Vogue Brasil, September 2015

Transcrição

Vogue Brasil, September 2015
Lost In
Translation
A incrível aventura de um grupo
de brasileiras em terras
japonesas serve de moldura para
a coleção de verão de
Paula Raia e faz um convite à
contemplação e à descoberta
de novos horizontes.
Nas próximas páginas,
a estilista conta como foi a
odisseia, num diário que mescla
informação, emoção
e reflexão. Arigatô, Paula!
Por Paula Raia Direção de arte Camila Bossolan
Fotos Tinko Czetwertynski
Em meio a The Secret of the Sky, obra de Kan Yasuda no Benesse House Museum,
em Naoshima, Paola de Orleans e Bragança, Mariana Catta Preta,
Camila Bossolan e Paula Raia vestem peças do verão 2015/16 da grife de Paula
Q
uando esta coleção do verão 2016 estava
ainda em seu longo processo embrionário, percorrendo o campo das ideias e sensações, alguns conceitos surgiram como
guias: comunhão, harmonia, vastidão,
equilíbrio, generosidade, paz, silêncio. Essas palavras
de ordem causaram em mim uma sensação anterior
à estética, então, quando sentei para desenhar os primeiros vestidos, me imaginei no papel de um tradutor. A coleção nasceu e, no momento em que deu seus
primeiros passos, no desfile de lançamento na minha
casa, em abril passado, ela caminhou clara, off-white,
crua. Foram 16 tons de cru, mantendo o tecido livre de
processos químicos.Talvez para equilibrar toda essa liberdade, surgiu o Shibari, técnica japonesa de amarração artística que se entrelaçou na coleção. Seria o Japão
me chamando? A verdade é que eu não sabia. Porque
desde o começo eu pensava em ir para a Islândia.Achava que o país nórdico seria o cenário perfeito para fotografar, como já faço tradicionalmente, para estas pági-
Paola e, à esquerda, Paula posam na mesma instalação de Kan Yasuda,
no complexo em Naoshima com assinatura do premiado arquiteto Tadao Ando
Naoshima é a materialização do sonho de Soichiro Fukutake,
que em 1992, ao lado do genial
arquiteto e amigo Tadao Ando, iniciou um projeto de
reposicionamento da remota ilha
Abaixo, Camila e, à direita, Mariana em momento de contemplação no museu
nas de Vogue. Queria um
lugar de cores neutras
que emoldurasse a coleção, um ambiente que
trouxesse também a brisa daquelas palavras que
me guiaram no começo –
eu buscava o silêncio.Que
bom que não fui. “Paula,
eu tenho o lugar certo
para você”, me disse Chris
Bicalho, amiga e dona da
agência de viagens STB,
ao ouvir meus devaneios.
“O que você busca está
em Naoshima!” Era o Japão surgindo novamente.
Tentei não me empolgar:
por mais incrível que me
parecesse fotografar em
terras japonesas, aquela viagem era um sonho
distante, e a logística, impossível.
Fui pesquisar. E descobri que Naoshima é a
materialização do sonho
de Soichiro Fukutake,
que em 1992, ao lado do
genial arquiteto e amigo Tadao Ando, iniciou um projeto de reposicionamento da remota ilha. Naoshima
estava envelhecida, perdendo sua comunidade jovem. Mas Fukutake fez daquele espaço um absurdo
encontro de arte, arquitetura e natureza. E Tadao traduziu o desejo do amigo numa arquitetura de experiência extremamente tocante, que, além da estética
de peso, faz um convite à contemplação. O resultado é
completamente surreal e mágico.
Eu desejei o Japão e, principalmente, almejei
Naoshima. Mas como
conseguir fotografar
lá? Os japoneses são
muito conservadores. Entrar numa ilha
tão protegida com
esse objetivo é difícil e requer um sem-fim de autorizações.
Decidimos
tentar.
Fomos persistentes.
Estudei a fundo e
criei um moodboard
para mostrar a eles a
sinergia entre as minhas peças e a arquitetura de lá. Com toda
a formalidade japonesa, responderam
que precisaríamos do
aval de todos os artistas que tivessem suas
criações expostas no
editorial. Bom, deu um
trabalho danado (many
thanks, Chris Bicalho
e Gabriela Saad, da
Vogue, que mergulharam com a mesma determinação que eu!).A uma semana da viagem,ainda não
sabíamos se poderíamos fotografar nas locações. Embarquei no escuro para a terra do sol nascente.
Se chegar no Japão é uma experiência paralela,fazer
essa viagem com uma equipe de 11 pessoas é deliciosamente confuso. A excitação era tanta que passamos
incólumes ao fuso horário, mesmo com as 30 horas de
voo e as 12 de diferença.Tóquio, nossa primeira parada,
é pulsante e cheia de frescor. Lá, tudo é vanguardista,
ainda que antigo: a educação, a gentileza, o respeito,
Paola na plantação de chá Obubu, em Kyoto. Na página ao lado, a modelo japonesa
Yuka Sekimizu na casa de chá Yamamoto-Tei, em Tóquio
o silêncio, a limpeza das ruas, que, mesmo sem lixeiras, seguem limpas por pura questão de civilidade. Mesmo com uma volumosa massa de gente nas
ruas, existe uma habilidade de convivência admirável. Eles andam em filas e numa marcha harmoniosa. Tóquio te ensina sobre respeito, ao mesmo passo
em que te impulsiona ao novo.
Nossa equipe era formada por 11 pessoas, entre elas
as três “mulheres reais” que foram convidadas para
fazer as vezes de modelos: Paola de Orleans e Bragança, princesa pop, doce, leve e educada; Mariana Catta
Preta, brasileira que vive em Londres, espirituosa, inteligente e dona da risada mais gostosa do mundo; e
Camila Bossolan, modelo de ocasião e também diretora de arte, que se revelou muitas em uma só: disposta,
amável, autêntica, forte e frágil, engraçada.
Em caravana, nos aventuramos na cômica jornada pelas ruas de Tóquio. Um tremendo desafio, já
que viemos todos de voos malucos e não dormidos,
tentando entender as mil e uma variações de bilhetes de metrô, curiosos para desvendar bairros e
experiências em uma única tarde. Nos perdemos e
nos encontramos até as ofuscantes luzes da cidade
acenderem. O day after começou com a nossa primeira sessão de fotos, feita numa tradicional casa
de chá local. O restante do dia foi dedicado aos pre-
Paula, no bambuzal de Arashiyama, um dos cenários mais espetaculares dos arredores de Kyoto.
À esquerda, escada de vidro do Go-Oh Shrine, de Hiroshi Sugimoto, parte do Art House Project, em Naoshima
Acima, Mariana e a hair stylist Keiko Tada nas plantações de chá Obubu, a uma hora de Kyoto
parativos para a viagem a Naoshima. Era preciso
transportar malas pessoais, malas de produção, malas de maquiagem e muito equipamento fotográfico.
Fazer caber a imensa bagagem (vezes 11), em tempo
cronometrado, no bagageiro do trem-bala, que vai
de Tóquio a Okayama em quatro horas, foi um dos
capítulos mais divertidos e emocionantes da saga.
Superlotamos alguns vagões, mas deu certo. Depois,
mais uma hora de van e 30 minutos em um ferry
boat nos levaram até o destino final.
Naoshima fica no meio do nada. Logo na entrada, as
obras redondas, coloridas e bem-humoradas da artista
Yayoi Kusama dão as boas-vindas, assim como Mitsue,
pequena japonesa de alma bem grande. Relações-públicas do lugar, ela nos olhou (eu, a equipe e as dezenas
de malas) desconfiada. E nos levou para conhecer as
locações. Estava há dias tentando incorporar uma forma de expressão mais contida e acatada como a dos
japoneses, mas brasileira que sou logo caí no choro. Me
sentia extremamente especial por estar ali, num lugar
tão único, acompanhada dos melhores cúmplices.
Ao fechar os olhos, ainda enxergo com clareza o
primeiro lugar que fui conhecer. Difícil descrever o
templo de vidro. Obra do artista Hiroshi Sugimoto,
tem uma escada de vidro que sai de um pequeno túnel
subterrâneo e termina num lindo santuário ao ar livre,
unindo terra e céu. Sim, as instalações ficam espalhadas, imersas na natureza. As obras e imensas formas
geométricas te surpreendem quando brotam camufladas em meio às paisagens. Foi assim que me deparei
com o Chichu Art Museum, um dos quatro museus da
ilha e um dos projetos mais impressionantes que já
vi na vida – para não comprometer o visual ao redor,
ele foi construído praticamente inteiro subterrâneo, e,
mesmo posicionado abaixo da terra, uma abundante
luz natural ilumina todo o espaço, transformando as
obras de acordo com a hora do dia e a estação em curso.
E que obras! Claude Monet, James Turrell e Walter De
Maria são alguns dos nomes que por ali te abraçam.
A ilha é a antítese do museu ocidental, fechado e
lotado. Faz um convite a experimentar o silêncio e a
reflexão. Ao entrar no Oval Room, obra-prima de Tadao Ando, todos os nãos passam a fazer sentido – ali
não pode fotografar por mais de uma hora, não pode
subir o volume da conversa e também não pode fotografar se chover.
Em Naoshima você pode se hospedar em modestas
guest-houses ou optar pela inimaginável experiência
de dormir dentro de um museu, num quarto projetado
por Tadao, caso do Benesse House. Foi nossa escolha,
claro! O make-up rolava na varanda do quarto, onde o
presente era uma deliciosa vista para obras espalhadas
em um perfeito gramado com fundo de mar. Pelos corredores, não se ouvia ou encontrava ninguém, exceto
no café da manhã. O público? Os gringos mais cults
do planeta, galeristas, artistas e entusiastas, mulheres
chiquérrimas de cabelos brancos e camisas de linho e
homens estilosos com seus óculos de armações largas.
Era a única refeição que fazíamos no hotel.
Durante o dia, comíamos nos pequenos restaurantes da vila ou em singelas e íntimas casas de famílias,
que passavam o dia inteiro preparando pratos típicos
e exóticos (nada de sushi!): sensacionais peixes desidratados, legumes com molhos diferentes, sopas de
peixe, bateras, udons... Enquanto saboreávamos tanto
mundo novo, dividíamos nossas histórias com essas
queridas figuras locais que surgiam no nosso roteiro.
Indo embora da ilha, já na balsa, tenho a lembrança de
ver de longe Mitsue, nossa impecável anfitriã, pulando e acenando mesmo a muitos metros de distância.
Lágrimas de adeus, tivemos uma conexão quase que
telepática!
A próxima e última parada seria Kyoto. Antiga capital do império japonês, um balneário sem clima de balneário, a cidade abriga a essência da cultura e história
japonesas: os santuários e templos budistas, os mais
Ao entrar no Oval Room, obra-prima de Tadao Ando,
todos os nãos passam a fazer sentido – ali não pode fotografar
por mais de uma hora, não pode subir o volume
da conversa e também não pode fotografar se chover
Paola, Camila, Paula e Mariana no
Oval, a área mais exclusiva do Benesse House, em Naoshima,
que apenas pode ser visitada por seus hóspedes
Mariana no ferry boat que levou o grupo a Naoshima.
À esquerda, Paola no bambuzal de Arashiyama, nos arredores de Kyoto.
sublimes jardins, as gueixas apressadas na rua... tudo
te convida a transitar em outro tempo; é um respiro
da loucura de Tóquio. Em Kyoto teríamos os dois últimos dias da maratona de 12. No primeiro fomos para
a Obubu Tea Plantation, a uma hora da cidade. Que
equação perfeita de paisagem! O desenho daquelas
plantações trouxe um pano de fundo escultural para
as fotos, parecia mentira. No segundo e último dia, caímos da cama bem cedinho para pegar a luz perfeita da
plantação do Arashiyama Bamboo Grove. Mais uma
locação que revelou o poder e a harmonia da natureza
no Japão. E mais um dia de céu azul, amém! É que,
segundo a previsão do tempo, estávamos nas duas
semanas com maior probabilidade de chuvas do
ano. Fui com fé. E o sol se abriu a cada dia de foto.
No Japão encontrei muito mais que o cenário perfeito para as lindas imagens destas páginas. Pude
sentir aquelas palavras de ordem que me guiaram no
início da coleção serem refletidas na geografia da terra
e nas pessoas: o silêncio da ilha de Naoshima; a comunhão das amizades que surgem, ou se fortalecem, de
maneira única quando estamos viajando; o equilíbrio
de Kyoto e a harmonia das plantações de chá; a generosidade do povo japonês; a paz dos templos budistas;
a vastidão dos caminhos de Tóquio. Minha expectativa era enorme, mas não poderia prever o quanto fui
surpreendida. Se cada viagem nos faz maiores, dessa
sinto que regressamos enormes!
Produção: Camila Schnarndorf e Isabel Pimenta Bueno Produção executiva: Marcio Edagi
Assistente de produção: Fabiana Tanaka Modelo: Yuka Sekimizu (Satoru Japan)
Hair stylist: Keiko Tada Maquiagem: Ban Fumihiro Styling: equipe Paula Raia Locações: Image Field Inc
Um dos blocos do hotelmuseu Benesse House,
o Oval Room tem quatro
quartos disponíveis
Paola Orleans e a
modelo japonesa
Yuka Sekimizu (abaixo)
Paula, Mariana e Camila Bossolan
no café da manhã do Ritz Carlton
após as fotos no bambuzal
Intrépida
Camila Bossolan e Paula em
cima da van, posando para as
fotos no bambuzal Arashyama
No metrô de Tóquio, a primeira
parada: a partir da esquerda,
Isabel Pimenta, Paola de
Orleans, Tinko, Mariana Catta
Preta, Camila Bossolan, Paula
Raia e Camila Schnarndorf
A turma na praia,
em Naoshima
Paula Raia no Ritz
Carlton, em Kyoto
TRUPE
Agradecimentos: Chris Bicalho, Mark Harris, Mandarin Oriental
Tokyo, Xmart, The Ritz-Carlton Kyoto, Fukutake Foundation,
Mitsue Nagase e equipe Benesse Art Site Naoshima
Paola e Paula no Oval Durante as fotos na plantação,
Room, obra-prima todas usaram sapatos para
de Tadao Ando se proteger das cobras
Na plantação de chá em
Obubu: pano de fundo
escultural para as fotos
Mariana Catta Preta, com uma vara
para espantar as cobras da plantação
de chá, e a hair stylist Keiko Tada
Tinko no bambuzal
Arashyama,
em Kyoto
FOTOS: ISABEL PIMENTA
Além das três convidadas especiais e de
Tinko Czetwertynski, fotógrafo belga
radicado no Brasil (mas que vive pelo
mundo), nossa equipe era formada pelo
produtor brasileiro Márcio Edagi (nosso
anjo da guarda, que vive no Japão há 20
anos, sem ele as fotos simplesmente não
teriam acontecido); por Isabel Pimenta e
Camila Schnarndorf (meus braços direito
e esquerdo até, e principalmente, do
outro lado do planeta); pelo maquiador
Ban Fumihiro e a hair stylist Keiko
Tada, ambos japoneses; e por Fabiana
Tanaka, minha amiga da vida, que tem
um incrível dom de agregar as pessoas.

Documentos relacionados