de
arpilheira e voltava com ele cheio de frutas e verduras, tomates, tudo que
encontrava nas latas de lixo, alguns donos de banca que a conheciam lhe
davam coisas boas, os donos de bancas de carne também lhe davam
alguns ossos com carne.
Fiquei sabendo que o pai do mudo tinha sido morto numa briga e
que gostava muito de beber. Quando bêbado era metido a facão sem
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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gume, até que um dia, bêbados, segundo diziam, lhe tiraram a valentia. Os
sogros da Rita também eram muito pobres e moravam num povoado
distante e, assim mesmo, uma vez por ano vinham, sempre perto do Natal,
para visitar a Rita e o neto Mudinho, trazendo alguns presentinhos,
roupinhas e alguns trocos. A mãe da Rita era doente, tinha sofrido um
derrame e vivia quietinha pelos cantos, sempre que a gente olhava para
ela dava a impressão que estava rindo. Às vezes, hoje, aqui sozinho em
meu escritório, me vêm à tona reminiscências do meu bairro, daquela
época da minha infância e me digo: – Bota pobreza nisto!
As buscas continuavam, no horizonte o sol já queria se ocultar
sentia-se a exaustão de alguns, que se sentavam para descansar um
pouco, e continuar em seguida. Eu voltei para minha casa porque quase
não podia caminhar de tantos ferimentos que tinha na sola dos pés.
Peguei uns pedaços de panos velhos e enrolei-os nos pés à guisa de
sapatos e voltei correndo. Quando cheguei na beira do rio, ouvi um
barulho, me aproximei e vi que eram três rapazes, vizinhos do bairro, que
tentavam pegar a lata de Aveia Quaker com o palito, que tinha ficado
enredada num galho. Eles tentavam resgatá-la com uma madeirinha, só
que muito curta. Quando cheguei, eles me pediram para eu tentar, porque
eu carregava uma vassoura velha e gasta que tinha encontrado na beira
do rio. Tudo era mato, porém fui me aproximando e consegui enganchá-la
com o toco da vassoura, e comecei a puxar, até que deu para pegar a lata
com o pauzinho. A gurizada saiu correndo para dizer à dona Rita do
encontro da latinha. Eu não me atrevi a correr, temendo que as vendas
dos meus pés desatassem. Comecei a caminhar, sempre perto da beira do
rio. No lugar por onde eu estava passando, o rio fazia uma curva de
aproximadamente trinta e cinco graus. Ali havia umas pedras bem
grandes, e parte delas ficava fora da água, e entre o redemoinho e a
espuma que se formava, me deu a impressão de ver alguma coisa que
aparecia e desaparecia por entre o mato. Tratei de me aproximar o mais
que pude e vi que era o banquinho do Mudo. Ali o rio era muito fundo e a
correnteza muito forte. Tive vontade de pegar o banquinho, mas não me
atrevi, era tudo junto, mato, correnteza e, no fundo, tive medo e raiva de
não poder pegá-lo. A distância não era muito grande, só que o barulho e a
força da água me davam temor, e o temor me dava raiva, e a raiva fez com
que eu pegasse o palito e batesse com muita força na lata. E foi nesse
mesmo instante que ouvi: – vooo, que era a única forma que o Mudinho
sabia falar. Olhei bem por entre o mato e vi o Mudinho nu olhando com
olhos esbugalhados e com o rosto ensanguentado. Sua camisa estava
toda rasgada, e ele se encontrava enredado nesse mato, que era cheio de
espinhos grandes, chamados de unha de gato. Saí rápido dali, até me
esqueci dos meus pés e comecei a correr, gritando a todo pulmão: – O
Mudinho está aqui! E repetia. Para não me enganar, deixei lá minha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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camisa e a latinha marcando o lugar. Quando todos correram para o meu
lado, parei em frente, indicando o lugar. Todos passaram por cima da
minha camisa, a lata foi parar longe. Os bombeiros, com foices e facões,
foram desbravando o mato e cortando as unhas de gato. Quando abriram
a primeira clareira, um bombeiro se deitou por baixo, amarrando o
Mudinho pela cintura, outros dois policiais seguravam a corda, enquanto
os bombeiros continuavam cortando o mato e tirando com cuidado os
galhos que seguravam o Mudo.
A Rita chorava e perguntava: – Ele está vivo? – Sim, alguém
respondeu, só está um pouco machucado pelas unhas de gato. Ela se
ajoelhou, colocando as mãos para o céu, dizendo: – Obrigada, Senhor
meu Deus, obrigada! Uma vez liberado, puxaram o Mudinho para fora da
água. Quando o puxaram o banco veio junto. A Rita amarrava o banquinho
com uma corda na cintura dele quando ia pescar, para que não o
esquecesse. Foi isto que o salvou, porque quando chegou na curva do rio,
a corda se enredou nas unhas de gato e o mudinho ficou ali todo
enredado. Como o Mudinho estava mais baixo que o nível da pedra, nós
víamos o banco, porém a corda não. Tiraram as cordas do Mudo, um
bombeiro o pegou no colo e saiu correndo com ele em direção ao carro
que tinha ficado na rua e todos nós corríamos. Eu fui o primeiro a subir no
carro dos bombeiros, quando ouvi um bombeiro dizer que não poderíamos
subir todos no carro porque ele não aguentaria. Antes que me mandassem
descer me escondi atrás de umas lonas. O Mudo foi colocado no carro, em
cima de uma padiola, segurada por dois policiais, enquanto dois
bombeiros, um deles dirigia e o outro liberava a sirene. A mãe do Mudo
também estava sentada naquela parafernália de cordas, ferros, cabos de
aço, foices e facões.
Chegamos ao hospital, o mesmo que tinham me levado quando
caí do ônibus, vários médicos e enfermeiras correram para atender o
Mudo. Eu e mais dois vizinhos que tinhamos conseguido ir junto,
olhávamos de longe. Um dos médicos me reconheceu, se aproximou e me
perguntou: – Não foste tu quem caiu do ônibus? Respondi que sim.
Perguntou o porquê das vendas em meus pés e eu lhe contei. Ele me
disse: – E porque andas sem sapatos? Eu respondi: – Porque não tenho.
Ele chamou um enfermeiro que me pegou no colo e me levou até a
enfermaria. O Doutor veio me examinar e uma enfermeira limpou meus
pés, colocando pomada, gaze e esparadrapo. Colocaram meus pés sobre
um papelão onde a enfermeira fez seu desenho. Chamaram um senhor,
entregando-lhe o desenho do pé. Minutos depois, ele apareceu com uma
caixa de sapatos, que o Doutor me entregou dizendo: – Estes sapatos são
para usares quando sarar dos cortes. Dentro da caixa colocaram também
um tubo de pomada, esparadrapo, gaze e uma receita. O Doutor me disse:
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– Isto tudo é para entregar à tua mãe. Dois vizinhos que tinham vindo
conosco, estavam sentados comigo num banco à espera de notícias do
Mudo. Duas freiras se aproximaram de nós e perguntaram por que eu
estava sem camisa. Os vizinhos contaram o acontecido e elas pediram
para eu ir junto a um quarto, onde tinha um guarda-roupa de onde tiraram
uma camiseta branca e me entregaram. Era um pouquinho grande, mas
fiquei muito feliz.
Ao escrever estas memórias e relembrar todos aqueles
acontecimentos fecho os olhos e evidencio o exato momento quando vi o
Mudinho naquele brejo, com o rosto ensanguentado. Vejo também quando
o bombeiro levou o Mudinho no colo e nós correndo atrás dele. A Rita
correndo atrás do bombeiro e de repente perde um chinelo, que lhe
escapou do pé. Ela, sem perda de tempo, mandou o outro chinelo longe.
Eu peguei os dois chinelos, escondi numa moita e continuei correndo.
Depois de tanto tempo, agora aqui no meu escritório, dou risada sozinho
ao lembrar do jeito que a Rita se desfez do chinelo e da velocidade com
que os escondi. Vejo a Rita sentada num banco, agachada com os
cotovelos nas coxas e a mão no rosto, sem sapatos, mal vestida,
desgrenhada, que pobreza! Lembro e dou risada do jeito que me escondi
no meio das lonas, com cheiro forte de óleo. Lembro quando uma
enfermeira veio nos dizer: – Podem ir ver o paciente, e todos corremos e o
encontramos sentado num banco, todo vestido de branco, inclusive os
sapatos. Apesar de ser tudo usado, estava limpo e em perfeitas condições.
Já se passaram tantos anos e até hoje guardo na memória aquele olhar
que o Mudo deu para a mãe quando a viu entrar. Não consigo interpretar
se era de desculpas ou algo como de satisfação por vê-la. O médico
entrou com um senhor forte, alto, branco, e o cabelo ralo parecia de
sarará. O Doutor disse: – Ele vai levar vocês para casa. Rita agradeceu ao
Doutor e às enfermeiras e todos nos despedimos. O Doutor que me deu os
sapatos mexeu comigo dizendo: – Viu, chegou pelado e volta vestido,
chegou ferido e vai curado e veja se não te penduras em outro ônibus!
Lembro-me que eu só sorria, feliz com minha caixa de sapatos na mão.
Quando a gente da vila viu o carro da saúde parar em frente a
casa da Rita, os vizinhos correram para ver o Mudinho que, para surpresa
de todos, estava vestido todo de branco como um doutor. A ambulância foi
embora, porém todos ficaram ali. O Mudinho estava cheio de gazes e
esparadrapos no rosto e em vários lugares do corpo. Muitos comentaram
que quando eu vim do hospital, estava do mesmo jeito. Lembro que a
tragédia do Mudo me deu lucro: um par de sapatos novos e uma camiseta.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Quando desci da ambulância a primeira coisa que fiz foi sair
correndo para minha casa. Entreguei para minha mãe a caixa com os
sapatos e os curativos. Na receita que também estava junto, dizia para
lavar com água quente todos os dias, colocando pomada e gazes novas,
fixas com esparadrapo e não caminhar por quatro dias. Fico lembrando a
tristeza que senti, quando no quarto dia, experimentei os sapatos, eram
grandes demais para os meus pés, então minha mãe pediu para que os
desse para meu irmão mais velho, que no ano seguinte se mudaria para
outra escola, perto do centro, e teria que ir mais bem vestido. Sem mágoa
alguma, aprovei o desejo de minha mãe.
Os dois amigos
Conto-lhes que ali mesmo na minha vila eu tinha dois amiguinhos
excepcionais: um deles era o Mudinho, seu nome verdadeiro era
Alejandro. Nunca soube sua idade, lembro que sempre estava sério e tinha
certa dificuldade para caminhar. Às vezes, aos domingos, nos reuníamos,
com vários garotos da vila, e saíamos pelas estradas sem movimento de
carros, só de carroças, ou alguém a cavalo. Colhíamos frutas, algumas
silvestres, outras dos galhos que saíam das cercas e, muitas vezes,
invadíamos lugares particulares, sempre na espreita, para no caso de
alguma emergência, poder correr. Meus dois irmãos eram mais
destemidos, entravam, subiam nas árvores, colhiam as frutas, atiravam o
resto para a gurizada recolher e depois tudo era repartido em partes
iguais. Nesses casos, o mais covarde era eu. Da parte que me cabia, eu
levava algumas frutas para o Mudinho, e sentia sua felicidade. Ele fazia
vários gestos, mexia a cabeça, as mãos, com certa dificuldade, dava a
impressão que queria falar, talvez para me agradecer. Normalmente,
parecia estar bravo, triste, hoje trato de raciocinar e me pergunto: – Será
que ele não compreendia seu estado e isso lhe proporcionava o viver
taciturno? É claro que quando eu chegava perto dele, seu comportamento
era diferente, fazia gestos como tentando sorrir e fico pensando: coitada
da Rita, aquele rapaz poderia ser sua ajuda, infelizmente nasceu assim.
O meu outro amigo era um garoto de nome Oscar, ele tinha sofrido
de poliomielite e ficado cheio de problemas físicos, caminhava aos pulos,
dando a impressão de que poderia cair, movimentava os braços com muita
dificuldade, um era menor que o outro. Ele ouvia e entendia tudo, estava
sempre sorridente, emitia alguns sons, com os quais se fazia entender.
Ficava feliz quando me via, gostava de ser meu amigo. Lembro que
quando entrei na escola, no segundo mês fui escolhido para participar de
um grupo de teatro entre os alunos da primeira série. Dentro da
programação, eu teria que cantar e dançar com um grupo de meninos e
meninas e a dança era uma guabina chinquinquirenha, por ser de uma
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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cidade de nome Chinquinquira. A apresentação era na sexta-feira cultural,
e os pais dos alunos eram convidados a assistir. Oscar foi levado pelos
pais que tinham outro filho estudando ali. Muitos me contavam que quando
Oscar me viu aparecer no palco com aquela roupa imitando o homem do
campo, ria, gesticulava, demonstrava tanta alegria que chamava a atenção
de todos. Quando terminamos a nossa apresentação, os presentes batiam
palmas, ele também tentava, só que enquanto os outros batiam três vezes
ele batia uma só vez. Terminada minha apresentação, fui sentar junto com
minha mãe e meus irmãos. Oscar que estava perto, quando me viu
chegar, era só alegria, gesticulava, mexia com os braços, era todo euforia
e, ao invés de sentar perto da minha mãe, me sentei junto dele. Ele me
abraçou pela cintura e eu fiz o mesmo, assim ele ficou quietinho vendo o
resto da apresentação. Ao nos ver abraçados, alguém comentou: – Como
eles se querem bem! A Romélia, que estava perto, interferiu dizendo: – É
que esse negrinho é a coisa mais querida do mundo, veio e me deu um
beijo na bochecha. Oscar fez um gesto como de bravo, como quem não
gostou, Romélia também o beijou e lhe disse: – Não fica bravo, eu também
gosto de ti, ele como pôde, deu um beijo nela. Sempre quando chegava na
casa dele, ele tratava de dançar como querendo me imitar e eu também
dançava com ele. O pai de Oscar vendia frutas. O dono da banca tinha
várias bancas e todas terceirizadas. Ele pagava por porcentagem. A
mulher, tal como minha mãe, também lavava e passava roupas, mesmo
assim, eram tão pobres como nós.
Cumpri a rigor os quatro dias que o médico pediu, é claro que no
terceiro dia já não sentia mais nada, só que fiquei, para não dar o contra a
minha mãe. Durante o tempo de repouso, Gratiniano, que soube da
história, foi com a mulher me visitar e levaram para minha mãe carne e
algumas verduras. Elida também foi me ver e, como sempre, alguma coisa
levava para a mãe, vários vizinhos também foram me ver. Uma noite a Rita
levou o Mudinho, ele ainda estava cheio de curativos. O pai e a mãe do
Oscar também foram me visitar. Oscar estava sempre sorrindo e fazendo
esforço para me dizer alguma coisa, que não saía. Romélia e meus irmãos
não iam brincar na rua, ficavam comigo bagunçando a casa.
No quinto dia madruguei e fui fazer as compras para meus
vizinhos. Quando entrei no açougue, o primeiro a mexer comigo foi o
Gratiniano, que me chamava de herói. Na padaria, quando cheguei, me
perguntaram como eu tinha conseguido tirar o Mudinho de dentro do rio,
pois ele era mais alto e mais forte que eu. É claro que eu respondia que
não tinha sido eu, e sim os bombeiros e a polícia. Faziam-me muitas
perguntas e eu contava todos os acontecimentos, até as feridas dos pés.
Quando imitava os gestos do Mudinho, com os olhos bem arregalados,
todos riam. Naquela manhã, ganhei de dois fregueses da padaria, pão,
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arepas, pão de queijo e até um litro de leite. Voltei para casa com tudo que
ganhei.
Três dias após estar caminhando, apareceu o Dr. Corrêa com a
mulher, a empregada e o marido dela, recém tinham sabido de tudo, me
levaram pomada cicatrizante à base de veneno de cobra. O Dr. Corrêa me
abraçou e a mulher dele quase me afogou com o apertão que me deu, é
que ela era um pouco gordinha. A empregada, sempre carinhosa para
comigo, também me abraçou, o marido dela, alto e forte, me pegou e me
levantou. Lembro-me que ele às vezes me pegava daquele jeito na casa
do Dr. Corrêa, quando nos chamavam para tomar café, me levava até a
mesa. Senti-me muito feliz com a visita e ficou combinado que eu iria
tomar café ou almoçar com eles qualquer dia. Dois dias depois eu fui
almoçar. Não faltaram as perguntas a respeito do Mudo e também muitas
risadas ao descrever os acontecimentos. Regressei para casa com uns
troquinhos e algumas frutas e verduras que ganhei deles.
Vendedor na estação de trem
Quando se manifesta em minha memória isto que vou contar, sinto
uma espécie de raiva, mas é claro que se dissipa ao pensar que faz tantos
anos, e que essa raiva agora não adianta nada. O caso é o seguinte: Um
dia, minha tia Otilia foi à nossa casa para pedir à minha mãe me deixar
cuidar de um carrinho que ela tinha na estação de trem onde ela vendia
aveia e bolos. É que ela estava nos últimos dias de gravidez do terceiro
filho. Claro que nem eu nem minha mãe negaríamos este pedido. No dia
seguinte de manhã, minha tia me deu a orientação necessária. O carrinho
era bem bonitinho, pintado de branco e azul celeste, as rodas eram de
borracha, com aproximadamente 40 centímentros de diâmetro e estavam
pintadas de preto. O carrinho era igual àqueles de cachorro quente ou
pipoca Do lado esquerdo tinha duas abraçadeiras onde era fixado um tubo
de aço inox de aproximadamente 40 centímetros de diâmetro, e em seu
interior, era colocado outro tubo com diâmetro de aproximadamente 25
centímetros. A altura era de 70 centímetros e o tubo externo tinha na parte
inferior uma torneira com um tubo pequeno de vidro que marcava a
quantidade de litros de aveia existentes. Entre o tubo interno e o externo,
era colocado gelo para manter a aveia bem gelada. Tinha duas vitrines de
vidro, uma para guardar os bolos e doces e a outra para guardar os copos
limpos. Na parte de baixo estava o depósito de água para lavar os copos e
ao lado uma espécie de paiol para guardar cachibaches.
Naquele primeiro dia fiquei junto com minha tia aprendendo como
tudo funcionava, o que me pareceu muito fácil: aveia, bolos e doces, todos
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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eram entregues no local, era só vender. O bolo custava dois centavos e o
copo de aveia três centavos. Existia uma gaveta pequena para guardar o
dinheiro, o movimento maior era na chegada e na saída dos trens, eu era
feliz atendendo a freguesia. Algumas vezes havia até dez fregueses
tomando aveia, eu pegava o dinheiro, dava o troco e colocava o dinheiro
na gaveta. Quando diminuía a venda, para chamar o freguês, eu gritava: –
Aveia, aveia, aveia gelada... Se alguém passava perto, eu dizia: – Venha
freguês, temos aveia geladinha. Às vezes, um dos colegas vinha me dar
uma olhadinha e quando eu estava atendendo muita gente eles me
ajudavam. Soube que minha tia é que tinha pedido a eles, por isso que
tanto me cuidavam. Às dezessete horas o fornecedor de aveia vinha pegar
o seu dinheiro, também o dos bolos, e eu pegava o restante e levava para
minha tia, que me pagava cinco centavos. A tristeza pelo Antônio tinha
desaparecido. Eu era o cara mais feliz da terra! Uma senhora chegava
perto do meio dia com o almoço, levava enrolado em folhas de bananeira,
era gostoso. Às vezes era peixe, camarões, carne de gado ou de porco, e
outras vezes era lentilhas, feijão, ervilhas, grão de bico, bem preparados,
com vários legumes picadinhos e até bacon, custava dois centavos, a
gente pagava na hora.
Tudo seguia como minha tia tinha orientado, mas a minha
felicidade durou pouco. No segundo sábado, quando tinha começado a
varrer o lugar que me correspondia, de repente ouvi um barulho de vidro
quebrado e vi o carrinho virando, não virou dum todo, pois ficou escorado
em uma grade localizada na lateral da estação. Todos os colegas correram
a me socorrer. O causador de tudo era um moreno forte, completamente
bêbado, que, tentando se manter em pé deu um soco nas vitrines dos
copos e bolos e tudo voou longe. Ele estava com as mãos
ensanguentadas. Tentei pegá-lo, mas era forte e pesado. Ao ouvir o
barulho, dois policiais de plantão na estação correram para auxiliar. No
mesmo momento apareceu um camburão com três policiais, deitaram o
cara que bufava, algemaram-no e o colocaram no camburão. Um guarda
pediu para alguém acompanhar e fazer a queixa. Otávio, um colega, se
prontificou e me acompanhou até a delegacia. Lá, colocaram o bêbado
num quarto com a porta gradeada de ferro e deitaram-no num colchão
sujo. Os policiais deram parte da detenção ao delegado de plantão, que
assinou uma carteirinha que eles apresentaram e eles foram embora.
Otávio explicou ao delegado o estrago que o homem havia feito e o
delegado disse: – Esse cara é o Boxeador, o tal de Kid, vamos esperar
que fique bom, o melhor seria que viesse o proprietário do carrinho. Otávio
me acompanhou até a casa de minha tia para lhe explicar o acontecido.
Minha tia não estava, tinha sido levada para o hospital, pois tinha sentido
as dores do parto. Naquele mesmo momento chegou meu tio e Otávio lhe
explicou o ocorrido, em seguida saímos os três, primeiro fomos ver o
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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carrinho. Os colegas já o tinham guardado, varrido e amontoado os vidros.
Um deles me entregou o dinheiro que estava na gaveta e eu entreguei
para meu tio, só que ele não me deu meus cinco centavos. Em seguida
partimos para a delegacia. Otávio ficou. Quando chegamos na delegacia, o
bêbado não estava mais e o delegado não tinha feito nenhum tipo de
ocorrência. Meu tio reclamou ao delegado: quem iria então pagar o estrago
e começou uma certa discussão entre eles. Por fim o delegado ameaçou
meu tio de desacato à autoridade e nos disse que o Boxeador tinha sido
levado para o hospital a fim de ser curado. Partimos para o hospital, lá ele
não tinha sido levado. Voltamos à delegacia e para nossa surpresa, o
delegado não estava mais, era outro, que nos disse não ter nada
registrado e que por isso não poderia fazer nada por nós, esse delegado
nos dava pouca atenção, dando a impressão que não queria falar conosco.
Voltamos para casa, meu tio não falava nada, parecia bravo, eu estava
apavorado e triste e ao invés de ir para casa fui para o Gratiniano e lhe
contei tudo. Mais tarde ele me levou para casa, minha mãe não estava,
tinha ido com meu irmão mais velho à maternidade ver minha tia que
estava para ganhar neném.
Hoje fico pensando e lembrando a desonestidade desses
autoridades. É claro, o mais certo é que pediram algum dinheiro ao tal
Boxeador para deixar por isso mesmo, penso na tristeza dos meus tios,
quem sabe que sacrifício não fizeram para comprar aquele carrinho, e me
pergunto: – Será que aqueles delegados não viram que eu era apenas
uma criança e que éramos gente pobre? Será que o dinheiro que pegaram
do Boxeador lhes serviu para não morrerem nunca?
Lembro-me que fiquei muito triste e andava apavorado. Nunca
mais quis ver meus tios. O primo que nasceu naqueles dias fui conhecê-lo
depois de quatorze anos. Sempre que algum percalço se me atravessava,
lembrava-me do Antônio e pensava: – Se ele estivesse aqui, nada disso
teria me acontecido. Até hoje não sei por que fiquei com tanto medo dos
meus tios, eu fugia deles. Reconheço que eles foram muito bons para nós
quando éramos crianças.
Reinício das aulas
Sem nada para fazer, de vez em quando saía à cata de cobras,
que não encontrava, não deixava de visitar o Dr. Corrêa, Elida. Via o
Gratiniano quando ia comprar carne para alguma vizinha. Estava sempre
praticando o que sabia fazer, agora estava tentando me equilibrar no rolo,
assim passava os dias, fuçando aqui, fuçando ali. Às vezes me lembrava
daquele maldito Boxeador, que por culpa dele tinha perdido de ganhar
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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meus cinco centavos todos os dias, algumas vezes ia ver o Mudinho,
outras o Oscar. À noite nos reuníamos, Romélia, meus irmãos e outros
meninos e meninas para brincar. Uma quinta-feira minha mãe me disse: –
Meu filho, na segunda-feira tens que ir ao oftalmologista. Já está na hora.
Na segunda-feira madruguei, atendi minhas vizinhas, voltei para casa,
minha mãe me arrumou e fomos. O oftalmologista me fez vários exames,
disse para minha mãe que não podia parar com o tratamento da água nos
olhos e disse que tentasse voltar para a escola. Antes de irmos para casa,
passamos na escola para informar à diretora, só que ela nos advertiu que
dificilmente eu passaria de ano, primeiro pela quantidade de faltas, depois
pelo atraso que estava em acompanhar as aulas.
Por causa de uma pomada que o Dr. Corrêa me colocava nos
olhos e que deixava a visão um pouco turva, e por ter um feriado no meio
da semana, ficou combinado que eu recomeçaria as aulas na segundafeira. Vagamente lembro que só o irmão mais velho ia à escola com
sapatos os outros de pés no chão.
Algo pairava no ar na comunidade e eu sentia medo, talvez os
meus irmãos também. Tinha a impressão de que as pessoas corriam
tentando se esconder. Ao chegarmos na escola, estavam todos no maior
alvoroço, adolescentes, professores... Os mais esclarecidos falavam na
guerra que provavelmente chegaria ao nosso país, que iria destruir a
nossa cidade. Alguns alunos, talvez os mais cheios de fantasia, diziam que
haviam lido nos jornais que os alemães estavam pegando todas as
crianças, que as tiravam dos pais e as colocavam em um caldeirão de
água fervente e aos adultos queimavam em grandes fogueiras ou os
amarravam uns aos outros e fuzilavam.
Inconscientemente este era o meu medo. Mas havia alunos que
não se importavam com nada, uns corriam, outros pulavam, havia também
aqueles que só se importavam em comer, beber refrigerante, comiam
doces, bolo, tortas, pastéis, empadas... Estes eram os mais favorecidos, e
não se importavam de ver aqueles que não tinham o que comer. Eu e
meus outros dois irmãos ficávamos sentados num canto, semi-escondidos,
degustando um pedaço de rapadura que nossa mãe nos dava para a
merenda. Mesmo assim eu era feliz porque estava conseguindo estudar. A
Romélia e meu irmão mais velho tratavam de me ensinar, mais pelas aulas
que eu havia perdido, para ver se eu conseguiria fazer o exame no final do
ano. Muitas vezes não íamos brincar, eles preferiam ficar me ensinando, é
claro que eu também me preocupava em aprender, lia muito sobre tudo,
um livro que até hoje guardo na memória: “Alegria de ler”, da 2ª série.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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O barulho da tal guerra continuava e nas casas onde tinha rádio,
sempre estavam ligados a todo volume, dando notícias da guerra. Os
vendedores de jornais passavam pelas ruas gritando: – El Tiempo, El
Tiempo, El relator con las ultimas notícias de la guerra! Se a minha
memória não falha lembro-me que havia um jornal chamado “El Clarin”, e
outro “El Gato”. Um era dedicado mais que todos às charges, de
preferência políticas e de gente da sociedade; o outro, a crimes
passionais, só que agora, os dois dedicavam suas edições à guerra. A tal
da guerra às vezes me assustava sem saber o porquê. Mesmo assim, o
que eu tratava era de aprender.
O tempo passava e eu continuava feliz, indo à escola, meus
irmãos me cuidavam muito, no início da aula não iam embora até eu entrar
no salão, na hora da merenda, estavam sempre comigo, e na hora da
saída íamos juntos para casa.
Calculo que já tinha se passado quase dois meses de minha volta
para a escola quando, de repente, senti uma forte ferroada. Imagino que
deve ter sido muito forte, pois caí desmaiado e quando acordei estava no
posto de saúde; me deu a impressão que o médico estava xingando minha
mãe, porque o ouvi dizer a ela: – A senhora insiste em mandá-lo à escola.
Ao que minha mãe respondeu: – Foi o oftalmologista que autorizou. No
carro do posto de saúde, o médico nos levou para o oftalmologista, que ao
me ver e examinar, só dizia: – Pô, ele estava tão bem! Colocou-me
pomada nos olhos e disse para minha mãe continuar o tratamento com a
tal água no cálice e que tinha que ficar com os olhos abertos. Era colocada
a noite, não sei que tipo de água era essa, alguma vez parece que ouvi
dizer que era água boricada. A receita que o oftalmologista deu era ficar
uma semana de repouso. O médico nos deixou em casa e minha mãe me
levou diretamente para cama, meus irmãozinhos pequenos vieram se
deitar junto comigo, porém como me viram com os olhos fechados
pensaram que eu dormia e foram embora. Só que eu não dormia, estava
de olhos fechados, triste e com uma espécie de raiva, por momentos
pensava na guerra e sentia medo.
Poucos meses tinha ficado na escola e nunca imaginei que em tão
curto período tinha feito tantos amiguinhos. É claro que a razão era só
uma, que nas horas de descanso eu lhes fazia as minhas acrobacias e
eles adoravam. Em casa, contavam para os pais, e quando se deram
conta do meu repouso e que não voltaria à escola, incomodavam os pais
para irem me ver. Eram meninos de um bairro vizinho e de famílias de um
nível econômico um pouco mais alto, todos os meninos eram novos na
escola.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Os colegas da minha vila todos me conheciam, por isso não era
difícil me encontrar. Uma vez dentro da vila era só perguntar onde morava
o Negro ou o Negrinho, que qualquer um dizia, ou era capaz até de levar
na minha casa. (Que casa nada, era uma maloquinha de papelão, feita
pela minha mãe). Lembro-me que quando chovia, minha mãe nos
colocava todos na cama e nos tapava com papelão e panos velhos para
não nos molharmos, porque caíam muitas goteiras. Em todo caso, eu
ficava muito feliz quando me visitavam, os meninos ao se despedirem
diziam: – Negrinho, volta ligeiro para a escola!
Os pais dos coleguinhas, quando me visitavam pela segunda vez,
levavam aipim, batatas, arroz, etc. Algumas mães já familiarizadas, diziam
para minha mãe: – Dona Isabel não pára nunca, está sempre funcionando,
de dia lavando, à noite passando e para descansar, entregando.
No sábado à tarde foi me visitar um coleguinha de nome André,
deveria ter sete ou oito anos. Ele já tinha me visitado com a mãe, só que
desta vez apareceu sozinho, nos disse que como não tinha perigo de
carros, a mãe o tinha deixado vir, tinha pinta de sapeca, era bem branco,
entre o nariz e as bochechas se manifestavam umas poucas sardas e com
o queixo rasputiniano lhe dava aquele ar de arteiro. Com um sorriso à
Mona Lisa, me disse que já conseguia se equilibrar nas mãos, e realmente
se equilibrou, me disse que o que não conseguia era caminhar. Levanteime, lhe segurei os dois pés, de forma a aliviar o peso dele mesmo e assim
começou a dar os primeiros passos, expliquei que praticando todos os dias
caminharia com facilidade. Aquela tarde ele conseguiu dar vários passos e
várias vezes. Já bem tarde, e muito feliz, se despediu, minha mãe o
acompanhou até perto de sua casa.
Dias depois fiquei sabendo que alguns guris daquele bairro onde
morava o André estavam praticando caminhar com as mãos e que até o
padre Romero, que era bem jovem, também praticava, e estavam
organizando uma festa onde haveria vários concursos, inclusive uma
corrida com as mãos. Soube também que até algumas meninas colocavam
as calças ou pijamas dos pais ou dos irmãos, para praticar o número.
Soube que praticavam nas calçadas, nas ruas, e que com a participação
do padre, agora estavam praticando no salão paroquial. Entre as mulheres
havia uma gordinha de nome Lucia, era cômica caminhando com as mãos.
A Luisa era uma pretinha muito bonitinha, ágil, caminhava bastante, mas
era pavio curto, não levava desaforo para casa, enfrentava até rapazes
mais velhos do que ela.
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A apresentação circense na festa da Igreja
Num domingo à tarde apareceram na minha casa o padre Romero,
André, Luisa, Lucia e outros meninos e meninas. O motivo da visita era me
convidar para participar, como espectador, da festinha da igreja. O padre
me disse que eu poderia convidar a garotada e os adultos da vila, e eu
convidei todos. No dia da festa houve corrida de saco, galinha cega, jogo
da argola, jogo de vôlei com bexiguinhas cheias d’água, grupo de meninas
e meninos cantando e dançando música do folclore nacional. Apareceu
Pedro Malas Artes com uma menina de nome Susana e apresentaram um
diálogo: O Diabo e o Anjo. Foi muito cômico, todos gostaram e riram muito.
Um rapaz da quarta série da minha escola recitou uma poesia, que
apesar de ser muito longa, não errou em nenhum momento, a poesia era
Bálbula. Um trio de meninas, de talvez dez a doze anos, tocaram violão e
cantaram muito bonito. A maior expectativa estava na corrida com as
mãos. O padre participaria e também André, Lúcia, Luisa e vários outros
rapazes. Deu-se a partida, o padre toda hora caía, o André pegou a
dianteira e com segurança e sem cair nenhuma vez chegou em primeiro
lugar, os pais dele nem sabiam das habilidades do filho e felizes lhe
perguntaram: – Meu filho, quem te ensinou? Ele respondeu: – Eu aprendi a
me equilibrar e o Negrinho me ensinou a caminhar. Quando foi a vez das
mulheres, a Luisa foi a ganhadora. Também foi surpresa para os pais, e
quando lhe perguntaram: – Foi o Negrinho que te ensinou?, ela respondeu:
– Não, foi o André.
O padre Romero que já sabia das minhas habilidades pediu-me
para fazer uma demonstração. Não me fiz de rogado, eu estava doidinho
para demonstrar, comecei caminhando com as mãos, fiz o percurso da
corrida, e o que eles fizeram caminhando, eu fiz correndo, depois fiquei
numa mão só, fui muito aplaudido, coloquei os pés na nuca e o público
delirava, dei a volta cambota no ar e por último fiz mágicas. O André era
um profundo fã, sempre estava perto de mim, nos bancos de trás estava
minha mãe com meus irmãos e os amigos deles, num canto vi o mudinho,
também Oscar, que não parava quieto, os pais tinham que o estar
sentando a todo o momento, bem na frente estava Romélia e a mãe,
vários vizinhos eu via por todo canto. Quaisquer demonstrações que eu
faizesse, todos aplaudiam. Quando terminei os padres vieram me abraçar,
a Romélia, que estava sentada nos bancos da frente, me fez sinal para ir
sentar junto dela, e eu fui. A Luisa, que coincidentemente estava sentada
junto de Romélia, e as demais pessoas, trataram de se apertar um pouco
para eu sentar, só que quando eu tentei me sentar junto de Romélia, a
moça que estava do outro lado fez um movimento brusco e quase me
derrubou. Como eu iria ficar sentado ao lado dela, ela se levantou e disse:
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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– Eu tenho nojo de negro. A Romélia esperou que ela terminasse a palavra
“negro” e lhe deu uma tremenda bofetada. A Luisa, que tinha escutado, já
foi se levantando, e a primeira coisa que fez foi pegar a moça pelo
colarinho dizendo-lhe: – De hoje em diante tu vais aprender a gostar de
negro, pedaço de palha. Os pais da Luisa, que já sabiam quem era a filha,
vieram rápido.O pai dela, era um crioulo bem alto e forte e a Luisa era um
pitoquinho de gente, facilmente a desgrudou do colarinho da moça, justo
no momento que o pai dela também chegava. Nesse momento, o pai da
moça, vendo a confusão, perguntou: – Que foi minha filha? Romélia, que
tinha me abraçado pelo ombro, respondeu: – Ela apanhou porque quase
derrubou meu negrinho, dizendo que tem nojo de negro. O pai lhe disse: –
É verdade minha filha? E ela confirmou. Os padres vieram correndo, uns
foram acompanhar a moça e o pai, e outros ficaram conosco. De repente,
vi uma pedra voar e bater no bumbum da moça. Era o André que estava
armado com pedras para me defender. Salvo este pequeno incidente, a
festa esteve muito bonita, todos nos despedimos dos padres e eles
agradeceram a presença. Quando chegou a nossa vez de nos
despedirmos, o padre mexeu com a Romélia a respeito da bofetada e a
Romélia disse: – Padre, aquela garota faz o secundário junto comigo, ela é
muito orgulhosa, metida, deprecia as colegas, ela agiu muito mal. A maior
parte dos alunos não gosta dela, só uma meia dúzia de panegiristas. Ela
vive dizendo: – Meu pai é coronel!
André, Luisa, Romélia e eu, após nos despedirmos dos padres,
saímos abraçados, cantando a canção que o trio de meninos tinha
cantado, que era quando as aves deixam seus ninhos e voam para outras
terras. Esta era a canção que minha mãe gostava. Primeiro deixamos a
Luisa em casa, depois o André, que tinha se tornado meu grande amigo,
depois, Romélia e eu, continuamos e nos dirigimos para nossa vila.
Adiante, encontramos minha mãe e meus irmãos que estavam nos
esperando. Junto estavam Oscar e a mãe, o Mudinho e outros meninos,
amiguinhos da nossa vila.
Na quinta-feira o padre Romero foi me visitar. Tinham contado
para ele que éramos muito pobres, que meu pai tinha falecido e deixado
sete filhos sem nenhum auxílio, e nos trouxe arroz, feijão, massas, açúcar,
e muitas outras coisas. Até hoje não consigo esquecer a alegria que senti
quando o padre, entre outras coisas, nos entregou uma lata de leite Nestlé,
peguei-a em minhas mãos e comecei a acariciá-la. Esta imagem
evidentemente continua na minha memória. Depois de muita conversa,
entre risadas, veio a lembrança da festa e dos meus defensores Romélia,
Luisa e André. Por último, o padre me pediu para ir à paróquia lhe ensinar
alguns truques. É claro que concordei e na saída combinamos que no dia
seguinte estaria às quinze horas na paróquia.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 72
No dia seguinte, no horário combinado, estava na paróquia. Os
padres, muito sorridentes, me cumprimentaram. Fui convidado a tomar
café e depois começamos as nossas aulas. Eu fazia as provas, algumas
ele pegava fácil, outras não conseguia. Insistente tentava todas e não
aprendia nenhuma. Então combinei que praticaria uma até aprender, e
depois outra, e assim por diante, e foi desta forma que ele se tornou um
craque. Alguns padres tentaram, mas não conseguiram, não tinham o
cacife do padre Romero. Primeiro lhe ensinei os truques, que aprendia
com facilidade, depois os de destreza, e por último, nós mesmos
fabricávamos os truques. O padre era bastante habilidoso e caprichoso,
sempre fabricávamos duas provas, uma para ele e outra para mim. Os
moldes eram feitos de papelão e depois mandávamos fazer no funileiro.
Todos os dias, antes das quinze horas, eu chegava na paróquia. Os
padres me esperavam e às dezesseis horas tomávamos café, às dezoito
horas era a missa da tarde, rezada pelo padre Guilherme, que era de
Sonson Antioquia. Eu me sentava junto com os fiéis e participava da
missa, depois o padre Romero me acompanhava até minha casa.
Uma tarde, quando cheguei na paróquia, e após o café, o padre
Romero fez uma prova que me deixou de boca aberta. É claro que depois
ele me ensinou. Quando lhe perguntei quem tinha lhe ensinado, ele me
mostrou dois livros, um em inglês e outro em espanhol, que eram só de
truques de mágica. O padre Romero conseguia interpretar rápido os
truques e muitas vezes, quando eu chegava, ele já tinha garantido um
truque para ele e outro para mim. Na vila e no bairro éramos famosos. Aos
domingos, após a missa, a gurizada e mesmo os adultos, homens e
mulheres, nos pediam para fazermos algumas provas, e nós sempre os
agradávamos. Num dos livros tinha obrinhas de teatro com puras mágicas
e já tínhamos combinado com os padres para começarmos a ensaiar para
apresentarmos na próxima festa. Mas tudo foi por águas abaixo. Uma
tarde, quando tomávamos café, o padre Romero me disse: – Negrinho,
vou ter que me afastar por alguns dias para substituir um padre, da mesma
congregação, que está doente e será submetido a uma intervenção
cirúrgica. Naquela tarde não praticamos nada, a maior parte do tempo
passamos rindo e lembrando coisas passadas. Em determinado momento,
o padre me disse que os livros de mágica ficariam, e no caso de eu os
precisar, poderia pegar, e se precisasse algum dinheiro para fazer algum
truque era só pedir para o padre Enrique que ele me daria. Na tarde do dia
seguinte fui até a paróquia. O padre Romero já tinha ido embora, tinham
vindo buscá-lo muito cedo e ele só conseguiu me deixar saudações.
Participei da missa e depois fui embora para minha casa e daí por diante
não achei mais interesse em voltar à paróquia.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 73
Como sempre, não esquecia meus amigos, como Elida. Quando a
visitava, não faltava motivo para lembrar Antônio. Agora a foto dele estava
bem grande, num quadro oval, enquanto que a do falecido era pequena e
estava colocada no mesmo quadro, aos pés do Antônio. Quando chegava
no Dr. Corrêa, a primeira coisa que fazia, após os cumprimentos, era
mexer com as cobras, que até já me conheciam, porque quando abria a
portinha da gaiola de uma delas, ela já ia saindo e subindo pelo meu braço
até o ombro. Eu brincava com ela, lhe fazia cafuné e ela fechava o olhinho.
O nome de uma era Esmeralda, outra Safira e a outra Pérola. Depois de
brincar com Esmeralda, a colocava na gaiola e pegava Safira e por último
Pérola. Tinha também algumas pequenas que eram bravas, quando
chegava perto da gaiola elas ficavam em posição de dar o bote. O Dr.
Corrêa me alertava que eram perigosas, algumas delas eu mesmo tinha
pego. Também visitava Gratiniano às vezes. Quando não tinha nada a
fazer, ficava em casa praticando de tudo um pouco.
Isto que a seguir escrevo é algo que não devo ocultar. Quando me
lembro desses momentos, chego até a me arrepiar e fico pensando: Como
Deus foi e continua sendo bom comigo!
A colheita da punsiga
Uma tarde, enquanto meus irmãos mais velhos estavam na escola,
minha mãe me chamou e disse: – Meu filho, não temos um centavo sequer
para o leite e o pão para o café de seus irmãos amanhã. Com você nem
me preocupo, sei que em último caso você vai na Elida, no Dr. Corrêa, no
Gratiniano e até na casa da Romélia e ganha café, mas seus irmãos não,
e isso me preocupa. Meu filho, vamos lá do outro lado do rio que tem
bastante punsiga. (folha de planta usada na fervura da água e produzia
uma água como anil. Submergiam-se as roupas brancas nesta água e elas
ficavam de um branco brilhante). Muita gente conhecia esta planta, só que
para colhê-la era perigoso, porque nos lugares onde ela se encontrava,
sempre havia cobras. Eu, ao contrário, sentia a presença delas. A minha
mãe trouxe um molho da planta e eu trouxe outro. Destes, fizemos vinte
pequenos molhos, que no mercado seriam vendidos a dois centavos cada,
e no total seriam quarenta centavos. Vendendo todos, teríamos um bom
dinheiro, que nos ajudaria até a mãe entregar as roupas às freguesas.
Cheios de fé e com muita esperança, às cinco horas e trinta
minutos da manhã seguinte, saímos de casa. No meio do caminho minha
mãe disse: – Meu filho, ao chegarmos no mercado vou pedir dez centavos
emprestado à dona Mariaengracia e volto para casa. Dou café para teus
irmãos e você fica vendendo. Quando vender os cinco primeiros molhos,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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paga a dona Mariaengracia. Ao meio-dia eu venho trazer o almoço.
Caminhávamos a passos acelerados para aproveitar o frescor da manhã,
conversávamos, a rua era sem asfalto, úmida pelo orvalho, de longe se
ouvia o cantar dos galos e o latido dos cachorros, nenhum carro
atrapalhava nossos passos e nem viva alma encontrávamos no caminho.
O dia já estava bem claro e o sol começava a se manifestar no horizonte,
quando, de repente, a uns 3 metros à frente, enxergo algo conhecido, mas
não muito familiar, corro, me agacho, pego e grito: – Mãe, um peso! Estava
dobrado e umedecido pelo orvalho, desdobro e digo: – Mãe, são dois
pesos! Entrego para ela, que coloca as mãos em posição de oração, olha
para cima e diz: – Obrigada Senhor, obrigada! Faz o sinal da cruz e pede
para eu também fazer.
Chegamos ao mercado e fomos direto onde a senhora
Mariaengracia estava. A mãe lhe oferece a princípio três molhos por dois
centavos. Lembro-me que ela disse: – Que é isso Chava, é muito barato!
Vou te pagar um centavo cada molho, isso é muito procurado e eu vou
vender dois por cinco centavos, ou um por três centavos. Deu os vinte
centavos para a mãe e também aipim, batata, tomate e algumas frutas. A
mãe me deu dez centavos e disse: – Filho, vai em casa, compra leite e pão
para teus irmãos tomarem café e eu fico fazendo umas compras e vou em
seguida. Eu era o cara mais alegre deste mundo. Saí correndo, e quando
cheguei em casa, meus irmãos ainda dormiam. Acordei-os, é claro que
mais com o interesse de contar a novidade. Após tomar café, fui correndo
contar a Romélia, depois voltei para casa para cuidar de meus irmãos
pequenos. Minha mãe não tardou em chegar carregada de compras.
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3
NO MUNDO DOS NEGÓCIOS
U
ma tarde, após visitar Elida, vinha voltando para casa e ao passar
em frente a um bar, alguém chamou: – Negrinho! Olhei para dentro
do bar, era Gratiniano que estava tomando uma cerveja com alguns
amigos. Chamou-me novamente e eu entrei. Ele me apresentou aos donos
do bar e a alguns amigos dizendo: – O negrinho é um verdadeiro artista.
Em seguida me disse: – Vamos negrinho, faz uma demonstração.
Comecei a caminhar com as mãos, a seguir com os pés na nuca e assim
por diante. Eles riam e aplaudiam, colocados em círculos, daí comecei a
fazer mágica. O bar estava cheio, o garçom corria servindo, uns pediam
cerveja, outros aguardente, whisky, rum, etc. A última mágica que fiz foi
uma que tinha praticado bastante com o padre e que tratava de fazer de
conta que engolia uma moeda e tirava pelo popô. Após o término da prova
o efeito produziu risadas, gritos, palmas, o barulho era ensurdecedor.
Gratiniano me abraçou e disse: – Descansa negrinho. Alguém me pagou
um copo de suco com bolachas. No meio da bagunça ouvi uma voz que
dizia: – Foi ele que livrou o Mudinho da vila de se afogar, e surgiram vários
comentários, outro disse: – Não é ele que pega as cobras? Uma voz
questionou se eu não era o que chamavam de filho do espanhol? Talvez
questionado, ouvi Gratiniano dizer: – Mora na vila, é filho de uma viúva, o
marido morreu e deixou sete filhos, são muito pobres, ela lava roupas para
poder sustentar toda filharada, os comentários se sucediam. Um dos
donos do bar me deu cinquenta centavos, Gratiniano dez centavos, outros
deram vinte, e assim por diante. Como começava a escurecer, eu disse a
Gratiniano que ia embora e todos concordaram. Ao sair, só se ouvia: –
Tchau Negrinho, várias vozes, tchau Negrinho.
O homem misterioso e o convite
Quando saí do bar em direção à minha casa, ouvi a voz de
Gratiniano me chamando, olhei e ele fez sinal para esperar. Um senhor
vinha correndo na minha direção, quando chegou perto de mim disse: –
Negrinho, vamos que te acompanho, eu moro perto da vila, vou entregar
este pacote à minha mulher e depois te acompanho até tua casa. Ao
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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chegar na moradia dele, chamou: – Amor, pega o pacote. Uma jovem
senhora saiu, pegou o pacote e ele disse: – Volto já amor, vou
acompanhar o Negrinho à casa dele, e continuamos. No caminho, me fez
várias perguntas, inclusive se eu estudava. Contei-lhe todo meu problema
e ao chegar em casa cumprimentou minha mãe de forma carinhosa e lhe
disse: – Aqui lhe trago o Negrinho que nos brindou com um espetáculo lá
no bar. Conversou mais um pouco com minha mãe e ao se despedir lhe
disse: – Na primeira oportunidade vou lhe apresentar minha mulher e
minha filhinha e se despediu. Quando ele foi embora, peguei todas
aquelas moedas e coloquei em cima da cama. Quando minha mãe viu, me
interrogou da procedência. Claro que lhe contei o show no bar e como
tinha moedas de um, dois, cinco, dez e de vinte centavos, Romélia e meus
irmãos ajudaram a contar, no total havia dois pesos e cinquenta e cinco
centavos, boa grana.
No dia seguinte, à tardinha, apareceu o amigo do dia anterior. Seu
nome era Manolo, com a esposa e a filhinha de aproximadamente dois
anos. Eu estava guardando as minhas mágicas na caixa de papelão e
depois colocava embaixo da cama, foi neste momento que ouvi a voz dele.
Minha mãe os recebeu, se apresentaram, conversaram e depois tomaram
um cafezinho. Em um determinado momento Manolo disse para minha
mãe que trabalhava nas ruas vendendo alguns produtos que comprava
nas fábricas, inclusive uma pomada cicatrizante e sabonetes tira-manchas.
A forma de venda era reunindo o público nas praças ou perto dos
mercados, e o mais difícil era reunir o público. Disse também que tinha
uma cobra e que para chamar a atenção começava a brincar com ela, mas
assim mesmo era difícil conseguir reunir muita gente. Ele disse que,
conversando com Gratiniano, ele tinha lhe sugerido me convidar para fazer
minhas demonstrações, que o público gostaria, assim teria bastante gente
reunida. Ele não tinha feito caso a Gratiniano, porém quando me viu fazer
tudo aquilo ficou encantado e falou com sua mulher. Ela aprovou a idéia e
agora estavam ali para saber se minha mãe me deixava trabalhar com ele,
que me pagaria dez centavos por dia, livres de comida, passagens, hotéis,
enfim, qualquer gasto extra, eu receberia meus dez centavos livres. – A
senhora não se preocupe, porque quando estou fora de Cali, sempre estou
em contato com minha mulher através do telégrafo dos Correios. Minha
mãe me olhou e disse: – Meu filho, é você que sabe. Eu estava muito feliz
e respondi para minha mãe: – A senhora sabe, não estou fazendo nada,
então gostaria de ir. A mulher de Manolo, que estava com a criança no
colo, disse para minha mãe: – Dona Isabel, meu marido é boa gente e
estou segura, ele cuidará bem do seu filho. A conversa continuou, às
vezes em torno de mim, e outras vezes em torno dos familiares deles, que
eram de um município de outro estado vizinho, a quatro horas de viagem.
Antes da despedida, ficou combinado que na segunda-feira
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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começaríamos. Eu iria a casa dele pelas nove horas. Respondi
afirmativamente, cheio de felicidade. Naquela noite quase não consegui
dormir de contente, pensava: fazendo as compras das minhas vizinhas
não consigo ganhar dez centavos por semana, e agora menos, porque
abriram vários pequenos armazéns na vila e elas mesmas compravam o
que precisavam. As farmácias, ferragens e lojas se encontravam a cinco
quadras da vila e para fazer alguma compra lá, me davam dois ou três
centavos, e isso esporadicamente, agora, começar a ganhar dez centavos
por dia e viajar e conhecer outros lugares, era uma maravilha!
Conselhos da mãe
No domingo minha mãe me cortou o cabelo, as unhas dos pés e
das mãos. A noite foi longa, não amanhecia, a toda hora eu acordava,
olhava o relógio, uma, duas, três, quatro, cinco, seis horas, me levantei. A
mãe me ouviu e também se levantou, ela mesma me deu banho, examinou
ouvidos, unhas, pescoço, colocou limão nas axilas e nos pés e colocou
água de colônia atrás das orelhas. Lembro-me como se fosse hoje, ela me
vestiu um shortezinho cor pêssego, idem a camisa, as sandálias eram as
que Antônio e Elida tinham me dado, me colocou glostora nos cabelos e
me penteou. Tomamos café todos juntos, com meus irmãos mais velhos,
meus irmãos pequenos ainda dormiam. Após o café minha mãe me
chamou e disse, mostrando uma sacola de couro: – Estou te colocando
aqui seis shortezinhos, é bom que te mudes a cada dois dias; oito cuecas
e oito camisas, as cuecas e as camisas têm que ser trocadas todos os
dias. Coloquei sabonete, escova de dentes, creme e um pente, além de
vários pedaços de papel para quando for ao banheiro se limpar e depois
me mostrou vários pedaços de pano também recortados, e lembro que me
disse: – Meu filho, sempre que fizer cocô e após se limpar, molhe bem um
pano e passa no popô e joga fora, em seguida pega outro e se seca e joga
fora, procura tomar banho todos os dias, de preferência ao deitar, não se
esqueça de lavar bem o pescoço, atrás dos ouvidos e eles com muito
cuidado; não se esqueça de colocar o remédio nos olhos e a pomada
antes de se deitar. Um dos alertas que a mãe me fez eu não queria colocar
aqui, porque me parece um tanto nojento, mas na última hora decidi, eu
prestava bastante atenção quando ela começou a explicação desta forma:
– Meu filho, quando fizer xixi, leve um dos paninhos molhados e quando
terminar, puxe o prepúcio para trás e limpe, esse tipo de higiene é muito
bom até para a saúde. Também me disse: – Você já está ficando um
adolescente e começam a aparecer odores no seu corpo, nas axilas, nos
pés, lhe coloquei um limão na bolsa, vai durar só dois dias, depois você vai
comprando sempre que precisar, ele é para evitar o fedor de sovaco e de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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chulé, use poucas gotas e para cortes e feridas também é um bom
cicatrizante, coloque poucas gotas, arde um pouco, mas cicatriza rápido.
O meu irmão mais velho gozava com os conselhos que a mãe me
dava e dizia: – Mano, uma vez eu ia ficar dois dias numa casa de uma
amiga dela e também me deu um papel cheio de recomendações de como
eu devia me comportar, comer, dormir, fazer cocô, etc., e ria. Meu irmão, o
segundo, era um pouco calado, poucas vezes se integrava a nós, e na
escola, tinha dificuldade de aprender.
Às oito horas meus irmãos estavam indo embora e Romélia
apareceu para se despedir de mim, em seguida foram para a escola. Um
pouco antes de sair de casa a mãe me entregou um bilhete onde estava
tudo anotado, o que deveria fazer, quando, como e de que forma. As oito e
meia saímos de casa, ela mesma foi me levar, o meu irmão Hugo, que era
o quarto irmão, ficou cuidando dos irmãos pequenos, ele recém tinha
começado a estudar, mas era só à tarde.
Enquanto caminhava ao lado da mãe, pela primeira vez prestei
atenção à pobreza de nossa vila, casinhas feitas de papelão, iguais à
nossa, outras eram híbridas, partes forradas com papelão, outras partes
de tijolos e pedaços de zinco. As ruas de chão barrento, poças d’água,
mato, ouviam-se berros de crianças, talvez famintas, latidos de cachorros,
gritos de homem xingando sua mulher e ela, por sua vez, lhe
respondendo. Com nossos passos, os pássaros voavam de uma árvore à
outra e com seus lindos cantos alegravam um pouco nossa vila.
O sol deixava sentir seus raios quentes e à sua vez, iluminava
nossa vila. Foi nessa manhã que vi a diferença que havia entre nossa vila
e os bairros vizinhos. Na nossa vila as casas eram tristes, pareciam
moribundas, sem pintura, mais pareciam taperas com escoras para evitar
a sua queda. Alguns vizinhos nas portas das suas casinhas nos
cumprimentavam, eram seres taciturnos, sem esperança de dias melhores.
Ao entrar no bairro onde morava Manolo sentia-se aquele choque da
mudança, ruas perfeitamente calçadas, as casas todas de material, a
maior parte dos telhados era de cor vermelha, alguns eram verdes e
haviam também com telhas vitrificadas cor marrom, todas tinham jardins
na frente, alguns bem cuidados com belas folhagens e lindas flores, outros
em decadência, entendia-se que um dia foram bonitos e bem cuidados.
Todas tinham grades baixinhas, algumas artísticas e outras simples. A
praça era bem arborizada, com folhagens e brinquedos para as crianças.
Num lado, em frente da praça, estava a igreja Balvanera. Embora
estivéssemos passando há uma quadra da igreja, olhá-la de longe trouxe
saudades, lembrei do padre Romero, aquela era a igreja das nossas
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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mágicas. Ainda faltavam dez minutos para as nove horas quando
chegamos na casa de Manolo. Minha mãe bateu, foi a esposa de Manolo
quem nos atendeu, estava com a criança no colo e convidou a mãe para
entrar, mas ela lhe explicou que meus irmãos pequenos estavam sós em
casa. Ao se despedir de mim, minha mãe disse: – Meu filho, não se
esqueça de sempre ler o bilhete com as anotações, leia sempre para não
esquecer.
Quando a mãe foi embora a senhora me fez entrar numa sala
decorada de forma humilde, quadros sem arte alguma, não eram pinturas,
eram lâminas emolduradas. Naquela época eu não entendia nada de
decoração, porém até hoje aquela sala permanece na minha memória.
Manolo estava tomando banho, eu fiquei sentado num sofá com minha
bolsa ao lado e comecei a ler aquele papel que a mãe tinha me dado. Eu
ria sozinho ao me lembrar que quando o Antônio me fazia ler “Dom
Quixote”, tinha uma parte que Dom Quixote dava conselhos a Sancho
Pança dizendo: – Não se arrota na mesa, e Sancho: – Senhor, não é
erutar? Não, Sancho, em castelhano é regoldar. Não sei por que naquele
momento, enquanto lia o papel dos conselhos da minha mãe, vinha à
minha memória o Antônio, quando ao lermos o livro de Cervantes ele dizia:
– O Sancho é um sábio ingênuo e Dom Quixote é um louco sábio, os
conselhos que ele dá para Sancho, mais tarde tu saberás o alto valor que
eles conservam intelectualmente. Eu estava lendo aquela parte onde a
mãe me dizia: – Meu filho, não esqueça que a gula é pecado. Então me
lembrei quando Dom Quixote disse alguma coisa parecida a Sancho e ele
respondeu: – Prefiro minha barriga cheia, embora seja de cenouras, porém
nunca vazia.
Eu ria sozinho, quando Manolo entrou onde eu estava. Ele entrou
sorridente, estava barbeado, com roupa limpa e perfumado.
Cumprimentou-me e convidou a tomar café. Como o meu café eu tinha
tomado muito cedo, e já era quase dez horas, aceitei, porque meu
estômago já começava a sentir falta de alimento. Durante o café, me disse:
– Esta semana vamos nos dedicar a aprontar o material e aproveitar para
fazer um treino aqui em casa. Terminando o café, Manolo quis me
apresentar Carolina, uma cobra que era a sua ajudante. Ela estava numa
gaiola, sob uma mesa, colocada no canto no fundo da cozinha. Ela dormia
e estava toda enrolada. Manolo tocou na gaiola e ela nem se mexeu, então
ele pediu para a filhinha chamar a Carolina, e a menina gritou perto da
gaiola: – Taioinaaa! A cobra começou a se mexer lentamente. Quando
Manolo a chamou, rápido ela levantou a cabeça e começou a se
desenrolar. Ele a tirou da gaiola e começou a lhe fazer cafuné. A menina
também queria a Carolina, o pai deu para ela, mas é claro que não a
soltou, porque era muito pesada. Em seguida, ele pediu para eu pegá-la, e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 81
a primeira coisa que fiz foi pegá-la pelo pescoço, tal como estava
acostumado. Manolo gritou: – Não tem perigo, ela não morde, inclusive
não tem prezas, elas foram retiradas e ela é bem mansinha. Em seguida a
peguei e coloquei no ombro, parte na mão e no braço esquerdo e com a
mão direita comecei a lhe fazer cafuné. Desse momento em diante
começamos uma grande amizade.
Aventuras de um vendedor de pomada
Contarei o que vi fazer naquele primeiro dia. Manolo pegou um
tacho, colocou uma certa quantidade de gordura e pôs no fogo a derreter,
enquanto sua mulher pegou algumas folhas de malva e passou no
liquidificador. Depois, colocou o líquido da malva com a gordura que já
estava no fogo, e também adicionou bismuto em pó e um pouco de
solução mentolada e com uma pá de madeira remexia tudo. Quando
começou a ferver, tirou do fogo e deixou esfriar até ficar como manteiga,
com cheiro de mertiolato. Enquanto Manolo se dedicava a tal gordura, Tita,
que era o nome da sua mulher, se dedicava a preparar o almoço. Eu
colocava uns papeizinhos numas caixinhas redondas de metal – hoje
calculo que estas caixinhas deveriam ter uns 3 centímetros de diâmetro
por 1 centímetro de altura –, o papelzinho era pouca coisa menor, com
letras em semicírculo, cor vermelha, onde se lia: pomada cutânea,
responsável Wenester do Enqd. Quem é que se preocuparia com o que
dizia na tal caixinha!
Calculo que seria quatorze horas quando Tita nos chamou para o
almoço. Antes de ir à mesa, como de costume, seguindo a orientação da
mãe, peguei meu sabonete, toalha e pente e fiz uma pequena faxina no
meu corpo, me penteei, coloquei uma gota de água de colônia, que apesar
de ser barata, era bem cheirosa. O caso é que quando entrei na copa,
mexeram comigo: – Negrinho cheiroso! Durante o almoço a conversa foi
em torno de como iríamos nos apresentar perante o público da rua,
principalmente a minha parte. Após o almoço, dormi os dez minutos como
o Antônio me acostumou e acordei assustado, mas quando vi que Manolo
dormia esticado e roncando a baixo volume, o susto passou. Tratando de
não fazer ruído, me levantei e fui continuar a colocar os papéis nas caixas.
Meia hora depois, Manolo se levantou e foi me ajudar. Era cedo quando
terminamos e Manolo me disse: – Negrinho, podes ir, amanhã vamos
encher as caixinhas. A mãe ficou surpresa quando me viu chegar e eu lhe
expliquei a orientação de Manolo.
No dia seguinte, após o café, começamos a encher as caixinhas
com aquele preparado de gordura com uma espátula de madeira. Uma vez
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 82
terminada esta parte, colocamos cada caixinha dentro de um saquinho de
papel celofane, juntando a bula, onde estava escrito para quê servia e o
modo de usar. Uma das coisas que me lembro era que dizia: use como
repelente contra mosquitos, é eficaz nas picadas de insetos, para
pequenos cortes e feridas, no tratamento contra irritação da pele
ocasionada pelo sol, contém proteínas. Em um item à parte, dizia: não é
recomendada para senhoras após três meses de gravidez. É claro que
hoje, pensando, digo: o que teria a ver esse sebo contra uma grávida,
certamente para dar mais prestígio e credibilidade ao tal preparado, do
qual eu nada entendia e nem me preocupava entender.
Na quarta-feira, após o café, Manolo pegou duas bolsas, deu uma
para mim e disse: – Negrinho, vamos procurar mais material. O primeiro
lugar foi uma fábrica de pentes. Na entrada, no alto, tinha um néon onde
se lia: Fábrica de Pentes Três Luas. No seu interior, Manolo conversou
com dois senhores e depois de alguns momentos, apareceu um
trabalhador com uma caixa cheia de pentes que não passaram no teste de
qualidade por apresentar pequenos defeitos e custou a Manolo vinte e
cinco centavos à unidade. Em seguida nos dirigimos a uma fábrica de
lápis, o negócio foi similar ao dos pentes, salvo que ali ele pagou quarenta
centavos por uma caixa cheia de lápis com defeitos. Como as compras
começaram a pesar, pegamos um coche e nos dirigimos a uma fábrica de
correntes, onde fabricavam correntes de várias bitolas, desde dois
milímetros até quatro polegadas, galvanizadas, cromadas, zincadas. As
fininhas, algumas com banho de ouro e outras com banho de prata, sendo
que quando o banho de prata não pegava bem, este pedaço era recortado,
descartado e jogado numa caixa para ser vendido como sucata. Era atrás
desta sucata que Manolo ia. Pegamos tudo o que havia na caixa e
colocamos na bolsa que restava vazia. Por todos aqueles pedaços, pagou
sessenta centavos. Em seguida, passamos a outro setor, onde se
estampavam medalhas. As que o banho não pegava, eram descartadas, e
nos forneceram uma caixa de papelão de aproximadamente 30 por 30 e
por 20 centímetros cheia daquelas medalhinhas e cobraram de Manolo
apenas vinte centavos.
Carregados, e já na rua, Manolo comprou sorvete, coisa que eu
nunca tinha comido. Pegamos o primeiro coche que passou, com destino a
casa. Tita nos esperava com o almoço pronto. Apesar do sorvete,
estávamos varados de fome, eram aproximadamente quatorze horas.
Cumpri meu dever de limpeza. Depois do almoço Manolo me disse: –
Negrinho, estás liberado, é bom descansar bastante que amanhã nos
espera muito serviço. Já em casa e enquanto contava para a mãe das
compras que tínhamos feito, peguei no sono, dormi os tais dez minutos
que o Antônio me acostumou.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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No dia seguinte continuamos aprontando o material. Os lápis eram
colocados numa bolsinha de papel celofane que era amarrada com uma
cinta vermelha, o mesmo processo era feito com os pentes, só que a cinta
era azul. A Tita, embora preparando o almoço, às vezes vinha nos dar uma
mãozinha. Só paramos para almoçar, dormimos depois do almoço e
continuamos. A etapa seguinte era a mais demorada. Tratava-se de
recortar as correntes num mesmo tamanho. A medida estava pronta em
uma tábua, que de um lado tinha uma agulha fincada e do outro lado
estava afixado um alicate de corte frio, com um lado servindo de alavanca,
forrado com borracha para não machucar as mãos. Eu recortava as
correntes, Tita e Manolo colocavam as medalhinhas e também uns
ganchinhos que era o fecho para quando colocada a corrente no pescoço
não cair. Era corrente que não acabava mais. Recortar era rápido,
enquanto só eu recortava, eles dois colocavam os ganchos e a medalha.
Em determinado momento, Manolo pediu para eu também ajudar a colocar
os ganchos e as medalhas, tarefa que aprendi com facilidade ao ponto da
Tita comentar: – Puxa, o Negrinho aprende tudo rápido.
A todo o momento Tita se levantava para cuidar do almoço e ver a
menina, que era bem quietinha e ficava brincando sozinha. A todo instante
se levantava e abraçava a mãe e o pai pelas costas. Todos os dias quando
eu chegava, gostava de ver Carolina e brincava um pouco com ela.
Quando eu ia pegar a cobra Carolina ela ia junto e dizia: TAOINA. Veio à
minha memória que numa tarde, enquanto colocava ganchos e medalhas
nas correntes, a menina se levantou e veio pelas minhas costas e me
abraçou, achei uma maravilha e lhe retribuí com carinhos.
Finalizada a etapa parte de recortar, colocar ganchos e medalhas,
contamos 811 peças prontas. A seguir, Manolo trouxe um saco cheio de
uns estojinhos para colocar jóias, que na parte superior, em baixo relevo,
dizia: MADE IN USA. De imediato estávamos os três a colocar jóias
dentro, cuidando para que a medalhinha ficasse no centro. Terminada esta
parte, Manolo trouxe três malinhas, em uma colocou cem lápis, noutra cem
pentes e noutra cem estojos e cem caixinhas da famosa pomada, esta
mala era um pouco maior e ficou mais pesada. Nosso trabalho aquele dia
terminou um pouco mais tarde e foi mais cansativo.
Quando cheguei no outro dia e após tomar o café, Manolo me
disse: – Negrinho, vamos descobrir o local onde trabalhar amanhã. Após
brincar um pouco com Carolina e a menina, saímos. Uma vez descoberto
o local, voltamos para casa e na parte da tarde nos dedicamos a treinar.
Foi no sábado a minha primeira saída. Conforme combinado no dia
anterior, comecei caminhando com as mãos e isto bastou para que o
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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público se amontoasse à nossa volta. Enquanto eu fazia as
demonstrações, o público era organizado por Manolo, que aplaudia a cada
uma das minhas provas. Depois peguei Carolina, colocando-a no ombro e
comecei a fazer mágicas. O público ria e aplaudia. Carolina, que já era
conhecedora dos aplausos, começou a subir pela minha cabeça até ficar
com uma terça parte do corpo bem reta para cima. O público vibrou, e foi
neste momento que Manolo, aproveitando a euforia dos presentes, se
dirigiu a eles: – Senhores, enquanto o garoto descansa, vocês devem
entender que precisamos comer para pagar passagens, atender mulher e
filho, etc. Espero a compreensão de todos e gostaria que comprassem um
lápis, que só custa um centavo, enquanto no comércio custa dois
centavos. Ele me entregou um molho e pegou outro, e todos queriam
comprar. Quando terminaram os lápis, ele disse: – Senhores e senhoras,
eu não sou vendedor de lápis, sou um representante multinacional da John
Bull e vou devolver o dinheiro a quem me devolver a cintinha que amarra a
sacolinha. Podem ficar com o lápis. Todos devolviam a cintinha e nós
devolvíamos o centavo. Terminada essa primeira parte, pegou um molho
de pentes, me entregou, e ele ficou com outros e continuou: – Senhoras e
senhores, como lhes disse, represento a multinacional John Bull. Será que
vocês comprariam um pente por dois centavos, já que no comércio custa
três centavos? Assim ia entregando os pentes, e mesmo os que não
tinham comprado lápis, eram todos querendo pente. Manolo, que sabia
bem a sua profissão, se mexia de um lado para outro, sempre falando, e
de vez em quando soltava uma piadinha e o público ria. Terminados os
pentes, de novo Manolo falava: – Eu não sou vendedor de lápis e nem de
pentes, eu represento a multinacional John Bull, portanto, devolvo-lhes os
seus dois centavos, é só devolver a cinta. E era Manolo de um lado e eu
por outro devolvendo os dois centavos. Finalizada esta segunda etapa,
pegou um estojinho e mostrando a correntinha com a medalha dirigiu-se
ao público: – Senhores, esta corrente com sua medalhinha é de
fabricação norte-americana e de prata. Será que vocês comprariam esta
correntinha importada dos Estados Unidos por cinco centavos? E eram
aqueles gritos, uma para mim, outra aqui, outra ali, e era aquele corre,
pega grana, acabado o estoque, de novo Manolo falou: – Eu não vim
vender, eu represento uma multinacional, vocês devolvem a fitinha e eu
lhes devolvo seus cinco centavos.
Eu já começava a ficar meio desnorteado, não entendia aquilo de
multinacional, de correntes importadas, já que nós tínhamos comprado
aquela sucata, e o que mais me apavorava é que vendíamos e depois
devolvíamos o dinheiro. Eu pensava, será que ele não ficou doido? Em
todo caso, continuávamos devolvendo o dinheiro. Concluída esta parte,
pegou uma caixinha de pomada e a destapou, tirou o que ele chamava de
bula, mostrando ao público, disse: – Olhem, Laboratório Oriom, que tem a
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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sua sede na Inglaterra, com filiais na Espanha, Itália, Alemanha, Bélgica,
Holanda e Estados Unidos, ultimamente na Argentina e agora na
Colômbia. Vocês perguntarão: – E para quê serve a tal pomada? Sabem
para quê? Para picada de insetos, para pequenos cortes, para feridas, e a
cicatrização é rápida, no caso de dor de dente, pegue um pedacinho de
algodão e molhe com a pomada, coloque na cárie, o alívio é instantâneo.
O preparo desta pomada é à base de caporrosa de minas (eu não sabia o
que era isso!), malva, solução mentolada e proteínas extraídas da carne.
Comprovaram que não serve para picada de marimbondos ou vespa,
embora seu uso deixe uma sensação de alívio, porém não de cura. Foram
cinco anos de testes de vários tipos de pacientes para poder ser lançada
ao mercado, onde será vendida por vinte centavos. Eu, como
representante desta multinacional, vou vender para vocês por apenas dez
centavos. Mesmo ele dizendo que desta vez não devolveria o dinheiro, era
aquilo, uma aqui, outra ali, outra acolá, e eu por um lado e ele por outro,
era entrega pomada e pega dinheiro, até esgotarem as cem caixinhas. Ele
não parava de falar enquanto entregávamos as caixinhas, se movimentava
dum lado para outro, a Carolina estava agora com ele, no pescoço. E
mostrando Carolina dizia: – Esta pomada também contém veneno de
cobra, porém não é venenosa. Pegava um pouquinho da pomada e
colocava na boca e continuava: – Não faz mal para criança, mesmo que
ela engula toda. Enquanto ele colocava Carolina na gaiola e guardava as
nossas coisas, eu comecei a fazer algumas mágicas. A última que fiz foi
fazer engolir refrigerante a um rapaz e depois tirar pelo traseiro. O público
ria, gritava, berrava, aplaudia. Manolo aproveitou para agradecer ao
público a atenção dispensada e lhes garantia que tinham feito uma boa
compra. Eu esperava uma reação do público porque ele não devolveu os
dez centavos e me aprontei para fugir em caso de emergência, só que o
público, ao contrário, nos aplaudia enquanto nos retirávamos.
Já em casa, e a fome nos castigando, Manolo feliz da vida
mostrava para Tita as malas vazias. Em seguida, colocou a bolsinha com o
dinheiro numa prateleira que estava num canto do comedor, enquanto Tita
servia o almoço. Eu fui para o asseio corporal tanto recomendado pela
mãe, mesmo não estando ela presente, não sei por que, tinha medo de
não obedecer. Uma vez servidos e após dormir os dez minutos de Antônio,
senti ruído no comedor. Era Tita que contava o dinheiro e fazia montinhos
de um peso, no total dez montinhos de dez pesos. Enquanto a criança e
Manolo dormiam, fui ver Carolina que estava bem enrolada e também
dormia. Tita, que sempre estava em atividade durante o dia, quase não
descansava. Após guardar o dinheiro ali mesmo no comedor, começou a
conversar, e me contou que Manolo nunca tinha vendido tanto em uma
apresentação, o máximo vendido era quatro pesos, e algumas vezes,
chegou a faltar até cinco centavos, e desta vez, mesmo vendendo tanto,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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não tinha faltado nenhum centavo... Quando Manolo acordou, ao invés de
me chamar como de costume, me chamou de campeão, me deu um
molhinho de um peso e disse: – Negrinho, podes ir embora. Amanhã
vamos trabalhar perto do mercado da Alameda. Saí correndo levar o
dinheiro para minha mãe. Quando ela contou o dinheiro, me disse: – Ele
tinha que lhe dar sessenta centavos e aqui tem um peso. Mãe, ele quis me
dar um peso! Então lhe contei a forma dele vender, e ela perguntou: – E o
público não fica bravo? Ao contrário mãe, quando nos despedimos, nos
aplaudiu.
No dia seguinte, domingo, Manolo queria colocar sessenta peças
de cada. Tita insistia para que levássemos oitenta: – Com o negrinho,
vocês são capazes de vender todas. Eu intervi e disse: – Vamos levar
cem, se sobrar, as trazemos de volta. A Tita, rindo, me apoiou e Manolo
concordou para levarmos cem conjuntos, porém comentou: – Aos
domingos se vende menos. Eu às vezes vendo dois pesos, dois e
cinquenta, nunca vendi três pesos. Só que naquele domingo, vendemos
todos os conjuntos e até faltaram conjuntos. Após o almoço, Manolo me
deu quinze centavos e me liberou. Feliz, muito feliz, cheguei em casa, dei
o dinheiro para minha mãe e em seguida, com meu irmão mais velho,
Oscar, fomos visitar Elida.
Na segunda-feira, quando cheguei na casa de Manolo, encontrei
dois sacos daquela gordura. A Tita já tinha colocado uma parte num tacho
para derreter. Uma vez tomado nosso café, nos dirigimos para as fábricas
onde compramos lápis, pentes e correntes. Desta vez Manolo arrematou
todos os estoques de peças com falhas. Na parte da tarde, fomos para o
mato pegar malva, voltamos quase escurecendo e Manolo me levou para
casa. Na terça, na quarta e na quinta-feira aprontamos muito material.
Viagens ao desconhecido
Na sexta-feira a mãe estava um pouco preocupada, porque nesse
dia seria a minha primeira viagem a uma cidade distante 100 qulômetros.
Antes de partir Manolo disse: – Será que vendemos cem conjuntos? Eu
respondi: – Podemos levar cento e vinte, mas ele contestou: – Não, vamos
levar só cem. Levando mais, nós vamos nos rebentar todos. Tu vês, cem
conjuntos vendidos já nos deixam demolidos! Depois da venda,
entrávamos em qualquer restaurante, almoçávamos e, em seguida íamos
para o hotel descansar. Quando acordávamos, tomávamos banho e
saíamos para conhecer a cidade. À noite, íamos ao cinema. Aos poucos
pegávamos o seguinte ritmo: dois dias seguidos de trabalho, depois
viajávamos para outra cidade. Descansávamos um dia, para depois vender
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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a mercadoria. Manolo não queria vender mais que cem unidades por dia,
porque seria muito sacrificoso. Na realidade, terminávamos muito
cansados. Tínhamos levado oitocentos conjuntos e nos restavam cem.
Fazia doze dias que tínhamos saído de casa, estávamos a 400
quilômetros da nossa cidade. Começamos a sentir o cansaço do trabalho
intermitente, até Carolina só queria dormir. Estávamos acostumados que,
ao chegarmos no hotel à noite, ela se levantava para brincar um pouco,
agora quando chegávamos, ela nem se mexia. Pela manhã, quando a
estávamos limpando, ela não ficava quieta. Às vezes Manolo tinha que
ralhar com ela e gritava: – Carolina, fica quieta! Ela entendia, ficava quieta,
mas era só por uns poucos segundos e depois começava de novo. O que
ela mais gostava era de um óleo perfumado que Manolo lhe passava para
as moscas não incomodarem e a pele ficava brilhante e bonita. Decidimos
vender os cem conjuntos e retornar para casa. Viajando de ônibus,
levaríamos umas sete horas, só que com Carolina era difícil, devido aos
solavancos do ônibus, que lhe poderiam fazer mal, e outro motivo era que
não nos permitiam viajar com ela. A solução era o trem, que demorava
aproximadamente dez horas. Ele parava em todas as estações, e em
algumas Manolo aproveitava para alimentar e refrescar Carolina. Tudo
tinha que ser feito escondido, porque no trem também não permitiam levar
Carolina. Quando algum curioso nos perguntava o que levávamos na
gaiola, respondíamos: uma tartaruga, e nos mostrávamos sérios e não
dávamos muita confiança a nossos interlocutores.
Às vinte horas chegamos de retorno a nossa cidade e às vinte e
duas horas estávamos em casa. A Tita, prevendo que algum dia eu teria
que dormir ali, já tinha arrumado uma cama no quarto de hóspedes. A
pedido deles e por estar um pouco tarde, fiquei ali. Após comer, conversar
e rir dos acontecimentos e sendo meia-noite, fomos dormir. Madrugador
que eu era, antes das sete já estava de pé. Observei que na nossa
ausência, a Tita tinha aprontado uma quantidade de conjuntos. Pouco
tempo depois Tita se levantava para dar a mamadeira à menina. Manolo
se levantou, tomou banho e formos tomar café. Em seguida, Manolo pegou
uns doces, queijo e costelas de porco salgadas para eu levar para casa.
Ele tinha comprado tudo na viagem de regresso. Também me deu três
pesos e disse que era para descansar no dia seguinte e voltar só no
terceiro dia.
Feliz ficou a mãe ao me ver chegar e eu feliz de chegar em casa e
ver minha mãe. Os meus irmãos estavam na escola. A mãe contou-me
que Tita tinha ido lhe visitar várias vezes e sempre levava a menina e
também lhe levava várias verduras, doces ou pães. Como Manolo sempre
mandava informações nossas através do telégrafo ela informava a mãe,
portanto, não tinha porque se preocupar. Também me disse que tinha ido
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 88
um dia visitar Tita e enquanto conversavam, tinha ajudado a empacotar
lápis e pentes. Para os meus irmãos e para ela, tinha dado uma corrente e
mais outra que guardara para eu dar para Romélia. À tarde fui visitar o Dr.
Corrêa. Fazia muitos dias que não os via. Todos me receberam com muita
alegria e carinho. O marido da empregada, como sempre, me pegou no
colo. Falando com Dr. Corrêa lhe contei da Carolina. Ele me disse que as
cobras, a maior parte do tempo passam dormindo. Depois de lanchar com
eles, fui correndo visitar Elida. Contente de me ver, me contou que em
vista da minha ausência, tinha ido visitar minha mãe e ela tinha lhe
contado que eu andava viajando. Ela, como sempre, deu uma
choramingada pela falta do Antônio. Contei-lhe, em parte, o trabalho que
fazia, também falei de Carolina. Antes de voltar para casa, me fez tomar
um copo de leite. Despedi-me e voltei correndo para casa porque queria
ver os meus irmãos mais velhos, pois os pequenos já tinha visto. Curiosos,
eles queriam saber tudo. À noite, fomos brincar, estava toda a rapaziada,
nossos amigos. Para Romélia dei a corrente e ela a colocou no mesmo
momento. No dia seguinte visitei o Mudinho, o Oscar e alguns de meus
vizinhos, inclusive a mãe de Romélia, mas a maior parte do tempo fiquei
em casa.
No dia e hora combinado estava na casa do Manolo. O mesmo de
sempre: a menina, ver Carolina, parecia que ela tinha sentido minha
ausência, porque ao me pressentir, foi se levantando, como se eu fosse
Manolo. Ela foi subindo no meu braço, em seguida subiu um pouquinho na
neném e rapidamente voltou para mim. Parecia uma criança arteira. Uma
vez terminado o café, e sempre com Carolina no ombro, Manolo começou
a olhar o mapa e marcar o nosso próximo roteiro, que se deu no dia
seguinte, uma sexta-feira. Permanecemos quinze dias fora e nos
distanciamos 520 quilômetros, sempre tratando de vender só cem
conjuntos por dia.
Na quinta viagem, estando numa cidade a uns 150 quilômetros de
casa, aconteceu que não nos deixaram viajar com Carolina. Por mais que
Manolo explicasse, mostrasse que ela era domesticada, que não tinha as
presas, que era quietinha, não adiantou. Mandaram-nos devolver as
passagens e pegar o dinheiro de volta. Estávamos praticamente com toda
a mercadoria. Então decidimos voltar para o hotel, deixar Carolina e
trabalhar sem ela. Voltamos ao mesmo hotel que tínhamos estado. Manolo
acertou com o dono do hotel de pagar uns quinze dias adiantados,
deixando com ele Carolina e alguns de nossos pertences. Deixaria
dinheiro para alimentar Carolina e explicou como deveria fazê-lo. Também
como limpá-la sem ter que tirá-la da gaiola. Assim mesmo, Manolo, que
estava com Carolina no ombro, fez com que o dono do hotel a pegasse e
lhe ensinou como ela gostava que lhe fizesse cafuné. O homem pegou por
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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fim Carolina fez cafuné e ela fechou os olhinhos. O dono do hotel gostou
de Carolina e aceitou fechar negócio com Manolo. Ele deixou dinheiro para
comprar laranja, banana e carne, era o que ela comia. A carne tinha que
ser cozida. Ao meio-dia o hoteleiro mesmo quis alimentar Carolina para ter
certeza do que faria no futuro. À tarde descansamos, asseamos Carolina e
lhe colocamos óleo e ela ficou perfumada.
No dia seguinte cedo já estávamos viajando. Mesmo parando em
povoados e cidades pequenas, sempre vendíamos cem conjuntos. Após
ter vendido tudo, regressamos para a cidade e o hotel onde tínhamos
deixado Carolina para em seguida continuar viagem para casa. Quando o
hoteleiro nos viu chegar, veio correndo ao nosso encontro e nos disse: –
Desde que vocês foram embora, a Carolina não quis comer nada, não
bebeu, não quis nada, nem se mexeu para nada, está muito magrinha.
Fomos correndo para o quarto e para surpresa nossa, encontramos uma
cobrinha de uns 30 centímetros de comprimento por aproximadamente 2
centímetros de espessura. Manolo ficou bravo e disse: – Não, essa não é
Carolina. É sim, disse o hoteleiro, eu fazia de tudo, lhe dava carinho, a
colocava no sol e ela não se mexia, nem sequer abria os olhinhos. O
hoteleiro todo angustiado repetia: – Ela é Carolina, juro pela saúde de
minha família, que tanto amo. Alguém chamou o hoteleiro, ele saiu, estava
muito aborrecido. Eu estava sentado em frente ao Manolo e lhe disse: –
Manolo, aquele cara vendeu Carolina e nos quer engambelar com essa
cobrinha. A Carolina tinha mais de 1 metro de comprimento por 6
centímetros de grossura, só a cabeça tinha uns 8 centímetros de diâmetro
por uns 15 centímetros de comprimento e ele quer que acreditemos que
aquela é Carolina, nem a pele é parecida. Manolo estava mudo, quase
nem se mexia, eu estava pensando mil coisas contra o hoteleiro, sentia
muita tristeza. Pensar em Carolina, onde ela estaria, será que ele a havia
vendido para ser morta? De repente, Manolo disse: – Negrinho, chame
aquela cobra pelo nome de Carolina. Imediatamente cheguei perto da
gaiola e gritei: – Carolinaaa! E a cobrinha foi levantando a cabeça. Manolo
saltou para perto da gaiola e nós dois, ao mesmo tempo, gritamos: – Essa
é Carolina sim, é ela. Manolo correu para a cozinha e trouxe um pedaço de
carne cozida. Tiramos a cobra da gaiola e com um conta-gotas colocamos
algumas gotinhas de água na boca dela e lhe colocamos pedacinhos bem
pequenininhos de carne, que ela quase não tinha forças para mastigar, eu
disse: – Manolo, ela está doente, vamos levá-la ao Dr. Corrêa. Expliquei
para ele quem era o Dr. Corrêa. Imediatamente Manolo procurou o
hoteleiro, acertou tudo e lhe informou que viajaríamos no dia seguinte.
Cedo já estávamos no terminal rodoviário. Tínhamos colocado Carolina
numa caixa de papelão em cima de panos e a levávamos no colo. De
ônibus, em duas horas e meia chegamos. Às nove horas já estávamos no
Dr. Corrêa. Explicamos-lhe o acontecido e o Dr. Corrêa a pegou e
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começou a examinar. Ela se mexia como que tentando querer subir no
ombro de Manolo. A explicação do Dr. Corrêa foi a seguinte: – Embora
vocês não acreditem, estes répteis têm sentimentos quase iguais aos
seres humanos. O que aconteceu com ela foi que, acostumada como
estava com vocês, com o carinho que vocês lhe davam, a paparicavam, e
acostumada a escutar as palmas do público, de repente vocês
desapareceram, ela começou a ser tratada por um estranho, que talvez
não por maldade e sim por falta de conhecimento, não lhe dava o carinho
igual ao de vocês, se sentiu abandonada, com saudades, se sentiu só, e
como não tinha condições de se matar, a única forma era se deixar morrer.
Agora, com a presença de vocês, vai se recuperar muito rápido e voltará
ao seu estado normal. Ela está muito sentida, precisa de muito carinho, a
esta altura ela é o mesmo que uma criança. Manolo agradeceu e quis
pagar, porém o Dr. Corrêa não quis nada, ao contrário, deu um vidrinho de
um remédio que era para dar três gotas à noite. Despedimo-nos do Dr.
Corrêa, da esposa e empregados, todos sempre carinhosos comigo,
pediram que eu depois informasse o estado de Carolina.
Tita surpreendeu-se quando nos viu chegar, não nos esperava, é
que Manolo não teve tempo de avisar de nosso regresso. Explicamos-lhe o
problema que se apresentou com Carolina. A filhinha dele, ao não ver
Carolina na gaiola, perguntou pela Taoina. Manolo lhe disse que era
aquela que estava na caixa, mas a menina insistia em perguntar, até que
Manolo teve a idéia de lhe mostrar a Carolina na caixinha e lhe disse: –
Olha a Carolina, ela está doentinha, daí a menina se acalmou. Em
determinado momento, a menina gritou Taoinaaaa e ela foi levantando a
cabecinha e começou a subir pelo braço da menina. Era um bom sinal.
Tita também a pegou um pouquinho. Depois de um bom banho e mais
tranquilos em relação à Carolina, todos almoçamos. Manolo me deu três
pesos e me liberou. Fui para casa, deitei na cama e fiquei conversando
com minha mãe. Em seguida peguei no sono. À noite, como chovia, todos
ficamos em casa. Enquanto meus irmãos faziam seus temas, eu
organizava algumas mágicas novas para apresentar nas ruas. Abro um
parêntese aqui, a luz não era elétrica e sim à base de velas, existiam umas
lamparinas à base de querosene, mas eram pouco usadas pela fuligem
que liberavam na queima do querosene.
O dia seguinte amanheceu nublado. Quando cheguei na casa de
Manolo, estavam todos ao redor de Carolina. Ela adorava Manolo, estava
bem esticada no ombro dele, Tita e a menina lhe faziam cafuné. Quando
cheguei também me juntei ao grupo dos aduladores. Olhando Carolina
deu-me a impressão que tinha crescido um pouco, parecia estar feliz.
Depois de tomar café, Manolo me disse: – Negrinho, hoje não vamos fazer
nada, vamos esperar um pouco a recuperação de Carolina. Então, fui
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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visitar Gratiniano e depois Elida e ali almocei. Fui ao mercado com ela
onde além de comprar o que precisava para ela, também comprou
algumas coisas para eu levar à minha mãe. À tarde fui para casa.
Novas táticas de venda
Com Manolo programamos viajar nas quintas-feiras, trabalhar na
sexta, sábado e domingo e, se possível, voltar no domingo à noite ou na
segunda-feira. Manolo gostava de ir aos lugares com mais de cinquenta
mil habitantes, dizia que com menos gente era preciso gritar muito e
vender pouco. Por isso, antes de viajar, estudava bem o mapa e depois
decidia o povoado a ser visitado. As cidades que ainda não tínhamos
visitado se encontravam até 400 quilômetros, de forma que começamos a
viajar mais longe. A Carolina ainda não estava em condições de nos
acompanhar, embora tivesse voltado ao seu tamanho normal. A razão era
que a maior parte das viagens era de ônibus, porque de trem eram muito
demoradas. Lembro-me muito bem da última vez que chegamos a um
povoado, chovia muito, era frio, um pouco lúgubre, povo triste. Eram três
dias que não trabalhávamos, passávamos dentro daquele quarto de hotel.
Um dia, Manolo saiu do quarto e começou a conversar com alguns
empregados do hotel. A conversa era a seguinte: ele ofereceu dez
centavos a cada um deles para ir a algumas farmácias, com a finalidade
de comprar aquela pomada que nós preparávamos. Ele entregou para
cada um uma caixinha suja de pomada. A pessoa chegaria na farmácia
com a finalidade de comprar a dita pomada. É claro que a resposta do
vendedor na farmácia era negativa, pois não existia. A pessoa deveria
enaltecer os bons benefícios da pomada, todos deveriam ir em diferentes
horários. No caso do dono da farmácia perguntar onde tinha comprado, a
resposta seria: – Comprei em Cali, mas me informaram que a estavam
distribuindo nas farmácias e drogarias de todo o país. Manolo recomendou
que observassem a reação do dono da farmácia e deveriam trazer o
endereço e o nome da farmácia. Também lhes ofereceu mais cinco
centavos se tudo fosse bem feito. A chuva continuava, mesmo assim
Manolo viajou para vários povoados próximos. Eu fiquei no hotel, depois
ele me contou que tinha conseguido gente e tinha feito a mesma oferta, só
pagando cinco centavos. No dia seguinte, à tarde, retornou e me disse que
esperava um bom resultado de tudo que tinha planejado. No quinto dia que
estávamos encerrados pela chuva, caía um leve chuvisqueiro, de manhã
Manolo se vestiu com terno e gravata e numa mala pequena colocou
duzentas caixinhas de pomada, se despediu de mim e saiu. Às treze horas
regressou feliz da vida. Tinha vendido todas as pomadas. Almoçou,
descansou um pouco e saiu com mais duzentas caixinhas. Retornou
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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quando já estava escurecendo, contente, sorridente, conseguiu vender
tudo de novo. É claro que os donos das farmácias não sabiam que era ele
quem tinha mandado gente a comprar pomada, e seguramente pensando
que venderiam com facilidade, compraram bastante de Manolo. Eu calculo
que até hoje nenhuma farmácia conseguiu vender uma caixinha...
Naquela época eu achava Manolo um homem muito inteligente,
hoje talvez eu o colocaria no degrau dos vigaristas, claro que cumpria à
risca seus compromissos. No dia seguinte procurou os colaboradores e, no
lugar dos cinco centavos, lhes deu a cada um dez centavos, que recebiam
felizes e sorridentes, agradecendo e abençoando Manolo. Tínhamos
bastante correntes, lápis e pentes e caixinhas de pomadas só tínhamos
noventa e quatro. Na parte da tarde viajamos a uma cidade distante
aproximadamente 80 quilômetros de onde estávamos. Segundo o mapa,
tinha trinta mil habitantes. Era frio, nublado, mas não chovia. Manolo me
disse: – Vamos vender um pouco aqui e retornamos para casa. Paramos
perto do mercado, onde tinha mais gente, primeiro comecei a caminhar
com as mãos e começou a juntar gente. Quase todos usavam chapéu e
poncho. Riam de tudo que eu fazia, aplaudiam, pulavam. Em determinado
momento um deles saiu correndo e minutos depois voltou com duas
garrafas de aguardente e começaram a tomar. Um tomava um gole e
passava para o seguinte, paravam um pouco e depois continuavam.
Quando Manolo começou a vender os lápis, todos compraram, quando
Manolo quis devolver o dinheiro, ninguém quis receber o dinheiro de volta.
Os pentes também todos compraram da mesma forma, não recebendo o
dinheiro de volta. Compravam tudo, porém não queriam o dinheiro de
volta. Manolo se movimentava pra lá, volta, falava, fazia demonstração
com a pomada começou a vender, e todos compravam, não se importando
com o dinheiro, porque, ao invés de pagar dez centavos, quando Manolo
ou eu entregávamos a pomada, nos davam vinte centavos, ou cinquenta
centavos, ou até um peso, e não queriam o troco. Em agradecimento,
Manolo me pediu para fazer mais alguns números. Fiz várias
demonstrações e eles riam e aplaudiam. Por último, e como despedida, fiz
um rapaz tomar refrigerante e depois tirei pelo popô. Foi a maior bagunça,
riam, se acocavam e berravam. Despedimo-nos com muitas palmas,
nunca tínhamos gente tão feliz como essa.
Um pouco cansados chegamos no hotel, contamos o dinheiro.
Como tínhamos vendido as noventa e quatro caixas de pomada,
deveríamos ter nove pesos e quarenta centavos. A nossa surpresa foi
grande, tínhamos vinte e cinco pesos, portanto, havia dezesseis pesos a
mais. Manolo me disse: – Negrinho, metade dos dezesseis pesos a mais
são teus, ou seja, oito teus e oito meus, e dizia: – É a primeira vez que
trabalhamos numa localidade tão pequena e ganhamos tanto dinheiro.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Tomamos banho, almoçamos, descansamos e à noite saímos a
dar uma volta pela praça. Quando lá chegamos, vimos um grupo deles na
maior algazarra e tentando alguns caminhar com as mãos. É claro que não
conseguiam e caíam, outros tentavam colocar os pés no pescoço. Perto
deles vimos umas quantas garrafas vazias de aguardente. Nós os
observávamos de longe e notamos que estavam bêbados. Damos
algumas voltas pelo centro, mas sem muito que ver, decidimos voltar para
o hotel. – Negrinho, me diz Manolo, vamos embora para a casinha? Estou
com muitas saudades de minha mulher e da filha e também da Carolina.
Ainda estava dia claro quando chegamos em casa. Tita e a filha nos
receberam com muita alegria, até Carolina sentiu a nossa presença,
começou a querer sair da gaiola. Aquele dia era só de alegria naquela
casa. Ao total, Manolo me deu dez pesos, me liberou e fui para minha
casa. Porém, antes de chegar, parei para conversar com uma vizinha. A
minha mãe me viu e veio correndo ao meu encontro. Na rua mesmo lhe
dei o dinheiro. Ele veio tão bem que, com parte dele, a mãe nos comprou
roupas para todos.
Com Manolo continuei a viajar, mas cuidando para não voltar às
mesmas cidades, tratando sempre de vender no máximo cem conjuntos.
Eu insistia que era certo que conseguiríamos vender cento e vinte
conjuntos. Manolo concordou em começar a aumentar aos poucos,
primeiro vender cento e cinco, depois cento e dez e assim por diante, até
nos acostumarmos. Parecíamos dois moleques: corríamos, brincávamos,
comprávamos e comíamos coisas que vendiam na rua, à noite íamos ao
cinema, e também parávamos para ver a gurizada jogar futebol. Como
tenho saudades daqueles dias.
O pai de Manolo
Uma vez, quando nos encontrávamos numa cidade litorânea, após
tomarmos banho de mar, e como já tínhamos trabalhado na parte da
manhã, como de costume, fomos ao telégrafo para mandar e receber
notícias de casa. Recebemos de Tita a mensagem que pedia para
voltarmos com urgência. Ela tinha recebido carta da mãe de Manolo, onde
lhe informava que o pai estava muito doente e pedia sua presença. No dia
seguinte, bem cedo, estávamos em casa. Tínhamos viajado toda a noite.
Durante a viagem Manolo me disse: – Negrinho, vou ter que viajar, e não
sei quanto tempo vou permanecer fora, mas se tu precisares de algum
troco, podes pedir para a Tita. Antes de pegarmos no sono, Manolo me
falou do pai. Ele tinha um sítio muito grande, quase uma fazenda, tinha
muito gado, cavalos, porcos, galinhas, algumas plantações, só para o
gasto. Disse-me também que o pai tinha muitos empregados. Enquanto
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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falava, por momentos ficava pensativo e depois se emocionou: colocou as
mãos abertas tapando o rosto e, talvez tentando me dizer alguma coisa e
não querendo, balbuciando, me disse: – É que meu pai é um carrasco, é
radical, brigou com meu cunhado só porque ele queria levá-lo ao médico.
Ficou olhando para o chão, pensativo, falou de forma imperceptível: – O
meu pai dificilmente se salva, eu sei de sua doença. Calou, ficou em
silêncio, depois disse: – Meu pai não me deixou estudar, queria só que eu
trabalhasse na fazenda. Desisti de estudar e comecei a lida na fazenda.
Eu queria modernizar o sistema de ordenhas, o pai só queria aquele
sistema antigo, vaca por vaca e à mão, eu queria manter o tambo limpo,
ele achava perda de tempo. Meu cunhado também era partidário da
organização, meu pai nos dava o contra em tudo, eu não aguentei, peguei
a mulher e me mandei para a cidade. Contou-me que aquele preparo da
pomada e a forma de vender tinha aprendido com o cunhado, e que a irmã
dele e o cunhado já tinham percorrido toda a América e parte da Europa,
sempre vendendo da mesma forma, a única diferença era que ela
trabalhava com bicicleta, fazendo vários números de equilíbrio. Eles
estavam morando nos Estados Unidos e vinham todo final de ano passar
com eles. Ficou de novo em silêncio, tapou o rosto, e quase chorando
disse: – O pai vai morrer, eu sei, e por teimoso e carrasco, coitada da mãe,
que o atura calada, mas assim mesmo, estou seguro que ela também não
quer que ele morra. Pegamos no sono, só acordamos com o barulho da
chegada no terminal rodoviário.
Quando chegamos em casa, Tita já tinha uma mala pronta com a
roupa que deveria levar e numa cadeira, o que deveria vestir para viajar.
Tomou banho, trocou de roupa, tomamos café, me deu dois pesos e
tornou a me dizer: – Negrinho, se precisares algum troco, Tita dar-te-á e
não os abandone. Mexeu um pouquinho com Carolina, pegou a filhinha no
colo e a beijou, também abraçou e beijou Tita, me deu um abraço, se
despediu de nós e disse: – Vou tentar pegar o ônibus das onze horas, e
saiu. Ele estava abatido, Tita triste, a menina brincava com Carolina, que
estava um pouco inquieta, eu me sentia meio nervoso, sem saber por que.
Fiquei para almoçar, a pedido de Tita.
Enquanto ela cozinhava, eu brincava com a menina e Carolina,
que estava enrolada no meu pescoço. Neste momento bateram na porta e
Tita gritou: – Negrinho, atende para mim. Distraído, e com Carolina
enrolada no pescoço, abri a porta. Era um casal e quando a mulher viu a
cobra enrolada no meu pescoço, deu um berro e saiu correndo. O homem
ficou estático, mudou de cor, espelhando nos olhos o pavor da morte. A
criança chegou nesse momento onde eu estava e o homem, no seu torpor,
entregou um papel para a menina e saiu correndo, tropeçou umas três
vezes antes de chegar do outro lado da calçada onde a companheira o
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 95
esperava, agachada, com as mãos nos joelhos, batendo neles e rindo
muito. Ele se aproximou dela, falou alguma coisa e começaram a rir às
gargalhadas. Entraram na sorveteria da esquina e saíram chupando picolé.
Sentaram-se na calçada degustando o picolé e continuavam rindo. Ela ria
tanto que o picolé caiu no chão, então ela se levantou e foi comprar outro.
Em seguida saíram caminhando e ao passar em frente da casa, ele a
pegou pelo braço tentando puxá-la em direção a casa e foram embora
rindo. Fui na cozinha e contei para Tita o acontecido. Peguei o panfleto
que o homem tinha entregue à menina, era um convite para assistir a um
culto no próximo domingo na Igreja Evangélica.
Após almoçar e dormir um pouco fui visitar Elida. Notei que ela
estava muito alegre, diferente dos outros dias. Os retratos de Antônio não
estavam no lugar de sempre. Quando lhe perguntei por eles, respondeu
que os tinha mandado ampliar. Lanchei com ela e em seguida fui para
casa, dei o dinheiro para a mãe e lhe contei todos os acontecimentos. No
dia seguinte fui ver Tita para brincar um pouco com a menina e com
Carolina, só que não encontrei ninguém. Voltei para casa e como não tinha
nada a fazer, me dediquei a visitar alguns vizinhos. Este era um costume
que eu tinha sempre que andava pela vila. À tarde, eu estava em casa,
quando Tita apareceu com a menina no colo. Veio nos dizer que Manolo
pedira para que ela fosse o quanto antes para a fazenda, onde o sogro
estava muito mal e queria lhe ver. Ela queria que eu ficasse com as
chaves da casa para ir alimentar Carolina e brincar com ela para que não
adoecesse. Ela viajaria nessa mesma tarde. Fui com ela para casa, as
malas já estavam prontas, mostrou-me a comida de Carolina e mais
algumas coisas, se eu quisesse comer. Acompanhei-a até a rodoviária.
Todos os dias eu ia de manhã e a tarde alimentar Carolina e brincava
bastante tempo com ela.
O fim da parceria com Manolo e a morte da cobra Carolina
Quatro dias depois de Tita ter ido embora, quando cheguei na
casa, encontrei Manolo sentado num banco. Notei que estava triste, tinha
Carolina no colo. Quando da minha chegada, colocou-a na gaiola e me
convidou para ir à sala. Tita estava lá, com lágrimas nos olhos, parecia que
não queria me ver. Já na sala, nos sentamos frente a frente, ele me disse:
– Negrinho, meu pai faleceu e ele já foi enterrado, a mãe está muito
abalada e me pediu para ir tomar conta da fazenda, porque ela não tem
condições de administrar sozinha. Em vista da situação proposta, e após
conversar, decidi aceitar e vamos entregar a casa e levar nossa mudança.
A única coisa é que não sei o que fazer é com a Carolina. Eu disse: – Por
que não a deixa com o Dr. Corrêa, assim eu posso ir vê-la sempre. Manolo
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 96
quase querendo chorar, disse: – É a única solução. Sentou-se no banco
olhando para Carolina com uma profunda tristeza e os olhos molhados
pelas lágrimas. Tita não falava, ensacava uma coisa, amarrava outra,
tirava as roupas dos armários, colocava em malas, outras em caixas de
papelão. Carolina não parava quieta, estava inquieta, subia e descia
dentro da gaiola, parecia que pressentia alguma coisa. Eu ainda não tinha
me dado conta do que estava acontecendo, mas não abria a boca, estava
quase mudo, a menina brincava sem a menor preocupação. De repente, e
como impulsionado por uma mola, Manolo se levantou, limpou os olhos,
pegou a gaiola onde estava Carolina e disse: – Vamos Negrinho, vamos
deixá-la com o Dr. Corrêa e saímos.
Não sei como descrever o recebimento que tivemos por parte do
Dr. Corrêa, da esposa e dos empregados. A Carolina continuava demais
inquieta, não parava. O Dr. Corrêa foi mexer com ela, mas ela nem se
importou com ele, mesmo quando abriu a gaiola. Manolo explicou o motivo
de estarmos ali e seu desejo de deixá-la com ele, pagando uma
mensalidade. O Dr. Corrêa ficou olhando para Carolina, colocou o dedo
indicador nos lábios a guisa de silêncio, a cabeça um pouco curvada para
frente, deu dois passos adiante, voltou e nos disse: – Por favor, me
acompanhem. Uma vez na sala, dirigindo-se a Manolo e olhando para
mim, nos disse: – Lembram-se quando da outra vez que a deixaram no
hotel? E do jeito que a encontraram? Eu lhes falei no sentimento dos
animais, lhes disse que ela sentia a ausência de vocês e não queria mais
viver, como não tinha condições de se dar um tiro ou se fincar uma faca
(uma forma de dizer), então queria morrer de fome, de sede. Lembram-se
que só com a presença de vocês ela se recuperou? Manolo, você é para
ela seu primeiro e único amor, foi você que a desflorou, ela não se importa
com nada, só lhe chega a sua presença e ela está pressentindo que
alguma coisa não está normal, que alguma coisa vai lhe acontecer. Não vê
como está inquieta, não pára, quando o normal dela é dormir? Eu teria
muito prazer em cuidar dela, só que no momento que vocês saírem daqui,
ela não vai mais querer viver, não aceitará mais alimento, água, nada,
nada. Mesmo que o Negrinho venha lhe visitar e brincar com ela, não é o
suficiente, não se lembram do estado em que a encontraram no hotel?
Mais dois dias e a encontrariam morta. Sofreu muito pela ausência de
vocês, e é isto que vai acontecer novamente, e desta vez vai sofrer até
morrer. É isto que você quer para ela, Manolo? – Não, não senhor! Então
me diga, o que fazer, Doutor? – Manolo, a esta altura, e conforme me tem
contado, a única solução é que ela deve morrer sem sofrimento. Mesmo
porque ela já está sentindo a ausência de vocês e quando saírem daqui,
ela começará o processo da sua morte, não aceitará mais nada de
ninguém. Manolo, que até então só choramingava, desandou a chorar com
sentimento pueril, as lágrimas lhe corriam pelo rosto e algumas iam parar
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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na boca. Num momento de arrebato e com a voz um pouco alta, perguntou
para o Dr. Corrêa: – Doutor, o que fazer para não sentirmos o sofrimento
de sua morte? Dr. Corrêa colocou sua mão no ombro de Manolo e lhe
perguntou quando pretendia viajar. – Amanhã ao meio-dia, disse. –
Manolo, me diga uma coisa, interpelou o Doutor, você não gostaria que ela
ficasse sofrendo, não é? – Certamente que não, Doutor, disse ele. – Então
você gostaria de ver ela descansando e viajar tranquilo? – Sim senhor. O
Doutor disse: – Então deixa tudo em minhas mãos. – Sim senhor!
O Doutor então disse: – Você vai se sentar naquele sofá que está
na sua frente e o Negrinho vai até a gaiola e brinca um pouco com a
Carolina, sem a tirar da gaiola. Depois ele pega a gaiola com Carolina
dentro e coloca perto de você, que começa a brincar com ela e depois a
tira da gaiola e coloca em cima das coxas, fazendo cafuné. Mas você tem
que ficar bem relaxado, se possível dar uma cochiladinha, para ela se
sentir sem estresse. Você não tira a mão da cabecinha dela, ela sentir-seá feliz e até pegará no sono. O Negrinho se senta ao lado e pega a parte
de trás dela e também faz carinho, passa as mãozinhas por todo o corpo,
verão que ela ficará quietinha. O Negrinho pega esta pomada e passa no
rabinho dela. E este é todo o serviço de vocês.
Tudo foi feito conforme ele indicou. Dito e feito, Carolina
adormeceu igual a Manolo. Uns cinco minutos após eu ter passado a
pomada na cauda de Carolina, o Dr. Corrêa aplicou uma injeção de um
líquido verde claro. A Carolina nem se mexeu. Manolo de vez em quando
abria os olhos, se mexia e tornava a cochilar. Havia muitas pessoas que
estavam comprando ervas e chás e tudo aquilo que o Doutor vendia.
Faziam muito barulho, alguns perguntando a respeito de plantas ou de
problemas que apresentavam seus animais de estimação, algumas
pessoas ficavam nos olhando (que espetáculo, dois caras com uma cobra
no colo!). Algumas mulheres nem queriam chegar perto de nós, as
crianças é que eram mais curiosas, algumas chegavam a tocar Carolina
com o dedo. Ela nem se mexia.
Quando os compradores diminuíram e os poucos que ficaram
eram atendidos pela esposa do Doutor e a empregadao, o Dr. Corrêa
chegou perto dele, perguntou: – Como ela está? – Dormindo, Doutor, disse
Manolo. – Dormindo o sono eterno, ela dormiu feliz, sendo acarinhada
pelos seus dois amores e no colo deles, disse o Dr. Corrêa. Foi neste
momento que Manolo entendeu o que ele estava falando. Mexeu e
chamou Carolina e ela não se moveu, estava dura. Manolo apertou-a no
seu peito e a beijou, deu um leve sorriso, parecia descansado, satisfeito, e
a entregou para o Doutor, que por sua vez lhe perguntou se não gostaria
de ter ela em sua casa, empalhada. Manolo gostou da idéia. – Claro, disse
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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o Doutor, que vai demorar uns trinta dias. Manolo concordou e quis pagar
a morte de Carolina, mas o Doutor não quis cobrar. – Você só vai pagar o
taxidermista, a empalhada, pegou uma lista e lhe deu o preço.
Com muito carinho nos despedimos de todos. Manolo não mais
chorava, era só sorriso. Em casa nada se comentou do acontecido, pra
menina nada saber. Em determinado momento ela perguntou: – Pai, cadê
a Taoina? Manolo foi rápido e respondeu, todo sorridente, pegando ela no
colo, lhe disse: – Ela ficou para ganhar uns filhinhos bem bonitinhos. – Tu
dá um para mim? – Claro, minha filha e daremos um para a mãe também.
– Oba, gritou a menina. Após almoçar, Manolo me pediu para vir cedo no
dia seguinte, que tínhamos o que conversar. Em casa contei todo o
acontecido para a mãe e os meus irmãos e à noite contei também para
Romélia.
No dia seguinte, antes das oito horas, já estava na casa de
Manolo, onde ele me explicou aquilo que eu já sabia: a morte do pai, a
mãe sozinha queria que ele tomasse conta da fazenda, etc. Às nove horas,
aproximadamente, encostou um caminhão e entre três carregaram a
mudança em meia hora. Manolo me deu vinte lápis, vinte pentes, vinte
correntes, também me deu cinco pesos. Tinha sobrado três caixinhas de
pomada, que ele me deu, dizendo: – Experimenta, para ver se realmente
serve para alguma coisa. As levei, mas nunca as usei... Manolo foi
entregar as chaves para a dona da casa que morava perto dali, quando
voltou disse a Tita: – Vamos tomar café na casa do Negrinho. Em casa,
após os cumprimentos, a Tita pediu para minha mãe umas xícaras, e da
bolsa tirou uma garrafa térmica cheia de café com leite, também tinha pão
de queijo e broas. Até a mãe tomou café conosco. Findo o café, Manolo e
Tita com abraços nos agradeceram e nos convidaram para passar uns
dias na fazenda, assumindo o compromisso de nos mandarem as
passagens. Nunca fomos. Eu os acompanhei até onde pegaram a
condução que os levaria à estação do trem. Despedimo-nos com beijos de
Tita e da criança e Manolo, com voz trêmula, me abraçou, dizendo: –
Negrinho, vou sentir muitas saudades de ti. Vendendo nossas pomadas
íamos ficar ricos! (hoje eu penso, ele sim, eu não!). E um abraço marcou a
nossa despedida.
Eu fiquei pensando comigo: - Adeus às viagens, aos cinemas, às
diferentes comidas e às falas raras. Adeus Carolina, a quem tanto aprendi
a querer, adeus àquele dinheiro que Manolo me pagava e que era sempre
a mais do prometido, e que com ele minha mãe tinha conseguido comprar
alguns tijolos, areia e cimento para melhorar o nosso barraco. Foi nesse
momento que comecei a sentir falta dessa família, que eu sentia fazer
parte da minha, incluindo Carolina.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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O adeus a Elida
Não voltei para casa, me dirigi àquela casa onde Antônio tinha
serralheria, que agora era um armazém e estava todo pintado. Só o banco
de taquara na frente continuava igual. Entrei, comprei um centavo de
balas. Sentei no banco e tratei, sem vontade, de comer uma bala. Olhei
tudo ao redor: tudo estava modificado para melhor, o chuveiro que Antônio
tinha improvisado não estava mais lá. Voltei para casa e a mãe me disse:
– Elida esteve aqui e quer que tu vás almoçar com ela. Saí em seguida,
quando cheguei na casa dela, um casal vizinho estava retirando um
guarda-roupa, o apartamento de Elida estava praticamente vazio, só
restava um armário para louças tipo colonial, vários copos, xícaras, pratos,
panelas, talheres e algumas frigideiras, tudo enrolado em jornais. Ao notar
meu assombro e antes de eu perguntar o motivo, se adiantou, me dizendo:
– Negrinho, estou me mudando para minha terra, aqui estou muito
sozinha. Eu vim para esta cidade porque meu marido trabalhava aqui.
Após a morte dele, fiquei para receber o seguro e começar a receber a
pensão. Quando tudo estava pronto, me apareceu o Antônio. Adorei a sua
companhia, pensei que seria duradoura, mas foi efêmera, ele foi embora já
faz mais de ano e nem sequer nos mandou uma carta informando se
chegou bem, se encontrou a família, nada, absolutamente nada. Então
para quê ficar aqui, longe dos meus, aqui só tenho um amiguinho, que
quero muito, que sempre vem me visitar, que chamamos de Negrinho.
Enquanto almoçávamos lhe perguntei: – E quando a senhora vai? – Hoje
mesmo, às vinte horas, disse ela. Após almoçar, e sem sair da mesa,
continuamos conversando. Alguém gritou: – Dona Elida! Era o homem da
carroça, que morava na entrada dos fundos. Ele tinha encostado a carroça
bem na porta da casa de Elida e ela indicou o que tinha que carregar,
inclusive a mesa onde tínhamos almoçado, os quatro banquinhos e
também as panelas com a comida que tinha sobrado. Uma vez tudo
carregado, me disse: – Vamos Negrinho, que tudo isso é para tua mãe.
Subimos na carroça e fomos para minha casa. O carroceiro descarregou
tudo e foi embora. Elida ficou conversando com a mãe, eu fiquei recostado
e peguei no sono. Às dezessete horas Elida despediu-se, alegando que
iria levar as malas na estação e depois iria se despedir duma família
amiga. Abraçou minha mãe, me abraçou e me beijou, me deu cinquenta
centavos e foi embora. Fiquei olhando seus passos, até desaparecer.
Entrei, sentei-me perto da mãe e disse-lhe: – Mãe, perdi dois amigos no
mesmo dia. Continuamos conversando, falamos de Antônio, Manolo e de
Elida. A mãe, em determinado momento me disse: – Não se preocupe,
ainda lhe restam amigos como Gratiniano, o Dr. Corrêa e os vizinhos, que
gostam muito de você, e mais ainda a Romélia, sua grande amiga.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 100
4
NOVAS PERALTICES
E O RETORNO AOS ESTUDOS
A
proveitando que meus irmãos estavam de férias, a mãe nos
mandava a mim e a meu irmão mais velho entregar a roupa que ela
lavava e passava aos hóspedes de um hotel. Lembro que o nome
do hotel era o mesmo do número do prédio, “1930”, ou seja: “Hotel 1930”.
Na ida, como a roupa estava limpa e passada, nós dois íamos bem
quietinhos, percorrendo uma distância de aproximadamente 3 quilômetros.
No regresso trazíamos roupa suja, vínhamos aquela pândega, corríamos,
subíamos nas escadas das casas que deixavam o portão aberto, batíamos
nas campainhas e saíamos correndo. Uma das coisas que mais
gostávamos de fazer era de pegar latas vazias nas lixeiras das casas do
leite Klim ou Lactógeno. Sempre andávamos à cata destas latas, e na falta
delas, íamos aos bares e pedíamos as tampinhas de refri ou de cerveja, e
com um prego abríamos um furo nas tampinhas e enfiávamos um arame,
deixando livre um pouco mais de um metro. É claro que a primeira
tampinha era amarrada de tal forma para que as outras não saíssem. Com
as latas fazíamos o mesmo, abríamos um furo e passávamos o arame,
sempre deixando mais de um metro livre. Antes de sairmos de casa,
sempre escondíamos a lata ou as tampinhas e quando a mãe nos
mandava entregar as roupas, sem que ela visse, pegávamos a peça e a
levávamos conosco. Depois de entregarmos a roupa, voltávamos para
casa, mas onde encontrávamos estacionamento para carros, permitido por
quinze minutos, esperávamos que alguém estacionasse o carro. Quando o
motorista saía, esperávamos que ele entrasse em algum lugar, para em
seguida correr para o carro. Eu ficava de vigia, enquanto meu irmão
amarrava no pára-choque traseiro a lata ou as tampinhas, depois íamos
mais para frente para ver o carro passar fazendo aquela barulheira. Alguns
andavam um pouco e já paravam, pegavam a lata e a colocavam na lixeira
mais próxima, e nós, após tudo calmo, pegávamos de novo a lata e íamos
embora. Alguns guardavam a lata dentro do carro, outros a deixavam no
cordão da calçada e outros ainda nem percebiam o barulho, tinha uns tão
distraídos que só descobriam quando um motorista dentro de outro carro
lhes avisava.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 101
O senhor Maturana
Maturana era um senhor que tinha uma fabriqueta de vassouras.
Num terreno muito grande tinha construído um ranchinho de taquara, e
para conseguir o arame para amarrar as vassouras, ele queimava pneus,
porque a parte onde se firmavam nas rodas, era toda de arame coberto de
borracha. Íamos aos nos postos de gasolina recolher peneus velhos e o sr.
Maturana nos pagava três centavos por unidade. Muitas vezes ficávamos
Também cuidando quando ele saía a vender as vassouras e retirávamos
de seu ranchinho um pneu cada um, para tornar a vendê-lo ao Sr.
Maturana. Às vezes ele queimava tantos pneus que as labaredas se viam
de longe e ardia durante a noite. No outro dia só restavam as cinzas, os
rolinhos de arame e alguns pedacinhos de borracha ainda fumegantes.
As brincadeiras e os corretivos
Hoje fico pensando: qual era o gosto que se tinha para fazer tanta
peraltice! Ver alguns motoristas, brabos, amassando com os pés as latas e
atirando-as em qualquer lugar, uns calmos até sorrindo, outros olhando
para todos os lados à procura dos culpados, e nós bem escondidos,
observando tudo, ou colocando os sacos de roupa na cabeça e passando
por eles com um olhar ingênuo. Quem é que iria desconfiar de dois
rapazes carregando bolsas na cabeça? Uma vez, para bisbilhotar o que
estava acontecendo, porque se havia formado um grupo do lado do carro
que tínhamos colocado a lata, botamos os sacos de roupa na cabeça e
fomos em direção ao grupo. Tudo orientado pelo meu irmão, eu pedia para
alguém me ajudar a descer o saco de roupa da cabeça para eu descansar.
Desta forma, ficávamos a salvo de que desconfiassem de nós,
permanecendo no meio dos comentários. Outra vez, aconteceu que o
motorista do carro que tínhamos colocado a lata achou que o saco de
roupa que eu levava era muito pesado para mim e enquanto riam pela
invenção do rabo no carro, ele nos perguntou para onde íamos. Com a
nossa resposta, ele nos disse: – Eu vou lá perto, subam no carro que levo
vocês. Realmente, nos deixou a umas duas quadras de casa. Quando o
homem desapareceu de nossa vista, aí sim, começamos a rir e a desfrutar
de nossa peraltice.
Naquele tempo os carros tinham no centro do volante da direção
um botão, que com um leve aperto tocava a buzina. Como nessa época
ninguém roubava carros, os motoristas desciam e nem se preocupavam
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 102
em fechar vidros ou chavear portas e muitos até deixavam as chaves na
ignição. Meu irmão, que era o mentor de tudo, e a quem eu seguia,
descobriu que grudando um chiclete o botão de cima, este continuaria
buzinando. Então, qual era a nossa felicidade: comprávamos chiclete,
cada um mastigava a pastilha e depois de bem mastigada, com os dois
chicletes fazíamos uma bolinha. Como sempre, cuidávamos alguém
chegar de carro e ficávamos até o motorista desaparecer. Depois eu
pegava as duas sacolas de roupa e dobrava a esquina e esperava meu
irmão. Não demorava muito e começava a ouvir o barulho da buzina. Meu
irmão chegava, pegava a sacola dele e saíamos correndo. Dávamos a
volta no quarteirão, colocávamos as sacolas na cabeça e começávamos a
ir no sentido onde estava o carro buzinando. É claro que esperávamos
primeiro que o motorista chegasse, depois nós passávamos e o víamos
limpando o chiclete e dizendo cada palavrão! Nós continuávamos e íamos
rir noutro lugar.
Tenho escutado um ditado que diz: “O diabo fez a panela, mas se
esqueceu de fazer a tampa”. É o que aconteceu: um dia, após colocar o
chiclete no botão da buzina, o dono do carro nos viu e saiu atrás de nós,
até nos alcançar. O homem pegou meu irmão e começou a sacudi-lo. Meu
irmão gritava e eu corri para uma obra ali perto e peguei duas pedras, vim
correndo e comecei a gritar: – Solta meu irmão! E ameaçava atirar a
pedra. Nesse momento um senhor que passava me perguntou o que era, e
eu respondi: – Ele quer bater no meu irmão. Perguntou o senhor: – Ele é
parente? – Não senhor, respondi, ele não é nada nosso. O senhor chegou
perto do cara e lhe perguntou: – Você vai bater numa criança? O que ela
lhe fez de tão grave? O cara respondeu: – O senhor não está ouvindo meu
carro buzinando? Foram estes moleques que grudaram com chiclete o
botão da buzina. – O senhor, ao invés de bater na criança, deveria ter ido
desligar a buzina. Diga-me uma coisa, o senhor quando criança não fez
arte? Se o senhor nunca fez, pode bater no rapaz. Uma senhora que tinha
parado para observar gritou: – Não senhor, na minha frente o senhor não
vai bater no menino! A esta altura havia muita gente ao nosso redor. Um
motorista que tinha diminuído a marcha do carro para assistir, gritou de
dentro do carro: – Larga o garoto, covarde! Outra senhora gritou: – Onde é
que se viu, tremendo marmanjo querendo bater numa criança, será que
ele não tem filhos? Com todo esse tumulto a nosso favor, o homem largou
meu irmão e foi embora. A buzina parou, e se ouviu um ranger de pneus.
Seguramente arrancou todo brabo. Um casal que estava presente chegou
perto de mim, ela colocou suas mãos na minha cabeça, e muito carinhosa
me disse: – Me dê essas pedras, meu filho! Eu as entreguei e ela as deu
para o marido, que as devolveu na obra. Ao ver os sacos de roupa nos
perguntaram o que eram. Respondemos que eram roupas sujas de uns
hóspedes de hotel para a mãe lavar. O homem me disse: – Ninguém vai
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 103
bater no seu irmão, o homem mau já foi, se despediram de nós e nos
deram cinco centavos para cada um. O senhor que primeiro nos tinha
defendido, nos convidou a tomar um sorvete e nos disse: – O susto já
passou. Na sorveteria pediu três sorvetes com salada de frutas. Pela
primeira vez comia coisa tão gostosa e até hoje é meu paladar preferido.
Enquanto comíamos o sorvete, ele nos aconselhou para não fazer arte na
rua porque era muito perigoso. Tinha homens muito violentos e ficavam
cegos quando lhes era tocado no seu patrimônio. Contou-nos que ele e
alguns amigos, quando ainda estava na escola, gostavam de colocar
pedras nas rodas dianteiras dos carros, e quando o carro arrancava
apagava, patinava ou senão subia na pedra e a direção puxava para um
lado. É claro que isto criava embaraço para o motorista, e isto lhes
causava satisfação. Disse: – Um dia, um motorista que já tinha sofrido por
causa disso, me pegou bem na hora que eu estava colocando uma pedra
no carro dele. Arrastou-me, e quando eu estava no chão, começou a me
dar pontapés, todos direcionados na bunda. Eu, querendo me defender
dos coices, coloquei a mão no traseiro no momento em que ele me dava o
chute, e com o bico do sapato me fez um corte no braço. Quando o
homem viu minha roupa ensanguentada, pegou o carro e se mandou. Um
vendedor ambulante que estava do outro lado da rua viu quando o homem
fugiu me deixando no chão e começou a pedir socorro. O dono de uma loja
situada na frente do local onde eu tinha apanhado, me levou para o
hospital e depois chamaram meu pai, que era delegado de polícia. Uma
vez feitos os curativos, voltamos ao local, mas nunca conseguimos
localizar o tal motorista, nem o carro. O que consegui foi esta cicatriz, e
nos mostrou o braço esquerdo. Quando eu vi aquele cara que queria lhe
bater, me lembrei do cara que me bateu aquela vez, sem que ninguém me
defendesse e imediatamente pensei: Se aquele cara bate no rapaz, eu
estou disposto a sair de socos com ele. Sorte que tudo terminou de
maneira calma. Por isso, é bom vocês não fazerem arte na rua, para um
dia não apanharem. Claro que é gostoso, mas é melhor não se aventurar.
Há caras que não respeitam ninguém e são selvagens e furiosos. A uma
quadra dali, pegou um cocheiro amigo seu e nos mandou para casa e
também nos deu cinco centavos para cada um. Isso nos serviu de lição.
Nunca mais tornamos a fazer arte, nem com chiclete, nem com latas.
A luta pela recuperação de vinte centavos
Uma tarde, quando voltávamos de entregar a roupa, um senhor
desceu de um coche e, ao guardar no bolso o dinheiro do troco que o
cocheiro lhe deu, uma moeda de vinte centavos caiu no chão e rolou para
dentro de um ralo de um esgoto pluvial. O homem tentou tirar o ralo,
porém este era muito pesado e vendo a impossibilidade de tirar a moeda,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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o homem foi embora. Eu tentei botar a mão numa fresta um pouco mais
larga do ralo. A minha mão entrou um pouco e ali ficou entalada. Puxei
com força, a mão saiu, mas também se raspou, como me doía, eu
chorava. Um par de senhoras idosas que ia passando, quando me viram
chorando, uma delas perguntou o motivo do meu pranto, ao que meu
irmão respondeu rapidamente: – É que a mãe deu vinte centavos para ele
comprar leite, pão e café e a moeda caiu ali dentro, e agora, quando
chegarmos em casa, a mãe vai xingá-lo por ser distraído. A senhora tirou
da bolsa duas moedas de vinte centavos e me disse: – Chega de chorar
meu filho, deixa essa moeda lá dentro e vai comprar aquilo que a mãe
encomendou. Limpei as lágrimas, agradecendo à senhora e fizemos de
conta que íamos embora. As senhoras pegaram um coche e
desapareceram. Nós voltamos ao ralo e começamos a fazer de conta que
queríamos tirar a grelha. Um gordinho que passava se acercou de nós
querendo saber o porquê de querermos tirar o ralo. Eu fiz de conta que ia
chorar e meu irmão se adiantou e disse para o gordinho: – Ele vai apanhar
da mãe porque deixou cair a moeda que era para fazer as compras para o
café da manhã. O homem botou a mão do bolso, tirou uma moeda de vinte
centavos e nos deu, dizendo: – Deixe essa moeda ali. Agradecemos e
saímos, sempre cuidando o homem para ver aonde ele ia, mas o que nós
realmente queríamos era tirar a moeda do bueiro.
Como tirar aquela bendita moeda? Começamos a nos lembrar e
falar do 20 de julho, dia da pátria na Colômbia. As professoras da escola,
para deixar as bandeirinhas, feitas por elas, ficarem em pé, colocavam um
pedaço de sabão na haste da bandeira, e embaixo do sabão colocavam
uma moeda. Desta forma, as colocavam em qualquer lugar, sem que elas
caíssem e as moedas também não caíam. Partindo deste princípio, fomos
até um posto de gasolina e pedimos para o lavador de carro nos dar um
pedacinho de sabão, e este, ao invés de um pedacinho, nos deu um
pedaço que calculo deveria pesar mais de um quilo. Pegamos um galho de
uma árvore parecida com chorão, limpamos, colocamos um pedaço de
sabão na ponta e retornamos para o ralo. Tirar a moeda foi muito fácil.
Pegamos a moeda e saímos correndo, deixando o galho ali mesmo no
chão. Um senhor que nos viu, correu e nos alcançou. Xingando-nos,
mandou que recolhêssemos o galho e botássemos no lixo. Como a mãe
nos disse que não deveríamos ser grosseiros com os adultos, agüentamos
a xingada caladinhos. Juntamos o galho e o colocamos no meio da roupa
suja. Tínhamos oitenta centavos, é claro que antes de chegarmos em
casa, compramos sorvete e balas e gastamos seis centavos. Meu irmão
guardou cinco centavos para comprar doces na escola na hora do recreio,
ele era bom pra comer, enquanto era muito difícil para eu comprar alguma
guloseima. A mãe às vezes me dava algum dinheiro que eu terminava
dando para meu irmão mais velho ou para o segundo, ou senão para o
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 105
quarto, e muitas vezes terminava devolvendo para a mãe. Eu não
precisava comprar nada, se chegava no Gratiniano, sempre me convidava
para comer alguma coisa, igual no Dr. Corrêa, quando visitava meus
vizinhos, tinham sempre tinham guardado algum doce para mim. A mãe de
Romélia sempre fazia um pão que eu adorava, era pão de forno (Pan de
horno), sempre que fazia mandava por Romélia ou vinha ela mesma
trazer. Bom, o caso era que agora tínhamos que dar conta da origem do
dinheiro, coisa que não foi difícil, graças ao galho que tinha o pedaço de
sabão na ponta e estava no meio da roupa suja. Uma pequena mentira,
dizer para a mãe que tínhamos tirado todas as moedas do bueiro. Levar
dinheiro para minha mãe era minha felicidade.
As safadezas dos irmãos
Parar de fazer arte, na realidade era difícil, mas tínhamos certo
receio, porém a vontade de fazer era forte, e unicamente quando
andávamos juntos, meu irmão Marino e eu. Um dia, meu irmão colocou em
prática o que ele tinha lido num jornal. O negócio foi o seguinte: Com uma
madeirinha bateu na campainha de uma casa, saiu correndo e se
escondeu, eu fiquei olhando de longe. Uma senhora abriu a porta, mas
como não viu ninguém, entrou e fechou a porta. Meu irmão foi, bateu de
novo e se escondeu. A senhora abriu novamente, procurou por todos os
cantos e fechou de novo a porta. Neste momento ia passando um senhor
de baixa estatura e meu irmão lhe pediu para bater na campainha.
Enquanto o homem se esforçava para bater, meu irmão se escondeu.
Parece que a senhora estava esperando que batessem, porque apenas o
homem bateu, ela abriu a porta. É só calcular a raiva da mulher quando
pegou o homem batendo na campainha. O homem tentava explicar e
olhava para todos os lados procurando meu irmão, que chegou onde eu
estava. Pegamos as sacolas de roupa, colocamos na cabeça e passamos
do outro lado da calçada. Quando passávamos bem em frente, ouvimos a
mulher perguntando: – Onde está o rapaz que o senhor fala? Em que
terminou não sei, só sei que nós dobramos a esquina e começamos a
correr e paramos bem longe, onde conseguimos dar vazão às nossas
gargalhadas.
Outra artimanha: num pau de vassoura amarrávamos uma lata,
onde colocávamos um pouco d’água. A corda era curta, mais ou menos
uns 20 centímetros. Encostávamos o pau na porta, um pouquinho
inclinado, e tocávamos a campainha. No momento que abriam a porta, o
pau rolava, a lata fazia barulho ao cair no chão e a água saltava fora. É
claro que nós, ao batermos a campainha, fugíamos, e de longe ouvíamos
os gritos das mulheres, do susto que levavam.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Também pegávamos uma corda ou um pedaço de arame, de
aproximadamente um metro, e numa ponta amarrávamos uma lata, ou
uma pedra, ou até podia ser um pedaço de madeira e na outra ponta
fazíamos um gancho. Nós íamos para um parque e quando víamos um
casal de namorados sentados nos bancos de madeira, eu passava pela
frente deles caminhando com as mãos e meu irmão pela parte de trás do
banco, se acocorava e por uma fresta do banco encaixava o ganchinho de
arame no passador da calça por onde passa o cinto. É claro que, quando o
homem se levantava e queria dar o passo, não podia, porque a pedra ou a
lata ou a madeira não passava pela fresta do banco. A pessoa que o
acompanhava começava a tirar o gancho e ria e nós de longe também.
De volta às aulas
O movimento do retorno às aulas já se fazia sentir, o corre-corre
das matrículas, os livros, o uniforme. Um dia a mãe me disse: – Filho,
amanhã é dia de ir ao oftalmologista, porque já vão começar as aulas. Este
convite eu não recebi com muito bom grado. Eu não queria ir mais a
nenhum oftalmologista e disse para a mãe: –Parei de usar o remédio e não
senti mais nada. Ela me disse: – Meu filho, eu sei, mas vamos só por um
desencargo de consciência. No dia seguinte fomos ao oftalmologista.
Lembro-me que estava um pouco nervoso, tinha uma vontade de chorar, O
médico examinou os olhos e disse: – Tudo está bem. Voltamos para casa,
mas dentro de mim sentia uma sensação de raiva, acompanhada de uma
vontade de chorar. Em casa, fui direto para a cama e peguei no sono. A
mãe, dizendo que era gripe a se manifestar, me deu um chá preto que
tomei acompanhado de uma aspirina e dormi novamente.
No dia seguinte, a mãe me levou à escola, eu não me sentia bem.
Na aula todos eram pequenos, o marmanjo era eu, a professora nos
cumprimentou, disse para a gurizada quem eu era e do meu problema nas
vistas. A última coisa que lembro é que um dos guris disse: – Ele é o
Negrinho, ele às vezes vai à minha casa. Depois, quando abri os olhos
estava no posto de saúde. Ouvi quando o médico, um pouco alterado,
disse para minha mãe: – Porque a senhora insiste em mandá-lo para a
escola? Porque não espera que ele fique um adolescente? Nesse
momento uma enfermeira me aplicou uma injeção na nádega. Em seguida,
o médico disse para a mãe: – Ele está bem, pode levá-lo. E dirigindo-se a
mim, um pouco ríspido, me disse: – Por enquanto você não pode estudar,
espera mais um pouco, estamos entendidos? – Sim senhor e desandei a
chorar. No caminho reclamava para a mãe: – Se a senhora não me
levasse para esse médico, eu poderia estudar. Hoje eu lembro o
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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desespero da mãe, tratando de me consolar, e sinto raiva de ter me
comportado daquele jeito, de ter feito isso com ela, mas fiz, já passou! Eu
ainda chorava quando chegamos em casa, não quis saber de nada, fui
para trás de casa e lá continuei chorando. Acho que a mãe mandou
chamar Romélia, porque de repente, ela apareceu toda carinhosa: – Por
que estás chorando, Negrinho? Deu-me um pão de forno que a mãe dela
fazia e eu adorava, ela sentou-se do meu lado e me fez comer. Ela tinha
levado o pão para minha mãe e meus irmãos. De noite, fomos na escola
ver um teatro de fantoches, era pago pelo governo, rimos bastante, e tudo
passou.
A mãe não me mandava sozinho entregar a roupa, às vezes eu ia
junto com ela. Já que não tinha meu companheiro de artes, porque meu
irmão Marino estava estudando, eu perambulava sem nada a fazer.
Quando a Estelita, filha de Gratiniano completou quinze anos, ela fez uma
festança e eu fui convidado. Gratiniano falou com minha mãe para que me
deixasse ir. O que me chamou muito a atenção foram os músicos. Eram
três violões, nunca tinha visto um violão de perto. Um dos músicos, de
nome Túlio, me deixou pegar o violão enquanto ele descansava um pouco.
Em determinado momento, Gratiniano me apresentou aos presentes.
Alguns já me conheciam, porém, não sabiam de minhas habilidades, de
tudo que eu sabia, fiz um pouco de tudo. Túlio ficou interessado pelas
provas de mágica e me perguntou: – Gosta de violão? – Sim senhor,
respondi. E ele perguntou: – Gostaria de aprender? – Sim senhor. – Então
vamos fazer um trato: você me ensina a fazer algumas mágicas e eu lhe
ensino a tocar violão. Eu disse que gostaria, só que eu não tinha violão.
Ele disse: – Não se preocupe, eu lhe dou um, que tenho lá em casa.
No dia seguinte, eu lhe ensinava mágicas e ele me ensinava
violão. Por algum tempo eu ia três vezes por semana na casa de Túlio
aprender a tocar violão e ensiná-lo a fazer mágicas. As trucadas ele
aprendia, só que as de destreza ele não conseguia. Da minha casa, à casa
de Túlio, não era perto, mesmo assim eu colocava o violão debaixo do
braço e ia receber as aulas. Ultimamente, quando Túlio era convidado para
tocar e os companheiros não podiam ir, Túlio me convidava para lhe
acompanhar, e por último, eu já fazia parte do conjunto. Eu era feliz indo
nessas festas para tocar junto com eles e era bom porque tocando eu
aprendia mais. Para tocar, eles não cobravam nada, é claro que eu
também não ganhava nada. A gente tocava só para se divertir, era
costume em determinado momento das festas, e quando já estavam
cheios de cerveja ou aguardente, os donos da casa servirem uma sopa de
galinha muito gostosa, que tinha, é claro, aipim, batata inglesa, milho verde
e banana da terra verde (plátano). Este tipo de sopa é tradicional na
Colômbia e chama-se Sancocho. Quando é de galinha, seu nome é
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Sancocho de galinha. Em algumas regiões o preparo é diferente, leva
rabada, carne de porco e galinha, e este é denominado Sancocho
Trifásico.
Músicos e sua fama de ladrões de galinha
Naquele tempo os músicos tinham fama de ladrões de galinha.
Alguém tinha que ficar na cozinha cuidando o Sancocho nas festas onde
havia músicos, porque enquanto todos estavam felizes dançando, um dos
músicos ia à cozinha, pegava um prato e tirava as melhores partes da
galinha, comia e depois escondia o prato com os pedaços da galinha,
entrava de novo para tocar, dizia a outro músico onde estava escondido o
prato. A gente começava a tocar música alegre e demorada para que o
outro pudesse ir comer, até que todos fossem. Eu tinha medo, por isso não
participava. Em algumas casas, preparavam a galinha ao molho, com
batata inglesa. Os músicos comiam os melhores pedaços. Eram tão
rápidos e práticos que nem eu conseguia ver, e quando os donos da casa
davam falta da galinha, os primeiros a quem olhavam era para os músicos,
mas eles, com aqueles gestos de ingênuos, ninguém podia acreditar que
eram eles. Algumas vezes conseguiam ouvir os donos da casa dizer:
agora, como músico tem fama de ladrão de comida, os outros comem a
comida para botar a culpa nos músicos. Mal sabiam eles que era mesmo
os músicos que tinham comido a galinha.
Dentre os músicos, havia um senhor magrinho, bem baixinho e
com bastantes cabelos brancos, que tocava o bandolim muito bem e
gostava de uma cerveja como nenhum dos outros. Quando chegávamos
nas casas, a primeira coisa que fazia, e a qualquer pretexto, era olhar o
pátio da casa, e como naquela época, todos tinham criação de galinhas,
patos, até peru, ele se importava mais era em saber onde se encontrava o
galinheiro. Sempre levava consigo alguns ossos de gado para se tornar
amigo dos cachorros. Como tinha algumas casas que, ao invés de
Sancocho, ou galinha ao molho, ofereciam salgadinhos, coisa que não
agradava a nossos músicos, então ali entrava a atividade de nosso tocador
de bandolim, seu nome era Erazo. No melhor da festa, e enquanto todos
dançavam, ele desaparecia, depois voltava trazendo qualquer coisa
enrolada num jornal, guardava o pacote no estojo do bandolim, fechava e
continuava tocando. Uma vez, pelas duas e meia da madrugada, alegando
outros compromissos, nos despedimos. Nesse momento que eu descobri o
porquê do desaparecimento de Erazo e a origem do pacote. Como não
havia Sancocho, e nem galinha ao molho, ou um prato também muito
típico, cujo nome era Tamal, então Erazo foi para o galinheiro, pegou uma
galinha, lhe torceu o pescoço e a enrolou no jornal, entrando na sala
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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normalmente. Longe da festa, nos dirigimos a casa de um deles, entramos
caladinhos preparamos a galinha com uma mesa farta de batatas, pão,
cerveja, aguardente, rum e coca-cola. Túlio gostava era de cuba livre e já
preparou seu copo. Erazo gostava era de cerveja, e os outros de
aguardente e eu tomei coca-cola. Pronta a sopa, todos comemos, depois
cada um foi para sua casa, eu fiquei na casa de Túlio. Era por isso que os
músicos tinham essa fama, eram quase todos, e quando se encontravam
os grupos, riam ao comentar os roubos das carnes do Sancocho, ou da
galinha ao molho, tamales, ou as galinhas da festa na casa do fulano, e
era só gargalhada. Por isso que os músicos daquela época tinham essa
fama.
A bicicleta, presente do Polaco
Perto da casa de Túlio tinha um ferro velho, o dono era um polaco
magro, alto, loiro, tinha os dentes manchados de tanto que fumava.
Lembro que quando Antônio foi embora, recolheu um monte de ferro velho
e me deu e fui vender no ferro velho do Polaco, mas ele não quis comprar
porque desconfiava era coisa de roubo. Expliquei a origem da sucata e
nem assim Polaco quis comprar. Voltei no Antônio e lhe contei a
desconfiança do Polaco e Antônio foi lá junto comigo. Eles já se
conheciam, então o Polaco comprou a sucata e terminamos ficando bons
amigos. Calculo que o Antônio lhe falou a meu respeito, porque o Polaco
me convidou para lhe visitar quando eu quisesse. Assim foi, quando ia no
Túlio, entrava no Polaco. Ele pegava o violão e tocava algumas modinhas
da terra dele, eu não entendia nada do que ele cantava, mas gostava de
ouvir. Ele morava nos fundos do ferro velho, era uma casa bem bonitinha,
tinha muitas folhagens e quem cuidava era dona Elga, mulher do Polaco,
ela era alemã. Um dia eles me convidaram para almoçar com eles.
Enquanto esperava, senti um cheiro parecido com o que às vezes sentia
na casa de Manolo, era que dona Elga estava derretendo aquela gordura,
ou sebo, com a qual Manolo preparava a pomada. O Polaco a usava para
lubrificar os parafusos ao passar a tarraxa. Alguns dias eu ia ajudar o
Polaco na separação de parafusos, porcas e arruelas. Um dia ele me
convidou para ir no domingo almoçar com eles, era para ir bem cedo e
levar uma mudinha de roupa para lhe ajudar a tirar uns ferros. Às oito
horas do domingo eu já estava na casa do Polaco. No momento que eu
chegava, dona Elga estava indo à padaria. Eu me ofereci para ir comprar,
e ela aceitou. Quando voltei o Polaco estava lendo o jornal, me convidou
para sentar enquanto dona Elga preparava o café. Antes de me sentar,
comecei a olhar os quadros da sala, esta muito bem organizada, tudo
limpo, cuidado, com capricho. Havia um quadro oval onde estava retratado
o Polaco e dona Elga no dia do casamento. Num outro quadro um pouco
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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menor, havia uma foto de um rapaz com traje de primeira comunhão. No
momento que o Polaco virou a folha do jornal, aproveitei para perguntar
quem era o rapaz da foto e ele me respondeu que era o filho dele no dia
que fez a primeira comunhão. Havia muitas outras coisas, quadros,
estantes, um relógio grande que a cada hora tocava a Ave Maria, tudo era
decorado com gosto, tudo muito bonito. Havia uma estatueta que talvez
fosse de bronze, perguntei quem era, e ele me respondeu que era
Copérnico. Hoje sei quem foi Thomas Copérnico, mas naquele dia, entrou
por um ouvido e saiu pelo outro. Quando estávamos tomando o café,
perguntei pelo filho e me responderam que estava na Alemanha fazendo o
serviço militar para conseguir naturalidade alemã, mas quando retornasse,
também teria que fazer o serviço militar na Colômbia, porque era
colombiano.
Ao terminarmos o café nos embrenhamos no depósito de ferro
velho, ele me pediu para subir num tipo de mezanino onde havia uma
quantidade de esqueletos de motos e bicicletas. Disse-me para ir
passando as peças uma por uma, e por último, passei uma bicicleta que
estava quase completa. Aí pediu para suspender, e começou a me passar
de volta as peças que eu tinha passado primeiro. Em seguida desci, a
bicicleta estava na bancada. Ele a desmontou, lubrificou, me ensinou a
lixar e eu a lixei, depois ele a montou de novo. Em seguida ligou o
compressor e a pintou à pistola. Calculo que seria umas treze horas e
trinta minutos quando dona Elga nos chamou para almoçar. Depois do
almoço, dormi os dez minutos do Antônio, e quando acordei, Polaco
estava enchendo os pneus, a bicicleta estava pintada de azul celeste e
com umas decorações com tinta branca, que a deixou muito bonita. O
Polaco a examinava, mexia com os pedais. Era uma bicicleta diferente de
todas as que eu tinha visto. No centro e onde estavam os pedais, tinha um
tipo de caixa de mudanças e na parte mais alta do marco, tinha uma
alavanca, quando colocava a alavanca para frente, a bicicleta andava
rápido no plano, porém era muito difícil subir lomba, o pedal era muito
duro, a gente pedalava pouco, porém ela rolava muito. Colocando a
alavanca para baixo, o pedal ficava bem mole, se pedalava muito e ela
andava pouco, é claro que subia qualquer lomba. Estando a alavanca no
centro, era normal, igual às outras bicicletas. A marca desta bicicleta
estava em letras em alto relevo, na caixa de mudanças, dizia Hadhler made in England, mais ou menos isso, não me lembro bem. Uma vez
pronta a bicicleta, o Polaco chamou dona Elga e me disse: – Esta bicicleta
é um presente nosso para você. Muitas vezes tenho me lembrado da
alegria que senti: ganhar uma bicicleta! Até hoje me lembro que dona Elga
disse: – Negrinho, tu mereces, é um menino bom, continua sempre assim!
Em seguida, o Polaco me disse: – Querendo, podes ir embora, a bicicleta
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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é tua. Abracei o Polaco e dei um beijo em dona Elga e saí. Como não
sabia andar, fui empurrando até minha casa.
Agora imaginem a bagunça que se formou à minha chegada em
casa, falavam da cor, porque naquela época as bicicletas eram todas
pintadas de preto e com uns riscos cor ouro, a minha era azul celeste e
branca, o que mais chamava a atenção era a caixa de mudanças. Meu
irmão Marino quis dar uma volta. Romélia também andou, em seguida meu
irmão e Romélia começaram a me ensinar Após três tombos, consegui me
equilibrar e fiquei praticando até às vinte e uma horas No dia seguinte, às
cinco horas já estava praticando, e só parei na hora do almoço, com
alguns raspões nos tornozelos e nos joelhos. Após o almoço saí de novo
de bicicleta e fui até o Polaco. Ele e dona Elga foram à rua para me ver
andar. O Polaco descobriu a minha afobação e me orientou a melhor
forma de eu não ser afobado. Dona Elga me fez curativos nos raspões.
Daí fui visitar Gratiniano, foi aquela bagunça quando cheguei, ele me
perguntou quanto havia pago, é claro que lhe respondi que o Polaco tinha
me dado de presente. Os que estavam presentes se surpreenderam, e me
disseram: – Que estranho, porque aquele Polaco é um unha de fome, é o
maior mão de vaca que já se viu. Queriam saber se tinha feito algum
serviço para ele, respondi que não, e me perguntaram: – Quem pintou a
bicicleta? Respondi: – Foi o Polaco mesmo, eu só a lixei, ele a pintou com
pistola e fez os riscos com pincel bem fininho. Outros mais curiosos me
perguntaram: – Você o conhecia? – Claro, às vezes eu ficava lá no ferro
velho conversando com ele, e a mulher dele até já me convidara para
tomar café, só isso. No final, disseram: – É que o Negrinho tem sorte,
conseguiu abrir a mão do Polaco. Terminada a recepção e satisfeita a
curiosidade, me despedi de todos com o carinho que sempre recebia dos
amigos e muito em especial de Gratiniano e sua família.
Saí em direção à casa do Dr. Corrêa. Como a todos, ali também a
minha chegada lhes causava alegria, mais ainda agora que chegava de
bicicleta, o primeiro a sair foi o Doutor, em seguida a empregada, seguida
pelo marido. A esposa do Doutor também veio correndo. O que lhes vinha
na mente primeiramente era quanto eu teria pago, e a minha resposta era:
– Foi presente do Polaco do ferro velho. – Não pode ser, o Polaco não dá
nada a ninguém, ele vende tudo, não dá, não empresta nada pra ninguém,
é um tremendo pão duro, mas o Doutor interveio: – Ele está certo, que
seria dele se desse tudo que teve que comprar, não é mesmo? Ele deu a
bicicleta para o Negrinho porque ele é prestativo, e além disso, tem sorte.
Todos achavam linda a bicicleta e o que mais lhes chamava atenção era a
bicicleta com mudanças, e diziam: – Agora o Negrinho está motorizado.
Foram muitos os garotos da minha vila que aprenderam a andar na minha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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bicicleta, também muitas meninas, apesar de tantos tombos, a bicicleta
nunca estragou.
Eu gostava de ir ajudar o Polaco porque me lembrava do Antônio,
só que ao invés de fole, a forja era de ventoinha e era manual. Ele
colocava uns quantos parafusos enferrujados na forja com as porcas que
nem se mexiam, quando eles estavam bem quentes e querendo pegar cor,
os jogava no óleo queimado e quando estavam frios tirávamos do óleo e
nem precisava passar tarraxa, a porca corria bem macia. Ultimamente era
eu que fazia este serviço e gostava de fazer, enquanto o Polaco separava
os parafusos de diferentes bitolas, também os de rosca fina e os de rosca
grossa. O que mais se vendia eram parafusos, arruelas de pressão e lisas,
os parafusos sempre eram vendidos com suas respectivas porcas, quem
mais comprava eram os mecânicos e chapeadores. Também vendia ferro,
de diferentes bitolas, e por metro, quando chegavam os caminhões cheios
de ferro ou sucata, dona Elga e eu ajudávamos a arrumar. É claro que,
como todos falavam, o Polaco era muito miserável. Digo isto porque,
depois de lhe ajudar toda a semana e queimar centenas de parafusos, me
dava às vezes três ou cinco centavos apenas. Eu não me importava,
gostava muito deles. A dona Elga às vezes me fazia calções tipo
bermudas, ela mesma tirava as medidas e costurava, até camisas ela me
fez.
As lembranças dos amigos
De vez em quando eu visitava meus amigos, o Gratiniano, a mãe
de Romélia, visitava também o Mudinho, o Oscar e meus vizinhos. Quando
ia visitar o Dr. Corrêa ficava vendo a cobra Carolina numa espécie de
galho de árvore, tal como se estivesse viva. Eu ficava longo tempo olhando
para ela e sentia uma espécie de tristeza, lembrando dela viva, quando
subia no meu ombro, quando se levantava no ombro de Manolo como
querendo saudar o público. Queria tocar nela, só que ainda não podia,
porque não estava bem seca. Alguns dias depois, apareceu Manolo em
minha casa, levando um saco onde tinha aipim, batata, cebola e muitas
outras coisas, como carne, tomate, etc., tudo da fazenda dele. Disse que
tinha vindo para levar Carolina, se despediu da minha mãe e fomos até o
Doutor Corrêa na minha bicicleta, ele pedalava e eu ia na carona. O
Doutor já tinha a cobra pronta numa caixa de papelão, passei a mão na
cabecinha dela, dei um beijo e fecharam a caixa. Manolo pagou, despediuse do Doutor, pois estava apressado, me abraçou, me deu um peso,
pegou a primeira liteira que passou e foi-se embora, ainda me abanou, e
nunca mais o vi.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Continuei recebendo as aulas de violão, agora ia de bicicleta e
quase sempre passava na casa do Polaco e também durante o dia ia lhe
ajudar.
Um dia a mãe recebeu uma carta de uma de suas irmãs, que lhe
pedia para receber o filho que viria ingressar na universidade Del Valle,
para estudar Direito. Ela pedia para minha mãe esperá-lo na estação do
trem e levá-lo até a faculdade, onde tudo já estava acertado, inclusive o
local onde ele iria morar. A minha mãe respondeu a carta colocando-se à
inteira disposição. A resposta não tardou a chegar, onde a mãe era
informada que meu primo deveria chegar no segundo domingo do mês
seguinte, no trem do meio-dia. Como minha mãe não conhecia seu
sobrinho, na carta resposta vinha todo tipo de informações a respeito do
meu primo, inclusive da forma como viria vestido.
Às dez horas e trinta minutos daquele domingo, estávamos, minha
mãe e eu, esperando a chegada do meu primo as onze horas e dez
minutos. Por alto falante anunciaram que o trem que vinha do ocidente
chegaria com duas horas de atraso, devido à queda de uma barreira nos
trilhos, interrompendo a passagem, mas que os operários já estavam
trabalhando para desobstruir a via. Às onze horas e cinquenta minutos,
chegou o trem que vinha do oriente e que deveria continuar para o
ocidente. Mas este não poderia continuar viagem até que o trem que vinha
do ocidente não chegasse. Rumores se ouviam em quantidade, uns diziam
que a barreira tinha caído em cima do trem, que havia mortos e feridos,
que alguns vagões tinham saído dos trilhos. Existia muita preocupação
entre as pessoas que esperavam familiares, muitas pessoas se
amontoavam no escritório do gerente à procura de informações, uns
corriam de um lado para outro, os rumores continuavam. Um senhor
perguntou a um que saía da gerência: – Amigo o que é que o gerente
disse? – Falou que não tem condições de entrar em contato com o
maquinista porque o telégrafo não responde, pois os fios foram cortados.
Eu sentia que a mãe, mesmo não conhecendo seu sobrinho, estava um
pouco preocupada, e direcionava o ouvido para todos os rumores.
Já era quase treze horas, e como tínhamos tomado café muito
cedo, eu sentia fome, mas não me atrevia a dizer à mãe. Acredito que ela
estava na mesma situação, porque quando passou um rapaz vendendo
pasteis e suco de limão, ela comprou para nós dois. Gostoso é matar a
fome quando ela está bem acelerada!
No momento mais ativo das nossas mandíbulas, escutamos uma
voz vinda de dentro de um dos vagões que tinha chegado do oriente e que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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deveria continuar para o ocidente, mas só poderia fazê-lo após a chegada
do trem que estava atrasado por causa da barreira. A voz gritava: –
Chavita... Chavita...! Olhamos para o lugar de onde vinha a voz. Era uma
senhora de idade avançada, que estava na janela do vagão. Quando a
mãe a viu, gritou: – É Maria Ruiz! E saímos correndo ao seu encontro. Elas
se abraçaram, algumas lágrimas saíram das duas, o abraço foi longo, eu
só via e ouvia, mas não entendia nada. Terminado o primeiro impacto, a
dona Maria Ruiz me pegou pela mão e perguntou para minha mãe: – Este
é teu, Chavita? A mãe respondeu: – Sim, ele é o terceiro. Dona Maria, em
tom de lamento disse: – Pena que o velho Julio não conheceu os netos,
filhos da Chavita. Ela me abraçou e disse: – Eu trabalhei mais de vinte
anos na casa de seu avô, a sua mãe era uma pirralha, danadinha, arteira,
briguenta, brigava por qualquer coisa com as irmãs, era os dengues do
velho Julio por ser a caçula. Chavita, como fui feliz no tempo que trabalhei
com teu pai. Tu casaste muito nova, lembro que naquele dia, o velho
quase chorava, e no baile do teu casamento, ele que era tão alegre, não
dançou muito, estava sentado, só te olhava, que pena eu sentia dele.
Chavita, nós duas éramos muito amigas, te lembras? – Claro, como não
hei de lembrar, em todas as cartas que enviava para meu pai, perguntava
pela Maria e ele me informou quando iria se casar. – Eu sei, lembro da
carta que tu mandaste. Chavita, teu pai foi muito bom para mim, foi ele que
me deu o enxoval, o vestido de casamento, a festa, foi ele quem pagou
tudo, estava alegre na festa, dançou toda à noite, que tristeza de
madrugada quando o baile terminou. Dois dias depois viajamos para o
Porto e nunca mais tornei a ver o velho. Mas chega de reminiscências,
disse dona Maria, falemos do presente e um pouco do futuro.
A mãe perguntou à dona Maria para quem levava tanta mercadoria
e ela respondeu: – Chavita, é este o meu ganha-pão. Meu marido vive com
outra e esta é a forma que tenho de ganhar algum dinheiro para me
sustentar, velha como estou, ninguém me dá serviço. A mãe perguntou: –
E a senhora ganha bem? – Chavita, se não é por tanto que me surrupiam,
até que seria bom demais. Eu saio do Porto na sexta-feira e chego no
povo à tardinha, durmo no hotel e no sábado faço as compras. À medida
que vou comprando, vou amontoando as compras num determinado lugar,
mas enquanto saio a comprar outras coisas, ao voltar, encontro os sacos
rasgados pelos pirralhos para levar o aipim, as batatas e tudo o que mais
podem, às vezes levam até os cachos inteiros de plátanos, e são esses
pequenos roubos que diminuem o lucro. No domingo, pego o trem de
regresso. Quando chego ao Porto, meu filho caçula, o Angelito, está me
esperando na estação. Na segunda-feira ele me ajuda nas entregas e nas
vendas, só que enquanto vou nalgum freguês, ele vende alguma
mercadoria, se faz de bobo e não me entrega o dinheiro, ou às vezes me
dá só a metade, quando muito. Meu próprio ex-marido é outro que quer
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pagar a mercadoria ao preço que ele quer, e quando eu não quero lhe
vender, ele chega bonzinho, e até paga adiantado.
Essa é a minha vida, Chavita, para poder sobreviver e para poder
ter meu dinheirinho. Este trabalho não me cansa e até que eu gosto. Meus
filhos estão todos casados, o Julio tem dois filhos, ele é o mais velho; o
segundo, Santiago, também tem dois; Daniel, o terceiro, por enquanto tem
um; a Inês, a filha mulher, tem um filho de meses; o único solteiro é o
Angelito, o caçula, só que ao invés de me ajudar, às vezes me dá até
prejuízo. Chavita, eu tinha um guri muito bonzinho, com menos idade que
o teu, era muito esperto, cuidava da mercadoria, me ajudava, viajava
comigo, e eu lhe pagava vinte e cinco centavos por semana, livres, e
dependendo do lucro, às vezes lhe dava até três centavos. Ajudou-me
durante três meses, depois teve de ir à escola e perdi meu ajudante, com
ele nem o próprio Angelito conseguia me roubar. Eu escutava a conversa
delas e pensava: será que ela não me daria essa vaga? Mas não me
atrevia a lhe perguntar nada, para não interromper a conversa. Em
determinado momento, uma amiga da mãe passou por ela, se
cumprimentaram e começaram a conversar. Eu aproveitei para perguntar à
dona Maria: – Será que a senhora não gostaria que eu trabalhasse com a
senhora? Eu poderia viajar e cuidar da mercadoria. – Mas será que a
Chavita vai te deixar? Contei-lhe que viajava com Manolo e o que
vendíamos. A mãe voltou e dona Maria disse para ela: – Chava, teu filho
quer viajar comigo, será que tu deixas? Prontamente a mãe respondeu
que sim, contando minhas viagens com Manolo. Dona Maria ficou muito
contente e eu muito mais. – Maria, não vou deixar ele ir agora, para não ir
só com essa muda de roupa e também porque estamos esperando meu
sobrinho e ele quer conhecer todos os seus primos. Na sexta-feira que
vem estaremos lhe esperando, e ele poderá viajar com a senhora. Elas
continuaram nas suas reminiscências.
O sino bateu anunciando a chegada do trem que estava atrasado
pela queda da barreira e onde deveria vir meu primo. Os rostos dos
passageiros estavam sorridentes, nada de mortos e feridos como se
comentava. Um passageiro conversava com um familiar que lhe esperava
e lhe dizia: – Não, o maquinista parou o trem longe da barreira. Entre o
tumulto dos passageiros, e bem levantado, vimos um letreiro que dizia:
“Tia Isabel, sou seu sobrinho Walter Mário”. Corremos, abrindo cancha
entre os passageiros que chegavam e os que subiam no trem. Quando a
mãe conseguiu vê-lo, disse: – Ele é meu sobrinho, é muito parecido com
meu pai. Ele reconheceu minha mãe e sorriu. Abraçaram-se, me abraçou,
não quis que nós carregássemos as malas, chamou um carregador. O
apresentamos à dona Maria. Ele comentou que muito se falava dela em
casa, sobretudo as tias, lembravam dos bailes, das festas em casa, e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 116
muito mais. Dona Maria quase chorou. Despedimo-nos dela, prometendolhe estar na estação na sexta-feira seguinte. Enquanto caminhávamos,
meu primo disse para a mãe: – Tia, eu sei do ranchinho onde a senhora
mora, segundo a senhora explicou para minha mãe na sua carta, só que
eu gostaria de dormir esta noite na sua casa, porque queria conhecer
meus primos e lhes entregar algumas coisinhas que minhas tias lhes
mandaram, e também minha mãe.
Quando chegamos em casa, meu irmão Marino tinha pronto o
almoço, e a mesa estava bem arrumadinha. Enquanto almoçávamos, o
primo nos contava as novidades sobre os conhecidos da mãe, as amigas
do tempo da sua juventude, as que ainda viviam e as que já haviam
morrido. Lembro da admiração da mãe ao saber que algumas pessoas,
que já eram idosas quando ela ainda era criança, e ainda viviam. A mãe se
lamentou muito ao saber daquelas pessoas que quando ela era
adolescente, elas eram crianças, e já tinham falecido.
Apesar do primo ser um rapaz novo, se notava que estava
cansado. O sol já não iluminava mais o planeta terra e uma certa
escuridão nos envolvia, quando o primo pediu para tomar banho. Parece
piada, porém o que melhor tínhamos em casa, era o banho, apesar da
pobreza, a mãe lhe emprestou um par de chinelos, conto esta parte porque
merece ser contada. Aconteceu que quando o primo tirou os sapatos, ficou
pela casa um fedor de chulé que nem o diabo suportava, todos sentimos,
porém ficamos em silêncio e tratando de não respirar. Quando o primo
saiu do quarto para ir ao banheiro, Marino, que era capaz de fazer franjas
na cabeça de uma caveira, pegou um pano e tapou os sapatos, chegando
perto deles tapava o nariz com os dedos, fazendo gestos que nos faziam
rir. Na hora de dormir, Marino e Tulio foram à casa da Romélia; Hugo,
meu quarto irmão, foi dormir na casa da madrinha, que morava perto; o
quinto foi dormir na casa do Mudinho, que era com quem sempre brincava.
Eu fui dormir na casa do Gratiniano, a mãe ficou em casa com minhas
duas irmãs e o primo que dormiu na nossa cama.
Tudo isto tinha sido previsto pela mãe durante a semana. No dia
seguinte, segunda-feira, cheguei cedo em casa, a mãe e o primo já
estavam acordados, o primo já estava vestido. Uma vez nós estarmos
prontos, tomamos o café e fomos levar o primo na universidade. Lá foi
recebido, estavam lhe esperando, e quando já estava alojado, nos
despedimos. Poucas vezes nos veio visitar, a mãe era quem sempre ia vêlo. Naquela noite, após o primo ter ido para a universidade, Marino nos fez
rir às gargalhadas, fazendo micagem a respeito do chulé do primo.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Secretário de dona Maria
Na sexta-feira a mãe e eu estávamos na estação à espera de dona
Maria de Ruiz. Meu coração pulava de alegria, a minha sacolinha era a
mesma de quando viajava com Manolo, com igual conteúdo e as mesmas
observações: o remédio nos olhos, o asseio, e tudo aquilo que já sabemos.
Na chegada do trem, de longe enxergamos dona Maria na janela do vagão
com os olhos bem arregalados, parecia nervosa, podia ser pela
expectativa. Quando nos viu, deu a impressão que se acalmou, nos sorriu
e desceu junto com os demais passageiros, nos abraçou, parecia feliz,
conversou muito pouco com a mãe porque minutos depois batia a sineta
anunciando a partida do trem. Despedimo-nos da mãe e o trem começou
sua marcha lenta, a mãe do lado de fora parecia que era ela quem se
distanciava e que o trem estava parado. Ela me abençoava, vi seus lábios
se mexer, talvez dizendo: – Senhor, abençoa meu filho, ou podia ser a
Santa Sara Kaly, a santa do meu pai, para me abençoar, como era de
costume sempre ao nos despedirmos. À tardinha chegamos na cidade,
que não me era estranho, já tinha estado ali com Manolo e tínhamos
trabalhado perto do mercado. Saímos da estação carregados de bolsas e
fomos direto para o hotel. Era o mesmo que estive com Manolo, o pessoal
me reconheceu, e curiosos ao ver-me desempenhando minha nova
profissão, perguntaram por Manolo e Carolina. Todos ficaram lastimando
quando lhes contei o triste fim de Carolina.
Marcelo era um senhor alto, forte, sarará, e fazia o mesmo
comércio que dona Maria, também vendia no Porto. Ao encontrar dona
Maria, se cumprimentaram carinhosamente, eram muito amigos, a maior
parte das vezes viajavam juntos. Marcelo tinha me visto trabalhando na
praça, me cumprimentou de forma engraçada e a seguir me perguntou por
Carolina, a cobra, também lhe contei da morte dela. Quando Marcelo
soube que eu cuidaria das mercadorias de dona Maria, teve a idéia de
deixar as compras dele perto das dela e eu cuidaria das duas. Dona Maria
concordou e eu também. No dia seguinte os dois amontoavam as compras
e eu ficava cuidando. Em determinado momento, dois rapazes passaram
olhando a mercadoria e a mim, de forma estranha. Calculei que fossem
alguns dos que roubavam. Minutos depois passaram três e senti o perigo,
quando se afastaram me armei com um arsenal de pedras e fiquei com
uma em cada mão, as restantes as coloquei de forma estratégica, quando
passaram, um deles disse para os outros: – Esse garoto é parecido com
aquele da cobra, outro disse, acho até que é ele mesmo, e ficaram me
olhando. Como eu fixava meus olhos neles, eles desapareceram. Dona
Maria voltou com um senhor, trazia um saco com alguma coisa, era um
vendedor que lhe entregava a mercadoria no lugar onde ela ia
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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amontoando tudo e assim ficava perto da estação. Marcelo também
amontoava sua mercadoria junto da nossa e eu também cuidava.
Uma vez terminadas as compras, nós três ficávamos esperando
que abrissem a estação para carregar as mercadorias nos vagões, eram
muitas pessoas que viviam deste tipo de negócio. Nós três estávamos
junto das compras e vi que passavam umas meninas, me olhavam, riam e
diziam: – Sim, é ele. Eu olhava para elas e elas olhavam para mim e riam,
até que desapareceram. Quase no mesmo momento, ia passando uma
senhora segurando um garoto pela mão, quando ele me viu, soltou-se da
mão da mãe e começou a tentar caminhar com as mãos, porém caía, ele
insistia, dava dois, às vezes três passos e tornava a cair. A mãe do menino
me olhava e sorria, em seguida me fez um sinal de tchau, e o garoto,
enquanto se limpava as mãos, também me fez o mesmo sinal, eu respondi
para os dois da mesma forma. Dona Maria disse para Marcelo: – Este filho
da Chavita é famoso por aqui. Guardadas todas as mercadorias no vagão
de carga, o guarda chaveou as portas, quando o relógio batia às quatorze
horas e trinta minutos. Os nossos estômagos roncavam de fome, dona
Maria disse: – Vamos almoçar, meu filho. Marcelo veio junto, se notava
que ele era um bom amigo. Vendo que dona Maria era uma senhora de
idade e eu um garoto ainda, sempre estava nos cuidando e auxiliando em
tudo. Nem dona Maria e Marcelo sabiam que meu apelido era Negrinho,
ou Negro. Enquanto almoçávamos, Marcelo disse para dona Maria: – Hoje
o nosso lucro foi bom, não nos rasgaram os sacos, nem roubaram
mercadoria. Onde foi que a senhora arranjou este secretário que deu tão
boa cobertura às nossas mercadorias? Ela respondeu: – Ele é filho de uma
amiga que conheci ainda criança, trabalhei na casa do pai dela, entrei
moça e saí só quando me casei. Foi o pai dela que bancou desde o
vestido de noiva até a festa, lembro que ele dançou muito alegre toda a
noite, porém de madrugada, na despedida, ele silenciou, me abraçou, não
disse uma palavra, abaixou a cabeça e eu acho que algumas lágrimas
saltaram de seus olhos. E eu que nem me importei, nem via a hora de
estar nos braços de meu marido, eu era apaixonada por ele. Muito tempo
depois e já no meu lar, quando tinha passado o fogo da lua de mel e meu
marido começou a trabalhar e eu ficava sozinha em casa, comecei a sentir
falta daquela casa, da bagunça que fazíamos com os filhos do velho Julio,
como ele era chamado. A mãe dele, disse, assinalando para mim, era uma
pirralhinha, sempre estava grudada em mim, eu a levava para todos os
lugares onde eu ia. Quando ia à minha casa ver minha mãe e minhas
irmãs e não a levava, todos perguntavam: – O que é da tua filha? Chava
era a caçula, era os dengues do velho Julio. Um dia pedi para meu marido
me levar para visitá-los. Lembro como se fosse hoje, que bagunça, que
alegria na minha chegada, avisaram ao velho Julio, ele era o Prefeito
naquele tempo, e ele largou a Prefeitura e veio me ver. A Chavita já estava
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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mocinha e estava namorando, já para noivar, e como quando criança, ficou
todo tempo ao meu lado: que lembranças!, suspirou dona Maria. Lembro
também que quando voltamos para casa, meu marido me disse: – Que
prestígio tu tens naquela casa, que até o senhor Prefeito largou a
Prefeitura para te ver! Ele, todo orgulhoso, contava para os amigos. Que
tempo lindo! Ela calou, ficou olhando para o chão e depois disse: – De
repente, meu marido se apaixonou por outra e me largou, me deixando
com cinco filhos, que consegui criar e educar, graças a Deus. Aqui parou a
conversa e fomos para o hotel para descansar, só que eu fiquei
matutando: meu avô Prefeito, minha mãe nunca falou dele para nós.
Aos domingos o trem saía mais cedo, às sete horas, porque ia
parando em todas as estações para ir descarregando as mercadorias de
algumas vendedoras, iguais à dona Maria Ruiz. Cedo já estávamos
acordados, tomamos um cafezinho no hotel. Uma vez na estação fomos
subindo no trem e pegando o banco, minutos depois apareceu o Marcelo e
sentou-se perto de nós. De repente, começaram a subir os passageiros
correndo, mães puxando os filhos. Uma senhora entrou com uma criança
no colo, outras três iam caminhando, o marido trazia numa mão um
pequeno, caminhando, e na outra mão uma mala, e pendurada no ombro,
uma bolsa. A mulher, além de levar a criança no colo, também levava uma
mala. Outra senhora entrou, seguida por dois rapazes, e atrás deles vinha
um cachorro, quando um dos rapazes viu o cachorro, pegou-o pela coleira
e o puxou para fora do trem, deu um coice nele e gritou: vai embora, e
ameaçou lhe jogar uma pedra, o cachorro correu até a porta da estação e
de lá ficou olhando para o trem. A bagunça era infernal, era criança
chorando, outra gritando, pai e mãe mandando os filhos calarem, eu só
olhava aquele tumulto e escutava aquela bagunça. De repente, tudo
começou a ficar em silêncio, na parte de fora o barulho era das máquinas
que iam de frente e voltavam de ré e por outros trilhos, quando todos já
estavam calmos, se ouviu um violão, era um jovem cego que começou a
tocar e a cantar um pasillo colombiano, até que o cara cantava bonito.
Terminada a segunda canção, pedia para os ouvintes uma ajuda, quase
todas as pessoas davam um troquinho, quando o cego chegou perto de
nós, pela fala reconheceu o Marcelo e dona Maria, e lhes agradecendo de
forma especial lhes disse: – Senhor Marcelo e dona Maria, vocês como
sempre, muito gentis. Perto da saída tocou e cantou mais uma, se
despediu de todos e agradeceu novamente. De longe se ouvia seu violão e
sua voz, tocando e cantando noutro vagão.
Minutos depois o trem começou sua lenta marcha, tudo estava
calmo, se ouviu o choramingar de uma criança, a mãe deu o seio e ela
silenciou. Dentro do vagão e também os passageiros do lado de fora
pareciam mudos, se ouvindo só o barulho do trem, já atingindo a sua
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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velocidade normal. Agora o barulho era apenas de alguns dorminhocos
que formavam uma sinfonia de roncos, uns roncavam em “si”, outros em
“dó” bemol, alguns ainda conseguiam roncar em oitavas acima e outros em
tons graves, oitavas abaixo.
Descobrindo um avô Advogado e Prefeito
Eu continuava com meu cérebro ocupado pensando: meu avô
Prefeito! Isto me parecia algo grandioso, neto de um Prefeito! Pena não ter
vivido com ele naquele tempo, não tê-lo conhecido. Por momentos olhava
para dona Maria, ela continuava firme, acordada, por vezes parecia
lembrar de alguma coisa, gesticulava, pronunciava algumas palavras,
olhava para fora, sabia de cor os lugares por onde estávamos passando e
os que passaríamos, os bosques, as pontes, os casarios. Olhou-me,
levantou-se e me disse: – Vou ao banheiro, só que antes dela entrar, uma
menina entrou. Ela esperou na porta, a menina não demorou, eu sentado,
pensava e me dizia: quando dona Maria voltar, vou lhe perguntar o que é
Prefeito, e porque meu avô era Prefeito. Quando ela voltou e sentou-se,
antes de arrepender-me, ataquei: – Dona Maria, o que é ser Prefeito? Ela
me respondeu: – Prefeito é quem governa o município, é como se ele
mandasse nessa cidade ou povo. – E meu avô mandava? – Sim, meu
filho. Eu insistia nas minhas perguntas e ela me explicava tudo, só que eu
pouco entendia, quando lhe perguntei: – E como foi que ele tornou-se
Prefeito? Ela respondeu: – Seu avô era um bom advogado, defendia as
causas de ricos e pobres, quando os pobres não tinham dinheiro para lhe
pagar, ele não lhes cobrava, mesmo que ganhasse as causas, e quase
sempre ganhava, era considerado muito inteligente. Quase todo povo
gostava dele, até os ricos eram seus amigos, foi por isso que quando
houve eleições para Prefeito, ele ganhou, e com ampla vantagem. Quando
terminou o período dele como Prefeito, houve novas eleições, pela
Constituição ele não poderia se candidatar novamente. Embora não tenha
se candidatado como ninguém se apresentou como candidato, o povo
votou nele. As autoridades da capital não aceitaram, porque feria a
Constituição. O Presidente da República mandou uma delegação de
autoridades e políticos para fazer uma nova eleição e empossar outro
candidato. Seu avô os recebeu muito bem e através da rádio local pedia
para o povo tratar bem os visitantes, que eram enviados do governo. Eles
escolheram como candidato um tal que era presidente de não sei que
diabo daí do povo. Ele aceitou, mas contaram que o povo votou nele em
obediência ao velho Julio, só que na hora de assumir, e no momento de
assinar, para surpresa dos presentes, passou a caneta para seu avô, para
ele assinar. E dirigindo-se às autoridades locais e às enviadas do governo,
disse: – Senhores, eu renuncio ao cargo ao qual fui eleito e passo o cargo
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 121
para Sua Excelência, o senhor Prefeito, Dr. Julio Cabeça, que assim é a
vontade do nosso povo, que de forma democrática votou nele na eleição
oficial, sem nenhum voto contra e sem a intervenção dele em propaganda
política. Contam que ele falou bem alto e disse: – Pela vontade do povo
ele continuará sendo nosso amado Prefeito! Eu era muito novinha, mas
ainda me lembro, porque em todo lugar por onde a gente passava só se
falava nisso. No jornal local saiu a notícia em letras grandes, junto da foto
do velho Julio, com o renunciante e as demais autoridades. Os jornais que
vinham da capital e do estado falavam do acontecimento inédito. Em todos
estava a foto do velho Julio. A gente ligava o rádio e as notícias eram
dadas como um grande acontecimento, e sempre se ouvindo o nome do
excelentíssimo senhor Prefeito, Dr. Julio Cabeça.
Dona Maria abaixou a cabeça, ficou pensativa, parecia se lembrar
de alguma coisa. Mas eu não parei, ataquei de novo: – E como foi que a
senhora conseguiu trabalhar lá no vô? – É que meu pai era pescador,
eram quatro companheiros. Eles saíam de noite a pescar com redes e
voltavam de madrugada e durante a manhã o peixe era vendido e o
dinheiro repartido. Nós éramos pobres, porém com o trabalho do pai, nada
nos faltava e até algumas vezes íamos ao cinema, éramos três irmãs, eu
era a caçula, mesmo sendo pobres, éramos muito felizes. Não eram todas
as noites que eles saíam a pescar, mas quando saíam tratavam de sair
com várias barcas, em algumas iam quatro pescadores, em outras três,
nas maiores iam até dez e todas voltavam cheias de peixe. Como me
lembro de tudo isso!
As histórias de dona Maria
Uma madrugada, disse dona Maria, bateram na porta de nossa
casa. Todos nós acordamos e ouvimos vozes que gritavam: – Dona
Berta... A mãe abriu a porta, as pessoas falavam, mas nós não
entendíamos nada. Lá de fora a mãe gritou: – Já volto, filhas, e saiu. Nós
ficamos acordadas, não conseguimos dormir mais. Fazíamos conjecturas,
estávamos nervosas, as minhas irmãs prepararam um café, só que não
conseguíamos engolir. Esperamos ansiosos o retorno da mãe e do pai.
Comentávamos o porquê de nos terem acordado e levado a mãe de
madrugada. Estávamos nessa inquietude quando ouvimos a mãe que
vinha chorando, em altos brados. Amigos a traziam, entraram e a
sentaram no sofá e no meio do pranto, nos disse: – Minhas filhas, o pai
morreu, e o mais triste é que morreu afogado, um homem que nadava
como um peixe. Vistam-se filhas, que ele está no necrotério. Dona Maria
se emocionou, e com esforço disse: – Como choramos nesse dia!
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Em tudo que era jornal saía: ”Tragédia em alto mar mata mais de
vinte e cinco pescadores nas costas do Pacífico. Temporal quebra e
afunda embarcações em várias partes do país”. No necrotério se ouvia o
pranto por todo lado. Do meu povoado, seis morreram. Quando trouxeram
o pai, nós avançamos sobre ele, a mãe o acariciava, tinha a cabeça e o
rosto cheio de ferimentos, os médicos nos informaram que a morte foi
ocasionada pelas batidas, provavelmente quando a onda virou a
embarcação é que pode ter recebido as batidas. Eu ainda era uma criança,
porém desta cena nunca esqueci.
O trem continuava a marcha, e dona Maria estava muito triste. Eu
olhava seu rosto, as suas pupilas estavam molhadas, pouco faltava para
as lágrimas saltar fora, eu sentia pena daquela velhinha, gostaria que ela
não continuasse falando, só que a curiosidade por saber mais do meu avô
era muito forte, e ela, sem perder a meada da conversa, continuou a me
dizer: – Seu avô foi um homem incansável. Naquele tempo, ele já era
Prefeito, foi ele que organizou o enterro de todos, os feridos foram para o
hospital, o enterro dos mortos foi por conta da Prefeitura, as coroas, os
caixões, o enterro todo ele pagou. É por isso e por muito mais que o povo
nunca esqueceu dele. O povo ficou arrasado com aquela tragédia,
ninguém ligava o rádio, os bares, os cafés todos ficaram fechados, o
silêncio era profundo, parecia uma cidade fantasma, sem habitantes. O
luto decretado pelo senhor Prefeito foi por dois dias e só depois de uma
semana que o ostracismo lentamente foi passando. Seu avô se preocupou
muito com os que ficaram órfãos de pai. Naquela época havia quatro
indústrias, uma era a que produzia Tanino, duas processadoras de peixe e
uma serraria, todas vendiam para o interior e para o exterior do país, todas
elas ajudaram de uma forma ou de outra os que perderam familiares. Digame meu filho, se é possível esquecer seu avô! Quando tudo estava calmo,
numa tarde, ele apareceu na nossa casa para informar à mãe que as
minhas duas irmãs estavam empregadas em dois grupos escolares do
município e poderiam estudar ali mesmo. Recebemos esta notícia com
tanta alegria que você nem imagina, as minhas irmãs estavam mesmo à
procura de emprego, a mãe já estava trabalhando. Em seguida ele se
dirigiu para a mãe e disse: – Se a senhora quiser e a Maria gostar, ela vai
para minha casa e viverá como se fosse minha filha. Eu pulei de alegria,
eu já admirava aquela casa, sempre que passava em frente a ela, ficava
olhando, eu gostava dessa família sem a conhecer. Até ali tudo bem, por
último, da pasta que sempre carregava consigo, tirou uns papeis. Desta
cena sempre lembro, mesmo agora velha que estou. Ele disse: – Berta,
este ranchinho eu comprei para a senhora, aqui está a escritura, é seu,
não precisa mais pagar aluguel, e enquanto eu for Prefeito, não precisa
pagar imposto. A mãe desandou a chorar, éramos as quatro chorando, não
sabíamos como agradecer tanta bondade de parte do senhor Prefeito.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Ficou combinado que eu poderia ir a qualquer momento, em qualquer dia,
que a sua família estaria me esperando. No dia seguinte, e após alguns
conselhos por parte da mãe, ela me levou. Eu tinha dez anos incompletos,
casei com vinte e nove. Nessa casa vivi muito feliz, era tratada como se eu
fosse da família, a Chavita era a menor da casa. Eu adorava cuidar dela,
eu a penteava, banhava, vestia, ela era grudada em mim. Quando as suas
tias iam aos bailes, que seu avô as levava, nós duas ficávamos em casa
com a empregada e quando eu já estava na idade de ir aos bailes, às
vezes não ia, para não deixar a Chavita só com a empregada. Eu sempre
a levava para a escola quando ela estava no primário. Eu estava fazendo o
secundário num liceu e de manhã, a deixava na escola e me dirigia ao
liceu. Como ela terminava a aula primeiro, eu saía correndo para pegá-la e
a encontrava sentadinha num banco que estava no pátio da escola me
esperando. Que saudades, como me lembro! Saíamos na rua brincando
como duas molecas.
Antes dos quinze anos, seu avô já a deixou ir aos bailes, então nós
duas sempre íamos a todos. A dona Marcelina eu não conheci. Perguntei:
– Quem era ela? – Ela era sua avó, que morreu quando a Chavita tinha um
aninho. O velho Julio criou sua mãe com muito carinho, muito cuidado e
educação. Ele criou e educou todas as suas filhas, ele teve só um filho
homem, o mais velho, o Jacobo, que era músico e foi para os Estados
Unidos dirigir uma orquestra. Quem conheci foi a sua bisavó. Nunca soube
o nome dela, porque todos a chamavam de mamita. Até o velho Julio, ao
invés de chamar de mãe, também a chamava de mamita. Ela era teimosa
que nem uma mula, nunca quis morar com o velho Julio e as netas,
morava sozinha numa casa que tinha só um quarto e uma cozinha, o
banheiro era no fundo do terreno, tinha um forno de barro onde assava o
pão e saía a vender. Muita gente gostava do pão que ela fazia e sempre
compravam. Um dia, seu próprio filho, seu avô, a botou na cadeia. Eu
fiquei apavorado, perguntei para dona Maria, já que não podia acreditar
que, segundo ela, meu avô, que era tão bom, como poderia ser, que o
próprio filho, mandasse para a cadeia a própria mãe? – Por que, dona
Maria? – É que naquele tempo, várias pessoas faziam pão em casa, e
bem quentinho, colocavam num cesto e saíam a vender, e o povo adorava
esses pães quentinhos. Só que naqueles dias, quase todas as ruas
estavam esburacadas porque estavam abrindo valos para instalar o esgoto
cloacal. A terra estava toda solta e nas tardes, com a brisa do mar, essa
poeira se levantava, e como o velho se preocupava muito com a saúde,
então se reuniram na Prefeitura e concordaram em não deixar vender os
pães naqueles cestos, porque a poeira penetrava pelas fendas, e a
população que consumia aquele pão, futuramente poderia apresentar
problemas de saúde. Então mandaram fabricar uma espécie de caixa
envidraçada pelos lados e com a tampa também de vidro, só que esta
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 124
tampa, ao mesmo tempo era menor que a caixa, que mal dava para retirar
um pão, e com um garfo de aço inox. A caixa tinha um cinto para ser
pendurado entre o ombro e o pescoço, colocaram uma de amostra na
Prefeitura. Naquele tempo, três policiais saíam, um com um bumbo, outro
com um cornetim e o terceiro lia o decreto, chegavam a determinadas
esquinas, tocavam para chamar a atenção do público, uma vez com
bastante gente reunida, liam o decreto. Isto já tinha sido feito várias vezes
e muitos dos vendedores tinham feito suas caixas conforme a amostra.
Dona Maria continuou contando as histórias: O senhor Prefeito,
que costumava sair todas as tardes para ver o serviço das ruas em
andamento, encontrou a mãe (mamita senhora) vendendo pão na cesta e
o velho ficou que era uma fera, chamou a mãe, e em tom ríspido lhe disse:
– Mamita senhora, porque não obedece a lei? Não sabe que está proibido
vender pão em cesto, para preservar a sua própria saúde e do nosso
povo? Não vê quanta poeira, ela se gruda no pão e seus fregueses podem
adoecer! Se a senhora não tem dinheiro para fazer a caixa, porque não me
pediu? – Dinheiro eu tenho, só que não quis fazer a tal da caixa. – Então a
senhora desafia a autoridade? Os que estavam presentes, e muita gente
estava reunida dando fé ao que estava acontecendo, ouviram que ela
respondeu de forma grosseira: – Como o senhor Prefeito queira entender.
E ele disse: – Ah, é assim, e chamou um policial dos que lhe
acompanhavam e lhe disse: – Senhor guarda, pegue aquela cesta e leve
para o convento e diga para as freiras que é bom esquentar bastante antes
de comer. Chamou outro policial e lhe disse: – Senhor policial, pegue
minha mamita senhora e entregue na delegacia para ela ficar detida
durante vinte e quatro horas. Diga ao senhor Delegado que fui eu mesmo
que a detive por desobedecer a lei, diga também que ela é minha mãe, a
quem quero muito, amo, adoro, a quem devo a vida, só que a esta altura, a
lei começa a ser cumprida de dentro de casa. Eu escutava atento, e dona
Maria continuava, em seguida me disse: – Naquele tempo, quando alguém
era pego por algum delito cometido, o policial se algemava junto com o
preso para levá-lo para a delegacia. O guarda, que conhecia a mamita
senhora e sabia que ela era a mãe do Prefeito, falou: – Senhor Prefeito,
lhe devo muito respeito, tanto ao senhor como à sua senhora mãe, e
quase chorando lhe diz, por favor, me permita que não a leve algemada! O
velho, que ainda não lhe tinha passado a raiva, respondeu: – Leve-a como
o senhor quiser, o importante é que a leve. O guarda a enganchou no
braço e como um par de namorados, saiu em direção à delegacia. Como
tinha se amontoado muita gente, alguns seguiam atrás e outros ficaram.
Quando o guarda chegou na delegacia com a mãe do Prefeito o Delegado
ficou mudo, não conseguia pronunciar uma palavra, gaguejava, não sabia
o que fazer, não acreditava no que o policial lhe informava, se levantava,
se sentava, colocava as mãos no rosto. O guarda impaciente disse: – A
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mamita senhora está entregue. E se retirou. O senhor Prefeito sem se
abalar, de forma alguma, continuou revisando as obras. A notícia se
espalhou por toda a cidade, uns opinavam a favor do Prefeito, outros não
aceitavam saber que a mamita senhora fora presa pelo próprio filho. No
dia seguinte, a notícia saiu no jornal da cidade e em todos os jornais do
país, em letras grandes e em primeira página: ”Prefeito manda prender a
própria mãe por desrespeito à lei”. Eu vibrava e queria que ela
continuasse. Dona Maria disse: – É claro que algumas pessoas não
concordavam com a atitude do velho filho, mas a maior parte estava de
acordo. Quando as netas (suas tias) souberam do acontecido, correram à
delegacia para lhe levar colchão, roupa de cama e comida. O senhor
delegado a tratava não como detenta, e sim como se fosse a própria mãe,
era mamita por aqui e mamita por lá e nos momentos livres sentava-se
junto dela e conversava coisas que não tinha nada a ver com o acontecido.
No caso do velho Julio, nada se comentava, ele era muito respeitado e
uma ordem dele era cumprida à risca. Na Prefeitura nada se comentou,
nem na Câmara, e muito menos na Assembléia.
Às dezesseis horas e dez minutos do dia seguinte, completaramse vinte e quatro horas da pena. Vestida, penteada e perfumada pelas
netas, saía da cadeia a mamita senhora. O próprio Delegado a levou até a
porta, abraçado a ela e a apertou contra o peito, dando-lhe um beijo na
testa e se despedindo. Acompanhada pelas netas, por muitas amigas que
a esperavam na porta e muitos curiosos, não faltando o famoso fotógrafo,
onde muitos gritavam: “viva mamita senhora”, ela sorria e abanava, mais
parecendo uma heroína do que uma contraventora. O velho não
compareceu, as netas queriam levá-la para a casa delas, mas ela não
quis, preferiu ir para seu ranchinho. Depois daquele dia, nunca mais se viu
ela vendendo pães.
Eu estava muito feliz por ter ouvido a história do meu avô e de
minha bisavó. Fechava os olhos e via os dois, governando o povo, mesmo
que nunca tivesse visto os dois. Dona Maria tirou de uma bolsa que
sempre carregava consigo, dois canecos de metal que estavam enrolados
num pano, ela quis ir lavá-los, mas eu não deixei e fui eu mesmo. Minutos
depois o trem parava numa estação, onde muitos vendedores ofereciam
seus produtos. Uma senhora se aproximou e disse: – Dona Maria, vai
querer café? – Sim, minha filha, duas canecas. Ela me olhou e disse: –
Estou louca de fome... Eu, na emoção de ouvir a história do meu avô, nem
me dei conta que meu estômago também roncava de fome. Além do café,
ela comprou arepas (broas de milho), chicarrón (toucinho frito) e patacones
(banana da terra frita, amassada e refrita). Que gostoso comer com fome o
que a gente gosta! O Marcelo, perto de nós, também comia, tinha roncado
no caminho a maior parte do tempo.
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O barulho dos vendedores, compradores e das crianças que
gritavam, porque não queriam esperar sua vez de receber sua parte, foi
diminuindo, à medida que o trem recomeçava sua lenta marcha. Alguns
começaram a roncar e outros continuavam comendo. Através da janela, a
gente via que por uma estrada de chão, paralela à linha do trem, iam
homens de bicicleta, mais adiante uma carroça cheia de mercadoria, de
repente passamos por um caminhão todo velho e caindo aos pedaços,
carregado com lenha, de vez em quando aparecia uma casinha, pintada
de branco, com telhas vermelhas, às vezes com alguém na porta vendo o
trem passar, noutras ninguém, em uma destas casas, que tinha uma
calçada estreita, estava umas cinco crianças sem sapatos, seminuas, só
de shortezinhos bem curtinhos e que abanavam com as duas mãos
levantadas, pulando e gritando na passagem do trem. Não se via mais
ruazinhas transversais, agora era só campo, onde tinha homens e
mulheres com chapéus de palha, agachados, talvez capinando ou
plantando. Tudo isto ia desaparecendo à medida que o trem avançava.
Agora só se viam campos, alguns com pouco gado, e bem longe, outros
com bastante gado, amontoado, ruminando e nem davam importância à
passagem do trem. Olhei pela janela do Marcelo e era o mesmo
panorama. De pronto, deu a impressão que escurecia, mas não, a
sensação de escuridão estava sendo ocasionada por árvores altas dos
dois lados. De vez em quando parecia clarear, era quando
atravessávamos alguma pontezinha sobre algum riachozinho, que passava
transversalmente, depois continuava o arvoredo por muitos quilômetros.
Práticas políticas de Seu Júlio
De vez em quando eu dava uma olhada para dona Maria para ver
se ela estava cochilando, porém sempre estava de olhos bem arregalados.
Quando ela me olhou, aproveitei para perguntar: – Dona Maria, minhas
tias não ficaram zangadas com o vô por ele ter prendido a própria mãe?
Respondeu-me: – Meu filho, naquela época eu ainda não estava lá, me
lembro porque o barulho foi grande e meu pai era fanático pelo velho Julio.
Ele comprava todos os dias o jornal e comentava os acontecimentos com
minha mãe, que também era fanática por ele, só a minha irmã mais velha
é que não gostava dele, mas quando o nosso pai morreu e ele a colocou a
trabalhar na escola, aí virou a casaca. Quando o convidavam para alguma
festinha na escola, ela fazia questão de recitar uma poesia para
homenageá-lo. No dia em que anunciou que a cidade teria água
encanada, era a minha irmã que mais o abençoava, porque ninguém tinha
água encanada, a gente se abastecia de uma bica, que não estava muito
perto de casa. O que sempre ouvi dizer é que o velho Julio foi até a capital
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pedir dinheiro para o Presidente. Ele não queria emprestado, queria dado,
porque não queria deixar dívida para o próximo Prefeito. Ele pedia para
tudo que era empresário, fazia bailes, sorteios, concursos, para angariar
fundos para que a água chegasse até dentro das casas. Até o governo dos
Estados Unidos, dizem, mandou técnicos para ampliar a hidráulica, e tudo
de graça. Eu lembro das ruas todas esburacadas, dos canos por tudo
quanto era canto, hidrômetros, torneiras grandes e pequenas. Sempre se
falou que foi a melhor época que se viveu em nossa cidade em todas as
cinco gestões que ele foi Prefeito. Colocou esgoto cloacal e pluvial e
serviço hidráulico em todas as casas, e até nas vilas mais distantes do
município calçou ruas. Tinha serviço para todos que ali chegassem,
querendo trabalhar, e não foi pouca gente que veio, famílias inteiras se
mudaram para lá. Entre elas chegou uma senhora que era viúva e tinha
um filho, que parecia ser muito educado. Ela chegou trabalhando com um
turco, para vender louças para banheiros, pias, torneiras, wc, entre outras
mercadorias. Estefita era seu nome, ela alugou uma casinha num bairro
pobre, e seu filho começou a ter amizades com rapazes de conduta
duvidosa. Estefita trabalhava todo dia, porque o turco vendia muito, como
todos queriam fazer seu banheiro, colocar azulejos nas cozinhas, nos
pisos, agora com água encanada era muito gostoso tomar banho e fazer
as necessidades em banheiros confortáveis e bonitos, era só apertar um
botão e a água lavava o wc. O povo estava acostumado a fazer as
necessidades numa casinha feita nos fundos do terreno. Abriam um
buraco, e quando este enchia, o tapavam e abriam outro e colocavam
duas tábuas, uma de cada lado do buraco, deixando uma abertura no
centro e ali acocados faziam as necessidades. Agora, com a chegada da
civilização e o luxo, se justificava que todos queriam se modernizar.
Dona Estefita, que ganhava por comissão nas vendas, ficava até a
saída do último freguês, isto já na entrada da noite. O filho aproveitava
para malandrear com os amigos e já quase nem frequentava a escola.
Uma noite, no momento que Estefita entrava em casa, apareceu o dono de
uma loja de cosméticos para dizer-lhe que seu filho tinha furtado uns
vidros de loção, batons e outras coisas. Estefita ficou quase louca ao ouvir
o que o homem lhe dizia. Chamou o filho, que ao ver o dono da loja, tinha
se escondido, interpelou o rapaz e em seu bolso encontrou o corpo do
delito. Devolveu tudo para o dono, e quando o homem saiu, amarrou as
mãos do rapaz numa árvore que havia nos fundos da casa, e com um
relho de couro, começou a lhe bater enfurecida, gritando impropérios ao
rapaz, que berrava. Os vizinhos correram para ver de que se tratava e
encontraram Estefita encarniçada, batendo de forma violenta no filho.
Levaram-na para o quarto e lhe deram um chá, outros pegaram o rapaz e
levaram-no para o hospital, quase desmaiado e todo ensanguentado. O
delegado de plantão, ao ver o estado do rapaz, e informado que a
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causadora era a própria mãe, mandou prendê-la e colocá-la atrás das
grades. Como em toda cidade pequena, a notícia rapidamente se
espalhou. Estefita continuava presa e o rapaz, com as feridas quase
cicatrizadas, foi mandado para casa do juizado de menores. Estefita
escreveu uma carta para o turco, pedindo-lhe o favor de contratar um
advogado, que quando saísse da cadeia, lhe pagaria, só que a mulher do
turco, que era a administradora do negócio, se negou. Ela tinha ciúmes de
Estefita, seguramente porque era uma mulher jovem, bonita e simpática.
Estefita prometia pagar tudo uma vez livre, mas a resposta era sempre
negativa. Informada da benevolência do senhor Prefeito, lhe escreveu
pedindo para tirar o filho do juizado e interná-lo no colégio dos padres, que
quando ela fosse libertada, lhe pagaria, que por favor confiasse nela, pelo
amor de Deus! Quando o velho recebeu a carta, no mesmo momento foi
para a cadeia, conversou com Estefita, e regressando para casa nos pediu
para acompanhá-lo até o juizado. Depois de ler a carta, o juiz entregou o
rapaz, e em seguida o levamos ao internato onde poderia estudar e sair
pronto para a universidade. No dia seguinte, o velho se apresentou ao juiz
para lhe informar que era o advogado de Estefita. No dia da audiência, ele
não quis que fôssemos. Contaram-nos que a sala estava cheia de gente e
sem muitas delongas Estefita foi absolvida. Ela chegou em casa chorando,
e o velho, todo feliz, nos convidou para irmos todos ver o filho de Estefita
(Elvio). O padre nos mandou entrar numa sala bem ampla e nos sentamos
nos sofás existentes. Nunca esqueço daquela cena, quando Elvio viu a
mãe, correu, abraçando-se nela e aos prantos, em voz alta, disse: –
Mãezinha, me perdoa, juro por Deus que nunca mais vou te fazer sofrer.
Ela também chorava e lhe dizia: – Meu filho, sou eu que devo te pedir
perdão, quase te mato meu filho, olha tuas mãozinhas, cheias de
cicatrizes. Todas nós também chorávamos.
O turco queria que ela voltasse a trabalhar na loja, só que a mulher
dele não quis, tinha muito ciúme da Estefita. Então teu avô lhe conseguiu
trabalho na Prefeitura, como aos sábados a Prefeitura não funcionava e na
loja do turco era dia de muito movimento, ela ia dar uma mãozinha. A
mulher do turco ficava sempre de olho nela, terminado o movimento lhe
pagavam o dia trabalhado. No domingo nos ajudava a limpar a casa, a
cozinhar, era muito prendada, sabia fazer doces, bolos, tortas, salgados,
etc. A casa era muito grande, o pátio também, só tínhamos tempo aos
sábados e domingos, durante a semana estudávamos, mas com a ajuda
dela no domingo, cedo terminávamos tudo. O velho queria lhe dar algum
dinheiro, porém ela de forma alguma recebia. O serviço na Prefeitura ela
fazia de bicicleta e já estava muito conhecida.
Um dia o velho nos reuniu a todas para dizer que talvez se
casasse com a Estefita e que só faltava a nossa aprovação. O grito de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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alegria foi geral, até eu que não era filha dele, vibrei com a notícia. O Elvio,
que uma vez por mês saía do internato, e quando caía no domingo,
passava conosco, adorava o velho e sempre ficava perto dele. O velho
aproveitou a presença de Elvio para comunicar-lhe o seu desejo. Estava
um pouco temeroso se ele iria aceitar ou não. Quando ouviu o velho Julio
lhe dizer, deu um grito de alegria, pulou da cadeira onde estava, correu e
abraçou-o, lhe dando um beijo na testa. Estefita, nervosa, estava
escondida na cozinha. A trouxemos quase carregada e a colocamos perto
do Julio, fazendo com que se abraçassem. O casamento teve que ser feito
na rua e num altar improvisado, tal era a multidão.
Quando Estefita ficou grávida, as más línguas comentavam que
aquele filho não podia ser do senhor Prefeito e sim do turco, que era um
homem mais novo, pois o velho beirava os sessenta e cinco anos,
enquanto o turco tinha quarenta e oito anos. Estefita completou quarenta
anos no mesmo dia que ganhou a criança, nunca tinha visto guri nascer
tão parecido com o pai como este Era o velho Julio em miniatura. Agora os
comentários eram para as línguas mudas. Alguns diziam: – Bem feito,
Deus não castiga nem com pedra nem com pau, ali está a pinta do velho
Julio. O coitado do turco sempre dizia: – Nunca toquei Tafita, nem lhe falei
nada, minha mulher era que tinha ciúmes dela. Tafita mulher muito séria,
agora bonita isso sim é verdade.
O trem tinha parado em várias estações, mas eu nem me importei,
queria só ouvir falar de meu avô. No horário normal chegamos na minha
cidade, a mãe tinha me dito que nesse domingo ela não estaria na
estação, era muito longe para vir a pé e muito caro para vir de coche, eu
nem a procurei, como realmente não estava. Muita gente desceu e outros
tantos subiram, a permanência foi pouca, quando ninguém mais subia o
trem novamente começou sua marcha. Talvez uma hora depois o trem
parava na primeira estação, ali vendiam comida enrolada em folhas de
bananeira, dona Maria comprou três e mais dois canecos de salada de
frutas, tirou talheres da bolsa e duas tabuinhas, onde apoiamos a comida,
e que almoço gostoso! Minutos depois, peguei no sono e dormi os
famosos dez minutos. Quando acordei, dona Maria continuava firme, de
olhos bem abertos, apesar de seus sessenta e dois anos. Perguntei: –
Dona Maria, cadê minhas tias e primos? – Meu filho, muitas ainda estão
vivas, o velho Julio morreu com oitenta e sete anos, a Estefita morreu dois
anos após inaugurarem o busto do velho Julio na praça central. Quando
ela falou do busto, me lembrei de um tal de Eli, que tinha um pequeno
defeito no pé direito e uma cicatriz no lado direito da cara, em sentido
vertical, saindo da sobrancelha atravessando a pálpebra até o começo da
bochecha. Apareceu um dia muito feliz na nossa casa, contente de
encontrar a minha mãe, ela também ficou muito feliz de ver o seu
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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conterrâneo, pois se conheciam desde crianças. O Eli morava perto da
nossa casa, só que no bairro organizado. Um dia, andando na rua com
meu irmão Túlio, o encontramos, e quando nos viu perguntou: – Vocês são
filhos da Chava? – Sim senhor, respondemos. Ele nos disse: – Vocês têm
que ir limpar o busto do seu avô que está todo cheio de mato. A esta altura
não entendemos nada. Ao chegarmos em casa contamos para a mãe, ela
ficou furiosa e mandou chamar o tal de Eli. Quando ele chegou em nossa
casa, a mãe toda brava lhe perguntou: – Qual é essa de mandar limpar o
busto do meu pai? Se meus filhos nunca moraram lá e nem conheceram o
avô, quem tem que limpar são vocês que usufruíram as bondades do meu
pai, não meus filhos, que nem sequer lhes contei quem foi meu pai. O Eli
saiu rengueando muito mais do que quando chegou, nunca mais foi visto
por nós.
A má fama de Angelito
As casas, ruas transversais, morrinhos, pedacinhos de mato que
passavam lentamente, me eram conhecidos, claro, era a parte que já tinha
estado com Manolo! Uma vez em terra, apareceu um rapaz que dona
Maria me apresentou para ele: – É meu filho caçula, o Angelito. Ele me
cumprimentou utilizando o vocabulário de um verdadeiro malandro,
começou me tratando como se fôssemos velhos amigos. De vez em
quando colocava seu braço nos meus ombros, seus gestos eram
estranhos para mim, mexia com as mãos e com o corpo de forma que eu
nunca tinha visto, às vezes ria sem motivo algum, estalava os dedos junto
com um barulho formado entre a língua e a gengiva (ichiiiú). Puxava um
tremendo carretão com as rodas de automóvel, carregamos tudo nele, ele
puxava, dona Maria e eu ajudávamos empurrando. Quando chegamos em
casa, entrou diretamente num puxado tipo garagem, e o que me chamou a
atenção foi que o Angelito entrou com o carretão num tipo de piscina feito
no chão, cheio de água misturada com óleo queimado de carro. Perguntei
para que servia isso. Informaram-me que o cheiro das frutas e verduras
chamava muitos ratos e que numa só noite faziam muitos destroços,
rasgavam as bolsas e roíam tudo e dessa forma eles não se atreviam a
passar, e o que se aventurava morria afogado, às vezes até encontravam
dois ou três mortos.
Naquela noite dona Maria me colocou a dormir no quarto do
Angelito, que era um tremendo pilantra, fumava escondido de dona Maria,
tinha várias revistas pornográficas escondidas, lenços manchados de
batom numa caixinha de papelão, tinha um soutien e duas calcinhas sujas,
de mulher, debaixo do colchão, tinha três pôsteres grandes de mulheres
totalmente nuas que estavam pendurados perto da cama e me disse: –
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Agora vou dormir com as minhas mulheres. No dia seguinte, antes que
dona Maria nos acordasse, eu já tinha visitado a sala, a cozinha, o pátio, e
já tinha tomado banho. Ela se levantou, preparou o café bem reforçado,
daqueles que eu mais gostava: café com leite, arepas, patacones e
chicarrón. Em seguida saímos para o mercado. Angelito puxando o
carretão e nós empurrando. Uma vez no mercado, dona Maria e o
Marcelo, que também estava com sua mercadoria ali perto, me disseram
que cuidasse muito porque havia alguns rapazes que gostavam de roubar
as mercadorias, qualquer coisa era para eu gritar “ladrão!”. Mas o que era
mais gato era o Angelito, ele não conseguiu levar nada. O Angelito tentou
com vários estratagemas me afastar das mercadorias, mas não conseguiu
me convencer. Depois de meia hora os dois já tinham terminado suas
mercadorias. Naquele dia conheci o ex-marido de dona Maria, era um
crioulo alto, forte, com dentes brancos, a dentadura era completa, ele
pechinchava os preços das coisas para dona Maria, mas terminava
pagando o preço pedido. Ajudei-o a levar uma das bolsas, conheci a nova
esposa, era uma sarará forte e bonita, seu corpo era três vezes o de dona
Maria, ele me deu cinco centavos de gorjeta por ter lhe ajudado.
Dona Maria, Angelito e eu almoçamos ali mesmo no mercado.
Marcelo me deu dois centavos, se despediu de nós e foi almoçar em casa.
Depois de termos almoçado, carregamos os sacos no carretão do Angelito
e fomos para casa. Após dormir, fiz minha faxina corporal. O Angelito me
convidou para ir dar uma volta no cais do porto, não foi do agrado de dona
Maria. Ela lhe fez mil recomendações, onde lhe pedia, por favor, cuida
deste menino, ele é como se fosse meu sobrinho, fui criada pelo avô dele
como se fosse filha, me deu tudo, me educou, foi de lá da casa dele que
saí casada com teu pai, por favor, não me vai dar dor de cabeça! Angelito
lhe prometeu que só iríamos vender umas bananas nos navios. No
mercado fomos direto onde vendiam as bananas, só que ao nos
aproximarmos da banca onde tinha umas bananas bem maduras, a dona
da banca não queria o Angelito perto e nem lhe vender as bananas.
Angelito lhe disse, me sinalizando, as bananas são para ele, ela pediu o
dinheiro adiantado, ele pagou e ela lhe entregou as bananas.
Quando estávamos saindo da banca, ouvi que uma senhora disse
para a outra: – Ele já conseguiu outro guri para torná-lo safado como ele,
como fez com o outro que por aí anda todo cheio de cicatrizes de tanto
apanhar. Fiz-me de bobo, como se não tinha escutado. Eu prometi a mim
mesmo me cuidar e ver até onde ele queria me levar. Quando chegamos
no portão da aduana o guarda não o deixou entrar e lhe disse: – O guri
pode entrar a vender, você não. A estas alturas não estava entendendo
mais nada, o guarda me disse: – Vai meu filho, vai, e lhe perguntei: – E
onde vendo? Ele me perguntou: – Você nunca vendeu aqui dentro? – Não
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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senhor, respondi. – Olha aqui, você vai até aquele navio que é americano,
os gringos lhe trocam uma penca desta banana por duas carteiras de
cigarros, tem que ser, preste atenção: Kool, Camel ou Chesterfill. Quanto
lhe custou cada penca? – Cinco centavos, respondi. – Você pode vender
aqui fora as carteiras de cigarro por dez centavos cada, as compram bem
rápido. Vai lá e quando voltar nos deixa uma carteirinha de presente.
Angelito de longe me olhava. Eu entrei correndo e repetindo Kool, Camel,
Chesterfill, quando me aproximei do navio um cara me perguntou: –
Quanto? Respondi: – Duas carteiras de cigarro por cada penca, Kool,
Camel ou Chester. Acho que não demorei dez minutos e estavam todas
trocadas por dez carteiras, eram cinco pencas. Quando cheguei na
portaria, o guarda conferiu e me disse: – Tá certo, preste atenção, sempre
que vier vender é bom que dê de presente uma carteira para quem estiver
de plantão e assim sempre vão lhe deixar entrar. Cuide-se daquele safado
que andava com você. Ele é seu parente? – Não senhor, recém ontem o
conheci. – Cuide-se, ele é tramposo, salafrário, sem vergonha, safado,
ladrão, não ande com ele porque vão pensar que você é igual. – Sim
senhor. Agradeci ao guarda e lhe disse: – Hoje vou ter que dar as carteiras
para ele porque foi ele que pagou as bananas. – Tá, mas não se deixe
enganar por esse sem vergonha, ele terá que, ao menos, lhe dar a
metade, porque foi você que fez o negócio. – Sim senhor, respondi e saí
correndo à procura do Angelito. Ele estava me esperando na praça, todo
sorridente. Entreguei-lhe as nove carteiras, me deu uma e disse: – Se
quiser vender ela, em qualquer bar a compram até por doze centavos. No
primeiro bar que entramos as vendemos por doze centavos cada. Guardou
uma para ele. Não me importei com o que ele me deu, porém jurei que não
andaria mais com ele.
Voltamos para casa, dona Maria nos esperava com a janta pronta,
estava escurecendo e preocupada por mim, sabendo o filho que tinha. A
janta era arroz, patacones e peixe ao molho. Adorei, pois gosto muito de
peixe. Após o jantar dona Maria me convidou para visitar a filha Inês que
tinha ganho neném naqueles dias. No caminho ela me pediu para eu não
pegar os vícios do Angelito, que quando ela se separou do marido ele ficou
com o filho, mas ele terminou pegando os mesmos costumes do pai, que
se enriqueceu roubando os clientes, ajudado pela tetona, era dessa forma
que ela denominava a rival que lhe tirou o marido. E continuou: – Várias
vezes o Angelito foi pego pelo pai roubando dinheiro do caixa. A última vez
lhe deu uma surra e o tocou para fora de casa. Ele apareceu chorando e
me contou da surra que levara, só que não me contou o porquê e eu nem
quis saber, claro que sabendo dos seus vícios, tratamos de endireitá-lo,
com meus outros filhos, só que já cresceu torto e está difícil de endireitar,
embora tenha melhorado bastante. É claro que a culpa é do próprio pai,
ele roubava os fregueses e o Angelito roubava dele, até que não aguentou
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mais ser roubado e tocou-o de casa. É o caso que ladrão não gosta de ser
roubado, em todo caso ele é meu filho e rezo para que um dia se
regenere, peço para você, pelo amor de Deus não pegar os vícios dele. Eu
estava com certo medo de que o Angelito fosse me tirar o dinheiro, então
disse para dona Maria que no dia seguinte viajaria para minha casa e que
na sexta-feira lhe esperaria na estação. Ela concordou e no dia seguinte
ela mesma me levou à estação, comprou a passagem e me pagou o
prometido. Ao meio-dia cheguei na minha cidade, como levava algumas
coisas que dona Maria mandara para a mãe, tive de ir caminhando sem
poder correr, como era meu costume. Um dia descobri que um ônibus saía
do porto à minha cidade às quinze horas. Era um pouco mais caro que de
trem e demorava menos, então para evitar o Angelito, uma vez terminadas
as vendas, almoçava e em seguida saía para o terminal rodoviário levando
o que era mandado para a mãe. A viagem demorava quatro horas, o
ônibus chegava às dezenove horas no terminal, dali até minha casa,
caminhando, demorava uma hora e dez minutos. A mãe ia me esperar ou
meu irmão Marino.
O Angelito várias vezes me convidou para irmos vender bananas
nos navios e eu sempre me esquivava, lhe dizendo que não podia porque
à noite a mãe estava me esperando no terminal. Ele insistiu de várias
formas e promessas de dividirmos as carteiras e eu nunca aceitei. Quando
chegou o dia de voltar à escola, eu não quis ir, embora a mãe e a Romélia
insistissem e as convenci dizendo: – Este ano vou tratar de ficar bom para
o ano que vem conseguir estudar durante todo o ano. Aceitaram meu fraco
argumento. Fazia quase três meses que viajava com dona Maria e o
Marcelo. Ultimamente dona Maria andava um pouco adoentada. Lembrome que no domingo quando chegamos ao porto e já em casa, foi direto
para a cama. Em seguida mandou chamar Marcelo para pedir-lhe que
entregasse a mercadoria para os fregueses dela, a mim pediu que
cuidasse para que o Angelito não pegasse nada. No dia seguinte, o
Marcelo se desdobrou atendendo os fregueses dele e os de dona Maria,
eu de olho no Angelito, que não conseguiu levar nada. À noite, em casa,
contei sobre a doença de dona Maria para a mãe e senti que ela ficou
triste.
Novas andanças
Nas terças, quartas e quintas eu ajudava o Polaco, lubrificava os
parafusos, fazia roscas nos que estavam batidos, os separava por bitola e
como já sabia o preço de algumas coisas, até vendia para os que iam
comprar. Como sempre, nas sextas esperava dona Maria e viajávamos
junto com Marcelo. Só naquela última sexta-feira não veio, procurei
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Marcelo e também não vi. Voltei para casa um pouco triste, pensando que
não ganharia meus quarenta centavos, que somados aos dez que
ganhava do Polaco eram cinquenta. À noite, conversando com a mãe, lhe
falei que tinha vontade de ir no dia seguinte ao porto ver dona Maria. –
Você sozinho? – Sim mãe, me encosto em alguma senhora ou senhor que
está só e assim não pago passagem. Foi bastante conversa, até que
convenci a mãe a me deixar ir ver dona Maria. Pouco antes das onze
horas já estava almoçando, disse para a mãe que não precisava me levar
à estação, que eu ia correndo, ademais era longe para ela ir e voltar a pé.
Concordou, me entregou a minha já acostumada e famosa bolsinha, que
além das mudas e demais utensílios de sempre tinha colocado uma
garrafa de café, algumas arepas e patacones. Depois do beijo e a bênção
que sempre me dava, saí correndo.
Algum tempo depois de estar na estação chegou o trem que ia
para o porto. Uma vez dentro do trem, tive sorte porque no primeiro vagão
de passageiros que subi encontrei uma senhora que viajava com uma
menina e um menino, que ocupavam um banco, e no outro banco estava a
senhora com mais um carrinho de bebê onde estava uma criança, portanto
sobrava um lugar. Olhei para a criancinha e comecei a lhe fazer carinho e
a criancinha sorria. Seguiram-se as perguntas da senhora: – Com quem
você está viajando? Respondi que viajava sozinho e sem passagem, e que
ia visitar a senhora com quem trabalhava, que achava que estava doente.
Ela me pediu para sentar junto com eles e assim não me pediram a
passagem. Nossa conversa continuou, me contou que morava no porto,
que tinha vindo à cidade visitar parentes. Na primeira estação que o trem
parou, comprou pamonhas e me deu uma, eu a convidei com arepa e
patacones. Ela não quis, ao contrário, comprou mais uma pamonha e a
colocou na minha bolsa. A viagem foi muito gostosa, divertida,
conversamos, rimos, enquanto o pequeno dormia. A viagem foi tão boa
que num abrir e fechar de olhos já estávamos no porto.
Uma vez fora da estação nos despedimos com muito carinho, eles
iam no sentido norte e eu em sentido sul. Saí correndo. Quando cheguei
em casa de dona Maria não tinha ninguém, todas as portas estavam
chaveadas. Sentei-me um pouco e em seguida saí correndo para a casa
da filha de dona Maria, a Inês, e também não tinha ninguém. Dei uma volta
pelo mercado, eram mais de dezessete horas, estava tudo fechado.
Retornei para a casa de dona Maria, pensando que o Angelito viria dormir,
sentei-me encostado na porta de entrada, as casas vizinhas estavam
todas com suas portas fechadas e tudo em volta estava em profundo
silêncio. Senti fome, retirei da minha bolsa café, patacones e arepas,
guardei um pouco de café e a pamonha para o dia seguinte. Continuei
sentado, na esperança do Angelito aparecer a dormir. A um casal que
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entrava na casa da frente perguntei por dona Maria e a resposta foi muito
rápida. Sem esperar novas perguntas, me responderam que os filhos a
tinham levado para a casa de um deles. Eu só conhecia o Angelito e a
Inês, e ela não estava em casa. Quando estava agradecendo ao casal
apareceu um rapaz, talvez filho deles e me disse: – O Angelito daqui a
pouco virá, porque ele está dormindo ali. Agradeci e contente fui me sentar
de novo na frente da porta. As luzes da rua estavam acesas, mas
pareciam libélulas, umas distanciadas das outras, tudo era silêncio, nem
os cachorros latiam, o céu era bem escuro, dando margem a se destacar o
brilho das estrelas. Senti pulsar com força meu coração a lembrar o
Antônio, uma mistura de saudades com tristeza, em seguida lembrei
Manolo, sua esposa, a filhinha deles e com misto de alegria e tristeza
aparecia a Carolina. Aparece o Polaco e dona Elga, minha bicicleta, meus
amigos, Dr. Corrêa, Gratiniano, minha querida e amada Romélia e sua
mãe, os vizinhos, enxergo Oscar caminhando sem problemas e o mudinho
falando comigo, eu ia na minha bicicleta visitando todos meus amigos
quando vi o André que vinha correndo e parou na minha frente e eu, para
não o atropelar, travei e não consegui me equilibrar e caí.
Com o esforço de me levantar acordei, estava era sonhando, tinha
pego no sono e não sabia em que momento havia colocado minha bolsa
como travesseiro. Levantei-me, olhei para todos os lados, era cedo
demais, além disso era domingo, na rua nenhum ser humano, de longe só
se ouvia o bater dos sinos de alguma igreja. Para quebrar a monotonia
daquele silêncio, daquela solidão, passou um gato correndo a toda
velocidade e a poucos metros atrás dele vinha um cachorro no seu
encalço, o gato pulou para cima dum muro e em seguida o vi em cima do
telhado. O cachorro, que não conseguiu pegar o gato, regressou, passou
pela minha frente, nem sequer olhou para mim. Mais adiante entrou numa
casa, deu meia volta, se enrolou e ali ficou dormindo. Como não tinha
água para me lavar, peguei a escova de dentes, coloquei creme, me
escovei e enxaguei com café, peguei a toalha e passei pelo rosto, me
penteei mesmo com o cabelo seco, e por último tomei o resto do café com
a pamonha, pensei: O Angelito não apareceu. Peguei minha bolsa e saí
em direção ao mercado, meu pensamento era chegar até o ex-marido de
dona Maria e lhe perguntar por ela. A minha grande alegria foi quando
entrei no mercado e me encontrei com Marcelo com toda mercadoria.
Recebeu-me com muito carinho, me apresentou o filho de uns quinze ou
dezesseis anos, me disse que nas férias da escola ele sempre lhe
ajudava, e disse também que teve que viajar na quinta-feira de ônibus,
regressando no sábado, chegando à noite, para hoje poder visitar dona
Maria que estava internada no hospital. Contei-lhe toda minha aventura
desde o sábado quando saí de casa. Lamentou, eu podia ter dormido na
sua casa que tinha tanto lugar! Perguntei-lhe se me deixariam entrar no
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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hospital para ver dona Maria, ele me respondeu que sim, só que ainda era
muito cedo. Perguntei-lhe também pelo Angelito e ele me disse: – Aquele
sem-vergonha, faz pouco que passou por aqui todo bêbado, seguro que
recém iria dormir. Eu pedi licença para ir no banheiro do mercado, mas ele
disse: – Não, não, esses banheiros são muito sujos, e pediu para o filho
me levar à sua casa. A sua senhora me recebeu com muito carinho,
apenas entrei ela me disse: – Então, você que é o Orlando? Eram os
únicos que me chamavam pelo meu nome. O rapaz voltou para o
mercado, eu que estava um pouco apurado pedi licença para a senhora
para ir ao banheiro, fiz as necessidades e aproveitei para tomar banho, me
escovei de verdade, mudei de roupa, agora me sentia bem e perfumado
com a minha água de colônia barata. Quando entrei na cozinha para lhe
agradecer, a primeira coisa que falou foi: – Hum, que cheiroso! A mesa
estava preparada, me convidou a tomar chocolate com leite, chicarrón e
pão de queijo. Que banquete! Enquanto tomávamos café me contou que o
marido sempre falava de mim, que eu era um menino muito bom e
educado e que ele gostava muito de mim. Ela pediu que me cuidasse
daquele tal do Angelito, que era um tremendo safado, conversamos
bastante, depois me despedi agradecendo muito e voltei ao mercado.
Marcelo não estava e o filho me demonstrou muita amizade,
depois de conversar um pouco lhe disse da vontade que tinha de ver dona
Maria. Ele me pediu que esperasse o pai, que ele me acompanharia até o
hospital. Marcelo não tardou e autorizou o filho a me levar e retornar
ligeiro, saímos correndo.
Uma vez no hospital ele voltou e eu entrei. Uma enfermeira me
levou onde estava dona Maria, ela estava na cama encostada em
travesseiros e quase sentada, quando me viu evocou a Deus e a muitos
outros santos, me abraçou e em um tom lastimoso me disse: – Cadê
minha Chavita? Sentado na cama, ela me tinha encostado sobre seu colo,
e me perguntava coisas e eu lhe respondia, também lhe contei que tinha
dormido na porta da sua casa esperando o Angelito e ele não tinha vindo.
Ela se lamentou dizendo: – Aquele infeliz do meu ex-marido e aquela
desgraçada da tetuda estragaram meu filho, entortaram tanto que velha
como estou já não consigo endireitar. No meio da conversa ela me disse
que talvez não poderia viajar mais e que os filhos também não queriam,
que iria morar com o filho Julio porque a sua nora Marina era quem mais
cuidava dela, que a única condição que ela tinha imposto era que não
queria ser tratada com dinheiro do ex-marido e da tetuda porque esse era
dinheiro sujo. Eles também me impuseram uma cláusula, era ficar longe do
Angelito porque eles já o tinham tirado várias vezes da cadeia e que se
fosse preso mais uma vez, lá iria apodrecer.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Bananas por cigarro americano
Enquanto conversávamos, eu pensava que a mãe poderia estar
preocupada e eu iria pedir a passagem de volta para Marcelo. Comecei a
me despedir e no momento de sair, dona Maria disse: – Meu filho, abra
aquela gaveta do bidê, ali tem dez centavos, pegue-os. Agradeci-lhe e saí
descansado porque já tinha a passagem. Na rua comecei a pensar: Voltar
para casa só com quatro centavos e sem comer nada até a noite? Aí me
perguntei: Será que vou vender bananas? Será que os caras me
compram? Fui até o cais do porto, quem estava lá de guarda era o mesmo
do outro dia. Fiquei contente, quando me viu me reconheceu e perguntou:
– Não vai trazer bananas? – Claro que sim. Ele mesmo disse: – Têm
vários Santas, não perca tempo. Senti a força que o guarda me dava, saí
correndo, cheguei até a senhora da primeira vez e ela também me
reconheceu. Pedi-lhe para me vender duas pencas, ela me perguntou se ia
vender no porto, respondi que sim. Ela me disse: – Duas pencas é pouco,
leve mais, que eles lhe compram tudo. Eu lhe disse que só tinha doze
centavos. – Ta bom, leve três por doze centavos, lhe agradeci. Quando ia
saindo, me chamou e disse: – Meu filho, vou lhe fiar duas pencas e me
paga depois com uma carteira de Camel. – Sim senhora, e saí rápido. Mal
cheguei no porto, vários caras me chamaram e pegaram as pencas.
Parecia que eles já conheciam como eram feitas as trocas, porque cada
um já foi me dando as duas carteiras de cigarros. Uns me deram Camel,
outros Chester e também Kool. O guarda se admirou com a rapidez da
troca, quis lhe dar duas carteiras, ele aceitou só uma. Perguntei-lhe porque
era só na base da troca e não por dinheiro. Explicou-me que para eles
comprarem as bananas teriam que sair do porto e às vezes não lhes era
permitido. Tinham que trocar a moeda deles pela nossa, e em todas essas
voltas eles perdiam dinheiro, e na troca por bananas lhes saía muito
barato, porque na terra deles uma carteira de cigarros lhes custava, de
acordo com o câmbio, no máximo dois centavos.
Saí feliz com minhas nove carteiras de cigarros. Peguei doze
centavos por cada uma sem muita demora. Guardei uma de Camel para a
senhora das bananas. Quando estava saindo do bar, um senhor me
chamou, era o dono do bar, que disse: – Meu garoto, quando trouxer
cigarros, venda-os para mim, eu lhe compro todos e lhe dou mais uma
gorjetinha. Confirmei e me despedi. Quando entreguei os cigarros para a
senhora, ela me disse que não era só no porto que compravam bananas,
nos navios também. Ensinou-me como devia dizer em inglês dez centavos
de dólar por cada penca, e por esses dez centavos me dariam quinze
centavos em moeda nacional. Pegou outras quatro pencas e me disse: –
Corra meu filho, vai vender essas, se não conseguir vender, eu as pego de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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novo. Nem precisei ir noutro navio, naquele mesmo me trocaram todas. Na
saída o guarda amigo não estava, dei uma carteira para aquele que estava
e deixei outra para o guarda amigo. Tinha corrido bastante, estava com
muita fome, já não tinha mais chance de pegar o ônibus das quinze horas,
poderia pegar o das dezoito horas. O mercado estava fechado, mas na
parte de fora tinha umas barracas que vendiam comida. Pedi peixe ao
molho, com arroz e patacones. Agora faltava só dormir meus dez minutos,
antes porém fui ao banheiro do mercado, que estava na parte de fora, não
era tão sujo como tinham me dito. Fiz uma boa faxina geral, voltei para a
banca onde tinha comido e falei com a senhora que eu tinha corrido muito.
Ela, vendo que eu estava um pouco cansado e que iria dormir na frente da
barraca dela, naquele banco, muito gentil ela me disse: – Vai meu filhinho,
que daqui eu lhe cuido. Dormi, quando acordei fui ver novamente dona
Maria no hospital. Fui me despedir e lhe contar do rendimento que deram
seus dez centavos. No hospital, estava os filhos de dona Maria, alguns
parentes e amigos e também estava Marcelo, a mulher e o filho. Todos já
sabiam que eu tinha dormido na frente da casa de dona Maria e me
perguntaram se eu não tinha medo. Respondi que nem sequer me lembrei
de ter medo, riram. Agora me sobravam convites para eu dormir quando
viesse ao porto. Dona Maria falou: – Quando ele vier ao porto dormirá na
casa de meu filho Julio e minha nora Marina, que é onde vou permanecer.
Aceitei e lhe disse que ia embora aquela tarde no ônibus das dezoito horas
porque a minha mãe deveria estar preocupada, sem saber onde eu
andava, mas que no próximo sábado voltaria para negociar com bananas.
Sentia que todos simpatizavam comigo, fiquei mais um pouco e logo me
despedi, não queria perder o ônibus. Às vinte e três horas e dez minutos
estava em casa. A mãe, preocupada, não tinha conciliado o sono. Ainda a
alguns metros distante de casa ela reconheceu meus passos e quando
cheguei em casa ela estava na porta me esperando. Serviu-me a comida,
que estava quentinha em cima do fogão, enquanto meus irmãos dormiam.
Nós deitados continuamos conversando, lhe contei como trocava as
bananas por cigarros, lhe falei do Angelito e que ninguém gostava dele
porque era muito safado, assim mesmo ele é que tinha me mostrado o
negócio das bananas. Só me lembro de ter ouvido a mãe me dizer: –
Procure fugir dele meu filho, claro, eu tinha pegado no sono.
Férias escolares
No dia seguinte, como sempre fazia, peguei a minha bicicleta,
primeiro fiz as compras dos meus vizinhos, depois visitei o Dr. Corrêa, o
Gratiniano, e para a Romélia e a mãe lhes contei o meu novo ganha-pão.
Como estavam em férias escolares, à noite, toda a rapaziada se reunia
para brincar. Para nenhum deles contei de como trocava bananas por
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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cigarros americanos. Algum deles era capaz de se deslocar para o porto e
quem sabe até estragar meu negócio. Na terça-feira fui ajudar o Polaco,
também na quinta e sexta-feira. No sábado pedi para a mãe trinta
centavos que tinha dado para ela guardar, ela me deu os trinta, com mais
dez que o Polaco me deu, reuni quarenta centavos e no trem do meio-dia
viajei para o porto sem comprar passagem, e para que o cobrador não me
pedisse o tíquete, eu me encostava em qualquer adulto. Os cobradores
andavam desconfiados, sempre ao lado de alguém diferente, e antes que
eles me perguntassem, um dia contei a verdade para um, e acho que este
contou para os outros, porque quando me viam no trem, ao contrário de
me pedirem a passagem, me olhavam e sorriam. De vez em quando lhes
levava uma carteira de cigarros, entregando para quem estivesse de
cobrador. Eles à sua vez, às vezes me davam presentes, camisas, meias,
bonés ou também pacotes de bolachas ou doces.
Quando andava pelas ruas do porto não faltava alguém que já
tinha me visto com Manolo e a cobra, mexiam comigo, alguns até faziam
perguntas. Um dia, quando fui subir num navio, um estivador que estava
descansando num banco em cima do navio, ao me ver chegar com as
bananas, começou a mexer comigo e contava para os marinheiros o que
ele tinha me visto fazer. Um deles pediu para eu fazer alguma coisa, e não
me fiz de rogado. Coloquei as bananas no chão e comecei a fazer tudo o
que sabia. Cada número que fazia eles aplaudiam, fiz mágicas também.
Um deles, que era o cozinheiro do navio, me perguntou se já tinha
almoçado, respondi que não, e ele me convidou para ir até a cozinha
comer. Todos aprovaram, mas antes, cada um me deu uma moeda, ou
várias de dez, de vinte, os que ficavam com as bananas, ao invés de duas
carteiras, me davam duas outras. O capitão, que também estava presente,
me deu dez dólares, outros também me deram notas. O cozinheiro, que
era um italiano, me serviu vários tipos de comida muito gostosas, coisas
que eu nunca tinha comido.
Depois de almoçar me pediu para lhe ensinar algumas mágicas,
lhe ensinei e dei de presente algumas trucadas que eu mesmo fabricava
com baralhos e outra com cigarros. Aprendeu fácil, também aprendeu uma
com cordas, era o homem mais feliz que eu já tinha visto. As trucadas
aprendia com facilidade, só que as de destreza lhe eram mais difíceis,
assim mesmo lhe deixei praticar uma de destreza com uma moeda.
Expliquei-lhe que as provas de destreza eram mais bonitas e mais difíceis
do público descobrir e imaginar. Conversando, me disse que o navio ia
entrar em reparos e que permaneceria mais para o fundo do cais, talvez
por uns três meses, porque tinham que consertar filtros de água, fazer
várias soldas, tirar ferrugem, pintar, e outros problemas mais. Pediu-me
para que na próxima vez que viesse, fosse almoçar no navio, confirmei,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 140
me deu de presente uma jaqueta, um boné e cinco dólares. Eu olhava
aquela comida gostosa que tinha sobrado e me lembrava de como minha
mãe e irmãos gostariam de experimentar. Para nós era comida rara, me
decidi e lhe perguntei se não poderia levar aquela comida, que sobrara,
para minha casa. Sem demora pegou uma lata de conservas de cinco
litros, a lavou, secou, pegou papel celofane, enrolou pedaços de gelo e
colocou no fundo da lata, depois forrou por dentro com o mesmo papel e
foi colocando a comida. Primeiro colocava um tipo de comida e separava
com o mesmo papel e colocava outro tipo, e por último, na parte de cima,
colocou outro pacote com gelo, amarrou bem, e com a mesma corda fez
uma alça para eu segurar. Acompanhou-me até a escadaria onde me
despedi, prometendo voltar no próximo domingo, feliz, com os bolsos
cheios de dinheiro e com muitas carteiras de cigarro. E sem tempo de
viajar no ônibus das quinze horas, fui vender algumas carteiras de
cigarros, outras guardei para dar de presente.
Fui me despedir de dona Maria ela ficou muito contente de me ver,
lhe contei e mostrei tudo, e ela me amarrou o dinheiro no bolso da calça.
Despedi-me, peguei o ônibus das dezoito horas e às vinte e três horas e
dez minutos já estava em casa. Meus irmãos estavam tomando banho e
como estavam em férias a mãe lhes dava maior tempo para aproveitar nos
jogos. Eu comi a comida que ela tinha me guardado, e a lata ela não
destapou, colocou numa bacia até mais da metade com água. Eu me
sentia um pouco cansado e fui dormir.
Lembro que aos sábados e domingos, também nas férias
escolares, a mãe costumava repartir o serviço de casa com meus irmãos,
é claro que sempre mudando, e eram repartidos da seguinte forma: Marino
deveria cozinhar, Túlio lavar nossa roupa e Hugo arrumar as duas camas e
varrer, inclusive o pátio. A mãe lavava a roupa dos fregueses durante o dia
e à noite passava, no dia de entrega, algumas vezes eu acompanhava a
mãe ou ia com o Marino, ou com quem estava livre. Quando a mãe
começava a repartir o serviço de casa eu me escapava, não gostava nada
de serviço doméstico, meus irmãos reclamavam da mãe por ela não me
dar uma tarefa também. Algumas vezes conseguia ouvir as reclamações,
lhe diziam que eu era o dodoizinho dela, outras que era o peixinho, e
assim por diante. Lembro uma vez que não consegui fugir com a minha
bicicleta quando a mãe começou a repartir o serviço, me escondi na parte
de fora da casa, ao lado de uns tijolos, à espera de uma oportunidade para
tirar a bicicleta, e ouvi quando lhe reclamaram: – A senhora tem que dar
serviço para o Negrinho também, sempre somos nós. Ouvi quando a mãe,
com muita calma lhes disse: – Meus filhos, eu não posso obrigar vosso
irmão a fazer mais do que ele faz por nós, é ele que traz quase sempre a
comida para esta casa, com o dinheiro que ganha também serve para lhes
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 141
comprar roupa, cadernos, livros, lápis, enquanto vocês, todas as noites
brincam, ele chega às vezes e vai direto dormir. Por quê? Será que não
chega cansado? Quem sabe o esforço que não fará carregando peso nos
seus ombrinhos de criança ainda, para trazer esse dinheiro para casa. Às
vezes fico imaginando, quem sabe quantas pencas de banana carrega
desde o mercado até o cais do porto, que não é perto, e quem sabe
quantas vezes ele vai e volta correndo, para ganhar mais, enquanto vocês
dormem ele vem chegando, tarde da noite, correndo por esta cidade. Na
última noite veio carregando aquela lata com comida, por certo gostosa,
não acham? Quando é que nós teríamos condições de comer aquele tipo
de comida? Enquanto ele está na rua eu estou rezando e pedindo a Deus
e a Santa Sara Kaly para que cuidem de meu filho. Vocês não o enxergam
com seus dedinhos cheios de esparadrapos pelas feridas que se faz
mexendo nos ferros lá no Polaco para ganhar dez centavos? Ele nunca se
queixou e nem nunca foi capaz de me dizer: mãe mande eles também a
ganhar dinheirinho. Por que razão vou lhe dar mais uma tarefa? Vocês
deveriam era de amar, venerar esse irmão de vocês, já que ele não pode
estudar, estudem vocês e se um dia ele precisar da ajuda de vocês,
obrigatoriamente deverão de lhe ajudar. E por favor, nunca mais me
peçam nada contra ele, vocês não sabem às noites, quando estou
passando e calculo que ele já deve estar vindo, largo o ferro e vou até a
avenida a lhe esperar, e da alegria que sinto quando vejo ao longe aquele
vultinho correndo, naquela penumbra da noite, grito: – Meu filho, é você? –
Sim mãe, me grita! Corro para me encontrar mais rápido com ele, voltamos
para casa abraçados, eu feliz por estar de novo com meu filho e ele
contente me contando tudo que fez durante o dia, meu coração fica
aliviado. Em casa lhe sirvo sua comidinha, muitas vezes nem consegue
terminar de comer e já está dormindo. Eu continuo passando e olho para
ele, fico pensando como lhe impedir, se essa é sua válvula de escape, já
que não pode estudar. E recordo às vezes que me disse de como gostaria
de ser escritor igual a Cervantes que escreveu Dom Quixote De La
Mancha. Não, meus filhos, por favor, não me peçam nada que magoe esse
irmão de vocês, brindem-lhe amizade e lhe dêem muito carinho. Acho que
Marino estava chorando, porque escutei a mãe lhe dizer: – Não precisa
chorar meu filho, você como mais velho, deve dar exemplo para seus
outros irmãos e que eles entendam o que lhes acabo de dizer. Ainda estes
dias ele me disse que não era para matriculá-lo na escola, que era melhor
tentar curá-lo, para no ano que vem poder estudar. Não vou lhe contrariar,
pode ser que ele esteja certo.
Tudo ficou em silêncio, fazendo de conta que não tinha ouvido
nada, aproveitei para entrar em casa, e vendo todos reunidos disse: –
Mãe, vamos contar o dinheiro? Marino, a mãe e eu começamos a contar,
tudo estava em notas e moedas de dólar, quando tudo foi trocado deu
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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quarenta e oito pesos. A mãe, como sempre, agradeceu a Deus e à Santa
Sara Kaly. A alegria era grande, o Natal se aproximava e ela poderia
comprar roupas, presentes.
As viagens nos finais de semana
Continuei viajando, pegava o trem no sábado ao meio dia e voltava
no domingo no ônibus das dezoito horas, dormia na casa da Marina,
mulher do Julio, filho de dona Maria. Ela tinha colocado uma cama no
mesmo quarto de dona Maria, à noite conversávamos bastante, me
contava muitas coisas do meu avô, das minhas tias, da Estefita e do Elvio,
também da mamita senhora, contava dos maiores acontecimentos daquela
época e dizia: – Como gostaria que o tempo retrocedesse e de me ver
novamente naquela casa onde passei os mais felizes anos da minha vida!
Ela quase não podia caminhar, caminhava com muita dificuldade e mesmo
assim, após tomar o café, me acompanhava até a porta, me abençoava e
desejava bom domingo. O ônibus das dezoito horas chegava à cidade às
vinte e duas horas, às vezes minha mãe e Marino estavam me esperando.
Sempre regressava com um peso e sessenta centavos, ou um e oitenta,
agora trazia também a lata cheia de comida que o cozinheiro italiano do
navio sempre me dava. Ultimamente almoçava junto com a tripulação no
comedor, eu trazia algumas novas provas que serviam de diversão para
todos e não faltava que alguém me desse um presentinho ou mais uma
carteira de cigarros. Antes de viajar sempre ia me despedir de dona Maria,
conversávamos um pouco e em seguida me dirigia à estação rodoviária.
No horário das dezoito horas viajava mais passageiros que no das
quinze horas, mas por cheio que estivesse, eu sempre encontrava um
cantinho para viajar sentado. Num sábado, para amanhecer de domingo,
tinha chovido toda a noite, nas ruas muitas poças de água, era um
domingo lúgubre, triste, pouca gente nas ruas, no mercado também pouca
gente. Marcelo nos domingos não trabalhava. Atravessei o mercado e
comprei as bananas, a dona da banca me cumprimentou com carinho, em
determinado momento me perguntou: – Estás vendendo tudo, meu filho?
Respondi que sim. Enquanto enrolava as bananas, olhou para o céu e
disse: – Hoje é um dia de poucas vendas, quando o tempo está assim, as
pessoas não saem de casa. Despedi-me dela. – Deus te abençoe, meu
filho, e saí. Passava do meio-dia quando cheguei no navio, entrei no
comedor e alguns gritaram: – Orlando, estamos esperando estas bananas.
Peguei as carteiras de cigarros e as moedas que alguns me davam,
almocei, ensinei novas provas a meu amigo cozinheiro e, ao me despedir,
ele me deu a lata cheia de comida.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Acidente de ônibus: salvo milagrosamente
Dona Maria, como sempre, se despediu na porta com uma bênção.
O ônibus ia com bastante passageiros, calculo que já estávamos viajando
há uma hora e meia e sabia que após aquela longa subida, começávamos
a descer. Eu estava ansioso. A maior parte dos passageiros dormia, eu
acordado controlava a minha latinha de comida, que com uma corda,
amarrava na cintura, assim, mesmo se dormisse, não a perderia.
Chuviscava e a noite estava preto fosco, não sei o porquê me
acompanhava uma certa alegria, pensava na minha bicicleta, no dinheiro
que levava, também na comida e as carteiras de cigarros que levava para
o Gratiniano e para o Polaco, que eram os dois amigos que fumavam.
Lembrava do italiano, como ficou feliz quando lhe dei o baralho trucado, o
grito e o salto que deu quando conseguiu com aquele baralho fazer o
leque cascata.
Estava feliz curtindo meus pensamentos, vendo que o ônibus
entrava numa curva, e no mesmo momento, ouvi um ruído forte na parte
da frente do ônibus e consegui ver uma quantidade de pedras que caíam
do barranco levando o ônibus para o abismo. Vi o cobrador voar e cair fora
do ônibus, eu me segurava no banco que estava na minha frente, era
gente voando dentro do ônibus, uma senhora passou dando cambalhotas,
me pisou com seu salto pontudo do sapato e me feriu o braço. O ônibus
descia a ribanceira à alta velocidade, derrubando árvores, mato, e pulando
pedras, em seguida o ônibus começou a rodear de lado, era gente voando
e caindo fora, eu me segurava firme, o motorista também estava firme
segurando-se no banco dele. Numa árvore que estava caída e
atravessada, o ônibus deu uma parada violenta e o banco do motorista
quebrou, ele saiu voando pelo pára-brisa, o ônibus continuou rodeando e
passou por cima do motorista, e quando deu essa cambalhota, o meu
banco também rebentou e fui parar na parte de trás do ônibus, onde
estava um senhor se segurando no banco que não tinha rebentado. Com a
força da cambalhota, bati nele com meu corpo e ele gritou aiiiiiiii... eu caí
de cabeça e nada mais vi, nem senti.
Ouvia ruídos lentos, distantes, vozes desconhecidas, passos
acelerados aumentavam e diminuíam. Às vezes os ruídos também
aumentavam, comecei a sentir que eu estava deitado, sentia uma espécie
de letargia, pensava que sonhava, que estava sonhando, que talvez não
fosse sonho, sentia que me encontrava sobre um colchão macio, parecido
com o da Elida, mas a Elida tinha ido embora, o da minha casa não era,
ele era duro, aquele da casa da Marina também não era, era um pouco
macio, mas não tanto como aquele que eu estava. Apalpava para saber se
meus irmãos estavam deitados, eles não estavam, então não estava em
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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casa. De repente comecei a sentir que eu estava com a cobra Carolina
enrolada no pescoço, e no navio trocando bananas por cigarros. Ouvi que
a Carolina me dizia: vamos embora que o Manolo está bêbado, pensei,
mas o Manolo não bebe! Gratiniano, esse sim que bebe, me senti no colo
da mãe ouvindo meu avô defendendo uma acusada e quando ele parava
de falar eu batia palmas. No momento que estava batendo palmas ouvi
uma voz que disse: – Ele morreu. Veio à minha mente a lembrança do
ônibus, quando estourou o suporte do banco em que eu estava me
segurando e caí em cima daquele cara que gritou aiiii... e caí de cabeça no
piso do ônibus. Então foi aí que eu morri, por conseguinte eu estou é
morto.
Onde será que eu estou? No inferno não pode ser, não estou
sentindo fogo. Se for no purgatório, a culpa é do meu irmão Marino, por ele
ter me levado a fazer todas aquelas trapaças, lembrei das moedas do ralo,
das buzinas dos carros, da carne que tirei daquele prato de feijão e de
tantas outras que fazíamos. Continuava no sonho pensando: no céu não
devo estar porque não ouço vozes de anjos e sons de clarins, e outra, São
Pedro não veio falar comigo. Que pena que morri e não pude ser escritor
como Cervantes. Neste momento senti que alguém se sentou
bruscamente sobre a cama e uma voz feminina me disse: – Vamos meu
jovem, não é para dormir mais. Há tempo que me batia levemente nas
bochechas, lentamente fui abrindo os olhos, pensei que era São Pedro que
vinha falar comigo, meio confuso olhava para a pessoa que estava na
minha frente sorridente e me perguntou: – Estás me vendo? – Sim,
respondi. Abrindo os dedos e levantando a mão me perguntou: – O que é
isto? Respondi: – Sua mão. – Como estou vestida? – De branco. Tirou
uma caneta do bolso, e isto o que é? – Uma caneta. – Muito bem,
senhorito, me disse. Com muito cuidado me levantou o braço e colocou o
termômetro. Curioso como estava, lhe perguntei: – Onde é que estou? –
No hospital, perto do lugar onde o ônibus tombou. – Será que a minha mãe
sabe? – Deve saber, porque as rádios estão passando esta notícia a todo
o momento. – Nós não temos rádio em casa. – Hoje também saiu no
jornal, e a sua foto está entre os sobreviventes. Perguntei-lhe pelo
motorista e respondeu-me: – Ele morreu. – Eu vi quando ele saiu voando
pelo pára-brisa e o carro caiu por cima dele. Quando o meu banco
estourou, eu também saí voando, só que para trás do ônibus, e caí em
cima de um cara que estava atrás, bem seguro no banco. – Ah ele foi
encontrado bem seguro, não queria se soltar do banco tremia e chorava,
ele só sofreu algumas escoriações no rosto e nos braços, mas é muito
chorão, chora por tudo. Neste momento apareceu outra enfermeira com a
minha bolsa e me mostrou o vidrinho com a água e os cálices e perguntou
para que era aquela água. Eu lhe expliquei que era para colocar nos olhos
na parte da manhã e à noite, e tinha que ficar com os olhos abertos e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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contar até trezentos. Quando quis lhe explicar como eu fazia, não pude me
mexer, estava amarrado. Ela me disse que era para eu ficar quietinho
porque tinham me feito uma cirurgia do lado esquerdo, porque no raio X da
noite anterior, detectaram uma costela quebrada e o médico tinha feito um
corte para aplicar um cicatrizante. Não entendi nada, achei que ela estava
me engambelando, depois descobri que ela não queria que eu pegasse no
sono. Em seguida apareceu outra enfermeira, trazia um pinico raro, tinha
um tubo dum lado, em seguida abriu a camisola, separou meus pés,
colocou o pinico no meio das pernas e sem me dizer nada, pegou o meu
pipi e colocou no tubo do pinico e me pediu para fazer xixi. A verdade é
que eu estava com vontade, porém tinha vergonha de pedir para a
enfermeira, e a outra veio e solucionou o meu problema, foi embora
levando o xixi. Minutos depois ela voltou com uma bandeja com chá e
bolachinhas salgadas, a enfermeira que estava comigo me ajudou a tomar
o chá sem me mexer muito. Ela tinha me auscultado e visto a minha
temperatura, às vezes dizia alguma coisa e em seguida desmentia,
entregou minha bolsa para a outra enfermeira e lhe falou alguma coisa que
eu não entendi. Quando a enfermeira ia indo com a minha bolsa, eu lhe
disse: – Guarde bem a minha bolsa que ali está o dinheiro. Não se
preocupe que está tudo bem guardado, em seguida apareceu outra
enfermeira, trazia a lata de comida e me perguntou: – Por acaso não sabe
de quem é esta lata? – É minha, e o que tem dentro é comida, e fora da
geladeira estraga. – Não se preocupe, permanecerá sempre na geladeira,
só tiramos as bolsinhas porque tinham um pouco de água, colocamos mais
gelo e foi para a geladeira. A enfermeira me fazia muitas perguntas e eu
respondia, não tardou muito e apareceu um doutor, ela lhe entregou o
papel onde tinha feito anotações enquanto estava comigo. Ele me
examinou de forma minuciosa, dirigindo-se à enfermeira lhe disse: – Daqui
a uma hora pode trocar os curativos, suspenda o soro e pode deixar livre.
Antes de retirar-se me disse: – O senhor está muito bem, vão lhe
desamarrar, mas procure se mexer o menos possível. – Sim senhor,
respondi. Ao sair, o doutor e a enfermeira trocaram algumas palavras e ele
foi embora.
Enquanto a enfermeira me tirava a agulha do soro chegou outro
doutor, trazia uma pasta, a enfermeira se levantou e ele ocupou o lugar,
examinou meus olhos, pingou algumas gotas e com aparelhos que
carregava na pasta fez vários exames, falou com a enfermeira e foi
embora. Outra enfermeira trouxe um carrinho cheio de vidros, panos, gaze,
esparadrapo, etc, e em seguida a enfermeira começou a tirar uma faixa
que tinha enrolada na minha cabeça, recém aí eu descobri que estava
cheio de curativos, inclusive na cabeça, braços, barriga e pernas. Ela
tirava um curativo e já colocava outro, por último tornou a enfaixar a
cabeça. Perguntei-lhe o que tinha na cabeça, e ela me respondeu que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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tinha vários ferimentos, inclusive em alguns foi preciso colocar pontos.
Levantou-se e me recomendou para tratar de ficar quieto, não demorou e
voltou com uma bisnaguinha e começou a pingar nos olhos.
Neste momento escutei um berro: – Mãe, ali está ele. E foram
chegando perto da enfermeira o meu irmão Marino, que chorava, e a mãe,
meio que choramingando, perguntou para a enfermeira: – Como é que
está meu filho, por favor? A enfermeira se levantou e numa forma muito
alegre respondeu: – Ele está muito bem, já conversamos bastante. Fiquei
olhando para a mãe e tive vontade de chorar ao vê-la tão triste. A
enfermeira, em tom meio áspero me disse: – Agora não vai chorar, lhe fiz
os curativos e não deu um pio, agora que o mano e a mãe estão aqui, tem
que dar demonstração de valentia, como até agora deu, ou quer ser igual
aquele velho chorão que só incomodou? Ela pediu licença e continuou
pingando o remédio nos olhos, em seguida se levantou e começou a
conversar com a mãe. Marino carregava um jornal enrolado debaixo do
braço, onde estavam as notícias do acidente, eu figurava entre os vivos,
mas na foto parecia que estava morto. A enfermeira contava para a mãe
que seis pessoas tinham morrido, inclusive o motorista, que foi esmagado
pelo próprio ônibus, o cobrador quebrou algumas costelas, uma das
pernas, e teve escoriações pelo corpo e na cabeça. Uma senhora grávida
estava muito mal na UTI. Nas fotos do jornal aparecia o ônibus semi
destruído. Enquanto a mãe conversava com a enfermeira, meu irmão me
mostrava as fotos da tragédia, que estavam no jornal, também tinha as
fotos dos mortos e dos feridos. No centro de uma das folhas do jornal, e
em tamanho grande, se destacava a foto de um homem que, segundo
dizia, não parava de chorar, e no hospital era conhecido como chorão. A
mãe tinha comprado três jornais diferentes e os doentes pediam
emprestado para ver, a enfermeira também pegou um para ler. O doente
que estava perto da minha cama começou a rir e mostrou que eu estava
numa foto com o nome de Moisés Vasto, e noutra foto o chorão estava
com o nome de Orlando. Sorte que só colocaram o nome, foi o momento
de maior descontração de todos, doentes e sãos. As risadas não tinham
terminado quando vi entrar Gratiniano, acompanhado da esposa e a filha,
também trazia dois jornais. Quando me viu disse: – Parece um beduíno
com turbante. A enfermeira pedia para eu não me mexer muito, porque
tinha vários pontos. Gratiniano ia de cama em cama a cumprimentar os
outros doentes e distribuiu os jornais. Até esse momento eu era chamado
de Ortega, após a visita do Gratiniano, todos passaram a me chamar de
Negrinho.
O médico e a enfermeira informaram à mãe que eu teria que ficar
mais uns três dias para observação porque tinha levado várias batidas na
cabeça e estava ainda fazendo exames. A enfermeira continuava dando
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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explicações para a mãe do meu estado, quando vi entrar o Dr. Corrêa e a
esposa, e mais atrás Romélia e a mãe, todos com os rostos tristes, mas
quando me viram sorrindo, mudaram por completo a fisionomia. Eu estava
feliz de ver minha mãe, meu irmão e meus amigos. Gratiniano mexia
comigo. Mais de uma hora depois, a enfermeira pediu para que todos se
retirassem, porque iam começar a fazer os curativos para os outros
doentes e fazer a faxina no salão. Em seguida a enfermeira falou para a
mãe que ela poderia retornar tranquila para casa, que não se preocupasse
comigo, porque ela estaria toda essa semana de plantão, e me cuidaria.
Era para ela voltar só na quarta-feira à tarde, que se não desse nada nos
exames, poderia me levar para casa. Entregaram-lhe a lata de comida e a
bolsa. Eu pedi para a mãe me deixar cinco carteiras de cigarros, e ela
colocou no bidê. A alegria e as risadas do Gratiniano falando do Negrinho
gravaram meu apelido a tal ponto que daí por diante o sobrenome Ortega
desapareceu, e apareceu o de Negrinho. Reparti os cigarros entre os
médicos e as enfermeiras que me atendiam. De vez em quando uma delas
chegava e me perguntava se tinha fome ou se sentia alguma dor. Eu nada
sentia.
No dia seguinte, a enfermeira foi me mostrar umas placas, tipo
negativos de raio X e me disse: – Não tem nada nessa cabecinha. No
outro dia, quando estava fazendo o curativo, à medida que tirava as
vendas e os esparadrapos, ela dizia: – Tá muito bom, amanhã já podes ir
para casa. Tudo estava em silêncio, o corre-corre tinha terminado, já
estava escuro, a enfermeira que sempre estava me cuidando pegou uma
cadeira e sentou-se perto de mim, quando íamos começar a conversar
apareceu outra e em seguida outra, ao todo três enfermeiras e um médico.
Eles me faziam perguntas, eu lhes falei do Antônio, do Manolo, da cobra
Carolina e a forma da sua morte e o porquê, falei de dona Maria de Ruiz,
de Gratiniano, do Dr. Correa, também falei de Roméria, de Polaco, da
bicicleta e de como a tinha ganho. Contei-lhes da doença dos meus olhos,
que me atrapalhavam para poder estudar, falei bastante da minha vida,
como ajudava a mãe e do dinheiro que ganhava ultimamente no porto.
Escutaram-me atentos, de vez em quando um doente dava um gemido e
uma das enfermeiras saía correndo para ver quem era, ia de cama em
cama, como não era nada, voltava correndo. Muitos doentes já estavam
dormindo, alguns roncavam e soltavam gases bem barulhentos, que mais
pareciam motores de dois tempos. Uma das enfermeiras saiu e voltou com
um copo de leite quente e bolachinhas doces que achei gostoso. A última
a sair foi a minha enfermeira, se despediu, me arrumou, me deu um beijo
na testa e foi embora, mas antes fez várias recomendações.
Antes de conciliar o sono, passava na minha mente a imagem da
mãe com aquela cara triste ao entrar na sala onde eu estava, do meu
irmão chorando, e pensei nos meus amigos, que largaram seus afazeres
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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só para vir me ver. Eu pensava: como dou trabalho, tanto desgosto para
minha mãe, para meus amigos. Aparecia o Antônio e me dizia que se ele
estivesse aqui, seguro que nada disso me aconteceria. Mas pensava
também, é claro que eu não tenho culpa de tudo o que me acontece. Não
foi nada grave. Coitado do motorista, que morreu esmagado. Também ele
não teve culpa e nem todos aqueles que morreram e os que estão feridos.
E que culpa tem aquela criancinha que ainda está no ventre da mãe e já
está sofrendo sem ter visto ainda o mundo. Quantas vezes minha mãe já
correu por mim, claro que aquela vez que me feri todo quando o Mudinho
quase se afogou, também não foi culpa minha. A única vez que me sinto
culpado foi quando subi atrás daquele ônibus e me feri todo. Continuava a
pensar. Como meu irmão sempre chora quando alguma coisa me
acontece. Será que aquelas safadezas que fazemos, eu e ele nas ruas,
Deus não me castiga? E porque ele não é castigado, se é ele quem as
inventa?
Não me lembro por quanto tempo mais estive pensando. Acordeime quando ouvi vozes, já era dia e fiquei de olhos bem abertos. Em
seguida a enfermeira veio me fazer os curativos, mas antes me levou ao
banheiro onde, após fazer as necessidades e tomar um rápido banho,
voltei para a cama, sempre aos cuidados dela. Em seguida me trouxeram
café com leite, pão de queijo e ovo cozido. Sentia-me feliz, a tarde viria
minha mãe para me levar para casa. Após o café, me colocou umas
pantufas, me pegou na mão e me fez caminhar a passos lentos, depois um
pouco acelerados, e depois enganchada em meus braços. Atravessamos
um jardim e entramos na casa das freiras, que nos receberam com muito
carinho. A enfermeira lhes disse: – Aqui está o Negrinho. Uma das freiras,
toda sorridente, me pegou na mão e me levou até a capela. Lá estava um
padre que me fez rezar e agradecer a Deus por não ter me acontecido
nada grave. Rezamos juntos, em seguida me abençoou. Saímos e a
enfermeira me levou a um consultório médico, o doutor me recebeu todo
sorridente e nos disse: – O chorão acaba de sair daqui, não tinha nada, só
raspõezinhos, era mais de nervos, saiu bem calmo. O doutor me examinou
e disse: – Está tudo bem. Assinou um papel, entregou para a enfermeira,
nos despedimos e nos dirigimos ao consultório do oftalmologista, e ao
entrar ele perguntou: – E como é que está este general? Respondi: – Muito
bem. A enfermeira lhe disse: – Ele está pronto para ir embora, em seguida
me examinou e também disse: – Está tudo bem. Entregou-me uma caixa
com doze bisnagas e disse que não era para usar mais aquela água que o
outro médico tinha me dado, só porque era mais barata e o governo dava
de presente. Ademais, a bisnaga era um produto novo e mais caro, e
essas bisnagas que estava me fornecendo, durariam um ano. Começou a
chegar mais gente e nos despedimos. Entramos no salão, eu estava com a
bata de doente. Antes de ela ir atender um doente que a chamou, eu lhe
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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perguntei se poderia caminhar por fora, respondeu que sim, mas com
cuidado e devagar.
Saí e comecei a andar pelo jardim, cheguei a uma fonte muito
bonita com azulejos coloridos, onde no centro havia uma estátua
representando um anjo nu e fazendo xixi. Perto dali estava o jardineiro,
que começou a me dizer o porquê do anjo estar fazendo xixi. Disse-me
que tinha alguns doentes que, após a cirurgia, dependendo do que tinham
sido operados, não conseguiam urinar, então os levavam para perto do
anjo que estava fazendo xixi, abriam bem as torneiras e só com o barulho
da água caindo, conseguiam urinar. O jardineiro me convidou para ver
todo o jardim. Em alguns lugares vi estatuetas de santos, e em algumas
pedras grandes estavam embutidos quadros, também de santos,
protegidos por vidros. Mais adiante havia o busto de um padre, de bronze.
O jardineiro me explicou que era do fundador do hospital e do colégio das
freiras. Ele me mostrou quase todo o imenso jardim. Em alguns lugares
tinha laguinhos com peixes, muitas folhagens na beirada do caminho e
muitas flores diferentes na parte externa. Depois de rodear todo o jardim,
chegamos ao lugar donde começamos, ao nos se despedir ele me disse: –
Meu nome é Geraldo Penhaloza, seu servidor. Felicitou-me por nada grave
ter me acontecido no desastre, ele tinha lido todas as notícias dos jornais e
já tinha me visto nas fotos.
Retornei ao salão e já estavam servindo o almoço. Fui primeiro ao
banheiro e quando saí as moças que serviam estavam à minha procura e
uma delas disse: – Vamos almoçar? O meu almoço já estava servido na
mesa perto da cama. Quando estava quase no fim do almoço, a mãe
chegou, acompanhada de Romélia. Parei de comer, embora a mãe, a
Romélia e a enfermeira insistissem para eu terminar, não quis, peguei a
sacolinha com a roupa que a mãe trouxe e fui no banheiro me mudar.
Despedi-me de todos os doentes, do pessoal do serviço e das
enfermeiras. A minha enfermeira amiga entregou para a mãe o tratamento
que deveria seguir. Teria de ir ao hospital San Juan de Dios e entregar
esses papéis, que iriam continuar o tratamento, inclusive todos os dias me
fariam curativos. A enfermeira me levou pela mão até a porta, me deu um
beijo, e de lá dei o último adeus para todos do salão. Nós três seguíamos a
pé, pois a rodoviária era perto. As pessoas, ao me ver com a cabeça toda
enfaixada, diziam: – Olha o guri que ia no ônibus que caiu na ribanceira.
Cada grupo dizia uma coisa, e nós continuávamos, algumas senhoras até
chegaram perto de nós e perguntaram para a mãe: – É seu filho? – Sim,
respondia a mãe. – Que susto a senhora levou! Em um grupo de senhores
que estava perto da rodoviária, um deles gritou para a mãe: – Senhora, ele
não morre mais, parabéns! Entramos na rodoviária e alguns curiosos nos
seguiam de perto. Quando chegamos ao guichê para comprar as
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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passagens, um senhor veio correndo para nos dizer que não precisávamos
comprar passagens, porque tínhamos lugares reservados. Ele também
entregou um papel para a mãe e disse que era para ela ir com aquele
papel e no endereço que ali estava, que lá iriam lhe dar dez pesos, e lhe
deu também outro papel que autorizava a retirada de mais doze bisnagas
de remédio para os olhos, em uma determinada farmácia, e de forma
gratuita.
Minutos depois de termos chegado em casa, começaram a chegar
os amigos. O primeiro foi o André, que segundo me informaram, após ter
saído a notícia nos jornais, ele sempre andava perto de casa, ficou
contente ao me ver. O Mudinho também apareceu, o Oscar, os padres da
igreja, gente da vila e do bairro vizinho. O André, mesmo sendo o primeiro
a chegar, foi o último a sair. No dia seguinte, a mãe me levou ao hospital
para me fazerem os curativos. A minha chegada foi uma verdadeira festa,
quando me viram, com a cabeça toda enfaixada e cheio de esparadrapos
e curativos por todos os lados. Já tinham me visto através dos jornais e me
reconheceram e sabiam também que eu deveria continuar o tratamento
naquele hospital. Por todo canto aparecia gente para me ver, eram freiras,
médicos, enfermeiras e até doentes vinham para completar a bagunça que
ocasionou a minha chegada. Dias depois me tiraram os pontos e aos
poucos foram eliminando os curativos, até que um dia os médicos me
disseram que tudo estava cicatrizado, mas que era bom de vez em quando
lhes fazer uma visita.
A verdade é que deram os dez pesos prometidos para a mãe. Um
dia ela me levou ao oftalmologista que sempre me atendia. Ele nos disse
que o remédio das bisnagas era muito bom, só que muito caro, ademais
era um produto novo no mercado. No período que fiquei de repouso não
faltaram as visitas. Diariamente dona Elga aparecia e gostava de
conversar bastante com a mãe. Às vezes me levava um shortezinho
costurado por ela. O Polaco apareceu uma vez, veio me visitar
rengueando e com o pé todo enfaixado. Contou-nos que um pedaço de
ferro lhe fez um corte de aproximadamente seis centímetros na canela,
lugar difícil de curar e que devido ao ferro estar enferrujado, a ferida
infeccionou.
Alguns dias depois, as minhas feridas já tinham cicatrizado, só
ficaram as marcas, e estas, minha tia Otilia as fez desaparecer com urtiga.
Eu gostava de ir ajudar o Polaco, só que a mãe tinha medo que eu fosse
me ferir com um desses ferros todos enferrujados, e também ele só me
pagava dez centavos por semana, é claro que ele e a mulher eram muito
bons para mim. Um dia apareceu em casa Marina, a nora de dona Maria
Ruiz, e nos contou que dona Maria tinha ficado muito mal quando soube
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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da tragédia, e chorava, querendo que alguém viesse me ver. E para
acalmá-la, ela decidiu vir. O Marcelo me mandou muitas lembranças, ele
não pôde vir porque pegou um cacho de plátano e não viu que tinha um
escorpião que lhe picou no ombro. Está com o corpo todo doído e duro,
está sendo tratado, porém quando ficasse bom viria me visitar. Marina,
conversando com a mãe, lhe disse que ultimamente estava havendo
muitas quedas de barreira naquela estrada e também na rota do trem,
devido às muitas chuvas. Sentindo-me bem e sem problemas de saúde,
falei para a mãe que queria voltar ao porto para ganhar uns trocos. Ela
pediu, pelo amor de Deus, que não era para eu ir, e teve o apoio do
Gratiniano, do Dr. Corrêa, da dona Elga e da Romélia. Ouvi todos e não
voltei ao porto, tanto me falaram que até fiquei com medo.
O recomeço
A mãe também não queria que eu fosse no Polaco, então eu
passava o dia perambulando, às vezes algum vizinho me mandava fazer
uma compra, procurava cobras, mas não se achava mais, acho que tinham
ido embora para outro lugar. Praticava tudo que sabia fazer, estava
praticando também malabares, à noite brincava com a garotada, inclusive
meus irmãos, algumas vezes a mãe me mandava com Marino entregar a
roupa. Eu sentia que a situação não estava boa. Com os dez pesos, a mãe
tinha comprado telhas, tijolos e areia, faltava comprar portas, janelas, pisos
e por último o cimento, segundo os seus planos. Tudo estava amontoado
no pátio, o sonho dela era terminar nossa casinha de material.
Algumas vezes ia ajudar o Polaco, a mãe me fazia mil
recomendações, que me cuidasse para não me ferir e eu tratava de fazer
as coisas sempre pensando nas recomendações dela. O que mais se
vendia no ferro velho do Polaco eram parafusos, com suas respectivas
porcas, arruelas lisas e de pressão, também se vendia muitos pedaços de
chapas de diferentes bitolas e tamanhos, os maiores compradores eram os
chapeadores. Os torneiros compravam ferro de bitolas acima de uma
polegada. Os serralheiros sempre compravam ferros redondos, quadrados,
cantoneiras, ferro “T”, etc. Algumas vezes apareciam os tais inventores de
máquinas sem utilidade, compravam roldanas, engrenagens, parafusos,
peças raras, que encontravam na sucata. Mexiam e remexiam naquele
monte de sucata, pegavam uma peça, pegavam outra, largavam uma,
depois outra, até que no final encontravam a peça desejada. Sentavam-se
no chão e armavam um quebra-cabeça ali mesmo no chão, com as peças
escolhidas, ficavam olhando, pensando, se levantavam, trocavam uma
peça, trocavam outra, uma, duas, três vezes, até que acertavam na
invenção desejada. Pegavam todo esse monte de ferro, colocavam num
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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saco que traziam para esse propósito, colocavam na balança e pagavam
sem pechinchar o que o Polaco lhes cobrava. Saíam felizes com seu
monte de ferro velho. Nunca ouvi dizer que alguém deles já tivesse
inventado alguma coisa que prestasse. De vez em quando aparecia um
destes loucos inventores todo engessado e cheio de curativos. Contava
que sua invenção tinha funcionado, só que houvera um pequeno descuido
e o invento tinha pulado, derrubado uma parede da casa, queimado a
instalação elétrica, sem contar que depois de todo aquele insucesso, tinha
ficado todo ferido e machucado e tinha ido parar no hospital. Quando se
recuperavam, voltavam ao Polaco para ver outra peça e trocar por aquela
que tinha sido a causadora de todo aquele estrago.
A poucas quadras do Polaco havia uma oficina grande de
mecânica, chapeação e pintura e eletricidade para carros. Lá trabalhavam
quatro mecânicos e usavam todos a mesma ferramenta. Os eletricistas,
que eram três, também usavam a mesma ferramenta para eletricidade. Os
chapeadores eram só dois. Os mecânicos e eletricistas se davam muito
bem, se ajudavam, trabalhavam em harmonia e sempre brincando. Agora
os chapeadores, que eram dois, viviam em eterna guerra, só por causa da
ferramenta. Um deles era forte, alto, quase loiro, e lhe chamavam El Paisa.
O outro era magro, moreno claro e um pouco mais baixo do que El Paisa,
era equatoriano e lhe chamavam Camacho, que era seu sobrenome. El
Paisa era carrancudo e não brincava com ninguém, vivia de mal com a
vida, Camacho, ao contrário, brincava com todos e sempre estava
cantando Pasillos equatorianos, enquanto trabalhava, com o que matava
as saudades da terra. Todos eles eram fregueses do Polaco e sempre iam
comprar parafusos ou pedaços de chapa e outros materiais, sempre
estavam com pressa, faziam o pedido, pagavam, ele ou dona Elga ia
entregar. Quando eu estava, Polaco me mandava fazer a entrega, de tanto
ir até lá, tinha me tornado muito amigo de Camacho. Quando ia entregar
material ficava algumas horas lhe dando uma mão, às vezes para colocar
um pára-lama ou qualquer outra peça do carro que estava chapeando para
depois pintar. Quando ele estava lixando a massa eu ficava olhando e ele
me perguntava: – Será que consegues? Não sabia o que responder, então
ele pegava um balde com água e lixa e começava a me explicar. Tanto
treinei até que me tornei um bom lixador. Também me ensinou a dar o
fundo com a pistola, quando tinha que entregar algum carro com urgência
me convidava para lhe ajudar de noite e aos sábados e domingos. Quando
entregava o carro me dava trinta centavos, dependendo do carro, me dava
quarenta e até cinquenta centavos.
Para atender o Polaco e também Camacho, dividi o tempo da
seguinte forma: na segunda-feira, terça e quarta, ajudava Polaco. Na
quinta-feira, sexta, sábado, e se fosse preciso, no domingo, ajudava
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Camacho, isso era o que eu gostava, do movimento, eu estava muito
contente, não ganhava tanto como no porto, mas algumas vezes
conseguia ganhar até um peso na semana. Era bom trabalhar com
Camacho, sempre estava brincando, e para mexer comigo inventava
canções, me levava a almoçar na sua casa, a sua esposa era pouca coisa
mais alta do que ele e o chamava de baixinho. O princípio que adotava na
sua casa naquele tempo, se ela fosse aplicar hoje, seria chamada de besta
quadrada, e quem sabe de quê mais. O primeiro dia que fui almoçar com
eles, após terminar, quis bancar o educado e comecei a recolher os pratos
para lhe ajudar na limpeza, porém ela, em um tom não muito suave, me
disse: – Por favor, não faça isso, eu não gosto de ver homem fazer serviço
doméstico. O serviço da casa é para mulheres, nós somos chamadas para
manter a cozinha e a casa limpa e arrumada e nós estamos sempre
asseadas e perfumadas para receber o nosso consorte. Eu acho que o
homem que gosta de fazer serviços domésticos tem tendência a ser
maricas, ou ter uma filha sapatona, ou um filho marica. O homem tem que
se preocupar para que não falte nada em casa e a mulher tem que
economizar e guardar para o futuro.
Uma quinta-feira, quando cheguei na oficina, Camacho estava
esperando El Paisa desocupar um martelinho que era especial para
endireitar frisos. De acordo com o ambiente que encontrei, tive a
impressão que El Paisa e Camacho tinham discutido, porque enquanto eu
passava um pano num carro que estava pronto para ser pintado e
Camacho limpava a pistola para começar a pintar, vi que El Paisa lhe
jogou com força o martelinho. Jogou com tanta força, que primeiro bateu
no carro que estava pronto para ser pintado, afundando o pára-lama, e
com a mesma velocidade saltou e bateu na cabeça de Camacho, abrindo
uma ferida longa e profunda. Ele deu um grito e caiu, mas sem demora se
levantou, pegou o martelinho e com força jogou contra El Paisa que bateu
no rosto e lhe abriu uma ferida um pouco abaixo do olho direito. O Paisa
também gritou, perdeu o equilíbrio e caiu em cima de uma caixa de
ferramentas, cortando a orelha do lado esquerdo. Vários mecânicos
pegaram Camacho, junto com os eletricistas, colocaram-no numa
camioneta e o levaram para o Pronto Socorro. Ele ia com o rosto, as mãos
e a roupa toda ensanguentada, eu fui junto e enquanto o atendiam, saí
correndo e fui avisar a esposa. Ao saber da notícia, saímos rapidamente e
pegamos o primeiro coche que passava. Entramos correndo no Pronto
Socorro, onde tinha ficado um mecânico e um eletricista. Informaram-nos
que ele estava dormindo, porque foi preciso anestesiá-lo, uma vez que o
corte era grande e foi necessário dar vários pontos. Eles foram embora e
nós dois ficamos, a enfermeira nos disse que ele ficaria internado até ver
se não se manifestava alguma infecção e nos aconselhou a ir embora e
voltar à noite quando ele já poderia falar.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Dirigimo-nos à oficina para recolher as coisas de Camacho. Na
oficina nos disseram que El Paisa tinha ido ao Hospital San Juan de Dios.
À noite, quando chegamos no Pronto Socorro, Camacho estava na sala à
nossa espera. O médico o tinha liberado, com a condição de ficar ao
menos três dias de repouso e sem fazer esforço algum e ir um dia sim
outro não fazer curativos. Uma semana depois lhe tiraram os curativos e
pontos, ele dizia que estava pronto para outra. O proprietário da oficina,
que naquele dia não estava, foi lhe visitar, lamentando o ocorrido pediu
para Camacho voltar a trabalhar. Ele lhe respondeu que de forma alguma
voltaria, começando que a mulher dele tinha lhe pedido, pelo amor de
Deus, que os unia, que era melhor não voltar. No fim de semana fui visitar
Camacho, só que não estava, me informaram que tinha ido viajar, foi só
essa a informação que me deram. Como não tinha mais o que fazer, me
conformei indo no Polaco ganhar dez centavos, a mãe me dizia: – Meu
filho, na falta de pão, boas são tortas. Continuei indo entregar os pedidos
na oficina mecânica. Um dia, quando fui entregar parafusos, vi que El
Paiso estava pintando o carro que Camacho não terminara, estava com o
rosto todo costurado e também a orelha. Quando me viu, começou a
mexer comigo pela primeira vez, antes nunca me olhava. Às vezes eu
ficava pensando que já fazia mais de quinze dias que o Camacho tinha ido
embora e não fora capaz nem de se despedir de mim. Era tão legal
trabalhar com ele, me lembrava que todos os dias, pelas nove horas e
trinta minutos, ele dizia: – Negrinho, vamos tomar café. Na frente da oficina
tinha uma cafeteria, eu pedia uma taça com leite, patacon com chicharrón,
ou arepas, ou senão pão de queijo, que café gostoso!
Consertador de fogões
Eu continuava minha vidinha com o Polaco, algumas vezes ia,
outras não. Uma tarde, quando o rei sol já queria se esconder, e após ter
estado todo o dia ajudando o Polaco, estava em casa me aprontando para
tomar banho, quando ouvi uma voz que perguntou para um vizinho: –
Onde é que mora o Negrinho? A voz parecia conhecida, saí correndo ver
quem estava me procurando. Para minha surpresa, era o Camacho. Nos
abraçamos, como no encontro de dois namorados, me pediu para lhe
apresentar à minha mãe, ela estava no tanque lavando roupa, nós fomos
até lá e ele sorridente, falando com a mãe, me elogiava. Em determinado
momento, no meio da conversa, disse para a mãe: – Dona Isabel, eu
peguei um serviço muito grande e gostaria que o Negrinho me ajudasse.
Um armazém daqui importou uma grande quantidade de fogões, eles são
modernos, só que com o solavanco do navio, chegaram amassados e é
claro que daquele jeito ninguém vai querer comprar e me contrataram para
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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eu endireitar e pintar e gostaria que o negrinho me ajudasse. Pretendo lhe
pagar dois centavos por fogão, calculo que podemos aprontar de seis a
oito fogões por dia. Enquanto eles conversavam, fiz o cálculo, seis fogões
são doze centavos e oito fogões dezesseis centavos por dia, está muito
bom, no Polaco só ganho dez centavos por semana, no pensamento e
sem abrir a boca eu disse: Oba, coisa boa! Ouvi a mãe dizer: – Senhor
Camacho, seria muito difícil meu filho lhe dizer que não, ele tem me falado
muito do senhor, da sua esposa, ele tem andado um pouco triste pelo
senhor ter desaparecido. – Dona Isabel, depois do que me aconteceu, ele
deve haver lhe contado, decidi com a minha esposa fazer uma pequena
viagem para descansar. A senhora não se preocupe com a comida, que
ela é por minha conta, ele conhece meu jeito. Ficou combinado que no dia
seguinte nos encontraríamos numa determinada esquina perto do
mercado. Ele se despediu e eu fiquei louco de contente. Quando ele foi
embora a mãe me disse: – Viu meu filho, como Deus é bom com você!
Não faz mal que não ganhe doze, e nem dez, que ganhe oito, no Polaco
você só ganha por semana dez centavos.
O local onde íamos trabalhar era um prédio de dez andares em
final de construção, só para estacionamento de carros. As caixas com os
fogões ocupavam o térreo e o primeiro andar, era caixa que não acabava
mais. Entramos e já fomos abrindo as caixas. Havia fogões de duas e de
três bocas. As partes onde iam as panelas e os queimadores eram pretas,
e os pés eram brancos. A parte onde se afixavam os queimadores e os
próprios queimadores saíam um pouco além do fogão, era onde se
colocava a garrafa com o querosene. Camacho já foi endireitando e eu
abrindo caixas, as partes mais danificadas eram as partes pretas,
sobretudo as beiradas. Algumas estavam tortas no centro. Quando
Camacho já tinha endireitado vários fogões, parei de abrir caixas e
comecei a lixar. Aquele dia consegui lixar oito fogões, eu vibrava de
contente e cheguei contando para a mãe como era fácil e rápido o serviço.
Fiquei amigo do zelador e sempre conversava com ele enquanto
lixava, o horário de trabalho dele era da meia-noite até às oito horas da
manhã. Camacho era muito rápido. Eu pegava entre às sete horas e trinta
minutos e às nove horas, mas como a minha parte do serviço estava se
acumulando muito, decidi madrugar para alcançar o Camacho. Então
perguntei para o zelador se ele não se importava de eu vir cedo, ele me
respondeu que podia vir na hora que quisesse. Saí de casa às cinco horas
na minha bicicleta e às cinco horas e trinta minutos já estava aprontando
material para Camacho. Lembro que aquele dia aprontei doze peças e por
último não baixava de quinze.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 156
O dono das lojas que vendiam os fogões morava em frente ao
prédio onde trabalhávamos. Era um sobrado muito bonito, na parte de
cima tinha uma grade de ferro artística bem trabalhada, parecia as que
fazíamos com Antônio. Ele se chamava Evaristo, era um senhor de idade,
já o tinha visto várias vezes, era muito dinâmico e madrugador Cedo
estava na sacada lendo o jornal e tomando o café. Às vezes ia ver o
andamento do serviço durante o dia, conversava sempre conosco e nos
comentava que eram muitos fogões que vendiam durante o dia. Ele era o
único representante desses fogões a querosene no país, e já tinha feito um
novo pedido de mais dois mil fogões, só que estes viriam em armações de
ferro, para evitar o problema surgido no primeiro pedido. Um dia, o senhor
Evaristo, que não sabia quem era que madrugava para trabalhar, desceu
do seu sobrado para ver, e quando me viu, disse: – Eta guri trabalhador e
madrugador, vai ser um dos bons! Enquanto eu lixava, ele conversava
comigo, me fazia várias perguntas e eu respondia. Pouco depois ele saiu,
voltando em seguida, trazendo uma garrafa térmica e duas xícaras. Serviume café em uma xícara e na outra para ele. Continuamos conversando e
tomando café por mais uma meia hora, depois se despediu e foi embora.
No dia seguinte novamente me levou café, desta vez trouxe
bolachinhas também. Daí por diante todos os dias levava o café com
bolachinhas ou sanduíches, também trazia o jornal e se sentava nos sacos
de cimento para ler até que o dia clareasse, aí se despedia e ia embora.
Aos domingos eu chegava lá pelas oito horas, antes do guarda ir embora,
e ficava até o meio-dia. Evaristo pelas dez horas me mandava um lanche
pela empregada. Na casa morava ele, a mulher, a empregada e um filho
da empregada. Eu sempre via um senhor que dirigia uma carroça puxada
por um cavalo, entrar na casa. Fiquei sabendo que era quem entregava as
mercadorias para os fregueses, fazia as compras para a casa de Evaristo
e ele era, como a gente diz, pau para toda obra. Chamava-se José, mas
chamavam-no de Chepe, algumas vezes vi o senhor Evaristo ir com ele na
carroça. Chepe era brincalhão, alegre, nós tínhamos nos tornado amigos,
ele morava mais ao sul de onde eu morava. Quando coincidia dele ir para
casa na mesma hora que eu colocava a minha bicicleta na carroça e
íamos conversando pelo caminho. Muita gente mexia com ele, notava-se
que era muito conhecido. Usava um chapéu velho, todo seboso, andava
com as calças arremangadas com um tipo de chinelo especial, faltava-lhe
dois dentes na parte superior da boca. Por onde andava estava sempre
mexendo com os conhecidos. Algumas vezes levava também o Camacho
para casa. Colocávamos nossas bicicletas na carroça e era aquela farra
até nos despedirmos.
A mulher de Evaristo era uma senhora de idade, baixinha e magra,
tinha um problema num pé e andava com uma bengala. Quando tinha que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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ir ao médico, era Chepe quem a levava de carroça, não gostava que os
filhos a levassem de carro. Chepe pegava a mulher de Evaristo no colo e
descia as escadas quase correndo, só para ouvi-la gritar: – Devagar!
Chepe ria quando ela gritava, xingando. Ele ria que se matava. Ao colocála na carroça era aquela bagunça, até alguns vizinhos, sabedores do que
se tratava, saíam nas sacadas só para mexer com o Chepe. Evaristo
ficava na calçada olhando e rindo. Uma vez o Evaristo estava no lugar
onde eu estava trabalhando e vendo sua esposa naquela bagunça, me
disse: – Negrinho, você já viu dois velhos brincando que nem criança? E
apontou-os no momento que o Chepe a colocava na carroça. Enquanto
isso, ela batia nele com a bengala. Eles iam embora e o Evaristo ficava
rindo e mexendo a cabeça.
Algumas vezes antes de ir para casa eu gostava de dar uma
olhadinha onde estavam expostos os fogões, achava-os tão bonitos! Um
dia, indo com Chepe na carroça lhe perguntei: – Aqueles fogões de duas
bocas são muito caros? Ele me respondeu: – Sim, são muito caros, não
são para bico de pobre, só rico é que se dá esse luxo. Aos domingos,
antes de ir para casa, eu ia devolver as louças onde tinham me mandado o
lanche, à dona Lusdari, que era o nome da mulher de Evaristo. Evangelina
era o nome da empregada, mas a chamavam de Eva, o filho dela e
Evaristo é que estavam em casa nesse dia, e me recebeiam com muito
carinho, me convidavam para tomar um suco de frutas. Enquanto eu
tomava o suco, todos se sentavam perto de mim, eu me sentia Cristo,
quando, com doze anos, conversava com os doutores. Quando Eva foi
trabalhar com eles, ela ajudou a criar os filhos de Evaristo e Lusdari, que
ainda eram pequenos e eram uns pestinhas. Chepe, quando falava deles,
me dizia: – Eva e eu ajudamos a criar os filhos de Evaristo, eram uns
bundinhas, meio amaricados, quantas vezes me tocou livrá-los de apanhar
de outros rapazes. Hoje são uns merdas orgulhosos, não gostam de
pobres, a filha casou-se com um cara pior que eles e os outros dois
casaram-se com mulheres iguais a eles, metidos que nem fio dental em
rabo de mulher. Quando eles ainda eram pequenos, Evaristo, Lusdari e eu,
trabalhávamos e nunca tivemos uma pequena discussão, eles faziam gato
e sapato da Eva. Coitada, como sofreu.
Tempo calmo foi quando eles foram para a Europa estudar, de lá
voltaram mais cheios que pinico de pobre. Chepe ficou pensativo e em
seguida me disse: – Negrinho, vou te contar um arranca rabo que tive com
o Luzio, o caçula de Evaristo. Um dia o Luzio pediu para eu ligar um carro
que ia ser vendido e o freguês queria vê-lo funcionando. O carro não
pegava, porque o encarregado de manter os carros em dia, no momento
de limpar o pó do motor, sem querer, tinha soltado o cabo da bobina, mas
nesse momento ele não estava ali. O Luzio, vendo que o carro não
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pegava, chegou até onde eu estava, e me olhando como se eu fosse o
culpado pelo carro não pegar, me chamou de burro e me xingou. Eu desci
daquele carro como fera ferida, peguei-o pelo colarinho, a minha intenção
era lhe dar um soco no nariz, só que a rápida intervenção dos colegas não
me deram tempo. Então o larguei com força e ele caiu sentado. Eu estava
com tamanha raiva, pois nunca alguém tinha me xingado, que só pude lhe
dizer: – Fedelho de merda, você vai ter que me respeitar, eu te vi crescer.
Peguei a pasta com os endereços de entrega, joguei nos pés dele e me
mandei. Para que a raiva me passasse, fui a pé até a minha casa, demorei
duas horas. No caminho ia pensando em trabalhar com carroça alugada
ou comprar uma com cavalo, eu era muito conhecido e freguês não ia me
faltar. À tardinha, eu estava rachando lenha para o fogão quando vi o
Nelson, o filho da Eva guiando a carroça, e com ele vinham Evaristo,
Lusdari e Eva, que desceram mexendo comigo. O Evaristo me tirou o
machado da mão e começou a rachar lenha, dizendo: – Isto eu fazia
quando morava no campo. Enquanto isso, os outros estavam
cumprimentando minha mulher, eu convidei Evaristo a largar o machado e
ir para a sala onde eles estavam. Eu conhecia bem o Evaristo, tantos anos
trabalhando com ele, nunca tivemos um pequeno desencontro. Na sala, se
falou de tudo, menos do acontecido com o filho. Evaristo se levantou, após
tomar o seu inseparável cafezinho, que minha mulher havia preparado,
inclusive para todos nós. Eu pensei que era uma visita de amizade, porém,
antes de sair da sala, me disse: – Chepe, pega a carroça e leva-nos para
casa, depois podes voltar com a carroça, e, como de costume, traga a
pasta para amanhã fazer as entregas. Sabes que o dia de amanhã vai ser
puxado, porque hoje não se fez nenhuma entrega. Do jeito que a gente se
gostava, respondi: – Sim senhor. Subiram todos, até minha mulher fizeram
subir, e com Chepe, no caminho, como sempre, era só farra, em momento
algum se falou da briga. No dia seguinte me apresentei para trabalhar
normalmente.
A dona Mercedes, mulher do Chepe, era uma senhora muito
bonita, elegante, mesmo estando dentro de casa, estava arrumada,
enquanto Chepe andava todo esculhambado, mesmo que dona Mercedes
lhe fizesse trocar de roupa todos os dias, ele saía de casa bem
arrumadinho, todo alinhado, mas quando chegava na firma tirava os
sapatos e calçava chinelos, arremangava as calças e por último, colocava
aquele seboso chapéu e era feliz trabalhando.
Um presente para a mãe
Durante meus anos de menino sempre tive momentos tristes e
muitos momentos de bastante alegria. Quando aqueles momentos que me
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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proporcionaram tanta felicidade surgem na minha memória e vivo hoje as
emoções que vivi naquele tempo. Esta que vou contar é uma das que
muitas vezes lembro, fico quieto, esboço um sorriso, fecho os olhos e vivo
ainda aquele momento. Numa quarta-feira à tarde terminamos de
consertar e pintar o último fogão. Combinamos com Camacho que
viríamos no dia seguinte para limpar o local e as ferramentas e entregar os
últimos oitenta fogões. Acostumado que estava a madrugar, cheguei cedo,
Evaristo apareceu como sempre com café, bolachas e com o jornal.
Comecei limpando o compressor, depois o resto das ferramentas.
Organizei: lixas, massas e tintas. Lá pelas dez horas chegou Camacho e
eu estava varrendo o local. Em seguida ele pegou outra vassoura, e como
o local era grande, conseguimos terminar lá pelas treze horas.
Fomos almoçar no mesmo local de sempre, desta vez sem pressa,
entre a conversa Camacho me perguntou: – Negrinho, que tal o serviço?
Respondi: – Muito bom, deu para ganhar uns trocos. – Ah, se deu, disse
Camacho. Eu estava para viajar para Guaiaquil quando me apareceu
Evaristo, pedindo para fazer o serviço. No começo eu não queria, estava
pensando em levar minha mulher para apresentar aos meus parentes e
aproveitar para o filho nascer em Guaiaquil. A minha mulher, que já
conhecia Evaristo, porque eu tinha feito vários biscates para ele, interveio
e me disse: – Amor, temos tempo, faz o serviço para o senhor Evaristo!
Daí aceitei e quando ele me explicou que era para consertar fogões, me
pareceu um bom biscate e adiamos a viagem. – E quando vão viajar,
perguntei-lhe. Ele me disse que seria na próxima semana, porque faltava
pouco para a mulher ganhar o neném. Perguntei: – Vai de forma definitiva,
ou volta? – Calculo que a mulher deve ganhar daqui a um mês, depois
ficamos mais dois ou três meses, vai depender do neném ficar forte. No
meu regresso vamos trabalhar juntos de novo. Fez-me vários elogios,
depois regressamos para esperar o fiscal que iria receber os fogões. Nós
tínhamos revisado um por um e nada nos preocupava. Evaristo veio junto
com o fiscal, que era da companhia de seguros, revisou como sempre, um
por um, assinou a ordem para Camacho receber no banco e se despediu.
Evaristo ficou conversando conosco e brincando, de repente me
invadiu um não sei o quê de força e perguntei para Evaristo: – Senhor
Evaristo, quanto custa um fogão de duas bocas? Ao que me respondeu: –
Para que tu queres um fogão de duas bocas? Respondi: – Para dar de
presente à minha mãe no dia das mães! Colocou a sua mão na minha
cabeça e mexendo nos meus cabelos disse: – Negrinho, pega um fogão
de três bocas, eu dou de presente para você, e você dá para sua mãe!
Fiquei mudo e como outras vezes, se formou um nó na minha garganta.
Queria chorar, as lágrimas não saíam, estava estático, não conseguia me
mexer, até que Evaristo disse: – Camacho, ajude o negrinho a pegar um
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 160
fogão de três bocas e coloque junto às ferramentas, que Chepe vai lhes
levar em casa. Uma vez colocado o fogão junto com as ferramentas, corri
e me abracei a Evaristo. Como ele era alto e um pouco gordo, só consegui
me abraçar da cintura, ele também me abraçou. Como noutra ocasião
tinha lhe contado o problema dos meus olhos, ele me disse: – Negrinho,
Deus há de permitir que tu fiques bom de teus olhos e possas estudar. Um
empregado veio chamar Evaristo, alguém precisava falar com ele na loja.
Na despedida, Camacho estava emocionado, algumas lágrimas correram
pelo seu rosto. Vi a figura de Evaristo desaparecer a passos rápidos pela
calçada, imagem que até hoje lembro tudo claramente.
Carregamos ferramentas e bicicleta e saímos com Chepe, como
sempre, naquela alegria, descarregamos as ferramentas na casa de
Camacho, me despedi dele e da mulher e continuei com Chepe na
carroça. No caminho Chepe me dizia: – Negrinho, aquele velho é bom, o
céu para ele já está ganho! Com o dinheiro que ganhei com o Camacho, a
mãe tinha construído uma casinha de material, o Chepe aproveitou e
armou o fogão dentro dela. Como a mãe ainda não tinha feito o fogão à
lenha, que era o que se usava então, quando Chepe armou aquele fogão
que não ocupava quase espaço, a cozinha ficava toda livre. A mãe tinha
ido entregar roupa, ao chegar, peguei-a pela mão e a levei até a cozinha e
lhe disse: – Mãe, este é o teu presente do dia das mães, que é no próximo
domingo. Chepe lhe ensinou a mexer nele e ela viu que era fácil. Em
seguida ela se ajoelhou perto da porta da cozinha, colocou as mãos em
sentido de graça e disse: – Obrigada Senhor, abençoe meu filho e todos
aqueles que o tratam bem. As lágrimas lhe corriam em quantidade pelas
bochechas, se levantou, abraçou Chepe e lhe agradeceu. Chepe se
despediu, prometendo vir nos visitar. A mãe e eu ficamos na cozinha
contemplando nosso fogão.
Aquela noite dormi feliz, sonhei mil coisas, com Chepe, Evaristo,
Camacho, até com dona Lusdari, Eva e Nelson. Sonhei que estava lixando
fogões e tomando café com Evaristo, até o guarda apareceu no sonho.
Meus irmãos e a Romélia se encarregaram de espalhar a notícia, a
vizinhança vinha ver o dito fogão, a mãe tinha colocado também a mesa e
cadeiras que Elida tinha nos presenteado, inclusive o armário com porta de
vidro. Apareceu o Gratiniano, Dr. Corrêa, o Polaco e dona Elga, até o
André veio ver o fogão. Uma vizinha disse para a mãe: – A senhora parece
que adivinhou que ia ganhar este fogão, porque fez uma boa cozinha.
Também diziam: – A cozinha de Chava é de gente rica. Até hoje não
consigo entender o porquê que algumas mães, quando estavam olhando o
fogão, em determinado momento, se referindo a mim, comparando-me
com seus filhos, diziam: – Esses meus filhos são uns palermas, só sabem
comer, dormir, sujar roupa e brincar. Aquele Negrinho é que vale ouro! A
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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gente também ouve os rapazes falando que vão dar um jeito de comprar
uma bicicleta, “puro papo”! Elas ainda falavam: – O meu filho agora diz que
vai comprar um violão, só que até agora não vi nele o arranque do
Negrinho, que consegue tudo o que quer, até comida estrangeira já
comemos trazida por ele! É que quando eu trazia comida do porto, a mãe
repartia com diferentes vizinhos. Eu estava no quarto praticando com
baralhos e escutava todas as conversas, mas eu não dava importância.
Continuei indo na casa do Polaco. A dona Elga estava sempre me
dando muito mimo, na hora de ir embora me fazia tomar banho ali mesmo
na casa dela. O banheiro era todo em azulejos e as torneiras eram
cromadas. Eu achava tudo muito bonito e a água era morna. Ao sair do
banho ela me fazia colocar um shortezinho novo, costurado por ela. Ela
me penteava e colocava perfume.
A vida continuava, mas entrava pouco dinheiro para ajudar a mãe,
era só os dez centavos que o Polaco me dava e às vezes três, quatro ou
cinco que ganhava fazendo algum serviço para os vizinhos. Continuava
indo no Túlio receber aulas de violão e nos fins de semana ia com os
companheiros dele, os ladrões de galinha. Num sábado, eles tinham sido
convidados para tocar numa escola em homenagem ao dia das mães e
também no aniversário de uma professora. A festa começou às dezesseis
horas e terminou antes das vinte horas. Fomos brindados com salgadinhos
e refrigerantes. O baixinho que tocava bandolim era o mais cachaceiro e
estava desesperado para tomar uma cachaça. Enquanto caminhávamos,
ele dizia para os companheiros: – Vamos na Sefa que lá temos tudo de
graça, vamos lá! Insistia. Quando chegamos na primeira esquina ele já foi
dobrando e seguiu a passos acelerados, os outros iam a passos lentos. Eu
ainda não sabia que o problema dos outros era eu, e acompanhava o
passo deles. Daí a pouco vi que ele entrou numa casa, quando nós
chegamos lá, ele saiu e disse: – Vamos entrar que tem mulher de montão.
Eles estavam com pouca vontade de entrar, chegaram perto do porteiro,
eu estava um pouco retirado e não ouvi o que falaram, só vi o porteiro
mexer a cabeça em sentido negativo. Túlio veio e me disse: – Negrinho,
nos espera um pouco aqui que já saímos. Confirmei e eles entraram. Foi
nesse momento que compreendi que o empecilho era eu. Quando
desapareceram da portaria, cheguei perto do porteiro e pedi o favor de
avisar para eles que eu tinha ido embora para casa. Perguntou onde eu
morava, respondi que era perto, mal sabia ele que eu morava do outro
lado da cidade. Coloquei meu violão debaixo do braço e a passos lentos
fui me afastando em direçao da minha casa. Atravessei por um bairro de
sociedade abastada, de casas muito bonitas, com jardins na frente, janelas
envidraçadas e com o interior bem iluminado.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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O violeiro
Eu caminhava bem lentamente, não me lembro se pensava ou não
pensava, e no momento que passava por um bar localizado num terraço,
alguém chamou: – Hei garoto, ó do violão! Olhei para cima, era comigo,
me disse: – Sobe um pouquinho. Como um autômato, fui subindo, me
receberam com gritos e me deram uma cadeira e já me pediram para tocar
alguma modinha. Túlio tinha me ensinado a tocar e cantar um fox (mis
arapos), como tinha praticado muitas vezes com Túlio em casa e às vezes
com a rapaziada da vila, apesar de minha voz ainda ser de criança, senti
que saiu bem. Estes momentos são difíceis de esquecer. A segunda foi
Índia, Guaranha Paraguaia, que estava na moda e que na minha voz saía
muito bem. Lembro que quando estava reunido com a turma da vila, as
meninas, a primeira coisa que me pediam era que cantasse Índia. No bar,
quando estava tocando e cantando, ficavam em silêncio, e quando
terminava batiam palmas. Também estava na moda um porro El Caimam,
toquei, após uma garçonete trouxe um suco de frutas e um sanduíche.
Enquanto comia, se apresentou para mim um garoto bem vestido, de terno
e gravata e me disse: – Eu toco acordeom de botão, quer que o traga e
toque com você? – Sim, respondi. Ele desceu correndo e em seguida já
estava de volta. Quando o viram entrar, também gritaram e bateram
palmas. Combinamos que ele tocaria e eu o acompanharia, rapidamente
nos entendemos, daí para frente foram merengues, porros, cumbias,
ballenatos, alguns boleros. Em uma pausa, escutamos uma voz que gritou:
– Efraim, tá na hora. Levantou-se e me disse: – A mãe está me chamando.
Eu disse: – Eu também vou, moro muito longe. Quando levantei, um grupo
que estava com o que me chamou, me deu um peso, em seguida a
garçonete me entregou umas moedas que outro grupo tinha me mandado,
desci conversando com Efraim, a mãe dele estava esperando na frente da
casa, ele me apresentou. Quis repartir o dinheiro com ele, mas os dois, ao
mesmo tempo, disseram que não, que era todo para mim. Ao me despedir,
a mãe de Efraim disse para eu vir quando quisesse para tocarmos juntos,
que éramos uma dupla muito bonita de se ouvir. Quando cheguei em casa,
a mãe estava acordada me esperando. Cheguei feliz, tinha ganho um peso
e sessenta centavos, depois de tantos dias só ganhando dez a quinze
centavos na semana, um peso e sessenta num dia era bom demais.
Contei para a mãe todo o acontecido, lhe falei de Efraim, da mãe dele, da
casa, contei que a mãe do Efraim tinha me oferecido um copo de leite, só
que eu não quis porque tinha tomado aquele suco. Falei para a mãe
também que ela tinha me convidado para ir à sua casa sempre que
quisesse. A mãe ficou em silêncio e em seguida disse: – Tá, meu filho,
você é que sabe, não confie muito em rico, porque rico não gosta de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pobre, e finge gostar para poder lhe explorar, é claro que tem casos
isolados, tal como o senhor Evaristo.
Dois dias depois do encontro com Efraim, o Polaco me mandou
entregar um pacote de parafusos numa ferragem no centro da cidade.
Quando estava entregando os parafusos, a surpresa, me encontro com
Efraim. Corremos um ao encontro do outro, sem saber por que, estávamos
felizes, ele me pegou pela mão, me levou e apresentou à sua irmã. Ela era
mais velha do que ele e ao me cumprimentar, perguntou: – Tu és Ortega?
– Sim senhora, respondi. – Imaginei, porque nestes dois dias, em casa só
se tem falado em ti. Após um pouco de conversa ela me disse: – Vamos
até nossa casa e almoçamos juntos. Eu lhe disse que teria que levar o
dinheiro dos parafusos ao Polaco e que ele estava me esperando. –
Vamos então levar o dinheiro ao Polaco. – Mas é muito longe. – Não
importa, vamos lá. Quando saímos da ferragem, Efraim pegou a minha
mão e saímos correndo até chegar num auto que estava estacionado. Ele
abriu a porta de trás e me pediu para entrar, em seguida entrou também,
sua irmã sentou ao volante e saímos em direção ao endereço que lhe
informei. Nós dois, eu e Efraim brincamos no banco de trás como dois
irmãos, parentes, ou como dois antigos amigos. Ele estava vestido de
terno e gravata e eu com um shortezinho de fazenda barata. Depois de
entregue o dinheiro ao Polaco, saímos para a casa deles. Amparo, que era
o nome da irmã de Efraim, ao entrar em casa gritou: – Mãe, olha quem
está aqui. Ela veio, e de forma familiar, abraçou-me como se fossemos
veljhos amigos e disse: – Olá Orteguita! Depois do cumprimento, a
primeira coisa que me disse foi: – Tu ficas para almoçar conosco. – Sim
senhora, respondi.
Efraim me pegou pelo braço e me levou para o quarto dele, que
era maior que a minha casa. O guarda-roupa ocupava uma parede, era
laqueado, cor marfim com filetes dourados, o bidê fazia jogo com o
guarda-roupa, tinha um abajur de bronze, vários quadros nas paredes e o
maior de todos era o Sagrado Coração de Jesus. A cama era de ferro,
toda trabalhada com chinegos e aplicações de bronze, o quarto tinha duas
janelas que lhe davam iluminação natural. Numa mesa auxiliar, estava o
acordeom, e encostado a ele estava um violão, que me entregou e disse: –
O meu irmão comprou para aprender e nunca aprendeu. Após tê-lo
afinado, tocamos músicas e quando escutou ruídos de talheres, olhou para
o relógio e disse: – Daqui a pouco vão nos chamar para o almoço. Abriu o
armário e pegou um terno dele dizendo: – Vista-o para almoçar. Ajudoume a vestir e colocar a gravata e, pela primeira vez, vestia um terno.
Sentia-me um pouco incômodo, porém era gostoso ver-me bem vestido.
Quando chegamos à mesa, estava a avó de Efraim e um irmão também
adulto, me receberam de forma carinhosa e sorridente.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Isso que vou relatar tenho contado para muitos amigos, também às
noivas que tive, em diferentes países, e hoje tenho contado para meus
filhos e sempre tem sido à mesa nas refeições. A mãe de Efraim ocupou
uma parte da cabeceira da mesa, a avó a outra, Efraim e eu ocupamos um
lado e Amparo e o irmão à nossa frente. Duas empregadas com guarda-pó
azul celeste nos serviam. Novidade para mim: na mesa, já colocados
anteriormente, havia um prato raso, e em seu contorno, um garfo, uma
faca e uma colher. Na hora de servir a sopa, uma das empregadas colocou
um prato fundo sobre o raso. Outra novidade para mim: terminada a sopa,
nos serviram um prato com arroz, junto estava uma batata inteira,
acompanhando carne cortada de forma retangular, com um molho
cheiroso de cebola, tomate e pimentão. Eu os via comerem com garfo e
faca, eu nunca tinha usado essa ferramenta. Olhando para eles, os
imitava, e com muita dificuldade consegui comer o arroz com o molho e a
batata, mas a carne não me atrevia a cortar, tinha medo de cometer a
maior gafe da minha pouca existência. Conforme hoje interpreto, comi
tudo, menos a carne. Que vontade tinha de pegá-la com as mãos, que
sofrimento, como estaria gostosa! As empregadas retiraram os pratos,
menos o meu. Lembro que a mãe de Efraim me disse com voz doce,
calma, uma voz maternal: – Ortega, come a carninha. Para me livrar do
pesadelo, imediatamente respondi: – Desculpe, é que não gosto de carne.
Saí do apuro, porém o desejo de comer a carne perdurou. Ainda ela me
disse: – Tu tens que aprender a comer carne, tu estás crescendo e precisa
da proteína animal. – Sim senhora, menti de novo, já me disseram isso.
Esse pedaço de carne ficou gravado na minha mente de forma tão
profunda, que nos momentos que tive fome, ela se me apresentava bem
evidente. Hoje, em reuniões entre amigos, lhes conto isto, mas como
passagem cômica na história da minha vida. Já contei para minha mulher,
para meus filhos e em todo lugar e onde há oportunidade sempre conto,
apesar de ter passado tantos anos, continua viva na minha memória.
Tomada a sobremesa, voltamos para o quarto, tirei o terno e
coloquei meu short e blusa, em seguida tocamos um pouco e calculei que
estava na hora de ir embora. Antes de sair, Efraim pediu-me para vir no
domingo para tocar um pouco, porque na segunda-feira teria de voltar ao
internato. No domingo à tarde, peguei a minha bicicleta e fui à casa de
Efraim. Como da outra vez, fui bem recebido por todos, tocamos, rimos e
brincamos bastante. No momento da despedida, me disse, de forma
natural: – Nas férias da metade do ano, tu vens para tocarmos de novo, tá!
– Sim, respondi. Ao me despedir dos familiares de Efraim, a mãe dele me
disse que ele estudava interno num colégio de padres, mas que quando eu
quisesse poderia visitá-los. Sem a presença do novo amigo, não tive
coragem de ir visitá-los.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Continuei o meu ritmo de vida, indo no Polaco e ganhando dez
centavos por semana. Toda a garotada da vila gostava de mim, tanto
homens como mulheres. Às vezes, à noite, levava o violão e cantávamos.
Muitos deles tinham vontade de ter um violão e aprender a tocar, só que
não tinham condições de comprar e o sonho ficava ali. Outro sonho de
muitos era ter uma bicicleta, era só sonho. Muitos aprenderam a andar na
minha bicicleta, homens e mulheres. Quem mais gostava de andar nela
era Romélia, mesmo eu não estando em casa, ela pedia emprestado para
a mãe, sabia que eu não me importava. Ela sempre estava com o
tornozelo do pé direito todo ferido de tanto roçar na corrente da bicicleta e
quando ia entregá-la, estava toda molhada de suor de tanto andar.
As histórias de Ocoró
Tudo o que conto nestes escritos são os fatos que me marcaram
na minha infância e também depois de adulto. Bom, esta é da minha
infância. No fundo da nossa vila começava um bairro já organizado. No
começo deste bairro, lindeiro à nossa vila, morava um senhor alto, forte, de
cor preta, que tinha muitas cicatrizes nos braços. Seu nome era Roberto
Ocoró Caizedo. Sua casa era de material, bem pintada, a parte superior
era branca, a parte inferior era de cor verde. Em uma altura aproximada de
quarenta centímetros, entre a cor branca e a verde, tinha pintado uma
faixa de aproximadamente dez centímetros com a cor vermelha. Estas três
cores davam à casa uma vista muito bonita, completava esta beleza um
jardim na frente da casa muito bem cuidado, quase sempre estava
florescido. Num canto tinha jasmim, quando florescido mantinha
perfumado o ambiente, tinha rosas brancas e vermelhas e muitos cravos
também brancos e vermelhos. Nos fundos da casa viam-se muitas
árvores, além de uma horta. Ocoró era muito conhecido do pessoal da vila
e também do bairro dele. Tinha um filho, que apesar de Ocoró ser preto, o
rapaz era branco e seu nome era Carlos. Como no bairro que eles
moravam ainda habitavam poucas famílias, mesmo sendo um bairro
organizado, as ruas eram calçadas, tinha água, luz, esgoto pluvial e
cloacal, e existiam muitos terrenos à venda. O Carlos gostava sempre de
estar reunido com a garotada da vila, andava sempre bem vestido e não
era orgulhoso, era bom amigo, além disso as gurias achavam-no lindo.
Fiquei sabendo que a mãe de Carlos tinha sido uma loira muito
bonita, de família de imigrantes italianos e que também tinha sido casada
com um descendente italiano, que tinha falecido antes de Carlos nascer.
Virginia era o nome dela, e sentindo-se só na cidade dela, e grávida, sem
o auxílio dos pais já falecidos, temerosa de ganhar a criança longe de
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familiares, sem socorro médico e sem recursos, procurou os familiares de
Ocoró, que eram do mesma cidade, e lhes pediu para que eles falassem
com Ocoró lhe dar uma mãozinha na cidade enquanto ela ganhava o
bebê. Ocoró, que conhecia Virginia desde criança, tinha sido convidado
para o casamento dela e também para o enterro do marido, aceitou de
imediato ajudar a amiga de infância. O que todos sabiam era que, após o
nascimento de Carlos, Virginia não voltou para a cidade deles. Soube
também que eram vistos os dois juntos e muito felizes. Ela ia ajudá-lo no
armazém de secos que ele tinha no mercado. Tempos depois eles
casaram, o menino passou a chamar-se Carlos Caizedo, por parte de
Ocoró, e Lanzaratti por parte da mãe, sobrenome que o Carlos pouco
usava, sempre que se apresentava era Carlos Caizedo, o que deixava
Ocoró muito orgulhoso.
Ocoró e Virginia, diziam o povo, brincavam feitos crianças, que em
momento algum deixavam Carlos sozinho, soube também que como
Ocoró era um homem forte e alto, pegava Virginia no colo, sem o menor
esforço. Foram muitas histórias lindas que ouvi daquele Otelo e
Desdêmona da minha vida. Os mais chegados a eles contavam que Ocoró
enchia o quarto de Carlos de brinquedos e Virginia de presentes. Os
aniversários de Carlos e Virginia eram sempre festejados com pompas,
não gostava de festejar o dele, pois festejando os de seus dois amores, ele
se sentia festejado. Desta vez não foi “Otelo que matou Desdêmona”,
ninguém tinha inveja deles, porque até eram benquistos por todos os
vizinhos.
As histórias que ouvi de Ocoró e Virginia eram todas lindas, cheias
de amor, de amizade e de carinho. A única história tétrica, cheia de horror
e de tristeza, foi o que me contou um amigo chamado Atanázio, que
também morava perto de Ocoró. Ele conheceu Virginia desde o primeiro
dia que ela chegou na casa de Ocoró. Era uma gringa bonita, começou me
dizendo Atanázio. Um dia, estávamos eu, minha mulher e minhas duas
filhas trabalhando na fabricação de móveis e cestos de vime, quando
ouvimos Virginia gritar. Como tínhamos visto Ocoró sair com o Carlos para
fazer as entregas das encomendas de arroz, feijão, açúcar, etc que os
vizinhos pediam, ao ouvir os gritos saímos correndo. Ao chegar onde ela
estava, foi a cena mais arrasadora nunca vista. Deparamo-nos com um
cachorro, quase do tamanho de um terneiro, bravo como uma fera, cujo
proprietário era o dono de um tambo, e que além daquele tinha mais uns
vinte cachorros, este dito estava sempre amarrado e ninguém do pessoal
do tambo sabia como tinha se soltado o tal cachorro. O caso é que,
quando chegamos, vimos Virginia no chão e o cachorro em cima dela
arrancando-lhe partes do corpo. Vários vizinhos, que também tinham
ouvido os gritos, estavam com pedaços de pau e batiam com força no
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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animal, mas as pauladas não adiantavam, parecia que quanto mais
apanhava, mais furioso ficava, até que um vizinho pegou uma corda e o
laçou, mas como não conseguiu pegar o pescoço, pegou perto das patas
dianteiras do cachorro. Passou a corda no galho de uma árvore e
puxaram-no até ficar pendurado. Mesmo assim, o maldito, pendurado
como estava, fazia esforço para alcançar e morder a corda. Temendo que
ele alcançasse a corda e a mordesse até arrebentar, pegaram outra corda
e amarraram sua cabeça contra a própria árvore. Ocoró, que também tinha
ouvido os gritos da mulher, voltou correndo. Quando ele chegou,
estávamos carregando o corpo de Virginia, que nem se mexia. Ocoró
pegou sua mulher nos braços, subiu na charrete, os dois choravam, Carlos
e Ocoró. O caso foi que um vizinho se encarregou de dirigir a charrete e
outro trouxe um facão para degolar o cachorro, porém, no momento que
ele ia dar a primeira facada, apareceu o velho Antão, dono do tambo e do
cachorro. Quando ele viu que o homem ia dar a facada, como ele trazia
uma espingarda, gritou, apontando a arma: – Não te atreve maldito, se não
queres levar a mesma sorte. Quando Antão tirou uma faca da cintura para
cortar a corda que amarrava o cachorro, Palácio, um moreno alto e magro
que tinha fama de pavio curto e briguento, deu um pulo e caiu em cima de
Antão. A faca voou para um lado e a espingarda para outro. Palácio
gritava: – Ninguém toque na espingarda nem na faca. Em seguida, todos
caíram em cima do Antão e o amarraram na mesma árvore onde estava o
cachorro. Dois policiais chegaram e se inteirando da gravidade dos fatos,
um deles saiu e em seguida voltou com mais quatro. Um deles mandou
desamarrar o velho Antão, que bufava de raiva, ameaçava e exigia que
seu cachorro também fosse solto. Os policiais foram descendo lentamente
o cachorro, e este, quando colocou as patas em terra, com uma fúria
incrível, tentou se avançar sobre os presentes. O Antão gritou o nome dele
e o cachorro tentou se avançar até sobre o dono. Parecia possuído pelo
demônio. O policial que deveria ser o chefe disse para o Antão: – Senhor,
se soltarmos seu cachorro ele é capaz de matar até o senhor mesmo, e
quem sabe quantos mais, ele tem que ser morto. O Antão gritou: –
Nãooooooo... Todos os presentes gritaram sim, ele tem que morrer antes
que cause mais danos. O chefe pediu para retirar as crianças e as
senhoras e em seguida autorizou um dos policiais, que tirou a arma do
coldre, deu um tiro, e ali ficou o bicho morto. Todos bateram palmas, o
chefe disse que tinha que levar o cão e pediu para alguém conseguir uma
caixa de papelão. Apareceram mais de três, enquanto os policiais
baixavam o cachorro, o Antão, esbravejando jogava terra nos policiais
sendo imediatamente algemado. Assim mesmo tentou fugir. Daí
algemaram-lhe os pés. No momento que estavam levando o Antão para o
carro da polícia, chegou Ocoró e Carlos chorando de forma desesperada.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Quando a conversa chegou neste ponto, a mulher de Atanázio
largou a vime, se levantou, passou a mão no rosto, e quase chorando
disse: – Não, não quero lembrar aquele dia. Uma das gurias também se
levantou, limpou as lágrimas e disse: – Esquece mãe, faz tanto tempo que
quase todos já esqueceram. Senta mãe, deixa o pai contar para o
negrinho, quem é que não fica curioso quando enxerga o Carlos, um rapaz
branco, elegante, bonito, filho de um pai negralhão e feioso como o Ocoró.
Se o Carlos fosse albino, podia se dizer que era filho de dois pretos,
sempre ouvi dizer que às vezes o filho de um casal de pretos, bem pretos,
nasce tão branco que quase não consegue abrir os olhos. Nós sabemos
que o Carlos é filho de dois brancos, descendentes de europeus, e o
Carlos conserva essas feições. A outra menina disse: – Continua pai, que
eu também quero ouvir e saber, porque naquela época eu era muito
criança. Atanázio continuou. – O caso é que Carlos e Ocoró choravam
naquele desespero. Ocoró estava sem camisa, tinha tirado para limpar o
sangue e cobrir os ferimentos da Virginia. Desceu com ela no colo e
dirigindo-se a todos disse: – Está morta, morreu por asfixia e
estrangulamento ocasionado por aquele cão maldito e seu maldito dono.
Estas palavras proferidas por Ocoró deixaram todos os presentes atônitos,
pois nunca tinham ouvido Ocoró dizer o mais leve palavrão. O povo ficou
enfurecido e queria linchar Antão. O chefe policial interveio imediatamente
dizendo não, não pode matá-lo, ele tem que viver, se morrer, quem é que
vai indenizar o Ocoró e o menino? Antão, de olhos bem arregalados,
olhava para todos os lados, parecia um selvagem recém saído da selva.
Ocoró entregou um papel para o oficial que tinham lhe dado no hospital. O
oficial assinou e devolveu para Ocoró. Naquele tempo os mortos eram
velados em casa. À noite, quase toda a vila estava no velório, e também a
maior parte dos vizinhos do bairro. Atanázio interrompeu a história e me
disse: – A vila de vocês recém estava se organizando, só existia a parte de
baixo. Depois continuou: – Ocoró e Carlos não paravam de chorar, dava
dor, muita dor, os presentes também choravam ao vê-los chorar. Ocoró, de
vez em quando se levantava e com muita delicadeza limpava pequenas
manchas de sangue e a beijava. Era quando o Carlos se abraçava ao pai,
chorando, e nesse momento fazia chorar a maior parte dos presentes.
Atanázio fez um parêntese e, dirigindo-se à mulher e às filhas, disse: –
Como o Palácio foi tão prestativo nesse momento para Ocoró. Foi buscar
os parentes de Virginia e desde aquele dia o Palácio não mais bebeu e
nem brigou. Ao regressar do cemitério, todo mundo estava arrasado, tudo
era silêncio profundo, as crianças não davam o menor grito, até parecia
que entendiam a dor das pessoas. Atanázio me disse: – Negrinho, o Ocoró
era um homem alegre antes da chegada da Virginia e depois mais ainda,
brincalhão, era muito prestativo, entregava as encomendas aos vizinhos
brincando, sempre carregava balas no bolso e dava para as crianças.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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O Carlos era um rapaz humilde, gostava de estar reunido com
nossa turma, participava de nossas brincadeiras. Eu sentia que ele
gostava de mim, eu lhe ensinava a fazer mágicas trucadas, aprendeu a
andar de bicicleta na minha bicicleta, tinha aprendido a cantar e a
acompanhar uma valsa (quando as aves deixam seus ninhos). Um dia me
disse que estava juntando dinheiro para comprar um violão, que da
mesada que o pai lhe dava, guardava um pouco, e quando não tinha muito
movimento no armazém, o pai lhe deixava ganhar uns trocos carregando
cestos dos fregueses, porque tinham poucos carregadores e os
compradores andavam a cata de um.
Fiz muitas perguntas ao Carlos, até lhe disse que o Polaco só me
pagava dez centavos por semana e ele me disse: – Negrinho, tu podes
ganhar cinco ou seis centavos por dia, ou mais, carregando cestos se tu
quiseres experimentar vai e eu te ajudo a conseguir fregueses.
Quando cheguei em casa, contei para a mãe. Uma vizinha, que
tinha ido visitar a mãe, porque estava curiosa para conhecer a cozinha e o
famoso fogão a querosene, quando falei de Carlos, o filho de Ocoró, ela,
que morava perto deles, e que assistira a tudo, começou a contar e disse:
– Chava, Ocoró era um homem alegre, cuidava do jardim, dos canteiros,
ele sabe de tudo quanto se refere à plantação e gostava de ajudar os
vizinhos a cuidar dos jardins e dos canteiros. Aos domingos à tarde,
quando fechava o mercado, saía pela rua a mexer com a vizinhança, mas
após a morte de Virginia, a mãe de Carlos, ele tornou-se um taciturno,
triste, não se vê ele mais nas ruas. Um dia, fui com meu marido visitá-lo, e
ele nos disse que a única razão de ainda estar vivo era o Carlos, que é tão
parecido com a mãe, e é a sua única alegria. Ele é feliz por vê-lo crescer,
vê-lo estudando, e nele sente a presença da Virginia. Fica contente à
noite, quando ele regressa das brincadeiras com os amiguinhos, na hora
marcada, e também aos domingos, quando regressa da matiné, contandolhe algumas cenas do filme, embora o sangue não seja o mesmo, sente
correr o sangue dele nas suas veias.
Combinei com o Carlos que no dia seguinte iria ao mercado e ele
me convidou para ir junto na charrete com o pai. Antes das 7 horas eu já
estava na casa deles. Enquanto Ocoró dirigia a charrete, Carlos e eu
brincávamos e conversávamos. Uma vez no armazém do Ocoró, o Carlos
me disse: – Espera um pouco que há de aparecer um freguês, em seguida
me deu um saco que era para colocar nos ombros para não sujar a
camisa, ademais assim se caracterizavam os carregadores. Enquanto
estava parado do lado de fora do armazém, vi passar vários rapazes com
o saco nas costas e gritavam: – Levo o mercado, levo... Alguns já
passavam com o cesto no ombro e o dono ou a dona da mercadoria ia na
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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frente. Eu estava distraído vendo o movimento do mercado quando uma
senhora entrou no armazém de Ocoró. Enquanto Carlos atendia, ela
olhava para fora, e o Carlos que a conhecia, lhe disse: – A senhora pode
pegar o Negrinho, ele é de casa. A mulher disse: – Que bom. E já me foi
entregando o cesto. Ao sair, Carlos me fez sinal com os dedos (quatro), e
eu compreendi, quando a deixei no coche, ela sem me perguntar, me deu
quatro centavos. Naquele dia ganhei doze centavos, a tarde cheguei em
casa feliz com o novo ganha-pão.
O relato de experiências
À noite, reunido com a garotada, eu lhes contava a minha nova
forma de ganhar uns trocos. Dias depois eu já tinha vários amigos, que
ganhavam a vida da mesma forma que eu, eram garotos pobres iguais a
mim, também moravam em vilas miseráveis iguais à que eu morava, nos
queríamos muito, nos ajudávamos, nos cuidávamos uns aos outros,
éramos muito amigos.
Ultimamente não ia mais com Ocoró e Carlos, porque eu tinha que
caminhar muito até a casa deles e agora tinha combinado com meus
amiguinhos de nos encontrar no Parque São Nicolas e daí íamos correndo
e brincando até chegar ao mercado, éramos quatro e sempre estávamos
juntos. Lembro-me que na barraca onde vendiam comida e café, a dona
era uma morena bem gorda, mas mesmo sendo tão gorda era muito ágil.
Ela nos cobrava dois centavos para os quatro tomarmos café com pão ou
arepa e no almoço nos cobrava cinco centavos pelos quatro. Servia
bastante comida e nos dizia que tínhamos que nos alimentar bem para
podermos carregar peso. A verdade era que não sabíamos se conosco ela
tinha lucro, empatava ou perdia. É claro que nós lhe retribuíamos ajudando
na faxina da barraca, ou com outros serviços. Também ajudávamos na
limpeza as donas das bancas de frutas e verduras. Cada um tinha a sua
cliente e se por alguma circunstância um de nós não podia atender a sua
cliente, outro de nós a atendia. No mercado já éramos bastante
conhecidos, tanto das barracas de comidas, das de frutas, verduras, as
bancas de carnes e dos armazéns, até os próprios compradores nos
achavam educados e prestativos. Além de nós quatro, também havia
outros carregadores adultos e rapazes. Alguns deles nem nos olhavam. Às
quintas-feiras eu ia dar uma mãozinha ao Polaco e também nos domingos
à tarde, após o mercado fechar. Num domingo, quando cheguei no Polaco,
ele me informou que aquela moça que um dia havia me levado de carro
junto com o guri, estiveram à minha procura na quarta-feira anterior. Fiquei
muito contente e no mesmo domingo, antes de escurecer, eu disse ao
Polaco que iria visitar meus amigos. Dona Elga me penteou, colocou
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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vaselina nos cabelos e me botou perfume. Ao chegar na casa de Efraim,
quem me recebeu foi uma das empregadas, que me informou que eles
tinham ido passear num cidade chamado La Cumbre, um lugar muito frio,
onde eles costumavam passar os três meses de férias escolares e
voltariam só depois do Natal. Ela também me disse que eles tinham ido à
minha procura para me levar junto. Efraim tinha ficado muito triste por não
ter me encontrado. Fiquei um pouco sentido pelo desencontro, mas ao
mesmo tempo pensei: até que foi bom, porque eu não conseguiria ficar
três meses sem levar algum dinheirinho para casa, para ajudar a mãe.
Expectador escondido das touradas
Hoje calculo que já fazia uns cinco meses que carregava cestos no
mercado. Lembro que nas quintas-feiras, como tinha pouco movimento no
mercado, íamos na estação do trem carregar malas para ganhar uns
troquinhos.
Algumas vezes, hoje, sozinho em meu escritório, surge na minha
mente todo aquele passado, e fico pensando que, apesar de nós quatro
sermos tão pobres, éramos felizes. Às tardes, quando regressávamos para
nossas casas, estávamos contentes, cada um de nós levava frutas,
verduras e até pedaços de carne. Nós não pedíamos, nos chamavam e
nos davam, e nós regressávamos felizes para nossas casas, brincando
pelas ruas. Aos domingos, quando tinha touradas, nos encontrávamos na
praça de touros, e como esta era feita de taquara, conseguíamos entrar
por uma brecha aberta por nós e assim podíamos ver toda a corrida sem
pagar, na parte debaixo dos tendidos, suportando a sujeira que caía dos
sapatos dos espectadores. Um dia, no momento mais emocionante da
corrida, e quando estávamos distraídos, dois caras nos pegaram e nos
levaram numa sala que servia de escritório. O diretor nos fez várias
perguntas: onde morávamos, o que fazíamos, se estudávamos... Após
todas estas perguntas, nós morrendo de medo, respondemos a todas, e
ele nos disse: – Aos domingos, quando houver touradas, vocês entram por
aqui, pelo escritório, e veem a corrida acomodados, sentadinhos. Ele não
nos xingou, só nos disse que não entrássemos mais por aquele buraco
porque alguém poderia nos ver e fazer o mesmo. As temporadas taurinas
começavam em dezembro e terminavam em fevereiro. Durante o resto do
ano, as touradas eram esporádicas, se apresentavam novilheiros do
Município, do Estado, ou de outros estados, mas eram principiantes.
Um dia, estávamos tomando café na barraca da preta velha, era
assim que nós chamávamos a dona, quando vimos chegar os dois homens
que nos pegaram vendo a tourada embaixo dos tendidos. Levamos
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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tremendo susto, eles, muito sorridentes, nos cumprimentaram, nos deram
até a mão e nos perguntaram se já tínhamos pago o café. Respondemos
que não, então um deles disse: – O café é por nossa conta, quanto é,
senhora? – Dois e cinqüenta cada, então são dez centavos, e pagaram.
Nós ficamos caladinhos, em seguida um deles, dirigindo-se a nós,
enquanto o outro pedia dois cafezinhos à preta velha, que estava atenta
nos cuidando, nos disse: – Lembram-se do diretor da praça? – Sim,
respondemos. – Ele mandou perguntar se vocês gostariam de limpar a
praça de touros após as corridas, ele lhes paga dez centavos para cada
um. Nós tínhamos uns rapazes, mas às vezes não apareciam e o chefe
brigou com eles e nos mandou procurar vocês. Também mandou dizer
que, mesmo que vocês não queiram, podem continuar vendo as corridas.
Nós nos olhamos, mexemos as cabeças de forma afirmativa e
respondemos para eles que sim. Pagaram os cafezinhos e se despediram
dizendo: – Então, no domingo nos encontramos? – Sim, sim...
No domingo, antes das 13 horas, os quatro amigos estávamos na
praça de touros. Terminada a corrida e orientados para o serviço que
devíamos fazer de vassoura na mão varríamos e limpávamos os tendidos,
e por último a arena do redondel. Os monosábios são os trabalhadores
que cuidam dos touros que vão ser toureados, colocam as rosetas,
substituem os touros que não reagem na arena e os que são mortos. Em
todas as corridas sempre são lidados quatro touros e no caso de um não
ser brabo há mais sobressalentes. Terminada a corrida, e após todos
terem ido embora, inclusive os empresários e diretores, e enquanto nós
limpávamos os tendidos, os monosábios tiravam um dos touros
sobressalentes e começavam a tourear. Faziam todo tipo de faenas,
banderilhas e até simulacro de morte, quando este estava bem cansado
soltavam outro touro e a história se repetia. Como não podíamos limpar e
nem emparelhar a areia, ficávamos olhando eles tourear, depois eles nos
ajudavam a fazer o trabalho.
Com o passar do tempo descobrimos que isto, que eles faziam
depois das corridas com aqueles touros, lhes servia de prática. Nos
domingos, quando não havia touradas na cidade, eles iam nos povoados
proximos organizar corridas e se anunciavam como grandes novilheiros,
que tinham toureado em vários países, inclusive na Espanha. Na
propaganda eram grandes matadores de postim, prestes a receber a
alternativa, ou seja, o título de toureiro.
Algumas vezes eles retornavam alegres porque lucravam um bom
dinheiro e outras vezes mal e mal lhes sobrava para as passagens. Um dia
Lorenzo, o chefe dos monosábios nos procurou no mercado e pediu para
abrirmos o portão da praça para um espanhol que dava aulas de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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tauromaquia a vários alunos, homens e mulheres, todos entre quinze e
dezesseis anos. As aulas eram dadas na própria praça, com todas as
formalidades, como se realmente fosse uma corrida normal. Como não
haviam touradas programadas eles foram organizar um festival taurino
noutra cidade, um pouco distante ao nosso.
Então, no dia marcado e um pouco antes da hora, abrimos o
portão, em seguida os alunos começaram a chegar, entre eles duas
meninas. Logo o espanhol também chegou, acompanhado de outro
senhor, que tirou de um quarto uma armação de madeira com uma roda de
bicicleta imitando um touro, tinha cabeça e chifres de touro, o corpo era
uma lona imitando a cor. O morrinho era uma bola de alcatram onde eram
colocadas as banderilhas. O companheiro do espanhol sabia de cor os
movimentos e as investidas de um touro bravo, desta forma os alunos
aprendiam a arte da tauromaquia. Eram orientados pelo espanhol de como
deveriam pegar o capote, a forma de se perfilar, como ludibriar o touro e
saber correr para os burladeiros, enfim, tudo o que era relacionado para
tourear um touro bravo durante meia hora.
Quando o aluno fazia uma faena errada, esta era repetida até
acertar a forma correta. O espanhol gritava Olééé...! A disciplina era
parelha, tanto para os homens quanto para as mulheres. Eu estava feliz,
observava tudo de forma minuciosa. Ultimamente eu chegava primeiro,
abria a praça, para poder praticar sozinho, depois abria o portão e
esperava os alunos e o espanhol. As aulas eram as quintas e segundasfeiras e eu estava sempre presente. Já tinha me tornado amigo do
espanhol, do ajudante e dos alunos.
Quando terminavam as aulas e os alunos iam embora, eu ajudava
o espanhol e seu auxiliar a organizar os trastes e a emparelhar a arena, e
também a colocar o papel colorido nas banderilhas, que de tanto praticar,
se rasgavam e o espanhol gostava de tudo organizado, para que na hora
de dar as aulas tudo parecesse uma autêntica corrida. O espanhol me
disse que era de Jerez, Espanha. Um dia, conversando com ele, lhe contei
tudo o que o Antônio tinha sido para mim e as saudades que sentia dele.
Certa vez o espanhol me convidou para ir almoçar na sua casa. Aquele dia
fui no mercado só na parte da manhã, meus companheiros concordaram
em atender minhas freguesas. Esse dia a mãe me vestiu com o melhor e
mais novo shortezinho feito por dona Elga. A tiracolo levava a minha
inseparável bolsinha com os utensílios de higiene.
Na hora e lugar combinado o espanhol chegou num coche, ao
mercado, onde tínhamos acertado o encontro. Uma vez no coche, ele me
perguntou o porquê de lhe esperar no mercado. Contei-lhe que era porque
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no mercado eu ganhava uns troquinhos carregando cestos para os
fregueses. Lembro que ele me abraçou, me passou a mão nos cabelos,
me apertou contra seu peito e disse: – És um homem!
As agruras na casa de um aristocrata
Como é que posso esquecer aquele abraço amigo da minha
infância e naquela pobreza. A sua casa era bonita, num bairro
aristocrático, as grades eram de ferro forjado tipo colonial e no jardim havia
muitas folhagens, a grama era bem aparada, a porta de entrada era de
madeira com altos relevos também artísticos coloniais. Ao entrar na casa,
nos recebeu uma senhora muito bonita, bem vestida, muito perfumada,
que me abraçou e em seguida disse: – Seja bem vindo! Meu marido tem
falado muito do amiguinho Ortega. Pegou-me pela mão, não antes de dar
um beijo no marido, e me levou para a sala. Ele falou para ela que queria
me levar ao gabinete, ela concordou, e ao se retirar nos disse: – Ainda
falta um pouco para o almoço. Antes de chegar no gabinete, atravessamos
uma ampla sala onde havia sofás, pufes, mesinhas de canto com abajures
e uma mesa central em madeira e toda caprichosamente esculpida, o
lustre central era todo de bronze. Tudo naquela sala era muito bonito para
mim, um lindo tapete cobria toda a sala. Ao entrar no gabinete, o que
primeiro me chamou atenção foi um traje de luzes azuis com bordados
dourados e alguns salpiques vermelhos, era lindo demais para os meus
olhos. Numa vitrine havia um par de sapatilhas, uma monteira, e colocados
em pé dois estoques, havia também três rabos e várias orelhas de touro,
todas empalhadas. Nas paredes estavam pendurados vários quadros onde
se podia ver o amigo espanhol toureando.
Tudo era organizado neste gabinete, os jornais, que eram muitos,
estavam colados em papelão e em forma de livro. Um único quadro
pintado a óleo mostrava o amigo com a muleta num lindo trincheraço, esta
vista também estava num dos jornais, repetida de vários ângulos. Em
alguns dos jornais podia se ver o momento da estocada e a morte do
touro. Havia recortes de jornais de diferentes lugares mostravam-no dando
a volta ao ruedo, os troféus ganhos. Tinha jornais da Espanha, Portugal,
México e também da Colômbia. Eu me sentia no paraíso vendo tantas
coisas lindas e tão bem organizadas. Capotes pendurados, muletas,
rosetas, banderilhas, lenços grandes e coloridos, pentes, leques grandes,
tudo isto estava neste gabinete. Num quadro grande que estava em frente
à porta de entrada via-se uma linda Magnola, toda sorridente, o rosto me
parecia familiar. Perguntei para o amigo quem era ela, ao que ele me
respondeu: - É a minha mulher, aquela que conhecestes agora mesmo.
Essa foto foi tirada num festival taurino na praça de Santa Maria, era um
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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festival beneficente, foi ali que conheci minha mulher. No baile após a
corrida, dançamos a maior parte da noite e foi a minha melhor conquista,
tudo isto que estás vendo foi vivido a seu lado. Noutra foto estava um
casal de jovens e, antes de lhe perguntar quem eram, ele me disse: – Eles
são nossos filhos. Estão na Espanha. O filho estuda e ela está casada e
espera um filho. Foram na frente para mandar consertar, pintar e organizar
a nossa casa que ficou muito tempo desocupada. Enquanto esperamos a
conclusão das obras este é o nosso santuário, é aqui que eu e a minha
mulher nos sentamos a relembrar o passado, os momentos felizes. Cada
uma destas peças que tu estás vendo tem uma história. Nesse momento a
senhora se apresentou à porta e nos disse: – Vamos! Pedi licença para me
lavar as mãos. Que banheiro! Até aquele momento era o mais lindo que
tinha visto. Indo para o comedor, passamos por uma sala estreita,
pequena, bem iluminada, onde estava a imagem de uma santa, ele me
disse: – Esta é a Virgem de La Macarena, padroeira dos toureiros. Ele se
abençoou e eu também.
Antes de chegar ao comedor comecei a pensar: e se me servem
um pedaço de carne igual àquele que me serviram na casa do Efraim, será
que me aventuro a cortar? A filha do Gratiniano sempre que eu ia à casa
deles me ensinava a comer com garfo e faca, só que lá, qualquer erro era
motivo de risada, porém naquele comedor, com aquela toalha branquinha,
guardanapos bordados, talheres de prata, copos com desenhos de flores e
fadas, que provavelmente seriam de cristal, ali era diferente. Nunca
passou na minha mente que eu não era daquela sociedade, hoje, após
tantos anos passados, fico pensando porque seria que, apesar de ser um
negrinho miudinho, feio, e morador de uma das vilas mais pobres da minha
cidade, sempre me via sentado às mesas das mais altas sociedades,
mesmo com minha roupinha de fazenda barata? O que sempre ouvi foi: –
Ele é uma simpatia e tem um lindo sorriso. Continuemos, eu via todo esse
luxo, essa beleza, porém no meu interior permanecia aquele pedaço de
carne, como deveria cortá-lo, e se saltar longe? Que vergonha! Não,
melhor não me aventurar e tornar a dizer que não gostava de carne. E se
vier com aquele aroma provocativo? Que tristeza não o comer, pensava,
se consigo sair desta, vou comprar um garfo e uma faca, praticar bastante
para não me ver nestes apuros. Falava a respeito de touros com o amigo
quando a esposa entrou com uma sopeira fumegante, com um aroma para
mim desconhecido e gostoso, além de tudo, a sopeira era uma peça
bonita, cor marfim, com desenhos em alto relevo em cores azul e
vermelho. Ela me serviu primeiro e depois o marido, era um creme
gostosíssimo. A primeira colherada me trouxe à mente a minha mãe, meus
irmãos, que comidinha estariam comendo, e eu, quem diria! Tentou
manifestar-se-me um começo de pranto, que consegui superar sem eles
sentirem e continuei saboreando meu delicioso creme. Da cozinha vinha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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um cheirinho gostoso, mas aquele pedaço de carne me atormentava, o
cheiro era igual ao da casa de Efraim.
Antes de nós terminarmos de comer o gostoso creme ela se
levantou e foi em direção à cozinha que estava ao lado do comedor.
Quando ela se levantou, me correu um frio para baixo do peito, passando
pelo estômago. Ela não demorou e entrou trazendo um tacho de cobre, e
ao colocá-lo na mesa me perguntou: – Ortega, gostas de paella?
Respondi: – Nunca comi, mas eu gosto de tudo. Ela me serviu, que alívio,
não era aquela carne que tanto me perseguia. Comecei a comer, que
coisa boa, camarões grandes, mexilhões, peixe, tinha de tudo quanto era
frutos do mar, me grudei a comer que nem fiz questão de outros pratos
que ela nos serviu, ela me repetiu a paella e eu aceitei, que alívio, fácil de
comer com garfo. Enquanto comíamos, conversávamos, ríamos, eles me
perguntavam e eu respondia.
Depois do almoço passamos para a sala, que gostoso sentir a
maciez daquele sofá, os dez minutos do Antônio se manifestaram com
força, a salvação foi um chá de jasmim que a senhora nos trouxe,
passando o dito sono. No meio da conversa ela me disse: – Ortega, vou te
fazer uma pergunta, me diga, noutro dia saiu no jornal um menino Ortega
que sobreviveu no acidente de um ônibus. Antes de ela terminar a
pergunta respondi: – Sim, era eu e contei toda a história, eles vibraram me
ouvindo, lhes contei do senhor chorão que também se salvou, falei de
como as enfermeiras e os médicos me tratavam, dos cigarros, da lata com
comida que não se perdeu, eles queriam saber tudo. Quando lhes estava
contando que a minha tia Otilia me eliminava as cicatrizes com urtiga,
bateram na porta, entrou uma senhora com uma pasta, o espanhol me
apresentou, lhe dizendo: – Aqui temos um futuro toureiro e com
sobrenome de toureiro famoso, Ortega. Ela disse: – Sim, já ouvi toureiros
com este sobrenome. O espanhol disse: – Na Espanha temos dois, no
México um, e aqui na Colômbia tem um e com este chaval, serão dois.
Ela sentou-se e a conversa mudou, abrindo a pasta lhes deu
notícias boas: – A casa foi vendida, e pelo valor acertado, aqui está o
cheque do arras e o restante vem na escritura, que demora de vinte a
trinta dias, terão que deixar tudo o que foi acertado, o resto poderá ser
enviado direto a Jerez através de uma companhia de navegação, eles se
encarregam de empacotar e entregar no lugar indicado. À medida que
falava, lhes ia entregando documentos, por último lhes disse: – Num
edifício do centro tem vários apartamentos mobiliados, cobram por dia. Eu
estava caladinho, ouvindo e fazendo conjecturas. Após entregar os
documentos e dar informações, a senhora despediu-se. Uma vez a sós, a
esposa dirigiu-se ao marido e lhe disse: – Amor, graças a Deus que está
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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tudo dando certo, estou com muitas saudades de nossos filhos, quero
estar presente ao nascimento do meu neto ou neta, seja lá o que for, quero
ver minha família, a nossa casinha. Ele, com muito carinho lhe disse: – Já
falta pouco, meu amor. De novo nós três continuamos conversando, num
momento oportuno lhes perguntei: – E quando vocês vão embora? Ele me
respondeu: – Quando meus alunos tiverem enfrentado os primeiros touros,
eles praticamente já estão em condições, daqui a uns quarenta dias vamos
ter uma tenta na fazenda de um conterrâneo meu que cria touros de casta,
é perto daqui, são touretes de dez meses a um ano, vai ser a primeira
tenta deles, devem ser uns vinte e cinco animais, e tu também vais
tourear. Um ou dois, todos vão tourear, minha mulher também.
Ele ficou um pouco pensativo e em seguida me disse: – Ortega,
será que tu poderias pedir as chaves a Lorenzo e abrir o portão da praça
nas terças e quintas? É que os alunos chegam às 14 horas e eu só
poderei estar depois das 15 horas. Como sou o Presidente da Casa de
Espanha, e como vou embora, estou apresentando as contas à diretoria e
passando a presidência ao vice. Eu tinha um rapaz que fazia este serviço,
só que ele desapareceu, pagarei o mesmo que pagava para ele. Era
impossível não aceitar. Achei que estava na hora de ir embora. Ao me
despedir, ela me entregou um pacote e disse: – Leva essa paella para tua
mãe. Fiquei feliz. Saí com o espanhol, ele queria me mostrar o serviço a
ser feito na praça antes dele chegar, depois queria me levar em casa, mas
eu pedi que me deixasse no mercado porque tinha que pegar a minha
bicicleta. No mercado me encontrei com o Carlos que insistiu para que eu
pegasse o dinheiro pago pelas minhas freguesas, terminamos dividindo,
embora eu não quisesse nada. Contei-lhe todo o acontecido na casa do
espanhol, e o que tinha visto, e o serviço que ele tinha me dado. Ele
prometeu que atenderia minha freguesia nesses dias. Nas terças e nas
quintas eu esperava os alunos na praça com tudo organizado,
imediatamente as aulas começavam dirigidas pelo homem que
movimentava o touro falso, eu também participava dos treinos. O que mais
gostava era de colocar as banderilhas que a maior parte das vezes
acertava e todos batiam palmas.
Antes de continuar, quero lhes dizer que a paella foi uma festa lá
em casa, a única que ganhou um prato também foi a mãe de Romélia, o
resto fomos nós que comemos. Eu percebia que o espanhol gostava de
mim, todas as terças e quintas a esposa dele me mandava algum doce ou
salgado, que eu levava para casa e comia com a mãe e meus irmãos. A
minha rotina tinha modificado: na segunda-feira ficava todo dia no
mercado, na terça ficava de manhã, pela tarde ia abrir a praça, chegava
cedo, organizava e ajudava a controlar tudo até a chegada do espanhol.
Quando terminavam as aulas e todos iam embora, eu ficava guardando os
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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trastes e emparelhando a areia, o mesmo fazia na quinta. Na sexta e no
sábado, trabalhava todo dia no mercado, eram os dois dias que
ganhávamos mais, no domingo só trabalhávamos de manhã, na parte da
tarde nos reuníamos com os alunos do espanhol na praça para praticar.
Cada um por vez lhe tocava empurrar o carrinho “touro”. O que eu mais
gostava era aplicar as banderilhas, uma vez terminadas as práticas, todos
em conjunto organizávamos os trastes e emparelhávamos a areia, as
meninas também ajudavam.
Aos domingos, quando havia touradas, saía com meus amiguinhos
na parte da tarde diretamente do mercado à praça de touros para depois
da corrida limpar tudo.
Quase sempre após a corrida era solto na arena um touro
daqueles que era levado como sobressalente para a gurizada e adultos se
divertirem toureando, só que eu achava que quem mais se divertia era o
touro, porque a cada momento, o que a gente via era alguém voando,
outros o touro passava por cima, alguns já iam com seu capote e
conseguiam dar uns bonitos passes, e quando isso acontecia, todos se
retiravam para que o rapaz pudesse tourear, estes rapazes eram
chamados de espontâneos. Os monosabianos antes que o touro ficasse
cansado recolhiam-no para o touril e depois que todo mundo ia embora,
então éramos nós os toureiros, primeiro toureávamos um e depois o outro.
Eu me divertia aplicando banderilhas, meus amiguinhos só gostavam de
ver. O Carlos esperava que o público saísse, depois batia no portão e eu
abria, ele entrava e se sentava nos tendidos para nos ver tourear. Eu acho
que foi através do Carlos que a gurizada ficou sabendo que eu toureava e
aplicava bem as banderilhas.
O enfrentamento do touro
Numa quinta-feira após as aulas, o espanhol nos reuniu e informou
que dentro de quinze dias seria a tenta, onde todos teriam a oportunidade
de mostrar que sabiam tourear. Seria na fazenda de um amigo seu que
ficava a duas horas dali. Ele disse: – Gostaria que vocês convidassem
seus pais, que não ultrapasse de dois convidados, é tudo de graça,
sairemos no dia 18 de julho, dia 19 será a tenta, no dia 20 pátrio
passearemos pela fazenda, levem lápis e cadernos que lhes mostrarei
algumas características dos touros, de acordo com a posição dos chifres e
a forma de nos encarar. No mesmo dia 20, às 15 horas, estaremos de
regresso. Conforme combinado, o dia 20 será meu último dia com vocês,
mas gostaria de treinar mais na terça e na quinta-feira para ver o resultado
de vocês depois de estarem frente aos touros.
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Dois dias antes da viagem, recém que falei para a mãe, mas só lhe
disse que a esposa do espanhol tinha me convidado para uma festa numa
cidade perto dali, ela me disse: – Tá, meu filho, mas procure se comportar
bem direitinho. O dia chegou e todos enfrentamos os touros com
naturalidade, observando as orientações de nosso professor. Acostumado
com touros grandes como eu estava, aqueles terneirinhos não eram nada
para mim, é claro que só eu sabia atuar com o capote, fiz verônicas,
chiquelinas, gaoneiras, e com a muleta fiz passes de peito e até
trincherasos, apliquei dois pares de banderilhas. O espanhol e a esposa
eram só felicidade ao me ver fazer tudo aquilo, claro que ele não sabia que
eu já estava acostumado a tourear os touros do touril junto com os
monosábios depois das corridas. A esposa do espanhol também toureou,
também o espanhol, o dono da fazenda e os filhos. Eles elogiaram a
desenvoltura das meninas, ninguém, em momento algum, demonstrou
medo, todos pareciam já acostumados com os touros. O espanhol foi
felicitado pelo dono da fazenda pela eficiência dos alunos.
Antes de subir para o ônibus, quando todos estavam reunidos, o
espanhol nos disse: – Na terça os espero na praça, quero lhes corrigir
alguns pequenos erros, com isto não quero dizer que vocês fizeram mal,
ao contrário, tudo foi bem feito e me sinto feliz, são pequenas coisas para
o futuro de vocês. Também quero me despedir de vocês na própria praça
e com a presença da minha esposa, porque nos primeiros dias de agosto
estaremos partindo para nossa pátria, a Espanha. Vamos nos reunir com
nossos filhos e estar presente no nascimento do nosso primeiro neto, que
deve nascer no fim do mês de setembro. Agradeceu a presença dos pais
que acompanharam os filhos. Eu percebia o orgulho e a felicidade dos pais
ao ver a valentia, o estilo e garra dos filhos frente aos touros. O dono da
fazenda e os filhos nos colocaram à disposição a fazenda para quando
quiséssemos praticar. Dentro do ônibus, em direção a nossas casas, tudo
era alegria, risadas e comentários do touro que tocou a cada um, o barulho
era geral.
Na terça todos estávamos presentes, foram algumas poucas dicas
nos treinos, na quinta de novo todos estávamos na praça. O espanhol
felicitou um por um, repartiu os capotes e as muletas, a esposa que estava
presente pegou um pacote e me entregou, era um shortezinho e uma
blusa de seda, em seguida o espanhol abriu um capote novinho e me
colocou como capa e disse: – Esse é o teu. Depois tirou do bolso dez
pesos e me entregou dizendo: – Pelos serviços prestados e me disse:
continua que estás muito bem. Um dia quero te ver na Espanha na frente
de um miura. Abracei-o, depois fui abraçar sua esposa, que também me
abraçou e me deu um beijo na bochecha. Nesse momento bateram no
portão, era o pessoal da Casa de Espanha que vinha à sua procura para a
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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despedida, era também seu último dia como presidente da Casa de
Espanha. Ela de novo me abraçou e beijou dizendo: – Adios mi querido
Orteguita, me gustó haverte conocido, adios. Todos saímos para fora do
portão e todos batemos palmas no momento da partida deles, senti um
friozinho na barriga, uma sensação de tristeza e vontade de chorar. Que
pena, nunca mais soube deles.
A mãe estava feliz com os dez pesos, era mais um empurrãozinho
em casa. Continuei indo ao mercado às quintas. Até meio-dia na estação,
a tarde e no domingo também ia no Polaco, sempre eram três ou cinco
centavos que ganhava e trabalhava toda a semana. Quando tinha
toureada aos domingos os quatro estávamos lá para limpar a praça e eu
aproveitava para dar meus capotaços e colocar umas quantas banderilhas.
As lembranças
Surge-me na memória Evaristo e hoje tenho uma vaga lembrança
de como ele era conhecido na minha cidade. Lembro de algumas vezes,
quando estávamos pintando os fogões com Camacho, o dia em que
Chepe me convidou para ir com ele e o senhor Evaristo na carroça para
entregar dois sofás e outra vez quando fomos trazer bebidas para festejar
o dia do trabalhador, eles dois iam à frente e eu dentro da carroceria.
Apesar do tempo que já se passou vejo os dois, parecidos como duas
crianças, mexendo com todos os que eram conhecidos, cumprimentando
em voz alta e com piadinhas a todos, eram risadas após risadas desde
que saíamos até voltarmos. Evaristo tinha um carro muito bonito, só que
ele preferia andar na carroça com Chepe. Sempre falava: – Meu “FORD” é
para os domingos.
Tinha esquecido meus amigos, ocupado que vivia entre o
mercado, a praça de touros e o Polaco. Um dia, por acaso ou
impulsionado por alguma sensação, fui visitar Gratiniano, que no meio da
bagunça que a sua família fez com a minha chegada pelo tanto tempo
desaparecido, Gratiniano me disse: – Negrinho, teu amigo, o dono das
lojas, aquele que te deu o fogão, sabes quem é? – Sim, respondi, o
Evaristo. – Sim, ele mesmo, sabes que ele está muito doente, está
internado no hospital? Aquela notícia me caiu como uma pedrada na
cabeça. Gratiniano me mostrou o jornal onde estava a notícia, eu disse: –
Vou ao hospital para vê-lo. – A esta hora não te deixam entrar negrinho,
me disse Gratiniano. Despedi-me e saí correndo para minha casa avisar a
mãe que ia na casa do Chepe. Meia hora depois chegou Chepe, a primeira
coisa que me disse foi: – Nosso amigo está muito mal no hospital, agora
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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mesmo deixei a Eva em casa. A Lusdari ficou no hospital. Perguntei: –
Será que amanhã me deixarão entrar? – Entrando comigo, acho que sim.
No dia seguinte cedo eu estava na casa do Chepe. Coloquei a
minha bicicleta dentro da carroça, embora já tivesse tomado café na minha
casa, tomei de novo a convite de Chepe e Mercedes, em seguida saímos.
Primeiro Chepe teve de fazer duas entregas e depois nos dirigimos para o
hospital. Quando estávamos entrando no quarto onde estava Evaristo, nos
encontramos com seu filho caçula, o Luzio que ia saindo, e ao me ver com
Chepe, antes de o cumprimentar, num tom grosseiro, me disse: – Você
não vai entrar, vai incomodar. O pai está doente, volte para sua casa. –
Sim senhor, respondi tímido e humildemente. Até hoje me revolto só em
me lembrar da forma tímida como lhe respondi. Ele se dirigiu para o
subsolo pela escadaria e eu me dirigi para o portão de saída. Chepe me
alcançou e disse: – Volte Negrinho que ele não manda em você, em
seguida nos sentamos num banco do corredor.
Chepe me disse: – Esperemos, o doutor está no quarto de
Evaristo. Chepe tinha verdadeiro ódio de Luzio. Disse-me: – Negrinho, foi
bom você ter vindo, porque quando o Evaristo ficar bom, você vai trabalhar
conosco lá nas lojas, o próprio Evaristo me disse que ele gostava muito de
você e que o desejo dele era que você crescesse trabalhando nas lojas
para poder te ajudar. Negrinho, minha casa é tudo que eu tenho e foi ele
quem me deu. Espera, que quando Evaristo ficar bom, vai te dizer para ir
trabalhar com ele. Eles já tiveram várias discussões a esse respeito com
os filhos, por ele te querer por lá, eles em princípio não queriam, porém ele
lhes gritou: – Quem sempre deu as ordens do que tem que ser feito fui eu,
e continuarei dando e o Negrinho virá trabalhar aqui conosco sim
senhores.
Chepe continuou e disse: – Negrinho, eles não gostam de
ninguém, do que eles gostam é deles mesmos e do dinheiro que o Evaristo
lutou para ganhar junto com a Lusdari. Eles são uns crápulas e o que me
assombra é que a guria era tão meiga e desinteressada, mas casou-se
com o cara mais sovina que a terra há de desmanchar um dia e os outros
dois não sei como é que casaram com mulheres da mesma laia, são
orgulhosas, não gostam de pobre, o que não entendo é como eles
puderam sair tão diferentes desse par de velhos. O Evaristo e a Lusdari,
eu os conheço desde que chegaram aqui, trabalhadores incansáveis,
nunca foram miseráveis, não eram usureiros, quando vendiam fiado e a
pessoa não conseguia pagar, eles não se importavam, esperavam até a
pessoa poder pagar. Negrinho, eu comecei de guri a trabalhar com eles,
fazem uns quarenta e cinco anos. Evaristo e Lusdari têm sido meus pais, é
pena não poder dizer que aqueles merdas são meus irmãos. Paramos de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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conversar quando vimos sair o médico acompanhado de duas enfermeiras,
uma delas fez sinal para que entrássemos. Quando abrimos a porta e
Lusdari me viu, veio rápido, me abraçou e disse: – Negrinho, porque tu não
apareceste mais, ingrato? Lembro que eu não sabia responder. Em
seguida me disse: – Sabes que o Evaristo vai te levar a trabalhar nas lojas,
ele tinha falado com Chepe para um dia destes irem te procurar. Evaristo
me viu e a primeira coisa que disse foi: – Oh Negrinho, vem sentar perto
de mim! Sentei-me na cama e ele me passou o braço pela cintura e
perguntou: – O que estás fazendo? Contei-lhe do mercado, de Ocoró, do
Carlos, do Espanhol e quando falei dos touros ele disse: – Perigoso! Em
seguida me disse: – Assim que me levantar desta cama, tu vais trabalhar
conosco lá nas lojas, tu gostarias? Muito alegre respondi: – Sim senhor!
Pegou-me no braço e disse: – Nós vamos dar um jeito nesses olhos para
que consigas estudar.
Meu coração pulava de alegria, ele com carinho ficou me olhando
e disse estas palavras, (textualmente não me lembro) mais ou menos
começou assim: – Negrinho, tu vais crescer, serás um grande homem,
receberás honras e se continuares com essa meiguice, esse sorriso, essa
educação e simpatia, em todos os lugares onde chegares, serás bem
acolhido, e o mundo para ti será pequeno. A voz dele era muito fraca, não
era aquela voz de trovão que tinha quando andava com Chepe na carroça
mexendo com todo mundo. Lusdari me passou um copo de suco de
graviola, que eu adorava, e inconscientemente eu disse: – E para ele? –
Ele já tomou, e mostrou o copo ainda sujo em cima do bidê. Notei que ele
estava um pouco sonolento, Lusdari confirmou dizendo: – São os remédios
que está tomando, dormiu um pouquinho e acordou, me chamou, me deu
um beijo na testa, eu retribuí, dando um beijo no rosto e outro na mão, ele
sorriu, me deu um leve aperto na mão e em seguida pegou no sono, sua
respiração era ofegante, quase roncando.
Chepe se levantou, o cobriu com o lençol e com uma sutileza de
menino, lhe ajeitou os cabelos, cruzou os braços e o ficou olhando com um
olhar carinhoso. Evaristo se mexeu, abriu os olhos e com uma voz
entrecortada disse: – Dari, dá cinquenta centavos para o Negrinho. Lusdari
em seguida se acercou a ele, lhe deu um beijo, sim amor, eu dou,
imediatamente pegou a niqueleira e me deu todo o troco que tinha,
sessenta e cinco centavos, eu não queria pegar, mas Chepe interveio: –
Pega Negrinho, foi ele quem mandou. Peguei e guardei. Minutos depois
Chepe disse: – Vou embora porque tenho que fazer várias entregas,
vamos junto Negrinho!. Lusdari me apertou em seu colo e me passou as
mãos nos cabelos, eu prometi voltar no dia seguinte, ela me disse: –
Negrinho, se um dos meus filhos estiver aqui e te disser alguma coisa, não
faz caso, entra, é que eles são meio birutas. Pedi para o Chepe me deixar
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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no mercado. Contei para meus amigos que ia trabalhar nas lojas de
Evaristo. Quando contei para Carlos, Ocoró que estava ouvindo, começou
dizendo: – Aquele Evaristo é um homem muito bom, é humano, e mesmo
sendo rico, não é miserável, é um trabalhador incansável, é muito
conhecido e querido por todos os que o conhecem. Ele é de um povo perto
de minha terra, enriqueceu dando duro, a mulher e ele trabalhavam
parelhinho, coitado, que Deus ajude, ele há de ficar bom.
Eu não via a hora de chegar em casa e contar para a mãe que
Evaristo tinha me prometido trabalho em suas lojas, que era só ele sair do
hospital que mandaria Chepe me buscar. Quando contei para a mãe ela
ficou muito contente e como sempre, agradeceu a Deus e à Santa Sara
Kaly.
Enquanto estou escrevendo esta parte da minha vida vêm à tona
todos aqueles momentos vividos, lembrei que aquela noite me deitei
pensando em estar trabalhando, atendendo fregueses, ajudando a
organizar as mercadorias, vestido com o uniforme que usavam os
empregados, me deitei feliz. Sonhei que já estava trabalhando, orgulhoso
com meu uniforme feito por dona Elga, porque nas lojas não tinha o meu
tamanho. Vi o Dr. Corrêa na loja, me vi na casa de Gratiniano vestido com
o uniforme. Neste momento acordei, abri os olhos e vi que era só um
sonho, que pena! Mas não faz mal, quando o Evaristo ficar bom vou
trabalhar com ele, pensei, como me sentia feliz, não parava de contar para
a mãe que ele tinha me dito que quando eu crescesse iria receber muitas
honras, é claro que me lembro que não sabia o que era isso, e nem sabia
explicar para a mãe.
Após tomar café peguei a minha bicicleta e primeiro fui até o
mercado pedir para o Carlos e meus amigos atender os meus fregueses,
em seguida saí com destino ao hospital, pedalava cheio de alegria, sorria
sozinho, se alguém chegasse a me ver poderia pensar que estava doido.
Deixei a minha bicicleta com o zelador e subi correndo, não vi a carroça,
portanto Chepe não tinha chegado ainda. A porta do quarto estava aberta,
havia várias pessoas, ouvi o pranto de Lusdari, meu coração pulou, fui
entrando e abrindo caminho entre os presentes, quando a Lusdari me viu,
chorou mais alto, me apertou contra si e disse: – Negrinho, ele morreu!
Senti correr por todo meu corpo uma espécie de calafrio, as minhas pernas
ficaram bambas, se a Lusdari não me mantivesse apertado talvez eu
tivesse caído. Voltou a se formar aquele nó na garganta, sentia fogo nos
meus olhos, Lusdari chorava amargamente, não me largava. Chepe
chegou abrindo caminho bruscamente, e já perto de Evaristo, em voz alta
perguntou: – O que foi doutor? O doutor calmamente respondeu: – Ele
faleceu.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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A morte da mulher de Ocoró, aquela tragédia toda me foi contada,
eu não presenciei o pranto de Ocoró, de Carlos e de alguns familiares,
nada disto eu vi. A morte de Evaristo, o desespero de Lusdari, as palavras
de Chepe chorando eu presenciei. Agora que estou escrevendo aquele
passado, torno a ver e a sentir com evidência aqueles momentos, apesar
dos anos que já se passaram. Quando o doutor falou para Chepe: - Ele
faleceu, Chepe deu um berro: – Não, não, não pode ser, não Evaristo, não
faz isso comigo, por quê? Com as duas mãos pegou uma das mãos de
Evaristo e olhando para o corpo inerte, como se estivesse vivo, lhe dizia: –
Risto, tu tens sido meu benfeitor, meu companheiro, meu pai, meu amigo,
meu confidente. Nesse momento entrou em crise, em desespero, e
chorando mais forte gritou várias vezes: – Porque me deixas? O que será
da minha vida sem a tua companhia? Vendo o desespero em que Chepe
se encontrava, Lusdari chorando se acercou, e entre o médico e alguns
presentes, pegaram Chepe e o foram retirando. Lusdari com voz calma
falou: – Não adianta mais, ele já foi embora, tu perdeste teu amigo, eu
perdi meu marido, meu companheiro, o pai dos meus filhos. Deus nos dará
forças para suportar esta dor, calma Chepe, calma.
Lembro-me que vi entrar dona Mercedes, seu vestido era cor azul
marinho, sem mangas, nos ombros vestia um xale preto, seus cabelos
lisos estavam soltos e seus olhos vermelhos cheios de lágrimas. Quando
viu o estado em que se encontrava o marido, o abraçou, e soluçando
disse-lhe: – Velho, não adianta mais, ele nos deixou, Deus o chamou,
perdemos aquela jóia que nunca mais encontraremos outra igual.
Evangelina (Eva) e Nelson entraram choramingando igual que Mercedes,
tinham ouvido a notícia pelo rádio. A filha de vez em quando ajeitava os
cabelos de Lusdari e o Luzio também, idem o irmão, quando não lhe
arrumavam os cabelos, lhe secavam as lágrimas. Uma das noras trouxe
um jarro d’água com açúcar, deu um copo para Lusdari e outro para
Chepe, que com a cabeça encostada no ombro da mulher continuava
choramingando. Lusdari, sentada ao lado dele lhe segurava uma das
mãos. Eu, sentado num canto, observava todos os movimentos. Os filhos,
o genro e as noras limpavam as lágrimas e de vez em quando o nariz, os
que não queriam chorar tinham os olhos vermelhos, o médico num canto,
imóvel, estático, como petrificado com um olhar distante. Hoje, passado
tanto tempo é que consigo interpretar o olhar daquele médico, era um
olhar de derrota.
Através das notícias do rádio, a morte de Evaristo grassou por
todos os cantos e começaram a chegar coroas de flores com nomes de
firmas, de famílias, entidades, alcancei ler algumas que eram de grupos
escolares. Dois senhores chegaram com o caixão, dois enfermeiros que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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entraram junto pediram para as pessoas se retirarem, pois queriam limpar
e vestir o defunto.
Todos saímos. O corpo foi velado no prédio da esquina onde
tinham sido pintados os fogões. Já estava terminado, aquela esquina era
toda envidraçada, pintada, o piso tinha uma cerâmica muito bonita. Meu
estômago roncava de fome, sem me despedir de ninguém fui saindo de
mansinho, peguei minha bicicleta e fui para o mercado, dos sessenta e
cinco que Lusdari tinha me dado, cinquenta tinha dado à mãe e ficado com
quinze, fui almoçar na preta velha, meus companheiros já tinham
almoçado. Feita a refeição, depois do asseio e perfumado, fui ver Carlos,
Ocoró já tinha comprado o jornal e quando me viu disse: – Que pena,
morreu o velho! Na primeira página e em letras grandes estava escrito:
Morreu “Ernst Eckert”, mais conhecido pelo nome de Evaristo, casado com
Lusdari Edil Del Rio, tinha três filhos, dois homens e uma mulher, morre
aos 82 anos, era nascido na cidade de Dusseldorf na Alemanha, seus pais
emigraram para este país quando Ernst só tinha dois anos, seus pais eram
agricultores que se radicaram num povo a 90 quilômetros da cidade.
Evaristo e Lusdari se mudaram para a cidade após a morte dos seus
progenitores, trabalhadores incansáveis fizeram uma merecida fortuna,
filantropo, fez muitas doações e colaborava com muitas instituições, sua
felicidade era andar na carroça com seu inseparável amigo José, mais
conhecido como Chepe.
No jornal anunciava que seu enterro seria no dia seguinte às 10
horas. Como o cemitério era perto da nossa casa, minha mãe quis ir e
esperar na porta do cemitério, Romélia nos acompanhou. Era muita gente
acompanhando o enterro. Uma banda tocava músicas fúnebres, num carro
de bombeiros vinham pessoas idosas, noutro vinham crianças
excepcionais, a pé vinham alunos de escolas uniformizados, um grupo de
soldados e outro de policiais, vários padres e o sacristão rezavam. De
longe vi quando Lusdari descia dum coche chorando, também vi o Chepe,
estava transfigurado, inconsolável, chorava sem parar, vi os filhos com
suas esposas e a filha com o seu marido, todos vestidos de preto. Com
tanta gente, não vi quando saíram, regressamos para casa, me sentia
triste, desolado, pensava: se foi o meu sonho de trabalhar com Evaristo.
No dia seguinte saiu em todos os jornais a morte e o enterro, fotos
dele quando jovem, do casamento com Lusdari, da multidão que
acompanhou o enterro. Eu não sabia até esse momento que o Evaristo era
tão conhecido e que tinha ajudado tanta gente, e morreu justamente
quando queria me ajudar. Conheci-o quando estive auxiliando Camacho a
pintar os fogões, e isso fora há alguns meses. Segundo Chepe me contou,
ele queria me ajudar, sobretudo para curar meus olhos, queria que eu me
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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criasse trabalhando nas lojas, depois, no hospital, ele também me
prometeu isso, era só ele ficar bom. Queria era me ajudar, foi isso que o
Chepe me adiantou.
Após o enterro de Evaristo, voltamos, a mãe, Romélia e eu, me
sentia um pouco abatido, mas acredito que não era pela morte de Evaristo
e sim de ver o desespero de Chepe, dele chorar, de se lamentar, de ver
tanta gente chorando, lembro Lusdari tentando acalmar o Chepe, relembro
as palavras dela para ele: – Chepe, tu perdestes teu amigo, eu perdi meu
marido, o pai dos meus filhos! Não sei por que aquelas palavras ficaram
gravadas na minha memória. Uma vez chegando em casa, fui direto para a
cama, me sentia cansado, embotado, lembro que a mãe tentou me acordar
para jantar, mas eu não quis, e continuei dormindo. Alguns momentos
depois meu irmão Marino me chacoalhava, dizendo: – Mano, mano, vamos
jantar. Acordei-me, tinha dormido toda a tarde, estava escurecendo e
chuviscava, me levantei, jantei, ainda na minha cabeça rodeava toda
aquela bagunça daqueles dois dias, enquanto meus irmãos brincavam, eu
não tinha vontade, me deitei novamente, porém fiquei acordado.
A missa de sétimo dia
No dia seguinte continuei minha rotina, fui ao mercado, me faziam
muitas perguntas, respondia o que sabia, apesar de tudo sobravam
resquícios das sensações vividas naqueles dois dias. No domingo, como
não tinha touradas, fui para o Polaco ajudá-lo a organizar os parafusos por
bitolas, a passar a tarraxa e a lubrificar, tarefa muito importante, porque
era o que mais se vendia durante a semana. Eu estava com o avental de
couro que sempre usava quando trabalhava no Polaco, as minhas mãos
estavam sujas de óleo e acho que meu rosto também, quando me pareceu
ouvir uma voz conhecida, em seguida a voz da minha mãe que descia de
um coche, levei um pequeno susto. Vi o Chepe também descendo com
dona Mercedes, todos foram entrando, pedindo licença e cumprimentando.
O Chepe quando me viu disse: – Ele está bonito todo engraxado. E sem
me dar tempo para nada, me pegou no colo e levou correndo para o coche
dizendo: – Vamos que alguém quer te ver. A mãe e dona Mercedes riram
quando me viram no colo de Chepe, ele me colocou dentro do coche e ali
estava dona Lusdari, que devido aquele problema que tinha nos pés, não
desceu. Ela me pegou, me abraçou, e como se eu fosse uma criancinha,
me beijou. Eu tratava de abrir os braços para não engraxar sua roupa. –
Me abraça, ela me disse. – É que estou com as mãos sujas de óleo. – Não
faz mal, quero sentir esses bracinhos. Enquanto estávamos abraçados,
dirigindo-se à mãe que estava presente, disse-lhe: – Isabel, este seu filho
é uma jóia. O propósito da visita era para convidar-nos para ir no dia
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 187
seguinte a uma missa em homenagem a Evaristo, que estando vivo, faria
aniversário, depois da missa almoçaríamos na casa de Lusdari. A mãe
também foi convidada, mas respondeu que não poderia ir porque tinha que
entregar as roupas de uns passageiros, mas que eu iria. Ao despedir-se,
Lusdari deu cinco pesos de presente para minha mãe.
No dia seguinte Chepe me pegou em casa e fomos direto para a
igreja, a missa era exclusiva para a família. Quando chegamos, lá estavam
os dois filhos com suas esposas, a filha com seu marido, estavam dois
empregados com os netos de Lusdari, dona Mercedes, Eva e Nelson,
havia algumas pessoas conhecidas da família e outras que estavam só
para assistir a missa.
Uma vez terminada a missa fomos para a casa de Evaristo, só o
grupo que realmente pertencia à família. Um quadro grande com a foto de
Evaristo tinha sido colocado em frente à mesa do comedor. Chepe, que
sempre carregava Lusdari, a colocou em frente ao quadro, e ela começou
a falar: – Velho, hoje é o teu aniversário e estamos aqui reunidos para te
homenagear. Lusdari não conseguiu falar mais porque começou a chorar,
os dois filhos a pegaram e a sentaram à mesa. Chepe estava de pé em
frente ao quadro e olhando para ele, estava mudo, sentimos que não
conseguiria falar, de pronto, com uma voz trêmula, quase chorando,
começou a falar: – Risto, te lembra o ano passado no teu aniversário, a
farra que fizemos? Hoje, no teu aniversário, rezamos para que tenhas
merecidamente o Paraíso. Sentou-se à mesa chorando e a sua mulher
tentou acalmá-lo. No almoço pouco se falou. Uma coisa que notei foi que
os filhos de Evaristo, que nunca tinham falado comigo e nem me olhavam,
naquele dia me trataram com carinho. Um deles até me perguntou: –
Negrinho, o que tu fazes? Os três chegaram a conversar comigo, mas foi
só isso. Cheguei a pensar que eles iriam me convidar a trabalhar, mas
nada falaram. Chepe notou que eu estava louco de sono e se prontificou
me levar para casa. Todos se despediram de mim de forma carinhosa e,
ao me despedir de Lusdari, ela me deu cinco pesos.
No caminho, Chepe me contou que o Evaristo tinha deixado
assinado a sua aposentadoria. Tinha lhe deixado um dinheiro como
indenização por tempo de serviço e também a carroça e o cavalo. A
Lusdari lhe contou que Evaristo tinha feito isso a mais de um ano e
registrado em cartório. Perguntei se ele ia continuar trabalhando com eles,
Mercedes e Chepe me responderam em uníssono: – Não! Não vou
trabalhar com aqueles merdas. Agora eles estão bonzinhos, mas espere
que passem alguns dias, voltarão a ser os mesmos diabos, e para não ter
que dar uma surra num deles, não vou continuar. Deixaram-me em casa,
prometendo encontrarmo-nos a qualquer momento. Passada aquela
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 188
tempestade em que entrei de gaiato, continuei minha vida indo ao
mercado, na estação do trem, limpando a praça de touros com meus
amigos, e ajudando o Polaco de vez em quando. Às vezes visitava o Dr.
Corrêa e o Gratiniano, duas vezes por semana ia no Túlio receber aulas de
violão e quando tinham alguma festa me convidavam. Preocupava-me
sentir que o dinheiro que ganhava era pouco, alguns dias oito, outros dias
dez ou doze, nos domingos, quando havia tourada, ganhava mais dez
centavos e também aproveitava para praticar colocar alguns pares de
banderilhas e tourear um pouco aqueles touros que eram levados como
sobressalentes, no caso de algum sair manso, dos que seriam toureados.
Dificuldades financeiras
Eu notava que aquele dinheirinho que ganhava era pouco para
ajudar a mãe e sempre vivia pensando na forma de ganhar mais. Só que
me sentia um burro por não conseguir um meio de aumentar os ganhos e
amaldiçoava por não poder estudar, mas ao mesmo tempo pensava: se eu
não ajudar a mãe por estar estudando, quem a ajudaria, quem levaria
verduras, frutas e às vezes carne, que ganhava no mercado?
Para não dizer que nunca mais vi Efraim, num domingo à tarde,
quando cheguei no Polaco, ele me disse que o meu amiguinho tinha
estado à minha procura com a irmã, no sábado. Fiquei ajudando o Polaco
até às 5 horas da tarde, em seguida fui avisar à mãe que iria visitar o
Efraim. Quando cheguei na sua casa, todos me receberam com muito
carinho. Efraim me pegou pela mão e me levou para o seu quarto e em
seguida começamos a tocar as músicas que sabíamos. Quando
conversamos, me disse que na segunda-feira, ou seja, no dia seguinte, iria
para o internato e que só voltaria nas férias da metade do ano. Foi esta a
última vez que vi o Efraim naquele tempo.
Uma noite, quando nos reunimos, Carlos apareceu todo faceiro
porque tinha comprado um violão. Apresentei-lhe a Túlio, que se
prontificou a ensiná-lo a tocar. Eu continuava na mesma rotina, de casa
para o mercado e vice-versa. Aos domingos, quando havia corridas,
limpávamos a praça e eu ganhava mais dez centavos, fora dos cinco ou
seis que ganhava no mercado e também alguns troquinhos que o Polaco
me dava. Um dia, quando a minha mãe conversava com uma vizinha,
falavam de mim e ouvi a mãe lhe dizer: – Daqui a quatro meses o negrinho
vai completar onze anos. Não me importei com isso, também nem sabia o
mês.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 189
De vez em quando apareciam toureiros de outros lugares, uns que
se diziam ser de Portugal, outros eram mexicanos, e tratavam de imitar as
falas, ou venezuelanos, peruanos, espanhóis, etc.
Uma vez, apareceu um toureiro que dizia ser espanhol, tinha certa
quantidade de fotos e recortes de jornal dos países segundo ele dizia ter
toureado. Ele era baixinho, de cabelos ralos e eu me encantei com ele.
Lembrava-me do meu amigo espanhol de Jerez e, sobretudo, do Antônio.
Hoje, quando me recordo daquele senhor, acho que na realidade ele não
deveria ser espanhol e não poderia ter toureado em tantos países.
Interpretando sua pobreza, lembro que dormia na praça de touros, seu
travesseiro era o capote e o lençol eram duas muletas que tinha. Eu
estava encantado com ele, de manhã, antes de chegar ao mercado, lhe
fazia uma visita e encontrava-o tomando café preto, que ele mesmo
preparava, não tinha mistura. Ultimamente eu pedia para a mãe me enrolar
uma arepa ou alguns patacones para ele acompanhar o café. Ele não
comia, devorava tudo aquilo que eu levava. Um dia lhe perguntei por que
ele não ia ao hotel onde chegavam todos os toureiros, ele me respondeu
que todo seu dinheiro estava na Espanha e que já tinha pedido para lhe
mandarem um pouco, mas que o dinheiro estava demorando e que
enquanto esperava, ia levando a vida dessa forma.
Naquela época saiu nos dois jornais mais importantes da cidade,
algumas fotos dele toureando e anunciavam a futura corrida na cidade.
Certa manhã, quando cheguei para levar mistura para o café, estava com
ele um senhor forte, bem vestido, de terno escuro e de chapéu, que
fumava charuto ao estilo Churchill. Não demorou muito e o homem
guardou uns papéis numa pasta e se despediu. O dito espanhol o
acompanhou até o portão da praça e voltou correndo, todo alegre,
esfregando as mãos e me disse: – Ele é o meu empresário. Eu não sabia o
que era isso. Dias depois a cidade estava cheia de cartazes anunciando a
corrida do tal famoso toureiro espanhol. Também se escutava propaganda
nas rádios, e eu estava todo orgulhoso de ser amigo do dito toureiro. O
Lorenzo, monosábio, apareceu um dia no mercado para me convidar a ir
na praça de touros, a pedido do espanhol e do seu empresário. Uma vez
na praça, o espanhol e o empresário me receberam todos sorridentes. Foi
o espanhol quem falou, me dizendo que ele reconhecia que eu tinha sido
seu melhor amigo e que os monosábios tinham me recomendado como
bom nas banderilhas e por isso ele queria que eu fosse seu banderilheiro
nessa corrida e que talvez me levasse para outras corridas noutras
cidades. Aceitei imediatamente, me recomendou que não era bom falar a
ninguém para evitar problemas, porque eu era menor, também prometeu
pagar um peso e vinte centavos.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 190
A corrida por certo foi muito bonita, os toureiros foram Lorenzo,
tendo como monosábio um rapaz que tinha por apelido O Espontâneo,
Raul e Jair, que eram monosábios foram banderilheiros, e eu também, o
toureiro de cartel era o espanhol. Foi bastante aplaudido, os touros eram
bons e os soube aproveitar.
No dia seguinte, o espanhol, na hora de me pagar, fez uma
proposta na frente dos monosábios: – Ortega, tu és bom nas banderilhas e
gostaria que tu fosses meu sócio numa corrida que vou fazer no país
vizinho, os empresários seríamos nós dois, cada um entra com um peso e
setenta centavos e o lucro repartimos em partes iguais. Pode ser que
ganhemos cem pesos cada, pode ser duzentos, e até trezentos. Tu vais ter
que conseguir mais cinquenta centavos, e com este um e vinte que tenho
que te dar, completa o um e setenta, só que não podemos demorar muito.
Eu vou na frente e vou organizando tudo, de forma que quando chegares
está tudo pronto, vou encher aquela cidade de cartazes por todos os lados,
onde se lerá: – Grande apresentação do toureiro mais jovem do mundo,
Orlando Ortega. Falou-me tanto, e tanto me prometeu, que eu, muito
ingênuo, acreditei nele e comecei a sonhar com duzentos pesos de lucro a
mais para a mãe fazer uma casa igual a de Chepe ou a de Ocoró. Agora
só tinha que conseguir os cinquenta centavos que faltavam.
Naquela noite quase não dormi pensando em como arranjar
aquele dinheiro. Tirar um pouquinho do dinheiro que ganhava no mercado
demoraria muito, o máximo que poderia seriam dois ou três centavos e o
espanhol não iria esperar. Outra solução seria vender a bicicleta, porém,
por eu ser menor, dificilmente alguém compraria, e se pedisse para a mãe
vender, ela iria querer saber para que era o dinheiro. Penhorar a bicicleta,
não tinha recibo, não sei por que me acompanhava uma certa esperança
de alguma coisa. Um dia comecei a perguntar nas bicicleterias quanto
poderia custar a minha bicicleta. Uns me disseram quatro pesos, outros
cinco pesos, em uma que entrei, mais perto de casa, me encontrei com o
André que estava consertando um pneu da sua bicicleta. Ficou feliz
quando me viu. Uma vez pronta a sua bicicleta, saímos juntos, ao
atravessar por um campo, André encontrou uns amigos que estavam
jogando bola, e para mexer com eles, deu um forte chute na bola, que foi
parar embaixo de uma casa de madeira, construída do tipo palafita, muito
antiga, que não era muito levantada, deveria ser uns 25 centímetros.
O André ficou vermelho, ele estava vestido com uma roupa que
mais parecia um terno. Vendo o André naquele apuro, e como a minha
roupa era toda surrada, corri para tirar a bola. Fui me arrastando até tirar a
bola, vi que o piso da casa era de madeira e estava todo furado. Alguns
buracos eram tão grandes que cabia uma mão, dentro da casa funcionava
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 191
uma fábrica de picolé. Por uns buracos fiquei olhando e lá dentro vi um
senhor com botas de borracha e de avental preto. Ele puxava os picolés
de umas caixinhas e jogava numa caixa de madeira que estava no chão,
perto de onde eu estava. Não fiz caso e saí com a bola e André entregou
para os amigos que continuaram jogando. Sem subirmos nas bicicletas,
saí com André conversando. Ele me contou que quando tinha vontade de
comer picolé, ele entrava se arrastando até chegar ao buraco onde
estavam os picolés e quando o homem ficava de costas, mexendo com a
manivela de uma roda que estava dentro da caixa de água, ele aproveitava
para pegar uns dois ou três picolés dos que estavam enrolados, os
colocava dentro de uma bola furada que tinha consigo e depois ia ao
parque chupar seus picolés. Ele disse: – Quando tu quiseres, vem que eu
te mostro. Perguntei: – E a gurizada não vê? – Não, eles só jogam à tarde
e o fundo da casa fica para o campo e não tem porta nem janela, por isso
não tem perigo. Eu primeiro fico jogando com uma bola furada, depois dou
um chute para baixo da casa, aí eu me arrasto até chegar à bola e depois
aos picolés.
O André ficou na sua casa e eu continuei para a minha, sempre
com o pensamento nos cinquenta centavos: pedir vinte e cinco para o Dr.
Corrêa e vinte e cinco para Gratiniano, eles iriam querer saber para quê
era esse dinheiro. Vender o capote, mas me lembrei que o toureiro tinha
dito que era para levar o capote. A solução seria ir ao porto, só que agora
tinha que pagar a passagem, mesmo indo com um adulto, e eu não tinha
esse dinheiro. Ademais, o navio dos meus amigos não estaria ainda lá,
faltavam uns quinze dias para eles estarem no porto. O sono me pegava,
sempre pensando nos tais cinquenta centavos, como conseguir?
Regressava do mercado cedo e saía à procura de cobras, nessa
rota encontrava ninhos com ovos das galinhas, e como sabia quem era a
dona, ia e os entregava, só que desta vez me dediquei a procurar em
todos os ninhos que já conhecia. Em um deles encontrei uma galinha
ainda no ninho e fiquei esperando até que ela levantasse. Havia quatro
ovos, naquela tarde reuni onze ovos. Vendi para Gratiniano a um centavo
cada, em todo lugar custava dois centavos. Quando Gratiniano me
perguntou de onde eram, lhe disse que ia ganhar dois centavos por vendêlos e que eram de uma senhora que tinha muitas galinhas. No dia seguinte
encontrei só um ovo, que levei para casa, os onze centavos guardei junto
das mágicas, era pouco dinheiro e o tempo corria.
Naquela noite pensei: quem sabe se a solução não está nos
picolés, me lembrei que André tinha me dito que os guris só jogavam nos
domingos à tarde porque durante a semana estudavam. Decidi-me, na
quinta-feira, só que não iria contar para o André, deveria fazer tudo
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 192
sozinho. Peguei uma bola que eu equilibrava, tirei um dedal que tinha
colado e fiz um corte, nessa quinta-feira enquanto a gurizada estudava, fui
para o campo decidido a pegar os picolés.
Tudo estava em silêncio. Das casas que se encontravam retiradas
do campo tenuemente se ouviam barulhos, talvez de panelas e choro de
crianças, chegando bem perto do casarão se ouvia o ruído da roda movida
pelo homem dentro da água. Olhei para todos os lados, fiz de conta que
jogava bola sozinho, dei um chute e mandei a bola para baixo do casarão.
Em seguida, fazendo de conta que ia atrás da bola, entrei me arrastando
até chegar ao lugar da bola e onde estavam as caixas cheias de picolés.
Em uma das caixas os picolés já estavam enrolados. Deitado, e
pelo buraco fiquei olhando o movimento do homem naquele momento, e
como bênção de Deus, o homem tirou o avental e entrou no banheiro,
fechou a porta, e eu, sem perder tempo, comecei a puxar os picolés. Não
os colocava dentro da bola, mas sim no chão. Quando ouvi a descarga
d’água do wc parei, coloquei os picolés dentro da bola e saí o mais natural
e rápido que pude.
Fui para casa, sabia que a mãe andava entregando roupa, peguei
uma travessa enlouçada que a mãe tinha ganho da Elida, limpei os picolés
que estavam sujos de terra e contei, tinha vinte e dois. O preço do picolé
era dois centavos em qualquer lugar. Peguei a bandeja e primeiro fui na
Romélia, lhe disse que era uma fábrica nova e que tinham dado para
vender a um centavo cada. Comprou-me cinco, e entre os vizinhos vendi o
resto. Guardei o dinheiro junto com o outro, devolvi a travessa e fui para o
Polaco.
No domingo trabalhei no mercado pela parte da manhã, atendi
minhas freguesas, sempre com o pensamento nos picolés. Não almocei,
me despedi dos meus companheiros alegando que tinha que fazer um
serviço para a mãe. A bola eu já tinha levado enrolada e amarrada na
grelha da bicicleta. No armazém de Ocoró pedi uma caixa de papelão e
amarrei junto com a bola. Quando cheguei no campo, a gurizada estava
jogando, me desanimei um pouco, mas reagi imediatamente, tirei a bola e
comecei a chutar contra a minha bicicleta. Dei um chute forte proposital em
sentido ao casarão e a bola entrou lá onde eu queria. Um guri que estava
perto me olhando, quis entrar e tirar a bola. Não deixei, dizendo-lhe que ia
sujar sua roupa e que eu estava com roupa suja, ademais, lá embaixo
tinha até cobras. O guri ficou quieto e eu entrei rápido.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 193
Faltava ainda ir até o porto e lá ganhar para viajar ao lugar
indicado pelo espanhol. Na segunda procurei o espanhol para lhe entregar
o dinheiro, só que ao invés de lhe dar cinquenta, lhe dei quarenta e sete, e
prometi que quando ganhasse, lhe daria os outros três centavos. Aceitou,
inclusive me disse que achava que eu tivesse desistido e pensava em me
deixar o peso e vinte com Lorenzo. Em um papel me deu anotado como,
onde e de que forma poderia chegar ao local combinado e quanto me
cobrariam.
Conversamos mais um pouco, por último me pediu que, por favor,
não lhe deixasse ficar mal, lhe prometi que talvez até chegaria antes da
data da corrida. Ao nos despedirmos, me deu as dicas de como viajar num
navio escondido. Dinheiro para viajar ao porto eu já tinha, agora só me
faltava para viajar ao exterior, ou então viajar escondido. Só tinha dez
centavos, pensei em tentar a sorte no porto, o navio onde trabalhavam
meus amigos deveria chegar por esses dias, pensava a melhor e mais
rápida forma de chegar ao espanhol.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 194
5
FUGA PARA OUTRO PAÍS
N
o domingo houve corrida. Uma vez terminada a corrida eu com
meus amigos limpamos a praça, depois, indo para casa, decidi que
na manhã, segunda-feira, iria para o porto tentar embarcar de uma
vez por todas. Sabia que na segunda a mãe ia cedo entregar a roupa e
meus irmãos iam para a escola. Decidido, saí como se fosse para o
mercado e me escondi num lugar onde poderia ver a mãe passar com a
roupa que iria entregar. Não demorou muito e ela passou, quando vi que
estava distante, voltei para casa, escondi a bicicleta no meio dos tijolos
que eram para a construção, era um lugar que quase a gente nunca ia,
peguei dois baralhos, dois dedais, algumas moedas trucadas, alguns
shorts, cuecas, camisas, o capote e a minha inseparável bolsinha, coloquei
o dinheiro no bolso e saí correndo.
Em busca de dinheiro para a mãe
Quando cheguei na rodoviária um ônibus estava para sair rumo ao
porto. Comprei a passagem e sem nada de dúvida embarquei. Agora o
meu pensamento era no dinheiro que ganharia toureando, talvez cem
pesos, ou mais e quando voltasse para casa a mãe ficaria feliz recebendo
todo aquele dinheiro, e com ele, ela iria querer fazer uma casa igual a de
Chepe. Peguei no sono, sonhei toureando, sonhei repartindo o dinheiro
com o espanhol e ele me convidando para tourear em outro país, cheguei
até a sonhar entregando o dinheiro para a mãe, não senti a viagem.
Acordei com o barulho da chegada do ônibus na rodoviária, desci e
saí correndo rumo ao cais do porto, ia pensando se teria alguns navios. Se
tivesse, voltaria ao mercado e compraria bananas, e assim iria
aumentando o dinheiro, enquanto descobriria a forma de viajar. Tinha
vontade de procurar o Angelito, ele conhecia todo o movimento ali no
porto, inclusive ele já tinha viajado, e por dinheiro e cigarros ele me
ajudaria. Corria sempre, e de vez em quando trocava a minha sacola de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 195
ombro, mas não parava. Uma grande alegria embargou meu coração
quando de longe vi o navio onde trabalhavam meus amigos. Corri mais e
com mais vontade. O guarda que estava na portaria do cais era meu
conhecido e me deixou entrar. Perguntou pelas bananas, respondi: –
Primeiro vou cumprimentar meus amigos, depois vou trazer. Dentro do
navio, a alegria era total, tanto do pessoal de bordo como a minha. Após
cumprimentar os que encontrei, me dirigi à cozinha para cumprimentar
meu amigo, o italiano. Ele me recebeu com um abraço, enquanto
conversávamos eu lhe ajudava na cozinha. Na hora do almoço todos
queriam saber como era que eu tinha conseguido me salvar, lhes contei
todo o acontecido. Eles me disseram que antes de zarpar tinham escutado
a notícia, onde tinham dado o nome dos passageiros e ficaram sabendo
que eu estava entre eles. Todos ficaram muito tristes e o italiano tinha até
mostrado algumas lágrimas. Quando regressaram procuraram
informações, conseguiram jornais daqueles dias, onde tinham me visto e
ficaram sabendo que eu me salvara e todos comentavam e ficaram muito
contentes.
À tarde, enquanto o pessoal da limpeza limpava a cozinha, peguei
o baralho e comecei a ensinar algumas provas novas para meu amigo. Ele
me contou que fazia muito sucesso na terra dele nos bares com os
amigos, que ele lhes falava de mim e também para a mulher e para os
filhos. Muitos queriam que ele me convidasse para ir à Itália, e ele tinha
prometido de um dia me levar a passear para que eles pudessem ver tudo
o que eu fazia. Conversamos bastante, até que tive a oportunidade de lhe
contar do compromisso assumido com o espanhol e que eu queria ganhar
aquele dinheiro para que a mãe pudesse terminar a casa. Pedi-lhe se num
momento de folga ele não poderia ir até um navio daqueles que fossem
para aqueles lados ver se poderiam me levar cobrando barato. Ele ficou
pensando, depois me disse: – Nós vamos parar num porto daquele país e
zarparemos daqui a dois dias, atravessaremos o canal do Panamá e o
primeiro porto que o navio parar é o país que tu tens que estar, só que ali
tu vais ter que pegar um ônibus que te leve àquela cidade. Deu-me muitas
explicações, depois disse: – Eu vou falar com o imediato para que nos
facilite a descida nesse dia. Ofereci-me para ir lhe comprar bananas,
aceitou e me deu o dinheiro. Subi a estibordo e perguntei quem queria
bananas, é claro que todos queriam. Saí correndo a comprar, no caminho
pensava: que bom que não precisaria procurar o Angelito.
Ao regressar, o italiano me disse que o imediato tinha concordado,
só que lá, na chegada, tinha que descer do navio antes das 6 horas para o
Capitão não me ver.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 196
Escondido no navio
No dia que o navio tinha de sair o italiano aconselhou que me
escondesse no camarote dele. Lembro que naquela tarde fiquei escondido
debaixo da cama. De vez em quando dava umas cochiladas até que
comecei a ouvir ruídos de ferro, gritos, sinetas, correria e o navio se
movimentando. Algumas horas depois, ouvi o ruído do apito do navio, e
minutos depois tudo ficou em silêncio. Olhei pela clarabóia e vi que as
luzes do porto se distanciavam, em seguida entrou o italiano e me disse: –
Já estamos indo embora, daqui a três dias tu estarás na terra que te
sagrará toureiro, gostaria de te ver toureando, fazes tantas coisas, imagino
como serás toureando, pena que não posso parar de trabalhar por uns
dias, preciso do dinheiro para sustentar minha mulher, dois filhos e minha
mãe, mas não faltará oportunidade. Pediu-me para ficar dentro do
camarote e tratar de não fazer ruído, sempre me levava o almoço, lanche,
café, quase não conseguia comer tudo o que me levava. Todos os dias ele
madrugava para preparar o café da tripulação, o camarote ficava perto da
cozinha, depois do café começava a preparar o almoço e para que eu não
ficasse aborrecido, me levava bacias cheias de batatas para descascar, ou
cenouras, beterrabas, picar temperos, tirar as impurezas do arroz, do
feijão, lentilhas ou grão de bico, com este serviço eu me distraía e o tempo
passava rápido.
No dia seguinte à partida e após dormir meus dez minutos,
comecei a olhar pela clarabóia do camarote que ficava na popa e vi aquela
imensidão de água onde não se via nenhum pontinho preto. Deu-me uma
espécie de desânimo e comecei a pensar, se este navio começar a
afundar para que lado é que a gente toca? De tanto olhar para fora fiquei
meio mareado e fui me deitar. Comecei a me lembrar da minha mãe, dos
meus irmãos, de Romélia, de Carlos, dos meus amigos do mercado, era
melhor estar lá do que estar indo quem sabe onde, a um lugar que nem
sequer eu conhecia. Quem sabe se a minha mãe estaria me procurando,
porque não avisei nem para o Carlos, ou ao menos aos guris do mercado?
Estava me arrependendo do que tinha feito, porque não falei para alguém?
Peguei no sono, sei que sonhei, porém não me lembro o quê, me acordei
quando o italiano entrou para me levar um lanche e ao entrar disse: –
Vamos, toureiro, alimentar este cadáver para poder enfrentar os touros.
Levou-me grostolis, chocolate com leite e queijo. Quando ele saiu comecei
a pensar: se eu ganhar aquele dinheiro toureando, minha mãe e os meus
irmãos também irão comprar salame e presunto, tudo aquilo que eu como
aqui eles também irão comer, devo ter paciência, o tempo corre depressa
e daqui a pouco já estarei toureando e voltando para minha casa e com
dinheiro.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 197
Devo lhes dizer que dentro do camarote não tinha banheiro, este
estava na frente, e para evitar sair fora do camarote, o italiano me levou
uma lata onde fazia as minhas necessidades durante o dia; à noite, após
às 22 horas, quando tudo estava calmo e muitos dormiam, então saía,
esvaziava a lata, fazia cocô e tomava banho. Lembro a tarde em que o
italiano entrou no camarote e me disse: – Estamos atravessando o canal
do Panamá, chegaremos ao porto aí pela uma hora da madrugada, quer
dizer que amanhã mesmo deverás te encontrar com teu amigo.
Noutro país: a ilusão
Realmente, às 5 horas e trinta minutos da manhã, desci do navio
acompanhado do italiano que me levou até o portão do cais. O guarda era
conhecido, o cumprimentou, enquanto lhe dava uma carteira de cigarros,
em seguida me disse: – Bata forte na porta da lavanderia e diga para o
homem que precisamos da roupa para hoje mesmo, sem falta, e volta
rápido para tomar café. – Sim senhor, respondi, e saí correndo, tudo tinha
sido anteriormente combinado. Seguindo a orientação que ele tinha me
dado, quando cheguei na rodoviária, com o dinheiro da moeda nacional
que o italiano tinha me fornecido, comprei a passagem. No terminal me
informaram que o ônibus sairia às 9 horas. No bar do terminal tomei café e
depois me sentei a esperar, apesar de estar feliz, meu coração dava de
vez em quando uns pulinhos. A forma da gente se movimentar, o jeito de
falar, tudo me era estranho, ficava olhando e prestando atenção para o
que e como falavam, me lembrava de quando andava com o Manolo, que
em cada cidade que chegávamos era o mesmo e aqui tudo diferente.
O ônibus saiu lotado, era um carro velho, a estrada era sem asfalto
e toda esburacada, a carroceria batia tanto que parecia que ia se
desmanchar. A maior parte dos passageiros ia descendo, foram poucos os
que chegaram na rodoviária. Em seguida me acerquei do motorista e
perguntei-lhe onde ficava a praça de touros. Ele me olhou meio surpreso, e
como que me questionando repetiu: – Praça de touros? Desceu do ônibus
e perguntou para um senhor que ali se encontrava: – Aqui tem praça de
touros? O homem ficou pensando e em seguida respondeu: – Só se for
aquilo que resta e que parece que foi uma praça de touros. Indicou-me
como deveria chegar lá. Ainda tinha esperança de me encontrar com o
espanhol, mas olhava para todos os cartazes das paredes e não via
nenhum que anunciasse a corrida de touros e só faltavam cinco dias.
Calculo que caminhei umas dez quadras por uma fenda, não
estrada, mato de lado a lado, muito ruído de passarinhos e alguns ruídos
dentro do mato, seguramente de bichos fugindo da minha presença. Que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 198
tristeza senti quando dei com uma tapera que parecia ter sido uma praça
de touros de madeira, se viam pedacinhos do que teriam sido os tendidos,
pedaços de paredes da frente de madeira com uma pintura azul, que mais
parecia cinza de tão desbotada, e em volta de todo esse destroço só mato,
nenhuma viva alma. Invadiu-me a desolação, triste, abandonado, roubado
e enganado, sem dinheiro para voltar para casa.
Tinha treze centavos colombianos, aqui o valor era a metade do
dinheiro que o italiano tinha me dado, me sobravam quatro reales. O
silêncio era total, a tarde avançava, onde dormir? E mais que tudo, o que
comer, tive vontade de chorar, mas o pranto não se manifestou, voltou a
lembrança da mãe, dos meus irmãos, nessa noite não teria com quem
brincar, minha amiga Romélia, a gurizada da vila, meus amiguinhos do
mercado, o Carlos, Ocoró que me tratava com tanto carinho, já fazia uma
semana que saíra da minha casa, que desaparecera, o que será que
estariam pensando Gratiniano, Dr. Corrêa, será que no bar já sabiam que
havia fugido? Coitada da mãe, como será que está se virando sem o
dinheirinho que eu levava todos os dias, meus pensamentos pulavam de
um lugar para outro, culpava o Antônio por ele ter ido embora, eu poderia
estar trabalhando com ele na serralheria. Em seguida o meu pensamento
pulou para aquele tal de toureiro, que se dizia espanhol, mas que eu tinha
minhas dúvidas dele ser espanhol, e agora eu confirmava, ele não podia
ser espanhol! Os dois que conheci foram meus benfeitores e queriam me
fazer o bem, e deste tal toureiro só tinha raiva de tê-lo conhecido, ele era o
causador deste aperto em que me encontrava, e pensava: será que ele
não estará ainda na minha cidade e dirá para minha mãe onde estou?
Será que ele não conseguiu viajar? Mas então porque não me avisou?
Mas em que praça ele iria tourear aqui, se não existe outra, a não ser esta
tapera? Depois de olhar por todo aquele mato, e às vezes gritar: espanhol
e só o eco me respondia, decidi voltar para a cidade, mas antes me
lembrei de colocar o remédio nos olhos, eu tinha trazido todas as bisnagas
do remédio, me sentei naquilo que parecia um tronco de árvore ali deitado,
coloquei o remédio e aproveitei para descansar um pouco.
Alucinação e novas amizades
Isto que vou contar parece exagero, mas na realidade me
aconteceu, se um dia você ler esta parte da minha vida e quiser acreditar,
será muito bom, e se não, paciência. O caso é que estando sentado no
tronco, e após colocar o remédio, tirei uma das sandálias para sacudir uma
sujeira que tinha entrado, e bati com ela no tronco, bati várias vezes, e
senti uma espécie de câimbra por todo meu corpo, olhei e me deu a
impressão de que o tronco se mexia. Para colocar a sandália botei a mão
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 199
no tronco e senti nele como que algumas escamas e parecia que se
mexiam, me levantei e fiquei olhando detidamente e vi que tinha dois
pequeninos olhos, e muito vagarosamente botava a língua para fora como
a de uma cobra. O susto que levei foi tremendo, peguei a minha trouxa e
saí correndo, e de vez em quando olhava para trás para ver se o bicho não
me seguia. Tal foi a corrida, que rápido já estava na cidade e ainda sentia
arrepio de lembrar que tinha estado sentado naquele sabe lá que bicho
era. Quando entrei na cidade, segui o caminho que o ônibus tinha feito em
sentido à rodoviária, porque na frente tinha visto um parque. Agora não
corria, caminhava, estranhei ver que a essa hora, em todas as frentes das
casas estavam colocadas latas de lixo, pensei, seguro aqui o carro do lixo
passa cedo. Distraído tentava não pensar em nada, já era mais da metade
da tarde, estava triste, cansado, assustado e com fome. Não sei por que
me lembrei que a mãe tinha me contado que aquela vez que adoeci
quando era criancinha, e como meu pai tinha que viajar, deixou o caixão
pronto, se caso na sua ausência eu morresse, e antes de sair me beijou,
dizendo estas palavras: Santa Sara Kaly, nas tuas mãos deixo meu filho,
salva ele ou lhe tira desse sofrimento, eu prefiro que ele não morra minha
Santa! E minha mãe me disse: – Quando seu pai voltou, a Santa tinha
ouvido sua prece, você comia e já até corria. Fiquei pensando: se a Santa
Sara ouviu meu pai pedindo por mim, será que ela também não me ouvirá,
ela que foi jogada ao mar numa barca sem remo, sem água e sem comida
e se salvou, será que ela não me salva desta situação em que me
encontro? Já enxergava o parque, queria chegar e me sentar. Ao me
aproximar de uma esquina vi em uma lata de lixo algo que me chamou a
atenção. Voltei, olhei para o interior da lata de lixo e vi dois plátanos
assados. Um estava inteiro e o outro não, olhei para todos os lados, como
não vi ninguém, peguei os dois e guardei na minha bolsa. No parque havia
um trailer para venda de refrescos a um real o copo, (equivalente a dez
centavos), peguei uma moedinha de meio real e perguntei para o homem
se me vendia meio copo. Sem me responder, pegou a moedinha, colocou
no bolso e me serviu o copo cheio. Sentei-me num banco perto dele, tirei o
plátano já começado, e que almoço mais gostoso! Enquanto tomava o
suco e comia o plátano, me veio à memória aquela carne que não comi na
casa de Efraim. Devolvi o copo, agradeci ao homem e fui me sentar um
pouco longe, satisfeito pensei: bom, a janta está garantida, me resta um
plátano, posso comer meio esta noite e o resto amanhã no café, agora me
faltava dormir aqueles dez minutos do Antônio.
Aqueles bancos eram de cimento, portanto duros demais, então
tirei meu capote, dobrei e me sentei sobre ele e peguei no sono. Não sei
quanto tempo dormi, me acordei com a conversa de uns rapazes que me
olhavam curiosos pelo capote, eram três, cada um estava sentado na sua
caixa de engraxate, ao vê-los não me assustei, abri bem os olhos e fiquei
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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olhando para eles. Dois estavam sem sapatos e um tinha uns chinelos
iguais aos que usava Chepe de sapatos cortados. Em seguida lembrei
deles, não tinha mais nem Chepe nem Mercedes, que será de Lusdari,
Eva e Nelson? Os rapazes me vendo tão quieto, um deles perguntou: – O
que é aquele pano vermelho? Respondi: – É capote de tourear. – E você é
toureiro? – Sim, respondi. – Só que aqui não tem praça de touros, outro
disse, parece que havia uma lá onde está a cobra gorda. Perguntei: –
Aquele bicho que parece um tronco de árvore é uma cobra? – Sim,
responderam. Disse-lhes: – Eu me sentei nela pensando que fosse uma
árvore caída, ela não fez nada, não pôde nem se mexer de tão gorda. –
Ademais, disseram eles, mesmo quando era magra não era venenosa.
Perguntei: – E como ela ficou assim? Um deles respondeu: – A gente não
sabe. O que temos ouvido dizer, é que o tipo dessa cobra é grande, como
de 3 metros, e é um pouco preguiçosa e dorminhoca, e o cheiro dela atrai
os bichos, que quando chegam perto dela, os come e pega no sono.
Dizem que naquele lugar tem tanto bicho, que ela ficou ali comendo e
dormindo, e como não se mexia foi crescendo e engordando, até ficar
daquele tamanho e não poder se mexer mais.
Continuamos conversando e familiarizados me perguntaram de
onde eu era, respondi que era colombiano, me perguntaram onde morava,
lhes disse que não tinha casa, que recém tinha chegado naquele mesmo
dia. Imediatamente se prontificaram a me levar num parque onde dormiam,
embaixo dos bancos, que naquele parque pouca gente ia. – Aqui neste
parque não dá, porque o guarda manda prender a gente, ele não gosta
que durmamos aqui. Com a companhia deles me sentia bem, olhava a
roupinha deles, toda surrada e me lembrava dos meus amigos do mercado
e a gurizada da minha vila. Eles começaram a falar do dinheiro que cada
um tinha ganho nesse dia, um deles me disse: – Se você não tem onde
comer nós o levamos lá na velha Georgina, ela nos vende comida bem
barato e também nos fia quando não temos dinheiro. Só ao Manoel que
ela não fia, porque não gosta de pagar, e o Biche também não lhe fia. O
Manoel alegou: – Sim, a Georgina e o Biche me fiam, só não paguei uma
semana porque tive que comprar um remédio para a minha mana que
estava doente. Um deles me perguntou se tinha dinheiro, respondi que
algumas moedinhas, e as mostrei. – É pouco, ele disse, mas a velha
Georgina igual lhe fia, ou até lhe dá de graça. Um deles disse: – Eu pago o
café, o almoço e a janta de amanhã, outro disse: – Eu pago tudo depois de
amanhã, e o terceiro disse: – Depois me toca a mim e assim nós vamos
turnando. Um deles me perguntou: – Sabe engraxar? – Sim, respondi. –
Nós vamos lhe conseguir uma caixa com o senhor Aristisaval e enquanto
não consegue freguesia nós vamos lhe ajudando com a comida.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Engraxate e malabarista
Com os novos amigos a tristeza foi embora. Notei que os amigos
tinham boa organização, quando passava alguém um deles lhe oferecia a
graxa, depois lhe tocava ao outro sem ninguém mandar e sem se atropelar
ou discutir. Chegou um momento que os três estavam engraxando, depois
um por um ia chegando onde eu estava, o último que chegou foi o Henri,
contente porque o freguês tinha lhe pago a mais, só porque ele tinha lhe
mostrado o que fazia com a mão e com os dedos. Em seguida começou a
fazer para eu ver, pegou o dedo polegar e o colocou bem horizontal por
cima da mão sem a ajuda da outra, depois pegou o dedo indicador e
dobrou a primeira falange também sem ajuda, em seguida juntou o dedo
anelar com o mingo e o do meio com o indicador e os abriu formando um V
bem aberto. Ele nos desafiava a fazer o mesmo, é claro que para nós era
difícil, eu me levantei e dei uma volta cambota total no ar e lhe disse: – Faz
essa aí, fiz mais duas vezes. Depois comecei a caminhar com as mãos,
subi no encosto do banco e dele pulei para o chão. Eu não tinha reparado
que muita gente estava prestando atenção e quando pulei do encosto
todos bateram palmas. Em seguida coloquei um pé no ombro até a nuca e
depois o outro e com as mãos pulava que parecia um sapo, todos riam e
aplaudiam, me lembrei de Manolo. Peguei minha bolsa, tirei o baralho e
comecei a fazer provas de mágica, meus amiguinhos me olhavam
sentados nas suas caixas de engraxar, em volta de mim tinha bastante
gente, homens, mulheres e crianças, e quanto mais riam e aplaudiam mais
gente chegava. Ouvi uma voz que disse: – Como ele fala bonito, seguro
que não é daqui, disse outro. Um senhor que estava de terno e gravata
perguntou para um de meus amigos: – Vocês são amigos dele? – Sim,
responderam os três. – E de onde é que ele é? Um respondeu: – Ele é
colombiano e é toureiro. – E com quem anda? – Sozinho! Uma senhora
disse: – Mas ele é uma criancinha! Quando terminei de fazer uma prova
com um dedal e enquanto o público ria e batia palmas, o senhor de terno
me perguntou: – O que anda fazendo por aqui meu filho? Sem saber o que
dizer, respondi: – Me virando. Em seguida ele tirou o chapéu e disse: –
Meus amigos, ele é nosso irmão, vamos lhe ajudar, olhem, ele é uma
criança que faz coisas bonitas. A maior parte dos presentes colocava uma
moedinha, ouvi a voz de Biche pedindo licença e me entregou um copo de
suco de abacaxi e disse: – Deve estar cansadinho e com sede. Não faltou
alguém entre os presentes que disse: – Você está certo Biche. O homem
que estava recolhendo o dinheiro pegou com muito carinho e virou o
chapéu com o dinheiro em cima da minha bolsa que estava no chão.
Agradeci-lhe e ele me disse: – Bonitos seus números! Sentei-me no banco
a tomar meu suco, meus amigos puxaram a bolsa com o dinheiro e pedi
para comprarem suco para eles. O Biche chegou com um jarro cheio e três
copos e nos disse: – A venda foi demais. Quando todo o público foi
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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embora comecei com meus amigos a contar o dinheiro e no final tinha o
equivalente a quarenta e oito pesos colombianos, ou seja, vinte e quatro
em dinheiro do país.
Dei para cada um o equivalente a cinco pesos colombianos,
pularam de alegria, me disseram que às vezes eles não conseguiam
ganhar nenhum peso na semana. Estava com fome, perguntei onde
poderíamos comer, me informaram que só comprando, porque não podiam
menores entrar sozinhos nos restaurantes que era proibido. – Aquele
chefe de polícia daqui é muito mau, ele quer que usemos sapatos, só que
não conseguimos reunir o suficiente para comprar. Alberto, o que tinha
chinelos, e que parecia dirigir o grupo, disse: – Eu vou lhe comprar a
comida. Eu disse: – Tem que ser para nós quatro. Pegou algumas moedas
e saiu correndo, quando regressou trazia uma caixa de papelão enrolada
em papel manteiga, com arroz, feijão, grão de bico preparado com bacon,
por certo muito gostoso, quatro batatas com casca e molho e também
quatro pedaços de linguiça assada. Colocamos tudo no papel, de boca
para baixo, e sobre a grama, como quatro irmãos, começamos a comer
com as mãos, porque não tínhamos talheres. Tirei o plátano que sobrara,
dividi em quatro pedaços e também o desaparecemos, eu não disse para
eles que tinha pego no lixo. Um cachorrinho, ao farejar a comida, deu fim
no que sobrou. Em seguida fomos para o Biche tomar suco, Alberto pagou,
eu não queria, ele falou que era o troco que havia sobrado, mandei repartir
entre eles.
De tudo isso me lembro como se fosse hoje. Biche já simpatizava
comigo, eu via que ele tratava bem meus novos amigos e eles também o
tratavam de igual forma. Como já era noite e o Biche estava fechando, eles
ajudavam, um trazia água da torneira, outro varria, e o outro ajudava a
lavar, eu só olhava, não sabia o que fazer. Ríamos e conversávamos,
Alberto disse para o Biche: – Nós estávamos nos programando para cada
um pagar a comida dele e ele terminou pagando e ainda nos dando
dinheiro, todos tiraram o dinheiro do bolso e mostraram para o Biche. Um
deles disse: – Nós íamos no doutor Aristisaval pedir uma caixa de
engraxate para ele e agora não precisa mais. – Sabem por que aconteceu
tudo isso, disse o Biche, é porque vocês estavam agindo de boa fé com
um garoto estrangeiro, por isso Deus os premiou. Continuem sendo assim
que Deus vai lhes dar muito mais. Terminado o serviço, todos guardaram
suas caixas de engraxate no carrinho de refrescos do Biche e tiraram uns
cobertorzinhos. A pedido deles eu levei o meu capote, o resto guardei no
carro do Biche. Nos despedimos dele com muita algazarra, eu os seguia.
Conversamos, se comentava das risadas do público e a admiração de
algumas pessoas quando eu fazia desaparecer e aparecer coisas.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 203
Dormindo sob o banco da praça
Caminhamos quase uma hora até que chegamos ao parque.
Localizava-se quase no fim da cidade, era pouco iluminado, a uma quadra
passava uma avenida pouco movimentada. Quando chegamos nos
bancos, cada um foi tirando um pacote de jornais e papéis escondidos
entre a parte do assento e o suporte do mesmo. Cada banco tinha três
suportes e eles guardavam os papéis no suporte do centro, quando tiraram
os rolos de jornal, cada um entregava um pouco para Alberto, que a sua
vez ia organizando o que seria a minha cama debaixo de um banco,
Alberto era quem dirigia tudo e os outros obedeciam, eu também estava
me acostumando a obedecer. Após minha cama estar pronta, cada um
arrumou a sua, os bancos não estavam muito longe uns dos outros. Meu
dia, além de alegre, tinha sido muito cansativo, dormi como um bendito,
como dizia Sancho Panza.
Como de costume me acordei cedo, me sentia sujo, no dia anterior
não tinha tomado banho nem escovado os dentes, enrolei os jornais e
guardei no lugar de onde tinham sido tirados. A cidade era quente, pouca
gente passava pelas ruas em torno do parque e por dentro ninguém,
estava sentado no banco quando ouvi o ruído do chinelo de Alberto que
chegou e se sentou ao meu lado, não demorou muito e apareceu Henri e
por último foi chegando Willian, que vinha bocejando. Alberto tinha o
apelido de manequim, perguntei por que, Willian se adiantou e me
respondeu: – É que as senhoras e as meninas das escolas o acham muito
bonito e parecido com um rapaz que está num cartaz de propaganda. Hoje
lembro de sua fisionomia e confirmo que era um rapaz bonito, sua pele era
de uma cor morena puxando a um chumbo claro, seus olhos eram cor de
mel, seus cabelos encaracolados e pretos onde levemente se notavam
umas manchas ou mechas claras, que eram naturais, porque naquele
tempo ainda não se usava pintar os cabelos. Falei-lhes do desejo de tomar
banho. – Sim, respondeu Alberto, vamos lá no Biche, pegamos nossas
coisas e vamos lá perto da Georgina, a gente paga meio real e tem até
sabão. O Biche nos recebeu muito contente, estava organizando seu
negócio, os rapazes pegaram suas caixas, eu peguei minha bolsa, tirei a
camisa, o calção e a cueca, também peguei a bolsinha dos meus produtos
de higiene. Biche disse que guardaria o capote no carro, aceitei e entre
Alberto e ele o dobraram e guardaram. Alberto era um rapaz muito
prestativo, não só comigo, mas com todos, em todo lugar e em qualquer
momento.
Saímos em direção à Georgina, muito alegres me apresentaram,
enquanto ela atendia alguns fregueses eles lhe falavam de mim, ela lhes
disse: – Fiquei preocupada ontem porque vocês não vieram jantar. Disse
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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que tinha esperado até tarde. É claro que eles contaram tudo, ela começou
a me tratar como se eu fosse um velho amigo, me tratava com carinho, eu
me sentia como se estivesse na preta velha junto com meus amigos do
mercado, só que a minha preta velha era gorducha e preta e Georgina era
alta, magra e branca, de nós quatro eu era o mais escuro, ao saber meu
nome, me chamavam de Ortega.
Enfim, um banho
– Vamos tomar banho, disse Alberto e saímos correndo, as caixas
ficaram na Georgina. Ela gritou: – Leve trocado! – Sim, respondeu Alberto.
O lugar não era muito longe, ao chegar pagamos e cada um entrou numa
privada para fazer suas necessidades fisiológicas, em seguida cada um foi
entrando no chuveiro, eram coletivos, a água vinha por umas taquaras
cortadas ao meio tipo calha e corria constantemente, caíam dez jorros,
separados 2 metros um do outro. Quando entramos, tinham dois senhores
completamente nus tomando banho, meus amigos tiraram as roupas, não
usavam cuecas e pelados, sem nenhuma vergonha, foram banhar-se, eu
nunca tinha ficado nu nem na frente de meus irmãos, então me lembrei de
um ditado que a mãe sempre dizia em castelhano (ala tierra que fueres
hace lo vieres) então tirei o calção, camisa e cueca e a vergonha estava
perdida.
Entrei no chuveiro, eles não paravam de fazer barulho, eu entrei no
mesmo ritmo, estavam felizes e eu também, esquecido da tristeza do dia
anterior. Dentro de uma caixa de madeira havia bastante sabão, só que
era de lavar roupa. Quando lhes passei o meu sabonete cheiroso,
presente de dona Elga, vibraram e mais barulho fizeram quando já
estavam ensaboados e cheiravam meu sabonete. Também não tinham
escova de dente, a escova era o dedo indicador. Eu me escovei e eles
cheiravam o meu creme dental. Pente também não tinham, todos nos
penteamos com o meu pente, e com o perfume que ganhei da esposa do
toureiro de Gerez, todos nos perfumamos. Georgina elogiou o nosso
cheiro, eu tinha trocado a minha roupa, eles continuavam com a mesma.
Enquanto tomávamos café, Georgina me fazia perguntas, uma
delas foi: – A mãe onde está? Respondi, está na Colômbia. E contei que
tinha fugido de casa, tive que contar tudo, ela chamou algumas pessoas
das outras barracas de comida para me ouvirem, quando terminei,
Georgina me beijou na cabeça, os outros começaram a amaldiçoar o tal
toureiro. Antes de sair, ela recomendou para que de tarde me levassem
numa praça perto do correio, onde se reunia muita gente e pediu para eles
me cuidarem.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Eles tinham compromisso com alguns fregueses de engraxar seus
sapatos e também em algumas casas. Nos despedimos de todos e como
de costume, saímos correndo, quando chegamos já tinham alguns
esperando, lendo o jornal. Sem perda de tempo já foram pegando os
sapatos de seus fregueses, à medida que terminavam iam chegando
outros, até senhoras, alguns deles, na sua maioria os chamavam pelo
nome. No momento que nós tínhamos chegado, o sino da igreja tinha
batido 9 horas, às 12 horas eles ainda não tinham parado. Só pararam as
13 horas. Alberto sugeriu: – Vamos almoçar? Vamos, todos em coro
respondemos. O costume deles era correr quando iam para algum lugar.
Uma vez na barraca da Georgina, Alberto perguntou: – Gina, tem
peixe frito? Tem, ela respondeu. Todos fomos unânimes em comer peixe
que vinha acompanhado de arroz, salada e um molho de tomate e por
último um suco de graviola, me lembrei de Evaristo no hospital, mas rápido
tratei de dissipar a lembrança. Após comer, sentado num canto dormi
meus dez minutos, quando acordei eles tinham combinado com a
Georgina de me levar num parque onde à tarde se reunia muita gente, só
que os rapazes não podiam levar suas caixas porque os engraxates de lá
iam querer briga. Tudo combinado, a Georgina também iria junto, queria
me ver. Uma vez no parque lembrei de Manolo e a forma que utilizávamos
para reunir o público. Comecei, e em pouco tempo tinha gente por todos
os lados. Quando fazia mágicas eu tinha que falar, aí se escutou uma voz
que disse: – Aquele menino não é daqui, como fala bonito.
Num momento de maior hilaridade surge a voz de Georgina: –
Senhores, este menino é colombiano, portanto é nosso irmão, é de família
pobre, seu trabalho é bonito, vamos ajudá-lo. Foi esta forma que ele
encontrou para ajudar sua mãe que é viúva, por favor, não neguem essa
ajuda. Pegou a minha bolsinha de asseio e colocou no chão, no centro.
Não demorou e começou a correr notas, moedas grandes e pequenas,
quando alguma moeda rolava fora da bolsa os rapazes a colocavam junto
com as outras.
Terminada a apresentação e o público já retirado, colocamos todo
o dinheiro na bolsa e nos dirigimos para a barraca da Georgina. Contamos
o dinheiro, como já estava familiarizado com o câmbio, calculei quarenta e
oito pesos colombianos, pensava é bom demais. Peguei o dinheiro e
comecei a dar o equivalente a dois pesos para cada um. Não queriam
aceitar, alegando que já tinha lhes dado, insisti e aceitaram. Perguntei se
tinha mais alguma praça e Georgina falou: – Tem sim, no centro, depois da
missa se reúne muita gente, como amanhã é domingo não abro a barraca,
vou junto, gostei da idéia. A fome me atacava e como estávamos com
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Georgina convidei: – Vamos num restaurante, vamos? Terminada a janta,
cada um queria pagar a sua conta, eu não deixei dizendo-lhes que era eu
quem tinha convidado, aceitaram. Era tarde, o Biche não estaria mais no
parque e não teríamos como nos abrigar esta noite.
Pernoitando na casa da Gina
Gina nos convidou para ir dormir na sua casa, os rapazes já
tinham dormido algumas vezes lá, a Gina me disse: – Ortega, eu moro
num ranchinho muito pobre com meus dois filhos, meu marido e a minha
mãe, o meu marido trabalha no campo e vem de quinze em quinze dias,
chega às sextas-feiras de noite e retorna no domingo à noite. Num
mercado ela fez um rancho, me adiantei para pagar, ela não quis. Nunca
me esqueço destas palavras que ela me dirigiu: – Meu filho, você tem que
cuidar seu dinheiro, não é porque ganha bastante que vai gastar ele à toa,
senão vai terminar não levando nada para sua mãe, nada de estar nos
pagando tudo, já nos deu o que chega. – Sim senhora, foi tudo que
respondi. Sim, realmente sua casinha era de madeira, a salinha era
estreita, também a cozinha, no quarto tinha duas camas, uma para o casal
e a outra para os filhos, eu olhava e pensava: Apesar de ser uma casinha
humilde, era muito melhor que a minha. Já em casa me apresentou a mãe
e os filhos, um de sete e outro de nove, os rapazes já eram conhecidos.
Gina nos acomodou o melhor que pode na sala e no chão, para a
mãe ela tinha feito uma divisão na cozinha. Lembro que naquela noite
estava feliz. Eu me sentia em família, no meio de brincadeiras e risadas,
os primeiros que pegaram no sono foram as crianças. Dos outros não sei
qual foi o último, só lembro que meu sono foi profundo.
No domingo no parque, e com o pregão de Georgina, arrecadei
mais trinta e sete pesos. Georgina sugeriu que fôssemos no mercado que
tinha feira e haveria muita gente. Sentia muita pena de Gina, pois era aos
domingos que tinha tempo de estar com seus filhos. Os rapazes no
domingo à tarde iam ver seus pais, mas por acompanhar-me e ajudar, tudo
tinha se modificado, então lhes fiz uma proposta: Que o dinheiro que
recolheria no mercado o repartiria em partes iguais e não aceitava
contraproposta. Ficaram calados. Arrecadamos quarenta e cinco pesos.
Na hora da partilha não aceitaram tanto dinheiro, só aceitaram três pesos
cada um. Dei os três pesos para cada um com a condição de que
compraria roupa para todos. Com um pouquinho de esforço eles
aceitaram. A primeira coisa que fiz foi comprar sapatos para todos, depois
calções, camisas e cuecas, boné para eles três e para os dois filhos de
Gina, eu não quis boné, eles quiseram meias coloridas, as minhas eram
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 207
brancas. Para a mãe de Gina compramos um vestido igual ao de Gina,
compramos também presentes para os filhos dela e para os parentes e as
mães e pais dos rapazes, o gasto foi de quinze pesos, mesmo assim
sobrou muito dinheiro. O almoço foi bem suculento, misturado com
felicidade.
Os rapazes queriam ir para a casa para dos pais deles, para não
deixá-los preocupados e queriam que eu fosse junto. A Georgina, sabendo
que era longe, aconselhou que pegássemos o carro de Bigode, que nos
cobraria um peso para nos levar e estaríamos lá em quinze minutos, a pé
em três horas. Vibramos pelo conselho. Eu sugeri: – Vamos comprar
quatro ranchos, três para levar e um para Gina. Não esperei resposta e já
fui entrando no armazém, comprei de tudo o que eu mais ou menos
conhecia. Alberto foi à procura de Bigode e uma vez ele presente,
acertamos que ele nos levaria e na terça de manhã nos procuraria.
A vila era quase igual a minha na construção das casas, em
tamanho um pouco menor. A chegada de carro dos rapazes, as caixas, as
sacolas e mais a minha presença chamaram a atenção da vizinhança.
Alguns vieram ver quem eu era, os rapazes todos alegres me
apresentaram, cada um correu para sua casa para levar o rancho e os
presentes, eu fiquei na casa do Alberto, que foi onde Bigode nos deixou.
Willian veio correndo me apresentar aos pais e irmãos, em seguida
apareceu Henri, corríamos de uma casa para outra, íamos visitar os
vizinhos e amigos deles, eu me sentia completamente familiarizado com a
vila e com sua gente, parecia que estava na minha casa, só faltava escutar
me chamarem de negrinho, só escutava Ortega por todo lado, até as
gurias se juntaram a nós, como na minha vila, rapazes e meninas queriam
estar bem perto de mim. As perguntas eram muitas, eu respondia,
perguntei onde poderia tomar um refri, responderam ali no velho Omar, eu
acho que ele nunca tinha vendido tanto à vista e em poucos minutos, todos
tomamos e mandei levar para as casas deles, eu calculo que na vila
também nunca se tinha ouvido tanto grito e corre-corre da gurizada.
Na segunda-feira fomos tomar banho numa cachoeira que havia
perto, todos vestimos as nossas roupas e sapatos novos. Naquele dia
tomei café na casa de Alberto, que foi onde dormi, almocei com eles na
casa de Willian e os três jantamos na casa de Henri. A vila estava em
polvorosa, nunca tinham visto um estrangeiro de perto, fiquei sabendo que
a gurizada não queria ir à escola porque queriam estar comigo. De noite fiz
uma demonstração para todos na rua mesmo, até o Omar fechou o bolicho
para vir me ver, eu acho que proporcionei um momento de alegria para
aquela gente que nunca via nada.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Na terça, conforme o combinado, Bigode chegou, nos deixou na
barraca da Gina, que nos recebeu como se fôssemos seus filhos, nos
serviu café, que embora já tivéssemos tomado, tomamos de novo. Na hora
de pagar ao Bigode, ele viu que tinha muitas moedas e disse que era bom
trocar tudo por notas, porque as moedas pesavam muito. Mandou falar
com o Biche que ele sempre trocava. Como os rapazes tinham
compromissos para engraxar, nos despedimos de Gina. No parque,
enquanto eles engraxavam, fui conversar com Biche, apenas me viu ele
disse: – Bigode me disse que você tem muito dinheiro em moedas! Sim.
Para que não carregue tantas moedas e como vai levar esse dinheiro para
sua terra, é bom que troque por dólares e por notas de cem. Ele mesmo
me acompanhou até a casa de câmbio, e ao regressar me levou a um
alfaiate amigo para fazer uma bolsinha para guardar o dinheiro e amarrar
na cintura por dentro das calças, esta idéia me pareceu muito boa.
Quando andava pela rua, a gurizada mexia comigo: – Olha o guri
mágico, e assim por diante. Ao chegarmos ao carro de refrescos do Biche,
encontramos a Georgina toda apavorada porque um delegado tinha
mandado um guarda à minha procura. Ele queria saber se eu tinha
documentos, se andava sozinho ou com alguém e se tinha licença de
meus pais. Georgina me levou para sua casa e pediu para Biche avisar os
rapazes. Gina pediu para eu ficar escondido, me advertindo que aquele
delegado era um tremendo mau caráter. À noite vieram os rapazes junto
com Gina e Biche. Alberto nos informou que dois guardas tinham
perguntado por mim, mas que Alberto, sabendo quem era aquele delegado
tinha respondido que eu tinha viajado com a minha mãe. Biche elogiou o
Alberto pela resposta. Conversamos bastante e a solução que
encontramos foi de que eu viajaria a uma cidade distante 100 quilômetros
onde morava um irmão do Biche, que também vendia refrescos, que ele
me recomendaria ao irmão. O Biche também falou que era bom eu ficar
escondido por mais uns dois dias, esperando que eles não estivessem
mais me procurando, todos concordamos. Como eu ainda tinha dinheiro
nacional, Gina sugeriu que era bom eu comprar uma bolsa tipo mala de
couro para não carregar aquele saco de arpigera. Pareceu-me excelente
idéia, eu já tinha pensado algo parecido. Depois de tudo acertado, Biche
foi embora e os rapazes ficaram, nada nos abalou. Gina nos preparou
comida, a mãe dela lavou a minha roupa que estava suja. Na janta rimos,
eles comentavam a mentira do Alberto, mexiam comigo porque as gurias
da vila queriam estar perto de mim, até do coitado do Omar, dono do
boteco, ríamos do susto que levou quando invadimos seu armazém, e a
cara que fazia destapando refrigerantes. Gina queria saber como eles
tinham me tratado, é claro que contei a verdade, melhor não podia ser e
provavelmente me esperariam no próximo domingo. Na quarta à noite
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 209
chegaram todos de novo, Biche me informou que na sexta-feira teria
ônibus às 6 horas.
Indo para o interior
A Gina pediu para comprar a passagem, me disse que ainda tinha
sobrado dinheiro da compra da bolsa. À noite de quinta-feira, quando
todos chegaram, Gina nos disse que tinha falado com o motorista, para
fazer o favor de dar uma cuidadinha em seu sobrinho que viajaria com ele
na sexta-feira e ele tinha concordado. O Biche me deu uma carta para
entregar a seu irmão e me passou as informações de como chegar até ele.
Também me falou de duas praças que poderia fazer os meus números de
mágica. Biche aconselhou para não me acompanharem até a rodoviária,
porque se houvesse um guarda, poderia desconfiar. Guardei tudo na
minha nova bolsa, que tinha vários bolsos e coloquei tudo separado. Por
último, pensando na pobreza deles, comecei a dar para cada um dois
pesos, em princípio não queriam, terminaram recebendo, até a mãe e os
filhos de Gina. O Biche não aceitou de forma alguma, ao contrário, me
agradeceu, me abraçou e minutos depois se despediu. Todos fomos
dormir cedo. Às 4 horas e 30 minutos o relógio despertou, todos nos
levantamos, tomamos café e às 5 horas e 15 minutos saímos. Os rapazes
não levaram as caixas para não chamar a atenção, estavam bem
vestidinhos, com as roupas novas.
Hoje fico lembrando aquele momento da despedida: ao me
despedir de dona Berta, mãe da Gina, sua voz era trêmula, quis chorar,
mas se segurou. Na rodoviária Gina chegou perto do motorista e lhe disse:
– Por favor, cuide bem do meu Negrinho. Fazia vários dias que não ouvia
me chamarem de Negrinho. O motorista me pediu para ficar sentado perto
dele, coloquei minha bolsa no lugar indicado e desci para me despedir,
notava nos meus amiguinhos profunda tristeza, abracei um por um, eles
não conseguiram falar, quando chegou a vez de Gina, ela me abraçou e
desandou a chorar e me disse: – Que a Virgem te socorra! Quando ela
pronunciou estas palavras, me lembrei que eu tinha pedido à Santa Sara
Kaly para me ajudar a sair daquela situação em que me encontrava e ela
tinha me ajudado e eu nem sequer tinha rezado uma prece para lhe
agradecer.
O motorista subiu no ônibus e todos os passageiros também.
Antes de eu subir, olhei para todos eles, que estavam perto de Gina Ela
pegou o vestido no colarinho e puxando-o me mostrou e o beijou.
Compreendi, era o vestido que eu tinha lhe dado de presente. O ônibus se
movimentou lentamente e os quatros estavam numa tristeza que se notava
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 210
de longe, até o último momento me faziam o sinal de despedida com as
mãos. Desapareceram dos meus olhos e senti um certo vazio. Hoje, ao me
lembrar, fico pensando que amizade, e em tão poucos dias.
Já fora da cidade tornei a me lembrar de Santa Sara, de como eu
tinha sido ingrato, nem sequer uma prece para ela. Acomodei-me bem no
banco, fechei os olhos e sem mexer os lábios, comecei a rezar, a
agradecer a Deus e à Santa Sara Kaly, eu estava triste, mas com dinheiro
e tinha aprendido como ganhar.
A estrada não era asfaltada, razão pela qual o ônibus não
desenvolvia muita velocidade e demoramos mais ou menos três horas
para percorrer poucos quilômetros. Quando chegamos na rodoviária, o
relógio estava marcando 9 horas e 30 minutos. Como tinha tomado café
tão cedo sentia um pouco de fome e no primeiro bar que encontrei entrei
para me alimentar.
O irmão de Biche
O dono do bar me orientou como poderia chegar para encontrar o
irmão do Biche. O tempo estava se armando para chuva, caminhei uns dez
minutos até que enxerguei um carro de refrescos igual ao do Biche.
Chegando mais perto vi que o homem do carro de refrescos se mexia de
um lado para outro igual ao Biche, mais parecido não poderia haver outro,
e comecei a sorrir. Ele me olhava, porém continuava atendendo a
freguesia sem me dar importância. Em seguida lhe cumprimentei e falei
que vinha de parte do Biche. Enquanto abria minha bolsa para tirar a carta,
ele se aproximou de mim todo sorridente e me deu um tapinha nas costas
e disse: – Fale meu amigo, que novas traz de meu irmão? Entreguei-lhe a
carta, à medida que lia ele ria, começava a cair uns pingos d’água, rápido
ele guardou algumas coisas, botou a carta no bolso e me convidou para
irmos na sua casa porque já começava a chover. Pegou sua bicicleta, que
era igual a do Biche, saímos caminhando e conversando, notava que até a
forma de falar era igual a de Biche, ficava olhando para ele e era o mesmo
Biche, tivemos que acelerar o passo porque a chuva estava engrossando.
Uma vez em casa, quem nos recebeu foi sua esposa. Na entrada
ele já foi dizendo: – Amor, o mano nos mandou este rapazinho para passar
alguns dias conosco, ele é colombiano, o mano disse que é um grande
artista apesar da idade, que faz coisas muito bonitas. Em seguida lhe
entregou a carta e foi através dessa carta que fiquei sabendo que a mulher
de Biche estava na capital cuidando da mãe que estava doente. Já um
pouco familiarizado com eles me faziam algumas perguntas, de como tão
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 211
pequeno tinha conseguido chegar até ali, tão longe de casa, a estas
alturas tive de contar o porquê, ela se levantou e falou: – Vish amor,
enquanto apronto o almoço, arruma o quarto para ele. Lá fora chovia e
trovejava. Vendo a chuva cair através da janela, pensava onde estaria eu
neste momento, talvez triste, vendo a chuva cair, sem saber para onde me
dirigir. Deus e Santa Sara são muito bons para mim, pensava. Eu ajudava
a organizar o quarto, que por certo era grande, a cama era de casal, todo
decorado, testei o colchão, era bem macio, lembrei de quando dormia
embaixo daquele banco no parque, mesmo sendo o chão duro, dormia que
era uma maravilha. Quando dormíamos na casa da Gina, no chão, pegava
no sono e nem sentia o piso de tábuas. Agora dormiria num quarto bonito
e num colchão macio. Se naquele tempo eu soubesse interpretar a vida,
teria me sentido um monarca, hoje lembro a satisfação que sentia no dia
seguinte, após ter dormido naquele colchão e naquele quarto.
No almoço contei-lhes o episódio de ter me sentado na cobra,
pensando que era o tronco de uma árvore, riam que dava gosto, na
conversa aproveitei para perguntar porque chamavam ele de Vish e o
irmão de Biche, e a resposta foi: – É que o costume é chamar as pessoas
pelo sobrenome e como o sobrenome é WISCHENGTONOSKI, era um
pouco complicado pronunciar todo sobrenome, então escolheram Biche,
que poderia ser Wiche, aqui se aproximaram mais, pronunciando Vish, que
seria o mesmo que Wish.
Na segunda-feira parou de chover, mas o dia continuava nublado,
saímos com Vish para o carro, lhe ajudei um pouco, sobretudo na limpeza
do local. Como não tinha mais nada a fazer fui dar umas voltas para
conhecer a cidade que era um pouco menor que a anterior, a única praça
que existia era aquela onde estava Vish e o mercado. Quando voltei, a
esposa de Vish quem estava atendendo. Vish me convidou para ir almoçar
na sua casa que o almoço estava pronto. Era desta forma que todos os
dias se turnavam, na parte da manhã ela ficava em casa e depois de
preparado o almoço ia atender o carro e Vish ia para casa almoçar,
descansava um pouco e voltava. Para fazer a minha apresentação, Vish
me informou que o melhor horário seria aí pelas 17 horas, quando se
juntava mais gente. Apresentei-me e mesmo com o tempo nublado foi se
juntando muita gente. Aproveitei o momento e comecei fazer vários
números, eu mesmo pedindo a colaboração. Em seguida as pessoas
começaram a colocar dinheiro na minha bolsa, de repente apareceram
dois guardas e um deles me gritou: – Vamos, vamos parando com esse
ajuntamento, e vocês vão se retirando, dirigindo-se ao público. Vish
quando viu os guardas veio correndo e falou para um deles: – Carlos, ele
mora na minha casa, ele é da família do meu irmão. Imaginem vocês o
contraste, todos eles baita alemães, bem brancos, com aquele sobrenome
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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tão difícil de pronunciar, como é que eu poderia ser parente deles, em todo
caso, se o guarda engoliu deve ter sido pela amizade que tinha com Vish,
que em seguida começou a recolher minhas coisas e as moedas.
O público foi se afastando e de longe, pelas folhagens e por entre
as árvores, alguns gritaram: – Malditos, um dia se lhes há de acabar o
poder, desgraçados...! Estando sentado com Vish, passou um casal e me
perguntou: – Lá na sua terra também existe aquele tipo de canalhas?
Ignorante que eu era, nada respondi. A notícia tinha se espalhado e de
repente vimos Estefani que vinha correndo para saber o que tinha me
acontecido, Vish a recebeu com muito carinho: – Não amor, não foi nada,
apenas não querem grupos, vivem com medo. Eu nada entendia, ficamos
os três conversando, me tratavam como se na realidade eu fosse parente
deles. Estefani lavava e passava minha roupa, não me deixava gastar
nenhum centavo, me tratava de filhinho, amorzinho, queridinho e assim por
diante, sempre estava pendente do meu remédio dos olhos, sempre era
ela que o colocava, tudo me era feito com tanto carinho, como se na
realidade fosse filho deles.
Por este casal fui tão bem tratado que hoje, pai de dois filhos e
passados tantos anos, às vezes lembro de uma coisa que nunca fiz para
meus filhos, mas que Estefani fez para mim. Uma noite, no momento em
que ela estava me colocando o remédio nos olhos e, como surpreendida,
me disse: – Eu nunca lhe senti mau hálito, o que será que lhe fez mal? Em
seguida me mandou respirar de boca aberta e colocou seu nariz perto para
sentir o meu hálito, e disse: – Está com mau hálito, e ela mesma se
perguntava: – O que será que lhe fez mal? Perguntou-me: – Não sentiu
dor de estômago? – Não senhora, respondi. – Não durma, me espere!
Voltou com uma xícara de chá que vinha esfriando, e como se fosse uma
criancinha me fez tomar. Hoje me lembro que era de funcho e que o
paladar era gostoso. Vish que estava tomando banho e se barbeando,
entrou no quarto, estava de pijama, me apertou de leve o estômago, e
perguntou se tinha feito cocô. – Sim senhor. – Em algum momento sentiu
dor de barriga? – Não senhor. Olhando para Estefani falou: – Não deve ser
nada. Deu-me um apertãozinho no nariz e me deu boa noite. Antes de
Estefani sair me recomendou para que quando me levantasse, não
lavasse a boca antes dela saber se tinha passado o mau hálito, me deu
um beijo na testa e se despediu. Digam-me: será que posso esquecer todo
esse carinho?
No dia seguinte me fez a mesma operação, confirmando que não
tinha mais nada, me senti contente. Nem pensar em fazer alguma
apresentação, estava com medo, se eles chegassem a me pegar, o que
seria de mim?
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Na quarta noite comuniquei-lhes o desejo de partir e tentar noutras
cidades a sorte para poder ganhar alguma coisa, assim conseguiria
comprar a passagem e levar mais algum dinheirinho para a minha mãe
fazer a nossa casa.
Notei que não lhes agradou muito a minha partida, todos ficamos
em silêncio. Estefani foi quem falou: – Orteguita, fica mais uns dias, no
sábado à noite nós vamos viajar a um povado que fica a 60 quilômetros
daqui, lá moram meus pais e gostaria que tu fosses conosco. Aceitei
imediatamente, falei para eles que eu queria lhes dar aqueles dez pesos
que havia ganho no dia que os guardas não me deixaram trabalhar,
porque eu só comia, dormia e não fazia nada, e ainda Estefani lavava e
passava minha roupa, me cuidava e eu não colaborava com nada. Estefani
se levantou, me abraçou pelas costas, encostou minha cabeça no seu colo
falando: – Meu amorzinho, tu não precisas dar nada. Vish no mesmo
momento falou: – Orteguita, a tua presença aqui já é o bastante, tu és um
menino educado, dócil, simpático, quem não gostaria de ter um filho como
tu? As suas palavras saíam trêmulas ao me dizer: – O único filho que
tivemos nasceu com problemas de saúde e morreu. Ele se levantou,
abraçou a esposa com um braço e com o outro me abraçou, eu me virei de
frente para os dois e me abracei a eles, em seguida ele falou: – O melhor
que meu irmão pode ter feito é ter te mandado para nós, fora todas as
coisas boas que ele nos faz. Estas são coisas que dificilmente a gente
esquece.
Novos caminhos
No sábado, antes de escurecer, saímos numa espécie de táxi, cujo
motorista já estava acostumado a levá-los, pó uma estrada sem asfalto,
porém era boa e em pouco mais de uma hora chegamos. Estavam à nossa
espera o pai e a mãe de Estefani e também os pais de Vish. Perguntaram
por Frank, que era o nome de Biche, e Vish respondeu: – A mulher dele
está na capital porque a mãe dela está doente, o filho também está lá, mas
em troca nos mandou este filho. Estefani lhes disse: – É a coisa mais
querida e, além disso, é um grande artista. Tinha muita gente, primos,
primas, sobrinhos, irmãs, cunhadas, etc, todos bem brancos, alguns de
olhos claros, outros azuis. Todos fomos passando para um galpão amplo,
nos fundos da casa, havia várias prateleiras cheias de garrafas de cerveja,
chimias em vasilhames de louça, garrafas de vinho feito de laranja, cucas,
pães, salgados e doces, todos fabricados por eles, se sentia um cheiro
gostoso de comida, quem cozinhava era um senhor alto com avental,
muito engraçado, contava piadas em espanhol e em alemão, seu espanhol
era um pouco arrastado, mas se entendia perfeitamente. Como todos
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 214
estavam interessados em me ver fazer as provas, comecei como sempre
com contorcionismo, depois mágicas com baralho, moedas, eles riam,
gritavam, batiam palmas, a alegria era total, o cozinheiro, quando ia dar
uma olhada na comida me pedia para esperar, ia correndo e voltava
correndo.
Após o jantar fiz mais algumas provas, já era passada da meianoite e a gurizada nada de querer dormir, a Estefani sempre estava perto
de mim e se preocupava para eu comer, me fez tomar um copo de cerveja,
não era amarga, por certo muito gostosa. Um ruído de carro se ouviu, era
o Biche, a mulher e o filho. Foram recebidos com muita alegria. A mulher
do Biche não tinha pinta de alemã, era morena clara, eu continuava sendo
o mais negrinho de todos, imagino que deveria parecer uma mosca no
leite. Daí a pouco apareceu uma vitrola à corda e o baile se formou. No
domingo, depois do café, a gurizada me convidou a conhecer o pomar e a
plantação de bananas, saímos correndo, a Estefani foi junto, sempre perto
de mim. Próximo ao galpão tinha plantação de diferentes frutas, mais para
frente tudo era plantação de bananeiras a perder de vista, num clarão
encontramos um riacho de água bem cristalina, tinha um lugar onde a
água tinha sido represada e parecia uma piscina, entre gritos e risadas a
gurizada foi tirando os sapatos e com roupa e tudo foi entrando, eu
também. Estefani nos acompanhou, parecia uma criança brincando
conosco, entre os guris alguns a chamavam de prima, tia e outros de Nié.
Depois de bagunçar na água, voltamos com as roupas molhadas para
casa, havia quatro chuveiros, cada um foi entrando e os outros esperavam,
cada mãe trazia roupa para seu filho e filha, nesse caso, minha mãe foi a
Estefani que, mesmo molhada, me trouxe toalha e roupa, me secou e até
me ajudou a vestir, ela foi a última a chegar à mesa onde nos esperava o
almoço.
Depois daquele corre-corre era justo que estivéssemos mortos de
fome. Fiquei sabendo que o alemão que cozinhava não era da família e
sim um amigo, viajava por vários países vendendo produtos de uma firma
alemã, gostava de falar comigo, era um cara muito simpático, soube
também que sempre que vinha ao país não deixava de visitá-los, os velhos
eram da mesma cidade que ele lá na Alemanha. Ele mesmo me contou
que gostava de cozinhar, me pediu para lhe ensinar aquela prova de tirar
moedas do corpo das pessoas, lhe expliquei que essa prova precisava
muita destreza nas mãos e era muito difícil, lhe dei uma prova de baralho
trucada, aprendeu rápido, lhe dei mais algumas, praticou tanto que até
chegou a fazer para os presentes, por certo bem feita, foi muito aplaudido,
não havia outro mais feliz do que ele, correu e me abraçou. Continuei
fazendo outras provas que ainda não tinha feito para o Biche, a mulher e o
filho verem, às vezes pedia para o alemão fazer algumas das que eu tinha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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lhe ensinado e ele, muito feliz, fazia e com perfeição e os presentes
adoravam. Ensinei para todos a prova de equilibrar os garfos num palito,
alguns conseguiram, outros não. A gurizada começou a cochilar e as mães
foram arrumando cada um na cama, eu queria dormir meus dez minutos
também, estava cansado. Estefani me pegou pela mão, como se fosse seu
bebê e me levou e deitou da mesma forma como as outras mães deitaram
seus filhos, não senti pegar no sono.
Quando acordei peguei a minha bolsinha dos utensílios de limpeza
e fui escovar os dentes e me lavar. Estefani, como sempre, me
acompanhou e me penteou, arrumou a camisa, me pegou pela mão e me
levou onde todos estavam. Quando cheguei o Biche me chamou, e na
frente de todos me entregou vinte e cinco pesos, o equivalente a cinquenta
pesos colombianos. – Este é um presente de todos nós, mereces muito
mais pela tua simpatia, pelo teu trabalho, que é muito bonito, lhe
desejamos muita sorte e quando voltares para tua terra, leve muita alegria
para os teus pela tua volta e pelo dinheiro que levas, segundo
entendemos, essa é a tua meta. É claro que isto não é textual, porém
calculo que seria isto que eles queriam dizer. O alemão me deu de
presente um mapa do país e marcou as cidades onde poderia trabalhar
sem problemas. Eram povos que ele conhecia, vendia sua mercadoria e
sabia que era gente boa, marcou o roteiro que deveria seguir e me
aconselhou a ir por último na capital. Começaram as despedidas bem à
tarde, a gurizada me pedia que fosse na casa deles e eu prometia ir. Biche
ao se despedir me ofereceu sua casa, que desta vez a sua mulher e filho
estariam, os pais da Estefani também me ofereceram a casa. Chegou o
carro que nos levaria e nos despedimos dos pais dela e do alemão. No
banco de trás Estefani e eu, ao lado do motorista Vish. Eles comentavam
as provas, riam, ela me paparicava, o motorista tinha me visto na praça o
dia que os guardas não me deixaram trabalhar.
Na segunda-feira Estefani me levou no cemitério para ver o túmulo
do filho, levou água, ajudei a limpar, a varrer, a rezar. Na hora de sair me
abraçou e ficamos frente à tumba, ela como se falasse com o filho vivo e
ainda me segurando abraçada falou em voz alta: – Filho, olha teu
irmãozinho. Com a voz que parecia chorar colocou as duas mãos no rosto,
ficou vermelha, porém não chorou. Quando saímos do cemitério fomos
numa loja, me comprou camisa, cueca, calça, meias e sapatos, me levou
numa barbearia e me fez cortar os cabelos. Saímos da loja e fomos numa
ótica que era de amigos deles, queria que me trocassem os óculos porque
os meus eram muito feios. O senhor que nos atendeu pediu para Estefani
me levar no oftalmologista e pedir a receita das lentes, ela quis me levar,
mas eu alertei a ela que a minha mãe tinha feito isso uma vez e que as
novas lentes me provocaram muita dor de cabeça e quando voltamos para
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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o oftalmologista que me atendeu ficou brabo com a mãe e me mandou
trocar de novo as lentes. Ela ficou pensativa, em seguida me disse: – Que
pena, eu queria trocar por uns bonitos que vi na loja, então vamos
almoçar.
Entramos num restaurante, cujos donos eram conhecidos, e
perguntaram por Vish. – Ele anda em busca de frutas. Almoçamos e
retornamos para casa, ela não quis que fosse dormir no quarto, me
arrumou no sofá, colocou um travesseiro, me tirou os sapatos, me abrigou
com um lençol, me deu um beijo na testa e sentou perto de mim a fazer
crochê. Dormi meus dez minutos, quando acordei ela continuava seu
tecido, fiquei de olhos fechados pensando, pelo que sentia, ela não queria
que eu fosse embora, mas o que é que eu ficaria fazendo ali? Precisava
voltar para casa, ver a minha mãe, meus irmãos, meus amigos, o Dr.
Corrêa, o Gratiniano, o Polaco, a minha querida amiga Romélia, o Carlos,
o Ocoró, também meus amigos do mercado, ainda tinha chance de ganhar
mais dinheiro para levar para minha mãe e quando chegasse em casa iria
levar um calção e uma camisa para Oscar, o coitado só usava roupa
usada e toda cheia de parches, fiquei imaginando ele todo feliz vestindo
roupa nova e rindo. Perguntei-me: Será que o André terá ido à minha
casa? Neste momento me lembrei do dito toureiro, que hoje desconfiava
que não fosse espanhol, fiquei pensando em um ditado que ouvi muitas
vezes a minha mãe dizer: – Não há mal que para bem não seja. Se não
fosse por ele, eu não teria aprendido a ganhar dinheiro e estaria no
mercado ganhando dez ou doze centavos por dia.
Estava naquele pensamento quando ouvi a voz de Vish. Pensando
que eu dormia, Estefani lhe fez sinal de silêncio, em seguida começou a
lhe mostrar tudo que tinha comprado para mim. Eles conversavam em voz
baixa, assim mesmo pude ouvir que ela disse: – Meu amor, ele é meu, foi
Deus que me mandou. – Não amor, foi o mano que nos mandou para que
lhe déssemos uma mãozinha, porque a polícia andava investigando se ele
tinha documentos, ele é ainda uma criança que fugiu de casa para ajudar a
mãe, se ficarmos com ele, mais cedo ou mais tarde vão descobrir e nos
tiram, e quem sabe o que estes desgraçados farão com ele, e nós não
podemos fazer nada por ele. Tu não ficarias triste de ver ele encerrado e
depois deportado, e quem sabe onde trancariam ele na sua terra. É melhor
que ele siga o conselho e a orientação que o mano e o alemão lhe deram,
trabalhar um dia em cada lugar, ou no máximo duas apresentações e se
mandar, até conseguir chegar à capital e procurar voltar para a sua terra.
Tu vês, ele pode ganhar muito dinheiro trabalhando dessa forma, nem eu
nem o mano ganhamos num dia o que ele ganha entre duas e três horas
de trabalho.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Ouvi o que ela lhe disse: – Amor, como gostaria que ele ficasse
conosco! – Eu também, respondeu ele. Eu gosto muito dele, mas não
podemos fazer nada, estive falando com o Carlos a respeito dele e ele me
aconselhou a procurar que a polícia não saiba quem ele é e nem falemos
com ninguém sobre ele. Vish continuou: – Eu até tinha pensado em ir no
domingo visitar meu irmão, porém estou com medo. Ele me contou que
aquele delegado de lá andava a cata dele. Imagina se a polícia nos vê
chegar e queira saber quem ele é, não teremos nada para falar, é menor,
estrangeiro, e sem nenhum documento que nos garanta tê-lo conosco.
Livre poderá de vez em quando vir nos visitar e o Carlos nos dar uma
mãozinha.
Quando pararam de falar fiz de conta que recém me acordava,
bocejei, me estiquei e me sentei. Em seguida me convidaram para ir até o
carro. Estefani também quis ir conosco, rápido se lavou, trocou de roupa,
se perfumou, me perfumou e saímos. Quem estava atendendo no carro de
refrescos era um senhor preto, magro e alto, seu nome era Julio e lhe
chamavam de Chambimbe. Recebeu-me com muita simpatia, era
empregado de Vish e pau para toda obra. À noite, depois que ela me
deixou deitado, comecei a pensar em como iria fazer para ir embora sem
magoar Estefani.
No dia seguinte quando acordei Vish não estava, tinha madrugado
para trazer frutas já encomendadas. Enquanto tomávamos café Estefani e
eu, em determinado momento tomei coragem e falei: – Estefani, eu tenho
vontade de continuar viajando e trabalhando para ganhar mais um pouco
de dinheiro para comprar a passagem e voltar para casa levando algum
dinheiro para a mãe, ela não sabe onde é que eu ando, porque fugi sem
lhe dizer nada. – Eu sei, respondeu Estefani, um pouco triste. É claro que,
como eu tinha ouvido a conversa, então lhe prometi que daria umas voltas,
ganharia um pouco de dinheiro e sempre voltaria, porque eu gostava muito
dela e de Vish, que tão bem me tratavam.
Levantei-me e lhe dei um beijo no rosto, seus olhos estavam um
pouco úmidos, combinamos que partiria na sexta-feira. À noite, quando
terminamos de jantar, falei para Vish o combinado com Estefani, de eu
viajar na próxima sexta-feira. Continuamos na mesa conversando e rimos
de certas coisas passadas entre nós e na casa dos pais dela, e das piadas
do alemão. Notei que o riso da Estefani não era sincero, era um riso triste,
acredito que Vish sofria um pouco, não pela minha partida e sim pela sua
mulher que tanto desejava ter um filho para cuidar. Hoje em dia fico
imaginando Estefani e penso que deveria ser uma mulher bonita, lembro
que era alta, cabelos longos, lisos e castanhos.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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É pena que naquela época eu não sabia apreciar a beleza
feminina, fico a imaginar como é que uma mulher que tinha de tudo, que
nada lhe faltava, a não ser um filho, e por esta falta se apegasse a mim em
tão curto tempo e chegasse a dizer ao marido que era Deus que tinha me
mandado para ela. Continuo lembrando aquele tempo e penso como uma
mulher do tipo dela poderia gostar como seu filho um negrinho feinho,
baixinho, miudinho e usando óculos, sem futuro, porque não poderia ser
ninguém na vida por não poder estudar, e saber que a ela nada disso
importava, me queria como seu filho para poder cuidar como um frágil
bibelô de cristal.
Na sexta-feira os dois me levaram à rodoviária. Na despedida Vish
me abraçou, e quando Estefani me abraçou e beijou, ela chorava forte,
com desespero, Vish tratava de consolá-la. Sem parar de chorar, Estefani
me ajudou a subir no ônibus, eu não conseguia dizer nenhuma palavra,
engolia em seco, a língua estava pesada. Quando o ônibus arrancou,
tentei olhar para trás, porém os passageiros me impediram, não podia vêlos, o motorista notou a minha amargura e me perguntou: – São seus
parentes? É claro que ele notava a diferença de cor e eu não consegui
responder. O motorista notou meu estado e arrodeou pela quadra, só que
quando chegou na esquina, eles já tinham passado. O motorista buzinou,
eles olharam, eu lhes dei o adeus com as duas mãos e eles também, e
reciprocamente nos mandamos beijos, parece mentira, me senti aliviado
ao ponto de que, daí para frente, fui só tagarelando com o motorista.
Como ia parando, descendo e subindo passageiros, a demora foi
de uma hora e meia para chegarmos na cidade dos familiares de Estefani,
de Bishe e Vish. Dirigi-me à casa deles para entregar uma carta que
Estefani mandou para os pais.
No teatro paroquial e a amizade com motoristas
O recebimento foi como de um personagem famoso, melhor não
poderia ser. Foram momentos vividos que a gente não esquece. Calculo
que Estefani deve ter lhes pedido alguma coisa a respeito dos meus
números, porque não demoraram nada a me levar para a igreja, falaram
com os padres e ficou acertado o espetáculo para o domingo à tarde.
Rapidamente a notícia se espalhou e a gurizada, os parentes de Estefani e
os vizinhos se encarregaram de fazer a propaganda. O prefeito autorizou e
no domingo o teatro paroquial estava lotado. O senhor prefeito pediu para
os padres que me dessem todo o dinheiro da bilheteria que ele ressarciria
os gastos da igreja e daria mais uma colaboração. Aquela família de
Estefani, Vish e Biche era uma maravilha de pessoas, começando pela
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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gurizada. Lembro que as meninas estavam sempre bem vestidinhas e me
tratavam com muita delicadeza, todos me pediram para ficar na segundafeira porque não tinham aula, fiquei. Na terça-feira me despedi, e seguindo
o conselho e o roteiro que o alemão tinha me dado, segui para o povo
seguinte, no mapa marcava 110 quilômetros de distância. Orientado pelo
motorista, consegui quarto numa pensão, a caminha não era ruim, o povo
era pequeno, à tarde trabalhei e no dia seguinte parti, seguindo o conselho
do alemão. Daí por diante, quando chegava numa cidade, procurava
trabalhar só uma vez e, dependendo do tamanho do povo, até duas vezes
no máximo. Sempre procurava viajar junto ao motorista e pedia
informações para eles onde me alugariam quarto só para dormir, comer
não era problema, comia nas barracas de comida dos mercados, ou dos
portos.
Alguns motoristas me levavam nas suas casas quando tinham
filhos, as suas esposas não me cobravam nada e nem me deixavam
gastar em presentes. Outros motoristas me levavam em familiares que
tinham pensão. Aprendi o câmbio monetário e sempre que tinha para
trocar por cem dólares fazia a troca, e guardava os dólares na minha
bolsinha que sempre tinha amarrada por dentro das cuecas. Só tirava para
tomar banho e dentro do banheiro, e era a primeira coisa que amarrava
antes de me vestir. Parece mentira, mas o que menos me preocupava era
com o tempo passando, a minha preocupação era de ganhar o dinheiro
para levar para a mãe. Procurava seguir à risca o asseio que a mãe
sempre me falava, e quanto aos paninhos, eu comprava fazendas baratas
e pedia para que as recortassem, procurando que não me faltassem. Os
perfumes eu já sabia comprar também, o creme dental, o sabonete, e
quando as toalhas estavam demasiado usadas, comprava novas. A minha
roupa sempre mandava lavar, as cuecas, camisas e meias que já usava,
trocava todos os dias. Depois que tive conhecimento da forma de
conseguir dormir em pensões, nunca mais dormi debaixo de bancos de
parques. Dinheiro sempre ganhava, no mínimo dez pesos colombianos.
Apesar de tudo ir correndo muito bem, uma noite me tocou dormir numa
rodoviária. O motorista do ônibus que viajei não morava naquela cidade e
teria de voltar ao ponto de partida na mesma hora. Os passageiros
desceram e imediatamente os outros subiram e o ônibus partiu. Chovia
muito forte, assim mesmo o movimento na rodoviária não parava, crianças
corriam, gente entrava e outras saíam, eu não tinha para onde ir e nem me
atrevia a sair da rodoviária. Em frente havia vários hotéis, mas o alemão
tinha me dito que não me hospedasse em hotel, porque sempre pediam
documentos e que para menores sozinhos não alugavam quartos e que
eles mesmos podiam me entregar para a polícia. Decidi ficar na rodoviária
até parar de chover. Sentava-me, me levantava, caminhava, jantei no
restaurante da rodoviária, já era noite e a chuva não parava. Um pouco
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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cansado, me sentei do lado de um casal que cochilava e peguei no sono.
Quando acordei eram outras pessoas que estavam ao meu lado, olhei o
relógio da rodoviária, marcava 6 horas e 30 minutos. Procurei o banheiro,
fiz as minhas necessidades, tomei banho e, perfumado, apesar de haver
dormido sentado, me sentia muito bem, roupa limpa, nada me
incomodava. Dinheiro eu tinha, e sempre me acompanhava a esperança
de que era só trabalhar e em poucas horas embolsava até vinte ou vinte e
cinco pesos em moeda colombiana. Em outros lugares consegui reunir até
cinquenta pesos.
Já fazia muito tempo que tinha saído da casa de Vish e Estefani.
No começo sentia muitas saudades deles, lembrava o Biche, a Gina, meus
amiguinhos engraxates, também da vez que fui na vila deles, de suas
gentes, senti vontade de voltar e passar uns dias com eles, mas estava
muito longe. Um dia sonhei que estava dormindo na casa de Vish, que
Estefani me passava a mão nos cabelos e dizia: – Meu menininho.
Naquele dia sim senti que a saudade quase não me deixava trabalhar.
Lembrava quando ela disse: – Amor, foi Deus que me mandou ele, e Vish
respondeu: – Não amor, foi o mano que o mandou para que lhe déssemos
uma mãozinha. Eu segui à risca o roteiro que o alemão me marcou. Em
alguns lugares até a polícia estava presente, mas até colaboravam, em
outros lugares fiz amizade com policiais e me levavam nas suas casas e
quando estavam de folga saíamos a passeio com sua mulher e filhos e
familiares. Em algumas cidades os policiais chegavam perto de mim e me
diziam que não demorasse muito porque as reuniões nas ruas e parques
estavam proibidas. Apesar de tudo, tinha me dado muito bem, a não ser
naquela chuva quando tive que dormir sentado na rodoviária. Agora me
faltava só uma cidade para depois chegar à capital, só que era tanta a
vontade de chegar, que decidi não parar e seguir diretamente à capital,
onde procuraria a forma de poder viajar para minha casa. Sentia-me feliz:
tinha dinheiro, iria dar a maior parte para minha mãe e iria ficar com algum
pouquinho para pagar o almoço para meus amiguinhos do mercado,
comprar um presente para Romélia, e para cada um dos meus irmãos iria
dar um pouco de dinheiro.
Lembrava todos os amigos onde sempre chegava ou visitava lá na
minha vila. Lembrava-me do Italiano, cozinheiro do navio, se pudesse
encontrá-lo e contar a aventura que vivi desde o momento que me deixou
naquele porto. Ria sozinho pensando qual seria a cara de alegria da mãe
quando eu estivesse chegando em casa e mais ainda quando estivesse
lhe entregando o dinheiro. Estava tão distraído que nem senti a viagem.
Como de costume olhei o relógio da rodoviária, faltava pouco para as 18
horas, fui ao banheiro, me lavei, penteei, e depois me dirigi a um
restaurante em frente à rodoviária, bem iluminado, amplo, bonito, os
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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garçons bem vestidos. Embora tivesse muita gente, sobravam mesas
vazias. Quando estava entrando fui barrado por um guarda que estava na
porta, que me disse: – Menor sozinho não pode entrar. Saí sem rumo me
afastando da rodoviária, sempre que passava em frente a um restaurante
perguntava para o guarda se poderia jantar e a resposta era não. Bastante
longe da rodoviária, um guarda de um restaurante que estava perto da
porta, sentado em uma cadeira, e ao receber resposta negativa, lhe
perguntei: – Onde poderia jantar? Respondeu-me que era melhor ir até o
porto, só que era um pouco longe, que era bom pegar uma condução.
Perguntei: – E se for a pé? Deu-me todas as dicas para chegar.
No porto, dormindo ao relento
Passei por alguns parques muito bem iluminados, o último perto do
porto era só penumbra. Após caminhar quase duas horas, cheguei ao
porto, de ruas bem iluminadas, muitos bares cheios de gente bebendo,
música em alto volume, mulheres paradas nas esquinas, em grupos de
duas ou três, algumas sozinhas. Uma grande fileira de barracas de
comida, muitos carrinhos de vendedores de refrescos, vendedores de
bijuterias. No fim até podia se encontrar de tudo, a qualquer hora a
bagunça era ensurdecedora, cada um gritando, anunciando seu produto.
Comecei a percorrer as barracas de comida, me aproximei da que me
chamou mais atenção, a mulher que me atendeu foi um pouco grosseira,
me perguntou de forma brusca: – O que você quer? Perguntei o que tinha
para comer. Com muito má vontade enumerou várias comidas. Pedi peixe
ao molho, salada de tomates e patacones. De forma áspera me disse: –
Isso aí é caro. É quanto? Dois pesos. Pode ser, respondi. Ela sempre
grosseira me disse: – Tem que pagar adiantado. Paguei, por último me
serviu um copo de leite e um doce de côco, senti que a mulher não era de
boas pulgas, por isso não me atrevi a lhe perguntar nada a respeito de
onde poderia dormir.
Sem me despedir saí, ela ficou me olhando com certo olhar
suspeito, senti um pouco de medo e tratei de me afastar o mais rápido que
pude daquele barulhento lugar. Olhando para todos os lados, e quando
tive certeza de que ninguém me seguia, me dirigi àquela praça que tinha
visto com pouca luz, calculo que já passava da meia-noite, assim mesmo
tinha alguns casais em alguns bancos. Procurei um banco bem isolado,
me sentei, mas gostaria mesmo era de me deitar e dormir. Olhando para
todos os lados fui tirando o meu capote e uma toalha de banho, presente
de Estefani. Olhando sempre para todos os lados arrumei debaixo do
banco e me deitei, com a toalha enrolei a bolsa que servia de travesseiro.
Ainda estava me organizando quando um casal se sentou no banco, fiz
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tudo o que pude para não fazer barulho, no meu entender era um par de
namorados, discutiam em voz alta, quem mais alto falava era ela. As
poucas chances que ele tinha para falar, com calma dizia: – Não é assim
meu amor, é mentira. Eu lá embaixo não conseguia dormir, ficava quieto e
quando cansava desse lado mudava de posição bem devagar. Ficaram em
silêncio um bom tempo, eu estava pegando no sono e de novo ouvi as
vozes, só que desta vez não brigavam, ele dizia: – Amor, eu te amo,
porque iria te trair, podes estar certa disso. Ela: – Amor, eu te amo muito, e
é por isso que sinto ciúmes e tu me dás motivo para tal. Ouvi o estalar dos
lábios, por certo se beijavam, não passaram muitos minutos e já estavam
brigando de novo e assim entre brigas e reconciliações passaram umas
quantas horas, até que entre as tênues luzes do parque vi eles se
afastarem de mãos dadas e de vez em quando se beijando.
Retido e encaminhado ao Consulado da Colômbia
Calculo que já era madrugada, mas o sono me dominou e só
acordei quando um senhor com uniforme, não de policial, me cutucou com
um rolo de madeira e disse: – Acorda vagabundo, sem vergonha, ligeiro,
ligeiro. Abri os olhos, o dia estava bem claro, o cara quase que não me
deixou enrolar o capote, tive que guardar a toalha e o capote cheios de
folhas. Antes de guardar, me puxou a bolsa perguntando o que tinha ali.
Respondi: – Minhas roupas, mais nada. O cara era um gigante, me pegou
com suas mãozonas e me puxou gritando: – Vamos, vamos! Ele
caminhava a passos largos, sempre me segurando, eu, para acompanhar,
tinha quase que correr, e corria todo apavorado. Enquanto ele me puxava,
algumas pessoas lhe gritavam: – Larga o guri, infeliz! Outros lhe gritavam:
– Larga o rapaz, cafajeste. Uma senhora lhe gritou da sacada: – Deixa a
criança em paz, brutamontes, aquele poderio se lhes há de acabar. O
homem não se importava com os insultos das pessoas. Em poucos
minutos entramos num prédio antigo, onde atrás de uma escrivaninha
antiga e grande estava um senhor baixinho e gorducho com bigode,
vestido com uniforme igual ao do gigante que me atirou contra um banco
de madeira. Como pude, consegui me equilibrar, o gorducho nos recebeu
todo sorridente e de forma sarcástica, dizendo: – Um para a limpeza. Na
mesma sala havia várias pessoas, pretas e brancas, homens e mulheres,
um casal de pretos mostrava nos seus rostos muita tristeza, uma senhora
branca gemia e quando o gigante me empurrou, ela desandou a chorar, o
porquê nunca soube.
O gordinho pegou um livro grande e perguntou para o gigante: –
Onde pegou ele? No parque tal. O que fazia? Dormia. Em seguida me
perguntou: – Qual o teu nome? Orlando Ortega. O de teu pai? Ele já
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morreu. Mas como se chamava? Nicolas Ortega. Tua mãe? Isabel
Cabeza. Quantos anos tu tens? Doze, vou fazer treze em agosto. Então tu
já tens treze, agosto já passou. De onde tu és? Respondi da Colômbia. Os
dois ficaram mudos, o gordo largou a caneta e fechou o livro, em seguida
com muita delicadeza me perguntou: – Com quem tu andas? Sozinho,
respondi. A tua mãe te deixou? Não senhor, eu fugi. Uma das senhoras
disse: – Olha onde é que anda essa criança, longe da família! O gordo me
perguntou: – Já tomou café? Não senhor. O gigante entrou para o interior
do prédio, em seguida apareceram duas senhoras, uma me pegou pela
mão e me levaram para dentro, o gigante com muita delicadeza se
despediu de mim, meio desenxavido. As senhoras me levaram para uma
sala que tinha sofá e mesa de centro, folhagens e quadros, uma delas me
disse: – Agora vamos lhe preparar um café. Eu perguntei se não havia um
lugar para tomar banho. – Sim, sim, e me mostraram o banheiro. Uma
delas me prometeu trazer uma toalha, eu falei que tinha tudo. Saí do
banho de roupa limpa, penteado e perfumado! Que cheirinho gostoso. O
café estava pronto, café com leite, pão, queijo e manteiga. Terminado o
café me escovei, estava agora como eu gostava. Notei que a todo
momento passava alguém me olhando, como se fosse algum bicho raro.
Uma senhora bastante reforçada, de avental branco e com um pano
amarrado na cabeça chegou onde eu estava, me olhou, sorriu meio que
sem graça, mas não falou nada e foi embora, em seguida passaram duas
moças, uma branca e outra morena clara, elas só passaram me olhando e
rindo. Um senhor do tipo sarará que vinha atrás delas, também de avental
branco e gorro de cozinheiro, entrou, me deu a mão, me cumprimentou e
disse: – Bem vindo! Seu sorriso era franco, e ao se despedir colocou-se às
minhas ordens, me deu uma palmadinha nas costas e foi embora.
Ouvi ruído de carro estacionando na rua, me levantei e fiquei
olhando através da grade da janela, um senhor de uniforme militar desceu
do carro e se dirigiu à entrada do prédio, o motorista ficou no carro. O
militar junto com o gordinho chegou onde eu estava, o militar me
cumprimentou me dando a mão, perguntou se tinham me dado café,
respondi que sim, se despediu e saiu. Horas depois me convidaram para
almoçar, o comedor era um salão grande que tinha vários uniformizados,
onde inclusive estava o gordinho, que ao invés de sarcástico, agora era
todo delicadeza para comigo. Muitas perguntas me eram feitas, eu
respondia, por último terminei fazendo provas, pelo que entendi, pouco
gostavam do gigante, todos foram saindo e eu voltei para a sala, e sentado
no sofá, peguei no sono.
Bem à tarde me chamaram e com a minha bolsa subi num carro,
junto comigo ia um guarda vestido igual ao gigante, uma senhora à
paisana e o motorista. Saímos, a cidade era grande, após atravessar ruas,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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avenidas e parques, chegamos num prédio cercado de grades. Num
mastro alto estava a Bandeira Colombiana, na entrada do prédio uma
placa dizia: Embaixada da Colômbia. O porteiro abriu o portão, uma vez
dentro, a senhora e eu descemos, o guarda continuou no carro junto com o
motorista. Eles se despediram de nós e foram embora. A senhora não
falava, apenas me indicava o caminho a seguir com gestos e movimentos
das mãos. Atravessamos vários corredores, alguns jardins e passamos por
vários escritórios. Após um longo espaço vazio, chegamos num prédio,
sempre dentro do mesmo complexo, entramos numa sala onde estava um
casal de jovens, o rapaz se levantou e tratou de falar com a senhora que
me acompanhava, a sós. Tive a impressão que falavam de mim e que
haveria uma ordem a meu respeito. Saímos do escritório e subimos por
uma escada que dava numa sala na parte superior do mesmo escritório
que acabávamos de sair, não era muito grande. A sala tinha um sofá
grande e um pequeno, uma mesa de centro onde havia várias revistas
colombianas um pouco antigas, havia uma ampla sacada que dava para
uma movimentada avenida. Do fundo da sala saía um corredor estreito, e
no fundo deste tinha um banheiro. Ela me mostrou tudo, e antes de sair
me disse: – Você vai ficar aqui. Amanhã o senhor Cônsul estará aqui e
falarás com ele. Procure não sair, porque se lhe pegarem dormindo no
parque, se os guardas lhe pegam, lhe vão encaminhar à Febem e lá, se
não apanhas dos guardas, apanhas dos garotos detentos. Logo mais um
senhor vai lhe trazer comida, um lençol e travesseiro, podes dormir em
qualquer sofá. Saiu sem se despedir e chaveou a porta.
Não tinha comido meu acostumado lanchinho e sentia fome, me
sentei num sofá e tentei pensar, mas a fome não me deixava, já estava
escurecendo quando apareceu o senhor me trazendo um prato de comida,
tudo junto, arroz, feijão com pedacinho de carne de porco, pedacinho de
milho verde e uma garrafinha pequena de refrigerante. Enquanto comia, o
homem me olhava de soslaio, gesticulava palavras ininteligíveis, eu sentia
que ele queria me dizer alguma coisa, só que não falava, quando terminei
me perguntou: – Porque o guarda te pegou? – Cheguei aqui muito tarde da
noite, fui comer nas barracas do porto, e como não conseguia onde dormir
decidi dormir no banco da praça, e lhe contei porque tinha pego no sono,
devido à briga e romance dos namorados, dormi de madrugada, e foi por
isso que o guarda me pegou dormindo e me levou para uma casa. – E
como lhe trataram? – No começo muito rudes, quando lhes falei que era
colombiano, começaram a me tratar bem, me deram café e depois almoço
e por último me trouxeram aqui. – Você sabe onde está? – Não senhor. –
Aqui é a Embaixada da Colômbia, esta parte pertence ao Consulado, tudo
isto aqui é como se fosse território colombiano, a maior parte do pessoal
que trabalha aqui é colombiano, muito poucos não o são. É claro que
naquela época, tudo o que ele me falava de Embaixada e Consulado eu
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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não entendia nada, porém respondia: sim senhor. Após me dar algumas
explicações, disse que o senhor Cônsul viria no dia seguinte e falaria
comigo, que ele trabalhava com o senhor Cônsul e ele tinha lhe
encarregado de ver o que eu carregava na bolsa, nos meus bolsos, se os
homens me tinham ocasionado algumas feridas, se tinham me batido.
Mandou tirar tudo o que tinha na bolsa, viu o capote, lhe expliquei o porquê
dele, um carnezinho que eu carregava, eu falei que era a identificação
escolar, era de cor marrom e estava escrito em letras de imprensa:
Governo da República de Colômbia, Ministério de Educação, em
manuscrito estava o nome do pai, da mãe e o meu, onde dizia a série, 2º
ano, leu tudo e me perguntou: – Estudou só até a segunda série? – Sim
senhor, respondi e tive de lhe contar o porquê. Pegou uma tesourinha que
a mãe tinha me dado para cortar as unhas e quis saber para que eu a
tinha. Dei-lhe a explicação para que a usava. Contou o dinheiro que eu
tinha em moedas e notas, me mandou tirar a camisa, me examinou as
costas, o peito e os braços. Notou a protuberância na minha barriga,
perguntou o que era que tinha, lhe mostrei e lhe disse que eram dólares.
Pegou, contou, me lançou um olhar como de desconfiança, ele tomava
nota de tudo, dos dólares não me perguntou nada, guardou tudo na bolsa,
só me deixou os utensílios de limpeza pessoal, menos a tesoura, por
último assinou o papel onde tinha tomado nota de tudo, me entregou uma
cópia e disse: – Guarde e não perca. Posso garantir que este senhor em
nenhum momento foi ríspido comigo. Antes de sair chamou um senhor e
lhe entregou todas minhas coisas, pedindo para guardar no escritório do
Cônsul. Em seguida o senhor me disse: – Este senhor fica toda a noite por
aqui, se precisar alguma coisa é só gritar “Isidoro”. Despediram-se de mim,
e o Isidoro, ao se despedir do senhor, lhe disse: – Boa noite senhor doutor.
O doutor foi embora e o Isidoro ficou pelo corredor.
No dia seguinte, após ter tomado o café, chegou até o quarto uma
senhorita e me falou que o senhor Cônsul queria falar comigo, ela desceu
na frente e eu a segui, entramos num escritório e me mandou sentar. Ela
sentada atrás da sua escrivaninha, de vez em quando me lançava um
olhar como sem vontade de me olhar e no seu rosto surgia um leve
sorriso, algo assim como picaresco. Querendo entrar em conversação com
ela lhe perguntei: – A senhorita é colombiana? – Sim. Foi tudo o que me
respondeu, notei que ela não queria falar comigo e preferi ficar calado. Um
senhor jovem, alto, de barba, apareceu na porta e me perguntou: – Você é
Orlando? – Sim senhor. – Passe aqui! Entrei, me mandou sentar, bastante
ríspido e sem nenhuma delicadeza me dirigiu a palavra desta forma: –
Você vai ser deportado para sua terra num navio colombiano que está
para chegar, lá vai ser entregue na correcional de menores (FEBEM).
Sabe o endereço de sua casa? – Sim senhor. – A sua mãe vai ser avisada,
o restante é com eles. Você vai ficar naquele quarto, a mulher de Isidoro
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lhe levará a comida e procure não se afastar muito longe daqui e nem
tente fugir, porque aqui tem soldados dia e noite e se te pegam, então será
chaveada a porta, entendido? – Sim senhor, respondi. Falando forte me
disse: – Pode ir. Foi me empurrando e fechou a porta, não me deu chance
de nada, nem de perguntar se me devolveriam as minhas coisas e o meu
dinheiro. A senhorita que me trouxe me abriu a porta para sair, mas
sempre acompanhada daquele sarcástico sorriso, saí e fechou a porta.
Confinado no Consulado
A minha cabeça começou a ser invadida por muitos pensamentos,
me deitava e não conseguia dormir, tomava um banho de noite e outro de
manhã, não tinha sossego, me deitava, me levantava, mesmo à noite me
sentava na sacada, ficava longas horas na sacada, via muita gente entrar
e sair do escritório do Cônsul, as vozes eram de colombianos, soldados
andavam pelos jardins. Uma vez vi muito movimento de soldados bem
uniformizados, oficiais hasteando a Bandeira Colombiana e outra não sei
de onde era, toque de clarim e uma orquestra sinfônica, primeiro tocou o
hino nacional e depois outro hino. Da sacada via o movimento contínuo de
veículos, via passar o vendedor de frutas oferecendo-as aos gritos, era
nesta sacada que eu passava a maior parte do dia. Uma senhora, que
depois fiquei sabendo que era a mulher de Isidoro, me trazia a comida, era
só um prato, quase sempre o mesmo, arroz, feijão com um pedaço de
carne, às vezes de porco, outras de gado, uma espiga de milho verde
cozida ou aipim, algumas vezes era uma broa de milho, uma garrafinha
pequena de refri, sempre o mesmo. O café da manhã era uma xícara de
café com leite, um pão tipo cacetinho, que já vinha com manteiga.
Acostumado que estava a comer um lanchinho entre o café e o almoço,
mas nada disso me era brindado, e quando chegava aquele horário a fome
se manifestava, então quando traziam aquele pratinho de comida, eu
estava varado de fome. A mulher do Isidoro não me dava chance de falar
com ela. Chegava, pegava o prato do dia anterior, me deixava a comida e
saía quase correndo.
Um dia quem me trouxe a comida foi um rapaz, calculo que da
minha idade. Ele foi até mais rápido do que a mulher de Isidoro. Deixoume a comida, nem levou o prato anterior e desceu as escadas correndo.
Guri bobo que eu era, e sem malícia alguma, nunca tive uma idéia de fazer
algo para mudar essa situação. Não sei como foi que uma noite, como não
conseguia dormir, acho que era porque sentia fome, chamei Isidoro aos
gritos, ele subiu as escadas lentamente, entrou, não me cumprimentou
nem me perguntou nada, fui eu quem falou: – Senhor Isidoro, estou com
forte dor de estômago, será que o senhor poderia me conseguir um chá
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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preto? Também uma aspirina, e se o senhor puder me comprar umas
bolachas salgadas, é que a aspirina me produz uma ardência no estômago
e só passa comendo alguma coisa salgada. O senhor me faz esse favor,
que quando o senhor Cônsul me devolver meu dinheiro eu lhe pago. Eu
me retorcia como se realmente sentisse dor. Ele saiu, não demorou muito
e apareceu com o chá, a aspirina e um crocante bolachão que não
consegui nem comer a metade. Ele colocou tudo na mesa e saiu sem me
dizer uma palavra.
Satisfeito depois de tomar o chá e comer parte do bolachão me
deitei, era fome, em seguida peguei no sono. No dia seguinte,
seguramente avisado por Isidoro, apareceu o doutor e começou a me
auscultar, como era justamente o horário do meu lanche, o meu estômago
roncava de fome, o doutor me perguntou: – Está com fome? – Sim senhor
um pouco. Ele mexeu a cabeça e entre os dentes disse: – Esses seus
patrícios, falou em tom de crítica, tirou da pasta uns comprimidos
vermelhos que estavam num vidro. Tome um por dia, são vitaminas, não
vão lhe fazer mal, ao contrário, muito bem para sua saúde, me espere, já
volto. Saiu, pouco tempo depois voltou me trazendo um pacote de
bolachinhas salgadas e outro de doces, dois refrigerantes grandes e cinco
bananas. Pegou sua pasta e me disse: – Você está muito bem. Despediuse e saiu, em seguida me aferrei no pedaço de bolachão do dia anterior e
numa banana. Tratava de economizar os meus lanches o mais que podia.
Os meus lanches eram bem pouquinhos, é claro que mesmo
economizando, dias depois tudo já estava no fim, só tinha um golinho de
refrigerante e uma bolachinha. Aquela noite, deitado no sofá e pensando
que todos os meus lanches se tinham terminado e que voltaria a sentir
fome antes da chegada daquele pratinho de comida, sem querer falei: –
Deus me há de ajudar. Fiquei meditando e eu mesmo me recriminava e
dizia: – Eu só me lembro de Deus e de Santa Sara quando estou em
apertos, caso contrário nunca me lembro deles.
Sentei-me, rezei um Pai Nosso, duas Ave Marias em voz alta, pedi
a Deus e Santa Sara Kaly, meu Deus, minha Santa, me ajudem, não me
abandonem, sabem, eu sou um burro que não sei pensar para conseguir
me defender, não sei nem falar. Tornei a rezar e me deitei. Isto que
escrevo realmente aconteceu, coisa que me pareceu estranha. Sonhei
com meu pai, que ele estava todo bravo comigo, me xingava, me dizia que
eu realmente era um bobo, que me deixava humilhar dessa forma, abre a
boca, aprende a falar e não te esqueças que quem sempre te salva é Deus
e a nossa mãezinha Santa Sara Kaly. Aquela noite eu vi o rosto do meu
pai, porém quando acordei não consegui lembrar sua fisionomia. Como de
costume me levantei, tomei meu banho, troquei de roupa interior, que só
restava uma muda, tinha vontade de lavar minha roupa, mas não tinha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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sabão, o sabonete estava no fim, também o creme dental, e o perfume só
restava o cheirinho do vidro, mesmo assim não estava triste, ao contrário,
sentia uma sensação de alegria. Desta vez foi o Isidoro que me trouxe o
café, o mesmo de sempre e do mesmo jeito, entrou, colocou na mesinha
sem dizer uma palavra e saiu, me lembrei que no sonho meu pai tinha me
dito: Abre essa boca e grita, então quando vi o Isidoro sair quase que
correndo, lhe gritei: – Porque é que vocês não querem falar comigo? Ele
não me respondeu nem sequer me olhou, desceu a escada bem tranquilo.
Tomei o café e fiquei pensando, se tivesse seguido à risca
conforme o alemão tinha me aconselhado, talvez não estivesse nesta
situação em que me encontro! Não sei por que pulei aquele povo, lembrei
de todos os lugares por onde passei, de pensões que dormi e fui bem
tratado, motoristas que me levaram para suas casas, passeei com eles e
seus familiares, dormi em ônibus autorizado pelos motoristas e uma vez
cheguei a dormir numa rodoviária porque chovia. Em todos os lugares fui
bem tratado, e aqui, desde que cheguei, não tive muita alegria. O doutor
tinha me dito que a maior parte do pessoal que trabalhava aqui era da
minha terra, só que aqui nem sequer me dão importância. Falei quase em
voz alta: – Onde estará a linda Estefani e o Vish? Porque será que lembro
tanto deles mais do que dos meus? Lembrando o sonho que tive com meu
pai gritei: – Pai... pede para Santa Sara Kaly me ajudar! Sem pensar em
nada fiquei olhando, sentado no sofá, quando vi a moça, aquela do sorriso
picaresco, entrou no quarto sorrindo do mesmo jeito e me disse: – O
senhor Cônsul lhe manda chamar. Tudo se repetiu como da primeira vez,
ela na minha frente e eu a seguindo atrás, entramos no escritório, me
mandou sentar e com aquele sorriso de malvada me olhava de vez em
quando. Minutos depois apareceu o jovem alto e barbudo e da mesma
forma grosseira me mandou entrar no seu escritório e sentar.
O show
Ele tinha todas as minhas coisas na sua mesa, inclusive o dinheiro
que tinha tirado da bolsinha que eu mantinha amarrada na cintura. Sem
nenhuma delicadeza, ao contrário, bem grosseiro, me perguntou: – Tudo
isto aqui é fruto de roubo? Como é que veio parar tudo isto nas suas
mãos? Quase tremendo, não sei se de raiva ou de quê, respondi: – Não
senhor, eu não roubo, eu ganho fazendo provas nas praças e
contorcionismo. – Contorcionismo? Questionou ele. – Sim senhor. E sem
perda de tempo, comecei a caminhar com as mãos, subi na mesa, pulei,
ele bateu palmas, em seguida gritou: – Lusdari, vem. Talvez você lendo
isto não possa imaginar o pulo que o meu coração deu quando ouvi aquele
nome. Quando a moça do tal sorriso entrou, eu estava lembrando Lusdari,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Evaristo, Chepe, Mercedes, e mesmo distraído, ouvi quando o Cônsul lhe
disse: – Apague a luz e feche o portão da entrada e vem ver uma coisa
bonita, um espetáculo de circo.
Quando ela voltou comecei tudo de novo, a cada prova batiam
palmas, riam e falavam: – Que lindo! Tão novinho, como é que sabe tanta
coisa? Aquele sorriso picaresco desapareceu da moça, agora era um doce
sorriso e sincero. O Cônsul me perguntou: – Quer café? Eu que estava
pensando, quando voltasse ao quarto iria comer a última bolachinha e
tomar o último gole de refri e pedir para ele me deixar comprar coisas,
porque me dava muita fome entre o café e o almoço e também à tarde. Por
isso, quando me perguntou se queria café, respondi afirmativamente.
Lusdari se levantou e ao sair, o Cônsul lhe disse: – Fale para o Isidoro que
nos mande o café bem acompanhado. Quando Lusdari saiu, nós ficamos
conversando, me perguntou para que eram aqueles paninhos. Quando lhe
contei que minha mãe tinha me ensinado que sempre que fizesse minhas
necessidades fisiológicas era para me lavar bem com um paninho e jogar
fora, que era bom andar sempre limpo e prevenido para o caso de ter de ir
a um médico com urgência por um mal súbito ou por qualquer coisa não
estar fedorento de cocô ou de xixi.
O Cônsul se levantou, colocou as mãos na cabeça e olhando para
cima dizia: – Meu Deus, como é que minha mãe não me ensinou isso! Ele
caminhava de um lado para outro e dizia: – Que mulher mais sábia essa
tua mãe, Ortega. Naquele momento entrou Lusdari tomando café preto
num caneco na mão, em seguida entrou a mulher de Isidoro com uma
bandeja onde fumegavam duas xícaras de café com leite, várias fatias de
pão, manteiga, queijo e salsichão frito. Para mim, tudo aquilo era um
tremendo banquete, depois de tanto tempo comendo um cafezinho com
aquele pãozinho lambido de manteiga. Uma das coisas que sempre me
lembro de quando já estava um pouco civilizado, é quando a mulher de
Isidoro, ao me ver junto com o Cônsul, tratando de deixar o cinismo de
lado, disse: – Ah, o menino está aqui? Pela primeira vez a ouvi falar. Até
hoje, quando me lembro, sinto raiva por não ter sabido responder de forma
grosseira. Lusdari tomava seu café preto, saboreando com gosto, ela
também, pela primeira vez falava comigo amistosamente. Enquanto
estávamos no escritório, às vezes entrava alguém para ele assinar alguns
papéis. Ele lia, assinava e carimbava, outros só lia e deixava na mesa, a
todas as pessoas que entravam ele me apresentava e lhes dizia: – É
nosso conterrâneo, é um artista, faz coisas muito bonitas. Todos me
davam a mão e sorriam, mas a única coisa que eu pensava nesse
momento era que antes de sair ele me deixasse pegar algum dinheiro,
para pedir ao Isidoro me comprar algumas coisas, porque a comida era
pouca e eu ficava com fome. Pensava também em pedir, sob juramento de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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que não fugiria, para que me autorizasse a sair de vez em quando para
conhecer um pouco a cidade. Mas a todo o momento eu mudava o
pensamento. Nós continuamos conversando. Eu estava à espera de uma
oportunidade para fazer o pedido, mas não conseguia porque continuava
entrando gente levando papéis para ele assinar e carimbar, ou
funcionários pedindo informações, etc. Eu só olhava e pensava. Terminado
o movimento ele me disse: – Não gostaria que continuasse aqui detido,
vou levá-lo para minha casa e lá esperará até a chegada do navio que vai
levá-lo de volta. Como você não tem documentos e está fugido de casa, o
capitão vai ter que entregá-lo ao juiz de menores em Barranquilha, que é
onde o navio vai ficar por alguns dias, eu vou lhe dar uma carta para que a
entregue ao capitão para que o trate bem e até possa libertá-lo. Procure
não se apresentar em nenhum parque, porque se tornarem a detê-lo, vão
lhe confinar onde estão os menores infratores, que são muito maus, e vai
me criar problemas. Eu vou lhe organizar num quarto lá na minha casa e
procure não ficar até muito tarde da noite na rua. Suba, pegue suas coisas
e volte. Subi correndo, peguei o pouco que tinha e voltei. Organizei muito
feliz todas as minhas coisas na bolsa e rápido já estava pronto. O senhor
Cônsul antes de sair deu algumas ordens e também informou a Lusdari
que não viria à tarde. Saímos, um carro preto nos esperava no portão, o
motorista era o mesmo que tinha me trazido até ali. Poucos minutos depois
de ter rodado algumas ruas e avenidas, chegamos na casa, não era um
sobrado, só que a casa ficava a cinco degraus acima do nível da rua.
Hóspede na casa do Cônsul
A esposa do Cônsul nos recebeu um pouco assustada, seu olhar
era de desconfiança, entramos direto na sala, nos sentamos e ele falava
para ela: – Amor, o nosso patrício não é nada daquilo, nós descobrimos
que ele é um artista, ele não é nada daquilo que nós falamos e que
imaginamos que ele era, tu vais ver as coisas lindas que ele faz, e é dessa
forma que ganha dinheiro. Contou-me que por todos os lugares onde
passou sempre foi muito bem atendido bem tratado, que tem deixado
muitos amigos, só que aqui, desde que chegou, não tem sido bem tratado.
– Orteguita, nós não sabíamos quem tu eras, e ver um guri na tua idade
com tanto dinheiro e com todos esses badulaques, a gente só podia
pensar que tu eras um gato, sem saber o artista que és, e em nome de
todos, te peço desculpas.
O Cônsul se levantou, chegou à janela e gritou para o motorista: –
Jan, sobe querido. O tal Jan entrou e o Cônsul lhe disse: – Olha as coisas
que ele faz. Eu estava pronto e comecei, sempre caminhando com as
mãos e assim continuei, a cada prova que fazia, batiam palmas, e não
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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faltavam as risadas. O Cônsul convidou o Jan para almoçar conosco, e
depois do almoço e de um descanso, íamos dar uma volta pela cidade.
Enquanto almoçávamos, me faziam perguntas. Perguntaram o que ia fazer
com aquele dinheiro, eu lhes contei que éramos muito pobres, lhes falei
também como era nossa casa, e esse dinheiro era para minha mãe fazer a
casa nova. Contei-lhes como eu tinha saído de casa, fui lhes contando
tudo, ponto por ponto, quando lhes contei que tinha sentado naquela cobra
pensando que era um tronco ou uma árvore caída, riram à vontade, mas
quando lhes contei da fome e dos plátanos que peguei na lata de lixo, o
Cônsul estava quietinho, nem piscava, os olhos de sua esposa estavam
molhados de lágrimas e também os de Jan.
Terminado o almoço ela começou a recolher os pratos e talheres,
eu já fui me levantando e ajudando, mesmo que ela não quisesse, eu
insistia em ajudar, até que ela deixou. Desde a minha chegada, o que não
parou de me incomodar e quase não nos deixava conversar era um
cachorrinho que eles tinham, e que desde o momento que entrei não parou
de me latir. Colocaram-no numa caixa de madeira, mas ele não parava,
quando me levantei da mesa para ajudar, parecia que ele tinha
enlouquecido, latia com mais força, não sei de que forma conseguiu pular
fora da caixa e veio direto para a cozinha onde eu estava varrendo e se
avançou sobre mim. Como ele era pequeno, o afastei com a vassoura.
Nesse momento ela entrou, pegou o cachorro, xingou, deu um tapinha
nele e colocou de novo na caixa, mas assim mesmo ele não parava de
latir. O Cônsul, que tinha saído com o motorista, ao voltar foi direto brincar
com o cachorrinho e lhe perguntava: – Tá com ciúme? Bobo!
Após tomarmos o cafezinho ela me mostrou o quarto onde eu iria
ficar, o quarto estava perto da sala, me pediu para descansar porque mais
tarde iríamos sair. Entrei, me deitei e dormi os meus dez minutos do
Antônio. Continuei deitado e os ouvi conversando, ouvi o meu nome, fiquei
atento, calculei que estavam falando de mim, mas não conseguia entender
o que falavam. O motorista o chamou e os dois saíram, ela ficou e eu
aproveitei, me levantei, fazendo de conta que recém me acordara. Ela me
convidou a sentar, mas quando o cachorrinho ouviu minha voz, começou
de novo a latir. Sentados na sala, ela me fazia várias perguntas, lhe falei
de Romélia, da escola, dos meus olhos, mas aquele cachorrinho não
parava de latir e atrapalhava a nossa conversa. Ela o pegou no colo mas
foi pior, ele se escapou dela, saltou e veio na minha direção, como
querendo me morder. Eu fiz ameaça de pegá-lo e ele saiu berrando e se
escondeu debaixo do sofá onde ela estava sentada. Ela o xingou e
mandou calar a boca, ele ficou quietinho embaixo do sofá, mas de vez em
quando dava umas latidas. Estava contando para a senhora Consulesa
como era o negócio de trocar bananas por cigarros nos navios num porto
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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colombiano, nesse momento o Cônsul entrou e nos convidou para dar uma
volta pela cidade. Saímos e por onde passávamos, iam me dizendo os
nomes das igrejas, dos parques e dos monumentos. Passamos por muitos
lugares, também passamos pelo parque onde o guarda me pegou e tive
que lhes contar a história dos namorados que brigavam e se reconciliavam
e que foi por culpa deles que peguei no sono e assim o guarda me pegou.
Também lhes contei da fome que sentia entre o café e o almoço e entre o
almoço e o jantar e que às vezes não conseguia dormir de tanta fome.
Falei também da mentira que inventei para que me dessem um chá, então
ela me apertou sobre seu colo e me disse: – Coitadinho! E dirigindo-se ao
Cônsul disse: – Amor, porque judiaste deste menino? Porque não o
levaste direto para casa? O Cônsul respondeu: – Amor, só agora estou
sabendo da comida que o Isidoro lhe dava, essa eu vou cobrar dele, outra
coisa, o guarda que veio me entregar ele, disse que estava seguro que o
rapaz era ladrão, e quando vi na bolsa dele tanta geringonça pensei que
realmente tudo era fruto de roubo e mais ainda, quando encontrei todo
aquele dinheiro amarrado no seu corpo, não tive mais dúvidas. Aquele
abraço que ela me deu me fez lembrar Estefani e fiquei pensando neles.
Já estava escuro quando entramos num restaurante para jantar, como não
entendia nada desse negócio de cardápio, a Consulesa me explicava o
que era cada prato.
Comi o mesmo que todos, depois retornamos para casa, nos
sentamos na sala, e em seguida o Cônsul me disse: – Ortega, tu não tens
nenhum documento e vai ser difícil sair do país. No momento da saída eles
podem te prender e até averiguarem quem realmente és, tu vais passar
muito tempo lá na correção e eles te judiam muito e eu muito pouco posso
te ajudar. Estive falando com a minha mulher para tu ficares mais algum
tempo conosco até encontrarmos a forma de te conseguir um passaporte
para menor, não vai ser fácil, mas vou tentar. Tu podes ficar lá em casa,
nós recém estamos chegando aqui, os nossos dois filhos estão estudando
na Europa, a minha mulher não sabe se fica aqui ou retorna para a
Colômbia e tu serias uma boa companhia para ela. E para que não fiques
sem ganhar nada, lhe vamos dar três dólares por mês e não precisa te
preocupar pela roupa lavada, comida e mais algumas coisinhas, que
procuraremos te dar. Pelo que já tinha notado como eram duras as
autoridades, e também o alemão já tinha me advertido, imediatamente
aceitei. Ela pulou de alegria, sentou-se ao meu lado e me abraçou, mas
não sei de onde saiu o cachorrinho, que latia com raiva na minha frente
como se me provocasse. O Cônsul lhe dizia: – O que é isso Firpo? O dito,
ao invés de se acalmar, mais brabo ficava e não saía da minha frente. A
dona Amanda, que era o nome da mulher do Cônsul, também o chamava
com carinho: – Vem, Ortega é teu amiguinho! Só que ele não queria saber
de carinho, ao contrário, quanto mais carinho lhe davam, mais brabo
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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ficava. Quando tentei pegá-lo, chamando-o com carinho, ele fugiu da sala
e de lá continuou seu concerto. Eu já estava pegando nojo dele e
pensando: No momento que ficar sozinho comigo vou lhe dar uns quantos
coices para que aprenda a me respeitar.
Despedimo-nos e fomos dormir. Como de costume, cedo me
levantei, após tomar o meu banho fui para a copa. O cachorrinho sentiu
meus passos e começou a latir, eu não fazia caso, comecei a arrumar a
mesa tal como Estefani a arrumava. Uma vez tudo pronto, comecei a olhar
para o fogão e as panelas e sozinho falava: Que pena não saber fazer o
café! O meu irmão Marino e meu irmão Túlio, eles sim sabem tudo de
cozinha, só eu que não pretendo aprender.
Ouvi ruído de carro, o portão abriu, era o motorista, mexeu comigo:
– Oi madrugador! Em seguida entrou na cozinha, pegou um cesto de vime
e um vasilhame de alumínio e me perguntou: – Quer ir junto? – Sim
senhor. Saímos, a três quadras havia um armazém grande, tipo
mercadinho, muita gente comprando e também vários atendentes. O
motorista era bem conhecido por todos os funcionários, eles sabiam que
ele levava leite e pão. No momento de pagar, o caixa dava um selo
parecido com o dos correios, este era de cor vermelha e se lia propina em
letras pequenas nos quatro lados e no centro estava desenhado em
número médio real. O motorista me explicou que quando conseguisse
reunir em selos o valor do leite e o pão, ao invés de pagar com dinheiro
pagava com os selos e que quanto mais comprava, maior era o valor do
selo propina. Regressamos para casa com o leite e pão. Vínhamos
conversando, lhe perguntei seu nome, me respondeu que era conhecido
por Salazar, que era seu sobrenome. Informou-me que fazia muitos anos
que trabalhava na Embaixada, que sempre lhe tocava receber os novos
Embaixadores e Cônsules e outras autoridades, que quase sempre
ficavam quatro anos e depois retornavam para a Colômbia e vinham
outros. Também sempre era ele o encarregado de atender e orientar as
esposas ou empregadas e depois ele só ficava a serviço da Embaixada,
salvo quando as esposas do Embaixador, Cônsul ou oficial lhe chamavam
para alguma ajuda.
Quando chegamos em casa, dona Amanda estava coando o café,
nós chegamos com o leite e o pão, quando ela nos viu entrar disse para
Salazar: – Viu como ele arrumou bem bonita a mesa para o café? O
Cônsul que estava tomando banho, em seguida veio se sentar à mesa,
todo perfumado e disse: – Opa! Esta mesa está arrumada para um rei.
Amanda respondeu: – É obra de Ortega. Na mesa se conversou de tudo
um pouco. Com os casos engraçados rimos, mas parece que isso não
agradava ao cachorrinho, porque lá de onde estava encerrado se ouvia
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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seus latidos. O Cônsul e Salazar após o café foram embora, Amanda e eu
ficamos arrumando a casa, eu ajudava, ajudei até a limpar o cocô do
cachorro, que tinha feito no quarto. O cachorrinho me olhava com um olhar
de ódio e eu também já odiava o dito animal. Eu nunca tinha limpado cocô
de cachorro, agora pela primeira vez estava limpando. Amanda lhe deu
banho e o amarrou nos fundos da casa no corrimão de uma escada, lhe
colocou a comida, e mesmo comendo me olhava, parava de comer e latia
para mim, sentia que ele me odiava, e eu também. Naquele dia dona
Amanda não fez almoço, ela me indicou onde era o restaurante e eu fui
comprar a comida. Ao meio-dia o Cônsul veio sozinho para casa. Após o
almoço e a cesta, o Cônsul voltou para a Embaixada. Dona Amanda me
informou da vinda de um grupo de senhoras e senhores que viriam nessa
tarde porque gostariam que ela entrasse para o grupo que procurava
ajudar crianças pobres. A dona Amanda me pediu para levar Firpo, que
era o nome do cachorrinho, a dar umas voltas pelo parque enquanto
acontecia a reunião, para que ele não incomodasse com seus latidos.
Prontifiquei-me a levá-lo. Ela desceu a escada pegando-o no colo e
subindo com ele lhe dando carinho e falando para ele: – Firpo, você tem
que se comportar com Orteguita, ele vai levar você a passear pelo parque.
Estávamos na sala quando notamos a chegada do pessoal. Peguei da
corrente e tentei sair rápido, porém o cachorro não queria ir, me parecia
que ele pressentia o que lhe esperava. Ela teve que puxá-lo para a rua.
Uma vez fora, e enquanto ela recebia o pessoal, puxei-o e saí
correndo, ele também saiu à bala, como tentando fugir, mas eu segurava
firme na corrente e corria atrás dele. Quando dobramos a primeira esquina
não era mais ele que dominava a situação, puxei a corrente e trouxe-o
contra mim, e como se fosse um ser humano comecei o sermão: – Aqui é
amigo, porque não late para mim agora? Olhei para todos os lados, e
como não vi ninguém, lhe apliquei o primeiro coice, dizendo: – Por favor,
em casa tu não late para mim mais, viu! Agora vamos, lhe dei mais dois
coices, parece que ele entendia a situação em que se encontrava e
começou a caminhar sem correr. Já na praça, eu sentado num banco e ele
deitado no chão, quietinho, olhei para ele e pensei: Está domado. Minutos
depois apareceram umas meninas com uma cadelinha bem branquinha,
seu pelo parecia um algodão, as meninas acharam o Firpo bonitinho e
deram carinho, a cachorrinha e o Firpo começaram a brincar, minutos
depois um carro buzinou e as meninas chamaram: – Vamos Lanuda.
Pegaram a cachorrinha e saíram correndo, eu peguei a corrente do Firpo
antes dele sair atrás. Sentado, olhava as meninas, ou quem sabe se não
ficara apaixonado por Lanuda. De longe as meninas se despediram e
entraram no carro. O sol começava a se ocultar e achei que estava na
hora de retornar a casa. – Vamos, gritei, ele parecia entender que
estávamos voltando para casa, porque seu passo era acelerado. Antes de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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dobrar a esquina perto de casa puxei a corrente, e como se falasse com
gente lhe disse: – Agora que chegamos em casa tu vais te comportar,
nada de querer me morder! Dei-lhe um coice e continuamos.
Uma vez em casa, quando tirei a corrente e se sentiu livre ficou
valente e começou a latir para mim. Agora quase todos os dias eu o levava
a passear, e todos os dias lhe dava um par de patadas. Ele continuava
humilde na rua e valente em casa. O meu serviço, todos os dias, era pela
manhã, quando me levantava, pegar a lista que dona Amanda me deixava
e o dinheiro para as compras, já tinha aprendido a coar o café, e embora
ela não me pedisse, eu o coava, arrumava a mesa e esperava na sala eles
se levantarem. Após o café o Cônsul ia embora e eu ajudava a dona
Amanda na limpeza da casa, também varria o pátio, às vezes levava a
roupa à lavanderia, a minha ia junto. Quando ela não cozinhava, perto do
meio-dia eu ia trazer a comida. Às vezes o Salazar vinha junto com o
Cônsul e almoçávamos os quatro, ou senão, só nós três e o cachorrinho,
que continuava não gostando de mim.
Um dia dona Amanda me disse que viajaria para a Colômbia para
resolver alguns problemas familiares e também trazer a empregada que
sempre tiveram. Quando ela viajou, eu preparava o café para o Cônsul,
depois ele ia embora e só voltava à noite, e eu, após limpar a casa, dar
comida ao Firpo e algumas outras coisas, saía a dar algumas voltas pela
cidade, às vezes a pé ou de ônibus, por último já conhecia quase toda a
cidade. Embora dona Amanda tivesse deixado dinheiro para eu comprar a
comida, eu almoçava no restaurante, e bem à tardinha voltava para casa,
levava o Firpo a passear, lhe dava alguns coices e quando voltávamos,
largava ele que se escondia no quarto e só saía quando sentia o Cônsul
chegar. Como eu sabia que o Cônsul gostava de tomar cafezinho antes de
se deitar, eu o preparava e tomávamos juntos. Conversávamos até a hora
de dormir. Uma noite me entregou um papel para no dia seguinte ir tirar
umas fotos. Três dias depois me entregaram as fotos e à noite dei-as para
o Cônsul, que as guardou na sua pasta junto com outros papéis e o carnê
escolar que por casualidade eu carregava.
Com passaporte consular
Uns dias depois, enquanto tomávamos o cafezinho, tirou do bolso
do casaco um envelope que me entregou dizendo: – Aqui está seu
passaporte, com ele já pode regressar à Colômbia sem que lhe criem
problema. Também pode viajar a qualquer parte do mundo, é claro que só
vai lhe servir enquanto for menor de idade, depois terá de trocar por outro,
que só lhe dura quatro anos. Deu-me muita explicação a respeito e me
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pediu para cuidar bem dele, porque eu sozinho, e com a minha idade, não
me seria fácil tirar outro. Agradeci-lhe com muito carinho. Hoje, lembrando
este momento, confesso que naquele dia eu não senti nenhuma emoção.
Alguns dias depois a dona Amanda chegou, vinha acompanhada de uma
senhora morena clara, não era muito alta, notei que eles se tratavam de
forma familiar. Comigo foi tudo ao contrário, já no carro quando estávamos
indo para casa, me deu a primeira alfinetada. Senti quando ela perguntou
para eles de forma sarcástica: – De onde vocês arranjaram este
escurinho? Dona Amanda sem demora respondeu: – Ele é a minha paixão.
O Cônsul também falou: – Helena, ele é boa gente. E dirigindo-se à
esposa disse: – Amor, ele já tem seu passaporte. Em seguida ela me
passou a mão na cabeça me parabenizando. Helena, para modificar a
conversa, perguntou: – E o Firpo? O Cônsul respondeu: – O Ortega tem
cuidado muito bem dele, sempre vejo na sobra do prato que ele lhe dá boa
comida. Está sempre cheiroso a sabonete e também o leva a passear!
Coitado do Firpo pensei, eles não sabem quanto apanha de mim.
Em casa ajudei a descarregar a bagagem, corria e levava para
dentro e depois voltava para buscar mais. Quando voltei e peguei uma
mala para levar para dentro como estava fazendo, a Helena puxou a mala
com raiva e me disse: – Essa é minha. Desse momento em diante
compreendi que ela não simpatizava comigo. O Firpo para ela era todo
festa e para mim era tudo ao contrário. Agora com a presença da Helena,
ele ficou mais violento comigo, então percebi que tinha dois inimigos. O
Cônsul tinha me dito que nas férias viajariam para a Colômbia e
poderíamos ir juntos e não precisaria me entregar à justiça. Um dia fui na
Embaixada visitar Salazar, eu tinha muito carinho por ele, fora a única
pessoa que tinha me tratado bem desde o começo. A Lusdari não visitei
porque ela não demonstrou amizade, quando mais eu precisava, assim
como o Isidoro, a mulher e o filho. Conversando com Salazar, lhe
perguntei quando o Cônsul sairia de férias, e ele me respondeu: – Falta
muito, ele recém chegou. Pensei, melhor esperar a ter que ir parar na
correção de menores.
Em casa fazia todo o possível para ser amigo de Helena, só que
ela não aceitava, complicava comigo por tudo, como eu tomava banho
todos os dias ela dizia: – Para quê tomar banho todos os dias, seria
porque eu queria ficar branco? Mandava-me fazer as compras e quando
eu retornava sempre reclamava com grosseria, porque tinha demorado
tanto, e tinha comprado tudo errado, que eu não prestava para nada, então
acuava o Firpo para ele me morder. Enquanto dona Amanda estava em
casa, a Helena cantarolava na cozinha e se precisava de mim me
chamava com delicadeza. Mas dona Amanda pouco permanecia em casa,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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porque dava aulas para meninos pobres e também recolhia fundos para
instituições que ajudavam famílias carentes.
Animando festa religiosa
O senhor Cônsul, dona Amanda, as senhoras colaboradoras, junto
com os padres religiosos, organizaram um festival para arrecadar fundos
para a igreja, que também ajudava famílias pobres. No dia da festa,
meninos e meninas dançaram, outros cantaram, outros ainda declamaram
poesias e a mim coube apresentar o meu espetáculo. O senhor
Embaixador, que ainda não me conhecia, esteve presente. Uma vez
terminado o espetáculo veio me cumprimentar, também compareceram
funcionários da Embaixada, a maior parte eram colombianos, e todos me
felicitaram, pela bela apresentação. O cumprimento de Salazar, que
também tinha visto, foi do mesmo jeito que o empregado do Dr. Corrêa,
me levantava, me abaixava umas duas ou três vezes, depois me abraçou
e disse: – Muito bonito Orteguita. Todos os presentes adoraram.
O dinheiro das entradas era todo para a paróquia, eu não cobrei
nada. No dia seguinte o Salazar chegou em casa à minha procura. Eu
estava varrendo o pátio quando o vi chegar onde eu estava e gritou: –
Orteguita! Dá-me um abraço. E me entregou um envelope que o senhor
Embaixador me mandara. Abri e no seu interior tinha uma carta e mais
cem dólares. Na carta fazia referência à minha apresentação e me
felicitava pelos bonitos números apresentados, e os cem dólares era um
presente de todos os funcionários da Embaixada, finalizava: Um abraço de
todos os teus conterrâneos, O Embaixador.
Fiquei muito feliz, tanto pela carta como pelo dinheiro. Esta carta
guardei por muitos anos, mais adiante contarei como a perdi. Não me
lembro por que razão contei para Salazar da forma como a Helena me
tratava. Expliquei-lhe que ela não gostava de mim, porém eu não fazia
caso. Salazar se despediu com outro abraço e saiu. Helena estava curiosa
e queria saber quem ele era e o que tinha vindo fazer, é claro que lhe
respondi: – Ele é funcionário da Embaixada e tinha vindo me trazer uma
carta e também cem dólares que o Embaixador e os funcionários me
mandaram.
Ela, que também tinha assistido ao espetáculo, e talvez não
querendo se sentir menos do que eu, disse: – Você tem que estudar,
aprender uma profissão, tem que trabalhar, aquilo que você faz é coisa de
vagabundos, que como não têm profissão, vivem disso, porém não têm
futuro e morrem pobres. Eu não contava nada para dona Amanda nem
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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para o Cônsul. Ultimamente, como eles não vinham almoçar em casa, eu
fazia as compras, molhava as folhagens e varria a frente e os fundos.
Terminado meu serviço, saía a dar voltas pela cidade, às vezes almoçava
no porto ou nos mercados, que eram dois, um perto do centro e o outro
bem longe. Eu gostava muito era de andar a pé. Quando estava muito
longe e era hora de passear com o Firpo, eu pegava um ônibus, chegava
em casa, pegava o Firpo e o levava a lhe dar um par de patadas, porque
quando na companhia da Helena, muitas vezes se avançava querendo me
morder. Algumas vezes encontrávamos as gurias donas de Lanuda e os
deixávamos brincar. Hoje compreendo que a Lanuda poderia ser a paixão
dele e então ele se resignava a receber meus coices.
As confusões de Helena
Uma manhã, estando no meu quarto, ouvi que algumas coisas
caíram no chão no quarto do Cônsul e fui correndo para ver o que era e
encontrei Helena recolhendo tudo o que estava no chão. Ofereci-lhe ajuda
e ela me xingou me mandando sair da frente dela. Quando entrei no quarto
eu vi um anel grande com uma pedra que estava em cima da cama do
casal. Escorraçado que fui, saí do quarto e fui me sentar na sala, em
seguida senti que a Helena saía do quarto bem devagar. Eu fiz que não
estava vendo nada, ela entrou no meu quarto e saiu rápido. Quando
percebi que ela estava na cozinha, curioso que estava para saber o que
ela tinha ido fazer no meu quarto, fui entrando devagar. Uma vez no
quarto, a primeira coisa que me chamou a atenção foi que minha bolsa
estava virada ao contrário de como eu sempre a deixava e um dos bolsos
estava aberto. Com cuidado comecei a olhar, e para minha surpresa,
encontrei o anel que tinha visto na cama do Cônsul. Antes que a Helena
me presentisse, peguei o anel, entrei no quarto do Cônsul e de dona
Amanda e o coloquei debaixo do colchão e saí rapidamente. Chavei a
porta e botei as chaves no meu bolso, entrei no meu quarto, arrumei todas
as minhas coisas, inclusive o meu passaporte e enquanto ela estava
lavando a roupa no tanque, peguei o Firpo e o amarrei na escada do
fundo, dei-lhe os dois últimos coices, peguei minha trouxa e me mandei,
levando também as chaves do meu quarto.
Fui direto para a Embaixada e procurei o Salazar. Foi Isidoro que o
chamou, quando ele me viu me recebeu com a alegria de sempre, o que
me fazia lembrar o Chepe e o empregado do Dr. Corrêa. Como ele não
tinha nada a fazer, me convidou para ir a um barzinho que tinha na frente
da Embaixada. Sentados no bar contei-lhe tudo o que acontecera e falei
que eu achava que a Helena queria me fazer passar por ladrão, assim o
Cônsul me mandaria prender ou me tocaria para fora da sua casa. Salazar
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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insistiu para que eu fosse falar com o Cônsul ou com o Embaixador, que
segundo Salazar me disse, tinha ficado encantado comigo, assim como
sua esposa e os filhos. Depois, Salazar me pediu para ir onde dona
Amanda estava. Falei que eu não queria incomodá-los, que tinham sido
bons para mim, que eu os adorava e sentia muita dor em lhes deixar dessa
forma, mas que tinha muita vontade de voltar para a minha casa. O Cônsul
tinha me dito que nas férias iríamos juntos para a Colômbia, só que ainda
demoraria muito e eu estava com muitas saudades da minha mãe e de
meus irmãos e amigos.
Compreendendo que não me convenceria, Salazar me deu
algumas informações, e antes de me despedir, lhe pedi para me fazer o
favor de transmitir minhas desculpas a eles por não ter ido me despedir e
lhes agradecer por tudo o que tinham feito por mim e também que podiam
ter certeza que nunca os esqueceria e que jurava perante Deus e Santa
Sara Kaly que eu não seria capaz de roubar nada de ninguém! Pedi para
entregar-lhes as chaves e dizer-lhes que o anel o havia escondido debaixo
do colchão. Pedi-lhe também que lhes contasse o porque de minha
decisão, lhe falei com tanta tristeza que ao nos despedirmos com um
abraço, seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ofereceu-me a sua casa
no caso de não ter onde ficar e assim nos despedimos.
Eu estava seguro de que se eu fosse pegar ônibus na rodoviária
ou na estação do trem e o Salazar tivesse falado para o Cônsul e dona
Amanda, eles iriam me procurar, e para estar longe do alcance deles,
peguei um ônibus que ia até o mercado central. Acostumado que estava a
comer um lanchinho pelas 10 horas, o meu estômago já estava pedindo.
Desci do ônibus e fui direto numa barraca onde já tinha almoçado várias
vezes após a chegada da Helena, a dona até que por certo me tratava de
querido ou de meu colombiano. Aquele dia quando cheguei ela me
perguntou: – O que vai querer meu colombiano? Pedi café com leite e broa
de milho frita. Um senhor que também tomava café e estava sentado na
minha frente perguntou: – Você é colombiano? – Sim senhor, respondi.
Disse-me que onde ele trabalhava também trabalhava um colombiano e
morava na mesma pensão que ele morava. Perguntei se lá me alugariam
um quarto para dormir, é claro que contei todo o acontecido, desde que
cheguei até o que seguramente me estava aprontando Helena para me
desmoralizar, também lhe manifestei o porquê queria me ocultar em algum
lugar até eles não me procurarem mais. A dona da barraca se dirigiu ao
senhor para que me desse uma mãozinha. Moisés, este era o nome
daquele senhor, respondeu que sim, que me ajudaria, ele me informou que
a pensão não era na cidade e sim num município vizinho. Tanto melhor,
falei. A dona da barraca repetiu: – Moisés, ajuda meu colombiano, que
Deus há de lhe abençoar. Moisés respondeu: – Sim tia, vou levá-lo lá na
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pensão onde eu passo, não te preocupa, deixa comigo. Nos despedimos e
a poucas quadras dali pegamos um ônibus. Durante toda a viagem
conversamos. Uma hora e meia depois chegamos em um pequeno casario
perto do mar, onde havia alguns estaleiros, com navios que estavam
ancorados, outros menores estavam fora d’água, e em todos eles muita
gente trabalhando. O ônibus chegou até o fim da linha, descemos e
continuamos caminhando até chegarmos numa casa onde na frente tinha
um letreiro pintado na própria parede que dizia: Pensão da Margarida.
Moisés foi entrando e gritando: – Quem é a dona deste bolicho? Em
seguida apresentou-se uma senhora elegantemente vestida, reparei que
seus olhos eram bem azuis e a pele morena clara, ela já perguntou: – O
que é que tu queres Moncho? Esta não é a casa da tua sogra para entrar
gritando. – Quero um quarto para meu amiguinho, é recomendado pela tia
Dalila, ele é conterrâneo do Gustavo. Moisés olhou para o relógio e disse:
– Vou embora, pego ao meio-dia, deixo ele contigo. E saiu quase correndo
e já lá fora gritou: – Às 15 horas venho almoçar.
Soldador
Margarida me levou para um quarto pequeno e bem arrumadinho e
limpo, no interior da porta estava o regulamento e o preço, me deitei para
acalmar a tensão em que me encontrava, agora me sentia mais tranquilo e
pensava: definitivamente o Cônsul e dona Amanda não vão me encontrar
neste fim de mundo. Peguei no sono, me acordei quando ouvi muitas
vozes, em seguida Margarida chamou: – Vamos almoçar? Levantei-me,
dei uma ligeira lavada e penteada e me dirigi ao comedor. Pela vestimenta
eram todos operários vestidos de macacões pretos e outros azuis, também
havia mulheres, algumas vestidas iguais aos homens, só que ao invés de
macacões eram saias, algumas com guarda-pós brancos. Tinha muitos
cabides nas paredes e todos estavam cheios de capacetes. Quem servia a
mesa era uma tremenda bicha, que só no falar e nos requebros dava para
conhecer de longe, uma jovem senhora servia as bebidas e a sobremesa,
o marido de Margarida ajudava em tudo. Margarida me apresentou para o
pessoal e para o marido: – Ele é conterrâneo de Gustavo. Alguém gritou: –
Se é conterrâneo do Gustavo é boa gente. À medida que iam terminando
iam saindo e minutos depois outros iam chegando.
Terminei de comer e como já tinha dormido não tinha sono, então
saí para dar uma volta e conhecer o povo. As poucas ruas não eram
asfaltadas, havia poucas casas, umas bem separadas das outras, mais
distante encontrei um conjunto de casas bem bonitas, com jardins na
frente das portas e as janelas todas tinham telas para mosquitos, muitas
crianças brincavam nos pátios, outras nas ruas, perto havia uma igreja e
junto uma escola e um grande ginásio onde se ouvia barulho de gurias e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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rapazes brincando. Mais adiante poucas casas e na beira do mar algumas
canoas e também lanchas.
Comecei a retornar, as poucas pessoas que via andavam de
bicicleta, encontrei dois senhores que estavam conversando, um deles me
perguntou: – Você é colombiano? – Sim. – Eu também, sou o Gustavo, se
despediu do amigo e saímos caminhando e conversando. A conversa era
toda relacionada a nossas vidas e o porque de andarmos por estas terras.
Eu, em poucas palavras, contei-lhe os episódios de mais destaque e ele
contou-me que teve que fugir porque queriam fazê-lo casar com uma guria
que andava com vários rapazes e ficou grávida e ela o escolheu como
vítima. Estou falando daquela época em que, quando um homem
engravidava uma moça, só tinha três opções: a primeira era casar, a
segunda ser preso e a terceira fugir, e ele, não se sentindo culpado, optou
por fugir.
À noite a pensão estava cheia de operários, homens e mulheres,
inclusive Moisés. Aproveitei para divertir o pessoal e fiz minhas provas,
contei algumas piadas, de pronto uma voz: – Eu sabia que se era
conterrâneo do Gustavo era boa gente e está dando do bom mesmo.
Todos confirmaram batendo palmas. O comentário era que um patrício de
Gustavo fazia coisas muito bonitas. Fiquei famoso naquela pequena
comunidade. Moisés era chamado de Moncho e Gustavo de Colômbia, os
dois sempre me convidavam para ir onde trabalhavam. Gustavo trabalhava
na recuperação de filtros de água dos navios e ganhava por filtro
consertado e Moncho por metro linear de solda elétrica. Todos
trabalhavam por empreitada, nem todo pessoal da pensão trabalhava no
mesmo estaleiro, as firmas eram quase todas sociedades anônimas e a
maior parte dos chefes eram europeus e norte-americanos. Os operários
também eram de vários países, muitos jamaicanos, alguns centroamericanos e muitos das ilhas do mar do Caribe. Tornei-me muito
conhecido de todos, me chamavam de paisano.
Moncho me ensinou a soldar com solda elétrica e por último
terminei trabalhando com ele. A maior parte das soldas era em tubos para
caldeiras, alguns tubos tinham 30 centímetros de diâmetro, outros com 60
centímetros, 80 centímetros, um metro e até dois metros. Os tubos de 60
centímetros em diante eram soldados por dentro e por fora, eu adorava
fazer este serviço. No fim da semana o Moncho me deu cinco dólares e se
despediu, porque a família dele morava na capital. Na segunda-feira à
noite, quando estávamos na pensão, Moncho falou para todos: –
Senhores, como a lei aqui é de que os ajudantes ganhem vinte por cento
do que ganha o oficial, eu vou deixar o paisanito como meu ajudante e vou
lhe pagar os vinte por cento como manda a lei. Gustavo foi o primeiro a se
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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levantar e abraçar Moncho e todos fizeram o mesmo. Ao ouvir tantos
gritos, apareceu Margarida, o marido, a garçonete e até a bicha, todos
felicitavam Moncho. A Margarida disse para Gustavo: – Malandro, nos
trouxeste um paisanito tão bom como tu. Moncho reclamou: – Um
momento, fui eu que o trouxe. Gustavo era muito querido por todo o povo,
era prestativo, segundo falavam. A gurizada gostava dele. No fim de
semana era quem organizava vários tipos de brincadeiras, o professorado
gostava muito dele e sempre era consultado para orientar qualquer tipo de
diversão. A minha fama também se espalhou, todos me cumprimentavam
quando me viam.
Eu era feliz soldando tubos, eu dava o cordão de solda fino e
Moncho o cordão de acabamento. Como o Moncho era um pouco
reforçado, e para poder soldar por dentro dos tubos pequenos tinha que
entrar se arrastando de boca abaixo, por esta razão demorava muito, eu
ao contrário, entrava acocorado, dava o cordão de solda fino e também o
de acabamento. Até os chefes iam me ver e sorriam. Como sempre gostei
de madrugar, me levantava cedo, entrava no galpão, ligava o soldador e
começava a soldar, quando Moncho chegava eu já tinha uns quatro metros
soldados. Não era a ambição de ganhar que me levava a madrugar e sim
o gosto por soldar. O comentário na pensão era grande devido a que os
ajudantes conseguiam ganhar vinte e cinco ou trinta dólares na semana, é
claro que quanto eu mais ganhava o Moncho também aumentava seu
salário e todos mexiam com ele, que comigo como ajudante ficaria rico. A
moeda que mais circulava nesta comunidade era o dólar, a moeda
nacional pouco circulava. Neste momento o único garoto que trabalhava ali
era eu, notei que no fim de semana eram poucos os que ficavam, a maior
parte morava na cidade ou nos municípios vizinhos, saíam na sexta à
tarde e voltavam na segunda de manhã bem cedo.
Celebrando a festa Pátria
Para festejar a festa pátria, me convidaram para participar da
apresentação que fariam alguns alunos, eu aceitei e convidei Gustavo para
que nós dois nos apresentássemos. Ele aceitou e já começamos a treinar,
ensaiávamos todas as noites e também aos sábados e domingos
escondidos de todos. Eu treinava Gustavo com números cômicos que
tinha visto na minha cidade, daquela família que se apresentava nos
parques com números de circo. Para Gustavo escolhi o que faziam os
palhaços, lembrava que foi desta família que aprendi a caminhar com as
mãos, dar voltas, cambalhotas e muito mais coisas. Gustavo aprendeu
com facilidade a sua parte. Chegado o dia da apresentação, o espetáculo
foi um sucesso, as meninas e os meninos se apresentaram muito bem,
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uns cantaram, outros dançaram muito bonito e também as poesias que
foram bem declamadas. Gustavo e eu apresentamos o número final.
Gustavo vestido de palhaço e eu de mágico. Gustavo fez tudo muito bem,
fez rir e gritar crianças e adultos, fomos muito aplaudidos. A arrecadação
também foi muito boa. O Gustavo não houve quem o fizesse pegar algum
dinheiro, então a arrecadação foi dividida em três partes: uma para a
igreja, uma parte para a escola e outra parte para mim que me tocou cento
e cinquenta e seis dólares. O ginásio estava lotado, os operários e
funcionários que não moravam na cidade trouxeram seus familiares,
mesmo os que moravam na capital. Na segunda-feira Gustavo e eu
éramos os mais famosos. Na pensão mexiam com Gustavo: artista e não
dizia nada, hein!
Os filhos dos europeus e norte americanos se tornaram meus
amigos, seus pais me convidavam para jantar ou almoçar em suas casas,
me davam presentes, calças compridas, relógios de pulso, coisas que eu
nunca tinha sonhado comprar, também camisas, algumas coloridas. As
minhas calças eram todas curtas, conforme a moda para crianças na
Colômbia, ganhei correntes de ouro com crucifixo, ganhei sapatos, alguns
de duas cores, preto e branco e também marrom e branco. Tinha tanta
coisa, que tive de pedir a Gustavo para ir à capital e me comprar uma
mala, eu não quis ir junto por temer que alguém da Embaixada fosse me
ver. Os operários também me convidavam para almoçar nas suas casas,
se reuniam em grupos e também me convidavam.
Gustavo e eu ultimamente sempre andávamos juntos, ele me
cuidava muito e me tratava com muito carinho. No começo, se algum dos
operários por alguma razão perguntasse por mim ao Gustavo, era assim: –
Cadê o paisanito? Depois, era assim: – Gustavo, cadê teu filho? Ele
respondia como se realmente fosse meu pai. Às vezes ele levava o
colchão para o meu quarto, o colocava no chão, trazia um travesseiro e um
lençol, se deitava e pegávamos no sono conversando. Outras vezes era o
contrário, eu é que levava o colchão para o quarto dele, sobretudo quando
lhe tocava trabalhar à noite, então eu ficava acordado lhe esperando,
conversávamos um pouco e pegávamos no sono. Uma noite lhe perguntei
se ele não pretendia voltar para a Colômbia para ver sua família. Ele me
respondeu que sim, pois agora não tinha mais perigo, porque a guria tinha
ganhado uma menina, que era muito parecida com um rapaz moreno, de
apelido Barbadilho, e a maior prova era que o Barbadilho, apesar de ser de
pele bem escura, tinha olhos bem claros, quase amarelos, e a menina
também tinha os olhos iguais aos de Barbadilho. Outra prova era que a
guria era branca e a menina tinha nascido bem escurinha, também disse
que a família dele era toda branca, porém ninguém tinha olhos claros.
Falou-me que a mãe lhe escrevia periodicamente e lhe informava de tudo,
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e em uma das cartas lhe contou que a mãe da criança tinha ido lhe visitar
após o nascimento da menina e, quase chorando tinha lhe pedido perdão
por lhe ter feito perder seu filho. Na carta também lhe contava que a
vizinhança, quando comprovou sua inocência, tinha ficado revoltada com a
mãe da criança e pela minha ausência a culparam. Também me contou
que sua mãe numa carta lhe informava que provavelmente o Barbadilho
casaria com ela. Perguntei: – Seus familiares sabem que você está aqui? –
Só minha mãe e minha avó, eu mando as cartas para a avó entregar para
a mãe, meu pai também não sabe, se ele soubesse já teria vindo me
buscar. Eu estou noivo de uma menina daqui da capital, o pai dela é
aquele senhor que trabalha no guincho, ela está na França estudando
Engenharia Naval, este ano termina, após se formar vamos nos casar e a
lua de mel vamos passar com os meus, em casa. – E quanto tempo faz
que não a vê? – Ela passa os três meses de fim de ano aqui e nas férias
de metade do ano eu pego as minhas férias e fico com ela lá em Paris, às
vezes ela vem passar as férias de metade do ano aqui.
Amigo do oftalmologista
No povoado havia um centro médico que era pago pelas empresas
ali existentes, o oftalmologista atendia duas vezes por semana. Um dia
Gustavo me levou para ser examinado. O médico que me atendeu, tinha
estado no espetáculo, os outros e as enfermeiras também, quando nos
viram entrar, foi aquela bagunça, inclusive o pessoal que estava na sala de
espera também participou, porque todos tinham nos visto. O oftalmologista
quando viu meus óculos todo amarrado com arame, a primeira coisa que
disse foi: – Vamos trocar esses óculos. Examinou-me, depois a enfermeira
experimentou a armação e na semana seguinte eu estava com óculos
novos. Na pensão, quando me viam com óculos novos mexiam comigo, e
diziam que eu parecia um doutor.
O oftalmologista tinha poucos pacientes, então eu lhe ensinei
umas provas. Algumas vezes ele me levou para almoçar na sua casa na
capital, a esposa era radialista, tinham um casal de filhos, as enfermeiras e
quase todos os médicos me convidavam para ir em suas casas, todos
gostavam que lhes contasse desde que fugi de casa até chegar ali, o
pessoal ria muito quando lhes contava que tinha me sentado naquela
cobra, crendo que era um tronco de árvore. Algumas vezes as mulheres
amaldiçoavam o tal de toureiro, sobretudo quando lhes contava que peguei
os plátanos da lata de lixo. Algumas vezes se formavam discussões,
porque uns diziam que graças ao mentiroso daquele toureiro, eu estava
ganhando dinheiro, caso contrário eu continuaria ganhando oito, dez ou
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doze centavos por dia. Uns diziam que fora Deus que me mandara aquele
tramposo para me mostrar o caminho da minha sorte, outros alegavam
que esse era meu destino, que de uma ou outra forma ele se manifestaria.
Eu só ouvia, algumas vezes chegaram a me perguntar: – Estás ganhando
algum dinheiro? Respondia: – Sim senhor, e estou feliz porque com o
dinheiro que levarei à minha mãe, ela poderá continuar a nossa casa.
Gustavo sempre me acompanhava. Realmente estava feliz, com as
minhas malas cheias de presentes e o dinheiro escondido na bolsinha
amarrada na cintura e por dentro das calças, que passara a usar só calça
comprida, como agora a bolsinha com o dinheiro era de couro, eu não a
tirava nem para tomar banho.
Saudades da mãe
Eu sentia muitas saudades da minha mãe, pensava muito nela,
sonhava estar lhe entregando o dinheiro e os presentes. Gustavo me
contava que sentia saudades da noiva, que contava os dias para a sua
formatura e que ele pretendia estar com ela nesse dia lá em Paris. Ele
sentia saudades da noiva e eu da minha mãe.
Uma noite, quando conversávamos, lhe comentei da vontade que
tinha de voltar para minha casa e ele me respondeu: – Eu acho que
realmente você deve voltar para casa, você ainda é muito criança e tem
que levar essa alegria para sua mãe, que nem sequer sabe por onde você
anda, até pode pensar que você está morto! Que alegria para ela quando
lhe ver de novo! Combinamos que à noite, na hora do jantar, Gustavo
falaria do meu retorno para casa. No primeiro momento, todos ficaram em
silêncio, quase mudos. Foi Moncho quem quebrou o silêncio, e dirigindo-se
a mim, disse: – Paisanito, eu gosto muito de você, igual que a minha
família, gosto muito também de trabalharmos juntos, mas acho bom voltar
para casa e levar felicidade para sua família e mais que tudo para aquela
mãe, que segundo eu já tinha lhe dito, ela não sabe por onde é que você
anda. Todos concordaram, cada um me dizia uma coisa. No dia seguinte
já se comentava da minha partida.
À noite falei para o Gustavo que eu achava que teria de voltar ao
porto onde tinha desembarcado. Ele achou que era muito longe e
complicado e também não era seguro que eu conseguisse embarcar. No
jantar, e sabedores da minha viagem, os chefes pediram para Gustavo que
como ele era conhecedor de todo esse movimento, dado às tantas viagens
que tinha feito, seria bom ele me orientar até me deixar embarcado.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Despedida
O que conto a seguir é coisa para nunca esquecer. Uma semana
antes de partir, várias senhoras, entre elas Margarida e as enfermeiras do
centro médico me levaram a uma costureira, a única na localidade, ela
tirou minhas medidas para fazer uma roupa. Eu me sentia um pouco
embotado pelo movimento que havia no povo só por causa da minha
despedida.
No domingo e num dos galpões, como não lembrar, acho que
estava todo o povo reunido para o almoço da minha despedida. Ouvi
muitos elogios, inclusive dos próprios chefes, que também se encontravam
presente, a gurizada queria estar perto de mim. Naquele dia eles também
me deram presentes, as esposas dos operários tinham se reunido para me
dar de presente roupa. Era tanto presente que tive que comprar outra
mala. Todas as calças que recebia eram compridas, toda a gurizada se
vestia desta forma. Naquele dia recebi sapatos, calças, camisas, etc.
Como sempre, em todo lugar que chegava, os casais que não tinham
filhos, sentia que indiretamente me adotavam, o que também aconteceu
com Margarida e o marido, eles me acarinhavam, me davam mimo. A
Margarida não permitia que eu mandasse lavar a roupa, ela mesma a
lavava. Estefani me cortava as unhas das mãos e dos pés e também
gostava de me pentear. Quase sempre ela se sentava perto de mim e a
todo momento me abraçava e passava a mão nos meus cabelos. Sempre
que eu queria pagar ela me dizia que pagasse no final. Naquele domingo
Margarida me fez experimentar uma calça comprida e uma camisa, como
se usava, por fora das calças, e que estava na moda, seu nome era
guaiavera. Quando saí vestido com aquele conjunto todos bateram
palmas. Em seguida o tirei e Margarida o dobrou e empacotou e me
recomendou: – Antes de chegar em casa, procura um lugar para vestir
este conjunto, para chegar bem vestido na tua casa, para que todos vejam
que a tua fugida não foi à toa. Este presente é de todas as mulheres que
moram e também as que não moram neste povo. Logo Moncho levantouse, e mostrando outro conjunto, porém de cor diferente, falou: – Este é um
presente de todos os operários destas empresas.
Um médico do centro médico que estava presente levantou-se,
entregou uma carta para Gustavo e pediu para ele ler em voz alta. O teor
não me lembro textualmente. Esta carta era dirigida a um irmão deste
médico, que era o chefe da imigração do porto por onde Gustavo me
ajudaria a embarcar, e ele lhe pedia para que não complicasse a minha
saída se por acaso tivesse algum problema por eu ser menor. Todos
bateram palmas. No final, os padres e as freiras nos pediram para rezar e
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pedir a Deus que me levasse são e salvo para minha casa. Eu lembro
como se fosse hoje, vi alguns olhos lacrimejantes. Aquela noite eu era todo
felicidade e quase não conseguia dormir.
Não sei em que minuto peguei no sono, acordei quando ouvi uma
voz que me dizia dorminhoco, e me passava a mão no rosto. Abri os olhos,
era a Margarida preocupada comigo porque às 6 horas já estava
acordado, olhei o relógio e eram 8 horas. O marido de Margarida estava na
porta também preocupado, quando me viu acordado falou para Margarida:
– Toca ele para ver se não tem febre. Ela passou a mão na minha testa e
me fazendo cócegas nas costelas disse para o marido: – Ele não tem
nada, está é com preguiça. Ele se retirou nos dizendo: – Espero-os para
tomarmos café. Como posso esquecer aquele momento, me colocou os
chinelos, me deu uma toalha e fui tomar meu banho. Já feitas todas as
minhas necessidades voltei para o quarto, tinha colocado roupa limpa na
cama para eu usar, e a suja tinha levado para lavar, me vesti e dirigi-me
para o comedor. Os dois estavam na mesa me esperando, notei-os tristes,
pena que eu não sabia falar para dizer-lhes algumas palavras de
consolação. A bicha, quando nos servia o café disse: – O paisanito não
madrugou! Lembro que ele era muito carinhoso comigo, me tratava com
muita delicadeza. Uma senhora que estava no café voltou-se para mim e
disse: - Paisanito, não fique por nenhum lado, vai direto para casa, tire o
sofrimento de sua mãe. A Margarida me sentou no seu colo e me
segurando apertado falou para os presentes: – Ele vai sim, e leva muitos
presentes para ela e os irmãos, ele vai ver a mãezinha e quando a abraçar
vai dizer a ela que aqui deixou outra mãezinha. Eu a abracei e apertei,
todos ficaram em silêncio, até hoje sinto uma espécie de raiva por não ter
sabido falar e nem pensar. Naquela época, no fundo, o que mais me
importava era só o dinheiro e os presentes, e neste momento estava mais
preocupado com o retorno à minha casa. Com o relógio no pulso aprendi a
me preocupar com as horas. O relógio que mais gostei para ficar para mim
foi o que me deu de presente uma família européia, a marca era Mulco, um
relógio a corda, chapeado em ouro, que me acompanhou durante vinte
anos. No dia da despedida um jamaicano me deu de presente um relógio
de pulso da marca Wulova.
No dia seguinte da festa, Gustavo me levou ao centro médico a
pedido dos médicos, lembro do sorriso, tanto dos médicos como das
enfermeiras e dos que estavam na sala de espera, todos nos
acompanharam até a porta para se despedir. Com Gustavo saí para a
capital onde me fez cortar os cabelos, depois fomos almoçar no
restaurante de um colombiano que, segundo ele, sempre ia visitar a família
na Colômbia e nos deu as informações de como viajar mais fácil. Na terçafeira Gustavo me levou para conhecer todos os galpões e até entramos em
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alguns navios em reparo, devo dizer que por todos os lugares que
passávamos nos cumprimentavam com muitos sorrisos e mexiam
conosco.
Na quarta-feira, dia da minha partida, quem ajudou a me vestir foi
a Margarida, calça comprida, camisa, guajavera e sapatos marrom e
branco. Lembro que quando a bicha me viu vestido daquele jeito falou com
sua voz afeminada e cheia de requebros: – Olha Margarida, ele chegou
pequenininho, de calção curto, óculos todo amarrado com arame, agora
parece um adulto, cresceu, está bonitinho! Chamei a Margarida e o marido
para lhes pagar, não quiseram me cobrar nada, só choravam, ele mais do
que ela, todos os trabalhadores da pensão vieram me abraçar. O marido
da Margarida me disse: – Quando quiseres voltar, volta que aqui te
esperamos. Quando estávamos na porta da pensão à espera do ônibus,
ouvimos uns gritos, era o Moncho que vinha correndo: – Não podia ir
embora sem lhe dar o meu abraço de despedida, sabendo que fui eu quem
lhe trouxe. Abraçou-me, me levantou e disse: – Volta para continuarmos
trabalhando juntos.
O ônibus chegou, todo pessoal da pensão estava na porta,
também das casas vizinhas, todos me davam tchau. O ônibus nos deixou
no porto, em seguida pegamos outro para a rodoviária, eu sentia um pouco
de temor que talvez ainda estivessem me procurando. Nada aconteceu,
saímos, depois de duas horas chegamos ao porto onde deveria embarcar.
Gustavo procurou o senhor da imigração e entregou-lhe a carta que o
doutor tinha lhe dado, nos convidou para ir até o escritório, lá carimbou o
meu passaporte, me entregou um papel e um ticket para viajar de forma
gratuita. O navio sairia às 14 horas, ainda era cedo, mas fomos almoçar.
Entre o que conversamos Gustavo me disse: – Esta gente aqui
imagina que todos os colombianos são gente fina, só porque eu procuro
me comportar como gente, aquele conterrâneo do restaurante também é
muito benquisto. Agora você chegou aqui, um gurizinho ingênuo, contando
a verdade, que fugiu de casa, e o porquê da fuga, e fazendo tudo aquilo
tão bonito, sua forma dócil de se comportar e a sua simpatia fez eles
acreditarem ainda mais que assim somos todos os colombianos. Mal
sabem que lá dentro tem muito safado e safadas, tal como aquela minha
vizinha que me acusou de ser o responsável pela sua gravidez, para poder
se casar comigo ou ser preso, porém Deus é grande e fez provar a minha
inocência, e você pode ter certeza que aquele tal toureiro espanhol não é
nada espanhol, ele é colombiano mesmo, e quem sabe quantos guris
ingênuos estará enganando? Agora você volta com os olhos bem abertos,
se cuida e não se deixa enganar mais, quem sabe se você volta a
encontrar o dito cujo ainda pobre e vai querer se desculpar, mentindo, e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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ainda todo pobre, enquanto que você, com seu carisma, simpatia e
honestidade volta para sua casa com dinheiro que em vinte anos de
carregador no mercado não conseguiria nem a quarta parte do que
conseguiu ganhar. Ouça este conselho: procure, embora seja aos poucos,
estudar e faça o que seu amigo Antônio lhe ensinou: ler, sempre ler. Deume um beijo na testa, me abraçou, em seguida olhou para o relógio e
disse: – Vou ver se consigo pegar o ônibus das 15 horas. Pegou a minha
mão com as duas dele e saiu correndo para poder alcançar o ônibus das
15 horas, caso contrário, só às 20 horas.
Lembro perfeitamente aquela tarde, a tristeza que me invadiu após
me despedir dele no parapeito da popa do navio, parado olhava com uma
espécie de desespero, olhava, olhava, queria ao menos ver ele correndo,
não me importava se fosse pelas costas, eu queria ver Gustavo ir embora,
só aquele momento, só aquele pequeno momento. Olhava para um lado,
para outro, me movimentava para a esquerda, para a direita e nada, no
meio de tanta gente era impossível, se alguém tentasse falar comigo eu
não conseguiria, estava mudo, sentia uma pressão entre o peito e a
garganta, pensei em descer um pouco e ir até a rodoviária, mas já era
tarde, era 14 horas e o navio começou a se movimentar. Fiquei olhando as
casas e os galpões do porto se afastarem, o meu pensamento insistia:
pode ser que ele não tenha conseguido pegar o ônibus e volte e de longe
me abane, com as mãos me dando tchau. Fiquei estático, com a mirada
fixa para o porto, até só enxergar um montículo preto muito distante, e
Gustavo não apareceu mais. Lá dentro do salão se ouvia o barulho dos
passageiros, ali fora um vento leve batia no meu rosto, agora só se via no
mar pequenas embarcações que passavam velozes bem perto, outras
muito distantes, dava a impressão de que estavam paradas. Entrei no
salão, procurei o número do meu banco e me sentei. Acreditem, até hoje
me questiono porque senti tanta tristeza, tanta saudade de Gustavo e
porque não de Estefani que tanto me mimava, a qualquer hora me pegava
no colo, me ajudava a vestir, me penteava, limpava e cortava as unhas, as
orelhas, as palavrinhas: foi Deus que o mandou para mim! O Vish
respondeu: não amor, foi o mano quem nos mandou para lhe darmos uma
mãozinha. Apesar de todas estas lembranças, as despedidas não foram
tão sentidas como ao me despedir de Gustavo. Porque não senti tanto
meus amiguinhos engraxates que foram os que me deram as primeiras
alegrias nesta terra, que me brindaram aquela sincera amizade, a Gina, o
Biche, ultimamente Moncho, a Margarida e o marido que me tratavam
como se eu fosse o bebezinho deles, porque tanta paixão por Gustavo?
Inclinei um pouco o banco e peguei no sono, comecei a sonhar com Gina
me ajudando a ganhar dinheiro, pulei para a praça de touro toda destruída,
em seguida o Biche, os três engraxates e eu fugíamos da cobra que nos
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estava perseguindo, aí eu acordei, porém não me mexi, até ficar ciente de
que era só um sonho.
Levantei-me, fui no bar tomar café com leite e sanduíche, tornei a
me deitar e sonhei, só que desta vez quando acordei não consegui me
lembrar do sonho. Já estava escuro, me levantei e ainda me acompanhava
uma leve sensação de tristeza, mas o aperto do peito e da garganta tinha
passado. Saí e me dirigi para o estibordo, me recostei no parapeito, tinha
mais gente ali olhando o mar, alguns fumavam, outros conversavam. De
longe se enxergava uma multidão de pequenas luzes, a dizer libélulas na
noite, me aproximei de um senhor que estava perto e perguntei o que
eram aqueles pingos de luzes, me respondeu: – Essa é a cidade de
Barranquilha, daqui a umas duas horas estaremos lá.
Como arrancada pela mão, me passou a tristeza, agora era a
alegria que me invadia, pensava na mãe, a alegria de me ver e ainda mais
com dinheiro e três malas cheias de presentes. A minha cabeça era um
turbilhão de pensamentos, ria sozinho e continuava pensando, o presente
da Romélia vou escolher com a mãe, para Oscar darei um conjunto de
calça e camisa novas, coitadas sempre usa roupa usada, desta vez ele
terá roupa nova, ficava imaginando o eterno sorriso dele e os gestos que
fazia quando me enxergava, me lembrava de todos, do Gratiniano, Dr.
Corrêa, etc. Me dizia, garanto que todos os vizinhos vão querer me visitar,
como quando voltei para casa depois do acidente no ônibus. No meio de
todos estes pensamentos veio na minha memória o Antônio e pensava que
bom se quando eu chegasse em casa o Antônio tivesse regressado. Na
minha imaginação ouvia ele chegando, e às pessoas que chegavam
perguntando pelo negrinho, ele bravo, respondia: – Aqui não tem ninguém
com esse nome, aqui tem Orlando Ortega. Ele não gostava que me
chamassem de negrinho. De repente me lembrei de Salazar, do Cônsul,
de dona Amanda, me perguntava o que será que eles pensaram quando
Salazar lhes falou do anel e da safada da Helena, lembrava do ódio que
tinham de mim a Helena e o Firpo. As luzes aumentavam de tamanho, já
se enxergava a cidade, o pessoal começava a se movimentar para o
desembarque, que alívio, que alegria, agora o pensamento se voltava para
a minha vila.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 251
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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6
O REGRESSO
omo seria a primeira noite, reunido com meus irmãos, meus amigos,
eu contando minhas proezas, a Romélia, seu gurizinho que ajudou
a cuidar quando nenezinho agora voltava com grana, bem vestido,
com relógio de pulso e sapatos de duas cores? Ria pensando qual seria a
bagunça que faria o pessoal do bar quando me visse entrar? Imaginava a
cara do Gratiniano, a do Dr. Corrêa, todo meu pensamento estava cheio
de alegria, tantos presentes que repartiria, para o André teria que dar um
bom presente e de novo lembrava que foi pelas dicas que me deu que
consegui o dinheiro para o tal toureiro espanhol.
C
A alegria de pisar na terra pátria
O navio atracou e todos começavam a descer, vocês não podem
imaginar a grande alegria que me envolvia quando dei o primeiro passo
em minha terra colombiana.
Coloquei as minhas três malas num carrinho e todos em fila foram
apresentando os passaportes, eram carimbados e continuavam, as malas
eram revisadas na saída, quando chegou a minha vez o guarda ficou me
olhando, abriu o meu passaporte, me perguntou pela minha autorização
dos meus pais para viajar sozinho. Eu respondia tal como Gustavo tinha
me orientado, mesmo assim o guarda me mandou entrar noutra sala e
pediu para eu esperar. A minha alegria se apagou, tudo virou tristeza e
medo. Pensava: O que será que vai me acontecer? Através das vidraças
via que outros navios chegavam, os passageiros desciam, ficava cheio de
gente e daí a pouco tornava tudo a ficar vazio. E eu continuava naquela
sala, sem saber o meu futuro, foi neste momento, e como sempre, só nos
momentos de aperto é que me lembrava de Deus e Santa Sara Kaly.
Sentado onde estava cruzei os braços e comecei a rezar e pedir a Deus e
à Santa Sara que nada me fosse acontecer, que me ajudassem a chegar a
minha casa são e salvo e livre e com todas as minhas coisas. Após rezar
me senti tranquilo e confiante. Olhei para o relógio, faltavam dez minutos
para a meia-noite. Às vezes alguns guardas passavam, me olhavam, e
nada me diziam, olhei o relógio novamente, meia-noite e dez. Hoje fico
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 253
pensando, que falta de respeito para com os menores, meia noite passada
e eu naquela sala, sem que ninguém solucionasse o meu problema, com
fome e nem sequer me ofereciam um copo d’água. Ouvi um barulho de
passos e vozes, dando a impressão que falavam de mim, em seguida
entrou, a meu entender, um oficial, pegou o meu passaporte, olhava a foto
e olhava para mim. Diga-se de passagem, a foto do passaporte fora tirada
com aqueles óculos todo amarrado com arame, redondos e feios, e como
o meu cabelo era liso, o penteava com uma franja. Agora, meus óculos
eram modernos, bonitos, e meus cabelos tinham sido cortados por um
profissional, por conseguinte, havia certa diferença entre a foto antiga e o
eu moderno. O oficial foi muito educado comigo, ao entrar tinha me
cumprimentado e a sua presença me deixava confiante. Em determinado
momento, e como quem encontra um ser querido, deu um grito de alegria
dizendo: – Este passaporte foi emitido pelo meu irmão, e imediatamente
me perguntou: – Você conseguiu ver ele? Perguntei: – Ao senhor Cônsul?
– Sim, disse ele. Respondi: – Eu morava na casa dele, a dona Amanda era
muito querida comigo, todos os dias eu levava o Firpo a passear na praça.
Ele fez um gesto: – Ah... o Firpo, o dodói da minha cunhada. O que você
fazia lá? Contei em parte, falei da Helena, claro que não contei nem dos
socos que dava no Firpo e nem das maldades da Helena Ele falou: – Quer
dizer que levaram a Helena? Ele mesmo disse: O pior que fizeram. Eu
pensei e sem falar: Eu que o diga! Peguei a carta que o Embaixador me
mandou e mostrei, ele a leu, o oficial era todo felicidade, me perguntou o
porquê de tantas malas, respondi: – Em todos os lugares que me
apresento ganho muitos presentes, lhe contei que quando saí de casa
levava um saco de arpejeira com um só calçãozinho, uma camisa e os
produtos de asseio e agora voltava para casa com três malas. Ao ler a
carta do Embaixador e se dirigindo aos outros guardas que lhe
acompanhavam, lhes disse: – Estamos na frente de um grande artista. E
lhes mostrando a carta entregou para um dos guardas lhe dizendo: – Leia
e vai saber que coisa linda o meu tio lhe disse, ele é o Embaixador agora,
e dirigindo-se ao militar que tinha pego a carta para ler lhe perguntou: –
Lembra quando eu fui adido militar lá? Eu também estava lá, lembra? O
oficial perguntou se tinha onde ficar ali em Barranquilha, lhe menti dizendo
que o senhor Cônsul tinha me recomendado um hotel em frente à
rodoviária. Perguntou-me se tinha jantado, respondi que não, os guardas
pegaram as minhas malas e nos dirigimos a um bar que estava dentro do
terminal.
Enquanto comíamos conversávamos, me perguntou quem era a
secretária do Cônsul, rápido respondi: – Lusdari. – Bonita menina, disse
ele. Confirmei, menti quando disse para ele que sempre que chegava ao
consulado ela me convidava para tomar café com leite ou chocolate com
misturas, falei também de Salazar. – Bom motorista, me respondeu.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Terminado o jantar assinou e me devolveu o passaporte e a carta, me
perguntou para onde iria viajar. – Para Medellín amanhã, e depois para
Cali depois de amanhã. Em seguida falou: – Eu não posso sair hoje daqui,
só amanhã ao meio-dia, você pode dormir no quartel lá no meu quarto. Eu
queria era me ver livre deles, mas naquele horário só podia aceitar.
Chamaram o motorista, que era um cabo, e ele lhe disse: – Cabo, faz
favor, leve o menino para o quartel e diga para o oficial de plantão que ele
vai dormir no meu quarto, e amanhã você pega ele antes das 9 horas e
leva na rodoviária e lhe ajuda a pegar o ônibus para Medellín, e procure
que tome café antes de sair. Ele se perfilou, sim senhor, respondeu, pegou
duas malas e eu peguei a bolsa e se despediram com muito carinho. Tudo
foi cumprido à risca. Até o cabo foi muito gentil, recomendando ao
motorista para que me mostrasse o hotel para dormir à noite onde ele
também ficava em Medellín.
No dia seguinte, no hotel, quando o motorista foi tomar café, eu já
estava à mesa, paguei e saímos, como ele era o motorista, viajaríamos no
mesmo ônibus e durante toda a viagem conversamos. Falei-lhe do Firpo e
da Helena. Em todas as paradas descíamos juntos e comíamos na mesma
mesa. Às 16 horas estava na minha cidade, a rodoviária já me era
conhecida, na rua era tudo igual. Despedi-me do motorista com tanto
carinho, como se fôssemos antigos conhecidos. Como lembro este
momento! Com as minhas malas, peguei um coche, o meu coração pulava
de alegria rumo a minha maloquinha, ia pensando: com o dinheiro não
será mais maloca, poderá ser uma casa parecida com a do Chepe ou a do
Ocoró.
O galope do cavalo me parecia lento, mas era a vontade de chegar
que a mim parecia que o coche andava devagar, todas as ruas por onde
passava me eram conhecidas, por todas elas sempre andei a pé e
correndo, muitas vezes tarde da noite, e quando as noites eram muito
escuras a mãe vinha me encontrar. Esses lugares não me traziam muitas
reminiscências, mesmo porque eu não dava muita importância àquele
passado e porque eu não entendia, não compreendia o que era bom e o
que era mau, para mim tudo era igual. Deixamos a avenida e entramos na
ruazinha estreita que nos levaria até a minha casa. Continuava tudo igual,
com cerca de arame farpado dos dois lados, que dividia um potreiro do
outro. Inquieto que estava olhava para todos os lados tentando descobrir
algum dos rapazes da vila, claro que nesse horário era difícil ver algum,
estavam na escola. Ansioso e sempre olhando para diante, bem perto da
entrada do casario enxerguei na frente uma senhora magrinha, vestia uma
saia preta e blusa branca, o cabelo estava em forma de moinho na parte
de trás, aquele caminhar não me era estranho, observei que os saltos de
seus sapatos estavam bem gastos de um lado, senti dor de ver aquela
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 255
pobreza. À medida que nos aproximávamos dela eu ficava mais intrigado.
Parecia-me que o coche não andava, tinha vontade de descer e empurrar
para que andasse mais ligeiro.
De volta! Nos braços da mãe
Eu não olhava para outro lado, meu olhar estava fixo na senhora,
olhava com tristeza aqueles saltos tortos, no momento que o coche se
aproximou da senhora ela se encostou na cerca para dar passagem e
ficou de frente para nós. Gritei: – Mãe! Pedi para o cocheiro parar, desci e
peguei-a pelas mãos, ajudando-a a subir no coche. Uma vez dentro do
coche começou a chorar e agradeceu a Deus e a Santa Sara Kaly por ter
lhe mandado de volta seu filho. Abraçada a mim me disse: – Meu filho,
porque não mandou dizer onde estava preso? Fiquei surpreso ao ouvir
estas palavras de parte da mãe. Imediatamente lhe respondi: – Mãe, eu
nunca estive preso! Porque a senhora acha que estive preso? Eu nem
sequer tenho estado aqui na Colômbia! Puxei do bolso o passaporte e
mostrei, também a carta do Embaixador, e ela continuava chorando.
Chegando em casa ela me pediu para que descesse rápido, pois
não queria que algum vizinho me visse. Lá dentro de casa, sentados, ela
um pouco mais calma me apertou contra seu peito e disse: – Meu filho,
como você está bonito, elegante! Mãe, falei, tudo isso que vem dentro das
malas são presentes que ganhei das pessoas que gostavam de mim. Em
seguida tirei a bolsinha com o dinheiro e mostrei para a mãe lhe dizendo: –
Este dinheiro ganhei me apresentando em praças, mercados e em alguns
palcos, como a senhora pode confirmar lendo aquela carta que o senhor
Embaixador me deu, e aos poucos fui reunindo, guardei peso por peso,
centavo por centavo, com o único desejo de trazer para a senhora terminar
a nossa casa. Mãe! Falei com muito sentimento, eu nunca estive preso em
lugar nenhum. Senti-a mais tranquila. Ela me pegou pelas mãos, começou
me dizendo com voz muito calma: – Meu filho, depois que você
desapareceu, fiquei muito preocupada, lhe esperei por três dias, sempre
com a esperança de você aparecer, pedia a Deus, à Santa Sara Kaly, que
me trouxessem meu filho são e salvo. Nos desesperamos, rezamos todas
as noites, eu e seus irmãos e perguntávamos para um, para outro e
ninguém tinha lhe visto, até ao porto seu irmão foi e nada. Romélia
também vinha rezar conosco, fomos nos hospitais e nada, porém meu
coração me dizia que meu negrinho estava vivo, só que eu não suportava
a ausência e o silêncio.
Acho que foi no sexto dia que veio o Geraldo, o filho daquela
senhora que vende ovos e frangos, chegou me dizendo que o tinha visto
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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ser preso, porque tinham lhe pego roubando e que como se recusasse a ir
para o juizado e tinha tentado fugir, a polícia lhe bateu e para que ficasse
quieto, tinham lhe amarrado e colocado dentro de um camburão. Ele ainda
falou que quando você o viu, tinha gritado: – Geraldo, avisa para minha
mãe! E em seguida se espalhou por toda a vila que você foi pego
roubando e que estava preso, e todos os vizinhos me viraram as costas,
até a própria Romélia e a mãe dela não falaram mais comigo. Um dia,
desesperada que me encontrava, fui pedir um favor ao seu amigo
Gratiniano, e ao invés de me ajudar, me insultou, e gritou que eu era a
culpada por você ter se tornado um ladrão. Saí toda envergonhada porque
o açougue estava cheio de gente. O Carlos, filho do Ocoró, que tanto lhe
admirava e falava tão bem de você, agora passa pela minha frente e
sequer me olha. Seu irmão Marino fez várias perguntas ao tal Geraldo, e
desconfiou que ele estava mentindo, e o pegou pelo pescoço obrigando-o
a falar a verdade, e se os vizinhos não interviessem, poderia até ter
enforcado o rapaz.
A mãe continuou a falar e eu a escutar: – Meu filho, aqui todos
acreditam que você está preso em algum juizado para menores e por você
se comportar com rebeldia não me mandam dizer onde é que você está,
para que ninguém lhe visite. Além de sofrer sua ausência eu tenho sofrido
o desprezo dos vizinhos e de seus amigos. Quando ela parou de falar,
tornei a lhe dizer: – Mãe, eu nunca estive preso. É claro que não contei
aqueles momentos críticos que tive. Continuei: – Mãe, fui muito querido
pelas pessoas que me conheceram. Muitos casais me trataram como se
eu fosse o filho deles, vivi na casa de um Cônsul, a esposa dele me tratava
como se eu fosse o seu filho, ela mesma lavava a minha roupa, e à noite ia
ver se no meu quarto não tinha mosquitos. Recebi dinheiro e felicitações
de um Embaixador, como a senhora pode ver naquela carta, tenho muito a
lhe contar das minhas andanças, mas a senhora pode acreditar que em
nenhum lugar me portei mal, todos me achavam muito simpático e
educado. Mãe, esse tal de Geraldo mentiu, porque o primeiro dia que eu
viajei para o porto, fui no navio daquele mesmo italiano que me dava
comida para trazer para casa. Por casualidade o navio estava no porto e
fui direto para o Italiano, lhe contei que tinha sido convidado para tourear
no país vizinho e que ganharia um bom dinheiro. Ele me indagou bastante,
e sentindo que eu falava a verdade, prometeu me ajudar. Eu lhe contei
tudo como aconteceu. Quando estava contando do toureiro espanhol,
chegou meu irmão Marino, feliz de me ver me abraçou. A mãe lhe contou
que nunca estive preso e que eu não estava na Colômbia. Mostrei-lhe o
passaporte e a carta do Embaixador. Ele, todo emocionado, disse para a
mãe: – Eu desconfiava que aquele cara estava mentindo, é por isso que
lhe dei uma boa surra, e agora que podemos provar a sua mentira vou lhe
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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dar outra. A mãe falou: – Não meu filho, não é preciso, seu irmão já está
aqui, graças a Deus, é o que importa.
Estavam todos meus irmãos em volta de mim e quando contei do
toureiro espanhol, Marino falou: – Faz mais ou menos dois ou três meses
que prenderam um toureiro que se fazia passar por espanhol. Quando ele
chegava nas cidades, organizava as touradas e contratava os toureiros, e
depois das corridas fugia e não lhes pagava, ao contrário, aos mais
ingênuos ainda pedia mais dinheiro, prometendo levá-los a tourear em
praças de cidades grandes e outras tantas mentiras. Também tinham
descoberto que ele não era espanhol. Ao ouvir esta notícia do meu irmão,
me vi obrigado a contar tudo para a mãe e meus irmãos. Quando terminei
a mãe disse: – Garanto que ele sabia onde você estava! – Claro mãe,
respondi, se foi ele quem me mandou lá. A mãe lançou muitas maldições
contra ele e o meu irmão disse: – Deixa, que quando ele sair da cadeia,
fazemos outra denúncia por enganar um menor. – Não, não precisa mano,
se não fosse pela mentira dele eu não ganharia tanto dinheiro e tantos
presentes.
A mãe, que de vez em quando ainda dava uma choramingadinha,
agora na presença de todos os meus irmãos estava mais calma, de vez
em quando me abraçava e beijava. Depois de contar parte das minhas
aventuras e da forma de ganhar dinheiro e de me apresentar, estavam
todos curiosos para ver o que tinha dentro das malas. Fomos abrindo e
repartindo, para a mãe dei um relógio pequeninho, muito bonito. Marino,
Túlio e Hugo também ganharam relógios. Todos ganharam roupas novas e
sapatos de duas cores. Marino falou que sonhava ter uma guaiavera,
estava feliz com a que lhe dei e já vestiu, para todos dei dinheiro, para
mãe dei dois mil dólares para a casa e mais alguns para nós comermos e
também lhe dei dinheiro para comprar sapatos. Em seguida falei: – Mãe,
eu trouxe duas correntes com o Cristo na Cruz, são de ouro, queria dar de
presente uma para Romélia e outra para a mãe dela, em seguida a mãe
me disse: – Não meu filho, não dê nada porque são capazes de pensar
que são roubadas, para elas você é um ladrão, aqui todos acreditam na
mentira daquele Geraldo, que um dia Deus lhe há de castigar.
A mãe ficou um pouco pensativa e em seguida me disse: – Agora
que eles vão ver seus irmãos bem vestidos e de relógio no pulso e eu
construindo a casa seguramente vão dizer que tudo é fruto de roubo.
Marino que era pavio curto se levantou e nos disse: – Eu vou trazer aquele
tal de Geraldo e vou lhe mostrar a carta do Embaixador e o seu passaporte
para que nos diga de onde ele inventou tal mentira. A mãe interveio: – Não
meus filhos, pensem um pouco, lembre-se que você quase enforcou esse
cara. Eu compreendia que o meu irmão queria era se vingar. Jantamos
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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mateia a saudade especialmente dos pequenos que os enchi de afagos.
Como era diferente estar longe deles e a satisfação de estarmos juntos, a
comida tinha um paladar gostoso, aquele carinho, aquele mimo que
recebia de todos sentia penetrar dentro do meu coração. Marino me pediu
para que no dia seguinte fosse à escola onde eu antes estudava, inclusive
onde meus dois irmãos ainda estudavam, me pediu também para levar o
passaporte e a carta e mostrar para a professora Mariateresa, que sempre
perguntava por mim, pois ela não acreditava que eu fosse um ladrão. A
mãe me sugeriu para eu levar de presente para ela uma das correntes
com crucifixo. A noite foi muito gostosa, dormi como um bendito, como
Sancho Pança dizia.
Reencontro com os ex-professores
De manhã, depois do café, os quatros irmãos fomos em direção à
escola. O Marino não estudava mais lá, ele cursava o secundário. Quando
entramos na escola a única pessoa que me deu importância foi justamente
a professora Mariateresa, que quando me viu veio correndo me
cumprimentar e toda sorridente disse: – Negrinho, que elegância! E sem
demora me pegou pela mão e me levou para o seu escritório, me fez
sentar de frente para ela e bem perto. Olhando-me no rosto perguntou: –
Negrinho, é verdade o que andam dizendo? Fala-me, é verdade que agora
tu viraste ladrão e estavas preso? Como sempre, com toda calma
respondi: – Não senhora, nunca roubei e nunca estive preso, foi um rapaz
lá da vila que inventou todas essas mentiras. Mostrei-lhe o passaporte e a
carta do Embaixador, contei-lhe que era para aquele país que tinha fugido,
que ganhava muito dinheiro nos parques fazendo contorcionismo e provas
de mágicas. Com a carta e o passaporte na mão, saiu e em poucos
minutos voltou, vinha acompanhada de três professoras e um professor,
que entraram, me elogiaram, tanto pela carta como pela elegância no
vestir. Queriam saber o porquê de ter fugido, tive de lhes contar a história
do toureiro. Segundo entendi, eles tinham lido alguma coisa a respeito
desse toureiro tramposo nos jornais há algum tempo atrás. Perguntaramme se eu não ia lhe cobrar o meu dinheiro, respondi que não, porque se
não fosse pela trampa dele eu não teria ganho o que ganhei e nem
aprendido a ganhar, mas ao contrário, deveria era lhe agradecer. A
professora Mariateresa era toda felicidade com a minha presença e ainda
mais ao saber que aquele rapaz tinha mentido ao espalhar a notícia de
que tinham me pego roubando. No meio da conversa perguntei se no
próximo ano poderia ser matriculado porque pretendia continuar
estudando. A diretora imediatamente me respondeu que sim. Como eu não
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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tinha parado com o remédio me sentia muito bem, ademais naquele centro
clínico o oftalmologista tinha feito um profundo exame.
Quando bateu a hora do café várias professoras vieram perto de
mim. Algumas me olhavam com certo ar de desprezo, porém após lerem a
carta e verem o passaporte, me felicitavam e mudavam o comportamento
para comigo. Um dos professores chegou a dizer: – Olha o Negrinho com
passaporte... eu nunca consegui tirar um e ele já andou até pelo exterior!
Convidaram-me para ir tomar café, e eu aceitei. Ao entrar no comedor, no
meio da bagunça ouvi um murmúrio de uma voz que disse: – Olha o
Negrinho que virou ladrão! Eu me lembro que ao ouvir estas palavras senti
como que uma espécie de dor que não doía, um vazio no estômago que
não era de fome, um aperto no coração que me entristecia. Uma vez todos
nos seus respectivos lugares, a professora pediu silêncio e em seguida se
dirigiu aos alunos, textualmente não me lembro, mas ela mostrou o
passaporte e dirigindo-se para todos, em voz alta lhes falou: – Em nenhum
lugar do mundo dão passaporte para criminosos e muito menos para
ladrão, e nenhum Embaixador daria uma carta destas para um ladrão
porque seria um escândalo e poderia perder seu posto, um dos mais altos
cargos do governo. Em seguida leu tudo o que estava escrito no
passaporte e também leu a carta, todos bateram palmas. A diretora
continuou: – Foi a maior injustiça que cometeram com o Negrinho
acusando-o de ladrão, a pessoa que inventou tal mentira merece ser presa
por difamação e calúnia. Vamos aconselhar a mãe do Negrinho a fazer a
denúncia na polícia.
Enquanto tomávamos o café, a diretora terminou de falar, e a
professora Mariateresa também falou, com uma voz muito trêmula disse
para todos: – Essa é a maior injustiça que se tem cometido contra o
Negrinho e o caluniador terá de ser preso. Será que não chega o
sofrimento que o Negrinho passou por causa dos olhos e até não pode
estudar, ele que tanto gosta e agora mais essa infâmia contra ele! Ela
parou de falar quase chorando. Um dos professores também falou: – Peço
a todos meus alunos palmas para o Negrinho para lhe demonstrar o nosso
carinho. Alunos e não alunos bateram palmas, só um não bateu, depois
fiquei sabendo que era o irmão do Geraldo. Quando lembro este momento
fecho os olhos e enxergo claramente as duas cozinheiras da escola com
seus aventais brancos e o pano branco na cabeça. Elas estavam atentas
ouvindo as palavras do professorado, se acercaram e me abraçaram, seus
olhos estavam úmidos de lágrimas. Segundo a mãe me contou, elas a
tinham visitado várias vezes e sempre disseram para a mãe que elas não
acreditavam que eu havia me convertido num ladrão, choravam de
felicidade ao saber que não tinham errado a respeito da minha idoneidade.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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O quadro agora estava mudado na escola: os alunos que quando
cheguei me olhavam com olhar de desprezo, agora me sorriam, idem as
professoras e professores. Alguns rapazes e meninas adolescentes me
pediam para ver o passaporte, o liam, choravam, liam a carta, ouvi uma
voz que disse: – Coitado do Negrinho, quem seria o infeliz que inventou
essa história? Outra voz falou: – O Negrinho nem tem pinta de ladrão, a
pinta que ele tem é de artista, como diz no passaporte, “profissão: artista”.
Meus dois irmãos Túlio e Hugo sabiam e conheciam o irmão do
Geraldo, mas permaneceram calados. Prometendo me matricular para o
próximo período, me despedi, porém antes de sair dei o presente para a
minha primeira professora Mariateresa, ela me beijou e abraçou e deu um
suspiro de satisfação.
Saí com meus dois irmãos Túlio e Hugo. Chegamos em casa e lá
estava a mãe ansiosa nos esperando com o almoço pronto. Durante o
almoço se comentou da recepção na escola. A mãe me contou que o
André sempre lhe visitava e também o pai dele, que ofereceu ajuda. À
noite fui lhe visitar, toda família dele e ele ficaram muito alegres ao me ver,
me convidaram a entrar, todos reunidos na sala, contei-lhes as minhas
aventuras, os poucos momentos ruins e os muitos bons. O passaporte e a
carta pareciam que eles é que tinham recebido, de tanta alegria que
sentiram. Os presentes que não dei para os outros reparti entre eles. Em
um momento oportuno o pai de André me disse: – Negrinho, o meu filho
nunca acreditou que você tivesse virado ladrão, as minhas filhas falavam:
– Pai, tem algo errado nessa história. A visita foi longa, me despedi, me
sentia feliz em saber que tinha gente que acreditara na minha inocência.
André e o pai me levaram em casa.
A dúvida dos moradores da vila: artista ou ladrão?
No dia seguinte, a notícia da minha chegada tinha circulado por
toda a vila. Falavam que eu tinha chegado vestido como doutor, soube
também que falaram que tudo era fruto de roubo. Como o pai do André foi
me acompanhar até minha casa, no dia seguinte o murmúrio era de que na
noite anterior tinha estado a polícia à minha procura. Na manhã seguinte, e
antes de ir vender os seus ovos e frangos, a mãe de Geraldo, autor da
mentira, bateu na minha casa, e quando a mãe lhe atendeu, em voz alta a
senhora falou: – Estou sabendo que o meu filho vai ser denunciado à
polícia por mentiroso. Ao ouvir aquela senhora falando tão alto e temendo
que ela agredisse a mãe, saí para ver se ela se atrevia. Como eu estava
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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vestido pronto para sair, estava vestindo calças compridas e guaiavera,
sapatos preto e branco e com relógio no pulso, ela mesma, continuando a
falar em voz alta, me olhava de cima a baixo e aproveitou para gritar mais
alto: – Eu quero ver se a senhora se atreve a fazer a tal denúncia. E me
olhando, disse: – Quer maior prova do que o meu filho disse, de onde será
que ele tirou tanto dinheiro para comprar relógio e roupas tão caras? Até
seus filhos, todos já andam de relógio e modificaram o jeito de vestir, por
quê? Porque aí tem gato encerrado. Como em todos os lugares não faltam
os dadores de fé, muitas pessoas tinham parado na frente da nossa casa.
A mãe tentava falar, mas a mulher não parava de gritar, em determinado
momento a mãe conseguiu lhe dizer: – Senhora, não sou eu quem vai
denunciar, são os professores da escola onde seu filho estuda, ele está
sabendo de tudo, pergunte para ele. Eu já não estava aguentando tanto
berro daquela senhora, me armei de coragem e lhe gritei: – Senhora, eu
não sou vendedor de ovos e muito menos de jornais, eu sou um artista, e
como sou bom, me pagam bem, e mostrando-lhe meu passaporte griteilhe: – Aqui está a prova, leia senhora! A mãe disse: – Meu filho, esta
mulher é uma ignorante, ela não sabe ler. As palavras ditas pela mãe
parece que lhe caíram como um balde d’água fria, porque calou a boca e
eu aproveitei e pedi para um senhor que estava presente: – Por favor, leia
para esta senhora e os presentes quem sou eu. O senhor leu tudo em voz
alta e ainda mais alto a parte que dizia: profissão “artista”. As pessoas
praticamente nos tinham cercado, a vendedora de ovos dava a impressão
que queria escapar, só que tinha muita gente em volta e não conseguia
sair. Aproveitei e pedi para que lesse também a carta do senhor
Embaixador, ele leu em voz alta, e quando terminou de ler me disse: –
Pelo que esta carta diz você é um grande artista, esta carta foi dada por
um Embaixador! – Sim senhor, respondi. Deu-me a mão e me felicitou,
perguntando o motivo dos gritos daquela senhora. Contei-lhe o porquê,
dizendo que o filho dela tinha espalhado na minha ausência que eu era
ladrão e que estava preso, e todos na vila acreditaram no que ele tinha
espalhado e quem queria denunciá-lo à polícia não éramos nós e sim os
professores. O homem chamou a atenção da mãe dizendo-lhe: – Senhora,
tem que denunciar aquele sem-vergonha, isso se chama calúnia e a lei
castiga de forma severa e ainda mais que seu filho é menor, bote ele na
cadeia senhora, para que deixe de ser mentiroso. Muitos dos presentes
eram vizinhos e eram meus amigos e amigos dos filhos da vendedora de
ovos e a quem eu muitas vezes tinha feito mandados e ajudado em
alguma coisa. Quando aquele senhor se retirou, dando-nos a mão, em
seguida a vendedora de ovos foi se retirando em silêncio, e todos foram se
retirando também, mas nenhum me cumprimentou.
Uma das coisas que mais tristeza me causava era ter visto a mãe
com aquele salto de seus sapatos todos tortos. Convidei-a para
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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comprarmos sapatos novos no centro, íamos caminhando em direção à
avenida para pegar um coche quando vimos que um rapaz me chamava
insistentemente, gritava: – Negrinho... Olhei e era o Nino, um guri que
sempre tinha gostado de mim. Quando nos alcançou, a primeira coisa que
falou foi: – Dona Isabel, eu gosto muito do Negrinho, só que o pai e a mãe
nos proibiram de nos juntar com ele, só que eu quero continuar sendo
amigo de vocês. A minha irmã mais velha diz que, embora ela apanhe,
também vai continuar sendo amiga de vocês. Nino disse que o Roberto,
filho de dona Branca, um dia, discutindo com o pai, lhe gritou: – O
Negrinho é meu amigo e vai continuar sendo, porque ele não é ladrão, isso
é uma mentira inventada pelo Geraldo, porque ele tem inveja do Negrinho.
Dos rapazes daquele tempo me lembro do Dandi, que segundo as
gurias, era lindo e elas eram apaixonadas por ele, também lembro do
Hector, do Toninho, do Pablo, que os pais mantinham bem limpinho e
perfumado e apesar de receber muito mimo dos pais era muito bom e bom
amigo, quando ele descobriu que eu tinha regressado passava em frente
da minha casa várias vezes por dia, como o Nico tinha me dito que os pais
dele também não queriam que ele se juntasse comigo, eu tratava de me
esconder e não me deixar ver por eles.
Um dia perguntei à mãe por Chepe, ela me respondeu que fazia
algum tempo que não o via, que várias vezes ele tinha lhe levado de
carroça quando ela andava à minha procura, ele e a esposa dona
Mercedes tinham sido muito prestativos e nos momentos que mais
precisava dessa ajuda. Pelo que a mãe me contava a respeito do
comportamento dos vizinhos, eu entendera perfeitamente que todos
acreditaram na mentira do Geraldo, e a mãe dele continuava dizendo para
os vizinhos que sim, que eu era um ladrão, que seu filho não mentira e que
a maior prova estava na maneira de eu vestir, que trabalhador nenhum
teria condições de comprar a roupa que eu usava, que de manhã saía com
uma roupa e à tarde já estava com outra, e a coisa que ela mais
mencionava era que eu tinha lhe gritado: – Senhora, eu sou um artista! E
que ela terminara dizendo: – Grande ladrão, um artista de merda!
O Nino, que sempre dava um jeitinho de se encontrar comigo
escondido dos pais me contava todos os boatos que a mãe de Geraldo
espalhava. O Nino me falou que o Pablo queria conversar comigo, queria
me ver de perto e combinamos um encontro, que seria no dia seguinte,
quando eu iria à procura do Chepe, nesse dia nos encontramos, ele e o
Pablo, estavam muito felizes de me ver. O Nino, o Pablo e eu fomos juntos
à procura do Chepe, a nossa conversa só era a respeito do que eu fazia
para ganhar dinheiro. Não encontramos o Chepe, nos informaram que eles
tinham ido ao povo deles visitar parentes. Ao regressarmos, nos
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 263
encontramos com alguns rapazes, eles não nos cumprimentaram, embora
nós os cumprimentássemos com carinho. O Joãozinho estava com eles,
lembro que ele sempre foi o mais orgulhoso da turma, fanfarrão, metido a
namorador, tremendo gabola, me olhou com ar de desprezo, quando
estávamos à pouca distância deles consegui ouvir a voz de Joãozinho que
disse: – Não me junto com negro ladrão. Fiz de conta que nada ouvia.
Perto da vila nos despedimos e disse-lhes que tinha alguns presentes para
eles, mas talvez os pais não aceitassem. Dei a cada um cinco pesos, que
aceitaram. Só faltou me beijarem. Eles foram por um lado e eu por outro.
Ao passar pela casa de dona Elvira ela ficou parada fixando-me
insistentemente. Pensei que ia me cumprimentar e lhe sorri, só que ela
fechou a porta da casa e falou para alguém de dentro da casa: – Olha a
pinta do negro bandido! Ainda tem a petulância de me sorrir. Claro que
tudo isto me doía, mas me aliviava ao lembrar que tinha três amigos: O
André, o Nino e o Pablo.
No dia seguinte, uma das irmãs do Nino, às escondidas, me disse
que o Nino não poderia estar presente em um encontro que tínhamos
marcado porque alguém tinha dito aos pais deles que o tinham visto na
minha companhia e estava de castigo junto com a irmã mais velha porque
ela me defendia.
Escrevo estas minúcias porque vem à tona aqueles dias amargos
que passei no lugar que sonhava um mundo de felicidade, tudo foi por
águas abaixo.
Depois que a irmã do Nino foi embora, eu estava com a mãe em
frente de nossa maloquinha, a mãe estava mostrando como pretendia
continuar a obra. Justo neste momento passava o Joãozinho em
companhia dos amigos do dia anterior e sem olhar para nós falou em voz
um pouco alta: – Foi por culpa daquele negro ladrão, veado, um puto, que
o Pablo apanhou! Eles continuaram caminhando e quando estavam perto
da esquina parece que se desentenderam porque um deles gritou: – A
culpa foi tua que contou para os pais dele! Parecia que iam se dar socos,
só que uns foram para um lado e o Joãozinho ficou sozinho.
Acostumado que já estava a ganhar bastante dinheiro não tinha
mais vontade de voltar ao mercado e carregar cestos. Tinha vontade de
ver meus amigos do mercado, ver a preta velha, ir à praça de touros, só
que agora tinha medo de todos e de tudo, não deveria ficar sem fazer
nada, só gastando o dinheiro, tinha que trabalhar, mas limpar a praça de
touros nem pensar. O que me chamava a atenção era voltar ao porto e
trocar bananas por cigarros, era mais rentável e ademais tinha muita
vontade de rever meu amigo Italiano e mais ainda contar para ele as
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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minhas aventuras, lhe contar tudo que aconteceu depois que nos
despedimos.
Ultimamente, e, sobretudo à noite, depois de conversar e rir com a
mãe e meus irmãos e quando todos pegavam no sono, sentia certa
saudade dos meus amigos engraxates, da Gina, do Biche e do Vish e
também uma vontade de sentir o carinho da Estefani, fechava os olhos e
sentia suas mãos me fazendo cafuné, a minha mente percorria todos estes
lugares. Até não me importaria de tornar a dormir debaixo do banco da
praça ou sentado na rodoviária, também lembrava quando dormia no chão
na casa da Gina com meus amigos engraxates, a bagunça e as risadas
até pegarmos no sono. Como esquecer aquela vila onde moravam meus
amigos engraxates tinha sido tratado como um rei, tinha sido tocado,
admirado e abençoado por tanta gente estranha! Tudo ao contrário da vila
que me viu crescer, onde a quase todos os vizinhos lhes fiz mandados,
lhes carregando água, tanta ajuda que lhes brindei, onde tantas vezes
tomei café ou almocei, gente que tanto me elogiou perante minha mãe,
hoje me odiavam, sem uma razão justa, sem saber a verdade sobre o meu
comportamento, acreditavam num safado inventor de mentiras. Não era
mais aquele negrinho abençoado. Agora eu era aquele negro ladrão e me
depreciavam, quando passava em frente a suas casas me fechavam as
portas.
Meu irmão Marino tinha vontade de encontrar Geraldo para lhe dar
uma segunda surra, pior que a da primeira vez. Na escola onde ele
estudava, por ficar um pouco distante, alguns sabiam a meu respeito,
porém estavam divididos, uns acreditavam na minha inocência e para
outros eu era mesmo um ladrão, sobretudo para os que moravam na
minha vila. Eu compreendia o sofrimento da mãe e de meus irmãos, mas
eu fazia de conta que nada sentia.
Um dia decidi ir ver meus amigos do mercado, ia com certo receio
de que me recebessem de cara feia, fui de bicicleta e bem vestido,
procurei chegar no horário que não tinha movimento. Que coisa gostosa a
alegria com que fui recebido: me abraçaram, riam, gritavam e me puxaram
para a barraca da preta velha, porém antes passamos pelas bancas de
frutas e verduras e dos vendedores de carne, que segundo eles, sempre
perguntavam por mim, todos me recebiam com muita alegria. Quando
alguém me perguntava o que fazia para andar naquela pinta, respondia: –
Agora trabalho em teatro e ganho bem. Em seguida corremos para a preta
velha, porém antes de chegarmos me contaram que a mãe tinha me
procurado na barraca da preta, querendo saber se ela não tinha me visto,
e que a mãe saiu chorando. Eu não quis mais ouvir a esse respeito e
disse: – Vamos comer comida cara que eu pago. Saímos correndo em
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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tremenda bagunça, quando a preta me viu, deu um grito, correu e me
abraçou dizendo: – O Negrinho voltou, benza Deus, feito um doutor! A
dona da barraca do outro lado perguntou: – Não era por esse menino que
aquela senhora procurava? – Sim, respondeu a preta. A mulher continuou:
– Onde é que você se meteu, meu filho? Um dos rapazes respondeu por
mim: – Tia, agora ele é artista. Como a senhora não entendia, peguei o
passaporte e mostrei e para maior fanfarronice mostrei também a carta. Os
que estavam comendo nas outras barracas, ouvindo tanta bagunça,
ficaram cheios de curiosidade, queriam saber o que a carta dizia, um
senhor, vendo a curiosidade de tantos me pediu a carta e leu em voz alta,
primeiro o passaporte e depois a carta. Finda a leitura, todos bateram
palmas, os mais felizes eram meus amigos. Alguém perguntou o que eu
fazia no teatro, em seguida tirei a guaiavera, arremanguei as calças e
comecei, como sempre, todos deixaram a comida de lado e ficaram em
volta de mim, e as pessoas que passavam também. Minha apresentação
foi curta e o público me felicitava e aplaudia. Eu estava com fome, pedi à
preta para servir para meus amigos o que eles quisessem comer que eu
pagava, mas tinha que ser comida boa, eu pedi peixe ao molho com arroz,
patacones e salada.
Enquanto comíamos, a dona de uma das barracas veio falar com a
preta. Ela disse que aquele rapaz branco, cujo pai era preto, dono de um
armazém de secos, um dia desses tinha lhe dito que o filho daquela
senhora que tinha estado uma vez na barraca da preta à procura do filho,
e que o filho era eu, era ladrão. Nós estávamos escutando a mulher falar,
me levantei e expliquei para a senhora que esse rapaz e o pai moravam
perto da minha vila e que eles tinham sido meus amigos, mas que um
rapaz que vendia jornais perto dali e que morava na minha vila, tinha
inventado tamanha mentira. Contei para todos os presentes que por causa
desse vendedor de jornais, todos na vila me odiavam e nem sequer me
ouviam para lhes dizer que eu não era um ladrão, e sim um artista. A
senhora me disse: – Meu filho, eu não acredito na conversa desse rapaz,
ademais, você não tem pinta de ladrão e sim de um menino bom. Eu lhes
dei toda informação onde o Geraldo vendia jornais, que era perto dali. A
senhora se desculpou e voltou para sua barraca. Nós continuamos
conversando, me contaram que a praça de touros tinha sido fechada
porque tinham pego um toureiro que se fazia passar por espanhol e que
contratava os toureiros e depois das corridas inventava qualquer história
para não lhes pagar, eu não quis lhes contar que também tinha caído no
conto dele, porque no fundo, eu era grato a ele. Ao me despedir, paguei
tudo, não quis receber o troco da preta e a meus amigos dei dois pesos a
cada um de presente e saí prometendo voltar em qualquer momento.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Voltei para casa muito feliz. A mãe e meus irmãos ao sentir-me
feliz, também ficaram felizes, só que aquela felicidade desapareceu no dia
seguinte ao me sentir depreciado pelos amigos a quem tanto tinha servido,
fazendo-lhes compras, e muitas vezes debaixo de chuva, e eles mesmo
me acusavam de algo que nunca pensei ser. A casa de Oscar ficava perto
da minha, porém eu não o tinha visto desde a minha chegada, porque a
porta da casa dele permanecia fechada.
Um dia por casualidade passava pela frente da casa dele e a porta
estava aberta, vi o Oscar fazer um gesto de alegria, aquele eterno sorriso
dele, mas no mesmo momento apareceu sua mãe e o puxou para dentro
fazendo gesto de que eu era gato e fechou com força a porta. Tudo isto
me deixava amargurado, mas toda esta amargura passava dentro de casa
vivendo com a mãe e meus irmãos, também me deixava muito feliz saber
que a mãe estava lavando menos roupa, que só lavava para a dona do
hotel, porque sempre tinha sido muito boa para com a mãe, nos momentos
difíceis lhe emprestava dinheiro e a mãe lhe pagava aos poucos, com
lavadas, eu sentia a mãe mais tranquila e despreocupada.
A mãe tinha me dito que Efraim tinha ido lá em casa saber se eu
tinha aparecido e tinha pedido para lhe avisar alguma coisa a meu
respeito. Eu, com receio de que ele também tivesse o mesmo conceito não
queria ir visitá-lo, até que um dia convidei o André para irmos de bicicleta,
quando chegamos na casa dele as empregadas nos receberam com o
mesmo carinho e atenção de sempre e me informaram que como o menino
tinha passado de ano, o prêmio era fazer uma viagem à capital e que por
lá andava com toda a família. Nos despedimos e saí todo contente porque
a minha fama de ladrão não tinha chegado até lá.
A visita à dona Maria Ruiz
Sem saber o que fazer decidi ir até o porto visitar dona Maria de
Ruiz, a mãe concordou, só me pediu para não viajar de ônibus. Viajei de
trem. Ao chegar na casa, dona Maria, quando me viu, ficou feliz, estava
muito franzina, caminhava com muita dificuldade, conversamos bastante,
lhe contei minhas aventuras, riu muito quando lhe contei que me sentei
numa cobra pensando que era um tronco de árvore. Quando estava lhe
contando que estando com fome tinha pego os plátanos da lata do lixo,
tive que acelerar a conversa porque notei que se entristeceu e tive a
impressão de que iria chorar. Quando lhe contei que nessa mesma noite
tinha ganho muito dinheiro, mudou completamente e até chegou a
aplaudir.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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O Angelito chegou à noite, ficou contente de me ver. Na hora que
estávamos jantando, falou para dona Maria que naquele posto de gasolina
de seu amigo, estavam precisando de um frentista e disse: – Pena que
estou trabalhando com o pai, senão era capaz de pegar essa vaga. A dona
Maria lhe falou com voz calma: – Meu filho, fique com seu pai, seja como
for ele é seu pai e está precisando de você, cuide da tetuda que não
roube, porque também estão roubando de você. Tenha em conta que se
ele vai primeiro, eu não quero nada disso, o mais provável é que vamos os
dois juntos e são vocês os que têm que continuar o negócio. Pareceu-me o
Angelito muito mudado, sentou-se ao lado de dona Maria, abraçou-a e a
beijou. À noite ficou em casa. Partilhamos o mesmo quarto. Ele não fumou
e não falou bobagens. Os pôsteres das mulheres nuas tinham
desaparecido.
Trabalhando no posto de gasolina
No dia seguinte, na hora do café lhe perguntei: – Será que não me
receberiam no posto de gasolina? Imediatamente se prontificou a me levar
e apresentar ao chefe que era seu amigo. Após o café falamos para dona
Maria, ela concordou, nos abençoou e saímos. Fui aceito, poderia pegar
no dia seguinte. Para não preocupar a mãe, decidi ir avisá-la. Só que indo
de trem não conseguiria ir e voltar naquele dia. A solução era pegar o
ônibus das 9 horas e voltar no das 15 horas e foi isso que fiz. Ao meio-dia
e trinta estava em casa, contei para a mãe, ela gostou, só não gostou de
eu andar de ônibus. Senti que estava preocupada e lhe falei que
dificilmente aconteceria um acidente por uma segunda vez - A senhora
sempre diz que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar!
Agora bem vestido, com uma bolsa decente, com a bênção da
mãe saí e peguei o ônibus das 15 horas. Às 18 horas e trinta minutos
estava onde dona Maria morava. Naquela noite dormi ali. No dia seguinte
me apresentei no posto, onde recebi todo tipo de instrução, inclusive os
cuidados que deveria ter com gasolina e os demais combustíveis. Gostei
do serviço. Éramos dois frentistas, pegávamos às 6 horas e largávamos às
14 horas; os outros pegavam às 14 horas até às 22 horas. Depois pegava
um velhote, que era o guarda e também fazia o trabalho de frentista,
embora à noite não tinha quase movimento. O nome do velhote era Erazo,
mais conhecido por mestre Erazo, ele tinha uma cadeira especial, se
sentava e pegava no sono, porém ao mínimo ruído se acordava.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Meu companheiro frentista morava num bairro da periferia, um
pouco distante e por esta razão dormia no posto numa espécie de
mezanino, que servia de paiol e ficava dentro do armazém de peças para
carros. O gerente tinha um quarto especial nos fundos do armazém. Como
dona Maria também morava um pouco distante do posto, o gerente
Roldão, que era seu nome, me facilitou para dormir no paiol onde dormia
meu colega de serviço, que era conhecido por cara de Machete. Desde o
começo nos tornamos bons amigos. Ele já trabalhava há mais de um ano
no posto e nem por isso era orgulhoso, ao contrário, me ensinava tudo,
inclusive me convidou para depois do horário de serviço ganhar mais uns
trocos. Como as ruas do porto, na sua maioria não eram asfaltadas, eram
muitos os pneus que furavam e nós arrumando ganhávamos mais uns
trocos. Sempre tínhamos três ou quatro para arrumar. Roldão, vendo
nossa vontade de trabalhar e ganhar dinheiro, nos ofereceu o serviço da
lavagem dos carros, lubrificação e pulverização após o nosso horário, eles
cobravam quinze centavos pela lavada e nos dariam a terceira parte em
tudo, aceitamos sem demora. Machete ficou muito contente, segundo me
disse, fazia tempo chuleava aquele serviço.
Muitos proprietários deixavam os carros à noite e os retiravam no
dia seguinte. Machete um pouco mais velho do que eu, sempre procurava
fazer o serviço mais pesado, mas na hora de repartir o dinheiro, era
metade e metade. Lembro-me que mal largávamos o serviço já estávamos
arrumando os pneus dos fregueses e em seguida nos pegávamos a lavar
e lubrificar os carros deixados pelos fregueses. Tinha dias que lavávamos
até à meia-noite, sobretudo nos fins de semana. Quem movimentava os
carros era Machete, eu não sabia dirigir, mas Machete começou a me
ensinar a dirigir e depois das 23 horas. Saíamos em carro de algum
freguês que deixara para ser lavado. Andávamos pelas ruas do porto e ao
voltar lavávamos o carro, colocávamos a gasolina gasta. Cansados íamos
dormir.
No dia seguinte a rotina era a mesma, e eu sempre dirigindo. No
quinto dia chegou a dona do posto. Eu sem saber e sem que ninguém me
pedisse, comecei a ajudar a descarregar a camionete e a levar as caixas
para dentro da loja, depois fiquei sabendo que ela era a dona do posto, e
seu nome era dona Matilde, e ela parecia simpatizar comigo, sempre que
me olhava sorria, e na hora de ir embora me presenteou com um bolo,
claro que este comi com meu amigo Machete. Na parte da tarde, enquanto
estávamos consertando um pneu, ouvimos gritos do frentista do turno da
tarde, seu grito era de desespero porque uma das bombas tinha pegado
fogo. Roldão que era o gerente, imediatamente mandou tapar os respiros
enquanto ele, com um extintor tentava apagar o fogo. Com a colaboração
dos bombeiros o fogo foi extinto sem maiores danos. No dia seguinte
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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vieram técnicos para consertar a bomba danificada pelo fogo. Com
Machete, durante nosso turno, tínhamos trabalhado só com uma bomba.
Salvo milagrosamente do incêndio
À noite e depois de ter dado minhas voltas dirigindo e sendo
passado da meia-noite, fui dormir. O meu amigo Machete roncava. Calculo
que eu tinha dormido cerca de uma hora quando senti que ele me sacudia
dizendo: – Ortega, acorda, fogo! Nos vestimos e descemos. De longe
escutávamos os gritos de mestre Erazo que dizia: – Roldão, a bomba
pegou fogo e os rapazes estão dentro da loja Machete e eu olhamos as
labaredas do fogo através da porta de ferro gradeada. O calor que
chegava até nós era muito forte e não poderíamos continuar na frente da
porta. Procuramos refúgio dentro da loja, tentando escapar das labaredas.
As duas únicas janelas existentes eram muito altas e mesmo quebrando
os vidros, o máximo que passariam seriam as mãos. A porta não tinha
fechadura e estava com um cadeado forte pela parte de fora. Roldão
também dormia na loja de peças, ele tinha seu quarto organizado, quando
ele ia dormir a porta era trancada com ferrolhos internos e quando saía
colocava cadeado pela parte de fora. Roldão tinha conseguido uma
namorada que morava perto do posto, separada algum tempo do marido,
soube que tinha três filhos e Roldão esperava a gurizada dormir para
entrar na casa da namorada. Foi o que aconteceu naquela noite, depois
que eu entrei para dormir ele colocou o cadeado pela parte de fora, como
de costume, quando ia visitar a namorada, pois antes das 6 horas já
estava no posto. Mestre Erazo ia embora às 6 horas e Machete e eu
pegávamos até as 14 horas.
Continuávamos lá dentro sem saber o que fazer, o fogo fazia
barulho como máquina a vapor. Meu amigo começou a chorar e quando a
bomba estragada deu um estouro e voou longe pelo ar ele começou a
gritar dizendo: – Minha mãe! Minha mulher! Meus filhos! Em seguida
ouvimos outro estouro, era a outra bomba que também voava. O barulho
do fogo agora era mais forte. Víamos muita gente se movendo a certa
distância. Ouvíamos gritos e choro de senhoras que gritavam: – Meu
Deus, os dois trabalhadores do posto estão lá encerrados! Ouvimos outro
estouro, era a parede dos respiradouros que caiu, e pelos tubos saíam
duas longas labaredas. O calor já começava a nos sufocar, enquanto meu
amigo chorava me sentei atrás de um armário para me amparar um pouco
do calor e comecei: – Meu Deus e Santa Sara Kaly me perdoem que eu só
me lembro de vocês nestes momentos críticos. Nos ajudem, por favor!
Fiquei pensando: coitada de minha mãe, mais uma dor de cabeça que vou
lhe dar. Foi nesta hora que ouvi a voz de Roldão que gritou: – Machete! –
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 270
Senhor, respondeu ele chorando. – Cadê Ortega? – Ele está aqui sentado.
Pela frente era difícil Roldão entrar, tudo era fogo. Roldão tornou a gritar
dizendo-nos: – Fiquem embaixo do balcão grande. Mal terminamos de
entrar para baixo do balcão quando ouvimos um forte ruído e um clarão de
luz. Entrou alguém e gritou: – Saiam por aqui rapazes. Olhamos para o
clarão e vimos Roldão e um senhor que nos fazia sinal para sairmos por
ali. Saindo pelos escombros, Roldão me deu a mão e o senhor deu a mão
para Machete. Já na parte de fora ouvimos um estouro muito forte e de lá,
onde estávamos, víamos pelo ar pedaços de cimento, tijolos e ferros.
Conduziram-nos a uma quadra do posto e Machete continuava chorando.
Uma senhora nos trouxe água, meu amigo tomou, eu, como de outras
vezes, mudo, engolindo seco e com aquele nó na garganta, não aceitei. A
senhora insistia, me chamou de filhinho. Nesse momento vi os bombeiros
chegarem, mestre Erazo vinha num dos carros, desceu e se juntou com
Roldão, que estava só de meias, sem sapatos e com os lábios cheios de
batom. Mesmo a esta hora da madrugada, continuava chegando gente.
Enquanto os bombeiros apagavam o fogo, os policiais pediam para
o público se afastar mais um pouco, porque poderia haver mais explosões.
Machete tinha parado de chorar e estava sentado quietinho na calçada.
Ouvi uma voz conhecida discutindo com um policial, era o Angelito, que
não queriam que chegasse perto de mim. Eu saí correndo para onde ele
estava, me pegou na mão e disse: – Vamos, que a minha mãe está
desesperada, chorando, pensando que algo lhe pode ter acontecido, de
mãos dadas saímos correndo. De longe vi dona Maria, naquela hora da
madrugada, na porta da casa, curvadinha para frente e apoiada na
bengala.O Angelito de longe gritava: – Mãe, ele está bem. Neste momento
soltei a voz e gritei: – Dona Maria, estou bem. Quando ela nos viu,
levantou a bengala e o olhar para o céu e em voz alta disse: – Louvado
seja Nosso Senhor! Quando entramos em casa, não lhe contei o sufoco
que passei e quando me perguntou onde eu estava na hora do incêndio
menti e lhe respondi que estava no centro, num restaurante com Machete
jantando, porque até que não terminávamos os biscates não íamos comer.
O Angelito e dona Maria acreditaram na minha versão. Depois fomos nos
deitar. Acordei às 9 horas, o Angelito já não estava, após tomar café
comuniquei para dona Maria que ia no posto ver se era para trabalhar ou
não. – Cuide-se, ela me disse. Abençoou-me e saí. Os bombeiros tinham
feito um cordão de isolamento, havia muita gente olhando. Na frente da
loja onde dormia com Machete tinha uma cratera funda, larga e comprida,
era onde estava o tanque do depósito da gasolina que tinha explodido. Do
pessoal que trabalhava no posto não tinha ninguém, a porta de ferro
continuava com cadeado. Para esperar se alguém aparecia, me sentei
num morrinho em frente ao posto, fiquei olhando os destroços que o
incêndio tinha deixado, quando passou um rapaz vendendo o jornal e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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gritando: – O Vigia, com notícias do incêndio do posto de gasolina, daí que
me lembrei que se a notícia chegasse aos ouvidos da mãe, o desespero
dela seria grande e pensei não esperar ninguém e ir embora para minha
casa. No momento que me levantei para ir embora, vi chegar dona Matilde
e corri para perto dela. Quando me viu, me cumprimentou e em seguida
disse sem nada de tristeza: – Ortega, tu viste o jeito que ficou o nosso
posto? Perguntou-me se tinha visto Roldão, respondi que o tinha visto
desde o começo do incêndio até de madrugada, quando fui embora e ele
ficou. Ela tentou entrar pela frente, mas era impossível, lhe falei que pelos
fundos, no buraco aberto na parede, onde na frente estava um caminhão
todo amassado, deduzi que fosse o caminhão utilizado para derrubar a
parede. Uma vez dentro, me lembrei da minha bolsa e peguei-a, embora
estivesse toda molhada, por dentro estava tudo seco. Tentava dizer para
dona Matilde que tinha vontade de viajar para ver a mãe, só que neste
momento começaram a chegar pessoas de terno e gravata, oficiais de
bombeiros e outros, que me pareciam jornalistas e não tive mais chance
de falar com ela. Fui para a casa de dona Maria, ela me esperava para o
almoço, lhe informei o porquê queria voltar para casa. Almocei, me
despedi, ela me abençoou e fui para a rodoviária, onde peguei o ônibus
das 15 horas e às 18 horas e trinta minutos estava em casa. A mãe não
estava em casa, tinha ido entregar roupa no hotel, saí correndo ao
encontro dela e a encontrei olhando rádios em uma vitrine, ao me ver se
surpreendeu e disse: – Ouvi as notícias no rádio do hotel, de que o posto
de gasolina tinha pegado fogo, é verdade? – Sim senhora, respondi. – E
você onde estava, meu filho? (Menti) – Na casa de dona Maria, mas fomos
com o Angelito ver. – E vai continuar trabalhando? – Não sei mãe, aquilo
ficou destruído.
Maio, mês das mães
Estávamos no mês de maio, mês de Maria, mês das mães, eu
tinha reservado um dinheiro para o presente do dia das mães, e quando a
vi olhando os rádios, tive a idéia de lhe dar um de presente. Começamos a
caminhar em direção a casa e a mãe começou a me contar que, primeiro
tinha aparecido lá em casa o pai do Nino, perguntando por mim, e ela
respondeu que eu estava no porto, trabalhando num posto de gasolina. Aí
ele tinha dito, aquele desgraçado, levou meu filho para lá, mas eu vou
procurar ele. E dois dias depois tinha aparecido o pai do Joãozinho, que
também tinha fugido de casa, e ele estava seguro que o filho andava
comigo, e tinha dito para mãe: – Viu senhora, o mau exemplo que seu filho
trouxe para a nossa vila! Além da dor de cabeça que está nos causando!
Soube também que o Roberto fugiu e o pai e a mãe dele acreditavam que
eu é que os aconselhara a fugir. – Meu filho, disse minha mãe, se você
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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sabe onde estão esses rapazes, diga para aquela gente, para eles irem à
procura dos seus filhos e não nos incomodarem mais. Compreendi que a
mãe também acreditava que eu tinha culpa no cartório. – Mãe, aquele
Joãozinho nem fala comigo, ele é todo orgulhoso, nunca gostou de mim
porque sou negro. O Nino e o Roberto me acompanharam o dia que fui ver
o Chepe, porém em nenhum momento me falaram da intenção que tinham
de fugir e acredito que nenhum deles deve estar no porto, porque eu não
falei para ninguém que ia trabalhar num posto de gasolina no porto.
Quando chegamos em casa, Túlio e Hugo a primeira coisa que me
falaram foi que lá na escola a notícia que corria era que vários rapazes
tinham fugido de suas casas e andavam comigo.
Pelo que deduzi, meu irmão Marino também acreditava que eu
tinha ajudado aqueles rapazes a fugir. Dei para a mãe e meus irmãos todo
tipo de explicação, comprovando a minha inocência, coloquei como
testemunhas o Angelito e dona Maria, se em algum momento tinham me
visto com alguém. Fora o Angelito que me conseguira esse emprego, que
cara de Machete e Roldão poderiam confirmar o que eu lhes falava.
Convidei a mãe para irmos ao porto para ter certeza do que eu lhe dizia.
Estávamos ainda reunidos eu, a mãe e meus irmãos, falando dos fujões,
quando bateram na porta chamando pela mãe, ela saiu e em seguida
ouvimos uma voz que dizia: – Dona Isabel, gostaríamos de falar com seu
filho, a senhora sabe como estamos aflitos. Eram cinco pessoas e só
caberiam na cozinha onde a mãe os mandou entrar, e me chamou, como
nada devia, nada temia. O primeiro a falar e em tom drástico, foi o pai do
Joãozinho, que me disse: – Por favor, queremos que nos diga, onde estão
os nossos filhos? – Senhor, lhe respondi, eu não sei onde anda seu filho,
ele nunca falou comigo, ele sempre falou para todos que não gostava
desse Negro, ou seja, de mim, e porque agora ia querer falar comigo, se
outro dia, só porque o Nino me cumprimentou e o Roberto também, queria
brigar com eles? Agora que regressei ele nem me olha. A mãe do Nino
quase que chorando me disse: – Negrinho, por favor, me diga, onde está
meu filho? – Senhora, respondi, eu não sei, nunca depois do meu regresso
falei com ele, a não ser um dia quando fui visitar um senhor amigo, o Nino
e o Roberto e de longe me disseram: Oi Negrinho! O Joãozinho estava
com eles e foi naquele dia que ele queria brigar com eles. O pai do
Joãozinho tornou a falar e me disse: – Os rapazes daqui dizem que viram
você com eles num povoado. Eu sempre fui calmo, e com calma lhe
respondi: – Não senhor, o único lugar onde eu estava trabalhando era num
posto de gasolina que pegou fogo anteontem e só voltarei quando
tornarem a organizar tudo. Se os senhores quiserem, podem ir perguntar
para o gerente, para o pessoal que ali trabalha e para a senhora onde eu
dormia, se alguma vez me viram em companhia de alguém. O pai do
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Joãozinho parece que não acreditou em mim. Levantaram-se para ir
embora e ele disse: – Nós vamos continuar buscando até descobrir a
verdade e foram embora.
No dia seguinte, depois que meus irmãos foram para a escola,
pratiquei um pouco de destrezas e um pouco de contorcionismo. À tarde
saí e comprei um rádio para dar de presente para a mãe pelo seu dia.
Quando regressei entrei pelos fundos, como na minha ausência tinham
instalado a luz de forma provisória, e tinham deixado algumas tomadas,
enquanto a mãe estava na cozinha entrei, liguei o rádio e me escondi.
Segundo ela me contou, ao ouvir o barulho de vozes no quarto, foi ver o
que era, e encontrou o tão sonhado rádio. Fico emocionado ao lembrar
aquele dia e suas primeiras palavras: – Ai meu Deus, isso é coisa de meu
filho, Senhor abençoai-o, não permita que mal algum lhe aconteça. Saí do
esconderijo, e quando me viu, veio a mim e me abraçou, me beijou nas
bochechas e aproveitei para lhe dizer: – Este é o presente do dia das
mães. Em seguida lhe repassei as informações que tinha recebido, ela
mexeu nos botões, trocou muitas vezes de estação, estava feliz, porém
dentro dessa felicidade eu lhe sentia com um pouco de tristeza. Passados
alguns momentos, pegou um papel, e quase que chorando disse ao me
entregar uma carta: – Essa gente foi denunciar você no juizado de
menores e me pediu para levar você amanhã até às 10 horas. Não senti
medo nem raiva. A mãe me pediu para não contar a meus irmãos.
No Juizado de Menores
Eu, como sempre, só nos momentos de aperto era que me
lembrava de Deus e Santa Sara Kaly. Assim quando senti que todos
dormiam comecei a rezar e pedi a Deus e à Santa Sara que não me
deixassem preso. Prometi que se não ficasse detido, ia andar por qualquer
lugar e quem sabe um dia chegar até Estefani. No dia seguinte, antes do
horário marcado, estávamos na sala de espera do juizado, não demorou
muito e chamaram a mãe, só ela, eu sentado e em silêncio, evocava a
Deus e Santa Sara Kaly. Meia hora depois a mãe saiu e mandou-me
entrar. Um pouco assustado, confesso que estava, e pensando: porque
não fiquei por onde eu andava, ou já era para ter ido embora daqui. Um
senhor uniformizado me levou até um amplo escritório, atrás de uma
grande escrivaninha estava sentado um senhor de terno e gravata, com
cara de bravo; de um lado da sala, sentada num sofá, estava uma jovem
senhora elegantemente vestida, com papel e caneta na mão, no seu olhar
não havia nada de doçura e nem feminilidade. O homem que me trouxe
ficou na porta, timidamente cumprimentei, ninguém me respondeu. O
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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senhor de terno, quase berrando e sem me olhar mandou sentar, tive a
impressão de que lia um papel que estava na sua escrivaninha, levantou o
rosto e à queima-roupa me disse: – Quer dizer que anda roubando!
Lembro como se fosse hoje, me correu um suor entre frio e quente por
todo o corpo. Não sei qual foi o tipo de voz que respondi: – Não senhor, eu
não roubo, essa história foi inventada por um rapaz da vila que moramos
porque ele não gosta de mim por eu ser negro. Em seguida me falou: – Eu
sou o Juiz de Menores e quero que você me diga toda a verdade, caso
contrário terei que encerrá-lo. – Sim senhor, respondi, sem querer olhei
para a senhora que estava no sofá, notei que no seu rosto se desenhava
uma espécie de sorriso meigo, no mesmo momento largou no sofá o papel
e a caneta, só hoje compreendo o porquê desta atitude. O Juiz continuou:
– A denúncia que fazem contra você é que você fugiu de casa, é verdade?
– Sim senhor, respondi e contei o porquê e de que forma. – Na denúncia
que eles fazem é que você anda com muito dinheiro, fruto de roubos, que
trouxe relógios para mãe, irmãos e roupas que só rico tem condições de
comprar. De onde tirou tanto dinheiro? – Senhor Juiz, para eu ganhar
dinheiro eu faço isto, e como em todo lugar, comecei a fazer
demonstrações, riam e aplaudiam de forma que me faziam lembrar tantos
outros lugares. O Juiz pediu para chamar uma doutora do escritório ao
lado, quando entrou me pareceu ver a Luzdari, secretária do Cônsul.
Continuei fazendo destreza, depois contorcionismo, tudo que fazia, eram
risadas, gritos, foi entrando mais gente, agora o próprio Juiz me tratava de
Orteguita. A doutora do sofá me pediu, como muitos presentes não
estavam desde o começo: – Orteguita, faz aquela prova de engolir a
moeda e tirar pelo popô, não teve outra, essa prova sempre causou fortes
risadas e palmas espontâneas, para simplificar as tantas perguntas que
me eram feitas, tive de lhes contar as minhas aventuras desde que fugi de
casa. Agora mais descontraído, contava tudo com gestos, sobretudo
quando contei da cobra riram bastante. Um dos presentes comentou que
lá na terra dele também tinha acontecido de uma cobra crescer dessa
forma, a terra dele era Tolima. Contei dos plátanos que peguei do lixo,
notei que sempre que contava essa parte as pessoas ficavam tristes e
modificavam. Quando contava que depois de fazer bastante
demonstrações, as pessoas me davam dinheiro, ficavam aliviados ou livres
de um peso. A doutora parecida com Luzdari, a secretária do Cônsul,
disse: – Ele é todo uma simpatia! Quando falou de simpatia, me lembrei da
carta do Embaixador, tirei do bolso e entreguei para o Juiz, este a sua vez
entregou para a doutora que estava no sofá e ela leu em voz alta.
O Juiz, que tinha ficado com o passaporte, também leu em voz alta
e fez uma pausa para pronunciar: profissão “artista”. A doutora me abraçou
e me beijou na testa e dirigindo-se aos presentes disse: – Ele é muito
queridinho! Mostrei-lhes a assinatura do Cônsul e a assinatura do Chefe
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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de Emigração e lhes falei que ele era o irmão do Cônsul. O Juiz ficou me
olhando e disse: – Você é um lutador.
Eles começaram a comentar as denúncias feitas contra mim,
estavam todas escritas no papel que eles levaram, no meio da conversa e
comentários, contei-lhes que morara na casa do Cônsul e porque tive que
fugir. Contei do comportamento de Helena, tentando me incriminar de
qualquer forma, quando contei os socos que dava no Firpo, a doutora se
levantou e disse: – Ele não tinha culpa coitadinho, ele tinha todo carinho
da dona, ou seja, a esposa do Cônsul, e não queria dividir com ninguém.
Explicou-me muita coisa e falou de seu cachorrinho, foi tanto que me falou
em defesa dos animais e o carinho para com seus donos, que comecei a
me arrepender por ter judiado tanto do Firpo, até hoje quando me lembro
dele sinto pena e arrependimento.
O Juiz me disse que na denúncia que tinham feito me acusavam
de incentivar os rapazes a fugir. – Não senhor, respondi, eu não falei para
ninguém fugir, primeiro os pais deles os tinham proibido de falar comigo, o
filho daquele senhor, que é o que mais me acusa, nunca gostou de mim,
ele sempre foi muito orgulhoso porque os pais o mantém sempre bem
vestido, enquanto nós andávamos com roupinhas surradas e remendadas,
ele quase não gostava de se juntar conosco. Fiquei sabendo que o Nino
também fugiu, um dia que ia para o centro com minha mãe ele nos
alcançou, ele sempre gostou muito de mim e desde que voltei, queria me
ver de perto. Senhor Juiz, eu não preciso roubar, em qualquer lugar que
me apresento o público me dá dinheiro, ganho muitos amigos, alguns até
me convidam para ir à suas casas, me apresentam suas esposas e filhos.
Ele me perguntou: – O que você faz com o dinheiro? – Eu dou para minha
mãe para ela poder fazer nossa casa igual a do Chepe, meu amigo. O juiz
me perguntou: – Aquele Chepe da carroça que trabalhava com Evaristo? –
Sim senhor. O diálogo continuou, lhe contei até da morte de Evaristo: – Ele
ia me levar para trabalhar nas lojas dele, para me mandar a um bom
oftalmologista, para me curar os olhos e poder estudar. Ao lembrar do
Evaristo fiquei muito triste, tive a impressão de que ia se formar aquele nó
na garganta, porém se dissipou. E me perguntou: – E porque não ficou
trabalhando com os filhos dele? – Eles são muito maus e foi por isso que o
Chepe não continuou trabalhando com eles. Todos me faziam perguntas e
eu respondia.
O Juiz me ofereceu café ou suco, preferi o suco, em seguida me
trouxeram, tomei meio copo e pedi se podia levar aquele meio copo para a
mãe, a doutora me respondeu que já tinham levado para ela. O Juiz
mandou o guarda chamá-la, quando entrou notei em seus olhos que tinha
chorado. O Juiz se levantou e a abraçou dizendo: – Dona Isabel, a
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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senhora tem uma jóia de filho, como é que a senhora permite que tratem
seu filho de tal forma? Eu vou chamar aquele vagabundo que anda
espalhando que seu filho é ladrão. O Juiz perguntou para a mãe: – A
senhora também acredita que seu filho seja ladrão? Ela respondeu: –
Como é que vou acreditar, se eu sei como criei meus filhos, e ainda menos
ele, que sempre desde pequeno foi muito trabalhador, as pessoas que o
conhecem gostam dele, justamente pela sua honestidade e a forma como
ele trata as pessoas. Ela começou a chorar dizendo: – Agora vejo meu
filho acusado de ladrão e todas aquelas pessoas que ele tanto ajudou,
hoje lhe viram as costas. Senhor Juiz, isso me dói. As duas doutoras
pegaram-na nos braços e lhe deram um copo de suco, uma lhe secou as
lágrimas e a outra lhe dizia: - Senhora, seu filho vale ouro e como o Juiz
disse, é uma jóia. Que menino com essa idade vai se preocupar em querer
ganhar dinheiro para levar à mãe para construir sua casa? A gurizada só
quer brincar e malandrear.
A mãe disse: – Não só a casa, Senhor Juiz, já me deu um fogão
daqueles modernos de três bocas, me deu um rádio de presente no dia
das mães. O Juiz me disse: – Ortega, esses fogões são caros! Tu
compraste? – Não senhor, seu Evaristo me deu de presente. Em seguida
contei como tinha acontecido. A mãe falou de Chepe, da esposa, da
Luzdari, esposa de Evaristo, abaixou a cabeça e em tom triste disse: –
Pena que ele morreu! O juiz olha o relógio, era meia hora e disse: – Com
Orteguita o tempo passou sem sentir, em seguida deu uma carta para a
mãe e pediu para entregar para o pai de Joãozinho. Estou citando
inclusive o tal do Geraldo, nós vamos apertar com ele para que fale a
verdade, na segunda eles devem comparecer, vocês dão um pulinho na
quarta para lhes contar o que falaram. Todos os presentes nos deram a
mão de despedida, as doutoras me beijaram, o Juiz me abraçou. Saímos
muito felizes e abraçados como dois namorados. Em casa e após almoçar,
fomos entregar a carta e após a entrega voltamos para casa, eu fui dormir
os meus dez minutos.
Quando acordei fiquei deitado pensando, o que fazer no caso de
não me acontecer nada no juizado, era sexta-feira e teria que esperar até
quarta-feira. Falei para a mãe que gostaria de ir até o porto cobrar meus
dias que trabalhei no posto de gasolina. Iria de trem e voltaria no outro dia,
também de trem, convidei meu irmão Marino para ir junto e ele aceitou.
Dona Maria ficou muito feliz de conhecer o filho mais velho de sua amiga
de infância. Depois de almoçar, convidei meu irmão para ir até o cais do
porto, queria saber quando chegaria o navio do meu amigo, o cozinheiro
italiano. A informação que recebi era de que esse navio não estava mais
fazendo a rota da América do Sul, a nova rota era Nova Iorque, Japão e
alguns portos asiáticos.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Fomos ao posto, me encontrei com Roldão, ficou contente ao me
ver, imediatamente me entregou quatro pesos que dona Matilde tinha me
deixado. Meu irmão, que não acreditava que eu soubesse dirigir, teve a
oportunidade de me ver. Roldão me pediu que quando ele tirasse um
caminhão de determinado lugar, eu deveria colocar uma caminhonete que
estava naquele lugar mal estacionada, e tive a satisfação de meu irmão
andar junto.
No dia seguinte voltamos para casa, a primeira coisa que meu
irmão fez foi contar para a mãe que eu sabia dirigir. Na quarta-feira estava
com a mãe no juizado, no horário marcado. Na sala, além das três
pessoas do primeiro dia, tinha mais um senhor. O Juiz veio ao nosso
encontro, a primeira coisa que nos falou todo contente foi: – O semvergonha confessou toda a verdade na primeira pergunta que a doutora
lhe fez. Quando ela lhe perguntou por que havia me desmoralizado dessa
forma, dizendo que tinha me visto sendo levado pela polícia por ter
roubado, respondeu que ele pensava que Ortega tivesse morrido.Quando
a doutora lhe disse que por essa calúnia teria que ser preso, desandou a
chorar, sabe o que eu disse para ele? Não seja covarde, Ortega nos
enfrentou sem soltar uma lágrima. Entraram outras pessoas na sala, e o
Juiz me apresentou a elas, elogiando o meu trabalho. Em seguida nos
falou que já sabiam para onde tinha fugido o Nino, que a irmã dele também
sabia. Era igual que o Geraldo, eles tinham denunciado que o Geraldo
quase apanhou porque sabia muita coisa e a doutora, apertou com ele e
ele já foi falando tudo que sabia. Eles começaram a rir ao lembrar da cara
de pau que o tal pai do Joãozinho fez quando o Diretor que estava
presente, lhes disse: – Sabem que, de acordo com a lei, vocês devem ser
presos e o Geraldo mandado à correção de menores pela calúnia que
levantaram contra o Negrinho, sabem o que está sofrendo a mãe dele?
Aquele rapaz é um artista e tem condições de ganhar qualquer dinheiro e
em qualquer parte do mundo. O pai do Joãozinho, a todo o momento fazia
gestos como querendo chorar, e a doutora perguntou para o Geraldo: –
Você o que faz? Ele respondeu: – Vendo jornais. – E ganha? – Algum
pouquinho. – E que faz com o dinheiro? – Compro roupas, sapatos e ajudo
a mãe com a comida. E a doutora tinha lhe dito: – E vocês sabem para que
o Negrinho lutou? É para construir uma casa para a mãe, e os irmãos
poderem estudar, já que ele, por causa do problema nos olhos não pode.
Vestir bem, ele tem que andar bem vestido por causa da profissão, ele é
um artista! O Diretor lhe disse: – Podem ir embora, o que vocês devem é ir
pedir desculpas à mãe e ao Negrinho por tanto sofrimento que vocês lhes
têm causado.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Quando eles saíram, se ouviram gritos e eles foram ver pelas
janelas, era a mãe do Geraldo querendo se pegar aos socos com o pai do
Nino, que era o mais bravo e estava com o Geraldo. Depois de rirmos dos
comentários, o Juiz me disse: – Eu vou lhe dar uma carta para que quando
esteja trabalhando não lhe incomodem, só que ela também tem que estar
assinada pelo Diretor e ele agora não está, venha amanhã à tarde, pelas
16 horas. Ao sair o doutor me disse: – Negrinho, traz algumas provas para
o Diretor ver. Confirmei.
Às 16 horas eu estava firme fazendo rir um grupo grande de
pessoas que se tinha reunido para assistir, entre elas o Diretor. Lembro
tanto esse dia, a última prova que fiz foi tirar o soutien da doutora, que em
princípio chamava a do sofá, o nome dela era Miriam. A prova consistia em
tirar o soutien sem tirar o vestido e sem tocar nela, a prova era feita
através do lenço de algum dos presentes, que entregava para ela colocar
no peito, claro que por dentro do vestido, deixando uma pontinha para fora,
que em determinado momento, e sob o meu comando, ela puxava, e na
outra ponta o soutien estava amarrado. Ela tinha se tornado minha amiga,
por isso fiz com ela.
É difícil descrever os gritos, as risadas, a hilaridade dos presentes
na conclusão da prova. A doutora foi a primeira a me abraçar
demoradamente, a alegria era geral, hora e meia quase fazendo provas.
Após a doutora ter recolhido dinheiro entre os presentes, o Juiz me
perguntou: – O que pretendes fazer daqui para frente depois de se ver livre
do peso desses bandidos? Respondi-lhe que gostaria de voltar àquele país
onde fora tão bem tratado e tinha ganho um bom dinheiro, e que também
ainda me faltavam muitas cidades para trabalhar. Falei-lhe que sentia falta
daquele carinho que recebia sempre das pessoas, nos lugares onde
chegava, só que iria ser difícil voltar porque o Cônsul tinha me dito que
sempre que saísse fora do país tinha que levar uma autorização da mãe,
assinada por ela e pelo Juiz de Menores do Estado. Rápido o Juiz disse: –
Se for por mim já está assinada, o senhor Diretor também assina e a
doutora chefe também assina, em seguida pegou uma carta padrão já
escrita, assinou e carimbou, o Diretor fez o mesmo e também a doutora.
Colocou dentro de um envelope e me disse: – Aqui onde está o nome de
sua mãe ela tem que assinar e colocar o número da identidade, isso quero
ver, se ela assinar você está com tudo e pode viajar para qualquer país do
mundo. Em seguida me disse, preste atenção e começou a ler uma carta,
textualmente não me lembro, porém o começo era este: O Juiz Alexandre
Tudor, com identidade tal, registrado em tal, etc... Fazia uma declaração
de ser meu amigo pessoal, me recomendava como rapaz idôneo e pedia
para as autoridades colaborarem no meu trabalho, foram seis pessoas que
assinaram.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Ao me despedir, o Juiz disse: – Se a mãe não assinar, traga ela
aqui que a convenceremos a assinar.
Já na rua, muito feliz com minhas cartas, só pensava a forma de
fazer a mãe assinar. Quando cheguei meus irmãos já estavam em casa,
Marino não poderia ler a carta porque ele explicaria para a mãe que ela
estava me autorizando a viajar para fora da Colômbia e seguramente não
assinaria. Antes de chegar em casa escondi as cartas, quando a mãe me
perguntou o que o Juiz queria, lhe respondi que ele não pode atender
porque tinha muita gente e que era para ir no dia seguinte pelas 8 horas.
Autorização para viajar ao exterior
No dia seguinte saí junto com meus irmãos, eles foram para a
escola e eu fui em direção ao centro, fiquei dando voltas pelas ruas, uma
hora depois voltei para casa, fazendo de conta que estava com pressa,
tirei a carta de recomendação e dei para a mãe, quando ela estava lendo
falei: – Mãe, assina este papel que tenho que levar para o Juiz ligeiro que
é o comprovante de que nada devo à justiça, eu tinha a caneta na mão,
entreguei para ela e ela assinou, eu saí correndo, fazendo de conta que ia
entregar o papel para o Juiz, a mãe ficou lendo a outra. Quando regressei
ela me disse: – Viu meu filho, não há mal que para bem não seja, eles
tentaram lhe fazer mal, olha que carta linda que você ganhou, é claro que
a outra nunca mostrei para a mãe.
Após os nossos espíritos mais calmos, uma noite conversando
com a mãe, lhe falei a respeito de viajar para alguas cidades e ganhar
algum dinheiro, caso contrário daqui a pouco íamos começar a gastar o
dinheiro da casa em comida. Ela concordou, me aprontou algumas roupas
e dois dias depois saí após ter estudado o mapa. Procurei não ir nos
cidades onde já tinha estado com Manolo.
Na primeira saída fiquei dois dias fora, não foi muito que ganhei,
porém muitíssimo mais do que ganharia no mercado. Lembrava que no
mercado ganhava oito a dez, ou no máximo doze centavos durante todo
dia, agora trabalhando no máximo duas horas ganhava de quatro a seis
pesos, claro, em comparação ao que ganhava no exterior era pouco, mas
de toda forma estava bom.
Eu nunca fui rancoroso nem vingativo, digo isto porque na terceira
saída que fiz, estando numa cidade à procura de um lugar para trabalhar
na praça central, de pronto vi sentado um rapaz que me pareceu
conhecido, quando olhei ele me sorriu, e ao chegar perto dele, a surpresa,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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era o Joãozinho. Foi difícil reconhecê-lo à primeira vista porque estava
cabeludo e as calças sujas, lhe falei do desespero dos pais e lhe pedi para
voltar para casa, me respondeu que não tinha dinheiro para a passagem,
lhe prometi que ia trabalhar e depois lhe daria o dinheiro, concordou.
Ele ficou olhando eu trabalhar e quando terminei veio e me disse: –
Bonito seu trabalho! Convidei-o para jantar, lhe paguei o quarto para
dormir porque, segundo ele me disse, dormia debaixo dos bancos. No dia
seguinte e após tomar café, lhe dei cinquenta centavos para a passagem,
que custava trinta e cinco centavos, para voltar para casa, me despedi e
pedi para fazer o favor de dizer à minha mãe que eu estava bem e que
voltaria em três ou quatro dias. Eu queria aproveitar que havia várias
cidades próximas onde residiam pecuaristas e me renderiam alguns bons
pesos. Cinco dias depois de ter despedido o Joãozinho, estando numa
cidade onde se ouvia música por todo lado.
Depois de ter ganho uns pesos, me dirigi em direção ao mercado à
procura de uma barraca para jantar, quando vi o Joãozinho encostado num
poste, ainda sujo, cabeludo, pescoço preto de sujeira, quando me viu se
surpreendeu. Ao lhe perguntar o porquê de não ter ido para casa, me
respondeu que ele tinha comprado a passagem e que se sentou num
banco a esperar que encostasse o ônibus e pegou no sono, e quando
acordou o ônibus já tinha ido embora e não quiseram mandar-lhe em outro
ônibus e nem lhe devolveram a passagem. Convidei-o para jantar e depois
lhe falei para ir ao hotel onde eu estava, ficou aparentemente contente. No
hotel peguei uma roupa minha e lhe pedi para tomar banho e trocar a
roupa suja e que depois me esperasse, eu iria até a farmácia comprar um
remédio para os meus olhos e depois o levaria para cortar o cabelo. Com
tudo concordava calmamente, enquanto tomava banho saí e fui para o
correio e mandei um fonograma urgente para os pais dele, lhes informando
o povo, o endereço e o hotel onde estávamos. Quando voltei, ele tinha
tomado banho e estava bem vestido, em seguida levei-o na barbearia para
cortar o cabelo, depois damos umas voltas pelo centro, tomamos um
lanche e então fomos dormir, ele em um quarto e eu em outro.
Eu calculava que o fonograma deveria chegar durante a noite, e
que depois do meio-dia alguém estaria à procura do filho. No dia seguinte
lhe convidei para tomar café e depois fomos dar umas voltas. O ônibus
chegava todos os dias ao meio-dia e convidei-o para irmos ao hotel
descansar, porque à tarde eu tinha que trabalhar e deveria estar
descansado. Eu calculava que se o ônibus chegasse ao meio-dia, alguém
deveria estar no hotel à meia-hora, poderia ser o pai ou a mãe. Meu
cálculo deu certo, ao meio-dia e vinte ouvimos a voz deles, nós dois
estávamos sentados conversando, quando o pai e a mãe entraram. A mãe
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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correu para o filho, o abraçou e beijou, quase que chorando, o pai pegou-o
pelo braço, e sem sequer ter me cumprimentado, saíram. Na portaria ouvi
que perguntaram quanto ele devia e o porteiro respondeu: – O jovem
Ortega pagou tudo. Através da janela vi que levavam o rapaz, quase que
arrastando. Ele conseguiu olhar para trás e gritou: – Tchau Negrinho. Deume a impressão que ele queria se safar deles e não conseguiu, deram a
volta na esquina e desapareceram.
Fiquei dez dias fora de casa, no meu regresso a mãe me contou
que o Joãozinho tinha ido lhe visitar, escondido dos pais e tinha lhe
contado que eu era um cara muito bacana. Que tinha lhe dado comida,
roupa limpa, feito cortar os cabelos e levado para dormir no hotel, porque
ele dormia nos bancos dos parques, e tinha lhe dado o recado que eu lhe
mandei. A mãe também me disse que ele agora, sempre que passava em
frente de casa, procurava cumprimentá-los. Fiquei sabendo que ele tinha
contado tudo para a rapaziada, como era que eu ganhava dinheiro, e
agora a onda da gurizada era praticar, dar volta cambotas, caminhar com
as mãos, e já tinham até rola-rola, fiquei sabendo que o Roberto foi parar
no hospital, porque ao dar uma volta cambota caiu mal de jeito e fraturou
um braço, e os pais dele tinham me culpado. Dois dias depois saí de novo
e fiquei quatro dias fora, no meu regresso soube que o Toneno tinha fugido
de casa e tinha deixado uma carta para os pais, onde lhes dizia que não
suportava mais essa vida de pobreza e de um pai bêbado, e ia fazer como
o Negrinho, que depois de ser um dos mais pobres da vila, regressara bem
vestido e cheio da grana. A irmã do Nino também tinha fugido, e ninguém
sabia se sozinha ou provavelmente com algum rapaz, ou quem sabe se
com o Negrinho. Porém o Joãozinho me defendia firmemente, ademais
porque a guria tinha 18 anos e o negrinho tinha só 14, mesmo assim, no
dia seguinte ao ter chegado de uma viagem, os pais dela foram à minha
casa perguntar se eu sabia alguma coisa a respeito da filha. Meu irmão
Marino, que era pavio curto, e além de ter um pouco de estudo e saber
falar, lhes saiu com uma tremenda grosseria ao lhes dizer: – Quer dizer
que se um dia a sua filha ficar grávida o senhor vai vir perguntar ao meu
irmão se ele é o pai? O homem não gostou muito e foi necessário a
intervenção da mãe e da mulher dele para que não se pegassem a socos.
Eu vi com muita tristeza os meus outros irmãos armados com paus,
dispostos a nos defender, sorte que a mulher puxou o marido e foram
embora.
Novamente girando o mundo
Para organizar o meu roteiro de viagens comprei um mapa, Marino
me ajudou a marcar as cidades que tinham mais de vinte mil habitantes.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Marcamos várias cidades dos estados de Caldas, Antioquia e Atlântico.
Com a ajuda de meu irmão falei para a mãe que viajaria para os povos do
norte e como pretendia chegar até Barranquilha, passando por Medellín,
que eram cidades grandes, com muitos parques e que por esta razão
demoraria um pouco para voltar, mas que eu iria lhe escrevendo e lhe
mandaria dinheiro através do correio. Ela concordou e ainda me disse: –
Vai meu filho, que Deus e Santa Sara Kaly hão de proteger você e pode
ser que quando você regresse esta gente esteja mais calma e não nos
incomode mais.
A primeira passagem fui de ônibus para Armênia, boa praça, fiquei
dois dias, em seguida Pereira, também bom mercado e também fiquei dois
dias, a seguinte foi a cidade de Manizales. No dia seguinte, após terminar
de trabalhar, chegaram onde eu estava dois monosábios da praça de
touros de Cali, imaginem vocês a minha alegria encontrar dois amigos da
minha terra e nada menos que o Lorenzo, que foi quem mais me ensinou a
conhecer a touromanquia. Depois dos abraços e de falar da minha
apresentação e de me dar os elogios a respeito, me informaram que
estavam organizando uma tourada e já me convidaram a participar como
peão de brega, é claro que aceitei com muita alegria e já comecei a sonhar
de me ver de novo no redondel. Aquele domingo amanheceu nublado, teve
pouco público e não foi muito o dinheiro que recebi, porém restava a
satisfação de haver toureado com amigos. O empresário era um senhor
muito esperto e aproveitou que havia um circo na cidade, organizou uma
corrida noturna e acertou com o dono do circo para ser levado um leão, é
claro que dentro da gaiola, onde ele entraria, mesmo estando o leão lá
dentro. O domador deu várias informações ao senhor empresário, para
seu descanso prometeu que alimentaria o leão minutos antes dele entrar
na gaiola, porque estando o leão bem alimentado não haveria perigo de
lhe atacar, também prometeu estar dentro da gaiola o domador para maior
segurança. A propaganda foi intensa, da forma que ele fez a propaganda
dava a impressão que ele entraria na gaiola e até tocaria e brincaria com o
leão. O público foi em massa, não havia lugar vazio nos tendidos. Primeiro
foram tourados quatro, podemos dizer terneiros, eram bem bravos, eu
sentia uma certa vergonha de tourear terneiros, assim mesmo tive que
colocar dois pares de banderilhas.
Depois de toureados quatro terneiros foi anunciado com muita
ênfase a entrada do homem na gaiola do leão, o locutor anunciava aos
gritos: – Pela primeira vez um homem que nunca esteve perto de um leão,
hoje, agora, neste momento, ele entrará na gaiola do leão. Vários
funcionários do circo empurraram a gaiola até o centro do redondel, dentro
da gaiola estava o domador junto com o leão, que estava acocorado, e o
domador em pé. Os ajudantes ficaram cada um do lado de fora das portas,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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que eram de correr, eles estavam vestidos com trajes coloridos, idem o
domador. No meio dos gritos do speaker anunciando a tal façanha, em
seguida apareceu o nosso homem vestindo terno e sapatos brancos e
chapéu branco também, só a gravata contrastava. Eufórico, sorridente,
levantava os braços, ia girando para poder cumprimentar o público que
aplaudia sem parar. Uma escada facilitava a subida na gaiola, ele agora
estava todo nervoso, teve de ser ajudado e quase puxado para subir a
curta escada da gaiola onde estava o leão, de longe se notava seu
nervosismo, dava a impressão que tremia. A uma ordem do domador, foi
aberta pouca coisa uma das portinholas, nosso amigo, tremendo como
vara verde, entrou, não demorou nenhum segundo e já saiu, não desceu a
escada, pulou, enquanto o speaker fazia propaganda de algo inédito,
nosso personagem desapareceu. O público ficou mudo, o silêncio era
profundo, todos estavam estáticos. O primeiro que conseguiu sair do
ostracismo no meio do silêncio, conseguiu se ouvir que ele disse: – Nós
esperávamos mais, nos informaram que ele entraria na gaiola do leão e
ele entrou. Outro falou em voz alta: – Foi uma grande piada. As que não se
conformavam eram as mulheres, que lhe chamavam de safado,
trambiqueiro, gato cafajeste e por aí em frente.
Nos jornais do dia seguinte eram só charges e críticas ao
empresário, só que nada disso lhe importava, o que lhe interessava era o
dinheiro que recebera. Apesar de tão materialista, não me pagou tão mal,
eu estava muito contente estando com meus amigos. Falaram-me do cara
que se fazia passar por espanhol, me contaram que estava preso, não
comentei nada a respeito dele. Contei-lhes que tinha permanecido no
exterior desde que sumi e com meu espetáculo nas praças tinha ganho um
bom dinheiro e que pretendia voltar para conhecer outros países.
Conversamos bastante e lembramos muitas coisas. Por último me
convidaram para visitar o Nevado del Ruiz, uma fazenda onde o
proprietário só criava gado de raça, touros bravos para lida, o proprietário
nos recebeu atenciosamente, primeiro foi café bem quentinho com
variadas misturas, depois nos levou para ver o gado e por último nos
convidou para tomar banho de águas termais. Apesar do frio, a água era
bem quente. Edmundo, que era o nome do proprietário, não quis que
fôssemos embora sem antes almoçar, então ficamos. Sua família era
numerosa, entre esposa, filhos, filhas, sogra, cunhadas, etc., todos nos
foram apresentados. Na hora do almoço só se falou do tal empresário.
Edmundo dizia: – Aquele desgraçado estragou a praça, o público não vai
mais acreditar no que a gente pretender fazer. Na despedida me disse: –
Estás convidado a participar como banderilheiro de uma corrida que
estamos organizando, vai ser um festival taurino, Lorenzo te explicará o
programa.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 284
A primeira coisa que Edmundo fez foi criticar pela imprensa o tal
empresário, dizia que isso que ele tinha feito era lesar o público, em algum
trecho dos jornais prometia organizar um festival taurino para mostrar
àquele senhor como deve ser tratado o público. Lorenzo me informou que
o festival seria na sexta semana, aproveitando um feriadão, eu deveria
estar uma semana antes para organizar a programação. Prometi voltar e
nos despedimos.
No dia seguinte viajei para uma cidade perto e continuei viajando
para cidades pequenas no mesmo estado de Antioquia, porém tratava de
não me afastar muito, pendente que estava do festival taurino. Conforme
prometido, uma semana antes eu já estava na cidade Por todos os cantos
era festa, já tinha sido eleita a rainha de beleza do estado, quem tinha
ganho era uma jovem muito bonita, de um povo vizinho. Nos cartazes e
nos volantes eu figurava como novilheiro, título que ainda não tinha.
Anunciavam a presença da rainha com todo seu séquito, também
anunciavam a apresentação do touro passarinho, propriedade do criador
de gado de casta no Nevado del Ruiz, senhor Edmundo. Para maior
atração da tarde tourearia um toureiro bastante conhecido na cidade
porque era mudo. Meus colegas e amigos me receberam com muita
alegria e já me foram mostrando a programação. Faço um parênteses para
contar o que me foi contado do toureiro mudo. Era uma tarde de touros,
muito ensolarada, touros bons e de raça, como os outros toureiros, o
toureiro mudo também se destacava, porém num determinado momento
resvalou na areia e meio que perdeu o equilíbrio, o touro veio e o levantou,
só que no momento que o touro o levantou, bateu-lhe no peito e o mudo
gritou alto: – Mamãe! E dizem que foi a única vez que se ouviu ele falar.
A corrida em si esteve muito bem organizada, a rainha com suas
damas deram a volta no redondel saudando o público, que entusiasmado,
batia palmas. O público também adorou a apresentação do touro
passarinho. O seu proprietário, Edmundo, abriu o touril e passarinho saiu
com fúria atrás do toureiro, que estava perto de um burladeiro e quando
passarinho chegou perto se escondeu nele, passarinho era pura fúria,
queria demolir o burladeiro. Previamente tudo combinado, o outro toureiro
se deixou ver e o touro correu atrás dele e este rápido se escondia, era
tanta a fúria de passarinho que queria destruir os burlandeiros com os
chifres. Como tudo estava combinado, ninguém deveria tourear o
passarinho, no momento que ele ia atrás de um toureiro, a toda
velocidade, Edmundo entrou no redondel, deu um assovio e o passarinho
parou, olhou para Edmundo e se dirigiu a passo lento para ele, e quando
chegou perto lhe passou a mão pelo corpo e lhe fazendo cafuné perto dos
chifres, deu uma batidinha nas patas dianteiras e o passarinho levantou
uma, a guisa de cumprimento, o público delirava, aplaudia. Tudo o que o
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 285
Edmundo fazia, o passarinho aceitava calmo. Ele tirou sal do bolso e o
passarinho comeu nas mãos do Edmundo, foram muitas as
demonstrações e o público adorou. Para despedida, Edmundo subiu no
lombo do touro e se deitou, depois desceu, tocou-lhe o pescoço e disselhe: – Vamos! E os dois saíram juntos até desaparecerem no touril.
Público e imprensa elogiaram o festival, eu feliz apliquei meus três
pares de banderilhas e fiz mais de uma dúzia entre verônicas e
chicuelinas, além do dinheiro que recebi.
Mandei parte do dinheiro recebido para a mãe e pedi para me
responder à cidade de Medellín. Percorri Caldas e Antioquia, até chegar a
Medellín onde encontrei a carta da mãe, que me informava do recebimento
do dinheiro. Respondi pedindo que me escrevesse à cidade de
Barranquilha. Demorei aproximadamente quarenta dias até chegar à
Barranquilha, no correio tinha carta onde a mãe me informava do
recebimento do dinheiro que eu lhe enviara desde Medellín.
Voltando a Barranquilha: a carta do Cônsul
Uma vez em Barranquilha, me dirigi ao cais do porto onde tinha
desembarcado, fui à procura do oficial irmão do Cônsul, eu estava com
certo temor de que o irmão tivesse se comunicado com ele e lhe contado
da minha fugida da sua casa, ao mesmo tempo fiquei pensando o porquê
do temor se não tinha feito nada que me desabonasse. Ao chegar não
encontrei o oficial, só estaria de turno no dia seguinte às 6 horas. Como
estava se armando um temporal, voltei para o hotel, não demorou e a
chuva começou. Deitei-me, lá fora a chuva caía com força e eu deitado
pensava: Será que viajo para o exterior para visitar meus amigos?
Comecei a sonhar com o reencontro com Estefani, a alegria quando me
visse de novo, estava neste pensamento quando senti alguma força me
puxar. Sentei-me na cama, sacudi a cabeça e comecei a falar comigo
mesmo: chega de sonhar, é melhor não pensar em ninguém, basta o que
me aconteceu por tanto sonhar com a garotada da minha vila, que
tínhamos nos criado juntos e, ao invés de encontrar amigos, encontrei
problemas para minha mãe e para meus irmãos, e sobretudo para meu
irmão Marino.
Alguma coisa me empurrava para aquele país. Como a chuva
continuava, não trabalhei aquele dia. No dia seguinte, às 8 horas, estava
no cais do porto, não tinha movimento, tudo vazio, nada de gente,
perguntei a um soldado pelo oficial e me levou até ele. Quando me viu,
veio ao meu encontro sorridente, me abraçou, me fez entrar no escritório,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 286
o soldado foi embora e nós dois ficamos conversando. Contei-lhe alguns
trechos da chegada à minha vila, mostrei-lhe a carta de autorização para
viajar, menti quando falei que a mãe mesma tinha ido ao Juiz, também
mostrei a carta de recomendação que o Juiz me deu. No meio da conversa
me disse: – Eu escrevi para meu irmão e ele me respondeu. Senti um
calafrio quando ele foi procurar a carta e começou a ler, mais um susto
quando ele leu: De Ortega te direi que Amanda sentiu a ida dele embora,
sua ausência nos deixou um pouco tristes, seguramente ele te contou o
motivo da sua ida. Mano, se por um acaso tornar a lhe ver, fala para ele
que nós lhe queremos muito. Mano, ele é um bom menino, se ele precisar,
e tu puderes, ajuda-o. Senti que ele estava curioso para saber o motivo da
minha viagem, ou seja, a saída da casa do Cônsul e contei-lhe tudo
conforme tinha acontecido. Ele ficou um pouco pensativo e em seguida me
argumentou: – É que a Helena e Amanda foram criadas juntas e a Helena
tem muito ciúme de Amanda, não falou mais a respeito. Perguntou-me o
que pretendia fazer agora. Falei-lhe do desejo de viajar de novo para
aquele país e visitar algumas cidades que não havia visitado e rever
alguns amigos, e ele sem demora disse: – Vamos pegar o visto, chamou o
motorista.
Saímos e a poucas quadras estava o consulado, no escritório uma
senhorita nos atendeu. O oficial explicou o motivo da nossa visita
entregou-lhe o passaporte e a carta do Juiz. A senhorita entrou, porém não
demorou e apareceu o senhor Cônsul pedindo desculpas por não ter vindo
pessoalmente receber-nos. Pela conversa deles notei que já se
conheciam. Depois de comentarem alguns acontecimentos entre eles, e
muitas risadas, acompanhadas com gostoso cafezinho, pegou meu
passaporte junto com a carta do Juiz, após ler me perguntou: – Quer dizer
que quer voltar para minha terrinha não? – Sim senhor, respondi. – Quanto
tempo vai permanecer? O oficial respondeu por mim: – Não sabemos
quanto tempo, meu irmão vai segurar ele lá, ele vai para a casa do meu
irmão, que é o Cônsul lá. Pelo que falaram os dois Cônsules também se
conheciam, me deu visto por um ano. Como naquele dia não haveria
movimento de saída e de chegada de navios, o oficial convidou ao senhor
Cônsul para ir jantar com outros oficiais do porto, o jantar seria peixe
preparado por um especialista muito conhecido na cidade e que poderia
levar a esposa, que era tudo informal. Ao sair do consulado me perguntou
quando queria viajar, respondi que o mais breve possível. Fomos ao seu
escritório e me deu um bilhete de passagem gratuito para o dia seguinte às
14 horas, me convidou para estar no jantar à noite. Despedi-me, dei uma
volta pela cidade, sobretudo pelo centro. À noite estava no jantar, recebi
aplausos e felicitações. Na hora de me despedir, o oficial me entregou uma
carta que era para fazer o favor de entregar para o senhor Cônsul, seu
irmão. Diga-se de passagem, fiquei uma hora na capital e a carta nunca
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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entreguei. Após me entregar a carta, o oficial informou-me que no dia
seguinte não estaria no cais na hora da minha saída porque passaria o
turno às 6 horas, e já nos despedimos, e me disse que poderia ficar
tranquilo que não teria nenhum problema para viajar, mandou lembranças
para o irmão, Amanda, a cunhada, também para Luzdari e o Salazar,
nunca cheguei até eles para dar as lembranças.
Embarquei no dia seguinte sem nenhum problema, desembarquei
no mesmo lugar onde me despedi de Gustavo, em seguida peguei um
ônibus para a capital e sem demora, já na capital, peguei ônibus para um
das cidades que o alemão tinha me recomendado, e por querer chegar
ligeiro na capital, não tinha parado. Bem documentado que estava, não foi
difícil para eu conseguir quarto em um hotel. No dia seguinte quando
estava recolhendo o dinheiro que o público tinha me dado, após minha
apresentação, chegaram dois guardas e me levaram para a delegacia. Fui
entregue ao delegado e lhe informaram a meu respeito e que eu estava
formando tumulto na praça, em seguida foram embora. O delegado, um
moreno muito simpático me perguntou: – O que foi meu filho? Expliqueilhe, mostrei-lhe os documentos, ele leu as cartas, viu o passaporte e me
perguntou: – Eles viram estes documentos? – Não senhor, respondi. Ouvio dizer em voz baixa: são uns bestas. Falou-me diversos assuntos e, por
último, disse: – Meu filho, não sou deste país, estou aqui porque estudei,
me formei, me casei com uma moça daqui e os meus filhos também são
daqui, e é por isso que trabalho aqui, este é um bom país, só que neste
momento o governo atual não permite nenhum tipo de grupos reunidos em
lugar nenhum. Trabalhar dessa forma aqui vai ser muito difícil, tem que ir
longe da capital ou ir para o país vizinho, lá não tem esses problemas.
Pegou um mapa e me marcou o roteiro que deveria seguir até chegar à
fronteira. Desejou-me boa sorte e me despedi.
Naquela noite dormi na cidade. Não fiz caso do delegado e no dia
seguinte viajei para a cidade vizinha, que estava a 160 quilômetros.
Naquela tarde não trabalhei, fui para a delegacia, falei com o delegado, o
meu desejo era de me apresentar na praça no dia seguinte. Mostrei-lhe
meus documentos, me deu um papel onde me autorizava a trabalhar.
Naquele dia havia pouco movimento, mesmo assim peguei uns troquinhos.
Faltava ainda a última cidade das que o alemão me aconselhara, e no dia
seguinte eu já estava lá. Era mais morto que o anterior, pouca gente nas
ruas e não tinha um parque sequer, vi que era difícil reunir o público e
decidi aceitar o conselho do delegado e viajar para o país vizinho, que
estava à 60 quilômetros da fronteira, ônibus só haveria no dia seguinte ao
meio-dia. Voltei para o único hotelzinho que havia de frente à rodoviária e
as passagens eram vendidas no próprio hotel, enquanto a rodoviária era
uma espécie de garagem, onde entrava um só ônibus..
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Outra vez no exterior
O ônibus era para vinte passageiros, embarcamos doze, dentro do
ônibus ninguém falava, pelo que notei alguns eram do país vizinho. Em
menos de uma hora estávamos na fronteira, todos desembarcamos, outros
passageiros que esperavam já foram embarcando e em seguida o ônibus
partiu.
Fiquei olhando o ônibus ir embora, me sentia um pouco nervoso,
não sabia o que me esperava neste novo país. O pessoal tinha formado
uma pequena fila para carimbar a saída do país. Há umas quadras daí
estava o posto de imigração do outro país. Um rio dividia os dois países e
atravessando uma ponte a poucos metros estava a alfândega. As pessoas
que tinham muita bagagem utilizavam carregadores para atravessar a
ponte e apenas recebiam seus passaportes carimbados, saíam rápido
para fazer a travessia. Eu procurei ficar por último, como carregava só uma
bolsa não precisei carregador e fui indo devagar. Uma vez do outro lado,
também era o último da fila, não sei por que me acompanhava um certo
receio, uma espécie de medo e tratei de ficar distante dos outros. Sem
muita demora me apresentei, entreguei a carta de autorização e o
passaporte. O guarda me olhava e sorria. No fundo da sala havia mais
funcionários, uns escrevendo à máquina e outros revisando papéis. O
guarda que me atendia pegou meu passaporte e foi até o resto do pessoal
do escritório.
Quando vi o guarda ir para o fundo da sala com meu passaporte
levei um tremendo susto, meu coração pulou e quase sem mover os lábios
disse: minha Santa Sara não me abandone! Em seguida ouvi o guarda que
falou em voz alta: – Senhores, estamos recebendo um menino que é um
artista colombiano. Ele estava com o passaporte aberto e mostrava para
todos a parte onde dizia “artista”, um por um foi se levantando e veio de
perto olhar o passaporte. Enquanto todos olhavam, o guarda me olhava
sorridente e me disse: – Chegue aqui perto meu filho. Eu ainda sem saber
ao certo meu futuro, estava sempre com o pensamento em Santa Sara
Kaly. Um dos guardas me perguntou: – Paisanito, o que você faz no
teatro? Sem demora e confiante, peguei o baralho e comecei o espetáculo,
a cada prova riam e aplaudiam, com o barulho das palmas e as risadas,
foram entrando mais guardas, também nesse momento entrou um guarda
de uniforme um pouco diferente, parecia ser o chefe, porque na entrada
dele todos lhe renderam continência. Agora era ele que tinha meu
passaporte. Quando parei de fazer provas ele me levantou, me deu um
beijo na testa e falou para todos: – Ele tem a mesma idade do meu filho
Pipo, o mais velho, porém ele é um bosta teimoso que nem mosca e pouco
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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fala, não faz nada e só quer andar grudado na saia da mãe. Eu que tinha
escutado um pensamento não sei de quem, aproveitei e falei para ele: –
Senhor, o teimoso calado às vezes é sábio. Todos bateram palmas e
muitos até me abraçaram.
Na casa do chefe da gendarmeria
Eram muitas as perguntas que me faziam, numa das respostas
falei que me apresentava nas praças e que recolhia dinheiro do público,
em seguida começaram a tirar dinheiro dos bolsos e foram me dando.
Perguntaram-me se tinha algum compromisso, respondi que não, me
pediram para ficar uns dias para eles organizarem uma festa e eu poderia
apresentar meus números, e ao invés de cobrar entrada, cada um
colaboraria com o que quisesse. Naquela mesma tarde cada um assumiu
uma tarefa, o local seria a cancha de esportes do salão paroquial. O pai de
Pipo, chamado por todos de Capitão Gaspar e que era o chefe da
gendarmeria, me convidou para permanecer na sua casa. Uma vez lá me
apresentou a sua esposa Celi, o filho Pedro Pablo, chamado de Pipo, que
era o mais velho, o segundo chamava-se Fortunato e era chamado de
Nato, e a terceira era Celina, a caçula, e era chamada de Lina. Fui muito
bem recebido pela família.
Lembro que desde o primeiro momento me trataram como se eu
fosse um membro da família. O Capitão Gaspar me tratava como se eu
fosse mais um filho, o Nato aficionado por escultura, me levou no seu
quarto para me mostrar suas esculturas todas feitas em barro, eram
santos, bustos de vultos da história nacional e do mundo, a maior parte
estavam quebradas, porque quando o barro secava se esfarelavam
sozinhas, ele já tinha feito algumas exposições na casa paroquial. O povo
não era muito grande e os habitantes eram familiares da gendarmeria,
pescadores, agricultores e funcionários de uma fábrica de beneficiamento
de peixes. O Nato também tinha feito uma exposição na cidade ali perto e
na prefeitura, por isso no povo todos o conheciam como o artista da
fronteira. Gostei muito do Nato, ele também simpatizou comigo e pediu ao
pai para que me deixasse dormir no quarto dele. O Capitão e dona Celi
não se negaram e arrumaram uma cama no quarto dele. Fiquei com Nato
até que fomos chamados para jantar, na mesa me fizeram muitas
perguntas, como um guri da minha idade andava tão longe do seu país
com passaporte e ainda com autorização da mãe. Aproveitei para mostrar
a carta que o Juiz de menores tinha me dado e também a carta do
Embaixador, que ainda não tinha mostrado, e com tantas perguntas, me vi
obrigado a contar o porquê fugi da minha casa a primeira vez. Contei as
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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minhas aventuras, minhas andanças, contei-lhes da mágoa, da tristeza
que sentia pelo recebimento de maus tratos dos meus antigos amigos da
vila onde morava, contei da cobra, agora eu tratava de teatralizar de forma
cômica, para evitar que o pessoal ficasse triste, mas assim que eu contava
a parte que peguei os plátanos do lixo, as senhoras ficavam tristes e às
vezes os homens também, embora não querendo contar essa parte não
adiantava, ela estava ligada ao resto da conversa.
O Nato ficou muito feliz quando falei que eu também fazia
esculturas, que não eram tão expressivas como as dele, lhe contei que um
amigo espanhol me ensinara a trabalhar com o ferro, cobre, bronze e
alumínio, e que ele estava me ensinando a desenhar, só que teve de voltar
para a Espanha, mas que com ele eu tinha aprendido muitas coisas. A
Celina que tinha permanecido calada falou: – Ortega, tu só viste os
trabalhos do Nato, porém não viste meus bordados. Em seguida me
levantei e falei: – Vamos. E Celi, Celina, Nato e eu fomos para o quarto da
Celina, em seguida me mostrou uns lindos bordados, eram desenhos bem
miudinhos. Quando lhe perguntei por que não fazia também uns desenhos
maiores, me respondeu que fazia do mesmo tamanho que estavam nas
revistas, que algumas vezes tentou desenhar, mas não conseguiu.
Expliquei-lhe que o Espanhol, ou seja, o Antônio, me ensinara a desenhar
em folhas quadriculadas, ou com pantógrafos. Ela me disse que tinha um
pantógrafo, só que as figuras saíam torcidas, que pareciam fantasmas.
Trouxe o pantógrafo e vi que estava mal armado. Desmontei e montei
corretamente e começamos a desenhar. Uma vez feito o primeiro
desenho, a bagunça foi grande, a Celina praticou bastante em vários
tamanhos. Vibrava de contente a cada desenho feito. Com um pedaço de
barro fiz a cabeça de um índio que o Antônio tinha me ensinado a fazer e
já tinha feito muitas vezes.
Era uma hora da madrugada, o Capitão tinha ido para o escritório
na fronteira, a dona Celi e o Pipo tinham ido dormir e nós três nem
tínhamos sentido o tempo passar e se não fosse pela chegada do Capitão,
teríamos varado a noite. Nato e Celina, felizes mostravam para o pai o
progresso e me elogiavam. O Capitão me abraçou em seguida e nos pediu
para ir dormir, e no dia seguinte continuar. Deixamos tudo na mesa e
fomos dormir, lembro que botei a cabeça no travesseiro e dormi até as 8
horas, hora que acordei.
Na hora do café era o Nato do meu lado e a Celina do outro, a
dona Celi me tratava como se eu fosse seu filho, às vezes me chamava de
meu filhinho, outras vezes de negrinho ou também de Orteguita, o Capitão
mexia muito com o Pipo e às vezes dizia-lhe: – Este meu bundinha não
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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sabe nada. Pipo nada falava, a única coisa que um dia ouvi dizer foi: – Eu
não quero ser nada disso, o que eu vou ser é jockey!
Todos eles se tratavam com carinho e à Celina tratavam com
muita delicadeza.
Apresentação na residência dos religiosos
O Capitão pediu para os filhos me levarem e apresentarem aos
padres e também para ver o local da apresentação. Eu me sentia muito
feliz com aquela família, eram muito bons para mim, não existia diferença
entre os filhos e eu, mesmo que eles fossem claros e eu bem escurinho.
Na noite da apresentação, estava quase todo o povo presente,
para não ser eu o único a se apresentar, tinham convidado um pescador
que escrevia poesias cômicas, foi ele o primeiro a se apresentar, fez rir
bastante o público. Um casal de meninos se apresentou a seguir,
dançando e cantando músicas indígenas muito bonitas, por último foi
minha vez. A minha apresentação, como em todo lugar que me
apresentava, foi bem aplaudida, para completar a festa, tinham contratado
um trio de violões e um percussionista, que tocavam às vezes timbales,
bomgo ou maracás, o baile se formou, os músicos começaram tocando
ritmos alegres e dançavam adultos e crianças, a Celina me convidou a
dançar, eu nunca tinha dançado, porém com a ajuda dela, até que me saí
bem. O Pipo tinha seu par, era uma coleguinha de aula, não se
desgrudaram enquanto a festa durou. O Nato tinha muitas admiradoras,
embora ele quisesse estar junto com a Celina e comigo, as gurias tiravam
ele para dançar. A Celina em momento algum me deixou só, e não dançou
com mais ninguém. A dona Celi também não deixavam descansar, todos
queriam dançar com ela. O Capitão não se importava, ele também
dançava com diferentes senhoras. No auge da festa alguém gritou: – Nato,
queremos as novas esculturas! Em seguida todos começaram a gritar: –
Queremos ver também os bordados da Celina. Nenhum dos dois tinha
levado nada e ficaram surpresos e sem saber o que fazer. O Capitão, ao
ver o embaraço dos filhos, subiu ao palco e falou: – Senhores e Senhoras
e todos os presentes, desta vez meus filhos não trouxeram nada porque
eles, a minha senhora e eu queríamos que vocês vissem o espetáculo que
o meu filho Ortega lhes apresentaria. Coincidentemente Celina e dona Celi
tinham me abraçado, eu estava no meio das duas, neste momento todos
os olhares eram dirigidos a nós. Eu acredito que o Nato e o Pipo, que não
estavam junto de nós neste momento, sentiram ciúmes, porque vieram
correndo e se abraçaram a nós. É claro que hoje pensando, não imagino
que aquela gente pudesse acreditar que eu fosse filho deles, eu bem
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escurinho e eles todos brancos, e mais ainda, um filho já crescido e num
lugar onde todos já se conheciam. O Capitão continuava falando: –
Senhores, eu lhes prometo que os meus três filhos Nato, Celina e Orlando
lhes apresentarão na próxima reunião algumas novas obras. No meio das
palmas, alguns gritavam: – Vamos esperar. O Capitão veio juntar-se a nós,
me abraçou e disse: – Orteguita, te coloquei nessa empreitada, agora
vocês três que se virem. O baile terminou de madrugada e todos juntos
fomos para casa comentando a festa. Notei que o Pipo agora só queria
andar grudado em mim, e na hora de dormir pediu para o Nato deixá-lo
dormir junto no quarto dele, claro que o Nato deixou, e em seguida foram
trazer um colchão, e a Celina e eu fomos trazer a roupa de cama. Ela se
despediu, em seguida entrou o Capitão e nos disse: – Como é malandros,
já estão dormindo? Durmam bem. Foi embora e minutos depois entrou
dona Celi, mas estávamos mais dormindo do que acordados, nos abrigou
e saiu. Devo confessar que quando ela me beijou na testa eu senti o
cheiro, o calor e a respiração da minha mãe, dormi e sonhei com ela.
Eu nunca tinha tomado banho junto com meus irmãos, a não ser
moleque no rio ou aquela vez com meus amigos engraxates, naqueles
banheiros coletivos no povo, onde os conheci, lhes digo isso porque
quando nos acordamos e depois de fuzarquear um pouco no quarto, a
empregada bateu na porta e nos disse: – Meninos, a dona Celi disse que é
para irem tomar banho que o café está pronto. Pipo foi o primeiro a se
levantar, saiu correndo de cuecas, em seguida o Nato também se
levantou, me puxou e disse: – Vamos Teguita! E os dois corremos de
cuecas para o banho.
O banho estava no fundo do pátio, a água saía por um cano que
tinha vários furos e a água saía em quantidade, a bagunça que formamos
era tremenda e aumentou mais quando vimos o Capitão Gaspar que vinha
correndo, também de cuecas, ele parecia uma criança brincando conosco,
ele nos ensaboou e nos limpou com um pano os ouvidos, pescoço,
garganta e pés, depois nos passou o sabonete e disse: – Agora vocês se
lavem o tutuleno (o pipi). Todas as cuecas ficaram dentro do banho no
chão e cada um foi saindo enrolado em uma toalha que a empregada foi
nos entregando. A dona Celi foi nos alcançando a roupa que deveríamos
vestir e uma vez vestidos fomos para a mesa tomar café. A dona Celi e a
Celina estavam de chambre, elas tinham tomado banho no chuveiro que
havia dentro de casa, as duas estavam com o cabelo molhado.
Agora que estou escrevendo, a imagem desta família se manifesta
com muita evidência. Lembro a Celina que era uma menina meiga,
delicada, os irmãos Pipo e o Nato a tratavam como uma rainha. Agora
imaginem vocês se era assim tratada pelos irmãos, era também tratada
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pelos pais. O Capitão era um brincalhão, sempre estava de bom humor,
brincava com todos nós, eu me sentia como se fosse seu filho, a dona Celi
me chamava às vezes de Orteguinha, outras de meu filho ou de filhinho, a
Celina sempre me chamava de maninho, o Pipo e o Nato de mano. Eram
já cinco dias que estava naquela casa e eu me sentia em família.
Não se tinha cobrado entrada para o espetáculo, recolhemos o que
cada um quis colaborar de forma voluntária e tínhamos três latas com
moedas e notas. O Capitão nos convidou a contar o dinheiro recolhido,
não me lembro quanto foi, só me lembro que não era pouco, em seguida
entregaram tudo para mim, perguntei: – E para vocês? – Não, é tudo para
você, me responderam. Falei: – Então eu quero colaborar nas despesas
da casa. Em seguida o Capitão levantou-se, me pegou, me levantou e
disse: – Você não tem que ajudar com nada nesta casa, esse dinheiro é
seu, guarde-o. Em seguida perguntei: – Será que tem como eu mandar
este dinheiro para minha mãe pelo correio, que é para ela terminar a nossa
casinha?
A dona Celi quando me ouviu dizer que era para mandar para a
mãe veio correndo, me abraçou e, com lágrimas nos olhos me disse: – Sim
meu amor, nós vamos dar um jeito. E sempre me tendo abraçado a ela
disse para todos: – Que filho, não esqueceu a mãe! O Nato e o Pipo me
seguravam pelas mãos, a dona Celi falou mais algumas coisas, que até a
empregada notei que limpava as lágrimas. O Capitão estava sentado num
canto da mesa pensativo e observava tudo. De pronto falou e disse: –
Amores, amanhã, terça-feira, vamos todos à cidade para que nosso guri
mande o dinheiro para a mãe e aproveitaremos para dar uma volta, que
lhes parece? Todos gritaram: – Obaaa!... Auuuu!... Reminiscências, o
Capitão às vezes me chamava de meu garoto, outras de filhote, gurizinho,
filhinho, Orteguita, etc., mas sempre de forma delicada e carinhosa.
Quando o Capitão terminou de falar, dona Celi abraçou e deu um beijo no
marido.
Hoje eu compreendo que isto foi em gratidão ao marido porque ele
tinha compreendido o desejo dela de me levar mais que tudo na cidade
para que eu mandasse o dinheiro para minha mãe. Celina, Pipo e Nato
fizeram o mesmo, beijaram o pai, eu também abracei e beijei o Capitão,
ele nos pegou os quatro pela cintura, brincou conosco e nos beijou. Gosto
de escrever estes detalhes porque me trazem muitas recordações
daqueles dias agradáveis que estive com tão linda família num país onde
ninguém me conhecia, porém desde que atravessei a fronteira, foi tudo
alegria, desde o primeiro momento, todos me trataram com carinho.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Depois deste emocionante momento, o Capitão nos lembrou do
compromisso que tinha assumido com o público e que nós deveríamos
pensar o que íamos preparar para não ficar mal. Celina prometeu fazer
bastante bordado, de vários tamanhos, agora que podia ampliá-los e
diminuí-los com o pantógrafo que o maninho organizou, o maninho era eu,
era assim que ela me chamava. Falei para o Capitão que para fazer
algumas esculturas e peças bem feitas que eu tinha aprendido fazer com
meu amigo Antônio, precisaríamos de algum material como gesso,
parafina, arame de cobre ou de latão, ele me respondeu: – Amanhã
compraremos tudo na ferragem da cidade.
No dia seguinte embarcamos todos na caminhonete do Capitão e
fomos à cidade e depois de mandar o dinheiro para a minha mãe, fomos
na ferragem e compramos tudo que precisávamos para trabalhar, inclusive
uma panelinha de ferro, que por casualidade me lembrei. Foi fácil
conseguir tudo, arame de cobre, gesso, tinta à base de água, parafina,
borracha látex, verniz e alguns pincéis.
O resto do dia foi de fuzarca, almoçamos num restaurante, à tarde
tomamos banho no rio, e no final da tarde voltamos para casa, todos
cansados. O Nato estava curioso, queria saber para que era tudo aquilo
que tinha comprado. Lembro que dona Celi tinha uma estatueta da Virgem
do Carmo, era de gesso, como estava um pouco danificada a ajeitei com
gesso e látex, fiz uma matriz para fabricação em série, ensinei o Nato que,
ao invés de esculpir em barro, esculpia em gesso, eu fazia os moldes em
látex. O fato foi que se organizou uma pequena indústria familiar,
comandada por mim, porque tudo o que era para ser feito sempre
perguntavam primeiro. O Nato era bom na escultura, eu lhe aprontava os
blocos de gesso ou de parafina, desenhava e ele esculpia. Foram feitas
estatuetas de Dom Quixote e Sancho, de Santos, de Virgens. Fizemos
rostos de músicos famosos, tais como Beethoven, Chopin, Tchaikovsky,
Liszt e muitos outros, também foram feitas obras famosas como Vênus de
Milo, a Última Ceia, David, etc. Como eram feitas as matrizes de todas as
esculturas realizadas pelo Nato, a produção em gesso era rápida, o Pipo
tinha aprendido a fundir as peças no gesso, a dona Celi adorava pintar, e
sempre estava conosco pintando, a Celina não gostava de ficar longe de
nós e ficava junto bordando. O Capitão, quando estava em casa, também
gostava de pintar. Quando estávamos todos juntos trabalhando, qualquer
coisa que acontecia era motivo de risada e fuzarca. Lembro o dia que dona
Celi virou o vidro de tinta, foi aquela bagunça, agora imaginem um dia que
o Pipo fundiu o David e saiu sem o pipi, até a empregada participou da
farra. A nossa oficina estava num galpão nos fundos do pátio. Segundo
fiquei sabendo, a Celina fazia seus bordados encerrada no quarto, só que
agora tinha organizado seu atelier junto conosco e participava de todas as
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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brincadeiras. Às vezes eu lhe ajudava a fazer os desenhos nas telas, do
tamanho que ela queria, com ajuda do pantógrafo. Como não éramos bons
pintores, imitávamos as pinturas das revistas e ao mesmo tempo
aproveitávamos para copiar os desenhos e fazer as esculturas, até dois
quadros nos atrevemos a pintar, um foi a Última Ceia e o outro foi um
toureiro fazendo um passe de peito.
O entusiasmo era grande, ficávamos trabalhando até meia-noite, e
no dia seguinte cedo já estávamos firmes no trabalho. Ao todo foram feitas
duzentas peças, dez de cada, a Celina tinha feito trinta peças com
bordados muito bonitos. Uma tarde o Capitão ficou olhando todas as peças
e disse: – Tudo está muito lindo, acho que vou conversar com meu amigo,
o senhor prefeito, daremos para ele um Quixote e Sancho e para cada um
dos padres uma santa, e para a madre diretora, daremos uma virgem. Eu
fiquei pensando, estava tão quieto que o Capitão me perguntou: –
Teguinha, porque estás tão quieto? Respondi para o Capitão: – Estou
pensando se ao invés de dar de presente para eles peças iguais a todas
poderíamos fazer peças especiais e de alumínio, o Capitão me disse: –
Meu filho, nós vamos por ti, me diz o que precisas. Fiquei me lembrando
como era que fundíamos as peças com o Antônio. Pedi para o Nato
esculpir um Quixote e um Sancho em cera um pouco maiores que as que
tínhamos, e uma Virgem do Carmo também maior, um Santo Antônio e um
Jesus no jardim das oliveiras. À medida que as peças ficavam prontas, eu
fazia três negativos em gesso de cada uma. Fiz tudo como fazíamos com
Antônio, fiz por onde deveria entrar o material e os respiradouros, durante
três dias sequei as negativas de gesso no fogo lento. Fizemos um fogão
com tijolos alimentado com lenha, a panelinha de ferro onde derretíamos a
cera serviria para derreter o alumínio. Uma colher feita com jarro em
lozado, o cabo com várias voltas de arame grosso servia para retirar o
alumínio derretido da panela para encher as conquilhas, ou seja, as
negativas. Agora tudo pronto, só nos faltava o alumínio. A idéia veio do
Capitão, no pátio do quartel tinha várias panelas velhas atiradas, dona Celi
nos deu outras, por último a idéia foi sair a pedir aos vizinhos peças velhas
de alumínio que estivessem fora de uso. Combinamos para que uns
fossem por um lado, e os outros pelo outro. Como éramos quatro, então
iríamos em dupla, o Pipo rápido falou: – Eu vou com o mano Ortega. Nato
e Celina iriam juntos. Quando estávamos sós, o Pipo me pediu que lhe
ensinasse algumas mágicas, que ele gostaria de apresentar no dia da
exposição. Voltamos para casa, peguei alguns números truncados e um
baralho. Enquanto íamos caminhando e pedindo alumínio, eu ia lhe
ensinando, ele pegava com facilidade as provas e tinha bastante destreza.
Eu pensei que ao invés de colocar as peças em bases de alumínio ou
gesso, poderiam ser colocadas em base de madeira, o Pipo sabia onde
havia um marceneiro que poderia nos fornecer as peças cortadas e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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lixadas. Em todas estas saídas com o Pipo, aproveitávamos para praticar.
A pretexto de não estar dormindo bem, voltou para seu quarto onde se
aferrava a praticar encerrado em seu quarto. Algumas vezes quando o
Nato e eu estávamos deitados, me levantava e dizia: – Não dei boa noite
para o Pipo. Era só um pretexto para ver o progresso dele, que ficava até
de madrugada praticando.
Para utilizar o arame de cobre precisava de um alicate de Vico,
este teria de ser comprado na cidade. O Capitão, sempre que ia para lá
gostava de levar todos, porém desta vez pedi que me deixassem com o
Pipo para organizarmos a fundição e que eles fossem. O Capitão sempre
aceitava meu pedido, eles foram e nós ficamos. Quando todos saíram,
organizamos o programa e praticamos bastante, o Pipo era muito
inteligente, aprendia tudo com facilidade e tinha um bonito estilo, me
apresentava tudo como um experiente artista. Antes que eles chegassem
limpamos a panela de ferro que estava com cera e derretemos um pouco
de alumínio no fogão de tijolos e com lenha de galhos, coisa simples, mas
para eles foi de admiração ver o alumínio derretido. No dia seguinte
fundimos todas as peças que estavam nas matrizes de gesso, como
estavam bem secas todas saíram perfeitas. O Capitão estava
entusiasmado e admirado por tudo o que eu fazia e me abraçava.
No dia seguinte o Capitão foi convidar o senhor Prefeito, que era
seu amigo. Ao entrar no gabinete do Prefeito, lá estava o Governador e se
viu na obrigação de convidá-lo também. O colégio onde nos
apresentaríamos e onde seria a exposição era o Santo Antônio. Todos os
convites eram só para a exposição, ninguém contava com a apresentação
do Pipo como mágico. Eu prometera fazer uns números de
contorcionismo, porém combinei com o Pipo de apresentar um esquete
cômico entre nós dois, o que tínhamos praticado bastante.
Quando tudo que era de gesso e de alumínio ficou pronto,
pegamos umas tábuas, onde dona Celi, que tinha uma letra muito bonita,
escreveu nomes da maioria das pessoas que moravam na cidade, com
letras grandes, de aproximadamente 3 centímentos, depois fincávamos
uns preguinhos em volta das letras e com o alicate de Vico íamos
moldando as letras em volta dos pregos com arame, e o nome escrito saía
completo. Sempre se deixava uma ponta de arame no começo e outra no
final, se fazia uma dobra como suporte e o nome ficava em pé, eu fiz as
primeiras três, depois estávamos todos fazendo. Era divertido, todos
fazendo letras com arame, e era mais divertido quando alguém errava uma
letra, pois a fuzarca era tremenda.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 297
Lembro que era uma quarta-feira, já fazia quinze dias que eu
estava com aquela família e estava totalmente esquecido dos meus.
Naquela quarta-feira o Capitão combinou conosco que a apresentação
seria no próximo sábado, que as peças seriam vendidas para quem
quisesse comprar, também ficou combinado que eu daria o presente para
o senhor Governador, um Quixote e Sancho de alumínio. A seguir, a dona
Celi daria igual presente para o senhor Prefeito, o Capitão entregaria o
prêmio para a madre diretora, uma virgem do Carmo, também de alumínio.
Pipo, Nato e Celina entregariam para os padres, Santo Antônio, a Última
Ceia e Santo Expedito.
Na quinta-feira falei para o Nato: – Coitado do Pipo, nunca dormi
no quarto dele, que lhe parece Nato? Ele me respondeu: – É verdade
mano, acho bom. É claro que era pretexto para podermos ensaiar um
pouco, fizemos uma cartola de papelão e forramos com pano preto e
dentro dela armamos o truque. Perguntei se era mais fácil conseguirmos
um coelho pequeno ou uma pomba, ele falou o coelho. Ficamos até às três
da madrugada praticando e aprontando as provas. Na sexta-feira também
dormi no quarto do Pipo, ensaiamos bastante o esquete, organizamos o
programa e como eu deveria apresentar o Pipo, o pseudônimo que
escolhemos foi “O Mágico Pipolim”.
No sábado, depois do meio-dia, o Capitão achou que era bom
levar tudo para onde seria apresentado o espetáculo para evitar correrias
de última hora. Sabedores da presença do senhor Governador e do senhor
Prefeito, os padres tinham decorado o palco de forma muito bonita, o
corredor onde seria a exposição estava decorado com bandeiras do país,
do estado, da cidade e com bandeiras colombianas, de um lado tinham
organizado um lugar onde estaria um conjunto de músicos da cidade que
tinham contratado. Enquanto nós descarregávamos a camionete, o Pipo
desapareceu, só eu que dei pela ausência dele. Como no lugar não havia
nenhum tipo de diversão, a não ser alguns bailes organizados pelos
padres ou pelo dono de um bar, lugar que se reunia o pessoal do povo,
sobretudo os militares, era muito grande o entusiasmo que havia no povo.
Ninguém imaginava da apresentação do Pipo. Sem saber por onde e em
que momento vi o Pipo varrendo um lixo feito por nós, só eu sabia do
desaparecimento e o aparecimento dele.
Exposição e show de contorcionismo
A apresentação estava marcada para as 20 horas, mas às 19
horas já tinha bastante público. O interesse era geral, uns pelas esculturas
do Nato, que eram famosas, também pelos bordados de Celina e muitos
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queriam ver de perto o senhor Governador e o senhor Prefeito. Como eu
tinha prometido números de contorcionismo, às 20 horas e com o salão
lotado, o Capitão anunciou a minha apresentação. Como já expliquei
anteriormente, a diversão neste lugar era só esporadicamente um baile, e
como nunca tinham visto alguém caminhar com as mãos e fazer tudo o
que eu fazia com meu corpo, o público ficou encantado. Quando terminei,
e antes de dar oportunidade ao Capitão de subir ao palco, eu mesmo
peguei o microfone e anunciei: – Senhores, Senhoras e a toda rapaziada e
criançada, enquanto eu falava o Pipo já estava pronto atrás do telão que
eu tinha mandado fechar e continuei, tenho o prazer de apresentar (todos
estavam em silêncio que nem a respiração se ouvia) o grande mágico
“Pipolim”. Enquanto abria o telão e o Pipo bem vestido, com gravatinha
borboleta, completei: – Com vocês, Pipolim... Nunca esqueço o Pipo como
um experiente artista, com o garbo de verdadeiro mágico, pegou a cartola,
mostrou ao público por todos os lados, como tinha colocado as luvas
brancas do uniforme de Celina, com muita destreza tirou as luvas e as
colocou dentro da cartola. Em seguida, com a varinha mágica feita por
nós, deu três batidinhas na cartola e com a técnica de um mágico foi
puxando o coelhinho. Agora vocês podem imaginar a sensação, a
surpresa os levou ao delírio, eram aplausos, gritos, Pipo sereno e meio
sorridente esperou o fim dos gritos e palmas e continuou, fez muitas outras
provas bem feitas, quando anunciou a última prova, pediu a colaboração
de um rapaz da platéia. Um rapaz da cidade subiu primeiro que outros no
palco, eu ajudaria nesta prova atrás dos bastidores, a conclusão da prova
foi tirar as cuecas do rapaz sem tirar as calças. Se na primeira prova foi
aquela bagunça, imaginem esta última, gritos e palmas eram
ensurdecedores, não consegui ver em que momento tiraram o Pipo do
palco, só vi quando os colegas levaram ele nos ombros gritando: – Pipo,
Pipolim... Pipo bem orientado que estava, agora sorria e mexia levemente
a cabeça, todos o abraçaram e felicitaram. Nato, Celina e eu olhávamos de
longe o triunfo de Pipo, eu não saberia se após toda essa homenagem ele
iria querer apresentar o esquete que tínhamos programado. De repente,
ele me olhou, se desvencilhou de todos e correu para o palco, perguntei se
estava em condições, me garantiu que sim, fiz o anúncio e a nossa
apresentação foi um sucesso. O Capitão era autoridade máxima do povo e
era muito querido por todos os habitantes, que na sua maioria eram
também militares.
Antes de abrir a exposição, o Capitão subiu no palco e me fez
grandes elogios, de que tudo aquilo que tinham visto do Pipo era obra
minha, que em momento algum eles viram e desconfiaram dos planos de
nós dois. – E lhes digo mais, o dia que conheci este garoto, quando me
referi a ele sobre o Nato e a Celina, disse: estes meus dois filhos são
artistas, mas meu filho Pipo é um bosta, é um bundinha, que não sabe
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fazer nada, ademais é teimoso. Sabem, hoje lembrei, ao ver meu filho se
apresentando de forma desembaraçada, das palavras que ele me disse: –
Capitão, o teimoso calado pode chegar a ser um sábio. Que palavras! O
Capitão continuou: também quero lhes dizer que tudo isto que agora vocês
vão ver na exposição foi feito sob orientação dele, à minha esposa e a mim
também muito nos ensinou este menino de tão curta idade.
Em seguida chamou ao senhor Governador, e como antes
combinado entreguei o presente feito em alumínio. O Governador me
abraçou e me felicitou. A seguir tudo foi entregue de acordo com a
orientação do Capitão, que antes de descer do palco falou que quem
quisesse comprar peças da exposição poderia fazê-lo e que os preços
estavam marcados nas próprias peças. Não esqueço que quando abrimos
as portas da exposição, todos correram para comprar, em menos de uma
hora estava tudo vendido e tivemos que aceitar encomendas daqueles que
não conseguiram comprar. Muitos pediram nomes no arame de cobre. Por
último se dançou e a festa terminou às 2 horas da madrugada, voltamos
para casa felizes, ninguém foi dormir nos quartos, todos, inclusive o
Capitão e dona Celi, dormimos na sala, cada um trouxe seu colchão.
Comemos, falamos, rimos até pegarmos no sono e nos acordamos às 10
horas do dia seguinte, e como movidos por uma mola, todos corremos
para o chuveiro na mesma fuzarca de sempre, só dona Celi e Celina
tomavam banho no chuveiro interno. Na hora do café o comentário
continuou. O Capitão mexendo com Pipo lhe disse: – O Pipo não é mais
um bundinha, agora é “Mister Pipolim”. Diga-se de passagem, todo
dinheiro das vendas me foi dado. A encarregada de entregá-lo foi dona
Celi que me disse: – Este dinheirinho é para a mamãe da Colômbia. Todos
eles me tratavam como se na realidade eu fosse da família, o casal me
paparicava igual como paparicava os filhos, antes dela se deitar entrava
nos quartos, nos abrigava e um por um ia nos beijando.
Compras, lazer e retorno
Há coisas que não sei por que sempre me lembro, uma delas é
que um dia o Capitão convidou todos para irmos à cidade. Uma vez lá,
comprou roupas para todos nós. Uma coisa interessante, eu aceitava tudo
de maneira como se realmente eles fossem meus pais e os guris meus
irmãos. Depois de comprar as roupas o Capitão gritou: – Agora vamos
passear, e foi aquela gritaria, fomos almoçar num restaurante que estava
bem longe da cidade, tinha piscina e muitos brinquedos, a comida era à la
carte, a gente pedia e eles preparavam, enquanto isso nós fomos
bagunçar na piscina e nos brinquedos. À noite voltamos para casa
cansados, todos fomos dormir, cada um no seu quarto. De manhã cedo
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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me acordei e fiquei pensando na minha mãe, nos meus irmãos, esqueci da
minha família e já fazia uns vinte e cinco dias que chegara ali. Era muito
feliz, essa família me tratava muito bem. A gente deste povo gostava de
mim, sempre me convidavam a tomar chá, a jantar ou almoçar, claro que
tudo era para que eu pudesse ir à suas casas e eles poderem conversar
comigo, me ouvir falar, diziam que meu sotaque era muito bonito. Deitado,
comecei a pensar, e eu mesmo me dizia: Que diferença este povo onde
faz pouco tempo que cheguei, onde ninguém me conhece e como todos
me brindam com sua amizade, muito carinho me é demonstrado em todos
os momentos, pelas crianças, pelos adultos, bem ao contrário da minha
vila onde me viram nascer, onde quase a todos lhes servi. Eu, burro, puxasaco, levava presentes para os mais amigos e eles me receberam com
pedradas, me trataram mal, me odiavam, me chamavam de ladrão, de
bandido, e como me vestia bem, diziam que toda a minha roupa era fruto
de roubos. Os adultos fechavam as portas das suas casas quando eu
passava, sabia que era para me ferir mais e proibiam seus filhos de
falarem comigo, quem nunca viveu esse pesadelo não imagina como é
triste, decepcionante, me sentia humilhado, tudo ao contrário daqui, longe
dos meus, da minha terra.
Eu era muito feliz com aquela família, todos me queriam, desde os
pequenos até os adultos, poderia viver o resto da minha vida ali, porém eu
tinha condições de ajudar a minha mãe, de ajudar a terminar a nossa
casinha, ainda tinha irmãos pequenos para ajudar a criar. Durante o tempo
que estive ali, só tinha ganho o dinheiro das estatuetas, era muito pouco,
trabalhando eu ganhava muito mais, portanto deveria continuar o meu
modo de ganhar dinheiro, trabalhando nos parques e nos mercados,
inventaria uma mentira ou um pretexto para poder ir embora. Tomei uma
decisão: na quarta-feira deveria partir.
Na hora do café não tive coragem de falar. O Capitão se despediu
de todos nós com um beijo e um abraço, porém antes de sair falou para os
guris irem na escola para saberem qual era o material escolar, em seguida
falou alguma coisa para dona Celi e ela lhe respondeu: – Amor, pode
deixar comigo. Quando o Capitão estava saindo lhe falei: – Capitão, mais
tarde vou lhe fazer uma visita. Tá, vou te esperar. Fiquei na mesa
conversando com dona Celi e a empregada, por momentos tinha vontade
de falar da minha decisão de viajar, mas não tive coragem.
Os guris me convidaram para ir junto na escola, aleguei que tinha
que ir ao escritório do Capitão, os três me deram um beijo na testa e
saíram, poucos minutos depois eu também saí em direção à fronteira, no
caminho ia pensando qual seria a melhor forma de falar ao Capitão. Antes
de chegar me sentei numa pequena pracinha que parecia abandonada, ou
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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talvez inacabada, fiquei um pouco, em seguida me levantei e saí decidido
a falar para o Capitão. Após ele e seus subordinados me receberem com
carinho, criei coragem e falei para o Capitão o propósito de viajar, seria
muito cansativo repetir aqui o diálogo que tive com o Capitão, em
determinado momento apliquei a mentira que um tio que morava em Nova
Iorque estava me esperando para eu operar os olhos, que tudo estava
combinado e que eu estava demorando muito, mas o problema dos meus
olhos não poderia demorar tanto. O Capitão ficou pensativo, se levantou
da cadeira, veio e me abraçou dizendo: – Vamos para casa. No caminho
falamos bastante, uma das coisas que me disse foi que justamente
naquele dia dona Celi iria me matricular no mesmo colégio onde
estudavam os filhos, eu me segurei no problema dos meus olhos e na
espera do meu tio. Uma vez em casa o Capitão chamou: – Amor, o nosso
filhinho vai embora! Ela veio correndo, me abraçou dizendo: – Não meu
filhinho, não vai embora deixando a mãezinha chorando, não é?
Começava a me formar aquele famoso nó na garganta. Ela sentou-se ao
meu lado e colocou-me no seu colo como se eu fosse uma criancinha, me
abraçando e colocando minha cabeça sobre seu ombro, me fazia todo tipo
de perguntas: se eu não gostava deles, se não estava contente, se alguém
tinha me dito alguma ofensa, eu respondia a tudo. O amor que sentia por
eles, feliz que me encontrava estando com eles, o carinho que sentia pelos
meninos, porém eu tinha que fazer aquela cirurgia, pois meu tio tinha
levado todos os papéis que o médico que me atendia tinha lhe entregue, e
meu tio pagaria tudo, e eu ficaria por algum tempo na casa dele e depois
voltaria para minha casa. Foi neste momento que me surgiu outra mentira.
Falei-lhes que eu não tinha vontade de voltar para minha vila onde era
maltratado por todos e chamado de ladrão, de bandido e que se eles me
queriam após a cirurgia, ao invés de ir para casa voltaria para eles. O
Capitão estava em silêncio e vi os olhos de dona Celi meio que
lagrimejantes. Nos levantamos, ela começou a me arrumar a camisa que
estava amarrotada, foi até o banheiro, trouxe um pente e começou a me
pentear. Neste momento me veio a lembrança de Estefani, quando ela me
penteava e me perfumava, fechei os olhos e tratei de esquecê-la.
O Capitão me perguntou quando pretendia viajar, respondi que na
quarta-feira, para poder estar em Nova Iorque na próxima quarta-feira. –
Ele tem razão, disse o Capitão para dona Celi. Apronta as coisinhas dele,
vamos ajudá-lo, os guris vão ficar tristes, mas eles terminam entendendo.
Nos dois dias seguintes fui muito paparicado até pela empregada que
também me tratava com muito carinho. Na quarta-feira após o café, todos
saímos na camionete do Capitão, o Pipo sentou-se na frente, eu no centro
entre dona Celi e Celina, Nato estava no centro. Ninguém fuzarqueava,
todos íamos em silêncio. Eu tinha dito para o Capitão que aquele dia
viajaria até a capital e que no dia seguinte continuaria até a fronteira para
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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atravessar ao país seguinte. Foi o Capitão que me comprou a passagem, o
ônibus sairia ao meio-dia, eram 11 horas. Junto com a passagem o
Capitão me entregou um pergaminho onde me elogiavam. O Capitão pediu
para o Pipo ler, estava assinado pelo Governador, pelo Prefeito, pela
madre diretora, pelos padres e é claro que não faltou a assinatura do
Capitão, dona Celi, a empregada, e do Pipo, Nato e Celina.
A cena que presenciei no momento da despedida é uma coisa que
tenho lembrado muitas vezes e que agora que estou escrevendo se
manifesta com maior evidência. As palavras de dona Celi foram: –
Filhinho, se tu quiseres vir e não tiveres dinheiro, nos escreve que nós te
mandaremos, se adoeceres, nos manda dizer, não te esqueces que após
a cirurgia tu vens para cá. Primeiro me despedi do Pipo que chorava, em
seguida do Nato que não dizia uma palavra, quando foi a vez da Celina, na
hora do abraço, soltou um leve gemido, a dona Celi era a que mais
chorava, o Capitão, igual que Celina, estava vermelho. Subi no ônibus e já
o motorista arrancou, eles juntos me mandavam beijos, a última palavra
que ouvi foi de dona Celi que disse: – Tchau filhinho, quando o ônibus já
se distanciava. Olhei através da janela e vi que eles cinco iam abraçados
em direção à camionete, nesse momento senti uma leve sensação de
vazio que desapareceu quando a companheira de banco, toda curiosa,
perguntou: – Eles são seus parentes? É claro que despertava a
curiosidade de ver eles brancos e eu escuro. – Não senhora, respondi, são
meus amigos. A senhora continuou me fazendo várias perguntas e eu
respondendo, até que ela pegou no sono, eu fechei os olhos e comecei a
pensar na minha mãe, nos meus irmãos, na minha vila, que me viu nascer,
enquanto eles não querem me ver nem de longe, por aqui tudo ao
contrário, nestes lugares onde ninguém me conhece, todos me querem e
não só isso, todos me querem adotar, querem que fique com eles para
sempre. A Estefani me chamava de meu bebê, me colocava o pijama para
dormir, me abrigava, me beijava, no dia seguinte me vestia, me penteava,
me perfumava, me queria ter como uma dondoca, sorte que consegui sair
de lá. Depois a dona Amanda, a mulher do Cônsul, graças a Helena que
não me queria, consegui me escapar, a dona da pensão onde morava o
conterrâneo Gustavo também me queria, sorte que também consegui
escapar. Agora me sentia livre e feliz por ter conseguido sair do amparo
desta tão linda e tão querida família e não só isso, de um povo onde todos
me queriam. E naquele solilóquio me dizia: Não adianta, eu quero é minha
mãe, meus irmãos, pode ser que um dia eu volte e construa uma casa
noutro lugar. Fiquei pensando que sempre que ficava em casas de família,
parava de ganhar. Fiquei quase um mês na casa do Capitão Gaspar e só
ganhei na primeira apresentação e na venda das estatuetas, era pouco, se
comparado com o que ganhava me apresentando nos parques e nos
mercados.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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A promessa
Fiz uma promessa para mim, não ficaria mais em casa de famílias,
só em pensões ou hotéis. Em todo caso eu me sentia feliz, livre, eu não
tinha nada a ver com eles, este era meu pensamento, talvez de um malagradecido ou de alguém que amava sua família. A minha companheira de
banco dormia e roncava, eu também peguei no sono. Acordei quando o
ônibus parou numa lancharia, apenas lanchamos e o ônibus continuou, a
companheira tornou a dormir, eu achava a paisagem muito bonita, o verde
era bem verde.
Já estava escuro quando chegamos à cidade, a companheira de
banco se levantou como impulsionada por uma mola e desapareceu. No
tumulto de gente na rodoviária notei que muitas pessoas falavam outra
língua além de espanhol, algumas até misturavam as duas línguas. Como
estava bem documentado, nada me preocupava e com entrada legal no
país, carimbado e assinado pelo Capitão Gaspar, sabia que poderia
trabalhar, também tinha a carta do Capitão onde pedia às autoridades para
colaborarem comigo no caso de eu precisar.
Com receio de ser barrado entrei num restaurante, estava com
fome e queria jantar, me sentei perto da porta na primeira mesa que
encontrei, para se no caso de não me deixarem jantar não passar
vergonha perante as pessoas que estavam jantando, era só dar dois
passos e já estava na rua. Uma senhora veio me atender, quando vi ela vir
a passos acelerados meu coração cutucou, me aprontei para pegar a
minha bolsa e sair, no caso de não poder comer ali. A primeira coisa que a
senhora fez foi colocar sua mão na minha cabeça e com voz meiga me
perguntou: – Vai jantar filhinho? – Sim senhora, respondi. Nomeou vários
tipos de comidas, eu não conhecia nenhuma, ela perguntou de onde eu
era, respondi que era da Colômbia, ela em seguida falou em voz alta para
os presentes: – Ele é colombiano, escutem como fala bonito. Os presentes
me olhavam e sorriam. Um deles disse: – Bem-vindo a nossa terra. Eu não
sabia falar, só respondi: – Muito obrigado. Um senhor jovem, que parecia
estar com a esposa e um casal de filhos, disse: – É da terra de José Maria
Vargas Vila, homem inteligente, grande escritor, adiantadíssimo para sua
época e por isso foi muito combatido pelo clero. A senhora pegou a minha
bolsa, me levou até a cozinha para ver o que eu queria comer, pedi peixe
frito, arroz, salada e suco de frutas. Enquanto comia ela sentou-se a meu
lado e em seguida vieram as perguntas: – Papai, mamãe, irmãos? O que
faz? Para abreviar mostrei passaporte, cartas e documentos, ela toda feliz,
como se eu fosse seu parente, lia em voz alta e mostrava para todos que
queriam ver. Quando terminei de jantar peguei o baralho e fiz muitas
provas, muitos me achavam simpático, o casal com filhos pagou a minha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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conta, o resto do pessoal colocava dinheiro na minha mesa. A senhora que
me atendia era a dona do restaurante e me disse: – Não vou lhe cobrar
nada e me devolveu o dinheiro que o casal tinha pago. Para dormir me
recomendou a pensão da esposa do guarda Melito, olhou para a rua e
chamou o guarda, ele veio correndo, pensando que era algum problema.
Ao saber do motivo do chamado respondeu que sim, que tinha vagas,
como não podia abandonar o lugar, a senhora mandou o filho que atendia
o bar me levar à pensão da esposa do Melito. Ela me recebeu com muito
carinho. Quando fechei a porta do quarto, ouvi que ela falou para alguém:
– Ele é uma criança! Não é que tinha gostado muito do que ouvi, porque
por aí começava tudo de novo. Cansado que estava dormi como um
bendito, estava feliz porque não sentia nenhum perigo nem saudades da
casa ou da família do Capitão Gaspar.
O guarda Melito e sua família eram todos bem pretinhos, muito
mais do que eu, mas eram muito educados, tratavam a todos com carinho,
tinham quatro filhos, três homens e uma menina que era a caçula. Quando
a mulher de Melito, que era a dona da pensão começou a me chamar de
meu filhinho, o Melito e os filhos queriam me levar com eles para dar
passeios, a primeira vez apresentei evasivas e depois procurava ficar
pouco na pensão, saía cedo e voltava só para dormir.
Nessa cidade trabalhei durante quatro dias, no quinto descansei e
no sexto viajei. Quase todas as cidades eram próximas e pequenas,
trabalhava no máximo dois dias e partia para outro. O interessante era que
às vezes estava no oceano Atlântico e outras no oceano Pacífico, quando
menos pensava me via na fronteira de outro país.
Curioso por saber como seria tratado neste país, decidi entrar nele.
Chamou-me muito a atenção ver muitas crianças mal vestidas, me
lembravam quando eu antes de conhecer o Antônio também andava mal
vestido e sem sapatos. Curioso era que quando me apresentava nos
parques, até estas crianças colocavam moedas na minha bolsa. Como os
povos também eram pequenos, ficava no máximo três dias, dois
trabalhava e um descansava ou viajava para outro. Lembro que os países
eram tão perto um do outro que às vezes passava de um para o outro no
mesmo dia e para aproveitar determinado povo, voltava ao mesmo país
depois de dois dias. Chegou a tal ponto que os guardas das fronteiras já
me conheciam e nem precisava apresentar documentos, gostavam de mim
e muito mais do meu sotaque, que me proporcionava fazer amizades,
porém sempre longe de morar na casa de alguém, embora muitas vezes
fosse convidado por famílias para economizar em pensões, eu preferia
pagar e inventava qualquer história.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 305
O passado
Hoje e sempre, apesar do tempo decorrido, nunca esqueço
amigos, professores que gostavam de me ensinar, me davam aulas de
matemática, ciências, religião, etc., me emprestavam livros para estudar
sozinho. Tive um amigo que escrevia para um jornal, sempre que eu
estava naquela cidade ia lhe visitar porque ele gostava de me ensinar, ele
tinha sido professor secundário, ou seja, do segundo grau, porém teve que
se retirar para continuar no jornalismo. Ele me lembrava muito o Antônio,
me lia livros, me aconselhava a ler, dizia que o saber não tira lugar.
Sempre que eu chegava na casa dele, a primeira coisa que eu fazia era
organizar o escritório, porque sempre estava bagunçado, livros, jornais,
papéis, cascas de laranja, de banana andavam pelo chão, enquanto ele
preparava café num fogãozinho elétrico eu aproveitava para organizar o
melhor que podia. Ele preparava os sanduíches e enquanto comíamos
conversávamos, e isto me fazia lembrar o Antônio, que também enquanto
comíamos conversávamos.
Um dia meu amigo jornalista me falou à queima roupa: – Ortega,
quero te confidenciar algo muito importante, mas tu tens que prometer sob
juramento, primeiro de não te impressionar e guardar este segredo, me
juras? Eu lhe jurei e prometi guardar segredo, em seguida, muito
naturalmente me perguntou: – Tu achas que sou homem ou sou mulher?
Olhou bem para mim, rápido respondi: – Claro que homem. – Engano-teu,
eu sou mulher, coisa que nunca gostei de ser, e é por isso que me visto
como homem e namoro mulheres, e em seguida mostrou-me os seios,
realmente lembro, eram seios femininos, depois baixou as calças e me
mostrou o sexo, e também era feminino, eu não me impressionei com o
que havia visto, e continuei lhe chamando como todos lhe chamavam,
professor Rubens.
Vai e vem nas fronteiras
Ultimamente atravessava aquelas fronteiras a qualquer hora do dia
ou da noite, os guardas das fronteiras já me conheciam, me chamavam de
paisanito, eu me sentia feliz atravessando a qualquer momento, até
cheguei num país muito pequeno onde só se falava inglês, eu sozinho,
sentia um orgulho bobo de andar por estes mundos e pensava nos meus
ex-amigos da vila, que pena não poder voltar e lhes contar estas minhas
andanças. Lembro que muitas pessoas me diziam que nunca tinham visto
um colombiano, outras vezes cheguei a ouvir dizer: – Eu gostaria de ser
estrangeiro e falar como você fala. É claro que hoje compreendo que era a
própria ignorância daquele tempo.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 306
Já tinha percorrido todos aqueles países e era pouco o dinheiro
que arrecadara nas cidades, mas dava para meus gastos e para guardar
um pouco para poder mandar para a mãe. Decidi avançar para o norte e
passar para outro país, que segundo o mapa era muito maior que os
anteriores.
Uma vez na fronteira, não me criaram nenhum problema, ao
contrário, como em todas as partes, eu causava admiração, nunca tinham
visto um guri da minha idade andando sozinho, todos tratavam de me
amparar, me cuidavam, queriam ser meus amigos, era convidado para as
casas de famílias para almoçar, queriam me ouvir, conversar bastante e eu
contava um pouco da minha vida. Ouvia falar desta forma: – Coitada dessa
mãe, olhem por onde anda esta criança. Eu não entendia e nem sabia o
que queriam dizer. Meu juramento era o de não ficar a dormir em casa de
ninguém, inventava qualquer pretexto e me mandava.
Apresentações de rua para casas de teatro
Um dia trabalhava na praça de uma cidade muito bonita, tinha
bastante gente reunida, me aplaudiam e colocavam dinheiro na minha
bolsa, alguns comentavam a minha habilidade com as mãos e o corpo. No
meio de toda aquela gente que me assistia, havia um casal que se
destacava pela sua forma elegante de vestir. Quando terminei de guardar
o dinheiro e meu material de trabalho, se aproximaram de mim, me
felicitaram e me convidaram para jantar com eles num restaurante.
Enquanto comíamos e conversávamos, me faziam muitas
perguntas e eu a todas respondia. Terminado o jantar ele me disse: – Meu
filho, seu número é muito bonito para vender ele dessa forma, seus
números são para teatro, em seguida me perguntou: – Você quer trabalhar
em teatro? Na minha mente, nesse momento, apareceu o toureiro, que
não era espanhol, e pensei: vou ver de que se trata, mas dinheiro não dou
nada. Respondi que sim, foi então que eles me disseram que eram
empresários de muitos artistas. Abriram uma pasta que carregavam e me
mostraram fotos e recortes de jornais de vários artistas que trabalhavam
com eles. Como eu estava numa pensão, combinamos que no dia seguinte
nos encontraríamos no mesmo restaurante. Aceitei, eles me
acompanharam até a pensão onde eu estava pernoitando. O dono da
pensão era um senhor alto, forte, gordo e barrigudo, foi ele que me abriu a
porta, ele e o casal se cumprimentaram muito familiarmente, senti que já
eram conhecidos.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 307
Quando o casal se despediu, a primeira coisa que me perguntou
foi: – Você vai trabalhar com eles? Respondi: – Não sei senhor Aguirre,
eles me disseram que são empresários de artistas, me ofereceram para
trabalhar com eles, também me prometeram orientação, ao que Aguirre
me disse: – Meu filho, se eles lhe convidaram é porque você é bom
mesmo, encoste-se neles que vai se sair muito bem, todos os artistas que
eles encaminharam ficaram famosos e você não vai ser exceção. Naquela
noite não consegui quase dormir pensando se não estaria me aventurando
demais, e se eu não fosse bom e o espanhol me desse um chute? Ao
mesmo tempo pensava no que Aguirre havia me dito, que se o espanhol
me convidara era porque eu era bom mesmo, em todo caso iria esperar.
No dia seguinte chegamos juntos no restaurante, enquanto
jantávamos me disseram que eu viajaria com eles para a capital, que era
onde eles moravam. De fato as 6 horas já estávamos viajando de trem,
durante a viagem conversamos tanto, rimos, contei-lhes algumas poucas
coisas das viagens e de alguns lugares por onde tinha passado. O nome
dele era Alberto, era espanhol de Madri, o nome dela era Estela e era da
capital do México. A viagem demorou todo dia, chegamos ao anoitecer, a
casa deles era uma linda mansão, nos recebeu a governanta e o marido
dela, mais tarde fiquei sabendo que o marido da governanta era o faz tudo.
Também saiu ao nosso encontro um cachorro bem grande branco, com
algumas pintas pretas, pulava de alegria e recebia o carinho deles, quando
me viu parou, me olhou, me cheirou e em seguida dona Estela o pegou
pela coleira e o aproximou de mim dizendo-lhe: – Dodi, ele é amigo. Não
gostei muito quando ela o aproximou de mim, eu estava louco de medo. A
cara dele não era de bom amigo, me lembrava Firpo, que eu dominava
porque era pequeno, porém este Dodi não seria fácil, ele era quase do
tamanho de um terneiro, juro que este tal Dodi quase me fez desistir dos
novos amigos. Na verdade lhes digo, que Dodi e eu nos tornamos grandes
amigos. Quando eu saía, ao retornar ele me recebia todo alegre, mexia o
rabinho e sempre estava perto de mim.
Já no segundo dia de nossa chegada, começamos os ensaios num
teatro que eles tinham na própria casa, muito bem decorado com muitas
fotos de artistas famosos igual a pôsteres. Eu me apresentei para uma
platéia de duas pessoas, algumas vezes para quatro, que eram Alberto,
Estela e o casal de serviço. Quem me corrigia às vezes era Estela e outras
vezes era Alberto. Os ensaios duravam três horas na parte da manhã e
três na parte da tarde. Eles me mandaram fazer um smoking, as provas
trucadas feitas por mim de madeira, chapa ou papelão, eles mandaram
fazer por profissionais que as entregaram bem pintadas em diferentes
cores e decoradas conforme eu pedira.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Um mês depois de estar ensaiando, Alberto me chamou e disse
que estavam próximas as festas da padroeira da cidade e que num
determinado dia haveria um festival onde se apresentariam vários artistas
e que eles iriam me inscrever para ser meu dia de debutante perante uma
grande platéia, para começar a perder o medo do teatro. Confesso que no
primeiro momento senti um friozinho na barriga e fiquei pensando como
iria me sair daquela empreitada. À noite deitado pensei: Vou fazer de conta
que estou me apresentando na praça.
Uns três dias antes do festival chegaram quinze artistas que
formavam uma companhia que tinha se apresentado durante trinta dias
num teatro em uma cidade italiana. Alberto me apresentou para todos eles,
ficaram umas duas horas conversando, a conversa era mais com o que
dirigia a companhia. Alegando cansaço foram se despedindo, Alberto lhes
informou que só poderiam descansar dois dias porque eles tinham uma
turnê de vinte e cinco dias em alguns países centro americano.
Quase todos os dias chegavam companhias de diferentes lugares,
algumas com dez artistas, outras quinze e até de vinte, eu era apresentado
a todos eles e quase sempre ensaiava em companhia deles, entre os
quais havia equilibristas, cantores, antipiadistas, cômicos, etc. Vendo todos
estes artistas tão bons me sentia um mosquito perante um elefante, às
vezes sentia vontade de ir embora e continuar com meu trabalho nos
parques e mercados e recolhendo as moedinhas que o público jogava
dentro da minha bolsa, porém em seguida pensava: Eles são tão bons
para mim, têm gasto tanto dinheiro me comprando roupas, organizando
meus aparelhos de mágica, me tratam bem, até o cachorro parece um ser
humano, tal o carinho que me dedica, não é daqueles cachorros que se
atiram em cima da gente para demonstrar sua amizade, ao contrário,
quando chego após ter passado o dia fora ele me recebe mexendo o
rabinho, a cabeça, dando a impressão que sorri, emite um som como os
mudos quando querem dizer alguma coisa. Quando fechava a porta do
meu quarto ele dormia na frente da porta. Agora não a fecho e ele dorme
no pé da minha cama, embora tenha uma casinha com panos e muito
cômoda prefere me acompanhar. Lembrava da mãe quando algumas
vezes me dizia que a gente não deve ser mal-agradecida.
Chegado o dia do festival, a Estela me apresentou a programação,
o espetáculo começava às 14 horas e estava previsto para terminar às 23
horas. Tinha muitos artistas inscritos, cada um tinha de 15 a 20 minutos de
tempo para se apresentar, o júri era composto de artistas de diferentes
países e participavam dos prêmios até o vigésimo lugar.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 309
Enquanto estava em casa, me sentia indiferente e confiante, de
acordo com a programação, a minha apresentação deveria ser às 18
horas. Às 15 horas já estávamos no camarim, de onde podíamos ver as
apresentações dos artistas, cada um melhor que o outro, todos bonitos, eu
pensava no fraco do meu número e começava a ficar nervoso, o temor de
ser vaiado se manifestou em mim, fiquei sem vontade de me apresentar,
comecei a pensar num pretexto para me escapar daquele compromisso,
pensava, pensava.
Alberto e Estela estavam ao meu lado, fugir de que forma se nem
sequer tinha prestado atenção por onde tínhamos entrado, o tempo
passava e a minha angústia aumentava e eu pensava, tenho que
encontrar uma forma de me escapar, correr para casa, pegar a minha
bolsa e fugir para o norte do país e voltar a trabalhar em público nos
parques. Escutei a descarga de um banheiro e foi ali que achei a solução,
me animei um pouco e pensei, quando faltarem 5 minutos para a minha
apresentação dou um gemido, aperto a barriga e saio correndo para o
banheiro, e quando eles me chamarem, faço barulho como se estivesse
vomitando e faço de conta que não posso falar por motivo do vômito, fico
lá dentro uns 15 minutos e depois saio me fazendo de doente, calculando
que a estas alturas já teriam colocado outro no meu lugar.
Por estar pensando na melhor forma de fingir, não me dei conta da
minha vez de me apresentar. Estela correu, me pegou pela mão, e ligeiro
me levou ao palco. Alberto colocou a mesa das provas no centro do palco,
neste momento não pensava em nada. Antes de abrir o telão Alberto me
abraçou ligeiro e disse: – Faz de conta que está se apresentando para nós
lá em casa. Desejou-me boa sorte e se retirou para trás do telão onde
estava Estela e quando abriram o telão ela me apresentou, primeiro falou
da minha nacionalidade, em seguida destacou a minha valentia, que na
minha idade, sozinho, percorria o mundo me apresentando em vários
palcos. A estas alturas tinha me esquecido da dor de barriga e do vômito e
quando ela se retirou comecei da forma que começava em casa. Aquele
sorriso que Estela e Alberto me faziam repetir, ali saía espontaneamente e
procurava apresentar as provas tal como eles tinham me orientado e
sempre acompanhadas do sorriso, acompanhadas do meu sotaque que
quase todos gostavam, procurando estilizar meus movimentos. Cada
prova demorava em média 5 minutos, portanto apresentei só quatro
provas. O público que a cada prova me aplaudia, ao me despedir começou
a pedir mais uma aos gritos, o diretor da programação perguntou para
Alberto se podia apresentar mais uma, respondeu que muitas, e saí
novamente, o diretor me advertiu que só uma prova. Terminada a prova e
fechado o telão alguém gritou: – Um último sorriso e o coro se formou: –
Um sorriso... Sem autorização do diretor, Estela abriu um pouco o telão e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 310
me disse: – Vai, cumprimente e sorria. Fiz rápido, porque já estavam no
palco outros artistas. Quando entramos no camarim Estela e Alberto me
abraçaram, estavam todos sorridentes. Às 21 horas terminou o espetáculo,
nenhum dos artistas cobrava cachê, os prêmios eram oferecidos por
empresas, lojas e armazéns, também pelo Governo do Estado e a
Prefeitura.
Sucesso e prêmio
Enquanto Alberto guardava meu material de trabalho, o camarim
foi invadido por vários artistas que trabalhavam com Alberto e Estela,
todos me felicitavam, um casal de argentinos que também trabalhava com
Alberto e que também entrou no camarim, eles dançavam tango, se
aproximaram de mim, nunca me esqueço que foi a primeira vez que ouvi
esta expressão: – TCHÊ, como sorris bonito, é a tua melhor arma, em
seguida ela agregou: – Mexes o corpo como um cigano dançando uma
buleria e combina com as tuas provas que ficam bem apresentadas e lhes
dão um efeito espetacular, todos eles, homens e mulheres me felicitavam,
e como muitos achavam bonito meu castelhano, alguns chegaram a
perguntar para Alberto: – Ele vai conosco? Ao que Alberto respondia: –
Não, estou assinando uns contratos para uma turnê em todas as capitais
do país e em alguns locaise já começamos na próxima semana.
Confesso que a única satisfação que sentia era a de não ter sido
vaiado pelo público, me sentia um pouco distante de mim, sentia uma certa
saudade da mãe e de meus irmãos, me dava vontade de voltar para casa,
mas pensava: O que é que vou fazer lá? Faltando 15 minutos para às 21
horas, terminou o espetáculo. O diretor agradeceu ao público e aos
colaboradores. Em seguida o corpo de jurados começou a entrega de
prêmios, o vigésimo lugar foi um mímico que tinha feito rir muito o público.
Eu estava distraído, não lembro se sonhava ganhar algum prêmio, só
lembro que pensava como será que eu sorrio que todos que me conhecem
gostam da forma que eu rio ou sorrio. Confesso que até hoje continuo
sendo simpático pelo tal do sorriso, mesmo já estando idoso, me olho no
espelho, me vejo e não acho graça nenhuma. O sexto prêmio foi para uma
senhora que cantou muito bonito, sempre que era entregue o prêmio para
o artista, lhe eram destacados seus méritos e o porquê do prêmio.
Encontrava-me tão distraído que quase não prestava atenção aos
ganhadores dos prêmios e ao que se falava deles, estava só com o
pensamento na minha casa. Quando ouvi que um dos jurados falou,
textualmente não me lembro, porém foi mais ou menos assim: – O quinto
prêmio é para aquele dono de tanta simpatia e daquele sorriso. Quando o
homem disse aquele menino que veio da Colômbia, não consegui ouvir o
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 311
restante, porque Estela deu um grito, se levantou da cadeira que caiu,
Alberto e todos os que nos acompanhavam me levantaram e me levaram
até o palco, no meio das palmas e dos gritos da platéia. O prêmio que
recebi foi o equivalente a duzentos dólares e uma ordem para um terno
completo da alfaiataria mais famosa da cidade.
Jantamos quase a meia-noite, conversamos bastante e depois
fomos dormir. Quando entrei no quarto o Dodi estava enrolado ao pé da
cama, entrei e ele nem se mexeu. São esses os momentos da minha vida
que nunca esqueço, pela primeira vez não tinha pedido socorro à Santa
Sara Kaly, então o que fiz a seguir foi: me ajoelhei, ficando de frente para a
porta do quarto e olhando para o alto rezei e agradeci a Deus e à Santa
Sara Kaly pelo triunfo, pelo prêmio, pela alegria que sentia e por não ter
feito o que pensava fazer, que era fugir para não me apresentar. Há coisas
que acontecem na vida da gente que dificilmente esquecemos e esta é
uma delas. Estou escrevendo e revivo aqueles momentos como se recém
tivessem acontecido ontem.
Aconselhado e orientado por Alberto e Estela, mandei os duzentos
dólares para a mãe. No dia seguinte ao festival saiu em todos os jornais os
ganhadores dos prêmios do festival, eu saí na foto junto com o juiz, os
jurados, Estela e Alberto, e alguns artistas. Comprei dois jornais, recortei e
mandei pelo correio numa carta para a mãe. Na terça-feira nos visitou um
jornalista colombiano atraído pelas notícias do quinto lugar ser um garoto
colombiano. Falou com Alberto naquela linguagem jornalística, me fizeram
vestir o smoking, coloquei as luvas e também a cartola, me tiraram várias
fotos no palco, como se estivesse me apresentando, o conterrâneo ao se
despedir me desejou sorte e muitos triunfos.
Tantos anos passados e eu tão garoto que era, não consigo me
lembrar bem deste detalhe que foi, antes de viajar para a turnê, Estela de
um lado e Alberto na minha frente me falaram da forma que trabalhavam,
me parece que 80% do contrato era repartido entre os artistas e 20%
ficava com eles, eu não entendia nada de porcentagem e o que me
pagavam era bom para mim. Comia, dormia, treinava, procurava ser
disciplinado, obedecia a orientação daquele que chefiava o grupo, não
sentia preocupação nenhuma. A turnê demorou algum tempo, quanto não
sei. Alberto ou Estela aparecia às vezes onde estávamos. Lembro que
uma vez apareceram os dois e foi para festejar o meu aniversário e foi
muito bonito, cantos, brindes e presentes. Confesso que eu nunca sabia
quando era meu aniversário. Alberto e Estela sabiam, quando chegavam
cartas da mãe, eles procuravam me levar onde eu estava. Terminada a
turnê voltamos para casa.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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7
NOVOS HORIZONTES SE ABREM:
EUROPA E ALASKA
oube que Alberto já tinha programado para eu viajar com outro
grupo para a Europa, segundo fiquei sabendo o que dirigia o grupo
se queixou para Alberto que tinha pouca gente para segurar duas
horas de espetáculo. Foi aí que Alberto me incluiu nesse grupo, foram
vários ensaios antes de partir, os meus novos companheiros gostaram
muito de mim, enquanto que meus primeiros companheiros ficaram um
pouco chateados. Alberto lhes apresentou um senhor que trabalhava com
um casal de cachorros que faziam coisas extraordinárias.
S
Na Europa
Dias depois parti com meus novos companheiros rumo à Europa e
desse momento em diante o mundo ficou pequeno para mim. Ficávamos
longas temporadas numa cidade, em seguida partíamos para outra, de
repente mudávamos de país e às vezes voltávamos ao mesmo, cada um
carregava e cuidava de sua indumentária e de seu material de trabalho.
Durante aquele longo período de trabalho na Europa Alberto nos visitou
uma só vez. Terminados os contratos retornamos para casa e ao chegar a
alegria era geral, eu era o personagem central, Estela me perguntava se
haviam me tratado bem, se não tinha passado fome, se não tinha
adoecido. Talita, a governanta, veio e me abraçou, o marido dela também,
Dodi era todo alegria. Depois de toda bagunça Alberto me entregou duas
cartas enviadas pela minha mãe, na primeira ela agradecia o dinheiro
enviado, era Alberto que tinha mandado, dei um abraço nele por essa
gentileza. Na outra carta vinha um recorte de jornal da minha cidade onde
aparecia eu de corpo inteiro e vestido a rigor e em letras grandes dizia:
Artista colombiano triunfa em festival artístico, falava da minha
apresentação. Foi Estela que leu a carta em voz alta para todos os
presentes. Na carta a mãe me contava que quase todos os vizinhos tinham
comprado aquele jornal, que a visitavam para felicitá-la e se lamentavam
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 313
por terem me tratado de ladrão e culpavam o tal do Geraldo por ter
inventado aquela história. Contava-me também que a Romélia tinha
mandado colocar o jornal numa moldura e tinha dependurado no quarto
dela, que queria que eu lhe mandasse uma foto minha, me falava do
Joãozinho, que ele tinha mudado muito, que não era mais aquele rapaz
orgulhoso, que agora era calmo e um dia tinha aparecido em casa com a
folha do jornal. Quando chegou, a primeira coisa que disse para a mãe foi:
– Dona Isabel, venho lhe felicitar pelo triunfo do Negrinho. E a mãe me
dizia: – Meu filho, ele me contou tudo, como você o tinha ajudado, já que
você não me contou, fiquei sabendo por ele mesmo. Lamentou que os
foram mal-agradecidos e grosseiros com você, que quando eles chegaram
no hotel onde vocês estavam encontraram-no limpinho, penteado e
perfumado e que eles nem sequer tinham falado com você e que só em
casa ele teve chance de lhes dizer que a roupa que ele vestia era sua, e
nem sequer tinham se importado quando ele lhes mostrou e lhes falou que
a única calça que ele tinha era aquela toda suja e encardida que usava
quando você o encontrou, a calça estava preta de sujeira. E quando você
voltou, não o deixaram vir agradecer, e agora, o pai e a mãe dele têm,
escondido dele, aquela folha do jornal, e ele já os pegou com o jornal
aberto olhando a foto do Negrinho. Dizia minha mãe na carta: – Meu filho,
agora nem eu nem teus irmãos precisamos nos esconder, ao contrário,
todos nos cumprimentam e nos visitam e mandam lembranças para o
Negrinho. A mãe me dava informações de todos os acontecimentos após
ter saído no jornal, gente que ela nunca tinha visto antes quando
passavam perguntavam: – A senhora é que é a mãe do Negrinho? Ela
respondia que sim e lhe felicitavam. Contava-me também que o Dr. Corrêa
e senhora tinham lhe visitado, Gratiniano e a filha, que a Elida, pensando
que a situação era a mesma de antes, tinha levado um rancho, o mesmo
tinha feito o Manolo, que veio com toda família e tinha levado uma boa
quantidade de verduras, carne e ovos. – Meu filho, você deve se lembrar o
quanto o André gostava de você, ele esteve aqui com o pai, a mãe e os
irmãos, lembra-se que você deu uma foto toureando, ele colocou-a na sala
junto com um quadro do jornal, ele fala muito de ti, te acha o máximo.
Filho, eu não guardo rancor com ninguém, ao contrário, estou feliz com
toda essa mudança, porém teu irmão continua rebelde, não quer saber de
ninguém daqui, não se reúne com a garotada da vila nem participa dos
convites da Romélia, mal fala com ela, ele prefere ouvir rádio e ler.
É claro que não vou contar tudo o que a mãe me contava nas
quatro folhas que me mandou, porém sim vou contar-lhes o que ela me
escreveu a respeito do meu irmão Marino, é que um dia ela o questionou a
respeito daquele ódio que ele guardava e ele tinha respondido: – Mãe,
ninguém me viu chorar pelo sofrimento do meu irmão, chorei em silêncio e
solitário de ver tanta injustiça para com ele e quando li o jornal, novamente
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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chorei, porém desta vez de alegria, só que na minha mente continua
aquele desamor que tiveram para com ele apesar de tão pequenininho que
era, e ter sido tão prestativo para com todos, eu os odeio. O André e seus
familiares te mandam muitas lembranças, teus irmãos também mandam
lembranças e beijos. Receba abraços e beijos da tua mãe que tanto te
ama, Isabel.
Quando Estela terminou de ler as cartas Alberto veio perto de mim
e me disse: – Quer dizer que é toureiro e está caladinho? Em seguida
Estela me disse: – Quer dizer que te chamam de Negrinho? Ninguém
estava interessado na turnê pela Europa, queriam era saber o porquê das
desculpas e da rebeldia do meu irmão. Estela com a carta na mão ia me
perguntando, tive que contar tudo desde quando vendia cobras, o por que
do Negrinho bonzinho, quando e porque fugi, o retorno bem vestido e com
dinheiro e, ao invés de encontrar amigos, encontrei ódio e me tratavam de
ladrão, só porque um rapaz tinha inventado uma história que ele tinha me
visto ser preso pela polícia por estar roubando. Contei também que três
pessoas não acreditavam de eu ser ladrão: uma minha professora
Mariateresa, o André, e da família do nino Efraim não podia dizer nada,
porque não sabia se a história tinha chegado aos ouvidos deles.
Adoraram a minha história, a Estela e a Talita deram razão para
meu irmão, ao contrário de Alberto e José, marido de Talita. A Estela dizia
que foi o pontapé mais gostoso que meu irmão deu na bunda de todos
eles. Alberto comentou: – Eu acho que ele não deveria ser tão radical. Ao
contrário, deveria voltar para o seio dos amigos e poder desfrutar com
satisfação a inocência do irmão. O José me perguntou: – Aquela Romélia
que a tua mãe falou é bonita? Respondi: – Não prestei atenção, mas todos
que a conhecem dizem que é linda. A mãe dizia na carta que Romélia já
tinha tentado convencer meu irmão a não odiá-la tanto, mas ele respondeu
que quem deveria ter me defendido era ela, porque me viu nascer, me deu
banho, era ela que vinha em casa me dar mamadeira, me viu crescer e ver
que desde pequeno já era um trabalhador, incapaz de tirar um centavo de
ninguém. E foi ela a primeira a me virar as costas.
Passei a não gostar muito quando Estela começou a se preocupar
demais por mim, organizava minha roupa, engraxava meus sapatos, no
almoço se sentava ao meu lado, por isso, quando viajávamos eu era feliz
porque ela ficava em casa. Na companhia éramos uma família, todos nos
queríamos, as nossas apresentações eram muito aplaudidas. O senhor
Alípio era o diretor, todos o respeitavam, na hora do ensaio todos
estávamos presentes e pontualmente, ele sempre nos dizia que estava
velho e cansado e que gostaria de parar.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Viajávamos muito, de trinta em trinta dias trocávamos de teatro e
de cidade. Lembro que sempre que um de nós fazia aniversário nos
reuníamos em algum lugar para festejar. Um dia antes do meu aniversário
Estela apareceu onde estávamos nos apresentando, foi ela que se
encarregou de organizar a festinha, que por certo foi muito bonita, porém
eu não gostava muito da presença da Estela porque ela a toda hora estava
me paparicando e isto me fazia lembrar Estefani e a família do Capitão
Gaspar, enxergava dona Celi e o Pipo chorando e não queria que isso
fosse acontecer de novo.
Idas e vindas
Muito tempo se passou entre viagens e voltas para casa e um dia,
após uma longa turnê por vários países, ao chegar em casa, o senhor
Alípio nos reuniu, inclusive Alberto, e nos informou que não pretendia
continuar trabalhando, que estava velho e cansado e que queria curtir seus
três netos.
Alberto patrocinou a despedida, estavam presentes muitos artistas,
além da esposa de Alípio estavam também os filhos com seus cônjuges e
seus netos. Alberto me colocou em outro grupo com antigos
companheiros, inclusive alguns tinham me visto no festival.
Alberto e Estela queriam que no meu próximo aniversário eu
estivesse em casa com eles e por isso após uma turnê chegamos em casa
quinze dias antes do meu aniversário e não me mandaram com nenhum
grupo, alegando que estava na hora de eu descansar um pouco.
Meu aniversário foi festejado com colegas artistas, música,
comida, bebidas e presentes. Na frente do palco tinham colocado um
cartaz colorido que dizia: Feliz Aniversário Negrinho! Isto me trouxe uma
reminiscência de quando era guri, quem organizava meus aniversários era
Romélia, fazia um bolinho, preparava uma jarra com refresco, convidava
algumas crianças da vizinhança, cantávamos os parabéns, comíamos o
bolo, bebíamos o refresco e pronto, tudo ao contrário daqui, Alberto e
Estela trouxeram um conjunto musical, Talita preparou muitos doces e
salgadinhos, o salão foi decorado e compraram diferentes bebidas e
ganhei roupa nova, nunca tinha dançado tanto, a Estela e Talita não me
deixavam descansar. A festa terminou às 4 horas da madrugada, todos
fomos dormir.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Dois dias depois da festa fui mandado com um grupo para uma
turnê em várias ilhas do Caribe. Alberto sempre acolhia a todos os artistas
que lhe procuravam e mais que tudo se eram bons.
Ao retornar da turnê pelas ilhas do Caribe estava em casa de
Alberto um jovem sul americano ilusionista, fazia provas muito bonitas e
bem apresentadas. Alberto o colocou no grupo que eu estava e quis que
eu ficasse em casa para atender os pedidos de espetáculos que eram
feitos na cidade e municípios vizinhos, também quando faltava algum
artista num dos grupos que eu viajava eu o substituía.
Uma vez tive de sair com um grupo o qual já tinha andado várias
vezes e que era benquisto por todos eles. Nesse grupo trabalhava um
patinador que viajava junto com a esposa, o número dele era muito bonito,
arrancava muitos aplausos do público, eles eram europeus, a esposa não
trabalhava na companhia, ela sempre ficava no hotel e procurava um lugar
onde pudesse ser vista, comprava os canudos para bebidas, que naquele
tempo eram de papelão encerados, os recortava em diferentes larguras, os
tingia de diferentes cores, comprava vasos de cerâmica, os pintava e os
decorava com aquelas tirinhas em desenhos diferentes muito bonitos e
quase sempre os vendia no mesmo hotel. Os treinos eram das 14 às 16
horas, enquanto o marido ia para o ensaio ela aproveitava para descansar
e ficava no quarto dormindo. Porém, como dizem que o diabo fez a panela
e esqueceu-se da tampa, uma tarde Walter, que era o nome do patinador,
se esqueceu de levar para o ensaio uma bengala que era para praticar um
novo número, voltou para o hotel à procura da bengala, ao chegar ouviu os
gritos da mulher pedindo socorro, entrou correndo e como pode arrombou
a porta do quarto e lá dentro encontrou um cara tentando tirar a roupa da
mulher, rasgando-a para deixá-la nua. O Walter se lançou sobre o cara,
lhe encaixou o braço pelo pescoço, puxou e os dois caíram no chão, o
Walter ficou embaixo e o cara em cima dele. De barriga para cima o Walter
segurava firme no pescoço tentando asfixiar o homem, que se debatia
para se livrar. Quando a mulher viu o marido embaixo do brutamontes,
pegou rápido uma garrafa vazia e a quebrou, passando-a pelo rosto, pelo
peito e pela barriga do cara. Walter não o largava, tentando asfixiá-lo.
Quando chegamos encontramos a mulher do Walter num estado
lamentável, chorava, algumas senhoras do hotel lhe limpavam o sangue e
lhe cobriam o corpo com os lençóis da cama, outros tiraram o homem de
cima do Walter. O cara jorrava sangue por todos os lados, ocasionado
pelos cortes feitos pela mulher de Walter com a garrafa. Walter tinha um
corte na parte de trás da cabeça e um pequeno corte do lado direito do
nariz. Quando tiraram o homem de cima do Walter, ele gemia e ficou
deitado no chão com dificuldade de respirar. Alguém tinha chamado a
polícia, que chegou nesse momento. Walter, a mulher e o homem foram
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 317
levados para o hospital. Nós fomos juntos, assim como duas senhoras do
hotel que tratavam de consolar a mulher de Walter que ainda chorava.
Walter também tentava consolá-la lhe dando carinho. O casal foi
medicado, ele levou dois pontos na cabeça, o resto das feridas eram só
escoriações, idem da mulher. Um policial conversando com o pessoal do
hotel dizia que aquele homem tinha sido solto da cadeia fazia dois dias,
que havia estado preso durante quatro anos também por tentativa de
estupro.
Aquele dia seria a nossa última apresentação naquela cidade,
porém não estávamos em condições, estávamos profundamente abalados.
Quem dirigia o grupo era um cômico chamado de Villamizar, ele falou com
o dono do teatro sobre nosso estado de ânimo, que foi compreensivo, e no
dia seguinte voltamos para casa de Alberto que estava preocupado porque
a notícia já tinha saído no jornal. Lembro-me que se lia na primeira página
mais ou menos assim: Na tentativa de estupro, estuprador é ferido
gravemente pela vítima com uma garrafa quebrada, depois falava do
acontecido e da vida do estuprador. Walter e a esposa ficaram numa
cidade que estava à uma hora da capital. Villamizar, que era primo de
Walter e morava na mesma cidade, não quis ficar para poder entregar o
grupo para Alberto, do qual era diretor. No dia seguinte ele voltou para a
terra onde morava, ao se despedir senti o carinho que ele tinha por mim,
me deu um forte abraço e disse: – A qualquer momento voltaremos a
trabalhar juntos.
As viagens temerárias em pequenos aviões
À tarde apareceu uma senhora, Emma, que dirigia um grupo e
para completar o elenco faltava um artista, ela queria que a vaga fosse
preenchida pelo filho de dezoito anos que estava praticando para ser
ilusionista, só que Alberto achava que ele ainda não estava apto para se
apresentar em palco e outra coisa, só fazia números trucados e não se
preocupava em aprender a praticar destreza. Quando Alberto me
apresentou ao grupo que ela dirigia senti que ela não simpatizou comigo.
Embora Estela tivesse pedido para Alberto me deixar mais alguns dias em
casa ele alegou os muitos compromissos e ainda mais agora com um
grupo a menos. À tarde estava todo elenco reunido e fui apresentado,
alguns já me conheciam por termos trabalhado juntos. Diga-se de
passagem, eu não queria ficar em casa porque a Estela a toda hora me
paparicava e a Talita também às escondidas de Estela. Eu gostava muito
de Alberto, sempre chegava, me entregava os recibos do correio onde
constava o dinheiro enviado para minha mãe e sempre deixava um troco
para mim. Dois dias depois nos despedíamos, porém antes de sair ouvi
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 318
que Emma me olhando de soslaio disse para Alberto: – Tu sabes como
sou exigente. Alberto respondeu: – Podes estar tranquila que a peça é
segura. Como viajávamos para um país centro americano, nos tocou viajar
num teco-teco bem rampeiro, diziam que era um bimotor. O barulho dos
motores era ensurdecedor, por momentos pulava, fazia uma barulheira,
parecia que andávamos de carro por uma estrada de chão, toda
esburacada, tal era o desassossego, que terminou me mareando. A
aeromoça corria, tratando de nos atender porque éramos vários
passageiros mareados. Meus companheiros também me socorriam, dona
Emma nem se importava comigo, ao contrário de outros diretores que
sempre estavam pendentes em mim, esta senhora de vez em quando me
olhava de cara feia e com um olhar de censura.
Às 17 horas estávamos no aeroporto, a aeromoça tinha me dado
um vidrinho com umas gotas para tomar com chá antes de deitar. Após
tomar banho no hotel, fui até uma das cozinheiras pedir o favor de me
fazer um chá conforme tinha me dito a aeromoça, o que a cozinheira,
muito gentil, imediatamente fez, só que quando dona Emma me viu sair da
cozinha com o chá, chegou toda braba dizendo que não era para estar
incomodando os outros. A cozinheira, no mesmo momento falou-lhe que
eu não estava incomodando, que elas tinham obrigação de atender ou
auxiliar os hóspedes e que eu não incomodava.
No outro dia, depois que fiz a minha apresentação, ela apareceu
no meu camarim, e com palavras ríspidas disse: – O Alberto sabe que sou
muito exigente e quero que você aplique um pouco de simpatia à sua
apresentação. Eu nunca lhe respondia nada, sempre ficava calado.
Terminada a nossa temporada naquela cidade, teríamos de nos
apresentar noutra cidade e noutro país e viajaríamos de avião. Uma das
colegas tinha me aconselhado que quando fosse viajar de avião não
tomasse líquido, no mínimo uma hora antes de viajar, e deveria cheirar
limão. Tinham lhe passado a receita e ela nunca mais se mareou. Antes de
viajar comprei dois limões e os levava numa mão e na outra levava minha
bolsa, na mão que levava os limões também segurava o cartão de
embarque e tive pouca sorte, pois no momento de entregar o cartão na
porta de embarque, caiu no chão um dos limões e no momento que me
agachei para pegar o limão, a dona Emma chegou até onde eu estava e
me deu um coice na bunda e gritou: – Deixa essa porcaria aí rapaz! Uma
das colegas que vinha junto com o marido viu a cena e não gostou. Bom,
nem é preciso falar que a dona Emma ouviu o que tinha e o que não tinha
que ouvir, inclusive a ameaçaram de abandonar a companhia.
No grupo andavam dois casais de ciganos que tocavam violão e
dançavam música espanhola, o público gostava do número deles, era
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 319
muito bem apresentado. Eles não gostavam do jeito que a Emma me
tratava e algumas vezes discutiam por minha causa. A Emma tinha um
filho que sempre me procurava para lhe ensinar a fazer as provas de
destreza, eu lhe ensinava, porém tudo errado. No grupo também havia
dois atiradores de facas, eles eram irmãos, um era casado e o casal tinha
uma filha, eles eram muito amigos de Emma. O filho de Emma era
apaixonado pela filha do atirador de facas, e todos sabíamos que o irmão
solteiro do atirador andava de chamego com Emma. O atirador de facas, a
mulher, o irmão solteiro dele e a Emma, eu sentia que não gostavam de
mim. Nuvia, que era o nome da filha do atirador de facas, não gostava de
Tito, que era o nome do filho da Emma. Nuvia um dia me confessou que
sentia verdadeiro nojo do Tito, que ela se fazia amiga dele para não
contrariar os pais. Eu era muito amigo de Nuvia, e mesmo que os pais não
quisessem, ela sempre me procurava para conversar.
O risco
Um dia saí para dar uma volta pela cidade, quando vi a Nuvia me
alcançou, vinha escondida dos pais e me disse que enquanto ela estava
tomando banho, escutou os quatro combinando que no dia seguinte a mãe
ia se fazer de doente e iam me convidar e ao Tito para ficar na tábua
enquanto eles atiravam as facas. Este era o trabalho da mãe de Nuvia,
mas eles combinavam para que Tito e eu a substituíssemos. Uma vez Tito
ficaria na tábua e outra vez eu, e um deles trataria de colocar a faca bem
perto de mim para me cortar, desta forma me mandariam para casa e
tratariam de colocar o Tito no meu lugar. Na noite do espetáculo, mesmo
que a Emma tivesse me pedido para ficar, apenas terminei meu número,
desapareci. O Tito, que já estava acostumado, teve que enfrentar todas as
facas. Pela forma como os atiradores e a Emma me tratavam, de uma
forma rude, tinha se formado uma certa tensão de inimizade na
companhia. Quando estávamos na casa do Alberto eles me tratavam com
um falso carinho, que eu entendia. Sempre eu pedia para os ciganos e
aqueles que na companhia gostavam de mim que, por favor, não
contassem nada para o Alberto e para a Estela porque eles eram muito
bons para mim. Sempre que faltava um artista num dos grupos e não tinha
a quem colocar, tocava a ele correr, ir até o sindicato dos artistas, até
conseguir preencher a vaga.
Com toda certeza posso dizer que eu não entendia o porquê eu
preferia andar com a Emma e ser maltratado a ficar em casa e ser
bajulado pela Estela e a Talita...
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Depois de várias turnês por diferentes países ficamos em casa
durante três dias descansando, no quarto dia saímos para uma turnê numa
ilha do mar do Caribe, lá nunca tínhamos estado, o contrato era por quinze
dias, ou seja, quinze apresentações. Lembro que a cidade era muito
bonita, tinha muitas palmeiras, os prédios eram antigos, de construção tipo
colonial, me levantava cedo e andava por tudo quanto era lugar da cidade,
a única coisa que não gostava é que havia muita pobreza, mendigos por
todas as partes, meninas bem novinhas já eram prostitutas, que se
vendiam aos muitos estrangeiros que ali chegavam.
Eu gostava muito de ir até a beira do mar, apreciava muito ver os
navios ancorados, por toda a parte encontrava senhoras ou rapazes que
vendiam doces, salgados, frutas, melancias em fatias, igual que o abacaxi.
Como fazia muito calor encontrava vendedores de picolé, eu gostava de
comer alguma coisa, o meu lugar predileto era um lugar que eles
chamavam de Malecom, era naquele lugar que mais gente se reunia.
O convite do Padre Missionário
Um dia, quando estava sentado num banco de uma praça
comendo um picolé, um padre sentou-se ao meu lado. O padre suava,
tirou o lenço, se limpou e queixou-se do calor, me cumprimentou, o
sotaque dele me era familiar, vestia-se como era usual naquele tempo,
terço pendurado na cintura, breviário na mão e chapéu de copa baixa, que
por momentos lhe servia de leque. Perguntou-me a idade, de onde era,
claro respondi da Colômbia, estava disposto a não lhe contar que
trabalhava no teatro e o que fazia. Quando me perguntou o porquê estava
tão longe da minha terra e o que fazia, respondi a primeira coisa que me
veio à mente: – À procura de trabalho. – E conseguiu? – Não senhor,
respondi. A seguir me falou que era um padre com a missão de catequizar
esquimós no Alaska. Em seguida tirou do bolso da batina um pequeno
mapa e me mostrou onde ficava aquele lugar, me falou que lá era tudo
coberto de gelo, que os dias duravam seis meses, idem as noites, eu lhe
fazia muitas perguntas e ele me respondia. Falou-me tanta coisa do lugar,
que a cada minuto eu ficava mais curioso e quando me disse que se
locomoviam em trenós, que era um tipo de carroça puxada por cachorros,
acho que ele notou a minha curiosidade, o meu entusiasmo, que em
determinado momento me disse: – Se tivesses licença dos teus pais eu te
daria emprego lá nas missões. – Que faria eu lá, perguntei. Ele respondeu:
– Meu filho, o que não falta lá é trabalho, tu poderias ganhar um dólar por
dia, livre de comida, dormida, algumas roupas e roupas lavadas. Ele me
falou que um dos trabalhos que teria seria percorrer muitos quilômetros em
trenó trazendo garotos e garotas esquimós para serem catequizados.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 321
Quando ele falou de viajar de trenó, me entusiasmei, e foi recém aí
que eu disse: – Padre, eu tenho passaporte, tenho licença da minha mãe e
do Juiz para viajar. Em seguida o padre me disse: – Vamos, quero ver
essa licença. Menti de novo para o padre e lhe disse: – Padre, agora eu
tenho que levar um cesto do mercado para uma senhora, que além de me
pagar e me dar comida, às vezes me dá algumas roupas. Mas prometi
para o padre que no dia seguinte traria a carta da mãe me autorizando a
viajar e a licença do Juiz. Mesmo com certa desconfiança, notei que o
padre estava interessado em mim e eu também estava interessado na
vaga que ele me oferecia. Conversamos mais um pouco e combinamos de
nos encontrar no dia seguinte no mesmo lugar e na mesma hora. Antes de
me despedir perguntei-lhe se viajaríamos de avião. – Não, me respondeu,
vês aquele navio que está fora do porto? Mostrou-me o navio e disse: –
Aquele navio amanhã vai atracar no porto para ser carregado com açúcar,
café, milho e mais algumas mercadorias para depois de amanhã partirmos
de madrugada.
No dia seguinte eu estava no lugar e hora combinados e ele
também. Mostrei a carta do Juiz e a autorização da mãe, ele gostou, sorriu
e colocando sua mão na minha cabeça disse: – Então vamos viajar.
Mostrou-me o navio e falou, já está sendo carregado, de madrugada
partiremos. Em seguida me levou até o navio, me apresentou para as
freiras e para outros padres e o pessoal civil que também viajavam junto e
alguns marinheiros. Quando calculei que meus companheiros estivessem
no ensaio, falei para o padre que ia trazer minha roupa, ele concordou e
saí correndo, nesse horário o hotel estava quase vazio, peguei minha
bolsa, que já havia deixado pronta e voltei correndo para o porto. No navio
todos me receberam com alegria e me levaram para o camarote que
tinham me reservado. Com o pretexto de organizar as minhas coisas, tratei
de ficar lá dentro para evitar que alguém pudesse me ver.
Na madrugada do dia seguinte acordei com o barulho de gritos,
batidas de sinetas e aquele corre-corre dos marinheiros. Tudo isto me
trouxe lembranças daquela primeira vez que fugi da minha casa,
escondido no camarote do cozinheiro italiano daquele navio onde tantas
vezes vendi bananas e muito fiz as minhas refeições. Senti uma leve
sensação de nostalgia, mas rápido se sumiu ao me lembrar que estava me
livrando da Emma, que sempre me maltratava, igual que seu amante e o
casal de atiradores de faca, o resto dos companheiros todos me queriam
em.
Mesmo quando tudo ficou em silêncio não quis me deitar, fiquei
olhando pela clarabóia, me dava a impressão que não era o navio que se
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 322
movimentava e sim o porto que se afastava. Não lembro em que momento
me deitei, peguei no sono, sonhava alguma coisa, o quê não sei. O sol
entrava através da clarabóia e batia no meu rosto, continuei deitado, de
pronto ouvi que batiam na porta, levantei, corri e abri, era meu amigo o
padre, estava preocupado porque eu ainda não tinha tomado café e o dia
estava bem avançado. Falei para o padre que tinha conciliado o sono só
na madrugada, me lavei bem rápido, me vesti e acompanhado do padre
nos dirigimos ao comedor. Lá encontrei os padres e as freiras que
conversavam e riam. Ao chegar lhes contei o porquê tinha me acordado
tão tarde, o café estava pronto numa garrafa térmica, numa bandeja tinha
pão, queijo, salame e alguns doces. Terminado o café pedi licença para ir
me escovar os dentes, me pediram para depois voltar ao comedor.
Novamente no comedor me fizeram todo tipo de perguntas, que eu
respondia, algumas vezes mentia, outras vezes falava a verdade, sempre
escondendo a parte artística e também não falava que tinha fugido da
companhia.
Atravessando o canal do Panamá
A hora do almoço nos pegou ainda no comedor conversando e
rindo, antes de começarem a servir o almoço os padres fecharam as
portas do comedor para rezar, fiquei sabendo que os marinheiros não
gostavam de orações em alto mar, por isso as portas eram fechadas para
eles não ouvirem, meia hora depois da oração foi servido o almoço. Após o
término e com o pretexto de ir me lavar fui dormir os meus famosos dez
minutos. Meia hora depois voltei ao comedor, mas não tinha ninguém,
todos tinham ido dormir a sesta, subi para a cobertura onde encontrei
vários marinheiros, alguns fumavam, soube que estavam de plantão,
porque em alguns minutos atravessaríamos o canal do Panamá. Continuei
a conversar com eles e como em todo lugar e com todas as pessoas que
falavam, eles também achavam meu sotaque bonito.
Estávamos em divertida conversa quando escutamos a batida forte
de um sino, em seguida todos correram, uns para a popa outros para a
proa, estibordo e bombordo. Naquele momento o prático autorizou o
rebocador a puxar o navio para dentro das eclusas com sua orientação. Eu
estava na proa olhando todo aquele movimento e no momento que o navio
foi entrando na eclusa me invadiu um não sei o que de tristeza, meu
coração batia um pouco mais acelerado ao lembrar que por ali passei
naquela madrugada quando pela primeira vez fugi da minha casa, tinha
vontade de chorar, as lágrimas não saíam, quis se formar aquele nó na
garganta, pensava que bom se estivesse voltando para casa, mas eu não
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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sei nem para onde eu estava indo, se para muito longe da minha terra,
comecei a sentir arrependimento por ter aceito o convite do padre e eu
mesmo me dizia: porque não fiquei na companhia, que importava a Emma
e seus amigos me tratarem mal, era só dizer para Estela que ela
seguramente me tiraria daquele grupo, mesmo Alberto não querendo.
Longe estava de mim, completamente afundado nas minhas
reminiscências, encostado no parapeito da proa, quando senti que alguém
colocou a mão na minha cabeça e disse: – Ô correge, andava a tua
procura! Mais uma lembrança se manifestou, era desta forma que o
Antônio me tratava, o sotaque, a voz eram parecidos, só que desta vez era
o padre que me perguntou: – Porque estás aqui tão solitário? Respondi: –
Estava conversando com os marinheiros, só que cada um foi
desempenhar a sua função. Em seguida ele me disse. – Como é lindo ver
a travessia do canal, não achas? – Sim senhor muito bonito, respondi.
Porém eu não estava olhando e nem queria ver. Em seguida me convidou
para ir ao comedor onde estavam todos reunidos e me convidaram para
tomar um cafezinho, junto com comentários e conversa até a hora do
jantar. Fiquei sabendo que as freiras e alguns padres davam aulas para
alguns jovens marinheiros, fiquei interessado em participar das aulas e fui
aceito de imediato e depois de um breve exame recebia aulas de segundo
ano primário, dias depois comecei a participar com alguns padres de aulas
de matemática, linguagem, ciências e geografia. A minha professora,
freira, me emprestava livros, que eu adorava ler e que se não fosse pelos
livros, a viagem seria monótona. Quanto tempo andamos não sei, só
lembro que o navio parou num porto, era madrugada, o frio era intenso, tal
era que não tive coragem de me levantar.
No dia seguinte quando o sol penetrava pela clarabóia me levantei,
vi que o porto estava a certa distância, coloquei o remédio nos olhos, fui
tomar café e em seguida estudar. Os dias se sucediam e eu aproveitava
para estudar o máximo que podia e feliz porque os olhos não estavam
incomodando.
À noite, antes de me deitar, praticava provas diferentes, no navio
ninguém sabia das minhas habilidades. O tempo passava, o navio andava
de noite e de dia sem novidades, sem algum acontecimento de
importância. Dias depois, quanto não me lembra, só lembro que começava
a escurecer e ao longe comecei a enxergar o brilho de pequenas luzes
dando a impressão de milhares de libélulas, eu estava enrolado até a
cabeça com cobertores de lã devido o frio, eu olhava de dentro do meu
camarote pela clarabóia e comecei a sentir saudades daquela tarde em
que me despedia do Gustavo no cais daquele porto e depois de algumas
horas de viagem comecei a ver aquelas pequenas luzes se aproximarem
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 324
do navio e no meio de uma tristeza por deixar aquela terra e aqueles
amigos que tão bem me trataram e tantos presentes me deram, também
sentia alegria porque estava voltando para minha casa, para minha terra,
para o lado dos meus, para a minha Colômbia, mas neste dia pensava o
contrário, mais me afastava dos meus e da minha terra e sem saber aonde
é que eu iria parar. Cansado de tanto olhar pela clarabóia, porém as luzes
tinham desaparecido, só se viam umas tênues sombras, dando a
impressão de serem torres de igrejas ou algumas chaminés. Vesti três
calças, três camisas e três pares de meias e com uma toalha enrolada
entre a cabeça e o pescoço me dirigi ao comedor onde o pessoal me
esperava com uma xícara de café com leite bem quente, não houve coisa
melhor para amortecer um pouco o tremendo frio, é claro que o comedor
era quentinho e era ali que recebíamos as aulas.
O frio
Um dia após uma noite bem dormida acordei com o barulho de
gritos, ronco de motores e uma certa vibração do navio, como de costume
corri para a clarabóia e vi que o navio estava atracado num porto e o
barulho era dos guinchos descarregando a carga que era colocada em
reboques e puxados por um trator e levados para um trem de carga que
estava a poucos metros do navio. Calculo que deveriam ser mais de vinte
vagões de carga, duas máquinas seriam necessárias para movimentar
aquele trem, as máquinas eram alimentadas a carvão mineral. Uma
máquina puxava na frente e a outra empurrava atrás, a seguir desta
máquina estava um vagão cilíndrico que transportava combustível e depois
estavam os vagões com carga.
Eu estava deitado, com três cobertores, e mesmo assim sentia
muito frio, estava arrependido de ter aceitado tal viagem, ou melhor, o tal
emprego, o sol ao invés de esquentar dava a impressão que era gelado. O
padre chefe apresentou-se com um casacão preto e pediu para eu vestir,
era grosso e pesado, as mangas eram compridas, sobrava quase 10
centímetros. Para não arrastar no chão foi necessário amarrá-lo na cintura,
se notava perfeitamente que aquele sobretudo pertencia a alguém alto e
gordo. Eu não sei o que parecia vestido daquela forma, com luvas pretas e
com um gorro que cobria até minhas orelhas, é claro que uma vez vestido
com o dito casaco ajudado pelos padres e freiras, cheguei a sentir calor,
em seguida o padre convidou-me para sair, naquele dia não tivemos aula.
Agora imaginem a minha dificuldade para descer as escadas com aquela
parafernália toda, aquele peso todo no meu corpo.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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No trem
Abandonamos o porto, nas ruas se viam vendedores de todo tipo
de bijuterias, chapéus, capas, roupas, sapatos, etc., havia de tudo, o
barulho era infernal, todos gritavam anunciando as suas mercadorias, as
ruas estavam molhadas, dando a impressão que tivesse chovido durante a
noite. As ruas não eram asfaltadas, eram de um pedregulho fino, agora
imaginem o barulho que se produzia ao caminhar de tanta gente, ao passo
das carroças, de cavalos, misturados com os gritos dos vendedores, era
um verdadeiro Mercado Persa.
Atravessamos no meio de toda aquela bagunça até chegarmos na
loja de um conterrâneo do padre, fomos bem recebidos por ele, pela
esposa, filho e filha, ele tinha um nome difícil de esquecer, Luiz Divino,
quando a jovem me viu vestido daquele jeito exclamou: – Coitadinho!
Pegou-me pela mão e foi me puxando para dentro da casa e me
desamarrando, tirando aquele peso do meu corpo. Em seguida me trouxe
uma geringonça que era chamada parky, sem me tirar a roupa me fez
vestir o tal parky. Que alívio ao me sentir livre daquele peso e por certo era
bem aconchegante. O padre entregou algumas encomendas, seguramente
vindas da Espanha, a seguir nos convidaram à mesa onde nos foi servido
um gostoso café com leite e bem reforçado, lembro a maneira carinhosa
que esta família me tratou, também os empregados, a conversa foi pouca.
Após o café nos despedimos e fomos cumprimentar o pároco da única
igreja existente, que também era seu amigo, a seguir fomos para um
hospital de crianças e por último visitamos um colégio dirigido por
religiosos. Às 14 horas estávamos de regresso. A bagunça da descarga
continuava, alguns padres dirigiam o lugar onde deveria ser colocada a
carga nos trens e em seguida deram informações para o padre, que era o
chefe, depois subimos no navio onde nos esperava nosso almoço. Uma
vez terminado, o padre foi descansar e eu fui dormir meus 10 minutos que
se prolongaram por meia hora.
Aquele barulho, aquela correria da descarga demorou quase uma
semana. Uma hora depois de terminada a descarga, nos mudamos para
os coches dormitórios, o padre teve o cuidado de escolher para que eu
dormisse na parte de cima do camarote e ele na inferior. As refeições
também passaram a ser no coche restaurante. Doze dias após a nossa
chegada nosso trem partia puxado por uma máquina na frente e
empurrado por outra na parte de trás. Apesar disto, a marcha do trem era
lenta, mesmo que a subida não fosse muito íngreme o pendente era
contínuo e para as rodas não patinarem, no centro dos trilhos havia uma
engrenagem que encaixava com outra que estava na máquina, tipo
cremalheira. No segundo dia da nossa partida o padre me deu um par de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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óculos bem escuros, me informou que em poucos dias veríamos neve por
todos os lados e olhar sem aqueles óculos poderia queimar a retina. Sem
nada a fazer lia bastante, eram livros que o padre me emprestava. Depois
de alguns dias de viagem, notei que não clareava, a noite era contínua, o
padre me deu algumas explicações a respeito deste fenômeno da
natureza, eu perdi a noção do tempo, não sabia quando era dia ou quando
era noite. Às vezes quando dormia escutava ruídos, gritos, risadas. Olhava
através dos vidros das janelas e notava que o trem não estava em
movimento, via gente se movimentando, carregando sacos, correndo, e os
depositando em galpões que estavam perto da estrada de ferro, depois de
algumas horas de bagunça e corre-corre o trem continuava sua monótona
marcha, eu ficava mais tempo olhando para fora, é claro que com os
óculos escuros não se via nenhum tipo de movimento, tudo era escuridão,
a neve parecia um lençol sujo de barro.
Na hora das refeições todos se reuniam no coche restaurante,
padres, freiras e civis, o único menor era eu. Antes do jantar era a hora da
oração. Uma vez era dirigida por um padre outra por uma freira, depois do
jantar se conversava, e quando o deus morfeu se manifestava, cada um se
despedia e ia à procura do seu camarote. Quase sempre eram as freiras, e
eu também era um dos primeiros a me despedir. De vez em quando o trem
parava e a bagunça começava, eu já não fazia caso, sabia que era em
lugares onde havia missões religiosas e as paradas eram para deixar
produtos para a manutenção do pessoal das missões. Às vezes me
acordava, não sabia se era dia ou noite, sentia fome, me dirigia ao coche
restaurante, na cozinha destampava as panelas e comia o que mais me
apetecia, esta atitude não era proibida, às vezes encontrava alguém na
mesma situação, eu às vezes comia comida quente, outras preparava um
sanduíche e comia acompanhado de refri, em seguida voltava para meu
camarote, procurava não fazer ruído, ia a passos lentos, ouvia cada ronco
que eu ria, alguns roncos eram acompanhados de assovios. Se a gente
prestasse atenção aos roncos acompanhados de assovios, todos juntos
davam a impressão de se escutar uma sinfonia com raros instrumentos. O
meu padre protetor também era um bom roncador, gostaria de saber como
era o meu ronco. Numa destas noites, subi para minha cabine, deitei, não
tinha vontade de ler, fechei a cortina, apaguei a luz e comecei a pensar na
minha família. Sentia-me arrependido de ter empreendido aquela aventura.
O ronco dos companheiros de viagem
Já fazia dias que aquele trem andava, andava e nunca chegava a
lugar nenhum, coitada da mãe que não sabia por onde eu andava. Fiquei
meditando um pouco e comecei a rir dizendo: Agora, que é bom aventurar,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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é bom mesmo! Um dia estarei contando para a mãe e para meus irmãos
os lugares por onde andei, os países que passei, as pessoas com quem
tratei, as amizades. Contar-lhes-ei a respeito desta viagem que nunca
termina, desta escura e longa noite sem saber quando vai terminar,
quando vai clarear, contar-lhes-ei que para poder olhar para fora do trem
tenho que usar óculos bem escuros, que não se vê gado pastando, não há
ruas nem gente, ao menos andando a cavalo, nem a pé, tudo que se
enxerga é neve, um imenso lençol branco, não se vê torres de igrejas nem
chaminés de fábricas espalhando fumaça. Um ronco forte acompanhado
de uma risada me chamou atenção, abri a cortina e vi que era o meu
vizinho de camarote, tinha a cortina aberta, acho que com o próprio ronco
tinha se acordado, me olhou e disse: – Oi! Respondi, tudo bem? Ele foi até
o banheiro e quando voltou ficou escutando o ronco do padre e me disse:
– Eta! Que o padrezinho ronca lindo! Eu não quis falar nada a respeito do
ronco dele, subiu no camarote e poucos minutos depois estava firme na
roncadeira. Fiquei pensando: Como é o ser humano, ele criticou o ronco
do padre sem se dar conta que o ronco dele era mais alto e ainda
acompanhado de risada. Não conseguia dormir, desci do camarote e me
veio a ideia de escutar o ronco de cada um para em qualquer oportunidade
imitá-los, claro que já me dava com todos, eram muito legais, todos
mexiam comigo e eu com todos.
Quem diria, um menor, vivendo uma eterna noite, esperando um
amanhecer que nunca chegava, indo num trem que andava e também
nunca chegava em parte alguma, dentro dele a mesma gente, os mesmos
cumprimentos, o mesmo horário para cada coisa, sem muito espaço para
andar, a não ser do coche dormitório ao coche restaurante e vice-versa,
rezar, comer, dormir e descansar sem estar cansado. Após o almoço eu
dormia os 10 minutos do Antônio, que ultimamente tinham se transformado
em horas e mais horas de sono, em nenhum outro lugar dormi tanto como
naquele trem. Lembro que quando passávamos do coche dormitório para o
coche restaurante, naquele pequeno trecho onde se uniam os dois vagões,
ao passar por ali o frio era intenso, entrávamos com nossas roupas
cobertas de gelo, sorte que o coche restaurante era bem quente e rápido o
frio desaparecia. Eu já não suportava mais aquela monotonia, não tinha
mais vontade de ler nem mexer com o baralho, não tinha vontade de fazer
nada, dentro daquela monotonia até o ruído do trem me incomodava,
ultimamente só tomava o café da manhã, almoçava e jantava, não fazia os
lanches intermediários como de costume.
Uma vez, no momento que estava tomando o café, chegou o padre
e me perguntou se eu gostaria de escrever para a minha família da
Colômbia, claro, respondi todo entusiasmado, em seguida me entregou
três folhas de papel pautado e alguns envelopes. Explicou-me como
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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deveria escrever o remetente e em um dos envelopes já estava escrito o
endereço para onde a correspondência deveria regressar. Fiz tal como o
padre me explicou, me aventurei e coloquei duzentos dólares e entreguei a
carta para o senhor Henry Mac. Senhor Mac era funcionário da viação
férrea, ele todos os dias e seguidamente frequentava todos os vagões,
tanto os nossos como os de carga, e até cuidava de algum gado que
também viajava em um vagão especial, também entrava nos banheiros, e
se alguém não tivesse dado a descarga, ele aproveitava para limpar, tudo
era feito de três a quatro vezes por dia. Sempre que nos encontrávamos
me cumprimentava fazendo alguma brincadeira. Quando lhe entreguei a
carta, ele leu o envelope, colocou sua mão na minha cabeça e disse: – Oh,
Colômbia! E continuou a sua tarefa.
A escura noite continuava. A monotonia era cada vez maior, eu
tinha vontade de fazer alguma coisa, mas não tinha o que fazer. O trem
continuava sua lenta marcha. “E o vento levou” foi o livro que conseguiu
me prender, imaginava aquela sociedade, ricos plantadores de algodão,
donos de muitos escravos, Margaret Michel caprichou de tal forma que eu
chegava a estar presente naqueles bailes e chegava a evidenciar o rosto
de Scarlet Ohara, que sacrificou seu amor e depois da guerra enfrentou a
pobreza com firmeza e com mão de ferro. Aquele livro me tirou daquela
misantropia, lia-o até pegar no sono. Uma vez, que tinha pegado no sono,
com a impressão de que sonhava, ouvia vozes, latido de cachorros, gritos,
ruídos de atritos com ferro, lentamente fui abrindo os olhos e vi que a
minha cabine estava toda iluminada, dei um salto e me levantei, feliz
porque pensei que tinha clareado, que era dia, mas não era, e sim a luz da
estação do trem. Olhei através da janela e vi que o trem estava parado e
na parte de fora tinha muita gente que descarregava o trem, uns levavam
caixas de papelão, também caixas de madeira, latas rolavam, também
daquelas de dois litros. Nunca tinha visto tanto cachorro, todos atrelados
nos trenós, muitos já estavam carregados e imediatamente partiam em
grupos de aproximadamente uns trinta trenós, sempre acompanhados por
dois ou três padres, era bonito ver aqueles cachorros puxando aqueles
trenós, era como se fossem cavalos puxando carroças. Enquanto uns
carregavam os trenós outros depositavam a carga num galpão grande e
bem iluminado que também servia de estação.
Viagem de trenó na terra do eterno gelo
Após me lavar e vestir, dirigi-me ao coche restaurante onde
encontrei o cozinheiro e o ajudante. Ao me ver, chamaram-me para tomar
café. Enquanto tomava perguntei o que era ali naquele lugar, e a resposta
que recebi foi: – Aqui terminamos a viagem de trem, daqui para frente não
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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tem mais trilhos. Olhei para fora e realmente, não havia mais trilhos, tudo
era só gelo e a noite continuava. Vestido com o parky fui saindo e olhando
para aquele infinito lençol branco, ali pelo menos se viam umas casas,
visitei algumas, me sentia melhor, com mais ânimo dando aquela
caminhada, embora por sobre a neve.
Ainda foram vários cafés, almoços, jantas e orações, até que
chegou o dia em que os que restavam partiram, porque alguns dos padres
companheiros foram para outras missões. Eu e os que ficaram partimos de
trenó, geringonça que nunca tinha andado. Nos acompanhavam calculo
que mais de duzentos trenós, todos carregados e puxados por cachorros,
que por certo eram cachorros muito bonitos. Depois de muitas horas
andando, olhei o relógio, e o padre que sempre ia à frente num trenó vazio,
e eu a seu lado, mandou parar, primeiro todos reunidos, padres, freiras e
nativos rezamos, em seguida foi servido o jantar que já vinha pronto noutro
trenó exclusivo para este fim e com fogareiros à base de querosene. Após
o jantar e um pouco de conversa e brincadeiras, cada um foi se
acomodando no lugar já previsto de seu respectivo trenó. Depois de ter
dormido um bom sono me acordei com o barulho dos cachorros, que
tinham sido desatrelados dos trenós e alimentados e agora estavam sendo
atrelados novamente, tarefa que faziam com muita eficiência os nativos.
Tudo pronto e após tomar o café partimos, sempre sob aquela escuridão
da noite eterna, que até hoje lembro.
Foram muitas as paradas para comer e dormir e muitas horas que
andamos até chegar ao prédio das missões, que assim era chamado por
todos. Na nossa chegada saía gente de tudo quanto era lado, eram
padres, freiras, professores, alunos. Nos recebiam com muita alegria, é
claro que o pessoal que vinha no trem, a maior parte era dali mesmo da
missão. Os trenós eram descarregados pelos nativos com muita bagunça,
todos ajudavam, homens, mulheres, eu só observava, não entendia nada.
Fui apresentado para todos os presentes, duas freiras me mostraram o
prédio por dentro, inclusive a igreja, por último me levaram ao quarto que
me tocaria, tinha cama, guarda-roupa, mesa, um sofá e duas cadeiras,
banheiro, onde o chuveiro tinha água quente, luz elétrica, toda
comodidade, como em qualquer hotel de luxo.
Desta minha permanência nesta missão não tenho muito a contar.
Dias depois da chegada me designaram um serviço que era por turno, e
não era sempre o mesmo. Um engenheiro elétrico era o chefe geral, era
da Costa Rica, me mostrou todas as instalações, para o fornecimento de
luz elétrica tinham três geradores grandes, que ficavam funcionando
durante dez dias seguidos, depois eram desligados e eram ligados outros,
e assim sucessivamente. A água era do próprio gelo, através de uma
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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caldeira alimentada à base de lenha. O prédio era de aproximadamente 80
metros por 30 metros, tudo era aquecido através de uma tubulação de
chapa, tudo era bem organizado, todos tínhamos nossas tarefas a cumprir,
que em determinado tempo trocávamos.
A rotina na Missão
Aos domingos era rezada a missa que todos assistíamos, o que
nunca pude saber de onde era que vinha tanta gente para assistir a missa,
a parte de fora ficava cheia de trenós. Eu digo aos domingos porque as
missas quase sempre são aos domingos, porém, na realidade, não sabia
se era domingo ou que dia era, vivia desnorteado com aquela noite que
nunca clareava. Como existia falta de pessoal para cumprir todas as
tarefas, eram utilizados aqueles esquimós que já estavam civilizados.
Lembro que quando recém cheguei encontrei crianças esquimós
choramingando continuamente, me informaram que nos primeiros dias,
quando elas chegavam, eram assim mesmo, até se adaptarem, melhor
dito, para se tornar civilizadas. Um dia, na minha hora de descanso, eu
dormia, quando alguém bateu na minha porta gritando: – Ortega, acorda,
vem ver. Quando abri a porta vi o Delfin, um funcionário antigo na missão,
que ultimamente tinha se tornado meu grande amigo, era australiano e
tinha se criado naquela região, tinha chegado com os pais muito criança,
ele me pegou pela mão e disse: – Vem, vem ver! Saímos correndo, lá fora
os esquimós estavam numa espécie de rito, todos eles, pequenos, jovens,
adultos, idosos. Não era para menos, fiquei posso dizer de boca aberta,
nunca tinha visto espetáculo mais lindo. O sol parecia se esconder atrás
do globo terrestre, dando a impressão que seu diâmetro era de uns 30
centímetros, só mostrava a terceira parte, seus raios, em contraste com a
neve, formava uma extensa gama de cores belas, nunca vistas. Não
estava totalmente claro, era um amanhecer divino, me sentia feliz por ver
tal maravilha, e agora não me sentia mais arrependido de estar ali,
suportando aquela longa e interminável noite, ao contrário, sentia um
grande júbilo por estar lá. Quantas milhares de pessoas gostariam de
observar aquela beleza e eu tinha este privilégio.
Delfin, observando a minha emoção, disse: – A este fenômeno se
dá o nome de Aurora Boreal, agora daqui para frente não vamos ter mais
noite, só será dia! Antes de clarear totalmente chegaram vários trenós com
mercadorias, também traziam muita correspondência, entre elas uma carta
para mim, era a mãe que me escrevia, me agradecia pelos duzentos
dólares que tinha lhe mandado. Fiquei feliz ao saber que tinha recebido a
minha carta, quando li a data de envio vi que faltavam poucos dias para
completar três meses da mãe ter me escrito. Depois de ter lido a carta
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continuei me sentindo arrependido de ter fugido da companhia e não ter
me queixado para Estela. Aqui neste lugar onde me encontrava não tinha
nenhuma chance de fugir, não sabia para que lado pegar nesta imensidão.
Todo o pessoal que recebeu carta começou a escrever, eu também fiz o
mesmo, coloquei cem dólares, e como todos, entreguei para o mesmo que
me deu a carta. Estava tomando café quando o padre chegou à mesa
onde eu estava, vinha junto com Delfin, o australiano, e o padre me disse:
– Ortega, tu vais ter que ir com Delfin para trazer umas crianças esquimós
que já nos foram prometidas, eu não entendia, mas obedeci. Após alguns
cafés, almoços, orações e jantares, o trenó pronto com mantimentos e
demais coisas, vestidos com nossos parky Delfin e eu partimos. Vi que era
bastante a quantidade de mantimentos que levávamos, comidas prontas e
cruas, querosene, fogareiros, várias garrafas térmicas com café e bastante
comida para os cachorros. Delfin conhecia aquela região como a palma de
sua mão, eu não sentia nenhum tipo de emoção, depois de algumas horas
de viagem olhei para trás e da missão só se via um pedacinho do telhado,
nada de casas, nada de gente, só aquela imensidão de gelo.
Aventuras no País dos esquimós
Enquanto avançávamos, conversávamos, Delfin me contava que
tinha chegado muita criança, tinha vindo com os pais, que vieram para
garimpar ouro, que naquela época havia muito. A notícia do ouro tinha se
espalhado por toda Europa e tinha vindo uma quantidade de europeus, de
diferentes países atrás dessa riqueza, muitos voltaram para seus países
cheios de ouro, outros gostavam de jogar e às vezes perdiam todo o ouro
que tinham conseguido, muitos gostavam da cachaça, os comerciantes se
enriqueciam cobrando a cachaça a preço de ouro, alguns bem bêbados
tentavam ir para suas moradias e sem conseguir ficar em pé, caíam na
neve e ali morriam congelados. Contou-me que o pai dele tinha sido morto
por um esquimó porque ele dormiu num iglu e não quis possuir a mulher
do esquimó, dono da casa, me explicou que é uma grande ofensa não
possuir a mulher do dono da casa. Eu lhe fazia muitas perguntas e ele me
respondia, me explicava, e foi por estas geleiras que comecei a me
orientar e foi por estas geleiras que comecei a dar os primeiros passos na
vida sexual.
Delfin me ensinou muitas coisas de como viver naquelas
temperaturas de até 30 graus abaixo de zero me ensinou a beber aquele
óleo de foca, que no começo não conseguia engolir, aquele líquido grosso
e com paladar para mim desconhecido e pensar que com o passar dos
dias, aquela bebida era uma necessidade para o meu corpo. Depois de
muitas horas de estarmos andando, os nossos relógios marcavam 14
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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horas, Delfin decidiu que deveríamos parar, nos alimentar e alimentar os
cachorros. Primeiro os desatrelou e alimentou-os, enquanto eu arrumava o
lugar onde deveríamos comer. Feita a refeição, descansamos alguns
minutos e continuamos. Nas explicações que o Delfin me dava, disse que
os esquimós gostavam de ter muitos filhos, para ajudar na caça de
coelhos, na pesca, e em tudo que se referia à alimentação, também me
dizia, por exemplo, que se uma esquimó ficasse viúva e com mais de dez
filhos, facilmente conseguiria se casar de novo, ao contrário de uma
esquimó com quatro ou cinco filhos, que dificilmente conseguiria marido, a
não ser que aparecesse um viúvo com uns doze ou quinze filhos, se
juntassem, e a prole continuasse crescendo. Às 20 horas encontramos o
primeiro iglu, Delfin encostou o trenó bem perto da porta, desatrelou e
alimentou a cachorrada, em seguida pegou pratos e panelas e foi entrando
no iglu sem cumprimentar e nem pedir licença, o fogo estava aceso, o
fogão estava no chão, era feito de pedra e forrado com barro. Delfin foi
colocando as panelas para aquecer a comida. O iglu era bem amplo, lá
dentro estava a mulher esquimó, que nos olhava e sorria, havia mais cinco
crianças entre um e cinco anos, todos dormiam, não em camas, estavam
numa espécie de tarima, não existia qualquer tipo de mobília. Toda tarima
era forrada por peles de urso, peles de coelho, penas de favegam e talvez
outros bichos, todos estavam colocados em cima da tarima, feita de galhos
de árvore. A tarima chegava perto de onde estava o fogão, e dum lado
deste estavam penduradas carnes e peixes. Lá dentro o fedor era
insuportável, era fedor de fumaça, de peixe e de carne podre. Delfin me
explicara que eles quando caçavam os bichos, tiravam a carne e as
vísceras para se alimentar, e os couros, os colocavam na tarima, e claro,
com o calor produzido pelo fogo aceso dia e noite, e o calor do corpo, os
couros apodreciam, porque não eram lavados e nem curtidos. Ele também
falou que era bom ir se acostumando àquele fedor, porque em todos os
iglus que entrássemos, o fedor seria o mesmo, às vezes até pior. Notei
que a tarima era bem feita, a madeira bem trançada. O iglu, que também
era feito de galhos e forrado com pele de foca, era tão bem forrado que o
gelo da parte de fora derretia com o calor interno, não entrava um pingo de
água. Por fora do iglu era só gelo, a porta era de pele de urso pendurada
ao centro e ficava como uma porta giratória, tudo parecia bem feito e feito
para durar.
Quando já tínhamos terminado de comer e o Delfin estava
organizando tudo no seu lugar, escutamos uma bagunça e várias falas
raras, era o esquimó dono da casa com oito filhos, uns traziam arapucas e
outros peixes e bichos mortos que tinham caçado, ou melhor, pegado nas
arapucas, todos nos olhavam e sorriam. Eu calculo que os bichos mortos
eram três, eles já tinham tirado a carne, que foi pendurada junto com a
outra e os couros foram jogados na tarima. Notava-se que a gurizada
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estava com fome porque cada um foi pegando um pedaço de carne que
estava pendurada e colocavam dentro do fogo e em seguida a tiravam e
comiam igual a pedaços de peixe e bebiam óleo de foca a vontade, depois
todos foram deitar-se. A mulher do esquimó deitou bem longe de todos,
até do marido, o Delfin me levou perto dela e disse: – Agora o negócio é
contigo, para nós sairmos vivos daqui quando nós acordarmos. É claro que
para evitar problemas, eu quebrei o galho, e muito satisfeito com minha
primeira experiência. Com a canseira das horas anteriores, digo horas,
porque eu não conseguia me orientar com facilidade quando era dia ou
quando era noite, porque agora era tudo ao contrário, sempre dia, a noite
não se manifestava, continuava com a canseira da viagem e com a
canseira da esquimó, que me acordara calculo a cada duas ou três horas.
Dormi oito horas, me sentia descansado, Delfin já tinha pronto o
café, me serviu e me olhava com malícia e eu só ria. Os padres tinham
mandado umas caixas com bolachas doces e salgadas, pão e muito peixe
seco, a gurizada estava grudada no peixe e no pão, sempre acompanhado
do óleo de foca. Num canto e alheia a tudo estava uma das crianças
esquimó, não participava da algazarra dos outros, estava chorando,
deveria ter uns doze anos. Depois de tudo organizado no trenó e os
cachorros atrelados, o esquimó falou alguma coisa para a criança chorona
e ela subiu sem nenhuma resistência no trenó, porém sempre chorando,
tudo pronto, partimos.
No caminho, enquanto conversávamos, o Delfin sempre me falava
a respeito da forma de vida dos habitantes daquelas regiões geladas. A
criança não parava de choramingar, de vez em quando Delfin lhe falava na
língua deles, parecia que lhe falava algo carinhoso, a criança nem fazia
caso, só choramingava.
No meio da conversa, perguntei para o Delfin porque ele não pediu
licença para entrar no iglu e nem cumprimentou ninguém, ele me
respondeu que na língua esquimó não existiam essas palavras, que a
linguagem deles era muito reduzida, ele me disse que a língua era o INUI,
mas não me disse como se escrevia. Perguntei por que levava o menino,
me respondeu que era para alfabetizá-lo, que muitos dos rapazes que
estavam nas missões tinham ido da mesma forma, choramingando, e que
hoje muitos deles eram professores ali mesmo, alguns falavam até
espanhol e inglês. Um dos padres ali nas missões era esquimó e na
Espanha estavam vários seminaristas e alguns até eram ordenados
padres. Também tinha meninas freiras e outras estudando, e nas missões
por onde passamos quando ainda era noite, havia muitos padres e freiras
esquimós. Soube também que muitos esquimós eram casados com gente
de sua raça ou de outras raças, mas tinham aprendido que sua esposa só
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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deveria ser tocada por eles, e elas por sua vez tinham aprendido a
respeitar seus maridos. Na missão também havia casais esquimós que
eram professores, lutando por modificar a mentalidade dos da sua raça e
da vida primitiva.
Os nossos relógios marcavam 13 horas quando chegamos a outro
iglu. Quando o Delfin encostou o trenó no iglu, ouvimos alguém que
começou a chorar, ao entrarmos, tinha qualquer quantidade de crianças,
soube que estavam fabricando arapucas para pegar bichos, faziam pontas
numas madeiras compridas, segundo me disse Delfin, para caçar ursos.
Uma coisa que me chamou muito a atenção é que, só hoje, e depois de
tantos anos, compreendo perfeitamente a explicação que Delfin me deu,
foi a seguinte: que os esquimós não matavam um urso fêmea quando ele
ia com o filhote e muito menos quando estava prenha, o que eles
gostavam de enfrentar era o macho, era mais que tudo por isso que
gostavam de ter bastante filhos, porque quanto mais lanças eram jogadas
contra o bicho, mais rápido era dominado, não gostavam de matar fêmeas.
Eu sabia que era ali que íamos almoçar e peguei as viandas com comida
que, diga-se de passagem, estavam sempre congeladas. Entramos, não
havia nada de diferente do primeiro iglu, o guri esquimó pegava carne,
peixe e colocava no fogão por pouco tempo e comia e bebia óleo de foca
sem pedir licença para o dono, nós lá no trenó fizemos nossa refeição, o
menino quando terminou de comer e beber, sempre choramingando, foi ao
trenó e se sentou no seu lugar. Tudo pronto Delfin entrou no iglu e saiu
com a criança que tinha começado a choramingar, subiu no trenó e agora
eram duas choramingando. A nossa viagem continuou, o que não
conseguia entender era como que o Delfin se orientava naquela imensidão
de gelo onde não havia caminho algum, estrada, nem sinalização, quando
lhe perguntava a respeito ele me respondia: – É fácil você aprenderá.
Teríamos andado umas quatro horas, os relógios marcavam 19 horas.
Delfin acendeu três fogareiros que levávamos, em um colocou peixes, que
os meninos sem falar e sem parar de choramingar e sem pedir, iam
pegando e comendo, comiam pão e bebiam óleo de foca que também
tínhamos levado e não se congelava. Eu também, após comer, tomava um
caneco de óleo, me sentia bem, uma espécie de calor por dentro, gostoso,
parecia que tirava o cansaço do corpo. Outra coisa que me chamou a
atenção é que quando parávamos, Delfin soltava os cachorros e os
alimentava, em seguida eles se deitavam e dormiam. Mal sentiam Delfin
se mexer, todos em uníssono se levantavam, mexiam o rabo, o corpo, as
orelhas, demonstravam alegria, parecia que sorriam, à medida que cada
um era colocado no seu lugar iam ficando quietos. A chegada no próximo
iglu foi mais ou menos às 22 horas, claro estava dia. As crianças entraram,
pegaram carne, peixe, botaram no fogo, comeram e beberam e depois se
deitaram junto com uma quantidade de outros meninos que dormiam e que
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nem se acordaram. Os únicos que se acordaram foram o casal e uma
esquimó bem velhinha, os três nos olharam e só sorriram, como que
felizes pela nossa chegada, pela primeira vez ouvia Delfin em uma longa
conversa com o dono da casa e na língua deles. Como no primeiro iglu, a
mulher se deitou bem retirada de todos, primeiro deitou a velhinha, o
esquimó a cobriu com uma pele grande de urso, deveria ser de vinte ou
mais ursos. Ela era intocável, segundo me explicou depois Delfin. Como o
esquimó via que éramos dois homens, podia ser que um quisesse ficar
com a velhinha e o outro com a mulher. Delfin após longo tempo me fez
sinal para ir me deitar com a esquimó, que sacrifício, fui para lá, a única
coisa que não era muito agradável naquele romance era que o cobertor
era grande e era feito de tudo que era pele de animal, era pesado. O pelo
era para o lado da gente, a esquimó pegava esse peso até a cabeça e era
como ficar dentro de um forno, mesmo peladão suava como atleta em
maratona, esta esquimó se portou um pouco melhor, só me acordou pelas
5 horas, quando eu acordei faltava pouco para às 8 horas. Delfin já estava
com o café pronto e bem quente. Ao sair, o próprio esquimó entregou para
Delfin uma menina que deveria ter de doze a quatorze aninhos, quieta,
humilde, resignada, sem choramingar subiu no trenó. Delfin sempre
entregava duas caixas grandes com mantimentos para o esquimó. Ao sair
dali Delfin me disse: – Nós estávamos viajando no sentido oriente, agora
vamos pegar para o norte. Teremos que entregar mantimentos para um
casal que deverão ser pais pela primeira vez, eles fizeram seu iglu nas
proximidades de um pequeno bosque. Mesmo choramingando, num
determinado momento, um dos meninos gritou na língua deles, falou algo
que eu não entendi. Delfin parou o trenó, os dois guris e a guria desceram
correndo, olhando para baixo à procura de alguma coisa, um deles botou a
mão numa pequena poça d’água e tirou um peixe preto, tentou novamente
e tirou mais um, a menina e o outro guri também pegaram noutras poças.
Eles com Delfin falavam, mas eu nada entendia, como já estava na hora
do almoço Delfin acendeu os fogareiros e os fritou, todos nós comemos, a
viagem continuou. Não encontramos mais nenhum iglu, na hora do jantar
Delfin preparou tudo no próprio trenó, após o jantar a gurizada pegou no
sono, nós também nos acomodamos e dormimos, horas depois e após
tomar café, a marcha continuou. A propósito, eu escovava os dentes e
lavava a boca com gelo, segundo Delfin, era melhor do que usar água
quente. Poucas horas depois chegamos na casa da parturiente, só ele
entrou no iglu e entregou as caixas e já partimos, uma hora depois
chegamos noutro iglu, foram entregues duas caixas e pegamos mais um
guri também chorão, agora eram três chorões, só a menina era bem
comportada e caladinha. Ao sairmos do iglu Delfin disse: – Agora vamos
para casa. Às vezes Delfin dava um grito para os cachorros na linguagem
esquimó e os cachorros pareciam gostar de ouvir aquele grito.
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Era minha primeira viagem e não conhecia os fenômenos que a
qualquer momento se manifestavam naquele país gelado. Eu estava
querendo dar uma cochilada quando ouvi a menina falar em voz alta,
olhava para o firmamento, olhava para o Delfin como querendo lhe dar um
alarme, ele parou o trenó e começou a desatrelar os cachorros, a gurizada,
sem Delfin dar ordem alguma foi pegando cada um uma pá, inclusive a
guria, e rapidamente começaram a fazer um buraco na neve, eu ficava de
boca aberta vendo eles, da forma ligeira com que abriam aquele buraco,
eu não entendia nada e ficava pensando: como é que eles sabiam onde
estavam as pás? Desatrelados os cachorros, Delfin começou a tirar umas
peles de urso que, ao contrário das dos esquimós, estas estavam bem
branquinhas, macias e cheirosas. Também tirou um rolo de pele de foca,
eu ficava pasmo de ver aquela gurizada, do jeito que trabalharam, abriram
aquele valo sem fazer uma pausa, não lhes via nem respirar. Pronta a
vala, que era de aproximadamente uns 2 metros e 50 centímetros de
comprimento por mais ou menos 1metro e 20 centímetros de largura e
poderia ter 1 metro e 20 centímetros de profundidade.
Tudo foi feito com rapidez, todos ajudaram Delfin a colocar o trenó
em cima da vala, as peles de urso foram colocadas dentro da vala no
fundo, e as peles de foca foram penduradas no trenó de forma a cobrir as
paredes do buraco, outras peles foram colocadas como teto. Tudo
organizado, os cachorros foram colocados dentro do buraco, a gurizada
deixou as pás deitadas com a maior parte para fora e o cabo para dentro,
e por último nós nos acomodamos da melhor forma lá dentro, o calor que
os cachorros transmitiam dava a impressão que estávamos com uma
lareira acesa. Como a pele de foca é parecida com plástico transparente,
embora um pouco difuso podia se ver o céu, em determinado momento a
menina olhou para cima, gesticulou algumas palavras, Delfin olhou e
seguramente na língua deles e no movimento da cabeça entendi que lhe
confirmava, até esse momento nada entendia, só vim a entender quando
deu a impressão de escurecer, em seguida uma ventania fazia tremer o
trenó e segundos a seguir começou uma tempestade de neve, de vez em
quando Delfin se levantava e mexia com a pá, me explicou que era para a
entrada de ar, caso contrário morreríamos asfixiados.
Depois de uma meia hora tudo passou, a menina foi a primeira a
se levantar, seguida por Delfin. Desmontar tudo e tapar o buraco foi fácil e
rápido, e já estávamos de novo a caminho, fizemos várias refeições e
algumas vezes dormimos no trenó até chegar à missão. Nesta viagem
notei que a menina era muito esperta e que saberia sobreviver a qualquer
circunstância naquele Ártico.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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O retorno da 1ª missão e novas viagens
Foi grande a euforia manifestada por todos quando da nossa
chegada, queriam saber de tudo, e do meu comportamento. Estavam
curiosos e a maior parte das perguntas eram a meu respeito. Delfin
respondia, sempre me enaltecendo. O relatório que ele apresentou da
viagem deixou os padres satisfeitos, só que no relatório não falava que
quem dormia com a mulher do esquimó era eu, é claro que a esse respeito
não se falava, porque justamente este costume os padres estavam
tentando terminar. Pelo que fiquei sabendo, entre ir e voltar, a nossa
viagem demorou oito dias. As crianças que vieram conosco foram
apresentadas às outras crianças já acostumadas com a disciplina
sacerdotal, brincavam, tomavam banho, escovavam os dentes,
estudavam, cantavam e rezavam. Os meninos que trouxemos continuaram
choramingando, ao contrário da menina, que com facilidade se
acostumava à nova vida.
Alguns dias depois me tocou a portaria, o plantão era de seis horas
seguidas, descansava seis horas e tornava a pegar, foi assim durante uma
semana, depois mudava para outra tarefa. No terceiro dia do meu plantão
apareceu o padre chefe para conversar comigo, e num momento oportuno
me disse que depois de terminar o plantão eu não precisava cumprir
nenhuma tarefa, que era para descansar porque em uma semana
sairíamos com Delfin para trazer quatro crianças já oferecidas pelos pais,
esta notícia me deixou muito feliz, contava os dias.
Chegado o dia partimos, no caminho, como dantes, Delfin me
contava da vida e dos costumes dos esquimós, que ele conhecia de cor.
Perguntei como poderiam saber quando deveriam pegar as crianças, a
resposta foi que a maior parte dos padres já conhecia quase todos os
habitantes, mesmo ficando longe o seu iglu. Algumas vezes os padres
saíam a pedir as crianças para catequizá-las e após algumas negativas, o
esquimó cedia, só que daria a criança passadas determinadas
quantidades de luas, controle que os padres faziam e sabiam que os
esquimós cumpririam a promessa e que mesmo tendo vinte filhos, só
dariam um, e que seria aquele que tivesse tantas luas, mesmo sendo
menina. Eu era o companheiro predileto do Delfin. Foram muitas viagens
que fiz com ele, por último ele não precisava me levar ao lado da esquimó,
eu já sabia o meu lugar para dormir e tinha aprendido a suportar o calor
“arroupado” com aquele couro grosso de urso e também estava
acostumado às acordadas que as esquimós faziam durante o sono, já não
sentia mais aquele fedor de carne podre, de peixe misturado com fumaça,
bebia óleo de foca com o maior gosto, eu já tinha até aprendido a guiar o
trenó e me guiar pelo firmamento naquela imensidão de gelo. Parece
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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mentira, qualquer coisa serve de referência para a gente se guiar. Às
vezes Delfin cochilava e eu assumia as rédeas, me dava a impressão que
o cachorro chefe não gostava quando isso ocorria e emitia uma espécie de
ranço, mas não parava, continuava firme dando exemplo para o resto dos
cachorros. Sempre que saíamos, demorávamos de cinco a oito dias,
dependendo dos meninos que era para trazer, às vezes eram dois ou três,
as distâncias, na realidade, não eram tão longas entre um iglu e outro, o
que tornava demorado era a neve, porque tinha lugares onde ela era mole
e o trenó era grande e quase sempre levava caixas com alimentos para
entregar às famílias de esquimós. A nossa marcha era lenta e por isso a
demora de chegar de um lugar a outro. Um detalhe muito importante que
descobri nos esquimós desta região é que eram muito inteligentes para
mecânica, eles descobriam qualquer defeito que se manifestasse nas
máquinas, sem nunca ter estado em oficina mecânica nem ter visto
alguém consertar motores. Lembro que uma vez o relógio do Delfin parou
de funcionar e um dos rapazes esquimó pegou o relógio e o desmontou
totalmente, olhando peça por peça, no fim descobriu que uma das
engrenagens tinha formado uma pequena protuberância, como não tinha
uma lima adequada, pegou uma faca e raspou até a peça ficar lisa, em
seguida, como alguém com muita experiência em relojoaria, montou-o
novamente e o relógio ficou funcionando perfeitamente.
Uma outra vez tivemos de sair levando dois trenós, um levava
Delfin e o outro eu. O motivo era que íamos à procura de quatro meninos e
duas meninas, desta vez estávamos indo ao sentido oeste, após andar
umas seis horas encontramos um iglu bastante diferenciado dos
anteriormente encontrados, este era bem grande, o diâmetro era quase o
dobro dos outros, idem na altura, a porta era bastante ampla, mas nada a
cobria. Paramos, Delfin me convidou a entrar, não tinha ninguém. Como
todos os iglus, na parte de fora estava coberto de neve, no interior e no
centro havia um buraco retangular de aproximadamente 3 metros de
comprimento por 2 metros de largura e talvez 1 metro de profundidade,
estava cheio de galhos de árvores, tantos que chegava a ultrapassar a
altura do buraco. Delfin é claro, notando a minha curiosidade, começou a
me explicar dizendo: – Este é o lugar onde tomam banho os esquimós, o
banho é feito numa determinada lua, durante todo tempo, antes da lua do
banho, cada um vai trazendo galhos e os vai colocando aí. Chegado o dia
do banho, se reúnem e começam a cantar e a dançar em volta do fogo, só
participam os homens, todos completamente nus, as mulheres só são
espectadoras, as crianças também não participam. A dança é composta de
canto, pulos e arabescos, o calor aqui dentro fica infernal, os homens
suam, lhes corre água por todo corpo e em determinado momento saem
correndo e se atiram na neve, rolam nela e voltam para dentro e continuam
pulando, gritando e dançando. Por causa deste tal banho, algumas
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 339
mulheres ficam viúvas, quando não são duas ou três, devido ao choque
térmico o coração não resiste e ali mesmo na neve morrem. Ninguém se
preocupa e a dança continua.
Sempre que retornávamos à missão, ficávamos aproximadamente
uns quinze dias sem sair e nosso serviço na missão era pouco e leve,
examinávamos o trenó, cuidávamos dos cachorros, nos reuníamos com os
padres para nos informarmos dos iglus que deveríamos ir para buscar
crianças. Informavam-nos se a meta para completar o grupo de crianças
que deveríamos trazer estava ainda longe de completar, e também sobre
outros padres que andavam a procura de conquistar pais para mandarem
crianças com o propósito de educá-las e serem catequizadas.
O conflito da liderança canina
Uma vez, quando voltávamos com duas crianças, uma menina e
um menino, eu notei que o cachorro chefe, na maior parte da viagem ia
grunhindo. Delfin lhe dava um grito, lhe falava na língua esquimó e ele
parava, mas poucos minutos depois continuava. No retorno, quando
vínhamos com as crianças, os grunhidos eram mais fortes, contínuos e até
com latidos. De pronto o trenó parou, o cachorro chefe se virou e se
avançou diretamente para o cachorro da sua esquerda e se formou uma
tremenda briga. O trenó virou, nós quatro voamos longe, algumas coisas
que não estavam bem amarradas também saltaram para fora do trenó, a
guria foi a primeira a se levantar e correu até o trenó, pegou umas hastes
de madeira que tinham um gancho numa das pontas, enganchou o
cachorro, segundo fizera o Delfin, que também tinha pegado outro gancho
igual e enganchado o cachorro dianteiro e puxado para frente. A menina
puxou o segundo para o seu lugar, enquanto o menino batia naqueles que
não queriam terminar com a briga. Os três gritavam em tom ameaçador
para os cachorros. Como não tinha acontecido isto antes, eu não entendia
nada, só ficava olhando. Quando tudo ficou calmo, começamos a recolher
as coisas, a endireitar o trenó e continuamos a marcha. Como não tinha
visto tal briga antes, perguntei para o Delfin, que com sua calma
característica começou me dizendo que era porque os cachorros iam
subindo de grau como os militares e que todos queriam chegar a ser
cachorros dianteiros, ou chefe, como eram chamados, e eles sabiam
quando já estavam aptos para essa chefia, então faziam de tudo para
sabotar a direção do chefe até obrigá-lo a brigar. Sabiam que se este
ficasse sem condições de continuar, então o segundo assumiria a chefia, e
no caso de nada acontecer, o chefe continuaria e o segundo se resignaria
a esperar sua vez, era isso que tinha acontecido. O segundo queria
derrubar o chefe para assumir a chefia. Interessante, soltos eu nunca os
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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havia visto brigarem, comiam, dormiam, corriam na neve e pareciam
felizes quando eram atrelados ao trenó.
A temperatura era de aproximadamente cinco graus abaixo de
zero, dentro daquela roupa o calor era insuportável e se a gente tirasse
alguma peça não aguentaria o frio. O sol era quente, o corpo coçava todo,
a neve ficava mole, às vezes se escutavam ruídos fortes, eram blocos de
gelo que se desprendiam, não eram pequenos, calculo alguns com 10
metros de largura por uns 20metros de comprimento, saíam a toda
velocidade lomba abaixo. Lembro que na primeira viagem que fiz com
Delfin, o meu nariz fluía bastante devido ao frio porque eu não estava
acostumado. Eu carregava vários lenços para me limpar aquele fluxo. Eu
sei que o que vou contar muitos não vão acreditar, vão até achar que
estou exagerando, não sei qual a necessidade de mentir, acreditem ou não
acreditem, continuo. Eu carregava três lenços, como o fluxo era contínuo,
me limpava, guardava o lenço, porém o fluxo era quase que contínuo e
não conseguia me limpar a terceira vez porque o lenço ficava congelado,
solucionei o problema levando papel higiênico.
A saudade decide
Ficava olhando aquela imensidão e pensava na minha família,
estava tão longe da minha casa, perdido naquele mundo raro, e se
adoecesse, será que me curariam? Se por uma fatalidade morresse, não
seria rápido e fácil avisar para a mãe. Seguramente seria enterrado por lá
e talvez a mãe não ficasse sabendo onde havia morrido e nem onde
estava enterrado.
Invadia-me uma certa tristeza, pensava: daqui não é tão fácil fugir.
Ficava pensando: e porque fugir, todos me tratam tão bem, o padre,
quando era fim de mês me pagava os cem dólares prometidos, não
gastava em nada, para mim as viagens pela neve não me cansavam, ao
contrário, gostava, e ainda mais quando nos tocava dormir nos iglus, era a
minha maior felicidade. Para ver se me mandavam num hospital em uma
cidade que passamos na vinda, pensei em me fingir de doente, gemer,
gritar de dor e se me dessem algum comprimido, faria de conta que
tomava e depois jogaria fora. Sozinho no meu quarto treinava como
deveria fingir, mas não tive coragem, não fiz. Ouvia rumores de que a noite
se aproximava e que as nossas viagens seriam esporádicas.
Certa vez nos mandaram trazer dois meninos, tivemos que levar
bastante comida porque a viagem seria demorada, pois a neve estava
muito mole, e ademais, os iglus onde moravam as crianças eram um
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 341
pouco longe. Medo não sentia, no caso de qualquer circunstância, saberia
voltar. Delfin era um super e grande conhecedor de cada quilômetro
daquele lugar. Saímos, pegamos as crianças e voltamos, como todos
outros, estas também choramingavam. Fiquei sabendo pelos padres que
tínhamos demorado dez dias. Como sempre, na nossa chegada à missão,
éramos recebidos com muita alegria, recebíamos abraços dos padres, das
freiras, das funcionárias e funcionários, eram sorrisos por todos os lados e
cumprimentos. As esquimós, que quase já eram professoras, pegavam os
novos meninos, que chegavam choramingando, e com a técnica que
tinham, faziam calar os chorões em poucas horas. Paravam de chorar e
em poucos dias via-se eles correndo e brincando com os outros meninos e
junto com seus professores.
Um dia após o retorno de uma viagem o padre me pediu para eu
dar uma chegada no escritório. Uma vez lá, me entregou uma carta
enviada pela minha mãe em resposta à que eu tinha lhe enviado. Com
aquela ansiedade por saber dos meus, rasguei o envelope e comecei a ler.
Um pouco mais calmo no momento que a mãe me dizia: – Filho, já está na
hora de você se apresentar ao serviço militar, seus irmãos já cumpriram
seu dever para com a pátria, agora chegou sua vez. Filho, trate de
apresentar-se antes do fim do prazo, para no futuro não ter problemas com
as autoridades. Fingindo ter ficado triste, entreguei ao padre para ele ler. O
meu pensamento era que ele iria me dizer: não, isso para ti não é
necessário, tu não estás lá, ou ia me dizer algo parecido. Tratei de pensar
na resposta que daria, mesmo que fosse com grosseria, só que foi tudo ao
contrário, ele ficou de pé e me disse: – Meu filho, vais ter que ir cumprir
com esse dever pátrio que a todos nós toca, eu sendo seminarista tive de
fazer o serviço militar. Falo-te com sinceridade, nos fará muita falta, todos
vamos sentir a tua ausência, imagina o Delfin quando lhe informarmos da
tua partida, ele que te acha o máximo, sempre fala que tu tens sido seu
melhor companheiro, que outro igual iria ser muito difícil. O padre foi
enumerando um por um do pessoal que lhes causaria tristeza a minha
partida, coisa que eu não sabia ser tão benquisto. O padre imediatamente
tratou de saber com o esquimó que tinha trazido as cartas e cargas
quando partiria o trem e a informação foi que o trem estava na estação e
que partiria em doze dias.
É claro que seria muito cansativo contar todos os acontecimentos
desse dia em diante, foram rezadas as missas como de costume e em
todas pediam a Deus para me levar à minha terra sem nenhum problema e
com muita saúde. A capela ficava lotada e lembro que no meio do sermão
e na hora da reza o padre exaltava o pronto regresso, é claro que eu dizia
que no momento que me visse livre regressaria, porém no meu
pensamento não existia a menor idéia de voltar. A despedida foi muito
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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bonita, as freiras cantavam canções religiosas acompanhadas de violão,
jovens esquimós tocando vários instrumentos, cantavam cumbias, porros,
bambucos, todos os ritmos colombianos.
O Delfin não se separava de mim, a maior parte do tempo
colocava seus braços sobre meus ombros, participava de todas as
homenagens que me faziam, mas sempre evidenciava aquele elo de
tristeza. Eu fingia tristeza, mas no fundo estava borbulhando de alegria,
contava as horas, os minutos, e procurava não pensar em nada.
Chegado o momento da partida, o refeitório estava cheio de gente,
e depois de meia hora de abraços, partimos com Delfin e mais outros dois,
um era o carteiro e o outro era um esquimó civilizado, e o destino era rumo
à estação. Durante a longa viagem conversamos bastante, a mesma
promessa que fiz para todos antes de sair, também reforcei para Delfin.
Para todos falei que com o meu problema nas vistas, provavelmente não
seria aceito como recruta e consequentemente em breve estaria de volta.
Com um forte abraço e um pouco de umidade nos olhos de Delfin
nos despedimos, me acompanhou até dentro do coche, não esperou a
partida do trem, subiu no trenó e rapidamente partiu. Não estou seguro,
mas me deu a impressão que chorava. Foi grande a bagunça que fizeram
os cozinheiros, os garçons e todos os funcionários do trem quando me
viram, eram os mesmos que conheci na vinda, depois de organizar minhas
coisas no camarote olhei para fora para ver se enxergava Delfin, porém
naquela imensidão, só vi um pontinho preto bem distante, estava seguro
que era o Delfin. Naquele momento me invadiu uma certa tristeza e
comecei a lembrar tudo que ele tinha me ensinado a respeito da vida dos
esquimós e sobre a sobrevivência naquele país gelado, em seguida
comecei a pensar: não devo sentir tristeza de nada, o que devo pensar é
na alegria de estar junto dos meus familiares.
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ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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8
O RETORNO À CASA MATERNA
regresso foi muito mais rápido do que a vinda por vários os fatores:
as paradas nas missões eram curtas (enquanto que na vinda eram
até de 6 a 8 horas, agora eram no máximo de 10 minutos), éramos
poucos os passageiros, quase nada de carga. Consegui dormir duas vezes
quando ainda era dia e uma vez quando escurecia e me sentia feliz em
retornar ao normal: o dia e a noite.
O
As angústias da volta
Cumpri à risca a orientação que o padre me deu, as cidades onde
deveria chegar, conduções a pegar, os vôos a tomar. Carregava na mão o
mapa que o padre tinha feito como guia para mim e com frequência o
olhava. Sem tropeço algum, quatro dias depois o avião, um trimotor,
aterrissava em Bogotá. Como a minha passagem era até Cali, uma hora
depois partia noutro para a minha cidade, chegando trinta e cinco minutos
depois. O meu relógio marcava 12 horas, não sabia se era do dia ou da
noite, no relógio da estação eram 17 horas e estava claro. Com temor de
não ser bem-vindo pelos vizinhos, não quis ir para casa com o dia claro.
Peguei a mala e a minha bolsa e fui me sentar na sala de espera para
aguardar que escurecesse, não queria ser visto pelos vizinhos. Eram 20
horas e dez minutos e eu estava sem descobrir onde era minha casa,
porque o bairro estava totalmente mudado. Tinham aberto ruas, havia
muitas casas de material, enfim, mudança total. Depois de rodear pelo
bairro o motorista do táxi, a meu pedido, perguntou para alguém: – Onde
mora dona Chava? A resposta foi: – Ali na frente. Não sei de que forma
descrever o grito de alegria da minha mãe ao me ver chegar. Aquele
abraço que fazia tanto tempo não sentia, também as minhas duas irmãs se
grudaram em mim. Amanda era já uma mocinha, me tocava e não parava
de sorrir, a minha irmã pequena que estava na sala fazendo os temas, ao
escutar o barulho veio correndo, subiu no meu colo, enredou seus braços
no meu pescoço e ficou assim por longo tempo. Hoje lembro com emoção
aquele momento em que ela com uma voz clara e suave disse: –
Hermanito! (irmãozinho). Pela primeira vez a ouvi falar, não é que ela
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falasse de forma especial, é que meus ouvidos não estavam acostumados
a ouvi-la, e que som mais lindo bateu nos meus tímpanos quando ela me
disse: – Landinho venha conhecer o nosso sobrinho. A emoção não era
pelo sobrinho e sim por escutar essa voz que antes não tinha ouvido.
Fomos até o quarto do meu irmão Marino onde fui apresentado à minha
cunhada. A mãe entrou e já foi pegando seu neto e lhe dando carinho. Em
seguida eu o peguei com temor que fosse chorar por ser a primeira vez
que me via, porém foi ao contrário, sorriu e brincou como se fôssemos dois
velhos amigos. Soube que meu irmão Marino trabalhava vinte e quatro
horas contínuas e folgava quarenta e oito horas, portanto deveria chegar
na manhã seguinte. Naquele momento entrou meu irmão Hugo, falava
grosso, tinha bigode e barba, tudo era estranho para mim porque na minha
mente ainda eles continuavam crianças.
As peripécias de Túlio
Eu sentia que algo pairava no ar, entre eles se olhavam e parecia
que me escondiam alguma coisa. Surpreendi a minha cunhada com um
olhar suspeito com a mãe, vendo-se apanhada, minha cunhada abriu a
boca dizendo: – Eu acho que nós temos que contar para o Orlando o que
aconteceu com o Túlio. Um frio me correu por todo corpo, em seguida a
mãe, com voz trêmula me disse: – Filho, seu irmão está na cadeia, ele fez
mal a uma menina, (naquela época usava-se esta expressão), o pai dela
fez a denúncia e o delegado mandou prendê-lo e se não casar com a
menina ficará preso durante quatro anos. A alegria da minha chegada se
apagou. A mãe tratava de dar demonstrações de alegria, porém no fundo
eu notava a sua tristeza, a cunhada falou: – Estamos esperando o Marino
para providenciar um advogado. Quando ela falou advogado, me lembrei
daquele advogado que tinha ido participar de um torneio internacional de
xadrez na mesma cidade onde morava com Alberto e Estela. Ele era da
minha cidade, inclusive eu tinha mandado uma carta com dinheiro para a
mãe e ele a tinha entregue. Lembrei que ele tinha me dado um cartão com
seu telefone e endereço, eu sabia que o guardara na minha mala e fui à
procura dele até que achei. Em seguida falei para a mãe que lhe
visitaríamos no dia seguinte para ver qual seria o melhor caminho a seguir,
senti que a mãe ficou mais calma. Meus outros dois irmãos que estudavam
à noite chegaram, ficaram contentes de me ver e depois de um pouco de
fuzarca com eles tomei um banho e fui dormir. Sonhei muito, o quê, nem
sei.
Acho que já estava me acordando quando ouvi uma voz grossa e
desconhecida que me disse: – Acorda irmão! Era Marino, completamente
diferente daquele irmão companheiro das nossas travessuras de criança,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 346
estava alto, forte, barba de dois dias e voz grossa. Sentados na cama
conversamos, primeiro de sua família, esposa e filho, depois passamos ao
pessoal do bairro, me contou que foi grande o comentário quando me
viram no jornal, que a minha imagem tinha mudado por completo quase
todos, um por um vinham felicitar a mãe e vários chegaram a dizer que se
sentiam arrependidos por ter tratado tão mal e desconfiado do Negrinho e
de o ter até tratado de ladrão. Perguntei pela Romélia. Depois da notícia
do jornal continuou a nos visitar, ela casou-se com o dono de um posto de
gasolina, ficou grávida e na hora do parto morreu ela e a criança. Senti só
um pouco de tristeza e depois passou. Meu irmão continuou me dizendo
que o marido dela chorava como criança. A vila toda ficou chocada porque
ela, além de bonita era muito querida por todos, o fato é que na hora do
enterro ninguém ficou na vila, era triste ver dois caixões, um grande e um
pequeno. A mãe dela ficou um pouco desequilibrada, era sua única filha e
companheira, teve de ser internada, agora ela já está bem.
Marino foi dormir e eu com a mãe, após tomar o café, saímos à
procura do advogado amigo. Conhecedora que a mãe era da cidade foi
fácil achar o escritório. O amigo nos recebeu com forte abraço, me
enalteceu demais, falou da gentileza de meus amigos para com ele.
Contava para a mãe que conosco passou momentos muito felizes, que o
levamos às bibliotecas, museus, etc., eu sentia a ansiedade da mãe para
falar de Túlio, mas eu não conseguia interrompê-lo, até que me perguntou
por Alberto e Estela. Menti, porém me saí bem e aproveitei este momento
para expor a situação do meu irmão. Nos deu algumas explicações e em
seguida perguntou para a mãe: – A senhora não sabe se ele quer se
casar? A mãe respondeu que não sabia, que ela estava esperando o
domingo, que era o dia de visita, para falar com ele. O advogado apertou a
gravata, colocou o casaco e nos disse: – Vamos lá, vamos à cadeia. Nos
levou no seu carro. Uma vez na delegacia cumprimentou o delegado,
mostrou seu documento jurídico, falando com certa prepotência disse para
o delegado: – Por favor, preciso falar com o detento Túlio Ortega, e por
favor, não vá trazê-lo algemado que não é um bandido. A senhora é a mãe
dele e ele é o irmão, que é um artista de renome internacional.
O delegado, um senhor jovem parecia dominado pela forma
prepotente do advogado. Em seguida mandou um auxiliar trazer meu
irmão, minutos depois ele entrava cabisbaixo, triste, com aquela sua
misantropia característica, quando me viu me abraçou e começou a
chorar, em seguida abraçou a mãe, que também chorava e falou: – Mãe,
não consigo entender porque o pai da guria mandou me prender se eu
gosto dela e pretendemos nos casar. O advogado, sem perder tempo,
falou, dirigindo-se ao delegado: – O senhor está ouvindo a confissão do
rapaz sem sequer ainda ser questionado? Foi uma arbitrariedade que
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cometeram com ele, eu preciso a imediata liberação dele. Foi pela primeira
vez desde que estávamos ali que ouvi a voz do delegado, olhando para o
advogado e falando com firmeza disse: – Sim doutor, vou liberar o rapaz,
com a condição que em quarenta e oito horas me apresente o atestado de
matrimônio, caso contrário será declarado fugitivo, e em qualquer
momento poderá ser preso. Eu falei: – Senhor, em menos de quarenta e
oito horas o senhor terá o atestado. Meu irmão assinou como réu, eu como
responsável, o advogado e a mãe como testemunhas.
Uma vez no carro o advogado perguntou: – Túlio, marcamos o
casamento para às 16 horas de hoje? Foi a mãe que respondeu dizendo:
– Sim meu filho, case o quanto antes, você não sabe o sofrimento de uma
mãe em ver um filho preso! O advogado disse: – Túlio, se você gosta da
menina é bom que case de uma vez, vamos avisá-la. Partimos para a casa
da menina, ela nos recebeu com muita ternura, o pai, ao contrário,
carrancudo e prepotente. O advogado amigo nos informou que tinha uma
audiência às 11 horas e se despediu, prometendo voltar às 15 horas.
Tentei lhe pagar e me respondeu: – Nunca mais fale em me pagar, o que
vocês fizeram por mim lá vale muito mais que esta bobagem que eu estou
fazendo. Organize tudo, que às 15 horas venho levá-los para o casamento,
e foi embora. Nós também, depois de combinar a hora do casamento nos
retiramos.
Após sair da casa da futura esposa de Túlio, íamos a pé com a
mãe atravessando as ruas da vila, mas eu ainda guardava aquele temor
de ser insultado por algum vizinho e que na minha passagem fechassem
as portas como dantes. Mas agora eles saíam para me cumprimentar, me
abraçavam e a maior parte da gurizada daquela época já estava casada e
com filhos. O mais fanático por mim era o Joãozinho, me apresentou sua
mulher e seus dois filhos. Foi difícil para nós chegarmos em casa, todos
queriam me abraçar.
Fomos visitar a mãe de Romélia, estava bem velhinha, me abraçou
e começou a chorar, a minha mãe também chorava. Levaram-me ao
quarto que era da Romélia, na parede estava pendurado um quadro
grande, era a folha do jornal onde eu tinha saído. Visitamos também o
André, estavam todos em casa, me receberam com muita alegria. Que
gostoso sentir aquele carinho sincero depois de muitas risadas, abraços e
palmas nas costas de todos e um convite para um jantar. Nos despedimos
e voltamos para casa, o almoço estava pronto. Túlio já estava em casa e
Marino já estava de pé. O almoço foi cheio de histórias, tanto deles como
minhas, me disseram que Ocoró tinha falecido, a casa estava alugada, o
Carlos morava no centro e continuava com o negócio de Ocoró. Todos
queriam me contar que o Antônio tinha vindo da Espanha visitar a
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Colômbia, tinha ido à minha procura e ficado muito triste por não me
encontrar e sem saber como se comunicar comigo. Queria que eu
conhecesse sua esposa e filhos, me deixou um presente, uma jaqueta
muito bonita, não me serviu, eu tinha crescido e engordado. Perguntei pelo
Mudinho, soube que estava numa escola para surdos e mudos, que ele e a
esposa, também muda, colaboravam com a direção e organização da
escola. Não foi preciso perguntar pelo Oscar, todos queriam contar que ele
era o concubino de um vendedor de bananas. Mesmo o Oscar todo
entrevado, o homem o amava, a mãe tinha morrido de desgosto ao saber
que o filho era boiola. Era uma informação atrás da outra, contaram-me
que Manolo e também Elida quando me viram no jornal vieram felicitar a
mãe. A conversa estava gostosa, porém o sono me dominava e tive de
dormir os dez minutos do Antônio.
Quando acordei Túlio vestia uma camisa de mangas curtas e uma
calça um pouco surrada. Achei ele mal vestido para um casamento.
Quando questionei a este respeito me respondeu que agora era que
pretendia começar a se organizar para aquele momento, só que como o
sogro preferiu de outro jeito, não teve tempo. Lembrei-me que Estela tinha
me comprado um terno azul-marinho que eu não tinha usado, e embora o
Túlio fosse um pouco mais alto, o terno lhe ficou perfeito, também dei
camisa de manga comprida e gravata, ele ficou vestido como manda o
figurino. Quando chegamos na igreja, a vila estava toda lá. Entre todo o
pessoal da vila havia fortes rumores que o pai da menina andava
garganteando que tinha mandado meu irmão para a cadeia e por isso
agora casava com a filha, que com ele era assim, escreveu não leu, o pau
comeu. Pelo que notei era que aquele garganteio dele só lhe
proporcionava nojo perante os vizinhos, porque segundo eles, Túlio era um
rapaz sério, calado, trabalhador, quieto, não gotejava nem pingava, era
amigo de todos e por isso ninguém aprovava o que o sogro tinha feito.
Fiquei sabendo que existia uma crendice naquele tempo, que as filhas
mais novas não deveriam casar antes que as mais velhas casassem, caso
contrário estas ficariam para titia. Acontecia que a filha segunda estava
noiva e com data de casamento marcada e por isto tinha usado este
estratagema para acelerar o casamento da filha mais velha, que nesse
momento estava se tornando a mulher do meu irmão, e a filha segunda
estaria livre para se casar.
O encontro com Efraim
Passada a turbulência entre minha chegada e o casamento, me
apresentei ao exército. No primeiro exame visual fiquei livre e com o dever
cumprido.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Embora tenha ouvido dizer que os alfarrábios não apresentam
nada importante, eu sou um fanático pelos sebinhos, e foi num sebo do
centro da cidade que encontrei o amigo Efraim, que como eu, tinha paixão
pelos livros usados. Foi grande a alegria do nosso encontro, os livros
ficaram para depois, ele falava grosso e já se lhe manifestava a sombra do
bigode e barba, me falou da sua vida e dos estudos, e eu lhe contei as
minhas aventuras. Falamos de música, ele continuava tocando, e eu, por
sempre estar viajando, não tinha condições, combinamos ensaiar na
minha casa, porque na dele não poderíamos, em respeito ao avô que tinha
falecido há pouco tempo.
Depois de alguns dias de ensaios e conversas, decidimos fazer um
giro pelo país tocando nos bares, restaurantes e nos lugares onde
houvesse público. Mandamos imprimir cartões onde se lia: Os Granadinos
intérpretes da música nacional colombiana solicitam sua ajuda para
continuar seu giro pelos países da América.
Sem muita demora um dia partimos. Nossa música tinha um ritmo
alegre e todos gostavam, só que a arrecadação mal dava para cobrir os
gastos de hotel, transporte e alimentação. Andávamos um pouco
desmoralizados, porém assim mesmo continuávamos. Um dia chegamos
num povo de fazendeiros onde o acontecimento do ano era o casamento
de um jovem fazendeiro com uma prostituta com mais de quinze anos na
zona de tolerância, era justamente a mais procurada por fazendeiros
solteiros e também por alguns casados, por ser muito bonita. Nós
chegamos no momento que os nubentes partiam para desfrutar da lua de
mel, iam os dois num lindo alazão. Quando um dos fazendeiros amigo dos
desposados nos viu num bar tocando, em seguida nos contratou para ir
fazer uma serenata aos recém-casados. Este fazendeiro era conhecido
pelo apelido de Mano, era o que mais sentia dor de cotovelo, porque era
com ela que tinha desfrutado algumas de suas melhores noites de orgia.
Subimos numa carroça aonde também iam amigos de Mano e do casal,
cada um levava uma garrafa de aguardente. Ao som de nossos boleros e
ao grito dos amigos, o casal abriu a porta, brindaram com aguardente e em
seguida se despediram, só que o Mano estava disposto a não deixá-los
dormir. Foi até a zona de tolerância e trouxe três amigas do casal para
cantarem, quando eles abrissem a porta, elas brindariam com eles e em
seguida se despediriam. O casal abriu a porta ao chamado das amigas e
ex-colegas da esposa, brindaram ao som da nossa música. Enquanto nós
tocávamos e o casal brindava com os amigos, o Mano tinha ido convidar o
irmão do desposado para que viesse brindar com seu irmão e a cunhada.
Quando começamos a tocar, vimos o casal sair a todo galope por um
portão lateral, todos ficaram pasmos de vê-los desaparecer na escuridão
da noite por uma estradinha estreita e de chão batido. Uma vez refeitos da
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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surpresa, o dono da carroça foi embora, nós procuramos o Mano para
cobrar nosso serviço, porém o Mano tinha desaparecido, tentamos cobrar
dos que tinham participado, mas ninguém quis nos pagar, alegando que
quem tinha nos contratado era o Mano. Um deles nos aconselhou a ir à
delegacia fazer a denúncia, que o delegado sabia onde ele morava e
mandaria que nos pagasse. Ao chegarmos na delegacia o guarda que nos
atendeu nos informou que o delegado estava dormindo, nos perguntou
qual era o problema, lhe informamos o acontecido e ele nos respondeu: –
O delegado não vai fazer nada, o tal do Mano é irmão dele, é um safado,
deve para muita gente e não paga ninguém, eles dois fazem o que
querem, os dois são iguais e se alguém os enfrenta botam na cadeia,
surram, deixam alguns dias a pão e água e depois soltam e ninguém faz
nada, todos aqui têm medo deles. Claro que eu também sou autoridade e
não quero perder meu emprego, pois seria difícil conseguir outro. Vocês
que não são daqui deveriam levar esta denúncia para as autoridades da
capital. Nos mordendo de raiva fomos dormir na pensão mixuruca em que
estávamos hospedados. No dia seguinte tentamos encontrar o tal do
Mano, porém tinha sumido, sentimos que o povo o odiava e ao delegado
também, e estavam jurados de morte. A única alternativa era abandonar
aquele amaldiçoado povo do gatuno do Mano.
Continuamos nosso giro e após passar por várias povoados e
pequenas cidades, desembarcamos numa cidade muito bonita, famosa
pelos seus cafezais, nesta cidade a maior parte dos bares e hotéis
estavam perto da zona de tolerância. À noite saímos a ganhar nosso
dinheiro, no primeiro bar que entramos estava na zona, nas mesas
homens e mulheres se divertiam bebendo whisky, rum e em poucas mesas
tinha cerveja, foi nesse bar que após tocarmos, nossos poucos recursos
começaram a aumentar, todos nos gratificavam com notas de valor alto.
Já tínhamos nos despedido quando um casal que se encontrava
perto da porta do bar nos chamou e pediu para tocar para eles. O homem
não estava muito bem vestido, como o clima era um pouco frio, quase
todos usavam chapéu e poncho, este senhor quando terminamos de tocar
levantou o poncho, botou a mão no bolso das calças, tirou uma nota de
alto valor e nos pagou, nos pediu para sentarmos e mandou nos servir um
gostoso jantar com peixe frito, arroz, patacones e salada mista. Enquanto
jantávamos a mulher pediu o acordeom emprestado e com orientação que
o Efraim lhe dava, tirava alguns sons, o homem perguntou ao Efraim: –
Quanto custa um acordeom? Ele extrapolou e lhe deu o preço, em seguida
o homem ofereceu um pouco mais do preço que Efraim tinha dito pelo
acordeom. Efraim aceitou, o homem tirou do bolso um rolo de notas e
pagou, em seguida pegou meu violão e perguntou quanto custava, falei
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 351
que não sabia, porque o tinha ganhado, ele me ofereceu um xis, Efraim me
fez um sinal de aprovação e aceitei no ato.
O casal se despediu de nós, pegaram um cavalo Zaino que estava
na parte de fora e saíram a todo galope. Nós fomos para o hotel, sem
instrumentos, porém cheios da grana. Comentando o acontecido Efraim
me disse: – Preste atenção que estes caras mal arrumados são os mais
ricos. Viu este senhor, sempre que colocava a mão no bolso tirava um rolo
diferente de dinheiro, ao contrário do Mano, todo bem vestido, escondia
um tremendo tramposo. No dia seguinte retornamos para nossa cidade.
Compramos novos instrumentos e nos sobrou dinheiro. Entusiasmados por
este último acontecimento, decidimos nos aventurar para o exterior, e sem
muitas delongas, um dia partimos em direção ao sul da Colômbia e por ali
tentaríamos sair do país.
Colocamos num baú muito antigo, que tinha pertencido às bisavós
de Efraim, as nossas roupas, traje andaluz que Efraim toureava, arte que
também tinha aprendido, o meu traje era totalmente branco, que era a
minha especialidade apresentar a sorte de dom Tom Credo. À parte dos
trajes de tourear, também colocamos dentro todo meu equipamento para
apresentar as provas de ilusionismo, na mão levávamos os nossos
instrumentos. Dentro do país tentamos várias praças. Não era muito que
ganhávamos, os nossos sonho sem dúvida era que no exterior
ganhássemos mais.
A tourada e a fuga noturna do hotel
Certa vez chegamos numa pequena cidade, e como em todos os
lugares onde chegávamos, fizemos amizade com o pároco que nos
acolheu com muito carinho. Quando descobriu que éramos aficionados à
arte taurina, teve a grande idéia de organizar um festival taurino, idéia que
adoramos e aprovamos. A praça de touros foi preparada no pátio central
de uma escola. Como éramos só dois toureiros, Efraim chamou dois
amigos toureiros da nossa cidade, que inclusive já tinham toureado junto
com ele. Ficaram hospedados no mesmo hotel que nós estávamos. Era
um prédio antigo de dois andares, também o único na cidade. Até aquele
momento nós estávamos em dia com refeições e pernoites, mas com a
chegada dos amigos o dinheiro terminou. Combinamos com o dono do
hotel que ao invés de estar pagando pingado lhe pagaríamos no momento
de irmos embora, ele concordou e nós comíamos, dormíamos sem
preocupação alguma e de vez em quando até pedíamos pratos especiais,
sonhando com o dinheiro que ganharíamos no dia da tourada. O sonho,
porém, deu errado e depois de um mês de organizar tudo, justamente no
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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dia do festival taurino, num domingo que a expectativa era geral, choveu.
O público foi pequeno e o dinheiro que entrou não daria nem para pagar o
aluguel dos touros, o aluguel do local, a propaganda na rádio, a tipografia
e muito menos o hotel. Ficar por mais tempo até fazer outra toureada
complicaria mais ainda a situação, na mesma praça deliberamos, e a
conclusão foi que deveríamos fugir com o dinheiro arrecadado e não pagar
ninguém, ali mesmo se programou a fuga e o horário, às 2 horas da
madrugada. Os dois companheiros vindos perguntaram para o guarda que
ficava no hotel da meia-noite até às 8 horas, onde tinha uma farmácia de
plantão, receberam a explicação e saíram. Eles deveriam esperar o baú na
parte de baixo. Quatro lençóis serviram de corda para descer o baú, uma
vez o baú embaixo e também as malas, Efraim desceu amarrado nos
mesmos lençóis e eu fiquei. Eles deveriam ir embora eu saberia onde
alcançá-los, desamarrei os lençóis arrumei as camas, organizei o quarto e
desci, perguntei para o guarda: – Amigo, sabe onde fica a farmácia? É que
os companheiros foram comprar um medicamento e não voltaram. O
homem mais dormindo que acordado me deu as dicas e eu saí. Uma vez
na rua corri na direção combinada, o silêncio era total, nenhuma viva alma,
nem sequer os cachorros latiam, as ruas muito mal iluminadas. Corria para
alcançar os companheiros, antes do término do perímetro urbano Efraim
me esperava, corremos até alcançar os amigos que aceleravam o passo,
mesmo carregando aquele pesado baú. Pediram para nós ajudarmos, e
assim, entre troca-troca, avançamos sem parar.
Poucos minutos depois das 6 horas chegamos num pequeno
casario, entramos num boteco, o dono e a esposa nos atenderam
solicitamente. O homem em tom alegre perguntou: – Aonde vai ser a
festa? Efraim, de forma inteligente e rápida respondeu: – A festa já foi,
numa fazenda lá pra dentro, num casamento, eles nos mandaram levar até
a próxima cidade num trator, mas ao sair na estrada ele quebrou e o
motorista do trator teve que voltar à fazenda a pé para pedir socorro, mas
como nós temos muitos compromissos e não poderíamos ficar esperando,
ele nos informou que por aqui perto passaria um ônibus que nos levaria
até a próxima cidade. – Sim, passa pela estrada, mas ela está longe,
entrem, tomem um café que eu mando lhes levar. Sentindo a curiosidade
do homem, e sem nos pedir, Efraim e eu pegamos nossos instrumentos e
começamos a tocar, não demorou muito e o bolicho do homem estava
cheio de gente que aparecia de tudo quanto era canto, entre todos
apareceu um gordo brincalhão que ao saber da história inventada se
prontificou a nos levar até a cidade em seu caminhão. A marca do
caminhão era Studebaker e apesar da bagunça da lataria, andava que era
uma beleza. Uma hora e meia demorou, numa estrada de chão, para
percorrer 65 quilômetros. O simpático gordo nos deixou numa pensão, lhe
agradecemos e ele se mandou. Quando o gordo desapareceu trocamos de
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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pensão e concordamos em não ficarmos os quatro na mesma pensão.
Num bar repartimos o dinheiro, e a nossa maior surpresa foi na hora que
pedimos desculpas a nossos parceiros pelo transtorno que tínhamos
causado, rindo às gargalhadas eles nos responderam: – Não se
preocupem, que nós já estamos acostumados a este tipo de aventura,
ultimamente não gostamos de pagar a ninguém e a nada, onde toureamos
sempre fugimos com a arrecadação. Para eles era uma satisfação, tanto
quanto tourear, e nos felicitavam porque éramos os primeiros que tinham
visto conseguir ludibriar um padre, pois os padres eram muito vivos, eles e
outros colegas nunca tinham conseguido este feito, porque sempre que
organizaram toureadas com os padres, quando eles corriam para pegar a
arrecadação, os padres já a tinham pegado. Enquanto para Efraim e para
mim era o maior crime que tínhamos cometido, para eles era a maior
alegria termos saído dessa sem nenhum tropeço. Riam às gargalhadas e
falavam qual seria a cara do dono do hotel quando entrasse no quarto e
encontrasse as camas arrumadas, mas seus hóspedes tinham sumido,
riam de todos, do Prefeito que não arrecadaria os impostos, do padre, do
dono da impressora, tão gentil conosco, do coitado do rapaz que tinha
espalhado fotos e recortes de jornais e um dia antes tinha recolhido tudo e
esperava sua gorda gorjeta, nós, ao contrário, sentíamos pena. Com fortes
abraços, no mesmo bar se desfez a quadrilha de toureiros composta por
Lucho Perez, Charlot Junior (Faro De La Cruz), Efraim (Zuro Giraldo) e
Orlando Ortega (Dom Tom Credo).
Eles partiram rumo a nossa cidade e nós rumo ao sul, dispostos a
sair do país o quanto antes. O feito para nós era degradante, para eles era
mais uma proeza, era a maior felicidade.
O adeus ao baú e a Efraim
Foram várias mudanças de ônibus, noites mal dormidas, até
alcançar a fronteira. Com a nossa documentação em dia a atravessamos.
O lucro sonhado não se apresentou, as cidades e povoados, além de
pequenos, eram pobres e o dinheiro que arrecadávamos mal dava para
cobrir as despesas, mesmo assim, com a esperança de melhores lucros,
continuamos para o sul. O Zuro (Efraim), que não estava acostumado a
este tipo de vida sacrificada, com alimentação bastante precária, às vezes
adoecia, eram cólicas, desarranjos, até um forte resfriado se manifestou,
eu com minhas ervas e raízes, que a mãe tinha me ensinado para me
curar no caso de alguma moléstia, com elas curava Zuro. O sul era a meta,
e continuávamos. O dito baú nos ocasionava gasto e cansaço, sempre que
viajávamos, nos tocava pagar o preço de uma passagem, e algumas vezes
até mais, pelo transporte dele, então resolvemos vendê-lo em qualquer
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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casa de antiguidades. Em nossa terra nos dariam um bom dinheiro pelo
baú, mas lá, ninguém quis comprar, e para não perder tempo oferecendo o
dito cujo, tentamos dar de presente, e também ninguém quis, a solução
seria jogar em algum lugar. Onde? Num rio, qual? Aquele que divide os
dois países. Tiramos toda nossa bagagem e colocamos em duas bolsas,
caminhamos até a ponte e o jogamos no rio, porém não afundou, a
correnteza era forte e rápido foi desaparecendo de nossa vista, dava a
impressão de ver um rosto triste e choroso, e com o balanço das águas
parecia nos dizer adeus, me invadiu uma profunda tristeza. Olhei para
Zuro e notei que também estava triste e me disse: – Aquele baú, depois de
tantos anos na minha família, agora quem sabe onde irá parar, paciência!
Entramos num novo país, para Zuro era novidade, para mim não,
já tinha atravessado tantas fronteiras, que mais uma me parecia normal,
estávamos otimistas, pelo menos o cansaço que nos ocasionara carregar
o dito baú terminara e as despesas no transporte. Neste novo país o povo
era alegre, gostavam da nossa música, aonde chegávamos e tocávamos
muitas vezes até dançavam, porém o povo era de pouco poder aquisitivo,
o que arrecadávamos era ínfimo. Percorremos todo o norte deste país até
chegarmos à capital. Era inverno, estava frio, quando chegamos na
rodoviária dois senhores se aproximaram de nós, curiosos ao nos ver com
os instrumentos, queriam saber de onde éramos e de onde vínhamos, era
um periodista e um fotógrafo, nos fizeram muitas perguntas e nos tiraram
fotos. No dia seguinte saímos no jornal em primeira página com letras
grandes e foto, onde se lia: Em plan de pativilca a Baires. Chegam dois
colombianos a nossa capital, um pouco a pé e outro pouco andando de
ônibus, percorrem a nossa América do Sul.
À noite saímos para tentar a sorte, por motivo do frio havia pouca
gente nos bares, era interessante que quando entrávamos para tocar em
qualquer bar não faltava alguém que falasse: – Olha, são eles os dois
colombianos que percorrem a América tocando! Nos recebiam com
carinho, nos brindavam. Por último já não gastávamos em janta, sabíamos
que qualquer dono de bar nos convidaria para jantar, apesar do pouco
público nos bares as arrecadações não eram tão ruins. Depois de termos
percorrido os maiores bares da cidade as arrecadações não eram tão
boas, com instrumentos um pouco desafinados, e como já estávamos
muito conhecidos na cidade, decidimos continuar mais para o sul. A cidade
seguinte era pequena e só vimos um bar. Continuamos. A segunda
também era pequena, tinha uns três bares e a arrecadação não foi boa. Eu
notava que Zuro andava um pouco triste, pensativo, comia pouco, e
começou a sofrer de insônia. Eu também comecei a ficar preocupado,
estávamos numa cidade pequena, as ruas eram largas e compridas,
solitária, dificilmente passava um carro e gente muito menos, o único ruído
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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que se ouvia era quando o sino da igreja dava a hora, às 9 horas deu nove
badaladas, às 9:15 horas deu uma, idem às 9:30 horas, às 10 horas deu
dez badaladas.
Caminhávamos sem rumo, a cidade era fria, cinza, era uma cidade
balneária e só no verão tinha movimento, por casualidade encontramos
duas senhoras, perguntamos para que lado estava o mar, responderam: –
nós vamos para lá. As seguimos, elas entraram na igreja, Zuro me
convidou para entrarmos também, havia pouca gente, homens só nós dois.
Zuro rezava em silêncio, eu não entendia o porquê da tristeza de Zuro.
Saímos da igreja e nos sentamos num banco da praça que estava à frente.
Sentados, o Zuro me disse: – Ortega, voltemos para casa, estamos
perdendo tempo, aproveitemos agora que temos este dinheirinho que nos
alcança para chegar à nossa terra. Não respondi nada, naquele momento
fiquei pensando: Voltar para casa nesta pobreza! Eu sempre cheguei em
casa com presentes, dinheiro, e mais que tudo: alegria, qual não seria a
tristeza da mãe em me ver chegar naquela pobreza e desmoralizado.
Pensava o que vou fazer lá, me empregar fazendo o quê? Voltar para o
norte, para os países onde fui bem tratado, procurar Alberto e Estela,
continuava pensando, claro, agora não sou mais aquele Negrinho
simpático, ágil, esperto, paparicado, que muitos queriam ficar com ele
como filho. Hoje quem é que vai querer ficar ou paparicar este negrão que
sou agora?
Uma certea certa tristeza me invadiu e que me ajudou a decidir e
falei para o Zuro: – Irmão, vamos fazer o seguinte: você regressa, e com o
dinheiro que temos me deixe um pouquinho, ao menos para me sustentar
durante dois dias, o resto podes levar que dá para chegar folgado. Eu só
volto quando conseguir reunir algum troco, você sabe que a esperança da
minha família sou eu, não se preocupe comigo, você me conhece e sabe
que me viro lindo. Ele colocou a mão no meu ombro e disse: – Orteguita,
meu irmão, me dói te deixar, mas estou desesperado para voltar para
casa. Juntamos as malas e fomos à rodoviária, pegamos o ônibus para a
capital e às 23 horas Zuro partia. No abraço de despedida senti que ele
estava emocionado, e porque não dizer, eu muito mais. O ônibus começou
a marcha, ele do lado da janela, com as mãos me fazia o sinal de
despedida, seus olhos estavam umedecidos. Quando o ônibus já estava
distante, pela primeira vez compreendi que é menos doloroso partir que
ver partir, me senti só, senti toda a solidão do mundo e uma tristeza
profunda, estática.
Da rodoviária até o hotel a distância era de apenas 2 quilômetros,
porém não quis pegar condução, era meia hora da madrugada. Voltei a pé,
a minha cabeça estava cheia de pensamentos, falava sozinho, eu não
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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havia pedido para Zuro ficar, porque ele tinha sido criado com todo tipo de
regalia e a verdade era que sofríamos muitas privações, além de dormir
em pensões baratas, em camas cheias de pulgas e até percevejos. Meus
passos eram lentos, não queria chegar no hotel, mas queria me deitar e
dormir, nas ruas nada de pedestres, de vez em quando passava um carro,
em alguns bares tinha gente, noutros quase ninguém, sentia vontade de
entrar num bar e beber, mas beber o quê se eu nem sabia beber. Comecei
a lembrar a primeira vez que fugi de casa para me encontrar com o tal
toureiro, a tristeza que senti quando não encontrei praça de touros alguma,
o que encontrei foi uma tapera, lembrei que faminto peguei aquele plátano
assado da lata do lixo, lembrei que depois daquele dia de tristeza e de
pobreza a situação mudou, embora bem comido, com dinheiro e três
amigos, aquela noite dormi embaixo do banco de uma praça. Estava feliz,
tinha dinheiro. Hoje tenho dinheiro para pagar o hotel e comer por alguns
dias, portanto, tchau tristeza, vou acelerar o passo, chegar rápido ao hotel,
esquecer, descansar, dormir, que amanhã será outro dia.
O recomeço
No dia seguinte, enquanto tomava o café lia o jornal e numa das
páginas havia uma propaganda que anunciava o festival num município
vizinho, na Paróquia de Santo Expedito. Peguei o jornal, procurei saber a
forma de chegar lá, e uma vez no local, falei com os padres organizadores
e já me incluíram nas apresentações avulsas, que eram em barracas
separadas. Uma era do homem borracha, noutra a mulher gorila, havia
também um teatro de fantoches e na quarta barraca o famoso mágico
colombiano que percorre o mundo, era esta a propaganda pintada na
barraca.
Em cada barraca cabiam quinze pessoas, o espetáculo durava 45
minutos e o preço era o equivalente a R$ 3,00 por pessoa, 20% era para a
igreja, 20% para o senhor que vendia os bilhetes e fazia a propaganda na
porta da barraca. O festival durou uma semana, começou num domingo e
terminou no outro domingo. Na minha barraca terminava uma sessão e já
começava outra, as apresentações começavam às 10 horas da manhã e
terminavam às 23 horas. No último dia e após o acerto de contas, um
gostoso jantar com todos os participantes numa alegre confraternização.
Nos despedimos, como era o único estrangeiro, eram muitas as atenções
para mim, esqueci a falta do meu amigo Zuro e tornei a lembrar o primeiro
dia que fugi de casa, naquele povoado, com fome, com míseros treze
centavos no bolso, onde um almoço custava quinze centavos, e em
poucas horas mais tarde estava cheio da grana. A história se repetia, dias
atrás com pouco dinheiro e agora com bom dinheiro no bolso. Fiquei por
mais algum tempo nessa capital, me apresentava em escolas, quartéis do
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 357
exército, clubes, na cadeia e até em cabarés, algumas vezes saía nos
jornais e uma vez numa revista. Tinha muitos amigos artistas, tanto de
palco como de circo, já era conhecido por muita gente. Uns amigos que
eram artistas de circo me convidaram para fazer uma turnê num circo que
estava guardado porque o dono tinha falecido, mas um filho queria reativálo. Depois de muitos ensaios e todo material revisado, saímos. No primeiro
povoado que armamos o circo estava a 120 quilômetros da capital, o
entusiasmo era muito e ao que tudo pintava, teríamos um bom público.
Pretendíamos nos apresentar na quinta, sexta, sábado e domingo, na
segunda fazer um espetáculo para os alunos das três escolas existentes.
Só que na quinta choveu de forma torrencial, também na sexta e nos
demais dias, e segundo informações que nos deram, naquela zona
dificilmente chovia, mas quando começava, chovia o mês inteirinho. No
domingo deu uma “estiadinha” e enchemos o circo, só que o dinheiro
arrecadado deu apenas para pagar as despesas, hotel, imposto, aluguel
do terreno, água, luz.
Continuamos noutras cidades, tentamos, porém a situação não era
das melhores. Dois meses de sofrimento, enfrentamos chuvas, enchentes.
Um dos caminhões que carregava parte do circo atolou, a saúde de duas
companheiras estava em declínio e, para completar nossa situação,
armamos o circo numa localidade um pouco frio, apto para criação de
cabras. Com um público regular estreamos na sexta-feira, no sábado um
pouco mais, e a esperança era o domingo. Entre os artistas havia um
jovem senhor que era bailarino, sua especialidade era dançar música
tropical, arte perfeita, no meu entender, eu que não fui um bom observador
não percebi que o tal não era chegado em mulheres e sim em homens, na
nossa primeira apresentação na sexta-feira, não sei de que forma, nem em
que momento conheceu um criador de cabras, e daquele momento em
diante não mais se separaram. No sábado, na hora do espetáculo,
chegaram juntos ao circo, ele fez sua apresentação e depois foram
embora.
Na localidade nosso amigo das cabras era conhecido como o
homem que tinha por esposa uma cabra, segundo nos contavam quando
ele ia fazer suas compras ela ia junto com ele, era uma companheira
inseparável. No domingo, vendedores do único jornal existente gritavam: –
Leia o jornal com a notícia: Criador de cabras e bailarino do circo foram
atacados por cabra enfurecida. O texto certo do jornal não lembro, mas
mais ou menos era o seguinte: A cabra se encontrava no curral, onde não
era acostumada a dormir, cheia de ciúmes, ao ver-se trocada por um
bailarino e ao escutar os gemidos de romance, não aguentando o desaforo
do seu homem, enfurecida arremeteu contra a janela envidraçada,
quebrou o vidro e mesmo ferida, atacou os dois a coices, cabeçadas e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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mordidas. Contam os vizinhos que ao escutar os gritos dos dois amantes,
correram e encontraram os dois completamente nus, com seus corpos
ensanguentados, e a muito custo conseguiram laçar a cabra, maniatar e
levar para o curral. Os dois amantes foram levados para o hospital, onde
se encontram em estado grave. Corremos para o hospital, a informação
que recebemos do médico foi que o pipi do criador de cabras estava em
frangalhos e com feridas por todo corpo, idem o bailarino, e como não
tinham recursos para o tratamento no hospital, iam ser transferidos para a
capital.
Com o circo quase demolido, pobres, desmoralizados, retornamos
ao ponto de partida. Ao ler um jornal da capital, em letras grandes e em
primeira página estava: Cabra macha fez respeitar seus direitos de esposa
fiel perante marido infiel. Em seguida contava o que já sabemos e muito
mais.
Nada ganhei, também nada gastei do meu dinheiro. Dada a
circunstância, sem mais nada a fazer, me despedi dos amigos e continuei
viagem em zigue-zague rumo ao sul. Fui parando em várias cidades, em
algumas ganhava mais, noutras menos, mas sempre me sobrava para
guardar um pouco, me sentia bem, estava contente.
Dias depois cheguei numa pequena cidade muito bonita, a sua
construção era colonial, a catedral era estilo barroco e as imagens,
algumas com partes chapeadas em ouro, as ruas eram calçadas com
paralelepípedos. A cidade se encontrava próxima à fronteira do outro país.
Quando me apresentei ao dono do teatro, único existente na cidade, me
falou que gostaria que me apresentasse no mesmo espetáculo onde se
apresentaria o cantor do momento, era um bom cantor e também
compositor, suas músicas eram ouvidas a toda hora, em todos os lugares,
o conjunto musical também era muito bom, era do melhor que havia na
ocasião. Entre todas as músicas, havia uma que se escutava a todo
momento e por todos os cantos, a letra falava do índio nacional que tinha
mudado seus costumes e já quase não queria falar a língua nativa. A letra,
além de apresentar um alerta, também tinha um toque de chacota.
Os habitantes desta cidade, na sua maioria eram índios e
descendentes, que tinham abandonado suas aldeias e vindo para a cidade
e tinham abandonado seus costumes, porém no fundo guardavam o
orgulho de serem índios. Chegando o dia da apresentação e em se
tratando de atuar no mesmo palco e teatro com o cantor mais famoso do
momento no país, procurei levar os melhores números do meu repertório.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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Os primeiros a se apresentar foram um casal com suas duas filhas
menores, uma tinha dez e a outra oito anos. Até hoje não consigo
esquecer esta família, lembro deles com muito carinho, nas poucas horas
que estivemos juntos senti a amizade sincera e o muito carinho que me
brindaram e me fizeram sentir feliz, quando lembro deles, sinto muitas
saudades. Ela se apresentava com pseudônimo de Acla Zurarai, ele como
O Cholo Pancho. Ela cantava algo parecido como Ima-Zumac, com um
timbre de voz muito agradável. O Cholo contava piadas e também
apresentava esquete cômico com a esposa e filhas, as meninas também
cantavam e dançavam músicas regionais. Foram muito aplaudidos, em
seguida foi a minha vez, enquanto me apresentava notei que a maior parte
do público era de jovens, alguns vestidos com trajes típicos de índio da
mesma região, usavam umas bolsas penduradas no ombro, características
da vestimenta.
A revolta dos indígenas
Terminei, recebi os aplausos e passei para trás do telão onde
estavam os músicos, enquanto guardava os meus utensílios de trabalho
eles se organizavam no palco, o cantor fez a apresentação dos músicos,
em seguida anunciou que a primeira canção seria justamente aquela que
mais se ouvia nas rádios, e era aquela que os índios e descendentes
sentiam-se ofendidos. Quando os músicos tocaram as primeiras notas,
como avalanche começaram a chover ovos, laranjas podres, tomates,
sacos de papel com farinha de trigo misturada com areia, gritavam em
coro e a todo pulmão: – Nós os índios falamos a nossa língua nativa. Em
seguida subiram no palco, alguns levaram pedaços de pau e davam
pauladas nos músicos, e entre dois ou três os pegavam e jogavam longe,
sempre gritando: – Falamos a nossa língua nativa. Quebraram os
instrumentos de madeira e amassaram os de sopro, o piano era um
emaranhado de pedaços de madeira e cordas, me confundiram com o
trompetista que era da minha cor, me levantaram e iam me jogar longe,
apesar dos meus gritos lhes dizendo que eu era o Mágico. Nesse
momento apareceu o Cholo Pancho e gritou brabo: – Ele não é músico.
Cholo e Acla me puxaram para junto das meninas que gritavam: – Ele não
é músico. Naquele esforço, os meus óculos voaram longe, como as lentes
eram de vidro, ficaram em pedacinhos e a armação ficou toda torta. Acla
empurrava longe todo aquele que passava perto de mim, e as meninas
chorando recolhiam os meus pertences. O Cholo colocou-me no seu
ombro e tirou-me do local da batalha. Quando chegamos na porta, estava
a polícia e soldados pegando e amarrando os índios que continuavam
gritando, e os músicos feridos eram levados para o hospital, eu também fui
levado devido as manchas de sangue na minha roupa, mas eram apenas
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 360
escoriações. O Cholo e sua família não me abandonaram. Enquanto
faziam curativos chegou o senhor Prefeito cumprimentando um por um os
feridos. Quando o Cholo informou-lhe do estado dos meus óculos, ele
pediu para o médico-chefe que solucionasse o quanto antes o meu
problema. Através de uma receita que eu carregava e um exame do
oftalmologista, às 2 horas da manhã foram-me entregues novos óculos. No
dia seguinte os jornais mostravam em fotos a destruição ocasionada pelos
nativos, que achavam a tal canção uma ofensa para eles.
Fiquei mais três dias na cidade em companhia do Cholo Pancho e
sua família, ele queria que continuássemos juntos, só que eles iam para o
norte e eu para o sul. Não nos interessamos em cobrar o nosso trabalho,
porém o dono do teatro nos procurou no hotel e nos pagou o preço
combinado, nos disse que nós tínhamos trabalhado e ademais não
tínhamos nada a ver com o acontecido. Ficamos muito contentes, porque
não contávamos com aquele dinheiro. No dia seguinte me despedi,
levando uma saudade que me acompanhou por muito tempo.
Mesmo não tendo nenhuma queixa daquele país, pois fui bem
recebido e bem tratado, tive vários amigos, principalmente artistas, entre
eles o Cholo Pancho, sua mulher Acla e suas duas filhas, mas fiquei
traumatizado e decidi sair do país. Acostumado que estava a atravessar a
fronteira, e com meus documentos sempre em ordem, não tive nenhum
problema em entrar no país seguinte, onde encontraria sotaque diferente,
costumes diferentes, moeda diferente e até o nome de muitas coisas
também diferente. Rápido me adaptei, e o que me chamou a atenção era
que a população era toda branca, não via ninguém da minha cor, mesmo
assim, já desde a fronteira fui bem recebido. E em todas as cidades onde
chegava sempre me era facilitado tudo para me apresentar, podia ser nas
escolas, teatros, nas cadeias, nos quartéis. Nas escolas as professoras e
alunos me recebiam com manifestações de carinho. Após as
apresentações me rodeavam, gostavam do meu sotaque e até em alguns
lugares ouvi dizer que a minha cor era bonita. Alguns alunos me
convidavam para ir à suas casas para jantar, ou almoçar, os pais deles me
recebiam como a um antigo conhecido, e isto se repetia quase sempre, em
todos os lugares aonde ia.
Macareno
Quando chegava às capitais dos estados, me dirigia aos correios e
sempre tinha uma carta mandada pela minha mãe, lia e imediatamente
respondia e lhe informava qual a próxima capital a me responder. Sempre
ela colocava no envelope: favor não devolver esta carta, que ela será
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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retirada. Em todos os países e em todas as cidades em que eu chegava,
para retirar as cartas me era exigida a carteira de identidade, e eu
apresentava o passaporte. Depois de ter estado em vários povoados e
cidades, cheguei à capital do país, onde encontrei também o mesmo calor
humano. Em poucos dias da minha chegada já tinha alguns amigos, todos
artistas, homens e mulheres. Em um domingo pela manhã, estávamos
vários colegas reunidos em um bar tomando café e conversando, e no
meio da conversa, um dos colegas perguntou para o outro: – Sabes como
está Macareno? O outro respondeu: – Não está bem, quase não consegue
caminhar. Um deles sugeriu irmos visitar o Macareno, o que todos
concordaram e eu me juntei ao grupo. Fomos caminhando e o tema da
conversa era Macareno, a sua chegada, sua vida, seus amores e muito
mais.
Entramos num casarão antigo e através de um corredor fomos até
o fundo, onde encontramos um quarto com a porta aberta. Um por um
íamos entrando e cumprimentando o Macareno. Deitado em um colchão
que estava sobre o piso, não tinha cama, também nenhum móvel, perto da
cabeceira e no próprio chão um pires com restos de vela, alguns fósforos,
onde ainda restavam alguns palitos sem ter sido usados, no mesmo pires
havia algumas moedas, espalhados pelo chão, muitos tocos de cigarros e
perto dos pés muitos jornais mal arrumados. Os colegas me apresentaram
para o senhor Macareno, sua voz não era clara, era rouca e falava de
forma ofegante. – Ortega, eu lhe disse. – Macareno, me respondeu, quase
não podia se mexer. No rosto tinha muitas feridas, também nos braços e
corpo, ele mais parecia um defunto do que um ser vivo, tal era sua palidez.
Numa das paredes que ficava de frente à porta de entrada estava
dependurado um quadrinho de aproximadamente 20 centímetros por 20
centímetros, onde se via um jovem numa pose muito bonita de dançarino,
talvez dançando um passo doublé, segundo a posição dos braços e das
castanholas, vestia um traje andaluz, demonstrando um garbo e estirpe de
matão. Fiquei tão cismado vendo o quadro que me pareceu ver nele a
figura de um toureiro fazendo um arremate de gaonera com o capote,
curioso perguntei para o doente, indicando o quadro: – Este é o senhor?
Com a voz quase ininteligível me respondeu: – Aquele era eu, fiz o mesmo
barulho, quando cheguei aqui, igual que você está fazendo; tal como você,
eu saía a maior parte dos dias nos jornais, nas revistas, nos noticiários das
rádios, sendo o tal, o grande, me dediquei à farra, festas, luzes, alegria, e
de pronto tudo escureceu, a escuridão da noite me surpreendeu e estou
aqui prostrado sem conseguir ver a luz do dia, sem poder voltar à minha
terra para ver os meus, que tantas vezes me pediram para voltar. Eu fui
um ingrato, nem sequer uma carta lhes mandei, não sei quem ainda vive
nem quem já foi embora. Notava que quanto mais falava, sua voz ficava
mais clara, falava com tanta emoção que alguns dos colegas estavam com
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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os olhos cheios de lágrimas; todos em um silêncio profundo, rostos tristes,
mais parecia um velório.
Pelo meu cérebro passava a minha família, principalmente minha
mãe, me sentia triste, tinha se formado em mim o tal nó na garganta,
queria chorar e não conseguia. Toda aquela monotonia foi quebrada por
uma senhora que entrou levando um copo de leite e um comprimido
receitado pelo médico, ela entrou toda sorridente e perguntando: – Como
está esse velho doente? A alegria dela nos tirou do torpor em que nos
encontrávamos. Em seguida entrou, segundo nos disse a senhora, seu
marido, com uma bacia cheia d’água com algumas folhas, e dirigindo-se a
Macareno lhe disse: – Amigo, vamos tomar um banho? Neste momento,
para nos despedir, cada um foi colocando algum dinheiro no pires, e
prometemos voltar.
Uma vez fora do casarão nos despedimos, cada um tinha que
organizar sua função da noite. Combinamos nos encontrar na hora e lugar
de sempre. Dirigi-me para o hotel para preparar minha apresentaçao da
noite. A imagem daquele senhor eu não conseguia esquecer, o que ele me
falou: “a escuridão da noite me surpreendeu, aqui prostrado sem poder
voltar a ver a minha gente”, estas palavras me doíam bastante, sentia
medo de um dia não poder voltar à minha terra para ver a minha gente. Ele
disse que tinha sido ingrato, que não tinha mandado nem uma carta,
porém eu acho que não sou ingrato, me comunico sempre com a mãe
através de cartas e quando posso vou lhe visitar, não gosto de farra,
menos da bebida e nem do cigarro, meus romances são efêmeros. Mas
mesmo pensando desta forma, a imagem daquele senhor não se afastava
de mim. À noite, após a apresentaçao, voltei para o hotel, deitei, dormi e
sonhei com ele numa alegre farra, ele bebia e eu também. Quando
acordei, com muito esforço consegui lembrar o sonho, já não pensava
mais nele, me dirigi ao comedor para tomar café, como sempre o rádio
estava ligado, a maior parte dos programas era de notícias, num
determinado momento se escutou uma música sacra e em seguida o
locutor com voz pausada disse: Morreu o velho Macareno, amigo de todos
nós, foi embora deixando muita saudade. Depois de mais algumas
palavras informava: o enterro será hoje às 16 horas. Eu não sabia se
ficava contente porque ele descansara ou se ficava triste pela morte sem
alcançar seu desejo de voltar à sua terra e rever sua gente, me sentia num
dédalo sem encontrar a saída. Lembrei do sonho que tive que estava com
ele de farra, mas como nada entendia de sonho, deixei por isso mesmo.
Dirigi-me para a associação dos artistas para saber mais a
respeito. Na primeira banca que encontrei, vi num jornal que estava aberto,
duas fotos de Macareno, uma de meio corpo, ainda jovem, sorridente, e na
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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outra, estava dançando com as castanholas nos dedos. Em letras grandes
lia-se: Morreu Macareno, o grande bailarino de música espanhola. Não
parei para ler nem comprei o jornal. Quando cheguei na associação,
encontrei vários colegas, inclusive os que tinham visitado Macareno no dia
anterior, numa mesa havia jornais, em todos eles se lia a respeito da morte
de Macareno. Comecei a ler um deles que dizia: Aos 58 anos, morre o
bailarino espanhol que encantou o público do nosso país com seus lindos
movimentos. Uma página era só de elogios, sua chegada, suas
apresentações, seus alunos, muitos deles já percorrendo o mundo e se
apresentando. Tinha chegado com 22 anos, quando li esta parte senti um
calafrio, eu estava chegando também com 22 anos, lembrei que ele me
disse: eu fiz o mesmo barulho que você está fazendo na minha chegada.
Pensei: Não vou ficar aqui esperando que me pegue a escuridão sem
sentir, o quanto antes me toco daqui. Orações, palestras, poesias e
palmas, tudo isso houve no enterro de Macareno. Enquanto o sarcófago
recebia o caixão, eu falava comigo e dizia em silêncio: Obrigado
Macareno, me abriste os olhos, saberei me cuidar para que não me
aconteça o que lhe aconteceu. Obrigado Macareno, adeus. Poucos dias
depois, continuando para o sul, e sempre recebendo a mesma bênção e o
mesmo carinho dos habitantes dos lugares onde chegava.
Novos obstáculos
Uma vez na fronteira, entrei no seguinte país sem tropeço algum e
trabalhando em todos os povoados e cidades, até chegar na capital. De
tanto viajar me sentia meio cansado, meu guarda-roupa estava até
surrado, era bom parar um pouco, comprar roupas novas e organizar as
provas, que também estavam bastante deterioradas, por isso era
importante uma parada. Fiquei sabendo que este país tinha boas relações
diplomáticas com o meu país e que não teria nenhum problema para
residir e trabalhar. Dias depois procurei as autoridades para legalizar a
permanência, descobri que meu passaporte estava vencido e que teria que
atualizá-lo para residir. Exigiram-me atestado de antecedentes, teria que
pedir na Colômbia, e só com a documentação em dia poderia me associar
à associação dos artistas, que era bem organizada e os próprios artistas
fiscalizavam os clandestinos, portanto ninguém se atrevia a infringir a lei.
Sabendo que meus gastos eram diários, e para não diminuir as
economias, procurei serviço como ajudante numa serralheria, que não me
exigiu nenhum tipo de documento e me aceitaram sem problema. A
serralheria era bastante grande, com muitos operários. Comecei a
trabalhar de ajudante de um senhor que me recebeu com muito carinho,
ele estava trabalhando sozinho porque seu ajudante tinha saído por motivo
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de uma briga que teve com outro ajudante. O mestre geral me informou
que todos trabalhavam por empreitada, que eu ganharia 30% do que o
mestre ganhasse durante a semana, portanto deveria colaborar bastante
com meu chefe para tirar um bom dinheiro no fim de semana. Nada
questionei, eu queria era salvar o meu rango diário.
Antes de começar a trabalhar o chefe me perguntou: – Conheces o
metro? – Sim senhor. – Sabes cortar ferro? – Sim senhor. – Sabes ler a
escala de desenho? – Sim senhor. Em seguida me mostrou a planta onde
estava desenhada uma porta de 1 metro e 50 centímetros por 2 metros e
20 centímetros, mais 30 centímetros de bandeirola; era artística, toda em
ferro quadrado de média polegada e com muitos chinegos, que me fazia
lembrar uma que tínhamos feito eu e Antônio. Eu cortava o material
enquanto o chefe batia os chinegos, por certo muito bonitos, bem batidos.
Uma coisa me chamou a atenção, era que meu chefe, a todo momento se
acocava ou se sentava apertando o estômago, e quando se levantava
estava vermelho como um tomate maduro, na hora do almoço só tomava
um copo de leite, igual na hora do lanche. Ao ver o sofrimento do homem
me atrevi a lhe perguntar se era dor que sentia, me respondeu que estava
com pedras nos rins, que tinha tomado muitos chás, porém nada
resolvera, que por enquanto não poderia parar de trabalhar porque estava
devendo um dinheiro a juros e para não atrasar o pagamento teria de
trabalhar todo aquele mês. Prometi lhe trazer umas ervas para chá, que
segundo a minha mãe, eram boas para aliviar a dor renal e às vezes
conseguiam fazer expelir as pedras através da urina. Deu um sorriso meio
verde, um tapinha nas minhas costas e se despediu.
No dia seguinte não apareceu, eu continuei trabalhando
normalmente, não era o costume na firma, quando o chefe não aparecia o
ajudante cumpria o horário sem fazer nada. Eu liguei a forja e comecei a
bater os chinegos. Na hora do almoço se comentava que o Grego, assim
que era chamado, fazia vários dias que andava doente, mas que de
teimoso não ia ao médico. Uma vez pronto todo material, comecei a armar
a porta do jeito que fazia com o Antônio embora ali tudo era soldado e
mais rápido. Como era quarta-feira e o Grego não tinha mais aparecido me
dediquei a terminar a porta, enquanto eu trabalhava, ajudantes e
serralheiros desfilavam para dar fé no meu serviço, eu olhava para eles e
lhes dava um leve sorriso. Ninguém falava, o máximo que faziam era
enrugar a testa e ir embora. Procurei observar estritamente o desenho, a
medida conforme a escala e a bitola do ferro. Tive o cuidado de examinar
todas as soldas, dobradiças e fechadura, em seguida procurei o mestre
geral que era quem recebia os serviços e conferia. Muito tímido entrei no
escritório e falei para o mestre: – Senhor, a porta está pronta. O homem
ficou vermelho e talvez com raiva atirou a caneta na mesa, saiu rápido do
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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escritório quase correndo, quando os proprietários da serralheria viram o
mestre sair correndo eles também correram atrás dele, eu fiquei pasmo,
meu coração pulava lentamente, em seguida fui me aproximando deles, o
mestre com o metro e o esquadro na mão olhava a planta e examinava de
forma minuciosa. Pensei: vou embora sem receber nada. Os proprietários
examinavam os chinegos, parecia que os acarinhavam; o mestre começou
a sorrir de leve e este sorriso me aterrorizou, meu coração começou a
bater com mais força, os sócios se olhavam, eu mais me apavorava, me
sentia como um condenado à morte. Mestre e sócios sorriram. O mestre
chaveou, “deschaveou” a porta, vi ajudantes e serralheiros em volta
bisbilhotando, imaginei que seriam os que me condenariam, vi o mestre
mexer a cabeça em sinal de aprovação, em seguida me deu a mão
dizendo: – Bonito serviço, meus parabéns! Um dos sócios me disse: –
Você se apresentou como ajudante e não como profissional, porque de
acordo com o tempo e a qualidade do serviço: só um profissional! Vou lhe
dizer mais, aqui só temos dois serralheiros que fazem serviço artístico, que
é aquele velhote dos fundos e o Grego. O velhote, vendo tanta gente
reunida, estava vindo para bisbilhotar, a pinta do homem era de
cachaceiro, olhou a porta, examinou os desenhos, se aproximou de mim e
soltando aquele bafo de cachaça me disse: – Chinego bem feito, bonito
serviço, parabéns!
Na hora do almoço era aquela bagunça no comedor, todos falavam
no meu serviço. Um que era bastante desbocado falou: – Colombiano, nós
pensávamos que tu estavas fazendo cagada. Os patrões me pagaram o
total da empreitada. Fiquei sabendo que o Grego tinha sido operado e no
domingo fui visitá-lo, me recebeu sorridente, e disse que já sabia de tudo.
Ele voltaria a trabalhar em trinta dias. Da segunda-feira em diante o mestre
só me dava pequenos serviços artísticos. Três semanas depois chegaram
meus documentos, me deram a permanência e em seguida fiz parte da
associação dos artistas e ficava na obrigação de me apresentar nos
teatros ou salas indicadas por eles, o pagamento era combinado, assim
como as despesas extras.
Artista, serralheiro e mestre
Fiquei feliz ao me sentir legal no país e mais ainda de já poder
trabalhar nos teatros e muito contente fiquei quando recebi o aviso para
me apresentar já no sábado seguinte num povo perto da capital. A
programação também indicava vários povos e bairros da cidade, não iria
parar em dez dias, por este motivo não poderia continuar trabalhando na
serralheria. Na sexta-feira, quando informei os patrões da minha saída da
firma. Queriam saber os motivos, me ofereceram um bom salário e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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algumas regalias. Tive que lhes explicar tim-tim por tim-tim o que eu fazia,
o compromisso assumido e que no caso de não cumprir, poderia me
ocasionar alguns problemas e até ser expulso do país. Na hora do almoço
falei para os companheiros sobre minhas apresentações no teatro,
também falei onde seria a minha primeira apresentação.
À tarde, na hora do pagamento, me despedi de todos, escutei
muitas palavras de carinho, inclusive dos patrões.
Sábado à noite a minha surpresa foi grande, no momento que
apareci no palco fui recebido com muitas palmas e gritos de Orteguita,
Orteguita. Na penumbra da platéia consegui distinguir alguns dos meus
companheiros da serralheria e os patrões. Depois da apresentação, e
quando acenderam as luzes da platéia, vi que todos estavam em é e me
aplaudiam com força, gritavam meu sobrenome. Soube que eles tinham
levado suas mulheres, filhos e familiares, eles eram quarenta empregados,
com os familiares e amigos, encheram o teatro, me senti feliz de saber que
em tão pouco tempo tinha conquistado tantos amigos.
No dia seguinte, quando me apresentei na associação para
receber o dinheiro do cachê, ao entrar no prédio escutei vozes que
gritavam: – Colômbia, bonito teu espetáculo! Outro gritou: – Ortega, tu
ganhaste o povo! No escritório estava o presidente e o tesoureiro que me
cumprimentaram com muito carinho. O presidente me disse: – Ortega, o
dono do teatro ficou muito contente com tua apresentação, nos falou que
nunca tinha visto um artista ser tão aplaudido, tão ovacionado, parecia que
o teatro ia despencar com o barulho de tantos aplausos e gritos.
Felicitaram-me. Mal sabiam que quase todos os assistentes eram meus
amigos e seus familiares e que foram eles que fizeram toda aquela
bagunça que me tornou famoso, tudo devido a meus colegas serralheiros,
porque fiz uma porta artística, tinha entrado como ajudante e tinha feito o
trabalho de um fino profissional, era o que eles comentavam.
Durante um ano trabalhei em vários teatros de povoados e
cidades. Nunca mais visitei a serralheria.
Cansado do teatro, decidi parar um pouco e trabalhar de
serralheiro por conta própria. Mudei-me para a cidade. Aluguei um galpão
abandonado, com a condição de que quando fossem construir, teria que
desocupá-lo. Comecei fabricando suportes para vasos, floreiras, cadeiras
artísticas, cadeiras de balanço, etc. Os meus primeiros fregueses foram os
padres de um oratório que ficava perto do galpão que eu alugava. Os
padres reuniam as crianças todas as tardes no oratório para a oração, em
seguida lhes serviam um lanche e depois iam brincar no pátio onde havia
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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vários brinquedos. Às 20 horas os padres levavam as crianças às suas
casas. Eu tinha feito boa amizade com os padres, participava da oração
com a gurizada e ajudava a levar as crianças em casa. Aos sábados,
algumas crianças iam brincar pela manhã e à tarde, e aos domingos
também, sendo que a missa no domingo era de manhã. Adultos assistiam
também a missa, eu não faltava. Todos os domingos eu almoçava com os
padres. Quando algum brinquedo estragava, eu consertava e não cobrava
nada.
Alguns meses depois, o dono do galpão informou-me que em
breve começaria a construir e me ofereceu outro galpão, que ficava a
umas oito quadras dali, aceitei, não tinha alternativa. Quando informei aos
padres da mudança, não lhes pareceu uma boa idéia de eu ficar longe dos
olhos deles. No mesmo instante ofereceram-me um galpão grande,
localizado no fundo do pátio da sacristia, onde eram guardados os
badulaques, sem demora aceitei. Informaram-me que eles já tinham
pensado na possibilidade de me oferecer aquele local, com o propósito de
ensinar à gurizada o que eu fazia, me prometeram conseguir tudo que eu
precisasse, ferro, tinta, carvão e algumas máquinas. Era só dizer que eles
providenciariam. Fariam a propaganda e se encarregariam da venda da
produção, era só informar os preços. Naquele dia tudo ficou combinado,
60% do resultado das vendas seria para mim, 30% para repartir entre os
alunos que estavam aprendendo e 10% para a igreja. Eu não pagaria nada
e também poderia ocupar dois quartos que estavam ao lado do galpão
como moradia.
Gostei muito da idéia e no dia seguinte já estava no novo local.
Com a ajuda deles organizei tudo. Apresentaram-me à dona Regina,
secretária encarregada da contabilidade da igreja. Era ela que organizava
as festas religiosas e eventos também relacionados com a igreja, ficou
muito contente com a idéia de eu ensinar a gurizada, ela achava bonito
meu trabalho e gostaria que seus dois filhos também aprendessem. A
Regina, no primeiro momento, foi meu braço direito, me ajudava a
organizar tudo, matriculava a gurizada, até criou um tipo de estatuto, onde
em um item rezava que nos primeiros três meses os alunos não ganhariam
nada, porque ainda não estavam produzindo, estavam aprendendo a
conhecer a escala métrica e as bitolas dos materiais, que só começariam a
ganhar a partir do terceiro mês. A Regina organizou uns panfletos para
serem distribuídos nas missas do domingo, além do reforço dado aos fiéis
pelos padres nas missas.
Na segunda-feira se matricularam vinte e dois alunos pela parte da
manhã e doze pela parte da tarde. No dia combinado todos estavam
presentes, os da manhã e os da tarde. A gurizada era muito inteligente:
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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forjar a cabecinha dos chinegos, que era o mais difícil, mas na terceira ou
quarta tentativa já conseguiam fazer, e mais que tudo, gostavam de fazer e
de aprender. Eu sentia um gosto imenso de ser professor, meu
pensamento chegava até os professores, eles deveriam sentir o mesmo
gosto de ensinar, pena que ganhavam tão pouco. Perante eles eu levava
uma vantagem, meus alunos me bajulavam e faziam o possível para que
eu me sentisse bem, ao contrário de muitos professores de muitos lugares,
que são vítimas de seus próprios alunos, que os maltratam, xingam,
ameaçam e muitas vezes com a conivência dos próprios pais. Eu era um
professor feliz, era amado pelos meus alunos e bem tratado pelos seus
progenitores e além de tudo, ganhava bem.
Uma coisa que eu não sabia era que cada igreja tinha uma
determinada zona para atender seus fiéis, fazer os batizados, primeira
comunhão, casamentos, as crianças para orações só podiam ser da zona
correspondente. A existência da escolinha grassava como nenúfar num
lago. Os casais que tinham filhos queriam que ao menos um dos filhos
aprendesse a profissão e começaram a frequentar nossa igreja, vindo eles
de zonas um pouco distantes, que não pertenciam à Paróquia.
Aos domingos nossa igreja ficava superlotada. A procura por vaga
para a escolinha era muita, os rapazes que terminavam o curso, que
durava nove meses, não queriam sair, queriam continuar. Os padres
conseguiram muitas máquinas para aumentar a oficina e assim davam
oportunidade para os rapazes que terminavam o curso poderem continuar,
eles também ajudavam a ensinar aos novos alunos. Tínhamos rapazes
muito inteligentes, que até criavam bonitos desenhos e fabricavam peças.
Até adultos tivemos que aceitar, e por último, três meninas também foram
aceitas. Coordenada pela Regina, com ajuda dos padres, a escola ia de
vento em popa, tudo funcionava muito bem, só que os padres das outras
igrejas não estavam muito contentes vendo suas igrejas quase vazias nas
missas de domingo. A gurizada dos outros bairros não esperava que os
padres fossem recolhê-los em suas casas para irem nas orações. A
maioria fugia e corria para nossa igreja, não adiantava os padres pedirem
para os adultos e crianças frequentarem suas próprias igrejas, era o
mesmo que pregar no deserto.
O galpão teve de ser aumentado, construímos um palco,
ganhamos vários aparelhos de solda, furadeiras, bigornas, esmeril e
diversas ferramentas, doadas por firmas que inclusive compravam nossos
produtos para serem revendidos. Muitos donos de floriculturas vinham de
longe comprar e fazer encomendas. O sucesso era tanto que Regina teve
a idéia de fazer uma exposição, todos nós aprovamos a idéia. Eu prometi
fabricar com a gurizada peças com aplicações em bronze, alumínio e aço
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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inox. O entusiasmo da rapaziada era tanto que chegavam a trabalhar até
12 horas por dia e não queriam saber de parar nem aos sábados e
domingos. Os padres tinham que insistir para eles irem descansar.
Eu gostava de desenhar e esculpir durante a noite, quando todos
iam embora e enquanto esculpia me lembrava da família do capitão
Gaspar, quando esculpíamos peças também para uma exposição.
Lembrava o pranto da Celina na hora da despedida, pensava que ela já
deveria estar casada, pois se eu ficara adulto, é claro que ela também.
Interessante que sempre sonhava com eles, principalmente quando estava
esculpindo à noite.
Festejos natalinos
No dia 24 de dezembro, na missa do galo, a nossa igreja estava
lotada de fiéis, enquanto que nas igrejas dos bairros vizinhos eram poucos
os fiéis presentes. Isto incomodava os padres das outras igrejas. No dia 25
houve duas missas, uma na parte da manhã e outra na parte da tarde,
sempre com a igreja lotada. Passadas as festas natalinas, à tarde, me vi
frente a frente com um padre de outra igreja, que me lançou um olhar
felino, nesse olhar senti o ódio que sentia por mim. Assim mesmo lhe sorri
levemente. Notei que ele não gostou. Isto me ocasionou uma tristeza, uma
espécie de dor no coração, não sabia se contava para Regina e para os
padres ou se calava, preferi calar. Justamente naquele dia 26 tínhamos
combinado uma apresentação, eu, claro, como mágico, os meninos e as
meninas dançando, cantando, outros recitando poesias, os adultos
também participavam, entre eles um bombeiro, que sempre colaborava na
igreja. Com ele apresentamos uma toureada, eu toureiro sério, o bombeiro
toureiro cômico; o touro era tipo de bumba-meu-boi do norte do Brasil, o
corpo era feito de lona, os chifres e a cara eram do esqueleto de um touro,
pintado e adaptado ao corpo, que parecia verdadeiro. Dois rapazes
colocados na parte interna da lona faziam as patas do touro, os diálogos
foram organizados por um arquiteto, também colaborador, o bombeiro fez
o público rir à vontade. A programação e a organização do espetáculo
foram a cargo do arquiteto e de Regina, mas parece mentira, quem levou
as láureas fui eu. Muitos dos presentes e algumas autoridades felicitavamme, diga-se de passagem que tudo esteve muito bonito. No dia 27 foi
aberta a exposição, esta deveria durar até o dia 1º de janeiro. No dia 31 de
dezembro, todas as 840 peças já estavam vendidas, no dia 1º se encerrou
a exposição com a entrega das peças a seus respectivos compradores. O
dinheiro arrecadado foi repartido da forma combinada no começo, entre
alunos, igreja e eu. O bombeiro e o arquiteto, de forma alguma quiseram
receber dinheiro, melhor para mim, pois mais me tocou. Tinha me tornado
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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o ídolo da gurizada da escolinha, eram felizes ao meu lado. Os pais deles,
após verem meu espetáculo me achavam o máximo, as mães às vezes me
mandavam doces ou salgadinhos feitos em casa, com frequência aos
domingos eu era convidado para almoçar na casa da família de um ou de
outro. Alguns jovens alunos, que no começo tinham se mostrado apáticos,
agora eram meus melhores amigos, me convidavam para ir ao cinema,
aos concertos, às festas das universidades onde eles estudavam, alguns
queriam aprender a fazer mágicas, eu lhes ensinava as fáceis, as mais
difíceis eu lhes dizia que para aprender essas provas, era preciso ligeireza
de mãos e agilidade de dedos. Eles popularizaram essas palavras e para
todos, e a toda hora, se ouvia: ligeireza de mãos e agilidade de dedos. Às
meninas que também queriam aprender, lhes dizia que tinham que dizer
bem ligeiro e sem errar as seguintes palavras: marajá, marapá, marajá,
marapá, marajá, marajú. Aprendiam, mas as provas não saíam, eu lhes
dizia que continuassem praticando que no final a prova sairia.
Adorava ir nas casas de amigos onde havia crianças pequenas.
Elas ficavam felizes quando me viam chegar, corriam para me abraçar e
subiam no meu colo. Alguns mal e mal conseguiam pronunciar meu nome.
Nas casas que os adultos me chamavam de Ortega, o máximo que as
crianças conseguiam pronunciar era Tega, nas que me chamavam de
Orlando, a pronúncia era, uns Lando, outros Ando. Como era gostoso,
tinha amigos por todos os cantos, quando me chamavam pelo telefone, a
voz do outro lado falava: – Negrinho, vem almoçar conosco no domingo,
vamos fazer ravióli. Como era bom ouvir aquela palavra “Negrinho”, dita
com tanto carinho, outras vezes era: – Negro, domingo vamos preparar o
que tu mais gostas, peixe, te esperamos para almoçar conosco. Outros
era: – Colômbia, Orteguita, Landito (Landinho), nunca antes tinha ouvido
me chamar de tantas formas. Não tinha festa, aniversário, batizado,
casamento que eu não fosse convidado. Ultimamente na escolinha,
tínhamos guris, adolescentes e adultos, e também três meninas. A Regina
tinha tudo organizado e todos disciplinados, tínhamos também três times
de futebol, um de crianças, um de adolescentes e outro de adultos, às
vezes se organizavam torneios com times de outros bairros de perto, e
distantes também.
A escola de aprendizes e o conflito entre paróquias
As outras igrejas vizinhas continuavam com poucos fiéis aos
domingos nas missas e nas orações. A nossa sempre tinha gente rezando
na missa e na oração, sempre lotada, os batizados e casamentos eram
seguidos. Na escolinha, como era chamada, continuávamos fabricando
peças, a freguesia aumentava, diariamente vinha gente de muitos lugares
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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e até de outros municípios para fazer encomendas e quase sempre em
grande quantidade, tudo o que se fabricava era vendido. Dia a dia a
escolinha ficava mais famosa. Muita gente queria conhecer o tal
colombiano que ensinava à gurizada a arte da ornamentação em ferro.
Muitas autoridades vinham nos visitar, prefeitos, ex-prefeitos, vereadores,
deputados, homens e mulheres das letras, artistas plásticos, até a esposa
de um ex-presidente do país já falecido foi nos visitar. As notícias de todas
as visitas se espalhavam e isto provocava certa raiva nos padres das
outras igrejas. Ficamos sabendo que aos domingos, no púlpito, davam um
toquezinho contra a escolinha, e mais que tudo contra aquele cidadão
estrangeiro, claro que era eu. Nada me preocupava e ninguém fazia caso,
o que nos importava era o andamento da escolinha.
Uma ferragem tinha doado brocas e alguns parafusos, eu mesmo
fui pegar. Quando regressava, me abordou aquele padre que eu tinha visto
anteriormente e que não tinha feito cara boa para mim. Sem me
cumprimentar, e de forma grosseira, me perguntou: – Qual é teu país?
Respondi: – Colômbia. Em seguida me disse: – Sabes que tu vais ser
preso? – Não senhor, respondi, nada fiz de errado. – Sim, desde que
chegaste estás perturbando a harmonia que aqui sempre existiu, e tu, com
tua mentirosa escola, tens provocado muitas brigas entre vizinhos. Porque
tu não vais embora antes de seres pego? Sem esperar resposta, ele se
mandou quase que correndo, fiquei um pouco confuso vendo aquela
batina desaparecer. Naquela época os padres usavam batina preta. Fiquei
um pouco amedrontado, sem saber o que fazer, o que pensar, começava a
me invadir uma certa melancolia. A sorte foi que naquele momento ouvi
várias vozes que gritaram: – Negrinho! No mesmo momento um casal de
crianças se grudou em mim, em seguida chegaram os pais, era um casal
de amigos que eu sempre visitava. Muitas vezes me convidavam para
almoçar e às vezes eu até dormia na casa deles. Eu adorava essa dupla
de crianças, queriam entrar na escolinha, começamos a fuzarquear, meu
estado de ânimo mudou e esqueci de tudo e também não contei nada do
acontecimento para o casal.
Imigrante, um intruso?
Passados aproximadamente uns dez dias do encontro com o tal
padreco, estávamos com a gurizada tomando café da manhã, não
gostávamos de ir nos sentar no comedor, ali mesmo na oficina era mais
gostoso, tudo era gozação, riso e brincadeira. Foi neste momento que
vimos entrar quatro policiais, um deles muito grosseiro perguntou: – O que
vocês estão fazendo? Um dos rapazes, sem maldade nenhuma,
respondeu: – Tomando café. O policial ar de brabo respondeu: – Cala a
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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boca, não é com você. Com raiva perguntou: – Quem é o colombiano?
Levantei-me e respondi: – Sou eu, senhor! O guarda me fez assinar um
papel e me entregou a cópia dizendo: – Tem quatro dias para se
apresentar na delegacia. O delegado quer falar com você, há denúncias de
desordem e bagunça. As gurias, todas nervosas, começaram a chorar,
ficando perto de mim. Quando a Regina viu os policiais saindo e escutou o
pranto das meninas, ela e um padre alemão vieram correndo e leram o
papel. Disseram: – Não é nada. Em seguida levou as meninas para o
escritório. Claro que nosso café ficou estragado, senti o impacto que os
policiais causaram na garotada, eram meninos de famílias humildes,
pobres, que moravam em bairros pobres, meninos bons, sem maldade,
senti que a revolta deles era profunda.
Aquela noite não consegui dormir, fechava os olhos e via as
meninas chorando, certamente nunca tinham visto policiais tão grosseiros
como aqueles, arrogantes e sem educação. Continuava pensando: se um
menino desses que ficou revoltado, mantendo aquela raiva, e se um dia
um daqueles guris, pela própria vingança virar um guri mau, perverso, que
não respeita ninguém e enfrenta até a polícia, a culpa não será dele, nem
dos pais, e sim da própria autoridade, pois com ela aprendeu a ser mau.
No dia seguinte fiquei sabendo que os pais das meninas e de
alguns garotos e adultos que faziam parte de nosso grupo, revoltados se
dirigiram à prefeitura para falar com o senhor prefeito, denunciar a invasão
indevida à nossa escolinha. Naquele dia ninguém apareceu na escolinha,
eu aproveitei para ir à delegacia cumprir a intimação deixada pelos
policiais. O padre alemão queria me acompanhar, porém os padres não
deixaram, porque a presença dele poderia ser tomada como afronta.
Apresentei a intimação ao delegado presente, não era ele que assinava a
intimação, porém tudo estava escrito na ordem do dia anterior. Quando o
delegado soube quem eu era, a primeira pergunta que me fez foi: – É você
que fabrica aquelas peças tão bonitas em ferro? – Sim senhor, respondi.
Ele continuou: – Já compramos várias peças; na exposição minha mulher
queria comprar tudo; vimos também seus números de mágica e me
felicitou dizendo: - O que você e os padres estão fazendo pelas crianças é
muito meritório. Ao contrário de falar a respeito da intimação, era só
elogios. Quando lhe perguntei por que o outro delegado tinha me intimado,
me respondeu: – Estou seguro que ele só fez isso para satisfazer os
padres das outras igrejas, que a toda hora estavam enchendo o saco para
que mandássemos fechar a escolinha, mas que poderia estar seguro que
nenhum dos delegados mandaria fechar o que para eles era algo de muito
valor. Todos eles tinham comprado nossas peças. Sentia-me muito bem
conversando com o delegado, pena que começou a chegar gente,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 373
aproveitei para me despedir, me acompanhou até a porta, prometendo ir
nos fazer uma visita.
Na escolinha todos me esperavam nervosos, pensando que iriam
me deter. Quando me viram chegar, todos queriam saber o acontecido na
delegacia. Quando lhes contei da conversa com o delegado, a alegria foi
geral. Os que foram falar com o prefeito me contaram que ele tinha
prometido procurar saber o motivo da invasão e tomar as devidas
providências. No dia seguinte tudo estava na santa paz. Como se
aproximava a semana da pátria, a Regina e os padres, que se
preocupavam por organizar eventos para toda a comunidade, decidiram
organizar um torneio de futebol com a gurizada, e já tinham até times
organizados.
Na oração, nas missas e com o pessoal da escolinha, era feita a
divulgação. O interesse era tanto que em poucos dias doze times já tinham
inscritos. Para organizar o torneio foram convidados os dirigentes de cada
time. Pelo pouco que eu entendia de futebol, fiquei sabendo que tudo
estava organizado ao gosto. Para apitar os jogos foram convidados juízes
da federação, inclusive bandeirinhas. O juiz que apitou o jogo da nossa
equipe era um senhor loiro, jovem, e que tinha fama de ser bom juiz. A
nossa torcida estava em peso, idem a do outro time. O estádio era
improvisado, o barulho das duas torcidas era ensurdecedor, o jogo era
tenso, nada de gol, no segundo tempo continuava o mesmo escore, a
informação que recebi era que no caso de empate seriam jogados mais 15
minutos e o primeiro que fizesse gol seria o vencedor e o jogo terminaria, e
se persistisse o empate, cada time cobraria cinco pênaltis, seria ganhador
quem mais gols fizesse. As duas torcidas estavam em completo silêncio,
faltavam poucos minutos para o fim do jogo, os dois times lutavam para
fazer o gol do triunfo. Em um determinado momento, formou-se um
entrevero na goleira do time contrário, quando, de repente o goleiro se
atirou de forma violenta contra um de nossos jogadores que estava com a
bola e saiu rodeando como um pneu. O juiz apitou, ouvi que alguém gritou
pênalti, a nossa torcida começou uma tremenda gritaria, em poucos
segundos o campo foi invadido por torcedores do outro time, que queriam
bater no juiz. Foi necessária a intervenção dos padres e gente deles
mesmos para evitar que batessem no juiz. O pênalti foi cobrado e os
nossos venceram. Todos gritavam, pulavam, se abraçavam, era pura
alegria, enquanto os outros saíam tristes e em silêncio, inconformados
com a derrota. Após um lanche oferecido pelos padres e organizado pela
Regina, o juiz se despediu, eu que durante o lanche tinha feito amizade e
conversado bastante com o juiz da partida, me prontifiquei a lhe
acompanhar onde havia estacionado o carro.
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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A surra, o trauma e o fechamento da escolinha
Íamos conversando animadamente quando, de repente, vimos que
se aproximava uma quantidade de rapazes e juntos alguns adultos; nos
pegaram e começaram a rasgar a nossa roupa, outros nos batiam com
pedaços de pau, gritando: Juiz ladrão, Negrinho safado, vai embora daqui.
Eu não oferecia resistência, me atiraram no chão, procurei ficar de boca
para baixo e tratar de cobrir a cabeça com as mãos, trancava a respiração
e tratava de deixar o corpo duro para sentir menos as pauladas e as
pedradas que caíam sobre meu corpo. Aos gritos dos vizinhos vieram os
padres junto com a gurizada para nos defender, a polícia que tinha sido
chamada chegou nesse momento e evitou-se uma verdadeira batalha
campal, dois rapazes que me batiam no momento em que a polícia
chegou, foram presos, outros que batiam no juiz também foram levados
para dentro do camburão. O pai de um deles queria que soltassem o filho
e discutia com os policiais, então também foi colocado no camburão.
Quando tentei me levantar não consegui, minha cabeça rodava,
Regina e os padres tentaram me ajudar, porém os policiais não deixaram,
eles me deitaram em uma tábua larga e me amarraram, em seguida me
colocaram em uma ambulância e fui levado para um hospital. O senhor juiz
de futebol foi levado da mesma forma que eu, amarrado a uma tábua e em
um carro de bombeiros. Da minha roupa só restaram frangalhos, só um
sapato no pé esquerdo, o do pé direito fui informado que fora levado como
troféu da surra. Todo atendimento no hospital pelos médicos e enfermeiras
foi excelente, todos mexiam comigo. No dia seguinte, e após vários
exames, me informaram que nada grave havia acontecido comigo, eram
só escoriações e me liberaram. Na saída do hospital me esperavam vários
padres, a Regina, a gurizada e alguns pais e também muitos amigos do
bairro me receberam com palmas e gritos de Orteguita. Como era gostoso
me sentir querido por tanta gente, claro que não era muito bom sentir-se
surrado. Nas duas noites que fiquei no hospital não pensei em nada
porque ficava até meia-noite conversando com médicos e enfermeiras que
me perguntavam o porquê da surra, outros queriam saber como tinha
chegado ao país, o maior interesse era ouvir como havia fugido de casa
pela primeira vez.
Já na escolinha, e à noite deitado, sentia meu sistema nervoso um
pouco alterado, lembrava tantas provas de carinho por parte de alguns e
talvez ódio por parte de outros, as lembranças vinham aos montes, não
conseguia dormir, lembrava as vezes que tinha estado em hospitais, a
primeira vez foi quando me joguei daquele ônibus em movimento, quando
ainda era muito guri. Também quando o ônibus capotou, passavam pela
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 375
minha mente os momentos ruins, mesmo assim os bons eram superiores.
O que nunca tinha pensado era que um dia ia ser surrado. Peguei no sono,
mas dormindo continuava lembrando das minhas andanças, as minhas
vivências por este mundo de Deus. No momento que acordei me lembrei
de minha Santa Sara Kaly, tinha esquecido dela, talvez se antes de
apanhar tivesse pedido socorro para ela, não teria levado tal surra.
Naquela mesma madrugada fiz uma promessa, que todos os dias
na hora da oração iria rezar para ela. Os acontecimentos tinham me
deixado traumatizado, sentia medo de andar na rua. Ao me deitar colocava
arapucas na porta e na janela, com medo que alguém tentasse entrar no
quarto, colocava latas, panelas em cima das cadeiras para que com o
barulho me acordasse para que não me pegassem dormindo. Escondido
no meio da fronha do travesseiro tinha um pedaço de ferro de 1 metro de
comprimento, em um dos lados tinha feito uma ponta bem aguda para me
defender, no caso de alguém me atacar. Era tanto trauma, o pavor, que
quando alguma das famílias amigas me convidava para jantar ou almoçar,
inventava qualquer mentira para não ir, só para não sair na rua. Vivia
pensando na minha família. O Macareno a todo momento aparecia no meu
cérebro e para completar o meu trauma e ficar mais nervoso.
Soube que a cúria metropolitana tinha mandado um ofício para que
os padres fechassem a escolinha até nova ordem. O motivo alegado era
que os padres das outras igrejas tinham se queixado que a escolinha tinha
afastado a maioria dos fiéis das igrejas. A ordem foi obedecida, a
escolinha foi fechada. Passados alguns dias do fechamento, ainda a
gurizada e alguns pais sempre apareciam à procura de notícias, de
informações. Esta situação me irritava, eu permanecia a maior parte do
tempo encerrado no quarto, só saía quando me chamavam para as
refeições, depois do almoço, como sempre, ia dormir os 10 minutos do
Antônio, só que chegava a dormir até duas horas.
Empresário falido
Certo dia recebi uma carta da minha mãe onde me dizia que meus
irmãos, cunhadas e cunhado queriam festejar meu aniversário e gostariam
que eu estivesse presente. Pareceu-me ser uma boa oportunidade para
viajar. Sem pensar muito, na hora do almoço comuniquei à Regina e aos
padres o desejo de visitar meus familiares enquanto se solucionava o
problema de poder reabrir a escolinha. Todos aprovaram, fiz um pedido,
não queria nenhum tipo de festa de despedida. Três dias depois estava
viajando, meu pensamento era de não voltar, levava algum dinheiro e
poderia abrir qualquer tipo de negócio. Sem nenhum contratempo, minha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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chegada em casa foi de muita alegria, todos meus irmãos estavam
casados e todos tinham filhos, em casa só ficavam minha mãe e minhas
duas irmãs caçulas. Entre todos, festejaram com muita pompa o meu
aniversário. Dias depois falei com a mãe e meus irmãos do interesse que
tinha de instalar algum tipo de negócio. Meu irmão Marino me falou que no
porto estavam precisando de ônibus-lotação, pois estavam organizando a
frota de lotação urbana. No porto me apresentou aos diretores, que me
receberam de braços abertos e me deram todas as dicas de como deveria
ser a lotação, portas, bancos, pintura, ano, etc.
Voltamos à cidade, fomos a uma revendedora, encontramos o
carro com as características exigidas, em seguida o levamos a uma oficina
especializada neste tipo de serviço. Um mês depois me apresentei com o
carro pronto para trabalhar, porém a surpresa foi grande, quando soube
que tinha mudado a diretoria e que os novos diretores só aceitavam carros
de determinados anos, no qual o meu não se encaixava, pois tinha um ano
a menos do exigido, não adiantou choro nem vela para que aceitassem a
minha lotação.
Voltei para casa não triste nem com raiva, porque se este negócio
não deu certo, outro poderia dar. O dono de um ônibus urbano de linha da
cidade, sabedor que foi da existência e do estado da minha lotação, se
apresentou querendo trocar o ônibus pela lotação, alegando que pretendia
se mudar para sua terra natal, que era um município que ficava em outro
estado, onde morava a esposa, filhos e toda sua família, pois já estava
aposentado e também um pouco cansado, e com a lotação pretendia fazer
pequenos transportes, aproveitando assim para estar mais perto da
família. Orientado por um advogado, fechamos o negócio. Como ele não
tinha todo o dinheiro, fazendo parte do negócio para completar o valor da
lotação, deu de entrada uma geladeira, um fogão elétrico e um roupeiro,
tudo novo, sem uso, mais o ônibus, e parte em dinheiro.
Uma vez meu o ônibus, ele, para demonstrar sua idoneidade, se
prontificou a dar a primeira volta comigo: o ônibus se portou muito bem, na
viagem de ida foi lotado, idem na viagem de volta. Ao chegar ao fim da
linha, recolhi todo o dinheiro arrecadado, ele me perguntou: – Que tal? –
Muito bom, lhe respondi. Até o fim do dia ainda tenho de fazer mais três
voltas. – Sim, me disse ele, só que não deve se iludir, porque sempre tem
um gastinho extra nessas máquinas, porém sempre sobra. Com as sobras
eu fiz a minha casa, eduquei meus filhos e por isso quero voltar para o
meu povoado, trabalhar menos, descansar mais. Uma hora depois fiz a
segunda saída, a ida foi lotada de passageiros e a volta também. Às 20
horas e 30 minutos saí para fazer a última volta, que durava 90 minutos.
Não acostumado a este tipo de serviço, estava um pouco cansado. Após
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um bom banho, e muito contente com o resultado, fui dormir. No dia
seguinte a minha primeira volta seria às 13 horas e a última terminaria à
meia-hora da manhã. Às 12 horas, quando cheguei ao paradeiro dos
ônibus, tinha uma notícia, os motoristas estavam escandalizados, o
colega, amigo de todos e ex-dono do ônibus que agora era meu, para se
despedir tinha convidado alguns dos colegas para jantar, e no jantar tinha
tomado umas que outras. Sem ouvir os conselhos dos colegas, e alegando
que estava muito bem, partiu a uma hora da madrugada, só que, segundo
informações da polícia rodoviária, às 4 horas, em uma curva, tinha batido
contra um morro, demolido o carro e sua morte tinha sido instantânea.
Eu tinha que cumprir o horário, e às 13 horas saí, era horário de
poucos passageiros, enquanto recolhia os passageiros eu pensava: que
pena, todos morrem e eu fico vivo, mal conheci o Macareno e o cara
morreu, não conseguiu realizar seu desejo de ver os familiares; este outro
me vendeu o ônibus para ir viver junto com os seus, morreu, também não
conseguiu. Muitos passageiros que conheciam o dono do ônibus
comentavam a morte, nenhum sabia que agora o dono do ônibus era eu, e
que o carro em que ele tinha se matado era meu. Lembrava da felicidade
dele quando deu algumas voltas na lotação e bem contente me disse: – É
isso mesmo que eu preciso. Os passageiros continuavam subindo,
sobravam poucos bancos vazios, de repente o dito ônibus deu uma
tossida, apagou e não pegou mais. Devolvi o dinheiro para os passageiros
e o ônibus foi rebocado para a oficina mecânica, o orçamento que me
deram não compensava o valor do ônibus, na garagem todos
comentavam: – Era um carro bom, quase nunca incomodava, ele cuidava
muito bem desse carro, foi dono por vários anos, o ônibus não gostou da
troca de dono, e ao saber da morte de seu antigo dono ele também
morreu. Sem chance de conserto, vendi-o ao ferro velho.
O desejo de uma companheira
Eu comecei a sentir receio de tentar outro tipo de negócio, já tinha
perdido algum dinheiro naqueles dois, não podia contar com a ajuda dos
meus irmãos porque todos trabalhavam e também não moravam em casa.
Toda a gurizada da vila tinha se casado e tinha filhos, uns haviam se
mudado, alguns idosos tinham morrido, outros estavam muito velhinhos e
mal me reconheciam, outros estavam vivendo com os filhos que não
moravam mais na vila. As minhas cunhadas me tratavam como a um
estranho, claro, tinham razão, só agora que estavam me conhecendo; as
minhas irmãs caçulas permaneciam todo o dia na escola, saíam pela
manhã e voltavam somente à noite. Para abrir uma escolinha eu não
encontrava ambiente e não fazer nada me deixava nervoso. Fazia todo o
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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possível para a mãe não notar, algumas vezes saía para dar algumas
voltas na cidade, mas voltava ligeiro para casa, me sentia só, lembrava da
Regina, dos padres, das famílias que me queriam bem, dos gurizinhos
filhos dos meus amigos, aqueles gurizinhos que quando eu chegava nas
casas era aquela alegria, brincávamos, deixando a casa toda revirada.
Lembrar tudo isto me entristecia, tanta alegria longe dos meus e quanta
tristeza e solidão na minha própria pátria. A única amiga e companhia era
minha mãe, eu sentia que ela se entristecia com a minha tristeza. O amigo
Efraim tinha se mudado de casa e os vizinhos não sabiam para onde.
Sobre o André, soube que tinha se casado e suas irmãs também, e todos
tinham filhos, porém ninguém sabia onde moravam, tinham vendido a casa
e cada um tinha comprado a sua.
Às vezes tinha vontade de ter uma noiva, mas não tinha coragem,
tinha receio de receber um fora, embora naquela época as meninas
esperavam que os homens as namorassem e era coisa não muito fácil; a
gente tinha que ir devagar, primeiro receber de longe o sorriso da menina,
algumas vezes sorriam e se escondiam, com temor que os pais as vissem
sorrindo para algum rapaz. Claro que se ela sorria para a gente já era bom
começo, sempre se procurava a amizade de um irmão, a pretexto de
qualquer coisa se entrava na casa com ele, dar demonstração de bom
comportamento, educado e trabalhador, para elas era o principal. O passo
seguinte era granjear amizade com a mãe, e aí sim começar a dar
demonstração de interesse pela menina, toda a rapaziada sabia que a
mãe chegava para o marido: – Amor, parece que aquele rapaz, amigo do
nosso filho, está interessado na nossa filha, se vê que é um rapaz
educado, bom filho e trabalhador. O pai, depois de averiguar a que família
pertencia, então dava carta branca para o namoro, que era na sala, ela em
um sofá e o pretendente em outro, sempre acompanhados por um irmão,
irmã ou até pela própria mãe ou o pai lendo o jornal. O horário de visita era
das 20 horas até as 22 horas, aos sábados, domingos e nas quartasfeiras. Na despedida, o máximo permitido era com as mãos, nada de
selinhos, nem beijo desentupidor. Eu não tinha saco para tudo isso, e nem
tempo para começar, e meu estado de ânimo me dava menos condições
ainda.
A minha mãe fazia de tudo para me ver feliz, me dava todo carinho
que podia, eu não tinha coragem de empreender nenhum tipo de negócio,
observava a vila, mas tudo tinha mudado por completo, as malocas da
minha infância quase todas tinham desaparecido, as poucas que
restavam, seus donos não eram os mesmos, existiam algumas totalmente
abandonadas, nada se sabia dos donos. Agora existiam ruas asfaltadas,
muitas casas bonitas, com jardins na frente, muitos sobrados e até prédios
com três andares. O movimento de veículos era constante, os bairros que
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antes eram separados da nossa vila, tinham se tornado uma coisa só, tudo
isso me causava uma certa dificuldade de orientação, por exemplo, a
maloquinha onde morava a mãe da Romélia, agora era um bonito sobrado,
na parte térrea era um grande armazém. Por toda parte havia negócios,
padarias, farmácias, bares e até danceterias. Um dia acompanhei a mãe a
um armazém, passamos em frente a um ferro-velho muito decadente e a
mãe me disse: – Você lembra do Polaco? Não podia acreditar ser aquele o
ferro-velho do amigo Polaco. A mãe me falou: – Ele está muito velhinho e
cego, a esposa dele, dona Elga morreu, e ele, mesmo assim, cego,
continua vendendo seus pedaços de ferro e parafusos. Tem um filho que
mora na capital, já tentou levá-lo para lá, a nora também, só que ele não
quer, prefere continuar vendendo seus ferros. Aquele casal que mora na
frente é que cuida dele, são pagos pelo filho. Eu convidei a mãe para
entrarmos, pois gostaria de falar com ele. Estava sentado em uma cadeira
com acento e encosto todo rasgado, perto da porta, me aproximei dizendo
bom-dia. Com pouca vontade me respondeu, e com voz um pouco
grosseira me perguntou: – O que você quer? Eu continuei: – Não sei se
lembra de mim, sou o Ortega, aquele guri que às vezes vinha lhe ajudar a
separar os parafusos. Lembra-se que o senhor me deu de presente uma
bicicleta? Dona Elga costurava camisas e shortezinhos. Com certa raiva
me respondeu: – Bicicleta não tem mais e a Elga não está costurando
mais, volte outro dia. Eu queria continuar tentando, só que neste momento
apareceu um rapaz moreno de bicicleta e em voz alta disse: – Polaco, tem
parafusos de 2” x ½” com porca? O Polaco ficou um pouco pensativo e em
seguida respondeu: – Tem! – Preciso de dois. O Polaco levantou-se com
certa dificuldade, apoiado em uma bengala e um pouco inclinado para
frente, antes de continuar disse-me: – Espere aqui. Dirigiu-se até o fundo
do galpão onde havia uma prateleira com várias gavetas, na primeira que
tocou pegou os dois parafusos, se abaixou um pouco e pegou as porcas.
Desde lá perguntou: – Quer arruelas? – Quero quatro, respondeu o
moreno. O Polaco dirigiu-se a mais ou menos um metro e meio de
distância, à direita, e sem nenhum tipo de dúvida pegou as quatro arruelas.
Com passos lentos chegou até nós, entregou o material ao moreno que
por sua vez lhe entregou uma nota. O Polaco tirou um rolo de notas e
colocou a nota recebida, em seguida do outro bolso tirou um rolo de notas
de menos valor, deu o troco para o moreno, este deu um tapinha nas
costas do Polaco, agradeceu e foi embora. Eu aproveitei e falei: – Quer
dizer que o senhor não se lembra de mim? Não se lembra do seu
Negrinho? Ele, como com uma espécie de raiva me disse: – Volte outro dia
que a gente conversa. Notei que ele parecia longe deste mundo e que na
realidade não se lembrava de mim e que minha presença não lhe
agradava. Saí dali muito triste, retornei ao passado de guri quando eu lhe
ajudava a separar porcas, parafusos, arruelas, ferros, lembrei aquele
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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domingo que ele me deu de presente aquela bicicleta que nunca me
esqueço da marca, “ADLER”, tinha até caixa de mudanças.
Com as bênçãos da mãe
De noite, deitado, a figura do Polaco não saía da minha mente,
pensava: Elga está morta, o Polaco está vivo, mas é como se estivesse
morto, falei comigo mesmo, não quero mais ver aquela miséria humana,
aquela amiga dos vivos, a dona morte, o que é que eu estou fazendo aqui?
Nada, eu devo ir embora daqui, voltar para lá onde tenho amigos. Amanhã
mesmo falarei com a mãe, mas a minha preocupação era a tristeza que a
mãe ficaria quando lhe informasse da minha decisão. Mas foi tudo ao
contrário, quando lhe falei a respeito, com voz calma e com um certo
sorriso leve me disse: – Sim, meu filho, é o melhor que você pode fazer,
compreendo que sua vida, sua felicidade não está aqui e com a bênção de
sua mãe, vai meu filho, você sabe que Santa Sara Kaly é sua protetora.
Reze sempre para ela, não deixe de me escrever, me informe de sua vida,
de suas andanças e sempre que puder venha nos visitar. Pedi para a mãe
que não falasse para ninguém da minha decisão, nem mesmo para meus
irmãos, pois só iria me despedir dela.
Dois dias depois estávamos no aeroporto, na hora do embarque
nos abraçamos, lhe dei vários beijos ela também, com muitas bênçãos,
não estava triste, estava calma, parecia sorridente, satisfeita com a minha
viagem. Talvez eu estivesse triste ao subir no avião, dei a última olhada, lá
estava ela na passarela, lhe abanei, ela me abençoou várias vezes e entrei
no avião. Tentei olhar, mas já não se enxergava o público, o avião partiu,
fechei os olhos, e no pensamento comecei a me censurar e me dizia:
coitada da mãe, como a tenho feito sofrer. E me perguntava: será que
após tantas viagens ela continuava sofrendo nas minhas partidas? A
minha viagem não seria direta, porque o dinheiro não dava, programei
para só fazer esta primeira escala de avião, o resto faria de ônibus e
trataria de viajar de 500 em 500 quilômetros e permaneceria em cada
povoado ou cidade no máximo três dias para chegar o quanto antes na
cidade dos padres da escolinha e da Regina.
Assim foi meu retorno por diversas cidades que ainda não estivera:
apresentava-me em escolas, quartéis de soldados, cadeias, clubes, bares,
teatros. Nas horas livres do dia, fabricava moldes de borracha látex com
diversas figuras, também fabricava umas serrinhas tipo tico-tico manual e
moldes para pintar, em diferentes tamanhos e figuras. Nas escolas
ensinava a garotada a utilizar o material e depois vendia; a minha
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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apresentação era gratuita, o dinheiro que arrecadava cobria todas as
despesas e sempre sobrava para guardar.
Depois de vários meses viajando e parando, felizmente cheguei ao
país que tanto desejava chegar. Agora só faltava chegar à cidade dos
meus amigos. Após passar por vários povoados e pequenas cidades,
cheguei em uma cidade que me pareceu muito bonita, tinha muito
comércio e bastante indústrias. Primeiro tratei de me organizar numa
pensão, depois saí para dar uma volta e conhecer um pouco a cidade. No
dia seguinte fui à procura de apresentações, como sempre me guiava por
intuição, me dirigi ao quartel do exército, o soldado que me atendeu me
levou até o capitão, que depois de examinar meus documentos, fotos,
recortes de jornais, me levou até o coronel chefe de divisão que me
recebeu com carinho e educação, e depois de ver fotos e documentos
começamos a conversar. Fez-me perguntas a respeito do meu país, de
meu trabalho, etc. Notei que simpatizara comigo, depois me disse: –
Nunca fizemos espetáculos aqui no quartel, mas vamos reunir os recrutas
recém ingressados. Em seguida chamou o coronel e lhe apresentou a
idéia de fazer o espetáculo no ginásio de esportes. Ofereceu-me uma
quantia X, dizendo: – É pouco, mas não temos verba. Ele achou pouco, eu
achei bom demais.
No dia seguinte, às 16 horas, como combinado, comecei meu
espetáculo. Os soldados eram bem disciplinados e educados. Quando
entrei ficaram de pé e bateram palmas. Durante a apresentação riam e
aplaudiam. Terminada a apresentação, o coronel que estava presente veio
me felicitar, achou bonitos meus números. Em seguida me convidou para
jantar na sua casa, também convidou o capitão, lá me apresentou sua
mulher e filhos. Antes do jantar, fiz algumas provas de salão. Enquanto
jantávamos o coronel falou para o capitão do interesse que tinha de
apresentar um espetáculo para o dia do soldado que seria em vinte dias.
Pediu-me informações de meus gastos e depois de uma pouca conversa
ficou combinado que dormiria e faria as refeições no quartel dos bombeiros
e que o espetáculo seria apresentado no ginásio municipal que tinha
capacidade para dois mil espectadores. A idéia era convidar o maior
número de autoridades com suas esposas, filhos e parentes. Meu
pagamento ficaria por conta do Governador, que uma vez informado,
imediatamente se prontificou a colaborar. Naquela mesma noite fui
apresentado ao chefe dos bombeiros, o major Zelada, que entusiasmado
com a idéia, já me mostrou onde dormiria e o comedor onde faria as
refeições, que seriam feitas junto com os oficiais. No dia seguinte já tinha
me mudado e encontrei vários bombeiros com afinidades artísticas
dispostos a colaborar. Quando lhes falei do touro assumiram o
compromisso de conseguir tudo e, realmente no dia seguinte o touro
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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estava armado. Ensaiamos todos os dias pela manhã, tarde e noite.
Chegado o dia, o ginásio estava lotado. Antes do espetáculo o senhor
Prefeito falou exaltando o dia do soldado, em seguida falou o presidente
da Câmara, também falaram alguns vereadores, deputados até chegar o
coronel e por último falou o senhor Governador. A seguir, conforme o
programa, o primeiro a se apresentar foi um senhor muito conhecido,
compositor de letras e músicas muito bonitas que estavam na parada de
sucessos, falou e cantou acompanhado de um trio de violões. Depois foi
minha vez, seguindo outras apresentações, meninas cantando, meninos e
meninas dançando. A tourada deixamos por último, porque o bombeiro
que fazia o papel de toureiro cômico era muito engraçado, até nos ensaios
nos fazia rir. Pelas risadas do público, pelas palmas e pela satisfação que
o público demonstrava, dava para entender que o espetáculo havia
agradado. O bombeiro que tinha feito o papel de toureiro cômico o fez
muito bem, o público ria às gargalhadas, eu fiz o papel de toureiro sério,
quem levou as felicitações, como em outros lugares, fui eu, talvez porque
me apresentei quatro vezes, primeiro como mágico, segundo apresentei
um monólogo cômico, a terceira apresentação que fiz foi com uma dupla
de músicos bombeiros que tocavam e cantavam muito bem músicas
regionalistas, a pedido deles ensaiei bastante e aquele dia, acompanhado
por eles, cantei uma cúmbia e uma valsa colombiana que tinha aprendido
com meu professor de violão Túlio e com meus companheiros músicos e
cachaceiros que roubavam galinhas, enquanto alguns tocavam, um deles
roubava a galinha, a quarta e última apresentação foi o toureiro.
Felicitaram-me, até o compositor me felicitou e disse que adorou
minhas modinhas. O capitão e o coronel estavam felizes, não me
deixavam só em nenhum momento. Dos que tinham assistido ao
espetáculo, do que mais se ouvia falar era do mágico e da tourada. Os que
não tinham visto queriam ver. Os diretores das escolas procuraram o
coronel para me contratar, o espetáculo era só o mágico, a dupla cantora e
a tourada. O coronel nos franqueou o carro dele ou o do exército, quem
dava o preço era ele e a maior parte do dinheiro era para mim. A maioria
das vezes os bombeiros não queriam receber nenhum centavo e tudo
ficava para mim. Apesar disto, eu não ficava contente e ameaçava que se
da próxima vez não pegassem um pouco de dinheiro eu não iria convidálos para outro espetáculo.
Fiquei muito feliz quando recebi uma carta da mãe, era a resposta
de uma minha onde eu lhe contava que sentia muito lhe causar tanto
sofrimento com as minhas viagens, com as minhas despedidas. A carta
dela eu a li várias vezes porque nela me dizia: – Meu filho, eu sei que sua
vida está longe dos seus, longe da sua terra, é sempre fora daqui que você
encontra muitos amigos, que bem lhe querem. Meu filho, a única vez que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
/ 383
sofri e tive vontade de morrer foi quando você desapareceu, gurizinho
ainda, implorava pela minha formiguinha, era como eu lhe chamava,
lembra? Não sabia se estava vivo ou morto, pensava nos seus olhos: será
que ele aplica seus remédios? Confesso meu filho que muitas noites eu
chorei a sua falta, sempre rezava para a Santa de seu pai, a Santa Sara
Kaly, e lhe pedia que se você estivesse vivo o trouxesse de volta, e se
estivesse morto me tirasse desta espera, desta angústia. Ela ouviu as
minhas preces e me devolveu você forte e com saúde. Hoje você está um
homem feito, soube se cuidar e cuidou de seus olhos, não acompanhei
seu crescimento, mas estou segura de seu bom comportamento e isto me
faz feliz. Sempre rezo e peço a nosso Senhor e à Santa Sara Kaly que
derramem muitas bênçãos sobre você. Meu filho, tenho certeza que todos
os meus filhos são bons, porém entre todos, o melhor é você, seus irmãos
também falam e me dizem: Mãe, entre todos nós, seu melhor filho é o
Negrinho. É só por hoje, beijo meu filho..., sua mãe.
Guardei por muito tempo esta carta, gostava de ler sempre que
podia.
Os desafios da enchente
O coronel ficava feliz quando era procurado para me mandar para
mais um espetáculo, e lá ia eu contente porque todos os dias ganhava
dinheiro e como não tinha despesas com comida nem dormida, meu gasto
era mínimo.
De um município vizinho vieram falar com o coronel, eram da
polícia civil, e era para fazer uma apresentação com todo o pessoal que
havia se apresentado na festa do soldado. Não foi difícil reunir este
pessoal, que só queria se apresentar, pois dinheiro não lhes interessava. A
festa seria no dia 4 de janeiro quando festejariam 30 anos de
emancipação. Os organizadores faziam bastante propaganda, convidando
o público para participar dos festejos, onde teria comidas típicas da região,
corridas de parelheiros, pinhatas, jogo de vôlei com bexiguinhas cheias de
água e outras atividades. Pelo entusiasmo que sentia na cidade, o turismo
seria grande e a festa seria um sucesso. Porém não foi o sonhado, porque
no primeiro dia de janeiro, na parte da manhã, quando ainda muitos
dormiam devido a ressaca dos festejos da entrada do ano novo, e horas
antes do meio-dia, desabou um temporal, algo de não acreditar, as ruas e
as avenidas desapareceram, eram como rios caudalosos e barrentos, que
arrastavam tudo que encontravam pelo caminho. Passavam árvores
arrastadas pela água, gado afogado e tudo quanto era bicho, os bombeiros
eram chamados de todos os cantos, os pedidos de socorro não paravam,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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os carros não conseguiam entrar e já saíam de novo, e o temporal não
dava trégua. Já se notava o cansaço dos bombeiros, não tinham parado
durante todo o dia, além do cansaço estavam mal alimentados. Às 4 horas
a chuva parou de vez, o firmamento sorria enquanto os habitantes desta
parte do planeta choravam, pela destruição da cidade, das suas casas, e
outros pela perda de seus entes queridos, ou no mínimo com familiares
feridos internados em algum hospital. O exército e a polícia também
ajudavam, era pouca gente, o desastre era muito grande. No dia seguinte
se viam muitos carros de bombeiros parados, só dois bombeiros à
disposição, alguns estavam no hospital feridos ou tinham desmaiado de
cansaço ou de fome. Assistindo tal situação, a falta de material humano,
sem que ninguém me pedisse, quando entrava um carro no quartel e o
motorista descia, muitas vezes deixando o carro até mal estacionado,
correndo para o banheiro, e como eu sabia o que tinha que ser feito no
carro o pegava e levava até a bomba, abastecia o tanque de gasolina,
examinava o óleo, se faltava completava, calibrava os pneus, fazia uma
rápida faxina e colocava em condições de poder novamente sair. O
motorista vendo tudo aquilo aproveitava e entrava na cozinha, tomava um
cafezinho, e saía com os bombeiros que estavam à sua espera, ele ainda
comendo um pedaço de pão, saía em disparada com a sirene ligada a
todo volume para atender mais um chamado.
Em um determinado momento pediram socorro para ir retirar o pé
de um rapaz que tinha ficado preso na grade de um bueiro. No quartel
havia dois carros estacionados, dois bombeiros recém ingressados, porém
não tinha motorista, foi quando ouvi o chefe gritar no telefone: – Tenho
dois carros, dois bombeiros, só que não tenho motorista. Ao ouvir estas
palavras gritei de lá onde eu estava: – Zelada, eu sei dirigir, só que não
tenho habilitação nacional. Ele me respondeu: – Ortega, não interessa a
carteira, por favor, dê uma mão. Sem demora corri para a oficina, peguei
três folhas de serra e um marco, peguei o carro e fiz o que os motoristas
faziam, arrancar e ligar a sirene a todo volume. Já no local vi que não era
difícil, cortei o marco do ralo em dois pedaços, o pé do rapaz ficou livre.
Quando eu estava ajudando o rapaz sair, apareceu o coronel meu amigo
com dois soldados, e ao me ver me abraçou, não havia tempo a perder,
ajudado pelos bombeiros tiramos a grade enquanto o coronel e os
soldados pegaram o rapaz e colocaram-no dentro do carro e saíram sem
demora para o pronto socorro. Regressamos para o quartel, encontrei o
chefe sentado e com a cabeça sobre a mesa, tinha sucumbido pelo sono.
Fui direto para a cozinha à procura de um restinho de comida que tinha
sobrado nas panelas, porque com tanto pedido de socorro até os
cozinheiros estavam de serviço, e ninguém cozinhava. O chefe entrou na
cozinha, fiquei de pé rendendo continência como se fosse da corporação,
no seu rosto se notava o cansaço, com voz calma me disse: – Ortega,
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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quero te pedir mais um favor, pega um carro e um bombeiro daqueles com
quem fizestes o socorro e vai lá no hospital central, lá tem dois bombeiros
que controlam um motor que está bombeando água do porão do hospital
onde estão as geladeiras e está cheio de água. Aqueles bombeiros estão
lá desde cedo e devem estar exaustos e mal alimentados. O serviço é
controlar o filtro por onde passa a água para que não fiquem entupidos,
pois no caso de entupirem o motor apaga e não é fácil fazer pegar
novamente. Os dois bombeiros que estão lá são motoristas, entrega o
carro para um deles. No momento que chegar um bombeiro descansado
mando-o te substituir. – Sim senhor, respondi. Dei as duas últimas
garfadas da comida que restava no prato, mastigando ainda e sem me
preocupar em escovar os dentes, subi no carro com a sirene a todo
volume e arranquei, o bombeiro que me acompanhava, segundo as regras,
não poderia sentar-se ao meu lado, só um oficial poderia, e a regra foi
cumprida. Olhei o relógio, faltavam 10 minutos para as 21 horas, os
poucos carros que circulavam se encostavam, me deixando espaço livre
para passar, me sentia o tal, meu coração se estremecia, era gostoso
sentir essa emoção.
Chegamos no local e os dois bombeiros ao me ver gritaram: –
Paisanito! Era essa a forma que todos me chamavam no quartel. Falei: – O
Major Zelada mandou substituí-los, é para vocês irem direto para o quartel.
Antes de partir me deram algumas explicações do funcionamento do
motor, os rostos deles pareciam mais de defunto do que de vivos, o hálito
era insuportável, pegaram o carro e se mandaram. Em seguida calçamos
as botas e as luvas de couro, examinamos a altura da água, dava quase
nos nossos joelhos, lá fora a água saía com força e em quantidade,
puxada pelo motor, frequentemente examinávamos o filtro para verificar se
não tinha sujeira, nos revezávamos uma vez cada um.
Olhei o relógio, eram 2 horas, a água tinha diminuído bastante,
chegava pouco acima dos tornozelos, era a vez do companheiro ir
examinar o filtro, segundos depois de entrar no porão escutei um grito que
parecia de voz feminina, pensei: será que alguma morta ressuscitou? Corri
para dentro do porão para socorrer o companheiro, encontrei-o cuspindo,
sacudia as mãos, dava pulinhos e mexia o tórax com gestos que parecia
uma verdadeira bicha. O motivo do grito e dos gestos era que perto do
filtro boiava uma mão e ele, pensando que era lixo, tinha pegado, e
quando descobriu que era a mão de um morto, foi aí que se desesperou.
Como já havia pouca água no porão, boiavam muitos pedaços de corpos,
que com a pressão da água, as geladeiras tinham se aberto e os corpos
saltado fora. Estes corpos eram de indigentes e de gente sem parentes,
eram para estudo de estudantes de medicina das diferentes universidades.
Retirei a mão do filtro e a coloquei em um lugar do porão que já estava
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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sem água. O companheiro continuava dando aqueles pulinhos de bicha, e
com os lábios fazia um ruído como criança (bruuuu...). Contornada a
situação, voltamos para a rampa onde permanecíamos sentados, era daí
que escutávamos a todo momento a chegada de viaturas da polícia e
ambulâncias de hospitais, todas as sirenes a todo volume, enfermeiros
corriam com macas levando doentes ou talvez mortos, iam para dentro do
hospital, lá se ouviam gritos, gente chorando, talvez parentes de mortos ou
feridos, o movimento era contínuo. O bombeiro estava calmo, não gritava
mais, não cuspia nem dava aqueles pulinhos de marreca. Nossos relógios
marcavam 4 horas e 15 minutos da madrugada do dia 2 de janeiro. Falei
para o companheiro: – Hoje é o aniversário da minha mãe, todos meus
irmãos estarão reunidos festejando e levando presentes, só eu, como
sempre, não estarei presente. Meu pensamento estava na minha casa, foi
neste momento que ouvimos um ruído estranho dentro do porão, entramos
correndo, o bombeiro na frente e eu atrás. No momento que ele entrou no
porão, uma das portas da geladeira deu um forte estouro e se abriu e
começaram a saltar braços, cabeças, pés, troncos, todos congelados e
caíam no chão. Meu amigo deu um berro e caiu desmaiado, era um lugar
onde ainda tinha muita água e lhe cobriu quase todo o rosto, com medo
que se afogasse, puxei-o e coloquei-o em cima de vários corpos de
cadáveres e depois corri para dentro do hospital e pedi socorro Dois
enfermeiros vieram correndo e levaram-no para dentro, fiquei sozinho
controlando o motor e o filtro. Sem condições de colocar todos aqueles
corpos na geladeira, comecei a amontoá-los nos lugares onde não tinha
mais água. Como nessa hora o porão estava quase seco, coloquei o filtro
dentro de uma espécie de cisterna. Havia muitas partes de corpos
espalhadas e fui amontoando-os em um lugar só, havia corpos inteiros,
que com certa dificuldade conseguia arrastar para junto dos outros.
Enquanto os amontoava e arrastava ficava olhando, todos de olhos
fechados, homens, mulheres e crianças, eu pensava que todos eles já
haviam estado vivos, caminharam, alimentaram-se, riram, choraram, talvez
foram felizes, outros não, hoje ali, inertes, congelados, alguns costurados
de forma grosseira em alguma parte do corpo. Olhei o relógio: 8 horas da
manhã. Eu estava com fome e com muito sono, para não dormir falava
sozinho e me perguntava: será que aquele bombeiro é bicha? Distraído
com o pensamento no companheiro, ouvi o barulho de sirene, pensei: mais
um morto ou ferido. Na realidade era o carro de bombeiros se
aproximando, vinham dois oficiais, dois bombeiros, como sempre, quando
me enxergaram começaram a mexer comigo. Um deles disse: – O
Paisanito agora pertence ao corpo de bombeiros. Todos me
cumprimentaram sorridentes, sabia que me queriam bem. O oficial me
perguntou pelo bombeiro, contei-lhe todo o acontecido, inclusive que
estava lá dentro do hospital. Um deles subiu para o hospital e eu e os
outros entramos no porão onde estavam os mortos. Contei-lhes que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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quando o companheiro viu todo aquele pessoal saindo do congelador deu
um berro e desmaiou, como ainda tinha bastante água, eu havia colocado
a cabeça dele em cima de um morto para evitar que se afogasse e subi
para pedir socorro, dois enfermeiros vieram e o levaram, para não
abandonar o filtro não subi e também não podia fazer nada.
Os oficiais examinaram a geladeira e me perguntaram se todos
aqueles corpos estavam ali dentro, respondi que sim e falei: – Foi por isso
que quando o companheiro viu toda essa gente sair dali dentro, desmaiou.
– Quem lhe ajudou a amontoá-los? – Ninguém, não tenho medo não
senhor! Estão mortos, não podem fazer mal a ninguém. O oficial voltou do
hospital dizendo que o bombeiro estava bem e que já iria ser liberado, o
chefe do hospital veio junto e aproveitaram para mostrar que tudo estava
em ordem e livre da água. Ele me levou para dentro do hospital, me fez
tirar toda a roupa, antes me aplicaram uma injeção, não soube para quê.
Colocaram-me dentro de um banheiro. Aproveitei para fazer minhas
necessidades fisiológicas retidas durante a noite e até então, em seguida
tomei um longo e gostoso banho com água morna. Ao sair do banho um
enfermeiro me fez colocar um guarda-pó branco, em seguida me levou até
o comedor onde me serviram um reforçado e apetitoso café.
Após o café, uma doutora me fez vários exames, depois me
entregaram uma sacola onde estava minha roupa suja, me advertindo que
era para usar só após ser lavada. Estava ainda de guarda-pó e o diretor
veio me agradecer o bom trabalho que tinha feito, pois qualquer outro teria
fugido de tantos mortos, algo macabro, em um porão quase na penumbra,
durante a noite, e ainda solitário, longe de qualquer ser vivente: – Só de
pensar em você me arrepio todo, falou ele. Nos despedimos, em seguida
fui levado para um carro estacionado em frente ao hospital, lá encontrei o
bombeiro também de guarda-pó, conversamos até chegar no quartel. Não
havia nenhum carro e nem bombeiros, só havia um oficial de plantão, que
veio nos cumprimentar, se notava o seu cansaço, fez algumas perguntas
ao bombeiro a respeito de sua saúde e também deu informação da sua
esposa. Eu ficava olhando para ele e não tinha pinta de bicha. O oficial,
dirigindo-se ao bombeiro, disse-lhe que deveria estar cansado e que podia
ir descansar, o bombeiro respondeu: – Senhor, dormi a noite toda e posso
ficar para o caso de uma emergência, quem não tem dormido é o
Paisanito. Realmente, eu estava quase dormindo em pé. Em seguida me
despedi dos dois e corri para me deitar, só acordei no dia seguinte, era 3
de janeiro. Nada funcionava, tudo era silêncio. Alguns estados vizinhos
também tinham sofrido a fúria do temporal. No dia 4, todos mais calmos,
todos os bombeiros e carros estavam no quartel, a notícia dos mortos que
eu tinha amontoado tinha se espalhado, o comentário era geral, precisaria
muitas páginas para tantas vezes que eu tive que contar o episódio de ter
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amontoado tantos corpos de cadáveres, eu contava como tinha feito e
enquanto explicava, aproveitava para imitar os gritinhos do amigo e as
cuspidas, acompanhado dos pulinhos, ele ria que se matava, foi ali que
descobri que o jeito dele rir era assim mesmo, de bicha não tinha nada.
O município onde faria o espetáculo era um dos mais destruídos.
No dia seguinte o coronel mandou me chamar, ao ver-me chegar veio
correndo, abraçou-me e fomos direto para seu escritório. Disse-me que
tinham lhe contado da minha façanha e da grande colaboração que eu
tinha prestado em momento tão triste, agradeceu-me e disse que se sentia
muito feliz em ter me conhecido. No meio da conversa falei-lhe da minha
vontade de continuar a viagem, falei-lhe da escolinha, dos padres, da surra
que tinha levado e como tinha prometido voltar lá, esse era meu desejo.
No dia 8 fui homenageado com um almoço de despedida. Vários
oficiais do exército, policiais e bombeiros estavam presentes. As palavras
alusivas à homenagem foram ditas pelo Zelada que se pronunciou cheio
de emoção, meu amigo, o coronel, me entregou uma placa em
agradecimento à minha colaboração. No dia 10 o coronel me acompanhou
até a rodoviária, na despedida entregou-me um cartão, nele estava escrito
à mão uma recordação para seu irmão que morava na capital. No
momento que me entregou, ele disse: – Quando chegares na capital
procura este general, ele é meu irmão, é conselheiro do Presidente,
qualquer coisa que precisares procura-o que ele te dará uma mãozinha, já
falei com ele pelo rádio amador. Como meus gastos foram poucos,
consegui economizar uns bons trocos. Sendo o meu maior interesse
chegar na capital, eram poucos povoados ou cidades onde parava para
trabalhar, às vezes viajava de trem ou de ônibus, feliz pensava na Regina
e sua família, nos padres, nos amigos, nas criancinhas com quem tanto
brincava, e também se tudo estaria igual. Fazia tanto tempo, só uma carta
mandei-lhes e só uma recebi.
Com a família da Regina
Uma tarde cheguei à capital, não sabia para onde ir. Já na rua me
chamou atenção um letreiro que dizia Hotel Cosmopolita. Achei
interessante o nome e lá me hospedei. No dia seguinte, após o café, sem
mais nada pensar, me dirigi para a igreja para ver os padres, a Regina, e
depois visitar alguns amigos. Bati na casa paroquial e quem me abriu a
porta foi aquele padre que me perseguia e que tinha me perguntado
porque eu não ia embora, pois eu estava criando problemas para as
paróquias. Ele me recebeu todo sorridente, mandou-me entrar, em
seguida, com muito barulho, chamou o padre alemão, que ao saber que
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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era eu que estava lá, veio correndo, abraçou-me, o padre safado sorria,
sentia que ele estava feliz, mas tudo me parecia fictício, até pediu para nos
trazerem cafezinho. Uma senhora trouxe cafezinho, serviu-me com um
sorriso de puxa-saco. O padre alemão estava ao meu lado, perguntei-lhe
pelos outros padres, me respondeu que o pároco tinha ido para a Itália a
chamado do Papa, dois deles tinham ido para o povoado do sul, onde a
população maior era de índios, e ele voltaria para a Alemanha. A Regina
não quis ficar e estava trabalhando em uma empresa de cosméticos. O
padre safado aproveitou para dizer: – O bom filho a casa torna, você
voltou, eles também voltaram.
Quando o padre safado foi atender um casal que queria batizar o
filho no próximo domingo, o padre alemão aproveitou para me dar o
endereço de Regina e disse: – Vá visitá-la, aquela família lhe quer muito
bem, nunca o esqueceram. Eu pressentia que o safado queria falar
comigo, só que não se atrevia perto do padre alemão. Ao me despedir, o
safado disse: – Orteguita, volta que precisamos falar. Em seguida foi
atender uma pessoa e o padre alemão pediu meu endereço para se
despedir de mim quando tivesse que viajar, quando estava indo embora
me perguntou se tinha dinheiro, disse-lhe que sim. Em seguida disse-me: –
Trate de sair daqui de táxi, esta zona está politizada, tem surgido uma
grande bandidagem, incrível é pensar como era nosso bairro. Despedi-me,
peguei um táxi e fui direto para o hotel. Depois de almoçar dormi os 10
minutos do Antônio. Quando acordei fui procurar a Regina e como não
tinha pressa, fui a pé, eram aproximadamente oito quadras. É muito difícil
descrever a bagunça que se formou com a minha chegada. A Regina virou
a cadeira ao se levantar e assustou o pessoal do escritório, ela correu,
gritou, me abraçou, tornou a gritar, chamando a filha que trabalhava na
outra sala: – Vem minha filha, que nosso Negrinho chegou! Como é
gostoso sentir o carinho sincero das pessoas, no abraço que a filha da
Regina me deu, senti aquele carinho, aquela sinceridade tão diferente do
cumprimento do padre safado. A Regina me cheirou de um lado da orelha
e disse: – Até o perfume ainda está ali. Uma das funcionárias falou em voz
alta: – Regina, tu nos disseste que ele era bem Negrinho, só que ele é
moreninho, cor canela. Cada um falava um pouquinho a meu respeito,
alguém chegou a dizer que eu era todo simpatia. – Minha filha, disse
Regina, pega a tua bolsa que esta tarde estaremos de férias. A guria
disse: – Mãe, avisa o pai que ele é capaz de não ir para casa cedo.
Lembro que o marido da Regina brincava comigo como se fosse uma
criança.
Em casa a Regina falou-me que os patrões eram vereadores e que
estavam em plena campanha política pela reeleição. Também me disse
que eles compravam muitas peças de ferro, tais como mostruários e
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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brindes, só que sofriam muito porque compravam da Espanha e da Itália e
que dificilmente chegavam a tempo, que ela tinha falado muito com os
patrões a meu respeito, de tudo que eu fabricava em ferro, em peças de
alumínio, cobre e latão. Depois de muita conversa me perguntou o que eu
pretendia fazer. Respondi que ainda não tinha pensado. Perguntou-me se
eu gostaria de trabalhar com o dono da empresa, que ele organizaria um
local. Gostei da idéia, eu não queria mais trabalhar com teatro.
Eles não me deixaram ir para o hotel, me levaram para um
quartinho que eles quando se mudaram tinham organizado, como se
tivessem certeza do meu retorno. Antes de me deitar lhes mostrei o cartão
dado pelo coronel e lhes falei do desejo de visitar o general, irmão do meu
amigo coronel, no dia seguinte. Antes de dormir continuamos
conversando. A Regina me falou que descobriram que o culpado do
fechamento da escolinha fora o padre Nernecio, este era o nome do padre
que eu chamava de padre safado. Ele tinha se valido da influência do
arcebispo metropolitano que era seu amigo. Contou-me também que o
padre Nernecio tinha convidado vários de meus alunos para reabrirem a
escolinha, mas que ninguém tinha comparecido. O marido da Regina
disse-me que eles também tinham descoberto e desconfiavam que o padre
Nernecio tivesse pagado para que nos surrassem. Falei para eles que o
padre Nernecio tinha me convidado para ir falar com ele. Eles me
informaram que a intenção dele era convidar-me para reabrir a escolinha e
disseram: – Ele sabe que contigo à frente toda a gurizada é capaz de
voltar. Falei para eles que eu não pretendia voltar a falar com aquele
“padreco” e que eu não gostava dele. – Ortega, tem outra coisa, aquele
nosso bairro mudou totalmente. Encheu-se de uma rapaziada vinda de
outros estados e vivem pesquisando a que partido político pertencem as
famílias, se descobrem que não são do partido deles os surram e até
matam, e ninguém fica sabendo quem foi, e mesmo sabendo, ninguém
fala, para salvar o couro, foi por isso que nós saímos de lá. Muitas coisas
mais me contaram. Depois de um cafezinho, fomos dormir. Como sempre,
essas emoções me tiravam um pouco o sono. Comecei a pensar no
recebimento que o pessoal onde trabalhava a Regina tinha me feito, que
bonito, quanta coisa bonita ouvi de Regina, quanta coisa linda ela tinha
falado para os colegas a meu respeito. Veio-me à tona o coronel, o
capitão, o Major Zelada, os Bombeiros, que gente! que amizades! Comecei
a lembrar um trecho da carta da mãe onde me dizia: meu filho, a sua
felicidade está longe dos seus, longe da sua terra. E eu pensava: é
verdade, na minha terra fui acusado de ladrão, de ser ovelha negra da vila,
de ser mau exemplo, só porque fugi de casa, e quando me viram chegar
bem vestido, de relógio no pulso e com dinheiro, tentaram fazer a mãe me
internar na Febem. Com tudo isso, nenhum dos rapazes da vila progrediu
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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economicamente, familiarmente sim, muitos ainda bem novos chegavam a
ter três, quatro e até cinco filhos.
Não queria lembrar o passado, era melhor desfrutar do presente,
assim mesmo me veio a imagem do coronel, a alegria dele quando me viu
lá no porão do hospital, aquele abraço que me deu, lembrei seu rosto
pálido, demarcado, notava-se nele o cansaço, talvez de tanto correr
salvando vidas. Vi o rosto do Major Zelada quase dormindo, aqueles dois
bombeiros com os rostos como defuntos e aquele hálito insuportável,
quem sabe quantas horas sem se alimentar, surgiram na minha mente
turbilhões de pensamentos e censurava-me por não ter ficado mais um
tempo ajudando na recuperação daquela tragédia, com tanto carinho que
eu tinha recebido, tanta amizade e a única coisa que eu tinha feito era
amontoar aquela quantidade de mortos nus, homens, mulheres, crianças.
Lembrava daqueles corpos femininos, quem sabe em vida qual não seria o
pudor ocultando o mais íntimo de seus corpos, aos olhares masculinos e
agora sem pudor, sem poder se defender do meu olhar obrigatório. Eles
achavam que eu tinha feito muito, que fora um herói. Eu acho que fiz
pouco, que devia ficar mais um pouco ajudando. Acho que foi neste
momento que peguei no sono.
Madrugador que sempre fui, cedo já estava acordado, depois de
um bom banho fui à sala, peguei o jornal do dia anterior, ainda se falava do
famoso temporal, não quis ler, passei adiante, não queria ler, só lia os
títulos. De repente, ouvi uma voz que me disse: – Aí madrugador! Era o
Caco, assim é que chamavam o marido da Regina.
Após o café me levaram para o hotel e me pediram para não sumir
que precisavam de mim. Mudei de roupa e me dirigi à procura do general,
que me recebeu como se já fôssemos velhos amigos. Sabia de tudo a meu
respeito, o irmão coronel tinha lhe contado tim-tim por tim-tim. Levou-me
até sua casa, apresentou-me sua mulher e filhos, perguntou-me onde
morava, respondi que morava em um hotel. Achou que gastaria muito, e
ofereceu para que eu morasse no quartel, que lá não gastaria com nada,
tinha comida e dormida, claro, aceitei. Depois do almoço, fomos ao hotel,
pegamos as minhas coisas e fomos para o quartel, apresentou-me para o
oficial de plantão, informando-lhe que eu era hóspede oficial, passei a viver
uma vida de rei. Quando um oficial saía, o que entrava já tinha
informações a meu respeito. Oficiais e soldados me consideravam como
um herói, porque o general contava para todos, como um fato heróico, eu
ter amontoado aqueles mortos, segundo seu irmão coronel tinha lhe
contado. Na hora do almoço, e às vezes à noite, me faziam perguntas a
respeito, eu respondia, de vez em quando exagerando, algumas vezes me
faziam perguntas pitorescas referindo-se aos mortos. Oficiais ou
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suboficiais às vezes me convidavam para ir a suas casas almoçar ou
jantar. Aos domingos a Regina vinha me buscar para passar o dia com
eles, quando os patrões da Regina ganharam a eleição fomos a um clube
festejar. Algum tempo depois me mudei para o local que os chefes da
Regina tinham organizado para eu começar a trabalhar, inclusive com um
quarto para morar. Primeiro comecei sozinho fabricando mostruários em
ferro, com aplicações de latão, que eram para o uso da empresa, mas os
trabalhos foram aumentando, começaram a chegar pedidos de prateleira,
de suporte, e muitas outras coisas, e sozinho não dava conta, então a
Regina, em comum acordo, trouxe dois rapazes da turma da escolinha.
Diga-se de passagem, o nosso encontro foi de muita alegria. Ficou
acertada nossa jornada de trabalho, começávamos às 8 horas e
parávamos às 16 horas, de segunda à sexta-feira. Eu nunca aprendi a
cozinhar, e também não gostava, melhor dizendo, nunca gostei, embora
tivesse todas as comodidades para preparar meus alimentos, preferia
comer no restaurante, onde em pouco tempo fiz muitos amigos. Às 7 horas
da manhã já estava no restaurante conversando e tomando café, aquele
cafezão, às 8 horas todos estávamos trabalhando, parávamos ao meio-dia
durante 30 minutos para almoçar e em seguida continuávamos.
Eu ganhava por peça e os rapazes eram pagos pelos proprietários,
a Regina ganhava uma pequena comissão por peça vendida, a maior parte
eram encomendas e sempre em quantidade, diariamente chegavam
pedidos. Às 16 horas parávamos, como eu estudava numa escola
estadual, fazia um lanche, e às 18 horas já estava na aula até as 22 horas.
As aulas eram nas segundas, quartas e sextas-feiras, nos dias que não
tinha aula eu ficava trabalhando até as 21 horas, era meu interesse
produzir. A Regina me paparicava: – Ortega, eles cobram bem caro as
peças. Respondia: – Não faz mal, eles também me pagam bem, consigo
mandar dinheiro para minha mãe e ainda me sobra. Tinha muitos amigos,
me sentia feliz, sempre me lembrava da carta da mãe que me dizia: Meu
filho, sua vida está longe dos seus e de sua terra.
Noiva e revolução
Na escola havia desde o primário até preparativo para o vestibular
e eu estava terminando o secundário e pretendia ingressar no
preparatório. Tinha uma professora que dava aula no primário e que
estava fazendo o preparatório para ingressar na universidade e fazer
literatura. Nós nos dávamos muito bem e começamos um lindo romance,
pela primeira vez tinha uma noiva, me deitava pensando nela, sonhava
com ela, as horas não passavam para me encontrar com ela e passavam
muito rápido quando estava junto dela, seu perfume me acompanhava por
ORLANDO ORTEGA – VIDA E ARTE
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todo lado, e falando comigo mesmo, dizia: Ortega, chega! Chega de andar
sozinho por este mundo, está na hora de organizar um lar. E desde então
só pensava em me casar. Eu não conseguia sentir perfume em outras
mulheres, também todas me pareciam feias, só ela era a mulher mais linda
do mundo, quando combinávamos para almoçar ou jantar em um
restaurante, me desesperava e ficava nervoso quando ela não chegava no
horário combinado, claro que quando chegava eu era o homem mais feliz
do planeta. Algumas vezes ficava acertado para irmos ao cinema na
sessão das 18 horas. Chegava a sua casa e ela não estava pronta, às
vezes terminávamos não indo, pois quando ela ficava pronta o filme já
devia estar na metade. Para ela o atraso era normal, eu não reclamava, a
paixão tudo relevava, porém com o passar do tempo, os atrasos por parte
dela começaram a me cansar, e a chama da paixão começ

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